Movimento Escola Sem Partico
Movimento Escola Sem Partico
Movimento Escola Sem Partico
O Movimento Escola Sem Partido (MESP), foi criado em 2004 pelo advogado e
procurador Miguel Nagib. Segundo o próprio, tudo teria começado em setembro de 2003,
quando ele ouviu de uma de suas filhas que seu professor de história havia feito uma
comparação entre as trajetórias de vida de São Francisco de Assis e Che Guevera durante a
aula. Nagib, que é católico, se sentiu indignado com a atitude do professor, classificando-a
como “doutrinação” por interpretar a comparação como indevida, pois “as pessoas que querem
fazer a cabeça das crianças associam as duas coisas e acabam dizendo que Che Guevara é um
santo” (BEDINELLI apud MOURA, 2017, p. 23). O advogado começou a tentar mobilizar
outros pais da escola para propor medidas contra o docente. Após ser rechaçado tanto pela
direção da escola quando pelos demais responsáveis, Nagib teria se dado conta do tamanho do
problema da “doutrinação ideológica” em salas de aula. Não tendo a quem recorrer, o advogado
decidiu construir as próprias ferramentas para ajudá-lo nessa disputa. Daí teria nascido o
“Escola Sem Partido” (NAGIB, 2011).
Com um discurso de defesa de um certo tipo de valores familiares e da moral dos
estudantes contra práticas de “doutrinação ideológica” por professores, o movimento encontrou
eco junto a vários setores da sociedade brasileira, especialmente da classe política, com
destaque para grupos conservadores. Em 2014, atendendo um pedido do deputado estadual pelo
Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro (PSC), Miguel Nagib converteu o discurso de seu movimento
em um anteprojeto de lei, que passou a ser divulgado nos portais do MESP sob a alcunha “Por
uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar” (PENNA, 2016). Como exemplo da rápida
difusão das ideias do movimento, até outubro de 2016 foram contabilizados mais de 40 projetos
de lei em câmaras municipais, assembleias estaduais e no Congresso Nacional inspirados direta
ou indiretamente pelos anteprojetos do MESP, que hoje contam com versões para o âmbito
municipal, estadual e federal (MOURA, 2016).
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Mestrando em História Social do Território no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Formação de
Professores – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – na linha de pesquisa de Ensino de História.
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na América Latina, a explosão do erotismo por toda parte, tudo isso mudava o quadro
em que me via inserido (SILVA, 2016, p. 174)2
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Realizado em 1962, o Concílio do Vaticano II formulou uma série de iniciativas em favor da secularização de
alguns elementos da liturgia e estrutura eclesiástica da Igreja Católica, com o objetivo de adaptar a instituição
ao processo de mudanças culturais e sociais que vinham acontecendo durante a segunda metade do século XX
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(...) estudei a Escola Austríaca de economia, F. Hayek e von Mises, depois, tantos
outros, como Rothbard, Jouvennel, Lepage. (...) Estes fazem transpor teorias
econômicas, ou de mercado, para outras esferas de relação humanas, como política,
profissão, casamento, amizade, crime, etc. (...) Enquanto as teses liberais nada mais
fazem do que descrever realisticamente o comportamento natural humano, a
literatura socialista, seja de direita como de esquerda, formula um mal disfarçado
ímpeto de poder, necessariamente para “curar” a viciada desordem humana natural.
Estas são religiões salvacionistas, raivosas, ressentidas, proféticas (SILVA, 2016, p.
190-191)
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A página do IL afirma que “a semente plantada pelo trabalho de décadas do IL gerou formidáveis frutos, com a
criação de diversos outros institutos autônomos em defesa da liberdade”, dentre esses, o Instituto Millenium.
Disponível em https://www.institutoliberal.org.br/quem-somos/. Acesso em 15/04/2017
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no diagnóstico da educação brasileira feito pelo instituto: o ensino passa por uma
grave crise, que se evidencia no despreparo dos alunos para enfrentar o mercado de
trabalho, no abandono quase total da rede pública, na falta de qualificação dos
professores e nos “conteúdos desatualizados e ideologizados do ensino” (GROSS,
2002, p.145)
Republicações
A primeira categoria de fontes contem textos que, ao invés de surgirem a partir do
MESP, surgem em um contexto anterior à criação do movimento, sendo apropriados por ele
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(...) são descrições e explicações PARCIAIS. Sonegam o quadro inteiro. Não mostram
o outro lado. Não formulam os prós e os contras. Decretam juízos de valor, sem dar
aos acusados direito de defesa. Praticam meramente um explícito ou implícito
denuncismo. Não apresentam problemas como problemas, o que seria a verdadeira
educação.(SILVA, 2004b)
Esse viés, tido por Lehmann como marxista, representaria a própria evidência da
prática da “doutrinação ideológica”, algo totalmente oposto a concepção que o autor tem do
que seria um modelo apropriado de educação escolar. Para Lehmann, ensinar deve seguir os
critérios da democracia, onde “[o] educando será exposto a opções e alternativas diversas de
ver o mundo e nele atuar. Não haverá monopólio de informações, de imprensa, de partidos, de
opiniões, de textos escolares” (SILVA, 2004c). É “dever da escola” ensinar certos valores
universais que permitam aos indivíduos conviver em sociedade.
Textos originais
As fontes incluídas na denominação “textos originais” correspondem à três artigos,
publicados entre 2004 e 2009, são eles “A Doutrinação ideológica nas escolas” (2004d),
“Escola sem partido?” (2005) e “A doutrinação continua” (2009). O primeiro desses serve mais
como um grande apanhado dos textos publicados anteriormente. A principal novidade está na
definição que Lehmann traz para o que entende por “educação para a cidadania”:
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O que uma honesta formação para a cidadania deveria propor, deveria ser muito
mais positivo. Valorizar a responsabilidade individual, estimular o espírito
empreendedor, a inventividade, a inovação, o assumir riscos, ter objetivos
autônomos, providenciar o próprio futuro. Saber confiar em si mesmo para assim
construir uma sociedade de confiança. (SILVA, 2004d)
Nesse segmento, trato dos riscos que as concepções de Lehmann sobre educação e
“doutrinação” – tidas aqui como de aspecto conservador e reacionário – representam para uma
perspectiva de ensino de História voltada para a construção de sujeitos ativos.
A partir de Ana Monteiro e Fernando Penna, defino o campo do ensino de História
como um “lugar de fronteira” no qual se deve observar as especificidades tanto das práticas
pedagógicas quanto as da disciplina ensinada, no caso, História (MONTEIRO; PENNA, 2011).
Nesse espaço de trocas e relações, “os saberes ensinados nas aulas de história configuram a
expressão do que tem sido designado como conhecimento escolar” (MONTEIRO; PENNA,
2011, p. 192). Tal conhecimento possui uma “especificidade epistemológica” própria, pois está
voltado para objetivos como “a educação, o ensino e a formação de cidadãos” (MONTEIRO;
PENNA, 2011, p. 192). Ele é produto da transformação dos conhecimentos do professor até os
conhecimentos que serão ensinados (SHULMAN apud MONTEIRO; PENNA, 2011). É através
desses “modos de representar e formular o assunto de forma a torná-lo compreensível para os
outros” que a aprendizagem dos conteúdos faz-se possível (SHULMAN apud MONTEIRO;
PENNA, 2011, p. 196).
Assim, os conhecimentos ensinados tornam-se formas de imputar sentido naquilo
que se estuda. Esse tipo de saber construído transforma a ideia do ensino e do aprendizado em
formas de dar aos estudantes autonomia para construírem suas próprias formas de ser e estar no
mundo. É nesse sentido que Gert Biesta define como uma das funções da educação a da
“subjetivação”, que possibilita aos estudantes tornarem-se “sujeitos de ação e responsabilidade”
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(BIESTA, 2016, p. 1). Penso que a conceituação de ensino de História de Penna e Monteiro
pode ser integrada à noção de Biesta a respeito de educação e da sua função de “subjetivação”.
No entanto, é através de um outro conjunto de referências que as concepções de
Lehmann e do MESP se direcionam. As influências de figuras como Lehmann na trajetória do
movimento auxiliaram a que o movimento assumisse um caráter de matizes conservadora e
reacionária. Esses dois aspectos não devem ser tratados como sinônimos ou termos
intercambiáveis. Nem todo reacionarismo é conservador e nem todo conservadorismo
necessariamente implica numa reação a uma situação preestabelecida. No caso da relação entre
Lehmann e MESP, especificamente, essas duas características se mesclam e se alternam.
Quanto ao aspecto reacionário dessa relação, para Luis Antônio Cunha e
especificamente no que diz respeito ao MESP, o movimento é só parte de um grande conjunto
de movimentos que “configuram um projeto de educação reacionária, entendida aqui como a
que se opõe às mudanças sociais em curso e se esforça para restabelecer situações
ultrapassadas” (CUNHA, 2016, p.2). Tais movimentos se dividiriam em duas categorias: de um
lado, os de imposição, que promovem a consolidação do ensino religioso nas escolas públicas
e o retorno aos currículos escolares das disciplinas de educação moral e cívica, do período da
ditadura militar; do outro lado, os movimentos de contenção, onde o MESP se insere, que
pretendem frear as mudanças decorrentes do processo de secularização da cultura e laicização
da política, além de impor seus valores e padrões de comportamento como a norma a ser seguida
pelo resto da sociedade.
É possível transferir essas considerações para Lehmann. Da mesma forma, em sua
autobiografia, ele se posiciona como avesso a processos equivalentes. Não parece casual que
os termos “secularização” e “laicidade” sejam colocados junto de menções a uma certa
“explosão de erotismo” acontecendo concomitantemente a um contexto internacional de maior
projeção política de demandas de grupos minoritários como mulheres e LGBT’s e uma
conjuntura nacional de resistência contra a Ditadura Militar. Tais mudanças são tidas como
causadoras de um processo de degeneração social, o que poria em risco estruturas consideradas
por Lehmann como centrais para a vida humana, como a igreja e aquilo que entende como o
modelo norte-americano de democracia. Da mesma forma, a perspectiva de Lehmann sobre
educação serve em favor de proteger os valores dessas instituições contra quaisquer formas de
ensino que as considere sob um viés crítico.
Para a dimensão conservadora do MESP, busco a definição dada por Denize e José
Sepulveda (2016), que consideram o conservadorismo como uma categoria histórica que deve
ser abordada dentro do campo do debate da política. É daí que surge um discurso conservador,
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que lança mão de estratégias para “evitar qualquer transformação na ordem social ou melhorias
reais para as classes trabalhadoras, ou para qualquer grupo minoritário”, visando a manutenção
das desigualdades sociais. O conservadorismo nasce a partir da crítica ao Iluminismo e à
Revolução Francesa, sendo daí que provem as suas dimensões contrarrevolucionária e
antidemocrática (SEPULVEDA; SEPULVEDA, 2016).
A definição de antidemocrático pode parecer contraditória, já que, em praticamente
todos os seus textos para o MESP, Lehmann defende a democracia e uma educação voltada
para a cidadania. Porém, o que precisa ser levado em conta aqui é que concepções sobre
educação e democracia são essas que o autor reivindica. O que Lehmann de fato defende é uma
educação democrática e cidadã que se dê em “nível predominantemente técnico” (SILVA,
2004d), ou seja, que transmita aos indivíduos os conteúdos mínimos necessários para que eles
possam ingressar na vida em sociedade, deixando ao encargo de seus méritos e recursos as
ações que seguirão a partir daí. Cruzar essa fronteira do conhecimento técnico é traduzido como
parcialidade, oportunismo e maniqueísmo, logo, significa incorrer em “doutrinação
ideológica”.
Produto da visão neoliberal de mundo que Lehmann adotou e fez valer em seus
escritos, na prática o modelo que nasce daí é o de uma educação indecisa, o oposto de uma
pedagogia da autonomia, preocupada em fomentar através das relações de ensino-aprendizagem
prática democrática da decisão (LIMA, 2005, p. 78). A educação indecisa seria "heterônoma,
regulada por outrem", promovendo "a inação a passividade e a acomodação, o imobilismo e a
irresolução” (LIMA, 2011, p. 4) Através da noção de “doutrinação ideológica”, Lehmann e,
consequentemente, o MESP não só retiram de professores e estudantes a autonomia para decidir
sobre o processo de ensino-aprendizado, mas também retira o seu potencial de agir enquanto
sujeitos, descartando um certo sentido de educação e produzindo outro – de base conservadora
pois impossibilitada de estimular mudança.
Essa percepção sobre educação inevitavelmente se estende ao ensino de História;
incorrendo num processo de despolitização da escola e do currículo escolar; subtraindo desses
campos o potencial para que os que neles convivem ajam no mundo. Assim como as sociedades
ocidentais de fins do século XX que Bauman criticava, a escola também passa a se tornar "uma
colcha de retalhos de anseios pessoais", "um aglomerado de problemas e preocupações
privados” (BAUMAN, 2000, p. 73). A consequência dessa tendência à “individualidade
privatizada” é o surgimento de uma “antiliberdade”. A escola, que deveria ser de todos,
converte-se num mercado tomado por uma variedade de micro-interesses privados, cada um
deles competindo num esforço autodestrutivo para definir quem predomina sobre quem.
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