A Menina Olhos Ouro
A Menina Olhos Ouro
A Menina Olhos Ouro
Piligra
Ilustrações
Sanqueilo de lima Santos
Piligra
Romance de Cordel
Ilhéus-Bahia
2015
Copyright © 2015 by Piligra
EDITORA FILIADA À
Sobre
a obra
A
obra intitulada A Menina dos Olhos de Ouro, de autoria
do Professor Lourival Pereira Junior (Piligra), do Depar-
tamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universida-
de Estadual de Santa Cruz (UESC), homérico poeta grapiúna, é
uma narrativa poética da história de Maria, menina que nasce
em meio à pobreza e, porém, possui em si cobiçada riqueza, nos
olhos, que norteia todo o percurso do texto. Além de Maria, a
história engloba outros quatro personagens principais: a mãe de
Maria (que não tem nome), Raimundo, uma mulher gananciosa
(também sem nome) e José (o amado de Maria).
A história aqui narrada também faz clara intertextualida-
de com passagens da Bíblia Sagrada, relacionadas aos perso-
nagens Maria e José (pais de Jesus Cristo) e ao próprio Jesus,
conforme registros encontrados nos livros de Mateus, Marcos
e Lucas (evangelhos sinóticos). Todavia, por vezes, tais perso-
nagens alternam papéis e confundem-se, de modo que Maria
(A Menina dos Olhos de Ouro) é apresentada por sua mãe (sem
nome) como se fora a Maria, mãe de Jesus. Noutros versos, esta
mesma Maria parece ser o próprio Jesus. Por sua vez, José, seu
amado, às vezes é o esposo de Maria, mãe de Jesus, e, conco-
mitantemente, o namorado de Maria. Nota-se, ainda (e isso so-
mente é percebido numa segunda leitura, e fora da sequência
cronológica dos fatos), que surge um outro Jesus: O Raimun-
do, bêbado, marginalizado e atormentado pela sua consciência:
“Oh Deus toma este covarde / Que em vergonha agora arde / E
numa grande cruz, prega (Capítulo 22)”.
Vale ainda observar que os versos “E novamente clareia
/ Um olho da filha amada / Que não enxerga quase nada / Por
causa da fina areia” parecem dialogar, às avessas, com o texto
que se lê no livro de São João, capítulo 9, versículos 6 e 7, que
narra que um cego passou a ver a luz do dia, após Jesus lhe ter
passado, nos olhos, um misto de saliva e lama. Assim, irmanam-
se as imagens de areia e lama, cegueira e escuridão.
Ainda em diálogos com a Bíblia Sagrada, semelhantemen-
te ao que ocorrera com o menino Jesus Cristo e seus pais (Maria
e José), que se exilaram no Egito, Maria (A Menina dos Olhos
de Ouro), e sua mãe, saem do Morro do Cruzeiro, favela onde
moravam, para fugir dos que lhes ameaçavam a vida (Capítulo
5). Portanto, de igual modo, os personagens das duas histórias
fogem, respectivamente, do Rei Herodes (que mandara matar
as crianças à época de Jesus) e da mulher vendedora de segu- pois, une o cotidiano do morro ao cristianismo católico, à fé em
ros (que pretendia arrancar os olhos de Maria). A propósito, em Maria, e, nisso, traduz um certo alento, que contrasta com a vida
ambos os casos, as crianças perseguidas, ou fugidas, possuíam difícil das pessoas pobres e marginalizadas: “Barracão de zinco /
em si uma riqueza, um tesouro a ser salvo: o do menino Jesus Sem telhado, sem pintura / Lá no morro barracão é bangalô / Lá
era a essência divina, para a redenção do mundo; a da menina não existe / Felicidade de arranha-céu / Pois quem mora lá no
Maria, os olhos de ouro. morro / Já vive pertinho do céu / Tem alvorada, tem passarada
No âmbito estético, a presente obra, embora majoritaria- / Alvorecer / Sinfonia de pardais / Anunciando o anoitecer / E
mente de cunho moderno, contemporâneo, não deixa de trazer o morro inteiro, no fim do dia / Reza uma prece à Ave Maria...”.
consigo fortes traços realistas e naturalistas. Estes últimos, pelas Nos capítulos finais, a história se mostra impressionante,
imagens de sangue e pus, por exemplo, para representar o sofri- fazendo o leitor imaginar como fora possível, ao poeta-autor,
mento humano. Aqueles, pelo desnudamento da realidade social, aqui ficcionista, inserir numa mesma estrofe duas histórias pa-
caracterizada pela pobreza, miséria e pela marginalidade que ralelas e concomitantes, de distintos personagens, porém imbri-
lhes é intrínseca. Percebem-se também características simbóli- cados e mergulhados no mesmo mar de dor. Mesclam-se, dessa
cas, pelas representações de cores e sonhos, um misto de fantasia forma, doação e abnegação para a redenção ou salvação de uma
e realidade, a exemplo de “Um tesouro precioso de um amarelo vida. Nesse sentido, duas histórias se desfecham em uma: uma
real” (Capítulo 2), dentre outros versos, e “Aos seus pés muito que ganha, outra que perde. Adiante, na mesma estrutura tema-
dinheiro / Do chão brotava sem fim / Em volta deserto e nada / ticamente híbrida, percebem-se as histórias de Maria, A Menina
Uma pintura rasgada / E a miragem de um jardim (Capítulo 7)”. dos Olhos de Ouro (em agonia), e a da mulher que cobiçara algo
Identificam-se, também, características barrocas, pela da menina – uma em dor, outra em momentânea alegria.
presença de antíteses relacionadas à riqueza e à pobreza, luz Porém (e isso inevitavelmente, enche o leitor de um vin-
e escuridão, o pecado e o divino, a vida e a morte. Tal carac- gativo prazer), a alegria da mulher não perdura, visto que é ex-
terização se exemplifica nos versos “Eu estava suja, cega / Por tinta por uma grande decepção.
uma corda amarrada / Mesmo assim eu conseguia / Enxergar a No capítulo 7, os versos “Seus dois olhos projetados / Em
grande estrada /.../ O sol brilhava pra mim / E eu nunca chega- mil espelhos partidos / Quebrados, pela metade / Levemente
va ao fim / De uma grande escuridão (Capítulo 13)”; “Fruto de distorcidos / Reproduzindo a imagem / De uma lírica miragem
um grave pecado / De um estupro violento / Gestada com sa- / No deserto inconsciente / Maria à espera de alguém / À som-
crifício/.../ A menina frágil, santa/ Cresceu no útero sagrado...” bra de outro ninguém / Real do irreal consciente”, além do rico
(Prólogo), dentre outros versos. jogo de palavras e imagens, coloca o leitor na posição de obser-
Ressalta-se, também, que esta narrativa poética aborda vador, da mulher. Tal perspectiva se assemelha à apresentada
sentimentos humanos vis, repugnantes, a exemplo da cobiça, na canção “As vitrines”, de Chico Buarque, que embaralha vi-
da ganância, da busca argentária pela riqueza, em detrimento sões e imagens da mulher: “Os letreiros a te colorir / embara-
da saúde, da humanidade e da vida alheia. çam a minha visão / já te vi suspirar de aflição... tua sombra a
Paralelamente, um forte amor ao próximo (à sua mãe), se multiplicar / nos teus olhos também posso ver / as vitrines te
em detrimento de si própria, faz com que Maria, vítima da vile- vendo passar...”.
za, mergulhe na escuridão para que sua mãe tenha a luz da vida. Por assim observar, além de ser uma história dramati-
Tais imagens parecem dialogar com a letra da música “Deixar camente intrigante, relacionada a questões sociais, A Menina
você”, de Gilberto Gil, que narra o fim de um amor e ao mesmo dos Olhos de Ouro impressiona pelo fato de ter sido escrita em
tempo a necessidade de “reinventar o espaço /... manter o passo verso, e versos quase que uniformemente ritmados. Pela sua ex-
/ não ter cansaço / não crer no fim...” e encerra com “a luz nas- tensão, divisão em capítulos e pelos pormenores de cada per-
ce da escuridão”. Dialogam, ainda, particularmente pela doação sonagem (em trajetórias que se cruzam), a obra pode ser consi-
sacrificial, com a história do amor de Cristo pelos homens, ao derada um romance em verso, uma longa narrativa poética que
ponto de perder sua própria vida, na cruz. dá vida, desenvolvimento e morte aos seus personagens. Nesse
Todavia, em meio a um mar de miséria e dor, a história sentido, estrutural e tematicamente, seria impossível não com-
apresenta momentos cenicamente belos e leves, como se pu- pará-la à Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral
desse extrair beleza da tristeza, a exemplo de “O dia amanheceu de Melo Neto (também subintitulada de Auto do Natal Pernam-
belo / Um azul de brigadeiro / Pássaros faziam festa / No alto do bucano), ou mesmo à Odisseia de Jorge Amado, publicada pela
Morro do Cruzeiro (Capítulo 1)”. Tal passagem, num contexto de Editora da UESC, EDITUS, de autoria do próprio Piligra, texto
pobreza à brasileira e intertextualidade bíblica, irmana-se à letra que narra o nascimento, a vida, a obra e a morte do escritor
da canção “Ave Maria do Morro” (de Herivelto Martins). Esta, Jorge Amado.
Ressalta-se, ainda, que na presente história pululam elementos de va-
lor literário, tanto pelos recursos formais utilizados (estrofes com dez ver-
sos, modernamente rimados e ritmados), quanto pelos sentidos que lhes
são dados, de modo a traduzir sentimentos humanos inseridos num contex-
to de pobreza e marginalidade.
Ademais, a obra traz à tona a ideia de que o amor e a dor são nobre-
mente recompensados, enquanto que a maldade se decepciona e se arruína
a si própria. Em suma, o leitor encontrará aqui uma história poético-trágica,
numa rara e ritmada narrativa, com um final surpreendente. A impressão
P
que se tem é a de que ecos poéticos greco-romanos visitam uma original his-
tória brasileira, cujas imagens, certamente, poderão se converter em peça erante a demanda e o interesse aos quais atendem o tra-
teatral ou filme cinematográfico. balho de criação, solicitações que hoje em dia se tornaram
impessoais e anônimas, o que é possível ainda pretender
Itabuna-Bahia, 20.07.2014. como artista? Já essa pergunta supõe uma noção e, até certo
ponto, uma “opinião”, mesmo que provisória, sobre o que é
Samuel Mattos arte. Dos vários modos, segundo os quais se pode conceber a
Departamento de Letras e Artes da UESC / Academia Grapiúna de Letras. arte, pretendo seguir aquele que é indicado pela ideia de “fazer
experiência”. Agora, uma questão mais específica se coloca: que
experiência é possível fazer como artista no trabalho de ilustra-
dor? O ilustrador de uma obra escrita nunca é apenas alguém
que domina a técnica do desenho, da pintura ou da fotografia,
que se encontra permanentemente voltado para as imagens, as
cores, as formas e a luz, que são os ingredientes que “contam”
unicamente para a sua arte; mui diversamente, o ilustrador
precisa ser, antes de qualquer coisa, um leitor “interessado” na
obra, na sua história, na sua percepção poética.
A obra a ser ilustrada traz, numa visão desimpedida, o
conflito de paixões, de crenças, de sentimentos e de ideias às
quais o leitor se vê instado a responder com a invenção de novos
significados para a vida. Nesse sentido, a maior contribuição
para que a obra cumpra o seu destino, parte de quem a rece-
be, seja o leitor, seja o espectador: cada um refaz a experiência
quando faz invenção de possibilidades e de sentidos, graças a
que, no campo da criação, não atuam nem a necessidade cega,
nem os compromissos sectários; assim, as disposições do autor
e do receptor adquirem movimentos mais amplos, mais enérgi-
cos, ou seja, mais livres para variar as conexões das coisas. Tal
acréscimo de liberdade se reflete em uma maior capacidade de
intuir “mais e melhor” a vida. O ato de “fazer a experiência” se
torna mais enriquecedor.
Ao mesmo tempo, essa contribuição do receptor é singu-
lar, simplesmente porque cada pessoa que lê ou que contem-
pla uma obra, o faz a partir de sua própria existência, de suas
idiossincrasias, de suas limitações e potências, infinitamente
variáveis de indivíduo para indivíduo. O receptor não é uma fi-
gura abstrata, que poderia ser reduzida a uma forma homogê-
nea. Por mais longe que a psicologia ou a sociologia cheguem,
na caracterização do “tipo”, fica sempre um resíduo irredutível.
O fenômeno da arte, quando o receptor lhe concede o espaço
de ação, vai justamente ao encontro desse “irredutível”. Ela o não seria suficiente a mera presença dos mesmos temas no texto
coloca em movimento, “desperta” esse complexo de matéria e e nas imagens: volto a dizer: “torna-se essencial a leitura efetu-
de forças a um tempo diversificado e orgânico, mutante e coeso, ada como um ato de fazer uma experiência”.
contrário a si mesmo e harmônico, “múltiplo e uno” e complexo Meu processo (que recomendo a todo leitor) foi deixar
que designamos, não sem mal-entendidos, de uma “existência que as palavras me tomassem pelas mãos e seguir os medos da
corpóreo-espiritual”. Essa expressão “existência corpóreo-espi- mãe de Maria, detestar a vendedora de seguro, esperar que a
ritual” não quer, aqui, significar algo teoricamente compreendi- peregrinação desse certo, acreditar na pureza do encontro de
do, mas antes, designar um horizonte enigmático, com o qual, Maria com José, acreditar na magia dos olhos que são de ouro e
em algum momento da vida, cada um é confrontado e se vê fa- de areia, passar da imagem monstruosa à imagem humanizada
dado a solucionar por conta própria. do pai de Maria, reconhecer o pior vilão na vaidade mundana,
A arte, a verdadeira arte, não foge a esse rosto indecifrável que faz chacota dos miseráveis... E, em seguida, depois desses
da vida. Em vez disso, acrescenta, ao enigma, materiais, formas, personagens terem ganhado vida, depois de eles não poderem
esquemas, táticas, instrumentos... é como se ela pudesse mul- mais ser vistos separados do seu mundo, violento, miserável,
tiplicar os pés e as mãos, fornecer olhos e ouvidos de uma outra mágico e redentor, foi deixar os acontecimentos concentrarem
espécie. uma energia tal, que se sentisse o “impulso” e a “vontade” de,
então, começar os desenhos. Eles surgiram, portanto, não de
A leitura de um romance ou de um poema faz nascer, de um “esforço da vontade”, mas do feliz ensejo à satisfação de um
um, dois ou de mais corações do leitor dezenas de outros cora- desejo espontâneo, engendrado pela leitura.
ções, dos quais, por sua vez, se ramificam as mais insuspeitas Comecei os primeiros estudos com canetas de bambu, que
nuances de sentimentos. Mas, apesar de tudo isso, nunca traz utilizei em todas as gravuras, complementando uma ou outra
a solução para o enigma. A arte deve contar sempre com a con- com pincel e bico de pena. O leitor-espectador irá encontrar,
tribuição do receptor, com sua resistência ou colaboração, com nas gravuras, as técnicas já existentes. Corpos com centro de
seu entusiasmo, sua crítica, com a luta ou inspiração que ele vai gravidade deslocado e linhas incompletas, para dar o efeito de
oferecer. movimento; linhas concêntricas para representar o brilho; li-
Ao generoso convite de seu autor, o poeta Piligra, que me nhas curvas e grossas, com sombreamento forte para dar a im-
colocou na liberdade de inventar as imagens em nanquim, que pressão de peso.
ilustraram “A Menina dos Olhos de Ouro”, fiz a fundo a expe- A ideia é destacar uma composição contrastante da luz e
riência de leitor. E o texto, já nas primeiras estrofes, forneceu indefinição do contexto espacial para reforçar a expressão do
materiais para a minha fantasia plástica. Fui “mordido”, como estado emocional, da dramaticidade, gradações e convergên-
leitor, e, enquanto não cheguei ao último verso, não larguei o cias, garantindo a fluidez e a continuidade... Além disso, certa
texto. Difícil foi a segunda etapa, a de transpor e, de certa forma, assimetria, um pouco de desproporção e deformação. Fizemos
interpretar o texto nos desenhos. A história de uma menina, que isso porque o expressionismo e outras escolas mais contem-
possui olhos feitos do mais precioso metal – cuja beleza, brilho porâneas lançam mão desses recursos que dispensam a busca
e valor, no entanto, assim como as belezas do coração, só são da perfeição imitativa. Afinal, sei que no limite do trabalho da
visíveis aos que amam ou odeiam – história que se passa em busca da perfeição, a fronteira entre o figurativo e o abstrato
um mundo de miséria tanto material como moral, que alcan- é frequentemente borrada. Mas, aqui, essas deformações têm
çou o nível do gênero trágico – solicitava uma versão plástica à uma explicação muito mais simples: a diminuição do esforço de
altura de sua excelência. Diante desse desafio, não pretendi, a precisão para o aumento da fluidez do gesto. A precisão do traço
bem dizer, “retratar” a história, explicá-la por meio de imagens, sacrifica a fluidez espontânea do gesto; inversamente, a fluidez
intensificá-la qualitativamente ou, mesmo, alterar sua essência. espontânea do gesto dispensa a precisão do traço.
“A criação pictórica” – pensei – “haveria de fornecer uma ex- As assim chamadas “imperfeições” do traço, que denun-
periência de espectador que ‘dialogasse’ com a experiência de ciam a espontaneidade do gesto, possuem, por outro lado, um
leitor”. valor estético próprio. Elas são uma metáfora que une o traço,
A mesma história, ora lida, ora vista, é uma história duas o corpo e a imaginação. O espectador as sente, inclusive, como
vezes experimentada e mais profundamente vivenciada, se uma uma extensão de seus gestos possíveis: os traços imperfeitos
experiência for capaz enriquecer a outra, sem sacrificar sua per- impressionam com mais vivacidade as suas alegrias esqueci-
sonalidade. As ilustrações interrogam o texto, o texto interroga das, os seus dramas, suas dores, suas esperanças e desilusões...
as ilustrações, um sugere respostas ao outro e o jogo se comple- Nisso também repousa o valor de obras não imitativas, penso
ta na imaginação do leitor-espectador. E para isso ser possível, eu, como, por exemplo, Klimt, Schiele e, mais próximos de nós,
sumario
Portinari e Carybé. Por conta dessa comunicação, desse tecido
que vai da história à imaginação, da imaginação ao gesto, ao
traço e ao jogo da vida, creio não me afastar dos gregos, quando
diziam: “a beleza é o esplendor da verdade”. Se uma pretensão
pode ser adotada pelo artista, ainda hoje não se comete nenhu-
ma “gafe” em seguir os gregos. Porquanto, não se trata da beleza Prólogo – o nascimento de Maria.........................................................15
obtida graças à imitação de uma perfeição. Sua verdade, em vez
Capítulo 1 – o segredo dos olhos de Maria...........................................21
disso, coloca-se em uma meta mais modesta, presente na acep-
ção de sinceridade. A criação artística vai conquistando beleza Capítulo 2 – o medo da mãe de Maria..................................................27
à medida que esconde cada vez menos as suas “errâncias” e à
proporção em que vai confessando tudo quanto ao modo como Capítulo 3 – a revelação do segredo de Maria..................................... 33
faz a experiência de viver.
Capítulo 4 – o drama e a força de Maria.............................................. 39
Ilhéus, 24 de novembro de 2014 Capítulo 5 – o exílio e a descoberta de Maria...................................... 45
o nascimento de maria
onascimento
demaria
A estória que narro aqui
Neste singelo romance
É sobre uma linda jovem
De beleza sem alcance
Uma menina carente 5
Um anjo belo e inocente
Que recebeu por tesouro
Duas joias cintilantes,
Verdadeiros diamantes:
Duas pepitas de ouro. 10
o segredo dos
olhos de maria
dosolhos
demaria
O dia amanheceu belo
Um azul de brigadeiro
Pássaros faziam festa
No alto do Morro Cruzeiro;
A mãe bem cedo acordou 105
E ligeiro se virou
Para olhar a bela cria
(Por um raio iluminada)
(Um anjo, imagem sagrada)
O rostinho de Maria! 110
o medo da
mae de maria
damae
A
menina
dos
olhos
de
ouro
26
Piligra
demaria
A mãe de Maria chorou
Durante a noite passada
Caminhando pelo quarto
Contemplando a madrugada
Ansiosa para ter 205
A Do médico um parecer
menina
dos Sobre o problema da filha A
olhos “Dentro do olho areia fina menina
de dos
ouro Que incomodava a menina olhos
28 E por isso inda não brilha.” 210 de
ouro
Piligra
O dia nasceu brilhante 29
Piligra
A mãe cedinho seguiu
Ao seu Posto de Saúde
E uma ficha conseguiu
Para a filha examinar 215
Um remédio encontrar
Para os olhos de Maria
Que nos braços de carinho
Delicados como um ninho
Tranquila e calma dormia. 220
a revela ao do
segredo de maria
A
menina
dos
olhos
de
ouro
32
Piligra
No primeiro ano de vida,
Seu primeiro aniversário
Celebrado com mistério
Um evento solitário
Na sala somente havia 305
A mãe e a bela Maria
Festejando com fervor
Com bonecos de brinquedo
Retrato de todo medo
Confirmação de um pavor. 310
o drama e a
for a de maria
A
menina
dos
olhos
de
ouro
38
Piligra
A confusão se formou
Um pandemônio completo
Uns parados na janela
Outros olhavam pro teto
Enquanto a bela Maria 405
Por um milagre dormia
Mergulhada em esperança
Aos olhos de alguns ateus
Como se a mão de Deus
Protegesse esta criança. 410
A
menina
dos A
olhos menina
de dos
ouro olhos
40 de
ouro
Piligra
41
A mãe de Maria chorava Piligra
E chorando então pedia
Que tivessem paciência
Até o nascer do dia
Prometendo então mostrar 415
Ao povo deste lugar
Os olhos da filha amada;
Mas a turba impaciente
Desejava loucamente
A verdade desvelada. 420
o exilio e a
descoberta de maria
A madrugada findou
E com ela todo medo
Tudo ficou para trás
Desvelado seu segredo
A mãe devagar seguia 505
Tendo nos braços Maria
Pela rua sem ninguém
Ambas sabiam, no fundo,
O quanto é perverso o mundo
Quanto de usura ele tem. 510
a tristeza e a
supera ao de maria
Maria custou a entender
Porque seus olhos brilhavam
Tão diferentes dos outros
E como estrelas piscavam
Amarelos feito o ouro 605
Misterioso tesouro
Que gerava na mãe (medo)
Por isso sempre escondia
Os olhos dela de dia
Um verdadeiro segredo. 610
A tristeza de Maria
Aos poucos se transformou
Em força, superação,
E a mãe atenta notou
Que sua filha cresceu 665
Inda jovem compreendeu
O seu trágico destino
Sua triste condição
Pois guardava na visão
Um poder quase divino. 670
Capítulo 7
o sonho
de maria
Maria seguia só
Numa estrada sem ninguém
Infinita como o céu
Um mar lançado no além
Envolvida em nevoeiro; 705
A
menina Aos seus pés muito dinheiro
dos Do chão brotava sem fim A
olhos menina
de Em volta deserto e nada dos
ouro olhos
Uma pintura rasgada de
58 E a miragem de um jardim. 710 ouro
Piligra
59
Quanto mais Maria andava Piligra
Menos do lugar saía
E a paisagem sem cor
Aos poucos se diluía
Como uma velha aquarela 715
Tinta escorrendo na tela
Sem forma predefinida
Ilusões de um sonho louco
Muito se mostrando pouco
Na mente quase vencida. 720
a narrativa do sonho
e o medo de maria
Maria acordou nervosa,
Suada, com calafrio,
Sem saber como contar
Este sonho tão sombrio
Para sua mãe querida 805
Atarefada na vida
Lutando para viver
Com a filha preocupada
Catando lixo na estrada
Em busca do que comer. 810
A
menina
dos
olhos
de
ouro
65
A noite estava chuvosa Piligra
Maria calma e calada,
Vento, frio, lixo e medo,
Uma avenida alagada
A mãe protegendo a filha 815
Um oceano, uma ilha,
Carros cortando o passeio
Gente correndo na rua
Nuvens escondendo a lua
Água furando bloqueio. 820
os sintomas da doen a
da mae de maria
Muitos dias se passaram,
Quem sabe, semanas, meses,
Um tempo sem distinção,
Fantástico, muitas vezes,
Entre sonho, realidade, 905
Explode um dia a verdade
Nos olhos de alguém doente
E onde não havia riqueza,
Reflete a dor, a tristeza,
No medo que mata a gente. 910
A
Maria foi até sua mãe Alguns meses, bem mais tarde,
menina Demonstrando uma atitude A mãe disse, então, que iria
dos Pegou sua mão gelada: Fazer no Posto uns exames A
olhos menina
de “Vá ao posto de saúde”, Só para acalmar Maria; dos
ouro olhos
Disse num tom natural 955 Que iria a um hospital 985 de
72 “Ou então a um hospital” Se estivesse mesmo mal ouro
Piligra
Rápido complementou; Mas que a filha se esforçasse 73
A mãe com cara arredia: Para não se preocupar, Piligra
“Não se preocupe, Maria!” A vida segue no mar
Tossindo, à filha falou! 960 Do abraço feito de enlace. 990
o primeiro
amigo de maria
Dez anos sem um amigo
Sem ninguém pra dividir
As amarguras da vida
O direito de sorrir;
Dez anos de solidão 1005
Sem pai, primo, sem irmão,
Irmã para celebrar
As coisas loucas da vida
Uma dor jamais vencida
Tristeza em todo lugar. 1010
o primeiro
carnaval de maria
Um bando de mascarados
Lançavam no ar serpentinas
Assustavam os meninos
Iam atrás das meninas
Uma lírica alegria 1105
Dominando todo o dia
Piratas bebendo gim
Correndo loucos na praça;
Maria se enchia de graça
José era o seu Arlequim. 1110
A
menina
dos
olhos
de
ouro
Bate-bolas se moviam 83
Com suas máscaras feias, Piligra
Varinhas, capas, bexigas,
Susto correndo nas veias
Das crianças da cidade, 1115
Corre-corre, insanidade,
Uma festa surreal
Dominando uma avenida,
Maria sentindo a vida
Na terça de carnaval. 1120
o outro medo
da mae de maria
Maria amava José,
José amava Maria,
Um amor puro, divino;
A mãe com medo sabia
Que essa lírica amizade 1205
Ancorada em lealdade
(Da mais profunda inocência)
Não geraria algo bom
Por isso mudava o tom
Agindo com paciência. 1210
o outro sonho
de maria
Com quatorze anos de idade
Maria teve outro sonho,
Inusitado, sem nexo,
Mais estranho que medonho
Uma volta ao sonho antigo 1305
Dentro de um pequeno abrigo
Onde tudo se passou
E enquanto seguia a pé
Ela contou a José
As loucuras que sonhou. 1310
o outro sintoma da
doen a da mae de maria
José tentou comentar
Algumas partes do sonho
Intérprete de si mesmo
Neste delírio tristonho
Mas Maria não deixou 1405
E logo desconversou
Pois sua mãe caminhava
Na direção deles dois A
menina
“Falamos disso depois” dos
Maria (assim) sussurrava. 1410 olhos
de
ouro
A mãe de Maria chegou 101
Pálida, nervosa, fria, Piligra
Suando feito cuscuz
Mergulhada em agonia
Uma tosse intermitente, 1415
Nervosa, grave, fremente,
Com um ruído malsão
Que tomou de assalto o peito
E José diz: “eu suspeito
Que ela está mal do pulmão.” 1420
o desespero
de maria
A noite longa se foi
Maria não descansou
Mesmo antes do sol nascer
A uma busca se lançou
De hospital em hospital 1505
Para ter algum sinal
Da sua mãe tão querida,
Filha da rua, indigente,
Sem documento, carente,
Abandonada na vida. 1510
a frustra ao
de maria
Quatro semanas passaram,
Um mês de dor, de agonia,
E, de súbito, do nada,
José falou pra Maria:
“Tudo vai terminar bem 1605
Darei um jeito, neném,
Para o dinheiro arranjar”;
Maria se preocupou
E para José falou:
“Você para de roubar!” 1610
A
menina
dos A
olhos menina
de dos
ouro olhos
112 de
ouro
Piligra
113
José conhecia a rua Piligra
Nela cresceu noite e dia,
Furtava carro, pessoas,
Escondido de Maria
Era sempre destemido, 1615
Pelos bandidos, querido,
Por sua força e coragem
Alguns chamavam José
“Enganador de mané
O doutor da vadiagem!” 1620
a gravidez de maria e a
interna ao da mae
Desde o susto que a mãe deu
Sete meses se passaram
Naquela noite terrível
José e Maria se amaram
Fizeram do amor magia 1705
Em perfeita sinergia
Num balé fenomenal A
menina
A dor da mãe fecundou dos
olhos
A paixão que dominou de
O coração do casal. 1710 ouro
119
Os dois corpos se moviam Piligra
Como o vento pelo espaço,
Simetria, perfeição,
Unidos num só abraço
A vida louca pulsando 1715
Uma alma agora vibrando
Em perfeita gestação
Espermatozoide dança
O óvulo tem esperança
Depois da fecundação. 1720
o retorno de maria
ao morro Cruzeiro
Duas semanas depois
Maria ao Morro voltava
Usando seus velhos óculos
Uma mulher procurava
Vendedora de seguros 1805
Com seus óculos escuros
Perguntava a todo mundo
Num desespero cruel
Rogando preces ao céu
Mergulhada no profundo. 1810
maria descobre
quem e seu pai
Raimundo ficou pra trás
Mergulhado na agonia
De rever a pobre filha
A bela e forte Maria
A Totalmente arrependido 1905
menina Do pecado cometido
dos A
olhos Contra a mãe naquela noite menina
de Hoje vive em bebedeira dos
ouro olhos
Refém da louca besteira de
130
A vergonha por açoite. 1910 ouro
Piligra
131
Seguindo pelas vielas Piligra
Mergulhada em pensamento
Maria com o endereço
Caminhava contra o vento
Olhando casa após casa 1915
Vez por outra o passo atrasa
Se apegando à pura fé:
“Oh Deus faça-me encontrar
Bem rápido este lugar”
Pedia seguindo a pé! 1920
o drama e a
cegueira de maria
A mulher não perdeu tempo
Negociou com Maria
Combinaram que José
O dinheiro levaria
Elas duas ficariam 2005
A uma clínica iriam
Para tudo combinar;
Naquele dia cinzento
Nublado como o cimento
O sol deixou de brilhar. 2010
o acerto de contas
e a morte de Jose
Depois que José levou
Ao hospital o dinheiro
E entregou o tal bilhete
De Maria ao enfermeiro
Ele decidiu voltar 2105
Para então poder ficar
Ao lado de sua Maria,
Mas, o destino cruel,
No seu terrível papel
De José se vingaria. 2110
o dialogo entre
maria e seu Pai
Raimundo encontrou Maria
Totalmente ensanguentada,
Com febre, dor, calafrios,
A própria imagem do nada
Depois de alguém comentar 2205
Na porta de um velho bar
Que viu no fundo do morro
(Na porta de um matadouro)
(Misturada a lixo e couro)
Alguém pedir por socorro. 2210
os dois
delirios
Maria, cega, delirava
Mergulhada em muita dor
Uma grande escuridão
O sol perdeu pra Ela a cor: 2305
“Alguém meus olhos golpeia
Minha face tem areia
A eternidade, um momento,
Sinto meus olhos nas mãos
Minhas retinas são grãos
De um profundo sentimento.” 2310
a alta da mae de
maria e o bilhete
No dia que sai do hospital
A mãe procura Maria
Busca José na calçada,
Mas, de chofre, se angustia,
Ninguém a espera na porta 2405
Ela diz: “isso não importa
Tenho um pouco de dinheiro”;
Eram quinze para sete
Quando recebeu o bilhete
Das mãos do velho enfermeiro. 2410
o parto de maria e a
venda de seus olhos
Ao chegar ao hospital
Maria foi medicada,
Sua mãe, bem mais tranquila,
Dizia não saber nada
Do que a filha tramou; 2505
“José nunca comentou
Sobre os planos de Maria;
Maldito seja você
Que por um louco prazer
Me estuprou naquele dia.” 2510
a ultima visao
de maria
“Tem as retinas de ouro”
Maria fala baixinho,
Toca na filha, suspira,
Fazendo nela um carinho
A menina apenas mama 2605
Um diamante na cama
Iluminando o destino:
“Um verdadeiro rubi
Minha filha guarda em si
Pupilas do ouro mais fino!” 2610