Liberdade Fraturada As Redes de Coercao

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 248

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JESSYKA SAMYA LADISLAU PEREIRA COSTA

LIBERDADE FRATURADA:
AS REDES DE COERÇÃO E O COTIDIANO DA EXPLORAÇÃO NA
PROVÍNCIA DO AMAZONAS (BRASIL, SÉCULO XIX)

CAMPINAS
2022
JESSYKA SAMYA LADISLAU PEREIRA COSTA

LIBERDADE FRATURADA: AS REDES DE COERÇÃO E O COTIDIANO DA


EXPLORAÇÃO NA PROVÍNCIA DO AMAZONAS (BRASIL, SÉCULO XIX)

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em
História, na Área de História Social.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELA ALUNA JESSYKA SAMYA
LADISLAU PEREIRA COSTA E
ORIENTADA PELO PROF. DR. RICARDO
FIGUEIREDO PIROLA.

CAMPINAS
2022
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências
HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB
8/3387

Costa, Jessyka Samya Ladislau Pereira, 1991-


C823L Liberdade fraturada : as redes de coerção e o cotidiano da exploração na
província do Amazonas (Brasil, século XIX) / Jessyka Samya Ladislau Pereira
Costa. – Campinas, SP : [s.n.], 2022.

Orientador: Ricardo Figueiredo Pirola.


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

1. Escravidão - Amazônia - História - Séc. XIX. 2. Liberdade. 3.Trabalho


escravo. I. Pirola, Ricardo Figueiredo, 1980-. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Fractured freedom: coercion networks and the daily
life of exploration in the Amazonas province (Brazil, 19th century)
Palavras-chave em inglês:
Slavery - Amazon - History - 19th century
Freedom
Slave labor
Área de concentração: História Social
Titulação: Doutora em História
Banca examinadora:
Ricardo Figueiredo Pirola [Orientador]
Claudio Henrique de Moraes Batalha
Vania Maria Losada Moreira
Davi Avelino Leal
Henrique Espada Rodrigues Lima Filho
Data de defesa: 05-05-2022
Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/ 0000-0001-6810-742
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/9300293060966083
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 05 de maio de
2022, considerou a candidata Jessyka Samya Ladislau Pereira Costa aprovada.

Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola


Prof. Dr. Claudio Henrique de Moraes Batalha
Prof. Dra. Vânia Maria Losada Moreira
Prof. Dr. Davi Avelino Leal
Prof. Dr. Henrique Espada Rodrigues Lima Filho

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Coordenadoria do Programa de Pós-
Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Para minha mãe Arnalda e minha avó Consuelo, cujo amor e
suporte me trouxeram até aqui.
Agradecimentos

Começar a escrever esta parte da tese carrega muitos significados: primeiro,


representa o resultado de todo trabalho e esforço construídos ao longo dos cinco anos que
estive dedicada a esta pesquisa; segundo, é o momento que marca a finalização de uma
jornada que, entre momentos bons e ruins, marcará para sempre minha vida. Todavia,
apesar de muitas vezes vivenciarmos na pesquisa, especialmente na escrita, momentos de
solidão e isolamento, muitas foram as pessoas que colaboraram para esse momento
acontecer, ora por meio de uma conversa ou com um abraço, ora indicando uma fonte ou
chamando para comer, ora ajudando na leitura ou fazendo críticas, foram diversas as
formas que as pessoas estiveram presentes na construção desta tese e, assim, tornaram
possível o encerramento desse ciclo na minha vida. E a vida e o universo me deram a
sorte de poder contar com muitas delas nesse processo.
Inicio agradecendo meu orientador, Ricardo Figueiredo Pirola, de quem recebi a
supervisão, a revisão atenciosa do trabalho e muito suporte, além de muita empatia,
principalmente nesses últimos dois anos quando em muitos momentos estava
desacreditada da minha capacidade de finalizar esta tese. Muito obrigada pelos momentos
de escuta e compreensão e, sobretudo, por acreditar na minha pesquisa e me mostrar que
estava no caminho certo para realizar um ótimo trabalho.
Agradeço ainda aos professores Aldair Carlos Rodrigues e Lucilene Reginaldo,
ambos da Universidade Estadual de Campinas, com quem tive o prazer de realizar
disciplinas na pós-graduação. As leituras e debates me propiciaram conhecimentos e
reflexões muito importantes que hoje posso compartilhar com meus alunos em sala de
aula.
Nessa direção, gostaria de agradecer os comentários dos professores Davi Avelino
Leal e Claudio Batalha que participaram do exame de qualificação desta pesquisa, cujos
comentários e cujas observações foram essenciais para a construção desta tese.
No doutorado tive o enorme prazer de poder dividir a sala de aula, os intervalos,
as caminhadas e a vida com pessoas incríveis e que trarei sempre comigo: Noemi Santos,
Jonatas Ribeiro, Julián Llaguno, Felipe Alvarenga, Franciely Oliveira, Lívia Torquetti,
Carla Baute, por tudo que compartilhamos na biblioteca, no bandejão, sentados na
pracinha, rindo das desventuras da pesquisa e de bolhão Geraldo. Minha admiração por
vocês cresce a cada dia e espero que ainda possamos criar muitas outras memórias juntos.
Guardo cada um de vocês no meu coração e me enche de amor lembrar da parceria que
construímos. Ao lado do Thiago Possiede e da Pamela Fabris (in memorian) pudemos
dividir os percalços da escrita da tese e juntos criamos um grupo de debate que foi
essencial para o desenvolvimento dessa pesquisa. Especialmente para o Felipe de Melo
Alvarenga, com quem tive o prazer de dividir nossa pequena moradia naquele ano de
2017, quero deixar registrado todo meu agradecimento pelo suporte e amor que você
divide comigo desde então. Você se tornou não apenas um querido amigo, mas um
irmãozinho com quem posso contar em todos os momentos da minha vida. A pessoa que,
mesmo à distância, estava ao meu lado para me acolher, “enxugar” minhas lágrimas e
mostrar-me os caminhos quando estive perdida. Obrigada por todas as aventuras e risadas,
e sei que ainda vamos viver momentos incríveis.
De fato, a distância nunca foi um impeditivo na minha vida para criar laços. Um
exemplo é a relação, que sou grata ao universo por ter me proporcionado nutrir, com
minhas deusas Natália Saraiva, Pamela Amorim e Agda Lima Brito. Cai uma lágrima de
felicidade só de pensar em vocês e em toda a força que vocês me proporcionaram. Espero
um dia poder retribuir por tudo. Cultivo por vocês um apreço gigante e tenham certeza
que vocês podem contar comigo para qualquer coisa. Minha admiração por vocês não se
reduz a essas linhas assim como nossa amizade.
Sou também eternamente agradecida pelos meus amigos de Manaus que são
igualmente maravilhosos. Xs historiadorxs, poc’s e professorxs mais incríveis dessa
cidade: Sarah Araújo, Tamily Frota, Ramily Frota, Talita Magalhães, Carol Gaspar,
Richard Cândido, Raphaela Martins e Rafaela Bastos. Foi um prazer gigante e
imensurável estabelecer laços tão sólidos, baseados no companheirismo, empatia, escuta,
suporte, admiração e carinho. Nossos encontros e conversas sem dúvida foram espaços
essenciais nos quais recebia muita força para continuar nessa pesquisa. Vocês são tudo e
mais um pouco e a nossa história vai longe. Particularmente para a Sarah Araújo, minha
parceira do tempo de graduação, de longas conversas no ônibus, de aventuras
gastronômicas, quero deixar registrado minha admiração e prazer de compartilhar a vida
com você. Você é minha musa inspiradora da vida.
Minha afeição e amor também se estendem para minhas amigas Darlem Franco,
Amanda Mota e Estella Cossetin. Emociono-me em lembrar de tudo que compartilhamos
ao longo dessa última década. Vocês são parte da minha família e de mim como pessoa.
Obrigado por estarem sempre ao meu lado e me apoiarem nos meus projetos. A vida ficou
melhor e mais feliz quando tive vocês para partilhar aventuras, muitos sorrisos, lágrimas
e aconchego. Também foi essencial na minha trajetória meu querido amigo Paulo
Alexandre Simonetti com quem dividi sonhos, abraços, reclamei da vida e agradeci por
ela também. Ter uma pessoa como você para contar e conversar tornaram meu dias mais
leves e esperançosos. Meu amor por você cresce a cada dia e admiro a pessoa em quem
você se transformou. Você não é apenas meu amigo, faz parte da minha família. Inclusive,
sou agradecida às minhas amigas Jéssica Bruce e Michaela Fialho por me deixarem
integrar a família delas. Vocês me proporcionaram momentos de amor e compaixão que
jamais esquecerei. Espero que a gente possa continuar dividindo a vida por muitos mais
anos.
Nos últimos três anos, me tornei professora da Escola Estadual Sebastião Norões,
onde pude compartilhar com meus alunos muito do que aprendi para realizar esse
trabalho. E gostaria de agradecer à minha eterna gestora Nelissandra Gurgel que me
ajudou nos momentos que precisei me ausentar da escola para realizar atividades
acadêmicas e minhas colegas de trabalho Aline, Suely, Cynthia e Samara que me
receberam de braços abertos e foram sempre atenciosas comigo. Mais do que colegas de
trabalho, elas se tornavam novas amigas para a vida.
Minha família, sem dúvida, tem uma parte toda especial nessa trajetória e estão
sempre ao meu lado nos dias bons e ruins. Minha mãe Arnalda Ladislau é a pessoa mais
importante dessa história, ela literalmente me tirou do chão e me fez voltar a olhar para a
vida e para mim mesma com carinho e respeito. Meu amor pela senhora cresce todo dia
mais um pouco e minha admiração vai longe. Obrigada por me propiciar uma educação
de qualidade e valorizar meu percurso o que tornou possível chegar até aqui. Minha avó
Consuelo Ladislau também tem um lugar todo especial nessa história. Foi ela quem me
ensinou a sempre cultivar a curiosidade pelo mundo. Meus irmãos Diego Ladislau e
Deborah Ladislau, cada um a seu modo, deram-me suporte para não desistir e continuar
trilhando meu caminho. Além disso, eles me presentearam com quatro sobrinhas lindas e
sapecas: Gabriela Ladislau, Ana Camila, Maria Consuelo e Liz Consuelo. Poder
acompanhar o crescimento dessas pequenas é de longe um dos maiores prazeres da minha
vida.
Um agradecimento especial direciono para meu companheiro Bismarc Texeira.
conhecer-te só foi possível devido a esta tese lá em 2017 e, sem dúvida, foi um dos
melhores momentos daquele ano. Compartilhar com você a vida, mesmo à distância, tem
sido um dos pontos altos da minha trajetória desde então e meu carinho e admiração por
você só faz crescer a cada dia. Obrigado por estar sempre disponível para me ouvir e me
oferecer suporte nos momentos mais difíceis como também naqueles felizes. Meu amor
por você só se fortalece e sei que ainda vamos trilhar muitos outros caminhos e aventuras
por essa vida.
Desenvolver uma pesquisa de qualidade na universidade pública tem se tornado
um desafio nos últimos anos, mas tive a oportunidade de receber o financiamento de uma
instituição pública de incentivo à pesquisa que tornou a realização desta tese algo
possível. Este trabalho contou com o financiamento do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo nº 170558/2018-5.
RESUMO

Durante a segunda metade do século XIX, apesar da província do Amazonas conter quase
95% da sua população juridicamente livre e formada por indígenas e negros, as marcas
da escravidão e compulsoriedade foram latentes no mundo do trabalho. Assim como
ocorria em outras partes do território brasileiro, essas populações não-brancas e pobres
que habitavam o vale amazônico viviam constantes ameaças em sua liberdade e
autonomia pela possibilidade de serem arregimentadas forçadamente ou mesmo
escravizadas ilegalmente para servir em empreendimentos públicos e privados. Buscando
melhor compreender as complexidades das relações e dos agentes envolvidos nessa
conjuntura, o objetivo desta pesquisa é perscrutar os mecanismos de imposição de
restrições que recaiam sobre a liberdade/autonomia de indígenas, negros e não-brancos
pobres em geral, e o papel que as ações desses sujeitos tiveram para modificar e redefinir
essas limitações. Nosso argumento é que a experiência da liberdade das populações
indígenas, negra e não-branca pobre na província do Amazonas na segunda metade do
século XIX estava atravessada pelas constantes ações estatais e de particulares visando
mantê-los atados a relações de submissão, controle e exploração. Entretanto, os
trabalhadores não deixaram de, a seu modo, contestar tais estruturais e, até mesmo,
manejá-las a seu favor de forma a reivindicar melhores condições de trabalho, reconstruir
sua autonomia e recuperar sua liberdade.

Palavras-chave: escravidão – Amazônia – História – Século XIX – Liberdade – Trabalho


escravo
ABSTRACT

During the second half of the 19th century, despite the fact that the Province of Amazonas
contained almost 95% of your population free, formed by indigenous and black people,
the marks of slavery and compulsory practices were latent in the Amazonia labor world.
As in other parts of the Brazilian territory, the non-white and poor populations that
inhabited the Amazon valley were threaten in their freedom and autonomy due to the
possibility of being forcefully recruited or even illegally enslaved to serve in public and
private enterprises. For understand the complexities of relationships and agents involved
in those actions, the objective of this research is to scrutinize the mechanisms for
imposing restrictions that fall on the freedom/autonomy of poor indigenous, black and
non-white people in general, and the role that actions of the laborers had to modify and
redefine these limitations. Our argument is that the experience of freedom of indigenous,
black and non-whit poor populations in the province of Amazonas in the second half of
the 19th century was permeate by constant state and private actions aimed at keeping
them tied to relationships of submission, control and exploitation. However, workers did
not fail, in their own way, to contest these structures and even manage them in their favor
in order to claim better working conditions, rebuild their autonomy and recover their
freedom.

Keywords: slavery – Amazon – History – 19th century – Freedom – Slave labor


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APEAM – Arquivo Público do Estado do Amazonas


AGTJAM – Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas
SUMÁRIO

Considerações Iniciais ..............................................................................................................14


Capítulo 1 – A expansão das fronteiras, o reordenamento da presença estatal e os
trabalhadores no vale amazônico ............................................................................................33
1.1 - Reordenando fronteiras, expandindo a presença estatal no vale amazônico ..............38
1.2 – O capital a vapor na Amazônia ......................................................................................63
1.3 – Paraenses, cearenses, bolivianos e escravizados nos mundos do trabalho amazônico71
Capítulo 2 – As legislações e a compulsoriedade no mundo do trabalho da província do
Amazonas ..................................................................................................................................84
2.1 - As leis de arregimentação de trabalho nos sertões amazônicos, segunda metade do
XIX ............................................................................................................................................86
2.1.1 – Os Corpos de Trabalhadores e o fortalecimento das estruturas de coerção ............88
2.1.2 – O Regulamento acerca das missões e Catequese dos Índios de 1845 e a produção de
força de trabalho ......................................................................................................................99
2.2 – Os debates para organização do mundo do trabalho..................................................114
Capítulo 3 – Estado, trabalho e ilegalidade ..........................................................................133
3.1 – Pachás da Amazônia: status social, eleições e enriquecimento ....................................133
3.2 – Agentes do Estado, agentes da coerção: alistamento e prisões ilegais .......................149
3.3 – Negócios de órfãos: comércio e escravização ilegal .....................................................167
Capítulo 4 – Informalidade e costume no mundo do trabalho amazônico .........................190
4.1– A informalidade enquanto costume no mundo do trabalho amazônico .....................193
4.2 – A dívida e o fortalecimento das estruturas de coerção ...............................................212
Considerações Finais ..............................................................................................................230
Referências..............................................................................................................................235
14

Considerações Iniciais

“(...) desde aquele tempo (...) tomaram os índios de Mumurú e Andirá


como bens de raiz ou patrimônio de Villa Nova, não os reconhecem
como pessoas livre e brasileiras, como mostram os fatos; e por eu ter
feito barreira, para conservar a liberdade dos índios, se me moveu uma
guerra, posso dizer, geral na Província, sem que o Governo tenha
tomado um expediente enérgico, que corte esses abusos.
(...) O número de mal-intencionados (...) neste sentido (de escravizar os
índios) com as necessárias e devidas excepções, é a massa civilizada e
até empregada do Amazonas (...) vossa excelência que deseja conhecer
os espíritos mal-intencionados, com sua prudência, e saber poderá
descobri Los nesta capital! (...)
(...) custa a crer, e mais a sofrer homens que figuram na sociedade,
escolhidos para legisladoras da província tenho por timbre já os
interesses (...) somente com práticas escandalosas, com ameaças de ir
buscá-los até com balas nos centros, este cotados constantemente como
criminosos ou escravos para chamá-los a serviço até particulares, e
com estas amargosas doçuras lhes persuadem, que o Governo os
persegue”1 (grifo nosso)

No dia 04 de outubro de 1852 foi posto para discussão na Assembleia Legislativa


da província do Amazonas o ofício do missionário do aldeamento de Andirá, Frei Pedro
de Ciriana, enviado ao presidente provincial João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha.
O conteúdo do ofício causou muito burburinho em meio aos deputados e ainda nessa
sessão foi criada uma comissão para analisar as denúncias e preparar uma resposta para
ser apresentada em outra oportunidade. No contexto da apresentação do documento, a
província do Amazonas havia acabado de ser criada com a sanção da lei de 5 de setembro
de 1852, dois anos após a aprovação do projeto que garantiu sua independência
administrativa2. Essa instalação marcava o início de muitas mudanças e inovações pelas
quais seriam acometidas a Amazônia nas décadas posteriores, como a instalação da
Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1853), a abertura do rio Amazonas

1
Sessão do dia 14 de outubro de 1852 da Assembleia Legislativa do Amazonas. Atas da Assembleia
Legislativa do Amazonas do Biênio de 1852 a 1853. Arquivo Público do Estado do Amazonas.
2
A Província do Amazonas foi criada em 1850, mas sua instalação apenas ocorreu em 5 de setembro de
1852. GREGORIO, Vitor Marcos. Dividindo as Províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do
Paraná e o sistema representativo na construção do Estado Nacional brasileiro. Tese de Doutorado. São
Paulo: USP, 2012. Ilmar Mattos destaca como a criação da Província do Amazonas foi articulada como
uma tentativa de assegurar a unidade do território nacional, a imagem de um território integrado e
indivisível era uma forma de demonstrar a grandeza do Império brasileiro. MATTOS, Ilmar Rohloff. O
tempo saquarema: a formação do estado imperial. 7. Ed. São Paulo: Hucitec, 2017. Além disso, a criação
da província do Amazonas também fazia parte do quadro de ações do governo imperial para ampliar sua
presença nos “sertões mais recônditos”, representados como desconhecidos e inabitados ou “habitados
apenas selvagens”. A integração e exploração dessas áreas (de norte a sul do Império) pelo governo imperial
tornava-se cada vez mais latente e visava ampliar a pauta dos produtos exportáveis.
15

para navegação internacional (1863), a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré3


e outras empreitadas que buscavam inserir a região na lógica da modernidade e da
expansão capitalista.
Mas o conteúdo do ofício do padre Ciriana estava longe de representar as auras
do progresso e modernidade anunciada e almejada pela elite local e pelos parlamentares,
muito pelo contrário, trazia para o centro do debate problemas antigos da região acerca
da instabilidade da liberdade vivida por grande parcela da população juridicamente livre.
É a partir da resposta elaborada pela comissão e lida pelo deputado Clementino José
Pereira Guimarães, na sessão de 12 de outubro de 1852, que entramos em contato com o
conteúdo do alarmante ofício. As denúncias realizadas pelo missionário italiano giravam
em torno da escravização de indígenas das povoações de Mumurú e Andirá, habitantes
da região do médio rio Amazonas. Ciriana denunciava as ações praticadas contra as
populações indígenas pela “massa civilizada e até empregada do Amazonas” que não “os
reconhecem como livres e brasileiros” e os tratavam “como criminosos ou escravos para
chamá-los a serviço até de particulares”. Note-se como o padre buscou apresentar os
indígenas a partir de duas categorias sociais: primeiro, eles eram livres e, segundo, eram
brasileiros, ou seja, cidadãos. Ambas as categorias eram particularmente sensíveis nos
debates políticos e círculos sociais visto que tanto a liberdade quanto a cidadania não
estavam disponíveis a todos, sendo que muitos no Amazonas as vivenciavam atravessadas
pela precariedade, especialmente a população não-branca e pobre.
Apesar do missionário pontuar a gravidade das práticas ilegais, o foco central da
resposta elaborada pela comissão de deputados foi defender as autoridades públicas, ou
melhor, “as classes mais respeitáveis da província” da imputação do dito crime. Essa por
sinal, como veremos ao decorrer da tese, será a postura do Estado perante as denúncias
de escravização ilegal de pessoas livres na província do Amazonas, no decorrer da
segunda metade do século XIX. Na denúncia em particular, por exemplo, todo o corpo da
resposta ficou centrada em asseverar a idoneidade das ações dos oficiais públicos e em
acusar o “indiscreto” missionário de estar delirando, além de cometer calúnia e ofender a
todo corpo de autoridades – principalmente, por sugerir que o próprio Presidente da
província, ao não tomar atitudes energéticas visando conter os atos violentos e ilegais dos

3
Sobre a tentativa de construção da estrada de ferro Madeira Mamoré na região do Rio Madeira, oeste da
Província do Amazonas, e sua relação com a inserção capitalismo expansionista interacional e as ideias de
modernidade no tecido social amazônico, ver HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a ferrovia
Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
16

seus funcionários, estaria, dessa forma, agindo em conivência com as atitudes ilícitas. Os
parlamentares se mostraram extremamente indignados com as imputações “caluniosas”
remetidas contra os representantes da recém criada província e acusavam o padre de
manchar com essas afirmações a “marcha do progresso e conduta governativa” do
Amazonas. O ponto acerca da escravização de indígenas não chegou a receber a mesma
atenção dos deputados e nem foi comentado com o tom de revolta. Ao final, a comissão
concluía que Pedro Ciriana era “mau missionário, que de suas doutrinas, os índios nada
podem aproveitar, senão ideias de desordem e desmoralização”, e finalizava indicando a
abertura de um processo para que fossem ouvidos os denunciados pelo missionário e, se
as acusações não fossem comprovadas, o frei fosse julgado por calúnia e injúria e, assim,
fosse punido por todos seus crimes.
Entretanto, o frei não foi o único a comparecer perante autoridades
governamentais para buscar soluções para barrar os ímpetos escravistas contra a
população livre. Anos antes, em 1846, quando a região do rio Andirá ainda fazia parta da
Comarca do Amazonas submetida à administração da província do Pará, três Principais
Maués viajaram até Belém requerendo um encontro com o presidente da província. Os
Principais estavam:
(...) acompanhados de vários outros indivíduos da mesma nação,
residentes na povoação do Andirá no rio Preto, queixando-se de
violências, que sofriam eles e os seus, da parte de um inspetor interior
de nome Manoel José Plácido, que ali se achava. O Governo os acolheu
com toda a benevolência e atenções, providenciou de acordo com o
Diretor Geral que eles não fossem mais perseguidos, nem violentados,
e os brindou com um fardamento completo e apropriado para cada um,
e várias miudezas entre eles muito apreciadas. 4

O deslocamento dos Principais Maués até a capital paraense e a procura pelo


presidente da província para denunciar os abusos cometidos contra eles próprios e seus
familiares demonstra como as populações indígenas nutriam noções muito claras do que
para eles eram aceitáveis ou não dentro de suas relações sociais, especialmente as do
mundo do trabalho. E, apesar de não conseguirmos acessar todo o conteúdo da conversa
entre os indígenas e a autoridade governamental, podemos entrever como os Maués
buscaram reforçar suas condições de livres para requerer do Estado ações mais eficazes
para sanar seus problemas. A denúncia dos Principais destacava a participação de

4
Discurso recitado pelo exm. o snr. Doutor João Maria de Moraes, vice-presidente da província do Pará na
abertura da primeira sessão da quinta legislatura da Assembleia Província, no dia 15 de agosto de 1846, p.
10.
17

autoridades públicas nas ações coercitivas, legais e ilegais, de arregimentação de


trabalhadores no vale amazônico durante o século XIX. Além disso, demonstra como os
trabalhadores buscaram interferir e influenciar nas definições que balizavam as relações
de trabalho a qual estavam interligados em defesa da sua autonomia e sobrevivência.
Por meio dos relatos oferecidos pelo frei e dos Principais Maués, podemos analisar
quatro questões que são imprescindíveis para a construção desta tese: a) A contínua
escravização ilegal da população livre, principalmente indígenas; b) A tênue linha entre
a escravidão e a liberdade vivenciada por esses sujeitos; c) O envolvimento direto das
autoridades públicas nas práticas de coerção ao trabalho; d) As estratégias criadas pelos
trabalhadores para impor seus limites e visões sobre essas relações. Os relatos acima
retratados ressaltam ainda como a marca da coerção e da escravidão no mundo do trabalho
do século XIX ressoava com bastante força na vida dos população não-branca e pobre,
experiências que se conectam com movimentos que ocorriam além do Brasil em outras
partes da América, África e Ásia.5 A partir disso, a questão norteadora desta pesquisa é
perscrutar os mecanismos de imposição de restrições que recaiam sobre a
liberdade/autonomia de indígenas, negros e não-brancos pobres em geral, e o papel que
as ações desses sujeitos tiveram para modificar e redefinir essas limitações. Nosso
argumento é que a experiência da liberdade das populações indígenas, negra e pobres na
província do Amazonas na segunda metade do século XIX estava atravessada pelas
constantes ações estatais e de particulares visando mantê-los atados a relações de
submissão, controle e exploração. Entretanto, os trabalhadores não deixaram de, a seu
modo, contestar tais estruturais e, até mesmo, manejá-las a seu favor de forma a
reivindicar melhores condições de trabalho, reconstruir sua autonomia e recuperar sua
liberdade.
Para isso, analisaremos os meios pelos quais o Estado e particulares buscaram
controlar, sobretudo, a mão de obra e a mobilidade de indígena, negros e não-brancos
pobres habitantes na província do Amazonas, durante a segunda metade do século XIX.
Examinar as estruturas e espaços da coerção, legais ou não, são importantes, pois como

5
Listamos a seguir algumas obras que demonstram que durante o século XIX ocorreu um crescimento das
práticas (institucionalizadas ou não) de coerção da população juridicamente livre ao trabalho em
empreendimento estatais ou para particulares, ver: STEINFELD, Robert. Coercion, contract and free labor
in the Nineteenth Century. Cambridge (Mas.): Cambridge University Press, 2001; COOPER, Frederick;
REBECCA J. SCOTT; THOMAS C. HOLT. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e
cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; VAN DER
LINDEN, Marcel M.; GARCÍA, Magaly Rodríguez. On coerced labor: Work and compulsion after chattel
slavery. Brill, 2016.
18

apontam Juliane Schiel, Mathias Von Rossum e Christian de Vito, nos possibilitam “uma
análise refinada dos mecanismos e experiências de dominação e dependência”. 6 Nessa
direção, os autores ressaltam como devemos “ainda olhar para os graus e modalidades de
coerção e estudar os mecanismos de controle e autocontrole, sejam eles físicos ou
contratuais, explícitos ou implícitos, lei escrita ou acordo verbal”. 7 Seguindo essa
perspectiva, buscamos investigar as estruturas legais e ilegais de coerção de trabalhadores
e os agentes envolvidos, visto que tal caminho de estudo, além de possibilitar uma
compreensão mais detalhadas sobre o mundo do trabalho, corrobora para examinarmos
como entre os trabalhadores a luta por maior autonomia, ou mesmo pela libertação de um
serviço visto por eles como ‘inaceitáveis’, foi um importante propulsor de rupturas nas
relações de trabalho. Essa abordagem nos permite realizar um diálogo com o debate
historiográfico sobre os limites entre escravidão e liberdade no Brasil do século XIX,
assim como possibilita complexificar nosso olhar sobre essas fronteiras ao delinear os
diferentes graus de liberdade social e política vivenciado por indígenas, negros e livres
pobres.
Nas últimas décadas a historiografia acerca da história social do trabalho e da
escravidão avançou sobremaneira na compreensão da formação do mercado de trabalho
no Brasil e nas Américas durante os séculos XIX e XX, passando a articular temas de
investigação que contemplem em conjunto tempos e espaços anteriormente concebidos
como de âmbito exclusivo do cativeiro ou da liberdade8. Essas pesquisas representaram
a revisão de algumas interpretações clássicas sobre a história dos trabalhadores, dentre
elas a noção amplamente difundida de um processo de transição pautado nas dicotomias
rural/urbano, escravidão/liberdade, arcaico/moderno, dentre outros termos fartamente
utilizados nos estudos preocupados em demarcar a suposta rigidez e o caráter evolutivo
na dita passagem do trabalho escravo para o livre. 9

6
DE VITO, Christian G.; SCHIEL, Juliane; VAN ROSSUM, Matthias. From bondage to precariousness?
New perspectives on labor and social history. Journal of Social History, v. 54, n. 2, p. 644-662, 2020.
7
Idem.
8
CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2010. Antes de
Chalhoub e Silva, Henrique Espada Lima já chamava atenção para a construção liberal do conceito de
trabalho livre e a precariedade da liberdade no XIX, no Brasil. LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da
precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi, v. 6, n. 11, p.
289-326, 2005.
9
Sílvia Lara argumentou como a tradição historiográfica ligada a essa discussão clássica havia sido
responsável pela exclusão da presença dos negros (escravos e livres) da história dos movimentos dos
trabalhadores no Brasil na escravidão e no pós-abolição, ver: LARA, Silvia. Escravidão, cidadania e história
do trabalho no Brasil. Projeto História, nº 16, 1998, pp. 25-3. Ver também: NEGRO, Antonio Luigi;
GOMES, Flavio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo social. v. 18, n. 1, p.
19

Nessa direção, a produção de estudos voltados para a compreensão dos


significados da liberdade na escravidão e no período do pós-abolição passaram a sugerir
outros caminhos de investigação, apresentando como as experiências acumuladas durante
o cativeiro por escravos e libertos foram compartilhadas com os trabalhadores livres,
antes e depois da abolição10. A trajetória das pesquisas acerca das fronteiras entre a
escravidão e a liberdade tem frisado a necessidade de (re)pensar narrativas da história dos
trabalhadores que agreguem as experiências do trabalho escravo com outras formas de
trabalho compulsório, buscando a compreensão das interpretações dos próprios sujeitos
acerca dessas experiências como prioridade analítica.
Nota-se ainda a permanência de algumas lacunas no que tange ao sentido que a
liberdade (jurídica e de trabalho) pode ter tido na vida de homens e mulheres que a
vivenciaram. Henrique Espada Lima destacou que, apesar de os estudos sobre escravidão
explorarem com detalhe as diversas esferas do trabalho escravo, “com muita frequência
acabaram por tratar a liberdade como um conceito indiferenciado e que raramente era
colocado em exame”, deixando assim de tratar de questões pertinentes tais como os
significados que trabalho livre e liberdade poderiam ter para os sujeitos que as operavam
no contexto da escravidão e do pós-abolição11.
De modo semelhante, Frederick Cooper, Thomas Holt e Rebecca Scott alertaram
para a necessidade de enquadrarmos o conceito de liberdade como um “constructo
histórico e social”, além de insistirem que “os significados de liberdade devem ser
buscados em toda uma sequência de contextos históricos e sociais específicos” 12. Mais
do que dois universos antagônicos e sucessivos, escravidão e liberdade se definiram
mutuamente ao logo do período escravista num movimento constante entre desiguais e
diferentes, sendo essa experiência compartilhada por sociedades que esposaram a
escravidão enquanto sistema sociopolítico e econômico. John French assinalou como
“livre e não livres foram categorias ambíguas na sociedade brasileira, na qual as
delimitações não eram fixas e os pequenos retrocessos em direção ao estigmatizado status

217-240, 2006; CHALHOUB, Sidney; Consultar também: MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. Revisitando
a “transição para o trabalho livre”: a experiência dos africanos livres. IN: FLORENTINO, Manolo (org).
Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. Pp 389-417
10
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil,
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
11
LIMA, Henrique Espada. Op Cit, 2005.
12
COOPER, Frederick; REBECCA J. SCOTT; THOMAS C. HOLT. Op Cit. 2005
20

de não-livre são constantes”, processo que reverberou na vida da população africana e


egressa do cativeiro em condições marcadas pela precariedade13.
O fato é que a liberdade não era algo definido e estruturado, e nem foi vivenciada
da mesma forma por todos sujeitos; ao contrário, ela foi cotidianamente inventada e
experimentada nas mais diferentes formas e constantemente (re)conquistada a partir de
estratégias e noções construídas pelos próprios sujeitos. Em vista disso, buscaremos
também investigar as ações acionadas para definir os limites entre a liberdade e
escravidão por meio das experiências de indígenas, negros, bolivianos, peruanos e
migrantes no mundo do trabalho da província do Amazonas no século XIX, a partir do
conceito de micropolíticas do trabalho. Este conceito é tomado de empréstimo do
historiador Ravi Ahuja que o compreende como uma série de experiências
compartilhadas através de articulações individuais ou coletivas de trabalhadores que
buscavam estabelecer “labour notions of appropriateness or acceptlable ‘normalcy’ with
regard to labour relations”.14 O historiador destaca que as “micropolíticas” devem ser
compreendidas a partir de seu contexto histórico e das estruturas sociais por elas
tencionadas. Nesse sentido, para analisar as micropolíticas dos trabalhadores no vale
amazônico é necessário compreendermos como esses agentes influíam no campo de
disputa pelas definições sobre o trabalho livre e o trabalho escravo.
Nessa direção, outra abordagem importante é a do historiador Henrique Espada
Lima e o conceito de precariedade jurídica e social. Lima utiliza dessa noção para chamar
atenção para a qualidade da liberdade e as condições de vida e trabalho dos libertos e seus
descendentes.15 Sidney Chalhoub também investigou a experiência da liberdade para os
egressos da escravidão e seus descendentes, com foco na Corte do Império no século XIX.
O autor demonstrou como o tráfico ilegal corroborou para acentuar o processo de
precarização da liberdade, criando assim amplas zonas de incerteza entre o cativeiro e a
liberdade, demarcando sobremaneira a experiência da população de cor naquela
sociedade16. Beatriz Mamigonian, a partir da experiência de escravizados, livres,

13
FRENCH, John. As falsas dicotomias entre escravidão e liberdade: continuidades e rupturas na formação
política e social do Brasil Moderno. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (orgs). Trabalho
Livre, Trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 77-96.
Outra pesquisa interessante nesse sentido é de STEINFELD, Robert. Coercion, contract and free labor in
the nineteeth century. Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2001.
14
AHUJA, Ravi. A freedom still enmeshed in servitude: the unruly “Lascars’ of the SS City of Manila or,
a micro-history of the ‘free labour’ problem. In: AHUJA, Ravi (org). Working Lives & Worker Militancy:
The Politics of Labour in Colonial India, New Delhi: Tulika Book, 2013, p. 97-133.
15
LIMA, Henrique Espada. .Op Cit, 2005.
16
Sidney Chalhoub aborda o tema dos significados da liberdade na experiência da população negra
(escravos e livres) desde suas primeiras pesquisas. Ultimamente, através do conceito de precarização da
21

africanos e outros sujeitos como índios e prisioneiros submetidos a regimes de trabalho


análogos à escravidão, propõe contextualizar a espinha dorsal da sociedade brasileira
oitocentista: a escravidão e o trabalho compulsório como política de Estado no Império.
A autora apresenta como a situação de precariedade na qual eram submetidos esses
sujeitos coexistindo entre a escravidão e a emancipação fazia parte da própria política
imperial, com o objetivo de controle social e cooptação de mão de obra para os
empreendimentos dos governos e de particulares17.
Apesar do avanço historiográfico, muitas das pesquisas acerca da temática da
escravidão e liberdade no século XIX centralizaram suas análises nas experiências da
população negra (livre, liberta, escrava e africana) deixando, por exemplo, de examinar
como outros sujeitos, especialmente os indígenas, vivenciaram essas estruturas. Dessa
forma, o diálogo com a produção acerca da história indígena se faz extremamente
necessário. Desde a década de 1980, a historiografia sobre as populações indígenas, como
destaca Maria Regina Celestino, busca centrar “o foco da análise nos próprios índios”,
almejando identificar “seus objetivos nas várias situações de contatos por eles vividas
levando em conta seus interesses, os contextos específicos e os vários atores em
contato”18. A partir dessa perspectiva, a produção historiográfica atual sobre as
populações tem versado sobre as mais diversas questões, espaços e temporalidades, com
maior volume de trabalhos sobretudo no período colonial19. No que diz respeito ao uso

liberdade, o autor tem enfatizado como a liberdade era uma experiência arriscada para os negros – livres e
libertos – africanos e crioulos, pois tinham sua vida e mobilidade marcadas pela escravidão, pelo perigo de
cair nela, ou voltar para ela. Ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas
décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; CHALHOUB, Sidney. Costumes
Senhoriais: escravização ilegal e precarização da Liberdade no Brasil Império. In: AZEVEDO, Elciene et
al. Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, século XIX e XX.
Campinas: Editora Unicamp, 2009, pp 23-62; CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema
da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social, n. 19, p. 33-62, 2010; CHALHOUB,
Sidney. A Foça da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil Oitocentista. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
17
Beatriz Mamigonian relata no livro Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil o envio
de africanos-livres para trabalhar na Companha de Navegação a Vapor do Amazonas apresentando como
eles dividiam espaços de trabalho e de experiências com outros sujeitos como os indígenas.
MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017; MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. Revisitando a “transição para o trabalho
livre”: a experiência dos africanos livres. IN: FLORENTINO, Manolo (org). Tráfico, cativeiro e liberdade
(Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p 389-417;
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In:
GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009. p 207-233.
18
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao
protagonismo. Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 21-39, 2013.
19
Por exemplo, o trabalho de DIAS, Camila Loureiro. Civilidade, cultura e comércio: os princípios
fundamentais da política indigenista na Amazônia (1614-1757). Dissertação (Mestrado em História). São
22

da mão de obra indígena, o trabalho de John Monteiro apresentou a presença dos


indígenas no processo de construção da sociedade escravista, principalmente através da
prática de escravização por meios legais e ilegais na São Paulo colonial (XVI-XVII)20.
Em relação ao século XIX, a presença e atuação dos povos indígenas vêm se
destacando em pesquisas sobre variados temas, dentre as quais podemos ressaltar a
política indigenista do Império, o discurso do desaparecimento, a disputa por terra, a
exploração da mão de obra indígena em diversas regiões do Império dentre outras 21.
Entretanto, pesquisas voltadas a compreender as relações de trabalho e da experiência de
escravidão e liberdade por meio das vivências das populações indígenas ainda precisam
se expandir no meio historiográfico. Examinar os sistemas e estruturas criados para
controlar o trabalho dos indígenas, como têm pontuado Vânia Maria Moreira Losada,
corrobora para melhor analisarmos as formas de organização e o funcionamento do
mundo do trabalho no Brasil Império.22 Nesta direção, a pesquisa de doutorado de Soraia
Dornelles intitulada A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e violência
na província paulista, 1845-1891 demonstrou como o uso da mão de obra indígena foi
primordial para diversos empreendimento em voga da província de São Paulo no século
XIX.23
Para a região Amazônica, André Roberto Machado assevera como a questão do
acesso e controle da mão de obra indígena estava no centro da vida política da província
paraense, a ponto de merecer muitos projetos e debates desde as primeiras décadas do

Paulo: Universidade de São Paulo, 2009, faz um detalhado levantamento historiográfico dos trabalhos que
abordaram a questão indígena no período colonial.
20
A pesquisa desenvolvida por MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de
São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, sobre a São Paulo colonial (XVI e XVII) foi, sem
sobra de dúvidas, um ponto de inflexão para a história dos índios no Brasil, principalmente em relação a
escravidão e formas ilegais de coação de indígenas ao trabalho. As problemáticas por ele apontadas estão
presentes em estudos produzidos para outras partes da colônia e também para o século XVIII, mostrando
que o caso paulista, embora emblemático, não era isolado. Outro trabalho desse autor é MONTEITO, John.
Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência).
IFCH Unicamp. Campinas, 2001. Maria Regina Celestina publicou em artigo um balanço historiográfico
acerca da influência de Monteiro e os novos problemas para a história indígena a partir de então.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história: avanços e desafios das abordagens
interdisciplinares – a contribuição de John Monteiro. História Social, n 25, 2013, 19-42.
21
Um levantamento sobre esses estudos é feito por ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Op cit. 2013.
22
Vânia Maria Losada Moreira têm ressaltado a necessidade da historiografia de encarar a centralidade da
mão de obra das populações indígenas nos debates sobre o mundo do trabalho no Brasil Império. ver:
MOREIRA, Vânia Maria Losada. A serviço do império e da nação: trabalho indígena e fronteiras étnicas
no Espírito Santo (1822-1860). Anos 90, Porto Alegre, v.17, n.31, p.13-55, jul. 2010; MOREIRA, Vânia
Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão historiográfica. Dialogos
Latinoamericanos, num 3, 2001, p. 87/113
23
DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e violência na
província paulista, 1845-1891. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, 2017.
23

Oitocentos, o que por consequência colocava “a condição de homens livres dos tapuios
(...) sempre (...) em xeque”24. Já a historiadora Camila Loureiro Dias, no artigo “Os índios,
a Amazônia e os conceitos de escravidão e liberdade”, sinaliza como “abrir a análise da
escravidão para além da experiência africana nos força a buscar outras categorias
interpretativas, a reexaminar tanto a história da escravidão quanto a história indígenas”.25
Assim, realizar um estudo sobre as condições do trabalho de indígenas e negros
(escravos, livres e libertos)26 corrobora para expor um mosaico de arranjos de trabalho
compulsório que além de sugerir que a liberdade não estava apenas associada à condição
jurídica dos trabalhadores também possibilita acessar as interpretações dos sujeitos
sociais inseridos nesses contextos específicos. Pensar as diferentes formas de
engajamento de trabalho utilizado pelo segmento dominante para “sujeição pessoal e
controle social” dos trabalhadores livres e escravos permite dialogar com a produção
historiográfica que atesta a expansão do trabalho não-livre mesmo durante o declínio da
escravidão em diferentes espaços do Atlântico no Oitocentos27. Nesse sentido, a região
amazônica nos oferece um quadro bastante diversificado para analisar as experiências dos
diversos habitantes da floresta, de negros e indígenas alvos recorrentes das legislações
provinciais e imperiais de cooptação para trabalhos forçados28. Afinal, como já afirmou

24
Sobre o trabalho forçado de indígenas na Amazônia, em especial na província Pará, ver MACHADO,
André Roberto A. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da política indigenista no Império
do Brasil. Almanack, v. 10, p. 181-237, 2015. MACHADO, André Roberto de A. O eclipse do Principal:
apontamentos sobre as mudanças de hierarquias entre os indígenas do Grão-Pará e os impactos no controle
da sua mão de obra (décadas de 1820 e 1830). Topoi, Revista de História, v. 18, p. 166-195, 2017.
25
DIAS, Camila Loureiro. Os índios, a Amazônia e os conceitos de escravidão e liberdade. Estudos
Avançados, v. 33, p. 235-252, 2019.
26
As mulheres – escravas, libertas e livres, índias e negras – também aparecem nessa massa aparentemente
formada só por índios, negros, escravos e livres. Suas relações com as leis e normas que pretenderam regular
e enquadrar seus trabalhos, dificultar seus acessos à liberdade ou tirá-las dessa condição, por certo, não
foram apáticas. É certo também que o sistema escravista as atingiu de modo diferente em relação aos
homens, já que estruturas sociais, como patriarcalismo, ajudaram a moldar os modos pelos quais o Estado
tratou as mulheres, em especial as mulheres negras. Um interessante modo de visualizar e entender como
elas lidaram com essas situações é a investigação dos seus trabalhos ou ofícios, como o serviço doméstico
e o comércio urbano. Nossa intenção é compreender como as mulheres lidaram com as complexidades que
definiram a escravidão e liberdade no mundo do trabalho e, na medida do possível, que experiências de
gênero atuaram como marcadores sociais na realidade desses trabalhadores. As questões formuladas aqui
devem muito ao trabalho de MACHADO, Maria Helena P. T. Corpo, Gênero e Identidade no Limiar da
Abolição: Benedicta Maria da Ilha, mulher livre/ Ovídia, escrava narra sua vida (sudeste, 1880). AfroÁsia,
42, 2010, pp. 157-193. Os estudos sobre trabalho doméstico feminino têm crescido significativamente. Para
um resumo desse debate, conferir: TELLES, Lorena Ferres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres
negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013.
27
Ver sobre isso: COOPER,Frederick., HOLT, Thomas., SCOTT, Rebeca. Op cit. Especialmente o artigo
de Frederick Cooper no mesmo volume: Condições análogas à escravidão, pp. 201-279.
28
Na Amazônia, a formação do Corpo de Trabalhadores, entre 1838 a 1859, é bastante significativa na
organização da força de trabalho. Segundo Claudia Maria Fuller esse instrumento de coerção ao trabalho
de “índios, mestiços, e pretos não escravos” e sem propriedades ou ocupações era constante na região.
FULLER, Claudia Maria. Os Corpos de Trabalhadores e a organização do trabalho livre na província do
Pará (1838-1859). Revista Mundos do Trabalho, v. 3, n. 6, p. 52-66, 2012.
24

Flávio Gomes, desde o setecentos, a população escrava negra e africana estava espalhada
pela Amazônia trabalhando junto aos índios nas lavouras, na coleta de produtos da
floresta, nas canoas do comércio, nas cidades29. Patrícia Melo completa pontuando como
as pesquisas que versam sobre o território amazônico não podem ser feitas “de forma a
separar as experiências de índios e de negros, em especial, no curso do século XIX,
quando as modalidades de trabalho compulsório podiam apanhar na mesma rede,
indivíduos, aparentemente, muito diversos” 30.
A produção historiográfica que se debruçou acerca das questões do trabalho livre
e trabalho escravo na Amazônia têm se expandido nas últimas décadas. Superando o
discurso de “ausência” da população negra no território amazônico, a partir dos anos 70
do século XX, estudos como de Vicente Salles, Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino
passaram a demonstrar como os trabalhadores escravos negros constituíram uma força
produtiva de grande importância social e econômica e, guardadas as devidas proporções
e especificidades, foram largamente utilizados como mão de obra nas províncias
amazônicas no oitocentos31. Em pesquisas recentes, o escravismo em terras amazônicas,
tanto para o período colonial como imperial, passou a ser esmiuçado nas suas diversas
estruturas como o tráfico de escravos, formações de quilombos, as formas de resistências
e negociação, suas redes de sociabilidades, relação com a formação das fortunas, relações
familiares entre outros temas32. Em relação a província do Amazonas, podemos citar as

29
GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos
no Brasil (sécs. XVIII e XIX). São Paulo: ed. UNESP: Ed. Polis, 2005, p. 49.
30
SAMPAIO, Patrícia Melo. Escravidão e liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do
trabalho indígena e africano. In: Anais eletrônico do 3º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, Santa Catarina: Oikos Editora, 2007;
31
Nos anos de 1970, Vicente Salles, Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino produziram uma série de
estudos que tencionavam evidenciar a presença do elemento africano tanto nos termos da formação histórica
da região, quanto a sua importância na influência na cultura amazônica. Salles, na obra O Negro no Pará,
realizou uma leitura bastante panorâmica da escravidão no Pará, partindo de questões ligadas ao tráfico de
cativos passando pela inserção deles na economia urbana de Belém até o seu engajamento social no
processo de Adesão do Pará à Independência, na Cabanagem e na própria Abolição. Sua pesquisa é
considerada uma das maiores contribuições ao tema além de também ter reconhecido a importância das
interconexões entre a mão de obra negra e indígena no mundo do trabalho na Amazônia. Ver: SALLES,
Vicente. O negro no Pará, sob o regime da escravidão. Fundação Getúlio Vargas e UFPA. Rio de Janeiro,
1971; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. Presença africana na Amazônia. Afró-Ásia, Salvador, n. 12, p. 145-
60, 1974; VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na
Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Estado do Pará, 1990.
32
O trabalho de Vicente Salles sobre a escravidão na região do Grão-Pará (XVIII e XIX) foi um importante
marco para a história da presença negra na Amazônia. Em conjunto com outros pesquisadores (como
apresentado na nota acima) elencaram novas problemáticas, tanto para o período colonial como imperial,
que resultaram em estudos voltadas a pensar as várias estruturas do escravismo na região, em particular as
análises desenvolvidas nas últimas décadas. Dentre eles podemos destacar as pesquisas voltadas
especificamente para a província do Pará: FUNES, Eurípedes Antônio. Nasci nas matas, nunca tive senhor:
história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado (História Social). São Paulo:
USP, 1995; CHAMBOULEYRON, Rafael Ivan. Escravos do Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o
25

pesquisas de Luiz Balkar Pinheiro, Patrícia Alves Melo, Ygor Olinto Cavalcante, Provino
Pozza, Tenner Abreu, Laura Blanco e meus próprios estudos que na última década
desenvolveram pesquisas destacando a participação da população negra (livre, liberta e
escravizada) no movimento da cabanagem, trataram das formas de resistência e
negociação dos escravizados, de suas redes de sociabilidade, dos espaços ocupados no
mundo do trabalho, dentre outras temáticas que corroboram para reiterar a importância
da presença dessa população para a região.33
Nessa direção, muitas pesquisas também ressaltaram a marca da compulsoriedade
sobre a força de trabalho livre, especialmente sobre as populações indígenas, na
Amazônia. Ciro Flamarion Cardoso no livro Economia e Sociedade em áreas coloniais
periféricas: Guiana Francesa e Pará, (1750-1817) destacou como “tanto após 1888
quanto antes, no Pará, após 1757, o que substitui a escravidão foi, de fato, o que W.
Klooterboer define como trabalho compulsório”.34 Apesar de acertar na caracterização
das relações de trabalho como compulsória, o autor ainda analisa as formas de exploração
dos trabalhadores no sentido de uma “substituição” ou “transição”, como se trabalho
escravo e trabalho livre não fossem complementares e subsistissem no vale amazônico. 35

Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 26, n. 52, jul-dez.2006; BEZERRA NETO, José Maia. Fugindo, sempre fugindo: escravidão,
fugas escravas e fugitivos no Grão-Pará (1840-1888). Dissertação de Mestrado (História). Campinas:
UNICAMP, 2000; LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. Rio de escravidão: tráfico interno, e o mercado de
escravos do vale do Amazonas (1840-1888). Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
33
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença negra na
Amazônia na primeira metade do século XIX. Terra das Águas, v. 1, p. 148-172, 1999; SAMPAIO, Patrícia
M. Os fios de Ariadne: tipologias de fortunas e hierarquias sociais em Manaus: 1840-1880. Manaus:
EDUA,1997; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Nas teias da fortuna: acumulação mercantil e escravidão
em Manaus, século XIX. Mneme, Caicó, v. 3, n. 6, p. 49-70, jul-dez. 2002; POZZA NETO, Provino. Aves
Libertas: ações emancipacionistas na Amazônia Imperial. Dissertação de mestrado. UFAM, Manaus, 2011;
ABREU, Tenner Inauhiny. “Nascidos no Grêmio da Sociedade”: Racialização e mestiçagem entre os
trabalhadores na Província do Amazonas (1850-1889). Dissertação de mestrado. Manaus, UFAM: 2012;
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistência, rebeldia e fugas de
escravos no Amazonas Provincial (c.1850-c.1882). Dissertação de mestrado. UFAM: Manaus, 2013;
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Negros e Índios sob suspeita: dimensões da escravidão e do
trabalho compulsório no território amazônico. Revista Litteris, v. 1, p. 21-32, 2014; COSTA, Jéssyka
Sâmya Ladislau Pereira. Por todos os cantos da cidade: escravos negros no mundo do trabalho na Manaus
oitocentista (1850-1884). Dissertação de Mestrado (História Social). Niterói: UFF, 2016; BLANCO, Laura
Stella Passador de Luiz. Crimes praticados por escravos na Manaus Oitocentista. Dissertação (Mestrado
em História), Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2020.
34
CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas: Guiana Francesa e
Pará, 1750-1817. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984.
35
A ideia de “transição” ou “substituição” já foi bastante criticada pela história social do trabalho. Silvia
Lara, por exemplo, chamou atenção como a historiografia ao reforçar a ideia de “transição” entre trabalho
livre e escravo havia corroborado para inviabilizar a presença da população negra (livre, escrava ou liberta)
da história sobre os movimentos de trabalhadores no Brasil. LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e
história do trabalho no Brasil, Projeto História, nº 16, 1998, p. 25-38.
26

Também nesse sentido, a tese de doutorado de Adalberto Paz recuperou o processo de


recrudescimento das políticas coercitivas de arregimentação de trabalhadores que desde
o período colonial até o Império impuseram trabalho forçado a ampla parte da população
indígena, negra e mestiça. Paz destacou a centralidade do Corpos de Trabalhadores que
aprovado em 1838, no contexto da Cabanagem, reiterou as estruturas de coerção para
ampla parcela da população livre e não-branca da região.36
Os mundos cruzados da escravidão e liberdade da província do Amazonas no
século XIX tem sido centrais também em artigos publicados pela historiadora Patrícia
Alves Melo.37 A autora enfatiza como indígenas, escravizados e africanos livres
compartilharam experiências em espaços sociais marcados pela multietnicidade e pela
existência de fronteiras nebulosas entre a liberdade e a escravidão no mundo do trabalho
não-livre da cidade de Manaus, durante a segunda metade do século XIX. Outra pesquisa
que apresentou os cruzamentos entre o trabalho livre e o trabalho escravo na região do
vale amazônico foi Antônio Alexandre Isídio Cardoso. 38 O historiador, ao investigar os
avanços das fronteiras de expansão em direção ao oeste amazônico, realçou como a
participação de indígenas, escravos, migrantes e regatões foram essenciais para esse
movimento. Mesmo que não fosse esse seu objetivo central, Cardoso, por meio da sua
pesquisa, demonstrou a pluralidade de experiências partilhadas entre esses sujeitos nos
mundos do trabalho e os conflitos e tensões existentes.
Em diálogo com essas pesquisas buscamos avançar na investigação das relações
de trabalho em voga na região da província do Amazonas, examinando não apenas a
região da capital, Manaus, como também as regiões dos chamados sertões. Nosso intuito
é apresentar como o mundo do trabalho do vale amazônico estava integrado e articulado

36
PAZ, Adalberto. Repúblicas contestadas: liberdade, trabalho e disputas políticas na Amazônia do século
XIX. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 2017.
37
Das produções da pesquisadora Patrícia Melo sobre esse tema, pode-se consultar: SAMPAIO, Patrícia
Melo. Escravidão e Liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho indígena e
africano. In: Anais eletrônico do 3º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Santa Catarina:
Oikos Editora, 2007; SAMPAIO, Patrícia Melo. Mundos cruzados: etnia, trabalho e cidadania na Amazônia
Imperial, In: Anais do XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Fortaleza, 2009; SAMPAIO, Patrícia
M. Africanos e Índios na Amazônia: experiências de precarização da liberdade. In CABALLERO, DC,
CÉSPEDES, GP & RICARDO TOUS MATA, M. (Org). América: poder, conflicto y política. Universidad
de Murcia, Murcia, 2013, pp.825 -840; MELO, Patrícia. A. Índios e africanos livres nas obras públicas,
Manaus, século XIX. Revista Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 13, p. 1-12, 2021; MELO, Patrícia.
Hierarquizando cidadãos livres: algumas experiências de africanos e índios na Amazônia oitocentista. In:
BELTRÃO, Jane Felipe; LACERDA, Paula Mendes (orgs). Violências versus resistências: desigualdades
de longa duração na Amazônia brasileira. Brasília: Edições ABA, 2021.
38
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. O Eldorado dos Deserdados: indígenas, escravos, migrantes,
regatões e o avanço rumo ao oeste amazônico no século XIX. Tese de Doutorado (História Social). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2017.
27

entre essas regiões, tanto o espaço urbano como os sertões eram centros de absorção de
mão de obra. Um exemplo disso é que mesmo quando a borracha despontava como
principal produto da pauta comercial nas regiões do rio Madeira, Purus e Juruá, e por isso
mesmo concentrava muita força de trabalho nesses espaços, essas áreas também foram
responsáveis por “fornecer” (de forma ilegal e coercitiva) muitos trabalhadores
principalmente crianças para as várias ocupações do serviço doméstico na capital. A partir
disso, procuramos ainda analisar em conjunto como as legislações, o trabalho informal e
ilegal (isto é, a escravização ilegal), ao contrário de serem fenômenos excludentes, eram
complementares e foram estruturas essenciais para a produção de mão de obra para os
empreendimentos ativos no vale amazônico no século XIX. Nosso objetivo é não apenas
reafirmar o diagnóstico de que as fronteiras entre escravidão e liberdade eram tênues, mas
investigar quais eram as restrições que operavam sobre cada indivíduo e grupo de forma
a mantê-los atados às condições de submissão e exploração da sua força de trabalho. Para
a população livre (indígena, negra ou não-branca pobre), a liberdade foi uma experiência
vivenciada em diversos níveis e sentidos.
Para isso, o recorte temporal adotado, entre 1850 a 1888, justifica-se pela
possibilidade de compreensão do processo de conformação da força de trabalho na
província do Amazonas marcado pela aplicação de leis imperiais e provinciais, assim
como práticas costumeiras voltadas ao controle e exploração da mão de obra,
principalmente com o avanço e a expansão da economia regional. A década de 1850
demarca a data de criação da província do Amazonas39, assim como um período de
expansão da economia da região amazonense caraterizado pela chegada de modernos
vapores, estrada de ferro, incremento da imprensa, crescimento urbano-fabril e
demográfico das cidades. Nessa conjuntura, a região passava por um processo de
expansão de fronteira40 e deslocamento demográfico que causara um agravamento das
políticas coercitivas sobre a população livre, composta de indígenas, negros e mestiços.

39
O ano de 1850 marcou a emancipação político-administrativa da antiga Comarca do Alto Amazonas,
circunscrição com administração submetida ao governo da Província do Pará. Sobre a criação da Província
do Amazonas, promulgada em 5 de setembro de 1850, ver: GREGORIO, Vitor Marcos. Dividindo as
Províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção
do Estado Nacional brasileiro. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2012.
40
O conceito de “Frente de Expansão” é abordado a partir da definição criada por José de Souza Martins
que a descreve enquanto um fenômeno demográfico que guarda sua historicidade em estreito contato com
a definição de fronteira. Especialmente em relação à Amazônia no século XIX, Martins destaca a
necessidade de analisamos os deslocamentos populacionais causados pela atuação da empresa extrativista
e de entendê-los não apenas como mão de obra, mas sim enquanto agentes que atuaram diretamente na
“frente de Expansão”. MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do
humano. São Paulo: Contexto, 2009. Quanto a definição de “fronteira”, João Pacheco de Oliveira destaca
28

Já a década de 1880 foi marcada por importantes acontecimentos em nível


regional e nacional que reorganizam as relações de trabalho. O avanço e desenvolvimento
do movimento abolicionista provocou profundas mudanças na sociedade brasileira,
pautando e orientando, inclusive, as relações políticas do Estado, haja vista a Lei dos
Sexagenários de 1885 e a abolição legal da escravidão em 13 de maio de 1888. Em nível
regional, a Amazônia assistiu à abolição da escravidão em 10 de julho de 1884, assim
como o desenvolvimento da economia extrativista da borracha e, por consequência, o
crescimento urbano-fabril de algumas cidades41. O impacto dessas transformações é
inconteste, reorientando as relações de trabalho existentes. Por essas razões tomamos o
período até o ano de 1888 como recorte final do projeto.
As fontes consultadas para realizar esta pesquisa compreendem diferentes tipos
de documentos históricos disponibilizados em acervos físicos e digitais. A base de dados
da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional foi de suma importância para viabilizar a
consulta dos jornais que circularam na província do Amazonas e do Pará entre 1850 a
1888. Foram analisados mais detidamente os cerca de cinco deles: Amazonas,
Commércio do Amazonas, Estrella do Amazonas, O Catechista e A Província. Nesses
periódicos pudemos acessar notícias e informações variadas que corroboraram para
complementar nossa análise sobre o mosaico de formas de exploração de trabalho e dos
agentes envolvidos nessas práticas. Também no formato digital foram consultados os
relatórios de presidente de província disponibilizados pela plataforma do Center for
Research Libraries (Global Resources Network). Esses documentos administrativos
continham dados e registros das movimentações e decisões das autoridades públicas que
nos permitiram reconstruir os projetos e ações estatais voltados a organização do mundo
do trabalho. Nas entrelinhas dos relatórios oficiais também foi possível mapear as
estratégias dos trabalhadores para reprimir ou dialogar com essas movimentações.
Na mesma direção, outra documentação oficial importante para nossa tese foram
os Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas entre 1850 a 1888,

que ela “não se define por marcações geográficas, mas como um espaço alvo de diversas políticas, discursos
e práticas visando a exploração principalmente econômica e onde os trabalhadores são alvo de práticas
compulsórias para aplicá-lo enquanto força de trabalho para os empreendimentos. OLIVEIRA, João
Pacheco de. O Caboclo e o Brabo: notas sobre duas modalidades de força de trabalho na expansão da
fronteira Amazônia no século XIX. Encontros com a Civilização Brasileira, vol, 10, 1979, p. 101-110.
41
Na Província do Amazonas, a abolição da escravidão ocorreu em 10 de julho de 1884, ou seja, quatro
anos antes do território do Império do Brasil. Todavia, estender o marco temporal até 1888 pode nos
propiciar uma compreensão mais ampla da experiência dos trabalhadores escravos e livres. Para um estudo
sobre as ações emancipacionistas no Amazonas imperial, ver: POZZA NETO, Provino. Aves Libertas:
ações emancipacionistas na Amazônia Imperial. Dissertação (Mestrado em História Social). UFAM,
Manaus, 2011.
29

consultados por meio do acervo digital do Arquivo Público do Estado do Amazonas.


Acompanhar os debates e projetos discutidos pelos parlamentares ao longo do período
aqui investigado nos possibilitou realizar uma aproximação das perspectivas adotadas
pelas autoridades públicas para o mundo do trabalho. Também nesse arquivo acessamos
diversas outras fontes como as correspondências, livros de ofícios e mensagens de
diferentes agentes oficiais presentes tanto na capital como nos sertões. Por meio do
cruzamento de informações variadas foi possível recuperar as redes legais e ilegais
utilizadas para produção de força de trabalho, na segunda metade do século XIX, na
província do Amazonas. E, sobretudo, foi possível enxergar os sujeitos, seus discursos e
as nuances que marcaram as diferentes relações de trabalho na região.
Esse quadro foi enriquecido com as informações alcançadas a partir das várias
vozes presentes nos processos judiciais e habeas corpus. Essas fontes estão sob guarda
do Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas, em que se encontram mais de 500
processos para o período de 1846 a 1889. A historiografia desde os anos 1980 tem
utilizado os documentos judiciais para enriquecer suas análises, especialmente acerca da
escravidão brasileira, e acessar as vozes de sujeitos que antes pareciam apagadas. 42 Isso
ocorreu porque, como destaca Mariana Armond Dias Paes, “a compreensão dessas
formalidades [dos processos judiciais] poderia jogar luz sobre as implicações sociais de
debates que, à primeira vista, podem parecer meras tecnicalidades jurídicas”. 43 Dada a
riqueza do conteúdo dessas fontes, elas estão presentes em vários capítulos da tese, mas
são, sobretudo, analisadas com mais detalhe no terceiro capítulo.
Para a divisão da tese, partimos do princípio de que as várias formas de relações
de trabalho e a própria noção de liberdade foram frutos da criação de relações sociais
conflitantes e contraditórias, em que atuaram diversas forças, cada uma buscando impor
suas percepções do que as definiria. A partir disso, na escrita da tese, buscamos analisar
em conjunto de que forma as ações do Estado e particulares assim como as dos
trabalhadores influíram nas noções em torno das relações de trabalho. O intuito dessa
abordagem visava a não perder de foco as contradições e os conflitos subjacentes no

42
Dentre uma gama variada de pesquisa podemos citar como exemplo: CHALHOUB, Sidney. Visões da
liberdade: uma história das últimas década da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990;
GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do rio de
Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Delume-Dumará, 1994; MENDONÇA, Joseli M. Nunes. Entre a
mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp,
2001.
43
PAES, Mariana Armond Dias. O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil Oitocentista.
estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 29, n 58, ´. 339-360, maio-agosto, 2016.
30

mundo do trabalho e que recaiam sobremaneira na qualidade da liberdade vivida por


indígenas, negros e não-brancos pobres em geral na província do Amazonas no século
XIX. Como destaca Ravi Ahuja:
Assim, como relação social, o ‘trabalho’ é gerado em um campo de
forças contraditório por meio do exercício do poder e do contra-poder,
[sic] cada força buscando aumentar os níveis de heteronomia ou
autonomia, graus mais elevados de subordinação ou, na verdade, a
liberdade. Essa tensão nunca é totalmente resolvida, embora as próprias
constituições do “trabalho” indiquem que uma relação social desigual e
dependente, ou seja, a subordinação do trabalhador ao empregador, foi
estabelecida com sucesso por enquanto. Por esta razão estrutural,
argumento, a questão da “liberdade” tem sido e continua a ser um
importante local de conflito entre empregadores/senhores e
trabalhadores/servos em um amplo espectro de contextos históricos
envolvendo uma grande variedade de formas de trabalho .44

Dessa forma, à exceção do primeiro capítulo, os três seguintes têm como fio
condutor analisar os processos engendrados nas diferentes formas de exploração de
trabalho e, sempre que possível, delinear as micropolíticas do trabalho criadas pelos
trabalhadores para influir nas noções e limites entre a escravidão e a liberdade e
reivindicar autonomia. Visto que, como sinaliza Ravi Ahuja, “mesmo essa liberdade
irregular e abatida persistentemente provou conflitos sociais e contenção política”,
responsáveis por colocar “em relevo, por um momento, o aspecto político dentro do
econômico e, portanto, dos limites históricos das relações de trabalho”.45 Nesse sentido,
no primeiro capítulo nosso objetivo foi apresentar os movimentos e deslocamentos da
fronteira que ocorriam com cada vez mais intensidade na região da província do
Amazonas a partir de 1850. Demonstramos como, para além de ampliar o conhecimento
acerca da região e das suas potencialidades econômicas, estava em jogo o anseio do
governo Imperial e de particulares em mapear o contingente populacional dos sertões
visando à transformação dos habitantes em ‘hábeis trabalhadores’. Para isso,
reconstruímos os empreendimentos levados a cabo pelo Estado e por particulares para
esquadrinhar os altos rios do vale amazônico, assim como também apresentamos os
movimentos migratórios, voluntários ou não, de paraenses, cearenses, bolivianos e outros
ocorridos em direção a essas regiões. Entender a introdução desses trabalhados no mundo
do trabalho da província do Amazonas é importante para compreendemos como os
mesmos são apanhados nas redes de coerção.

44
AHUJA, Ravi. Op Cit. p. 98.
45
Idem, p. 125-126.
31

No segundo capítulo, apresentamos então como as legislações foram essenciais


para reforçar o arcabouço de práticas racializadas de arregimentação de trabalhadores que
caracterizam o vale amazônico desde o período colonial. Para isso, procuramos apresentar
as prerrogativas e o funcionamento de duas legislações: primeiro, o Corpos de
Trabalhadores criado em 1838 e que continuou em aplicação até 1862; e, segundo, o
Regulamento acerca das missões e Catequese dos Índios instituído em 1845 e
permaneceu como principal lei indigenista até final do Império. Somado a isto, também
investigamos os projetos e os debates dos parlamentes da Assembleia Legislativa da
província do Amazonas entre 1850 a 1888, procurando entrever as ações planejadas pelo
governo para produzir e organizar a força de trabalho da região. Analisar o aparato das
legislações e os debates dos parlamentos nos possibilita compreender como a distinção
entre trabalho “livre” e não “livre” não era apenas uma questão de jurídica, mas o
resultado de articulações políticas realizadas por meio da legislação, do conflito social e
da ação política de sujeitos diversos em vários níveis sociais.
Ainda centrado na análise das redes de coerção, no terceiro capítulo investigamos
as práticas ilegais de coerção de trabalhadores realizadas por meio das ameaças de
alistamento, prisões, assinaturas forçadas de cartas de dívida e sequestro. Aqui as
informações coletadas nos processos criminais, em cruzamento com jornais e documentos
oficiais, foram essenciais visto que apontaram para dois importantes dados: a) a
participação dos agentes públicos nos processos de produção de mão de obra; b) das
micropolíticas dos trabalhadores para reivindicar autonomia e liberdade. Para isso,
examinamos a centralidade da instituição policial e dos cargos provenientes desse meio
para a produção e controle da mão de obra disponível na região, buscando reconstruir o
seu processo de instalação e o próprio perfil dos seus agentes, especialmente dos que
ocupavam cargos de subdelegados. Esse percurso foi necessário para podermos examinar
o funcionamento das redes ilegais de coerção e a forma como atingiam os trabalhadores.
Nessa direção, destacamos a acentuada cadeia de raptos de crianças, principalmente
meninas, que alimentava o comercio ilegal de escravos e era fonte de força de trabalho
para o serviço doméstico das casas da elite em Manaus e em outras cidades. Essa análise
nos propiciou ainda identificar como a Justiça, especialmente o instituto do habeas
corpus, foi instrumentalizada pelos trabalhadores enquanto uma micropolítica do
trabalho por meio da qual lutavam por mais autonomia para suas relações de trabalho e
reivindicavam liberdade para si e seus parentes.
32

Ainda nessa direção, outra forma crucial de exploração de trabalhadores no vale


amazônico foi o aviamento, abordada no quarto capítulo. Analisamos como a
informalidade que marcava essa relação desde o período colonial continuava por mediar
muitos dos tratos de trabalho com as populações indígenas e pobres livres no século XIX.
Para isso, buscamos identificar como o movimento de expansão de fronteiras impactou
as relações de trabalho realizados por meio desses tratos informais. Nessa direção,
identificamos como, em um primeiro momento, o sistema do aviamento (ainda que
marcado por ameaças e violências) propiciava para os trabalhadores locais um espaço
para assegurar sua liberdade e manter seus espaços de autonomia. Esse cenário tendeu a
mudar com o crescimento do interesse em torno dos produtos nativos, que acentuou, por
sua vez, a demanda pelo controle da mão de obra local e, sobretudo, sobre os
trabalhadores migrantes. Nesse contexto, o aviamento foi redimensionado e a prática do
endividamento contínuo reforçado como mecanismo de aprisionamento da mão de obra
local e adventícia. Todavia, em ambos os cenários os trabalhadores manejaram diferentes
micropolíticas do trabalho fossem elas de forma coletiva ou individual como fugas,
dissimulações, ataques diretos e outros para reaver sua autonomia e demonstrar
insatisfação perante as relações de trabalho.
33

Capítulo 1 – A expansão das fronteiras, o reordenamento da presença estatal e os


trabalhadores no vale amazônico

Desejamos que se saiba na Europa, onde moramos, o que somos e em


que empregamos nossa inteligência e nossos braços. Queremos ensinar
a nossos amigos de França o que se passa nas fronteiras de sua Guiana,
que tesouros se oferecem ao seu trabalho e à sua atividade, se
consentissem em unir suas forças às nossas, seus capitais aos nossos
para explorar o solo amazônico e partilhar conosco o ‘clima glorioso’
de que fala com inveja o inglês Bates.
Após La Condamine e Humbolt, após Castelnau e Agassiz, após
Coutinho e Barbosa Rodrigues, após Crevaux, Wiener e tantos outros,
resta-nos dizer em um único volume o que eles disseram em muitos;
resta-nos suscitar energias, inflamar coragens; resta-nos imprimir a
resolução de ver e colonizar a mais bela, a mais rica, a mais fértil região
do mundo, ‘a terra da borracha, o El-Dourado legendário’, as terras
virgens que esperam a semeadura da civilização.46 (grifo nosso)

A epígrafe acima faz parte do livro O país das Amazonas de Frederico José de
Santa-Anna Nery, mais conhecido como Barão de Santa-Anna, publicado originalmente
em francês com o título Le pays des Amazones: L’eldorado e les terres a caoutchouc cuja
primeira edição saiu no ano de 1885 em Paris. Esse livro recebeu financiamento da
Assembleia Legislativa provincial do Amazonas e tinha como objetivo realizar uma
intensa propaganda da região para os leitores europeus objetivando atrair propostas para
imigração e investimentos de capital.47 Santa-Anna Nery era reconhecido como um dos
maiores propagandistas do Império brasileiro em terras europeias, especialmente na
França onde habitava. Para além da sua trajetória, o que queremos destacar são as imagens
discursivas utilizadas pelo Barão para divulgação do vale amazônico, apresentado como
um espaço de riquezas infindáveis aberto à exploração, aos interesses e à mão de obra
europeia; ou melhor, nas palavras do autor: terras virgens que espera[va]m a semeadura
da civilização.

46
SANTA-ANNA NERY, Frederico José de. O país das Amazonas. 3ª edição. Brasília: Senado Federal,
2018. p. 13
47
Para uma análise da atuação política de Frederico José de Santa Anna Nery no final do século XIX, seu
papel na divulgação de uma identidade amazônica na Europa e sua ligação com o governo da província do
Amazonas, ver: COELHO, Anna Carolina de Abreu. Santa-Anna Nery: um propagandista ‘voluntário’ da
Amazônia (1883-1901). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Pará, Programa de
Pós-graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2007. João Paulo Jeannine Andrade Carneiro
apresente uma detalhada pesquisa voltada para uma análise da trajetória de vida e produção do Barão de
Santa Anna Nery e sua atuação enquanto propagandista do Brasil na Europa, consultar: CARNEIRO, João
Paulo Jeannine Andrade. O último propagandista do Império: o ‘barão’ de Santa-Anna Nery (1848-1901)
e a divulgação do Brasil na Europa. Tese (Doutorado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
34

Os negócios em torno da borracha que vinham crescendo desde a década de 1840,


estavam enfrentando no início da década de 1880 um período de relativa queda da
produção e exportação da goma elástica48. Assim, os parlamentares amazonenses
aprovaram a encomenda de uma publicação visando à divulgação das potências
amazônicas especialmente para o público europeu. O livro, editado inicialmente em
francês, estava dividido em três partes com 22 capítulos distribuídos em mais de 400
páginas abarcando temas sobre a natureza, os habitantes e a economia da província
amazonense. Em dois capítulos o Barão descreveu os viajantes europeus (portugueses,
italianos, alemães, franceses, ingleses) e norte-americanos que já haviam visitado o vale
amazônico. O intento do autor era mediante os escritos desses viajantes exaltar as
“belezas” e “recursos” exploráveis já destacados por esses escritores, ao mesmo tempo
que buscou contrariar as proposições negativas feitas por eles. Ao finalizar uma série de
apontamentos sobre os viajantes, Santa-Anna destacou que:
a maior parte dos sábios aqui citados nada mais fizeram que percorrer
terras habitadas por brasileiros ou por estrangeiros radicados no Brasil,
e onde residem funcionários, comerciantes, soldados e seres humanos
muito sociáveis. Quanto aos famosos índios, transformados em
quimeras, ficam quase sempre invisíveis, quando não nos servem pelos
conhecimentos particulares que possuem dos locais. Em todo caso, eles
são, na maior parte das vezes, menos perigosos que os bandidos
calabreses ou os selvagens das grandes cidades europeias. Se o leitor
olhar nosso mapa do Amazonas, verá que por toda parte, praticamente,
o seringueiro, mais ousado que o sábio, já penetrou e que o comércio e
a navegação a vapor se aventuraram em lugares onde o geógrafo e o
cientista ainda não levaram suas investigações. Que não se confunda a
Amazônia com a África Central.49 (grifo nosso)

Ao assinalar para seus leitores, especialmente europeus, que não se confunda a


Amazônia com a África Central, o Barão buscava apresentar o vale amazônico como um
lugar onde os desafios de conquista seriam menores e que a província do Amazonas
estaria mais aberta a instalação do capital estrangeiro se comparada com as experiências
ocorridas na região centro-africana. A África Central e a Amazônia conectavam-se como
alvos da expansão econômica europeia e norte-americana desde pelo menos meados do

48
Barbará Weinstein computando a quantidade de borracha exportada do porto de Belém desde 1855 até
1855 apresenta a quantidade de 10.136 tonelada de borracha bruta exportada em 1879 – maior número
atingindo naquele período – contudo, houve uma relativa queda em 1880 e 1881 quando foram exportadas
9.808 e 9.124 toneladas respectivamente. Essa repentina queda causou preocupação nas autoridades
provinciais que procuraram elaborar medidas que visassem atrais os investimentos estrangeiros,
especialmente de europeus, para a região. WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e
decadência, 1850-1920. São Paulo: Hucitec/USP, 1991, p, 72
49
SANTA-ANNA NERY, Frederico José de. Op. Cit., 2018.
35

século XVIII quando iniciou um movimento intenso de financiamento de comissões


científicas e exploratórias para as áreas interiores dessas regiões.
Nessa direção, visando acentuar o discurso do vale amazônico enquanto um
espaço “vazio” à espera do capital estrangeiro e da mão de obra branca e europeia para
elevar as condições financeiras e civilizacionais, o Barão Santa-Anna Nery encomendou
a seu irmão Raimundo A. Nery a criação de um mapa da província do Amazonas, como
pode ser visto abaixo:

Mapa 1 – Mapa da Província do Amazonas por Raimundo A. Nery e Bernardo


Ramos, 1883

Fonte: SANTA-ANA NERY, Frederico José de. Le pays des Amazones: l'El-Dorado, les terres
à caoutchouc. Paris, L. Frinzine et cie, 1885.

Além de apresentar informações geográfica como: as localizações das cidades


existentes, os nomes dos rios e seu traçado; e étnicas como: os nomes das etnias mapeadas
e as regiões onde habitavam; contempla ainda informações de visível caráter comercial
36

mediante a marcação áreas não exploradas. Essa nomeação carregava consigo


marcadamente um caráter mercantil visto que buscava enfatizar os espaços que estariam
vazios e abertos à exploração e ocupação. As regiões marcadas são: I) Alto rio negro; II)
Alto Solimões-Juruá e III) Alto Madeira-Purus. Contudo, nenhuma das três regiões
realmente estavam “desocupadas” ou “inexploradas” como queria demonstrar o Barão e
a propaganda dos parlamentares amazonenses. Na verdade, guardadas suas diferenças, as
três áreas passavam por processos de ocupação e deslocamentos de fronteiras que as
atingiam desde pelo menos o século XVIII e, principalmente, a partir segunda metade do
século XIX, momento em que se intensificaram os interesses nacionais e internacionais
por essas regiões.
Nesse sentido, este capítulo se concentra em apresentar como se deu esse processo
de deslocamento de fronteiras capitaneado por interesses públicos e privados em direção
as regiões dos altos rios Negro, Solimões-Juruá e Madeira-Purus que ocorreram entre
1850 e 1880. A noção de fronteira aqui não é compreendida apenas como uma
demarcação geográfica, mas, como definida por João Pacheco de Oliveira, enquanto “um
espaço alvo de diversas políticas, discursos e práticas visando a [sic] exploração
principalmente econômica e onde os trabalhadores são alvo de práticas compulsórias para
aplicá-los enquanto força de trabalho para os empreendimentos”.50 Nesse sentido, o
objetivo é apresentar como esses movimentos estavam em estreita conexão com os
interesses comerciais (nacionais e estrangeiros) que a partir de 1850 tornaram-se mais
latentes e foram responsáveis por acelerar o avanço da exploração dos produtos extrativos
(goma elástica, salsaparrilha, cacau). Assim, é importante compreender esse processo,
pois ele atingiu diretamente a qualidade da liberdade vivenciada pelas populações
indígenas, negros e não-brancos pobres que viveram na Amazônia na segunda metade do
século XIX e que foram acionados como força de trabalho nos empreendimentos em voga
na região.
Vale destacar que o deslocamento para os altos rios foi uma empreitada para as
autoridades públicas e agentes particulares de muitos desafios tanto de ordem natural,
marcado pela dificuldade e desconhecimento da navegação na região, e de ordem
humana, manifesta nos obstáculos de encontrar/manter tripulantes ou ainda pelas refregas
com as populações locais. É necessário ter em mente que o avanço em direção a essas
áreas da Amazônia não foi feita de forma homogênea ou ainda sem a participação das

50
OLIVEIRA, João Pacheco de. Op cit, 1979.
37

populações locais tanto colaborando quanto recusando a presença estatal ou de agentes


particulares em seus espaços.51 A partir dessa compreensão, neste trabalho nosso objetivo
se concentrará em entender sobretudo como esses avanços e encontros, ora amistosos ora
conflituosos, influíram sobre as formas de exploração do trabalho.
Os estudos geralmente concentram-se em compreender esses movimentos
direcionados especialmente à região do rio Madeira, Negro e Purus, todavia essas
pesquisas geralmente estudam esses movimentos de forma desconectada. O rio Negro
tem recebido atenção de análises antropológicas e historiográficas devido ao histórico da
sua ocupação intensa desde o período colonial e os rios Madeira e Purus por terem sido
as principais áreas de produção de borracha e para onde deslocaram grande número de
migrantes nacionais.52 Nosso propósito então é contribuir com essas pesquisas
demonstrando como esses deslocamentos, apesar de possuírem intensidades diferentes,
ocorrem de forma simultânea e coordenada. Além disso, visamos a apresentar como desde
o princípio a questão do mundo do trabalho estava sobremaneira atrelada aos interesses
desses movimentos, uma vez que se detinham em realizar um mapeamento da mão de
obra disponível e de classificá-los a partir de sua adaptabilidade ou não para o mercado
de trabalho.
Para isso, procuramos reconstruir as formas pelas quais o Estado brasileiro e os
interesses capitalistas estenderam sua presença no vale amazônico com o intuito de
destacar como a questão da organização da força do trabalho e da defesa de uma ética do
trabalho pautada sobremaneira em relações compulsórias guiaram os discursos e as ações
de agentes públicos e privados nesse percurso. Na primeira seção abordaremos como
entre as décadas de 1850 e 1860, os interesses estatais e privados organizaram expedições
exploratórias para as regiões dos altos rios com vias a mapear as rotas de comércio, os
recursos naturais, a mão de obra disponível e demarcar as áreas fronteiriças. Essas
expedições podem ser compreendidas enquanto “empreendimentos de conquista, pois
tinham um duplo papel de decodificar os segredos de caminhos fluviais e aumentar o

51
Antônio Alexandre Isídio Cardoso analisando o avanço da fronteia em direção ao oeste amazônico, mais
precisamente para o alto rio Madeira e Purus, buscou perceber esse deslocamento tanto pela perspectiva
dos agentes estatais e privados mas sobretudo pela ação das populações locais. Ver: CARDOSO, Antonio
Alexandre Isidio. Op cit, 2017.
52
Para as pesquisas que se concentraram em analisar o avanço das fronteiras no vale amazônico durante o
século XIX, consultar: (rio Negro) WRIGHT, Robin M. História indígena e do indigenismo no alto rio
Negro. São Paulo: Instituto Socioambiental/ISA, 2005; (rio Madeira) OLIVEIRA FILHO, João Pacheco
de. Op cit, 1979; LEAL, Davi Avelino. Mundos do trabalho e conflitos sociais no rio Madeira (1861-193).
Manaus: Editora Valer, 2020; (rio Purus) CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op cit, 2017.
38

alcance das explorações e do controle dos habitantes da floresta”.53 Fazendo largo uso
dos saberes, das rotas de circulação de pessoas e produtos pré-existentes e de agentes
locais de origens diversas foram levantados conhecimentos sobre a região que serviram
de base para definir a direção das ações governamentais e dos interesses privados. Esses
movimentos perscrutaram os caminhos fluviais dos altos dos rios Negro, Solimões,
Madeira e Purus que despontavam como centrais para o governo Imperial por questões
fronteiriças e suas riquezas, especialmente a borracha.
Seguindo esse quadro na segunda seção voltaremos nossa atenção para a análise dos
avanços dos empreendimentos e da migração de trabalhadores nacionais e estrangeiros
que se intensificaram a partir de final da década de 1860. A abertura do rio Amazonas à
navegação internacional é compreendida como um importante marco que corroborou para
a aceleração dos processos anteriormente citados que passam a se concentrar seus
interesses comerciais especialmente em torno do rio Madeira e Purus. Compreender esses
deslocamentos do Estado, do capital e de pessoas de origens diversas pelos sertões
amazônicos nos possibilitará a reconstruir o processo histórico da conformação das
relações de trabalho e dos agentes sociais envolvidos.

1.1 - Reordenando fronteiras, expandindo a presença estatal no vale amazônico

“(...) Todavia há rios caudalosos, pouco falados ou conhecidos, porque


não tem [sic] sido explorados até as suas vertentes, que tem curso muito
extenso e inteiramente livre (...) com suas margens ricas em produtos
naturais e braços (...) à espera de serem desbravados”. 54

O trecho acima faz parte do primeiro relatório apresentado pelo presidente de


província do Amazonas João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha na abertura da
Câmara Municipal durante a sessão de instalação do aparato administrativo da recém-
nascida província em 1852. Desbravar é um dos verbos que mais se repetem nos relatórios
de presidente de província assim como nos relatos de viajantes quando estes se referiam
à Amazônia. A defesa do desbravamento a ser posto em prática na região se remeterá
tanto ao sentido econômico quanto a questão social. Era necessário desbravar seus rios e
matas para catalogação de suas riquezas e de seus habitantes. Assim como Tenreiro

53
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Cit. 2017, p. 78
54
Relatório que em seguida ao do exm.o snr. presidente da província do Pará, e em virtude da circular de
11 de março de 1848, fez, sobre o estado da província do Amazonas, depois da instalação dela, e de haver
tomado posse o seu 1.o presidente, o exm.o snr. João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha.
39

Aranha, os demais presidentes da província do Amazonas repetiram em seus discursos e


falas dois elementos centrais que serviram de base para os projetos políticos para o vale
amazônico. Primeiro, a necessidade de abertura da região para exploração econômica;
segundo, a importância de se enfrentar o tema da carência de trabalhadores. Com a
intenção de sanar essas questões, o próprio governo provincial em associação com agentes
privados organizou expedições científicas de reconhecimento das regiões dos altos rios
amazônicos, com foco em esmiuçar detalhadamente suas potencialidades econômicas e o
mapeamento da população.55
De toda forma, o presidente não estava ali propondo algo necessariamente novo,
visto que se conectava com um amplo movimento que acontecia em escala atlântica desde
final do século XVII. A partir disso, principalmente os continentes americano e africano
passaram a configurar como áreas de atração para vários viajantes europeus que
empreendiam expedições com objetivo de catalogar sua flora e fauna. Contudo, como
destaca Mary Louise Pratt, não só de interesses científicos eram alimentadas essas viagens
cientificas.56 A autora destaca como a viagem exploratória “a partir da segunda metade
do século XVII, se tornou um dos mais ostentados e conspícuos instrumentos europeus
de expansão”. Na segunda metade do século XVIII, “a expedição científica tornar-se-ia
um catalisador das energias e recursos de intricadas alianças das elites comerciais e
intelectuais por toda a Europa”.57 Tornando assim os relatos desses viajantes um amplo
meio de divulgação não apenas da decodificação do meio natural como também das
potencialidades de exploração econômica.

55
Maria Odila Dias identifica que esse processo de esquadrinhamento das regiões brasileiras estava
conectado ao desenvolvimento dos estudos em torno das ciências naturais, no final do século XVIII e início
do XIX, incentivados pela Coroa portuguesa e intelectuais brasileiros. Esses estudos, segundo Dias, tinham
o objetivo de desvendar o território nacional e suas potencialidades para exploração. Muitos dos homens
ilustrados que atuaram nesse processo permaneceram ativos no quadro do governo no pós-independência,
seus conhecimentos foram parte integrante do processo de formação de uma consciência nacional e
informaram muitas das práticas políticas na formação do estado imperial. DIAS, Maria Odila da Silva Leite.
Aspectos da Ilustração No Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
v. 278, p. 100-170, jan.-mar, 1968, p.60-1. No século XIX, a exploração da natureza se alinhava aos projetos
políticos de interiorização das forças do Estado, da própria formação da nacionalidade e da importância de
assegurar a unidade do território. Dessa forma, agente públicos e privados se destinaram aos extensíssimos
sertões inicialmente com objetivos científicos que também resguardavam projetos de exploração e
conquista das regiões ainda não controladas totalmente pelo governo. Ver: MATTOS, Ilmar Rohloff. Op
cit, 2017. DOMINGUES, Heloisa Bertol. Viagens científicas: descobrimento e colonização no Brasil no
século XIX. In. HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Ciência, civilização e império nos
trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001. p. 55-75.
56
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC,
1999.
57
PRATT, Mary Louise. Op cit, 1999, p. 56.
40

E a Amazônia não ficou de fora dessa empreitada do capital internacional. Maria


Helena P. T. Machado destaca como a região foi “representada em discursos que
oscilavam entre a justificação dos interesses territoriais, empresariais, bem como sociais
nebulosos e aventureiros e descrições de paisagens luxuriantes e animais exóticos de uma
literatura de viagem aparentemente benigna e abstrata”. Devido a isto, segundo a autora,
“a Amazônia corporificou o próprio lócus de enunciação do discurso da expansão
capitalista-imperialista da segunda metade do século XIX. 58 Motivados pelas
possibilidades de lucros que seriam alcançados através da exploração dos produtos
nativos amazônicos - tais como a castanha, a salsa parrilha, o óleo da copaíba, a borracha
e outros - muitos países financiaram botânicos, cientistas e militares para empreenderem
viagens de reconhecimento no vale amazônico.59
Esses movimentos em direção ao vale amazônico podem ser notados com mais
intensidade já a partir de final da década de 1840, quando particularmente na região da
então comarca do Amazonas, espaço do nosso recorte geográfico para a tese, recebeu a
“visitas” de inúmeros estrangeiros como por exemplo Paul Marcoy, Henry Bates, Alfred
Russel Wallace, Richard Spruce e William Lewis Herndon. 60 Inclusive, um dos que
possuíram seu relato mais rapidamente conhecido no Brasil e internacionalmente foi o de
Williams Lewis Herndon, marinheiro norte-americano que navegou dos Andes até ao
Pará com o intuito de investigar as possibilidades da instalação da navegação a vapor nos
rios amazônicos, também mapear possíveis áreas para onde seriam transferidos
escravizados oriundos do sul dos Estados Unidos.
O relato panfletário de Williams Herndon serviu de inspiração para muitos outros
viajantes, como destaca Antônio Alexandre Cardoso, ele “atualizou as imagens edênicas
do Eldorados ao gosto dos interesses capitalistas da época”61. O relato com sua enfática
defesa pela abertura do rio amazonas e pela contestação do poder brasileiro sobre a região
causou preocupações no governo brasileiro que se viu ameaçado e pressionado pelos

58
MACHADO, Maria Helena P. T. Brasil a vapor. Raça, Ciência e viagem no século XIX. Tese apresentada
para o concurso de Livre Docência – USP, São Paulo, 2005.p. 51-52
59
Essa experiência não era exclusiva da Amazônia. Mary Louise Pratt destaca com esses relatos de viagens
fazem parte do movimento expansão política e econômica europeu que se direcionou para África e América,
guardadas suas diferenças, desde os séculos XVIII até o XX. PRATT, Mary Louise. Op. cit, 1999.
60
MARCOY, Paul. Viagem pelo rio Amazonas. Manaus: EDUA, (1869) 2006; BATES, Henry Walter. Um
Naturalista no Rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1979; WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia;
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979; SPRUCE, Richard. Notas de um Botânico na
Amazônia. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006; HERNDON, William Lewis. Exploration of the Valley of the
Amazon. Washington: Robert Armstrong, public printer, 1853.
61
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Ci. 2017, p. 28
41

interesses norte-americano. Nas considerações finais, Herndon chega mesmo a questionar


diretamente o controle do governo imperial sobre a navegação dos rios amazônicos e
reforça as imagens de uma Amazônia rica em produtos e potencialidade a espera de ser
ocupada e explorada.62 O militar projetava que mediante ação norte-americana na região
em um prazo de cinquenta anos:
(…) O Rio Janeiro, sem perder um pouco de sua riqueza e grandeza,
será apenas uma vila para o Pará, e o Pará será o que Nova Orleans teria
sido há muito tempo, não fosse a atividade de Nova York e seu próprio
clima fatal, a maior cidade do novo Mundo; Santarém será São Luís, e
Barra, Cincinati.63

Para alcançar esse progresso o projeto de ocupação do vale amazônico defendido


pela visão de Herndon se baseava em cortar a floresta, se livrar das populações nativas64
e povoar a região com negros escravizados transferidos das plantações dos EUA. O norte-
americano destacava ainda que o governo brasileiro não conhecia a região de fato e que
apenas recentemente estaria tomando medidas nesse sentido, sendo a criação da província
do Amazonas umas dessas ações.
O viajante não estava de todo errado. O contexto de criação da província do
Amazonas estava realmente interligado ao interesse do Estado imperial em assegurar a
soberania brasileira na região amazônica, devido principalmente as ameaças estrangeiras,
fatos que corroboram para a aprovação do projeto de criação da nova província em 1850. 65

62
Sobre os interesses dos Estados Unidos na Amazônia no século XIX e o envolvimento de Agassiz na
questão da abertura da navegação da Bacia Amazônica conferir: MACHADO, Maria Helena P. T. Op Cit.
2005.
63
No original: “(…) Rio Janeiro, without losing a litle of her wealth and greatness, will be but a village to
Pará, and Pará will be what New Orleans would long ago have been but for the activity of New York and
her own fatal climate, the greatest city of the New World; Santarem will be St. Louis, and Barra, Cincinati”
HERNDON, William Lewis.Op cit, 1853.p. 374
64
Williams Herndon acreditava que o desaparecimento dos indígenas ocorreria como um processo natural,
alegando que “they cannot bear the restrainsts of law or the burden of sustained toil, and they retreat from
before the face of the with man, with his improvements, till they desappear”. Completava ainda afirmando
que “Civilization must advance, though it tread on the neck of the savage, or even trample him out of
existence”. HERNDON, William Lewis. Op. Cit., 1853, p. 259
65
LIMA, Regina Márcia de Jesus. A Província do Amazonas no sistema político do segundo reinado (1852-
1889). História em Revista. Amazônia em Cadernos, v. 2, n. 3, 1993. Somado as questões de assegurar o
domínio sobre todo o território, Vitor Marcos Gregório enfatiza que havia outras questões tanto de ordem
política quanto econômica que corroboraram com na criação da província do Amazonas e do Paraná.
Aprovar a criação de uma nova unidade administrativa envolvia diversos debates parlamentares que na
maioria das vezes arrastavam por anos de discussões e adiamentos, como ocorreu com o caso amazonenses
e paranaense. Além disso, o império do Brasil estava passando por um importante momento de
consolidação nacional em conjunto da própria consolidação da elite senhorial representados na figura dos
Saquaremas. Nesse sentido, Gregório identifica o tema da fiscalidade e das rendas enquanto argumentos
42

A instalação do aparelho administrativo veio ocorrer apenas em 1852 e mal se iniciaram


esses arranjos, as autoridades trataram logo de organizar medidas destinadas a prover
melhores informações da área, principalmente das regiões nos altos rios onde a presença
do Estado era rarefeita. Os esforços liderados pelo governo ocorreram por intermédio de
expedições de reconhecimento empreendidas por militares, engenheiros e outros agentes
que navegando os rios amazônicos realizaram extensas e detalhadas descrições da
natureza, da hidrografia, topografia, dentre outros. Somadas as essas questões, essas
expedições tinham também o intuito de identificar e mapear as potencialidades
econômicas e a mão de obra disponível.
Antonio Alexandre Cardoso identifica que essas expedições, associadas a outros
esforços da época, devem ser compreendidas enquanto “empreendimentos de conquista,
pois tinham um duplo papel de decodificar os segredos de caminhos fluviais e aumentar
o alcance das explorações e do controle dos habitantes da floresta”. 66 O autor enfatiza
como tanto as expedições governamentais quanto os viajantes estrangeiros se apropriaram
de saberes pré-existentes das populações locais sobre a malha fluvial das rotas comerciais
e dos povos indígenas. Cardoso completa ainda apontando que “mais que simples força
de trabalho, os nativos serviam como fonte de saberes sobre a floresta, viabilizando (ou
não) a entrada de agentes que acompanhavam as movimentações da frente de
expansão”.67
Nesse sentido, uma das primeiras decisões do governo de João Baptista de
Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro presidente da província, foi organizar em 1852
duas expedições oficiais em direção ao rio Purus e Abacaxis. A primeira foi capitaneada
por Serafim da Silva Salgado que navegou por quatro meses e onze dias em “duas canoas
tripuladas por dozes índios e acompanhado de um cabo de esquadra e doze praças
armados e municiados” em direção ao rio Purus, com objetivo de descobrir se existia
alguma possibilidade de conexão entre este rio e a Bolívia para assim conseguir desviar
das cachoeiras do rio Madeira.68 A escolha do responsável pela expedição não foi sem
sentido, visto que Serafim da Silva Cardoso, natural de Pernambuco, era um “regatão
bastante conhecido nas imediações da cidade da Barra do rio Negro” onde circulava

que foram norteadores nas discussões que desencadearam na aprovação da criação da província do
Amazonas pela lei 592 de 5 de setembro de 1850. GREGORIO, Vitor Marcos. Op cit, 2012.
66
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Cit.. 2017, p. 78
67
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Cit.. 2017, p. 158
68
Relatório de Serafim da Silva Salgado sobre a exploração do rio Purús. In: Fala dirigida á assembleia
legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de outubro de 1853, em que se abriu a sua 2º sessão ordinária,
pelo presidente da província o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p. S1-I a S1-IX.
43

negociando mercadorias como salsa parrilha, óleo de copaíba e outros produtos que
obtinha mediante trato comercial realizado com povoações indígenas nas margens do rio
Purus.69
Note-se como ao escolher o regatão Serafim da Silva Salgado para realizar a
expedição o governo provincial se mostrava bastante conectado aos movimentos internos
que aconteciam na região. Os regatões foram “responsáveis pelas primeiras sondagens e
levantamento de informações sobre o interior, precedendo engenheiros e demais ‘homens
da ciência’ que singraram as águas amazônicas nos oitocentos”. 70 Além de Serafim,
outros “mercadores dos rios” serão transformados em agentes oficiais sendo responsáveis
pela realização de outras expedições assim como ocupando cargos administrativos. 71
Serafim Salgado descreveu minuciosamente em seu relatório as paradas realizadas
pela comitiva detalhando os nomes das povoações, a distância entre elas e os recursos
disponíveis. Todavia, a viagem oficial do regatão acabou não alcançando seu objetivo,
pois ao chegar “à sétima maloca dos índios Cocamas” o rio Purus estava em seu período
de seca avançado, impossibilitando, assim, a continuação da exploração. O explorador
acreditou ainda ter ali alcançado terras bolivianas visto que os indígenas contactados
reconheciam palavras como machado, terçado ou faca na língua espanhola. 72 Essa
referência de Serafim Salgado destacava como desde aquele período os comerciantes
bolivianos já estavam presentes no comércio e circulação de produtos que ocorria entre a
região do Beni, na Bolívia, e o rio Madeira.
A segunda expedição oficial de 1852 foi dirigida por João Rodrigues de Medeiros
73
com destino ao rio Abacaxis e rio Tapajós. Assim como a expedição de Serafim da
Silva Salgado, essa comitiva buscava encontrar um caminho alternativo pelo rio
Abacaxis, visando também escapar das perigosas cachoeiras do rio Madeira. Desde os

69
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Cit.. 2017, p. 78
70
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Cit.. 2017, p. 78
71
Antônio Alexandre Isídio Cardoso pesquisa sobre a atuação dos regatões enquanto importantes agentes
no deslocamento de fronteiras em voga no século XIX e da sua relação, muitas de vezes conflituosas, com
a administração provincial, ver: CARDOSO, Antônio Alexandre Isídio. Sobre escravos e regatões:
sociabilidades, conflitos e alianças complexas no território amazônico oitocentista. XXVIII Simpósio
Nacional de História, Anais eletrônicos do XXVIII Simpósio Nacional da Anpuh, Florianópolis, 2015;
CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. Op. Cit.. 2017.
72
“Falam por tal modo os Cocamas, que nos parecem serem Índios pertencentes a Bolívia, porque entre a
gíria percebem-se palavras espanholas, como chamarem ao machado – acha – ao terçado – macheta – a
faca – cuchillo”. Relatório de Serafim da Silva Salgado sobre a exploração do rio Purús. In: Fala dirigida á
assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de outubro de 1853, em que se abriu a sua 2ª sessão
ordinária, pelo presidente da província o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p. S1-I a S1-VIII.
73
Relatório de João Rodrigues de Medeiros sobre a exploração do rio Abacaxis. In: Fala dirigida á
assembleia legislativa provincial do Amazonas de 1853, em que se abriu a sua 2ª sessão ordinária, pelo
presidente da província o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p. S1-XI a S1-XXVII
44

séculos XVII e XVIII este rio foi alvo dos interesses da coroa portuguesa e de particulares
que subiam esse rio em busca das “drogas do sertão” e da captura de indígenas.74 Esse rio
havia ficado fechado para navegação desde o século XVIII, pois tinha se tornado uma
rota de fuga de negros escravizados que eram transferidos para trabalhar na extração de
ouro nas minas de Cuiabá, assim como era uma rota de tráfico de ouro entre o Mato
Grosso e o Grão Pará75. Contudo, a partir da segunda metade do Oitocentos, quando a
região voltou a ser área bastante almejada comercialmente, o Estado realizou expedições
de exploração para encontrar caminhos para superar os trechos encachoeirados, o que
com o passar dos anos e de inúmeras tentativas falidas se mostrou impossível realizar.
Nessa direção, em 12 de maio de 1852 João Rodrigues Medeiros partiu da Aldeia
de Abacaxis em uma expedição acompanhado de “vinte e cinco praças da guarda policial,
armadas e municiadas” e mais um número não declarado de trabalhadores, provavelmente
indígenas.76 Todavia, mal iniciada a viagem Medeiros ficou enfermo e retornou à Vila de
Maués, onde permaneceu até o dia 16 de junho se recuperando. Quando restaurou sua
saúde, Medeiros navegou em direção a sua comitiva e após alguns percalços conseguiram
encontrar “uma maloca de índios Mundurucus quase a margem do rio Tapajós” com quem
obtiveram as informações de que “na margem oposta do dito Tapajós havia gente que
podia dar explicações”.77
A comitiva de Medeiros com auxílio dos indígenas se dirigiu para a outra margem
onde souberam, após perguntas realizadas ao Tuxaua (de outro grupo Mundurucu), “que
não era possível chegarem ao rio Arinos, por terem ainda de passar três formidáveis
cachoeiras de varadouros, cortadas de muitos braços, que impossibilitavam o trânsito por
terra”.78 Além das dificuldades naturais, o explorador também afirmou que o mesmo
Tuxaua Mundurucu indicou como o maior obstáculo para navegar naquelas áreas a

74
Miguel Menéndez assevera que a busca por cacau bravo era apenas uma extensão das expedições de
resgate que visavam o recrutamento obrigatório de trabalhadores indígenas. MENÉNDEZ, Miguel.
Contribuição para uma etno-história da área tapajós-Madeira. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela.
História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; sobre a importância do rio Madeira
para coleta de cacau durante o período colonial, ver: SAMPAIO, Patrícia Melo. Espelhos Partidos: etnia,
legislação e desigualdade na Colônia. Manaus: Edua, 2012, p. 39. Martha Amaroso completa afirmando
como a presença de missionários jesuítas “semeando e colhendo cacau” foi também um processo marcante
de controle da força de trabalho indígena”. AMOROSO, Marta Rosa. Guerra Mura no século XVIII: versos
e versões. Representações dos Mura no Imaginário Colonial. Dissertação de Mestrado. Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, 1991.
75
MENÉNDEZ, Miguel. Op Cit, 1992, p. 288.
76
Relatório de João Rodrigues de Medeiros sobre a exploração do rio Abacaxis. In: Fala dirigida á
assembleia legislativa provincial do Amazonas de 1853, em que se abriu a sua 2ª sessão ordinária, pelo
presidente da província o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p. S1-XIV
77
Idem, p. S1-XIX.
78
Idem, p. S1-XXV.
45

presença de “índios selvagens das tribos – Araras, Parintintins, Matauaés, Juruás,


Pirianaus” que não permitiam nem a presença dos Mundurucus na área. Devido a isto,
João Rodrigues Medeiros indicava ser “impraticável a abertura da via de comunicação”
com a província do Mato Grasso por meio do rio Abacaxis. O explorador deixava assim
claro como a existência dessas populações tornavam-se um obstáculo para o avanço dos
projetos naquela região. Ao mesmo, podemos ler a “hostilidade” dos indígenas em
estabelecer relações com outras populações como uma estratégias dos mesmos para criar
mecanismos que impedissem o deslocamento para suas regiões e os mantivessem fora das
tentativas de interferência dos agentes estatais e particulares. No geral, como poderemos
entrever dos relatos acima descritos o diálogo das populações indígenas com o processo
de expansão – por vezes marcado pela negociação e aproximação e em outro momento
pelo conflito – será bastante diverso, variando de acordo com a etnia e o processo
histórico de transformação da região.
Em suma, as expedições de Serafim Salgado e João Rodrigues Medeiros
apresentam como o Estado estava bastante preocupado em realizar um mapeamento do
espaço amazônico visando sobretudo possuir informações que viabilizassem planos de
intervenção, especialmente econômico, para a vasta região da província do Amazonas
que até aquele momento permanecia desconhecida. Nesse sentido, analisadas em
conjunto essas expedições oficiais acenam para dois importantes espaços que se tornaram
centros da exploração comercial no vale amazônico no oitocentos: os rios Madeira e
Purus. Esses dois rios, eram apontados nos registros das expedições nacionais e
estrangeiras como regiões de alta concentração da árvore hevea brasiliensis de onde
extraia-se o material para produção da borracha. A goma elástica da Amazônia passou a
despertar muito interesse para nacionais e estrangeiros após a descoberta, em 1844, do
processo de vulcanização patenteado pelo norte-americano Charles Goodyear. Todavia,
como aponta Barbará Weinstein, isso não significou uma imediata expansão da
exportação proveniente do Brasil. Até porque, como destaca a autora, “a julgar pelo nível
das exportações de borracha da Amazônia na década de 1840 a 1850 (...) a demanda pela
borracha bruta no mundo industrializado começou a crescer muito antes do
desenvolvimento da indústria de pneus”.79
Esse movimento inicial do Estado e de particulares em direção aos sertões
simbolizam as tentativas do Império brasileiro para aprimorar seu conhecimento da área

79
WEINSTEIN, Barbará. Op Ciot, 1993, p. 23
46

visando um aperfeiçoamento do planejamento de suas ações posteriores e assim melhor


viabilizar e demarcar sua presença no vale amazônico. Os relatórios dos exploradores
acentuam ainda a preocupação das autoridades públicas com encontrar alternativas para
agilizar as rotas comerciais, assim como obter mais informações acerca dos povos
indígenas habitantes daqueles sertões. Essas populações serão lidas a partir de três
principais vieses: o seu nível de contato com a ‘civilização’, suas formas de produção e a
predisposição para o mundo do trabalho capitalista. Para a nascente província, se tornava
imperativo mapear sua força de trabalho disponível e projetar meios de estabelecer
domínio sobre ela. O caminho escolhido foi reforçar as estruturas coercitivas mediante
práticas de escravização ilegal e das vias institucionais usando as prerrogativas
administrativas do Estado para coagir trabalhadores, como apresentaremos em capítulos
posteriores.
Outro objetivo das viagens oficiais será demonstrar a viabilidade e emergência da
instalação da navegação a vapor na Amazônia. O presidente da província Tenreiro Aranha
destacava em seu relatório de 1852 como para agilizar a exploração econômica e obtenção
de resultados mais rápidos era necessário estabelecer “novas vias de comunicação pelos
rios e pelas terras e campinas”, mas para isso fazia-se urgente que se empregasse “o
agente poderoso do vapor, que já felizmente se tem mostrado vencedor das impetuosas
forças do Amazonas”.80 O presidente completava asseverando a urgência “da criação de
um Companhia de Navegação à vapor para melhor conhecer os meandros amazônicos e
alavancar assim possíveis rotas de comércio”. Essa imagem proporcionada pelas
navegações a vapor cingindo com velocidade os rios amazônicos correspondia aos
anseios políticos e privados de acelerar o processo de desbravamento do território
amazonense.
A defesa da implementação da navegação a vapor estava inserida “no bojo da
conjuntura modernizante da segunda metade do XIX” que via nessa medida a “condição
primeira para penetração e implementação do capitalismo internacional no Brasil”. O
desenvolvimento das comunicações “atrelava-se tanto ao objetivo geopolítico ligado à
integração do país, quanto à questão do progresso” 81. Foi neste contexto que se deu a
criação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, em 1853, financiada por

80
Relatório que em seguida ao do exm.o snr. presidente da província do Pará, e em virtude da circular de
11 de março de 1848, fez, sobre o estado da província do Amazonas, depois da instalação dela, e de haver
tomado posse o seu 1.o presidente, o exm.o snr. João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha., p. 57-58
81
MACHADO, Maria Helena P. T. Op. Cit., 2005. p. 152
47

Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, que atuou por dezoito anos com linhas
regulares de navios a vapor de Belém até a cidade de Nauta, no Peru. Além de ficar
responsável pelas linhas de vapores, a companhia também deveria criar colônias agrícolas
e incentivar a imigração.82 Unia-se na Companhia de Mauá dois grandes projetos do
Estado Nacional para a Amazônia que eram acelerar a entrada do capital e ‘povoar’ a
região com ‘hábeis trabalhadores’ para implantação da agricultura. O incentivo a esse tipo
de empreendimento era bastante característico dos planos políticos da classe dirigente do
Império brasileiro que tinha como motim a necessidade agilizar a modernização do país
e, para isso, apostavam no incentivo à construção de uma infraestrutura de transporte
como um caminho para assegurar a presença do Estado nos sertões ainda intocados. 83
Somado a isto, unia-se também os projetos de “povoamento” dos sertões,
entendidos como “vazios”, onde deveriam ser construídos colônias visando incentivar o
desenvolvimento da agricultura e a imigração de trabalhadores, preferencialmente de
europeus e brancos, para essas regiões. Nesse sentido, o decreto de nº 1410 de 8 de julho
de 1854 concedeu a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas terras devolutas
à margem do rio Negro e próximos a cidade da Barra para o estabelecimento da “primeira
das sessenta colônias” que a empresa estava responsável por criar nas margens dos rios
Javari, Negro, Amazonas, Madeira e Tapajós num prazo de 10 anos.84 O intuito da criação
dessas colônias próximas à capital visava fornecer a cidade tanto de uma fonte de
suprimento de alimentos como de mão de obra. Durante toda segunda metade do século
XIX, especialmente a partir do advento da borracha como principal produto da pauta de
exportação da província amazonense, os debates entre a necessidade de se aprimorar a
agricultura em detrimento do extrativismo e vice e versa ocuparam parlamentares, agentes

82
Analisando os efeitos da fundação da Companhia de navegação e comércio do Amazonas, Roberta Kelly
Brito realiza um estudo sobre a importância desse empreendimento comercial, entendido enquanto parte
um projeto político e econômico, e busca reconstituir suas atividades, esboçando seu funcionamento para
a região. BRITO, Roberta Kelly. Vapores Mauá: A companhia de navegação e comércio do Amazonas
(1852-1871). Dissertação (Mestrado em História). Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2018.
83
Além dos incentivos navegação à vapor, a construção de estradas de ferro também se tornou sinônimo
de modernização. Em 1855, por exemplo, a província da Bahia iniciou os arranjos em associação a
investidores britânicos da construção da Bahia and San Francisco Railway Company. E para colocar o
projeto em prática o governo e a empresa recrutaram milhares de trabalhadores nacionais e estrangeiros
para a empreitada. Robério Souza analisa como os trabalhadores recrutados a ferrovia não se limitavam a
trabalhadores livres estrangeiro como também a escravizados. O autor assevera como as experiências desses
trabalhadores de origens e condições distintas demonstram como as fronteiras entre escravidão e liberdade
eram tênues. SOUZA, Robério Santos. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e
escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
84
Estrella do Amazonas, 7 de outubro de 1854, nº 100, p. 01.
48

administrativos e as páginas dos periódicos da cidade.85 Contudo, das colônias projetadas


pela Companhia de Navegação a maioria nem chegou de fato a ser criada e as que foram
não lograram sucesso.86
O empreendimento de mais longa duração da Companhia de Mauá foi justamente
a introdução da navegação a vapor. A primeira viagem do navio a vapor ficou a cargo do
Vapor Marajó liderado pelo conde Rozwadowski que partiu em 1853 da cidade de
Manaus com destino a Nauta, no Peru, com o objetivo de criação de um mapa cartográfico
da região. A viagem levou cerca de 36 dias e 18 horas realizando paradas em portos
brasileiros (Coari, Tefé, Caiarahy, Tonantins, Santo Antonio do Iça, Amarutá, São Paulo
de Olivença e Tabatinga) e peruanos (Loreto, Cochiquinas, Pebas, Pucaalpa e Iquitos).87
Ao se referir aos resultados dessa viagem, o presidente da província Herculano Ferreira
Penna afirmou ter ela gerado um mapa do caminho percorrido e um relatório onde o conde
Rozwadowski apontava quais os melhoramentos poderiam ser realizado pela Companhia
de Navegação de Mauá. Além disso, o presidente destacou que aquelas informações
também seriam úteis ao “governo Imperial [que] poderá dar a navegação e colonização
um impulso correspondente à grandeza do território e à importância de suas futuras
relações comerciais com os diversos Estados limítrofes”.88 O próprio Herculano admitia
ter passado instruções específicas ao conde para que prestasse especial atenção no
mapeamento “de lugares para assento de colônias e aldeamentos”. Sobre essa questão
Rozwadowski havia indicado as margens do rio Solimões para as colônias de estrangeiros
e os demais afluentes para a formação dos aldeamentos. O conde justificava essa divisão
alegando que os povos indígenas eram “menos atingidos pelas febres e sezões”, bastante
comuns nos rios afluentes, enquanto os estrangeiros rapidamente padeciam das doenças.

85
Francivaldo Alves Nunes aponta que na Amazônia o debate em torno da agricultura tomou “uma
dimensão para além da simples adoção de novas técnicas de cultivo com o propósito de aumento da
produção, embora este seja um dos elementos de debate. A agricultura se revestia de um aspecto
moralizador e civilizador, como atividade capaz de criar o hábito salutar do trabalho e consequentemente a
ordem pública; assegurar a ocupação regular das terras, pois possibilitava o surgimento de proprietários e
não apenas extrativistas; além do que (...) produziria uma ordem humana no que se considerava
desorganizado mundo natural, na medida de que, as terras de florestas fossem ocupadas por plantações”.
Para uma análise mais aprofundada desse processo, ver: NUNES, Francivaldo Alves. Sob o signo do
moderno cultivo: Estado imperial e agricultura na Amazônia. Tese de doutorado (História Social).
Universidade Federal Fluminense, 2011.
86
Em 1854, foram fundadas as colônias chamadas Mauá e Itacoatiara, a primeira nas Lages, nove milhas
abaixo de Manaus e a outra no município de Serpa. Nesse ano foram introduzidos cerca de 1.061 colonos
portugueses e mais 30 chineses. Para saber mais sobre o funcionamento das colônias, consultar: BRITO,
Roberta Kelly Lima de. Op. Cit. 2018.
87
Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de agosto de 1854, em que se
abriu a sua 3 sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro Herculano Ferreira Pena, p. 35.
88
Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de agosto de 1854 (...), p. 37-38.
49

Essa viagem, como aponta Alexandre Isídio Cardoso, “abriu um novo ritmo de
exploração da floresta”89 ao mostrar ser possível percorrer grandes distâncias em tempo
consideravelmente “rápido” e sem grandes empecilhos. Uma realidade completamente
diferente das viagens feitas nas embarcações menores, como as “igarités”, que poderiam
levar bem mais tempo para ser realizada e lidavam com inúmeros problemas em seus
percursos. Herculano Ferreira Penna, presidente da província entre 1854-1855, defendia
que para pôr em prática os empreendimentos em prol da navegação, colonização e ‘de
outros ramos do serviço público’90 era necessário aprimorar os conhecimentos acerca da
região e por isso ele organizou novamente uma expedição entre as cidades da Barra do
Rio Negro e Nauta.
Então, naquele ano de 1854, saiu outra expedição oficial para percorrer novamente
o trajeto entre a capital amazonense e Nauta liderada dessa vez pelo deputado e
91
engenheiro João Wilkens de Mattos a bordo do Vapor Monarcha. A comitiva de
Wilkens de Mattos tinha o “desígnio de aprofundar os conhecimentos sobre o alto
Solimões e suas possibilidades de navegação em escala comercial”. 92 Na caracterização
das localidades o engenheiro preocupou-se em apresentar não somente informações
acerca do trajeto e condições do porto como também considerações detalhadas sobre o
contingente populacional e os recursos disponíveis.
O mapeamento sistemático dos recursos do vale amazônico está correlacionado
à crescente demanda nacional e estrangeira por produtos comercialmente exploráveis,
rotas de comércio e terras para colonizar. Sobre Manacapuru, por exemplo, Wilkens de
Mattos descreveu o local como um aldeamento formado por cerca de 80 indígenas da
etnia Mura que viviam sob a “direção de um Encarregado que também é inspetor de
quarteirão” e um local “abundante em peixe-boi, pirarucu, castanha, óleo de copaíba e
etc”. O explorador indicava ainda em seu relatório que aquela localidade seria a mais
própria “para o assentamento de uma Colônia agrícola”.93 Esses apontamentos de
Wilkens estavam alinhados aos projetos de incentivo à imigração branca e europeia
visando encontrar caminhos para a “substituição” da mão de obra escravizada e o
desenvolvimento da agricultura cunhados pelas autoridades estatais que buscavam atingir

89
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. Cit., 2017, p. 77
90
Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de agosto de 1854 (...), p. 44.
91
MATTOS, João Wilkens. Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha desde a Cidade da Barra do
Rio Negro, Capital da Província do Amazonas, até a povoação de Nauta, na República do Peru. Rio Negro,
Tipografia de M.S. Ramos, 1855.
92
CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. Op. Cit. 2017.
93
Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha...p. 8.
50

esse objetivo por meio da criação de colônias agrícolas em diversas áreas do Império
brasileiro.94
A comitiva retornou sua subida do rio Solimões, prosseguindo sua viagem com
destino ao território peruano, passando antes por Tefé que foi descrita pelo engenheiro
como tendo terras que prestavam:
(...) com vantagem à criação de gado vacum, lanígero e cavalar; à
cultura da mandioca, da cana, do café, cacau, milho, arroz, algodão. Nas
matas colhe-se a salsa, o cacau silvestre, que abunda e é de excelente
qualidade, o óleo de copaíba, breu, puxuri etc; e não há muito tempo
que descobriu-se em grande abundância a goma elástica, cuja
exportação deve vir a ser em muito pouco tempo um dos principais
elementos da prosperidade do comercio desta Província 95. (grifo
nosso)

João Wilkens de Mattos mostrava-se atento às demandas do mercado


internacional que se expandia para a exploração dos produtos nativos, especialmente da
goma elástica. O explorador fará apontamentos semelhantes ao navegar pela foz do rio
Juruá onde qualificou que se poderia “fabricar muita goma elástica, de que também
abundam suas margens”96. Ainda sobre a foz do Juruá, Wilkens de Mattos descreveu-a
como habitada por indígenas das etnias “Marauás, Canamaris, Náuas, Conivos,
Catuquinas e Catauxis” que eram conhecidos naquele período por não serem “hostis”
contra “não pequeno número de comerciantes, que, em procura das drogas” frequentavam
aqueles “sertões inabitados” 97
Autoridades oficiais e exploradores estrangeiros farão
extensivo uso da qualificação do vale amazônico enquanto “sertões inabitados” ou
“vazios”. Uma estratégia discursiva largamente utilizada pelos exploradores europeus e
norte-americanos que passaram a adentrar para o interior da América e África. Mary
Louise Pratt assevera como essa era uma forma discursiva de invisibilizar a presença dos
povos indígenas, tornando assim os seus “habitats de subsistência como paisagens
‘vazias’, significativas apenas em termos de um futuro capitalista e de sua potência para
a produção de excedentes comercializáveis”.98
Ao chegar em Loreto, primeira cidade peruana na região fronteiriça, Wilkens de
Mattos realizou uma descrição acerca da administração e dos habitantes do local, que

94
Sobre os projetos políticos de colonização europeia para o Brasil, ver: MACHADO, Paulo Pinheiro. A
política de colonização no Império. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
95
Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha..., p. 19.
96
Idem, p. 24
97
Idem, p. 24-26
98
PRATT, Mary Louise. Op. Cit, 1999, p. 115
51

além de indígenas da etnia Ticuna incluíam “dois negociantes naturais de Portugal


(Coelho e Santin)” que há anos se mudaram da província do Amazonas para o território
peruano. Muito provavelmente, foi na companhia de um desses comerciantes portugueses
que o naturalista francês Paul Marcoy explorou aquela região alguns anos antes. Por volta
do ano de 1847, o viajante declarou como apesar daquele território ser “peruano de
direito” era habitado por “negociantes portugueses dedicados a um pequeno comércio de
salsaparrilha, panos de algodão e peixe salgado” 99, muito provavelmente o pirarucu. A
presença de desertores brasileiros no território boliviano não escapou do crivo da
excursão de João Wilkens de Mattos. Em Nauta, o engenheiro foi informado da presença
de desertores brasileiros que habitariam aquela área e que seriam os autores do assassinato
do “Capitão Nina, em Tabatinga, no ano de 1844”.
Além disso, também relatou ter visto “alguns dos escravos que fugiram de seus
senhores residentes nas províncias do Pará e Amazonas”, mas que não gozariam “da
liberdade que esperavam achar em país estrangeiro, porque são constantemente chamados
para o serviço público, e sofrem muito, se são exatas as informações que tivemos”. 100
Apesar de demarcar a presença desses fugitivos em um lugar diferente do descrito por
Paul Marcoy, podemos entrever que a presença de desertores e escravizados distantes do
controle do estado e dos proprietários configurava-se enquanto um grave problema as
autoridades estatais visto que representavam ameaças a ‘tranquilidade’ e configuram
braços de trabalho que não estavam aplicados a serviço do Estado ou das elites
proprietárias de escravizados.
Além da preocupação com a circulação dos fugitivos, havia ainda os problemas
que envolviam a movimentação das populações indígenas que habitavam na fronteira
com Peru e que constantemente se configurara como um problema. Em 1856, por
exemplo, foi decretado na província do Amazonas o Regulamento especial sobre
passaporte com objetivo de controlar o fluxo de pessoas e produtos nas fronteiras. Dentre
os quatorze artigos que compunham o regulamento, o artigo 11 determinava que “o
comandante de Tabatinga, não consentirá que os índios pertencentes a República do Peru
passem para o território do passaporte” sem os documentos determinados. 101 O fato é que
o comércio com os peruanos cresceu significativamente década após década. Em 1860 o
presidente de província Manoel Gomes Corrêa de Mirando pontuou em seu relatório:

99
Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha..., p. 34-35.
100
Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha..., p. 70.
101
Estrella do Amazonas, 16 de abril de 1856, nº 140, p. 1-3
52

“este ramo de riqueza de um povo, é fora de questão que vai prosperando na província. O
que se faz com a República do Peru, cresce de dia em dia”.102 Dessa forma, o que deveria
ser apenas um relatório técnico para a viabilização de uma rota de navegação a capital
amazonense e Nauta, configurou-se de fato enquanto uma detalhada descrição acerca das
potencialidades econômicas - tanto as que já estavam em curso como aquelas que
poderiam ser desenvolvidas - dos movimentos de pessoas (comerciantes e desertores) nos
altos rios e das relações de trabalho dos sertões.
Nesse sentido, Wilkens de Mattos preocupou-se em obter informações com
“pessoas conhecedores” do movimento comercial daquela região, o qual foi estipulado
orçando em torno de oitenta contos de réis em mercadorias (como ferro, ferragem, louça,
fazendas grossas e bebidas alcoólicas) importadas do Brasil. Segundo Mattos, esses
produtos eram consumidos nos povoados localizados “desde Loreto até Moyobamba
inclusive, e nos que estão à margem do Huallaga e Ucaually”. 103 O engenheiro acentuava
por meio dessa informações para apontar a viabilidade de uma linha fixa de um navio a
vapor e assim incrementar os negócios com a república do Peru.
Atentos a essas questões da exploração econômica uma comissão mista Brasil e
Peru para acertar os limites das fronteiras começou a ser articulada por volta de 1862.
Apesar da região do alto Solimões possuir uma história de contato com a autoridade
públicas e particulares desde o período colonial104, as populações indígenas, negra e
mestiça habitantes dessa região mostraram-se refratárias aos novos movimentos de
expansão. Em 1866, por exemplo, a comissão mista Brasil-Peru adentrou o rio Javari
(afluente do Solimões) e sofreu fortes represálias de indígenas da etnia Mayoruna que
atacaram duas canoas que conduziam membros da comissão. O ataque resultou no
falecimento do brasileiro o capitão tenente João Soeres Pinto e com ferimentos graves o

102
Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas na abertura da 1 sessão ordinária da 5ª
legislatura no dia 3 de novembro de 1860, o vice-presidente em exercício o exm o senr dr Manoel Gomes
Correa de Miranda, p. 18. Faltam ainda pesquisas mais detalhadas sobre as relações entre a província do
Amazonas e o Peru tanto no que condiz as questões econômicas como também da circulação dos sujeitos
naquela região.
103
Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha... p. 69
104
PORRO, Antônio. História indígena do alto e médio Amazonas, século XVI a XVIII. In: CUNHA,
Manuela (org). História indígena no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1992, p. 175-196; SANTOS,
Francisco Jorge. Além da Conquista: guerra e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina. Manaus:
EDUA, 1999; SANTOS, Francisco Jorge dos. Nos confins ocidentais da Amazônia portuguesa: mando
metropolitano e prática do poder régio na Capitania do rio Negro no século XVIII. Tese (Doutorado em
Sociedade e Cultura da Amazônia). Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia,
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2012; UGARTE, Auxiliomar Silva. Filhos de São Francisco
no país das Amazonas: catequese e colonização na Amazônia do século XVII. In: Amazônia em cadernos
– diálogos interdisciplinares. Nº6, jan/dez/. Manaus: UFAM/Museu Amazônico, 2000, p. 201-228;
53

secretário peruano D. Manoel Raode y Paz Soldan. 105 Alguns anos antes, em 1860, os
indígenas da etnia Colêno e Cunibú habitantes do Juruá foram responsabilizados por
diversas contendas ocorridas naquela região, os primeiros pelo ataque à canoa de um
regatão chamado Inocêncio Alves Farias de onde saíram feridos ele e mais três pessoas e
o segundo pelo assalto ao português José Joaquim Ferreira e sua “amásia Benedicta Maria
da Conceição” que navegavam naquele rio para pescar e ao descerem para a praia “foram
atacados por cinco indivíduos, entre os quais se achavam três índios da tribo Cunibú”. 106
Devido a estas refregas as autoridades públicas começaram a qualificar essas
populações nas fontes oficiais como “errantes” e “violentas”, contudo, como destaca
Benedito Maciel, mediante outros documentos podemos contradizer essa imagem criada
pelas forças estatais e particulares.107 Segundo Maciel, existem diversos indícios
históricos que mostram como essas populações viviam nessas regiões há considerável
tempo negociando produtos nativos e farinha de mandioca com outros grupos indígenas
e brancos. O autor pontua que essas relações começam a tencionar justamente a partir da
década de 1850 quando se iniciam essas articulações oficiais para ocupar essas regiões e
as populações indígenas começam a dar “respostas às agressões sofridas, as estratégias
de controle e de expansão sobre seus domínios territoriais na região do alto Solimões”. 108
De fato, tais ações das populações indígenas demonstravam sua percepção sobre as
tentativas estatais e de particulares de avançar sobre seus territórios e seus corpos e por
meio dessas refregas conseguiram inibir esses deslocamentos naquela região, que só
começaram a serem exploradas com mais intensidade a partir de final da década de 1870.
A própria comissão mista Brasil-Peru apenas em 1874 conseguiu definir os limites entre
os territórios e durante todo o processo as relações entre peruanos e brasileiros esteve
constantemente envolta em conflitos devido a intensa circulação de pessoas e produtos e
aos ataques indígenas à comissão.109

105
Relatório com que o exm sr dr Antonio Epaminondas de Mello entregou a administração da provincia
do Amazonas ao exm snr. dr Gustavo Adolpho Ramos Ferreira vice-presidente da mesma em 24 de junho
de 1866.
106
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na abertura no dia 3 de maio de 1861
pelo presidente da mesma, o exm, sr, dr. Manoel Clementino Carneiro da Cunha, p. 6.
107
MACIEL, Benedito do Espirito Santo Pena. Histórias intercruzadas: projetos, ações e práticas
indígenas e indigenistas na Província do Amazonas (1850-1889). Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura
na Amazônia), Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia, Universidade Federal
do Amazonas, Manaus, 2015.
108
Idem. p, 269
109
Sabrina Alexandre Luz analisa o mapa produzido pela Comissão Mista de Limites entre o Brasil e o
Peru de 1874, apresentando como ele apresenta além da tentativa de definir os limites entre os dois países
através do rio Javari também simbolizada a presença de ambos os Estados naquela região. LUZ, Sabrina
54

Até aqui conseguimos analisar como os esforços das autoridades estatais


concentravam as explorações oficiais em torno de três importantes assuntos: o limite de
fronteiras, o mapeamento dos recursos naturais e da força de trabalho disponível. Como
também foi possível perceber as diversas formas pelas quais as populações indígenas
buscaram influir nesse processo, ora dialogando ora negando contato. No que concerne
às expedições, os esforços de mapeamento da região não se limitaram as regiões dos rios
Madeira, Purus e Solimões e foram também direcionadas para o alto rio Negro. Em 1854,
o major de artilharia e bacharel em matemática Hilário Maximiano Antunes Gurjão foi
escolhido para liderar uma exploração com destino a serra do Cucui, localizada no alto
rio Negro, território na divisa com a Venezuela.110 O objetivo da expedição era mapear
aquela localidade para levantar a planta e delimitar a área onde seria construído um
quartel militar nas proximidades da povoação de Marabitanas. A comitiva partiu em uma
Igarité composta por dois soltados e oitos indígenas e demorou cerca de 32 dias para
completar sua viagem.111
Saindo da cidade da Barra do Rio Negro (futura Manaus) a expedição passou pelas
povoações de Tauapessassú, Airão, Moura, Carvoeiro, Barcelos, Moreira, Thomar, Santa
Izabel, Santo Antonio do Castanheiro, Maçaraby, são José, São Pedro, São Gabriel Santa
Ana, São Felipe, São Marcelino e, finalmente, São José de Marabitanas. No relatório não
consta uma detalhada caracterização dos lugares frequentados durante a subida do rio,
como realizado por João Wilkens de Mattos. Hilário Gurjão isentou-se da ausência da
descrição natural e geológica afirmando que não era aquele o seu objetivo na viagem e
que deixava “a descrição dos vegetais aos Botânicos, a dos terrenos ao geólogo, e a das
aves e inseto ao curioso naturalista”.112 Todavia, o que estava por trás dessa aparente falta
do relatório de Hilário Gurjão era que parte do médio e alto rio Negro passavam por
processos de desbravamento capitaneado por agentes particulares governamentais desde
a segunda metade do século XVII. A presença desses indivíduos no noroeste amazônico

Alexandre. Quando o rio é o caminho: o mapa da Comissão Mista de Limites entre o Brasil e o Peru (1874).
Revista Terra Brasilis, nº11, 2019.
110
Descrição da viagem feita desde a cidade da Barra do rio Negro, pelo rio do mesmo nome, até a Serra
do Cucui, indo em comissão como engenheiro, por ordem do Exmo Snr conselheiro Herculano Ferreira
Penna, presidente da província, no ano de 1854, pelo Major de Artilharia e bacharel em matemática, Hilário
Maximiano Antunes Gurjão. In: Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 2 de
maio de 1855, em que se abriu a sua 4ª sessão ordinária pelo vice-presidente da província, o doutor Manoel
Gomes Correa de Miranda, p. S2-1 a S2-18
111
A comitiva de Gurjão saiu da cidade da Barra do rio Negro dia 24 de outubro e chegou em Marabitanas,
no dia 24 de novembro. Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 2 de maio de
1855 (...), p. S2-1 e S2-2.
112
Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 2 de maio de 1855 (...), p. S2-2.
55

desde esse período foi motivada sobretudo pela procura das “drogas do sertão” e a prática
da escravização de indígenas113.
De toda forma, apesar de ampla área do rio Negro ser constantemente ‘visitada’
desde o período colonial, a excursão de Hilário Gurjão buscou caracterizar a região como
um lugar “ordenada de árvores colossais sempre verdejantes e florida” cuja “a destruidora
das obras da natureza – a mão do homem -, pouco tem feito a bem daquilo, que se chama
civilização”.114 O engenheiro pontuou ainda que foi por este motivo que seu relatório se
concentraria na descrição do estado das povoações, visto que assim proveria de
informações o governo da província para “curar dos meios de fazer prosperar esta parte
dela, que com os imensos produtos que encerra, ainda um dia muito concorrerá para
abastecer seus cofres”.115 O rio Negro era assim “reinventado” naquele início da década
de 1850 como um alvo a ser explorado pelo Estado e pelos interesses de particulares.
Nessa direção, Hilário Gurjão descreveu como “abandonada” e “vazia” e com
construções em “ruínas”. a maior parte das povoações pelas quais passou. Muito
provavelmente, o quadro descrito pelo explorador devia-se ao fato de o rio Negro ter sido
palco de diversos conflitos ocorridos entre cabanos e as autoridades públicas causando o
deslocamento de muitas populações locais para outras áreas. De toda forma, para
contornar a situação em que se encontrava o território, o explorador defendeu
incisivamente a necessidade de se expandir o número de religiosos na região para que
fosse possível ter “esperanças de ainda ver as povoações deste rio tão florescentes como
já foram, e hoje com proporções para ainda mais com a navegação a vapor”.116 Acionando
o passado colonial como símbolo de “progresso” e a “modernidade” proporcionada pelo
vapor o explorador uniu em uma sentença o plano a ser destinado para o vale amazônico:
extensa exploração coercitiva da força de trabalho das populações indígenas e dos
recursos naturais.
Esses objetivos ficam ainda mais aparentes quando analisamos que para além do
aparente interesse apenas nas questões de navegação e estruturas das povoações, o

113
A escravização indígena no rio Negro, segundo Robin Wright, assentou as bases da presença do governo
colonial da região no século XVIII. Segundo o autor, por meio da prática do “resgate” produziu-se milhares
de indígenas escravizados para atender as demandas por mão de obra nos serviços públicos e privados. O
autor apresenta como na década de 1740 “cerca de vinte mil habitantes do Alto Rio Negro foram forçados
a descer o rio”. Grande parte desses sujeitos eram indígenas dos povos Tukanoano, Aruak, Maku do
Uaupés, e outros grupos étnicos que foram escravizados a partir de violentas práticas institucionais,
construções ideológicas e negociações com líderes. WRIGHT, Robin M. Op. Cit., 2005. Consultar
principalmente o capítulo intitulado “Escravidão indígena no Noroeste Amazônico”.
114
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 2 de maio de 1855 (...), p. S2-2.
115
Idem, p. S2-3.
116
Idem, p. S2-8.
56

engenheiro realizou também apontamentos alinhados às questões da disponibilidade de


recursos e mão de obra. Note-se novamente como a preocupação estatal em torno do
mapeamento do espaço para criar informações para os possíveis projetos de intervenção
na vasta região amazônica era uma das tônicas das viagens. Na freguesia de Thomar, o
engenheiro além das informações habituais sobre as condições estruturais anotou ainda o
tipo de ocupação a que se empregavam seus habitantes sendo na “extração de alguma
salsa parrilha, piaçava e goma elástica”.117 Novamente, o interesse especialmente pela
borracha e demais produtos nativos despontavam como importantes dados coletados pelo
viajante. Em outro momento, Gurjão inseriu entre as descrições das povoações
estabelecidas entre São Gabriel e Santa Ana a indicação de aumentar o número de
aldeamentos e missionários naquela região visto que ali concentravam-se “maio número
de índios” do que nas demais áreas.118 A questão do trabalho também ficou latente quando
na povoação de Santa Anna, onde Hilário Gurjão apontou que “os índios dos rios Waupés
e Içana são dados ao trabalho e empregam-se na feitura de ralos, balaios, redes de
maqueira, farinha e uma grande parte na extração de salsa parrilha”.119
Mapear os espaços para criação de aldeamentos na região do rio Negro se
configurava como importante pauta para o governo provincial visto que naquela
localidade estavam estabelecidos os aldeamentos com maior quantidade de indígenas de
onde provinham grande parte da mão de obra aplicada nas obras públicas da capital e
regiões próximas. Todavia, o recrudescimento das arregimentações de trabalhadores e a
pressão exercida pelos negociantes locais sobre o trabalho das populações indígenas
desencadeará uma série de conflitos que tinham no mundo do trabalho seu motim. Em
1852, por exemplo, em uma das primeiras sessões da Assembleia Legislativa da província
do Amazonas os parlamentares foram confrontados com uma denúncia enviada pelo frei
Pedro de Ciriana, missionário do aldeamento de Andirá, de que os indígenas Mumurú e
Andirá estariam sofrendo com a escravização ilegal.120 O missionário acusava
comerciantes locais e autoridades públicas de praticarem tais atos e requisitava que
fossem tomadas medidas para sanar tais ilegalidades.
Os próprios principais da etnia Mawé, habitantes nos rios Andirá e Mamurú,
deslocaram-se até a capital amazonense e requisitaram uma reunião com o recém-

117
Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 2 de maio de 1855 (...), p. S2-10.
118
Idem, p. S2-15.
119
Idem, p. S2-16.
120
Sessão do dia 14 de outubro de 1852 da Assembleia Legislativa do Amazonas. Atas da Assembleia
Legislativa do Amazonas do Biênio de 1852 a 1853. APEAM.
57

empossado presidente da província João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha para


denunciar os abusos cometidos contra eles e requerer ações do governo. O conteúdo
completo desse encontro não entrou para os anais do governo, mas o presidente Tenreiro
Aranha anotou em seu relatório que teria reiterado ordens a seus subalternos para fizessem
cessar as violências contra os indígenas e que distribuiu aos principais títulos,
fardamentos e outros brindes.121 O aumento das pressões sobre a mão de obra das
populações indígenas desencadeou diversos movimentos de contestação no alto rio
Negro.122
De toda forma, no decorrer da década de 1850, com avanço do mapeamento dos
recursos naturais algumas áreas vão despontar como centro dos interesses como por
exemplo em relação ao rio Madeira que se configurava como importante caminho para
circulação dos produtos industrializados e coleta de produtos extrativistas. Esse
direcionamento marcará uma concentração dos interesses do governo em torno dessa
região. Em dezembro de 1858, por exemplo, o vapor mercante Guajará será enviado pelas
autoridades provinciais para navegar a extensão entre Manaus e o distrito de Crato,
localizado no rio Madeira, para verificar se naquele trecho haveria a possibilidade de ser
percorrido sem dificuldades e se suportava navegações maiores. 123 O mais latente
problema para o desenvolvimento da navegação no rio Madeira continuava a ser as
grandes cachoeiras localizadas entre as últimas possessões brasileiras e o território

121
O presidente Ferreira Pena descreveu ainda a visita de outros Tuxauas de diferentes etnias e regiões do
vale amazônico que teriam visitado Manaus para saudá-lo. Para eles o presidente afirmou ter “dado títulos
ou patentes com expressas cláusulas de fundarem novas povoações, de chamarem das matas para elas o
índios, e de fazerem aplicar a cultura das terras, a pesca e outros trabalhos úteis a eles próprios, aos outros
homens e ao Estado; e mandei também dar fardamentos e algumas fazendas para vestuários, e instrumentos
próprios para agricultura e pesca, isto com a maior parcimônia, porque eles com pouco se contentam”. Essa
fala do agente provincial demonstra como para além das legislações existentes, como o Corpo de
trabalhadores e o Regulamento das Missões, existia uma prática junto aos indígenas de atuação
“complementar a política indigenista oficial”. Benedito Maciel destaca que “Isto mostra, de um lado, a
necessidade e o interesse do Estado provincial de obter a indispensável contribuição dos índios e, por outro
lado, o poder dos índios em driblar as instâncias oficiais locais e buscar caminhos alternativos para fazer
valer os seus interesses, sabendo que o Estado deles necessitava”. Para uma análise voltada a interpretar as
políticas indígenas na província do Amazonas no século XIX, consultar: MACIEL, Benedito do Espírito
Santo Pena. Op Cit, 2015.
122
Alguns anos depois, dois importantes movimentos refratários aos avanços do Estado e da exploração da
sua força de trabalho eclodiram na região caracterizados por “práticas político-religiosas que reuniam
elementos do mundo cristão ocidental e do mundo indígena, às quais a literatura especializada tem chamado
de messianismo, profetismo e outros, ver: MACIEL, Benedito E. P. P. Op Cit. 2015, p. 219. Robin M
Wright reconstrói detalhadamente esses fenômenos que ocorrerão no rio Negro e as quais nomeia como
‘’rebeliões proféticas”, destacando principalmente a perspectiva indígenas acerca dos ocorridos. O autor
afirma que “em ambos os movimentos, os profetas foram vistos como curandeiros milagrosos que
protegiam os seus povos contra os patrões da borracha, além de promover o crescimento das plantações,
aliviando o sofrimento e as dívidas dos povos”. Robin M Wright. Op. Cit., 2005, p. 159..
123
Relatório que a assembleia Legislativa provincial do Amazonas apresentou na abertura da sessão
originária em o dia 3 de maio de 1859 Francisco José Furtado, presidente da mesma província.
58

boliviano. Com o crescimento da borracha na pauta de exportação, as expedições


científicas tanto oficiais como de estrangeiros começaram a se dirigir com mais
intensidade para as regiões abundantes em seringueiras.
Nessa direção, a partir de 1860 as autoridades provinciais elaboraram duas viagens
exploratórias com destino ao rio Purus. Ambas as comitivas continuaram em busca de
caminhos alternativos para as rotas comerciais entre as regiões do Mato Grosso e Bolívia
com o porto de Belém e Manaus. A primeira foi deixada a cargo do regatão Manoel
Urbano da Encarnação com a missão de realizar nova tentativa de encontrar um caminho
alternativo entre o Purus e o Madeira em 1861. Apesar de não ter produzido um relatório,
Antonio Alexandre Isídio Cardoso destaca que as informações produzidas pela expedição
de Manoel Urbano “ganhou grande notoriedade, especialmente através dos escritos do
engenheiro militar João da Silva Coutinho”.124 O mesmo engenheiro ficou responsável
em 1862 por aprimorar o mapeamento acerca do rio Purus e novamente tentar encontrar
a ligação daquele rio com o Madeira para onde se direcionou a bordo do vapor Pirajá. A
expedição estendeu ainda sua exploração para os cursos dos rios Madeira, afluente da
margem esquerda do Amazonas, e o Japurá, afluente do médio rio Negro.
Os percursos mapeados pelas expedições de Urbano e Coutinho “se tornariam nas
décadas seguintes um dos maiores produtores de borracha da bacia amazônica, atraindo
milhares de negociantes e trabalhadores migrantes que encheriam a calha do Purus”. 125
Na outra ponta, o porto de Belém começou a presenciar o crescimento das empresas
internacionais, principalmente de capital inglês e norte-americano, que começavam a se
instalar em maior quantidade naquela praça comercial visando coordenar as negociações
em torno da borracha. Esses movimentos fizeram aumentar as pressões internacionais
sobre o governo imperial em defesa da abertura da bacia amazônica à livre entrada de
embarcações estrangeiras, forçando o governo a também acelerar o mapeamento do vale
amazônico.
Em 1863 foi organizada três expedições oficiais em direção aos rios Hyupurá,
Ituxy e Madeira. A primeira viagem também ficou sob a responsabilidade do engenheiro
Silva Coutinho que partiu em 14 de março daquele ano na canhoneira Ibicuy até o

124
O historiador Antonio Alexandre Isídio Cardoso destaca como grande parte das informações
apresentadas no relatório do engenheiro João Martins da Silva Coutinho eram tributários dos saberes
acumulados por Manoel Urbano da Encarnação, experiente regatão que navegava pelo rio Purus mesmo
antes da presença estatal fazer-se atuante. CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. Op. Cit., 2017. Ler
especialmente o capítulo “Manuel Urbano da Encarnação, ‘um mulato de pouco instrução e de grande
inteligência natural’”.
125
CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. Op. Cit., 2017, p. 138.
59

126
Apaporis, afluente do rio Solimões. A região foi descrita pelo engenheiro como
habitada por Miranhas, Huyry, Coretú e Caixanas, esses últimos costumariam “aparecer
em busca de cacau” como também deslocavam em certas épocas para o rio Tocantins para
“entreterem relações com os mercadores deste rio”127. O presidente da província Adolfo
de Barros Lacerda, a partir das informações de Silva Coutinho, indicava como deveria ser
estabelecida uma missão religiosa naquela localidade “para serem reunidos os Miranhas
e outras tribos não só do Hyupurá como do Apaporis. A sorte desses índios e a situação
de fronteira ficaram assim mais ao abrigo de qualquer emergência”. Para a lógica das
autoridades imperiais a dita sorte direcionada aos indígenas seria sua entrada para a
“civilização” mediante implantação de aldeamentos que aplicariam esses sujeitos em
trabalhos produtivos e sob vigilância.
Quanto à expedição com destino ao rio Ituxy, afluente do rio Purús, tentava-se
novamente encontrar algum caminho que ligasse os rios Purus e Madeira. Essa
empreitada ficou novamente a cargo do regatão Manoel Urbano da Encarnação. O
presidente Adolfo de Barros Lacerda apesar de duvidar da existência da tão sonhada
ligação, acredita ser viável o financiamento do governo para a viagem. E, por isso, havia
cedido ao regatão “o pouco que exigiu para levar a efeito excursão tão penosa, consistindo
na maior parte de brindes destinados aos Índios”.128 Dentre as instruções passadas pelo
presidente ao explorador, além das habituais questões de navegabilidade, requeira-se que
“relacionasse as tribos de índios, com descrição das conhecidas daquelas que o não são,
calculando aproximadamente a população e mencionando as indústrias e os costumes de
cada uma” e indicasse “gênero de produção, índole e caráter das tribos ai existentes”. 129
Já a expedição enviada diretamente ao rio Madeira, como destacou Barros Lacerda
em seu território, carrega em si um “duplo ponto de vista na importância comercial e
política”. Essa viagem novamente ficou a cargo do engenheiro Coutinho - descrito pelo
presidente como “intrépido viajante dos despovoados sertões da província” - para que a
bordo do vapor Pirajá realizasse “estudos relativos não só a navegação, como também à
natureza dos terrenos e da vegetação; e ao estabelecimento de povoações, pontos

126
Relatório apresentado a Assembleia legislativa da província do Amazonas na sessão ordinária do 1º de
outubro de 1864, pelo dr Adolfo de Barros Lacerda, presidente da mesma província.
127
Idem, p. 30
128
Idem, p. 31
129
Idem.
60

fortificados e da vegetação”.130 Dentre as instruções repassadas pelo presidente para o


explorador constava que ele estudasse:
(...) as propensões e costumes da tribo Caripuna, que atualmente se
estende pela margem esquerda do rio, na altura das cachoeiras, e
mostra, além de outras qualidades, aptidão para certos ramos de
indústria, segundo referem alguns viajantes; da tribo Turá, que se
dedica a lavoura; da Urupá e de outras: o que muito interessa ao
estabelecimento de missões e coloniais nacionais e á navegação do
rio.131

As informações solicitadas acerca das relações de trabalho e produção das


populações indígenas, que já despontavam desde as primeiras explorações como
extremamente relevantes, salientam como as questões em torno da disponibilidade de
trabalhadores tornava-se cada vez mais latente. O governo imperial brasileiro, como um
todo, intensificava os debates e as políticas a fim de de delinear medidas que
encontrassem saídas para o problema da “carência de trabalhadores” e a perspectiva de
uma abolição da escravidão próxima. 132 A província do Amazonas em particular contava
na década de 1860 com cerca de 3% de sua população total na condição de escravizados,
habitantes, naquele período, principalmente da cidade de Manaus e estavam sobre o
controle da classe de comerciantes.133 Apesar da força de trabalho dos escravizados serem
essenciais para diversas atividades, as ocupações do mundo do trabalho amazonense
recaiam sobretudo aos trabalhadores dito livres formados por indígenas, mestiças e negros
(livres e libertos), principalmente daqueles que habitavam os sertões.

130
Idem, p. 32. A expedição seguiu viagem a bordo do Pirajá até o distrito de Crato onde tiveram que
mudar para canoas visto que a partir dali iniciavam as cachoeiras. Ao passarem pela cachoeira do
Theotonio, a comitiva foi arrastada por uma correnteza que apenas causou estragos nas embarcações e a
perda de alguns equipamentos, preservando-se todas as vidas.
131
Idem, p. 33.
132
A partir da segunda metade do século XIX, ocorreu um recrudescimento das práticas de compulsão ao
trabalho de trabalhadores nacionais livres e uma das formas encontradas pelo Estado para controlar essa
mão de obra foi por intermédio da intensificação da repressão e criminalização da “vadiagem”,
“ociosidade” e “indigência”. Esses mecanismos visavam ao controle da população pobre livre e de
disciplinamento da mão de obra para direcioná-las aos empreendimentos em voga. Sobre isso consultar:
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX. São Paulo: HUCITEC;
Salvador, EDUFBA, 1996.
133
O levantamento populacional realizando em 1859 computada 45.177 (98%) habitantes livres e 1026
(2%) escravizados. A população escravizada dividia-se nas cidades de Manaus (385), Barcellos (38), Silves
(96), Serpa (37), Borba (116), Tefé (91), Vila Bela (192) e Maués (71). Relatório que a Assembleia
Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na abertura da sessão ordinária em o dia 3 de maio de 1859
Francisco José Furtado, presidente da mesma província, p. 11. Para uma análise mais detalhada da
população escravizada e sua presença no mundo do trabalho da cidade de Manaus, ver: COSTA, Jéssyka
S. L P. Op Cit. 2016. Patrícia Melo desenvolveu importante análise a partir dos inventários post-mortem
da província do Amazonas entre 1840 a 1880 demonstrando os setores que controlavam a posse dos
escravizados dentre outras questões. Consultar: SAMPAIO, Patrícia Melo. Op. Cit, 1997.
61

Nessa conjuntura, as expedições foram essenciais para construção de um banco


de informações que serviram de orientações para as forças estatais, seus agentes e os
interesses privados melhor projetarem sua expansão pelos sertões amazônicos e,
principalmente, elaborar formas de conduzir (coagir) as populações locais para o mercado
de trabalho. A expansão das Diretorias de Índios, prevista pelo Regulamento das Missões
de 1845, e de subdelegacias, instituição policial com prerrogativas de cunho jurídico,
vigilância e manutenção da ordem pública, foram essenciais para o avanço da presença
estatal.
Em conjunto, essas instituições estatais além de demarcar a presença
governamental naquelas regiões visavam ao aprimoramento da fiscalização da circulação
dos recursos e controlar a organização da mão de obra disponível. Voltadas à colonização
dos povos indígenas, as 38 diretorias de índios existentes em 1866 estavam distribuídas
pelas margens dos rios Solimões (total de 18), Madeira (contabilizando 11), Purus (5) e
Negro (3).134 Na diretoria do Alto Purus chegaram a ser contabilizados 7.500 indígenas
aldeados, um contingente grande se comparados com as demais que vinham passando por
um processo de relativo esvaziamento. Outras nem chegavam a existir de fato devido a
problemas de diversas origens, mas sobretudo pela fuga e negação dos indígenas a aderir
ao projeto de “civilização” dos Estado que se intensificam após 1866.
A multiplicação das diretorias de índios no rio Purus começou no início da década
de 1860 na esteira dos avanços dos comerciantes de borracha que enfrentavam muitas
dificuldades com o grande número de conflitos provocados por algumas populações
indígenas refratárias a esses deslocamentos. Benedito Maciel pontua que a criação das
diretorias naquela região respondiam a questões governamentais de duas ordens:
primeiro, “se refere ao fato de ser nesta década que o rio Purus começa a aparecer nos
[relatórios] fortemente vinculados aos altos índices de conflitos e de violência envolvendo
as populações indígenas”; e segundo, “pelo fato de ser justamente no ano de 1866 que o
governo imperial passou a administração das aldeias aos missionários capuchinhos,
extinguindo o cargo de diretor parcial”. Adicionaríamos também como questão
norteadora o interesse do governo em controlar a mão de obra disponível dos indígenas,
o interesse na grande concentração de árvores seringueiras e outros produtos extrativos
naquela área e na própria manutenção do território. Esses também foram os motivos para

134
Relatório com que o Exm. Snr Dr Antonio Epaminondas de Melo entregou a administração da província
do Amazonas ao Exm Snr Dr Gustavo Adolpho Ramos Ferreira Vice-presidente da mesma, 24 de junho de
1866, p. 332.
62

a expansão das diretorias no percurso do rio Madeira, onde estavam se multiplicando o


número de subdelegacias.
Além das diretorias de índios, a segunda metade do século XIX viu crescer ainda
o número de subdelegacias na província do Amazonas. No ano de 1866, existiam 24
subdelegacias, distribuídas pelas margens do rio Solimões (11), seguido pelo rio Negro
(6) e rio Madeira (5). Rio Purus e o rio Branco constavam com uma cada.135 Mesmo que
relativamente em pequeno número a criação das subdelegacias seguia de perto as
demandas do Estado por estender suas instituições nas regiões onde estavam crescendo
as explorações dos recursos naturais. A multiplicação do quadro administrativo, em
especial o policial, estava inserido no projeto de centralização do Estado Nacional,
objetivando estender as redes de controle sobre os habitantes e a manutenção do território
nacional. Nesse cenário, as forças policiais tinham dentre suas funções difundir os
conceitos de ordem, disciplina e hierarquia que influíam diretamente nas relações do
mundo do trabalho livre e escravo, visto que essas noções buscavam introjetar nos
trabalhadores uma ética do trabalho pautada na obediência e servidão. Na província do
Amazonas, como abordaremos no terceiro capítulo, as prerrogativas dessa instituição
serão ainda acionadas pelos seus ocupantes como ferramentas para coação ao trabalho,
manejando mão de obra para os serviços públicos e privados.
Tanto as diretorias de índios quanto as subdelegacias se localizavam
majoritariamente nas mesmas regiões apresentadas no mapa cartográfico projetado do
Raimundo Nery, a pedido do seu irmão Barão de Santa-Anna Nery, e que foram
demarcadas enquanto “áreas não exploradas” em 1885. Todavia, a investigação das
políticas imperiais que incidiam sobre essas regiões mostra como elas estavam sendo alvo
de devassas e explorações dos seus recursos naturais e de suas populações com grande
intensidade desde a criação da província. Esses processos ganharam ainda mais impulso
a partir de final da década de 1860 e 1870 em associação com a abertura do rio Amazonas
à navegação internacional, que acelerou os deslocamentos em voga. Essas décadas
registram também um aumento do quadro demográfico na província amazonense devido
a intensificação da migração de trabalhadores nacionais (especialmente do Pará e do
Ceará) e de estrangeiros (com destaque para os bolivianos no rio Madeira). Compreender
esses processos é necessário para analisar o impacto que esses deslocamentos provocaram
no mundos do trabalho amazônico na segunda metade do XIX.

135
Relatório com que o exm,o snr, 1º vice-presidente da província do Amazonas, dr Gustavo Adolpho
Ramos Ferreira, abriu a Assembleia Legislativa Provincial no dia 5 de setembro de 1866, p, 14.
63

1.2 – O capital a vapor na Amazônia

A pressão em torno da abertura do rio Amazonas à navegação internacional foi


uma das principais razões que motivaram a viagem do botânico norte-americano Luiz
Agassiz e da sua esposa Elizabeth Agassiz na expedição Thayer que passou pelas cidades
Rio de Janeiro, Belém, Manaus, Ceará, além de muitas outras freguesias do complexo
amazônico entre 1865 e 1866. Nas impressões gerais apresentadas ao final do relato da
expedição, Agassiz advertia que “o monopólio dos transportes no Amazonas deve ser o
mais depressa abolido”.136 A emergência pela quebra do monopólio do governo brasileiro
e da abertura à navegação internacional acompanhava a avidez por acelerar a entrada dos
interesses capitalistas norte-americano na Amazônia com o propósito de tornar a
exploração mais efetiva e incisiva. Essa pretensão fica bem explícita na afirmação
seguinte dos viajantes:
(...) logo que os produtos brutos das margens do rio vierem a ser
submetidos a uma cultura regular, por mais imperfeita que seja, não
sendo colhidos ao acaso; logo que o trabalho organizado, dirigido por
uma atividade inteligente, houver substituído a imprevidência e
inconstância do índio, a variedade e a qualidade desses produtos
crescerão acima de toda expectativa. 137

Era urgente submeter as riquezas naturais e os habitantes da Amazônia aos


ímpetos da exploração capitalista retirando-a do “atraso” e da “barbárie” e assim facilitar
a inserção da floresta e dos seus produtos na lógica da produção de riquezas. Um desejo
igualmente compartilhado pelos burocratas que compunham o quadro político e
intelectual do Segundo Reinado e que procuraram formas de enfrentar o problema dos
extensíssimos sertões e “desertos”, que até meados de 1860 ainda representavam a maior
parte da nação, e de suas populações vivendo distante do controle governamental. Em
vista disso, o Estado buscou construir políticas nacionais voltadas a pôr em prática
reformas modernizantes, instituídas por intermédio da ordem paternalista e escravocrata

136
AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil (1865-1866). Belo Horizonte: Editora
Itaiaia, 1975. As contestações acerca do domínio do governo brasileiro sobre a navegação do rio Amazonas
já ocorriam desde aproximadamente 1826 quando se iniciaram os projetos (nacionais e estrangeiros) para
inserir navegação à vapor na região. De acordo com Vitor Gregório, a maior parte dos projetos apresentados
nesse período foram negados pelas autoridades imperiais que temiam que a entrada de capital estrangeiro
na Amazônia ameaçasse a posse do governo sobre aqueles territórios. Consultar: GREGORIO, Vitor. Op
cit. 2012
137
AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Op cit. 1975, p. 298
64

que pressupunha à classe dominante exercer a liderança nesse processo de forma a


fortalecer estruturas que mantivessem a submissão das massas não-brancas e pobres.138
Porém, dadas as colossais dimensões amazônicas essa presença estatal será difusa e
rarefeita, por isso sendo nesse cenário de suma importância a ação das elites locais que
assumiram o protagonismo na criação do aparato administrativo, aplicando-o sobretudo
em proveito próprio o que causará uma série de desentendimentos entre eles e o governo
imperial.
Os parlamentares na Câmara de Deputados na Corte haviam iniciado os debates
acerca da questão da abertura à navegação internacional do rio Amazonas desde o ano de
1864 quando o tema entrou em pauta novamente. Apesar da maioria dos parlamentares
serem a favor da aprovação do projeto, uma parte utilizou o temor de perda da soberania
brasileira sobre a região amazônica para tentar barrar a autorização.139 Todavia, essas
ideias não conseguiram derrubar o avanço dos debates visto que grande parte dos
parlamentares entendia essa abertura do rio Amazonas como parte crucial para o
desenvolvimento dos negócios do país. Um dos personagens mais atuantes nesse cenário
foi Aureliano Cândido Tavares Bastos um dos mais eminentes intelectuais do Império e
um tenaz defensor da proposta de abertura à navegação internacional da bacia amazônica.
Tavares Bastos escreveu dois livros: Cartas de um Solitário e O vale do Amazonas; nestas
obras buscou enfatizar os pontos positivos que a abertura para navegação internacional
propiciaria não apenas à Amazônia, como também ao Império brasileiro.140
O intelectual brasileiro acompanhou de perto a expedição Thayer pelo Brasil,
fosse participando das reuniões do viajante Louiz Agassiz com o Imperador D. Pedro II
na cidade do Rio de Janeiro, fosse ainda se encontrando com o viajante quando ele estava
no território amazônico. Tavares Bastos defendia a necessidade de integração dos
extensíssimos sertões e “desertos” povoados por povos “selvagens” que representavam
os obstáculos no caminho rumo a modernização e o progresso da promessa capitalista.

138
MATTOS, Ilmar Rohloff. Op Cit. 2017.
139
Vitor Gregório enfatiza que os receios do capital estrangeiro ameaçar a posse da Amazônia não
encontravam mais espaço visto que grande parte dos parlamentares nutriam a percepção “de que a
sobrevivência do País dependia, em grande medida, da boa vontade das grandes potências” em investir no
território brasileiro. GREGORIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: A navegação do rio Amazoans e a
formação do Estado brasileiro. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em
História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2008.
140
TAVARES BASTOS, A.C. O Vale do Amazonas: a livre navegação do Amazonas, estatísticas,
produção, comércio, questões fiscais do vale do Amazonas. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
(1866)1937; TAVARES BASTOS, A. C. Cartas do Solitário (Africanos Livres, Tráfico de escravos -
Liberdade da Cabotagem - Abertura do Amazonas). Rio de Janeiro: Tipografia do Correio Mercantil, 1863.
65

Tanto o viajante norte-americano quanto o intelectual brasileiro estavam alinhados ao


desejo de acelerar o processo de exploração das riquezas amazônicas. A almejada abertura
dos rios amazônicos à navegação internacional foi finalmente alcançada, para felicidade
de Tavares Bastos e dos interesses internacionais, em 7 de dezembro de 1866 e
regulamentada pelo decreto n. 3.920 de 31 de julho de 1867.
O resultado desse processo culminou na fundação de outros empreendimentos de
navegação além da Companhia de Navegação e Comércio pertencente a Irineu
Evangelista de Souza. Ainda em 1866, por exemplo, o governo provincial divulgou a
criação da companhia de navegação para os rios Purus, Madeira e Negro a cargo do
comendador Alexandre Paulo de Brito Amorim que se chamaria Companhia Fluvial do
Alto Amazonas. 141 O contrato estabelecia a criação de três linhas de vapores que ligariam
Manaus a Santo Antonio, no rio Madeira, Hyutanahã, no rio Purus, e Santa Izabel no rio
Negro.142 As três rotas previstas visavam atingir regiões estratégicas para agilizar a
circulação dos produtos e de pessoas. Inclusive, o presidente da província Jacintho Pereira
do Rego elogiava a contratação dessas novas linhas afirmando que “quanto mais se
multiplicarem os meios de comunicação e transporte, mais avultados serão os lucros das
empresas; e (...) só poderá resultar maior soma de benefícios para o serviço público e para
os particulares”.143
Contudo, a criação de uma companhia de navegação com investimento estrangeiro
para agilizar a entrada do capital nos rios amazônicos e a circulação dos recursos naturais
para os portos europeus era almejada há bastante tempo por nacionais e estrangeiros.
Franz Keller, por exemplo, quando visitou o rio Madeira entre 1867 e 1868 afirmava que
para resolver os “problemas” da produção da borracha seria urgente uma transformação
total das condições comerciais:

(…) pelo estabelecimento de novas linhas de vapores, pela construção


de ferrovias e pela abertura de filiais de empresas europeias, podem

141
A criação dessa companhia foi autorizada pela lei n 158 de 7 de outubro de 1866. Todavia, o responsável
contratado Alexandre Paulo de Brito Amorim não aos prazos estabelecidos para aquele ano e obteve uma
prorrogação até 1868 quando finalmente chegou o vapor Madeira que ainda aguardava a inauguração do
seu serviço. Relatório com que o exm. sr. Presidente da província do Amazonas tenente coronel João
Wilkens de Mattos, abriu a assembleia legislativa provincial no dia 4 de abril de 1869.
142
Relatório com que o exm. sr. Presidente da província do Amazonas tenente coronel João Wilkens de
Mattos, abriu a assembleia legislativa provincial no dia 4 de abril de 1869, p. AA-1 a AA-4.
143
Relatório com que o exm. o sr. Presidente da província, dr. Jacintho Pereira do Rego, abriu a Assembleia
Legislativa Provincial do Amazonas no dia 1 de junho de 1868; p. 37.
66

esses países altamente favorecidos serem afastados dos erros de sua


antiga rotina e conduzidos a outros caminhos mais prósperos. 144

Pelo olhar imperialista, navios a vapor, estradas de ferro e o capital europeu formavam o
pacote necessário para alavancar os produtos amazônicos e retirar a região do “atraso” e
da “barbárie”. Keller completava ainda afirmando que “agora, quando o vapor
transformador está prestes a abrir-nos este rico empório, a indústria europeia deve tirar
partido dos tesouros até agora negligenciados”.145 A Amazônia assim configura-se como
mais um espaço por intermédio do qual a Europa poderia elevar suas riquezas.
Esses movimentos do capital visavam atender à crescente demanda por goma
elástica no mercado internacional, que nesse período, cada vez mais, deslocava-se da
região do baixo amazonas em direção do oeste amazônico. No ano de 1870 era inaugurada
a Companhia Fluvial do Alto Amazonas de propriedade do português Alexandre Paulo de
Brito Amorim, responsável pela instalação de três linhas de vapores para navegação dos
rios Negro, Purus e Madeira. A última linha percorria o trajeto entre Santo Antônio, no
rio Madeira, realizando paradas intermediárias e seguia até o porto de Belém. Segundo o
presidente da província José de Miranda da Silva Reis, além dos vapores da Companhia
de Navegação e Commercio e a Companhia Fluvial do Alto-Amazonas no ano de 1871,
“outros diversos particulares tem já com alguma frequência sulcado as águas do nosso
grande Amazonas e de seus ricos afluentes.146
Em 1871 foi também quando “Irineu Evangelista de Souza recebeu do governo
imperial a autorização para repassar sua Companhia de Navegação e Comércio do rio
Amazonas a empresários ingleses, que formariam a The Amazon Steamship Company
Limited”, atuando na região até 1911.147 Essa requisição perante o governo imperial foi
realizada pelo Barão de Mauá um ano antes, apesar da Companhia de Navegação e
Comércio do Amazonas estar consolidada, “receber uma das mais altas subvenções do
Império e ser bem pelas administrações provinciais”.148 Roberta Brito destaca que havia

144
No original: “(...)by the establishment of new lines of steamers, by the construction of railways, and by
the opening of branches of European firms, can these highly favoured countries be divorced from the errors
of their old routine, and led into other and more prosperous ways. KELLER, Franz. The Amazon and
Madeira Rivers: sketches and description from the note-book of an explorer. New York: D. Appleton and
Co, 1874.p. 102
145
No original: “(...)now, when all-tranforming steam is about to open up to us this rich emporium,
European industry should take advantage of the hitherto neglected treasures”. Idem. p. 105
146
Relatório que á Assembleia Legislativa provincial do Amazonas apresentou na acta da abertura das
sessões ordinárias de 1871, o presidente José de Miranda da Silva Reis, p. 16.
147
GREGORIO, Vitor Marcos. O progresso a vapor: navegação e desenvolvimento na Amazônia do século
XIX. Nova Economia, nº 19 (1), Belo Horizonte, 2009, p. 203.
148
BRITO, Roberta Kelly Lima de Brito. Op Cit. 2018, p. 94.
67

outros fatores que explicam a ação do Barão, “como os seus problemas financeiros
iniciados em meados de 1860 e a crescente presença inglesa nos negócios brasileiros”. 149
Os investimentos ingleses estavam se ampliando no território brasileiro, especialmente
após a aprovação da Lei dos Entraves de 22 de agosto de 1860, e tinham como seus
principais alvos “as empresas de transporte e infraestrutura, pois contribuíam para a
expansão das transações mercantis, reduzindo o tempo de circulação das mercadorias”. 150
O governo provincial continuou tentando alavancar parcerias na navegação com
brasileiros. Em 1873, por exemplo, comendador Alexandre Paulo de Brito Amorim
celebrou outro contrato com o governo provincial dessa vez para estabelecer linha de
navegação direta ligando Manaus aos portos estrangeiros.151 Ficava estabelecido como
ponto de partida a cidade inglesa de Liverpool com escala nos portos europeus de Navre,
Vigo e Lisboa, e em território brasileiro pelos portos de Belém, Santarém, Óbidos, Serpa
e o ponto final Manaus. Caso fosse do interesse ficava estabelecido que se poderia criar
uma parada em São Luís na província do Maranhão. A criação dessa ligação direta com
os portos europeu orientava no sentido de diminuir a dependência da praça comercial de
Belém assim como encontrar caminhos para realização da imigração estrangeira. Esse
último objetivo fica latente na reclamação realizada pelo presidente Antonio dos Passos
Miranda, em 1876, ao afirmar que “o grande sacrifício que a província faz[ia] para
sustentá-la não tem trazido vantagem ao comércio, à imigração, à agricultura e sobretudo
às transações diretas entre os países estrangeiros e está província, fim principal da
navegação direta”.
Desde sua fundação, a empresa de Alexandre Paulo de Brito Amorim enfrentou
diversas dificuldades para pôr em atividade as linhas de vapores contratadas, por

149
Na década de 1860, o Barão de Mauá estava enfrentando dificuldades financeiras em seus outros
empreendimentos no território brasileiro como com o Banco Mauá & Cia, a perda da empresa Ponta
d’Areia, Montes Aureos, Fluminense Transportes e a Companhia de Diques Flutuantes. BRITO, Roberta
Kelly Lima de Brito. Op Cit. 2018, p. 96.
150
BRITO, Roberta Kelly Lima de Brito. Op Cit. 2018, p. 94. Um outro exemplo da influência inglesa nas
empresas de transportes é a construção da estrada de ferro Bahia e San Francisco Railway em meados do
século XIX, ver: SOUZA, Robério S. Op. Cit. 2015. Um interessante resumo sobre os investimentos
ingleses no Brasil, ver: SAMPAIO, Marcos Guedes Paz. Uma contribuição à história dos transportes no
Brasil: a Companhia Bahiana de Navegação a vapor (1839-1894). Tese (Doutorado em História).
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2006, ler principalmente
o tópico 4.2 – os ingleses e a expansão da companhia. Para mais sobre a presença britânica no Império
brasileiro, ver: BETHEL, Leslie. A presença Britânica no Império nos Trópicos. Acervo, Rio de Janeiro, v.
22, nº 1, p. 55-65, jan/jun, 2009; GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa no Império brasileiro:
a firma Edward Johnston & Co. e o comércio exportador, 1842-1852. Revista Tempo, vol 21, nº 37, p. 187-
207, 2015.
151
Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da 11ª legislatura em
25 de março de 1873 pelo presidente da província, bacharel Domingos Monteiro Peixoto, p. A10-1.
68

exemplo, em 1872 o presidente da província José Miranda da Silva Reis lamentava o fato
da Companhia Fluvial não estar cumprindo seu contrato. Silva Reis destacava o fato da
companhia não realizar regularmente as viagens para até o porto de Santa Izabel, no alto
rio Negro, visto que as exportações oriundas daquele rio “pouco ou nenhum interesse dá
por ora a companhia” e a perda do vapor Purus em um grave acidente no ano anterior.152
Apesar disso, não deixou de louvar a existência das companhias que navegam
“frequentemente os rios Madeira e Purus e um já sulca efetivamente as águas do rico e
importante, posto que pouco explorado, rio Juruá”. O interesse pelo rio Juruá começava
a crescer naquele período. Tanto que em 1873, por exemplo, o governo provincial assinou
um contrato com a Companhia Fluvial do Alto Amazonas para criação de uma 6ª linha
de navegação a vapor entre Manaus até a foz do lago Marary que desaguava no rio
Juruá.153 Ficava estabelecido que as viagens até aquele rio deveriam ser realizadas
durantes os meses de janeiro, maio, junho, julho, novembro e dezembro que
correspondiam diretamente ao período de produção gomífera.
Note-se como ocorre uma concentração de esforços comerciais do governo e dos
interesses privados em regularizar as linhas de navegação especialmente para os cursos
dos rios Madeira e Purus, mas que também já começavam a direcionar para o rio Juruá,
espaços que lideravam naquele momento a produção da goma elástica. A entrada do
capital inglês através da Amazon Steamship Company Limited viabilizará a aceleração da
circulação dos produtos entre os postos de produção de borracha e o porto de Belém a
partir de onde seguiam para o mercado internacional. Esse adensamento da
comercialização da borracha desencadeará um aumento na exploração do excedente da
força de trabalhos dos trabalhadores que sustentavam toda a cadeia de produção no vale
amazônico e o avanço sobre novas áreas de exploração, com destaque para o rio Juruá.
Esse processo se adensará, a partir de 1874, quando a Amazon Steamship
Company Limited passou a realizar o serviço das linhas dos vapores que percorriam quase
todos os rios amazônicos. Isso ocorreu devido, naquele ano, ser realizada a fusão da
empresa inglesa com as Companhia Fluvial do Alto Amazonas e a Paraense.154 A partir

152
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa provincial do Amazonas na primeira sessão da 11ª
legislatura no dia 25 de março de 1872 pelo presidente de província, o exm. o sr. General dr José Miranda
da Silva Reis, p. 35-36.
153
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da 11ª legislatura em
25 de março de 1873 pelo presidente da província, bacharel Domingos Monteiro Peixoto, p. A9-1.
154
A notícia da fusão da Companhia fluvial do Alto Amazonas aparece em: fala dirigida à Assembleia
Provincial do Amazonas na primeira sessão da 12ª legislatura em 25 de março de 1874 pelo presidente da
província, bacharel Domingos Monteiro Peixoto, p. 54.
69

disso, a Amazon Stemaship controlou os serviços de navegação realizados nos rios


Solimões, Madeira, Purus, Negro, Juruá Tocantins, Arari, Igarapé-Grande e Mirim,
Tapajós, Portel, Guamá e Arará. A empresa, inclusive em 1873, contratou o geógrafo
Charles Barrington Brown e o engenheiro William Lidstone para realizar um
levantamento de informações mais precisas da bacia amazônica. Os exploradores
navegaram além do curso principal do rio Amazonas/Solimões outros tributários como
“o Tapajós, Trombetas, Nhamundá, Madeira, Negro, Purus e Juruá, que conformavam
potenciais rotas para vapores”.155 A empresa continuou em pleno funcionamento até 1911
quando acompanhando a queda dos valores da goma elástica amazônica no mercado
internacional fechou a empresa.
Além da navegação, o capital estrangeiro será ainda responsável pela tentativa de
construção de uma estrada de ferro. A estrada de ferro Madeira-Mamoré seria realizada
através do consórcio do governo brasileiro com uma empresa de capital estadunidense
com objetivo de agilizar o escoamento dos produtos extrativos de origem boliviano por
território brasileiro até o mercado internacional. Para isso projetavam a construção de
uma estrada de ferro que ultrapassasse o trecho encachoeirado do rio Madeira, onde a
navegação a vapor era demasiado problemática. Ainda no século XIX foram articuladas
três tentativas para colocar em funcionamento esse empreendimento e todos falharam
frente aos inúmeros desafios relacionados a doenças, a ataques indígenas, dentro outros.
De toda forma, Antônio Alexandre Cardoso assevera como “as tentativas de construção
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré guardam inúmeros exemplos das conexões entre
as dimensões macro do capitalismo expansionista internacional e os arranjos internos do
tecido social amazônico”.156
Em 1868, o presidente da província Jacintho Pereira do Rego anunciava em seu
relatório a partida da Comissão Keller liderada pelos engenheiros Joseph e Franz Keller
que:
“encarregados pelo Governo Imperial de estudo do rio Madeira,
levantamento da planto e orçamento de uma estrada, que contornando
as cachoeiras desse rio possa prestar como transporte a passageiros e
produtos que transitarem por aí depois de facilitadas assim as
comunicações com a província do Mato Grosso”.157

155
Uma análise pormenorizada da viagem poder ser encontrada em: CARDOSO, Antônio Alexandre Isídio.
Op cit. 2017.
156
CARDOSO, Antônio Alexandre Isídio. Op. Cit. 2017, p. 234.
157
Relatório com que o exm. o sr. Presidente da província, dr. Jacintho Pereira do Rego, abriu a Assembleia
Legislativa Provincial do Amazonas no dia 1º de junho de 1868, p. 38.
70

O governo imperial selecionou Joseph e Franz Keller-Leuzinger, pai e filho, em


1873, para empreenderem essa exploração por eles já terem trabalhado na construção de
outras ferrovias brasileiras.158 Além das referências às questões topográficas e aos lugares
indicados para construção da ferrovia, o explorador realizou detalhadas anotações e
indicações acerca das populações indígenas que habitavam a fronteira entre o Império do
Brasil e a Colômbia. Em diversos momentos Keller expõe sua intenção de mapear quais
daquelas populações poderiam ou não ser direcionadas para os trabalhos na ferrovia assim
como em outras frentes de produção. Por exemplo, quando contatou os indígenas de etnia
Caripuna e afirmou que “se não pudessem ser transformados em operários empunhando
pás e machados em estradas ou ferrovias, poderiam ser muito úteis plantando mandioca,
milho indiano e cana-de-açúcar, ou como caçadores e pescadores”.159 Essas observações
do explorador imperialista faziam parte de um amplo quadro de mapeamento de novas
áreas para formação de contingentes reservas de mão de obra suficientes para “garantir
uma quantidade ‘ótima’ da mercadoria força de trabalho, capaz de não comprometer a
continuidade”160 da expansão capitalista e neocolonialistas.
Francisco Foot Hardman destaca que essas “empresas civilizatórias” faziam parte
desse quadro de expansão capitalista que assentada na sociedade industrial ensejava “pôr
a engenharia militar a serviço da taxionomia do progresso e tornar legíveis os pontilhados
mais minúsculos do mapa-múndi”.161 Nesse sentido, os sertões amazônicos figuravam
como um dos alvos do neocolonialismo para onde deslocaram esses empreendimentos
que acionavam o discurso da defesa do “progresso” contra a “barbárie” para legitimar sua
conquista urdida em processos velozes e violentos. Segundo Foot Hardman, as
construções de estradas de ferros em diversos lugares do mundo foram responsáveis por
criar um “verdadeiro mercado de mão de obra plenamente construído em escala mundial”,
organizado pelas “próprias necessidades da produção capitalista em expansão”. Nesses
empreendimentos o “caráter das relações de trabalho irá variar numa escala que
compreende desde o assalariado livre até formas compulsórias de exploração”. Em 1878,
por exemplo, durante a segunda tentativa de iniciar a construção da Madeira-Mamoré a
empresa P. & T Collins chegou a arregimentar cerca de 1300 trabalhadores nacionais e

158
KELLER, Franz. Op cit, 1874.
159
No original: “If they could not be drilled into workmen wielding shovel and axe on roads or railways,
They might be very useful by planting mandioc, Indian corn, and sugar-cane, or as hunters and fishermen”.
KELLER, Franz. Op. Cit, 1874, p. 49.
160
HARDMAN, Francisco Foot. Op cit, 2005, p. 150
161
Idem, p. 129.
71

estrangeiros, sendo: 300 bolivianos (entre os quais muitos indígenas), 500 americanos e
italianos e 500 cearenses.162
Essas redes de arregimentação que acionavam trabalhadores nacionais e
estrangeiros, articulando trabalho livre e trabalho escravo como complementares, não se
limitaram ao espaço da estrada de ferro.163 Na prática, a entrada de capital estrangeiro por
intermédio das empresas de navegação e outros empreendimentos aceleraram as
demandas pelos produtos nativos, especialmente a borracha, e fizeram crescer as
demandas por força de trabalho na região. A partir da década de 1870, ocorreu o aumento
do fluxo da corrente migratória em direção aos rios amazônicos, especialmente o Madeira
e o Purus, que passaram a receber um crescente contingente de trabalhadores oriundos
das províncias do Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e outros e de indígenas
bolivianos. Assim, como no caso das estradas de ferros – onde, apesar dos contratos e do
assalariamento, as condições de trabalho se aproximavam de formas servis clássicas, – os
trabalhadores cooptados para os mundos do trabalho no vale amazônico estavam envoltos
em práticas de arregimentação que não raro se assemelhavam a relações compulsórias.
Na próxima secção apresentaremos como se deram essas migrações para atender às
demandas por força de trabalho na região.

1.3 – Paraenses, cearenses, bolivianos e escravizados nos mundos do trabalho


amazônico

O aumento da circulação de vapores nos rios amazônicos associado ao


crescimento de interesses em produtos nativos corroborou para a intensificação das
migrações tanto de nacionais quanto de estrangeiros, e para o aumento para população
escravizada da província do Amazonas. Juntamente aos povos indígenas, paraenses,

162
Os dados foram levantados pelo pesquisador Gary Van Valen que analisa brevemente a presença dos
indígenas bolivianos no espaço de trabalho da construção da estrada de ferro e mais detalhadamente no
processo de coleta e produção de goma elástica, ver: VALEN, Gary Van. Indigenous agency in the Amazon:
the Mojos in the liberal and Rubber-Boom Bolívia. Tucson: The University of Arizona Press, 2013. Antônio
Alexandre Cardos atesta que “a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré é uma das páginas mais
trágicas da história amazônica. Entre indígenas, operários e engenheiros foram erigidos travosos conflitos
e desafios de alteridade, enredados na complexa relação com as territorialidades do rio Madeira no século
XIX”, para mais ver: CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio. Engenheiros, indígenas e operários: os
malfadados caminhos da estrada de ferro Madeira-Mamoré (1870-1883). Canoa Do Tempo, 13, p. 1-16,
2021.
163
Robério Souza realizou pesquisa acerca da multidão de trabalhadores (estrangeiros, na maioria italianos)
e nacionais (livres, libertos, escravos e indígenas) que serviram de mão de obra na construção da Bahia and
San Francisco Railway. O historiador, dentre outras questões, apresentou os vários cruzamentos nas
experiências de liberdade e trabalhada compartilhada por esses indivíduos. SOUZA, Robério S. Op. cit,
2015.
72

cearenses, bolivianos (comerciantes e indígenas) e escravizados sustentaram a cadeia de


produção no vale amazônico na segunda metade do século XIX. Nessa secção,
apresentaremos a força de trabalho mobilizada para atender à demanda por mão de obra
durante o processo de expansão de fronteiras e do capital na Amazônia. Conhecer esses
sujeitos é importante para compreender, nos próximos capítulos, como as redes de
cooptação (legal ou ilegal) atuaram tentando controlar essa mão de obra e extrair o
máximo possível do seu excedente de trabalho.
O deslocamento de trabalhadores paraenses inicia-se a partir do reordenamento
da produção da borracha que se desloca do baixo para o alto Amazonas (principalmente
para o médio rio Madeira).164 Em 1869, o presidente da província João Wilkens de Mattos
teceu elogio a José Manoel da Rocha Thury por ter sido responsável pela “vinda de mais
de seiscentas pessoas de diversos pontos da província do Pará para os distritos de Codajás
e Purus”. Devido a este fluxo, o presidente inclusive afirmava que “se a imigração
estrangeira [deixava] de dirigir-se para esta província, outro tanto não acontece com a
nacional”.165 Visto que “das comarcas do Gurupá e Santarém da província do Pará, tem
entrado para os rios Madeira e Purus alguns milhares de pessoas, que neles se dedicam à
indústria extrativa”. 166
Todavia, alguns indícios em fontes consultadas apontam a hipótese de que nem
todos os indivíduos que migraram para o alto Amazonas o fizeram por suas próprias
vontades e interesses.167 Por exemplo, em junho de 1868, Manuel Pereira de Sá, o ex-
subdelegado de polícia de Baetas e Crato, denunciava no jornal Amazonas a existência de
um menor raptado na província do Pará trabalhando para o português Paulo Gomes
d’Oliveira.168 Manuel de Sá declarou que a informação procedia de “pessoas vindo do

164
Barbará Weinstein assevera que “enquanto, durante os primeiros anos, apenas uns poucos municípios
paraenses (Breves, Anajás, Melgaço e Gurupá) haviam respondido pela maior parte da borracha produzida,
na década de 1870 a extração da borracha havia se espalhado para o oeste, no baixo Xingu e no baixo
Tapajós, no Pará, e, de maneira mais impressionante, no Amazonas, nas zonas ricas em seringueiras dos
rios Solimões, Madeira, Purus e Juruá”. WIENSTEIN, Barbará. Op Cit. 1993, p. 72
165
Relatório lido pelo exm.o sr. presidente da província do Amazonas, tenente-coronel João Wilkens de
Mattos, na sessão d'abertura da Assembleia Legislativa Provincial á 25 de março de 1870, p. 28.
166
Idem.
167
Infelizmente não foi possível avançar para confirmar esta hipótese visto que a pandemia da Covid-19
impediu a viagem para os arquivos do Estado do Pará, especialmente para cidade de Santarém onde
encontram-se diversos processos judiciais e outras fontes que poderiam embasar essa pesquisa.
168
Está denúncia de Manuel Pereira de Sá fazia parte de uma extensa carta de resposta publicada no jornal
Amazonas para responder as denúncias feitas contra o ex-subdelegado pelos portugueses Antonio Joaquim
Pereira do Socorro Valente e Miguel Bernardino d’Oliveira Catramby. O centro da disputa entre os
comerciantes e a autoridade pública (também comerciante) girava em torno do controle sobre a mão de
obra, especialmente mulheres e crianças. Esse ponto será mais abordado no capítulo 3. Amazonas, 30 de
junho de 1868, nº 110, p. 1-3.
73

Pará [que] denunciaram (...) que esse pequeno tinha sido apanhado por Severino
[Pacheco] na ponte de Pedras, do Pará” e levou-o até Baetas.169 Suspeitamos que
provavelmente poderia existir uma rota de escravização ilegal entre o baixo Amazonas e
médio Madeira que buscava atender às avultadas demandas por mão de obra naquela
região. Outro caso que aponta para isso é o de Catarina Maria Roza da Conceição, negra,
ocupação no serviço doméstico, que ao se deslocar de Belém para a região do rio Madeira,
acabou por ser escravizada ilegalmente em Baetas em 1875.170 Apesar de não haver
muitas pesquisas que consigam comprovar a existência dessa rota, ela parece ter
funcionado principalmente entre as décadas de 1860 e 1870 quando o médio rio Madeira
ficou responsável pela produção de grande parte da borracha exportada.
Mesmo que a migração (legal e ilegal) de paraense tivesse como destino atender
às demandas por braço de trabalho nas estradas de seringa, a presença desses
trabalhadores não agradava a todos. Em 1875, o autor de uma publicação anônima no
periódico Jornal do Amazonas ao se referir à migração paraense que ocorria em direção
ao rio Madeira classificava-os como um pessoal “não habilitado, morigerado e [incapaz]
para o trabalho”.171 Esse autor anônimo descrevendo-os ainda como “homens
inteiramente [alheios] ao serviço da agricultura, e viciados” e que “nenhuma vantagem
oferecem em favor do fim desejado”.172 Muito provavelmente a rejeição do autor da
publicação em relação à presença dos trabalhadores paraenses estava relacionada à
questão da cor desses sujeitos. As cidades de Gurupá e de Santarém – ambos localizados
na região do baixo Amazonas no território paraense – vivenciavam momentos de crise na
produção local, especialmente de borracha, e muitos trabalhadores, acompanhando os
ritmos e deslocamentos da produção gomífera, migraram para o rio Madeira à procura de
trabalho.
O autor da publicação anteriormente citada rejeitava a colonização paraense em
oposição à imigração de bolivianos, especialmente dos indígenas, a quem direcionava
diversos elogios. O autor descrevia que “a emigração do Madeira” se fazia “sem
dispêndios para a província devido a uberdade do seu solo e a hospitalidade dos seus
habitantes”173. E que isso se devia principalmente a entrada de “colonos bolivianos”, que
representariam “dentro de seis meses muito tardar (...) mais de quatrocentos (...) não

169
Amazonas, 30 de junho de 1868, nº 110, p. 2
170
A trajetória de Catarina Maria Roza da Conceição será explorada mais detidamente no capítulo 3.
171
Jornal do Amazonas, 4 de outubro de 1875, anno I, nº 40, p. 2.
172
Idem, p. 2.
173
Idem, p. 2
74

contando com os que já existem distraídos com o fabrico da goma elástica e a pequena
lavoura”. Completava ainda indicando que:
A emigração boliviana será uma excelente aquisição, não só por ser
gente morigerada e de bons costumes, como também laboriosa e
dedicada ao trabalho, em abono da qual chamamos a atenção das
pessoas sensatas de Manaus que mais de uma vez aplaudiram a
veracidade do que levamos dito em relação ao grande número de
bolivianos que nessa capital estão residindo.174

A presença de bolivianos no rio Madeira e na capital amazonense havia sido


destacada por viajantes estrangeiros que visitaram a região anos antes. O viajante Franz
Keller quando visitou a província do Amazonas em 1867 a 1868 anotou em seu relato a
presença de indígenas bolivianos na cidade de Manaus.175 Quando tentava reunir um
grupo de remadores para sua viagem da capital amazonense ao rio Madeira, depois de
muitos desafios para conseguir os trabalhadores, o cônsul boliviano Dom Ignácio Arauz
ofereceu-lhe um grupo de cerca de oitenta indígenas bolivianos para realizar sua viagem.
O cônsul conseguiu convencer um comerciante italiano que navegava de volta à Bolívia
a ceder “com devida compensação (...) alguns de seus barcos com o número requerido de
indígenas Mojos e Canichana” que lhe serviriam de remeiros. Segundo Keller, a presença
desses indígenas na cidade era bem comum e qualificou-os como “as únicas pessoas que
via trabalhando nas ruas”, onde caminham com seus trajes típicos e ocupando-se em
diversas atividades.176 O viajante esclarecia que a existência desses trabalhadores
estrangeiros dava-se pelo fato de poderem ganhar salários mais altos nos serviços
disponíveis naquela cidade do que na sua região. Quando finalmente conseguiu alcançar
o rio Madeira auxiliado pelo trabalho de oito remeiros indígenas bolivianos, o viajante
demarcou acima do Crato a presença de “dez ou doze seringueiros bolivianos, cada um
deles trabalhando com 20 a 30 indígenas Mojos, que os fariam homens ricos em poucos
anos”.177
O fato é que a presença de bolivianos na capital amazonense, em especial no rio
Madeira, tinha se tornado cada vez mais constante desde meados da década de 1860.
Esses deslocamentos foram tão intensos que acabaram causando transtorno para ambos
os países referente à circulação de produtos e pessoas na fronteira. Para tentar contornar
essa questão, em 1867, o Império do Brasil e a Bolívia assinaram o Tratado de Ayacucho,

174
Idem, p. 2
175
KELLER, Franz. Op. Cit. 1874, p. 36-40
176
Idem, p. 36.
177
Idem, p. 40.
75

a partir do qual o controle de toda a linha fluvial que percorria no rio Madeira ficaria
sobre a responsabilidade brasileira. Após o tratado, afirmou-se nos meios políticos que
governo brasileiro teria iniciado um movimento de expulsão dos comerciantes
bolivianos.178 Todavia, segundo Paula Roza, ao contrário disso a presença de bolivianos
no alto rio Madeira continuou avançando até próximo à década de 1880. A historiadora
assevera inclusive que o processo de deslocamento de fronteira do rio deve ser
compreendido como constituído de um duplo movimento de ocupação: tanto no sentido
a partir do território brasileiro, de subida do rio, quanto a partir do território boliviano, de
descida do rio.179 Essa presença marcante na região pode-se ver vislumbrada a partir do
relado do viajante Franz Keller e de publicação anônima, ambas descrevem a presença
desses personagens bastante acentuada entre final da década de 1860 e início de 1870.
Contudo, os grupos sociais que imigraram para a região se diferenciavam tanto no
que condiz às questões de origens sociais, quanto de origens étnicas. Havia os imigrantes
oriundos principalmente da região do departamento do Beni composto pelo grupo de
comerciantes, aqueles que Franz Keller presenciou serem os proprietários dos seringais.
A partir da década de 1860, esses comerciantes desciam da região do Beni e do Guaporé
na Bolívia com interesse em negociar produtos de origem extrativa nas terras brasileiras.
Navegavam até o porto de Belém onde obtinham mercadorias industrializadas de todo
tipo para posteriormente serem negociadas no território boliviano. Em 1866, Tavares
Bastos destaca que “98 canoas, transportando 32.000 arrobas de mercadorias e
impulsionadas por 1.276 indígenas remeiros, provenientes da Bolívia, de Cuatro Ojos, no
rio Piraí e de Exaltación, no rio Mamoré, desceram o rio Madeira para comercializar seus

178
Paula Rosa destaca que o “mito” de desaparecimento dos bolivianos do rio Madeira teria sido defendido
geralmente por parte dos estudiosos bolivianos e em menor pelos brasileiros. Essa proposição defendia que
a partir da assinatura do Tratado de Aycucho, em 1867, o governo brasileiro teria expulsado os comerciantes
bolivianos. Contudo, a autora demonstra que essa não foi de fato a realidade e que, pelo contrário, os
seringalistas e trabalhadores indígenas de origem boliviana foram importantes agentes do processo de
deslocamento de fronteiras, no comércio da borracha e como força de trabalho. ROSA, Paula de Souza. A
expulsão da população boliviana do Rio Madeira após o Tratado de Ayachuchp (1867): um mito
persistente. Monografia (Graduação em História), Universidade Federal de Rondônia, 2016.
179
A historiadora Paula de Souza Rosa desenvolve pesquisas para adensar a análise que comprove através
das evidências históricas a presença dos comerciantes bolivianos e dos trabalhadores indígenas enquanto
importantes agentes do processo de ocupação do alto rio Madeira. Enquanto não publica sua tese de
doutoramento, a autora tem publicado artigos sobre a trajetória de alguns desses personagens, ver: ROSA,
Paula de Souza; FONSECA, Dante Ribeiro de. As desventuras do cidadão Manuel Mostajo: um
comerciante boliviano e o processo de colonização do rio Madeira no século XIX. Revista eletrônica
Documento Monumento, vol 23, nº 1, jul/2018; ROSA, Paula de Souza; COSTA, Jéssyka S. L. P. “O célebre
Telesforo Salvatierra, o herói da terrível tragédia de Carapanatuba”: conflitos pela posse de seringais e o
mundo do trabalho no rio madeira (1870-1887). Canoa do Tempo 12, no. 2 (janeiro 22, 2021): p. 199-228.
76

produtos”.180 Na década de 1870, esses negociantes não se limitaram apenas a navegar


pelo rio Madeira para comerciar seus produtos e passaram a ser proprietários de
importantes estradas de seringas distribuídas em diversas regiões do alto Madeira.
Estes comerciantes não eram responsáveis apenas por fazer circular produtos
(extrativistas e manufaturados) entre Brasil e Bolívia, mas também foram agentes
mobilizadores da mão de obra de milhares de indígenas bolivianos (das etnias Mojos,
Canichana e Chiquitos) deslocados, na maioria das vezes, compulsoriamente da sua
região de origem para o território brasileiro. 181 Quando desciam da Bolívia para o Brasil
os comerciantes traziam consigo remeiros indígenas, estes compunham o segundo grupo
de bolivianos presentes na região. O processo de deslocamento de fronteiras na região do
vale amazônico acionou sujeitos de diferentes origens étnicas, condição jurídica e
nacionalidades e esteve sobremaneira assentada na exploração da força de trabalho desses
indivíduos, especialmente aqueles de origem indígena, negra e não-brancos e pobres em
geral. A expansão das redes de coerção (legal e ilegal) nos mundos do trabalho conectava-
se com outros processos de caráter congênere que se espalhavam por diversas partes do
globo, mas que tinham em comum a expansão do capitalismo. Os indígenas bolivianos
compunham, assim, parte desse grupo que se tornou alvo de exploração da sua mão de
obra visando atender às demandas do mercado internacional.
Diferentemente do grupo de comerciantes, grande parte dos trabalhadores
indígenas bolivianos não saiam de sua região de origem por demandas próprias e poucos
eram aqueles que conseguiam retornar. Abaixo transcrevemos uma citação do engenheiro
Edward Mathews que capitaneou uma expedição para percorrer o rio Madeira entre 1872
e 1874 quando estava responsável por mapear à área onde poderia ser construída a estrada
de ferro Madeira Mamoré.182 A descrição do viajante nos possibilita delinear o grau da
intensidade dos deslocamentos que atingiram sobremaneira as populações indígenas das
etnias Mojos, Canichanas e Chiquitos que habitavam especialmente a região do

180
BASTOS, Aurélio Cândido Tavares. O vale do Amazonas: estudo sobre a livre navegação do Amazonas.
Estatística, produções, comercio, questões fiscais do vale do Amazonas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1866, p. 253
181
Uma análise minuciosa da presença da população indígena Mojos na produção de borracha no século
XIX foi realizada por Gary Van Valen, ver: VALEN, Gary Van. Op Cit. 2013. Mais informações sobre a
relação entre o trabalho de indígenas bolivianos e o comércio da goma elástica, ver: CÓRDOBA, Lorena.
El boom cauchero en la Amazonía boliviana: encuentros y desencuentros con una sociedad indígena (1869-
1912). In: D. &. Villar. Las tierras bajas de Bolivia: miradas históricas y antropológicas. Santa Cruz de
La Sierra: El País, 2012.
182
MATHEWS, Edward Davis. Viagens pelos rios Amazonas e Madeira: Brasil, Bolívia e Peru – 1872-
1874. Editora Valer: Manaus, 2020.
77

Departamento do Beni. Ao referir-se sobre a situação da população em Exaltación,


Mathews anotou que:
Nesse ano [1873], quarenta e três canoas desceram as corredeiras da
Bolívia, com comerciantes a caminho da Europa com ‘cascarilha’
(casca de cinchona), ou com especuladores nas estradas de seringa do
rio Madeira, enquanto no mesmo ano, apenas treze canos subiram para
a Bolívia. Assim, podemos calcular a média de indígenas que saem da
Bolívia nessas canoas, cerca de dez por canoa, e assim temos um êxodo
de 430 indígenas deixando seu país em dose meses, enquanto apenas
130 retornaram no mesmo período; temos então 300 indígenas que
saíram da Bolívia em 1873, e vemos como a febre da coleta de seringa
tem sido, decididamente a causa da diminuição da população nos
últimos quatro ou cinco anos; o ano de 1873 não dá um quinto do
número de indígenas que saíram em anos anteriores. Podermos estimar
a emigração humana que o Departamento do Beni sofreu devido ao
Comércio de borracha do norte do Brasil em 1000 homens por ano
durante a década de 1862 e 1872.183 [grifo nosso]

Inseridos em um sistema de controle da sua força de trabalho que tinha raízes


ainda no sistema colonial, a maior parte desses indígenas bolivianos eram cooptados em
suas comunidades para servirem como remeiros para os comerciantes que desciam do
Beni a Belém. Na região do alto rio Negro, esses trabalhadores acabam sendo distribuídos
nas estradas de seringas de seus patrões bolivianos como também para servirem outros
comerciantes locais, incluindo brasileiros. Havia mesmo uma certa predileção pela mão
de obra dos indígenas bolivianos que eram reputados por brasileiros e estrangeiros como
trabalhadores “morigerados”, “obedientes”, “aptos”, dentre outras qualificações. Por
exemplo, o autor anônimo na publicação do periódico Jornal do Amazonas, citada
anteriormente, os qualificou enquanto “gente morigerada e de bons costumes, como
também laboriosa e dedicada ao trabalho”184 e, por isso, defendia que o governo criasse
um projeto de imigração para atrair esses trabalhadores. Os mesmos adjetivos “elogiosos”
foram acionados por Franz Keller para qualificar os trabalhadores indígenas.
Ambos aplaudiam a “disposição” ao trabalho dos indígenas bolivianos em
detrimento dos trabalhadores nacionais que eram caracterizados como “preguiçosos”,
“vagabundos” e “sem aptidão ao trabalho regular”. Franz Keller chegou a classificar as
populações indígenas e mestiças do vale amazônico como “extremamente indolentes”
que “trabalhavam apenas o suficiente para evitar a fome”. Assim como outros discursos
de autoridades públicas e da elite daquela época, o viajante atribuía esse problema a

183
Idem, p. 192.
184
Jornal do Amazonas, 4 de outubro de 1875, ano I, nº 40, p. 2.
78

“facilidade” com que essas populações locais poderiam obter seu sustento a partir da
pesca e coleta. Esse jogo de classificações transpunham as expectativas e a definição do
que nacionais e estrangeiros acreditavam ser o ideal para as relações de trabalho e o papel
dos trabalhadores. Ademais, esses discursos atacam os modos de existir e trabalhar das
populações locais que lhes permitiam manejar mais espaços de autonomia e liberdade
perante um sistema que visava restringi-los e mantê-los em extrema vigilância e controle.
Essas referências se assemelham às aplicadas por senhores de escravizados em
anúncios de compra, aluguel ou fuga nos jornais. Segundo José Maia Bezerra Neto, esses
atributos deixam transparecer “a projeção senhorial sobre as características e qualidades
imprescindíveis ao trabalhador, projeto senhorial que era parte e constituinte de uma ética
do trabalho no mundo da escravidão”.185 Há ainda nessas qualificações direcionadas à
mão de obra escravizada e livre, fosse ela nacional ou estrangeira, a tentativa de
estabelecer uma ética de trabalho por meio da qual esperava-se que os trabalhadores se
comportassem, neste caso, submissos aos parâmetros impostos pelos valores paternalistas
da fidelidade e obediência. Além disso, ao preterir os trabalhadores indígenas bolivianos
em detrimento da mão de obra nacional tanto o autor anônimo da publicação quanto o
viajante Franz Keller defendiam um tipo de ética do trabalha que estava assentada em
práticas coloniais de sujeição, cooptação compulsória e controle da força de trabalho.
Todavia, a aparente “adaptabilidade” e “obediência” estipulada aos trabalhadores
indígenas bolivianos deve ser relativizada e suas ações nas relações de trabalho a que
estavam submetidos analisadas com mais detalhes. Como apresentaremos no quarto
capítulo esses trabalhadores desenvolveram formas de imprimir suas expectativas em
torno dessas relações de trabalho.
Outro importante movimento migratório que começou a se adensar especialmente
a partir de final da década de 1860 foi de trabalhadores nacionais oriundos das províncias
do Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia, Paraíba e Piaui. Essa corrente migratória foi
articulada em ações conjuntas do Estado e de particulares para propulsionar a
transferência dessa força de trabalho para o Amazonas. Já em 1869, o presidente da
província João Wilkens de Mattos marcou a chegada de um grupo de 53 cearenses
trazidos pela iniciativa de João Gabriel de Carvalho e Mello para habitarem o rio Purus.
O presidente elogiava o “belo esforço daquele cidadão, que procura alargar os horizontes

185
BEZERRA NETO, José Maia. Mercado, conflitos e controle social. Aspectos da escravidão urbana em
Belém (1860-1888). Revista História & Perspectiva, Uberlândia (41): jul. dez, 2009, p. 283
79

da indústria extrativa em que se emprega há muitos anos, prestei-lhe todos os auxílios


para facilitar o transporte da colônia a seu destino”.186
Apesar de ser possível notar a presença de nordestinos na região desde final da
década 1860, é a partir dos anos 70 do oitocentos que eles começaram a chegar em grande
quantidade. Nesse sentido, de acordo com Antônio Alexandre Cardoso, as imigrações de
trabalhadores nacionais para a Amazônia durante o século XIX podem ser estruturadas a
partir de três fatores quase sempre interligados entre si:
1. Passagens subsidiadas por particulares ou mesmo pelas
próprias províncias do Pará e Amazonas interessadas no aporte de força
de trabalho, pós-1850;
2. A problemática estrutura agrária enfrentada por roceiros
livres empobrecidos nas províncias de origem, que encaravam
recorrentes períodos de escassez, ambientados numa economia de
pequena lavoura e criação de animais, combalida por longos períodos
de estiagem (vide o caso da grande seca de [1877/78/79/80) e pelos
limites das relações paternalistas com grandes proprietários;
3. A recorrência de processos migratórios sazonais, já
experimentada desde o período colonial através de uma economia
andeja baseada na pecuária extensiva, cujas sociabilidades e redes de
informação alcançaram terras amazônicas, vista como fronteira aberta,
com terras abundantes, atraente para camponeses pobres. 187

Sob as promessas de enriquecimento fácil e abundância de terras disponíveis,


foram deslocados milhares de trabalhadores nacionais oriundo da Paraíba, Maranhão,
Piauí e especialmente do Ceará distribuídos para colônias do governo e, em maior escala,
foram agenciados para o serviço na produção de borracha nos rios Madeira, Purus e Juruá.
Em 1878, milhares de cearenses aportaram em Manaus e foram alocados inicialmente em
duas colônias criadas pelo governo para recebê-los. Quando chegavam à capital muitos
também eram direcionados para serem empregados nas obras públicas, como foi
ordenado pelo presidente Barão de Maracajú ao Diretor de obras públicas afirmando que
dessa forma “lhes proporcionaria os meios de subsistência para ali se estabelecerem”. 188
A chegada em massa desses trabalhadores nacionais respondia a uma demanda por mão
de obra e da “carência de braços” que era latente nos discursos políticos das autoridades
públicas da província do Amazonas assim como de outras regiões do Império brasileiro.

186
Relatório lido pelo exm. o sr. Presidente da província do Amazonas, tenente-coronel João Wilkens de
Mattos, na sessão d’abertura da Assembleia Legislativa provincial á 25 de março de 1870, p. 33.
187
CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. Nem sina nem acaso: a tessitura das migrações entre a
Província do Ceará e o território Amazônico (1847-1877). Dissertação (História Social). Fortaleza:
Universidade Federal do Ceará, 2011.
188
Fala com que abriu no dia 25 de agosto de 1878 a 1.a sessão da 14.a legislatura da Assembleia Legislativa
Provincial do Amazonas o exm. o sr. Barão de Maracajú, presidente da província, p. 45.
80

Em um cenário de avanço dos debates abolicionistas, da aprovação de leis


emancipacionistas (como a Lei do Ventre Livre de 1871) e o aumento do preço de
escravizados, fez-se necessário reforçar políticas de controle sobre a população livre
disponível para o mercado de trabalho. Nesse contexto, o recrudescimento do fluxo
migratório de nordestinos para a Amazônia e o litoral brasileiro causado pela grande seca
de 1877-1880, segundo Maria Verônica Secreto, desnudou um conjunto de medidas que
visavam enfrentar a crise do escravismo e de políticas de condução da força de trabalho
livre para o mercado.189
João Pacheco de Oliveira completa destacando como o apelo à migração de
nordestinos surge como mais um “mecanismo para estabelecer controle sobre a mão de
obra necessária à expansão da produção” gomífera. Nesse sentido, o autor afirma que:
o deslocamento maciço de nordestinos para os seringais da Amazônia
não deve, portanto, ser descrito, como uma migração espontânea;
tratava-se de fato de um movimento que, na escala e ritmo em que se
dá, deverá necessariamente ser induzido e organizado. E dão
exatamente os interessados na utilização dessa mão de obra, os
seringalistas e as casas aviadoras (e não os governos provinciais) que
promovem esse fluxo do fator trabalho. 190

Entretanto, a presença majoritária da população de condição livre não significa


que no mundo do trabalho da Amazônia houvesse um desinteresse por parte dos
particulares pela força de trabalho da população escravizada.191 Na década de 1870 até
próximo da abolição da escravidão em 1884, a província do Amazonas vivenciava um
significativo aumento da população escravizada na região. 192 No Recenseamento Geral

189
SECRETO, María Verónica. A seca de 1877-1879 no Império do Brasil: dos ensinamentos do senador
Pompeu aos de André Rebouças: trabalhadores e mercado. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio
de Janeiro, v.27, nº1, jan-mar. 2020, p. 33-51.
190
OLIVEIRA, João Pacheco de. Op Cit, 1979, p. 134.
191
Como afirma Patrícia Melo, “a lógica de reprodução não se limita ao número de homens disponíveis nos
planteis, mas antes se traduz na reiteração de relação de subordinação e poder que dão vida ao próprio
sistema”. MELO, Patrícia Maria. Op cit. 2002.
192
Pesquisas demonstram como os trabalhadores escravizados constituíram uma força produtiva de grande
importância social e econômica e, guardadas as devidas proporções e especificidades, foram largamente
utilizados como mão de obra na província amazonense durante o Oitocentos. Especificamente para a
província do Amazonas, podemos indicar as pesquisas de: SAMPAIO, Patrícia M. Os fios de Ariadne:
tipologia de fortunas e hierarquias sociais em Manaus (1840-1880). Manaus: EDUA, 1997; MELO,
Patricia (org). O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora AÇAÍ/CNPQ, 2011;
POZZA NETO, Provino. Aves Libertas: ações emancipacionistas na Amazônia Imperial. Dissertação de
Mestrado. UFAM, Manaus, 2011; CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça:
resistência, rebeldia e fugas de escravos no Amazonas Provincial (c.1850-c.1882). Dissertação de
mestrado. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2013; CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio.
Negros e índios sob suspeita: dimensões da escravidão e do trabalho compulsório no território amazônico.
Revista Litteris, v. 1, p. 21-32, 2014; COSTA, Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira. Por todos os cantos da
cidade: escravos negros no mundo do trabalho na Manaus oitocentista (1850-1884). Dissertação
(Mestrado em História). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2016.
81

do Império do Brasil de 1872, a população escravizada, entre homens e mulheres, somava


972 habitantes em toda província do Amazonas. A maioria deles concentravam-se na
cidade de Manaus, onde eram utilizados nos serviços especializados, nos trabalhos ao
ganho, no serviço doméstico, na lavoura e outros. Há, dessa forma, uma população de
característica urbana envolvida com atividades de trabalho do mesmo cunho. 193
Por volta de 1884, um levantamento apresentado em um relatório de presidente
de província apontava um contingente populacional de 1.501 cativos, sendo 785 mulheres
716 homens.194 Apesar de grande parte ainda se concentrar na capital amazonense,
podemos observar uma redistribuição da população escrava, com a presença de
escravizados em municípios como de Manicoré e Borba, localizados nas margens do rio
Madeira e importantes áreas de produção de goma elástica. Comparando com os dados
demográficos de 1872 e de 1884 de Manicoré, no primeiro censo constava 163
escravizados e no último já contabilizava um total de 309 escravizados habitando o lugar.
Esse aumento da população escravizada se conecta a dois movimentos: o primeiro,
relacionado ao comércio interprovincial de escravizados realizado com a província do
Pará, e segundo, a crescente concentração da população escravizada nas mãos do setor
extrativista. Este último fator, conforme aponta Patrícia Melo explica-se pelo fato de que
a partir dos anos de 1880 os seringalistas passaram a controlar cerca de 56,2% dos
escravos declarados nos inventários, sendo que os agricultores detinham 37,5% e os
comerciantes apenas 6,2% dos cativos.195 Ainda, segundo a historiadora, este grupo
poderia ter utilizado da propriedade de escravos como uma forma a mais de investimento
de capital. Esses dados demonstram que, para atender às demandas por força de trabalho,
os proprietários recorram a todas as formas de trabalho disponíveis.
Em relação ao comércio interprovincial de escravizados, o historiador Luiz Carlos
Laurindo Junior aponta que ao longo do século XIX o território amazonense,
especialmente Manaus, foi um dos destinos mais constantes dos escravizados saídos da
província paraense.196 Como ressalta o autor:

193
Em pesquisa anterior, realizei análise mais detalhada sobre a presença da população escravizada na
cidade de Manaus durante a segunda metade do século XIX. Por meio de fontes diversas (jornais, processos
crimes, viajantes e outros) apresentei um perfil da população escravizada na cidade assim como também
seus espaços de sociabilidade e lazer. COSTA, Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira. Op. cit, 2016.
194
Relatório com que o presidente da província do Amazonas dr José Lutosa da Cunha Paranagua entregou
a administração da mesa província ao 1 vice-presidente Coronel Guilherme José Moreira em 16 de fevereiro
de 1884, p. 29.
195
MELO, Patrícia M. Op cit. 1997, p. 153.
196
LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. Rio de escravidão: tráfico interno, e o mercado de escravos do vale
do Amazonas (1840-1888). Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
82

durante a segunda metade do século XIX, em consonância com o que


aconteceu no Império como um todo, o tráfico interno foi reorganizado
por todo o Vale do Amazonas, dando origem a um mercado regional de
escravos, que funcionou paralelamente a outros mercados regionais e
interligado ao mercado nacional de escravos. 197

Laurindo Junior analisou cerca de 1.019 escrituras de venda de escravizados


registrados em “cartórios de Belém, de alguns municípios do interior do Pará (Bragança,
Vigia, Igarapé-Miri, Cametá, Breves, Cachoeira do Arari, Santarém e Óbidos) e de
Manaus, que abarcam o tráfico de 1.149 escravos, no período de 1846 a 1887”.198 A partir
disso, o historiador demarca uma preponderância do tráfico intraprovincial em relação ao
fluxo interprovincial, este último marcado principalmente pelos negócios realizados entre
o Pará e a província do Amazonas. Nesse cenário, o autor destaca como muitos dos
escravizados destinados ao Amazonas além de alocados em diversas ocupações na
capital, Manaus, e também foram destinados às áreas produtoras de borracha.
A existência de trabalhadores escravizados no serviço da coleta de borracha
aparece já na lista de Classificação de Escravos para serem libertados na Província do
Amazonas de 1873 em que foram alistados no exercício da ocupação de seringueiro cerca
de 22 escravizados, sendo 20 do sexo masculino e 2 do feminino. Eram eles Maximo,
mulato, 25 anos de idade e Antonio Joaquim, carafuz, 30 anos de idade, solteiro, ambas
propriedades de Antônio José Rabello. Estão também listados: Euterio Ferreira, mulato,
27 anos de idade, solteiro, Izidoro, fula, de 29 anos de idade e Gino, mulato, 27 anos de
idade, solteiro; o primeiro era propriedade de Manoel Joaquim Portilho Bentes e os
demais de José Rezende de Morais. Alguns senhores possuíram parte de suas escravarias
direcionadas à ocupação de corte da seringa, como João Antônio da Costa que aparece na
lista como possuidor de nove escravizados (Thomé, Manoel, Felippe, Alípio, Maria,
Custodio, Custódio) e seis com idade que variavam entre 12 a 36 anos foram classificados
como seringueiros.
A expansão da fronteira na Amazônia entendida como um “mecanismo de
ocupação de novas terras e sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma
economia de mercado”199, encadeará um aumento crescente da demanda por força de
trabalho, o que tornará a vida em liberdade dessas populações ainda mais precarizada.
Muitos homens e mulheres, negros, indígenas, mestiços e livres pobres em geral, viviam

197
Idem, p. 141.
198
Idem, p. 159.
199
OLIVEIRA, João Pacheco de.Op. Cit, 1979.
83

sob a ameaça de cair em alguma estrutura de compulsão ao trabalho. Para mobilizar essa
força de trabalho serão utilizados diferentes mecanismos de acesso à mão de obra
disponível que conformavam um mosaico de formas de exploração que associavam a
compulsoriedade, a informalidade e a ilegalidade. Essas práticas estavam embasadas em
um longo histórico de legislações de arregimentação de mão de obra e em relações
informais de trabalho que estabelecidas desde o período colonial marcaram a Amazônia
sob o alicerce de práticas compulsórias e escravistas. Tornando assim a experiência dos
trabalhadores na Amazônia um labirinto com muitas entradas e saídas dos mundos da
escravidão e da liberdade, como apresentaremos nos próximos capítulos.
84

Capítulo 2 – As legislações e a compulsoriedade no mundo do trabalho da


província do Amazonas

Deixando que esses novos e interessantes amigos terminassem em paz


o seu café matinal, fomos visitar em seguida o chefe dos indígenas do
Japurá, o sr. José Crisóstomo Monteiro, um mameluco magro e rijo que
era a pessoa mais ativa e empreendedora do lugar. Cada um dos dois
rios das redondezas, com suas numerosas tribos selvagens, achava-se
sob o controle de um chefe, que é nomeado pelo Governo Imperial.
Atualmente não existem missões religiosas nas regiões do Alto-
Amazonas; os gentios (pagãos ou índios não batizados) são colocados
sob a jurisdição e a proteção desses déspotas, os quais, como os capitães
de trabalhadores, já mencionados anteriormente, usam os índios em seu
proveito particular. O sr Crisóstomo tinha, na época, 200 indígenas do
Japurá a seu serviço. Ele próprio era meio-índio, sendo, no entanto, um
patrão muito mais inclemente para os selvagens do que os próprios
brancos.200 [grifo do original]

A citação acima é originária do livro Um naturalista no rio Amazonas de autoria


do inglês Henry Walter Bates que visitou parte do vale amazônico entre os anos de 1848
até 1859, quando retornou para Europa. Dentre suas anotações o viajante realizou
pertinentes apontamentos acerca do mundo do trabalho na região destacando uma
importante instituição que balizava parte do sistema de produção de força de trabalho no
vale amazônico: as legislações. Durante a segunda metade do século XIX duas legislações
de organização da mão de obra livre estavam em vigor na província do Amazonas: o
Corpo de Trabalhadores e o Regulamento das Missões. Ambas as legislações foram
descritas por Bates como estruturas coercitivas dos trabalhadores indígenas que
“colocados sob a jurisdição e a proteção déspotas” os utilizavam “em seu proveito
particular”. Essas instituições estavam conectadas com projetos estatais de controle da
população livre, especialmente de origem negra e indígena, a quem era imposto o trabalho
por diferentes mecanismos, fosse por intermédio do recrutamento para o Exército ou por
meio da aplicação de penas de trabalho forçado aos condenados.
Como destaca Beatriz Mamigonian, essas eram “manifestações da política do
Estado Imperial de lidar com ‘pobres intratáveis’, submetendo-os a restrição de
mobilidade e trabalho compulsório”.201 Porém, na região amazônica um dos desafios a
ser enfrentado por tais legislações era conseguir alcançar os alvos das mesmas visto que
as dimensões geográficas e naturais da floresta (com seus rios, furos e matas)

200
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP,
1979 [1863], p, 201.
201
MAMIGONIAN, Beatriz G. Op. cit, 2017, p. 164.
85

funcionavam na maioria das vezes como um obstáculo para as autoridades públicas. De


toda forma, especialmente para aqueles que habitam nas cidades e vilas da província do
Amazonas, essas políticas tenderam a atingir quase que completamente a vida da maior
parte da população livre de origem negra e indígena visto que, excluindo brancos livres e
escravizados, eles perfaziam cerca de 90% do contingente populacional ao longo da
segunda metade do século XIX. Para esses grupos, a liberdade na Amazônia estava
marcada pela constante reiteração de políticas de subordinação e coerção ao trabalho.
Nesse sentido, a proposta deste capítulo é refletir sobre o processo histórico de
construção das práticas de arregimentação de trabalhadores em voga na província do
Amazonas que foram responsáveis por enraizar relações de trabalho pautadas na
compulsoriedade e coerção das populações nativas durante todo o Oitocentos. Essas ações
passaram a ser reiteradas sobremaneira a partir da segunda metade do século XIX,
conforme os interesses nacionais e internacionais avançavam intensificando a exploração
econômica da região. Lidando com uma população majoritariamente de condição livre de
origem indígena, mestiça e negra, as políticas estatais e provinciais buscaram construir
meios para mobilização desses indivíduos para o mundo do trabalho capitalista marcado
pela imposição e compulsoriedade, de preferência disponibilizando-os como mão de obra
em serviço público e de particulares.
No sentido de reconstituir esse processo histórico, identificando suas
permanências e mudanças, no primeiro tópico analisaremos as legislações de
arregimentação de força de trabalho que marcaram as relações do mundo do trabalho na
província do Amazonas na segunda metade do século XIX e serviram de sustentação dos
projetos políticos e econômicos concebidos para a região. A primeira, Os Corpos de
Trabalhadores criada em 1838 no contexto pós-cabanagem – revolta popular que ocorreu
entre 1835-1840 e causou grandes conturbações no território amazônico – foi responsável
pela arregimentação compulsória de indígenas, mestiços e negros (livres e libertos). E a
segunda, o Regulamento acerca das missões e catequese dos índios instituído em 1845,
que, com algumas mudanças, perdurou como a principal lei indigenista até o final do
Império. Examinaremos o funcionamento de ambas as legislações na província do
Amazonas, destacando especialmente sua centralidade para a lógica de produção e
fornecimento de força de trabalho. Ambas legislações estavam atravessadas por
mercadores raciais e étnicos que não reconheciam a liberdade ou a cidadania de indígenas,
negros (livres e libertos) e não-brancos pobres qualificando-os como “preguiçosos”,
“vagabundos” ou ainda “incapazes” para viverem na “boa sociedade” e por isso
86

necessitarem de constante controle e mediação principalmente para sua transformação em


trabalhadores.
Em consonância com a formação desse aparato legislativo, analisaremos no
segundo tópico os projetos apresentados por parlamentares da Assembleia Legislativa da
província do Amazonas. Apesar do número de escravizados aumentar gradativamente até
final do XIX, o tráfico atlântico de escravizados não tinha influência no abastecimento da
força de trabalho na região amazônica, que estava mais ligada a questões de reprodução
interna e ao tráfico interprovincial, principalmente com o Pará.202 Esses projetos
buscavam assim resolver duas das questões, que na visão das elites locais, eram fulcrais
para o desenvolvimento local: primeiro, as dificuldades de oferta de mão de obra;
segundo, a demasiada autonomia dos braços livres. Contudo, apenas uma minoria dos
projetos apresentados relacionados ao controle e produção de mão de obra realmente foi
aprovado e precariamente colocado em prática. De fato, demonstraremos como o poder
público foi se afastando das tentativas de estabelecer legislações gerais sobre a mão de
obra disponível, na segunda metade do Oitocentos, e se voltando para colaborar, de forma
pontual, com os projetos privados de migração nacional. Esse percurso é fundamental
para entendermos a maneira pela qual se reorganizou o sistema de trabalho na região e
como as práticas de coerção ao trabalho foram reiteradas continuamente não apenas por
meio de legislações, mas sobretudo por práticas políticas dos administradores públicos da
província do Amazonas durante a segunda metade do Oitocentos.

2.1 - As leis de arregimentação de trabalho nos sertões amazônicos, segunda metade


do XIX

Índios, negros e mestiços formaram a base da força de trabalho na Amazônia, e


apesar de a maioria deles ser considerada juridicamente livre, isso não os livrou do
trabalho compulsório ou da escravidão ilegal. Desde o período colonial, o universo do
trabalho na região amazônica foi marcado por diversas práticas de opressão levadas a
cabo por uma série de legislações que objetivava controlar e organizar a mão de obra

202
Sobre o tráfico interno de escravizados na Amazônia, ver: LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos;
BEZERRA, José Maia. Alguns vêm de lá, outros de cá: a Amazônia no tráfico interno brasileiro de escravos
(século XIX). História (São Paulo), v. 37, 2018. Para um debate acerca do lugar da Amazônia no cenário
da economia-mundo capitalista, ver: BARROSO, Daniel Souza; LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. À
margem da segunda escravidão? A dinâmica da escravidão no vale amazônico nos quadros da economia-
mundo capitalista. Tempo, v. 23, p. 568-588, 2017.
87

disponível. Inicialmente, as populações indígenas foram os principais alvos dessa longa


tradição de leis voltadas à imposição do trabalho compulsório que ora os reconheciam
como escravos e ora determinavam sua liberdade.203 A partir do século XVIII com o
crescimento da presença de africanos e afro-descentes no território amazônico também
eles passaram a configurar como parte importante da força de trabalho da região. O
aumento do contingente de africanos escravizados ocorreu devido às medidas e reformas
Pombalinas de incentivo ao tráfico de escravos africanos 204 que, entre outros objetivos,
visavam atender à demanda por força de trabalho. A partir de final do século XVIII e
início do século XIX, conforme esses sujeitos passaram a compor a massa da população
livre na região amazônica, eles também entraram na mira das arregimentações
coercitivas.205
Essas populações de indígenas, mestiços e negros viviam espalhadas pelas regiões
dos mais diversos rios, ocupando-se de atividades extrativistas e da agricultura de
subsistência, modo de vida que os alocava – de certa forma – distantes dos olhares e do
controle das forças estatais. No período pós-independência, iniciado o processo de
formação do Estado brasileiro, uma das preocupações mais latentes configurava-se na

203
Sobre a questão das legislações que previam a escravidão ou a liberdade para as populações indígenas
na colônia, ver PERRONE-MOISES, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos
índios no Brasil, v. 2, p. 116-132, 1992.
204
Existe uma vasta historiografia sobre as políticas pombalinas de incremento do tráfico de escravizados
para o estado do Grão-Pará e Maranhão, ver SALLES, Vicente. Op. cit, 1971; BEZERRA NETO, José
Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XVIII). 2.ed. Belém: Paka-Tatu, 2012. SILVA,
Marley Antonia Silva da. A extinção da companhia de comércio e o tráfico de africanos para o estado do
Grão Pará e Rio Negro (1777–1815). Mestrado (História Social). Belém: Universidade Federal do Pará,
2012.
205
Adalberto Paz analisa como a partir da Carta Régia de 1798 iniciou-se um processo de regulamentação
da compulsão ao trabalho mediante alistamento obrigatório de indígenas, mestiços e negros (livres e
libertos). Paz destaca como essa legislação “trazia uma inovação fundamentalmente crítica, somada aos
objetivos e metas tradicionais das políticas indigenistas anteriores” e expressava “a ambição de que nenhum
homem pobre livre ou liberto (...) pudesse escapar ao controle do Estado ou ficasse ‘sem ocupação’”.
Devido a isto, o historiador afirma que a Carta Régia de 1798 foi responsável por consolidar “as bases
modernas da ampla coação ao trabalho para fins públicos e privados no decorrer desse período”. Inclusive,
suas prerrogativas serão utilizadas de inspiração para a formulação do Corpo de Trabalhadores de 1838.
PAZ, Adalberto. Op. cit, 2017. p. 48-49. De forma similar, Vânia Maria Losada Moreira analisando a
questão do trabalho por meio da instituição da Carta Régia na província do Espírito Santo, demonstra como
o sistema do recrutamento de trabalho dos índios, principalmente na vila Nova Almeida, entre os anos de
1828 a 1853, foi crucial. Moreira destaca como o sistema de autogoverno dos indígenas implantado nessa
região “visava, em primeiro lugar, garantir os interesses do Estado, presente, de forma bem resumida, na
ideia de transformar em ‘súditos, úteis’, por meio do trabalho prestado ao Estado, aos particulares (...) a si
mesmos e a suas famílias”. A autora destaca que esse sistema também “abriu espaço para o exercício da
política indígena, expressa na defesa de sua liberdade e territorialidade contra os outros moradores da
província [do Espírito Santo] que, na primeira metade do século XIX, cobiçavam suas terras e muito
frequentemente também seu trabalho. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral
dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, n. 166,
p. 223-243, 2012.
88

necessidade de controlar esses indivíduos que habitavam os sertões, disponibilizar as


terras para exploração e controlar os recursos naturais ali dispostos. No que concerne à
Amazônia, Antonio Alexandre Cardoso assevera que “a disciplinarização do caldeirão
social amazônico era condição primordial para a sedimentação da presença oficial na
floresta”206, sendo que uma a estratégia elaborada para resolver essa questão foi pelo
emprego da inserção de agentes do Estado nos mais diversos pontos dos sertões
amazônicos e a elaboração de aparatos legislativos de organização dos mundos do
trabalho da floresta.
Dessa forma, as diversas legislações aplicadas na Amazônia foram criadas com a
função de representar a presença do Estado, e principalmente organizar/controlar os
habitantes da região enquanto força de trabalho para empreendimentos públicos e
privados. Para compreendermos melhor quais as estratégias construídas pelas autoridades
estatais para reiterar e fortalecer essa forte ligação entre agentes do Estado e
arregimentação de trabalhadores no decorrer do século XIX, devemos discutir duas leis
essenciais que vigoravam quando da criação da província do Amazonas em 1850, sendo
elas: o “Corpo de Trabalhadores” de 1838 e o “Regulamento das Missões” de 1845. No
decorrer da segunda metade do século XIX, essas legislações constituíram as bases dos
esforços de interiorização da força estatal e dos projetos de controle da força de trabalho
disponível que adentrara os sertões amazônicos, fortificando o aparato repressivo e as
estratégias de vigilância sobre as populações indígenas, negras (livres e libertas) e
mestiças. Na Amazônia, mobilizar a população livre pobre como força de trabalho era
uma política de Estado central desde os tempos coloniais e que se agravaram conforme
as forças dos interesses capitalistas se interiorizavam na região no século XIX.

2.1.1 – Os Corpos de Trabalhadores e o fortalecimento das estruturas de


coerção

Os Corpos de Trabalhadores foi uma legislação herdada pela província do


Amazonas oriunda do Pará, onde foi criada pelo presidente Francisco José Soares de
Andrea por meio da lei nº 2 de em 25 de abril de 1838. Alguns historiadores entendem
essa legislação como uma resposta repressiva do governo para penalizar os participantes

206
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op cit, 2017.
89

da revolta popular, chamada de Cabanagem 207, ocorrida na região entre 1835-1840,


executada, em sua maioria, por indivíduos oriundos das camadas mais baixa da sociedade,
formada por indígenas, negros (livres e escravos) e pobres em geral208. A essa perspectiva,
Claudia Fuller acrescenta a necessidade de associarmos a criação da Companhia de
Trabalhadores não apenas a um contexto provincial, “mas também a uma preocupação
existente entre as elites nacionais com os rumos de um Brasil já independente e que
procurava se definir como nação civilizada, composta por ‘cidadãos civilizados’”209.
Adalberto Paz indica ainda que essa legislação pode ser considerada o auge de um
conjunto de práticas e leis secularmente estabelecidas na Amazônia visando impor
especialmente aos pobres livres (índios e negros) o exercício de diversos tipos de trabalho
compulsório210. Essa estratégia de regulação da população pobre livre estava de acordo
com outras políticas imperiais de coerção ao trabalho e restrição de mobilidade ativa em
todo o território nacional como o uso compulsório de africanos livres em trabalho
públicos e privados; o recrutamento de indígenas aldeados; o alistamento para o Exército;
e a exploração do trabalho previsto pelo código criminal de 1830 a pessoas condenadas. 211
O ponto diferencial dos Corpos de Trabalhadores na Amazônia foi tentar formular uma

207
A Cabanagem foi uma das maiores revoltas populares ocorridas na Amazônia entre os anos de 1835-
1840. Os “cabanos” eram na maioria indígenas, negros (livres e escravos) e pobres em geral que atacando
majoritariamente lideranças políticas, grandes proprietários e outros representantes das elites locais,
destruíram temporariamente rígidas hierarquias sociais, colocando a sociedade amazônica de ponta-cabeça.
Essa revolta popular foi duramente reprimida pelas forças imperiais e seus participantes perseguidos
principalmente pelo emprego de legislações para arregimentação para o trabalho. PINHEIRO, Luís Balkar
Sá Peixoto. Nos subterrâneos da revolta: trajetórias, lutas e tensões na Cabanagem. Tese de Doutorado
em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998; RICCI, Magda. Do sentido aos
significados da Cabanagem: percursos historiográficos. Anais do Arquivo Público do Pará, Belém, v. 4,
2001; HARRIS, Mark. Rebelião na Amazônia: cabanagem, raça e cultura popular no Norte do Brasil, 1798-
1840. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.
208
Um dos autores que propõe essa análise é SALLES, Vicente. Op cit., 1998.
209
FULLER, Claudia Maria. Op Cit. 2008, p. 49.
210
Adalberto Paz defende que muitas das prerrogativas instituídas pelo Corpos de Trabalhadores estavam
ligadas a antigas formas de arregimentação do período colonial estabelecidas desde o Diretório de Índios e
que ganharam ainda mais abrangência com Carta Régia de 1798. Para o historiador, “desde então, a ideia
de liberdade condicionada pelo trabalho e para o trabalho moldou os parâmetros de governos não apenas
permissivos quanto a diferentes formas de escravidão e coações, mas efetivamente comprometidos com a
garantia do fornecimento de mão de obra para empreendimentos públicos e privados”. PAZ, Adalbeto. Op
cit, 2017, p. 69.
211
FULLER, Claudia Maria. Os Corpos de Trabalhadores e a organização do trabalho livre na província
do Pará (1838-1859). Revista Mundos do Trabalho, v. 3, n. 6, p. 52-66, 2012; FULLER, Claudia Maria.
“V. Sª não manda em casa alheia”: disputas em torno da implantação dos Corpos de Trabalhadores na
Província do Pará, 1838-1844. Revista Estudos Amazônicos. Vol.III, n.2, 2008. A tentativa de obrigar por
meio de legislações a população livre pobre a empregar-se na produção regular voltada para atender os
interesses das elites locais não se restringe à região norte do Império brasileiros, outras locais também
desenvolveram medidas nesse sentido, ver: MARSON, Isabel. Trabalho livre e progresso. Revista
Brasileira de História, nº 07, 1994.
90

solução específica que congregava trabalhadores de várias procedências e origens sociais,


impondo a eles uma exploração unívoca por meio da compulsoriedade.
De acordo com as Instruções para a Organização dos Corpos de Trabalhadores
e Regulamento dos mesmos Corpos, estabelecidas em 1838, ficava estipulado que cada
oficial encarregado de fazer o alistamento “dos indivíduos existentes” nos distritos
deveria separar para ocupar os cargos na Guarda Policial “todos os homens brancos
capazes de pegarem em armas, e que tivessem entre 15 e 50 anos completos de idade”.
Recomendava ainda que o mesmo procedimento deveria ser adotado com os “homens de
cor que tiverem algum estabelecimento, e tal, que possam tratar-se, e que efetivamente se
tratem decentemente, eles e suas famílias”. 212 Logo na abertura das determinações note-
se como o caráter racial sobrepunha o econômico quando visava qualificar os lugares
reservados aos homens brancos e não-brancos. Para os homens brancos era-lhes reservado
quase que automaticamente as melhores posições sem ser necessário comprovação de
renda enquanto que para os “homens de cor” – na Amazônia e no contexto pós-
cabanagem esse termo não apenas definia a população negra (livre, liberta e escravizada)
como também mestiços e indígenas213 – era necessário que comprovassem provimentos
suficientes que deveriam ser atestados pelo crivo do Comandante para ser considerado
válido e, assim, exonerá-los de serem alistados para comporem o último lugar na
hierarquia dos Corpos, ou seja, de trabalhadores.
Essas distinções se repetem nas determinações para os ocupantes do cargo de
comandante, sargento e fiscais das esquadras visto que ficava estabelecido que sua
nomeação fosse realizada entre os homens “de mais consideração, preferindo-se os
oficiais reformados ou oficiais das extintas Milícias”. O comandante ficaria responsável
pela Companhia de Trabalhadores de seu distrito que era o resultado da junção de todas
as esquadras formadas no lugar e seria auxiliado por um sargento; este na ausência do
comandante exerceria todas as atribuições desse. Existiria ainda um fiscal responsável
pela inspeção do cumprimento das ordens. Por fim, os cabos que ocupariam a função de

212
Exposição do Estado e andamento dos negócios da província do Pará no acto de entrega que fez da
presidência o exmo Marechal Francisco José de Sousa Soares d’Andrea ao exm Doutor Bernardo de Souza
Franco, no dia 8 de abril de 1839, p. 24.
213
Essa afirmação baseia na análise ao modo pelo qual a noção de ‘homens de cor’ é aplicada nas fontes
do período. Em 1853, por exemplo, o presidente da província do Amazonas Herculano Ferreira Penna ao
referir-se a lei dos Corpos de Trabalhadores afirmava que ela tinha por “fim chamar a obediência e ao
trabalho todos os Índios já domesticados, mestiços e pretos livres ou libertos que não se achassem em
circunstâncias de ser alistados na Guarda Policial”. Dessa forma, diferentes de outras regiões do país onde
“homens de cor” refere-se aos indivíduos de ascendência africana, na Amazônia ela foi articulada como
qualificador para todos os homens não-brancos.
91

monitorar a organização das esquadras quando fossem solicitadas sua reunião para algum
serviço. Para a escolha dos cabos era previsto que fossem “tirados dentre as pessoas mais
capazes do lugar, e que não seja nenhum deles (dos trabalhadores); preferindo-se para
isto pessoas que estivessem livres do serviço da Guarda Policial, ou mesmo pertencentes
a ela, não havendo outros”.214 Tanto os comandantes como os fiscais poderiam receber
as nomeações de capitão e major respectivamente. Os Corpos tinham uma hierarquia
semelhante à militar, sendo assim responsável por acelerar o processo de militarização
dos sertões amazônicos. Além disso, essa organização hierarquizada e militarizada
corroborou para acentuar a concentração do poder de controle sobre a mão de obra
disponível em agentes civis diretamente ligados a figura do Estado e, assim, reiterar a
força dessas autoridades locais pelo emprego do revestimento da ocupação de cargos
públicos.
Acerca do alistamento dos trabalhadores, o Regulamento dos Corpos de
Trabalhadores deixava bem nítido seu objetivo: “o fim da organização destes Corpos é
sobretudo evitar que haja vagabundos e homens ociosos, e poder-se detalhar gente para
os serviços públicos”.215 Os critérios de vagabundos e ociosos presentes nas diretrizes
dos Corpos de Trabalhadores era acionado com o intuito de associar a “falta de
ocupação” em trabalhos fixos, principalmente na agricultura, com a ideia de vadiagem da
população livre pobre. Esses parâmetros, como destaca Claudia Maria Fuller, estenderam
na Amazônia o recrutamento obrigatório e compulsório para grande maioria dos “índios,
mestiços e pretos que não fossem escravos, e não tivessem propriedades ou
estabelecimentos que se aplicassem constantemente”.216 Desde final do século XVIII, de
acordo com Silvia Lara, o combate à vadiagem/ociosidade passou a ser acionado como
forma de obrigar ao trabalho e restringir os espaços de autonomia da crescente população
de negros e pardos (livres e libertos) nas cidades coloniais da América portuguesa. A
presença massiva desses indivíduos “pouco ou nada submissos” ao domínio senhorial
representava “um potencial político eminentemente disruptivo”, por colocar em tensão o
equilíbrio das relações hierárquicas que ordenavam aquela sociedade.217 Ao longo do
século XIX, as elites políticas do Império brasileiro, pretendendo disciplinar o cotidiano

214
Exposição do Estado e andamento dos negócios da província do Pará no acto de entrega que fez da
presidência o exmo Marechal Francisco José de Sousa Soares d’Andrea ao exm Doutor Bernardo de Souza
Franco, no dia 8 de abril de 1839, p. 24.
215
Idem, P. 26
216
FULLER, Claudia Maria. Op cit. 2008, p. 42.
217
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa.
São Paulo: Companhias da Letras, 2007.
92

dos livres pobres, principalmente formado por negros livres e libertos, acentuaram a
repressão à vadiagem e a ociosidade como meio de obrigá-los ao trabalho e evitar que
promovessem movimentos contra a ordem218.
Em várias regiões brasileiras, as políticas de repressão à vadiagem e à ociosidade
reforçaram-se conforme o número de escravizados nos portos brasileiros iam diminuindo
e a falta de trabalhadores nas lavouras, principalmente no Sudeste, aumentavam. 219 Na
Amazônia essas medidas voltaram-se também para alcançar as populações indígenas e
mestiças, habitantes nas cidades e nos sertões, que eram a principal força de trabalho
disponível na região e ativos participantes nas fileiras dos rebeldes cabanos. 220 Nesse
sentido, os Corpos de Trabalhadores ao funcionar enquanto um mecanismo de
recrutamento militar compulsório acompanhava de perto outras medidas estabelecidas em
diversas partes do Império que funcionaram como ferramenta central na política de
submissão dos homens livres pobres ao trabalho nos empreendimentos públicos e
privados.221 Além disso, o uso dos conceitos associados ao critério de sem ocupação foi
empregado na legislação como forma de reforçar as relações de dominação e marcar
diferenças sociais imprescindíveis para aquela sociedade. Dessa maneira, as elites
políticas buscavam pelo emprego dessas legislações delimitar quais seriam as funções
que cada grupo deveria exercer na sociedade planejada, sendo reservado às populações

218
Walter Fraga Filho, pesquisando a questão da vadiagem na Bahia do século XIX, destaca como após a
independência o próprio conceito de vadiagem teve “seus significados alargados incorporando certas
atividades e comportamentos que antes não eram vistos como tal (...) A própria noção de vadio (...) assume
uma dimensão mais utilitária, remetendo à falta de assiduidade, industriosidade e sobriedade”. Na região
sul, como afirmar o historiador, “o termo vadio passou a ser sinônimo de ‘trabalhador nacional’, em
oposição ao trabalhador moralmente qualificado que vinha da civilizada Europa”. Ver: FRAGA FILHO,
Walter. Mendigos e vadios na Bahia do século XIX. Salvador, Dissertação de Mestrado em História, 1994.
219
As políticas imperiais de repressão a vadiagem e ociosidade atingiam sobremaneira a vida da população
livre e pobre. Esses indivíduos buscaram se mobilizar perante as tentativas do Estado de impor medidas de
controle sobre sua mobilidade e liberdade, ver: DANTAS, Monica Duarte (org). Revoltas, Motins e
Revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
220
As populações indígenas atuaram na Cabanagem tanto nas fileiras rebeldes como também nas forças
oficiais. Marcio Henrique Couto ressalta que a participação indígena na revolta cabana deve ser analisa
levando-se em conta as demandas e interesses que essas populações tinham no conflito que poderia variar
mesmo dentro de uma etnia. O autor cita, por exemplo, a participação dos Munduruku que são “referidos
na memória da Cabanagem como fiéis aliados das tropas legalistas contra os cabanos”, mas também
atuaram em certas ocasiões ao lado dos revoltosos Ver: HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem
Pombal: índios na Amazônia do século XIX. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2018, p. 37-63.
221
Em uma sociedade marcada pela escravidão, usando o argumento da repressão da vadiagem e ociosidade
o recrutamento foi uma das principais formas da política do domínio senhorial de imposição de trabalho
aos homens livres pobres, sobretudo, negros livres e libertos. De acordo com Sidney Chalhoub, o
recrutamento compulsório, ao lado das práticas de escravização ilegal, expressava a política de domínio
senhorial que precarizava ainda mais a vida dos homens livres, evidenciando o campo da indeterminação e
ambiguidade que definia os limites entre a escravidão e a liberdade. CHALHOUB, Sidney. Op. cit, 2009.
Ainda sobre a questão do recrutamento ver: NASCIMENTO, Alvaro Pereira. A ressaca da marujada.
Recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001
93

indígenas, mestiças e negras o lugar do trabalho e da coerção. Esses últimos deveriam


sempre estar submetidos a estrita vigilância do Estado, seus movimentos restringidos e
seus corpos utilizados para transformarem os produtos nativos em riquezas para o Estado
e particulares.
Para os trabalhadores serem alugados ao serviço de particulares, era necessário
que estes últimos realizassem um pedido para o comandante militar do distrito que
solicitaria ao fiscal, considerado como “curador dos Trabalhadores”, que acionaria o juiz
de paz para que fosse ajustado com o alugador o “preço, a ração, e a qualidade do trabalho
a que um e outro se obrigam”. O particular então assinava o Termo de Engajamento e lhe
eram entregues os trabalhadores. Estes ficavam proibidos de abandonar os lugares aos
quais eram destinados, sob o risco de serem presos e remetidos aos seus comandantes. 222
Essas medidas, estavam em estreita conexão com outras aprovadas pelo Império, por
exemplo, com a primeira lei reguladora de contratos de trabalho de 1830, que tinha entre
seus objetivos “estabelecer limites estreitos ao que se chamava “nomadismo dos
trabalhadores”.223 Enquanto os Corpos utilizavam-se da compulsão obrigatória ao
trabalho, a lei de 1830 buscando atar os trabalhadores aos contratos e, assim, tentar
assegurar a exploração da força de trabalho aos patrões e restringir a mobilidade dos
trabalhadores, estabelecia o pagamento de uma multa aos trabalhadores e até a prisão
destes se não cumprissem seus contratos. Em 11 de outubro de 1837 uma nova lei de
locação de serviços foi aprovada pelos parlamentares voltada especialmente para os
contratos realizados com os trabalhadores estrangeiros e novamente a pauta em torno do
controle do deslocamento dos trabalhadores veio à tona.224 Além de manter as restrições
da lei de 1830, essa nova lei buscou restringir ainda a possibilidade de os trabalhadores
escolherem livremente a quem queriam servir. Guardadas suas diferenças quanto sua
aplicação, em ambas as legislações a noção de liberdade que se queria defender para os
trabalhadores estava assentada em um mundo do trabalho ainda pautado pelos parâmetros
da coerção e da subordinação ao estreito controle da sua mobilidade e restrição de sua
autonomia.

222
Exposição do Estado e andamento dos negócios da província do Pará no acto de entrega que fez da
presidência o exmo Marechal Francisco José de Sousa Soares d’Andrea ao exm Doutor Bernardo de Souza
Franco, no dia 8 de abril de 1839, p. 26.
223
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Sobre cadeias e coerção: experiências de trabalho no Centro-Sul do
Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História, v. 32, p. 45-60, 2012.
224
Sobre as legislações imperiais disponíveis com objetivo de tentar organizar os trabalhadores livres,
nacionais e estrangeiros, ver LAMOUNIER, Maria Lucia. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de locação
de serviços de 1879. Campinas: Editora Papirus, 1988.
94

De fato, retirar os indivíduos dos seus espaços de sociabilidade e controlar seu


poder de deslocamento vai ser um “ponto-chave” das práticas compulsórias dos
trabalhadores livres na Amazônia no Oitocentos. O controle sobre o deslocamento desses
homens era uma das medidas a serem alcançadas por meio das determinações estipuladas
para a formação dos Corpos. Aqueles que chegavam de outras regiões ou buscavam fugir
de seus distritos para outros lugares também eram alvos. O art. 5º do Regulamento do
Corpos de Trabalhadores ficava determinado que “todos os homens de cor que
aparecerem de novo em algum distrito, sem guia ou motivo conhecido, serão logo presos
e enviados ao governo para lhes dar destino, quando a sua culpa não seja outra”. Essas
disposições deixam todos os homens indígenas, negros (livres, libertos e escravizados)
sob a insígnia da suspeição constante e do perigo de a qualquer momento cair nas malhas
do alistamento compulsório estabelecidas pelas leis provinciais ou pelas estruturas de
coerção do Estado.
O foco se voltava para os homens adultos não produtivos economicamente,
buscando alocá-los em espaços a serviço do Estado ou de particulares. O art. 7º previa
que todos aqueles homens que “não se empregarem constantemente em algum trabalho
útil, será mandado para as Fábricas do Governo ou alugado a qualquer particular que o
precise”. Caso essa medida não fosse suficiente para assegurar a exploração da força de
trabalho dos alistados, eles poderiam ser “remetidos ao Arsenal de Marinha, para ali
trabalhar pela simples ração, e pelo tempo que se julgar necessário, segundo sua conduta”.
Buscava-se submeter esses homens livres, especialmente aquele habitante das vilas e
cidades, a toda forma possível de controle e supervisão extremos, mantendo-os sempre
que possível alocados em alguma frente de trabalho. Nenhuma ociosidade era permitida
e o fruto da força de trabalho desses sujeitos deveria ser transformado em renda para a
Nação. Este artigo ainda estabelecia que “quando não houvesse empregos para os vadios
de um distrito, por não serem pedidos, nem pelo governo, nem pelos particulares”, o
Comandante Militar daquela localidade deveria escolher um terreno devoluto no qual
seriam alocados os trabalhadores para serem “forçados a trabalhar debaixo de guarda,
todos os que assim merecerem”. O resultado da colheita deveria ser enviado para venda
no mercado e “dele se tirará quanto bastasse para dar duas andainas de roupa grossa para
os trabalhadores, ficando as sobras em benefício das pessoas indigentes”.
São essas basicamente as prerrogativas que continuaram operando quando da
criação da província do Amazonas em 1850 que já nasce reproduzindo estruturas de
diferenciação social que reiteravam hierarquias com parâmetros racializados e
95

fortaleciam a compulsão dos trabalhadores livres ao mundo do trabalho. A opção por


continuar com essa legislação enquadrava-se no anseio da nova província de tentar suprir
pelo emprego das prerrogativas estabelecidas pelos Corpos de Trabalhadores sua
demanda por força de trabalho. Todavia, as dificuldades enfrentadas pelas autoridades
públicas desde o princípio da criação dos Corpos, especialmente no que condiz ao
alistamento e formação dos grupos de trabalhadores, persistirá quando estendida para a
Província do Amazonas.
Apesar das fontes acerca do funcionamento do Corpos entre 1850 e 1862, no
território amazonense, serem escassas, um sintoma representativo da própria organização
dessa instituição na região, foi possível levantar algumas informações de interesse para
nossa pesquisa. Em 1853, por exemplo, existiam na província do Amazonas 12
Companhias, localizadas nas cidades de Manaus (capital), Moura, Thomar, São Gabriel,
Serpa, Silves, Vila Bela, Maués, Canumã, Borba, Alvellos e Ega. O presidente da
província do Amazonas Herculano Ferreira Penna afirmava que
(...) sua organização é hoje incompleta e tão difícil a observância das
regras que constituem sua disciplina particular, que pode-se quase
afirmar que ele só existe nominalmente como Força Pública, sendo mui
difícil ao mesmo Governo conseguir a reunião das praças quando o
serviço a reclama. 225

A despeito das reclamações do presidente, ainda é possível mapearmos o


funcionamento de alguns dos Corpos criados na província do Amazonas. Em Maués, por
exemplo, existia em 1854 um destacamento com 16 policiais e 8 trabalhadores que se
aplicavam aos serviços de guarda da cadeia, coveiros, limpeza das ruas, correio e demais
atividades necessárias. O comandante afirmava que esses praças não recebiam nenhum
soldo e os trabalhadores apenas ganhavam algo quando estavam em serviço do correio.
Em Ega, o Corpo de Trabalhadores apenas se reunia quando eram requeridos para algum
trabalho e recebiam de pagamento apenas o suficiente para comer 226. Em Borba, o
subdelegado do distrito afirmava existirem 12 guardas policiais e alguns trabalhadores
dos Corpos “que nada faziam”. Os relatos acima se repetem nos documentos e são
indicativos de como, apesar das dificuldades para a reunião trabalhadores dos Corpos,
eles ainda assim funcionavam, sendo aplicados em diversos serviços. Quanto à sua

225
Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1 de outubro de 1853, em que
se abriu a sua 2 sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p.
23.
226
Livro n.04 – Polícia (delegacias), 1854. APEAM
96

organização, pareciam seguir as demandas locais e os tratos feitos entre comandantes e


trabalhadores.
Além disso, é necessário ter em mente que um dos resultados da pós-cabanagem
no vale amazônico foi o esvaziamento de muitos distritos e mesmo na década de 1850
ainda era possível perceber o escasseamento de habitantes nesses espaços o que
dificultava sobremaneira a montagem dos Corpos. Somado a isso temos que levar em
consideração a própria recusa enquanto uma micropolítica das populações indígenas,
mestiças e negra (livre e liberta) a se submeterem às determinações estabelecidas pelas
legislações e ao domínio dos comandantes. O repúdio a fazer parte dos Corpos estava
ainda relacionado ao caráter extremamente truculento das arregimentações colocadas em
prática para sua formação, fazendo com que eles esvaziassem as povoações quando
notavam a chegada de alguma autoridade pública para realizar o alistamento. Em 1854,
um ofício do subdelegado Salestiano de Oliveira da vila de Silva relatava não existirem
na localidade nenhum destacamento organizado, pois quando necessitavam de
trabalhadores “é por acaso apanhado algum a laço para condução de Ofícios para essa
capital”227. A expressão a laço relacionava-se às ações coercitivas de apresamento de
indígenas praticadas nos sertões no período colonial, a citação desse termo revela o
caráter violento das arregimentações de trabalhadores para compor os Corpos, o que
tencionava ainda mais as relações entre as autoridades públicas e as populações locais. 228
Outra questão está ligada as próprias dimensões do território amazônico com suas
longas distâncias entre as vilas e cidades que demandavam vários dias/semanas para
serem percorridos muitos dos quais eram ainda desconhecidos, a falta de pessoal e
instrumentos para realizar o deslocamento entre as localidades, as doenças e dificuldades
naturais para alcançar certos espaços, dentre outra questões que se somavam, tornando a
prática bem diferente das normas estabelecidas pela legislação. De toda forma, não
demorou para que os problemas surgissem, após alguns anos de atividades, em torno de
denúncias de trabalhadores que não recebiam salários ou eram forçados a trabalhar além
do tempo previsto, mas principalmente reclamações contra os comandantes que
utilizavam de suas funções para explorar os alistados em proveito de si ou terceiros. Em

227
Idem.
228
Soraia Dornelles também identificou expressões coloniais sendo acionadas nas documentações oficiais
referentes aos trabalhadores indígenas da província de São Paulo no século XIX. Dorneles destaca como as
expressões “cujas origens remontam aos tempos coloniais readequavam-se às prerrogativas legais e
interesses específicos de parte da elite política (...), permanecendo, contudo, conectada à condição escrava
que as populações indígenas experimentavam no passado”. DORNELLES, Soraia. Op Cit, p. 91
97

1853, o presidente da Província Herculano Ferreira Penna, apesar de acreditar nas


potencialidades da legislação para “chamar à obediência e ao trabalho todos os índios já
domesticados, mestiços e pretos livres e libertos” e, assim, poupando “a sociedade muitas
malfeitorias e agressões de uma parte da população mais grosseira e ignorante”, apontava
como principal causa do seu enfraquecimento as contínuas irregularidades dos seus
comandantes:
(...) a ambição do ganho ilícito, ou outras paixões não menos
condenáveis começaram bem depressa a adulterar a instituição, e os
maiores abusos e violências se cometeram para constranger os
trabalhadores, não a dedicar-se a qualquer ocupação honesta e pacífica,
segundo a intenção da Lei, mas a servir gratuitamente àqueles mesmos
que tinham por principal obrigação velar sobre a observância dos
respectivos contratos, para que esses não fossem lesados, ou a seus
amigos protegidos. 229

Ferreira Pena apesar de indicar a extinção dos Corpos asseverava a necessidade


de existirem outros meios para “obrigar a empregar-se em qualquer trabalho honesto o
grande número de habitantes [especialmente os indígenas, mestiços e negros livres], que
não podendo pertencer a Guarda Nacional terão de ficar inteiramente isentos dos ônus
da sociedade, e da imediata inspeção das autoridades locais”230. Apesar de não
concordar com os métodos errôneos dos comandantes, Ferreira Pena entendia a
necessidade da presença desses agentes públicos a vasculhar os interiores da região com
o objetivo de solidificar a presença estatal e, principalmente, vigiar e controlar os seus
habitantes mediante imposição do trabalho para que novas “cabanagens” não viessem a
ocorrer. Somado a isto, as preocupações do presidente conectavam-se com as demandas
das frentes de expansão em voga que cada vez mais requeriam trabalhadores para seus
empreendimentos e visavam exercer maior controle sobre os recursos da floresta.
Nessa direção, alguns parlamentares tentaram elaborar medidas para recompor os
Corpos na província do Amazonas. No ano seguinte à fala do presidente Ferreira Pena,
em 1854, o deputado Gabriel Antonio Ribeiro apresentou um projeto na Assembleia
Legislativa amazonense que em seu artigo único previa a reorganização da instituição do
Corpo de Trabalhadores. O parlamentar julgava ser essa uma saída para resolver déficit
de trabalhadores que sofriam os serviços do comércio e da agricultura, e afirmava que
esse era um dos principais obstáculos “que se opõem ao rápido desenvolvimento desta

229
Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1 de outubro de 1853, em que
se abriu a sua 2 sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p.
24.
230
Idem, p. 24.
98

província”.231 O projeto acabou não recebendo apoio dos demais parlamentares e não foi
aprovado. Ainda assim a tentativa do parlamentar de reativar a instituição na região é
sintomático do forte apelo que esse tipo de legislação, que visava restringir a autonomia
e o deslocamento dos trabalhadores livres e não-brancos, ao submeter toda essa população
ao trabalho compulsório, tinha em meio aos setores políticos. A liberdade defendida pelas
elites para as populações indígenas, mestiça e negra (livre e liberta) continuava atrelada
às amarras da sujeição e da servidão.
Em 1857, o presidente Manoel Gomes Correa de Miranda seguia afirmando a
ineficiência dos Corpos e indicava que a instituição passasse por uma reforma, pois
acreditava “que muitas vantagens se poderiam colher delas, em relação a muitos ramos
importantes do serviço público”232. As declarações de ambos os presidentes estavam
eivadas de um discurso político, comum às classes representantes do Segundo Reinado,
preocupados com a manutenção da ordem, da disciplina e do progresso em uma sociedade
que elaborava constantemente projetos de manutenção do controle sobre a força de
trabalho livre, principalmente dos nacionais, e da população cativa que, cada vez mais,
alcançavam a liberdade por conta própria.
Com os diversos problemas enfrentados para aplicação do regulamento como a
falta de recursos, as constantes fugas e deserções dos alistados233, manter os Corpos de
Trabalhadores em funcionamento adequado, disciplinando a população livre pobre e
suprindo as necessidades de trabalhadores para as obras públicas e privadas, parecia cada
vez mais raro de se alcançar. O presidente Manoel Clementino da Cunha, em 1862,
defendia que a instituição “não se acorda[va] com os princípios do sistema liberal” além
de ferir “demasiado a liberdade do trabalho, e indústria, criando restrições, que não são
fundadas na constituição [sic] do Império”. A noção de liberdade de trabalho estava
conectada às ideias do modelo liberal de formação de um mercado de trabalho livre, uma
teoria bem distante da realidade das relações de trabalho no Brasil Império extremamente
marcadas pela escravidão e compulsoriedade 234.

231
Sessão de 04 de agosto de 1854 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da
Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1854-1855, p. 66. Arquivo Público do Estado
do Amazonas
232
Exposição Feita ao Exm. Snr. 1º vice-presidente da província do Amazonas o Dr. Manoel Gomes Correa
de Miranda pelo presidente O doutor Joao Pedro Dias Vieira. 25 de fevereiro de 1857, p. 33/34.
233
Claudia Fuller descrever como índios, mestiços e pretos se apropriaram de diferentes maneiras da
legislação para tentar fugir ou ao menos minimizar os efeitos dos alistamentos compulsórios, ver FULLER,
Claudia. Op Cit. 2008, p. 58-62
234
Henrique Espada Lima realiza um balanço sobre os debates em torno do conceito de trabalho livre e
como as relações de trabalho livre no Brasil do Oitocentos tinha como marca a precarização da liberdade
da população livre. LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados
99

Ainda em 1862 decidiu-se pela extinção dos Corpos de Trabalhadores na


província; mas, apesar do seu histórico de falhas e problemas para sua aplicação, essa
legislação deve ser considerada como uma importante estrutura norteadora das relações
de trabalho encetadas no vale amazônico, e no Brasil Império, durante a segunda metade
do século XIX. A reiteração do mecanismo de recrutamento compulsório por meio do
estabelecimento de autoridades governamentais nos mais distantes pontos da província
com funções militares e policialescas foi um passo muito importante tanto para a
sedimentação da presença do Estado nacional na floresta quanto para o fortalecimento
das estruturas de arregimentação compulsória de indígenas, negros (livres e libertos e
mestiços) que habitavam a região. No próximo tópico nos deteremos em examinar o
funcionamento de outra importante legislação para a estrutura do mundo do trabalho
amazônico, o Regulamento acerca das missões e Catequese dos Índios, promulgado em
1845 pelo Estado Imperial para ser aplicado em todas as províncias brasileiras. Como
veremos, ao lado dos Corpos de Trabalhadores essa legislação reforçará mecanismos de
subordinação e controle da mão de obra indígena.

2.1.2 – O Regulamento acerca das missões e Catequese dos Índios de 1845 e


a produção de força de trabalho

Outra legislação do mesmo caráter do Corpo de Trabalhadores, mas voltada


especificamente para o controle da população indígena que vivia nos sertões brasileiros,
foi o Regulamento acerca das missões e Catequese dos Índios, instituído em 1845, que,
com algumas mudanças, perdurou como a principal lei indigenista até o final do
Império235. A legislação imperial instituía a catequização dos indígenas, a implementação

da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi (Rio de Janeiro), v. 6, n. 11, p. 289-326, 2005. O pensamento
liberal, segundo Ricardo Salles, exerceu fortes influências na construção do Estado Nacional no século
XIX, “tanto em seu aspecto político como econômico, principalmente no que se refere à liberdade de
comércio e ao direito de propriedade, foi a doutrina que tais classes [dominantes] utilizaram para expressar
seus interesses e universalizar seu discurso”. Dessa forma, muitas das ideias do liberalismo foram
apropriadas e aproveitadas por essas classes principalmente para auxiliar a “construção de uma ordem
política que assegurasse a reprodução das relações sociais escravistas”. Salles destaca como “houve mais
que Houve mais que uma convivência histórica prolongada entre liberalismo e limitações aos direitos de
cidadania em sociedades determinados, no caso, marcadas pela escravidão”. SALLES, Ricardo. Nostalgia
Imperial: Escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. 2 ed. Rio de
Janeiro: Ponteio, 2013.
235
O Regimento acerca das Missões de catequese e civilização dos Índios foi aprovado em 24 de julho de
1845 e perdurou até 1889. Essa legislação foi descrita pela historiografia como “único documento
indigenista geral do Império” ou a “lei indigenista básica de todo período imperial”. Patrícia Sampaio
ressalta como os temas de terra/trabalho/guerra ainda são os principais eixos em torna da questão indígena
durante o Império, sendo a questão do trabalho um dos pontos de maior debate. SAMPAIO, Patrícia Maria
Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil
imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 175-206, 2009. A recente pesquisa
100

do sistema de aldeamentos, regulava “a criação de escolas para crianças nas aldeias, o


incentivo ao desenvolvimento dos ofícios e “artes mecânicas”, o estímulo à produção de
alimentos para sustentação das aldeias, a comercialização do excedente dos produtos, a
atração para os aldeamentos dos índios considerados como selvagens e a regulação do
arrendamento e aforamento das terras indígenas236. Soraia Dornelles assevera que os
principais objetivos do Regulamento de 1845 consistiam em viabilizar a liberação de
enormes porções de terras, depois reguladas pela lei de 1850; também propiciar o
aumento do contingente “da força de trabalho produtora, principalmente em tempos nos
quais o governo via-se cada vez mais pressionado para abolir a escravidão africana e
recorria à colonização estrangeira”237.
Entre 1850 e 1866 os aldeamentos criados a partir das diretrizes estabelecidas pelo
Regulamento das Missões cresceram consideravelmente em número e quantidade de
indígenas aldeados distribuídos nos afluentes das margens direita e esquerda do rio
Amazonas. De 19 missões existentes em 1852, passou-se para 47 aldeamentos ao final de
1866. Umas das questões primordiais para as autoridades públicas era a de que os
aldeamentos colaborassem para “aumentar o número de força de trabalho produtora (...)
e aproveitassem os milhares de braços disponíveis pelo interior” de todo o Império. 238
Dornelles destaca que na província de São Paulo os indígenas aldeados “realizavam toda
sorte de atividades, enquanto mão de obra, nas fazendas dos sertões paulistas”. 239 Na

de COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na Guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-
1845). Tese (Doutorado em História). Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2016, oferece um
novo olhar acerca da ideia de “vazio legislativo” postulado pela historiografia para caracterizar a “ausência
de uma lei geral para regular a política indigenista no Brasil na primeira metade do Oitocentos, já que o
autor demonstra - como as províncias fizeram uso de outras leis para lidar com a questão indígena.
236
MELO, Sampaio. Op Cit. 2009.
237
Soraia Dornelles pesquisando a Província de São Paulo no século XIX demonstrou como a força de
trabalho dos indígenas era acionada para a realização das mais diversas atividades naquela região.
DORNELLES, Soraia Sales. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil imperial: reflexões a
partir da província paulista. Revista Brasileira de História, v. 38, n. 79, p. 87-108, 2018; DORNELLES,
Soraia Sales. Op Cit, 2017. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2017. Martha Amoroso
também sugeriu que, além do processo de apropriação das terras indígenas, fosse acrescida à análise a
utilização da mão de obra dos indígenas. AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de Hábito: catequese e
educação para índios nos aldeamentos capuchinhos. in SILVA, Aracy Lopes e FERREIRA, Mariana
Kawall Leal (orgs.) Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. 2ª ed., São Paulo:
Global, p 133-157, 2001.
238
Além da questão da produção de mão de obra, Soraia Dornelles destaca que o “problema indígena” no
Império do Brasil também estava relacionado com a questão da “terra” e do “povoamento dos sertões”.
DORNELLES, Soraia Salles. Op Cit. 2017.
239
Idem, p. 77. Outras pesquisas também apontam a centralidade da exploração das populações indígenas
enquanto força de trabalho em diferentes regiões do Império, como apresentado por Ayalla Oliveira Silva
para a região de Cachoeira de Itabuna no sul da província da Bahia. Segundo a autora, “ao longo do século
XIX, era também indisfarçável o interesse das autoridades pela mão de obra dos indígenas” e o tema do
trabalho teria norteado “as práticas administrativas por todo o período de vigência do aldeamento são Pedro
de Alcântara. Silva destaca as obras realizadas para a manutenção e abertura de estradas como uma das
101

província do Amazonas, como apresentamos no capítulo 1, a distribuição dos


aldeamentos acompanhou a lógica do deslocamento de fronteiras em curso no vale
amazônico visando corresponder ao crescimento da demanda por força de trabalho nos
empreendimentos públicos. Apesar de ser contra as prerrogativas do Regulamento eles
também eram distribuídos para particulares, localizados na capital e nos sertões, prática
que se adensou com o aumento da exploração dos produtos nativos como a borracha.
Dentre as diversas atividades em que eram aplicadas a mão de obra dos indígenas
aldeados, ressaltamos duas frentes de trabalho que consumiam grande parte dessa força:
o “serviço das canoas” (remeiros) e as obras públicas. Os remeiros, em sua maioria
formado por indígenas, eram o sustentáculo que fazia funcionar toda a infraestrutura de
comunicação e comércio na bacia amazônica, visto que eram eles que normalmente
detinham o conhecimento necessário para elaboração das rotas e como contatar as
populações ribeirinhas. Dessa forma, os indígenas aplicados no serviço de canoas eram
essenciais para o projeto de expansão da presença estatal, para o funcionamento das rotas
comerciais e a circulação dos produtos visto que, sem o saber prévio desses indivíduos
acerca da região e suas particularidades, tornava-se difícil para as autoridades públicas e
particulares navegar no vale amazônico. O viajante Paul Marcoy ao sair de Ega para
explorar o rio Japurá, entre 1847-1848, declarou ter incluído “na tripulação (...) um
Tapuia cristão [chamado João, o Miranha] que conhecia bem todos os lagos, canais e
igarapés que se interligam na foz daquele rio”.240 Apesar de quase sempre retratarem os
trabalhadores indígenas como “inadequados ao trabalho” e “insubmissos”, as autoridades
públicas e particulares eram sabedoras da importância dos seus conhecimentos para o
avanço dos interesses oficiais e privados.241 Além disso, o uso desses adjetivos e
classificações utilizadas para qualificar os remeiros quando lidos a contrapelo sugerem
como esses trabalhadores buscaram delimitar e contestar seus espaços de autonomia
mesmo quando exerciam ocupações impostas por legislações. Demonstrando como
mesmo as determinações criadas a partir de instrumentos jurídicos estatais possuíam na
prática seus limites e contradições.

principais frentes de trabalho em que eram aplicados os serviços dos indígenas. SILVA, Ayalla Oliveira.
Ordem Imperial e aldeamento indígena: Camacãs, Guerens e Pataxós no sul da Bahia. Ilhéus: Editora
Editus, 2017.
240
MARCOY, Paul. Op Cit. 2006, p. 116.
241
Antônio Alexandre Isídio Cardoso analisou o processo de apropriação dos saberes pré-existentes das
populações locais, destacando especialmente a participação dos regatões (mascastes fluviais ou mercadores
dos rios) nesse cenário. CARDOSO, Antônio Alexandre Isídio. Op Cit. 2017.
102

De toda forma, no geral, os indígenas aldeados – destacados como remeiros para


o serviço público – atuavam, por exemplo, nos correios militares ou acompanhando as
autoridades públicas em viagens oficiais ou de policiamento. Em 1854, foi solicitado pelo
tesoureiro da província que o soldado do 3º Batalhão de Artilharia Manoel José Raimundo
pagasse a quantia de trinta e oito mil duzentos e vinte réis que deveriam ser divididos
entre “sete índios que vieram como remeiros da canoa militar” para Manaus do
aldeamento de Marabitanas e São Gabriel, ambos localizados no alto Solimões “para onde
tem de regressar”.242Alocados nesse serviço os indígenas ficavam por longos períodos
distantes de suas casas, sem falar dos perigos que corriam navegando por diferentes rios
e atravessando cachoeiras, carregando pesadas canoas, condições que deixavam esse
serviço nada atrativo aos indígenas. Nessas condições tornava-se um desafio para
autoridades públicas e particulares conseguir remeiros, mesmo nos aldeamentos
religiosos.
No cenário de crescimento de interesse pelos produtos nativos e sendo os rios as
principais vias de transporte de produtos e pessoas no vale amazônico, a força de trabalho
dos remeiros indígenas era muito disputada pelas autoridades públicas e particulares.
Tanto que, em 1865, o chefe de polícia enviou ofício para os subdelegados da província
recomendando que “seus subordinados não recrutassem os remeiros da tripulação de
canoas que vivessem nas povoações e são poucos indivíduos que ai costumam
aparecer”.243 Conseguir arregimentar indígenas para o serviço das canoas demandava
muitos esforços, pois muitos se negavam a seguir nas embarcações. Os viajantes
estrangeiros que visitaram a região na segunda metade do XIX noticiaram com veemência
e indignação a dificuldade em arranjar mão de obra para os serviços das canoas. François
Biard, por exemplo, em 1859, enquanto estava em Manaus organizando sua viagem para
o rio Madeira, reclamou da dificuldade de conseguir trabalhadores indígenas para sua
tripulação. Quando finalmente conseguiu uma tripulação formada por indígenas e um
soldado, um deles “andou por toda a cidade a propalar que estava sendo vítima de uma
perseguição; ia ser arrancado à família pela tirania e malvadez do coronel”. 244 Essa
micropolítica do trabalhador para não ser arregimentado para trabalhar naquela viagem
funcionou muito bem visto que Biard solicitou sua substituição e o homem viu-se livre

242
Livro nº 2 – Correspondência dirigida à tesouraria da Fazenda do governo da Província do Amazonas,
1852-1853-1854. APEAM.
243
Livro 01 – Correspondência da presidência da província com o chefe de polícia, 1863-1868, p. 67.
APEAM.
244
BIARD, François. Op Cit. p, 182.
103

do serviço. Como o próprio viajante demarcou, seria ainda mais dificultoso e perigoso
seguir em viagem ou mesmo conseguir manter no trabalho um homem que já havia
mostrado sua recusa desde o princípio.
Em relação às obras públicas, especialmente na capital, os trabalhadores indígenas
enviados dos aldeamentos eram a principal mão de obra aplicada nesse serviço. A partir
da década de 1850, a criação da província impulsionou sobremaneira as construções para
a criação da estrutura arquitetônica administrativa. Em 1854, o presidente da província
Herculano Ferreira Penna, ao se referir ao andamento das construções, admitia que o
maior atraso estava atrelado à ‘falta de braços quase absoluta de operários e de
materiais”.245 O presidente assinalava que da mão de obra aplicada nas obras em
andamento eram “quase todos (...) Índios do alto rio Negro”, que trabalhavam juntamente
com “1 sentenciado e 6 africanos livres”.246 De fato, o ambiente de trabalho das obras
públicas será um espaço que congregará sujeitos de condições jurídicas e origens variadas
como os africanos livres, escravizados, estrangeiros e outros trabalhadores. Os africanos
livres, de acordo com Patrícia Melo, “foram enviados para o Amazonas em decorrência
das determinações da nova conjuntura dos africanos pelo Ministério da Justiça e para
atender aos insistentes clamores dos administradores provinciais por mão de obra na
província”247. Em 1861, por exemplo, o inspetor da tesouraria da Fazenda requereu que
fossem pagos os “operários livres, escravos e africanos livres empregados nas obras da
enfermaria militar e concertos da ponte” no valor total de 436$720”.248 Uma das marcas
da própria estrutura do mundo do trabalho amazônico era a coexistência e
complementariedade das diversas formas de trabalho livre e de trabalho escravizado.

245
Fala dirigida à Assembleia Legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de agosto de 1854, em que se
abriu a sua 3º sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro Herculano Ferreira Penna, p. 11.
246
Idem, p. 13-14; Os valores aproximadamente pagos entre 1871 e 1872 aos trabalhadores indígenas nas
obras públicas variaram entre 1$380 réis por dia para os que provinham sua alimentação e 1$000 réis diários
para os que recebiam comida da fazendo imperial. Os trabalhadores só recebiam “os seus vencimentos no
dia em que eram dispensados do serviço das obras públicas”. Relatório apresentado à Assembleia
Legislativa Provincial do Amazonas na primeira sessão da 11.a legislatura no dia 25 de março de 1872 pelo
presidente da província, o exmo sr. general dr. José de Miranda da Silva Reis, Anexo 6, p. 7.
247
Patrícia Melo analisa o cotidiano de trabalho de indígenas e africanos livres nas obras públicas em
Manaus destacando as “fronteiras nebulosas entre a liberdade e a escravidão” no mundo do trabalho não
livre da província do Amazonas, ver: MELO, Patrícia M. Índios e africanos livres nas obras públicas,
Manaus, Século XIX. Op Cit. 2021. A categoria de africanos livres surgiu a partir da aprovação da Lei de
1831 que proibiu o tráfico de escravizados entre portos da África e do Brasil. Os africanos resgatados dos
navios eram colocados sob tutela de 14 anos do governo imperial em um sistema de “aprendizado” onde
eram obrigados a trabalhar em diversos empreendimentos públicos assim como para particulares. Na
prática, os africanos livres permaneceram bem mais tempo do que o estipulado pela lei e, como acentua
Beatriz Mamigonian, ao fim esse sistema foi responsável por propiciar a exploração de mais de 11.000
indivíduos espalhados por várias partes do território brasileiro além de outros milhões que entraram
ilegalmente escravizados após aprovação da lei. MAMIGONIAN, Beatriz G. Op. Cit, 2017.
248
Estrella do Amazonas, 31 de agosto de 1861, nº 574, p. 01.
104

Dessa forma, para atender às inúmeras obras públicas espalhadas pela província
era mister aumentar o provimento de mão de obra e os trabalhadores indígenas
provenientes dos aldeamentos eram o lugar de origem de maior parte deles. Havia muitos
indígenas Mura servindo nas obras públicas e muitos destes vinham do aldeamento de
Abacaxi, localizado em um dos afluentes do rio Madeira. É possível traçar a presença
desses indígenas especialmente mediante denúncias de fuga e prisão dos mesmos, como
ocorreu em 1854 quando o diretor do aldeamento de Tujuca-Murutinga comunicara que
havia se deslocado até um lugar denominado Mastro para “buscar dez índios Mura
pertencentes a esse aldeamento, os quais se tinham ali [sic] retirado sem licença do mesmo
diretor, depois de fugir do serviço das obras públicas da capital”.249 Em 1869, o secretário
de polícia enviou oficio ao diretor de obras públicas noticiando a prisão dos “índios Muras
Faustino e Raimundo, custodiados na cadeia desta capital que já há tempo desertaram das
obras públicas onde se achavam trabalhando”.250 Os aldeamentos funcionavam, assim,
como importantes espaços de provimento de mão de obra, especialmente, para os
empreendimentos públicos.
Nesse sentido, as obras públicas eram vistas pelas autoridades como um excelente
caminho para a “civilização” dos indígenas que nelas deveriam aprender a desenvolver o
‘amor pelo trabalho regular’. O presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda, por
exemplo, em 1860, declarava que “as obras públicas que se vão fazendo nesta Capital
muito concorrem para civilizar os nossos selvagens” e que por terem lhes reservados bons
tratamentos enviando-os para casa a cada dois meses e pagando seus salários o número
de deserções havia caído e os mesmos não mais temiam “de vir aos povoados prestar seus
servição”, pois estariam “reconhecendo que disto auferem vantagens reais”. 251
Reforçando esses mesmos parâmetros, em 1871, o presidente da província José
de Miranda da Silva Reis destacava que no escopo:
de obter serventes para o serviço de obras públicas, concorrendo ao
mesmo tempo para a civilização dos índios catequisados e nestes
incutindo quanto possível o amor ao trabalho, tenho conseguido,
auxiliado pelo digno Diretor Geral dos Índios a par outros prestimosos
cidadãos, conservar constantemente naquelas obras, nesta capital, uma
turma de índios que por em quanto pouco excede ao número de 40,
composta de contingentes de diversas tribos e localidades da Província,
sendo estes contingentes regularmente substituídos de dois em dois

249
Livro Diretoria de Índios, 1854. APEAM.
250
Livro 17 – Livro de correspondência da Secretária de polícia de Manaus e do interior, 1869. APEAM.
251
Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na abertura da 1.a sessão ordinária da
5.a legislatura no dia 3 de novembro de 1860 pelo 1.o vice-presidente em exercício, o exm. o senr. dr.
Manoel Gomes Corrêa de Miranda, p. 17.
105

meses, no serviço cuidadosamente tratados e muito pontualmente pagos


de seus jornais sob as vistas da Diretoria das Obras Públicas.252

Silva Reis defendia ainda que a inserção dos indígenas aldeados estaria
proporcionando “vantajosos resultados” uma vez que corroboraria para chamar “aos
hábitos da civilização grande número de índios que dela vivem afastados por
desconhecerem-lhe as vantagens ou dela fazerem falsas ideias”. O presidente
vangloriava-se ainda das suas ações descrevendo que “um contingente de índios das
margens do rio Waupés veio oferecer-se para o serviço o respectivo Tuchaua a quem,
para mais animá-lo, mandei empregar com maior jornal como feitos dos índios em serviço
nas referidas obras”.253 A introdução da “civilização” nesses indivíduos deveria ser feita
por meio da sua inserção ao mundo do trabalho, e as obras públicas eram espaços
privilegiados para a interiorização das regras do trabalho disciplinado. Para as autoridades
públicas, a liberdade desses indivíduos só seria possível de ser vivida dentro de um rígido
controle e vigilância e produzindo frutos à sociedade. Esses ideais defendidos pelas
autoridades públicas e particulares para mobilizar força de trabalho dos indígenas
associando o trabalho forçado com o “aprendizado da civilização” dialogam com outras
propostas/projetos de “aprendizado da liberdade” que ocorriam no Brasil Império e outras
partes do globo.254 Para os povos indígenas, africanos e afrodescendentes a liberdade
continuava atrelada à exploração da sua força de trabalho a favor do Estado e de sua elite.
Contudo, nem sempre a cooptação de trabalhadores indígenas nos aldeamentos
para as obras públicas era tarefa fácil visto que demandava primeiro que os diretores
enviassem a força de trabalho requisitada e, segundo, que os próprios trabalhadores
aceitassem ir para essas localidades trabalhar. Esse último era um problema constante a
ser enfrentado pelas autoridades públicas devido, principalmente, às constantes fugas dos
trabalhadores. Em 1853, por exemplo, o presidente Herculano Ferreira Penna ao
descrever a situação das obras públicas na capital apontou como as constantes fugas dos
trabalhadores como a principal causa do estado de atraso das obras públicas:
(...) não havendo aqui escravos que se aluguem por qualquer jornal, nem
homem livre, a exceção dos índios, que ainda sendo mui bem tratados,
e pontualmente pagos dos seus jornais, como o tem sido, ainda contando
com a dispensa no fim de dois ou três meses, prestam-se de má vontade

252
Relatório que a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na acta da abertura das
sessões ordinárias de 1871, o presidente José de Miranda da Silva Reis, p. 9.
253
Idem, p. 9
254
Cooper, Frederick, REBECCA J. SCOTT, and THOMAS C. HOLT. Op. cit, 2005. A condição dos
africanos livres no Brasil também estava atrelada a essa noção, ver: MAMIGONIAN, Beatriz G. Op Cit.
2017.
106

ao serviço aturado, ressentem-se da menos advertência que se lhes faça


para ativa-los, e não deixam de aproveitar a primeira oportunidade que
se lhes ofereça para fugirem. 255

A fuga funcionava assim como uma das ações chaves que compunhas o quadro
das micropolíticas dos trabalhadores por meio do qual demonstravam sua insatisfação
perante o serviço, seus patrões/comandantes ou quando acreditavam já ter cumprido o
tempo exigido.256 Essas evasões eram realizadas tanto de forma individual quanto
coletiva. Em 1854, por exemplo, três indígenas fugiram dos trabalhos nas obras públicas
da cidade contando com ajuda de um cabo de canoa de nome Domingo de Almeida Roza
que partia para o rio Purus.257 As autoridades policiais foram informadas pelo feitor das
obras o soldado Eduardo Carlos de Miranda que o cabo tinha na verdade “seduzido” os
indígenas para a fuga. Ainda nesse ano, o número de fugas de trabalhadores das obras
públicas foi tão intenso que, ao ser questionado para enviar mais indígenas, o Diretor de
Índios da Aldeia de Manacapuru afirmou que os índios estavam bastante desaforados e
não queriam obedecer às ordens dadas”.258 O diretor acusava ainda um indígena de nome
Athanasio de ser o responsável por convencer os demais para não permanecerem nos
serviços.
Tanto indígenas quanto africanos livres quando eram capturados pela polícia por
desertarem do serviço nas construções eram enviados para cadeia onde recebiam
“correção” pelo “delito” cometido. No dia 6 de abril de 1858, por exemplo, os africanos
livres Roberto, “22 anos e casado” e Domingos Mina, “25 anos e solteiro” foram enviados
por ordem do administrador das obras públicas para cadeia “para correção”.259 Em 1859,
“a requisição do diretor interino de Obras Públicas” foram enviados os “africanos livres
Manoel Benguella, Simião Pinto, Odorico, Bertholdo, Apolinário e Geraldo para
correção”.260 Em 1869, encontravam-se presos na cadeia pública os indígenas da etnia

255
Fala dirigida á Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1.o de outubro de 1853, em que
se abriu a sua 2.a sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro Herculano Ferreira Penna.
256
A historiografia social da escravidão já demonstrou como o recurso da fuga era acionado pelo
escravizados, homens ou mulheres, adultos ou crianças, como instrumento importante de negociação nas
relações complexas entre senhores e escravizado. Além disso, também identificaram como as razões que
motivavam as evasões eram variadas passando desde o desejo de querer romper as relações com os
senhores, reencontrar um familiar, retornar para uma cidade, dentre outros motivos, ver: REIS, João José
& SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Companhia
das Letras, 1989; GOMES, Flávio dos Santos. “Jogando a Rede, Revendo as Malhas: fugas e fugitivos no
Brasil escravista”. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, 1996. Sobre a análise do padrão de fugas na província do
Amazonas no século XIX, consultar: CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Op Cit. 2013.
257
Livro 04 - Ofícios do delegado de polícia ao presidente da província do Amazonas, 1854. APEAM.
258
Livro Diretória dos índios, 1854.
259
Estrella do Amazonas, 19 de junho de 1858, nº 301, p. 04.
260
Estrella do Amazonas, 10 de setembro de 1859, nº 397, p. 04.
107

Mura de nome Faustino e Raimundo por desertarem das obras públicas para onde haviam
sido enviados pelo Diretor de índios para trabalhar.261 O caráter insalubre dos espaços das
construções, os baixos salários e contínuos maus tratos eram alguns dos motivos que
faziam os trabalhadores “desertarem”, às vezes, para lugares o mais distante o possível.
Em 1854, por exemplo, o carapina Fideliz Correa de Barros que havia “sido contratado
no Ceará para trabalha nas obras públicas do Pará, dali desertou em princípio de julho
(...) havendo desconfiança de que se dirigiu para o Peru”. 262 A vida em um país distante
parecia oferecer mais espaços de autonomia do que a vida em seu país de origem.
A grande incidência das fugas, especialmente de indígenas, estava relacionada a
demanda dos próprios trabalhadores pelo respeito ao cumprimento do tempo de trabalho
nas obras ou mesmo pela sua negação de permanecer naqueles serviços. Desde 1854, o
presidente da província Herculano Ferreira Pena destacava a “necessidade de despedi-los
logo que findem dois ou três meses, para que se não desgostem”. Ferreira Pena salientava
que se as autoridades não cumprissem com esse tempo dificultaria que outras
trabalhadores das mesmas localidades aceitassem ir trabalhar. A requisição de
permanecer apenas três meses empregados no serviço público ou privado estava
conectado aos ritmos e fluxos de viver na floresta que influíam em diversos níveis nas
relações sociais e produtivas dos povos que habitavam a Amazônica. A natureza não
marcava apenas o espaço geográfico como também simbolizava o espaço pelo meio do
qual eram articuladas redes de sociabilidade das quais as populações provinham seu
existência. Assim, poder voltar ao fim do tempo estabelecido representava para os
trabalhadores o retorno para seus familiares e para o ambiente em que mantinham
autonomia. E as autoridades públicas sabiam que precisavam seguir essas demandas se
quisessem manter os indigenas nos serviços. Em 1872, novamente o presidente da
província José de Miranda da Silva Reis ressaltava a necessidade de que os trabalhadores
indígenas fossem “regularmente substituídos, de três em três meses mais ou menos, por
outros das mesmas localidades depois de bem pagos e tratados naquelas obras”.263 Mas,
como tempo do trabalho “regular” e capitalista almejado pelas autoridades públicas e
particulares não coincidia com o tempo marcado pela pesca e salga do pirarucu, da coleta

261
Livro 17 – Secretária de Polícia de Manaus e do interior, 1869. APEAM.
262
Livro 04 - Ofícios do delegado de polícia ao presidente da província do Amazonas, 1854. APEAM.
263
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na primeira sessão da 11.a
legislatura no dia 25 de março de 1872 pelo presidente da província, o Exmo. sr. general dr. José de Miranda
da Silva Reis, p. 19.
108

de castanha ou de ovos de tartaruga ou das festas rituais que cercavam essas práticas, as
evasões continuaram constantes.
Nesse contexto, as fugas não foram o único problema para as autoridades
governamentais manterem os trabalhadores sob controle. Muitos presidentes de província
acusavam os diretores de serem um dos maiores empecilhos na arregimentação de
indígenas, o que causava atrasos nas obras públicas. O presidente Francisco José Furtado,
em 1859, acusava-os de manter os indígenas aldeados em estado de ignorância “em que
vivem enquanto exploram e expoliam os índios”, ao invés de atender as requisições para
as obras públicas.264 Furtado relatava que, para conseguir avançar com as obras públicas,
enviara o capitão José Casimiro Ferreira do Prado diretamente até um aldeamento265, “que
em alguns dias e sem violência alguma apresentou” 40 trabalhadores. O presidente
afirmou que após pressionar o diretor geral interino – Conego Joaquim Gonçalves de
Azevedo – para proceder “severamente contra os diretores parciais” que não enviassem
indígenas, conseguiu aumentar o contingente de indígenas de dez trabalhadores, entre
setembro e dezembro, para 135. A pressão exercida para o envio de indígenas não visava
atender apenas os empreendimentos públicos; assim, dentre os que chegaram a Manaus o
presidente mandou ceder alguns deles a particulares “sob condição de pagarem aos índios
o mesmo salário que recebiam nas obras públicas”.266
De fato, o presidente apresentou um dos motivos que tendiam a afastar as
populações indígenas dos aldeamentos: a violência cometida por alguns diretores parciais
de índios. Até 1866, o Regimento das Missões determinava que cada província teria um
diretor geral dos índios indicado pelo próprio Imperador, e cada aldeamento deveria ser
dirigido por um diretor parcial dos índios proposto pelo diretor geral e nomeado pelo
presidente da província. Aos missionários destinavam-se as atividades da catequese e
educação dos indígenas, as atividades de registro e censitárias, mas sem qualquer poder
de decisão sobre a distribuição dos indígenas solicitados para as frentes de trabalho. Havia
ainda outros cargos como de tesoureiro, almoxarife, cirurgião e pedestres que auxiliavam
os diretores na organização dos aldeamentos. 267 A intenção do Estado imperial era

264
Relatório que a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na abertura da sessão
ordinária em o dia 3 de maio de 1859 Francisco José Furtado, presidente da mesma província, p. 12.
265
O nome do referido aldeamento não foi citado em nenhuma parte do referido relatório, mas é bem
provável que ele estaria localizado no alto rio Negro onde se encontravam os maiores contingentes de
indígenas aldeados.
266
Relatório que a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas apresentou na abertura da sessão
ordinária em o dia 3 de maio de 1859 Francisco José Furtado, presidente da mesma província, 12.
267
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op. cit, 2009, 175-206
109

estabelecer uma administração leiga dos aldeamentos, mantendo a atuação religiosa sobre
seu controle.
A historiografia já demonstrou casos em que os padres acabaram também por
ocupar a função de diretores.268 E na Amazônia não foi diferente, em 1853, alguns anos
após a instalação do aparelho administrativo da nova província do Amazonas, dois
capuchinhos ocuparam os cargos de diretores: Frei Pedro de Ceriana no aldeamento de
Andirá269 habitada por indígenas da etnia Maués e Frei Gregório José Maria de Bene no
aldeamento do Uapés e Içana, localizados no rio Negro.270 Esses padres já estavam no
Brasil desde a década de 1840 quando, segundo Márcio Couto Henrique, iniciaram as
negociações das autoridades imperiais para a vinda de missionários da Ordem dos Frades
Menores Capuchinhos.271 A partir disso, eles ficaram responsáveis pela criação de
aldeamentos e a catequização dos indígenas. Henrique assevera como desde o princípio
o Estado imperial lançou decretos definindo regras de funcionamentos para as missões
visando “impedir a reprodução da experiência missionária jesuítica, que no período
colonial ficou caracterizada por grande autonomia diante do governo”. 272 Os capuchinhos
enfrentaram muitos desafios durante todo o período de atuação missionária na Amazônia,
como a falta de adequação dos padres à região e até dificuldade de entrar em acordo com
as ordenações das autoridades imperiais.
Conforme se foram expandindo os números de aldeamentos, os diretores
passaram a ser, em sua maioria, leigos – ou seja, não religiosos, escolhidos entre os “mais
adequados” na comunidade. Em 1856, dos 24 aldeamentos existentes distribuídos pelos
rios Amazonas/Solimões (13), Madeira (6), Negro (3), Branco (1) e Purus (1), apenas o
aldeamento de Porto Alegre no rio Branco onde habitavam indígenas das etnias
“Macuxis, Uapixanas, Pauxianas e outras” possuía um missionário, Frei Joaquim do

268
Manuela Carneiro da Cunha exemplifica alguns casos de aldeamentos que foram dirigidos por
missionários nas províncias, ver: CUNHA, Manuela Carneiro de. Política Indigenista do século XIX. In:
CUNHA, Manuela Carneiro de (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras;
Secretária Municipal de Cultura; FAPESP, 1992, p. 140.
269
Em 1854, o aldeamento de Andirá foi extinto e o Frei Pedro de Ceriana foi enviado para o rio Purus sob
a responsabilidade de fundar duas missões em suas margens. Como apresentado no capítulo 1, o rio Purus
começará a ser alvo de diversas empreitadas das autoridades públicas que na esteira do deslocamento de
fronteiras tentavam estender sua presença àquela região.
270
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1 de outubro de 1853, em que
se abriu a sua 2 sessão ordinária, pelo presidente da província, Herculano Ferreira Penna, p. 53-54.
271
HENRIQUE, Marcio Couto. Op Cit. 2018, p. 53
272
Idem. p, 55-56.
110

Espírito Santo Dias e Silva.273 Tirando cinco aldeamentos sem diretores, os demais eram
ocupados por não-religiosos. O aumento de leigos nesses cargos além de já estar previsto
pelo Regulamento das Missões se deveu ainda à escassez de missionários por que passou
a região no decorrer da segunda metade do século XIX. De toda forma, a concentração
dos cargos de diretores, pelo menos até 1866, em figuras leigas reiterou hierarquias
existentes de diferenciação social já presentes na sociedade amazônica, possibilitando a
centralização do controle da força de trabalho dos povos indígenas na figura dos diretores.
Isso ocorria porque eram os diretores que detinham as principais funções como
dirigir as aldeias e fazer contato com as populações não aldeadas em seu distrito de
atuação. Também lhes cabia uma das principais responsabilidades que era coordenar o
fornecimento regular de índios, contratados mediante o pagamento de salários, para
atender às obras públicas e particulares. Considerados como trabalhadores livres, findos
os contratos, os indígenas deveriam retornar a seus sítios e aldeias274. Os particulares para
requerem aldeados deveriam emitir pedido para os diretores parciais para liberar o acesso
ao serviço e combinar os pagamentos. Devido a isto, quem exercia os cargos de diretor
parcial de índios manuseava poderes muito requisitados que originaram disputas
especialmente em torno do controle da força de trabalho dos indígenas. Em 1862, por
exemplo, Saturnino Ferreira da Paixão foi preso por crime de resistência, após se negar a
liberar indígenas do aldeamento sob seu comando para trabalhar na feitoria de salga de
peixe pertencente ao Capitão José Casimiro Ferreira do Brado. Saturnino alegou ter
impedido a ida dos indígenas devido à falta de documentos que comprovassem a
permissão para aquele serviço. Já o capitão o acusou de controlar a liberação dos
indígenas apenas para pessoas de seu afeto. As queixas contra os diretores de índios e o
uso indevido de indígenas para seu benefício próprio ocorriam com frequência. Era de
conhecimento de todos que as populações indígenas eram exploradas, em especial, pelas
autoridades, a quem em tese caberia a responsabilidade de protegê-las, mas que usavam
do seu trabalho, muitas vezes, sem qualquer pagamento.
O viajante Henry Walter Bates, durante sua estada na província do Amazonas, na
década de 1850, indicou que a presença dos diretores nos aldeamentos era a principal

273
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial pelo excelentíssimo senhor doutor João Pedro
Dias Vieira, digníssimo presidente desta província, no dia 8 de julho de 1856 por ocasião da 1ª sessão
ordinária da 3ª legislatura da mesma Assembleia, p. Mapa 11.
274
MELO, Patrícia. Op Cit. 2012
111

causa para o esvaziamento deles. Quando visitou o aldeamento de Matari, formada por
indígenas da etnia Muras, Bates declarou que:
(...) O governo havia enviado recentemente um supervisor para a aldeia
com o objetivo de tornar mais submissos aqueles selvagens, até então
intratáveis. Isso entretanto, não pareceu ter dado outro resultado senão
o de afugentar os índios, fazendo-os voltar aos seus antigos e solitários
refúgios nas margens de lagoas e canais, pois eram muitas as famílias
que já haviam ido embora.275

As impressões de Henry Bates acerca dos diretores não eram as melhoras, ele os
classificava como “déspotas, os quais (...) usam os índios em seu proveito particular”. Ao
visitar o Japurá – um dos 24 aldeamentos existentes até final da década de 1850 -
conheceu José Monteiro Crisóstomo diretor dos índios daquele aldeamento e tenente
coronel do batalhão de Ega. O viajante descreve o diretor Crisóstomo como “um
mameluco magro e rijo que era a pessoa mais ativa e empreendedora do lugar” que tinha
“na época, 200 indígenas do Japurá a seu serviço. Ele próprio era meio-índio, sendo, no
entanto, um patrão muito mais inclemente para os selvagens do que os próprios
brancos”.276 De fato, segundo informações do relatório de 1855, o aldeamento do Japurá
possuía 61 ‘casas’ e era formado por indígenas de variadas etnias como Miranhas,
Carapanas, Curetus e Jacunas, contabilizando ao todo 296 aldeados (154 adultos e 142
menores). Enquanto José Monteiro Crisóstomo foi diretor, eles plantavam mandioca e
teciam maqueiras como declaram as informações oficiais. 277
Condenando essas mesmas ações ilegais executadas pelos diretores parciais, o
presidente da província Manoel Clementino Carneiro da Cunha, em 1862, ao fazer um
levantamento sobre o funcionamento do Regulamento de 1845 na província, reclamava
que:
Dos diretores parciais com honras de tenente coronel pouco se deve
esperar. A experiência aí está para demonstrar. Os destas províncias são
como os das outras. Em geral não se contentam com as honras de
Tenente Coronel supõe que o cargo lhes foi dado para ter
trabalhadores com mais facilidade e cuidar de seus interesses
particulares. Não é raro até, como já tive ocasião de ver, que por escrito
sustentem que lhes cabe o direito de usufruir dos índios.278 [grifo nosso]

275
BATES, Henry Walter. Op Cit. 1978, p. 128.
276
Idem, p. 201.
277
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial, pelo excelentíssimo senhor doutor João
Pedro Dias Vieira no dia 8 de julho de 1856 por ocasião da primeira sessão ordinária da terceira legislatura
da mesma Assembleia, p. Mapa 11.
278
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa da província do Amazonas pelo Exmo. sr. dr. Manoel
Clementino Carneiro da Cunha, presidente da mesma província, na sessão ordinária de 3 de maio de 1862.
Pará: Typ. de Frederico Carlos Rhossard, 1862, p.15.
112

O exercício do cargo de diretor de índios tornou-se tão essencial para a lógica de


controle sobre a mão de obra indígena que, mesmo após a extinção do cargo de diretores
parciais de índios em 1866, alguns sujeitos continuavam se valendo dessa posição para
garantir o acesso à mão de obra de indígenas. Em 1869, na vila de Serpa, José Góis da
Costa foi denunciado por João Raimundo Rodrigues por arrogar “a si o pomposo título
de Diretor dos Índios de Autás e nesta suposta qualidade tem cometido os mais excessos
contra aquela pobre gente”. Rodrigues relatava ainda as prisões indevidas feitas aos
indígenas Vitorino, Manoel Cardoso, Julião e Thomé que postos em troncos foram
castigados durante dias279. Seja ocupando cargos dos Corpos de Trabalhadores ou das
Diretorias, esses indivíduos se apoderavam das prerrogativas estabelecidas via legislações
para satisfazer suas próprias demandas de mão de obra ou as necessidades de braços de
seus correligionários. Exercer cargos de mando e controle no Amazonas, na segunda
metade do XIX, representava um meio de reiterar as hierarquias sociais e fortalecer as
bases da distinção social nas quais uns eram alvos de coerção ao trabalho enquanto outros
empenhavam papéis de domínio e controle. Muitos homens para melhorar sua posição na
hierarquia social amazônica utilizaram desses cargos, chegando mesmo a acumular várias
dessas funções na administração pública como veremos no capítulo 3.
Depois de 1866, Benedito Maciel destaca que as ações do governo da província
do Amazonas começaram a se tornar insuficiente para a manutenção dos aldeamentos em
funcionamento acarretando a diminuição deles.280 Dentre os diversos fatores de sua
decadência na região, o autor destaca as constantes interferências do governo provincial
nas alocações das missões e os parcos recursos destinados para o funcionamento delas.
Outra questão era a dificuldade encontrada pelas autoridades públicas e religiosas “para
conseguir novos missionários no exterior, aclimatá-los nos sertões da província e até
mesmo conseguir ajudantes como os intérpretes, e os trabalhadores para construir uma
nova Missão entre os índios”.281
Todavia, os indígenas aldeados continuaram a ser enviados para o serviço das
obras públicas. Em 1873, por exemplo, constavam 35 indígenas originários dos
aldeamentos de Abacaxis, Canumã e São Gabriel. Abacaxis e Canumã estavam situados

279
Sumário de Culpa procedido por crime de Responsabilidade. Manaus. 1869. Localização:
JD.JD.PJ.SCRP1869:07(03). AGTJAM
280
MACIEL, Benedito do Espírito Santo Pena. Op Cit, 2015, p. 175.
281
Idem, p. 175.
113

no percurso do rio Madeira e São Gabriel no alto rio Negro. 282 Ao mesmo tempo, com o
aumento da chegada de migrantes cearenses na cidade de Manaus, podemos notar uma
diminuição da presença de indígenas provenientes dos aldeamentos, pois as autoridades
públicas começaram a recomendar que migrantes fossem empregados nas obras públicas,
“com o fim de lhes proporcionar os meios de subsistência para ali se estabelecerem”. 283
Em 1879, o presidente da província Barão de Maracajú, ao referir-se às obras públicas
em andamento, indicou que continuassem a “empregar neste serviço os emigrantes
cearenses, a [sic] proporção que chegavam na capital até tomarem destino para os núcleos
coloniais”. O Barão felicitava o fato de que “no mês de dezembro último tinha o numero
deles atingido 446, que bons resultados deixaram pelos seus trabalhos”.284 Apesar disso,
não podemo-nos iludir considerando que, com a chegada dos trabalhadores migrantes,
tenha diminuído o interesse das autoridades públicas e privadas pela exploração da mão
de obra indígena.
Na verdade, a força de trabalho indígena presente nos aldeamentos e fora deles
continuaram figurando como essencial para a lógica de produção econômica no vale
amazônico. Uma publicação anônima no periódico Commercio do Amazonas, em 1875,
exemplifica essa situação. Nela o autor denunciava como esses agentes [os diretores de
índios] “quase sempre pouco escrupuloso, lhes servem [dos índios] de escravos”.
Questionava também que a existência dos aldeamentos afirmando que “longe de serem
utilizados à causa da humanidade, são prejudiciais até aos interesses da região em que
estão estabelecidos”. Para comprovar seu argumento, destacou um fato ocorrido no
Aldeamento de Sapucaia-Oroca, localizado às margens no rio Madeira, onde os diretores
arrancavam “índios (...) não das malocas; mas das feitorias dos menos poderosos” e
levados para servir as próprias autoridades no corte de lenha e fabricação de seringa 285.
A maior preocupação do autor da publicação estava centrada no fato de os diretores,
usando as prerrogativas instituídas pelo Regulamento das Missões, estarem exercendo
domínio quase que exclusivo sobre a mão de obra indígena em detrimento da causa da
humanidade que seria a transformação dos indígenas em eficientes trabalhadores

282
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da 11a Legislatura
em 25 de março de 1873 pelo presidente da província, bacharel Domingos Monteiro Peixoto, Anexo 5, p.
1.
283
Fala com que abriu no dia 25 de agosto de 1878 a 1.a sessão da 14.a legislatura da Assembleia Legislativa
Provincial do Amazonas o exm. o sr. Barão de Maracajú, presidente da província. p, 45.
284
Fala com que o exm. o sr. Barão de Maracajú, presidente da província do Amazonas, no dia 29 de março
de 1879 abriu a 2.a sessão da 14.a legislatura da Assembleia Legislativa Provincial, p. 38.
285
Commercio do Amazonas, 24 de julho de 1875, nº 148, p. 01.
114

disponíveis para os mais variados serviços. Os protestos raramente debatiam o fato de


como essas ações dos diretores colocavam em questão a liberdade indígena,
constantemente negada pelos atos desses agentes públicos assim como de particulares.
A partir da segunda metade do século XIX, a região da província do Amazonas
será vista como uma das principais áreas de interesse do Estado brasileiro, que juntamente
com as investidas expansionistas do capitalismo internacional, provocaram uma massiva
transformação socioeconômica. Dessa forma, marcado pelo contexto das frentes de
expansão, esse movimento rumo aos altos rios da Amazônia desencadeará um processo
de agravamento das políticas coercitivas, tanto pela via legal quanto ilegal, que incidirá
sobremaneira em direção aos habitantes dos sertões amazônicos. Além de acionar as
legislações até aqui analisadas para prover sua demanda por força de trabalho, o governo
provincial discutirá a aprovação de projetos voltados a oferecer saídas eficazes para uma
das questões mais constantemente reclamadas pelas autoridades públicas e por
particulares, “a falta de braços”. No próximo tópico, nos deteremos em examinar os
projetos apresentados na Assembleia Constituinte da província do Amazonas entre 1850
e 1880, que tinham o objetivo de delinear propostas para a ordenação do mundo trabalho,
e, mesmo que a maior parte deles não tenham se tornado leis provinciais, eles nos
permitem reconstruir os caminhos defendidos pela elite para as populações livres da
região.

2.2 – Os debates para organização do mundo do trabalho

Novamente acionamos o relato do viajante inglês Walter Henry Bates, que viveu
na região amazônica entre 1848 e 1859, no qual é possível encontrarmos uma minuciosa
descrição do mundo do trabalho da região. Bates oferece uma detalhada exposição de
como indígenas, mestiços e negros eram a força motriz da produção econômica do vale
amazônico, visto que realizavam praticamente todas as ocupações da província, tais
como: o corte de madeira, a salga do pirarucu, a coleta de ovos de tartaruga, a força motriz
das embarcações, dentre outras. Apesar disso, o viajante entendia que a província do
Amazonas ainda tinha muitas barreiras para desenvolver com vigor os negócios locais e,
em especial, a agricultura, devido ao contingente da força de trabalho disponível. Após
ouvir alguns comerciantes locais, o viajante declarou que:
Todos eles apresentam as mesmas justificativas pelo fato de não se
interessarem pela agricultura: a dificuldade de conseguir braços para a
115

lavoura. Nada pode ser feito no que respeita aos indígenas; na verdade,
eles estão abandonando a região rapidamente, e a importação do
escravo negro, no atual espírito – aliás digno de louvor – em que se
encontram os brasileiros está fora de questão. Há de haver uma maneira
de se formar uma classe trabalhadora num país tropical e novo sem
recorrer à escravidão, e essa maneira tem de ser encontrada para que
essa soberba região possa ter o promissor futuro que o seu ameno clima
e sua exuberante fertilidade parecem oferecer a ela, tornando-se o
núcleo de numerosa população civilizada e feliz. 286

O relato do viajante faz um balanço da visão sobre mundo do trabalho na


Amazônia, compartilhada por diversas autoridades públicas e particulares nesse período,
apontando para: 1) a dificuldade de se conseguir braços para os empreendimentos dos
locais; 2) a demasiada autonomia das populações indígenas e 3) a diminuta população
escravizada. Essas questões estavam muito próximas daquelas articuladas pelas elites
locais e as autoridades provinciais quando debatiam sobre esse tema. Em 1851, um
levantamento populacional concluía que a província do Amazonas contava com 29.904
habitantes, sendo livres 29.048, 106 estrangeiros e 750 escravizados 287. Essa estatística
ainda que bastante incompleta por não levar em consideração as etnias indígenas que
viviam nas matas já apontava para um padrão populacional que perdurou até o fim da
escravidão na região, onde 97% da população era juridicamente livre e 3% tinham o status
de escravizadas. Todavia, como apresentamos no tópico anterior, ser livre não garantia
uma vida longe de ameaças do trabalho compulsório ou da escravidão ilegal, no decorrer
do século XIX. Em todo território do Império brasileiro esses indivíduos foram alvos de
diversas políticas que visavam restringir a autonomia dos trabalhadores e obrigá-los ao
serviço.
Na primeira metade do século XIX, o Império tentou por duas vezes legislar o
trabalho livre. A primeira tentativa foi por meio da Lei de 1830 que, de acordo com
Lamounier, era composta por artigos simples e vagos e tinha como foco abranger tantos
trabalhadores nacionais quanto estrangeiros. Também estabelecia a assinatura de um
contrato por escrito em que estariam estipuladas as obrigações do serviço por tempo
determinado ou por empreitada. Não havia nenhuma prescrição acerca do tempo de
duração do contrato nem sobre possíveis penas em caso de seu descumprimento. Já a
segunda Lei de 1837, voltava-se para a regulamentação dos contratos de trabalho

286
BATES, Walter Henry. Op. Cit. 1979.
287
Relatório que em seguida ao do exm.o snr. presidente da província do Pará, e em virtude da circular de
11 de março de 1848, fez, sobre o estado da província do Amazonas, depois da instalação dela, e de haver
tomado posse o seu 1.o presidente, o exm.o snr. João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, p. 45.
116

exclusivamente efetivado por estrangeiros. 288 Esses dois diplomas legais tiveram baixa
efetividade e quase não foram utilizados para o acesso aos trabalhadores livres289. De
toda forma, essas leis representam como o Estado imperial estava preocupado em
formular políticas de organização e controle da mão de obra livre, tanto nacional quanto
estrangeira. Com o fim do tráfico ilegal de africanos em 1850 e a aquisição de mão de
obra escravizada cada vez mais difícil, a questão de controle da força de trabalho livre se
impôs fortemente, tornando a experiência da liberdade ainda mais precarizada, sobretudo
para a população negra (livre e liberta). Durante todo o Oitocentos, a experiência da
população livre pobre no mundo do trabalho carregou muitas contradições, pois, como
destaca Joseli Mendonça, “o trabalho livre se constituía por uma série de medidas
coercitivas levadas a cabo até mesmo pelo poder público – pela lei, pela Justiça”.290
Assim sendo, na esteira das prerrogativas estipuladas pelas legislações
estabelecidas na primeira metade do século XIX e buscando resolver a demanda cada vez
mais crescente por mão de obra, não é à toa que os deputados da Assembleia Legislativa
da província do Amazonas iniciaram seus trabalhos na recém-criada instituição já
preocupados em resolver essa questão. Quando da instauração do aparelho administrativo
da província do Amazonas, em 5 de setembro de 1852, ainda eram vigentes os “Corpos
de Trabalhadores”, que devido aos diversos problemas referentes à sua aplicação seriam
extintos em 1862, e o Regulamento das Missões de 1845 que perduraria como a única lei
indigenista até final do regime imperial brasileiro. Entretanto, ambas as leis não atendiam
às expectativas das elites locais por força de trabalho e logo em uma das primeiras seções
da Assembleia Legislativa os parlamentares apresentaram projetos objetivando legislar
sobre os braços livres e, assim, oferecer uma alternativa de obtenção de mão de obra. Esse
projeto do parlamentar amazonense estava interligado aos inúmeros debates que

288
LAMOUNIER, Maria Lucia. Op. Cit. 1988.
289
LAMOUNIER, Maria Lucia. Op Cit. 1988.
290
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. Cit., 2012, p. 46. Sidney Chalhoub aborda o tema dos
significados da liberdade na experiência da população negra (escravos e livres) desde suas primeiras
pesquisas. Ultimamente, através do conceito de precarização da liberdade, o autor tem enfatizado como a
liberdade era uma experiência arriscada para os negros – livres e libertos – africanos e crioulos, pois tinham
sua vida e mobilidade marcadas pela escravidão, pelo perigo de cair nela, ou voltar para ela. Ver:
CHALHOUB, Sidney. Op cit, 2011; CHALHOUB, Sidney. Op cit, 2009, pp 23-62; CHALHOUB, Sidney.
Op. cit, 2010; CHALHOUB, Sidney. Op cit, 2012. A precarização da liberdade e o caráter extremamente
coercitivo aplicadas aos trabalhadores livres eram situações vivencias pelas pessoas livres, sobretudo
negros (livres e liberto), em outras partes da América e da África, ver: Cooper, Frederick, REBECCA J.
SCOTT, and THOMAS C. HOLT. Op cit, 2005. HOLT, Thomas C. The Problem of Freedom. Race, Labor,
and Politcs in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore and London: Johns Hopkins University Press,
1992; STEINFELD, Robert. The Invention of Free Labor: The Employment Relation in English and
American Law and Culture. Chapel Hill (NC): North Carolina University Press, 1991; STEINFELD,
Robert. Op cit, 2001.
117

afloravam por todo território brasileiro, no decorrer da segunda metade do século XIX,
acerca dos caminhos a serem adotados para a superação da escravidão, o incentivo à
imigração estrangeira e branca e como incorporar o trabalhador nacional no mercado
laboral.291 De toda forma, veremos ao longo deste capítulo que as propostas apresentadas
na recém-criada Assembleia provincial guardavam uma série de continuidades com as
leis anteriores como também procuraram selecionar alguns problemas além de estarem
em estreita conexão com o deslocamento de fronteiras em voga na região.
Na sessão do dia 9 de setembro de 1852, o deputado padre João Antonio da Silva
apresentou o projeto nº 7 com o objetivo de sanar “a falta de braços que sofrem os
lavradores” e impedir que esses “homens bons” buscassem “recursos a vida humana no
tráfico de permuta ou para melhor dizer no de regatão”. Os regatões ou “mascates
fluviais” eram personagens antigos do processo de ocupação do vale amazônico. A
presença desses comerciantes remontava ao período colonial e tinha suas raízes nos
antigos portugueses mascates que negociavam ao retalho nos mais distantes lugares da
região. Na Amazônia, segundo Antônio Alexandre Cardoso, esses personagens:
(...) tornaram-se hábeis navegadores de caminhos fluviais. Sua atuação
tinha base em trocas entre produtos naturais (sobremaneira
extrativistas) e quinquilharias, como tecidos, calçados, utensílios
domésticos, facões, terçados, entre outros provimentos criadores de
novas necessidades e usos entre as populações contatadas. Seus
circuitos davam fôlego e capilarizavam atividades econômicas pelo
interior amazônico, aproveitando especificidades pré-existentes da
produção e do trabalho locais.292

Alcançando as áreas distantes dos sertões amazônicos pelo emprego dos seus giros
comerciais, os regatões tinham uma relação dúbia com os poderes provinciais. Ao mesmo
tempo que seus serviços foram aproveitados em diversas ocasiões como auxiliares nas
expedições exploratórias e como intermediários no contato com as etnias indígenas dos
sertões,293 eles eram também acusados de “explorar, depravar e desonrar” as populações
locais assim como acobertarem desertores, escravizados e outros transgressores em suas

291
STOLCKE, Verena; HALL, Michael. A introdução do trabalho livre nas fazendas de café de São Paulo.
Revista Brasileira de História, v. 3, n. 6, p. 80-120, 1983.
292
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op. cit, 2015. p. 04
293
Alguns regatões chegaram até a ocupar cargos na administração provincial, a exemplo de Manuel
Urbano, estudado por Antonio Alexandre Cardoso, que “foi um destacado Encarregado e posteriormente
Diretor Parcial de Índios, responsável por diversos “descimentos” no rio Purus”. Urbano, classificado por
muitos de seus interlocutores como “um preto (...)”, auxiliou diversas expedições governamentais e de
estrangeiros pelo rio Purus, segundo Cardoso, ele “teve seus saberes e experiências aproveitados por
diversos interlocutores, mas também soube manejar seus próprios interesses, tecendo redes de relações que
asseguraram a prosperidade de seus negócios pelo interior, muitas vezes em detrimento das populações
indígenas”. CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op cit. 2017
118

embarcações, sendo por isso alvo de diversas suspeitas e fiscalizações. Dessa forma, em
1852, ao se referir aos regatões em um tom acusatório o vice-presidente da província do
Amazonas declarava que “esta maneira de negociar é não só imoral, como muito contrária
a civilização dos povos e ainda também por ser uma das causas principais porque muitas
povoações têm desaparecido e algumas vilas se encontravam abandonadas”294. Essa
depreciação direcionada aos regatões estava conectada à influência exercida por esses
sujeitos nessas áreas longe do controle estatal e ainda pelo fato da maioria dos negócios
realizados por eles não passarem pelo crivo da tributação. Nessa direção, as autoridades
públicas reclamavam ainda da falta de pagamento dos impostos, da ausência de regulação
da relação de troca com os índios295, do controle exercido sobre a circulação e
comercialização dos produtos nativos e sobre a força de trabalho dos indígenas. O último
ponto era um dos que causavam mais queixas entre os moradores locais e regatões ou
missionário e regatões que denunciavam constantemente como esses comerciantes
limitavam o acesso à mão de obra disponível na região.
Dessa maneira, o parlamentar mostrava ter pleno conhecimento dos fatos
ocorridos nos sertões amazônicos quando o assunto era acesso à força de trabalho e a
grande recorrência de notícias acerca da prática massiva de coerção compulsória ao
trabalho de indígenas, mestiços e negros, todos juridicamente livres. Além do mais, era
compartilhado entre todos os deputados provinciais – na verdade toda a elite local – que
os indígenas constituíam a maior parte da força de trabalho, fossem eles cooptados nos
aldeamentos ou simplesmente escravizados; os indígenas eram o suporte de toda cadeia
produtiva da região. Com o vale amazônico entrando no centro dos interesses
internacionais era necessário forjar novas medidas que viabilizassem o acesso a essa mão
de obra, mas, como veremos, até a década de 1870 o Estado e particulares continuaram
acionando estratégias já consolidadas de imposição ao trabalho sobre a população livre e
não-branca. Dessa forma, com os olhos fitos no contexto da época é que o deputado padre
João Antonio Silva apresentou seu projeto de lei em 9 de setembro de 1852. Ao
analisarmos os artigos da proposta de lei, fica evidente como muitas das estratégias de

294
Fala dirigida à Assembleia Legislativa da província do Amazonas, na abertura da primeira sessão
ordinária da primeira legislatura, pelo Exm.o vice-presidente da mesma província, o dr. Manoel Gomes
Correa de Miranda, em 5 de setembro de 1852. P. 20.
295
Márcio Couto Henrique pontua que a experiência de trocas entre regatões e indígenas precisam ser
analisadas também através do protagonismo indígena, pois “muito embora pudessem ser prejudicados [os
índios] em determinadas transações, ofertando mais do que recebiam, os índios possuíam certos parâmetros
na negociação com os regatões”. O autor descrever inúmeros situações de enfrentamento dos indígenas
perante os regatões corroborando para desmistificar a imagem do índio como ingênuo e vítima passiva
comum nas falas governamentais e até na historiografia. HENRIQUE, Marcio Couto. Op. cit, 2018.
119

coerção ao trabalho presentes tendiam a atualizar certas prerrogativas antigas como


também reiterar práticas costumeiras. Os artigos propostos eram os seguintes:
Art. 1º. Fica livre a todo o morador poder ir contratar a troca dos
indígenas bravios com os principais das nações selvagens.
Ar. 2º Feita a troca o indivíduo apresentar-se-á perante o Juiz de Paz
mais vizinho, para assinar um termo de educação por espaço de dez
anos.
Art 3º Concluídos os dez anos, de que trata o artigo antecedente poderá
o índio ser aldeado.
Art 4º Impor-se-á a multa de cem mil réis e vinte dias de prisão a todo
solicitador de índios de casa de seus amos; e os aliciados serem
obrigados, por qualquer autoridade judiciaria e militar, a voltarem para
a casa dos referidos amos.
Art 5º Ficam revogadas todas as leis em Contrário.
Paço da Câmara dos Deputados Provinciais, 9 de setembro de 1850 –
João Antonio da Silva. 296

No primeiro artigo do projeto o padre Silva propunha estabelecer que ficasse


“livre a todo morador poder ir contratar a troca dos indígenas bravios com os principais
das nações selvagens”297. Logo de início o parlamentar buscava eliminar toda e qualquer
intermediação estatal ou religiosa entre moradores e os indígenas, uma decisão que
objetivava resolver um dos maiores problemas das legislações anteriores. Fosse no
Corpos de Trabalhadores ou no Regulamento das Missões de 1845 a necessidade de
acessar a força de trabalho por meio da mediação das Câmaras, comandantes e diretores
era alvo de muitas críticas. Com essa medida se pretendia acelerar o descimento dos
indígenas das matas, liberar suas terras e transformá-los em mão de obra nos
empreendimentos, permitindo ainda ao Estado onerar-se dos custos desse processo.
Todavia, a proposta do deputado não era de toda inédita, examinando os artigos
propostos fica perceptível a conexão com as medidas anteriormente determinadas pela
Carta Régia de 1798.298 No segundo artigo, por exemplo, o padre Silva estabelece que
após as trocas os moradores deveriam se apresentar a um “Juiz de Paz mais vizinho, para
assinar um termo de educação por espaço de dez anos”. Como apresentado anteriormente,
essa era justamente umas das possibilidades abertas pela Carta de 1798 para acessar a
mão de obra quando permitia que particulares descessem indígenas e, após assinarem um
Termo de Educação e Instrução perante a Câmara, ganhassem o direito de usufruir do

296
Idem.
297
Sessão de 9 de setembro de 1852 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da
Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1852-1853, p. 05. APEAM
298
Sobre o funcionamento da Carta Régia de 1798 na Amazônia ver: SAMPAIO, Patrícia M. Op. cit, 2012.
120

trabalho para seu uso pessoal. A inovação do deputado foi acrescentar o prazo de 10 anos
para a duração dos contratos entre moradores e indígenas.
O padre João Antônio Silva também deixa bem claro a quem pretendia atingir
com o projeto, ao apontar que o contrato devia ser realizado com “indígenas bravios com
os principais das nações selvagens”, ou seja, as populações que ainda viviam errantes nas
matas sem nenhuma fiscalização estatal. Grosso modo, conforme a visão oficial do Brasil
imperial as populações indígenas eram qualificadas entre mansos e bravos. Os primeiros
eram aqueles já inseridos na “civilização” que vivendo em aldeamentos, nas vilas ou
próximos a elas, muitos falavam o português. Na Amazônia, eles eram qualificados com
o termo tapuia que geralmente era usado para qualificar indígenas que suspostamente
eram destribalizados e, sobretudo, estariam enquadrados nas normas do mundo do
trabalho.299 Já os segundos, a quem o deputado Silva esperava atingir com seu projeto,
eram comumente descritos enquanto “selvagens”, arredios às benesses da civilização e
principalmente um entrave para à expansão de fronteiras. Dessa forma, o parlamentar,
conectado aos projetos de alargamento das fronteiras econômicas, elaborou medidas que
davam continuidade às práticas compulsórias estabelecidas desde final do século XVIII,
reforçando o caráter coercitivo das políticas oficiais voltadas às populações indígenas.
O autor do projeto não explica quais seriam exatamente as bases que regulariam
as tais “trocas” por “indígenas bravios” nem delimita um número de “braços” a serem
arranjados por meio dessa relação um tanto quanto comercial. Também não ocorre
nenhuma menção a pagamento, a limite de idade ou a tipos de serviços que poderiam ser
feitos pelos indígenas. Em compensação, o deputado Silva, preocupou-se em estabelecer
multa e pena de prisão para os que tentassem aliciar os indígenas solicitados da casa de
“seus amos”. Dessa maneira, apesar da existência do Regulamento das Missões de 1845,
o deputado propunha outra legislação para viabilizar cooptação de braços indígenas sem
grandes empecilhos, uma proposta mais em consonância com os desejos da elite
amazonense. Parecia ser intuito do deputado descentralizar e desburocratizar as vias de
acesso à mão de obra e, assim, abrir os caminhos para os “homens bons” da província
solucionarem seus problemas de oferta de trabalhado indo diretamente aos sertões cooptá-
los. Além do mais esta seria uma maneira do Estado imperial se eximir de questões como
tratamento e controle dos indígenas bravios, deixando o poder de resolução dessas

299
Na colônia, o temo tapuia era usado para descrever os indígenas que não teriam ascendência tupi,
falavam outros idiomas e, geralmente, descritos como inimigos, agressivos e resistente ao avanço lusitano.
MONTEIRO, John Manuel. Op. cit, 2001.
121

questões para os particulares. O projeto acabou não ganhando muitos apoiadores e após
a segunda leitura foi negado. Esse projeto trazia em seu cerne a reiteração de antigas
formas de arregimentação que ganhavam novo impulso no cenário da expansão das
incursões de caráter econômico na região, baseada na defesa de cooptação compulsória
de trabalhadores e no trabalho não remunerado direcionado principalmente aos povos
indígenas dos sertões.
Ainda em 1852, outro projeto com o objetivo de organizar o acesso à mão de obra
e seu controle foi apresentado, dessa vez bem mais detalhado e estruturado que o anterior.
Essa proposta pretendia reinstalar os “Corpos Ligeiros”, nomenclatura pela qual ficaram
conhecidas os Corpos de Milícia propostos pela Carta Regia de 1798 na região
amazônica. Essa legislação colonial marcou determinantemente as ações políticas dos
governantes e da elite local em relação aos tipos de projetos que se elaboravam para o
mundo do trabalho no decorrer do século XIX, fortemente marcado pela imposição do
trabalho à população livre e liberta sobretudo àqueles de origem negra, indígena e
mestiça. Apresentado na sessão do dia 14 de outubro pelo deputado Clementino José
Pereira Guimarães, propunha no primeiro artigo a criação na capital e “em todas as vilas
e freguesias da Província corpos que serão compostos de todos os homens livres, que não
puderem ser alistados Guardas Nacionais”300. No segundo artigo determinava a
“denominação de Corpos de Ligeiros” que seriam “destinados para o serviço público, da
agricultura, comércio, navegação e indústria”.
Ao todo, o projeto original ganhou a nomenclatura de Lei nº 7 e era composto por
23 artigos, os quais estabeleciam as seguinte prerrogativas: os requerimentos de
trabalhadores seriam feito diretamente ao presidente de província, sem um número
mínimo ou máximo estabelecido; apresentado o pedido, os comandantes enviariam os
trabalhadores acompanhados de um guia e um termo de engajamento; os alistados não
poderiam se eximir dos serviços para qual seriam engajados; o mínimo de tempo seria de
seis meses e o máximo de um ano, com vencimentos de no mínimo 160 réis diários; caso
o engajado ou o engajante reclamassem de salários, esse problema seria arbitrado por um
Juiz de Paz; caso o engajado fugisse do serviço seria punido com prisão e, se houvesse
um sedutor, este seria penalizado com multa de 50$000 réis; se reincidisse na fuga por
mais de três vezes, o engajado teria seu tempo de serviço dobrado e ficaria empregado

300
Sessão de 4 de outubro de 1852 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da
Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1852-1853, p. 29. Arquivo Público do Estado
do Amazonas
122

nas obras públicas; só poderia sair do serviço depois de sanar todas suas dívidas, mesmo
se o tempo de um ano já tivesse extrapolado; o engajado não poderia se ausentar da
jurisdição a que havia sido destinado, se o fizesse poderia ser preso; se fosse encontrado
sem sua guia de engajamento, poderia ser preso pelo juiz de Paz ou por qualquer outra
autoridade; deveria ser reservada uma parte dos trabalhadores exclusivamente para o
serviço das obras públicas, os quais deveriam ser substituídos de três em três meses.
Quanto aos que ficariam isentos do alistamento, o projeto de lei liberava: os
maiores de 60 anos e menores de 12 anos;301 os aprendizes de ofícios mecânicos; os feitos
de fazendas rurais e de criação; filhos únicos e aqueles que apresentassem algum tipo de
doença que o inabilitasse para o trabalho. Na segunda discussão, foi requerido pelo
deputado Maximiano Paula Ribeiro o acréscimo da palavra companhia no artigo primeiro
do projeto302. Não há no projeto original nenhuma determinação acerca de como seriam
selecionados os comandantes dos “Corpos de Ligeiros”, apenas reservava essa
prerrogativa à seleção do governo da Província. Na terceira discussão do projeto, o
deputado Pereira Guimarães requereu uma alteração para incluir que os comandantes do
Corpo recebessem a “gradação de Major, e o de companhia a de Capitão, e além destes
que cada companhia tivesse um alferes”303. Muito provavelmente, esses cargos seriam
reservados aos “cidadãos de probidades” das vilas e freguesias da província que teriam o
controle sobre a distribuição dos trabalhadores.
Outro ponto a ser destacado no projeto é a aparente ausência de cortes étnicos ou
raciais que norteassem os alvos preferenciais do alistamento, todavia ao analisarmos o
artigo das “exceções” fica mais nítido quais grupos sociais deveriam ser alistados. Ao
reservar a arregimentação para “todos os homens livres da província”, aos “sem
propriedade declarada” e “sem ocupação declarada”, o deputado deixava expresso
nitidamente qual a camada social que pretendia atingir, que não por acaso compreendia a
grande parcela da população livre formada por indígenas, mestiços e negros que
compunham a sociedade amazônica. Em 1850, a maior parte dos habitantes detentores de
propriedades reconhecidas e com ocupações perfaziam cerca de menos de 10% da
população. Nos inventários post-motem de 1840-1850, os sujeitos declarantes estão
majoritariamente envolvidos com ocupações agrícolas, comerciais, alguns poucos em

301
No segundo debate do projeto, o deputado Michilles propôs que alterassem a idade para 50 e 18 anos.
Ementa que foi aprovada. Sessão de 15 de outubro de 1852.
302
Sessão de 14 de outubro de 1852 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da
Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1852-1853, p. 26. APEAM
303
Idem, p. 28. APEAM.
123

atividades urbanas e um alto índice de profissões indeterminadas.304 Ou seja, aqueles que


possivelmente teriam como comprovar suas propriedades e ocupação eram uma parcela
mínima da população amazonense, tornando os alvos desse projeto a ampla massa da
população que vivia de pequenas produções, da pesca e da coleta de produtos nativos.
Esse contingente era formado pela população de origem indígena, negra (livre e
liberta) e mestiça que compunham a base da força de trabalho na Amazônia. Enquanto
subia o rio Amazonas, o viajante inglês Henry Bates relatou diversos momentos em que
se deparou com esses sujeitos habitando as margens dos rios e em vilas, vivendo de suas
produções ou a serviço de outros. Ao passar por Serpa, localizado às margens do médio
Amazonas, visitou o sítio de João Trindade e sua esposa  mamelucos que cultivavam
arvores frutíferas, café, cacau, mandioca, salgavam peixe e produziam fumo. O inglês
descreveu a propriedade como muito próspera e que o trabalho na produção era realizado
pelo irmão de Trindade, seu cunhado, dois afilhados, uma escrava, um negro livre e sua
família, um ou dois índios além de uma família da etnia Mura. Ainda nessa propriedade,
o viajante encontrou um “negro livre, que tinha seu próprio sítio, distante dali um dia de
viagem” onde produzia farinha305. Apesar da maior parte dos indígenas, mestiços e negros
se aplicarem em diferentes atividades essas não eram vistas pelas autoridades como
“aptas” e muitos não teriam como possuir o comprovante de título de terras das
propriedades (nem mesmo as elites detinham), o que acaba por alocá-los como um dos
alvos do alistamento proposto pelo parlamentar.
Nesse sentido, o deputado Pereira Guimarães ao estabelecer as exceções apenas
para os sujeitos com “propriedade declarada” reiterava o lugar social a que as elites
esperavam restringir os “desclassificados sociais”, um espaço sempre associado ao
mundo do trabalho, ao controle e a coerção. Entretanto, como veremos mais a frente, toda
essa população alvo das políticas compulsórias ao trabalho, constituída majoritariamente
por indígenas, mestiços e negros, não se manterá afastada da arena dos embates em torno
dos limites da escravidão e da liberdade e imprimirá suas expectativas sobre essas
experiências.306 Em 1856, o deputado Pereira Guimarães requereu novamente que o
projeto fosse analisado, solicitando a formação de uma nova comissão para examinar os

304
SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Op cit. 2011.
305
BATES, Henry Walter. Op Cit. p. 126
306
Esse tema será explorado no capítulo 4.
124

artigos e apresentar parecer307. Cinco deputados foram escolhidos, mas nem naquele ano
nem nos anos seguintes emitiram qualquer posicionamento.
No geral, esses diplomas legais voltados a legislar sobre a mão de obra para os
empreendimentos em voga na região estavam centrados em atingir principalmente
aqueles habitantes livres, não-brancos e pobres que viviam nas cidades ou vilas sem
estarem fixados em alguma ocupação, fosse para o serviço público ou privado. Somado
a isto, as legislações buscavam ainda resolver uma questão de sumo interesse para a elite
e o Estado: a situação dos “índios bravios” que não estavam sob o domínio dos
aldeamentos e viviam nas matas impedindo o avanço das fronteiras e a exploração dos
recursos naturais. Inclusive, um caminho apontado pelos parlamentares foi deixar a
resolução desse “problema” na mão dos particulares, como propuseram alguns projetos,
uma forma de elaborar mecanismo de imposição ao trabalho ao mesmo tempo que
conseguiriam “limpar” ou até mesmo “apagar” (por meio das técnicas violentas de
invasão) a presença desses indivíduos das terras e torná-las abertas para a exploração.308
Ao fim, não fica explícito nos anais da Assembleia Constituinte da província do
Amazonas quais seriam os motivos para os projetos dos deputados João Antônio Silva e
Clementino, ambos apresentados em 1852, não terem sido aprovados visto que se
propunham a sanar um dos problemas mais latentes do período: a organização da mão de
obra disponível. Contudo, podemos aventar algumas razões para essa negativa: primeiro,
a falta de recursos enfrentada pela recém-criada província era uma questão
constantemente levantada quando se discutiam a aplicação de novos projetos naquela
década; segundo: os dirigentes da província, durante a década de 1850, estavam mais
inclinados em aprovar leis direcionadas a regulação do comércio, criação de impostos,
aumento de seus vencimentos, aprovação de recurso para edificação de prédios públicos,
elevação de vilas à categoria de cidades e outras decisões de cunho administrativo. Não
que isso signifique um total desinteresse por parte das autoridades públicas pela questão
da organização e controle da força de trabalho. De fato, foi mediante essas ações
administrativas que o Estado procurou expandir sua presença na região, principalmente

307
Sessão de 14 de julho de 1856 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da
Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1856-1857, p. 07. APEAM.
308
Na província do Rio de Janeiro, por exemplo, o historiador Felipe de Melo Alvarenga analisou como no
final do século XVIII e início do século XIX deu-se palco o processo de espoliação das terras indígenas
quando os direitos de propriedade dos indígenas passaram paulatinamente a serem contestados pela elite
local e a plantation passa a dominar o vale fluminense. ALVARENGA, Felipe de Melo. Das terras
indígenas à princesa da serra fluminense: o processo de realização da propriedade cafeeira em Valença
(província do Rio de Janeiro, século XIX). Jundiai: Paco Editorial, 2019.
125

por meio do estabelecimento de agentes públicos como subdelegados e juízes nas novas
cidades e freguesias, buscando por meio da ação deles mapear e controlar as populações
dos sertões amazônicos. Veremos mais adiante como esses agentes do Estado
desempenharam papel fundamental na arregimentação e no domínio de trabalhadores,
independentemente da existência de leis provinciais.
De toda forma, esses projetos locais, elaborados quando a província ainda
estabelecia e instaurava a base de sua administração, possuem como ponto norteador a
preocupação em elaborar medidas voltadas a controlar a força de trabalho disponível, isto
é, o objetivo era encontrar uma saída para uma questão bastante frequente nos discursos
dos presidentes da província e outras autoridades públicas a respeito da “imensa falta de
braços” na região, que retardavam o desenvolvimento local. Esses discursos deixam
entrever como a preocupação com a falta de braço não era uma questão exclusivamente
demográfica, o problema consistia na ausência de instrumentos para acessar mais
efetivamente esses sujeitos. Maria Lucia Lamounier destacava como, numa época em que
a aquisição de escravizados estava dificultada, várias províncias utilizavam a retórica da
“escassez de braços” para reivindicar medidas que não apenas visassem encontrar “uma
nova fonte [de trabalhadores] que substituísse os escravos, mas que principalmente”
impusesse uma “organização e controle efetivo dos braços disponíveis (...) fossem estes
braços nacionais, europeus, chineses, libertos ou ingênuos”309. Somado a isto, era do
interesse do governo conservar a população livre pobre e não-branca aplicada em
ocupações que permitissem serem supervisionados de perto e onde sua força de trabalho
pudesse ser explorada em benefício da elite local. Manter essa população sob estrita
vigilância era necessário para evitar que ocorressem distúrbios na mesma proporção das
décadas de 1830 a 1840 quando os cabanos viraram as estruturas de cabeça para baixo, o
que poderia causar grandes transtornos para o avanço dos interesses capitalistas no vale
amazônico. Esses projetos demonstram como para o Estado e particulares a incorporação
da população livre pobre foi sempre pensada por intermédio da ótica arbitrária de
imposição do trabalho e restrição da autonomia. Até final do século XIX, não surgirá
dentre as decisões públicas nenhum tipo de política voltada a estender direitos de
cidadania a esses indivíduos como por exemplo a possibilidade de poder escolher onde e
quando habitar ou trabalhar.

309
LAMOUNIER, Maria Lucia. Op Cit. 1988, p. 19/20.
126

Na Amazônia, o discurso de “escassez de braços” estava sempre acompanhado de


uma crítica aos hábitos de vida nômade, a ociosidade e da “ignorância” em que viviam as
“hordas selvagens” nos sertões amazônicos do século XIX. As falas também estabeleciam
uma gradação entre as etnias “civilizadas” e as “selvagens”. As compreendidas enquanto
civilizadas eram classificadas enquanto “amigas da civilização”, “pacíficas”, “de boa
índole” e “hábeis trabalhadores”. No outro extremo estavam as “hordas selváticas”
taxadas de “hostis”, “desobedientes”, “símbolos da desordem”, “obstáculos da
civilização”, “depredadores” e “avessos ao trabalho”. Note-se como o olhar das
autoridades provinciais e de particulares hierarquizavam as características em
conformidade da aproximação das populações com sua participação no mundo do
trabalho. Em 1857, o presidente da província Angelo Thomaz do Amaral prescrevia que
para guiar o Amazonas “na estrada do progresso”, seus dirigentes deveriam pregar “o
trabalho [aos indígenas], que é a lei geral da humanidade, a primeira das condições da
existência do homem, que tanto mais trabalha tanto mais se enobrece, porque se
civiliza”310. A fala do presidente deixa nítido como o prêmio previsto pela civilização dos
indígenas seria o próprio trabalho, todavia não se trata de qualquer trabalho, mas sim o
trabalho produtivo, sob vigilância de agentes privados e a serviço da elite local. O
conceito de civilização proposto aos indígenas vinha acompanhado de medidas de
controle sobre suas terras, seu tempo e sua força produtiva.
Todavia, a partir dos anos 1860 a 1870, acompanhando o avanço dos interesses
capitalistas em torno da exploração dos produtos nativos, sobretudo a borracha, a política
do governo provincial em relação ao mundo do trabalho passa por um
redimensionamento. Essa mudança da postura das práticas públicas era informada tanto
pelas experiências ineficientes de organizar a força de trabalho via legislações quanto pela
percepção das mudanças demográficas vivenciadas pela região devido aos fluxos
migratórios que fluíam para a região. Dessa forma, os projetos mudam de sentido, ao
invés de intentar aprovar leis voltadas a gerir a mão de obra disponível, as propostas se
voltam inicialmente a fomentar a imigração estrangeira e, posteriormente, a migração
nacional. Vários presidentes ressaltaram a necessidade da elaboração de projetos visando
atrair imigrantes e propiciar o aumento da oferta de força de trabalho, mas não era
qualquer imigrante que seria bem-vindo de imediato, havia um interesse particular em
estimular a vinda de europeus.

310
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de outubro de 1857 pelo
presidente da província, Angelo Thomaz do Amaral, p. 38.
127

Os projetos de imigração vinham acompanhados de um ideal de


embranquecimento da população, o que fica bem exemplificado na fala do presidente de
província João Baptista Tenreiro Aranha, referindo-se à necessidade de fundar colônias
militares na recém-criada província do Amazonas. Ele defendia que fossem trazidos para
a província do Amazonas apenas os “escolhidos (...) [entre] os mais suscetíveis de se
acostumarem ao clima (...) devendo-se ter na maior atenção e de preferência a boa índole
e a conduta e essencialmente a cor”. Para a colônia do rio Madeira, Tenreiro Aranha
planejava que fossem remetidos “alemães ou outros estrangeiros engajados de boa nota e
dados à agricultura e a outros serviços”. 311 Em consonância com os debates em torno do
branqueamento da população brasileira que ocorriam na Corte, o presidente defendia pelo
emprego dessas medidas o branqueamento da população amazônica, defendendo a ideia
de que o progresso econômico e moral da região ocorreria progressivamente com a
substituição do elemento indígena, mestiço e negro pelo branco.312
Um dos primeiros projetos apresentados para facilitar a imigração estrangeira data
de 1867, quando a Comissão da Agricultura, Comércio e Artes defendeu a necessidade
de se fazer um empréstimo no valor de cinco conto de reis para Luiz Gerald introduzir a
colonização norte-americana na província. Essa não foi a única vez que se cogitou
financiar a imigração estadunidense para o vale amazônico, como mencionado
anteriormente um dos objetivos da expedição do militar norte-americano Williams
Herndon, em 1852, era investigar a possibilidade de transferência de patrões brancos com
seus escravizados do sul dos Estados Unidos para o vale amazônico. Herndon relatou ter
compartilhado essa possibilidade com o presidente da província João Batista de
Figueiredo Tenreiro Aranha, que teria mostrado anuência ao projeto, e no ensejo
declarou: “o quanto eu gostaria que você me trouxesse mil da sua população ativa,
industrial e inteligente, para dar exemplo de trabalho a essas pessoas”.313 Muito provável

311
Relatório que em seguida ao do exm.o snr. presidente da província do Pará, e em virtude da circular de
11 de março de 1848, fez, sobre o estado da província do Amazonas, depois da instalação dela, e de haver
tomado posse o seu 1.o presidente, o exm.o snr. João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, p. 29.
312
Em meados do século XIX e início do XX, a ideologia do “branqueamento” se transformou em um dos
argumentos base dos debates em torno da modernização do Império brasileiro. Muitos intelectuais e
parlamentares baseados em teorias racistas defenderam a superioridade da raça branca em face da negra e
indígenas, ainda defendiam a massiva imigração europeia para o Brasil, principalmente para as áreas
cafeeiras da Baixa Fluminense e, principalmente, para o Oeste Paulista. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das letras,
1993; OFBAUER, Andreas. O conceito de ‘raça’ e o ideário do ‘branqueamento’ no século XIX: bases
ideológicas do racismo brasileiro. Teoria & Pesquisa, n. 42 e 43, SP. jan./jul. 2003.
313
No original: “How much I wish you could bring me a Thousand of your active, industrios and inteligente
population, to set an example of labor to these people”. HERNDON, William Lewis. Op. Cit. 1853, p, 302.
128

que o presidente estivesse se referindo nessa sentença a eventual imigração de brancos


norte-americanos, pois o mesmo havia delineado em seus relatórios que os planos de
imigração para a região deveriam preterir “essencialmente a cor para que, unidos por
laços conjugais às belas Amazonas, venham a ser seus filhos e descendentes, como já são
muitos, brancos ou ao menos mamelucos estimados”. Muito provavelmente, foi pelo
receio da entrada de negros (livres ou escravizados) que poderia ser aberta pelo Projeto
de 1867 que ele acabou sendo rejeitado inicialmente e só após arranjos foi aprovado.314
Na década de 1870, presidentes e deputados da província prosseguiram com os
esforços para alavancar a imigração estrangeira em direção ao Amazonas, mas sem muito
sucesso. Em 1875, Joseph Lyons MacGee apresentou requerimento à Assembleia
Provincial “pedindo favores e garantias a (sic) província para a extradição de cem famílias
de lavradores alemães para se estabelecerem em terras devolutas do rio Negro”. 315 O
deputado Freitas Guimarães, nomeado para transformar o pedido em um projeto de lei,
formulou uma proposta composta de 5 artigos para a imigração das 100 famílias alemãs.
Apesar de inicialmente aprovado, esse projeto não retornou para debate entre os
parlamentares. Em 1876, o presidente da província Antonio Passos de Miranda
apresentou um projeto propondo a imigração estrangeira em associação à civilização de
indígenas como solução para o problema da “falta de braços”:
Dois meios temos nós a empregar para a conquista de braços que se
dediquem a grande e pequena lavoura nesta província. 1) promovendo
a imigração estrangeira com vantagens reais para os imigrantes e suas
famílias, a fim de que eles permaneçam no país; 2) Promovendo a
catequese por meio de um sistema mais profícuo, do que o empregado
até hoje e firmando, nos diversos rios da província, colônias indígenas,
onde haja trabalho metódico e ensino prático de agricultura. Ambos os
meios devem ser adotados e para este assunto, que considero da maior
importância para o prospero futuro do Amazonas, peço vossa ilustrada
atenção.
A imigração estrangeira, debaixo do ponto de vista social, é de
vantagens incontestáveis. São povos cultos, ricos de experiência e de
trabalho, circunstâncias certamente mais apreciáveis e que nas
províncias do sul tem produzidos belíssimos resultados, mas tem
custado aos cofres públicos não pequenos sacrifícios [...] Em vista do
que acabo de expor, é minha opinião que devemos tratar com
perseverança da imigração estrangeira e estabelecer a colonização
indígenas, que é nula entre nós. 316

314
Infelizmente os debates não foram transcritos nos anais e o projeto não apareceu mais nas pautas dos
parlamentares.
315
Sessão de 30 de abril de 1875 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da
Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1875-1876, p. 62-63. APEAM.
316
APUD. LEAL, Davi Avelino. Op Cit. 2013, p. 57/58
129

Buscando associar a imigração estrangeira com criação de colônias indígenas,


Passos de Miranda aspirava, de uma só vez, resolver questões ligadas ao crescimento da
agricultura, a oferta de mão de obra e a manutenção dos povos indígenas em espaços de
controle e vigilância. Entretanto, seus planos não tiveram êxito, a falta de recurso da
província para subvencionar a imigração e o interesse do Estado Imperial em direcionar
esse movimento às áreas produtoras de café do sudeste seriam as principais causas do seu
fracasso. Na Amazônia, a maior parte dos projetos e investidas para a imigração europeia
e norte-americanos317 falharam em sua aplicação e muitos nem chegaram a ser colocados
em prática. Somados a isto, os ataques indígenas às locações, as dificuldades de adaptação
e a preferência por regiões do sudeste brasileiro foram outros fatores que impediram o
sucesso dos projetos para direcionar a imigração estrangeira para o vale amazônico. Com
os problemas apresentados pelas legislações para atender à demanda por mão de obra, os
constantes fracassos ocorridos das tentativas de impulsionar a imigração europeia e a
crescente demanda por braços para o cultivo da borracha, a saída escolhida, ainda que a
contragosto, foi angarriar força de trabalho dos nacionais. Algumas migrações acabaram
acontecendo de forma espontânea e sem a intervenção direta da ação estatal ou de
particulares, como apresentado no primeiro capítulo referente à presença de paraenses,
cearenses e bolivianos.
Alguns parlamentares ainda tentaram apresentar projetos voltados principalmente
à viabilização de mão de obra dos povos indígenas que viviam afastados do poder público,
buscando, inclusive, delegar essa responsabilidade para leigos por meio da distribuição
de premiações. O percurso traçado pelo projeto, de 1872, apresentado pelos deputados
Daniel Pedro Marques de Oliveira e Damaso de Souza Barriga é exemplar nesse sentido.
Inicialmente, o projeto era composto de três simples artigos que determinavam:
Art 1º É autorizado o Presidência da província a conceder um prêmio
de um conto de reis ao indivíduo que, das altas florestas, trouxer para
os povoados ou seus arrabaldes tribos selvagens de índios.
Art 2. Esta quantia será entregue: metade antes, metade depois de
efetuada a excursão, com a condição de restituir a parte que tiver

317
Chegou a conjecturar um projeto de colonização por meio da transferência de mão de obra negra do sul
dos Estados Unidos para a província do Amazonas. Segunda Maria Helena P. T. Machado “uma das
propostas mais populares e que havia circulado insistentemente, nos anos 1850 nos estados sulistas e que,
na década de 1860, havia sido encampada, sob novo formato, por defensores nortistas, tal como General
James Watson Webb (...) era a transferência da população norte-americana para o Brasil, sobretudo para as
províncias tropicais do Norte, especificamente para a Amazônia, onde trabalhariam como aprendizes por
certo número de anos”. A autora destaca como esses projetos “lançavam mão do argumento das
compatibilidades da raça negra aos trópicos para tingir iniciativas de expulsão dos negros do país com tons
róseos da filantropia”. Houve ainda projetos de imigração em massa de plantadores de algodão sulistas e
seus escravos para o Vale Amazônico. MACHADO, Maria Helena P. T. Op Cit. 2005.
130

recebido adiantada, se não realizar a empresa, salvo caso de força


maior.
Art 3. Revogam-se as disposições em contrário.318

Daniel Pedro e Souza Barriga conectados aos problemas que emergiam no


deslocamento de fronteira, tentavam com esse pequeno e certeiro projeto resolver o
entrave aos empreendimentos causados por várias populações indígenas refratárias ao
avanço das fronteiras. Para isso, os deputados pareciam almejar reinstalar a prática
colonial dos descimentos patrocinada pelos cofres públicos. Nessa proposta inicial não
havia qualquer indicação de como aconteceriam os “descimentos”, abrindo assim espaço
para largo uso de ações violentas e coercitivas, que inclusive já faziam parte das práxis
da atuação de autoridades públicas e de particulares nos sertões. Contudo, a proposta não
foi completamente aceita. Após passar da segunda discussão o projeto foi encaminhado
para uma comissão especial que ficaria responsável de fundi-lo com dois aditivos
apresentados no debate. Inicialmente não havia informação sobre matéria dos aditivos,
cujos conteúdos vieram à tona quando a comissão o apresentou novamente o projeto.
Com reelaboração do texto, o primeiro artigo determinava a contratação de “15
sacerdotes da ordem carmelita dos franciscanos observantes ou carmelitas descalços que
se incubam da catequese dos índios selvagens da província, além dos que atualmente se
empregam neste mister por conta do governo imperial”. Os artigos 2º a 5º regulavam os
contratos com os religiosos, determinando os espaços para estabelecimento das missões,
ordenando a origem para o custeio inicial das missões e prescrevendo que outras ordens
sobre policiamento e economia dos espaços seriam posteriormente publicadas. O projeto
contava com mais três (6º, 7º e 8º) artigos que reproduziam os anteriormente apresentados
pelos deputados Daniel Pedro e Souza Barriga. Contudo, na segunda discussão do projeto,
os artigos 6º e 7º foram completamente rejeitados enquanto e os demais aprovados,
seguindo para comissão de redação. Com essa medida o governo ainda buscava reforçar
a atuação dos religiosos no trabalho de catequização dos indígenas, prerrogativa já
instituída desde 1845 pelo Regimento das Missões, mas que vinha desde o princípio
enfrentando problema para conseguir religiosos como comentado no tópico anterior.
Em 1873, o deputado Monteiro Tapajós novamente apresentou outro projeto para
realização de uma nova tentativa para atrair 20 religiosos europeus para os trabalhos nas
missões “tribos selvagens” que habitavam os “rios Javari, Negro, Branco, Purus e

318
Sessão ordinária do dia 2 de abril de 1872. Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas,
Biênio 1872-1873 p. 8. APEAM
131

Jauaperi”. Nesses rios ocorriam na década de 1870 constantes assaltos indígenas, as


chamadas correrias, que causavam transtornos para a circulação dos produtos e para as
autoridades públicas. Contudo, o projeto não foi aprovado. De toda forma, esses esforços
do governo de tentar aprimorar o processo de “catequização e civilização” dos povos
indígenas visavam exercer o controle sobre os indígenas ainda refratários à presença do
Estado e aos empreendimentos particulares. Nesse sentido, aumentar o quanto possível o
número dos missionários nos sertões tinha o escopo de controlar os ataques indígenas
realizados contra a agentes do poder público e comerciantes tornando assim a região mais
segura para os que ali habitavam ou migravam. Além disso, também produziria mais um
espaço para fornecimento de mão de obra que propiciaria os almejados avanços.
Até o final da década de 1870, os parlamentares ainda debateram projetos voltados
à construção de fábrica e internatos destinadas ao ensino de ofícios para órfãos maiores
de 8 anos de idade em que receberiam “instrução religiosa e elementar em uma arte ou
ofício e na prática agrícola”.319 Apesar do projeto prever o pagamento de uma “soldada
estabelecida pelo Juiz de Órfãos”, apenas seria entregue aos órfãos quando eles
atingissem a maioridade e pudessem deixar os lugares a que foram destinados.
Novamente, tentava-se alargar os mecanismos de exploração da mão de obra da
população livre disponível impondo trabalho aos menores. De toda forma, os constantes
problemas para colocar tais propostas em prática e a intensificação da entrada de
migrantes, especialmente cearenses, que adentravam cada vez mais em maiores
quantidades a província do Amazonas, parece que foram afastando as autoridades
públicas de tentar organizar o mundo do trabalho por meios legislativos. Apesar do
governo conceder algumas passagens e construir algumas colônias, – que acabaram
fracassando - para alocar os migrantes, a maior parte deles entrou na província por meio
do agenciamento de particulares que faziam a distribuição da mão de obra. Ao fim, a
solução encontrada para produzir mão de obra especialmente para as áreas produtoras de
borracha assentou-se na intensificação de migração patrocinada por particulares, na

319
O projeto foi apresentado na Assembleia província em 10 de abril de 1875 pelo Comendador Antonio
José Gomes Pereira Bastos para a criação de uma fábrica de purificação e vulcanização da goma elástica e
fabricação de certas espécies de artesanato que funcionaram associadas as colônias agrícolas onde ficaram
localizadas as escolas aos órfãos. A proposta foi direcionada para um parlamentar com a responsabilidade
de transforma-lo em projeto de lei que acabou concentrando-o na construção de escolas rurais que sob os
cuidados de “empresários” eram voltadas a profissionalização de crianças. Sessão de 10 de abril de 1875 e
Sessão de 30 de abril de 1875 da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas. Anais da Assembleia
Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1875-1876, p. 62-63. APEAM.
132

reconfiguração do aviamento por meio do reforço do endividamento contínuo e no


controle das saídas do rio e das “roças” populares.
De toda forma, ao analisarmos os esforços das autoridades provinciais e de
particulares ao longo da segunda metade do século XIX para criar mecanismos de
produção de força de trabalho, é sintomático o quanto os projetos estavam conectados às
estruturas tradicionais de coerção de trabalhadores, assentadas sobretudo na
compulsoriedade. Havia, nesse sentido, um esforço contínuo de reintroduzir e reforçar
medidas alicerçadas em estruturas de vigilância, submissão e controle das populações
pobres, livres e não-brancas. Além disso, elas também nos permitem destrinchar as
expectativas oficiais sobre o lugar que deveria ser ocupado pelos indígenas e os pobres
livres no mundo do trabalho e no processo de deslocamento de fronteiras em voga na
Amazônia. Os ideais de progresso defendidos pelas elites previam que indígenas,
mestiços e afrodescendentes ocupassem posições subordinadas de trabalho, distanciando-
os das benesses prometidas pela modernidade. Somados a isto, a força do sistema
escravista enquanto alicerce político, econômico e social do Estado nacional imprimia
nas relações de trabalho práticas coercitivas e compulsórias sob as populações negra e
indígenas.
Essas práticas tinham como foco, além da utilização da força de trabalho desses
sujeitos (livres e escravos), reiterar as posições sociais de submissão política e social,
fortalecendo as bases da sociedade excludente que marcou o Império brasileiro no
Oitocentos. Buscando reforçar essas ideias e encontrar meios de explorar a mão de obra
das populações locais, as autoridades públicas e particulares não utilizaram apenas as
legislações como forma de acessar a força de trabalho disponível na região, a ilegalidade
funcionou como um importante mecanismo para compulsão de trabalhadores durante a
segunda metade do século XIX na província do Amazonas. E grande parte dessa
ilegalidade articulada no mundo do trabalho amazônico era executada pelas próprias
autoridades estatais. No próximo capítulo analisaremos como as autoridades públicas em
associação com forças privadas continuaram manejando suas prerrogativas,
especialmente as policiais e jurídicas, para coagir as populações indígenas, mestiços,
negros (livres e libertos) e livres pobres em geral ao serviço nas mais diferentes frentes
de produção do vale amazônico, principalmente para o trabalho nas estradas de seringa e
nos serviços domésticos na capital.
133

Capítulo 3 – Estado, trabalho e ilegalidade

Neste capítulo reconstruiremos a importância da expansão do aparelho policial


para a lógica da ampliação da presença do Estado imperial nos sertões amazônico,
especialmente durante o contexto de crescimento da comercialização da borracha
amazônica no mercado internacional. Para isso, apresentaremos quem eram os sujeitos
que ocupavam esses cargos e como os utilizavam para fortalecer seu status social e
controlar os instrumentos que possibilitavam exercer domínio sobre a mão de obra. A
partir disso, por meio das prerrogativas dos cargos administrativos e policiais
demonstraremos como eram arquitetadas ações ilegais de coerção e escravização ilegal
de trabalhadores, principalmente de mulheres e crianças. A análise de documentos
oficiais, relatos de viajantes e processos judiciais nos possibilitam recriar uma das
principais redes de produção de força de trabalho que assentada na ilegalidade tornava a
liberdade e o exercício da cidadania dos trabalhadores amazônicos difusa e fragmentada.
Além disso, também nos permitem acessar as formas pelas quais esses indivíduos
interpretaram ou rejeitaram as noções de liberdade e escravidão reivindicando suas
próprias noções do que era aceitável ou não nas relações de trabalho e nas suas vidas em
geral.

3.1 – Pachás da Amazônia: status social, eleições e enriquecimento

(...)
Chamamos a atenção do Illm. Senhor Doutor chefe de polícia para estes
e outros casos que constantemente se dão nesses lugares onde esses
senhores, tornam-se um completo Pachás do Egyto.
Horta foi subdelegado em Tauapessassú, e a bem do serviço público foi
demitido, se novamente o nomearam foi na persuasão ser ele alguma
coisa em política coitado...pobre Manoel das Violas, que só tem jeito
para venalidades infâmias, além dos seus péssimos precedentes; não
exageramos e quem quiser se capacitar desta verdade veja os ofícios do
dr. Chefe de polícia de 16 a 18 de agosto de 1862 e dois de 1º de
setembro do mesmo ano, e conhecera que Horta não pode exercer cargo
algum de confiança.
O maruim320

O excerto acima foi retirado de um artigo do dia 11 de fevereiro de 1865 publicado


no periódico O catechista que circulava em Manaus. Sob assinatura de O Maruim, o autor
denunciou o subdelegado Bernardino de Oliveira Horta e suas ações ilegais no distrito de

320
O Catechista, 11 de fevereiro de 1865, nº 152, p. 02
134

Tauapessassú, localizado às margens do rio Purus. Dentre as acusações, constava o fato


de Horta ter perdoado João dos Reis de raptar “uma rapariga com o fim de casar-se”, em
troca de o último “levantar uma tapagem na casa de Manoel Bragata, para onde pretende
mudar-se”. Assim, o subdelegado mandou chamar o raptor, dizendo que se fizesse esse
serviço lhe entregaria a rapariga para que ele pudesse se casar. O mesmo artigo de jornal
também acusava o subdelegado de perdoar Francisco Joaquim Amorim Junior (apelidado
Chicão), irmão do importante comerciante Alexandre Amorim, pelo defloramento de uma
menor. Segundo o denunciante, “Horta não trepidou mentir ao Illm. Sr. Dr. Chefe de
polícia desvirtuando o ocorrido da audiência a vista de um recebido do saldo de conta
que lhe passou o tal Chicão e de mais alguns bagarotes!!”. Por fim, o autor comparava as
ações praticadas de Horta com as dos Pachás do Egyto, título honorário recebido pelos
governadores no Império otomano e que, muitas vezes, foram taxados como tiranos por
suas ações de extrema violência com a população local.
O relato acima não pode ser lido apenas como uma denúncia contra as ilegalidades
e abusos de autoridades, pois estava embutido nessa ação uma disputa política interna da
elite local em torno do acesso aos cargos públicos. Note-se como havia um intuito claro
do autor da publicação de barrar a nomeação de Bernardino Horta novamente para o cargo
de autoridade policial daquele distrito. Esses postos da administração pública foram
disputados pelas elites locais no Brasil império por representarem um espaço no qual
expandiam suas redes clientelísticas e “legitimavam estrutural social vigente, em cujo
topo situavam-se os proprietários”.321 Mas, no contexto da província do Amazonas, o que
faziam desses postos alvos de tamanha cobiça pela elite local? Quem eram esses homens?
Quais os interesses em volta desses espaços? Quais os caminhos seriam abertos na
sociedade amazonense por meio desses cargos? E qual relação desses espaços com as
práticas compulsórias de arregimentação de trabalhadores?
Vale destacar que exercer ocupações públicas representava desde a colônia um
importante instrumento de diferenciação social, pois nesse período a própria relação da
população com a Coroa portuguesa passava pela “posição que cada indivíduo ocupava na
hierarquia de lideranças – como vereadores, juízes, capitães e sargentos-mores”, a quem
eram conferidos privilégios e mercês.322 Patrícia Sampaio assinala que, no período após
o Diretório Pombalino na Amazônia, “as hierarquias locais tendiam a consolidar-se por

321
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1997.
322
COSTA, João Paulo Peixoto. Op. cit, 2016, p. 16-17.
135

meio desses postos [instituídos pela Carta Régia de 1798] e pelo acesso a eles”. 323 A
grande transformação trazida pela Carta de 1798 era a de que não havia mais cargos
reservados exclusivamente para os indígenas e “principais”. Por esse motivo, a autora
destaca que esses espaços passaram a ser instrumentalizados pelas lideranças indígenas,
mestiços e pardos como forma de garantir distinção social, assegurar um lugar na disputa
pelo poder e controle dos indígenas alistados nos Corpos, além de garantir proteção para
si e seus familiares, principalmente das ameaças de arregimentação coercitiva. Esse
último ponto, em particular, era foco de fortes disputas que se tornaram mais intensas
desde final do século XVIII, com a publicação da instrução de 1799 e posteriormente dos
Corpos de Trabalhadores de 1838, que ampliou a imposição de trabalho forçado para
toda população não branca e livre da região.
Contudo, depois de 1850, o perfil étnico-social dos ocupantes dos cargos da
administração pública tendeu a passar por um processo de transformação. Esse
movimento decorreu da criação da província do Amazonas em 1850 e do crescimento do
interesse pelos produtos extrativistas, como a borracha e a castanha. Interessados nas
oportunidades econômicas e sociais abertas na região muitos indivíduos de outras
províncias passaram a se deslocar em direção ao Amazonas e viam na ocupação dos
cargos públicos um meio de construírem um caminho de ascensão social e
enriquecimento. Um caso que é bastante representativo dessa mudança de perfil é o de
Custódio Pires Garcia, originário possivelmente da província do Ceará324, que chegou na
província do Amazonas por volta do ano de 1854, para exercer o cargo de escrivão
interino do presidente da província na capital, Manaus.
A ida para capital amazonense, segundo Ana Maria Daou, fazia parte das
estratégias individualizadas de muitos homens oriundos das províncias do Pará,
Maranhão, Pernambuco, Piauí, Bahia, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, que
projetavam na cidade uma caminho de ascensão social e “a passagem definitiva para um
modo de vida mais urbano, pautado na qualificação profissional e nas carreiras
meritocráticas”.325 Inserido nesse movimento, no decorrer da sua trajetória na capital,
Garcia continuou ocupando diversos espaços no quadro da administração pública até que

323
SAMPAIO, Patrícia M. Op cit. 2012, p. 264
324
Sobre a origem de Custódio Pires Garcia, Angelo Bittencourt afirma que “era nordestino, possivelmente
cearense”. Nas fontes consultadas por esta pesquisa não conseguimos precisar sua origem e escolhemos
seguir as afirmações apresentadas por BITENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de
Biografias. Vultos do Passado: Rio de Janeiro, Conquista, 1973, p. 183.
325
DAOU, Ana Maria. Instrumentos e sinais da civilização: origem, formação e consagração da elite
amazonense. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, vol VI, p. 867-888, setembro, 2000.
136

em 1859 foi transferido para Vila Bela (atualmente, Parintins). Em 1866, foi elevado à
condição de Capitão da Guarda Nacional e, em 1873, exerceu o cargo de primeiro
suplente do juiz municipal e de órfão na cidade de Manaus.
Custódio Garcia parece ter nutrido importantes relações políticas e econômicas
com o alto escalão da administração Imperial que lhe possibilitaram, por exemplo, exercer
o posto de presidente interino da Província no mês de fevereiro de 1872.326 Nesse
caminho, ele conseguiu aumentar seu patrimônio. Se em 1858 declarou possuir apenas
uma casa na capital no valor de 60$000 réis,327 na lista de eleitores de 1876, aos 55 anos
de idade, solteiro, afirmou ser “capitalista” e ter um patrimônio de 20:000$000 réis. 328 Da
posição de desconhecido na sociedade amazonense, Garcia passou a figurar como um dos
homens mais importantes da província à época.329 Todavia, sua trajetória não foi isenta
de problemas e denúncias, muitas das quais envolviam sua atuação na retirada
compulsória de crianças de seus pais para o trabalho forçado, como explicaremos logo a
frente. Possivelmente esses problemas o fizeram acumular muitos inimigos e talvez
tenham motivado o seu assassinato em 1886.330
Outra trajetória elucidativa é a de Jacintho Correa da Silva Botinelly. Nascido em
Bujuru, cidade localizada na Província do Pará, em 3 de junho de 1844 331, ele alistou-se
como voluntário para a Guerra do Paraguai, aos 18 anos de idade, onde iniciou sua
carreira militar como alferes. Na guerra lutou nas batalhas de Itororó, Lomas, Valentinas,
“na rendição de Angostura, no assalto ao forte de Itabiquara e na tomada da Ponto
Surubihy”. Ao final da guerra, recebeu “a condecoração da Ordem da Rosa e foi agraciado
com a medalha de Mérito Militar”, retornando para Belém em 1868 332. De Belém se

326
Essa referência aparece nos periódicos: Amazonas, 20 de janeiro de 1872, nº 401, p. 04; Amazonas, 24
de janeiro de 1872, nº 402, p. 01.
327
Estrella do Amazonas, 17 de fevereiro de 1858, nº 269, p. 04
328
Jornal Amazonas, 7 de setembro de 1876, nº 128, p. 03
329
Custodio Pires Garcia, de acordo com Agnello Bittencourt, “não era um homem desconhecido e sem
responsabilidade ao surgir como capitalista (...) Tendo aberto seu escritório bancário, vivia a dar dinheiro
a juros escorchantes, sob penhoras de joias e objetos de valor efetivo (...) Tem-se como indiscutível que, ao
desembarcar em Manaus, já era um homem rico”. BITENCOURT, Agnello.Op cit, 1973, p. 183-185
330
O assassinato de Custódio Piries Garcia foi envolto de muitos dúvidas e mistério. O crime ocorreu dentro
de sua casa. Jornal Amazonas, 22 de maio de 1886, nº 1223, p. 03
331
Jacintho Botinelly declarou em 1881 na lista de eleitores aptos da Província do Amazonas ter 37 anos
de idade, em cima desse dado consideramos seu nascimento em 1844. Amazonas, 29 de julho de 1881, nº
605, p. 03. Todavia, Agnelo Bittencourt afirme que ele nasceu em 1847. BITENCOURT, Agnello. Op Cit,
1973, p. 271. Optamos por seguir a idade declarada pelo próprio Botinelly.
332
As descrições da biografia de Jacintho Correa da Silva Botinelly foram levantadas por Agnelo
Bittencourt. Esse autor descreve que Botinelly apenas teria mudado para o rio Purus em 1885 depois de ter
sido “convidado para tomar conta dos seringais ‘Aliança’, no município de Canutama”. Todavia nossas
pesquisas apresentam Botinelly já presente nessa área exercendo cargos públicos e com negócios desde a
década de 1870. BITENCOURT, Agnello. Op Cit, 1973.
137

mudou, em meados da década de 1870, para a região do alto rio Purus que despontava
como uma área economicamente atrativa pelos prósperos negócios da borracha. A
primeira menção que encontramos a Botinelly já o aloca no quadro administrativo da
polícia amazonense, exercendo o cargo de subdelegado da povoação de Vista Alegre,
localizada às margens do rio Purús, no período de 1874 a 1878333.
Ainda em 1878, Botinelly foi exonerado da subdelegacia de Vista Alegre e
transferido para o distrito de Canutama, também localizado no rio Purus334. A família
Botinelly parecia manter negócios na região do rio Purus desde pelo menos a década de
1870335, uma área que já despontava como grande produtora de goma elástica. Botinelly,
assim como Custódio, possuía uma caminhada ascendente nos cargos públicos da
província do Amazonas. Buscando inclusive ampliar suas posses naquela região, o
subdelegado requereu, em 1880, a arrematação de “um lote de terras na margem esquerda
do rio Purus, distrito de Canutama”336. Tal como Botinelly, a maioria dos escolhidos para
subdelegados nas regiões do rio Purus ou Madeira possuía concessões e exploravam a
seringa ou eram fregueses de outros comerciantes. Na primeira situação estava Rodrigo
Coelho de Miranda Leão que em 1860 requereu meia légua de terra na região do rio
Madeira337 e, em 1867, foi nomeado 4º subdelegado suplente do distrito de Crato. Rodrigo
de Miranda Leão permaneceu nessa posição por mais quatro anos, período em que foi
alvo de sucessivas denúncias de abuso de autoridade338.
Mas Botinelly foi ainda mais longe na hierarquia da administração pública. Em
1886, com a alcunha de Major Jacintho Correia da Silva Botinelly foi nomeado para o
“cargo de 3º suplente do juiz municipal do termo de Manaus com exercício da cooperação
no 3º distrito criminal”339. Já no período republicano, o então Coronel Botinelly foi eleito
deputado da província do Amazonas em 1891 até 1892340. Quando do seu falecimento,

333
Fala com que o exm. sr. dr. Satyro de Oliveira Dias, presidente da província do Amazonas, abriu a 2.a
sessão da 15.a Legislatura da Assembleia Provincial em 4 de abril de 1881, p. 64.
334
Amazonas, 25 de outubro de 1878, nº 194, p. 02.
335
Em 1877, a família Botinelly (Jacintho Correa da Silva Botinelly, Urbano Botinelly, João Botinelly,
Antonia A. Carvalho Botinelly) publicação no periódico Jornal do Amazonas uma nota de agradecimento
a alguns moradores do rio Purús pelas condolências pela morte de Pedro Alcantara Botinelly. Jornal do
Amazonas, 16 de fevereiro de 1877, nº 163, p. 04.
336
Amazonas, 31 de dezembro de 1880, nº 514, p. 03
337
O Catechista, 10 de outubro de 1864, nº 104, p. 04
338
Amasonas, 12 de outubro de 1867, nº 71, p. 02
339
Jornal do Amazonas, 29 de agosto de 1886, nº 1205, p. 01. Jacintho Botinelly também exerceu a posição
de presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas durante o tempo em que foi deputado.
BITENCOURT, Agnello.Op cit, 1973, p. 272
340
Diário de Manaós, 26 de junho de 1891, nº 343, p. 01.
138

aos 53 anos de idade341, possuía a patente de General Botinelly e as despesas de seu


sepultamento foram arcadas pelo governo, em 1896342.
Em sua pesquisa, a historiadora Ana Maria Daou enfatiza como os postos
administrativos e judiciais eram bastante almejados, pois eram remunerados e
possibilitavam mobilidade social. Todavia, nossas fontes têm apresentado que no
Amazonas foram justamente os cargos sem pagamento e localizados nos altos rios
amazônicos que pareciam despertar mais interesse da elite, especialmente por
possibilitarem amealhar mais poder especialmente naquelas áreas onde as disputas pelo
controle das estradas de seringa e da mão de obra eram intensas. Esses postos foram os
de delegado, delegados distritais, subdelegados, suplentes e inspetores de quarteirão,
criados com a reforma de 1841 e não tinham remuneração.343 A criação desses cargos,
além de manter em estrita vigilância as camadas mais pobres, foram também arquitetados
para atender as demandas das elites das várias províncias que requeriam meios de
fortalecer sua posição de classe e ampliar suas clientelas individuais. 344
No contexto de centralização do Estado Nacional brasileiro no século XIX, como
destaca Ilmar Mattos, a expansão do quadro administrativo foi uma importante ferramenta
de difusão das noções de ordem, disciplina e hierarquia entre o conjunto daqueles
considerados cidadãos e não cidadãos. O autor afirma que “em graus variados e em
situações diversas, nos níveis local, municipal, provincial e geral, tornaram-se [os agentes
do Estado] peças estratégicas no jogo de construção [e consolidação] do Estado imperial
e da classe dominante”.345 Os agentes da administração pública seriam assim os “os olhos
do Estado” com a obrigação de manter sob vigilância e ordem principalmente aqueles
indivíduos que ainda não estavam inseridos no grêmio da civilização e eram tidos como
o símbolo da desordem346. Na lógica de consolidação do Império brasileiro, as funções

341
A sua idade provável foi calculada a partir da informação disponível em uma lista de eleitores de janeiro
1881, no qual Jacintho Botinelly declarou ter “37 anos, filho de Theodoro dos Reis Botinelly, casado,
comercio, morador de Lábria, sabe ler e escrever, renda – 3:000$”. Amazonas, 29 de julho de 1881, nº 605,
p. 03.
342
Mensagem do Exmo Sr Dr Fileto Pires Ferreira Governador do Estado do Amazonas lida perante o
Congresso dos Representantes por ocasião da abertura da primeira sessão extraordinária da terceira
legislatura, em 6 de janeiro de 1898, p. 94.
343
Esses cargos compunham o quadro de autoridades patrimoniais do corpo administrativo do Império
brasileiro no século XIX. CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma
discussão conceitual. Dados, v. 40, n. 2, 1997.
344
GRAHAM, Richard. Op Cit. p. 67
345
MATTOS, Ilmar Rohloff. Op cit., 2017.
346
A expressão “olhos do Estado” era entendida, de acordo com Ilmar Mattos, “fundamentalmente como o
exercício de uma vigilância” que deveria ser exercida por esses agentes do poder e “o modo de o olhar se
exercer – possibilitava uma vigilância que tanto era um controle sobre as infrações das regras impostas
quanto uma moldagem dos que se tinha em vista civilizar”. MATTOS, Ilmar Rohlof. Op cit. 2017, p. 165.
139

exercidas pelas forças policiais eram extremamente importantes, especialmente por ter
entre seus objetivos assegurar “que cada indivíduo se mantivesse no lugar social que a
ele estava atribuído” na hierarquia social.347 Na Amazônia, além dessas questões esses
cargos públicos também tornaram-se um caminho para produção de riquezas viabilizadas
por meio da produção coercitiva de força de trabalho, das possibilidade de exercer
controle sobre a circulação produtos nativos e mesmo sobre a terra.
Para ser indicado para o serviço policial era requerido que seus ocupantes fossem
alfabetizados e escolhidos entre os cidadãos ativos348 locais nas povoações, visto que era
reservado apenas a eles o exercício de cargos na administração pública. Dessa forma, ser
selecionado para tais lugares significava o reconhecimento da posição de cidadão
ocupada perante a sociedade, um lugar tão almejado na estrutura social brasileira do
século XIX. De acordo com Ilmar Mattos, esses agentes asseguraram a manutenção das
hierarquias sociais, pois “ao Estado monárquico no seu momento de consolidação
competia ‘construir a Nação’, devendo-se estender por tal a preservação da existência da
diferenciação entre as pessoas e coisas, por um lado, e da desigualdade entre as pessoas,

Ricardo Salles completa destacando que “boa parte do poder de persuasão do discurso dominante resultou
de sua capacidade de excluir e subordinar efetivamente estes setores sociais [os escravos e a massa da
população livre de status indefinido]. Na verdade, a constituição deste aparato foi, em grande parte, a
história da formação destes interesses gerais e, principalmente, nacionais”. SALLES, Ricardo. Op Cit,
2013.
347
ROSEMBERG, André. Polícia, policiamento e o policial na província de Sã Paulo no final do Império:
a instituição, prática cotidiana e cultura. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas e
Sociais, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo, 2008.
348
A partir da Constituição de 1824, reconheceu-se “os direitos civis de todos os cidadãos brasileiro,
diferenciando-os, apenas, do ponto de vista dos direitos políticos, em função de suas posses”. Para tanto,
adotou-se “o voto censitário em três diferentes gradações: o cidadão passivo (sem renda suficiente para ter
direito a voto), o cidadão ativo votante (com renda suficiente para escolher, através do voto, o colégio
eleitores), e o cidadão ativo eleitor e elegível)”. Nesse último, como destaca Hebe Mattos, acrescentou-se
ainda mais uma diferenciação visto que “impunha-se ao eleitor que tivesse nascido “ingênuo”, isto é, não
tivesse nascido escravo”. Mattos ressalta como apesar de ter aberto a possibilidade do gozo dos direitos de
cidadãos para parcela de população negra nascida livre essa demanda restringiu o exercício da cidadania
plena a grande contingente de escravizados nascidos no Brasil que alcançavam sua alforria. MATTOS,
Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 21. Yuko Miki
acrescenta como o exercício da cidadania para as populações indígenas, mesmo aquelas considerados
autônomos, “na linguagem aparentemente inclusiva da constituição, baseada no local de nascimento e na
condição de livre, foi deliberadamente silenciosa sobre sua elegibilidade”. As populações indígenas
continuavam a ser alvos de políticas de ‘guerra’ e alocadas sob a condição de ‘ingênuos” que necessitavam
de tutela e preparação para cidadania. Esses status ambíguo de cidadania, como ressalva Miki, “colocou os
índios brasileiros em uma área cinzenta legal e vulnerável que efetivamente corroeria seus direitos e
proteções ao longo do século XIX. Como os libertos que receberam apenas alforria parcial ou condicional
e ameaçados por um controle precário da cidadania, os índios tornaram-se quase-cidadãos desde o
nascimento da nação, na melhor das hipóteses elegíveis para uma cidadania futura incerta”. MIKI, Yuko.
Frontiers of Citizenship: a black and indigenous History of postcolonial Brazil. Cambridge University
Press, 2018, p. 34-36
140

de outro, de tal forma, que se uns eram considerados cidadãos e súditos, outros deveriam
ser apenas súditos”.349
A sociedade amazonense da segunda metade do XIX, segundo Patrícia Melo era
“caracterizada pela desigualdade evidenciada na pobreza”.350 Pesquisando os inventários
post-mortem entre 1840 a 1880, a historiadora constatou que a maior parte dos indivíduos
que declaravam posses estavam submetidos em uma cadeia de interdependência, na qual
estavam conectados desde os cabos de canoa até os proprietários de casas comerciais de
Manaus e Belém. Segundo a autora, uma característica marcante das fortunas era o quadro
de grandes dívidas presentes na maioria dos inventários. A partir disso, Melo assevera
como devido aquelas características os elementos que pareciam garantir a estrutura de
hierarquização social “não se limitam ou se restringem a questões de natureza puramente
econômica”.351 Por conseguinte, esses espaços na administração governamental
permitiam reforçar a reprodução desse sistema interno de desigualdades e assegurar o
fortalecimento da ordem social hierarquizada. Para isso, a elite local buscou assegurar
que esses postos públicos fossem distribuídos exclusivamente entre o seleto grupo dos
considerados cidadãos. Ser reconhecido cidadão no Brasil do século XIX dependia de
muitos fatores que não se resumiam ao fator econômico, havia fatores de ordem social e
racial atrelados.352
Em 1878, por exemplo, após Manoel José d’Assumpção ser nomeado para o cargo
de subdelegado do distrito de Borba um anônimo publicou no periódico Jornal do
Amazonas sua indignação com o fato do indicado ser “um carpina – ou mestre Manoel
como ali o chamam!”. Completou ainda indagando “que figura faz um [sub]delegado que
vai trabalhar em mangas de camisa, pelo ofício de carpina, para particulares muitas vezes
na rua com calças remendadas?”.353 A partir dessas indagações, o anunciante buscava
questionar como se poderia considerar como cidadão um indivíduo que vendia sua força
de trabalho para outros, ou seja, alguém que perante a sociedade pertencia ao mundo do

349
MATTOS, Ilmar. Op cit. 2017, p, 165
350
SAMPAIO, Patrícia M. Melo. Op cit, 1997.
351
Idem.
352
Apesar da Constituição Imperial de 1824 ter revogado o dispositivo colonial de “mancha de sangue”,
que limitava o acesso a cargos públicos, eclesiásticos e títulos honoríficos aos chamados cristãos velhos,
mouros, ciganos, negros e indígenas, o novo Estado que emergia tratou de elaborar formas de manter a
escravidão, os privilégios da elite e estabelecer marcadores sociais voltados a restringir o exercício da
cidadania a maior parte da população, principalmente de negros e indígenas, ver MATTOS, Hebe Maria.
Op. cit, 2000.
353
Jornal do Amazonas, 1 de agosto de 1878, nº 264, p. 02
141

trabalho.354 Analisar os desdobramentos desse caso é elucidativo para compreendermos


tanto a questão do status social quanto o poder político e econômico que estavam
embutidos nesses cargos públicos.
Note-se como para reforçar o descrédito sobre Manoel José d’Assumpção, o autor
da publicação iniciou sua “denúncia” descrevendo a vestimenta utilizada pelo nomeado
que iria trabalhar “em mangas de camisa” e “com calças remendadas”. Na sociedade
imperial brasileira, altamente hierarquizada, roupas e calçados carregavam alto grau de
valoração social, visto que por meio delas os sujeitos marcavam seu lugar perante a
sociedade. Muitos escravizados, por exemplo, quando fugiam costumavam levar consigo
baús de roupas visto que mudar a vestimenta e os sapatos podiam lhe assegurar uma
proteção durante a fuga e passar maior confiabilidade para suas afirmações de serem
livres. Dessa forma, não era nada incomum que na publicação o autor utilizasse também
da questão da qualidade das roupas de Manuel para desqualificá-lo ainda mais da
condição de cidadão, atacar sua nomeação para o posto policial e pressionar para a
indicação de outra pessoa, possivelmente de alguém inserido no grupo político que
comandava naquele local.
No dia seguinte outra publicação no jornal Amazonas, dessa vez, a favor do Mestre
Manoel, buscou colocar em xeque a contestação anterior indagando como poderia ter ele
sido nomeado “Alferes da Guarda Nacional pelo ex-presidente desta província dr.
Agilásio, e agora, porque é nomeado [sub]delegado de polícia de Borba, é um carpina e
mestre Manoel”.355 Fazer parte da Guarda Nacional era, no século XIX, um espaço de
muito prestígio e distinção na sociedade brasileira.356 Dessa forma, ao trazer para o debate
a nomeação para a posição de alferes o autor da publicação tentava provar a condição de
cidadão de Manoel José, utilizando como justificativa os próprios parâmetros instituídos
pelo governo imperial para reconhecê-lo enquanto tal. Apesar desses esforços, o anônimo

354
As atividades mecânicas carregavam uma desvalorização entre a elite brasileira desde os tempos
coloniais. Uma pequena mudança ocorreu a partir de final do século XVIII quando, segundo Roberto
Guedes, começou a se agregar uma percepção mais valorativa em meio especialmente aos grupos
subalternos, podendo “favorecer a ascensão social, ainda que intragrupal”. GUEDES, Roberto. Ofícios
Mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (sécs. XVII-XIX). Topoi, v. 7, n. 13, jul-dez,
2006, pp. 379-423.
355
Amasonas, 2 de agosto de 1878, nº 1859, p. 02
356
Se inicialmente as posições na Guarda Nacional eram ocupadas mediante eleições, paulatinamente elas
foram sendo eliminadas para “que a distribuição de patentes de oficiais correspondesse o melhor possível
à hierarquia social e econômica" de cada localidade do Império brasileiro. CARVALHO, José M. Op. cit.
p.242-243
142

acabou alcançando seu objetivo com a publicação, pois dois meses depois Manoel José
foi exonerado do cargo de subdelegado.357
Mesmo que esses símbolos tenham sido acessados apenas como meio para
desqualificar a escolha de Manoel para o cargo de subdelegado, esse caso nos permite
visualizar como os cargos públicos significaram na sociedade amazonense um espaço por
meio do qual se buscava reiterar as diferenças sociais e reforçar os símbolos da
desigualdade, principalmente estabelecendo definições de quais indivíduos seriam
permitidos usufruir das benesses da cidadania e quais deveriam servir de força de
trabalho. Embaralhar esses limites, mesmo que minimamente, não era aceitável e
provocava diversos protestos.
A despeito disso, o maior incômodo do autor da publicação parecia ser mesmo
pelo fato da nomeação ter ocorrido antes da realização de uma importante eleição na
província em 1878, e por ele ser membro do partido conservador do distrito de Borba, o
que despertou muitas reclamações dos integrantes do partido liberal que procuraram
colocar em xeque sua posição de cidadão para exercer aquele posto. Controlar os postos
policiais durante as eleições era de suma importância, pois por intermédio de suas
prerrogativas podiam manejar os resultados dos pleitos em favor de seu grupo. 358 Além
disso, na província do Amazonas esses cargos abriam a possibilidade para seus ocupantes
exercer controle direto na circulação dos indivíduos, prerrogativa que foi usada para
produção de mão de obra para os empreendimentos locais, como exploraremos mais
detalhadamente no próximo tópico.
A estrutura e ideologia da instituição policial do Império começou a ser articulada,
de acordo com Thomas Holloway, antes mesmo da independência “quando a
transferência da família real portuguesa para o Brasil levou à criação da Intendência Geral
da Polícia da Corte e do Estado do Brasil em 10 de maio de 1808” e a Guarda Real em
1809.359 O cargo de subdelegado, em específico, veio fazer parte dessa organização a
partir da reforma de 1841 que suprimiu completamente as funções policiais dos juízes de
paz, reservando-os apenas a função de admoestar aqueles considerados “vadios” e realizar

357
Amazonas, 23 de agosto de 1878, nº 167, p. 01
358
A influência exercida pelos ocupantes dos cargos policiais sobre as eleições locais era uma realidade
vivenciada em várias províncias do Império brasileiro e um dos principais sustentáculos do clientelismo no
século XIX. Richard Graham destaca como a distribuição dos postos nas instituições governamentais se
configuraram como importante “moeda de troca” das relações clientelísticas que envolvia a intensa
concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais e outros, em troca de apoio
político, sobretudo na forma de voto. GRAHAM, Richard. Op cit. 1977.
359
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no rio de janeiro: repressão e resistência numa cidade do século
XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 46
143

a assinatura dos termos de bem viver. Assim, após 1841 as atividades policiais e jurídicas
foram revertidas aos agentes do Estado centralizado que passaram a deter a autoridade de
“investigar, prender, julgar e sentenciar os pequenos infratores no próprio distrito policial,
sem a intervenção de advogados, promotores e autoridades judiciais superiores”. De fato,
o poder se concentrou em torno dos chefes de polícia, delegados, subdelegados e
suplentes.360
Ficava reservado aos delegados e subdelegados a função de nomear os ocupantes
para os postos de “oficiais de justiça” e inspetores de quarteirão. Esses agentes policiais
passaram a exercer plena autoridade sobre todos o processo de penalização do Estado
visto que eram responsáveis por todas as suas etapas desde a prisão, investigação,
acusação, julgamento e decisão final da maior parte dos crimes estabelecidos pelo Código
do Criminal de 1830.361 Nesse sentido, após a reforma de 1841 esses postos policiais
passaram a ser estratégicos para as relações clientelísticas uma vez que, ao ser nomeado,
os homens, muitos deles proprietários de terras, por meio desses cargos aumentavam seu
status social além de poder estender favores, isenções e proteção para seus
apadrinhados.362 O que também acabou criando diversos conflitos internos da elite pela
ocupação desses espaços e reforçando as relações clientelísticas.
Essa disputa fica ainda mais perceptível em outra publicação de 1878, sob o título
Mais Demissões, no periódico Jornal do Amazonas, que reclamava acerca das inúmeras
exonerações realizadas pelo presidente da província de delegados, subdelegados e
inspetores de quarteirão, “não escapando nenhum suplente” e a cassação de 91 patentes
da guarda nacional. O anônimo afirmava que não faria reparo nas trocas “se não
estivéssemos em vésperas de eleição” e que “estes atos da presidência demonstram
claramente o seu pensamento de intervir por todos os meios no pleito eleitoral”. 363
Nomeações e demissões, durante ou após eleições, constituía parte de um jogo político
que visava fortalecer os laços clientelísticos entre os sujeitos. Mas, para além disso, as

360
Thomas Holloway destaca que essa organização não representou o afastamento do Estado das classes
políticas, pelo contrário, “o que aconteceu no Brasil foi que as duas hierarquias de poder – tradicional e
privado, de um lado, e moderno e público, do outro – permaneceram complementares, fortalecendo-se
mutuamente”. HOLLOWAY, Thomas H. Op. cit. p. 116.
361
A exceção eram os crimes mais graves, por exemplo, os de homicídios que ficavam na responsabilidade
dos juízes de direito. HOLLOWAY, Thomas H. Op. cit. Essa questão influi diretamente nas fontes
consultadas nesta pesquisa, pois a maior parte dos processos criminais analisados são quase que
majoritariamente do período posterior a 1871, quando ocorre uma mudança radical nesse sistema que retira
as funções judiciais dos policiais. As análises realizadas para o período anterior a 1871 foram possíveis
pelo acesso a outras fontes como os periódicos e as correspondências oficiais.
362
Sobre as relações clientelísticas no Brasil Império, GRAHAM, Richard. Op cit, 1997.
363
Jornal do Amazonas, 1 de agosto de 1878, nº 264, p. 02.
144

demissões e nomeações dos cargos públicos policiais também representavam o


afastamento ou aproximação dos sujeitos das ferramentas de poder que possibilitavam
exercer domínio mais direto nas redes de produção e circulação dos produtos extrativista
e, sobretudo, sobre a mão de obra disponível na região.
O envolvimento dos subdelegados nas eleições locais era constante. Em Alvellos,
durante um pleito no ano de 1869, os liberais tenente José Soriano de A. da Silva, João
Sarmento Soriano A. da Silva e alferes Manoel Thomaz Guimarães, acompanhados de
vinte votantes, tentaram invadir a igreja da matriz e apoderar-se das urnas.364 Tentar
quebrar ou roubar as urnas eleitorais era uma tática muito comum que objetivava adiar o
pleito. Essas e outras práticas tornavam o cotidiano das eleições espaços permeados por
disputas que geravam muito tumulto e brigas. 365 A mera ameaça do uso da força podia
ser um recurso tão eficaz quanto seu emprego real. Em 1881, uma publicação sob o título
O delegado de polícia de Itacoatiara em excursão eleitoral acusava o delegado de polícia
alferes Manuel Antonio Rodrigues Pará de promover perseguições e praticar violências
durante o pleito eleitoral. O delegado em prol de corroborar com a campanha para
deputado estadual do conservador Padre Dacia realizava repressões e ameaças de prisão
contra os liberais da freguesia objetivando afastá-los dos pleitos.366
Retomando a publicação contendo as denúncias dos tumultos causada por José
Domingues Soriano A. da Silva, Manoel Guimarães e João Leovigildo da Silva Sarmento
na eleição de Alvellos, de 1869, que tentaram roubar a urna o anunciante relatava que:
(...)
Despeitados portanto os srs Soriano, Manoel Guimarães e Sarmento por
não terem encontrado amigos que os acompanhassem, insuflavam a
esses vinte votantes que os seguiram, para que inutilizassem a eleição
apoderando-se das urnas.
Esta ideia o srs Soriano já quis pôr em prática no tempo do sr.
Epaminondas, quando levou a primeira derrota, porém realizou-a agora
desapontado por ver que era a terceira taboca que levava.
(...).
O sr Soriano no tempo do sr Epaminondas, apresentou-se pleiteando a
eleição e a perdeu completamente. Em setembro do ano passado, ligado
com o sr Manoel Guimaraes, que por o terem nomeado subdelegado de
polícia daquela freguesia (o que a muito tempo almejava) mudou de
ideas! (...)
Como podia o sr Soriano com seu novo aliado o sr Manoel Guimaraes
vencer a última eleição quando estando este na subdelegacia e armado
da faculdade de recrutar perderam a de setembro? Como ganhariam
364
Amazonas, 17 de abril de 1869, nº 161, p. 04
365
Richard Graham assevera como “a violência – de um lado ou do outro, real ou apenas como ameaça –
não ia de contra o processo eleitoral, mas constituía parte essencial dele”. GRAHAM, Richard. Op cit.
1977, p. 166
366
Amazonas, 28 de setembro de 1881, nº 630, p. 01-02
145

agora, quando não ganharam então que a todos expinhasavão,


ameaçavam a todos com recrutamento, recrutavam guardas nacionais,
fazendo-os embarcar em pleno dia com grossos troncos nos pés!!!
Como poderiam s. mcs. Contar com amigos para seu lado liberal,
quando apregoando s. mcs. Liberdade foram os primeiros a praticar
todos estes despotismos, que nunca se sofrem sem deixar profundas
úlceras?
S. mcs persuadiram-se que pelo meio de fazerem-se temidos haviam de
conduzir o povo como carneiros? Enganaram-se completamente. Os
seus atos foram que o desprestigiarão perante a população e fizeram
com que s. mcs e seus companheiros fossem completamente
taboquiado.
Manaus, 10 de abril de 1869367 [grifo nosso]

Na descrição acima fica notória a importância do cargo de subdelegado de polícia


para a sociedade local, afinal Manoel Guimarães almejava tal posto há muito tempo,
possivelmente por compartilhar com os demais o significado social e econômico que
aquele espaço representava. Nessa publicação, o interesse na nomeação é atribuído
principalmente à faculdade de recrutar - atribuída como uma das funções das autoridades
policiais – e o seu uso para coagir eleitores durante os pleitos. No decorrer das eleições,
apesar de ser proibido por lei imperial recrutar 30 dias antes de qualquer pleito, essa
faculdade era bastante acionada para garantir a vitória na eleição ou mesmo atrapalhar
seu andamento.
De toda forma, a violência fazia parte da práxis de recrutamento em todo o Brasil,
além de servir para influenciar os pleitos eleitorais. Richard Graham afirma que as elites
locais “viam todo cargo nomeável em termos de possível ganho eleitoral”.368 Para o autor,
a centralidade dos interesses em torno das nomeações para postos públicos estava em
demonstrar poder e, acima de tudo, garantir um lugar para si ou seus clientes nas eleições.
Concordamos que a questão da influência nos pleitos foi também um fator importante na
região amazônica, todavia as informações que vem à tona das fontes indicam que havia
outros fatores que atraiam esses sujeitos para esses postos. Para a sociedade amazonense
oitocentista, os interesses em torno desses postos se relacionavam, especialmente, com os
deslocamentos de fronteiras, a exploração econômica dos produtos extrativistas e,
sobretudo, o controle da mão de obra disponível.
Além de selecionarem ocupantes para os cargos oficiais entre os considerados
cidadãos, outro grupo de onde frequentemente se escolhia nomes para assumir postos na
esfera policial era o dos regatões. Apesar das autoridades governamentais apresentarem

367
Amasonas, 17 de abril de 1869, nº 161, p. 04
368
GRAHAM, Richard. Op cit, 1997, p. 02
146

muitas vezes opiniões divergentes sobre a ação desses comerciantes dos rios, 369 era
notório o largo conhecimento que eles detinham das regiões e dos seus habitantes, em
particular daqueles localizados nos altos rios. Um dos mais conhecidos regatões escolhido
para exercer o cargo de subdelegado foi Manuel Urbano da Encarnação, nomeado como
3º suplente para o distrito do Alto-Purus em 1868.370 Urbano mantinha estreitas relações
com autoridades provinciais e estrangeiros que ansiavam por desbravar as águas barrentas
do rio Purus desde longa data. Ele esteve presente, por exemplo, nas expedições do inglês
William Chandles e do norte-americano William James, que acompanhava Louis Agassiz
na expedição Thayer, ambas realizadas na década de 1860. Antônio Alexandre Isídio
Cardoso assevera como a presença de Urbano da Encarnação “extrapolava a função de
guia e informante, posto que colocava em circulação experiências e conhecimentos sobre
a floresta apropriados por agendas de conquista e expansão econômica”.371 Segundo
Cardoso, o Estado fez uso dos saberes acumulados por esses sujeitos para estender sua
presença nas áreas onde sua atuação ainda era escassa. E a nomeação ao cargo público
atribuía a esses indivíduos ainda mais poder e controle sobre os demais habitantes dessas
regiões. Os regatões, por exemplo, aproveitaram essas atribuições para expandir seu
domínio sobre a produção e comercialização de produtos extrativistas e controle sobre a
mão de obra das populações indígenas, negra e não branca que habitavam os sertões.
O controle sobre a produção e circulação da goma elástica atraia tantos interesses
que em uma denúncia contra o subdelegado Thomaz Ribeiro de Mello se afirmou que a
seringa era “primeira lei para resolver qualquer questão aos olhos do – celebérrimo –
subdelegado”, nos distritos do rio Purus em 1878.372 Dessa forma, no contexto da
expansão gomífera, ser subdelegado representava uma importante posição para se
resolver conflitos em torno das estradas de seringa. Os proprietários das terras
aproveitavam as imprecisões e incertezas das demarcações para tentar ampliar suas
possessões, o que se tornava ainda mais facilitado se se ocupasse um cargo policial ou se

369
Antonio Alexandre Cardoso explique que essas desconfianças estavam relacionadas com as relações
mantidas entre os mascates fluviais e mocambos. Segundo o autor “como os mascates fluviais tinham o
hábito de subir os rios para alcançarem áreas distantes, ansiando mais fregueses, havia sempre a
possibilidade de cruzamento com transgressores ou com comunidades ilegais de fugitivos pela floresta”.
Essas ações eram movidas por interesses de diversos níveis que não se encerravam nos interesses puramente
econômicos, para ver mais detalhadamente como essas ‘alianças complexas’ conformavam nos sertões
amazônicos, ver: CARDOSO, Alexandre. Op. cit. 2017
370
Amazonas, 9 de maio de 1868, nº101, p. 02.
371
Antônio Alexandre Isidio Cardoso descreve minuciosamente a importância do papel do Manuel Urbano
da Encarnação, descrito pelas fontes como “um mulato de pouco instrução e de grande inteligência natural”,
em: CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op cit. 2017, p. 14-192.
372
Amazonas, 5 de maio de 1878, nº 124, p. 03
147

tivesse alguma autoridade dessa estatura em sua rede de fregueses. O português


Domingos José de Araújo, em uma publicação sob título Dois Flibusteiros, denunciou as
ações de Jacintho Botinelly, subdelegado de Canutamã, de Manuel Benedito Soares
Dantas e ainda de “cinquenta e tantos conterrâneos do Ceará [que por uso de] força
armada apoderaram-se de seus seringais”.373 Em Vista Alegre, nas margens do rio Purus,
uma publicação do jornal Amazonas de 1881 denunciava o subdelegado Francisco de
Salles e Silva de ser auxiliar de José Henrique da Cruz, proprietário de seringais na região,
na empreitada de “à viva força apoderar-se de toda a extensão entre o fura da Vista Alegre
e a boca do rio Aforrá”. O autor da publicação foi Manoel Benedicto Soares Dantes, um
dos proprietários que se tornara alvo das agressões praticadas por Salles e Silva. De
acordo com o denunciante, Salles e Silva usava de “toda sorte de violência aos vizinhos
do concessionário para expeli-los dos ambiciosos seringais ao referido José Henrique”.374
Muitos outros sujeitos não só uniam seus interesses privados de exploração e lucro
com a produção gomífera como também se utilizaram das prerrogativas dos cargos
policiais como caminho para enriquecimento. Era determinado que, caso as autoridades
tivessem que dispender de recursos próprios para realizar serviços públicos, esses gastos
deveriam ser devolvidos pelo Estado. Aproveitando dessa prerrogativa alguns
subdelegados enviavam requisições de despesas falsas, como foi relatado na publicação
do jornal O Catechista, em 1864, denunciando o subdelegado capitão d’artilharia João
Evangelista Nery de Tabatinga por formular “contas falsas, figurando índios [que
estariam a serviço do Estado] que nunca existiam nesse serviço e com cujo estelionato
obtinha dos cofres da província 54$000 réis todos os meses”.375
Outros aproveitavam das obrigações instituídas pelo regulamento de 30 de janeiro
de 1854 sobre as funções dos subdelegados de “conservar as terras devolutas e alheias em
seus distritos”. No cenário de crescente interesse pelas seringueiras e consequente
aumento da procura pelas terras nos altos rios amazônicos, essa determinação da lei
reservou mais poder aos ocupantes daquele cargo, que passaram também a utilizá-los
como mais uma estratégia enriquecimento. Em 1870, por exemplo, o presidente da
província requereu ao chefe de polícia que investigasse a denúncia contra Miranda Leão,
que naquele momento era subdelegado de Manicoré, e estaria se apropriando de terras

373
Amazonas, 18 de dezembro de 1881, nº 663, p. 02/03
374
Amazonas, 05 de agosto de 1881, nº 620, p. 02.
375
O Catechista, 26 de novembro de 1864, nº 141, p. 02
148

devolutas, vendendo-as “em seu proveito em porções a diversas pessoas”, com preços
variando entre 600$000 a 2:000$000 réis. 376
Além da borracha outros produtos também eram almejados no comércio realizado
nos rios amazônicos como a castanha, a salsaparrilha, copaíba e a tartaruga. A tartaruga
era muito almejada para alimentação local e, devido a isto, possuía bastante valor
comercial desencadeando uma disputa pelo controle dos animais. Muito subdelegados,
por exemplo, usavam sua posição de poder para tentar manter domínio sobre a coleta e
circulação das tartarugas, como assim o fez João Auto de Magalhães de Castro com
pescadores da praia de Guajaratuba, localizado próximo ao distrito de Manacapuru em
1871. Essa não era a primeira vez de Magalhães Couto no serviço público, na verdade,
ele já integrava o corpo administrativo desde 1855 quando chegou da província da Bahia
para ocupar o cargo de tesoureiro na tesouraria pública da província. No ano seguinte, foi
eleito para deputado estadual na Assembleia Legislativa377 e simultaneamente nomeado
para a função de subdelegado da capital.378 Mesmo ocupando uma das posições mais altas
da hierarquia política e social do período, aceitar a nomeação para subdelegacia mostra a
importância desse cargo naquela sociedade.
João Auto exerceu o cargo policial até 1858, quando foi exonerado pela primeira
vez. Essa primeira exoneração foi motivada por diversas incriminações de agressões e
abuso de poder imputadas a ele, dentre as quais a denúncia de ter praticado violência
contra indígenas da etnia Mura da região do Januaca, alguns dos quais foram presos e
espancadas, e contra “um menor de 4 anos filho da índia Portasia, que caiu n’agua e
afogou-se na ocasião, [chegando a óbito, justamente no momento] em que sua mãe era à
força embarcada em uma montaria”.379 Muito possivelmente, João Autto intentava levar
Portásia e outros seus companheiros para trabalhar a seu serviço ou mesmo de seus
conhecidos. Muitas mulheres e crianças eram raptadas e posteriormente alocadas no
serviço doméstico das casas de Manaus, capital da província do Amazonas. As denúncias
contra João Autto não eram recentes. No ano anterior, por exemplo, o indígena Joaquim
Pedro Antonio havia procurado o Chefe de Polícia da capital para realizar denúncias
semelhantes.380

376
Amazonas, 12 de maio de 1870, nº 217, p. 01.
377
Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1856-1857. APEAM.
378
Estrella do Amazonas, 7 de maio de 1856, nº 142, p. 03
379
Estrella do Amazonas, 23 de janeiro de 1858, nº 263, p. 03
380
Estrella do Amazonas, 23 de janeiro de 1858, nº 263, p. 03
149

Mesmo após esses ocorridos, em 1870, João Auto de Magalhaes Couto novamente
foi nomeado para exercer o serviço de subdelegado de polícia da capital. No ano seguinte,
uma publicação do jornal O Catechista incriminava-o de “valendo-se de seu emprego
para dele tirar lucro”, praticar diversas violências contra pescadores de tartarugas da
região. Segundo a denúncia, cotidianamente o subdelegado enviava praças da polícia até
a praia de Guarajatuba para conduzir os pescadores à sua presença e “depois de uma
horrível descompostura os despedia, recomendando-lhes que quando voltassem não se
esquecessem de trazer tartarugas, farinha e peixe para ele, sob pena de prisão.381 Também
sob ameaça de prisão, o subdelegado coagiu Estevão José da Rocha, homem já de idade
avançada, a trabalhar em sua propriedade salgando um alqueire de peixe.382 Os produtos
obtidos dessas ameaças provavelmente seriam depois negociados por Couto Magalhães
em sua montaria que utilizava para o comércio de regatão.383
Casos como os acima relatados repetiram-se por meio dos periódicos locais e na
Justiça. A partir disso, não nos parece que os interesses nas eleições, a conquista de status
social e, até mesmo, o enriquecimento defina completamente os interesses desses sujeitos
na ocupação dos cargos públicos. Isto é, havia outras demandas internas que pesavam
mais na hora de aceitar ou não uma ocupação pública nos sertões amazônicos,
especialmente no que se refere aos cargos policiais. De fato, a possibilidade de controle
da mão de obra livre formada por indígenas, mestiços e negros representou um dos
principais atrativos desses homens para posições como a de delegado ou subdelegado. No
próximo tópico, examinaremos as formas específicas empregadas pelas autoridades
públicas e particulares para a imposição ilegal do trabalho compulsório.

3.2 – Agentes do Estado, agentes da coerção: alistamento e prisões ilegais

(...)
Eduardo Mattos dos Santos, extrator de goma elástica e morador no
distrito de Canutamã, no rio Purús, desta Comarca, usando da faculdade
que lhe dá o art. 74 do cod. de proc. Crime, vem perante V. Sª.
Denunciar ao subdelegado de polícia do mesmo distrito Jacintho Corrêa
da Silva Botinelly, pelos fatos que passa a submeter ao esclarecido
critério de V. Sª.

381
O Catechista, 9 de março de 1871, nº 483. p. 03
382
O Catechista, 9 de março de 1871, nº 483. p. 03
383
Em 1872, uma relação de devedores a fazenda provincial constava o nome de João Auto de Magalhaes
Couto como dever dos impostos referentes ao comércio de regatão que eram realizadas no rio Purus.
Amazonas, 30 de janeiro de 1872, nº 397, p. 04
150

Em dias do mês de julho do ano passado mandou o referido


subdelegado prender e meter em troncos, fazendo da sua própria casa
cárcere privado, o cidadão Faustino Joaquim Alves do Nascimento,
morador e extrator de goma elástica no mesmo distrito, o qual foi
conservado nessa tortura por mais de quinze dias, pelo simples fato de
declarar ao mesmo subdelegado que não podia mais continuar a seu
serviço empregando assim a sua autoridade em negócio seu particular,
prendendo e metendo em torturar o paciente, atentando contra a
liberdade do mesmo sem ser caso disso e sem dar a nota de culpa
ordenada no art. 182 do cod. Crime e sem forma alguma de processo.
(...)384.

Em 1880, Jacintho Correa da Silva Botinelly foi réu em um processo por crime de
responsabilidade por uma série de denúncias de abuso de autoridade cometidas enquanto
exerceu o cargo de subdelegado do distrito de Canutamã, às margens do rio Purus. Esse
tipo de processo estava previsto no Título V nomeado Dos Crimes contra a boa Ordem e
Administração Pública presente no Código Criminal do Império de 1830, que estava
divido em três capítulos intitulados respectivamente: Prevaricações, Abusos e Omissões
dos Empregados Públicos, Falsidade e Perjúrio. O primeiro era o mais longo e estava
subdivido em sete secções nomeadas: 1) Prevaricação, 2) Peita, 3) Suborno, 4)
Concussão, 5) Excesso, ou abuso de autoridade, ou influência proveniente do emprego,
6) Falta de exação no cumprimento dos deveres e 7) Irregularidade de conduta.
O autor do processo, Eduardo Mattos dos Santos, acionou quatro artigos do Título
V para justificar a condenação de Botinelly dentre eles o artigo 139 (Exceder os limites
das funções próprias do emprego), 145 (Cometer qualquer violência no exercício das
funções do emprego, ou a pretexto de exercê-las), 160 (Julgar, ou proceder contra lei
expressa) e 166 (Irregularidade de conduta). Também ainda constam outros artigos que
perfaziam a condenação por falta de autoridade para realizar a prisão, cárcere privado,
ofensa física e estelionato.385 Santos requeria que Botinelly fosse acusado no grau
máximo de todos os artigos e o pagamento de 30:000$00 pelos danos causados. Na
prática, a maior parte das penas atribuídas pelo Título V podem ser classificados como
‘brandas’ visto que prescreviam prisão simples por curto período, pagamento de multas
ou o afastamento do cargo.386 Segundo Jurandir Malerba, as penas mais leves nesse título
resultavam da própria construção do Código Criminal de 1830 que em seus artigos

384
Autos crime de responsabilidade. 1880. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (06). Localização:
JD.JD.PJ.ACRP1880:28(06). AGTJAM
385
São eles os artigos 181, 182, 189, 190, 201 e 264 (parágrafos 1 e 4).
386
Como destaca Jurandir Malerba, por exemplo, o Título V é o único que não previa em nenhum de seus
artigos a prisão com trabalho. MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e
mentalidade patriarcal no Império do Brasil. Maringá: EDUEM, 1994.
151

buscava resguardar o direito à propriedade, a defesa da ordem patriarcal e escravista. 387


O autor ressalta que se colocássemos “em um gráfico imaginário – em cujo eixo
horizontal dispuséssemos os crimes e no vertical as penas - ressaltar-se-iam as
discrepâncias escabrosas na aplicação diferenciada da lei segundo a qualidade do
delinquente”.388 Sinalizando como o Código Criminal reproduzia as desigualdades sociais
e raciais latentes na sociedade brasileira do século XIX.
Um símbolo disso é que, ao fim, o processo de Santos contra Botinelly, mesmo
após serem inquiridas as testemunhas que confirmaram várias das acusações, foi julgado
inconsistente. Na prática, os objetivos dos que acionavam o Titulo V, na maioria dos casos
aqui analisados, estavam voltados à mediação de questões internas da elite que
disputavam o acesso aos cargos públicos, ao controle das rotas de comércio e produtos
naturais. No entanto, dentre os 52 processos consultados no Arquivo Geral do Tribunal
de Justiça do Amazonas sob esse título cerca de 10 deles traziam nas entrelinhas ou
explicitamente a prática de coerção ao trabalho orquestrado pelas autoridades públicas,
assim como a disputa em torno do uso da mão de obra. Esse é o caso do processo que
descrevemos até aqui. Dentre as denúncias contra Jacintho Correa da Silva Botinelly
constava o fato de estar utilizando suas prerrogativas de autoridade policial em Canutamã,
às margens do rio Purus, para “prender e manter em tronco (...) o cidadão Faustino
Joaquim Alves do Nascimento”, por este não querer mais permanecer a seu serviço na
produção de goma elástica.
Dessa forma, a análise desses processos criminais em associações de outras fontes
como correspondências oficiais, viajantes e periódicos permitem repensar a afirmação da
historiografia de que o Estado não interveio na organização da força de trabalho aplicado
nos empreendimentos, especialmente da borracha, da província do Amazonas na segunda
metade do Oitocentos. A historiadora brasilianista Barbara Weinstein, por exemplo,
afirmou que “o negócio da borracha recebeu relativamente pequena assistência ou
interferência do setor público” para custear a produção de mão de obra assim como “no
controle dos preços em períodos de superprodução”. Para Weinstein, em contraposição à

387
Jurandir Malerba destaca como a partir da diferenciação do grau de intensidade das punições pode-se
perceber como o Código Criminal de 1830 retificava a desigualdade, o paternalismo e o sistema escravista
que caracterizavam a sociedade brasileira do Oitocentos. O autor indica ainda como “por definição cada
um dos artigos [do Código Criminal] volta-se sempre para a defesa de duas instituições caras aos
construtores da nação brasileira: a preservação da casa onde, enfim, gestava-se a própria economia. E a
moldagem e conservação do Estado, cuja estrutura patriarcal emana do quadro familiar”. Nesse sentido,
era primordial preservar a posição dos cidadãos, especialmente daqueles que ocupavam cargos públicos,
mesmo quando cometiam delitos. MALERBA, Jurandir. Op cit. 1994, p. 122
388
Idem.
152

economia cafeeira de São Paulo, onde os interesses estatais se concentravam, “a inação


do Estado em face do negócio da borracha reduziu o potencial da transformação da
economia amazônica”. 389 Outro exemplo dessa perspectiva é Arthur Cesar Ferreira Reis
que criticava em suas obras a ausência da presença do Estado no planejamento nas áreas
de exploração de borracha. O autor asseverava que toda responsabilidade de organização
teria ficado a cargo dos “coronéis de barranco” como eram chamados os proprietários
de seringais.390 Nossas fontes, no entanto, apontam para a intensa utilização das estruturas
estatais como ferramenta de coerção de trabalhadores.
Vejamos, por exemplo, a história de Faustino Alves do Nascimento. Ela se
repetirá constantemente no mundo do trabalho do vale amazônico e o que chegou até
nossos dias representa um vislumbre perante a totalidade da amplitude do que ocorria no
XIX. As ameaças de alistamento, prisões ilegais, assinaturas de dívidas forçadas e raptos
constituíram o quadro de práticas acionadas por agente públicos e privados para coagir a
população livre e não-branca ao trabalho. Ademais, o exame dessas ações contribui com
o debate sobre as bases das relações de compulsoriedade e de precarização da liberdade
da população africana e afrodescendente trazendo para o debate as experiências das
populações indígenas e não-branca, mostrando como muitos desses mecanismos eram
articulados pelas próprias forças estatais.
De fato, controlar, vigiar e explorar a força de trabalho das populações indígenas,
mestiça e negra funcionou como uma prática normalizada no seio da administração estatal
ao longo do século XIX no Brasil Império. Nesse contexto, uma das instituições mais
voltadas para atingir esse objetivo foi o alistamento militar. Durante boa parte do século
XIX, como aponta Vitor Izeckson, o recrutamento militar foi tarefa complicada para o
Governo Imperial por expressar “o aumento da intervenção governamental e a invasão
das prerrogativas locais”, assim como representar “a apreensão de indivíduos e seu
deslocamento para outras regiões” 391. Somado a isto, havia o fato de o serviço militar ser
considerado atividade brutal e perigosa, adequada apenas para indivíduos vistos como
socialmente desejáveis e necessitados de disciplinamento, tornando alvos principais dessa
política aqueles classificados como desocupados, migrantes, criminosos, órfãos e
desempregados.

389
. WEINSTEIN, Barbara. Op cit, 1993, p. 17-18.
390
REIS, Arthur Cesar Ferreira. O seringal e o seringueiro. 2ª ed. Revista. Manaus: EDUA, Governo do
Estado do Amazonas, 1997.
391
IZECKSON, Vitor. A guerra do Paraguai. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial
– Vol. II – 1831-1889. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009.
153

A própria linguagem embutida no significado oitocentista para “recrutamento”


remetia à sua natureza compulsória e violenta, como destaca Hendrik Kraay. As próprias
palavras comumente utilizadas pelas autoridades, tais como “apreensão” e “prisão”, para
se remeter aos alistamentos já deixavam transparecer seu caráter coercitivo. A condição
forçada da prática do recrutamento estava embutida nessa instituição desde o período
colonial. Na Amazônia principalmente os indígenas eram cooptados para trabalhar em
fortalezas, casas fortes e fortins localizados nos sertões e fronteiras. As redes de
mobilização militar, como descritas por Wania Viana, de incorporação de indígenas às
tropas davam-se nos espaços dos aldeamentos, por meio da negociação direta com os
sujeitos ou dos “principais” ou ainda por meio de cooperação entre capitanias.392
Essa era uma prática tão arraigada na sociedade amazônica que o viajante inglês
Paul Marcoy, durante sua exploração no rio Purus, usou-a para amedrontar e obrigar que
continuassem a seus serviços os remadores indígenas que se recusavam a prosseguir
obedecendo seus comandos. Segundo a narração de Marcoy, o ocorrido teria se dado da
seguinte maneira:
Impaciente por continuar a investigação que já produzira resultados tão
satisfatórios, ordenei aos remadores que subissem o canal, que eu
supunha iria levar-me de volta ao [rio] Amazonas. Até aquele momento
os homens haviam atendido quase passivamente os meus desejos e,
salvo carrancas ocasionais quando, para fazer o ponto da situação, eu
os obrigava a fazer linha reta um percurso que o rio queria sinuoso, eu
não tinha tido queixas dos seus serviços. 393

A observação do viajante inglês de que os remadores até o momento “haviam


atendido quase que passivamente” os seus desejos informa bastante sobre os recorrentes
desafios e problemas enfrentados por particulares, estrangeiros e autoridades públicas
para manter remadores indígenas a seu serviço durante seus percursos. Ao longo de sua
viagem pelo vale amazônico, o próprio Marcoy relatou diversos momentos em que
enfrentou dificuldades para conseguir remadores assim como sua constante evasão ao
longo da viagem. Foi justamente com base nessas experiências que nessa parte do relato
o viajante destacou positivamente o fato de os trabalhadores não terem reclamado nem
agido contra sua vontade até aquele instante. Contudo, a situação mudou completamente,

392
VIANA, Wania Alexandrino. Gente de guerra, fronteira e sertão: índios e soldados na capitania do
Pará (primeira metade do século XVIII). Tese (doutorado em História), Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará, 2019.
393
MARCOY, Paul. Viagem pelo Amazonas. Manaus: EDUA, 2006, p. 149.
154

quando Marcoy determinou que os indígenas remassem contra a correnteza do Aru. O


inglês relatou como:
De repente, eles perderam a paciência; o timoneiro atirou ao chão o seu
remo, foi à deriva. Confesso que naquele momento fui tomado pela
cólera. Levantei-me, agarrei o remo com as duas mãos e, como
Hércules prestes a executar Caco, dei a impressão de querer quebrá-lo
na cabeça dura do meu timoneiro. O homem soltou um grito de pavor,
retraiu-se e, juntando as mãos, suplicou-me que o poupasse. Então não
só atendi a sua prece, como lhe devolvi o remo, que ele imediatamente
mergulhou na água. Os remadores haviam ficado pasmos diante
daquele entrevero; eu os deixei ainda mais atemorizados declarando-
lhes que ao chegar à Barra do Rio Negro iria dar queixa às autoridades
do seu motim para que fossem imediatamente convocados a servir na
briosa corporação militar.394

Paul Marcoy, por intermédio de uma narração permeada por um tom heroico,
buscou comparar sua ação com o semideus Hércules na execução do gigante Caco. No
caso da cena, os remeiros em motim são representados como uma fera e o viajante o herói
que doma o monstro. O inglês sabia quais ferramentas usar para forçar os trabalhadores
a seguir seus comandos. No contexto amazônico, apesar do uso da força chegar a
amedrontá-los, isso não os fez desistir completamente do motim. Foi apenas depois que
o viajante acionou a ameaça de entregá-los para o alistamento militar que os remeiros se
tornam aparentemente temerosos e voltaram ao serviço. Marcoy tinha tanta clareza do
pavor causado pelo recrutamento nos indígenas que finalizou a descrição do fato, da
seguinte forma:
Esse tipo de recrutamento, ao lado da varíola, é uma das coisas que os
Tapuias temem mais do que qualquer outro infortúnio. Percebi que os
rostos escuros empalideceram e, trocando olhares significativos,
empunharam os remos e começaram a vogar com um entusiasmo que
beirava a fúria.395

O recrutamento forçado funcionava como uma forma de controle que por meio da
ameaça do alistamento e do medo criado em torno disso fortaleciam as práticas ilegais de
coerção de trabalhadores, sobretudo a sua manutenção nos serviços. Dessa forma, assim
como Marcoy, muitos outros indivíduos utilizaram essa prática para impor trabalho à
grande parcela da população livre do vale amazônico, e as autoridades públicas foram
umas das responsáveis pela reprodução e fortalecimento dessa ação, especialmente os
subdelegados de polícia. Esses oficiais tinham como uma de suas prerrogativas

394
Idem. p. 150.
395
Idem. p. 150.
155

justamente a responsabilidade de pôr em prática o recrutamento para a Guarda Nacional


e o Exército. Ficava a cargo dos inspetores de quarteirão listar todos os homens aptos para
se engajarem. E, a partir dessa lista, os subdelegados deveriam encaminhá-los nas
embarcações para Manaus, de onde partiriam para seus destinos. Contudo, muitos dos
alistamentos eram realizados como forma de castigo para aqueles indivíduos que se
negavam a prestar seus serviços ou que queriam encerrá-lo.
Esse último caso foi o que aconteceu com Jeromimo Affonso Nogueira morador
da cidade de Manaus em 1858.396 O trabalhador, por não concordar com as contas que
seu patrão Manoel José de Macedo lhe apresentava, decidiu deixar o serviço e retornar
para sua casa. Todavia, o patrão acionou o subdelegado de polícia de Manaus para que
buscasse Jeronimo de volta ao seu serviço. Jeronimo inconformado com a situação fugiu
novamente da casa de Macedo, mas acabou sendo apanhado e forçado a retornar para o
domínio daquele homem. Todavia, quando lá voltou o patrão lhe apresentou uma “conta
extraordinária” e intentando livrar-se dela buscou realizar uma denúncia contra o dito
Macedo. Devido às queixas, o patrão requisitou a prisão do trabalhador, “mas vendo que
essa imputação falsíssima e [iníqua] não poderia, afinal, vingar, iludindo o Meritíssimo,
o subdelegado obtém que se resolva esta prisão em recrutamento!”. 397 O subdelegado em
questão, cujo nome não foi divulgado no ofício, não foi iludido pelo patrão de Jerônimo.
Muito provavelmente a autoridade policial e Manoel Macedo mantinham relações de
amizade que facilitavam a apreensão do trabalhador em suas duas fugas, a sua prisão e a
posterior ordem de alistamento.
Os recrutamentos eram praticados de forma tão indiscriminada e desenfreada que
mesmo os interesses do Estado algumas vezes entravam em desacordo com as ações das
autoridades locais. Em 1859, no distrito de São Gabriel, localizado no alto Solimões, um
ofício do capitão encarregado das Obras do Cucuhy requisitava que o subdelegado da
localidade fosse avisado para não recrutar os indígenas, que estavam no trabalho das obras
públicas e nem os chamar para seu serviço próprio. O capitão advertia que o subdelegado
poderia realizar os recrutamentos em meio daqueles que não tinham isenções legais, mas
que evitasse alistar “os trabalhadores empregados nas obras do Forte para os não
afugentar e dificultar a conclusão da obra”.398 Outro momento de conflito ocorria quando

396
Livro nº 04 - Ofício do delegado de polícia ao presidente da Província do Amazonas, 1854. Arquivo
Público do Estado do Amazonas. p. S/N.
397
Idem.
398
Estrella do Amazonas, 19 de dezembro de 1859, nº 412, p. 02
156

essas autoridades policiais usavam seu poder local e prestígio social para angariar mão de
obra através da proteção de desertores.
Um ofício enviado pelo chefe de polícia da província requeria que fossem
realizadas investigações contra o subdelegado Henrique José Alfores, do distrito de
Maués, por “haver conservado a seu serviço um desertor da Marinha, que se tinha
apresentado para voltar a praça” em 1864.399 O chefe pedia ainda sua demissão e sua
retirada do cargo de recrutador que também ocupava. Requereu ainda que fosse aberto
um processo por crime de responsabilidade para julgar as ações da autoridade pública.
Não consegui identificar se, de fato, isso ocorreu. Mas é bem provável que, caso o
processo tenha sido instaurado, ele acabou sem o indiciamento de nenhuma autoridade,
tal como terminaram inúmeros outros desse tipo presentes na Justiça municipal da
província do Amazonas.
Um momento de adensamento dos alistamentos na Amazônia ocorreu com a
eclosão da Guerra do Paraguai (1864-1870). Nesse período houve uma intensificação dos
recrutamentos em todas as províncias do país que, de início, corresponderam à
necessidade de ampliação do contingente militar. Vitor Izeckson aponta que esse processo
culminou o aumento de recrutados entre “os segmentos pobres de trabalhadores, que
contavam até então com a proteção dos chefes locais”.400 Na província do Amazonas, as
autoridades locais utilizavam essa “proteção” ao alistamento para ameaçar e controlar a
mão de obra “livre” disponível na região. Enquanto a guerra já se arrastava para o fim,
em dezembro de 1869, o juiz de direito da Comarca de Parintins, Romualdo de Souza
Paes d’Andrade, enviou um ofício direcionado ao presidente da província do Amazonas,
João Wilkens de Mattos, denunciando como a ação do recrutamento estava sendo
transformada pelo chefe de polícia e por seus delegados em ferramenta para penalizar
seus desafetos401.
O caso de Agostinho Pedro Sevallo, 29 anos de idade, casado, natural da povoação
de Alvarães e pescador, é ilustrativo desse tipo de ação 402. Em setembro de 1868, o
subdelegado de polícia da cidade de Tefé, João da Cunha Corrêa, prendeu o pescador e
forçou-o a acusar seus patrões de o terem mandado para fora da cidade com o intuito de
não cumprir as ordens do dito subdelegado. A autoridade tinha desavenças com os patrões

399
Ofício nº 399, 30 de junho de 1864. Livro de Ofícios Expedidos da Secretaria de Polícia, 1864. APEAM.
400
IZECKSON, Vitor. Op cit.
401
Livro de Correspondência do Juiz de Direito da Capital e do Interior com o Presidente de Província,
1869. APEAM.
402
Idem.
157

de Agostinho e queria utilizá-lo para vingar-se deles. Todavia, caso Agostinho não
cumprisse o acordo ele seria considerado alistado e enviado para lutar no Paraguai.
Perguntado o motivo de não ter logo denunciado a ação do subdelegado, afirmou que
tinha medo deste cumprir sua ameaça e enviá-lo para longe de sua família. A ameaça de
deslocamento por meio do recrutamento simbolizava para esses sujeitos o afastamento
dos seus espaços de sociabilidade, a quebra dos laços familiares e a perda de sua
autonomia. E, justamente por essas questões, essa política coercitiva do recrutamento foi
usada como ferramenta de imposição de trabalho, por parte dos agentes públicos em
acordo com entes privados na tentativa de ter acesso a mão-de-obra em abundância.
Mesmo após o fim da guerra, o recrutamento militar continuou figurando enquanto arma
de controle e penalização para a população pobre e não-branca ao longo do século XIX e
XX.403
No contexto de expansão de fronteiras em voga na província do Amazonas
oitocentista, a prerrogativa do recrutamento foi acionada também como ferramenta para
desestabilizar a produção de seringalistas inimigos, principalmente pelo emprego do
alistamento dos seus trabalhadores. Em 1870, o Major Sá e o subdelegado de Manicoré
Candido Ferreira de Barros enviaram uma diligência “agarrar guardar, escolhendo
somente aqueles que trabalhavam com os fregueses do sr. Elias” e “a gente dos srs Amaro,
Leão, Hermenegildo, Antonio Monteiro da Costa & filhos e outros”, que não estavam “na
graça do Major Sá” e seu amigo subdelegado. 404 A retirada dos trabalhadores de seus
desafetos das estradas de seringa abria a possibilidade de estender seus domínios por
outros seringais e, assim, aumentar sua produção de goma elástica. Também fez uso dessa
ferramenta o subdelegado Joaquim Theodoro Bentes do distrito de Baetas, localizado na
região do rio Madeira, em 1876. Bentes matinha laços de amizade e interesses
econômicos com de Fulgêncio José da Motta Reimão, de quem era freguês (cliente,
comprador). E com vista a auxiliá-lo na expansão de seus domínios invadiu as estradas
de seringa de alguns súbditos (súditos) bolivianos, em especial, de Telesphoro
Salvatierra405, realizando a prisão dos seus trabalhadores que lá estavam. Essa não teria

403
O estudo de Álvaro Pereira do Nascimento demonstra como o alistamento continuou servindo como
ferramenta de controle social desde o Império até a República, nas primeiras décadas do século XX, ver:
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Op. cit, 2001; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e
disciplina: na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008.
404
Commercio do Amazonas, 2 de julho de 1870, nº 260, p. 01-02
405
Telesphoro Salvatierra foi uma personalidade marcante no processo de ocupação das terras do oeste
amazônico, atuando como um dos maiores bolivianos proprietários de seringais e, por isso, presente em
muitos conflitos pelas estradas de seringa. Sua presença também está fortemente ligada ao deslocamento
de bolivianos (indígenas e não-indígenas) para servirem como mão de obra na produção de seringa, muitos
158

sido a primeira vez, já que alguns meses antes a autoridade teria recrutado “do sr Gonçalo
um pequeno”.406 Essas denúncias e os processos resultantes desses conflitos culminaram
na demissão de Bentes do cargo de subdelegado. Não obstante, em 1878, ele foi
novamente nomeado para ocupar o posto no distrito de Três Casas, também no rio
Madeira, demonstrando sua inserção no meio político do Amazonas
Quem também foi alvo do alistamento como punição por negar-se a continuar
trabalhando foi o indígena Içana por nome Manoel Thomaz Sabino. Em 1875, por meio
de um habeas corpus, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (ex-presidente da Província),
pedia a liberdade do indígena de seguir para o recrutamento407. O indígena havia sido
recrutado após negar-se a continuar exercendo a ocupação de pescador a serviço do
subdelegado Antônio Pinto Ribeiro Cardoso na vila de Barcelos. No interrogatório de
Manoel, realizado com o auxílio de um intérprete visto que ele não dominava a língua
portuguesa, afirmou viver em companhia de sua tribo onde se ocupava da roça e pesca, e
saindo um dia para buscar umas peças de calças na casa de Germano acabou sendo preso
por um soldado e enviado para Barcelos. Chegando lá o subdelegado lhe mandou
trabalhar como pescador, mas ao negar-se continuamente a realizar esse serviço e requerer
sua liberdade para retornar para sua tribo, foi então remetido para capital Manaus como
recruta para o exército. Após o pedido de habeas corpus em favor do indígena, verificou-
se que ele ainda era “boçal” – ou seja, que ainda não falaria português e por isso
considerado como ‘selvagem’ – tornando assim ilegal seu recrutamento.408
De fato, o instituto jurídico do habeas corpus – instituído na prática jurídica
brasileira a partir da aprovação do Código do Processos Criminal de 1832 409 – configurou-
se como importante ferramenta das micropolíticas do trabalho de indígenas, negros e

levados de forma compulsória. Para mais ver: ROSA, Paula de S; COSTA, Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira.
O célebre Telesforo Salvatierra, o herói da terrível tragédia de Carapanatuba: conflitos pela posse de
seringais e o mundo do trabalho no rio madeira (1870-1887). Canoa Do Tempo, 12(2), 199-228, 2021.
406
Jornal do Amazonas, 2 de julho de 1876, nº 110, p. 02
407
Habeas Corpus em favor de Manoel Thomaz Sabino. Manaus. 1875.
Localização:JD.JD.PJ.ACHC1875:13(05). ATJAM
408
Habeas Corpus em favor de Manoel Maria de Souza. Manaus. 1878. Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1878:12(06). ATJAM
409
O instituto do Habeas Corpus passou a existir no Império brasileiro a partir do Código de Processo
Criminal de 1832, que no artigo 340 determinava que “Todo o cidadão que entender, que ele ou outrem
sofre uma prisão ou constrangimento ilegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de - Habeas-
Corpus - em seu favor”. Andrei Kroener aponta que “o habeas corpus foi criado (...) como uma garantia
judicial, como um instituto de caráter político”. Todavia, após a reforma do Código do Processo Criminal
de 1841, o autor pontua que ocorreram alterações na interpretação desse instituto, sendo uma das mais
importante “a mudança da ‘natureza jurídica’ do habeas corpus, em virtude de sua inclusão no artigo
referente aos recursos. A interpretação dominante passou a considera-lo como recurso criminal, cuja
aplicação se restringia ao processo criminal e seguia suas regras”. KROENER, Andrei. Habeas-Corpus,
prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999, p. 59-63
159

livres pobres em geral para livrar-se de prisões ilegais e, extrapolando os limites jurídicos
do instituto, da escravidão ilegal. O Código do Processo Criminal estava divido em duas
partes: a primeira, referente à organização judiciária; a segunda à forma do processo. O
habeas corpus aparece no último título dessa segunda parte, mais precisamente no Título
VI intitulado Da ordem de Habeas Corpus constando 15 parágrafos, iniciando do número
340 até o 353, que estabeleciam o direito, os requisitos do pedido, o seu processo, as
obrigações das autoridades, os efeitos da ordem e, enfim, o seu campo de aplicação. No
artigo 340, o primeiro do título, ficava determinado que “todo o cidadão que entender,
que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal, em sua liberdade, tem
direito de pedir uma ordem de – Habeas Corpus – em seu favor”. Ficava assim restringido
aos considerados cidadãos o direito de interpor a abertura de um habeas corpus,
excluindo escravizados, africanos, indígenas e livres pobres a quem era negado o
reconhecimento da cidadania. Todavia, a legislação resguardava aos cidadãos o direito de
pedir habeas corpus a outrem, mesmo que não usufruíssem da cidadania brasileira.410
É justamente devido a isto que o indígena Manoel Thomaz Sabino não poderia
interpor por um habeas corpus em seu favor visto não saber ainda português,
característica que era muito utilizada pelas autoridades públicas e pela elite para qualificar
indígenas como “selvagens”, o que lhes tirava o direito de exercer a cidadania. Por essa
razão, era necessário a intervenção de outra pessoa, mais precisamente alguém que
perante a sociedade fosse considerado como participante do “grêmio da civilização”.
Ninguém mais propicio para isso do que o renomado Bento de Figueiredo Tenreiro
Aranha, um dos primeiros homens a ocupar a posição de presidente da província do
Amazonas. Interessante notar que Manoel acionou alguém bastante reconhecido do seio
da sociedade amazonense, demonstrando ao mesmo tempo o alcance da sua rede de
sociabilidade, assim como sua compreensão do funcionamento do aparelho jurídico, que
teria mais abertura para aceitar o seu pedido de habeas corpus vindo de alguém tão
importante. Há também que se considerar que a questão de Manoel não “falar português”
perante as autoridades públicas também pode ser lida como uma estratégia do mesmo
para não seguir como alistado para a Armada, visto que “não falar português” ou aparentar
ser “boçal” era um dos pré-requisitos para tornar o recrutamento ilegal.
Quem também requereu um habeas corpus para livrar-se de uma prisão
considerada por ele como ilegal foi o boliviano José Manoel Durães. Em 1874, o

410
Para uma análise da criação, aplicação e usos do habeas corpus no Brasil Império, consultar:
KROENER, Andrei. Op. cit, 1999.
160

boliviano, morador no rio Madeira há três anos, depois de atirar em um companheiro de


trabalho chamado Francisco (de tal) foi remetido ao subdelegado do seu distrito. Todavia,
ao invés de enviá-lo para ser processado em Manaus, como mandava a lei, ele foi mantido
“pelo negociante Monteiro, residente no rio Madeira, que o conservou sob o pretexto de
preso no serviço de borracha”.411 Durães só foi enviado, de fato, para a cadeia da capital
depois que o período de coleta da seringa, ocorrido nos meses de agosto a final de outubro,
havia se encerrado. O seringueiro permaneceu na prisão por mais de seis meses até que o
promotor público requereu um pedido de habeas corpus em seu favor, que foi aceito.
As prescrições legais do uso desse instrumento estavam destinadas a verificar a
legalidade de uma prisão, realizada por alguma autoridade pública. No artigo 353, por
exemplo, ficava previsto cinco situações que seriam consideradas como aprisionamento
ilegal, sendo elas: a) quando não houver uma justa causa; b) quando o réu estivesse na
cadeia sem ser processado por mais tempo do que marca a Lei; c) quando o seu processo
estivesse evidentemente nulo; d) quando a autoridade, que o mandou prender, não tenha
direito de o fazer; e) quando já tivesse cessado o motivo, que justificava a prisão. 412 Todas
essas situações previstas no Código do Processo estavam diretamente ligadas à ação de
encarceramento. Andrei Kroener ressalta que após a reforma jurídica de 1841, com a
ascensão dos conservadores, a prática dos tribunais foi a de entender o uso do habeas
corpus de modo bastante estrito, devendo ser empregado apenas em casos de processos
criminais.413
Kroener também identifica na década de 1870 um aumento do números de pedidos
de habeas corpus nos arquivos por ele analisado. O autor argumenta que esse crescimento
estaria conectado com o avanço do processo de urbanização, responsável por causar a
intensificação da ação policial (não necessariamente da justiça criminal), aumentando
assim o número de prisões. Esse aumento no número de aprisionamentos teria
desencadeado o crescimento no número de pedidos de habeas corpus, que foram
impetrados sobretudo por homens livres pobres que estariam buscando acessar a
414
cidadania por essa via. Na província do Amazonas, como veremos mais a frente,
também localizamos um maior número de pedidos de habeas corpus nesse período, visto

411
Autos de Habeas Corpus. 1874. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (04). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1874:22(04). AGTJAM.
412
Código Criminal do Império do Brasil, 1830. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm, acessado em 1 de fevereiro de 2022.
413
KROENER, Andrei. Op cit. 1999.
414
Idem, p. 137-139.
161

que muitos trabalhadores recorreram a essa ferramenta jurídica para libertarem-se de


situações de trabalho forçado, escravização ilegal e sequestro, alargando assim as
prescrições do instituto do próprio habeas corpus (especialmente após a reforma judicial
de 1841, os conservadores passaram a defender que o uso do habeas corpus se restringisse
às questões penais)415. Contudo, não relacionamos esse movimento de crescimento no
número de habeas corpus apenas ao avanço da urbanização, como faz Koerner, mas
também às ações dos trabalhadores para demandar por direitos e influir nas relações de
trabalho, buscando assim fazer frente aos processos de coerção da vida em liberdade.
Indígena, negros e não-brancos pobres alvos constantes das práticas compulsórias de
autoridades públicas e particulares acionaram as determinações do habeas corpus para
denunciar um constrangimento ilegal, reivindicarem sua autonomia no mundo do trabalho
e requerer o direito de voltar a liberdade fora das cadeias.
Nessa conjuntura, apesar dos homens serem os mais recorrentes como alvos dessa
rede ilegal de coação ao trabalho, as mulheres também foram cooptadas forçadamente
pelas autoridades públicas e igualmente acionaram o instrumento jurídico para contestar
sua prisão. Esse foi o caso da indígena Maria Roza, de 25 anos de idade, lavadeira, natural
do rio Negro, em 1864.416 Esse é o único habeas corpus que localizamos para a década
de 1860, os demais estão localizados em sua maioria na década de 1870, período em que
as práticas de coerção de trabalhadores tencionaram acompanhando o crescimento do
interesse pelos produtos nativos, especialmente a borracha. Quem abriu o recurso a favor
da indígena foi Martinho José do [Coruma], relatando as perseguições orquestrada pelo
subdelegado da capital Eugenio Teixeira Ponce de Leão contra Maria Roza, que teria sido
presa sem motivo e depois enviada para trabalhar na olaria do major Tapajós. Segundo o
relato da indígena, o subdelegado sem lhe explicar a razão de sua prisão havia ordenado
seus subordinados que a preparassem “para seguir até as 6hrs para fora desta capital”. A
partir disso ela foi encaminhada para “casa do Major Tapajós com ordens do subdelegado
para lhe dar com um chicote e quebrar-lhe sua cabeça”. Estando na propriedade do major
Tapajós descobriu que seria castigada pelo dito mesmo e “não sendo ela escrava não
obstante ser tapuia, de lá se retirou” e permaneceu escondida na cidade de Manaus até
novamente ser presa.417

415
Idem, especialmente capítulo 2.
416
Autos de Habeas Corpus. 1864. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (01). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1864:14(01). AGTJAM.
417
Idem, p. 4.
162

Após requisição do juiz para que esclarecesse o motivo da prisão de Maria Roza,
o subdelegado enviou ofício relatando que esta teria sido recolhida na cadeia para assinar
um Termo de Bem-Viver, acusada de ser meretriz e encontrar-se pelas ruas da cidade
embriagada e envolvida com brigas. 418 O subdelegado ainda justificou que a demora para
soltar a indígena se relacionava ao fato de o próprio escrivão ter se prolongado na redação
do Termo de Bem-Viver, documento obrigatório para ser assinado por ela e liberá-la da
prisão. Todavia, em nenhum momento esclareceu os fatos sobre a denúncia de Maria
Roza. Muito provavelmente, a indígena foi enviada para a olaria pertencente ao major
Francisco Monteiro Tapajós localizada nos arredores de Manaus e era a principal
fornecedora de materiais para as construções públicas.
A história de Maria Roza e da rede de coerção ilegal de trabalhadores torna-se
ainda mais visível quando conectada com o artigo publicado no periódico Jornal do Rio
Negro em 1867. Desse exercício analítico, entrevemos como a rede de coerção de mão
de obra estava firmemente assentada na associação entre o delegado/subdelegado de
polícia da capital e os interesses do major, de cooptar compulsoriamente força de trabalho,
utilizando as estruturas e instituições estatais. Na publicação anônima era denunciado a
ação do então subdelegado de Manaus José Miguel Lemos que teria realizado ilegalmente
prisões dos africanos livres Martinho e Leonel e das mulheres Maria de Tal e Marcelina,
para forçá-los a trabalhar na olaria do dito major Tapajós.419 O autor da notícia descrevia
o ocorrido da seguinte forma:
Eis os fatos.
No dia 10 do corrente, estando o africano livre Geremias trabalhando
na obra da calçada dos srs. Amorim & Irmão, como servente, mandou
o sr. Delegado José Miguel de Lemos prendê-lo, e depois de estar um
dia na enxovia, sem crime, o mandou soltar e remetê-lo para a olaria do
sr. Tapajós.
Este africano livre ganhava 1600 rs por dia, e foi constrangido
arbitrariamente pelo sr. delegado Lemos a ir trabalhar na olaria com
diária de 500rs!!!
No dia 19 do corrente o sr. delegado José Miguel Lemos mandou
prender outro africano livre de nome Martinho, e só foi solto no dia 21,
e também remetido para a olaria do sr. major Tapajós: esta já foi
segunda prisão, sendo a primeira arrancado da obra do mestre
Raimundo e foi remetido a força para a olaria.
Maria de tal, mulher livre, que tem sua casa no arrabalde desta cidade
com roças e mais plantações foi mandada prender pelo sr. delegado José
Miguel de Lemos e remeteu-a para a olaria do major Tapajós a força e
arbitrariamente para trabalhar em tijolos e telhas, e tendo fugido

418
Idem, p. 6.
419
Jornal do Rio Negro, 30 de novembro de 1867, nº 129, p. 02
163

mandou-a procurar para metê-la na cadeia, como disse porque o tinha


desobedecido!!
Marcelina, mulher livre, moça, foi arbitrariamente agarrada e remetida
pelo sr. Dr. delegado José Miguel de Lemos para olaria do major
Tapajós a trabalhar em telhas e tijolos, e como fugisse, mandou por
muitas vezes procura-a para metê-la na cadeia.
O africano livre, Leonel, tendo sido maltratado com pancada pelo sr.
Major Tapajós, cujo tinha sido preso, e remetido para a olaria, fugiu
espavoria e nessa ocasião morreu afogado caindo no rio.
São estes os fatos que o sr. Dr. Chefe de polícia não ignora, e que os
aprova tacitamente aparentando os ignorar, para escandalosamente com
a polícia proteger o compadre do sapientíssimo, seu íntimo amigo.420

No caso dos africanos livres, Geremias e Leonel, eles estariam trabalhando para
outras pessoas quando suas prisões foram executadas. Sobre isso, o anunciante acusava o
subdelegado José Miguel Lemos de mandar prender os ditos africanos que trabalhavam
“por sua livre e espontânea vontade” na olaria de propriedade de João Pereira da Silveira,
“onde eram bem tratados de comida e os remeteu para a orlaria do Major Tapajós”. 421
Apesar da publicação destacar o caráter compulsório das ações ilegais da autoridade
policial “contra o sagrado direito da liberdade”, tal como enunciado pelo autor, essa
notícia deixa entrever como a maior preocupação estava ligada ao fato daquelas práticas
estarem prejudicando outros sujeitos de acessarem a mão de obra. Em um cenário, onde
a demanda por força de trabalho aumentava sobremaneira na capital e nos sertões, a
disputa pelo controle dos trabalhadores disponíveis, homens e mulheres livres (indígenas,
mestiços e negros) e escravos, tendeu a gerar conflitos e disputas em meio a elite local.
Aqueles que estavam inseridos nas redes de compadrio e amizade dos que controlavam
os postos na administração pública detinham assim mais meios de acessar a rede de
distribuição de trabalhadores, cooptados, na maior parte das vezes, de forma coercitiva.
Além de distribuir os trabalhadores cooptados compulsoriamente, a instituição
policial servia ainda como espaço de disciplinamento, mediante a aplicação de castigos,
para aqueles que não se comportassem de acordo com os padrões desejados pelos patrões.
Maria de Tal e Marcelina tentaram fugir repetidas vezes do trabalho penoso e das
violências vividas na olaria do Major e, por isso, foram remetidas à cadeia como
penalização pelas suas desobediências. Essa relação entre as demandas privadas e as
forças policiais muito se aproxima das estabelecidas entre o poder estatal e os senhores
de escravizados nas cidades, na qual a figura do feitor era substituída pela instituição

420
Destaque da própria publicação. Idem.
421
Idem.
164

policial.422 Como aprofundaremos em capítulo posterior, negros (livres, libertos e


escravos), indígenas e a população pobre e não-branca compartilhavam diversos espaços
tanto concernentes aos mundos do trabalho como de experiência de liberdade e coerção
na sociedade amazonense ao longo do século XIX.
Com o avanço das décadas de 1870 e 1880, ocorre deslocamento da região onde
as denúncias realizadas contra os subdelegados e outras autoridades públicas passaram a
ser encontradas nas fontes. Esse período corresponde justamente ao momento de
acentuação da exploração da borracha e intensificação do deslocamento de fronteiras em
direção aos altos rios, principalmente nas regiões do Madeira, Purus e Juruá.423 No
distrito de Manicoré, os já mencionados subdelegado Candido de Ferreira de Barros e o
major Manuel Pereira de Sá ameaçaram Gabriel Pereira de Magalhães com o
recrutamento para o serviço no corpo provisório em 1870. O Major, após dispensá-lo do
alistamento, tê-lo-ia obrigado a trabalhar em seu serviço, levando Gabriel a cometer
suicídio. Uma publicação do jornal Commércio do Amazonas afirmava que “antes de
realizar o seu negro pensamento, dizem, declarou que se matava para descansar dos
atropelos do Major Sá (...) e para escapar pôs termo a sua vida”. 424 Escolher a morte
parecia ser um caminho melhor do que cair nas malhas do penoso serviço militar.
Alguns anos depois quem também recorreu ao instituto do habeas corpus para
ver-se livre de uma prisão considerada ilegal foi Manoel Maria de Souza, natural da
província do Amazonas, lavrador, solteiro, residente no Lago da Salvação rio Purus, mas
com residência efetiva no lugar Cacau Pereira (rio Negro).425 Em 11 de dezembro de
1878, José Pereira da Silva Lobo entrou com recurso de habeas corpus em favor de
Manoel acionando o artigo 340, a longa demora para a formação de culpa e os demais
procedimentos para início do processo.426 A partir disso, José Lobo relatou os motivos
que qualificavam a manutenção de Manoel de Souza na prisão como ilegal e arbitrária.
Alguns meses antes, indo Manoel da sua barraca localizada no distrito de Vista Alegre no
rio Purus para o barracão de seu patrão com intuito de “comprar algumas mercadorias

422
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Vozes, 1988.
423
Sobre o movimento de expansão econômica, política e demográfica rumo a região do oeste amazônico,
ver CARDOSO, Alexandre. Op. cit. 2017 O autor realiza uma apurada pesquisa apresentando quais as
forças, e principalmente os diversos atores, envolvidos no processo de deslocamento de fronteira rumo aos
altos rios amazônico e como os saberes dos nativos (indígenas, negros e mestiços) foram apropriados para
dar suporte a esta empreitada capitalista.
424
Commercio do Amazonas, 2 de julho de 1870, nº 260, p. 01-02
425
Autos de Habeas Corpus. 1878. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (06). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1878:12(06). AGTJAM.
426
Idem.
165

que [lhe] eram precisas” encontrou alguns homens festejando, mas que não teria se
juntado a eles e ido embora para sua casa horas depois. No dia seguinte, pelas 9 horas da
manhã apareceram quatro homens em sua casa e o prenderam à ordem do subdelegado
do distrito alegando que ele teria “ferido a Martinho Pereira dos Anjos” e por esse motivo
teria sido remetido para a capital.
Quando chamado para prestar explicações sobre a prisão de Manuel Maria de
Souza, o carcereiro Verissimo Hilário Barboza afirmou que o seringueiro fora preso, em
flagrante delito, no dia 21 de outubro daquele ano por crime de ferimento. Ao ser
inquirido sobre os fatos apresentados, Manoel Souza relatou que estava trabalhando na
extração de goma elástica e aparecerem os quatro homens e o levaram à presença do
subdelegado de polícia Thomas de Mello no lugar chamado Fortaleza. Ao encontrar com
a autoridade policial, está teria proposto para Manoel se:
(...) queira ou não trabalhar para ele em goma elástica e sendo lhe
respondido que não podia assim o fazer porque tendo ele paciente digo,
porque ele paciente devia ao negociante Evaristo e trabalhava para
pagar-lhe, o dito subdelegado retorquiu lhe declarando que nesse caso
ele o mandaria preso para a cadeia de Manaus e pôs ele paciente em
troncos por espaço de vinte e um dia até que o fez embarcar no vapor
Andirá para esta capital em cuja cadeia pública foi recolhido no dia
vinte e um de outubro, sem que até hoje se tenha formado culpa.427

Manoel negou ainda ter praticado qualquer ferimento contra Martinho Ferreira
dos Anjos e nem mesmo conhecê-lo, reafirmando que sua prisão seria fruto de “invenção
do subdelegado”, por ele “não querer trabalhar para ele subdelegado”. Apesar das suas
alegações, o juiz negou a aprovação do pedido de habeas corpus em seu favor visto ter o
subdelegado Thomas de Mello enviado para o chefe de polícia ofício relatando as
circunstâncias do crime e da prisão que teria ocorrido dentro das regras estabelecidas por
lei. O instituto do habeas corpus por não seguir as normas previstas para os processos
criminais não abria prescrição para a chamada de testemunhas ou apresentação de provas
por parte dos autores. Devido a isto, novamente em nenhum momento as denúncias
apresentadas pelo trabalhador foram consideradas, especialmente porque neste segundo
caso a autoridade policial remeteu a nota de culpa que prevalecia como principal ônus da
prova do crime.
Também foi isso o que aconteceu com um seringueiro paraense na região do rio
Purus, cuja história também tivemos acesso por meio de um pedido de habeas corpus. O

427
Idem, p. 5.
166

instrumento jurídico foi impetrado por Angelo Neponuceno Freire em favor do


seringueiro Elísio Marcelino Leite, natural do Pará, então residente em São Domingos no
rio Purus há seis anos onde se ocupava como seringueiro.428 Em 1880, Elísio havia sido
enviado para cadeia pública da capital amazonense sob a justificativa de haver causado
ferimentos em um companheiro de trabalho chamado Manuel de Tal. Todavia, em seu
pedido de habeas corpus alegou ser injusta sua prisão pelos seguintes fatos: primeiro,
afirmava que o tiro havia sido disparado sem intenção e, segundo, por ser resultado de
antigas desavenças que o subdelegado João Fleury da Silva Brabo e o inspetor de
quarteirão nutriam contra ele. A rixa seria motivada pelo fato de Elísio não querer
trabalhar no serviço da borracha nas estradas de seringa de Silva Brabo, resultando na
aplicação de “um grande par de troncos de madeira estando assim ele paciente por vinte
dias”, até que foi remetido para Manaus.
Para embasar o pedido Angelo Freire acionou dois artigos para abertura do pedido
de habeas corpus: o artigo 340 que prescrevia o direito aos cidadãos de abrir tais recursos
e o artigo 353 que determinava o motivo para considerar a prisão ilegal, justificado no
parágrafo 2º. que estipulava que para “quando o réu esteja na cadeia sem ser processado
por mais tempo do que marca a lei”. O juiz municipal Francisco de Paula dos Guimarães
Peixoto, seguindo prescrições que determina a lei, requisitou que o carcereiro Verissimo
Hilário Barbosa apresentasse a certidão da ordem de prisão de Elísio que, por sua vez,
afirmou ignorar o motivo para a prisão do seringueiro, visto não constar descrito em sua
ordem de prisão e que, de fato, nenhum procedimento jurídico havia sido realizado para
seu julgamento429. Em seguida, o próprio Elísio Marcelino Leite foi inquirido sobre os
fatos decorrentes para sua prisão, que afirmou considerar sua permanência na cadeia
ilegal, já que não fizera nada do que lhe acusavam.
No dia 13 de agosto de 1880, o juiz de direito após averiguar a inexistência de
informações sobre a prisão de Elísio tanto com o carcereiro como com o chefe de polícia
considerou a prisão “arbitrária e ilegal”. O magistrado apontou a ineficácia do
subdelegado de seguir as prescrições jurídicas necessárias, além de desrespeitar o prazo
mínimo de 24 horas estabelecido por lei para formação da culpa (este último previsto a
partir da Reforma de 1871). O juiz reconhecia a necessidade em deter os indivíduos
previamente:

428
Autos de Habeas Corpus. 1880. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (06). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1880:29(06). AGTJAM.
429
Idem.
167

(...) quando a ordem social exige esse sacrifício da sua liberdade, mas
nada justifica sua detenção por mais tempo do que absolutamente
necessário para examinar-se e decidir-se se com efeito é ou não suspeito
de ter cometido o crime. O mais é um abuso escandaloso que quebra
todas as garantias da liberdade individual.430

Apesar dessas reclamações contra as práticas do subdelegado João Fleury da Silva


Brabo, o juiz não indicou a abertura de nenhuma investigação para averiguação dos fatos
relatados por Elísio ou para investigar as falhas nos procedimentos do subdelegado. Em
26 de setembro de 1880, o juiz acatou o habeas corpus e condenou o subdelegado
responsável pela prisão de Elísio a pagar a custas do processo.
Maria Roza, Elísio e Manoel acionaram suas redes de sociabilidade para
requererem um habeas corpus em seu favor por meio do qual questionavam suas prisões
entendidas como ilegais e ainda denunciavam os atos cometidos pelas autoridades
policiais que os queriam manter em submissão. Eles compartilharam essas experiências
com outros trabalhadores que, em várias partes do Império do Brasil, utilizaram das
ferramentas da estrutura jurídica para recuperar sua liberdade e autonomia. 431 Analisadas
em conjunto as ações desses trabalhadores, especialmente no âmbito da esfera jurídica,
mostram que, em primeiro lugar, a pressão pelo alargamento do uso do habeas corpus
estava interligada a um ampliação das reinvindicações por direitos por parte dos
trabalhadores em geral. Em segundo lugar, esses casos reiteram como as populações
indígenas, negras livres e pobres em geral, apesar de juridicamente livres, estavam
constantemente ameaçados no exercício de sua cidadania seja pelas ações de coerção de
particulares ou de agentes públicos. Inseridos nessa conjuntura, a liberdade dos
trabalhadores na Amazônia do século XIX parecia ser uma experiência árdua que
precisava ser cotidianamente reconquistada e reconstruída.

3.3 – Negócios de órfãos: comércio e escravização ilegal

José, o meu ajudante, no último ano de nossa permanência em Ega


[atual Tefé], ‘resgatou’ (um eufemismo usado ali em lugar de
‘comprou’) duas crianças índias, um menino e uma menina, por
intermédio de um mercador do Japurá. O menino devia ter uns doze
anos, e sua pele era desusadamente escura; tinha, de fato, a cor de um

430
Idem.
431
As ações civis de liberdade impetradas em favor de escravizados como forma de alcançar a liberdade
jurídica têm sido bastante exploradas na historiografia social da escravidão. Consultar: CHALHOUB,
Sidney. Op. cit, 1990; GRINBERG, Keila. Op. cit, 1994; MENDONÇA, Joseli M. Nunes. Op. cit, 2001.
168

cafuzo, mestiço de índio e negro. Acreditava-se que ele havia


pertencido a uma tribo totalmente selvagem e nômade, semelhante à
dos Parauates dos Tapajós (...) Demos ao indiozinho o nome de
Sebastião. (...)
A garotinha que veio com a segunda leva de crianças um ou dois meses
depois da chegada de Sebastião, todas atacadas de febre intermitente,
não teve a mesma sorte, porém. Ela foi trazida para nossa casa logo que
desembarcou, numa noite de chuva torrencial (...) O velho índio que a
trouxe até a porta disse apenas: “Aqui a encomenda”, e desapareceu.
Pouco havia de selvagem em sua aparência, e sua pele era muito mais
clara do que a de Sebastião. Descobrimos que pertencia à tribo Miranha
(...) Seu nome indígena era Oria432

A descrição acima faz parte do relato de viagem do inglês Henry Walter Bates que
viajou pelo vale amazônico, da província do Pará ao Amazonas, entre os anos de 1848
até 1859. Na narração em questão o viajante completou descrevendo como as crianças,
Sebastião e Oria, eram “capturadas no decorrer de sangrentas incursões feitas, por uma
facção, a dos Miranhas, sendo depois vendidas a mercadores de Ega (atual Tefé)”. O
inglês apontava ainda como os valores das crianças vendidas no mercado da cidade eram
altos, proporcionando muitos lucros aos mercadores. Bates não descrevia um mecanismo
necessariamente novo na região, visto que essa era uma prática amplamente notabilizada
desde o período colonial, o próprio uso da palavra “regate” remete-se a esse passado.
De toda forma, o século XIX na província do Amazonas, e no Império do Brasil,
viu o recrudescimento dessas ações. Essas meninas e meninos não seriam apenas
comercializadas nessa cidade, muito provavelmente seriam também enviadas para
Manaus, Belém e mesmo outras capitais do Império brasileiro no século XIX. Por meio
dessas capturas, esses menores de origem indígena, mestiça e negra eram alocadas em
inúmeras ocupações no mundo do trabalho tais como de serventes, serviços domésticos,
lavoura, criados, dentre outros. Essas redes de escravização ilegal de crianças indígenas
e negras ocorriam em várias localidades do Império. Vânia Maria Losada Moreira, por
exemplo, mapeou a existência desse tráfico ilegal de kurukas (crianças) em regiões das
províncias de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, atingido especialmente os botocudos
(borum) no século XIX.433 A historiadora defende que esse comércio “não representava
uma mera ‘fatalidade’ secundária da guerra de conquista”, mas sim fazia parte da
economia política do Império que via no trabalho compulsório dos povos indígenas um

432
BATES, Henry Walter. Op. cit. 1979, p. 207-208.
433
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Op. cit,, 2010; MOREIRA, Vânia Maria Losada. Kruk, Kuruk,
Kuruca: genocídio e tráfico de crianças no Brasil imperial. História Unisinos, v. 24, n. 3, p. 390-404, 2020.
169

caminho para a concretização de seus projetos de conquista territorial, criação e gestão


de mão de obra e de consolidação do Estado nacional.434
Inclusive, muitos arrebatamentos das crianças eram realizados sob o pretexto de
que eles seriam levados para ingressarem em instituições estatais como na Companhia de
Aprendizes Marinheiros ou na Casa de Educandos Artífices. 435 A construção desses
espaços objetivava agregar crianças consideradas “desvalidas” e “órfãos”, principalmente
negras e indígenas. Essa instituição estava conectada ao projeto do Estado Imperial de
assegurar o acesso à mão de obra diante da crise causada pela decadência do
escravismo.436 No caso da Companhia de Aprendizes Marinheiros, ela foi criada na
província do Amazonas em 17 de janeiro de 1871, sob a direção do 1º tenente da Armada
Frederico Guilherme de Souza Serrano em Manaus. 437 Todavia, a companhia já
enfrentava problemas estruturais e de orçamento desde o início de sua fundação, em 1873.
O presidente província Domingos Monteiro Peixoto reclamava que até aquele ano “a
companhia não estava organizada, pois não contava um só menor alistado”. 438 A
preocupação com a eficácia das arregimentação foi um problema enfrentado pela
administração pública no Amazonas, assim como em outras províncias brasileira, durante
todo o tempo de seu funcionamento devido, principalmente, aos baixos índices de
alistamentos voluntários.439 Em vista disso, as autoridades provinciais autorizavam as
forças policiais a praticarem o recrutamento forçado como justificativa de ser uma medida
corretiva para prevenir a aglomeração de crianças pobres nas cidades e sertões e evitar
que caíssem nos variados “vícios”.

434
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Op Cit, 2020.
435
David Lacerda realiza um detalhado estudo sobre a formação do Arsenal de Marinha no rio de Janeiro
na segunda metade do século XIX. O autor destaca como o ensino primário e profissional de menores
pobres foi articula enquanto uma estratégia política para garantir e reproduzir uma força de trabalho
especializada. LACERDA, David. Trabalho, política e solidariedade operária: uma história social do
Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (c. 1860 - c. 1890). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-
Graduação em História Social, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.
436
DOLINSKI, João Pedro. Saúde e cotidiano na Companhia de Aprendizes Marinheiros de Paranaguá na
segunda metade do século XIX. História Social, n. 24, 2013, p. 114.
437
Exposição com que ao Exm. Sr. Dr. Domingos Monteiro Peixoto passou a administração da província
do Amazonas o Exm. sr. General Dr. José de Miranda da Silva Dias no dia 8 de julho de 1872, p. 11.
438
Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da 11ª Legislatura
em 25 de março de 1873 pelo presidente da província, bacharel Domingos Monteiro Peixoto, p. 17.
439
Os problemas enfrentados para realização recrutamento tanto para as Companhias de Aprendizes quanto
para a Armada e Marinha foram constantes durante todo o Império brasileiro, ver: NASCIMENTO, Alvaro
Pereira do. Op cit, 2001; DE OLIVERIA AGUIAR, Thiago. Companhia de Aprendizes-Marinheiro de
Santa Catarina: um sobrevoo sobre as coalizões de poder em torno da instituição no século XIX.
Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
170

No rio Purus, uma publicação no periódico Commercio do Amazonas apresentava


uma denúncia contra o subdelegado Adrião Xavier de Oliveira, no ano de 1876, de
percorrer as casas da região retirando forçadamente meninos dos seus pais e familiares
para levá-los à Manaus, sob o pretexto de ingressarem nas fileiras da Companhia de
Aprendizes de Marinheiro. Adrião ocupara postos na administração pública desde 1854,
passando pelos cargos de suplente na Assembleia Legislativa, amanuense, subdelegado
da capital e outros, permanecendo no serviço público até a década de 1880. Na qualidade
de subdelegado ficava a seu cargo a realização desses alistamentos que muitas vezes eram
aproveitados para cometer ações irregulares como os sequestros e apreensões ilícitas. Ao
fim, o argumento de recrutar meninos e meninas para a Companhia de Aprendizes e
demais instituições públicas era utilizado pelas autoridades como um subterfúgio para
“agarrar” esses menores e depois distribuí-los ou mesmo vendê-los para o trabalho
doméstico ou outros serviços em Manaus ou outras cidades.
Esse era um costume generalizado entre as autoridades pública, visto que até
mesmo o presidente da província Domingos Jacy Monteiro avisava, em 1877, aos
recrutadores que “mandar apanhar crianças, arrancando algumas a seus pais, ocultando
depois o nome destes, nem é lícito nem conveniente”.440 A estratégia de ocultar ou mudar
os nomes das crianças servia para tentar atrapalhar possíveis investigações que os pais ou
autoridades policiais poderiam realizar. Mesmo assim, muitos pais e parentes reclamavam
dessas ações ilegais e requisitavam a devolução de suas crianças. Provavelmente a
notificação do presidente era originada nos diversos requerimentos direcionados ao Chefe
de polícia, nos jornais e na justiça municipal. Em 1878, após requerimento, o menor
Álvaro Paulo de Azevedo foi desligado da instituição devido ao fato de seu alistamento
ser praticado sem a permissão de seus pais.441 Somado às ações violentas de recrutamento,
a ida para a Companhia de Aprendizes simbolizava ainda o afastamento das crianças de
seus familiares, a vida em condições insalubres e os perigos dos castigos físicos, o que
aumentavam a aversão da população mais pobre frente à instituição.
Ainda no que se refere ao sequestro de crianças, no mesmo ano da denúncia
anterior, o subdelegado Adrião Xavier de Oliveira já havia sido incriminado de retirar a
menina Thereza da Costa da casa de pais em Jatapú e de levar duas filhas de Aleixo

440
Relatório apresentado ao exm.o sr. dr. Agesiláo Pereira da Silva, presidente da província do Amazonas
pelo dr. Domingos Jacy Monteiro, depois de ter entregue a administração [sic] da província em 26 de maio
de 1877, p. 29
441
Falla com que abriu no dia 25 de agosto de 1878 a 1.a sessão da 14.a legislatura da Assembléa Legislativa
Provincial do Amazonas o exm.o sr. Barão de Maracajú, presidente da provincia, p. 29
171

Gomes da Silva para a Companhia de Aprendizes (posteriormente colocadas em tutela


pelo juiz de Órfãos Antonio Columbano Seraphico de Assis Carvalho). 442 O pai de
Thereza, Manoel Pedro da Costa, impetrou um pedido de Habeas Corpus em favor de
sua filha de criação em 1876.443 O pai descreveu como a autoridade da polícia e o primeiro
suplente de juiz municipal, José Pedro Garcia Vasconcelos, haviam invadido sua casa
tentando agarrar a força a menina. Ao resistir ao seu propósito, acabou sendo metido em
troncos e “ameaçado a vir assim até esta capital no caso de não satisfazer-lhe o intento”,
onde seria “condenado a quatro anos de cadeia”.444 Como Manoel continuava a negar a
entrega de Thereza, as autoridades deixaram-no preso e seguiram em direção das casas
de Manoel Bentes e de Aleixo Gomes da Silva onde teriam “agarrado” do primeiro “uma
filha de nome Lucinda, e do segundo duas filhas menores de onze anos de nome Isadora
e Ana”.445 Na volta, retornaram à casa de Manoel até que sua esposa, atemorizada pela
situação, teria consentido com a entrega de Thereza. Manoel Pedro descreveu como
aquela ação violenta e feroz havia deixado os pais “entregues à dor do desespero”.
Quando perguntado o que faria o subdelegado na lancha a vapor por esses lugares
respondeu que “andava recrutando menores para a companhia de aprendizes e meninas
para serem conduzidas a esta capital”.446
Também sobre o juiz de órfãos Antonio Columbano Seráfico de Assis Carvalho
recaiam inúmeras acusações desse mesmo tipo. Em 1876, foi acusado pelo periódico
Commercio do Amazonas de manter em sua casa duas órfãs ilicitamente. Como resposta
o juiz negou a acusação afirmando que apenas as mantinha “a fim de serem educadas no
Internato de N. S. dos Remédios”, que era dirigido pela sua esposa. E que perante a
oposição de seus pais ou protetores, que se opuseram a isso, “fiz imediatamente [sua
entrega], uma vez que me não era lícito obrigá-las a receberem educação”.447 O pretexto
de prover educação, ensinar um ofício e, assim, levar “civilização” por meio do trabalho
e da ordem foram argumentos bastante manejados como justificava para manter o
controle ou angariar a tutela de menores. No ano seguinte, Antonio Columbano Assis
novamente estava envolto com denúncias desse tipo. Dessa vez, Raimundo da Silva Lobo
acusava-o de vender órfãos para diversos cidadãos e mestres de oficinas da capital que

442
Jornal do Amazonas, 15 de maio de 1876, nº 91, p. 03
443
Autos de Habeas Corpus. 1876. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (05). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1876:18(05). AGTJAM.
444
Idem. p. 2-4.
445
Idem. p. 4 verso.
446
Idem. p. 5.
447
Jornal do Amazonas, 8 de abril de 1876, nº 9, p. 2
172

em troca deviam pagar-lhe um valor de 30 mil réis por cada. Mais uma vez, o juiz
procurou esquivar-se das impetrações alegando que a entrega dos ditos órfãos teria sido
executada nas normas da lei e que a quantia cobrada era a remuneração mensal que os
menores deveriam receber. Contudo, ao final, o juiz defendeu ser direito seu e de outros
funcionários do processo de tutela ter acesso aquela quantia.448
Já o delegado suplente Custódio Pires Garcia, mencionado anteriormente nesta
tese, que se autodeclarava capitalista, foi denunciado na década de 1850 por prática de
sequestro de crianças para comercializá-las como mão de obra. Em 1856, Januário Pio
dos Santos requereu ao chefe de polícia o retorno de sua filha Maria Bernarda “que lhe
foi tirada pelo delegado suplente desta capital Custódio Pires Garcia”.449 Não consegui
saber o resultado do pedido do pai que reclamava por sua filha, mas fato é que o Custódio
Garcia continuou com a prática de sequestro de crianças nos anos seguintes. Em 1877,
por exemplo, enquanto ocupava o posto de juiz municipal suplente da capital mandou
retirar a menor Ângela da guarda de seus familiares para entregá-la “por termo de tutela”
ao diretor do estabelecimento dos educandos artífices Felinto Elidio Fernandes de
Moraes.450 Antes os tios já tinham tentado reaver a guarda da menina pelo Juízo de Órfãos
e tiveram seu pedido negado. Agostinho Reis de Souza foi o autor do pedido de habeas
corpus a rogo dos tios das meninas, Prudêncio José da Silva e Isabel da Silva, moradores
no lago do Limão, limítrofe a região da capital.451 Para prosseguir com os trâmites do
habeas corpus o juiz chamou a menor Ângela para ser inquirida, sendo-lhe perguntado
sobre o tratamento do tutor para com ela. A menina então respondeu ser “bem tratada e
nada tem a queixar-se e está bem satisfeita com ele e sua senhora”. A partir dessas
declarações, o recurso foi julgado improcedente e Ângela permaneceu sob a tutela de
Felinto Moraes.
As fontes até aqui consultadas possibilitam constatar como a entrega dos menores
na capital compunha uma “moeda de troca” do clientelismo, em que sua
distribuição/negociação como presente visava fortalecer suas redes de amizade e política.
Em Manacapuru, um inquérito da polícia contra o subdelegado Abraham Cohim

448
Jornal do Amazonas, 7 de agosto de 1877, nº 199, p. 3-4.
449
Estrella do Amasonas, 11 de julho de 1856, nº 463, p. 04
450
Autos de Habeas Corpus. 1874. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (04). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1874:23(04). AGTJAM.
451
Idem
173

investigava, dentre outras acusações, a incriminação de pegar “crianças que tem pais e
são filhos de matrimônio e mandá-los de presente para Manaus”.452
Em 1876, Francisco Rabello da Silva denunciou no periódico Jornal do Amazonas
os atos praticados pelo subdelegado Antônio Ferreira Franco do distrito de Manicoré. 453
O autor da denúncia afirmava que Antônio há muito almejava ser nomeado para aquele
posto e “o conseguiu na administração do exm. sr. Passos de Miranda, porque empregou
as mais vis bajulações”. As bajulações não encerram a explicação para sua nomeação,
pois Antônio Ferreira Franco ocupava cargos na administração provincial desde, pelo
menos, a década de 1860, quando provavelmente se mudou do Pará com seu irmão
Joaquim Ferreira Franco para a cidade de Serpa (atual Itacoatiara).454 Na década de 1870,
ambos irmãos seguindo as rotas que subiam o rio Madeira se transferiram para o distrito
de Manicoré, onde Antônio Franco possuía uma loja.455 Em Manicoré, Antônio continuou
integrando a administração pública especial por meio dos postos de suplente de juiz
municipal e subdelegado, até que em 1884 foi eleito para vereador da Câmara daquele
lugar.456 Essa trajetória de ascensão nos postos públicos demonstra como Antônio Franco
mantinha relações de diversos níveis com a elite política da província amazonense.
Retornando ao conteúdo da denúncia de Antônio Rabello de 1876, dentre as várias
acusações elencadas, a principal girava em torno da autoridade policial não ter devolvido
o seu afilhado de nome Horácio que estava sob sua tutela, segundo ordem do juiz
municipal. Francisco apontava que o subdelegado Antônio Ferreira Franco estava
envolvido nos negócios de órfãos e havia prometido a um sr. Guedes que lhe mandaria
entregar uma órfã. Todavia, a dita órfã se achava em casa do sr. capitão Gentil, visto que
ele tinha a tutela da mesma concedida pelo tribunal. Passando por cima das ordens
judiciais, o subdelegado prometia retirar a menina para lhe entregar assim como as que

452
Inquérito Policial. 1886. Delegacia de Polícia do Termo da Capital. Caixa: CP (03). Localização:
CP.DP.IP.PMIT1886:06(03). AGTJAM.
453
Jornal do Amazonas, 2 de julho de 1876, nº 110, p. 110
454
Nomeação para tesoureiro da comissão encarregada do conserto da igreja matriz de Silves. Amazonas,
10 de julho de 1867, nº 73, p. 03; Recebendo a patente de Alferes da 1 companhia da Guarda municipal de
Serpa, antes tinha título de guarda. Amasonas, 22 de agosto de 1868, nº 118, p. 02; responsável pelas obras
na casa da câmera e cadeia além da limpeza das ruas, praças, estrada e marinha na vila de Serpa, no valor
de 2:4000$000. Amasonas, 27 de fevereiro de 1869, nº 151, p. 02; nomeado subdelegado suplente de Serpa,
Amasonas, 11 de dezembro de 1869, nº 204, p. 03; nomeado para 3 suplente de juiz municipal de Serpa,
15 de abril de 1871, p. 02.
455
A loja de Antonio Ferreira Franco aparece listada entre as que deviam pagar o imposto em Manicoré.
Jornal do Amazonas, 21 de outubro de 1875, nº 45, p. 03
456
Nomeado suplente do juiz municipal em Manicoré, Amasonas, 5 de julho de 1878, nº 147, p. 02; Anúncio
da vitória na eleição para vereador da Câmara de Manicoré, Diário de Belém, 16 de outubro de 1884, nº
238, p. 03
174

estava na casa de um tal capitão Firmino. Dessa forma, seja pelos interesses econômicos
advindos da sua comercialização nas praças de Manaus e Belém ou objetivando
perseguir/proteger seus inimigos/aliados políticos, o sequestro de crianças fazia parte de
uma rede de escravização ilegal que abastecia de mão de obra as elites locais no vale
amazônico no século XIX.
Os subdelegados de polícia eram agentes atuantes no negócio de órfãos que
ocorriam em várias regiões da província do Amazonas nessa segunda metade do XIX. O
guarda Mathias Tinoco, enquanto estava ausente de sua casa, a serviço na povoação de
Thomar, teve suas duas filhas menores levadas forçadamente pelo subdelegado de São
Gabriel em 1865.457 Em Tauapessassú, o subdelegado Targino José Maria da Liberdade
Bananeira foi processado por crime de responsabilidade; acusado, dentre outros motivos,
de retirar uma menor de nome Eutácia dos seus pais para dar a Manoel Raimundo de
Andrade e manter em troncos o guarda nacional Manoel Pedro para “arrancar uma filha
menor para dar a Mariano Gonçalvez Bahia e uma irmã do dito guarda para também dar
ao português Francisco Rodrigues de Couto”.458
Em 1877, Joaquim Tinoco requereu Habeas Corpus em nome de suas filhas
Ângela e Benedita, retiradas a força de sua casa pelo inspetor de quarteirão Joaquim
Pinho, por ordem de tenente Emilio Augusto d’Oliveira, subdelegado de polícia e
comandando do posto militar do distrito de São Gabriel.459 Tinoco logo procurou as
autoridades do distrito para denunciar o constrangimento vivido pelas filhas e um juiz
municipal de Barcelos:
(...) mandando o Promotor público e o seu escrivão a bordo desse vapor
intimar e exigir desse detrator a entrega dessas paciente que ai se
achavam embarcadas, ele se opôs desobedecendo, que a mesma
autoridade a vista dessa oposição não podendo lançar mão de outro
meio visto a rápida seguida do vapor para esta, pode com tudo depreciar
pelo mesmo vapor ao juiz municipal desta cidade para que tirasse umas
menores logo que aqui chegassem do poder clandestino do dito tenente
Emilio, e as entregasse ao seu pai que viera para as receber. 460

Todavia, chegando em Manaus, a solicitação não foi atendida e as meninas


continuaram na companhia do subdelegado Emilio Augusto d’Oliveira. Alguns dias

457
Ofício nº 51. Livro 01 – Correspondência da Presidência da Província com o chefe de Polícia, 1863-
1868. APEAM.
458
Autos de crime de responsabilidade. 1872. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (04). Localização:
JD.JD.PJ.ACRP1872:10(04). AGTJAM.
459
Autos de Habeas Corpus. 1874. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (05). Localização:
JD.JD.PJACHC1877:25(05). AGTJAM.
460
Idem, p. 20.
175

depois, o dito Emilio entregou a menina de nome Benedita ao comerciante João Maria
Laurine, enquanto a menor de nome Angela ficou habitando sua casa. Ambos foram
nomeados tutores legais das crianças pela concessão do Juiz de Órfãos da cidade. Esse
ocorrido foi ainda noticiado no jornal Commercio do Amazonas, sob o título Rio Negro:
desrespeito à autoridade local. A publicização da situação ilegal que as meninas sofriam
pode ter colaborado para que o caso corresse mais rápido. Após os trâmites, o juiz que
analisou o pedido de habeas corpus reconheceu como a partir do exposto no processo
ficava:
evidenciado que essas pacientes sofrem sem dúvida constrangimento
ilegal em suas pessoas , e não tratando de soltura a presente ordem de
habeas corpus que se requer de presos por autoridade de jurisdição
alheia a deste juízo, e sim de constrangimento ilegal praticado por
individuo desta que por meio conduziu os pacientes daquela jurisdição
para esta e aqui assim as retêm, e tanto mais que apresente providência
é de substancia ainda da reclamação secundada da autoridade daquela
Comarca sobre esses seus jurisdicionarios [autores] do referido
constrangimento.461

O juiz, além de reconhecer a ilegalidade da condição das meninas, ainda indicou


que o juízo municipal de Barcelos abrisse um processo contra o subdelegado para
investigar o caso. Todavia, não encontramos nos arquivos consultados qualquer sinal de
que realmente isso tenha ocorrido. Mas, ao fim, o pai conseguiu reaver suas filhas, visto
que o juiz concedeu provimento de habeas corpus.
Em 1878, Manoel Antonio Lucas enviou uma carta ao chefe de polícia da
província requerendo que sua filha menor, retirada a força pelo subdelegado de Moura e
dada ao tenente Fernando Barbosa, lhe fosse devolvida. 462 Note-se como a maior parte
das denúncias se tornaram mais constantes a partir de década de 1870 quando, devido ao
aumento dos recursos auferidos dos crescentes negócio com a goma elástica, a cidade de
Manaus se tornou um centro comercial. Nesse período, a cidade viu crescer o número de
moradores, destacando-se o adensamento de ricas famílias ligadas à extração da borracha
e da parcela de funcionários públicos. As distribuições e comercializações de crianças,
principalmente indígenas, eram justamente direcionadas para atender à demanda por
força de trabalho nas casas desses dois grupos. Somado a isto, interessante perceber como
os pais para buscar reaver seus filhos acionaram o instrumento jurídico do habeas corpus
(HC) e não se encaminharam ao Juízo de Órfãos como seria a práxis. Possivelmente essa

461
Idem, p. 20-21.
462
Amasonas, 8 de maio de 1878, nº 125, p. 01
176

estratégia de acionar o HC relacionava-se ao fato de ser compartilhada pela população


que quase todas as decisões referentes daquela instância jurídica eram mais favoráveis
aos tutores não pertencentes ao círculo familiar dos menores.463 Além disso, ó
instrumento do habeas corpus tinha tramitação mais rápida, pela própria natureza dessa
fonte.
A rede de escravização ilegal de indígenas menores continuava bastante ativa
mesmo em um cenário do debate público contra a escravidão encabeçado pelas
articulações do movimento abolicionista e as ações da população negra (livre, liberta e
escravizada). Em 1881, depois de ocorrer uma série de denúncias acerca do tema nos
periódicos locais o presidente da província Alarico José Furtado afirmou que:

Havendo-se a imprensa ocupado com a chegada de alguns índios


menores, que foram distribuídos por várias pessoas nesta capital, eu
procedi a indagações a respeito e verifiquei ser exato o fato, e em
número de dois os índios referidos. Ordenei pesquisas, tendentes a
demonstrar quem são e onde residem os pais desses índios, a fim de
efetuar uma restituição imposta pelas leis divinas e humanas. Envido
esforços a fim de impedir a reprodução de fatos que podem provocar
dificuldades internacionais, importar um ultraje aos sentimentos da
família, e a substituição nesta província da escravidão negra pela
escravidão vermelha464

Ao ressaltar a possibilidade de enfrentar dificuldades internacionais ocasionadas


pelas denúncias da comercialização de indígenas, possivelmente o presidente poderia
estar se referindo às incursões em busca dessas crianças que ocorriam para além das
fronteiras nacionais, especialmente nos territórios colombiano e peruano. Em 1878, por
exemplo, o cônsul do Peru José del Carmem Vasques [Rendifo?] enviou um ofício ao
ministro do negócio estrangeiro solicitando do governo brasileiro medidas mais eficazes
para punir os atos praticados pelo brasileiro Antonio Luiz Balieiro, na fronteira da
província do Amazonas com o Peru. O governo peruano incriminava Balieiro de
sequestrar cerca de vinte a trinta indígenas peruanos que, sob o pretexto de serem uma
parte deles seus contratados e outra parte seus devedores, acabaram por ser reduzidas a

463
Alcemir Teixeira, analisando 263 processos de tutela e soldada, destacou como muitas das concessões
de tutelas eram feitas em favor de homens e mulheres não pertencentes ao círculo familiar crianças e que
utilizavam da promessa de educação para embasar seus pedidos. O autor relata alguns casos especialmente
de mães que conseguiram reaver a tutela de seus filhos, mas no geral o Juízo de Órfãos tendeu a favorecer
os não familiares. TEXEIRA, Alcermir Alijean Bezerra. O Juízo dos Órfão em Manaus (1868-1896).
Manaus, Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal do Amazonas, 2010.
464
Fala com que o Exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado abriu a sessão extraordinária da Assembleia
Legislativa Provincial do Amazonas. Em 27 de Agosto de 1881. Manaus: Tipografia do Amazonas de José
Carneiro dos Santos. 1882, p. 10.
177

escravidão. O cônsul reclamava ainda da conveniência das autoridades locais brasileiras


com as práticas ilegais de Balieiro.
Baleiro matinha relações com a administração governamental desde pelo menos
o ano de 1861, quando residia no distrito de Alvellos e exercia o posto de 3º subdelegado
de polícia.465 Mas, em 1867, parece ter decidido mudar de região e subiu o rio Amazonas
direcionando-se para o distrito de Tabatinga onde requereu do governo “seis braças de
terreno (...) para construir uma casa”. 466 Tabatinga configurava-se como um importante
posto militar brasileiro na fronteira com o território peruano e uma lucrativa rota
comercial onde circulavam os produtos nativos e manufaturados para serem negociados
nos portos de Manaus e Belém. Quando decidiu para lá se mudar, muito provavelmente,
almejava fazer parte desse comércio de produtos e de pessoas. Aquela não era a primeira
nem a última notícia de menores estrangeiros raptados e distribuídos no Juízo de Órfãos
em Manaus.
Em 1875, os menores peruanos Francisca, Manuel e Leopoldina foram retirados
à força por Manoel Nery de Fonseca de seu avó Thuribio José e mãe Maria Feliciana, que
por meio de habeas corpus buscaram reaver as meninas para sua casa.467 Quem solicitou
o instrumento jurídico a rogo dos suplicantes foi Bento Figueiredo Tenreiro Aranha, o
mesmo ex-presidente – acima citado – que deu entrada no pedido do indígena da etnia
Içana. A família, natural da república do Peru, estava habitando em Manaus na companhia
do português João Baptista Gonçalves Bastos, quando o dito Nery de Fonseca teria
enviado a casa de Bastos:
(...) um soldados e um marinheiro da capitania do Porto, armados de
sabres em casa do dito Bastos, sogro do mesmo Nery, amedrontar os
suplentes com prisão e cadeia e por este meio logrou conduzir a força
os seus filhos de nomes Francisca de 10 para 11 anos, Manuel de 8 para
9 anos e Leopoldina de 4 para 5 anos de idade os quais até hoje, se
acham em seu poder sofrendo constrangimento ilegal, e porque Nery
relute entrega-los aos suplentes.468

Manoel Nery de Fonseca foi chamado para testemunhar e contou outra versão. Ele
confirmou estar de posse das crianças e que as trouxera de Tabatinga porque a própria
mãe delas – Feliciana – as teria entregado “espontaneamente”. Ao chegar em Manaus, ele

465
Estrella do Amazonas, 21 de agosto de 1861, nº 571, p. 03
466
Amazonas, 7 de março de 1867, nº 039, p. 03; Em 1872, ele compôs a comissão censitária. Amazonas,
1 de maio de 1872, nº 430, p. 01;
467
Autos de Habeas Corpus. 1875. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (05). Localização:
JD.JD.PJACHC1875:04(05). AGTJAM.
468
Idem, p. 02.
178

então solicitou perante o Juiz de Órfãos a tutela de Francisca e Manoel, as quais foram
concedidas. Segundo ele, “a menina Leopoldina (...) não assinou termo por não julgar ser
preciso”. 469 Durante a segunda metade do século XIX, o Juízo de Órfãos na província do
Amazonas, como bem verificou Alcemir Teixeira, atuou sistematicamente na defesa da
noção de “educação pelo trabalho” para designar o destino de crianças de origem indígena
negra ou mestiça. Inclusive, segundo Teixeira, “a maior parte dos pedidos de tutela (...)
eram requeridos sob a justificativa de educação, e não por orfandade” e entre os 262 casos
analisados pelo autor apenas 55, ou 15,53%, deles previam o pagamento de alguma
quantia.470
Dessa forma, passando pelo crivo de uma instituição estatal a “posse” de muitas
das crianças ilegalmente retiradas de suas famílias e a própria prática do tráfico ilegal
tornavam-se legalizadas e naturalizadas. Esse foi justamente o destino dos pequenos
peruanos. Thurilio José quando interrogado negou novamente os fatos apresentados por
Nery de Fonseca, reafirmando que não havia entregado as crianças e sim que ele as tinha
tirado a força. Apesar disso, passada as inquirições, o juiz Francisco de Paula Lins de
Guimarães Peixoto não considerou a situação das crianças enquanto “prisão ou detenção
ilegal” e julgou improcedente o pedido de recurso de habeas corpus. Mais uma vez, sem
maiores averiguações, a intuição jurídica validava práticas cotidianas e rotineiras de
escravização ilegal de pessoas livres.
A população negra também era alvo da rede de escravização ilegal no vale
amazônico.471 No lugar chamado Baetas, localizado às margens do rio Madeira, Catarina
Maria Roza da Conceição, mulata, livre, filha de Roza Maria da Conceição, natural de
Teresina, foi ilegalmente escravizada em 1874.472 Catarina tinha saído de sua cidade natal
e se deslocado pelo Maranhão e Pará, “por sua livre vontade”, até desembarcar na
província do Amazonas para servir seu novo patrão o português Antônio Joaquim Pereira
do Socorro Valente, um proprietário de seringal, escravista e comerciante. Passados
alguns meses naquele serviço e sofrendo constantes sevícias, resolveu reclamar a Socorro
Valente de sua situação. Foi então que ouviu do mesmo que ela já não era mais livre e

469
Idem, p. 03 verso.
470
TEIXEIRA, Alcemir Arlijean Bezerra. Op cit, 2010.
471
O tema de escravização ilegal de negros livres, libertos e africanos (especialmente os tráficos para o
Brasil depois da aprovação da lei de 1831) têm sido bastante explorado pela historiografia social da
escravidão. Na nota 107 listamos alguns exemples de pesquisas que abordaram essa temática. Em particular
sobre o caso dos africanos-livres, ver: MAMIGONIAN, Beatriz. Op cit. 2017.
472
Autos de Habeas Corpus, 1875. Juízo de Direito. Caixa: JD (05). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1875:08(05). AGTJAM.
179

sim escrava visto que ele a tinha comprado do seu patrão anterior, o paraense Reinaldo
Dias de Souza. Como bem pontua Maria Helena P. T. Machado, a possibilidade de se
deslocar sem impedimentos era um dos poucos quesitos que distinguiam “mulheres
afrodescendentes ‘fossem livres, libertas ou escravas’”, mesmo assim:

Esperava-se que os libertos em geral, mas especialmente as mulheres


libertas, permanecessem no controle dos seus senhores, servindo-os
como criadas e como tal sendo submetidas a diversos controles,
tornando-se elos na cadeia de dominação de toda a família. 473

Após as reclamações, Catarina foi novamente castigada e levada presa para uma
casa distante do centro, de onde após dois meses de martírio, ao final, conseguiu fugir.
Após sua evasão, ela procurou a polícia para denunciar o constrangimento ilegal que
sofria e sobretudo reaver a guardar de sua filha de 2 anos que havia ficado em posse de
Socorro Valente. O patrão dizia que só devolveria a criança depois que lhe pagassem um
conto de réis. Mãe e filha, nascidas livres, haviam assim caído nas malhas da rede de
escravização ilegal praticada pelas rotas interprovinciais, uma vez que foi na saída da
província do Pará para o Amazonas que foi realizada a transação comercial ao arrepio das
leis vigentes.474
Interessante notar que as queixas de Catarina perante a autoridade policial viraram
um pedido de habeas corpus aberto pelo próprio subdelegado que a atendeu e não por
meio de um processo criminal de escravização ilegal. No corpo de delito, foram
verificadas a existência de sevícias, sendo ela novamente inquirida. Apesar de Catarina
apontar como culpados da sua condição ilegal de escravização os comerciantes Reinaldo
Dias de Souza e Antonio Joaquim Pereira do Socorro Valente, nenhuma penalização foi
aplicada a eles, e ambos nem chegaram a comparecer ao tribunal para prestar declarações.
Catarina também não tinha consigo seu passaporte, nem qualquer outro documento que
comprovasse sua liberdade, ausência que a colocava em difícil situação, pois como
apontou Sidney Chalhoub após 1850 o ônus da prova da condição de livre ficava sob
responsabilidade dos pleiteantes e não mais do Estado. 475 Provavelmente a falta dessa

473
MACHADO, Maria Helena P. T. Corpo, Gênero e Identidade no Limiar da Abolição: Benedicta Maria
da Ilha, mulher livre/ Ovídia, escrava narra sua vida (sudeste, 1880). AfroÁsia, 42, 2010, pp. 157-193.
474
Havia uma circulação intensa de pessoas e produtos entre a província do Pará e do Amazonas que
aumentava cada vez mais com o alargamento dos interesses em torno dos produtos nativos. Em recente
pesquisa de doutorado o historiado Luiz Carlos Laurindo Junior mapeou como essa rota também era
utilizada para a comercialização interprovincial de escravizados. LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. Op
cit, 2021.
475
Sidney Chalhoub aponta que “como ‘parecer escravo’ era conceito subjetivo, muitíssimo amplo na visão
de mundo queiroziana, temos que o processo de enraizamento da escravização ilegal no modus operandi do
180

documentação tenha sido um dos fatores que fizeram o habeas corpus de Catarina não
seguir em frente e, por isso, não conseguirmos mapear seu destino final.476
Ao todo conseguimos mapear cerca de sete habeas corpus que retratavam a
escravização ilegal de crianças e adultos. Esses casos envolviam dez menores e uma
adulta, dentre os quais cinco conseguiram retomar sua liberdade e voltar para suas
famílias. No total, três pedidos foram julgados como procedentes e os outros quatro não
possuíram um fim ou tiveram parecer final “improcedente”. Contudo, partindo do
princípio de que aqueles que tiveram acesso à justiça constituíam apenas uma parcela
ínfima do número de indígenas, negros e livres pobres em geral que eram ameaçados ou
alcançados pelas redes de escravização ilegal, é preciso ter em mente que na realidade a
abrangência e a força dessa prática eram bem maiores do que as fontes nos permitiam
acessar. De toda forma, a existência desses processos demonstra como esse instrumento
jurídico foi importante para que esses sujeitos pudessem contestar o constrangimento
ilegal na sua liberdade ou de seus filhos, buscando recuperá-los assim pela via
institucional quando não era possível fazê-lo por outros meios.
As redes de escravização ilegal ultrapassavam inclusive as fronteiras do Estado
Nacional. Os problemas diplomáticos envolvendo os negócios de menores não cessaram
por aí. Alguns anos depois o tema do sequestro de crianças, para além da fronteira
brasileira, tomou novamente as páginas dos jornais em Manaus.477 Dessa vez, a denúncia
partia de um ofício realizado por Bernardo de La Espriella prefeito da cidade colombiana
de Caquetá em 1880. Os escritos do prefeito foram transcritos no periódico Commercio
do Amazonas que publicou sob o título Escravização de indígenas no Amazonas. O artigo
denunciava a compra e venda de indígenas sequestrados na região do rio Caquetá e

Estado imperial tornou mais precária a liberdade de pretos e pardos e forros livres em geral”. Chalhoub
pontua ainda que “até a década de 1860, ainda parecia vigorar com força o pressuposto de que alguém
detido por suspeição de ser escravo, e de andar fugido, permanecia escravo até prova em contrário” e que
na década de 1870, ocorreria uma mudança “sem dúvida por influência da lei de 28 de setembro de 1871,
a tendência passava a ser considerar livre a quem não se podia provar escravo”. CHALHOUB, Sidney. Op
cit. p. 232. Contudo, devemos ter em mente que tal transformação na postura do Estado não foi algo tão
automática ou ainda disseminada por todo território nacional, ainda mais nas regiões distantes da capital
onde a demanda por mão de obra crescia exponencialmente como na província do Amazonas. Na falta de
documentação que comprovasse a liberdade, muitos africanos e afrodescendentes continuaram sendo,
muitas das vezes, ilegalmente reescravizados por meio de ações do Estado e de particulares.
476
Para uma análise para detalhada do percurso percorrido por Catarina Roza Maria da Conceição, ver:
COSTA, Jéssyka S. L. P. A trajetória de Catharina Maria Roza da conceição e a escravidão ilegal no Norte
Imperial. Semina - Revista Dos Pós-Graduandos Em História Da UPF, nº17(1), 2019, p. 81-101.
477
Na fronteira Sul do Império do Brasil, mais precisamente na província do Rio Grande do Sul com divisa
o Uruguai, a historiadora Keyla Grinberg examinou a rede de sequestro e (re)escravização de africanos e
seus descendentes, principalmente de crianças e mulheres negras. GRINBERG, Keila. Fronteiras,
escravidão e liberdade no sul da América. In: GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e da
liberdade no sul da América. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2013. p. 7-24.
181

“conduzidos como escravos para o Amazonas”.478 As etnias mais afetadas com tais
práticas eram dos Guangens, Miranas e Huitotos, habitantes das margens do rio Caquetá.
O prefeito afirmava ser compartilhado por todos que:
“(...) há anos os portugueses estabelecidos no Amazonas e outros
comerciantes do Brasil estabeleceram com os Miranãs e Huitotos,
menos insociáveis (...) o imoral e bárbaro comercio de índio que são
escravizados em território colombiano e vendido no Amazonas.
Pelos meses de fevereiro a março entram no rio Caquetá, chamando
Yapurá no Amazonas, trinta ou quarenta igarités (grandes canoas)
tripuladas pelos comerciantes e alguns negros escravos com
carregamento de aguardente, tabaco, machados, espingardas e algumas
bijuterias; navegam no Caquetá vinte dias até encontrar as tribos
antropófagas dos Miranas e Huitotos, com quem fazem os seus tratos
de um ano para o outros (...) Regularmente os comerciantes recebem os
índios que pagaram no ano anterior e deixam antecipado o valor do
carregamento do ano próximo, na proporção de dois machados por
cabeça. Cada canoa carrega de dez a vinte índios, e nela são conduzidos
presos com ferros ou com cordas ao pescoço (...) até o Amazonas, onde
são vendidos como escravos pelo preço de cem a duzentos pesos,
segundo sua qualidade: reputam-se de boa qualidade os meninos, os
homens robustos e as mulheres jovens; destas são de maior valor as
mulheres jovens; porque podem servir para concubinas (...)
Compreende-se desde logo que traficantes desta classe não respeitam
os sagrados laços de sangue; a mãe é vendida em um lugar e o filho ou
o irmão em outro, distante de centenas léguas. (...)
Os que conhecem estes rios o por eles transitam asseguram-me que não
é inferior a trezentos o número de índios que anualmente saem desta
maneira de nosso território, e que passam de dez mil os que já tem sido
levados para o serviço das fazendas nas margens do Amazonas (...)479
(grifo nosso)

A descrição minuciosa do prefeito colombiano acerca da comercialização ilegal


de crianças e adultos da etnia Miranha apresenta como a rota e a rede organizada para
esse negócio estava bem estruturada com vias a atender as demandas existentes, por força
de trabalho na extração de seringa, na produção de alimentos e nos serviços domésticos.
A liberdade das populações indígenas e a proibição de sua escravização estavam
estabelecidas pela legislação colonial desde 1680 480, sendo depois reafirmada pela carta
régia de 1789. Mas, no decurso do século XIX, esses povos continuaram sendo alvos
constantes da prática ilegal de escravização em diversas partes do território brasileiro. 481
Na província do Amazonas, a exploração compulsória da mão de obra de indígenas

478
Commercio do Amazonas, 16 de outubro de outubro de 1880, nº 27, p. 02-03
479
Idem.
480
Sobre a legislação indigenista colonial, consultar: PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Op. cit, 1992.
481
Durante o século XIX na província de São Paulo, Soria Dorneles demonstrou a permanência da pratica
de escravização ilegal de indígenas nas fazendas e povoações daquela região que ocorriam inclusive com
o fomento de agente públicos. Ver: DORNELES, Soraia. Op Cit, 2017; DORNELES, Soraia. Op. cit, 2018.
182

nacionais e estrangeiros, mulheres e homens, adultos e crianças alimentava o mercado


com produtos extrativistas e as casas da elite com trabalhadores. Nesse cenário, as
diferentes formas de trabalho – compulsório, livre e escravo – além de coexistirem, foram
complementares.
Notemos como as denúncias envolvendo a escravização ilegal de indígenas da
etnia Miranha era comunicadas às autoridades públicas constantemente. Quando a
província do Amazonas já havia abolido a escravização482, em 1885, as notícias da
comercialização dos indígenas e sua consequentemente escravização ilegal continuavam
a aparecer nas páginas dos jornais locais. Nesse ano, uma publicação sob o título Índio
reduzido a escravidão e tentativa de homicídio, do periódico A Província, denunciava
José Nogueira por realizar “comércio ostensivo de tráfico de índios Miranhas, os quais
reduz a escravidão”.483 Assim, como essa denúncia, muitas outras envolvendo a
escravização ilegal das populações indígenas ocupavam rotineiramente as páginas dos
periódicos e apareciam ainda na correspondência oficial.
Alguns anos antes uma denúncia no mesmo tom foi feita no periódico The Rio
News publicado em 15 de novembro de 1880. Esse jornal, apesar de publicado no Brasil,
se dirigia “aos anglo-saxões que aqui residem [no Brasil] (...) [e se] destina principalmente à
orientação de negociantes estrangeiros no Brasil e na região platina”.484 Ele era publicado no
Rio de Janeiro desde 1874 e “sua oposição à escravidão foi assumida com todas as letras
a partir de 1879”, e, a partir disso comentou ativamente editoriais e relatos acerca dos
debates parlamentares sobre escravidão, imigração e o movimento abolicionista. O The
Rio News também publicava denúncias sobre castigos físicos praticados contra escravos,
assim como falava do andamento de denúncias de reescravização. Nessa direção, a notícia
sobre a Amazônia relatava o seguinte:
Há cerca de dezesseis meses, chamamos a atenção para o fato de que o
tráfico de escravos ainda existia no Brasil ao longo do Amazonas e seus
afluentes, e que grande número de crianças indígenas havia sido
reduzida à escravidão e comprada e vendida até o rio abaixo... não
sabem, porém, que um único escravo índio foi posto em liberdade, que
um único comerciante foi processado ou punido, que um único
funcionário foi demitido por permitir o tráfico, ou mesmo que um único

482
A abolição da escravidão na província do Amazonas ocorreu em 10 de julho de 1884, sobre isso consulta:
POZZA NETO, Provino. Op Cit. 2011
483
A Província, 2 de julho de 1885, nº 07, p. 01
484
ROCHA, Antonio Penalves. The Rio News de A. J. Lamoureux: um jornal abolicionista carioca de um
norte-americano. História e Imprensa, São Paulo, nº 35, p. 141-159, dez, 2007.
183

inquérito foi feito pelo governo quanto à veracidade das várias


acusações feitas.485

Segundo os redatores, muitas das crianças eram capturadas na fronteira do Império


brasileiro com a Colômbia e depois inseridas nas redes de tráfico ilegal que as
negociavam em várias partes do vale amazônico. Essa não foi de fato a primeira denúncia
realizada pelo jornal abolicionista contra a escravização indígena que ocorria e ampliava-
-se na Amazônia. Em 15 de outubro de 1880, os redatores ao constatarem o aumento na
população escravizada da província do Pará reclamaram da falta de investigação sobre a
escravização ilegal de crianças indígenas trazidas de diversas cidades localizadas ao
longo do rio Amazonas e seus afluentes para serem negociada em Belém. A publicação
retratava que:
Já havíamos chamado a atenção para os resultados
surpreendentes da emancipação gradual, e mostramos por
números oficiais que há um aparente aumento ilegal na
população escrava de todo o Império de mais de cento e vinte mil
- e até hoje a declaração permanece indiscutível. Chamamos a
atenção para a redução ilegal de pessoas livres à escravidão e a
venda de ingênuos - mas até agora ninguém foi punido por isso.
Chamamos também a atenção - há mais de um ano - para a
escravização de crianças indígenas na Amazônia, fato que desde
então vem sendo repetido e confirmado no Jornal do Commercio
- mas até hoje nenhuma providência foi tomada publicamente
para verificar aquele maldito tráfico. Quanto desse aumento
ilegal da população escrava do Pará se deve ao tráfico de crianças
indígenas, não se pode determinar com precisão, mas isso não é
pouca coisa, não pode haver a menor dúvida.486 (grifo nosso)

A redução ilegal de pessoas livres à escravidão era, de fato, um crime


estabelecido a partir da aprovação do Código Criminal de 1830, estando presente no

485
Trecho no original: “Some sixteen months ago we called attention to the fact that the slave traffic still
existed in Brazil along the Amazon and its tributaries, and that large numbers of Indian children had been
reduced to slavery and were bought and sold all the way down the river…We are not aware, however, that
one single Indian slave has been set at liberty, that one single trader has been prosecuted or punished, that
one single official has been dismissed for permitting the traffic, or even that one single inquiry has been
made by the government as to the truth of the various charges made”. The Rio News, 15 de novembro de
1880, nº 32, p. 02. Um agradecimento especial a Samantha Payne por compartilhar essa informação.
486
Trecho no original: “We have before called attention to the starling results of gradual emacipation, and
we have shown by official figures that there is an apparent illegal increase in the slave population of the
whole empire of ove one hundred and twenty thousand - and to this day the statement stand undisputed.
We called attentio to the illegal reduction of free persons to slavery, and the sale of igenuos - but as yet no
one has beem punished for it. We have also called attention - over one year ago - to the enslavement of
indian children on the Amazon, an that fact has since been repeated and confirmed in the jornal do
commercio - but to this day no step has been publicy taken to check that accursed traffic. How much os this
illegal increase in the slave population of Pará is due to the traffic in Indian children,can not be accurately
determined, but that is forms no small part of it there can not be slightest doubt”. The Rio News, 24 de
outubro de 1880, nº 30, p. 02.
184

Título I - Dos crimes contra a liberdade individual, artigo 179, que estipulava: “reduzir
à escravidão pessoa livre, que se achar em posse de sua liberdade”, estabelecendo como
pena a “prisão por três a nove anos” e “multa correspondente à terça parte do tempo;
nunca porém o tempo de prisão será menor que o do cativeiro injusto e mais uma terça
parte”. Segundo Beatriz Mamigonian e Keila Grinberg ao inserir esse artigo:
(...) entre aqueles contra a liberdade individual, junto com prisão
indevida, acompanhada de uma série de regras para o habeas corpus,
partia-se do princípio de que a escravização era, mais que um ato ilegal,
um crime, uma vez que atentava contra os direitos fundamentais da
pessoa.487

As autoras destacam como a prática jurídica brasileira no Império considerava


como livres aqueles indivíduos que estivessem “vivendo como pessoas livres”, ou
melhor, em “posse da liberdade”.488 Mamigonian e Grinberg, analisando processos
criminais iniciados, a partir do artigo de 179 da província do Rio Grande do Sul, apontam
como:
(...) à diferença dos casos de escravização de africanos recém-chegados
e de reescravização de libertos, as evidências sugerem que a
escravização de pessoas reconhecidas como livres passou a ser tratada
com gravidade pelas autoridades imperiais de 1850.489

De acordo com as autoras, isso teria ocorrido porque “os casos que envolviam
outros países eram levados ainda mais a sério, visto que o governo brasileiro estava
preocupado com a repercussão internacional negativa que causavam”.490 Na província do
Amazonas esse padrão não parecia se repetir. De fato, em raríssimas vezes, os relatos e
denúncias, mesmo aqueles que envolviam as fronteiras internacionais, resultaram na

487
MAMIGONIAN, Beatriz G; GRINBERG, Keyla. O crime de redução de pessoa livre à escravidão no
Brasil oitocentista. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 13, p. 1-21, 2021, p. 7.
488
As autoras explicam como a “asserção da posse da liberdade (...) passou a ser condição que separava a
escravização ilegal da tolerada como legal e serviria, ao longo do século XIX, para estender ou recursar a
proteção da lei as vítimas de escravização”. MAMIGONIAN, Beatriz G; GRINBERG, Keyla. Op cit, 2021.
Mariana Armond Dias Paes analisou que o instituto jurídico da “posse da liberdade” presente na prática
jurídica do Brasil do século XIX não era um “resquício (...) do período colonial”, mas sim um resultado de
“diferentes dispositivos normativos [que] eram, em diferentes contextos, reapropriados e ressignificados
pelos sujeitos históricos, que alargavam, adaptavam ou restringiam seu significado, de acordo com as
concepções de direito mais gerais hegemônicas em um dado ambiente e com a realidade social à (sic) qual
aquele ordenamento tinha que responder”. Nesse sentido, Dias afirma ainda que “o que fundamentava o
argumento da posse da liberdade era uma compreensão compartilhada a respeito de como um estatuto
deveria ser determinado e judicialmente reconhecido”. PAES, Mariana Armond Dias. Sobre origens,
continuidades e criações: a posse da liberdade nos decisionistas portugueses (sécs. XVI-XVIII) e no direito
da escravidão (séc. XIX). In: Actas del XIX Congreso del Instituto Internacional de Historia del Derecho
Indiano, vol 2, Berlim, p. 1379-1406, 2017.
489
MAMIGONIAN, Beatriz G; GRINBERG, Keyla. Op cit, 2021, p. 16.
490
Idem, p. 16
185

adoção de ações mais incisivas por parte das autoridades públicas ou mesmo nas
penalizações contra os acusados. As histórias narradas nos habeas corpus ou inquéritos
policiais quase nunca resultavam em abertura de processo crime ou julgamento dos
envolvidos no comércio de crianças e nas práticas ilegais de compulsão ao trabalho.
Sintomático sobre isso é o fato de que dentre os mais de 500 processos, entre 1846
a 1888, sob a guarda do Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas, conseguimos
mapear apenas um processo que efetivamente foi julgado pelo crime de redução a
escravidão de pessoa livre, como previsto no artigo 179 do Código Criminal de 1830. Em
1866, uma publicação do periódico O Cathecista noticiou a história de uma criança que
teria sido reduzida a escravidão:
Atenção
Chama-se a atenção do Illm Srs Dr Chefe de Polícia e Promotor público
da Comarca, para um crime [indecifrável] que se acaba de perpetrar
nesta cidade. [indecifrável]
No dia 11 ou 12 do corrente, uma mameluca de nome...deu à luz uma
menina e peitando se uma negra escrava dos snrs Mesquita & Imãos, de
nome Paula, esta trouxera para casa dizendo ter parido no meio da rua!!!
Assim está essa infeliz criança presa aos duros grilhões do cativeiro!
Do doutor Chefe de polícia e promotor público, espera-se justiça.
Não é possível que semelhante fato passe despercebido, e nem se pode
dizer que os snrs da negra não são cúmplices de tal crime.
Uma punição severa é necessário para não se reproduzirem semelhantes
crimes.
Manaus, 26 de julho de 1866491

O relato parece ter causado bastante alvoroço visto que alguns dias depois iniciou-
se um inquérito policial. O delegado levantou informações e indicou que havia indícios
suficientes para a abertura de um processo criminal contra Joaquim de Souza Mesquita,
Lourença Maria, Balbina Maria da Conceição e Paula, os três primeiro sendo pessoas
livres e a última escravizada.492 A história teria iniciado depois que Paula, de dezenove
anos de idade, solteira, natural do Pará, escravizada pertencente aos comerciante Joaquim
de Souza Mesquita, estando alugada “em casa do senhor Honório” presenciou Balbina
Maria da Conceição destratando sua filha Lourença por ela estar grávida. 493 Balbina então
teria oferecido a criança para Paula visto que assim “sua senhora a criaria”. A partir disso,
ambas combinaram que a escravizada começaria a fingir estar grávida. Quando o bebê
nasceu, Paula o entregou na casa de seu senhor. Alguns contestaram Paula sobre a menina

491
O Catechista, 28 de julho de 1866, nº 228, p. 2.
492
Sumário de Culpa ex-oficio por crime de reduzir a escravidão pessoa livre e de parto suspeito, 1866.
Tribunal do Jury. Caixa: TJUR (02). Localização: JD.TJUR.PJ.ACOF1875:11(02). AGTJAM
493
Idem, p. 12.
186

ser realmente sua filha, mas com apoio do seu senhor Joaquim Mesquita ela continuou
sustentando a mentira. Aliás, quando a escravizada já estava na prisão o senhor enviou
outra escravizada de nome Geralda para visitá-la e “dizer-lhe de parte de seu senhor que
continuasse a sustentar que a menina era sua filha”.494
A versão de Paula foi negada por Balbina Maria da Conceição e sua filha Lourença
Maria, ambas naturais do Amazonas, com ocupação de engomadeiras. Balbina tinha cerca
de quarenta anos, já Lourença entre quinze a dezessete anos de idade. A avó da criança
chegou a acusar Paula de levar sua neta sem sua permissão; e disse que não teria tentado
pegá-la de volta porque Joaquim Mesquita teria prometido criá-la “não como escrava e
que receberia educação”.495 O dito Mesquita negou todas as informações das mulheres e
que apenas teria mantido a criança em sua casa por ter sido enganado pela escravizada
Paula. O processo prosseguiu com a inquirição de diversas testemunhas e dos réus. Ao
final, o juiz municipal José Maria de Albuquerque pronunciou todos os envolvidos como
“incursos no artigo 179 combinado com o artigo 21”, solicitando a prisão imediata de
todos os envolvidos.496 O advogado do comerciante Mesquita por sua vez solicitou sua
fiança e requereu um revisão da decisão do juiz Albuquerque. Após sua libertação, todos
os envolvidos foram novamente interrogados perante o tribunal do Júri.
Ao fim, a Justiça levou em conta a versão do comerciante, de que ele nada sabia
da situação da criança. Isto é, que Paula o enganou dizendo que a criança era escrava. Na
versão de Balbina e Lourença, elas não teriam entregue a criança para ser escravizada,
mas para que o comerciante local ajudasse em sua criação. Essa decisão dramática da mãe
e avó da criança, de recorrer a um comerciante local para ajudar na criação de um recém-
nascido, revela a situação precária que essas duas mulheres pobres e de cor se
encontravam. A liberdade de ambas não representou naquele momento a garantia de
manter a família reunida e distante da escravidão. Levando em conta tal relato, é bem
possível que o comerciante tenha visto na situação a chance de se apropriar de uma
criança recém-nascida para escravizá-la. Isto é, longe da representação de enganado, que
seu advogado defendera na Justiça, Mesquita se mostrava bastante atento às práticas de
escravização ilegal que se disseminavam pela província naquele momento. Ao final, a
Justiça da província do Amazonas pouca consideração deu para as falas de Balbina e
Lourença e para a denúncia do processo de escravização que parecia estar por trás de toda

494
Idem, p. 17
495
Idem, p. 18 verso.
496
Idem, p. 52-53.
187

essa história. O júri, formado por homens letrados, muito possivelmente com um perfil
social e visão política semelhante ao do comerciante, indicou como única culpada de toda
essa história (tragédia) uma escravizada que foi condenada “a sofrer oitenta açoites, em
seis dias seguidos, depois do que será entregue ao seu senhores, que se obrigara a tratá-la
com um ferro ao pescoço, de oito polegadas, por espaço de dois meses”. 497 Os demais
foram absolvidos das culpas.
Os outros processos que encontramos cujo conteúdo claramente tratava-se da
prática de escravização ilegal nunca eram julgados como incursos no artigo 179. A maior
parte dos relatos ficava apenas no plano da constatação e reconhecimento da existência
da prática ilegal, sem qualquer ação para criminalização dos atos e penalização dos
envolvidos. Em 1881, por exemplo, um inquérito policial contra Domingos Antonio
Barbosa acusava-o de comercializar crianças e adultos indígenas da etnia Apurinã,
habitantes do rio Purus, para trabalhar na fabricação de goma elástica. 498 Após a
inquirição das testemunhas, mesmo com os relatos apontando para práticas ilegais de
escravização, o promotor público Raimundo José Rebelo alegou não ter base para abrir
um processo criminal alegando que:

“Quanto a tomada de índios quer menores quer adultos e oferta de


brindes aos pais e Tuxáus que os dão desde que me entendo, sendo
nascido e criado em Amazonas e achando-se já na avançada idade de
cinquenta e cinco anos sempre vi praticar-se sem que ninguém se
lembrasse de classificar esse fato como criminoso de reduzir a
escravidão pessoa livre, nem os que tomam os índios os consideram
escravos nem os mesmos índios se consideram tais, tanto que se retiram
quando lhes parece.
Entendo, pois que o que há a fazer-se em tais casos pertencia
exclusivamente as atribuições do direito geral dos índios nos termos do
artigo 1 especialmente dos §23 e 28 do Regulamento que baixou com o
Decreto nº 426 de 24 de julho de 1845, salvo, todavia, melhor juízo.”499
[grifo nosso]

Raimundo Rebelo acionou o costume para justificar sua posição de não continuar
com a denúncia criminal contra Domingos Barbosa. Protegia-se assim, por meio de
artifícios burocráticos, os agentes perpetuadores da escravização ilegal, ao mesmo tempo
que se negava às populações indígenas o reconhecimento da sua liberdade e cidadania. O
argumento de Rabelo e sua escolha em não prosseguir com a acusação de escravidão

497
Idem, p. 96.
498
Inquérito Policial. 1881. Delegacia de Polícia do Termo da Capital. Caixa: JM (06). Localização:
JM.JM.PJ.AAIP1881:18(06). AGTJAM.
499
Idem.
188

ilegal, estabelecido no artigo 179 do Código Criminal de 1830, era informada por todo
um arcabouço de práticas coercitivas de imposição ao trabalho, descritas ao longo do
capítulo, que tornaram a escravização ilegal e a compulsoriedade uma experiência
compartilhada por larga parcela da população pobre e livre do vale amazônico.500 A ideia
de que as populações indígenas e negras deveriam estar a serviço da elite, fosse legal ou
ilegalmente, era compartilhada por grande parte dos membros da alta sociedade e das
autoridades governamentais. De toda forma, Rebelo deixou aparente a conivência de
parcela considerável do Estado e da elite com a prática ilegal, ao declarar que “ninguém
se lembra[va] de classificar esse fato como criminoso, de reduzir a escravidão pessoa
livre”. Não lembrar, fazer esquecer, eram duas faces da mesma moeda que qualificavam
uma política imperial que confundia propositadamente as fronteiras e definições era a
escravidão e a liberdade e assim reiteradamente fomentava a continuidade da
escravização ilegal de indígenas, negros e não-branco pobres e livres no vale amazônico.
Como bem pontuou Sidney Chalhoub, “escravização ilegal e precarização da
liberdade são duas faces da mesma moeda”501 e as populações livres e não-brancas
estavam sendo cotidianamente ameaças por essas estruturas. Nessa direção, a análise dos
habeas corpus em conjunto com as demais fontes aqui utilizadas se, por um lado, nos
possibilita vislumbrar como indígenas, negros e livres pobres em geral utilizaram desse
instrumento do sistema Judiciário para recuperar as crianças ou se liberarem de prisões
ilegais, por outro, demonstra como o próprio sistema judiciário no XIX deixava
escancarado suas limitações e compromissos com a lógica social de produção de
desigualdade, ao não levar adiante processos por escravização ilegal ou não aceitar os
pedidos de liberdade.
No próximo capítulo veremos uma outra forma de relação e exploração da mão
de obra da população local assentada em trocas comerciais de produtos nativos por outros
industrializados, responsáveis por nortear grande parte dos “contratos” – informais – de
trabalho e por fornecer a maior parcela dos produtos negociados na região. Analisar essa

500
Dessa forma, como pontuam Beatriz Mamigonian e Keyla Grinberg em relação à aplicação do artigo
179 Judiciário brasileiro do século XIX, “ao garantir a impunidade aos escravizadores a cada nova fase das
relações entre os escravos, os senhores e o governo imperial, o Judiciário brasileiro dava sustentação a um
verdadeiro pacto pela manutenção da escravidão”. MAMIGONIAN, Beatriz G; GRINBERG, Keyla. Op
cit, 2021, p. 20. Aqui nós poderíamos estender o argumento das autoras e afirmar que por meio da
impunidade aos crimes de (re)escravização a elite política e intelectual do Império do Brasil
institucionalizaram a ilegalidade e assim deram suporte para que as relações de trabalho continuassem
atadas aos padrões da compulsoriedade, submissão e controle sobre a mão de obra de indígenas, negros e
pobres livres em geral.
501
CHALHOUB, Sidney. Op cit. 2009, p. 26.
189

relação é essencial para completarmos o mosaico de formas de exploração da força de


trabalho que vigoraram na província do Amazonas entre 1850 e 1880.
190

Capítulo 4 – Informalidade e costume no mundo do trabalho amazônico

O vilarejo era constituído de cerca de uma dúzia de casebres


pertencentes a índios que viviam em seus sítios, distantes algumas horas
ou mesmo alguns dias daí, à beira do Rio Negro ou de um de seus
tributários. Eles só ficam na vila quando é tempo de festa, ou quando
chega algum comerciante, como o sr Lima, por exemplo. Quando isso
acontece, trazem os produtos que podem colher, a fim de trocá-los
pelos artigos de que necessitam. Quando nada têm para trocar,
compram fiado, comprometendo-se a fazer o pagamento daí a algum
tempo. No momento, a cidade estava repleta de pessoas, quase todas
interessadas em receber seus parentes que compunham nossa
tripulação.502 (grifo nosso)

O trecho acima foi retirado do relato do viajante Alfred Russel Wallace que navegou
pelos rios Negro, Solimões e outros durante a década de 1850. Nesse excerto podemos
perceber um tipo relação frequentemente descrita tanto pelos viajantes como pelas
autoridades públicas que estiveram no vale amazônico ao longo do século XIX. Essa
prática social e econômica estava assentada em uma rede de crédito baseada em trocas
comerciais de produtos nativos (também conhecidos como “drogas do sertão”) por outros
industrializados, realizados entre as populações locais (indígenas, mestiços e negros) e
comerciantes que ficou conhecida pela historiografia como o sistema de aviamento.
Existiam assim dois níveis de relações que complementavam-se constituindo esse
sistema: primeiro, o sistema comercial, baseados nas trocas e na distribuição prévia de
crédito que abastecia, de um lado, as redes comerciais e os mercados com produtos
extrativistas e da pequena agricultura e, do outro, com produtos manufaturados; e
segundo, a extração da força de trabalho das populações envolvidas nas trocas comerciais
pelo emprego da realização de contratos informais. Em coexistência com as legislações e
as práticas ilegais de escravização esses tratos informais de trabalho e comércio,
praticados no vale amazônico desde o período colonial, caracterizavam as relações dos
mundos do trabalho na província do Amazonas na segunda metade do século XIX.
Inseridas na conjuntura do deslocamento de fronteiras e avanço do capital esse sistema
sofreu reconfigurações que atingiram sobremaneira a experiência da liberdade e a
autonomia tanto dos trabalhadores locais como dos migrantes.
A historiografia analisou o impacto do sistema do aviamento principalmente a partir
da sua centralidade para a coleta e comercialização da borracha durante o auge da
produção entre 1870 até 1915. Contudo, algumas análises não consideraram

502
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979, p. 137.
191

reconfigurações e adaptações sofridas por esse sistema frente ao processo histórico e


como elas corroboram para remodelar as relações de trabalho vigentes. Arthur Cézar
Ferreira Reis, por exemplo, assume que o sistema do aviamento que vigorou na produção
gomífera tinha as mesmas bases daquele praticado tradicionalmente entre as populações
locais e comerciantes “ambulantes” dos rios desde o período colonial.503 Ainda nesse
sentido, Barbará Weinstein defende que
“A rede comercial que canalizou a borracha amazônica dos remotos
campos de hévea para o mercado exterior não representou um
afastamento significativo das práticas desenvolvidas pelos portugueses
na era colonial. Ao invés de destruir as relações de produção existentes,
o negócio da borracha amazônica levantou-se sobre elas, consolidando
modos tradicionais de extração e de troca. Os modelos de
comercialização que se desenvolveram com o aumento das exportações
de borracha apresentaram, contudo, um grau incomum de
complexidades e de sofisticação”504. (grifo nosso)

Weinstein, apesar de reconhecer a introdução de novos agentes e da intensificação do


processo de espoliação dos trabalhadores do vale amazônico, ainda caracteriza o sistema
de trocas comerciais e trabalho em voga no período colonial como se fosse contínuo do
sistema de aviamento vigente nos seringais dos altos rios nas décadas finais do século
XIX. Para a autora, “o sistema de aviamento representava um compromisso entre os
objetivos dos negociantes de borracha, vinculados ao mercado mundial, e os requisitos
não expressos da população local”.505 Por compreenderem o sistema do aviamento apenas
inserido na lógica da produção gomifera, tanto Arthur Cesar Ferreira Reis quanto Barbará
Weinstein deixam de perceber outras mudanças ocorridas nesse sistema que tiveram
grande impacto na experiência dos trabalhadores da província do Amazonas no século
XIX.
Na contramão dessas perspectivas, João Pacheco de Oliveira já havia criticado a
postura historiográfica de estender este conceito para qualificar todas as relações de
trabalho e comércio no vale amazônico, afirmando que:

Ligar um tal esquema de financiamento à mão-de-obra indígena, porém,


significa estabelecer uma correspondência estreita demais entre as
varáveis – e insustentável na medida em que essa rede tradicional e
descentralizada dos aviamentos aparece em outras circunstancias ligada

503
FERREIRA REIS, Arthur Cézar. O seringal e o seringueiro. Rio de Janeiro: Ministério de Viação e
Obras Públicas, 1956.
504
WEINSTEIN, Barbara. Op Cit. 1993, p. 30.
505
Idem, p. 45-46.
192

a uma força de trabalho não indígenas, composta por imigrantes


cearenses e maranhenses que iniciaram a ocupação do vale do Purus.506

Como apontado por Oliveira, essas trocas comerciais correntes no mundo do trabalho
e na produção das “drogas de sertão”, que nortearam parte significativa das relações de
trabalho no vale amazônico desde o período colonial, não permaneceram estruturada da
mesma forma até o final do século XIX, especialmente no que condiz em relação aos
espaços de autonomia dos trabalhadores. Quando criada a província do Amazonas, esse
sistema tradicional de trocas comerciais entre as populações locais (indígenas, negros e
mestiços) e comerciantes e outros agentes era responsável pelo fornecimento de grande
parte dos produtos nativos negociados no comércio local e utilizados para o
abastecimento das cidades. Com a intensificação do avanço do capital e o aumento
crescente do interesse internacional pelos produtos nativos, essa relação sofreu
remodelações que atingiram ainda mais a liberdade dos trabalhadores e reiteraram as
estruturas de coerção.
Nessa direção, este capítulo busca apresentar como esses tratos informais praticados
por meio dessa relação social e comercial de trocas, em consonância com as legislações
e as práticas ilegais de coerção, compunham umas bases que estruturavam as formas de
exploração de trabalhadores (livres, libertos e escravizados) nos mundos do trabalho da
província do Amazonas, durante a segunda metade do século XIX. Em um mundo do
trabalho marcado pela coerção, escravidão e pela possibilidade de ser arregimentado
compulsoriamente a qualquer momento, a informalidade das relações comerciais
configurava-se como uma possibilidade de manter-se distante das instituições estatais e,
ao mesmo tempo, assegurar seus espaços de autonomia. Esses espaços de autonomia
serão alvos de críticas e limitações a partir do processo de intensificação da demanda por
força de trabalho que fortalecerá as estruturas de coerção visando extrair o máximo do
excedente de trabalho da mão de obra local e migrante.
Para isso, nosso objetivo neste capítulo é analisar o processo histórico do aviamento
entre 1850 e 1880, destacando como as frentes de expansão agiram transformando-o em
um importante dispositivo para restringir a autonomia e mobilidade dos trabalhadores
locais e, principalmente, dos migrantes. Para isso, no primeiro tópico analisaremos como
estava construída essa relação no contexto inicial da criação da província do Amazonas e
da expansão de fronteiras entre 1850 até meados de 1860. Apresentaremos como esses

506
OLIVEIRA, João Pacheco de. Op Cit. 1979, p. 126.
193

tratos informais, apesar de ainda permeados por práticas violentas e coercitivas,


possibilitavam aos trabalhadores manter domínio sobre seu tempo de trabalho e sua
mobilidade. Analisaremos ainda como esses espaços de autonomia eram conquistados
pelas micropolíticas do trabalho que, segundo Ravi Ahuja, eram ações diretas ou
indiretas construídas pelos trabalhadores de forma individual ou coletiva para influir nos
tratos de trabalhos por eles vivenciados.507 No segundo tópico, buscaremos demonstrar
como a partir da década de 1870, quando ocorre o crescente aumento do interesse pela
borracha e outros personagens começam a emergir nas relações de produção e trabalho
do vale amazônico, o aviamento passa a ser redimensionado acentuando-se a prática da
dívida e do endividamento contínuo enquanto mecanismo de mobilização e controle da
mão de obra local e adventícia.

4.1– A informalidade enquanto costume no mundo do trabalho amazônico

No dia 27 chegamos a um promontório cujas terras eram altas e cobertas


de matas; é chamado de Parintins (...) Ali encontramos uma pequena
canoa, que descia o rio com destino a Santarém. Seus proprietários eram
um negro livre por nome de Lima; ele descia o rio, acompanhado da
mulher, com fim de trocar a sua produção de fumo por mercadorias
europeias. A canoa era comprida e rasa, e estava tão carregada que sua
borda quase chegava ao nível da água. Lima morava nas barrancas do
rio Abacaxi (...).508 [grifo nosso]

Distantes dos olhares e do controle estatal as populações dos sertões formada por
indígenas, mestiços, negros (livres e libertos), escravizados em fuga e desertores viviam
nas margens dos altos rios amazônicos produzindo e realizando comércio. O excerto
acima, retirado do relato do viajante Henry Walter Bates, exemplifica o envolvimento das
populações locais na realização das trocas comerciais ao apresentar Lima, um negro livre,
que acompanhado de sua esposa saindo rio Abacaxi navegava em sua canoa na direção
de Santarém, na província do Pará, com objetivo de negociar “sua produção de fumo por
mercadorias europeia”. Na província do Amazonas, grande parte dos contratos firmados

507
Ravi Ahuja argumenta que “as articulações individuais e coletivas de 'self-will' (...) combinam-se para
gerar um grupo de micropolíticas, tanto no que diz respeito às noções trabalhistas de adequação quanto de
'normalidade' aceitáveis em relação às relações de trabalho. Além disso, parto da suposição de que tais
noções compartilhadas não são reflexos mecânicos dessas divisões”. Para Ahuja essas micropolíticas eram
“mais do que lutas por níveis de extração, eram lutas de definições – conflitos sobre a determinação dos
limites específicos da própria relação de trabalho (...) Em outras palavras (...) ‘trabalho’, em sua articulação
concreta, foi produzido e reproduzido em um processo prolongado de interações sociais, incluindo
conflitos”. AHUJA, Ravi. Op. Cit, 2013, p. 112-113.
508
BATES, Henry Walter. Op cit, 1979, p. 114.
194

entre patrões e trabalhadores pareciam ser realizados de modo informal tendo por
alicerces estruturas que não passavam pelas instituições, pelas legislações ou pelo fisco
estatal, que buscavam, em conjunto, regular as relações de trabalho.
A historiografia mostra que a experiência cotidiana de homens e mulheres de
condição livre e pobre “divergia bastante das prerrogativas estabelecidas pelas leis que
tentaram normatizar o mundo do trabalho”.509 Muitos deles, inclusive, preferiam realizar
acertos informais a correrem o risco de serem arregimentados por algum tipo de
legislação. Joseli Mendonça destaca que essa escolha estava ligada ao fato de que
“associando os contratos à prisão, pareciam preferir os ajustes que não envolvessem esse
tipo de papel”.510 Isso corroborou para que parte da população livre, especialmente de
origem africana ou afrodescendentes, entrasse em uma miríade de formas de contrato de
trabalho que nem sempre eram motivados apenas por ganhos estritamente econômicos.
Denise Moura, pesquisando a experiência da população livre e pobre estabelecida em
Campinas, analisou que os contratos estabelecidos por esses sujeitos eram regulados
“pelos costumes, pela confiabilidade da palavra empregada, por valores morais” e “as
relações de troca que tais negócios poderiam estabelecer fortaleciam e favoreciam laços
de compadrio, amizade e vizinha”.511 Esses tratos e contratos informais eram realizados
na maior parte das vezes sem uma regulamentação das autoridades públicas.
Todavia, em alguns lugares do globo os contratos informais de trabalho não
estavam afastados das regulações estatais, um exemplo disso ocorreu em larga escala na
Índia colonial onde as relações informais de trabalho chegaram a ser institucionalizadas
pelo governo. No decorrer do século XIX e início do XX, Prabhu Mohaprata analisa que
“o crescimento do chamado setor informal, que caracteriza o mercado do trabalho
indiano, foi o resultado de longa intervenção estatal”.512 Segundo Mohaprata, o mundo
do trabalho indiano colonial foi marcado por uma ‘informalidade difusa” que continuou
influenciando as relações de trabalho mesmo no período pós-independência. Para regular
as relações de contrato informal, o Estado colonial indiano aprovou, entre outras
regulações, uma série de leis “dirigidas particularmente ao trabalho nas propriedades

509
XAVIER, Regina Célia Lima. Tratos e contratos de trabalho: debate em torno de sua normatização no
século XIX. História em Revista, v. 10, n. 10, 2004.
510
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Leis para “os que se irão buscar” – imigrantes e relações de trabalho
no século XIX brasileiro. História: Questões & Debates, v. 56, n. 1, 2012.
511
MOURA, Denise A. Soares de. Saindo da Sombra: homens livres no declínio do escravismo. Campinas:
área de publicação CMU/UNICAMP, 1998.
512
MOHAPATRA, Prabhu P. Informalidade regulamentada: construções legais das relações de trabalho na
Índia Colonial (1814-1926). Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2010.
195

agrícolas em Assam” que “visaram a uma regulamentação que abrangesse tanto a


mobilização, à distância, da força de trabalho quanto o controle desta no local de
trabalho”.513
Na Amazônia, duas questões tornam-se centrais para compreensão da expansão
do aviamento enquanto um tipo de relação que era comercial e também de trabalho.
Primeiro, devemos ter em mente a diminuta circulação de moeda na província do
Amazonas; Patrícia Melo, ao pesquisar o padrão das fortunas entre 1840 e 1880 nos
inventários post-mortem, identificou que havia uma grande carência de circulação de
moeda no circuito mercantil da região. 514 A partir dessa precariedade monetária, segundo
Melo, é que “as trocas irão operar-se na região”, por meio de “mecanismos de crédito
[que] passam pela reprodução de uma determinada hierarquia social, marcada pela
desigualdade”.515
Segundo, é necessário considerar os padrões de troca indígenas pré-existentes que
norteavam a lógica das trocas comerciais desde o período colonial. No alto rio Negro, por
exemplo, Robin Wright destaca a existência de “sistema regionais de integração” que
interligavam as sociedades indígenas do noroeste amazônico em uma “rede de vínculos
sociais, comerciais, políticos e religiosos que desafia qualquer tentativa de definir
sociedades individuais como entidades distintas e autônomas”.516 As relações comerciais
entre as populações daquele rio, como assevera Wright, eram intensas participando “nesse
sistema (...) os povos de língua Aruak, especialmente os povos Manao”. Nesse sentido,
Márcio Couto Henrique completa que na Amazônia “muitos grupos indígenas praticam a
chamada “reciprocidade protelada”, considerando que é importante manter dívidas em
aberto”, pois seria uma forma de “neutralizar distâncias sociais, temporais e espaciais e
forjar complexos sistemas de relações”.517 Dessa forma, o sistema do aviamento vigente
na província do Amazonas no século XIX era originário de uma longa e extensa rede
indígena baseada em trocas que tinham suas bases em padrões distintos daqueles
implantado pelo colonialismo para atender aos mercados locais e internacionais.518 São

513
Idem, p. 65.
514
Patrícia Melo ressalva como “Essa inserção relativamente tardia de moeda na região gera um conjunto
de permanências de práticas mercantis não-capitalistas, em que não predomina a intermediação da moeda
nas relações comerciais. Além disso, como afirma Fragoso, não é estranho que nesse circuito restrito e,
com poucas opções de negócios, abre-se espaço para o surgimento de práticas usurárias, especulativas e
monopolistas bastante salientadas”. SAMPAIO, Patrícia Melo. Op Cit, 1997, p. 97-98.
515
Idem, p. 99.
516
WRIGHT, Robin M. Op Cit. 2005, p. 16
517
HENRIQUE, Márcio Couto. Op cit. p, 133.
518
Márcio Meira, pesquisando a persistência do sistema do aviamento na região do noroeste amazônica,
analisa como “na origem dessa rede, a ‘dívida’ entre as partes em jogo não significaria um vínculo de
196

essas redes comerciais indígenas pré-existentes que serão reaproveitadas pelos


comerciantes e pelas forças do Estado para estender sua presença e atender às demandas
do mercado por produtos e mão de obra.
Em síntese, a relação informal entre os trabalhadores e os comerciantes ocorria
mediante troca dos produtos extrativista e de cultivo (como a mandioca) manejados pelos
indígenas, mestiços, negros (livres, libertos ou escravizados) e desertores que recebiam
como pagamento produtos manufaturados como machados, miçangas, tecidos e outros.
Esses pagamentos poderiam ser realizados adiantadamente e os trabalhadores, a partir
desse crédito, se comprometiam a entregar o produto “encomendado” alguns meses
depois. O tempo para a entrega do produto seguia os fluxos e ritmos de produção da
floresta. Vejamos um excerto do viajante Alfred Wallace que ajuda a descrever o
funcionamento desse sistema no vale amazônico:
No dia 8, chegamos em Castanheiro. Ali permanecemos um dia, em
companhia de outro português, um dos mais ricos negociantes do rio.
Sua fortuna era devida, em grande parte, a sua constante recusa de
tomar empréstimos e comprar fiado, habituais e condenáveis
procedimentos de quase todo esse povo (...) Com economia – e mesmo
um certo toque de avareza – conseguiu acumular umas 5 ou 6 mil libras,
que só tendem a multiplicar-se, nesta terra onde as necessidades vitais
são obtidas praticamente de graça, e onde a pessoa só não enriquece se
se entrega à bebida ou ao jogo. Ele comercia com os índios, levando os
produtos em sua própria embarcação para o Pará e de lá trazendo os
artigos que sabe serem os mais vendáveis. Seu lucro normal em
qualquer negócio que realiza é de 100%.519 (grifo nosso)

Como descrito por Wallace, os comerciantes dos rios ou regatões – como eram
conhecidos na Amazônia – buscavam os produtos manufaturados de casas comerciais
localizadas em Belém e Manaus, “trazendo os artigos que sabe[m] serem os mais
vendáveis” e depois seguiam para os altos rios para trocar por produtos nativos (cacau,
salsaparrilha, farinha de mandioca, tartaruga e outros) coletados pelas populações locais.
Ocorre que as transações comerciais feitas entre os regatões e as casas comerciais nas
capitais amazônicas, na maioria das vezes, não era realizada por meio de dinheiro vivo,
pois tinha baixa circulação na região, como afirmamos mais acima. Devido a isto, essas

dominação e controle de um ‘patrão’ sobre um ‘freguês’, em torno do pagamento de débitos em produtos


destinados a um mercado consumidor ‘externo’, como ficou caracterizado pelo processo colonial. Essas
dívidas se vinculariam mais a uma economia de dádivas recíprocas e prescritivas, de objetos e
conhecimentos valorados ritualmente e eventualmente alcançados por procedimentos xamânicos, entre
indivíduos, clãs, fratrias, coletivos políticos e sociais maiores, como também destes com outros ‘seres’ não
humanos que compõem seus mundos cosmológicos”. MEIRA, Márcio. A persistência do aviamento:
colonialismo e história indígena no noroeste Amazônico. São Carlos: EDUFSCar, 2018.
519
WALLACE, Alfred Russel. Op. cit, 1979, p. 132
197

transações ocorriam a partir da distribuição do crédito não apenas entre


comerciante/patrão e trabalhadores, mas também entre os próprios comerciantes e entre
eles e as casas comerciais. Patrícia Melo pontua que os comerciantes na província do
Amazonas estavam interligados por redes de dívidas “em que os comerciantes menos
abastados ficam presos àqueles que são os mais poderosos” e estes últimos ligados às
casas comerciais em Belém.520 Novamente, Alfred Russel Wallace proporciona uma
descrição clara dessa negociação:
Os grossistas do Pará que tem correspondente no estrangeiro adquirem
seus bens a crédito. Esses bens são vendidos – também a crédito – aos
atacadistas das cidades menores. Aí vêm os mascates fluviais e
adquirem os artigos aos negociantes, mais uma vez a crédito. 521

O sistema do aviamento influía, como destacado por João Pacheco de Oliveira,


“em todos os níveis, do local às vinculações internacionais, das relações comerciais às
relações sociais de produção”.522 Contudo, o viajante julgava as negociações assim
realizadas como uma “aventura de risco” devido as inúmeras incertezas que cercavam
essa prática comercial, com as dificuldades enfrentadas para navegar nos rios amazônicos
ou para comercializar com as populações locais. Para o viajante, era justamente a parte
da negociação com as populações locais e o crédito disponibilizados de antemão a elas
que tornavam ainda mais frágil esse tipo transação:
Estes seguem pelos diversos rios e distribuem seus artigos entre os
índios semicivilizados, para que estes os levem às malocas dos índios
selvagens, a fim de trocá-los por artigos ali produzidos. Essa troca,
contudo, é teórica, pois a salsaparrilha ou o azeite aceito como
pagamento ainda não foram colhidos na floresta ou no lago... Até os
índios selvagens estão inseridos no sistema, só entregando os produtos
quando são pagos com uma antecedência de cerca de 6 meses!523

520
Patrícia Melo ao realizar a análise dos inventários post-mortem entre 1840 e 1880 computou que em
determinadas faixas o volume do endividamento dos comerciantes chegava a alcançar 38,9$ da riqueza
total dos inventariados. Conectado a isto, a pesquisadora apresenta que os inventários comprovam como
“as cadeiras que ligavam as praças de Manaus e Belém eram bastante estreitas. Os registros de comerciantes
estabelecidos em Manaus e financiados por comerciantes do Pará são variados; abrangendo desde cabos de
canoa, passando por pequenos comerciantes, chegando àqueles que se autodenominam negociantes. Porém,
a cadeia não para ai. Os comerciantes e proprietários estabelecidos em Manaus também geravam suas
próprias cadeias, aviando cabos de canoas para comercializarem suas mercadorias no interior e outros
comerciantes menores na própria cidade de Manaus ou cidade menores, estendendo suas áreas de atuação,
às vezes, até os limites da fronteira”. SAMPAIO, Patrícia Melo. Op Cit, 1997, p. 99- 102
521
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979. p. 234
522
OLIVEIRA, João Pacheco de. Formas de dominação sobre o indígena na fronteira amazônica: Alto
Solimões, de 1650 a 1910. Cadernos CRH, Salvador, v. 25. N. 64, p. 17-31, jan/abr, 2012, p. 26.
523
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979. p. 234
198

Apesar de reconhecer os avultados lucros obtidos pelos comerciantes nessas


transações, mesmo assim o inglês não conseguia conceber uma troca comercial baseada
em uma rede de crédito que tinham nas populações locais, principalmente indígenas, seus
principais fornecedores dos produtos nativos. O que para Wallace era uma prática frágil
e sem segurança, para os comerciantes e as populações locais envolvidas fazia parte de
um costume enraizado nas práticas de produção que conectavam as redes internas com os
mercados das capitais e os portos internacionais.
Constituindo assim a lógica das relações sociais de produção e de trabalho, era
costumeiro que os comerciantes organizassem grandes expedições para subir os rios
objetivando angariar produtos nativos por intermédio dos negócios estabelecidos com as
populações que habitavam as margens dos rios. Muitos deles inclusive também
aguardavam a vinda desses negociantes duas ou três vezes por ano e, como descrito no
excerto que abriu este capítulo, eles levavam “os produtos que podem colher, a fim de
trocá-los pelos artigos de que necessitam. Quando nada têm para trocar, compram fiado,
comprometendo-se a fazer o pagamento daí a algum tempo”.524 Outros mantinham
pequenas plantações visando estabelecer seus tratos com os comerciantes. No alto
Solimões, o italiano Gaetano Osculati, ao sair de Tabatinga em direção a Belém, em 1847,
presenciou diversos indígenas negociando variados produtos com os negociantes locais.
De acordo com Osculati, “tanto os Ticunas quanto os Mayorunas fabricam muita farinha
de mandioca, que vendem em grandes cestas” para os comerciantes de Tabatinga e de
Loreto.525 No rio Japurá, o viajante Paul Marcoy descreveu a presença de um casal “dois
velhos mestiços” que com auxílio de “um índio Tapuia” mantinham uma sortida
plantação nos arredores de sua casa.526 Segundo as informações obtidas do seu remeiro
“João, o Miranha”, Marcoy afirmou que “o produto desse cultivo não somente lhes
assegurava os meios de subsistência, como também uma certa dose de conforto”, visto
que “os excedentes eram trocados por sal, algodão, veneno para caça e implentos de pesca
com os moradores de Ega e Caiçara (atual Alvarães)”.527
A força de trabalho dos indígenas, negros e mestiços e a sua produção acionada
pelo emprego desse mecanismo social de trocas comerciais especialmente com os
regatões, ou “comerciantes dos rios”, era alvo de constantes críticas principalmente por

524
Idem, p. 137.
525
OSCULATTI, Gaetano. De Tabatinga a Belém (1847). In: ISENBURG, Teresa. Naturalistas italianos
no Brasil. São Paulo: Secretária de Estado da Cultura, 1990, p. 145
526
MARCOY, Paul. Op Cit. 2006, p. 112.
527
Idem.
199

parte das autoridades públicas. A crítica estava relacionada ao “desvio” da força de


trabalho desses indivíduos do “trabalho regular” e da “agricultura”, como almejada pelo
Estado. O presidente João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, por exemplo, em
1852, reprovava o fato de:

(...) os indígenas e trabalhadores (...) tudo o que tiram e destroem é para


os chamados regatões das feitorias, a troco de aguardente, com que os
regalão, e de uma calça e camisa de riscado caseiro, sendo a depravação
dos costumes todo o ganho que lhes toca, pela perda do tempo e do
trabalho que a ser bem aproveitado na agricultura ou ainda nessas
extrações com regularidade, podia produzir muitos interesses.528 (grifo
nosso)

Como pontuamos, as reclamações do presidente acerca da relação de comércio e


trabalho ocorridas fora da esfera da vigilância e do controle estatal estavam assentados
no fato de que a mão de obra das populações locais e o fruto do seu trabalho não estarem
sendo “bem aproveitado” pelo Estado ou por particulares “de confiança”. A presença
desses comerciantes cingindo as águas amazônicas subindo cada vez mais os rios e
negociando em suas margens com as populações locais era constante desde o período
colonial e se intensificou com a criação da província do Amazonas e a demanda por
produtos tanto na capital, Manaus, quanto para o comércio exterior. Nesse sentido, em
1857, o presidente da província João Pedro Dias Vieira justificou que o atraso e as
dificuldades enfrentadas para o bom funcionamento dos aldeamentos eram devido ao
“contrato e comércio direto dos índios com os regatões” que causava o desvio dessa força
de trabalho e dos produtos nativos do controle do governo. 529
Todavia, a informalidade estabelecida a partir dessas trocas comerciais marcava o
mundo do trabalho amazônico constituindo um mecanismo de acumulação de riquezas e
uma forma de extração da força de trabalho das populações locais pelos comerciantes. De
acordo com os parâmetros em que eram manejadas essas relações, elas permitiam aos
trabalhadores exercerem um certo grau de independência em suas atividades e vidas.
Escravizados em fuga e desertores tinham especial interesse nesse tipo de relação uma
vez que na condição de foragidos de seus proprietários e das instituições governamentais
necessitavam encontrar meios de sobrevivência que evitassem serem alcançados pelas

528
Relatório que em seguida ao do exm. o snr. presidente da província do Pará, e em virtude da circular de
11 de março de 1848, fez, sobre o estado da província do Amazonas, depois da instalação dela, e de haver
tomado posse o seu 1.o presidente, o exm. o snr. João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, p. 31-32.
529
Exposição Feita ao Exm. Snr. 1º vice-presidente da província do Amazonas o Dr. Manoel Gomes Correa
de Miranda pelo presidente O doutor Joao Pedro Dias Vieira. 25 de fevereiro de 1857, p. 21.
200

amarras legais. No alto Solimões, Paul Marcoy presenciou os negócios ajustados entre
alguns desertores e um negociante da região de salsaparilha e cacau. Marcoy esclareceu
que o carregamento que o mercador havido ido buscar com os desertores estava
encomendada já há alguns meses.530
(...) haviam-se refugiado nesse lugar e viviam conjuntamente com
mulheres Ticunas que haviam escapado de alguma missão. Esses
guerreiros foragidos, encontradiços nos canais e igarapés do Amazonas
onde a sentença de uma corte marcial não os alcança, têm às vezes nos
recebido com grande hospitalidade e nos causa surpresa com o quadro
pacífico da sua vida doméstica. Todos cultivavam alguma mandioca e
bananas, caçam e pescam para prover sua mesa, negociam com os
comerciantes do rio a salsaparrilha e o cacau que coletam nos bosques,
e desses pequenos comércios obtém um pouco de dinheiro com que
compram pano de algodão para vestir e ornamentos para enfeitar suas
mulheres.531

Como apresentamos no primeiro capítulo, as autoridades públicas tinham pleno


conhecimento da existência desses sujeitos habitando os altos rios, entratanto, as
distâncias e mesmo a proteção que obtinham dos comerciantes dificultavam a ação
policial para prendê-los. Era justamente, a partir das relações informais de comércio, que
esses sujeitos encontravam meios para sua subsistência e ampliavam suas redes de
sociabilidade. O governo provincial buscou, diversas vezes, limitar as possíveis conexões
entre os comerciantes e os fugitivos por meio da criação de leis cujo objetivo era dificultar
a sobrevivência de escravizados fugidos e desertores. Em 1853, por exemplo, uma lei
aprovada para regular os negócios praticados pelos regatões estabelecia no capítulo 3º
intitulado Da matricula das tripulações que:
Artigo 13. Nenhuma pessoa nacional, estrangeira ou escrava poderá ser
empregada na tripulação das embarcaçãoes destinada ao comércio de
regatão, sem que esteja matriculada na Secretaria de Polícia da Capital,
ou nas delegacias e subdelegacias do interior, conforme o lugar d’onde
tiver de sair a embarcação.
(...)
§3º. Que os indivíduos da tripulação estão livres e desembaraçados para
a dita viagem; não havendo, entre eles desertores, nem criminosos, nem
escravos, sem licença ou autorisação de seus feitores ou
administradores.532

Além de proibir a presença de escravizados sem a permissão dos proprietários e


desertores como tripulantes nas embarcações dos regatões, no cap. 4º Das penas de

530
Idem, p. 35.
531
Idem, p. 35
532
Estrela do Amazonas, 15 de março de 1856, nº 137-138, p. 2-3
201

apreensão e multa estabelecia em seu art. 26 uma multa de 50$0 réis ou pena de 25 dias
de prisão para aqueles comerciantes que realizassem negociações com escravizados sem
o aval dos respectivos senhores. 533 As relações mantidas entre os comerciantes e
escravizados ou desertores representava uma ameaça aos proprietários e ao Estado, mas
abriam a esses sujeitos espaços para construirem e ampliarem sua autonomia e redes de
sociabilidade.534
Todavia, nem todos os comerciantes eram bem quistos por essas populações para
manter seus negócios e contratos devido as violências e excessos praticados por eles
contra os trabalhadores. Enquanto subia o rio Negro, o viajante Alfred Russel Wallace
contastou que algumas vezes quando visualizavam uma comunidade ou habitações e
decidiam se aproximar acontecia de, ao desembarcarem, encontrarem tudo vazio. Wallace
creditava isso ao fato de que:
sempre que aportam negociantes, ocorre isso: temerosos de serem
obrigados a acompanhá-los, alguns índios preferem manter-se ocultos.
Muitos dos comerciantes deste rio são indíviduos da pior espécie.
Ameaçando matá-los, obrigam os índios a seguir viagem com eles;
costumam até cumprir suas promessas, uma vez que se consideram fora
do alcance daquela diminuta fração de lei mesmo no rio negro ainda
luta para subsistir. 535

Os regatões eram acusados de inúmeras práticas de violências contra os indivíduos


com quem mantinham negócios, especialmente os povos indígenas. Em 1860, o vice-
presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda divulgou a prisão do regatão Izidoro José
Elias acusado de “haver encurralado nove gentios da nação Catauixi no rio Purus” três
anos antes. Correia de Miranda narrou a extrema violência cometida por Izidoro contra
os indígenas. O regatão “fazendo-os saltar e correr separadamente os fuzilava como por
passatempo, e de ter esquartejado um recém-nascido, que restava”.536 Na década de 1860,
as populações indígenas enfrentavam o aumento contínuo de agente particulares na sanha
de angariar os produtos extrativos, aumentando a pressão sobre os excedentes dos
trabalhadores locais. Sobre a ação desses personagens, Franz Keller, em 1868, definiu o
significado da palavra regatão como derivada da palavra ‘resgatar’, ‘liberar os
prisioneiros de guerra mantigos pelos indígena’”. De acordo com Keller:

533
Idem.
534
Para mais sobre essa relação, ver: CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. Op. cit, 2015.
535
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979, p. 1378.
536
Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na abertura da 1.a sessão ordinária da
5.a legislatura no dia 3 de novembro de 1860 pelo 1.o vice-presidente em exercício, o Exmo. senr. dr.
Manoel Gomes Corrêa de Miranda.
202

Sob pretexto, os regatões, ao mesmo tempo comerciantes naquelas


regiões, não apenas mantiveram o tráfico de escravos lucrativo, como
também praticaram todas as espécies de crueldades e crimes contra as
cabanas dos habitantes destas regiões, fossem selvagens ou mestiços
(...) Até hoje, às margens do rio Japurá, rio Purus, rio Tefé, etc,
mercadores portugueses mantêm nativos como úteis animais
domésticos que se tornaram, em enorme grau de dependência, apenas
distinguível da real escravidão pela circunstância de que seus mestres
não os precisão (sic) vender tentados pelo lucro imoral, ou alguns
funcionários de casas aviadoras do Pará, que superavam as dificultosas
e exaustivas jornadas em pequenos barcos por três ou quatro meses,
para negociar lucrativamente o caucho, cacau, castanhas do Pará,
diversos tipos de resina e peixe seco.537

A escravização ilegal de indígenas, especialmente crianças e mulheres, como


apresentamos no capítulo três configurava-se como um comércio lucrativo realizado tanto
pelos regatões quanto pelas autoridades públicas. 538 Esse tráfico ilegal utilizou-se
inclusive das redes de trocas tradicionais para atender suas demandas. Alfred Russel
Wallace testemunhou a negociação realizada com esse intuito entre o comerciante Lima
e Bernardo, “um índio de São Jerônimo”. O negociante solicitou que Bernardo lhe
“arranjasse uns meninos e umas meninas índias”, o que segundo Wallace significava
“empreender um ataque contra a maloca de uma outra nação e capturar todas as crianças
que não conseguissem fugir e não fossem mortas”. O viajante anotou que o próprio
negociante tinha participado de algumas dessas “incursões” para capturar principalmente
crianças e mulheres:
Os negociantes e as autoridades de Barra e do Pará encomendam, aos
viajantes que comerciam entre os índios, alguns meninos e meninas
para trabalharem em suas casas, bem sabendo qual é a maneira pela qual
eles são conseguidos. A bem da verdade, o próprio Governo de certo
modo autoriza essa prática. Entretanto, algo deve ser dito a seu favor,
pois os índios fazem guerras entre si, com o objetivo de obter armas e
ornatos, ou como represália por alguma ofensa real ou fictícia, matando

537
KELLER-LEUZINGER, Franz. Os rios Amazonas e Madeira: esboços e relatos de um explorador. Belo
Horizonte: Editora Dialética, 2021.
538
O comércio ilegal de crianças indígenas era também presente em outras províncias como do Espírito
Santo e São Paulo no século XIX. Na província do Espirito Santo, Vânia Maria Losada Moreira identificou
como depois de sequestradas muitas dessas crianças indígenas eram cedidas a terceiros utilizando para isso
a legislação orfanológica como justificada. Todavia, como pontua Moreira, “apesar de legal, a tutela
orfanológica não deixa de ser uma forma disfarçada de trabalho compulsório imposto aos índios, muito
próxima, ademais, à “administração particular” impingida aos índios em São Paulo, durante a maior parte
do período colonial”, ver: MOREIRA, Vânia Maria Losada. Op. Cit, 2010. Esse artifício também foi
aplicado pelos escravizadores de indígenas na província da Amazônia. Analisando 263 processos do Juízo
de Órfãos em Manaus entre 1868 a 1896 o historiador Alcemir Teixeira identificou como considerável
parcela da elite utilizaram-se da legislação orfanológica para legalizar a tutela de crianças (indígenas, negras
e indígenas) que muitas vezes tinham sido alcançadas a partir do comércio ilegal. O autor também
identificou muitas mães dessas crianças que buscavam no Juízo de Órfãos denunciar a situação ilegal e
violências que sofriam seus filhos que estavam sob tutela, ver: TEIXEIRA, Alcemir. Alijean Bezerra. Op.
cit, 2010. Sobre São Paulo, ver: DORNELLES, Soraia Salles. Op Cit. 2017.
203

então tantos inimigos quantos puderem. Poupam apenas algumas


jovens, tomando-as como esposas. Essas guerras são feitas
principalmente pelos nativos da margem do rio contra as tribos dos
igarapés mais afastados. No entanto, devido à possibilidade de poderem
vender os meninos para os compradores ambulantes, passaram
ultimamente a poupá-los, ao invés de chaciná-los como antes faziam.
(...) O sr Lima havia recebido duas encomendas de Barra (uma era do
próprio Delegado de polícia), ambas de uma menina índia para serviços
domésticos. Como Bernardo era um homem tarimbado nesse ‘negócio’,
o sr Lima estava acetando os últimos pormenores com ele, entregando-
lhe pólvora, chumbo – arma, não, que ele já possuía uma – e algumas
mercadorias para pagar aos índios que iriam ajudá-lo na empresa e para
negociar com os índios amigos, se houvesse oportunidade.539

Na sanha por atender sua demanda por mão de obra para exercerem as mais
variadas atividades nas cidades, especialmente no serviço doméstico nas casas de
funcionários públicos e da elite em geral que habitava Manaus, os regatões aproveitaram-
se das disputas existentes entre os povos indígenas como fonte para prover seu mercado
ilegal de escravos indígenas. As crianças e mulheres capturadas passaram assim a ser
inseridas no mercado de trocas que continuará ativo e praticado pelas próprias autoridades
públicas.
Apesar de nessa conjuntura o “limite entre a negociação e a violência [ser]
bastante tênue”540, conseguimos entrever que, por meio da informalidade, os
trabalhadores, fossem eles indígenas, negros (livres, libertos ou escravizados), mestiços
ou desertores, inseridos nessas transações tinham considerável margem de decisão sobre
seu tempo de trabalho, sua mobilidade e a produção final. Os comerciantes inclusive
precisavam fazer certas concessões ou reconhecer espaços de autonomia reivindicados
pelos indivíduos com as quais negociavam para poderem conseguir que as populações
locais aceitassem negociar seus produtos ou ficar a seu serviço.
No alto rio Negro, por exemplo, o comerciante Lima, descrito por Alfred Russel
Wallace, para conseguir que um grupo de indígenas “se dispusesse a ir comprar
salsaparrilha e farinha nas cabeceiras de um igarapé próximo, o que representava uma
viagem de alguns dias” precisou elevar a quantidade dos produtos que os indígenas
receberiam pelo trabalho.541 O próprio Wallace precisou fazer concessões para conseguir
que alguns indígenas lhe construíssem uma canoa, pagando adiantado o que ele chamou
de “umas miudezas”. Quem não procedesse assim, nada conseguia com os índios”,

539
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979. p. 189
540
CARDOSO, Antonio Alexandro Isidio. Op Cit. 2017, p. 122.
541
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979, p. 180.
204

declara o inglês.542 Mostrando como esses trabalhadores conseguiam exercer certo grau
de autonomia na relação das trocas comerciais construídas com os negociantes dos rios.
Além disso, como aponta Marcio Couto Henrique, isso demonstra como “as trocas
seguiam o padrão tradicional indígena, sem uso de dinheiro e submetidas ao ritmo de
contraprestação determinado pelos próprios índios”.543 Esse padrão tradicional de trocas
dos povos indígenas estendeu-se para o realizado com outros habitantes do vale
amazônico; a saber: como negros (livres, libertos e escravizados) e mestiços.
Os trabalhadores inseridos nesses tratos informais também exerciam influência
sobre o “valor” do trabalho produzido. Essa constatação fica perceptível na descrição feita
pelo inglês William Chandless em sua expedição no rio Purus, realizada entre junho de
1864 e fevereiro de 1865.544 O explorador descreveu que os Paumaris, classificados por
ele como “uma raça muito pacífica”, eram comumente empregados pelos regatões para
pescar tartarugas chegando a conseguir 200 a 300 delas em apenas um dia. Contudo,
destacou Chandless, o “preço” requerido pelos indígenas para cada tartaruga poderia
variar consideravelmente de acordo com a estação. Chandless destacou que “o preço
normal de uma tartaruga é uma ou duas pontas de flecha de ferro farpado; mas quando o
rio está cheio, eles pedem mais”.545 O inglês ainda notou a presença dos mesmos na coleta
de seringa pontuando que:
Eles agora trabalham, em grande parte, embora preguiçosamente, na
coleta de borracha da indígena, e compreendem bem o valor dela e o
que recebem por ela; embora, como todos os indígenas, eles paguem
preços ridículos por coisas de que gostam. Eles agora recusam
machados portugueses e pedem americanos. Eles negociam com outras
tribos, vendendo principalmente facas velhas, machados, etc546. (grifo
nosso).

Apesar de endossar a crítica aos tipos e ao valor atribuído aos produtos


industrializados pagos aos indígenas, Chandless ressalvava que os Paumaris tinham clara
compreensão do valor do seu trabalho e do quanto eles queriam receber por ele. Tanto
que dentre os produtos almejados eles se recusavam a receber os ‘machados portugueses’

542
Idem.
543
HENRIQUE, Marcio Couto. Op Cit. 2018, p. 214.
544
CHANDLESS, William. Ascent of the River Purús. In: The Journal of Royal Geographical Society of
London. Londres, v. 36, 1866.
545
Trecho do original: the regular price for a turtle is one barbed iron arrow-head, or two unbarded; but
when the river is in flood they ask more”. Idem, p. 93.
546
Trecho do original: “They now work to a great extent, though lazily, at collecting india rubber, and
well understand the value of it, and of what they receive for it; though like all Indians they will pay
ridiculous prices for things they tale a fancy to. Portuguese axes they now refuse, and ask for American.
They trade with other tribes, selling chiefly worn-out knives, axes, etc”. Idem, p. 93.
205

em preferência ao norte-americanos. A escolha pelo machado norte-americano, além de


ser considerado de melhor qualidade, se esperava também que eles depois seriam mais
bem recebidos nas trocas interétnicas. Dessa forma, ao ser reinseridos na lógica das trocas
interétnicas, “os objetos são ‘processados’ pela trama social, sua inserção nas culturas
indígenas é mediada pelos valores desta, num esforço constante de imprimir nestes
objetos sua marca distinta”.547
Além disso, não apenas o pagamento convencia-os a aceitar um trabalho, havia
outras questões que perpassavam para alcançar o consentimento positivo dessas
populações. Alfred Russel Wallace quando descia o rio negro em direção à Manaus e
tentou contratar alguns indígenas para a função de remeiros encontrou dificuldades para
se acertar com os indígenas:
Um dizia que sua casa estava precisando ser consertada, e que ele não
poderia viajar antes de completar esse trabalho. Outro falou que já
assumira o compromisso de ir a uma festa que se realizaria daí a uma
ou duas semanas, e que só depois disso estaria a minha disposição.
Assim sendo, não me restava outra alternativa senão esperar mais algum
tempo, enquanto fazia uso do específico que os brasileiros receitam para
os casos de aborrecimento desse gênero: paciência.548

Além da paciência, Wallace necessitou da intervenção e influência do comerciante


“Lima” para finalmente conseguir alguns dos remadores. Além disso, um dos indígenas
apenas consentiu acompanhar o viajante se ele contratasse “outros quatro para ajudá-lo a
limpar o mato e preparar uma roça de mandioca, sem o que ele não viria de modo algum”.
A informalidade das relações de trabalho e produção no vale amazônico estava
atravessada por significados que não se restringiam à lógica do mercado. Havia outros
marcadores sociais que influíam para que as populações locais aceitassem participar de
certos trabalho e comércio caracterizados por questões de alianças e interesses dos
próprios trabalhadores. Franz Keller-Leuzinger, por exemplo, narrou as dificuldades
encontradas pelos exploradores para conseguir trabalhadores para sua excursão, pois eles
não consentiam facilmente a aceitar os serviços propostos. 549 Ele afirmou ter ouvido uma
história de outro explorador que ao tentar convencer “um certo mestiço (...) lhe
oferecendo alta compensação pelos serviços de guia, remador, caçador e pescador” teria
respondido: “retorne amanhã, depois que eu tiver vendido meus peixes na cidade, e eu
lhe darei o dobro apenas para não me encher mais a paciência”. Para Keller-Leuzinger a

547
HENRIQUE, Márcio Couto. Op Cit, 2018, p. 159.
548
WALLACE, Alfred Russel. Op Cit. 1979, p. 196.
549
KELLER-LEUZINGER, Franz. Op Cit. 2021.
206

razão disso residia no fato de a região ser “tão rica em peixes quanto poderia ser –
pescados e vendidos sem dificuldade – e, sendo, o solo tão fértil quanto se poderia
esperar”, permitindo que eles “eventualmente comprem umas poucas roupas de seu
interesse, bem como munições e anzóis”. A partir disso, os trabalhadores sentiam-se no
direito de escolher quando e para quem trabalhar. O que para o alemão era inconcebível.
Esses espaços de autonomia eram alcançados por meio de suas ações, a partir das
quais demonstravam o que consideravam como ‘aceitável’ ou “apropriado” dentro das
relações de trabalho ou para demonstrar sua insatisfação perante a obrigação de realizar
um serviço ou continuar por longo período em certas atividades. Além das fugas e de
recorrer à Justiça que foram meios mais diretos de encerrar seus tratos de trabalho ou
denunciar abusos havia outros artíficos mais indiretos, ou melhor, dissimulados.
Confundir, iludir, falsear, engabelar ou tapear faziam parte da miríade dessas
micropolíticas do trabalho desenvolvidas pelos trabalhadores amazônicos.
Em 1859, enquanto viajava pela bacia amazônica o francês August François Biard
vivenciou diversos desafios com os contratos de trabalho estipulados com os
trabalhadores locais. Além das dificuldades recorrentes para conseguir mão de obra para
os serviços, Biard proferiu uma série de reclamações e atribuiu “péssimas” qualificações
para a força de trabalho disponível. Um dos seus principais alvos era seu criado chamado
Policarpo – um indígena da etnia Mura – classificado por ele como sem ‘qualidades’ e
‘bastante preguiçoso’. O francês contratou os seus serviços quando estava ainda em
Belém e para que o indígena pudesse prosseguir viagem em direção ao Amazonas foi
necessário ir até a polícia conseguir uma permissão. O viajante explicou que isso era
necessário pois “Policarpo poderia ser escravo, desertor ou ter dívidas, e ele não dispunha
de documentos que provassem o contrário”.550 Ao final, segundo Biard, o indígena só
teria conseguido a permissão por possuir uma “carta de recomendação do Barão de Mauá”
e pela “consideração” que as autoridades tiveram pelo europeu.551 No Brasil Império a
mobilidade da população indígena, de negros (livres, libertos e escravizados) e não-
brancos pobres estava condicionada à apresentação de documentos ou licenças que
fossem expedidas pelas autoridades policiais ou pessoas consideradas da “boa
sociedade”.552 Somado a isto, mesmo Policarpo sendo reconhecido como indígena isso

550
BIARD, Auguste François. Dois Anos de Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p.
145.
551
Idem.
552
Rebeca Scott e Jean Hébrard reconstruindo cinco gerações de Rosalie, levada em 1785 da Senegâmbia
e escravizada em Saint-Domingue, demonstram o problema em torno do deslocamento geográfico de
207

não bastava para reconhecer sua condição de livre visto que ainda assim ele poderia ser
considerado um escravo, uma “propriedade de alguém”, fato que evidencia como as
marcas da escravidão na Amazônia também carregavam marcadores étnicos.
Policarpo só teria mesmo aceitado seguir com Biard depois que o secretário do
presidente da província chamou-o para “conversar” e ameaçou-o com prisão e
alistamento na Armada caso ele não obedecesse ao europeu. Segundo o viajante, essas
duas coisas “aterrorizavam os índios, uma vez que, embora em contato com a civilização,
por nada deste mundo querem renunciar à sua liberdade”.553 Nenhum contrato formal
foi firmado e Policarpo seguiu na informalidade e a contragosto para o trabalho, mas não
deixou de demonstrar seu descontentamento com aquele serviço em nenhum momento.
Para o indígena, sua liberdade também estava ligada à sua autonomia de escolher qual
serviço gostaria de estar ligado ou não.
Quando desembarcaram em Manaus, por exemplo, o francês descreveu com
desprezo o fato de Policarpo ter-se negado a carregar seus pesados baús para o hotel,
afirmando que fora necessário:
(...) forçar o horrível Policarpo a me ajudar um pouco. Possuía uma
mala que nunca fora carregada por mais de um negro aqui. Dois índios,
conseguidos a custo, auxiliaram o preto, e, se nós não protestássemos,
teria sido preciso um terceiro. Policarpo somente se interessou pelo seu
baú.554 (grifo nosso)

Em outro episódio, quando saia aos arredores de Manaus para fazer suas pesquisas
e catalogar alguns animais, Biard reclamou da demora com que Policarpo realizava as
atividades requisitadas:
Mandei Policarpo, por ali afora, a fim de ver se descobria um abrigo
que me servisse. Disse-lhe fosse e voltasse depressa, porém,
acostumado a agir como lhe desse na cabeça, não apressou os passos e
quando regressou, para me dar a entender ter encontrado o que eu
queria.555 (grifo nosso)

O que os protestos e qualificações proferidas pelo francês tentam cobrir são as


inúmeras violências praticadas pelo viajante contra os trabalhadores contratados que por
meio dessas ações buscavam demonstrar seu descontentamento com o patrão e

africanos (livres e escravizados) no mundo atlântico e os vários significados atribuídos aos documentos
nesse percurso. SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na
era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
553
BIARD, August François. Op Cit, p. 146.
554
Idem, p. 164.
555
Idem, p. 165.
208

estabelecer suas demandas dentro daquelas relações. Dessa forma, utilizando do “atraso”,
da mentira ou da “preguiça”, Policarpo buscava impor seus limites e percepções sobre o
que considerava ou não como parte do seu contrato de trabalho com o francês. De fato, o
ajudante de Biard era um mestre na arte de “falsear”, “fingir”, “mentir” e “iludir” quando
estava em jogo a obrigação de realizar algum serviço que não lhe agradava. Em certa
ocasião, por exemplo, Policarpo estava descontente com a demora que o europeu levava
em cada povoação que eles visitavam, principalmente quando o francês decidia realizar
suas pinturas. O indígena procurou o viajante pedindo que fosse mais rápido, o que foi
totalmente negado. Com o passar dos dias, o viajante percebeu que quando paravam em
algum lugar e ele se interessava por fazer desenhos dos habitantes, eles saiam correndo e
negavam-se veemente em permanecer na sua frente. Até que um dia, o francês
conversando com o chefe de uma população ficou sabendo que Policarpo estava contando
histórias para os demais convencendo-os que “na terra dos brancos existiam criaturas sem
cabeça” e Biard estaria encarregado de encontrar modelos para substituí-los. Como
relatou o viajante:
(...) Policarpo, não ousando atacar-me de frente, havia, desde Manaus,
posto em prática maldade surda que produzira seus efeitos sem
conhece-lhes a causa. Quando um índio se prestava a servir de modelo,
e eu não acabava o retrato no mesmo dia, Policarpo convencia-o de que
na terra dos brancos existiam criaturas sem cabeça. Eu estava
encarregado de consegui-las entre os selvagens. Assim, quem fosse por
mim pintado um dia teria a cabeça misteriosamente arrancada dos
ombros e levada pelos ares ao corpo a que estaria destinada. 556

Policarpo conhecia muito bem a língua e a cosmologia das populações que


habitavam os arredores do rio Madeira e do Amazonas, sendo ele mesmo pertencente a
etnia Mura, sabia quais imagens podiam ser acionadas para assustar seus patrícios. O
trabalhador utilizou seu saber como uma micropolítica para mesmo que indiretamente
influenciar no tempo de duração do serviço e acelerar a sua estada a serviço do francês.
Ao final, esse evento e outros ocorridos tornaram a relação de trabalho entre o indígena e
o europeu insustentável, especialmente para a própria vida de Policarpo. 557 Percebendo
isso, o indígena tratou de evadir-se da companhia do francês levando consigo “uma
espingarda (...) bem como um facão (...) um saco com chumbo, pólvora, cápsulas e uma
caixa na qual havia linha, agulhas, botões e tesouras”.558

556
Idem, p. 215.
557
Auguste Biard enforcou e bateu com o revolver na cabeça de Policarpo quando percebeu que ele estava
tramando sua fuga. Idem, p. 235-236
558
Idem, p. 240.
209

O fato é que ele não foi o único trabalhador da excursão a utilizar dessas
estratégias para driblar os serviços impostos pelo viajante ou buscar acelerar a estadia nas
povoações. A maior parte da mão de obra a serviço de Biard havia sido contratada pelos
tratos informais ou ainda pela intervenção de alguma autoridade pública. Todavia, os
trabalhadores tinham para si uma visão clara de como deveriam ser tratados, a
alimentação que deveriam receber e o tempo de duração do serviço previamente acertado.
Quando isso não era respeitado, eles buscaram formas de demonstrar seu desacordo.
Numa dada ocasião, alguns indígenas e um guarda buscaram enganar e confugir o
viajante, divertindo-se com o desespero do patrão diante da situação. Um dia quando
desembarcavam em uma margem do rio Madeira, os trabalhadores desceram da
embarcação sem comunicar August Biard da profundidade do rio naquele lugar fazendo-
o afundar e quase se afogar.559 O francês inconformado com a situação e com o perigo
que passou, infligiu-lhes diversos castigos físicos para penalizá-los.
Em outra ocasião, todos trabalhadores negaram-se a acompanhar o patrão em uma
excursão para que ele pudesse retratar um pássaro que havia avistado, visto que declaram
ter remado durante longas horas sem descanso. Irritado com a situação, Biard decidiu
navegar sozinho. Solicitando apenas de seus trabalhadores as coordenadas necessárias
para alcançar seu intento. Ao chegar ao local desejado e finalizar o retrato do almejado
pássaro, o francês decidiu entrar no rio e banhar-se. Após um tempo, este notou que os
trabalhadores olhavam em sua direção, proferindo algumas risadas e fazendo sinais para
que nadasse mais distante. Inicialmente Biard decidiu ignorar os trabalhadores, mas
conforme as risadas aumentavam este resolveu olhar o local para onde os indígenas
pediam que ele nadasse. Foi então que percebeu há pouco metros de distância alguns
jacarés a sua espreita; tomado pelo desespero começou a nadar para a margem mais
próxima e conseguiu salvar-se. Novamente, inconformado com a “peça” (troça) que seus
trabalhadores lhe aplicaram, desferiu-lhes castigos e diminuiu-lhes a refeição distribuída
nos dias seguintes.
Nesse sentido, atrasar ou enrolar para realizar uma atividade funcionava ainda
como forma de demonstração da insatisfação ou desacordo dos trabalhadores perante
alguma situação no ambiente de trabalho como, por exemplo, a quantidade das provisões
recebidas durante o exercício de alguma atividade. Durante sua viagem entre o rio
Madeira e a região do Beni, por exemplo, Edward Davis Mathews relatou muitos

559
Idem, p. 200.
210

problemas e atrasos causados pela sua tripulação de remadores bolivianos. Ao conversar


com outros patrões bolivianos que o acompanhavam no trajeto, Mathews foi informado
que seus remadores julgavam as provisões distribuídas pelo viajante insuficientes e, por
isso, estavam descontentes. O inglês mostrou-se em completo desacordo com as
reclamações dos seus trabalhadores, qualificando-as como “mentira deslavada” e fruto de
uma “equipe (...) composta por um bando de imprestáveis, com preguiça até para preparar
o desjejum, antes do início do trabalho”.560
Alfred Russel Wallace também lamentou o fato de alguns trabalhadores indígenas,
que estavam a seu serviço, voltarem de mãos vazias, após serem enviados para coletar
algumas espécies de pássaros por ele requeridas. Segundo relato do viajante, ele teria
constatado que a:
vinda dos índios fora motivada apenas pelo respeito que tinham pelas
ordens do sr Lima, pois eles não apreciavam muito aquele trabalho. Era
comum retornarem da floresta de mãos vazias, dizendo que não haviam
encontrado nenhuma ave, quando eu tinha boas razões para crer que seu
dia fora passado ociosamente. Acontecia também de voltarem da mata
com um passarinho sem valor, que podia ser encontrado perto de
qualquer cabana do povoado.561

Tais ações entendidas como símbolos da “preguiça” e “falta de aptidão ao


trabalho” eram, na verdade, também parte das micropolíticas do trabalho acionadas pelos
trabalhadores do vale amazônico para expor sua insatisfação perante os serviços a eles
impostos. Essas relações de trabalho - fossem elas construídas por meio de mecanismo
ilegais ou estabelecida pelas legislações – também passavam pelo crivo das noções e das
expectativas dos trabalhadores que estavam a elas interligadas. Havia um leque variado
de dispositivos que acionado individual ou coletivamente, direta ou indiretamente, foram
constitutivos dos parâmetros sociais que delimitaram as noções de “normalidade” ou
“aceitável” nas várias formas de exploração do trabalho livre ou não-livre. Como destaca
Ravi Ahuja, “a zona onde a “liberdade” foi perdida ou conquistada, não deve ser
entendida como um dado atemporal, mas como um produto da ação humana”, visto que
era “resultado de confrontos entre forças sociais concretas, e portanto, (...) um produto
essencialmente político”.562
A partir de final da década de 1860 e de 1870, com o aumento disparado das
vendas de borracha e crescimento da migração cearense, a relação social e de trabalho

560
MATHEWS, Edward Davis. Op cit. p. 122-123
561
WALLACE, Alfred Russel. Op cit, p. 137.
562
AHUJA, Ravi. Op Cit. p. 117.
211

forjada por meio das trocas comerciais foi reelaborada no sentido de suprir a demanda
por mão de obra, visando restringir os espaços de autonomia e mobilidade dos
trabalhadores. Para os proprietários das estradas de seringa – patrões ou seringalistas –
era urgente encontrar meios de fixar e/ou prender a mão de obra nas regiões de produção
de borracha, tornando sua força de trabalho disponível por mais tempo e aumentando o
nível de extração de riqueza. Além do endividamento, os patrões também desenvolveram
outros mecanismos para tentar controlar a mão de obra dos trabalhadores locais e
adventícios como a proibição da manutenção de roças, as tentativas de “fechamento” das
bocas dos rios e da domínio sobre as circulação dos produtos, especialmente os
manufaturados.
Mas o fato é que o endividamento foi um dos pilares principais que sustentaram a
produção e imobilização da mão de obra no contexto do crescimento da produção
gomífera. Quando Franz Keller-Leuzinger visitou um seringal no rio Madeira, em 1868,
presenciou o trabalho de seringueiro no rio Madeira, descrevendo o cenário da seguinte
maneira:
Ainda para piorar a situação, nem sempre esse baixo valor é pago em
dinheiro à vista, mas sim em mercadorias e provisões avaliadas três
vezes mais do que realmente valem. Não é à toa que o miserável que
coleta a seringa, ainda que trabalhe em uma verdadeira “mina de ouro”,
ao fim do ano sai devendo mais do que arrecadou. Preso nesta armadilha
engenhosa, o seringueiro nunca consegue se ver verdadeiramente livre.
Desalentadas, estas pobres criaturas – em sua maioria, mestiços e
mulados sem educação – vão se embrutecendo, tornando-se mais
frívolos do que por natureza já eram. Seduzidos pelos produtos expostos
à venda nos barracões de seus ‘protetores’, eles adquirem a mais
ridículas quinquilharias, como botas de montar, relógios de ouro,
casacos e sombrinhas de seda para suas companheiras mestiças, mesmo
que isso lhes signifique um ano ou mais de intenso labor.563

Apesar da permanência do costume de se pagar pelos produtos da floresta com


mercadorias manufaturadas, podemos perceber pela narração de Keller-Leuzinger que o
endividamento era um dos elementos norteadores da relação de trabalho estabelecida no
seringal. A dívida é descrita como uma “armadilha” que prenderia o seringueiro ao seu
patrão e ao seu local de trabalho, o que não permitiria ao trabalhador ser “verdadeiramente
livre”. O alemão descreve os trabalhadores como “seduzidos” pelos produtos disponíveis
à venda nos barracões, todavia a partir da intensificação da exploração da borracha os
proprietários dos seringais criaram medidas para limitar o controle dos produtos

563
KELLER-LEUZINGER, Franz. Op Cit. 2021.
212

manufaturados ofertados para os trabalhadores a seu serviço. Essa e outras medidas


constituíram parte da reformulação pela qual o sistema do aviamento passará nesse
contexto.
A partir disso, entendemos que no período das décadas de 1850 até meados de
1870, a maior parte dos trabalhadores (livres ou escravizados), que estavam ligados a
comerciantes ou a outros agentes por essas transações, não podiam necessariamente ser
classificados como inseridos numa relação de escravidão por dívida. As relações sociais
de trabalho e comércio estabelecidas nesse período ainda estavam marcadas pelas
perspectivas tradicionais indígenas de distribuição de crédito visando fortalecer laços,
assegurar proteção e estabelecer conexões sociais. O pagamento realizado adiantado não
se configura necessariamente enquanto uma dívida que “prendia” o trabalhador ao patrão,
mas sim como um sistema de crédito a partir do qual trabalhadores e seus interlocutores
construíram seus contratos informais de comércio e trabalho. Todavia, apesar das
violências e abusos cometidos, vimos que as relações construídas por meio dos contratos
informais entre os trabalhadores e seus interlocutores (comerciantes e outros agentes)
eram baseadas em outras lógicas que permitiam espaços de autonomia, controle sobre o
tempo do trabalho e da produção.564 Contudo, o avanço das frentes de expansão rumo aos
altos rios, o crescimento da demanda por borracha e a presença de grande quantidade de
migrantes nacionais acentuaram os elementos coercitivos que paulatinamente cercearam
os espaços de autonomia dos trabalhadores. É dessa remodelação que abordaremos mais
detalhadamente no próximo tópico.

4.2 – A dívida e o fortalecimento das estruturas de coerção

Em 1887, o periódico Amazonas publicou em uma de suas colunas uma notícia


que deixou a população de Manaus alvoroçada. Sob a epígrafe Homem Livre Vendido
como Escravo estava uma denúncia contra Thomaz de Aquino Junior de ter vendido para
o peruano Romero [Flores] “um indivíduo de condição livre de nome João Fontes, filho

564
As pesquisas sobre a história da escravidão analisando a agência dos escravizados perante o sistema
escravista tem demonstrado como esses sujeitos construíram muitos espaços de autonomia e negociação
com seus proprietários, ver: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Op. cit, 2009. SCHWARTZ, Stuart B.
Resistance and accommodation in eighteenth-century Brazil: the slaves’ view of slavery. Hispanic
American Historical Review, v. 57, n. 1, p. 69-81, 1977.
213

de Maria Thomaz, pela importância de quatrocentos mil reis”.565 A província do


Amazonas havia abolido a escravidão com a Lei Provincial de 10 de julho de 1884
declarando a província livre da escravidão. O processo que desencadeou a abolição
“adiantada” envolveu a atuação de grupos abolicionistas, formados por homens e
mulheres da elite e a participação da população negra (livre e escravizada). 566 Devido as
lutas desencadeadas por esse processo, a notícia publicada de um “homem livre vendido
como escravo” no jornal deixou a população local irrequieta e reclamando respostas das
autoridades públicas que, por sua vez, requereu a abertura de “inquérito policial” para
investigar o conteúdo da denúncia.
Para prosseguir com o inquérito, foram chamados para testemunhar o acusado
Thomaz de Aquino Júnior, Antonio Sabino da Silva e Maria Thomazia, mãe do homem
livre vendido. Além disso, o delegado responsável enviou ofício para as subdelegacias do
distrito do rio Javary para que também procedessem às investigações. O primeiro a ser
inquirido pelo delegado foi Thomaz de Aquino, “quarenta e cinco anos de idade, casado,
filho legítimo de Thomaz de Aquino, natural da província do Maranhão e
comerciante”.567 Ao ser questionado acerca do conteúdo da publicação, negou
veementemente as acusações afirmando serem “verdadeira infâmia e calúnia”, sendo o
ocorrido apenas uma transação comercial por meio da qual “passou-se (...) a conta da
importância de (...) quatrocentos mil réis que lhe devia João [Fontes] (...) de passagens e
mercadorias”, fornecidas ao dito [Fontes]. Segundo Aquino Junior, esse valor da “dívida”
de João havia fora repassado para o peruando José de A Romero e Flores, para quem
agora o trabalhador pagaria o valor devido.
Por meio do interrogatório de Antonio Sabino da Silva, responsável pela
publicação da denúncia no jornal Amazonas, podemos acessar outra versão do relato
anterior que classificou o ocorrido como uma “simples transação comercial”. De acordo
com Antonio Silva, tudo começou quando Maria Thomazia, mãe de João Fontes,
procurou Marcelo [indecifrável] Guimarães soliciando que em sua viagem para a “a boca
do Itacoaby”, no rio Javari, ele investigasse o paradeiro de seu filho com que teria perdido
contato. Chegando ao local Guimarães iniciou a busca por João e foi quando chegou ao
seu conhecimento que ele “havia [sido] passado da companhia de Thomas de Aquino para

565
Inquérito policial ex-ofício procedido contra Thomas de Aquino Junior, 1887. Caixa: CP(01).
Localização: CP. CP.IP.DNTI1887:19(01). AGTJAM
566
Sobre o processo de abolição na província do Amazonas e os sujeitos envolvido, ver: POZZA, Provino.
Op. Cit, 2011.
567
Idem.
214

de Romero e Flores, mediante a transação de quatrocentos mil reis, e ter João falecido”.
Guimarães relatou ainda que as pessoas do local afirmavam que, de fato, João havia sido
“vendido”, uma transação que teria deixado todos os trabalhadores da região
sobressaltados. Além disso, outras testemunhas afirmaram que João quando foi
transferido de Thomaz de Aquino para o peruano Romero y Flores não havia
compreendido o motivo da mudança visto que nada devia ao primeiro.
Maria Thomazia e João eram naturais do Maranhão de onde migraram buscando,
no vale amazônico, empregar-se principalmente na coleta de seringa que, em 1880, já
despontava como principal produto de exportação da pauta comercial amazonense. A
migração de maranhese para a província do Amazonas intesificou-se ainda na década de
1870, quando Antônio Rodrigues Pereira Labre fundou no rio Purus uma colônia trazendo
diversos maranheses, livres e escravizados, para povoar a região hoje conhecida como o
município de Labre.568 Ainda nesse período, como apresentamos no primeiro capítulo,
outras correntes migratórias como de paraenses e especialmente de cearenses se
intensificaram em direção aos altos rios destinados a laborar na coleta de borracha. Desta
maneira, mãe e filho faziam parte de uma corrente maior de migração de força de trabalho
voltada a atender a demanda de mão de obra na frente de produção gomífera
principalmente nos rios Madeira, Purus e mais tarde o Juruá.
Neste sentido, a descrição do inquerito deixa transparecer uma importante
reconfiguração ocorrida no sistema do aviamento. Assim como Maria Thomazia e João,
os trabalhados migrantes que chegavam na região eram inseridos em contratos informais
de trabalho baseado no sistema do aviamento. Isto é, trabalhavam na extração de produtos
da floresta em troca de mercadorias. Contudo, algumas remodelações foram incorporadas
nesse sistema visando sobretudo exercer um maior domínio da mobilidade e da autonomia
dos trabalhadores. A prática do endividamento contínuo dos trabalhadores reforçava as
estruturas preestalecidas de coerção de trabalhadores no vale amazônico, estreitando
ainda mais os caminhos da liberdade no mundo do trabalho. Como descrito anteriormente,
Thomaz de Aquino Junior alegou que o valor de $400 mil réis “repassados” ao
comericante peruano Flores eram referentes aos valores da passagem e mercadorias
aquiridos por João. Apesar de João negar a existência de tais débitos, ainda assim ele foi
obrigado a se mudar para trabalhar no barracão do comerciante Flores.

568
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op Cit. 2017.
215

Os vínculos do endividamente eram criados desde a saída dos migrantes de sua


terra natal até seu estabelecimento nas estradas de seringa. Assim, os valores da sua
passagem (translado), alimentação e das ferramentas necessárias para iniciar o trabalho
contavam como débito deles para com os patrões. Depois, essas dívidas continuavam a
crescer, visto que determinados patrões estipulavam que os trabalhadores adquirissem
produtos apenas nos barracões de sua propriedade ou de seus aviados – posto mercantil
central gerida pelo seringalista569. Os patrões tomavam para si os migrantes,
prendendo-os por meio da dívida que, no final das contas, eles deveriam pagar com seu
trabalho nas estradas de seringa e outras atividades. Esses proprietários foram acusados
pelos críticos contemporâneos de, além de fixar preços altíssimos nos produtos, enquanto
pagavam baixos valores para comprar a borracha dos seringueiros, também aldulteravam
as contas dos trabalhadores para mantê-los sempre a seu serviço. Essa lógica de restrição
da mobilidade e autonomia da mão de obra estava conectada ao quadro das instituições
coercitivas que, por meios leis ou atos ilegais, impunham trabalho à população livre,
pobre e não branca no Império. Apesar de não alterar nem mudar drasticamente essas
estruturas, a prática do endividamente contínuo corroborou para reiterá-las.570 O elemento
chave de transformação do sistema tradicional de trocas foi a transferência de mão de
obra de fora da região, que acabara enredada no sistema de endividamento da passagem
e objetos de uso cotidiano. Todavia, importante destacar que a mão de obra dos migrantes
e da população local não chegou a imprimir qualquer nível de concorrência entre si, de
fato esses indivíduos compartilham muitos dos espaços de trabalho no vale amazônico e
foram incorporados na lógica da produção como força de trabalho de forma
complementar.
Desde meados da década de 1860, em conexão com o crecismento da exploração
da borracha o processo de remodelagem do sistema de aviamento pareceu se intensificar

569
O seringalista ou patrão que coordenava o barracão poderia ser o proprietário das estradas de “seringa
que “arrendava” as estradas ao seringueiro mediante uma porcentagem da borracha extraída ou o
comerciante local (conhecido geralmente como “aviador”) que controlava informalmente a produção e o
comércio da borracha na área, negociando a produção dos seringueiros e mantendo-os abastecidos de
ferramentas, viveres” e outros produtos. WEINSTEIN, Barbará. Op Cit. 1993, p. 31-33
570
O elemento da dívida enquanto instrumento de controle dos trabalhadores fora largamente utilizado em
diversas partes do Império do Brasil no século XIX. Joseli Mendonça, por exemplo, destaca como a Lei de
Locação de Serviços de 1837 voltada a regular o contrato de trabalhadores imigrantes ao determinar que os
trabalhadores contratados a partir dessa lei permanecessem a serviços de patrão até findar o contrato ou até
que suas dívidas fossem quitadas sob a pena de prisão caso fugissem, visava “garantir que os trabalhadores
pagariam com seu trabalho as dívidas que haviam contraído com o patrão, mas também assegurar a este
alguma estabilidade da sua força de trabalho”. Somado a isto, a autora acentua como “a lei (...) limitava a
possibilidade de os trabalhadores escolherem livremente a quem servir” dificultando a mobilidade do
trabalhador contratado. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op. cit, 2012.
216

atingindo também a vida das populações locais (indígenas, negros e mestiços). Ao invés
da lógica do crédito e de uma maior mobilidade aos trabalhadores, passou a se introduzir
o endividamente contínuo e as tentativas de cercear seus espaços de autonomia . Louis
Agassiz e Elizabeth Agassiz em viagem a província do Amazonas entre 1868 e 1869
descreveram o seguinte:
É em vão que a lei sempre tem proibido reduzir à escravidão; burlam-
na na prática e instituem uma servidão que põe essa pobre gente numa
dependência tão absoluta do senhor como se houvesse sido comprada
ou vendida. O branco toma o índio ao seu serviço, mediante um certo
salário, e promete-lhe ao mesmo tempo prover a sua alimentação e
vestimentas até que ganhe o bastante para suprir a si mesmo. No fim
das contas o resultado é todo em proveito de quem contrata. Quando o
índio vem receber seu salário, respondem que já deve ao senhor a soma
dos adiantamentos feitos por estes. Em vez de poder exigir dinheiro,
deve trabalho.571 (grifo nosso)

Como descrito pelos Agassiz, a dívida passou a funcionar enquanto importante


ferramenta para exercer domínio também sobre a mão de obra indígena que, se antes
conseguia receber o pagamento antecipado, a partir do contexto de intensificação da
demanda por produtos nativos, “em vez de poder exigir dinheiro, deve trabalho”. Os
espaços de autonomia dos trabalhadores locais ficaram cada vez mais ameaçados pela
lógica de acentuação do processo de expansão da presença do Estado e de particulares no
vale amazônico na segunda metade do XIX. Transformar toda a população livre e não-
livre em mão de obra disponível para geração de lucros para o mercado tornava-se ainda
mais urgente para as políticas governamentais fazendo aumentar a pressão para a extração
da força de trabalho de indígenas, negros e livres pobres que habitavam a região por meio
de práticas coercitivas.
Nesse sentido, o reverendo Robert Stewart Clough quando visitou Tefé em 1872
deixou em seu relato de viagem um testemunho acerca da participação indígena no
sistema do aviamento e na lógica de produção da dívida. 572 Clough descreveu o comércio
local realizado principalmente de “salsa, peixe, redes, borracha e tabaco – todos coletados
à distância”. De acordo com o religioso, “qualquer quantidade de excelente fumo pode
ser cultivada nas proximidades de Tefé, mas os nativos não se engajarão na agricultura
regular até que o comércio fictício da borracha tenha explodido”.573 O reverendo ressaltou

571
AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil (1865-1866). Belo Horizonte: Editora
Itatiaia, 1975.
572
CLOUGH, Robert Stewart. The Amazons: diary of a twelve month’s journey. London: SAMS, 1873.
573
Trecho original: “The principal trade of the place is in salsa, fish, hammocks, rubber an tobacco - all
collected at a distance. Any quantity of excelent tobacco might be grown in the neighbourhood of Tefé, but
217

como o uso da cachaça era incentivado pelos comerciantes aos indígenas como forma de
aumentarem suas dívidas e manterem-nos ao seu serviço.574 Essa mesma relação entre a
bebida alcoólica e o sistema do débito foi apontado pelo engenheiro britânico Edward
Mathews quando esteve em expedição pelo rio Amazonas e Madeira em 1875, com
intuito de mapear a região para construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.575
Mathews ao descrever a situação da mão de obra disponível na região brasileira e
boliviana, destacou que ser verdade:
que a antiga forma de escravidão foi abolida na Bolívia quando a
República conquistou sua independência; e no Brasil, nos próximos
anos, todo filho de um escravo nascerá livre, de modo que, no devido
curso dos eventos, a escravidão será totalmente abolida no Império; mas
nos rios Amazonas, Madeira e Purus existe uma forma muito pior de
escravidão, pois tantos os patrões brasileiros quantos os bolivianos
mantêm em seus índios em seu poder por meio de dívidas e bebidas.576
(grifo nosso)

Mathews explica que a ligação entre as dívidas e as bebidas ocorriam pelo fato de
os patrões também serem os proprietários dos pontos comerciais, induzindo os
trabalhadores a consumirem grandes quantidade de álcool para então facilitar a venda de
seus produtos por altos preços, enquanto compravam a borracha dos seringueiros por
baixos valores:
O patrão também é o lojista e, por isso, trata seu peão liberalmente com
cachaça (chamada de “cachaça” no rio), e, sob a influência dessa
bebida, o pobre peão é induzido a comprar bugigangas, chitas, fitas e
outros artigos que ele poderia fazer muito bem sem. Estes são cobrados
dele a preços enormes, enquanto sua borracha é creditada a ele por
valores baixos inversamente correspondentes, e assim ele é mantido sob
uma pesada dívida, e não pode, sob as leis brasileiras, deixar seu patrão
até que seja liquidada a dívida, esse feliz acontecimento o patrão cuida
para que não aconteça. 577

the natives wil not take to regular agricultural pursuits until the fictitious commerce of rubber has
exploded”. Idem, p. 135.
574
Trecho no original: “On the Amazons pure whites are proverbially temperate, but they encourage
drinking among the Indians so as to keep them in debt and thus secure their labour”. CLOUGH, Robert
Stewart. Op Cit. 1973, p. 135
575
MATHEWS, Edward D. Up the Amazon and Madeira Rivers, through Bolivia and Peru. London: S.
Low, Marston, Searle, Rivington, 1879.
576
Trecho no original: “It is true that the old form of slavery was abolished in Bolivia when the Republic
gained its independence; and in Brazil, in later years, every child of a slave is born free, so that in the due
course of events slavery will be altogether abolished in the empire; but in the Amazon, Madeira, and Purus
rivers a far worse form of slavery exists, for both Brazilian and Bolivian patrons keep their Indians in their
power by means of debt and drink”. Idem, p. 156.
577
Trecho do original: “The patron is also a shopkeeper, and therefore treats his peon liberally to white rum
(called “cachaça” on the river), and, when under the influence of this liquor, the poor peon is induced to
buy trinkets, calicoes, ribbons, and other articles that he could do very well without. These are charged to
him at enormous prices, whilst his rubber is credited to him at inversely corresponding low ones, and thus
218

Assim como Mathews, o reverendo Clough também compreendeu o quanto a


dívida estruturava a lógica das relações de trabalho e de produção no vale amazônico.
Quando ainda estava na província do Pará, em direção ao Amazonas, visitando Prainha,
“composta basicamente de negros e mulatos” 578, Clough conversou com um comerciante
português local que lhe declarou: “nem os mulatos nem os negros trabalharão a menos
que sejam pré-pagos, e a única maneira de obter seus serviços é permitindo que eles se
endividem e obrigando-os a trabalhar fora da conta”.579 A compulsão ao trabalho quando
não acionada pelas formas legais via legislação ou pelas estruturas da
ilegalidade/escravização ilegal eram reforçadas pelo sistema do aviamento por meio do
endividamento contínuo dos trabalhadores.
Nesse sentido, as anotações de Clough nos permitem analisar como a dívida
funcionava como um mecanismo central de cooptação de trabalhadores para além das
fronteiras brasileiras. Navegando pelo Marañon (nome do rio Amazonas em terras
peruanas), o viajante avistou algumas plantações e decidiu aproximar-se de uma delas;
“eram um campo de cana e milho de vinte acres”. No local, o viajante avistou:
(...) oito trabalhadores de Cucama e Omagua (...) Seu mestre não era
para brincadeira (...) disse ele [o mestre], "espero não pegar nenhum
deles tentando escapar em uma canoa roubada, pois manejo muito
armas de fogo desajeitadamente. Estou determinado a fazê-los pagar
suas dívidas antes de partir!". Não é incomum que um índio receba
uma dívida de 20l; essa soma praticamente o escraviza para o resto da
vida. Incapaz de manter ele próprio as contas, o seu é que o faz e, via
de regra, o indígena é sempre credor. Se o homem for um trabalhador
constante, um fazendeiro, comerciante ou comerciante talvez pague sua
dívida, perdoe-lhe um terceiro e o ponha para trabalhar; em alguns anos
será vendido novamente como antes, e assim por diante por toda a sua
vida.580 p. 221

he is kept under a heavy load of debt, and cannot, under the Brazilian laws, leave his patron until it is
worked off, which happy event the patron takes care shall not happen”. Idem.
578
Trecho no original: “composed chiefly of negroes and mulattoes”. CLOUGH, Robert Stewart. Op Cit.
1973, p. 44.
579
Trecho no original: “Neither mulattoes or negroes will work unless prepaid, and the only way of
procuring their serves is by allowing them to run into debt, and them compelling them to work off the
account”. CLOUGH, Robert Stewart. Op Cit. 1973, p. 44
580
Trecho no original: I saw eight Cucama and Omagua laboures (...) Their master was not to be trifled
with, "and" sair he, "I hope I shall not catch any of them trying to escape in a stolen canoe, for I hanfle
firearms very awkwardly. I am determined they sall pay their debts before leaving!" It is not uncommon
for an Indian to be allowed to get into debt to the amount of 20l; this sum pratically enslaves him for life.
Unable to keep accounts himself, his owner does so for him, and, as a rule, always is the creditor. Should
the man be a steady workman, a farmer, merchant or trader will perhaps pay his debt, pardon him a third,
and set him to work; in a couple of years will be sold again as before, and so on all his life”. CLOUGH,
Robert Stewart. Op Cit. 1973, p. 221.
219

De fato, a dívida utilizada como um mecanismo para aprisionar mão de obra foi
um método “que ocorreu em todos os continentes, das minas de carvão da Escócia do
século XVIII ao setor agrícola contemporâneo da América Latina e sul da Ásia”. 581 Na
Amazônia e em diversas outras partes do Império, apesar dos contratos entre os
trabalhadores e seus patrões estarem conformados por tratos estabelecidos
informalmente, caso algum deles tentasse fugir ou procurasse encerrar seus acordos, os
patrões buscavam coagi-los ou por meio da violência ou recorriam ainda às instituições
oficias. Como vimos no capítulo anterior, muitos patrões, que muitas vezes também
exerciam cargos policiais, utilizaram-se das prerrogativas previstas nessas funções –
como a do recrutamento arbitrário ou a de prisões ilegais - para ameaçar os trabalhadores
a permanecer em seu serviço. Quando não conseguiam seu intento, enviavam os
trabalhadores presos para Manaus, sob alegações de roubo ou outras acusações buscando
assim retirar esses sujeitos dos seus espaços de sociabilidade e penalizá-los por sua recusa
ao trabalho. Essas experiências dos trabalhadores do vale amazônico eram
compartilhadas com trabalhadores livres, principalmente de origem negra, que habitavam
no sudeste brasileiro.582
Assim, na província do Amazonas, com o recrudescimento do avanço de
fronteiras, não mais o crédito, mas sim a dívida e o endividamento contínuo passaram a
reforçar as estruturas de compulsão de trabalhadores e direcionar as relações de produção
e de trabalho. Em 1875, uma publicação anônima no periódico Commercio do Amazonas
reclamava maiores esforços das autoridades públicas para elevar a produção agrícola na
província e da rede generalizada de dívidas que ligavam os seringalistas e as casas
comerciais em Belém e Manaus.583 O autor alegava que “a seringa por si só, sem o
concurso da agricultura, não pode concorrer para o progresso moral e material da
província”, visto que “quanto maior número de anos trabalha o seringueiro, tanto mais
empenhado fica para com a praça do Pará, ou para com o comerciante que o avia que, por
sua vez, também nunca consegue escriturar um saldo a seu favor” 584 e, por isso, não

581
LINDEN, Marcel Van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global do trabalho.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2013, p. 32.
582
Pesquisando os trabalhadores livres de origem africana e afro-brasileiros em Campinas no cenário de
declínio do sistema escravista, Denise Moura analisou como na “impossibilidade dos trabalhadores serem
punidos judicialmente pelo não-cumprimento regular do contrato de trabalho, uma vez que estes nem sequer
existiam – tendo suas combinações se dado em termos ocasionais e pelo ajuste verbal”, as elites locais
utilizaram-se dos recrutamento arbitrário ou de processos judiciais visando penalizar os que por ventura
lhes desobedeciam ou fugiam de suas propriedades antes de finda a colheita. MOURA, Denise A. Soares
de. Op Cit. 1998.
583
Commercio do Amazonas, 15 de julho de 1875, nº 144, p. 02.
584
Idem.
220

geraria riquezas para a província. A crítica do autor da publicação também estava


conectava ao latente debate existente na região entre os que defendiam o fortalecimento
da agricultura contra a prática do extrativismo, este último visto como símbolo do atraso
da economia e da civilização da província do Amazonas. 585
Em 1876, outra publicação agora no periódico Jornal do Amazonas intitulada Rio
Madeira assinada por F comunicava aos leitores a situação daquela região. 586 Entre as
informações apresentadas, o autor descreveu a situação vivida pelos trabalhadores que
estariam “escravizados e sem recursos para poder um dia libertar-se”. A explicação para
essa situação, segundo a publicação, estava assentada no fato de o seringueiro:
viver em um círculo tão acanhado que não tem querer nem força
bastante para poder sacudir o jugo opressivo que, como bem classificou
o ilustrado dr. Ribeiro Junior – verdadeiros zangões infestam estas
paragens em épocas de colheita.
São estes os únicos que tiram grandes lucros do fabrico da borracha,
trazendo tão embaraçados os pobres seringueiros que, como já disse
vivem e trabalham só para pagar uma dívida infinda.587

O autor acentuava como a dívida estava tornando a vida dos trabalhadores do rio
Madeira cada vez mais atrelada ao seu pagamento, colocando a responsabilidade nos
regatões como os principais agentes da geração desses débitos. Nesse cenário, o uso da
violência física por parte dos patrões igualmente funcionou como instrumento de controle
sobre a mobilidade dos trabalhadores locais e adventícios. 588 Em 1878, por exemplo, o
chefe de polícia da província enviou o relato de sua visita ao rio Madeira ao presidente
Ajesiláo Pereira da Silva em que descreveu principalmente as condições precárias vividas
pelos indígenas bolivianos empregados na produção de borracha. Segundo ele, naquela
região:
(...) a condição do pobre é a mais precária possível; porque sempre a
mercê do interesse e dos caprichos dos poderosos, seu direito não
encontra garantia, seu trabalho não tem futuro. Se lhe ordenam,

585
Sobre esses debates, ver: NUNES, Francivaldo Alves. Op. cit, 2011.
586
Jornal do Amazonas, 3 de fevereiro de 1876, nº 74, p. 02.
587
Idem.
588
Para uma análise acerca da complexidade em torno da questão da violência e das relações entre violência,
disciplina do trabalho, dominação e exploração no sistema escravista no Brasil entre os séculos XVIII e
início do XIX, ver: LARA, Silvia. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. Maria Helena P. T. Machado pontua como “a
violência subjacente ao sistema escravista, no entanto, não se restringe à consideração do monopólio da
força detido pela camada social. Embora fundamental, este não poderia sobreviver apenas através do
continuado exercício de força como única arma de coesão. Antes, e preciso considerar a questão à luz de
uma economia de utilização da força capaz de proteger o estrato dominante escravocrata dos constantes
confrontos abertos com os escravizados”. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão:
trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Edusp, 2014.
221

obedece; se resiste é barbaramente castigado, ou imediatamente


expulso do humilde teto em que se abriga.589

Para a autoridade pública, os mais atingidos pelos abusos cometidos pelos patrões
eram os trabalhadores indígenas bolivianos que habitavam os distritos do Crato, Abelha
e Santo Antônio, todos localizados na região do rio Madeira. Segundo o policial, viviam
naquela região:
(...) perto de 4000 (...) destes estrangeiros que tem migrado da terra
natal para aquela parte da província, com o intuito de explorarem os
ricos produtos naturais que encerra divididos em duas classes distintas
a dos patrões e a dos peões ou agregados, não difere a sorte destes
últimos da de escravos, e de escravas de senhores cruéis e desumanos. 590

O policial descreveu como os indígenas bolivianos recebendo baixos salários,


“mal alimentados e ainda pior vestidos” eram obrigados a um serviço “pesadíssimo, que
lhes é distribuído por tarefa, e do qual tem de dar conta, quer possam quer não, sob pena
de serem castigados com açoites”. Completava ainda explicando que esses castigos eram
muito comuns principalmente quando os trabalhadores se negavam a realizar alguma
atividade ou fugiam do trabalho. A evasão causava então uma “caça de barra em barraca”
até que o capturassem e o obrigavam a voltar ao poder de seu patrão para que pudesse
continuar no serviço até que quitasse sua dívida. A autoridade delegava toda
responsabilidade pelas ações brutais aos proprietários bolivianos negando que os patrões
brasileiros compartilhassem desse tipo de prática e requerendo do governo ações para
penalizar os culpados.591 Os relatos das violências eram de fato reais e não se restringiam
apenas aos indígenas bolivianos como já vimos nos capítulos anteriores. Todavia, por
detrás das palavras de revolta e compaixão do chefe de polícia contra a exploração dos
indígenas bolivianos estava subjacente uma disputa pelas estradas de seringa e pelo
domínio sobre a mão de obra dos trabalhadores.592

589
Jornal do Amazonas, 14 de fevereiro de 1878, nº 226, p. 03
590
Idem.
591
Idem.
592
Recentes trabalhos demonstram como, apesar do controle exercidos pelos patrões, os seringueiros e
seringueiras construíram mecanismos de burlar as amarras do sistema de aviamento. Davi Avelino Leal,
por exemplo, analisa as estratégias elaboradas pelos seringueiros para driblar o controle dos seringalistas
no rio Madeira, entre 1861 e 1932, principalmente no tópico Entre f(r)estas: politização do cotidiano e
resistência, ver: LEAL, Davi Avelino. Op Cit. 2013. Para um período posterior da economia da borracha,
mais precisamente entre as décadas de 1940 e 1950, a historiadora Agda Lima Brito analisou como a
presença das mulheres foram centrais para elaboração de estratégias para construir espaços de autonomia
nos seringais, ver: BRITO, Agda Lima. Mulheres no seringal: experiências, trabalho e muitas histórias
(1940-1950). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Pós-Graduação em História Social, Niterói, 2017.
222

A crescente demanda por força de trabalho acentuou ainda mais as disputas em


torno da mão de obra disponível na região. Muitos são os exemplos que aparecem nas
fontes, mas nos deteremos no exame de apenas um deles que é bastante elucidativo dessa
questão. Em 1871, a dívida e o controle sobre a mão de obra de alguns trabalhadores
foram os motivos que levaram Geraldo da Cruz Nonato a processar Antonio Joaquim
Pereira do Socorro Valente593, este último já bem conhecido nesta tese. Socorro Valente
havia ganhado um processo anterior por crime de estelionato onde acusava Geraldo de
haver “seduzido sua gente que trabalhava no piaçabal (...) e [de ter] se apossado de mais
de mil arrobas de piaçaba que lhe pertenciam, não pagando o recorrente a essa gente que
foi por ele seduzida”. Não conseguimos acesso integralmente a esse processo, mas no
empenha produzido por Geraldo Nonato está transcrito algumas partes do documento,
nos possibilitando adentrar mais detalhadamente as redes do sistema do aviamento e do
endividamento.
No rio Negro, mais precisamente na vila de Barcelos, Antonio Joaquim Pereira do
Socorro Valente mantinha alguns de seus negócios em que alegava ter aviado cerca de
vinte trabalhadores, “para lhes irem tirar piaçaba, dando-lhes do seu negócio gêneros e
mais efeitos”. Nas palavras de Socorro Valente:
Em princípios do ano passado digo do ano próximo findo comerciando
o queixoso no distrito da Vila de Barcelos enviou para o rio Branco digo
para o rio Preto, no mesmo distrito a gente que tinha ajustado para o seu
serviço em número de vinte pessoas afim de se empregarem no corte da
piaçaba provendo essa sua gente do necessário para esse serviço para
levar essa despesa assim como o debito particular de cada uma dessas
pessoas a [conta] do produto de seu trabalho como é costume do
comercio nesta província que [descança] na fé desses ajustes.594

Todavia, continuou Socorro Valente, chegando Geraldo Nonato naquela região e


estando a safra de piaçaba bastante avançada:
(...) intimidando a uns com a sua importância e valimento para com as
influências desta capital iludindo a outros com promessa de pagar a sua
conta e o valor das despesas ao queixoso seduzindo a outros para
fugirem entregando-lhes a piaçaba sob o pretexto de que estava o
queixoso sem mercadorias e sem dinheiro para lhes fornecer, conseguiu
apossar se de mais de mil arrobas de piaçaba no valor aproximadamente
de sete contos de reis que pertenciam ao queixoso a quem não cuidou
de satisfazer o seu valor [mor] aos iludidos por sua má fé parte dos quais
fez fugir do serviço do queixoso (...).595

593
Autos crimes de recurso. 1871. Caixa: JD(04). Localização: JD.JD.PJ.ACET1871:05(04). AGTJAM.
594
Idem p. 7.
595
Idem p. 7 verso.
223

Sob essa afirmação, Antonio Joaquim do Socorro Valente acusava Geraldo da


Cruz Nonato de haver seduzido os seus trabalhadores para seu serviço e devido a isto este
teria ficado prejudicado por não entregar a piaçaba, que serviria para ser descontada como
pagamento da dívida que aqueles trabalhadores tinham com ele. Apesar de permanecerem
alguns elementos tradicionais do sistema de trocas comerciais como o pagamento
adiantado, o que fica mais evidente nas fontes a partir da década de 1860 é a emergência
das novas estruturas do sistema de aviamento, especialmente a tentativa de controlar a
produção e as negociações dos trabalhadores por meio da dívida estabelecida pelo
pagamento prévio. A Justiça inclusive reconheceu a prática costumeira de negociação
estabelecida na região e determinou que Geraldo da Cruz Nonato fosse condenado a pagar
os valores requeridos. Nonato, por sua vez, negava completamente as acusações de
Socorro Valente afirmando ter realizado seus negócios com os trabalhadores sem
conhecimento da existência de qualquer contrato pré-existente entre os indivíduos e outro
comerciante. Ele ainda questionou que:
Porventura a livre prática de negócio lícito com pessoas hábeis, se deve
considerar fraude? Aonde esse prejuízo trazido ao recorrido com as
negociações do recorrente, se aquele não tinha negócio algum como já
está provado e essa gente que ele denuncia – sua – não lhe estava sujeita
por modo algum legal, como ele pretende, pois que não provou? De
tudo quanto desse o recorrido, e afirmaram suas oficiosas testemunhas
só se colige, que esses homens estavam [notados ou votados] a uma
escravidão simulada, para proveito de seu disfarçado senhor, mas que
até então o recorrente não supunha tal 596.

Geraldo da Cruz Nonato por diversos momentos acionou a condição jurídica livre
dos trabalhadores como justificativa para as transações realizadas com ele:
Percorrendo aquele município tratando de seu pequeno negócio, fiz
diversas transações comerciais com vários indivíduos todos livres e
desimpedidos nos atos de sua vida civil, sem que algum se achasse [...]
ao autor ao menos por contrato de locação de serviços. Senhores de suas
ações e do que lhes pertence, eles se acham no livre gozo de sua
liberdade para disporem do que é seu, sem por isso serem obrigados a
uma tutela forçada em simulada escravidão. = Se pelas transações
comerciais do réu com esses indivíduos, a quem o autor chama – seus
– resultasse prejuízo a algum não seria por certo ao autor que se inculca
de prejudicado, porque todos esses indivíduos estavam de posse de
fazendas e gêneros, que ele lhes vendera para haver dos [mesmos] o
produto da extração de drogas das matas daquele município; visto como
nunca o autor negociou ali ou em outra qualquer parte desta província
= Recorrendo o réu a repartição competente para saber se o autor de
fato negociava obtive a certidão negativa que é o documento número
dois = se pois não é ele o dono dessas supostas mercadorias dadas ou

596
Idem, p. 5-6.
224

vendidas aos indivíduos que denomina = seus = como é que atira em


juízo uma queixa por fatos que só dizem respeito a terceiro? 597

Usando o fato da inexistência de um contrato formal entre os trabalhadores e


Antonio Pereira do Socorro Valente e da condição jurídica de liberdade dos envolvidos,
Geraldo da Cruz Nonato tentou justificar como aceitável sua negociação praticada no rio
Negro. Ele buscou ainda qualificar a relação descrita por Socorro Valente com os ditos
trabalhadores como uma tutela forçada em simulada escravidão, sempre pontuando que
seu acusador se referia aos trabalhadores enquanto seus ao invés de reconhecer a condição
jurídica deles, o que lhes garantiria a liberdade de negociar como bem entendessem.
Assim, Cruz Nonato tentava utilizar a liberdade dos trabalhadores para pôr em causa os
tratos informais costumeiramente estabelecidos entre ele e comerciantes dos rios e outros
empregadores.
Um dos trabalhadores chamados para testemunhar chamava-se Manoel Ignacio
Xavier, atuando no processo movido por Socorro Valente contra Geraldo Nonato. O
trabalhador declarou ter “vinte e dois anos de idade, solteiro, trabalhador, natural do Pará,
morados nesta cidade” de Barcelos.598 Manoel testemunhou que estava no rio Negro e
que ao ser perguntado se era “agregado do autor ou que relações tem com o mesmo autor”
afirmou que “não é agregado e sim freguês ou aviado de sua casa comercial”. A forma
pela qual Manoel Xavier se auto identificava como freguês ou aviado de casa comercial
destacava os termos utilizados para designar as relações de trabalho e comerciais
construídas a partir do sistema do aviamento naquele período. Essas denominações
tornar-se-ão centrais na lógica de trabalho e produção das áreas de coleta da goma
elástica. Assim como Manoel Xavier, os demais trabalhadores pareciam ter origem e
condições variadas contando ainda com alguns indígenas e escravizados que habitavam
a região. Ao mesmo tempo, o relato do processo nos possibilita vislumbrar como apesar
das tentativas de limitar a mobilidade dos trabalhadores, eles continuaram impondo seus
limites, seja por meio da troca de patrão seja por outros mecanismos.
A disputa pela mão de obra e pelo acesso aos produtos nativos ensejaram ainda
muitos conflitos entre patrões e regatões. Em 1881, um artigo intitulado Ocorrência de
Manicoré publicado pelo capitão Felizardo Joaquim da Silva Moraes no jornal Amazonas
reclamava as ações “juiz Municipal Franco” contra o regatão Bento de Souza. Este último

597
Idem, p. 31-32.
598
Idem, p. 24verso.
225

“estando regateando, comprou no rio Manicoré, muito legalmente de Antonio da Mota,


de 10 a 15 kilos de borracha, que pagou o preço porque ali ela se cotava”. A contenda
surgiu, pois o dito Antonio da Mota era fregûes do juiz e pelo sistema do aviamento em
voga não poderia ter negoaciado com outra pessoa a seringa coletada visto que esta
deveria ser utilizada para pagar sua dívida com o juiz. Ao saber do ocorrido o patrão/juiz
Franco seguiu “com alguns seus agregados armados, e havendo encontrado a canoa do sr
Bento abordou-a pretendendo a viva forçar invadir essa propriedade, e tirar a borracha
que pretendia chamar sua”.599
Nessa direção, outra mudança a ser destacada é o poder adquirido pelos
seringalistas ou patrões, os proprietários dos seringais que, além de controlarem as
ocupações dos cargos públicos e a política, também passaram a deter a domínio sobre a
comercialização dos produtos industrializados para os trabalhadores, deixando os
regatões inicialmente em certa desvantagem. Sobre isso, Antônio Alexandre Cardoso
descreve como:
os seringalistas, em detrimento dos regatões, passaram a “aviar”, ou
seja, a disputar a venda de quinquilharias para trabalhadores migrantes
e indígenas em troca da produção do látex. Para tanto, os seringais
erigiram seus próprios armazéns, que forneciam rudimentos de
trabalho, vestuário e alimentos aos seringueiros, praticando preços
supervalorizados. Tal relação econômica era a base das cadeias de
endividamento do sistema de aviamento, que serviam de fio condutor
das relações de trabalho num contexto de monetarização ainda
rarefeita.600

O domínio exercido pelos seringalistas da rede de aviamento de produtos foi


central para reforçar as estruturas de coerção pelo emprego do endividamento, que
almejava mobilizar e manter controle sobre a força de trabalho local e dos migrantes
nacionais. No contexto dos seringais, para mobilizar essa mão de obra foi central a
elaboração de medidas voltadas a estabelecer um vínculo mais duradouro entre
trabalhadores e os patrões que corroborasse para aumentar os níveis de extração do
excedente da força de trabalho de indígenas, negros, mestiços e migrantes. Como assevera
Davi Avelino Leal, nos seringais “o controle da mão de obra (...) não se dá pelo acesso à
terra, mas sim pelo controle do crédito”, visto que “é em cima da produção e circulação
que se estabelece o controle, e não da área produzida”.601 Nessa conjuntura, ter o domínio
sobre a produção e a força de trabalho da mão de obra passava pelo exercício do controle

599
Amazonas, 15 de novembro de 1881, nº 659, p. 02
600
CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Op cit, 2017, p. 109.
601
LEAL, Davi Avelino. Op cit. 2013, p. 67.
226

das redes de endividamento capazes de possibilitar um maior poder sobre os


trabalhadores.
Nessa direção, os comerciantes dos rios também passaram a encenar um papel
diferenciado no sistema do aviamento. Nesse cenário, em que as negociações entre
regatões e os trabalhadores, especialmente os seringueiros, passam a ser ainda mais
condenadas e taxados como “indesejáveis contrabandistas”, David Macgrath aponta
como:
Aproveitando a resistência dos seringueiros às medidas cada vez mais
coercitivas empregadas pelos seringalistas, os regatões penetraram nos
seringais, comprando as “sobras da safra” direto dos seringueiros.
Dessa forma, os seringueiros e regatões montaram uma resistência
formidável à monopolização da atividade econômica pela elite local e
regional. Ganhando o ódio dos comerciantes e proprietários locais, os
regatões frequentemente foram chamados de “piratas fluviais” na
imprensa internacional da época e castigados por causa dos problemas
que causava aos seringalistas e comerciantes do interior. 602

Assim, evidencia-se como as reformulações no sistema do aviamento atingiram


sobremaneira a experiência da liberdade dos trabalhadores indígenas, mestiços e negros
tornando as fronteiras entre o trabalho livre e o trabalho escravo ainda mais permeáveis.
Dessa forma, o elemento do endividamento contínuo assentado nas demais estruturas de
coerção pré-existentes adensaram as políticas legais e ilegais no mundo do trabalho da
província do Amazonas no século XIX. Essas relações forjadas na base do aviamento,
mesmo no período do chamado boom gomífera, nunca foram institucionalizadas pelo
Estado por meio de legislações ou por contratos formais de trabalho.
Contudo, esses indivíduos construíram formas de impor suas demandas e de barrar
as forças estatais e privadas que visavam submetê-los à escravidão ilegal ou ao trabalho
compulsório. A arena social e política na qual se disputavam os conceitos em torno dos
marcadores sociais que definiam a escravidão e a liberdade no vale amazônico foi
marcada pela atuação de diferentes agentes sociais ou autoridades públicas ou os
trabalhadores. Algumas dessas micropolíticas forjaram ações mais diretas e incisivas
contra o avanço das frentes de expansão e do acirramento do controle sobre os produtos
naturais e da mão de obra da população local. Na segunda metade do século XIX na
província do Amazonas, as fontes oficiais e os periódicos testemunharam o aumento do
número das chamadas correrias de índios. Importante ressaltar que essas ações não foram

602
MACGRATH, David. Parceiros no crime: o regatão e a resistência cabocla na Amazônia tradicional.
Belém: Cadernos NAEA, v.2, n.2, 1999, p. 64.
227

compartilhadas por todos os grupos indígenas uma vez que a Amazônia agrupa diferentes
etnias que elaboraram múltiplas formas de dialogar com o processo de expansão de
fronteiras. Contudo, examinar as correrias como parte das micropolíticas do trabalho
corrobora para adensar e complexificar nossa análise acerca da experiência da liberdade
desses sujeitos.
Nesse sentindo, em 1870, por exemplo, o presidente da província João Wilkens
de Mattos elaborou um levantamento intitulado excussão de índios mapeando as ações
indígenas qualificadas pela autoridade como “selvagens”. A autoridade anunciava não ser
“pequeno o número de vítimas, que os índios têm feito nesta província (...) desde 1851
até o presente”.603 Analisando as ocorrências descritas por Mattos podemos entrever
como, entre a década de 1850 e meados de 1860, as ações estavam mais espalhadas pelas
várias frentes de expansão e atingiam o alto rio Negro, rio Javari, rio Madeira e rio
Branco. Além disso, a maior parte dos ataques pareciam estar direcionados a uma pessoa
ou um grupo seleto indicado que possivelmente já eram conhecidos. Em 1852, os
“Mangeronas assassinaram, no rio Javari, o subdelegado de polícia de São Paulo de
Olivença, Lauriano Antonio Gama, e um companheiro deste”. Em 1858, no Crato, rio
Madeira, “os Parintintins assassinaram a Antonio Primo de Goés, e Manoel Jospe, e
feriram gravemente a Bartholomeu Francisco de Goés (menor).604 O próprio presidente,
apesar de sempre se remeter às populações indígenas envolvidas nos conflitos como
“bárbaros” e “selvagens”, reconhecia que “os atos barbarescos dos índios têm quase
sempre uma causa filha da imprudência daqueles que se tem em conta de civilizados e
cristãos”.605
Todavia, a partir de 1870 essas correrias tenderam a se concentrar principalmente
entre os rios Madeira e Purus, região que se tornava central para a produção de borracha
e exploração de outros produtos nativos.606 Em 1875, no rio Arimã, confluente do rio

603
Relatório lido pelo exm.o sr. presidente da província do Amazonas, tenente-coronel João Wilkens de
Mattos, na sessão d'abertura da Assembleia Legislativa Provincial á 25 de março de 1870, p. 10-11.
604
Idem.
605
Idem, p. 11.
606
Benedito Maciel assevera que “a região Madeira-Purus” foi “a de maior ocorrência de conflitos
envolvendo as populações indígenas entre as décadas de 1850 e 1880. Dos 121 conflitos relacionados nos
relatórios de presidente de província para este período, esta região aparece com 49 ocorrência”. Sendo que
a maior parte delas ocorreram ao final da década de 1860 em diante. Maciel entende as correrias indígenas
como instrumento da resistência indígenas contra a invasão sobre seu território e a suas áreas de caça e
pesca. MACIEL, Benedito. Op Cit. p. 231-265. Em diálogo com o autor, propomos entender as correrias
indígenas enquanto parte das micropolíticas do trabalho das populações indígenas visto que essas ações
assim como eram formas de barrar o avanço do Estado e de particulares sobre o território indígena também
possibilitavam a esses indivíduos manterem sua autonomia de trabalho e sobrevivência.
228

Purus, a família do comerciante Raimundo Antonio Rabelo e alguns de “seus fâmulos”


foram feridos gravemente após um ataque de indígenas. 607 Em 1876, por exemplo, uma
notícia publicada no Jornal do Amazonas informava:
Assalto de índios – No dia 1 do corrente mês, no destacamento de S.
Antonio, pelas 7 horas da manhã, indo três praças a umas 40 braças do
abarracamento, tirar madeira para uma casa, ai foram surpreendidos
pelos índios Ycanga pirangas habitantes do rio Jamary, que todos os
anos vem dar seu passeio por este lado. Flecharam 2 soldados; um de
nome Manoel da Hora, que recebeu duas flechadas, uma abaixo da
costela do lado direito e outra em cima do peito esquerdo; morreu
instantaneamente, no mesmo lugar do conflito outro de nome Luiz foi
gravemente ferido do lado direito, e continua em perigo de vida. O
terceiro pode milagrosamente escapar.
Grande alarma causou, no destacamento a presença desses selvagens,
porque soldados mulheres e crianças a correrem e gritarem pelo
abarracamento a procura de um refúgio onde pudessem escapar dos
assaltantes e suas flechas.
Existiam no destacamento 7 praças, 3 andavam a passeio com o
comandante desde o dia 24 do passado, e estes 7 não tinham se quer
uma espoleta de suas armas!608

O anunciante clamava que aumentassem o número da força policial disponível


para fazer frente a “semelhantes ocorrências” e “dar as providências necessárias a fim de
evitar novas desgraças” causada pela ação dos indígenas. No geral, a resposta
governamental a correria foi baseada na criminalização e penalização dessas ações
mediante o envio de tropas e prisão dos envolvidos. 609 A espoliação das terras indígenas,
o aumento das restrições as fontes de suprimento (pesca, coleta de produtos nativos e
manufaturados) e o recrudescimento das práticas coercivas para imobilizar os
trabalhadores fizeram crescer sobremaneira os conflitos entre indígenas e não-indígenas
na fronteira amazônica. Nesse período, as correrias além de se direcionaram para
indivíduos específicos passaram a agir principalmente na destruição de barracas de
produção de borracha. Em 1881, um ofício do presidente da província enviado ao
comandante interino das Armas solicitando que o militar tivesse mais atenção aos
“habitantes dos lugares do rio Madeira mais sujeitos aos ataques dos índios Parintintins,

607
Relatório apresentado ao presidente da província dr. Antonio dos Passos Miranda pelo 1º vice-presidente
capitão de Mar e Guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, por ocasião de passar a administração da
província, em 7 de julho de 1875, p. 5
608
Jornal do Amazonas, 9 de outubro de 1876, nº 136, p. 02.
609
O envio das tropas e armamentos para “proteger” os considerados “cidadãos” enfatiza como o governo
continuava atuando por meio da política de “guerra” contra as populações indígenas que eram consideradas
“selvagens” e “barbarás”. Na historiografia um exemplo marcante dessa política foi analisado em relação
ao Botocudos. A pesquisa de Yuko Miki examina esse processo e correlaciona com a experiência da
liberdade e cidadania dos indígenas e da população negra, ver: MIKI, Yuko. Op. cit, 2018.
229

quem em determinadas épocas do ano fazem suas vítimas nas excursões e correrias que
empreendem”.610 O presidente ressaltava ainda que a autoridade prestasse atenção
espacialmente nos lugares daquele rio onde existiam barracões em que habitavam
trabalhadores dedicados à produção de borracha. Segundo ele, algumas semanas antes,
um súbdito boliviano morador no destacamento de São Roque havia sido assassinado
pelos referidos indígenas.
Nesse contexto, as correrias configuravam assim uma das micropolíticas
acionadas pelos indígenas para conseguir frear as forças envolvidas no deslocamento de
fronteira que lhes restringiam o acesso aos recursos naturais e manufaturados como
também aumentava os constrangimentos sobre sua força de trabalho. Ao fim, as relações
de trabalho construídas a partir do sistema do aviamento continuaram marcando
fortemente o mundo do trabalho na Amazônica mesmo após o final do século XIX e os
enfrentamentos em torno do trabalho livre e não-livre não cessaram. Entretanto, a análise
do processo histórico no qual essa relação estava enlaçada nos permite demonstrar os
percursos, muito deles turbulentos e repletos de desafios, que os trabalhadores
amazônicos, o Estado e particulares encabeçaram para buscar definir os parâmetros em
torno dos significados do trabalho e da liberdade nesse período. Indígenas, negros (livres
e libertos) e livres pobres foram constantemente ameaçados pelas estruturas legais e
ilegais de coerção e escravização que buscavam a todo momento aumentar os índices de
extração da sua força de trabalho. Todavia, eles tinham consciência dos perigos de ser
livre no Brasil do século XIX e atuaram ativamente rejeitando, redefinindo e
reivindicando melhores condições de trabalho, sua autonomia e sobrevivência.

610
Amazonas, 14 de janeiro de 1881, nº 519, p. 01. Os Parintintins, Muras e Arara eram constantemente
mencionados nas fontes oficiais como responsáveis pelas correrias infligidas no rio Madeira e Purus. Como
aponta Davi Leal, “embora com pequenos grupos momentaneamente aldeados, os índios Mura, Parintintin
e Arara farão durante o século XIX uma dura e permanente guerra contra as invasões de suas áreas de
reprodução física e cultural”, ver: LEAL, Davi Avelino. Direitos e processos diferenciados de
territorialização: os conflitos pelo uso dos recursos naturais no rio Madeira (1861-1932). Tese (Doutorado
em Sociedade e Cultura), Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.
230

Considerações Finais

Catarinas, Isídios, Marias, Angelas e muitas outras indígenas, negros (livres e


libertos) e não-brancos livres pobres em geral tiveram suas experiências no mundo do
trabalho do vale amazônico atravessadas por marcadores raciais e sociais que impunham
por meios de diferentes estruturas uma variada gama de trabalho a estes sujeitos. Apesar
de estarem inseridos em uma conjuntura marcada pelos debates públicos contra a
escravidão e de florescimento do movimento abolicionista no século XIX, esses sujeitos
vivenciaram a expansão das redes de coerção ao trabalho e contribuíram com as disputas
em torno das definições de escravidão e liberdade. Esse movimento não estava restrito à
região amazônica nem ao território do Império do Brasil, mas conformava um processo
histórico mais amplo de avanço do capitalismo e de construção dos sentidos em torno do
trabalho livre que continuava reiterando práticas de controle, sujeição e exploração.
Dessa forma, para melhor perscrutar quem eram os agentes e os mecanismos pelos
quais a liberdade dessas populações estava sob constante ameaça e perigo, buscamos ao
longo dos quatro capítulos desta tese examinar as legislações e o papel representado pela
ilegalidade e pela informalidade na produção de mão de obra. Ressaltamos que apesar de
elas terem sido analisadas em capítulos separadas em minha tese, essas três estruturas não
eram contraditórias, mas operavam de forma coexistente, emaranhadas e sobrepostas no
mundo do trabalho da província do Amazonas. Da mesma forma, buscamos mapear as
ações conduzidas pelos trabalhadores para frear os ímpetos coercitivos do Estado e de
particulares, ao mesmo tempo em que buscavam impor suas noções em torno das diversas
formas de trabalho as quais estavam interligados. E por meio desse trajeto apresentamos
como na província do Amazonas na segunda metade do século XIX essa precariedade da
liberdade das populações indígenas, negra e não-brancos livres pobres em geral estava
fundada em uma ilegalidade generalizada frequentemente sustentada pelas mesmas
autoridades que na teoria deveriam ser responsáveis por garanti-la.
Para isso, no capítulo 1 apresentamos o processo de expansão de fronteiras pelo
qual passou a província do Amazonas, especialmente após a década de 1850, e
demonstramos como o Estado e particulares enviaram diversas explorações para mapear
as potencialidades econômicas e as populações que habitavam os altos rios Negro,
Solimões, Madeira, Purus, Japurá e outros. Em movimentos coordenados, foram
responsáveis por delinear as rotas a ser desbravadas pelos agentes do Estado e do capital
que passaram a perscrutar o território do vale amazônico em direção dos altos rios, com
231

cada vez mais intensidade, impetuosidade e violência. A introdução da navegação a vapor


acelerou essas movimentações e deslocamentos uma vez que o controle da circulação de
mercadorias e pessoas sob a direção dos interesses privados, favoreceu a ampliação dos
poderes desses setores sobre a política e economia. Nessa conjuntura, afloraram as
correntes migratórias de paraense, cearenses, paraibanos, indígenas bolivianos que, ao
lado das populações locais e escravizadas, constituíram a mão de obra da região. Se
alguns desses sujeitos migravam perseguindo a “promessa” de enriquecimento rápido,
grande parte deles eram deslocados e cooptados por meio de práticas compulsórias e redes
de coerção de trabalhadores.
Buscando apresentar quais seriam essas redes coercitivas de produção de
trabalhadores, no capítulo 2 em que demonstramos como a província do Amazonas,
criada em 1852, nasceu fortalecendo diversos mecanismos que contribuíram para reiterar
práticas pré-existentes de compulsão ao trabalho, acionando-as por meio das legislações
Imperiais. Lidando com uma população majoritariamente de condição livre de origem
indígena, mestiça e negra, as políticas estatais e provinciais buscaram construir meios
para mobilização desses indivíduos para o mundo do trabalho, marcado pela imposição e
compulsoriedade, de preferência disponibilizando-os como mão de obra em serviço
público e de particulares. Nesse sentido, examinamos a aplicação das legislações voltadas
a construir uma oferta de mão de obra para a região: o Corpos de Trabalhadores (1838-
1862) e o Regulamento das Missões. Mesmo que tenham apresentado dificuldades para
serem aplicadas na província do Amazonas, ambas as legislações fortaleceram antigas
estruturas de cooptação de trabalhadores que reiteraram assim as relações de dominação
e marcadores sociais e raciais que corroboraram para restringir o exercício da cidadania
para as populações indígenas, negros e pobres livres em geral.
A liberdade no vale amazônico estava marcada pela constante reiteração de
políticas de subordinação e coerção ao trabalho. Tanto que os parlamentares da província
do Amazonas visando construir outros mecanismos de produção de mão de obra tenderam
a debater diversos projetos de legislações voltados a instituir ferramentas de controle da
mão de obra disponível. Conectados aos movimentos em direção aos altos rios, os
deputados defendiam a aprovação de novas leis que fomentassem antigas práticas de
coerção de força de trabalho e garantissem a sujeição das populações indígenas, negra e
livres pobres sobre o domínio do Estado e dos reconhecidos como cidadãos. Embora a
maioria dos projetos não tenha sido posto em prática, essas discursões nos possibilitam
232

esmiuçar as perspectivas acerca do mundo do trabalho que eram almejados pelas


autoridades pública e os interesses particulares.
Apesar dessa institucionalização das prática compulsória de arregimentação de
trabalhadores, ainda no segundo capítulo delineamos como os trabalhadores
desenvolveram ações individuais e coletivas para impor limites aos esforços estatais de
cooptá-los por meios das legislação. Indígenas, negros e livres pobres em geral buscaram
intervir nas tentativas de controlá-los por meio das fugas, esvaziamentos dos
aldeamentos, da recusa de permanecer servindo, criando relações com comerciantes ou
buscando denunciar seu constrangimento ilegal perante as autoridades estatais. Em
conjunto, essas micropolíticas do trabalho foram responsáveis por exprimir as visões dos
trabalhadores sobre as relações de trabalho em que estavam encetados e por meio das
quais demonstravam sua insatisfação com o tratamento a eles direcionado ou seu
descontentamento com a duração de um serviço.
Nos altos rios, e mesmo na capital da província amazonense, as práticas
compulsórias de arregimentação de trabalhadores eram cotidianamente reiteradas ao
arrepio da lei. No capítulo 3, analisamos como as estruturas da organização
administrativa, judicial e policial do Império do Brasil foram instrumentalizadas pela elite
para alargar seus domínios sobre os trabalhadores locais e adventícios, mantendo-os
atados a relações de trabalho coercitivas. Por intermédio dos postos públicos esses
sujeitos influenciavam nas eleições locais, ampliavam suas redes de controle sobre a
circulação dos produtos, a distribuição de terras devolutas e ao controle da mão de obra
disponível. Por meio da imposição de prisões ilegais, da assinaturas de cartas de dívidas,
do alistamento militar ou mesmo do sequestro (especialmente de crianças) as autoridades
públicas da província do Amazonas buscaram produzir mão de obra para seus
empreendimentos particulares e de suas redes. A comercialização ilegal de crianças, por
exemplo, sustentava um sistema de escravização ilegal de indígenas e não-brancos livres
pobres que fornecia mão de obra para as casas de funcionários públicos na cidade de
Manaus assim como para outros empreendimentos. Embora muitos desses
constrangimentos ilegais fossem denunciados pelos próprios trabalhadores na Justiça ou
ganhassem as páginas dos periódicos, poucas foram as ações governamentais realizadas
para inibir essas práticas e punir os culpados, deixando escancaradas suas limitações e
compromissos com a lógica social de produção de desigualdade. Essa análise possibilita
demonstrar como as práticas de coerção e precarização da liberdade além de atingirem as
vidas da população negra (livre e liberta) – como já bem demonstrado pela historiografia
233

- também alcançaram as populações indígenas e não-brancas livres pobres em geral que


viviam na região amazônica.
O quadro que construímos reconstitui como as forças em defesa da escravidão e
de manutenção de extrema vigilância sobre a população pobre e não-branca estavam
entrecruzadas com os esforços de expandir as redes de trabalho compulsório, afetando
largamente a vida das populações indígenas e negra e tornando a sua experiência no
mundo do trabalho marcada pela precariedade de sua liberdade e restrição de sua
autonomia. Todavia, vimos ainda nesse capítulo como esses trabalhadores buscaram
alargar as prescrições do instituto do habeas corpus para denunciar um constrangimento
ilegal, demandarem por sua autonomia no mundo do trabalho e requerer o direito de voltar
a liberdade fora do controle das autoridades públicas e de particulares. Essa análise
corrobora para demonstrar como os trabalhadores do vale amazônico criaram diversas
ferramentas para impor limites às práticas de exploração da sua força de trabalho. De fato,
a pressão pelo alargamento do uso do habeas corpus estava interligada a um ampliação
das reinvindicações por direitos por parte dos trabalhadores em geral. Por meio dessas
ações, além de exigirem a retomada de sua liberdade jurídica também requisitavam mais
independência para escolherem a quem queriam servir, controle sobre o tempo de duração
do trabalho e possibilidade de mover-se sem sofrer restrições.
Por fim, no capítulo 4 nos detemos em analisar a informalidade como uma
estrutura de produção de trabalhadores. Em coexistência com as legislações e as práticas
ilegais de coerção de mão de obra esses tratos informais de trabalho e comércio,
praticados no vale amazônico desde o período colonial, caracterizavam as relações dos
mundos do trabalho na província do Amazonas na segunda metade do século XIX.
Contudo, a partir da intensificação dos deslocamentos de fronteira, essa estrutura,
conhecida como aviamento, sofreu reconfigurações que afetaram sobremaneira a
experiência da liberdade tanto dos trabalhadores locais quanto dos migrantes. Essas
transformações atingiram principalmente o nível de autonomia e mobilidade de
indígenas, negros e livres pobres em geral, uma vez que por meio do reforço do
mecanismo da dívida e do endividamento contínuo, os patrões buscaram acentuar o
domínio sobre esses trabalhadores locais e migrantes. Apesar disso, as relações de
trabalho encetadas a partir da informalidade também sofreram influências dos
trabalhadores que buscaram imprimir suas demandas como pagamento justo, tempo de
trabalho ou acesso aos recursos naturais.
234

Em conjunto, as legislações, a ilegalidade e a informalidade conformaram as


formas de exploração do trabalho no vale amazônico marcando a experiência dos
trabalhadores (indígenas, negros e livres pobres em geral) como um labirinto com
caminhos tortuosos entre a escravidão e a liberdade no século XIX. Esse processo foi
fomentado pela associação entre o Estado e o interesse privado que atuou de forma a
manter as relações na esfera do trabalho livre submetidas às práticas compulsórias, de
submissão e coerção. Não obstante, por meio de ações individuais ou coletivas como
fugas, assassinatos, acessando à Justiça, ludibriando os patrões, articulando
sociabilidades e outras formas diversas de micropolíticas do trabalho, os trabalhadores
buscaram impor suas próprias percepções e noções sobre o que entendiam como
adequado ou aceitável dentro das relações de trabalho que vivenciavam cotidianamente.
Dessa forma, a análise e compreensão sobre as diversas formas de exploração do
trabalho e dos agentes envolvidos nessas relações na província do Amazonas corroboram
com os estudos da área da história social da escravidão e história social do trabalho
demonstrando que a indistinção entre trabalho livre e não-livre no Brasil do século XIX
não foi intencional, mas resultado da combinação de práticas da política estatal e interesse
privado a fim de manter os trabalhadores, especialmente negros e indígenas, sob regimes
de dominação, dependência e exploração constante de sua mão de obra. Somado a isto, o
exame das experiências dos trabalhadores no vale amazônico destaca ainda que, além de
reivindicar sua liberdade, esses sujeitos atuaram ativamente rejeitando, redefinindo e
reivindicando melhores condições de trabalho, sua autonomia e existência na sociedade
brasileira do século XIX.
235

Referências

Fontes Primárias:

Arquivo Público do Estado do Amazonas

- Anais da Assembleia Legislativa do Amazonas do Biênio de 1852 a 1853.


- Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1854-1855.
- Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1856-1857.
Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1872-1873.
- Anais da Assembleia Legislativa da Província do Amazonas, Biênio 1875-1876.
- Livro 04 - Ofícios do delegado de polícia ao presidente da província do Amazonas,1854.
- Livro Diretoria de Índios, 1854.
- Livro nº 2 – Correspondência dirigida à tesouraria da Fazenda do governo da Província
do Amazonas, 1852-1853-1854.
- Livro de Ofícios Expedidos da Secretaria de Polícia, 1864.
- Livro 01 – Correspondência da presidência da província com o chefe de polícia, 1863-
1868.
- Livro 17 – Livro de correspondência da secretária de polícia de Manaus e do interior,
1869.
- Livro de Correspondência do Juiz de Direito da capital e do interior com o presidente
de Província, 1869.

Arquivo Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas

- Autos de Habeas Corpus. 1864. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (01).


Localização: JD.JD.PJ.ACHC1864:14(01).
- Sumário de Culpa ex-oficio por crime de reduzir a escravidão pessoa livre e de parto
suspeito, 1866. Tribunal do Jury. Caixa: TJUR (02). Localização:
JD.TJUR.PJ.ACOF1875:11(02).
- Sumário de Culpa procedido por crime de Responsabilidade. Manaus. 1869. Caixa: JD
(03). Localização: JD.JD.PJ.SCRP1869:07(03).
- Autos crimes de recurso. 1871. Caixa: JD(04). Localização:
JD.JD.PJ.ACET1871:05(04). AGTJAM.
- Autos de crime de responsabilidade. 1872. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (04).
Localização: JD.JD.PJ.ACRP1872:10(04).
- Autos de Habeas Corpus. 1874. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (04).
Localização: JD.JD.PJ.ACHC1874:22(04).
- Autos de Habeas Corpus. 1874. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (04).
Localização: JD.JD.PJ.ACHC1874:23(04).
- Autos de Habeas Corpus. 1875. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (05).
Localização: JD.JD.PJACHC1875:04(05).
- Autos de Habeas Corpus, 1875. Juízo de Direito. Caixa: JD (05). Localização:
JD.JD.PJ.ACHC1875:08(05).
- Autos de Habeas Corpus em favor de Manoel Thomaz Sabino. Manaus. 1875. Caixa:
JD (05) Localização:JD.JD.PJ.ACHC1875:13(05).
236

- Autos de Habeas Corpus. 1876. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (05).


Localização: JD.JD.PJ.ACHC1876:18(05).
- Autos de Habeas Corpus. 1877. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (05).
Localização: JD.JD.PJACHC1877:25(05).
- Autos de Habeas Corpus. 1878. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (06).
Localização: JD.JD.PJ.ACHC1878:12(06).
- Autos crime de responsabilidade. 1880. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (06).
Localização: JD.JD.PJ.ACRP1880:28(06).
- Autos de Habeas Corpus. 1880. Juízo Municipal de Manaus. Caixa: JD (06).
Localização: JD.JD.PJ.ACHC1880:29(06).
- Inquérito Policial. 1881. Delegacia de Polícia do Termo da Capital. Caixa: JM (06).
Localização: JM.JM.PJ.AAIP1881:18(06).
- Inquérito Policial. 1886. Delegacia de Polícia do Termo da Capital. Caixa: CP (03).
Localização: CP.DP.IP.PMIT1886:06(03).
- Inquérito policial ex-oficio procedido contra Thomas de Aquino Junior, 1887.
AGTJAM. Caixa: CP(01). Localização: CP. CP.IP.DNTI1887:19(01).

Center for Research Libraries – Global Resources Network

- Exposição do Estado e andamento dos negócios da província do Pará no acto de entrega


que fez da presidência o exmo Marechal Francisco José de Sousa Soares d’Andrea ao
exm Doutor Bernardo de Souza Franco, no dia 8 de abril de 1839.
- Discurso recitado pelo exm. o snr. Doutor João Maria de Moraes, vice-presidente da
província do Pará na abertura da primeira sessão da quinta legislatura da Assembleia
Província, no dia 15 de agosto de 1846, p. 10.
- Relatório que em seguida ao do exm.o snr. presidente da província do Pará, e em virtude
da circular de 11 de março de 1848, fez, sobre o estado da província do Amazonas, depois
da instalação dela, e de haver tomado posse o seu 1.o presidente, o exm.o snr. João
Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha.
- Relatório de Serafim da Silva Salgado sobre a exploração do rio Purús. In: Fala dirigida
á assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de outubro de 1853, em que se
abriu a sua 2º sessão ordinária, pelo presidente da província o conselheiro Herculano
Ferreira Penna, p. S1-I a S1-IX.
- Relatório de João Rodrigues de Medeiros sobre a exploração do rio Abacaxis. In: Fala
dirigida á assembleia legislativa provincial do Amazonas de 1853, em que se abriu a sua
2ª sessão ordinária, pelo presidente da província o conselheiro Herculano Ferreira Penna,
p. S1-XI a S1-XXVII.
- Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 1 de agosto de
1854, em que se abriu a sua 3 sessão ordinária, pelo presidente da província, o conselheiro
Herculano Ferreira Pena.
- Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas, no dia 2 de maio de 1855,
em que se abriu a sua 4ª sessão ordinária pelo vice-presidente da província, o doutor
Manoel Gomes Correa de Miranda.
- Relatório apresentado á Assembleia Legislativa Provincial pelo excelentíssimo senhor
doutor João Pedro Dias Vieira, digníssimo presidente desta província, no dia 8 de julho
de 1856 por ocasião da 1ª sessão ordinária da 3ª legislatura da mesma Assembleia.
- Exposição Feita ao Exm. Snr. 1º vice-presidente da província do Amazonas o Dr.
Manoel Gomes Correa de Miranda pelo presidente O doutor Joao Pedro Dias Vieira. 25
de fevereiro de 1857.
237

- Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de outubro de


1857 pelo presidente da província, Angelo Thomaz do Amaral.
- Relatório que a assembleia Legislativa provincial do Amazonas apresentou na abertura
da sessão originária em o dia 3 de maio de 1859 Francisco José Furtado, presidente da
mesma província.
- Fala dirigida a assembleia legislativa provincial do Amazonas na abertura da 1 sessão
ordinária da 5ª legislatura no dia 3 de novembro de 1860, o vice-presidente em exercício
o exm o senr dr Manoel Gomes Correa de Miranda.
- Fala dirigida á Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na abertura no dia 3 de
maio de 1861 pelo presidente da mesma, o exm, sr, dr. Manoel Clementino Carneiro da
Cunha
- Relatório apresentado a Assembleia legislativa da província do Amazonas na sessão
ordinária do 1º de outubro de 1864, pelo dr Adolfo de Barros Lacerda, presidente da
mesma província.
- Relatório com que o exm sr dr Antonio Epaminondas de Mello entregou a administração
da província do Amazonas ao exm snr. dr Gustavo Adolpho Ramos Ferreira vice-
presidente da mesma em 24 de junho de 1866.
- Relatório com que o exm,o snr, 1º vice-presidente da província do Amazonas, dr
Gustavo Adolpho Ramos Ferreira, abriu a Assembleia Legislativa Provincial no dia 5 de
setembro de 1866.
- Relatório com que o exm. o sr. Presidente da província, dr. Jacintho Pereira do Rego,
abriu a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas no dia 1º de junho de 1868.
- Relatório com que o exm. sr. Presidente da província do Amazonas tenente coronel João
Wilkens de Mattos, abriu a assembleia legislativa provincial no dia 4 de abril de 1869.
- Relatório lido pelo exm.o sr. presidente da província do Amazonas, tenente-coronel João
Wilkens de Mattos, na sessão d'abertura da Assembleia Legislativa Provincial á 25 de
março de 1870.
- Relatório que a Assembleia Legislativa provincial do Amazonas apresentou na acta da
abertura das sessões ordinárias de 1871, o presidente José de Miranda da Silva Reis.
- Relatório apresentado a Assembleia Legislativa provincial do Amazonas na primeira
sessão da 11ª legislatura no dia 25 de março de 1872 pelo presidente de província, o exm.
o sr. General dr José Miranda da Silva Reis.
- Fala dirigida a Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas na segunda sessão da
11ª legislatura em 25 de março de 1873 pelo presidente da província, bacharel Domingos
Monteiro Peixoto.
- Fala dirigida á Assembleia Provincial do Amazonas na primeira sessão da 12ª legislatura
em 25 de março de 1874 pelo presidente da província, bacharel Domingos Monteiro
Peixoto.
- Relatório apresentado ao presidente da província dr. Antonio dos Passos Miranda pelo
1 vice-presidente capitão de Mar e Guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, por
ocasião de passar a Administração da Província, em 7 de julho de 1875.
- Relatório apresentado ao exm.o sr. dr. Agesiláo Pereira da Silva, presidente da província
do Amazonas pelo dr. Domingos Jacy Monteiro, depois de ter entregue a administração
[sic] da província em 26 de maio de 1877.
- Fala com que abriu no dia 25 de agosto de 1878 a 1.a sessão da 14.a legislatura da
Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas o exm.o sr. Barão de Maracajú,
presidente da província.
- Fala com que o exm. o sr. Barão de Maracajú, presidente da província do Amazonas, no
dia 29 de março de 1879 abriu a 2.a sessão da 14.a legislatura da Assembleia Legislativa
Provincial.
238

- Fala com que o Exmo. Sr. Dr. Alarico José Furtado abriu a sessão extraordinária da
Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas. Em 27 de Agosto de 1881. Manaus:
Tipografia do Amazonas de José Carneiro dos Santos. 1882.
- Relatório com que o presidente da província do Amazonas dr José Lutosa da Cunha
Paranagua entregou a administração da mesa província ao 1 vice-presidente Coronel
Guilherme José Moreira em 16 de fevereiro de 1884.
- Mensagem do Exmo Sr Dr Fileto Pires Ferreira Governador do Estado do Amazonas
lida perante o Congresso dos Representantes por ocasião da abertura da primeira sessão
extraordinária da terceira legislatura, em 6 de janeiro de 1898.

Hemeroteca Digital
- Estrella do Amazonas/AM
- Amazonas/AM
- Commercio do Amazonas/AM
- O Catechista/AM
- Jornal do Amazonas/AM
- Diário de Manaós/AM
- Jornal do Rio Negro/AM
- Diário de Belem/PA
- The Rio News/ RJ

Publicadas

AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil (1865-1866). Belo


Horizonte: Editora Itaiaia, 1975.
BASTOS, Aurélio Cândido Tavares. O vale do Amazonas: estudo sobre a livre
navegação do Amazonas. Estatística, produções, comercio, questões fiscais do vale do
Amazonas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1866.
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1979 [1863].
BIARD, Auguste François. Dois Anos de Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2004.
BITENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do Passado: Rio
de Janeiro, Conquista, 1973.
CHANDLESS, William. Ascent of the River Purús. In: The Journal of Royal
Geographical Society of London. Londres, v. 36, 1866.
CLOUGH, Robert Stewart. The Amazons: diary of a twelve month’s journey. London:
SAMS, 1873.
HERNDON, William Lewis. Exploration of the Valley of the Amazon. Washington:
Robert Armstrong, public printer, 1853.
KELLER, Franz. The Amazon and Madeira Rivers: sketches and description from the
note-book of an explorer. New York: D. Appleton and Co, 1874.
KELLER-LEUZINGER, Franz. Os rios Amazonas e Madeira: esboços e relatos de um
explorador. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021.
MARCOY, Paul. Viagem pelo rio Amazonas. Manaus: EDUA, (1869) 2006;
MATHEWS, Edward Davis. Viagens pelos rios Amazonas e Madeira: Brasil, Bolívia e
Peru – 1872-1874. Editora Valer: Manaus, 2020.
239

MATHEWS, Edward D. Up the Amazon and Madeira Rivers, through Bolivia and Peru.
London: S. Low, Marston, Searle, Rivington, 1879.
MATTOS, João Wilkens. Roteiro da primeira viagem do Vapor Monarcha desde a
Cidade da Barra do Rio Negro, Capital da Província do Amazonas, até a povoação de
Nauta, na República do Peru. Rio Negro, Tipografia de M.S. Ramos, 1855.
OSCULATTI, Gaetano. De Tabatinga a Belém (1847). In: ISENBURG, Teresa.
Naturalistas italianos no Brasil. São Paulo: Secretária de Estado da Cultura, 1990.
SANTA-ANNA NERY, Frederico José de. O país das Amazonas. 3ª edição. Brasília:
Senado Federal, 2018.
SANTA-ANA NERY, Frederico José de. Le pays des Amazones: l'El-Dorado, les terres
à caoutchouc. Paris, L. Frinzine et cie, 1885.
SPRUCE, Richard. Notas de um botânico na Amazônia. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.
TAVARES BASTOS, A.C. O Vale do Amazonas: a livre navegação do Amazonas,
estatísticas, rodução,
comércio, questões fiscais do vale do Amazonas. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, (1866)1937.
TAVARES BASTOS, A. C. Cartas do Solitário (Africanos Livres, Tráfico de escravos -
Liberdade da Cabotagem - Abertura do Amazonas). Rio de Janeiro: Tipografia do
Correio Mercantil, 1863.
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979

Referências Bibliográficas

ABREU, Tenner Inauhiny. “Nascidos no Grêmio da Sociedade”: Racialização e


mestiçagem entre os trabalhadores na Província do Amazonas (1850-1889). Dissertação
de mestrado. Manaus, UFAM: 2012
AHUJA, Ravi. A freedom still enmeshed in servitude: the unruly “Lascars’ of the SS City
of Manila or, a micro-history of the ‘free labour’ problem. In: AHUJA, Ravi (org).
Working Lives & Worker Militancy: The Politics of Labour in Colonial India, New Delhi:
Tulika Book, 2013, p. 97-133.
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.
ALVARENGA, Felipe de Melo. Das terras indígenas à princesa da serra fluminense: o
processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (província do Rio de
Janeiro, século XIX). Jundiai: Paco Editorial, 2019.
AMOROSO, Marta Rosa. Guerra Mura no século XVIII: versos e versões.
Representações dos Mura no Imaginário Colonial. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1991.
AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de Hábito: catequese e educação para índios nos
aldeamentos capuchinhos. In SILVA, Aracy Lopes e FERREIRA, Mariana Kawall Leal
(orgs.) Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. 2ª ed., São
Paulo: Global, p 133-157, 2001.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história: avanços e desafios das
abordagens interdisciplinares – a contribuição de John Monteiro. História Social, n 25,
2013, 19-42.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história do Brasil no século XIX: da
invisibilidade ao protagonismo. Revista História Hoje, v. 1, n. 2, p. 21-39, 2013.
240

BARROSO, Daniel Souza; LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. À margem da segunda


escravidão? A dinâmica da escravidão no vale amazônico nos quadros da economia-
mundo capitalista. Tempo, v. 23, p. 568-588, 2017.
BEZERRA NETO, José Maia. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e
fugitivos no Grão-Pará (1840-1888). Dissertação de Mestrado (História). Campinas:
UNICAMP, 2000.
BEZERRA NETO, José Maia. Mercado, conflitos e controle social. Aspectos da
escravidão urbana em Belém (1860-1888). Revista História & Perspectiva, Uberlândia
(41): jul.dez, 2009.
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XVIII).
2.ed. Belém: Paka-Tatu, 2012.
BETHEL, Leslie. A presença Britânica no Império nos Trópicos. Acervo, Rio de Janeiro,
v. 22, nº 1, p. 55-65, jan/jun, 2009.
BLANCO, Laura Stella Passador de Luiz. Crimes praticados por escravos na Manaus
Oitocentista. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Amazonas,
Manaus, 2020.
BRITO, Roberta Kelly. Vapores Mauá: A companhia de navegação e comércio do
Amazonas (1852-1871). Dissertação (Mestrado em História). Manaus: Universidade
Federal do Amazonas, 2018.
BRITO, Agda Lima. Mulheres no seringal: experiências, trabalho e muitas histórias
(1940-1950). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Pós-Graduação em História Social, Niterói,
2017.
CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio. O Eldorado dos Deserdados: indígenas,
escravos, migrantes, regatões e o avanço rumo ao oeste amazônico no século XIX. Tese
de Doutorado (História Social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2017.
__________________________________. Nem sina nem acaso: a tessitura das
migrações entre a Província do Ceará e o território Amazônico (1847-1877). Dissertação
(História Social). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2011.
__________________________________. Negros e Índios sob suspeita: dimensões da
escravidão e do trabalho compulsório no território amazônico. Revista Litteris, v. 1, p.
21-32, 2014
__________________________________. Sobre escravos e regatões: sociabilidades,
conflitos e alianças complexas no território amazônico oitocentista. XXVIII Simpósio
Nacional de História, Anais eletrônicos do XXVIII Simpósio Nacional da Anpuh,
Florianópolis, 2015
CARNEIRO, João Paulo Jeannine Andrade. O último propagandista do Império: O
‘barão’ de Santa-Anna Nery (1848-1901) e a divulgação do Brasil na Europa. Tese
(Doutorado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas:
Guiana Francesa e Pará, 1750-1817. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1984.
CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistência,
rebeldia e fugas de escravos no Amazonas Provincial (c.1850-c.1882). Dissertação de
mestrado. UFAM: Manaus, 2013.
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão
conceitual. Dados, v. 40, n. 2, 1997.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011;
241

__________________. Costumes Senhoriais: escravização ilegal e precarização da


Liberdade no Brasil Império. In: AZEVEDO, Elciene et al. Trabalhadores na cidade:
cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, século XIX e XX. Campinas:
Editora Unicamp, 2009, pp 23-62;
__________________. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil
escravista (século XIX). História Social, n. 19, p. 33-62, 2010;
__________________. A Foça da Escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
Oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico:
escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL,
v. 14, n. 26, 2010.
CHAMBOULEYRON, Rafael Ivan. Escravos do Atlântico Equatorial: tráfico negreiro
para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, jul-dez.2006.
CÓRDOBA, Lorena. El boom caucheiro em la Amazonia boliviana:
encuentros y desencuentros con una sociedad indígena (1869-1912). In: D. &.
Villar. Las tierras bajas de Bolivia: miradas históricas y antropológicas. Santa Cruz de
La Sierra: El País, 2012.
COOPER, Frederick; REBECCA J. SCOTT; THOMAS C. HOLT. Além da escravidão:
investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005
COSTA, Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira. Por todos os cantos da cidade: escravos
negros no mundo do trabalho na Manaus oitocentista (1850-1884). Dissertação de
Mestrado (História Social). Niterói: UFF, 2016.
______________________________________. A trajetória de Catharina Maria Roza da
conceição e a escravidão ilegal no Norte Imperial. Semina - Revista Dos Pós-Graduandos
Em História Da UPF, nº17(1), 2019, p. 81-101.
COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na Guerra: políticas indígenas e indigenistas no
Ceará (1798-1845). Tese (Doutorado em História). Campinas: Universidade Estadual de
Campinas, 2016.
CUNHA, Manuela Carneiro de. Política Indigenista do século XIX. In: CUNHA,
Manuela Carneiro de (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras; Secretária Municipal de Cultura; FAPESP, 1992.
DANTAS, Monica Duarte (org). Revoltas, Motins e Revoluções: homens livres pobres e
libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
DAOU, Ana Maria. Instrumentos e sinais da civilização: origem, formação e consagração
da elite amazonense. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, vol VI, p. 867-888,
setembro, 2000.
DE OLIVERIA AGUIAR, Thiago. Companhia de Aprendizes-Marinheiro de Santa
Catarina: um sobrevoo sobre as coalizões de poder em torno da instituição no século
XIX. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
DE VITO, Christian G.; SCHIEL, Juliane; VAN ROSSUM, Matthias. From bondage to
precariousness? New perspectives on labor and social history. Journal of Social History,
v. 54, n. 2, p. 644-662, 2020.
DIAS, Camila Loureiro. Os índios, a Amazônia e os conceitos de escravidão e liberdade.
Estudos Avançados, v. 33, p. 235-252, 2019.
___________________. Civilidade, cultura e comércio: os princípios fundamentais da
política indigenista na Amazônia (1614-1757). Dissertação (Mestrado em História). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2009.
242

DIAS, Maria Odila da Silva Leite. Aspectos da Ilustração No Brasil. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 278, p. 100-170, jan.-mar, 1968.
DOLINSKI, João Pedro. Saúde e cotidiano na Companhia de Aprendizes Marinheiros de
Paranaguá na segunda metade do século XIX. História Social, n. 24, 2013.
DOMINGUES, Heloisa Bertol. Viagens científicas: descobrimento e colonização no
Brasil no século XIX. In. HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Ciência,
civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access, 2001. p. 55-75.
DORNELLES, Soraia Sales. A questão indígena e o Império: índios, terra, trabalho e
violência na província paulista, 1845-1891. Tese (Doutorado em História) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Campinas, 2017.
________________________. Trabalho compulsório e escravidão indígena no Brasil
imperial: reflexões a partir da província paulista. Revista Brasileira de História, v. 38, n.
79, p. 87-108, 2018.
FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. Presença africana na Amazônia. Afró-Ásia, Salvador,
n. 12, p. 145-60, 1974
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios na Bahia do Século XIX. São Paulo:
HUCITEC; Salvador, EDUFBA, 1996.
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos e vadios na Bahia do século XIX. Salvador,
Dissertação de Mestrado em História, 1994.
FRENCH, John. As falsas dicotomias entre escravidão e Liberdade: continuidades e
rupturas na formação política e social do Brasil Moderno. In: LIBBY, Douglas Cole;
FURTADO, Júnia Ferreira (orgs). Trabalho Livre, Trabalho escravo: Brasil e Europa,
séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 77-96.
FULLER, Claudia Maria. Os Corpos de Trabalhadores e a organização do trabalho livre
na província do Pará (1838-1859). Revista Mundos do Trabalho, v. 3, n. 6, p. 52-66, 2012.
____________________. “V. Sª não manda em casa alheia”: disputas em torno da
implantação dos Corpos de Trabalhadores na Província do Pará, 1838-1844. Revista
Estudos Amazônicos. Vol.III, n.2, 2008
FUNES, Eurípedes Antônio. Nasci nas matas, nunca tive senhor: história e memória dos
mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado (História Social). São Paulo: USP,
1995.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997.
GREGORIO, Vitor Marcos. Dividindo as Províncias do Império: a emancipação do
Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção do Estado Nacional
brasileiro. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2012.
GREGORIO, Vitor Marcos. O progresso a vapor: navegação e desenvolvimento na
Amazônia do século XIX. Nova Economia, nº 19 (1), Belo Horizonte, 2009
GREGORIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: A navegação do rio Amazoans e a
formação do Estado brasileiro. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-
Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de
Apelação do rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Delume-Dumará, 1994.
________________. Fronteiras, escravidão e liberdade no sul da América. In:
GRINBERG, Keila (org.). As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América.
Rio de Janeiro: Sette Letras, 2013. p. 7-24.
GUEDES, Roberto. Ofícios Mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo
(sécs. XVII-XIX). Topoi, v. 7, n. 13, jul-dez, pp. 379-423, 2006.
243

GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa no Império brasileiro: a firma Edward


Johnston & Co. e o comércio exportador, 1842-1852. Revista Tempo, vol 21, nº 37, p.
187-207, 2015.
GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e
comunidades de fugitivos no Brasil (sécs. XVIII e XIX). São Paulo: ed. UNESP: Ed. Polis,
2005, p. 49.
GOMES, Flávio dos Santos. “Jogando a Rede, Revendo as Malhas: fugas e fugitivos no
Brasil escravista”. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, 1996.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a
modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
HARRIS, Mark. Rebelião na Amazônia: cabanagem, raça e cultura popula no Norte do
Brasil, 1798-1840. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.
HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX.
Rio de Janeiro, EdUERJ.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no rio de janeiro: repressão e resistência numa cidade
do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
IZECKSON, Vitor. A guerra do Paraguai. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O
Brasil Imperial – Vol. II – 1831-1889. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009.
KROENER, Andrei. Habeas-Corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-
1920). São Paulo: IBCCrim, 1999.
LACERDA, David. Trabalho, política e solidariedade operária: uma história social do
Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (c. 1860 - c. 1890). Tese (Doutorado em História).
Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2016.
LAMOUNIER, Maria Lucia. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de locação de
serviços de 1879. Campinas: Editora Papirus, 1988.
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
_________________. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil, Projeto
História, nº 16, 1998, p. 25-38.
_________________. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América
portuguesa. São Paulo: Companhias da Letras, 2007.
LAURINDO JUNIOR, Luiz Carlos. Rio de escravidão: tráfico interno, e o mercado de
escravos do vale do Amazonas (1840-1888). Tese (Doutorado em História Social),
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2021.
LAURINDO, Luiz Carlos; BEZERRA, José Maia. Alguns vêm de lá, outros de cá: a
Amazônia no tráfico interno brasileiro de escravos (século XIX). História (São Paulo),
v. 37, 2018.
LEAL, Davi Avelino. Mundos do trabalho e conflitos sociais no rio Madeira (1861-193).
Manaus: Editora Valer, 2020.
__________________. Direitos e processos diferenciados de territorialização: os
conflitos pelo uso dos recursos naturais no rio Madeira (1861-1932). Tese (Doutorado
em Sociedade e Cultura), Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.
LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da
liberdade de trabalho no século XIX. Topoi, v. 6, n. 11, p. 289-326, 2005.
LIMA, Regina Márcia de Jesus. A Província do Amazonas no sistema político do segundo
reinado (1852-1889). História em Revista. Amazônia em Cadernos, v. 2, n. 3, 1993.
LINDEN, Marcel Van der. Trabalhadores do Mundo: ensaios para uma história global
do trabalho. Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.
244

LUZ, Sabrina Alexandre. Quando o rio é o caminho: o mapa da Comissão Mista de


Limites entre o Brasil e o Peru (1874). Revista Terra Brasilis, nº11, 2019.
MACIEL, Benedito do Espirito Santo Pena. Histórias intercruzadas: projetos, ações e
práticas indígenas e indigenistas na Província do Amazonas (1850-1889). Tese
(Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia), Programa de Pós-Graduação em
Sociedade e Cultura da Amazônia, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2015.
MACHADO, André Roberto A. O Conselho Geral da Província do Pará e a definição da
política indigenista no Império do Brasil. Almanack, v. 10, p. 181-237, 2015.
_________________________. O eclipse do Principal: apontamentos sobre as mudanças
de hierarquias entre os indígenas do Grão-Pará e os impactos no controle da sua mão de
obra (décadas de 1820 e 1830). Topoi, Revista de História, v. 18, p. 166-195, 2017.
MACHADO, Maria Helena P. T. Corpo, Gênero e Identidade no Limiar da Abolição:
Benedicta Maria da Ilha, mulher livre/ Ovídia, escrava narra sua vida (sudeste, 1880).
AfroÁsia, 42, 2010, pp. 157-193.
___________________________. Crime e Escravidão: trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas (1830-1888). São Paulo: Edusp, 2014.
__________________________. Brasil a vapor. Raça, Ciência e viagem no século XIX.
Tese apresentada para o concurso de Livre Docência – USP, São Paulo, 2005.
MACHADO, Paulo Pinheiro. A política de colonização no Império. Porto Alegre:
UFRGS, 1999.
MACGRATH, David. Parceiros no crime: o regatão e a resistência cabocla na Amazônia
tradicional. Belém: Cadernos NAEA, v.2, n.2, 1999.
MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade
patriarcal no Império do Brasil. Maringá: EDUEM, 1994.
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da
escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial, volume
I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p 207-233.
__________________________. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017;
__________________________. Revisitando a “transição para o trabalho livre”: a
experiência dos africanos livres. IN: FLORENTINO, Manolo (org). Tráfico, cativeiro e
liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p 389-417;
MAMIGONIAN, Beatriz G; GRINBERG, Keyla. O crime de redução de pessoa livre à
escravidão no Brasil oitocentista. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 13, p.
1-21, 2021.
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano.
São Paulo: Contexto, 2009.
MARSON, Isabel. Trabalho livre e progresso. Revista Brasileira de História, nº 07, 1994.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste
escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
___________________. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2000.
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. 7. Ed.
São Paulo: Hucitec, 2017.
MEIRA, Márcio. A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no
noroeste Amazônico. São Carlos: EDUFSCar, 2018.
MENÉNDEZ, Miguel. Contribuição para uma etno-história da área tapajós-Madeira. In:
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. História dos Índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
245

MELO, Patrícia Maria Alves de. A. Índios e africanos livres nas obras públicas, Manaus,
século XIX. Revista Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 13, p. 1-12, 2021;
__________________________. Hierarquizando cidadãos livres: algumas experiências
de africanos e índios na Amazônia oitocentista. In: BELTRÃO, Jane Felipe; LACERDA,
Paula Mendes (orgs). Violências versus resistências: desigualdades de longa duração na
Amazônia brasileira. Brasília: Edições ABA, 2021.
MENDONÇA, Joseli M. Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
__________________________. Sobre cadeias e coerção: experiências de trabalho no
Centro-Sul do Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História, v. 32, p. 45-60, 2012.
__________________________. Leis para “os que se irão buscar” – imigrantes e relações
de trabalho no século XIX brasileiro. História: Questões & Debates, v. 56, n. 1, 2012.
MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship: a black and indigenous History of postcolonial
Brazil. Cambridge University Press, 2018.
MOHAPATRA, Prabhu P. Informalidade regulamentada: construções legais das relações
de trabalho na Índia Colonial (1814-1926). Cadernos AEL, v. 14, n. 26, 2010.
MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994
________________. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História indígena e do
indigenismo. Tese (Livre Docência). IFCH Unicamp. Campinas, 2001
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Índios no Brasil: marginalização social e exclusão
historiográfica. Dialogos Latinoamericanos, num 3, 2001, p. 87/113
____________________________. A serviço do império e da nação: trabalho indígena e
fronteiras étnicas no
Espírito Santo (1822-1860). Anos 90, Porto Alegre, v.17, n.31, p.13-55, jul. 2010.
____________________________. Autogoverno e economia moral dos índios:
liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, n.
166, p. 223-243, 2012.
____________________________. Losada. Kruk, Kuruk, Kuruca: genocídio e tráfico de
crianças no Brasil imperial. História Unisinos, v. 24, n. 3, p. 390-404, 2020.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada. Recrutamento e disciplina
na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
____________________________. Cidadania, cor e disciplina: na revolta dos
marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008.
MOURA, Denise A. Soares de. Saindo da Sombra: homens livres no declínio do
escravismo. Campinas: área de publicação CMU/UNICAMP, 1998.
NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flavio. Além de senzalas e fábricas: uma história
social do trabalho. Tempo social. v. 18, n. 1, p. 217-240, 2006.
NUNES, Francivaldo Alves. Sob o signo do moderno cultivo: Estado imperial e
agricultura na Amazônia. Tese de doutorado (História Social). Universidade Federal
Fluminense, 2011.
OFBAUER, Andreas. O conceito de ‘raça’ e o ideário do ‘branqueamento’ no século
XIX: bases ideológicas do racismo brasileiro. Teoria & Pesquisa, n. 42 e 43, SP. jan./jul.
2003.
OLIVEIRA, João Pacheco de. O Caboclo e o Brabo: Notas sobre duas Modalidades de
Força de Trabalho na Expansão da fronteira Amazônia no século XIX. Encontros com a
Civilização Brasileira, vol, 10, p. 101-110, 1979.
________________________. Formas de dominação sobre o indígena na fronteira
amazônica: Alto Solimões, de 1650 a 1910. Cadernos CRH, Salvador, v. 25. N. 64, p. 17-
31, jan/abr, 2012.
246

PAES, Mariana Armond Dias. O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil


Oitocentista. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 29, n 58, maio-agosto, 2016, p. 339-
360.
________________________. Sobre origens, continuidades e criações: a posse da
liberdade nos decisionistas portugueses (sécs. XVI-XVIII) e no direito da escravidão (séc.
XIX). In: Actas del XIX Congreso del Instituto Internacional de Historia del Derecho
Indiano, vol 2, Berlim, p. 1379-1406, 2017.
PAZ, Adalberto. Repúblicas contestadas: liberdade, trabalho e disputas políticas na
Amazônia do século XIX. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2017.
PERRONE-MOISES, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro
da. História dos índios no Brasil, v. 2, p. 116-132, 1992.
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença
negra na Amazônia na primeira metade do século XIX. Terra das Águas, v. 1, p. 148-
172, 1999.
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Nos subterrâneos da revolta: trajetórias, lutas e
tensões na Cabanagem. Tese de Doutorado em História, Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 1998
PORRO, Antônio. História indígena do alto e médio Amazonas, século XVI a XVIII. In:
CUNHA, Manuela (org). Historia indígena no Brasil. São Paulo: Companhia das letras,
1992, p. 175-196
PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. São
Paulo: EDUSC, 1999.
POZZA NETO, Provino. Aves Libertas: ações emancipacionistas na Amazônia Imperial.
Dissertação (Mestrado em História Social). UFAM, Manaus, 2011.
REIS, Arthur Cesar Ferreira. O seringal e o seringueiro. 2ª ed. Revista. Manaus: EDUA,
Governo do Estado do Amazonas, 1997.
REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
RICCI, Magda. Do sentido aos significados da Cabanagem: percursos historiográficos.
Anais do Arquivo Público do Pará, Belém, v. 4, 2001.
ROCHA, Antonio Penalves. The Rio News de A. J. Lamoureux: um jornal abolicionista
carioca de um norte-americano. História e Imprensa, São Paulo, nº 35, p. 141-159, dez,
2007.
ROSA, Paula de Souza. A expulsão da população boliviana do Rio Madeira após o
Tratado de Ayachuchp (1867): um mito persistente. Monografia (Graduação em
História), Universidade Federal de Rondônia, 2016.
ROSA, Paula de Souza; FONSECA, Dante Ribeiro de. As desventuras do cidadão
Manuel Mostajo: um comerciante boliviano e o processo de colonização do rio Madeira
no século XIX. Revista eletrônica Documento Monumento, vol 23, nº 1, jul/2018.
ROSA, Paula de Souza; COSTA, Jéssyka S. L. P. “O célebre Telesforo Salvatierra, o
herói da terrível tragédia de Carapanatuba”: conflitos pela posse de seringais e o mundo
do trabalho no rio madeira (1870-1887). Canoa do Tempo 12, no. 2 (janeiro 22, 2021): p.
199-228.
ROSEMBERG, André. Polícia, policiamento e o policial na província de Sã Paulo no
final do Império: a instituição, prática cotidiana e cultura. Tese (Doutorado em História).
Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de São Paulo, 2008.
247

SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime da escravidão. Fundação Getúlio


Vargas e UFPA. Rio de Janeiro, 1971.
SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial: Escravidão e formação da identidade nacional
no Brasil do Segundo Reinado. 2 ed. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.
SAMPAIO, Marcos Guedes Paz. Uma contribuição à história dos transportes no Brasil:
a Companhia Bahiana de Navegação a vapor (1839-1894). Tese (Doutorado em
História). Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, 2006.
SAMPAIO, Patrícia M. Os fios de Ariadne: tipologias de fortunas e hierarquias sociais
em Manaus: 1840-1880. Manaus: EDUA,1997.
___________________. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia.
Manaus: Edua, 2012
___________________. Nas teias da fortuna: acumulação mercantil e escravidão em
Manaus, século XIX. Mneme, Caicó, v. 3, n. 6, p. 49-70, jul-dez. 2002.
___________________. Escravidão e Liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o
mundo do trabalho indígena e africano. In: Anais eletrônico do 3º Encontro Escravidão
e Liberdade no Brasil Meridional, Santa Catarina: Oikos Editora, 2007;
___________________. Mundos cruzados: etnia, trabalho e cidadania na Amazônia
Imperial, In: Anais do XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, Fortaleza, 2009;
___________________. Africanos e Índios na Amazônia: experiências de precarização
da liberdade. In CABALLERO, DC, CÉSPEDES, GP & RICARDO TOUS MATA,
M.(Org). América: poder, conflicto y política. Universidad de Murcia, Murcia, 2013,
pp.825 -840.
___________________. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila;
SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial, volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. 175-206, 2009
SANTOS, Francisco Jorge. Além da Conquista: guerra e rebeliões indígenas na
Amazônia Pombalina. Manaus: EDUA, 1999.
SANTOS, Francisco Jorge dos. Nos confins ocidentais da Amazônia portuguesa: mando
metropolitano e prática do poder régio na Capitania do rio Negro no século XVIII. Tese
(Doutorado em Sociedade e Cultura da Amazônia). Programa de Pós-Graduação em
Sociedade e Cultura da Amazônia, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2012.
SCOTT, Rebecca J.; HÉBRARD, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica
na era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
SCHWARTZ, Stuart B. Resistance and accommodation in eighteenth-century Brazil: the
slaves’ view of slavery. Hispanic American Historical Review, v. 57, n. 1, p. 69-81, 1977.
SECRETO, María Verónica. A seca de 1877-1879 no Império do Brasil: dos
ensinamentos do senador Pompeu aos de André Rebouças: trabalhadores e mercado.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.27, nº1, jan-mar. 2020.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1993.
SILVA, Ayalla Oliveira. Ordem Imperial e aldeamento indígena: Camacãs, Guerens e
Pataxós no sul da Bahia. Ilhéus: Editora Editus, 2017.
SILVA, Marley Antonia Silva da. A extinção da companhia de comércio e o tráfico de
africanos para o estado do Grão Pará e Rio Negro (1777–1815). Mestrado (História
Social). Belém: Universidade Federal do Pará, 2012.
SOUZA, Robério Santos. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres,
libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas:
Editora da Unicamp, 2015.
248

STEINFELD, Robert. Coercion, contract and free labor in the nineteeth century.
Cambridge, New York: Cambridge University Press, 2001.
STOLCKE, Verena; HALL, Michael. A introdução do trabalho livre nas fazendas de
café de São Paulo. Revista Brasileira de História, v. 3, n. 6, p. 80-120, 1983.
TEXEIRA, Alcermir Alijean Bezerra. O Juízo dos Órfão em Manaus (1868-1896).
Manaus, Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal do Amazonas, 2010.
TELLES, Lorena Ferres da Silva. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho
doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013.
UGARTE, Auxiliomar Silva. Filhos de São Francisco no país das Amazonas: catequese
e colonização na Amazônia do século XVII. In: Amazônia em cadernos – diálogos
interdisciplinares. Nº6, jan/dez/. Manaus: UFAM/Museu Amazônico, 2000
VALEN, Gary Va. Indigenous agency in the Amazon: the Mojos in the liberal and
Rubber-Boom Bolívia. Tucson: The University of Arizona Press, 2013.
VAN DER LINDEN, Marcel M.; GARCÍA, Magaly Rodríguez. On coerced labor: Work
and compulsion after chattel slavery. Brill, 2016.
VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana
na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Estado do Pará,
1990.
VIANA, Wania Alexandrino. Gente de guerra, fronteira e sertão: índios e soldados na
capitania do Pará (primeira metade do século XVIII). Tese (doutorado em História),
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Pará, 2019.
WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920.
São Paulo: Hucitec/USP, 1991.
WRIGHT, Robin M. História indígena e do indigenismo no alto rio Negro. São Paulo:
Instituto Socioambiental/ISA, 2005.
XAVIER, Regina Célia Lima. Tratos e contratos de trabalho: debate em torno de sua
normatização no século XIX. História em Revista, v. 10, n. 10, 2004.

Você também pode gostar