O Corpo Discurso de Renata Carvalho PDF
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Primeiras considerações
Jorge Dubatti, assim como Josette Féral, nos sugerem que a teatralidade
existe antes do teatro, ou seja, que o teatro faz um uso específico e estético do que
se define como teatralidade. Sendo assim, a teatralidade seria anterior e mais antiga
ao teatro, decodificado como arte e como estética, e estaria, para Dubatti, aliada a
conceitos de uma disciplina específica, denominada por ele como Antropologia do
Teatro. Talvez antes de ser teatro propriamente dito, a teatralidade compõe a vida
humana em suas mais variadas formas e está presente em diversas práticas sociais
humanas.
Este fato é justificado por Dubatti, quando o autor propõe que a teatralidade
seria a capacidade humana de organizar o olhar do outro; a teatralidade seria,
portanto, a construção de uma política do olhar. Neste sentido, o que faz da teoria
de Dubatti interessante segundo o ponto de vista que procuro defender neste texto,
é a dimensão dentro do Poder que a teatralidade passa a atingir, já que ela, para o
autor, geraria ação social ao elencar aquilo que se pode ou não se pode ver; aquilo
que se deve ou não se deve ver e construir, junto de si, uma rede de olhares.
Inicio este texto, portanto, analisando do ponto de vista desta política do olhar
proposta por Dubatti as sanções, tanto judiciais como civis, sofridas pela atriz
Renata Carvalho ao circular com seu espetáculo O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu e como o seu trabalho seguinte, Manifesto Transpofágico pode ter
surgido em resposta a tais sanções. O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu,
que foi dirigido por Natália Mallo e que contava com a atuação de Renata Carvalho,
sofreu diversos episódios de censura, no entanto, o primeiro e mais emblemático
aconteceu em Jundiaí, quando, por uma decisão judicial proferida pelo juiz Luiz
Antonio de Campos Júnior, o espetáculo foi impedido de ser apresentado na
unidade do SESC daquela cidade. Na decisão, o juiz alegou que figuras religiosas
não podem ser “expostas ao ridículo”.1
O Evangelho é uma peça teatral escrita pela dramaturga escocesa Jo
Clifford, que procura reler a Bíblia sob o olhar de Jesus, que retorna à terra no corpo
de uma mulher transgênera. O juiz que censurou a peça em Jundiaí parece ter
exemplificar a ideia de Dubatti sobre a teatralidade, definida por ele como uma
política do olhar, quando associou uma identidade de gênero, ou seja, o fato de
Jesus ser relido como uma mulher transsexual, a uma “exposição ao ridículo” de
figuras religiosas.
O professor Ferdinando Martins (2018), em palestra concedida ao Instituto de
Artes da Unesp em 2018, identifica a retomada intensa de uma prática de censura
moral na sociedade, principalmente depois do processo de impeachment da
presidente Dilma Rousseff, em 2016. Para o professor, o caráter moral da censura
1
https://www.conjur.com.br/2017-set-16/juiz-proibe-peca-representa-jesus-mulher-transgenero
acesso em 21 de outubro de 2021.
está intrínseco a um caráter “político”, pois essa seria uma maneira de gerar
abjeção àqueles identificados como “de esquerda”.
O conceito de abjeção utilizado por Martins em sua fala é debatido por Julia
Kristeva, filósofa e psicanalista búlgaro-francesa. Para ela, a abjeção é tudo aquilo
que é expelido de si e que, ao ser excretado, não chega a se tornar objeto. Judith
Butler (2019), filósofa estadunidense, avança na reflexão sobre a abjeção e procura
compreender o que denomina como corpos abjetos. Para ela, as hegemonias
sociais agem sobre os corpos diferenciando-os entre sujeitos e abjetos.
Essa matriz excludente pela qual os sujeitos são formados requer a produção
simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são
“sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo do domínio do sujeito. O
abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “não-vivíveis” e “inabitáveis”
da vida social que, não obstante, são densamente povoadas por aqueles que
não alcançam o estatuto de sujeito, cujo viver sob o signo do “inabitável” é
necessário para circunscrever o domínio do sujeito. (BUTLER, 2019, p. 22)
Alguém negado a adotar qualquer identidade, que não seja o próprio corpo. A
travesti que carrega seu corpo como uma marca indissociável de si - um receptáculo
de violência, repressão e censura. Um outdoor, um muro ou um letreiro piscante
(que pisca, durante todo o espetáculo a palavra TRAVESTI), que ofusca qualquer
outra possibilidade de ser sujeita.
Meu corpo (TRAVESTI) veio antes de mim, (pausa) sem eu pedir. Ele é mais velho
do que eu. (TRAVESTI)
Então, hoje eu resolvi me vestir com a minha própria pele, o meu Corpo Travesti, até
que ele se humanize, se naturalize e acalme os olhos e olhares cisgêneros.
O outro jeito de conceber o fato teatral, como criação cênica onde o texto
dramático é bombardeado", debilitado e não funciona como dispositivo
essencial, também implica outras formas de participação no processo
criativo, especialmente para o ator que já não é só intérprete de uma
personagem, mas criador de uma entidade ficcional, co-criador do
acontecimento cênico ou inclusive performer que trabalha a partir da sua
própria intervenção ou presença, condição que caracteriza os praticantes das
teatralidades que nos interessam. (DIÉGUEZ, 2011, p. 26)
A teatralidade em Manifesto Transpofágico está no próprio corpo de Renata,
também como a afirmação contundente de que este é um corpo digno de estar no
teatro. Ao ocupar uma sala de espetáculos vestida de si e, ao mesmo tempo,
representando aquelas que foram impedidas de entrarem naquela sala, Renata
perfura como uma flecha uma cadeia de inúmeras e simbólicas opressões e faz
eclodir e explodir nos olhares de quem assiste ao seu manifesto uma nova ordem
teatral, fundada em verdadeiros preceitos de humanidade, que escancara, a
fórceps, as portas do teatro para a entrada de uma miríade de seres excluídos deste
espaço.