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São Paulo
2015
ELTON LUIZ ALIANDRO FURLANETTO
São Paulo
2015
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovada em:_____/_____/_____
Banca Examinadora
Primeiramente, gostaria de agradecer minha orientadora, Maria Elisa Cevasco, por todo
apoio e atenção dedicado aos meus trabalhos desde a graduação. Ela estava nas
minhas bancas de TGI e mestrado, e aceitou meu projeto de doutorado, sempre me
incentivando a ser um melhor pesquisador.
Ao professor Carlos Eduardo Berriel pela chance de ter participado de suas aulas sobre
Utopia como ouvinte, e depois por suas observações no meu processo de qualificação.
À Ildney Cavalcanti, estudiosa de Marge Piercy, com quem travei contato e amizade, e
com quem espero poder compatilhar muitos projetos e descobertas acadêmicas.
Aos colegas que formavam o grupo Mocassim Marrom, Cris Toledo, Neyde Branco,
Elder Tanaka, Roberta Viscardi e Fabi Vilaço, que nos primeiros momentos deste
trabalho, contribuíram com ideias e sugestões. Igualmente ao Márcio Deus, cuja leitura
foi primordial para retraçar os primeiros caminhos.
À Vera Ramos, Solange Pinheiro e Ana Carol Erlacher, pessoas muito especiais, sem
as quais esta tese sairia menos bela. A leitura atenta delas foi essencial para que eu
pudesse corrigir erros, eliminar confusões, melhorar traduções, evitar repetições. Sem
elas, com certeza, a tese ficaria menos enriquecida, mas caso tenha sobrado algum
erro, a responsabilidade é toda minha.
À Ana Rusche, uma nova amiga que a Utopia me trouxe, uma camarada de percurso e
uma poetisa que me inspirou.
À minha querida família, meu pai, Marco, que sempre se orgulhou das minhas
conquistas e minha mãe, Rose, que sempre entendeu minhas ausências nesse período
conturbado de estudos. Minhas irmãs de sangue, Vivian e Mayara, que sempre me
apoiaram, cada uma à sua maneira, e aos irmãos de alma, espalhados pelo mundo, que
sempre fizeram meu coração mais quente e me deram forças pra continuar: a Dani
Luna, o Jarkko Kinnunen, a Sheela Gomes, a Silvana Vergopolan, o Túlio Carrera, a
Flávia Helena, a Viviane Annunciação, o Nick Ayer, e muitos outros que fizeram o
processo de estudos menos solitário e mais produtivo, mais humano.
To Phillip Wegner and Peter Fitting for the close attention and support whenever I
needed them for a talk, suggestions, ideas about Utopia and academic life. They were
super in their writings and their conversations.
To all the people that made my one-year study in Gainesville, Florida, a delightful
experience. All the people at the English Department of University of Florida. There are
so many names that I prefer just to say, thank you so much, guys. Diana, Marcos and
Camila, specifically made every minute worth it. Steven Turner was like a brother to me,
Alex Randall was my mentor and still holds a very important piece of me.
Also, the most warming thanks to Libby Ginway, who welcomed me in the US and was
always available to listen to my dilemmas and gave me advice at any moment I needed.
She and Mary Risner took me in as if I was family and gave me some of the best
memories of tenderness and connection.
To Marge Piercy, the reason of this study, and an inspiration to me and many other. Not
just a great novelist and poet, she is a wonderful person whose presence is so strong
that the air seems to move in a different way, the barometers might dance, yet her look
soothes you and makes you want to purr. Also, her husband, Ira Wood, who is one of
the sweetest people I’ve ever met. He is fun and friendly and a person I am sure I could
have talked to for days and days nonstop.
The main contradiction today is between the possibility of free, abundant goods and
information; and a system of monopolies, banks and governments trying to keep things
private, scarce and commercial. Everything comes down to the struggle between the
network and the hierarchy: between old forms of society moulded around capitalism and
new forms of society that prefigure what comes next. [...]
Is it utopian to believe we’re on the verge of an evolution beyond capitalism? We live in
a world in which gay men and women can marry, and in which contraception has, within
the space of 50 years, made the average working-class woman freer than the craziest
libertine of the Bloomsbury era. Why do we, then, find it so hard to imagine economic
freedom? […]
We need more than just a bunch of utopian dreams and small-scale horizontal projects.
We need a project based on reason, evidence and testable designs, that cuts with the
grain of history and is sustainable by the planet. And we need to get on with it.
Thus, we must choose Utopia. We must choose the belief that the world can be radically
improved; we must dream socially; and we must allow our social dreams to affect our
lives. The choice for Utopia is a choice that the world can be radically improved.
Esse trabalho buscou dar conta de três conceitos gerais dentro da obra de Marge Piercy.
Primeiramente apresentamos um pouco sobre a vida da autora, seus alinhamentos e
como ela se engaja com os assuntos mais importantes de seu momento histórico. Dois
entre seus diversos romances, Woman on the Edge of Time e He, She and It
materializam em si uma série de temas e questões, com suas soluções simbólicas e
contradições, que buscamos apontar e comentar. O primeiro aspecto que se fez
preemente para nossa discussão foi a definição do conceito de Utopia, enfatizando ora
suas características formais, ora de conteúdo e, alternativamente, sua função. Ideias
como o “sonho social” e a “educação do desejo” pautaram nossa análise. Além disso,
Fredric Jameson e sua ideia de Utopia enquanto neutralização foi essencial, ou seja, a
demonstração de nossa incapacidade de imaginar o futuro. Definimos que a utopia seria
para nós um modo de mediação da imaginação, uma ligação entre aquilo que é a uma
forma radical de pensar ou agir: a representação da diferença, portanto, uma ferramenta
política, um mapeamento das possibilidades e dos limites históricos, importante em um
contexto no qual a própria concepção de alternativas está problematizada ou impedida.
Além das características gerais da Utopia, se fez importante estabelecer àquelas
específicas para as utopias literárias, que são nosso objeto de estudo. Falamos
igualmente sobre a Distopia, e suas categorias, além de apresentar uma conceituação
de suas vertentes críticas. Nossa tese foi que as obras de Piercy abrem espaço para o
pensamento autorreflexivo de alternativas em uma época de crise política e histórica.
Elas assim o fizeram na época em que foram escritas e ainda o fazem nos dias de hoje.
Guardadas as proporções dos respectivos momentos históricos, as obras representam
uma recuperação de aspectos relevantes do passado e um salto para o futuro, na sua
mistura de desejos e medos, utopia e distopia. O próximo movimento da pesquisa foi a
de explicitar os conceitos de história trazidos pelos romances. Trata-se de uma
constante luta contra o apagamento e repressão dos momentos explosivos da História:
tanto memória e história são sociais e coletivas quanto o esquecimento e o apagamento
da história permeiam a sociedade contemporânea e têm motivações políticas.
Finalmente houve uma análise da violência. Fizemos um levantamento de instâncias
subjetivas, simbólicas e objetivas dela, analisando episódios do romance que
diretamente questionavam as questões da violência. Depois, estudamos as cenas de
fechamento dos romances e a forma como a violência passa a ser ressignificada: a
defesa se torna um ataque e tal ataque está relacionado a um sacrifício. E o ato
individual dos sujeitos é colocado em uma perspectiva coletiva pelas forças do romance,
um passo, pequeno, mas prospectivo, na luta por uma alteridade radical.
This thesis aimed at coping with three general concepts within the work of Marge Piercy.
Firstly, we introduced some facts about the author’s life, her alignments and how she
engaged in important issues of her historic moment. Two of her novels Woman on the
Edge of Time and He, She and It materialize a series of themes and questions, with their
symbolic solutions and contradictions, which we tried to indicate and comment on. The
first important aspect of our discussion was the definition of Utopia, its formal
characteristics, content or function. Ideas like “social dreaming” and “education of desire”
were bases for our analyses. In addition to that, Fredric Jameson and his idea of Utopia
as neutralization was essential to demonstrating our incapacity to imagine the future. We
defined Utopia would be a mediation of imagination, a link between what is and a radical
new form of thinking or acting: a representation of difference as well as a political tool, a
mapping of possibilities and historical limits, important in a context when even the
conception of alternatives are damaged or neutralized. Also, it was important to establish
more specific characteristics to literary utopia, which are our object, and we presented
Dystopia, its categories and their criticism. Our thesis was that Piercy’s works enable us
to the self-reflexive thinking of alternatives in a time of political and historical crises, both
when they were written and now. Regarding their moments of production, they represent
a recovery of relevant aspects of the past and a projection into the future, in their mixture
of desires, fears, utopia and dystopia. The next step in the research was to explain the
conceptions of History within the novels. It showed us the constant fight against the
erasing and repression of explosive moments in History: memory and history are social
and collective and forgetting and erasing of History are pervasive in our society and have
political motivations. There was then an analysis of violence. We selected some
examples of subjective, symbolic and objective violence, studying the episodes in the
novels that questioned their uses. Finally, we looked to the closing of the novels and the
way violence comes to be resignified: defense becomes an attack and such attack is
related to a sacrifice. And an individual act of subjects is put into perspective by the
collective forces within the novels and are shown to be a small step, yet forward, in the
fight towards radical Otherness.
En este trabajo se ha intentado aclarar los tres conceptos generales dentro de la obra
de Marge Piercy. En primer lugar, presentamos algunos elementos de la vida de la
autora, sus alineaciones y como ella se involucra con los asuntos más importantes de
su momento histórico. Dos entre sus diversas novelas, Woman on the Edge of Time y
He, She and It materializan en sí mismas una serie de temas y cuestiones, con sus
soluciones simbólicas y contradicciones, que buscamos señalar y comentar. El primer
aspecto que se impuso para nuestra discusión fue la definición del concepto de Utopía,
en el que subrayamos algunas veces sus características formales, otras su contenido y,
alternativamente, su función. Las ideas como el “sueño social” y la “educación del
deseo”, han orientado nuestro análisis. Además, Fredric Jameson y su idea de Utopía,
como neutralización fue esencial, o sea, la demonstración de nuestra incapacidad de
imaginar el futuro. Hemos definido ser la utopía un modo de mediación de la
imaginación, un nexo entre aquello que es una forma radical de pensar o actuar: la
representación de la diferencia, y así, una herramienta política, un planeamiento de las
posibilidades y de los límites históricos, importante en un contexto en el cual la
concepción misma de alternativas está problematizada o impedida. Además de las
características generales de la Utopía, se hizo importante establecer aquellas que son
específicas para las utopías literarias, que son nuestro objeto de estudio. De igual modo
hablamos sobre la Distopía, y sus categorías, y también presentamos una
conceptuación de sus vertientes críticas. Nuestra tesis es que las obras de Piercy abren
espacio para el pensamiento auto-reflexivo de alternativas en una época de crisis
política e histórica. Así lo hicieron en la época en que fueron escritas y siguen haciéndolo
actualmente. Guardadas las proporciones de los respectivos momentos históricos, las
obras representan una recuperación de aspectos relevantes del pasado y un salto hacia
el futuro, en su mezcla de deseos y miedos, utopía y distopía. El movimiento siguiente
de la investigación fue explicar los conceptos de historia que nos traen esas novelas.
Se trata de una lucha constante para que no se borren o repriman los momentos
explosivos de la Historia: tanto la memoria como la historia son sociales y colectivas;
cuanto el olvido y la anulación de la historia se cuelan en medio de la sociedad
contemporánea y tienen motivaciones políticas. Por fin, se hizo un análisis de la
violencia. Sobre ella hicimos un examen de las instancias subjetivas, simbólicas y
objetivas, analizando episodios de la novela que directamente ponen en cuestión esa
temática. Después, estudiamos las escenas de cierre de las novelas y la manera como
la violencia pasa a ser resignificada: la defensa se vuelve ataque y éste se relaciona a
un sacrificio. Y la acción individual de los personajes es puesto bajo una perspectiva
colectiva por las fuerzas de la novela, un paso pequeño, pero prospectivo, en la lucha
por una alteridad radical.
Introdução……………………………………………………………………………… 1
Caminhos ……………………………………………………………………… 1
A autora e seus alinhamentos ………………………………………………… 3
Utopias e distopias: fagulhas de um cometa e fragmentos no céu ……… 13
Características textuais das utopias literárias ………………………………… 24
“E se, tomara que e se isso continuar” ……………………………………… 26
Os romances ……………………………………………………………………………29
Woman on the Edge of Time ………………………………………………… 29
He, She, and It ………………………………………………………………… 36
Os poderes do passado e os usos do futuro …………………………………… 49
Os capítulos …………………………………………………………………… 50
Capítulo 1 – “Me diga o que você mais deseja e eu te direi quem és”
Os romances e suas tradições …………………………………………… 53
“Você é uma utopista? Essa é uma caracterização que você
abraça?” ……………………………………………………………………… 70
“Não é como eu imaginava” – O futuro em Mattapoisett …… 73
“Você não está realmente aqui” …………………………………… 74
“Devemos nos esforçar para comunir” ………………………………76
“Comida boa, boa na boca e no estômago. Comida agradável” …82
“Sou Gildina 547-921-45-822-KBJ” – O Outro Futuro ………………… 85
“Esta paciente é um indivíduo mal ajustado” – O Outro Presente,
ou os Prontuários …………………………………………………………… 90
“Quando ela tinha sido feliz” – As Projeções para o Passado ………95
O esquema genérico de He, She and It ………………………………… 103
“Guerras Genéricas” – Uma Conclusão Preliminar ………………… 111
Capítulo 2 – “Dos que estão agora mortos assim como daqueles que ainda vivem”
A proibição de um bem maior …………………………………………… 117
O conhecimento do passado: o conceito de História ……………… 119
“Um significado mais doce” …………………………………… 122
“Vocês mudam de nome na hora que quiserem??” ……… 130
“Para elogiar a história que leva até nós” …………………… 137
“Mas ele tinha errado”: o passado invadindo o presente … 140
“A história que estou prestes a deixar para você”: o romance histórico 144
“Não há história. George Washington e o Pato Donald são
contemporâneos” ………………………………………………………… 152
Capítulo 3 – “Essa é uma história real, isso é o que eu conheço sobre virtude, isso
é o que eu conheço de bondade nessa nossa época” ……………………… 162
Representações: dissecando a violência ……………………………… 163
“Abre a porta, sua piranha velha” ………………………………… 163
“Eles não podem fazer isso!” ……………………………………… 165
“These versions of violence // sometimes subtle, sometimes clear” …… 170
Reflexões: To be or not to be (violent)? …………………………………174
La mujer mala …………………………………………………………174
A terrorista e o soldado ………………………………………………183
Violência que liberta: o sacrifício …………………………………………191
A virada ……………………………………………………………… 191
A autodestruição …………………………………………………… 203
Epílogo – Para ser de uso ………………………………………………………… 208
BIBLIOGRAFIA …………………………………………………………………… 213
Introdução
Caminhos
Mesmo tendo sido escrito antes de eu ter nascido, o romance mobilizou uma resposta
psicológica durante a minha leitura. Normalmente, as obras literárias com que se trava
conhecimento agem em duas frentes: uma cognitiva, como uma lição a ser aprendida e
outra de fruição estética, relacionando a minha experiência com a da personagem1. O
que havia na forma do romance e/ou no seu conteúdo que me fez questionar, do mesmo
modo que a protagonista, que eu precisava escolher lutar por um futuro melhor?
1 No corrente trabalho, vamos utilizar de forma intercambiável a forma feminina ou masculina da palavra
personagem, associando o gênero àquele atribuído a cada referência, e utilizando o masculino ou o
feminino para ocorrências no plural, de forma intercambiável.
2
termina a primeira parte de Archaeologies com um excerto do seu romance Woman on
the Edge of Time. Tom Moylan dedica um dos seus capítulos no livro Demand the
Impossible, escrito em 1986, para abordar o mesmo romance. Chris Ferns em Narrating
Utopia, igualmente, dedica parte de um capítulo para o estudo da autora. E a lista se
estende por livros, artigos, teses e dissertações, que recortam um ou diversos aspectos
tratados em Woman on the Edge of Time e usam o romance como exemplo de uma
nova materialização – dentre outros produzidos no mesmo período – da tradição
utópica. Posteriormente, porém com menos ênfase, o mesmo aconteceria com seu
romance distópico He, She, and It.2 Um número especial do periódico Utopian Studies
foi dedicado ao romance e novamente Tom Moylan, agora em Scraps of the Untainted
Sky, dedica um capítulo ao estudo dessa obra.
Podemos concluir, ao observar a atenção crítica dada a tais romances, que eles
possuem algum tipo de apelo nos dias de hoje. Romances escritos décadas atrás ainda
podem provocar quais efeitos nos leitores de atualmente? Antes de responder a esse
questionamento, devemos nos perguntar: quem é Marge Piercy e que tipo de literatura
ela produz? Posteriormente, parece ser necessário apontar o tipo de tradição em que
ela se insere.
Acima de tudo, a preocupação que vai nortear nossa análise, ou seja, nossa bússola, é
como Marge Piercy e sua obra devem ser inseridas no contexto de debates sobre a
utopia nos dias de hoje. Quais são as vantagens e os desafios de comentar ou
reapropriar suas estratégias narrativas e seus temas? Tendo um corpo de crítica
considerável, precisamos pensar em quais aspectos foram pouco trabalhados,
especialmente no contexto brasileiro, e trazer um novo foco que seja motivador de
debates e energize os estudos utópicos.
(…) Take, // eat, we are each other’s // perfection, the wine of our
// mouths is sweet and heavy. // Soon enough comes the vinegar.
// The fruit is ripe for the taking // and we take. There is // no other
wisdom. Marge Piercy, “September afternoon at four o’clock”
O crítico norte-americano Michael Denning no seu livro The Cultural Front, explica as
origens, o desenvolvimento e as consequências da frente cultural americana. Segundo
2Diversos fatores podem ter contribuído para uma redução quantitativa nos estudos sobre He, She and It,
em comparação com Woman on the Edge of Time. Uma das minhas teorias está relacionada com o a queda
nos número dos estudos relacionados ao feminismo.
3
ele, entre os anos de 1930-1950 grande parte dos artistas, intelectuais e trabalhadores
estavam envolvidos, nem sempre voluntariamente, em tentar dar voz a aspectos do New
Deal ou silenciá-los, questionando, se opondo ou se aliando ao governo. Esse estudo
de Denning é uma análise cerrada dos diversos papéis e posições assumidos por
diversos grupos de norte-americanos (e imigrantes), além de uma análise das diversas
instituições culturais decorrentes dos eventos históricos em curso, suas contradições e
fraturas.3
Um fator chave a que o autor nos remete é a questão de que todos os artistas, mesmo
aqueles que buscavam se desvencilhar de uma posição política explícita, estavam
alinhados com certos princípios, que determinavam, em parte, as escolhas estéticas
que eles faziam. É na discussão de Raymond Williams sobre a diferença entre o
engajamento (commitment) e o alinhamento (alignment) dos escritores que ele baseia
esse conceito.4
3 Cf. DENNING, Michael. The Cultural Front. London, New York, Verso, 2010.
4
Cf. WILLIAMS, Raymond. “The writer: commitment and alignment”. Marxism Today, June 1980, pp. 22-25
(tradução nossa).
5 WILLIAMS, op. cit., p. 22.
6 WILLIAMS, op. cit., p. 25.
4
Segundo Williams, um processo não é consequência automática do outro. Em certo
momento, assim que nos tornamos (parcialmente) conscientes dos elementos que
formam a nossa individualidade, podemos “nos tornar conscientes de nossos próprios
alinhamentos reais”. Isso nos levaria a confirmá-los, ou em alguns casos, questioná-los
ou modificá-los. O autor explica a consequência de tal consciência:
Em alguns autores, seria possível verificar como esse processo de conhecer seus
alinhamentos acontece e como eles reagiram a eles. Entrevistas, ensaios ou
autobiografias servem de fonte para traçarmos alinhamentos dos autores e descobrir
como eles mesmos interpretam sua formação dentro dos limites de seu tempo. Além
disso, normalmente, suas obras ficcionais servem igualmente para materializar esse
processo, criando certo paralelismo entre autor e obra, posto que ao dar materialidade
ao engajamento (ou a falha de se atingir tal engajamento), o autor pode ser crítico, ou
ainda, pode encorajar leitores que ainda não tenham se engajado a fazê-lo.
7 Idem.
8 PIERCY, Marge. Parti-Colored Blocks for a Quilt. University of Michigan, 1982, p. 169 (tradução nossa).
5
consciente” em consonância com o “inconsciente político” presente em todas as formas
de comunicação humana.9
Assim, poderemos ler os romances escritos por Marge Piercy como uma reflexão sobre
seu próprio movimento: da inconsciência dos alinhamentos na direção de um
engajamento radical. Para tanto, o primeiro passo que daremos é o de entender o
contexto de alinhamentos de Piercy. Em seguida, como ela se torna “socialmente
consciente” de suas condições sócio-históricas e, ao perceber que o que ela está
pensando ou vendo “é o que muitas outras pessoas pensaram, (...) um monte de outras
pessoas já viu”, ela se sentirá confortável para fazer certas alianças ou escolhas.
A própria Marge Piercy dá conta de inscrever seus leitores dentro da sua formação como
escritora. Em diversas entrevistas e ensaios sobre seu processo artístico, além de seu
livro de memórias, a autora depõe sobre sua situação familiar e suas origens. Nascida
em 1936, ela conta que
passo que será determinante em sua obra posterior He, She and It. Ainda assim, ao construir em Woman
on the Edge of Time sua comunidade utópica chamada Mattapoisett, Piercy enfatiza que mesmo em uma
sociedade sem classes, uma identidade étnica é muito importante. Cf. PIERCY, Marge. Woman on the Edge
of Time, New York/London: Women’s Press, 2001 [1976], p.103 (tradução nossa).
6
mesclado a um racismo nada velado, precisamos levar em conta que as pressões
étnicas eram importantes, visto o peso que elas exerciam na cultura em geral, já que tal
cultura era permeada pelas “exigências conflituosas entre a autonomia étnica e o
universalismo da classe trabalhadora”.12
Participativa na escola, Piercy fez parte de vários comitês para promover melhorias, até
que ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de Michigan. Ainda assim, teve
de trabalhar em diversos empregos para poder complementar sua bolsa.13 O mais
relevante em sua juventude, nos anos 1950, foram as impressões sobre suas próprias
experiências de interação social. Ela conta que “[se] sentia estar errada em forma,
tamanho, sexo, volume da voz, classe e coloração emocional”.14 Nem mesmo como
uma aspirante a escritora ela se sentia pertencendo a um corpo coletivo e social, o que
com certeza diminuiria sua sensação de solidão. O que acontecia era sua percepção de
um novo desajuste, visto que “tudo que [a] emocionava logo de cara (Whitman,
Dickinson) acabava sendo considerado déclassé ou irrelevante para o mainstream, para
a tradição.”15 Ela resume esse período de sua vida com a seguinte frase: “eu não
conseguia fazer conexões”16.
7
Preocupava-me com os problemas das mulheres antes mesmo
que pudesse entendê-los. Por muito tempo, me faltava
vocabulário. Eu era alguma coisa, mas o que essa coisa era, eu
não sabia.17
Toda essa dificuldade de expressão está presente, por exemplo, no seu romance
Woman on the Edge of Time. A protagonista, Connie Ramos, sente-se igualmente
“alienada”, “louca” e “limitada”, seja em sua própria fala, seja nos comentários do
narrador onisciente. Sua dificuldade em se fazer compreendida é amplificada pela falta
de condições para que, em seu presente – estando encarcerada forçadamente num
hospício, acusada de um ato que não realizou –, alguém se disponha a escutá-la.
O que falta para Connie, nos anos 1970, é a habilidade que Marge Piercy adquiriu na
experiência dos movimentos sociais dos anos anteriores: ferramentas que a façam se
ligar com outras pessoas que compartilham as mesmas preocupações e são assoladas
por problemas similares. A autora nomeia tais ferramentas: o marxismo, o anarquismo
e o feminismo. Em suas palavras, “[o] que eu acho realmente essencial como poeta e
romancista é continuar a extrair do marxismo um senso de classe.” 18
A partir do esquema que já apresentamos, essa questão encontra-se não mais no plano
dos alinhamentos inconscientes, mas faz parte do “tornar-se consciente” deles. Porém,
os anos 1970 foram uma época de transição entre grandes ideologias: de um lado, ainda
sobravam resquícios do binarismo da Guerra Fria, do Eles versus Nós, que iriam
(in)formar a Nova Direita da década seguinte. De outro lado, com as crises econômicas
da União Soviética, já se anunciava o lema do ideólogo Francis Fukuyama do dito “fim
da história”. Assim, defrontar-se com a questão de classes, chamada explicitamente
dessa maneira, já era se posicionar contra o discurso hegemônico do fim da luta de
classes (que implica que uma delas saiu vitoriosa) e exige que o produtor cultural se
posicione dentro de tal luta.
17 Ibdem, p. 143. Apesar de todos os seus romances trazerem questões relevantes sobre seu período de
militância, dois em particular, além de seu conjunto de poemas, vão se destacar: Dance the Eagle to Sleep
(1970) e Vida (1980). O primeiro é uma ficção especulativa na qual os estudantes dos Estados Unidos
constroem comunidades baseadas em um misto de valores dos indígenas norte-americanos e dos
estudantes da SDS (Students for a Democratic Society). Há também uma rejeição e resistência ao
consumismo e à alienação. O segundo romance conta a história da protagonista Vida Asch, uma fugitiva
política e sua vida no submundo.
18 Ibdem, p.129.
8
tanto os poderes que são e os pós-modernistas pintam o
presente como “nossa única eternidade”. Admite-se, há
diferenças entre as histórias que contam. Enquanto os primeiros
promovem uma grande narrativa que anuncia que chegamos ao
fim da história e “prometem” esperança na forma de “progresso”
a ser caracterizado pelo crescimento e expansão, os segundos
proclamam que estamos “libertos” das grandes narrativas, que
nos encontramos num estágio de pós-história, e rejeitando as
imagens de continuidade e de progresso, as correntes pós-
modernas oferecem pouca ou nenhuma esperança.19
O que ambas correntes negam, continua Kaye, é a ação política e luta para a mudança
da presente situação. Em vez da negação das grandes narrativas, da afirmação da
impossibilidade de existência delas, o que se propõe é a construção de uma nova
grande narrativa, por meio de agentes políticos e críticos sociais, que nas palavras do
historiador, devem invocar “os poderes do passado – perspectiva, crítica, consciência,
recordação (remembrance) e imaginação.”20
Marge Piercy parece ser um desses agentes aos quais Kaye se refere. Ao se colocar
contra os discursos tradicionais e utilizar os poderes do passado para “compreender e
pensar o presente e ajudar a mapear as novas direções para o futuro”, a autora ilumina
em sua obra exatamente tais características que relacionam o passado ao presente e
ao futuro.
Certamente, a obra de Piercy está permeada por uma série de contradições, “falhas”,
resoluções simbólicas problemáticas ou impossíveis no âmbito prático. Como um sujeito
do capitalismo tardio, a autora sofre uma série de pressões e não tem controle total dos
conteúdos que formaliza. Portanto, se vamos analisar criticamente sua obra, não
apenas seu engajamento consciente deve ser levado em consideração, mas também o
inconsciente político, as limitações presentes em sua estética.
19 KAYE, Harvey. The Powers of the Past: Reflections on the Crisis of History. S/L: Harvester Wheatsheaf,
1991, p.147
20 KAYE, Harvey. op. cit. p. 154
9
movimentos de então “tendiam a uma vasta transformação da subjetividade e da
natureza, da sensibilidade, da imaginação e da razão”.21 Podemos encontrar
consequências de tais transformações no romance, não na realidade primeira das
personagens, mas em seus “sonhos” ou “aspirações”. Esse detalhe é revelador do que
o próprio Marcuse aponta em meados da década de 1970: “o movimento [emancipatório]
encontra-se encapsulado, isolado e na defensiva”.22
Isso se verifica na próxima década, os anos 1980, quando Margaret Thatcher proclama
que “não há alternativa”. Tal bordão se mantém sendo repetido pelas gerações
seguintes, principalmente após a derrota do socialismo soviético. Esse processo
histórico gera um impacto na produção da autora e dos seus contemporâneos. Há uma
guinada de um impulso abertamente utópico para um estado de distopia.
A forma como Piercy analisa seu presente – colocando em contraponto diversas visões
de futuro e apontando para o passado, para momentos em que se pôde vislumbrar
algum tipo de justiça – prova que seria possível obter algum tipo de positividade em
meio a uma “existência danificada”.23 É esse impulso que nos chama a atenção:
entender como se pode figurar uma fantasia que transcende a realização individual, se
colocando no âmbito do coletivo. Ao manter desperto o dinamismo das relações sociais
e sua humanização, mediado por mudanças profundas na subjetividade e na forma de
organização da sociedade, o sentimento utópico parece imprimir no leitor um certo
ressentimento com o status quo, e um confronto de suas crenças no “radicalmente
Outro”. Esse radicalmente Outro não surge necessariamente a partir do que não existe,
mas, nas palavras de uma personagem de Woman on the Edge of Time, é uma
reorganização: “levou muito tempo para juntarmos o que era bom antigamente com o
que é bom agora para um bem maior”24. Recordação (remembrance) é um dos
elementos que Harvey Kaye elenca como necessários para a formação de um cidadão
crítico e ela está fortemente ligada às formulações teóricas de, por exemplo, Walter
a partir da vida danificada (Reflexionen aus dem beschädigten Leben) do livro Minima Moralia, de Theodor
ADORNO. Ele está relacionado com questões de alienação, da desumanização da existência mediante a
mercantilização da vida.
24 Woman on the Edge of Time. p. 71. No original: “it has taken a long time to put the old good with the new
Além disso, nos dias de hoje, após uma nova organização do sistema de relações
sociais, em um mercado mundial (a chamada globalização), o que se observa é que o
capitalismo parece não ter inimigos:
25 Cf. especialmente BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o Conceito de História” e MARCUSE, Herbert Eros
e Civilização e o comentário sobre esses dois teóricos e suas visões de memória feita por Fredric Jameson
em Marxism and Form.
26 JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future. p. xii (nosso grifo)
27 HOBSBAWM, Eric. “As décadas da crise” In A Era dos Extremos. p. 393
11
histórico de turbulência política, dissensão e violência sem igual
na história americana desde a Guerra Civil.28
Assim, o movimento hoje de olhar ao passado dá sinal de uma busca por entender as
condições materiais e de possibilidade para a imaginação que aceitam a luta e a
mudança como possíveis e desejáveis, e como elas podem ser alcançadas nos dias de
hoje. Afinal,
Os anos 1970 foram uma época extremamente intensa, cheia de crises e recessões,
mas na qual houve um florescimento de utopias literárias. Autores como Joana Russ,
Samuel Delany, Ursula Le Guin, Suzy Charnas também estavam publicando obras
complexas, que dialogavam entre si, dando conta de conteúdos parecidos. Porém, como
afirma Moylan,
Moylan, portanto, inscreve Piercy dentro de uma tradição, mas a diferencia dos outros
autores. O termo que ele desenvolve é o das utopias críticas. Sua tese é que a visão
utópica dos autores dessa década se diferencia das utopias clássicas, tanto em
aspectos formais quanto de conteúdo.
Quando fala de outro romance da autora com traços similares a Woman, Moylan remete
a termos parecidos, numa comparação de diversos autores que ele estuda em seus
escritos:
28 GOLDSTEIN, Robert. Political Repression in Modern America: from 1870 to 1976. p. 429 (tradução nossa)
29 MOYLAN, Scraps of the Untainted Sky. New York/London: Westview, 2000 p.275
30 MOYLAN, Tom. Demand the Impossible. New York/London: Meuthen, 1986 p. 122
12
Com He, She and It, publicado nos Estados Unidos em 1991 e
na Inglaterra como Body of Glass, em 1992, Marge Piercy se
junta a [Kim Stanley] Robinson e antecipa [Octavia] Butler na sua
distopia crítica de negação das realidades sociais dos anos 1980
e começo da década de 1990, mas ao fazê-lo, vai além do foco
de Robinson numa estrutura de sentimento e na formação
cultural alternativa de Butler.31
Porém, nesse momento parece se fazer necessário explicarmos alguns dos termos que
foram utilizados: qual seria a diferença entre o impulso utópico e utopias literárias? O
que diferencia uma utopia tradicional de uma utopia crítica, e mais além, como o que foi
chamado de distopia crítica se posiciona com relação a elas?
Criado como um neologismo a partir do grego, o não lugar, ou o bom lugar (eu-topia,
mesma pronúncia) foi também um local de contestação. Em diversos contextos
históricos, o termo se referia a um plano de sociedade, uma planta ou planejamento.
Em nossa época, a ideia de utopia tem sido largamente discutida. Se, por muitas
décadas, a palavra foi associada a significados negativos, como o de sonho irrealizável,
escapismo da realidade, o que vemos em diversas frentes é uma preocupação em
recuperar um sentido positivo para a utopia, tanto como conceito filosófico e político
quanto como gênero literário.
Um dos marcos mais importantes da busca por uma definição do que seria a utopia foi
publicado em 2000. Trata-se do já citado Scraps of the Untainted Sky (Destroços do
Céu Imaculado, sem tradução para o português) de Tom Moylan, pesquisador
atualmente responsável pelo Ralahine Center for Utopian Studies, na Universidade de
Limerick. Neste estudo especificamente, o autor faz um mapa historiográfico abrangente
dos estudos de ficção cientifica e da utopia nos últimos 50 anos, apresentando uma
vasta bibliografia e um poder de síntese invejável. Ainda que tente evitar simplificações
excessivas, seu impulso didático exigiria maiores mediações em textos mais complexos,
o que as condições editoriais talvez não tenham permitido.
14
influenciaram os estudiosos das décadas seguintes, seja na tentativa de interpretar suas
ideias, seja para debater o conceito.
Nomes como Northrop Frye, Arthur Lewis, Glenn Negley, J. Max Patrick, Judith Shklar
e Frank E. Manuel se destacaram ao oferecer cursos sobre utopianismo ou escrever
obras como The Quest for Utopia (Negley and Patrick,1952), Utopia and its Enemies
(Kateb, 1963) and Utopian Thought in the Western World (Frank and Fritzie Manuel,
1979). Essas e muitas outras obras formam o corpo de estudos utópicos. Na metade
dos anos 1970, já havia uma tradição interdisciplinar forte de periódicos e o
estabelecimento das sociedades de Estudos Utópicos.33
Moylan realiza um recorte de perspectiva, ao selecionar uma série de ensaios que iriam
buscar uma definição, ou um paradigma crítico, para a utopia em suas diversas
manifestações. Vamos seguir sua linha de raciocínio que formou e reflete muito nosso
alinhamento com relação aos estudos utópicos.
O ponto mais importante de seu texto é a dupla operação das obras ficcionais utópicas,
com um movimento negativo que “reflete o descontentamento popular” ao “apontar um
espelho para a sociedade contemporânea e criticá-la” e outro movimento,
temporariamente positivo, que serve como “um mecanismo para testar hipóteses.”34
Mais adiante, Sargent defende que o pensamento utópico não agiria como o
pensamento racional, mas num outro plano, o da imaginação, como “uma forma de
atividade fictícia”. Para dar mais consistência histórica ao seu estudo, o crítico remete
ao trabalho de Frederik Polak que afirma ser o utopianismo necessário para o
desenvolvimento humano:
33 Cf. NEGLEY, Glenn; PATRICK, J. Max. The Quest for Utopia: An Anthology of Imaginary Societies. New
York: H. Schuman, 1952. / KATEB, George. Utopia and Its Enemies. New York: Free of Glencoe, 1963. /
MANUEL, Frank Edward; MANUEL, Fritzie Prigohzy. Utopian Thought in the Western World. Cambridge,
MA: Belknap, 1979.
34 SARGENT, Lyman Tower. Three faces of Utopianism. p. 227
15
que é sonhar ou morrer, ameaçando condenar assim toda
sociedade ocidental consigo.35
Em outro ensaio, Sargent vai falar mais a respeito de “Utopia – a problem of definition”
(Utopia – um problema de definição). Publicado em 1975, ele discute a diferença entre
u-topias, ou não-lugares, as eu-topias, ou bons lugares e dis-topias, ou lugares ruins.
Estabelece ainda uma diferença entre essas e as anti-Utopias, que são o conjunto de
trabalhos, ficcionais ou não, que se colocam diretamente contra a Utopia e o
pensamento utópico. Ainda, explica que a questão da topia é importante: Moylan diz
que o ensaio defende que a obrigatoriedade da criação de um espaço social é o que
conecta Utopia com a história. Para Sargent, portanto, “mesmo que em lugar algum
(nowhere), ela prescinde de uma localização.”36 Por ser um exercício imaginativo de
intervenção na realidade histórica, o pensamento utópico é uma “força social”, cuja
potencialidade – ao imaginar uma sociedade com riqueza de detalhes – é sua
capacidade de “gerar representações (ainda que indiretas, mediadas e estranhadas) do
momento histórico de forma detalhada, abrangente, ou seja, totalizante.”37
35 Polak, Frederik. The Images of the Future: Enlightening the Past, Orientating the Present, Forecasting the
Future. apud Sargent, Lyman. “Three Faces of Utopianism” Minnesota Review 7.3 (1967), p. 222–230
36 SARGENT, Lyman Tower. Utopia – a problem of Definition. In: Extrapolation, 16.2 (Spring, 1975) p. 138
37 MOYLAN, Scraps. p.73
38 SARGENT, Lyman. The Three Faces of Utopianism Revisited. Utopian Studies 5 (1):1 - 37 (1994), p.4
16
um Apelo). Dele podemos identificar três importantes desdobramentos: o autor afirma
que em qualquer uma das manifestações, “utopias são artefatos verbais antes de serem
quaisquer outras coisas”. Portanto, mesmo quando práticas, elas têm uma origem
discursiva. Depois, ele elenca diversas definições importantes de utopia: o “como se”
(as if) de Hans Vaihinger ou o “órgão metódico para o Novo” (methodical organ for the
New) de Ernst Bloch. Finalmente, em um movimento controverso, visto que Suvin parte
das manifestações presentes retrospectivamente para o passado, ele define a Utopia
como o “subgênero sociopolítico da ficção científica”39.
Tal caminho era inescapável para aqueles que desejavam estudar as manifestações
contemporâneas da utopia literária, visto que o gênero sequer havia se estabelecido
enquanto tal na época das utopias clássicas, produzidas nos séculos anteriores ao XX.
Nos anos 1970, os movimentos políticos de oposição formavam e informavam os
estudos de Utopia. Todos os autores citados foram importantes para que Moylan
desenvolvesse o conceito das “utopias críticas”.
39 As citações estão em SUVIN, Darko. “Defining the Literary Genre of Utopia: Some Historical Semantics,
Some Genalogy, a Proposal and a Plea” In: Metamorphoses of science fiction: on the poetics and history of
a literary genre. New Haven: Yale University Press, 1979.
17
forte argumento dos antiutópicos. Depois, porque as obras confrontavam as
contradições existentes na expressão utópica. Nas palavras de Moylan, as obras
Dessa forma, diferente das utopias tradicionais, a nova forma de utopia tinha em seu
centro a percepção das limitações da tradição utópica. No lugar da perfeição, a diferença
e imperfeição evidentes tornavam tais utopias ambíguas, porém, mais críveis, mais
dinâmicas. Seu foco passou da utopia como produto, para o processo de se atingir a
Utopia. Ao invés de abraçar a tradição utópica como tal, a reflexão estava exatamente
em criticar tal tradição, apontando suas falhas e se apropriando de seus sucessos.
Ela percebe que, se por um lado, uma das características da utopia é a da contenção,
engessando o processo de mudança social em “mundos de sonhos estáticos”, por outro,
é reconhecível a capacidade da utopia de servir de força motriz para a mudança e crítica
A autora nos lembra que a Utopia é um produto histórico, uma resposta socialmente
construída para “a construção igualmente social de uma lacuna entre as necessidades
e desejos geradas por uma sociedade específica e as satisfações disponíveis e
distribuídas por ela”43.
Sua contribuição para o campo tem sido essencial, e alguns estudiosos afirmam que a
Utopia é um de seus conceitos mestres.45 Fazendo um levantamento de textos
importantes sobre o conceito de utopia, teremos diversos ensaios e um livro, nos quais
ele fará uma espécie de síntese da sua reflexão sobre o assunto. Aqui não será a
oportunidade de apresentar com detalhes o percurso teórico de Jameson,
41 Idem, p. 85
42 Idem.
43 LEVITAS, Ruth. The Concept of Utopia. Syracuse: Syracuse UP, 1990, p. 181-2
44 Grande parte do texto que segue se baseia no artigo publicado em FURLANETTO, Elton. “O futuro como
ruptura: A crítica materislista-histórica de ficção científica e utopia. In: Remate de Males. Campinas-SP,
(32.2): pp. 307-319, Jul./Dez. 2012. Além disso, aproveito as observações de Peter FITTING em "The
Concept of Utopia in the Work of Fredric Jameson." Utopian Studies (1998): pp. 8-17 e Tom Moylan em
Scraps.
45
O’DONNELL, Liam A. Preserving the Possibility of the Impossible. In: Cosmos and History: The Journal
of Natural and Social Philosophy, vol. 3, no. 1, 2007. pp. 215-225. Disponível em:
<http://www.cosmosandhistory.org/index.php/journal/article/viewFile/62/123> Acessado em: 12-10-2012.
p.215
19
principalmente na sua mais recente obra sobre utopia, mas apenas trazer à luz alguns
dos textos que serviram de base às nossas reflexões sobre o conceito, o impulso, ou
principalmente, o gênero literário utópico.46
Porém, sua concepção de Utopia iria ser desvelada em um ensaio posterior: “Of Islands
and Trenches: Neutralization and the Production of the Utopian Discourse” de 1977. O
texto é um comentário sobre o livro de Louis Marin, Utopiques: Jeux d’Espaces. Aqui
Jameson estabelece os pontos que definem a Utopia, principalmente na chave do que
ele chama de neutralização. O autor enxerga o gênero da utopia, mais como uma práxis
do que como um modo de representação. Ele explica que a estrutura utópica é uma
“alusão ponto-a-ponto – geralmente na forma de inversões – que fazem a leitura da
utopia ser um processo de decifração alegórica”.48 O que acontece é que ao passo que
tais alusões são produzidas e reforçadas, a presença do “real” acaba por ameaçar a
Utopia, que está tentando neutralizar ou se diferenciar do mundo empírico. Em resumo,
Jameson aponta que enquanto a esquematização da Utopia tende a se afastar do
mundo como ele é, e negá-lo, a narrativa precisa aludir a ele e, nessa alusão, ela corre
o risco de ser cancelada. Assim, o gênero vai se basear em um tipo de exclusão que,
em última instância, reverte-se no esforço do discurso utópico de provar ou demonstrar
que a complicada e impossível exclusão é, paradoxalmente, “imaginável”. O ponto final
de Jameson é estabelecer a utopia, portanto, seguindo Marin, por sua negatividade:
46 Para uma análise mais aprofundada sobre a relação de Jameson com a utopia, é possível ler alguns dos
textos escritos para o periódico Utopian Studies de 1998, cuja temática era exatamente esta. Alguns desses
textos constam na minha bibliografia. Outra possibilidade é a leitura de resenhas críticas para Archaeologies
of the Future com as de Fitting, Cevasco ou O’Donnell.
47 JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future, p.280
48 JAMESON, Fredric. “Of Islands and Trenches”, 1977, p. 7
20
do céu noturno, nos deixando sozinhos novamente com esta
História49
Nos anos que seguiram, e em suas próximas publicações, Jameson seguiu comentando
as implicações da Utopia, porém de outra perspectiva: apontando para a cultura de
massa como um dos possíveis lócus da utopia, que se contrapunha dialeticamente à
ideologia. Trata-se do artigo “Reificação e Utopia na Cultura de Massa” (1979). Ele
chega a sintetizar a relação dialética entre esses dois elementos, quando afirma, em
1981 em The Political Unconscious que “toda ideologia no sentido mais estrito, incluindo
as formas mais exclusivas da consciência da classe dominante tanto quanto das classes
oprimidas ou oposicionistas, é em sua natureza, utópica.”50 De forma a resumir o
percurso conceitual e todos os elementos em jogo, Fitting afirma que Jameson
21
heterogêneo dos feudos e reinos em uma homogeneidade cartesiana, através do
processo dos cercamentos; no capitalismo de monopólio, o social excede o individual,
já que o império se distende em âmbito global e as contradições entre sujeito e
sociedade se acirram. Afinal, o terceiro momento, o capitalismo tardio, aparta o indivíduo
da experiência. Ele já não consegue dar conta da verdade do sistema; então, os
macroprocessos políticos e econômicos que estruturam a existência social e a vida
cotidiana se distanciam. Se a totalidade das relações se torna indisponível ao sujeito, “a
causa ausente [de tais relações]... nunca pode emergir na presença da percepção”53,
ou seja, no nível da percepção subjetiva, o funcionamento do sistema se torna tão
abstrato que, ainda que se perceba uma causa – a contradição que forma e subjaz o
sistema –, sua totalidade é individualmente irrepresentável.
Em suma, temos a tarefa de imaginar algo que ainda não existe, mas que faça
coerência, sendo a priori idealmente e racionalmente realizável, de tal forma a integrar
a experiência vivida no cotidiano ao horizonte utópico das possibilidades de mudança
(o transcendente), não apenas no âmbito individual, mas também, coletivo. Tais
fundamentações ligam esse ensaio ao debate maior a respeito da função, definição e
interpretação crítica da utopia e da arte em geral.
Finalmente, Jameson publicou outros ensaios, que foram reunidos no ano de 2005, com
a publicação do livro Archaeologies of the Future (Arqueologias do Futuro, sem tradução
para o português), cujo subtítulo revela suas preocupações centrais – A Desire Called
Utopia and Other Science Fictions (Um Desejo Chamado Utopia e Outras Ficções
Na ficção científica, tanto quanto na utopia, assim, o caráter utópico é maximizado pelas
possibilidades que o futuro apresenta como “ruptura”, não apenas no âmbito individual
ou tecnológico, mas no sentido da transcendência em direção a um novo paradigma de
existência.
É como aspecto de mediação da imaginação, uma ponte que liga aquilo que é a uma
forma radical de pensar ou agir, que a utopia parece ser um dos aspectos mais
55
CEVASCO, Maria Elisa. Archaeologies of the Future. In Situations: Project of the Radical Imagination. Vol
2, No 1 (2007). Disponível em: http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/situations/article/view/284/211. Acessado
em: 10-11-2011.
56 JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future. p. xii
23
importantes da contemporaneidade. Num contexto no qual a própria concepção de
alternativas está problematizada ou impedida, a representação da diferença, no seu
aspecto mais radical, funciona como uma ferramenta política, um mapeamento das
possibilidades e dos limites históricos.
Aos debates sobre a definição e função da utopia enquanto impulso, devemos somar a
importância de certas categorias formais da utopia enquanto gênero literário. Tais
características variam em diversos contextos históricos, e nos referimos, portanto, aos
que são relevantes para nossa análise dos romances, ou seja, às características das
utopias produzidas nos anos 1970. Primeiramente, Chris Ferns, estudioso da utopia,
nos informa que diversos críticos apontam para a existência, na narrativa, de um
“dialogismo inerente, até mesmo dialético”, o que provocaria nos leitores a participação
ativa no texto, tirando-os da posição passiva de meros observadores. Porém, ele
continua, se isso pode ser verdade sobre as utopias mais recentes, não é o que
acontecia com as utopias tradicionais, cuja forma de diálogos era uma estratégia retórica
para reforçar uma determinada visão de mundo.57 É com essa rigidez retórica que as
utopias modernas têm que dialogar: trata-se de uma das contradições implicadas no
gênero. Desse modo, interpelar os leitores a participar, a tomar uma posição diante das
escolhas propostas pela narrativa, não é necessariamente um dado, mas um ponto a
ser explorado em nossos estudos. Caso essa interpelação exista, se configure como um
diálogo verdadeiro, como ele pode ser usado de forma política?
Finalmente, outro aspecto a ser observado nos estudos das utopias está relacionado ao
que não é dito nas obras. Ainda que sejam ricas em detalhes, existem diversas lacunas.
A função de tais lacunas, segundo Ferns aponta, seria que no gênero utópico
“comprometido como está com a coerência e a ordem mais perfeitas do que aquilo que
existe na realidade, [as] incoerências e inconsistências são especialmente instrutivas”.58
O didatismo não se restringe apenas à representação das possibilidades inexploradas
e desdobramentos descritos. O leitor deve perceber que o autor ou a autora tiveram que
fazer uma série de escolhas do que incluir, e por mais abrangentes que sejam, é
impossível que se refiram a todos os níveis da existência social. O que é deixado de
lado e não reformado? Para além do que é diferente, quais são as semelhanças ou o
Outra característica das utopias contemporâneas jaz no fato de que a maior parte delas
assume a forma da ficção científica. Diferente das utopias tradicionais, que construíam
locais distantes onde os ideais utópicos floresciam, as novas obras vão realizar um
deslocamento, não apenas espacial, mas também temporal. Existe uma projeção para
o futuro, segundo as convenções do próprio gênero, mas por que o futuro?
25
O presente, nas palavras de Jameson,
Não se busca, portanto, uma forma perfeita de representar o futuro, mas os diversos
modos de apresentar futuros transformam nosso presente em um passado determinado,
antecipando algo indefinível que virá.
A própria autora reconhece que ela precisa recorrer a diferentes gêneros, com regras
próprias e desenvolvimentos históricos diversos, ainda que integrados. Segundo Piercy,
“Isaac Asimov tinha dito que toda ficção científica se resume a três categorias: “e se”
(what if), “tomara que” (if only) e “se isso continuar” (if this goes on). A maior parte de
Woman é “tomara que”, e a maior parte de He, She and It é “se isso continuar.”63 De
uma maneira didática, ela está estabelecendo as diferenças entre a utopia e a distopia.
62Idem, p. 287
63PIERCY, Marge. “Telling stories about stories”. Utopian Studies. 1994. A autora volta a afirmar isso na
entrevista feita por mim: “There is no silence: an Interview with Marge Piercy”.
26
O gênero da distopia foi um dos que mais floresceu no século XX. Sua definição,
entretanto, sofreu um sério revés, uma vez que, durante muito tempo e para diversos
autores, distopia era apenas um sinônimo para a antiutopia. Foi apenas no final dos
anos 1960 que, novamente com Sargent, passaríamos a ter uma distinção mais
apropriada entre essas duas categorias. Se fôssemos colocar dois termos em oposição,
teríamos que pensar na Antiutopia como o contrário da Utopia: as obras antiutópicas
criticam abertamente os ideais utópicos, ou alguma representação utópica específica,
ou simplesmente colocam o presente e o status quo como o ápice do progresso e,
portanto, o “fim da história”. Já as distopias, vão apresentar um mundo
“consideravelmente pior que aquele onde o leitor vive”; porém, tais textos negociam com
os dois termos absolutos no continuum entre Utopia e Antiutopia, nos termos de Moylan,
e se aproximam de um ou de outro tanto mais quanto convidam ou impedem a presença
da esperança.
Moylan aponta que outro dos problemas dos estudos das distopias jaz no fato de que o
mencionado continuum era apagado pela preferência por uma “simples oposição binária
entre Utopia e Antiutopia.”64 Porém, isso não se sustenta, visto que há textos que não
abraçam o status quo, mas apresentam seus piores pesadelos, e portanto, não
poderiam ser classificados como antiutópicos. Esses apresentariam sociedades não
planejadas ou planejadas para serem terríveis. As distopias, por outro lado, são uma
utopia, mas uma que deu errado.
Desse modo, existem três posições possíveis que um texto distópico pode assumir:
manter um “horizonte de esperança”, reter uma disposição antiutópica que impede
possibilidades de transformação ou negociar posições mais estrategicamente
ambíguas, localizadas em algum ponto entre os dois extremos. O que não se nega é a
natureza política do gênero, pois, para mostrar uma sociedade pior, é necessário fazer
algum juízo, logo, tomar uma posição. Uma alternativa seria igualar distopia ao conceito
A distopia possui uma série de características formais importantes, que servirão à nossa
análise: uma é o sentido de advertência ou o chamado “apelo do medo”, o outro é o
aspecto narrativo das distopias.
Tanto Moylan quanto McAlear apontam para a questão da advertência e apelo do medo.
O primeiro comenta, citando Sargent, que a questão da advertência “implica que a
escolha, e consequentemente a esperança, ainda são possíveis”67. Seria, portanto, a
quantidade de esperança encontrada na narrativa que a fará se afastar da Antiutopia.
Já o segundo acredita que o medo, e não a esperança, deve ser a categoria central,
visto que o medo servirá como elemento de estranhamento: o leitor deve identificar a
origem do horror que é apresentado e, ao mesmo tempo, sentir-se capaz de resistir a
ele. O medo “ameaça e concede poder”. Tal poder encontra-se na abertura de uma
discussão para se deliberar sobre o objeto do medo, na sugestão que alguma coisa
deve ser feita.
Outro elemento formal das distopias, que as diferenciam das utopias tradicionais, é a
importância dada aos elementos narrativos. Enquanto uma das forças da utopia está
em ser um gênero não narrativo, a distopia baseia sua forma num conflito que se
desenvolve nos meandros de um enredo baseado nas ações de um personagem. Em
vez do deslocamento da viagem, de um visitante, exterior ao mundo imaginado, o
enredo mostra um personagem já inserido no mundo imaginado, fazendo parte dele e o
movimento do enredo estará numa “construção de uma narrativa [da ordem
hegemônica] e uma contranarrativa [de resistência]”69. Tal estratégia de contraposição
66
Tal é a estratégia adotada por McAlear.
67 MOYLAN, Tom. Scraps, p. 136
68 MCALEAR, Dystopian, p. 27
69 BACCOLINI, Raffaella. “Not in the Womb” apud MOYLAN, Tom. Scraps, p. 148
28
fará com que a posição do personagem central seja alterada, acirrando a sua alienação
e consciência das contradições daquela sociedade, até culminar em um evento, que
Moylan chama de climático (de clímax), que pode resultar na possível desobediência
civil, resistência, fuga ou mesmo mudança daquela sociedade.
Ambos elementos, o apelo do medo e a forma narrativa das distopias serão de extrema
importância para as nossas análises que seguirão.
Tendo em vista todos os desenvolvimentos dos estudos utópicos, podemos afirmar que
os dois romances de Marge Piercy selecionados lançam mão – de modos diversos –
dos gêneros da utopia e distopia para transmitir sua mensagem. É basicamente pelo
tratamento diverso dado ao impulso utópico, devido às diferentes condições históricas
em que as obras foram pensadas e produzidas, que nos propomos a trabalhar. A partir
dos temas e da forma materializados em Woman on the Edge of Time e He, She and It,
poderemos discutir os altos e baixos da atualidade de Marge Piercy no contexto político
e artístico do início do século XXI.
Os romances
70
Woman on the Edge of Time, p. 68. No original: “Rocket ships, skyscrapers into the stratosphere, an
underground mole world miles deep, glass domes over everything? She was reluctant to see this world.
Voices far, near, laughter, birds, a lot of birds, somewhere a dog barked. Was that – yes, a rooster crowing
at midday. That pried her eyes open. A rooster?”
29
contemporâneos da autora foram todos transcendidos ou superados: ecologia, racismo,
homofobia, imperialismo, consumismo, entre outros, foram de alguma forma resolvidos
socialmente. Porém, longe de ser um mundo perfeito, nem todos os problemas sociais
foram solucionados: a guerra, por exemplo, ainda existe.
O romance explicita, pelo diálogo com as pessoas que Connie vem a conhecer, e por
meio de um episódio no qual a personagem “erra” ao se projetar, que o futuro que ela
visita é apenas um entre diversos futuros possíveis.
Tal episódio é descrito no capítulo 15 do romance, no qual Connie está tendo dificuldade
de alcançar Mattapoisett. Durante uma tentativa de se lançar para o futuro, a
protagonista acaba se materializando em um lugar estranho. Ela se descobre em um
quarto, ou cômodo pequeno, na companhia de uma mulher chamada Gildina 547-921-
45-822-KBJ. Então já experiente em viagens para o futuro, Connie se sente confortável
para questionar Gildina a respeito de tudo, o que nos concede uma breve visão sobre a
sociedade na qual aquela estranha personagem está inserida. Porém, essa segunda
alternativa de futuro a que o romance dá voz não é, em nenhuma medida, um lugar
acolhedor: a tecnocracia rege a vida de pessoas plastificando-as e metalizando-as. O
Estado não existe, e as pessoas pertencem às “multis” (multinacionais). A prostituição
passa a ser institucionalizada e as mulheres são super-sexualizadas e objetificadas, por
meio de contratos que as entregam aos homens por certo tempo. Seus corpos devem
passar por cirurgias cosméticas para se adequar a um padrão de tamanhos e até
mesmo cor de pele. O meio ambiente está degradado, e o conforto está em ambientes
condicionados e sem janelas. Todos são monitorados e qualquer comportamento
30
anômalo é punido. Se a pessoa não se ajusta ao sistema, a consequência é a de ser
levada forçadamente aos bancos de órgãos, que servem ao propósito de estender a
vida de uma elite rica que, por morar em plataformas espaciais, parece ser inatingível.
Há muitos outros detalhes sobre esse futuro, porém, devido ao fato de que Connie só
atinge tal tempo/lugar uma vez, de forma acidental e rápida, temos apenas um vislumbre
de como se organiza aquela sociedade. O contato de Connie com tal lugar termina
quando um policial androide tenta prendê-la e levá-la aos bancos de órgãos.
Como veremos adiante, a presença dos dois futuros é primordial para a inserção da
obra de Piercy dentro da tradição das utopias críticas. Antes de prosseguirmos, é
necessário colocar a personagem Connie em destaque para tentar entender quais são
seus alinhamentos, observando sua caracterização.
Vejamos como o trecho citado pode servir para ilustrar elementos da caracterização de
Connie. Tomamos conhecimento do nome da personagem principal por meio de seu
apelido. A utilização desse recurso aproxima o leitor dela ao promover um certo grau de
intimidade. Porém, o primeiro pensamento de Connie problematiza uma possível
71 Woman on the Edge of Time , pp. 9-10. No original: “Connie got up from her kitchen table and walked
slowly to the door. Either I saw him or I didn’t and I’m crazy for real this time (...) Her niece was screaming
in the hall. ‘Let me in! Hurry!’ ‘Momentito.’ Connie fumbled with the bolt, the police lock, finally swinging the
door wide. (…) ‘Qué pasa? Who did this?’ (...) ‘Hija mia, how would I have anything?’ Connie lifted her hands
to show them empty, always empty.”
31
confiabilidade na protagonista, quando ela se diz talvez estar “realmente louca”. Existe,
também, a presença de um “ele”, cujo referente não pode ser recuperado, portanto,
causa estranhamento. Ambas as estratégias narrativas servem para levantar
questionamentos, em vez de revelar detalhes, o que seria esperado de uma narrativa
realista tradicional.
Além disso, os diálogos são intermediados por expressões em espanhol. Desse modo,
a linguagem estabelece uma nova distinção entre leitor e personagem: se por um lado
a informalidade serve para aproximá-los, as já citadas características do discurso de
Connie provocam um distanciamento e a presença do idioma castelhano revela suas
origens – o contexto dos imigrantes latinos nos Estados Unidos (o que, dependendo do
leitor, também poderia causar um distanciamento social). No segundo capítulo do
romance, por meio de flashbacks, a personagem confirmará tal contexto, quando somos
apresentados à história de sua família72.
Ainda no trecho citado, temos a presença das diversas trancas. De acordo com o que
menciona o narrador, Connie demora em abrir a porta porque se atrapalha com a
“fechadura tetra e com a corrente de segurança”. Por que ela havia utilizado mais do
que um meio para certificar-se do fechamento da porta? Esses elementos discretos dos
primeiros parágrafos do romance parecem revelar um pouco sobre onde Connie estava
inserida. O excesso de protecionismo poderia estar justificado por um medo, fruto de
um ambiente no qual a violência é profusa e impõe limites físicos e psicológicos para a
personagem.
72
Segundo consta no capítulo mencionado, a mãe de Connie, Mariana, havia crescido e saído de
Namiquipa no México de onde migrou para o Texas com a família para trabalhar nas plantações. Ali ela
conheceu Jesús e teve três filho: Luis, Connie e Joe, seu irmão preferido que havia morrido ao sair da
prisão. Quando Connie tinha sete anos, eles se mudaram para Chicago.
32
Tal questão da violência, que pode ser inferida da passagem, soma-se a outros fatores
presentes em diversos trechos dos parágrafos iniciais, mas que não foram citados.
Ausência de calefação, por exemplo, quando Connie liga as bocas do fogão para
aquecer o ambiente ou o fato de ela afirmar ter apenas papel higiênico do banheiro
comunitário para limpar os ferimentos de Dolly são atitudes resumidas no simbólico
gesto de mostrar as mãos vazias, seguidas do comentário de reforço do narrador:
“sempre vazias”.
73
Woman on the Edge of Time, p. 26. No original: The social worker was giving her that human-to-cockroach
look. Most people hit kids. But if you were on welfare and on probation and the whole social-pidgeonholing
establishment had the right to trek regularly through your kitchen looking in the closets and under the bed
(…)
33
gesto das mãos vazias, tal movimento será essencial para posicionar a protagonista em
um determinado lugar social, seja pela assistente, seja por si mesma, visto que só temos
acesso ao comentário do narrador pelo ponto de vista da personagem: provavelmente,
a impressão é resultado do julgamento de Connie sobre a natureza do olhar da outra
personagem.
74 As referências deste parágrafo são, respectivamente, no original: “you don’t have to deal with these
animals” (p. 20), “being herded to and from the showers”, “like a dog”, “meat registered for the scales” (p.
19) e “she was human garbage carried to the dump” (p. 32).
75 Woman on the Edge of Time, p. 35. No original: “a training program that sounded like someone’s bright
idea for producing real cheap domestic labor without importing women from Haiti. (...) Cleaning some white
woman’s kitchen was about the last item on her list of what she’d do to survive”.
34
sociabilidade de trabalho ou encorajar sua inserção em algum grupo ou atividade
coletiva.
Connie chama a atenção para o fato de que as pessoas batem nos filhos. Esse é o
motivo de ela estar em liberdade condicional: em um acesso de tristeza pela perda do
parceiro amoroso, ela se entrega às drogas e bate na filha, Angelina, então com 5 anos
de idade. Ela reproduz aquela mesma violência da qual ela não consegue fugir nem
com as diversas trancas na porta. E as consequências são diversas: ela perde a guarda
da filha, é internada em uma instituição como pessoa violenta e carrega a culpa de não
poder exercer novamente a maternidade, nem com Angelina nem com outro possível
filho (já que em uma ida ao hospital eles realizam nela uma histerectomia
desnecessária).
Além dos aspectos do ser (ou estar), que dão conta da caracterização da personagem,
Connie também nos é apresentada pelas características do ter. Tal impressão é
reforçada quando o narrador resume a situação da protagonista com o seguinte excerto:
“ela mesma, com uma ficha policial e psiquiátrica, uma chicana gorda com trinta sete
76 Connie não conseguiu nem mesmo completar sua formação em uma faculdade comunitária (community
college), o que no contexto norte-americano serve como um indício de classe da personagem. Segundo
estudos sobre essa instituição de ensino, existe certo estigma acerca das community colleges: elas
reproduzem a cultura do privilégio por treinarem os alunos sem meios para trabalhar nas empresas
privadas, à custa de dinheiro público. Além disso, todas as relações afetivas em que Connie se envolve
acabam mal para ela, conforme nos mostram os flashbacks, e Connie acaba sozinha como a vemos no
início do romance.
35
anos de idade, sem marido ou filhos, sem as roupas certas, com uma bolsa de plástico
rasgada na lateral e remendada com fita isolante."77
Todas as coisas que importam para Connie, o mínimo para sua felicidade – uma figura
masculina, a guarda da filha Angelina e roupas decentes – são marcadas pela
preposição que indica a ausência: “sem”. Restam a ela apenas dois instrumentos pelos
quais ela é segregada e controlada, dados que a registram e limitam seu comportamento
de acordo com a norma – suas fichas psiquiátrica e policial. Novamente, esses
elementos servem para classificá-la (o establishment compartimentalizante) e
marginalizá-la. Em tempo, outro elemento que a constitui afirmativamente (“com”) é uma
mercadoria, um objeto. Porém, até tal objeto – sua bolsa, um símbolo majoritariamente
feminino – parece ter sido privado de um mínimo de estrutura: a rachadura e o remendo
com fita adesiva são sinais de uma forma de vida improvisada e emergencial. Alguém
com as características de Connie poderia, então, ser classificado como um dos “sujeitos
monetários sem dinheiro”, conceito de Robert Kurz78.
Concluímos, desse modo, que Connie está “no limiar” (on the edge), conforme enuncia
e anuncia o título do romance. Primeiramente, por ser mulher e sofrer as mazelas
impostas por um patriarcalismo milenar. Depois, por fazer parte de um determinado
grupo étnico, dos latinos, que possui uma história problemática nos Estados Unidos –
tanto que a própria personagem se considera num patamar superior que imigrantes do
Haiti. Além disso, sua posição dentro de uma classe de desprovidos – e a própria
dificuldade de ela se ver como membro de um coletivo, ou uma classe, estando então
“à margem” – é um dos assuntos centrais do romance e algo para o qual a autora chama
muito a atenção. Connie está alinhada com diversas ideologias, ainda que ela não as
perceba. Não há engajamento imediato ou consciência dos processos em que está
inserida. O enredo se desenvolverá a partir dessa sua posição inconsciente e isolada,
visto que ela determinará as relações de Connie com gama de personagens que ela virá
a encontrar e permitirá, em última instância, uma discussão sobre a consciência de
classe, assunto que retomaremos adiante.
77 Woman on the Edge of Time, p. 30. No original: “[h]erself with a police record and a psychiatric record, a
fat Chicana aged thirty-seven without a man, without her own child, without the right clothes, with her plastic
pocketbook cracked on the side and held together with tape”.
78 Cf. KURZ, Robert. O colapso da modernização – Da derrocada do socialismo de caserna à crise da
economia mundial. Tradução de Karen Elsabe Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
36
histórias há cinquenta anos. Os filhos crescem, e com eles as
narrativas, que vão dos desenhos pontilhados em movimento
até a escala completa de cores e matizes, em camadas
espessas como argamassa ou sangue. Algumas fábulas morais
pertencem ao jardim da infância, a época de ter medo do escuro,
de se aventurar fora de casa sem ir muito longe, contos
admonitórios escritos em cores primárias com giz de cera. Mas
outras narrativas estão sempre conosco. Recontamos a nós
mesmos cada uma delas, na meia idade, na velhice, diferente
toda vez, inchando-as como estalactites apontando para a terra,
mais pesadas a cada gota e seu fardo de rocha e minerais
secretamente dissolvidos, os muitos sais do planeta.79
Ainda que não seja uma continuação de Woman on the Edge of Time, diversos
elementos vão se repetir no romance He, She and It, escrito quase vinte anos depois,
em 1991. Em vez de uma utopia no futuro, visitada por alguém de outro tempo, a
personagem principal, Shira Shipman, é uma habitante de um futuro não tão distante,
no ano 2059, época em que a ação acontece.
Uma série de mudanças aconteceu no mundo. As mais visíveis estão ligadas à categoria
do espaço: a divisão sociopolítica em Estados-nações não existe mais. Quem governa
o mundo são as multinacionais, que criaram enclaves em diversas partes do globo.
Algumas corporações possuem plataformas espaciais, que se anunciam como novos
paraísos. Grande parte da população vive em áreas chamadas Glop, abreviatura de
megalópole: grandes regiões sem infraestrutura, violentas e dominadas por gangues.
Uma alternativa a esses lugares são as Cidades Livres, pequenas comunidades que
são independentes do controle das multinacionais porque possuem algum tipo de
produção que não pode pertencer a nenhuma “multi” em específico, já que todas
necessitam. No caso, a cidade ilustrada no romance é Tikva, no nordeste do que eram
os Estados Unidos.
Além dessas mudanças, sabemos que os enclaves são revestidos por domos, visto que
as condições atmosféricas, o efeito estufa e o empobrecimento da camada de ozônio
tornaram as condições de vida inviáveis ao ar livre. Animais verdadeiros e vegetação
79 He, She and It. p. 19. No original: “Once upon a time is how stories begin. Half artist, half scientist, I know
that much. A mother and a grandmother, I have been telling stories for fifty years. As the children grow, so
do the tales, from line drawings in motion to the full range of colors and shadings, layered thickly as plaster
or blood. Some moral tales belong to kindergarten, the age of being afraid of the dark, the age of venturing
from the house alone for a short distance, admonitory fables in primary crayons. But other tales are always
with us. We tell them to ourselves in midlife and in old age, different each time, accreting as stalactites press
toward earth, heavier with each drop and its burden of secret dissolved rock and minerals, the many salts
of the planet.”
37
são artigos preciosos. Diversas cidades nas regiões costeiras foram inundadas pela
subida do nível do mar.
A tecnologia deu saltos e as pessoas têm acesso à Net, uma rede de informação e de
comunicação. Além deles, há as Bases, redes privadas ligadas à Net, que servem para
armazenar informações e controlar toda a vida das comunidades. É possível que as
pessoas projetem suas consciências nesses ambientes virtuais por meio de pinos
acoplados ao seu cérebro.
O enredo principal segue a perspectiva de Shira Shipman, uma técnica de classe média
que mora no enclave da multi Yakamura-Stichen. Shira é casada com o também técnico
Josh Rigovin e ambos têm um filho, Ari. Na cena de abertura do romance, Shira
recentemente se separou do marido e está lutando pela guarda do filho. A empresa
estabelece que ela tenha a guarda minoritária e acaba transferindo Josh para uma de
suas plataformas espaciais, retirando dela seus direitos maternais. Com o afastamento
forçado do filho, ela se desestimula do trabalho na multinacional, referida no romance
como “multi”. Uma alternativa é retornar à sua cidade natal, Tikva, onde lhe foi oferecido
um trabalho.
Para voltar para casa, Shira precisa atravessar a Glop, e nesse caminho temos noção
de como é a vida naquele aglomerado humano. Seu destino é bastante diferente: Tikva
é uma cidade livre, cercada por um cobertor especial (wrap), que protege os cidadãos
das intempéries, como radiação e calor excessivos resultantes das mudanças
climáticas, ao invés dos domos. A cidade é um lugar mais rústico, arborizado e menos
tecnologicamente controlado. Ela funciona por meio de uma estrutura menos
hierarquizada do que os enclaves das multis. A cidade foi fundada por um grupo de
judeus, então a religião e os costumes dominantes seguem essa tradição. O marido de
Shira também era judeu, e seus pais haviam morrido no conflito histórico denominado
Guerra das Duas Semanas, que, segundo consta no romance, “um terrorista havia
começado ao lançar um dispositivo nuclear que apagou Jerusalém do mapa. Foi uma
conflagração de armas biológicas, químicas e nucleares, que tinha deixado os campos
38
de petróleo em chamas e destruído a região inteira”80. Tal região passou a ser conhecida
como a Zona Negra, representada por uma mancha preta nos mapas.
De volta à Tikva, Shira começa a trabalhar com Avram Stein, um dos cientistas mais
respeitados do seu tempo e pai do seu amor da juventude, Gadi. Porém, ela descobre
que Avram está desenvolvendo um projeto ilegal e proibido: ele construiu um ciborgue.
Segundo as leis estabelecidas, por mais que robôs e inteligências artificiais sejam
comuns, é vedada a possibilidade de construir robôs que se aproximem da forma
humana. O ciborgue Yod, décima letra do alfabeto hebraico, foi construído por Avram
com o objetivo de defender e proteger a cidade. Além de Avram, a avó de Shira, Malkah,
sabe da verdade e participou ativamente da programação do ser artificial. Assim, o
trabalho de Shira é a de estabelecer uma interface entre Yod e as outras pessoas, em
outras palavras, ela deve dar a ele instrumentos para se socializar e transcender seus
comportamentos como máquina pensante.
Enquanto realiza seu trabalho e passa a desenvolver uma amizade com Yod, Shira
pesquisa maneiras de reaver seu filho. Em certo ponto da narrativa, a mãe de Shira,
Riva, que ela mal conheceu, volta para Tikva. Ela vem junto com uma estranha mulher
chamada Nili. As duas personagens são importantes em diversos episódios chave da
narrativa. A mãe de Shira era uma pirata de informação: vivendo no submundo, ela
rouba códigos e fórmulas das corporações para distribuir na Net, para comunidades que
precisam daqueles conhecimentos. Descobrimos isso ao mesmo tempo que a
protagonista. Por esse motivo, ela é considerada uma terrorista pelas “multis”, mas uma
heroína pelos habitantes da Glop. Nili é uma personagem que inspira a curiosidade.
Fisicamente alterada, força e sentidos aumentados, ela se apresenta como uma “espiã
e batedora” da Zona Negra. Trata-se de uma comunidade secreta exclusivamente
feminina de sobrevivente dos eventos da Guerra das Duas Semanas. Segundo ela
conta, um grupo de mulheres palestinas e israelenses conseguiu sobreviver e através
de um método de reprodução in vitro e de algumas melhorias genéticas, organizaram
uma sociedade que por algumas décadas ficou isolada do resto do mundo.
Dois terços do romance são contados a partir da perspectiva de Shira Shipman. Por
meio de sua interação com os personagens secundários, percebemos uma linha de
desenvolvimento, ou conscientização dela. Para entender melhor tal processo, parece
ser necessário contextualizar os alinhamentos da protagonista.
40
Ela não deveria estar tão assustada quanto estava. Shira era
uma técnica como Josh, não uma trabalhadora diarista, ela tinha
direitos! Suas mãos estavam deixando manchas de suor nas
suas coxas. Esperava que o veredito fosse anunciado logo. Ela
tinha que ir buscar Ari em quarenta e cinco minutos na creche
para os técnicos nível-médio, que ficava a uns vinte minutos por
esteira do setor oficial. Ela não queria que ele ficasse esperando,
assustado. Tinha apenas dois anos e cinco meses e ela não
conseguia fazê-lo entender: Não se preocupe, a mamãe vai
chegar um pouquinho atrasada. Foi culpa dela, insistir assim no
divórcio em dezembro, pois desde então, Ari estava irrequieto e
Josh amargurado, furioso.81
Um segundo aspecto que pode ser inferido a partir do excerto é o desvelo que ela
demonstra com o filho Ari. Sua devoção está expressa na preocupação de que ele não
81 He, She and It, p. 4. No original: “She should not be as frightened as she was. She was a techie like Josh,
not a day laborer; she had rights. Her hands incubated damp patches on her thighs. She hoped their verdict
would be announced soon. She had to pick up Ari at the midlevel-tech day care center in forty-five minutes,
some twenty minutes’ glide from the official sector. She did not want him waiting, frightened. He was only
two years and five months, and she simply could not make him understand: Don’t worry, Mommy may be a
little late. It was her fault, insisting on the divorce in December, for ever since, Ari had been skittish; and
Josh bitter, furious.”
41
fique esperando e assustado. O espírito maternal de Shira vai ser um dos motores do
enredo. Será o filho a isca que a corporação usa para tentar conseguir o ciborgue. É na
tentativa de recuperá-lo que ela vai invadir tanto “a Base da Y-S” (a matriz virtual que
controla o enclave) quanto o domo, o espaço físico onde a multi se localiza.
82 A expressão utilizada foi “colocada de lado”. He, She and It, p. 121 No original, itálico nosso: “every
pregnancy outside the Glop was monitored genetically and developmentally. Thus the ability to conceive
and bear healthy children was both prized and viewed as somewhat primitive. That capacity, too, had set
Shira apart at Y-S.”
83 Essa é a tese de Kisten Shands em The Repair of the World.
42
opacidade das relações sociais que causam o sofrimento. O sentimento de desamparo
continua a ser traduzido como o senso de responsabilidade pessoal pelo fracasso.”84
Sua inabilidade de ascensão na hierarquia da empresa, por exemplo, é uma das causas
de tal desamparo. Além disso, um segundo motivo é o alinhamento de Shira como uma
mulher, a qual está submetida às estruturas patriarcais. Essa linha ideológica também
encoraja um tipo de culpa, presente na personagem: “faz-se com que as mulheres se
sintam culpadas ao experimentarem conflito – e em geral elas dissimulam a culpa como
depressão, inadequação, desamparo e outros sentimentos, ou negam a sua
existência.”85
borrowed from the Spanish Jews under the Inquisition who had pretended to be Christian to survive. Y-S
followed a form of revivalist Shinto, Shinto grafted with Christian practices such as baptism and confession.
Marranos in contemporary usage were Jews who worked for multis and went to church or mosque, paid lip
service and practiced Judaism secretly at home. All multis had their official religion as part of the corporate
culture, and all gruds had to go through the motions.”
43
que evoca o modelo germanístico e os ideais nazistas, e as pessoas passam por
cirurgias corretivas para se adequarem a esse modelo. A influência do Japão nessa
cultura corporativa parece estar na escolha pela religião, que é importante por diversos
aspectos.
Como aspecto cultural, a religião pode ser vista como um dos primeiros tipos de
“comunidade imaginada” humana. Isso nos é apresentado por Benedict Anderson em
seu livro Nação e Consciência Nacional. Segundo o autor, a religião foi um sistema
cultural precursor do nacionalismo. Seu ponto de argumentação é que as primeiras
formas de organização social criavam sistemas cosmicamente centrais, mediados por
uma linguagem sagrada e por um (ou mais) poder extraterreno. Em suas palavras, “a
realidade ontológica somente [era] apreensível por meio de um sistema único e
privilegiado de re(a)presentação”.87 Existiria assim uma verdade, que era reforçada pela
visão de infalibilidade do signo linguístico, se traduzindo em tradições, cerimônias e
rituais.
Num plano geral, podemos ter uma outra acepção de religião. Enquanto alguns a
entendem como um modo de pensamento, outros como um conjunto de práticas, há
aqueles que entendem a religião simplesmente como um impedimento ao pensamento
científico. Mais além, alguns enfatizam o aspecto compensatório da religião, como um
remédio necessário, porém ilusório, remetendo-nos à famosa comparação de Marx
entre religião e ópio.88 Dessa forma, “a religião é vista menos como um modo de
87 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, Ática,
1989, p. 23.
88 É importante frisar que existe muita controvérsia sobre o trecho de Marx e a forma como ele é citado.
Normalmente tirado de seu contexto, o foco da crítica está nas condições que tornam a religião uma forma
de alento necessária, tanto quanto seu caráter ilusório. O trecho completo seria: “A miséria religiosa é, de
um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do
povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do
povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição
que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da critica do vale de lágrimas que
a religião envolve numa auréola de santidade.” MARX, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito
de Hegel. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/index.htm
Último acesso: 10-02-2013
44
pensamento e mais como uma ausência de pensamento. Esse preconceito é refletido
no papel que se dá à religião na construção de mundos [imaginados]”89. Portanto,
sociedades ditas avançadas deverão ser seculares.
No âmbito da ficção científica e sua interface com a temática religiosa, dois autores vão
se contrapor a ela: Darko Suvin, em Metamorphoses of Science Fiction afirma que “toda
tentativa de transplantar a orientação metafísica do mito ou da religião para a ficção
científica [...] vai resultar em pseudomitos privados, em fantasias fragmentárias e em
contos de fadas”90. Ele acredita que a presença de religião transforma o gênero em sua
contraparte, a fantasia, pois esta seria superstição na medida em que a ciência é fato.
Outro autor é Albert Bergesen, que acredita ser a própria forma da ficção científica o
que impossibilita tratar da religião em seu aspecto mistificador:
Na realidade construída por Piercy em He, She and It, a religião, no caso da chamada
cultura corporativa, perde o aspecto de visão de mundo, e serve apenas para
homogeneizar as práticas das pessoas.
A religião imposta pela multi é o xintoísmo, que será de pouca importância para o
enredo, visto que a única personagem que a exercita, Shira o faz de uma maneira
externa. Trata-se de um conjunto de crenças que possui algumas características
interessantes: está associada com a construção do Japão como Estado-nação,
principalmente no século XIX, com a construção de templos, a indicação de autoridades
eclesiásticas pelas autoridades políticas e a organização dos discursos dos mitos de
origem do país e do poder do imperador. Igualmente, trata-se de uma religião que,
diferente das ocidentais, “sobreviveu às vicissitudes da história mais por meio de rituais
e símbolos do que pela continuidade de uma doutrina”92 Portanto, devido ao fato de o
xintoísmo não possuir escrituras, dogmas e credos, a devoção sempre foi seu ponto
89 MENDLESOHN, F. “Religion and science fiction” In The Cambridge Companion to Science Fiction.
Cambridge University Press, 2003, p. 266 (tradução nossa)
90 SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction, p. 26
91
MCKEE, G. The gospel according to Science Fiction. Louisville e Londres, WJK Press, 2007, p. xi.
92 PICKEN, Stuart D. B. Historical Dictionary of Shinto. Second Edition. Historical Dictionaries of Religions,
Philosophies, and Movements, No. 104. The Scarecrow Press, Inc. Toronto and Plymouth, UK, 2011. p.
242.
45
central. A ênfase nos rituais, que são abstrações, pode levar à mecanização de
respostas sem muita reflexão, condição ideal para o controle das pessoas.
Além disso, o romance acrescenta que temos uma colagem ou a assimilação de traços
de outras religiões ao xintoísmo praticado na Y-S, num movimento que nos lembra do
pastiche pós-moderno, no qual as características e formas são esvaziadas de seus
conteúdos desenvolvidos historicamente, e conceitos diversos – até mesmo
contraditórios – são justapostos. No caso, são citados o batismo e a confissão,
elementos típicos do Cristianismo. O segundo poderia ser interpretado como uma
alternativa implementada pela “multi” para complementar a vigilância, visto que a
confissão implica uma ideia de pecado a ser expurgado. Se a autoridade religiosa está
atrelada ao controle hierárquico da multinacional, que substitui o poder do Estado,
qualquer atitude que seja moralmente inaceitável, ou seja, o pecado, deve ser reportada;
isso se torna uma forma de indiretamente coibir ações que desviam da norma, além de
coletar informações e punir qualquer forma de dissidência, por mais leve que seja.
Por fim, o excerto apresenta a figura dos marranos. Segundo o que o próprio romance
explicita, trata-se de uma nova acepção para um termo histórico relacionado aos judeus.
O fato de Shira ser judia está diretamente relacionado ao crescente envolvimento de
Marge Piercy com as questões do judaísmo e à importância que tal cultura terá no
decorrer do enredo. Porém, o primeiro registro do judaísmo na obra aparece com uma
conotação negativa, em um contexto no qual os judeus não podem livremente exercitar
suas crenças e rituais na esfera pública, apenas no âmbito doméstico. Tal situação
implica que no futuro construído pela narrativa, o antissemitismo ainda existe e a luta
das personagens estará configurada tanto no nível do sistema econômico (cidade livre
contra as multinacionais) quanto no político-cultural (judeus como minoria oprimida).
46
calorosas com as mulheres e homens que eram seus
camaradas. Aqui ela se sentia profundamente solitária e não raro
se envolvia em pequenos problemas.93
Porém, o próprio excerto traz outra característica da personagem, que será muito
relevante para o desenrolar do enredo: Shira não é apenas uma marrana, que na vida
privada exercita sua fé e segue os preceitos da multi de forma apenas superficial. Ela
não se encaixa no tipo de organização social a que está submetida. Sua criação na
cidade livre, não apenas concedeu a ela mais conhecimentos e acesso a uma
universidade e um emprego. Existiu uma formação de subjetividade, de personalidade
93He, She and It, p.5. No original: “She had come straight from graduate school, at twenty-three. Y-S had
outbid the other multis for her in Edinburgh – like most of the brightest students in Norika, the area that had
been the U.S. and Canada, she had gone to school in the affluent quadrant of Europa – so she had had no
choice but to come here. She had been lonely, unused to the strict and protocol-hedged hierarchy of Y-S.
She had grown up in the free town of Tikva, accustomed to warm friendships with women, to men who were
her pals. Here she was desperately lonely and constantly in minor trouble.”
47
baseada em determinada ética. No caso, em Tikva, ela aprendeu a importância da
criação de vínculos, da amizade e da vida em comunidade. Isso dificulta sua adaptação
ao ambiente burocratizado e hierarquizado da Y-S. Mesmo assim, é preciso atentar para
o fato que ela escolheu sair de Tikva e construir uma vida na multi. De qualquer modo,
o foco da personagem por valores de comunidade, de criação de vínculos, remete a
uma das grandes preocupações da autora em diversas de suas obras. No próprio
romance, Shira será a pessoa responsável por programar o ciborgue para sua
socialização, quem irá conceder a ele uma melhor figura do que a humanidade
realmente seja.
Assim, como Connie, Shira está alinhada com diversas ideologias, mesmo que ela não
reflita sobre elas. Partindo de um ponto onde ela estava inserida no sistema e não
compreendia seus meandros, falta-lhe engajamento ou consciência sobre o que
determina seus alinhamentos. Apesar de o enredo se desenvolver a partir de uma
motivação individual, Shira precisará da ajuda dos outros personagens e perceberá que
seu caso particular está relacionado a uma rede de tensões e poder que transcende o
âmbito individual. Ainda que não seja possível vislumbrar um mundo tão equilibrado
quanto o de Mattapoisset, começando por essa transcendência do individual, podemos
rastrear em He, She and It, evidências de valores e práticas utópicas.
Ambas protagonistas dos dois romances, apesar das semelhanças no que concerne a
suas trajetórias: de uma situação de desamparo para a ação e consequente “vitória” (as
aspas aqui indicam a fragilidade em definir o resultado dos romances dessa forma), são
bastante diferentes em seus alinhamentos. Podemos nos questionar por que Piercy não
escolheu partir do ponto de vista de um membro da Glop, totalmente despossuído, que
seria uma melhor analogia à Connie, ou até mesmo do ponto de vista da pirata de
informações, e mãe de Shira, Riva. A resposta parece jazer no intervalo de tempo entre
uma obra e outra e as noções, do próprio movimento de esquerda, com quem Piercy
dialoga, com relação a quem seria o sujeito histórico que poderia carregar o gérmen de
mudanças sociais: para Piercy, as lutas ocorridas anos 1960 abriam a possibilidade de
construir imagens de um futuro mais justo, e tais imagens se moveriam até o presente,
para mobilizar e instigar, para alimentar os pensamentos por um futuro mais justo, até
mesmo em sujeitos desprovidos de qualquer cultura política. Décadas mais tarde, com
o desmonte do estado de bem estar social, além das diversas medidas tomadas pela
Nova Direita para neutralizar a Nova Esquerda, aquelas imagens se tornaram mais
difusas e pouco plausíveis. O futuro só poderia representar uma situação mais extrema
48
e menos pessoas, em condições sociais particulares, teriam acesso a uma
compreensão maior do seu presente, podendo escolher agir sobre ele.
Para isso, precisamos enxergar a Utopia como um método. Jameson já a definia nesses
termos no início dos anos 1980. Em “Progress versus Utopia”, ele apresenta a ficção
científica (e consequentemente, a utopia/distopia) como “um ‘método’ estruturalmente
único para apreender o presente como história”94. De um método entre aspas, o autor
passou a defender abertamente tal potencial metodológico, visto que em um dos seus
mais recentes ensaios, já no título, ele coloca a “Utopia como método”. 95 Junto a ele,
uma antologia de renomados estudiosos do campo de estudos da Utopia lança o livro
Utopia Method Vision: The Use Value of Social Dreaming.
Mas qual seria a importância desse método? Por que romances escritos há várias
décadas poderiam trazer elementos relevantes para a nossa vida hoje?
Como já verificado, a importância da Utopia está não somente no que pode ser
imaginado positivamente e proposto, mas no que é inimaginável e inconcebível.
Jameson aponta para um esmorecimento da utopia: um enfraquecimento da
historicidade ligada à perda da noção de futuro; a mudança fundamental não é mais
possível, ainda que seja desejável.
Portanto, como método, a Utopia vai oferecer uma forma de desfamiliarizar o familiar.
Ele vai funcionar como um “espaço onde o leitor é tanto levado a experimentar uma
alternativa quanto a fazer julgamentos sobre ela”.96 Afinal, defendemos que as “imagens
do futuro nos ajudam a dar forma ao verdadeiro futuro”.97
Mediante a uma crise generalizada, principalmente uma crise de politização e uma crise
da História, parece ser necessário entender nosso presente, para podermos agir nele e
49
mudá-lo. Para acessar o presente, o que hoje é impossível diretamente, precisamos de
estratégias de desfamiliarização e tais podem ser encontradas com os usos do passado
ou do futuro como forma de historicizar o presente em si. Mais do que propor programas
e regras, modelos de resistência, que devem ser impostos, os romances de Marge
Piercy e toda a tradição no qual eles se inserem permitem que se “revitalizem os
conceitos de utopia ou distopia ao tratá-los não como objetos de estudo, mas como
categorias analíticas historicamente fundamentadas com as quais podemos entender
como indivíduos e grupos em todo mundo tem interpretado seu tempo presente com um
olho no futuro.”98 Dessa maneira, as obras de Piercy podem abrir espaço para o
pensamento de alternativas, de forma autorreflexiva. Elas representam uma
recuperação do passado e um salto para o futuro, na sua mistura de desejos e medos,
utopia e distopia.
Queremos provar que, mesmo com seus altos e baixos, as obras de Marge Piercy
discutindo a utopia/distopia são de fundamental importância nas primeiras décadas do
século XXI para a cena cultural e política tanto nos Estados Unidos, de onde se originam,
quanto no Brasil, onde ainda são pouco conhecidas.
Os capítulos
Os três capítulos que seguem terão a forma de ensaios, mais ou menos independentes,
cujos conteúdos vão sedimentando as respostas para os diversos questionamentos
levantados nesta introdução. Ademais, eles evidenciarão a nossa tese de que Marge
Piercy representa em sua obra ficcional diversos elementos que são relevantes para
uma discussão da crise histórica e política contemporânea. Ainda, tentaremos fazer uma
leitura dialética – tanto das soluções simbólicas quanto dos problemas abordados pela
No segundo capítulo, falaremos sobre um dos aspectos mais fortes que os romances
trazem: a memória coletiva. Para isso, vamos começar mostrando como a presença de
flashbacks, normalmente pouco explorados pela crítica dos romances, vai ser relevante,
não apenas para a construção dos personagens, mas também para o estabelecimento
de uma relação do presente das protagonistas com seu passado. Desse aspecto,
partiremos para uma análise de como a memória está ligada com o processo histórico.
Em Woman, a intervenção dos habitantes do futuro no seu passado, ao alistar Connie
nas suas lutas para ser o futuro que acontece, já demonstra relações com o passado.
Simbolicamente, temos uma utilização do passado como forma de luta. Em diversos
diálogos, os personagens vão discutir a história e suas apropriações. Isso vai ao
encontro da tendência do final dos anos 1980 de abordar a história a partir de novos
pontos de vista: a História do Povo, a História da Classe Operária, a História do
Cotidiano. Também, veremos como a recuperação do passado é uma forma de resistir
ao processo de apagamento da memória, corrente no capitalismo tardio, rapidamente
falando sobre a diferença entre memória e nostalgia. Em He, She and It, novamente, o
futuro vai manter um diálogo com o passado, através da narrativa de Malkah,
estabelecendo conexões entre uma situação do passado e o presente. Tais
representações da narrativa reverberam nos estudos sobre memória histórica como
elemento utópico, ou estratégia de conscientização, em autores como o pensador
alemão Walter Benjamin (especialmente em suas famosas Teses sobre o Conceito de
História), o também alemão e filósofo Herbert Marcuse (com o conceito de anamnesis),
os estudiosos de memória e Utopia, Rafaella Baccolini e Vincent Geoghegan e Harvey
Kaye (com sua teoria dos poderes do passado).
51
O terceiro capítulo vai conectar os elementos utópicos presentes nas projeções do
passado (memória) e do futuro (projeção) aos meios que os romances apresentam para
se atingir tais fins. Um desses meios é a redenção por meio da violência, ou seja, a
violência como um aspecto de resistência e luta. Temos registrado nas obras diversas
manifestações de violência: num âmbito coletivo, a partir dos aparelhos ideológicos do
Estado/corporações, e na esfera individual, uma pessoa contra a outra, resultando numa
impossibilidade de se pensar em algo que transcenda o sacrifício individual de cada
protagonista. Ainda que tal sacrifício esteja de algum modo ligado a uma luta coletiva, é
um pequeno passo no longo projeto para uma alteridade radical. Ao trabalhar com tais
atos individuais de amplitude coletiva, Marge Piercy inscreve suas personagens nos
debates sobre as questões de classe social, tema que subjaz a sua obra. O ponto de
Marge ao apresentar a violência “terrorista” como uma possibilidade de manifestação
política conversa com nosso momento atual no qual as manifestações devem ser
pacíficas ou serão passíveis de censura e repressão (violenta) por meio do corpo
policial.
52
Capítulo 1 – “Me diga o que você mais deseja e eu te direi quem és”99
Os romances de Marge Piercy Woman on the Edge of Time e He, She and It estão
localizados dentro de uma série de relações. Para entender melhor os conteúdos
presentes e escolhas formais da autora nessas obras, precisamos acessar tais relações,
e especular quais são as possíveis conquistas e os diversos desafios apresentados.
Primeiramente, devemos pensar na posição que ocupam no conjunto de sua obra.
Depois, ao estabelecer as características do gênero a que pertencem, veremos com
que tipo de tradição literária e cultural a autora dialoga, na busca de se alinhar aos
preceitos estético-ideológicos ou negá-los.
Importante ressaltar que, devido a nosso recorte interpretativo, a discussão não levará
em conta parte considerável e importante da obra de Piercy: seus poemas. Suas
antologias poéticas são tão numerosas quanto seus romances, e os temas que iremos
descrever estão presentes na forma e conteúdo de seus poemas.
O primeiro romance a ser publicado pela autora, em 1969, foi Going Down Fast. A ação
se passa na cidade de Chicago nos anos de 1960. O tema central é o conjunto de
problemas acarretados pelo planejamento de renovação urbana. Os personagens são
99No original: “Tell me what you yearn for, and I will tell you who you are”, retirado de GORDIN, Michael D.;
TILLEY, Helen; PRAKASH, Gyan. “Introduction”. In Utopia/dystopia: Conditions of Historical Possibility.
Princeton, NJ: Princeton UP, 2010.
53
jovens estudantes ou trabalhadores e pessoas da classe média. A autora enfoca temas
como o racismo e a exploração dos trabalhadores, assim como relações familiares e o
patriarcalismo. Piercy, num esforço de sintetizar esta sua obra, afirmou que ela
O segundo romance de Piercy, Dance The Eagle To Sleep, veio à luz em 1970. Como
a história se passa em um futuro não determinado, ele é classificado como “uma
extrapolação de ficção científica sobre os movimentos estudantis,
antiguerra/antialistamento, pelas liberdades civis dos anos 1960” 102
. O enredo conta a
história dos “Indians”, um grupo de jovens revolucionários que desejam fugir do Décimo
Nono ano de Servidão, formando fazendas e posteriormente grupos de combatentes
paramilitares, que desejam lutar contra o poder da “Águia”, do governo. Baseando-se
nas suas experiências com a SDS – Students for a Democratic Society – Piercy
apresenta “um panorama ideológico recheado de tensão”103. Novamente utilizando um
ponto de vista múltiplo, cinco personagens vão demonstrar as diversas posições
existentes dentro do movimento e problematizá-las. Focando nas ações coletivas,
temos um retrato de como o movimento revolucionário pode se degenerar em uma força
mais opressiva do que aquela da sociedade que pretende destruir.
A autora busca nesse romance lidar com dois tipos de energia: aquelas do isolamento
e destruição em oposição a uma ideologia de conexão e cuidado (nurture). Shands
identifica os primeiros como os valores do patriarcalismo e os segundos como um
54
maternalismo, que ela tenta dissociar de valores masculinos e femininos, apesar de usar
tais conceitos de forma intercambiável, às vezes. Segundo sua interpretação do
romance, o grande defeito daquele movimento revolucionário foi o de ignorar as
relações de gênero e reproduzir a lógica do capitalismo. O movimento é esmagado no
final, mas o romance termina com uma “nota de esperança”, com o nascimento do bebê,
filho de dois dos personagens centrais, e uma afirmação de empatia e cooperação (entre
aqueles que conseguiram evitar serem capturados).
Segundo Piercy, “Small Changes fui uma tentativa de produzir em prosa o equivalente
a uma experiência completa num grupo de conscientização para diversas mulheres que
jamais passariam por tal experiência”105. O tema principal do romance é o debate sobre
os papéis sexuais tradicionais: apesar de ser contado a partir do ponto de vista das
mulheres, as figuras masculinas são muito importantes: “todas as figuras masculinas
em Small Changes são matizadas, vividamente projetadas e convincentes – até mesmo
os ‘vilões’ são definitivamente humanos e compreensíveis”106.
104
SHANDS, op. cit., p. 57
105 PIERCY, Marge. Parti-Colored Blocks for a Quilt. University of Michigan, 1982, p. 214
106 SHANDS, op. cit., p. 46
107 MARKS, Patricia, p.25
55
classe média e Beth, da classe trabalhadora. As estratégias narrativas que a autora
utiliza podem ser resumidas como
Nos primeiros anos da década de 1970, a escritora estava escrevendo seu novo
romance. E publica Woman on the Edge of Time em 1976. Isso acontece em meio das
mudanças que aconteciam no mundo e na sua vida, quando Marge se mudou de Nova
York para a idílica Weelfleet, Massachusetts, em um movimento que Marge chama de
“êxodo”. Tendo já experimentado com a ficção científica e afinado sua crítica às formas
de opressão, o romance foi um dos maiores sucessos de sua carreira. Voltaremos a
falar sobre ele adiante.
O quinto romance de Piercy foi The High Cost of Living, de 1978. O enredo gira em torno
da vida de três personagens: Leslie McGivers, Bernie Guizot e Honor Rogers. Eles são
definidas como “desajustados – uma lésbica separatista, um homem gay e uma
adolescente heterossexual”.109 Os três, apesar das diferentes opções que os definem,
acabam entrando em um estranho triângulo amoroso. Porém, tal relação é destrutiva
para todos os envolvidos. Na opinião de Sue Walker, esse pode ser classificado como
um dos romances menos bem sucedidos de Marge110 e ela afirma que “a sociedade
ganha neste romance já que Piercy cai num cinismo sem precedente.”111
108 HANSEN, Elaine T. “Marge Piercy: The Double Narrative Structure of Small Changes”. In Contemporary
American Women Writers: Narrative Strategies. Ed. Catherine Rainwater and William Scheick. Kentucky:
UP of Kentucky, 1985. pp. 214-5
109
LINDSEY, Karen. Review of The High Cost of Living, by Marge Piercy. Ms. (Julho 1978). p. 31
110 WALKER, Sue. Ways of Knowing: Essays on Marge Piercy. Mobile, AL: Negative Capability Press, 1991.
p. 139
111 WALKER, Sue. op. cit., p. 115
56
presente e os personagens masculinos são em sua maioria retratados como devassos.
Porém, as mulheres todas também são personagens fracas e vitimizadas a ponto de
não conseguirem sua independência sem algum tipo de proteção masculina. No caso
de Leslie, isso se reflete em sua escolha de um “caminho masculino” para ter mais
chances no campo de atuação profissional: a carreira acadêmica. Apesar dos
problemas, algumas características são interessantes do ponto de vista do romance
dentro da obra da autora: primeiramente, a abordagem da sexualidade é quase didática,
nas descrições do sexo masculino e feminino e nas relações heterossexuais e
homossexuais. Além disso, há uma discussão sobre o poder das palavras, nas escolhas
e referências literárias das personagens, um exercício de autorreflexividade que se
repetirá em diversos episódios em outras obras, mas que demonstra como a literatura
pode fazer as mulheres “subverterem a produção de significados” e “construir suas
próprias e diferentes perspectivas narrativas”.112 Por fim, temos a ênfase que a autora
dá para a questão de classe. Segundo Piercy, o romance “explora as limitações do
feminismo cultural e do separatismo; o porquê eu não acredito que um feminismo sem
análise de classe ou econômica não funcione.”113 Muito da crítica que o romance
recebeu foi motivada politicamente devido a uma recusa a tal destaque.
Em 1979, Piercy consegue publicar Vida. O enredo gira em torno da personagem Vida
Asch, uma importante militante dos movimentos antiguerra nos anos 1960, que vai parar
nas listas dos mais procurados do FBI. Isso faz com que Vida passe a viver escondida,
ajudada por um grupo de amigos e simpatizantes – conhecidos como “a Rede”. Por
meio das diversas relações da protagonista, primeiramente com o militante Vasos
Kalakopolos, depois com Leigh, o ladrão Kevin e finalmente, o também fugitivo Joel,
Piercy nos dá um panorama de uma pessoa que leva suas visões políticas até as últimas
consequências.
Sintetizando os temas e os tipos de leitura que o romance suscita, Marge afirmou que o
romance
Se os livros de Marge até esse momento focavam nas preocupações e lutas dos anos
1960 e 1970, seu romance seguinte retorna para a década de 1950, quando os
movimentos que floresceram nas décadas seguintes estavam surgindo, mas a
repressão ainda era hegemônica116. Braided Lives, publicado em 1982 começa
contando a vida de Jill Stuart, narradora-protagonista. O romance, classificado como um
Künstlerroman117, é dividido em duas partes que se intercalam: em fonte normal temos
a juventude de Jill, a história de seus amores e seu desenvolvimento político e poético.
Em itálico temos os comentários da narradora em seu presente.
Como já observado, os anos 1950 foram uma década muito marcante para Piercy, que
escreveu um ensaio sobre como havia sido difícil viver naquela década, tendo que
recorrer às possíveis fissuras – o título do ensaio é “Através das rachaduras”. Uma série
de elementos da vida da protagonista coincide com a biografia da autora: Jill é uma
jovem judia proveniente da classe trabalhadora, nascida em 1936, em Detroit, que busca
na escrita uma forma de ser independente e liga a escrita à política. Contudo, mesmo
tendo admitido que Braided Lives era seu romance mais autobiográfico, juntamente com
seus poemas, Marge recusou a possibilidade de se ler Jill como uma mera reflexão da
autora: “Personagens ficcionais nunca são pessoas, mas o simulacro em movimento do
desenvolvimento (Bildung) nos quais o herói ou heroína se lança no desenvovimento de suas capacidades
para conseguir atingir a maturidade. O Künstlerroman (Künstler é o termo alemão para artista) narra o
desenvolvimento da vocação de um artista. O exemplo mais conhecido é o romance O Retrato de um Artista
quando Jovem de James Joyce.
58
que ficamos contentes em pensar que as pessoas são dentro de uma estrutura
narrativa”.118
O romance seguinte de Marge Piercy é Fly Away Home, publicado em 1984. Ele foi
escrito em terceira pessoa e conta a vida da bem-sucedida autora de livros de receita
Daria Walker, uma mulher que ama o marido e as filhas, e sempre foi dedicada ao lar.
Tudo isso muda quando Ross, seu marido, pede o divórcio. A protagonista precisa
recomeçar sua vida e, para isso, ela precisa entender a vida que está perdendo e o que
está por trás da mudança de Ross. Nessa trajetória, ela acaba tentando recriar seus
valores, uma nova família e uma nova identidade.
Finalmente, outro tipo de inovação do oitavo romance publicado pela autora é o gênero
a que pertence. Piercy utiliza o que ela mesma chama de “thriller de divórcio” ou Patricia
Marks nomeia a “narrativa de detetive”. Sem entender o porquê de Ross ter pedido o
divórcio, Daria assume o papel de detetive e acaba descobrindo o ex-marido envolvido
com incêndios criminosos e corrupção. Ele tenta até mesmo matá-la em um incêndio e
embolsar o valor do seguro da casa que havia ficado para Daria.
O romance seguinte a ser publicado foi Gone to Soldier, em 1987. Porém, ela levou sete
anos para chegar até a versão publicada. A primeira versão do romance tinha 1100
páginas, que foram reduzidas para 850 páginas. Pela extensão, podemos perceber que
se trata de uma obra de fôlego, que demandou muita pesquisa, por intermédio de
entrevistas, viagens e material bibliográfico.
Trata-se do primeiro romance histórico de Piercy. No posfácio, ela afirma que “esse é
um romance concebido na imaginação, mas não quis que nada que acontecesse aqui
não tivesse acontecido em algum lugar na época com a qual estava trabalhando.” 123
Diferente de Braided Lives, no qual a autora havia vivido na pele a repressão dos anos
1950, o período em questão não foi experenciado diretamente, mas suas consequências
tiveram uma profunda influência em Marge. Ela realizou um esforço à la Balzac, ao se
aproximar de um estilo enciclopédico, buscando dar conta de registrar a experiência de
homens e mulheres que viveram os rigores e os impactos da Segunda Guerra Mundial.
120
SWEET, Ellen. p. 32 apud Shands, K. op. cit., p. 112
121 Idem.
122 SHANDS, p. 111
123 PIERCY, M. Gone to Soldier, p. 771
60
A narrativa se organiza pela justaposição alternada e interligação das trajetórias de vida
de dez personagens, que definem a perspectiva, além de outros personagens
coadjuvantes. A ação acontece em diversas partes: de Detroit, Washington, Nova York,
a França invadida, campos de batalha na Europa e no Pacífico, até os campos de
concentração de Auschiwitz, Bergen-Belsen e Dora-Nordhausen.
Está fora do escopo de nosso trabalho comentar cada um dos personagens principais,
porém podemos dizer que se trata de um grupo de pessoas de diferentes classes
sociais, origens e línguas. Suas experiências sentimentais, sexuais e políticas também
são diversas. Shands aponta a presença de diversos elementos duplicados,
personagens e comportamentos que se refletem, se ligam e ecoam uns nos outros.
Além de falar sobre a guerra em si, parte do romance se debruça sobre a relação das
mulheres deixando o trabalho doméstico e se juntando à força de trabalho das fábricas.
Uma das críticas recebidas pela autora por meio de resenhas foi que “Piercy não tem
nada de novo ou surpreendente para dizer sobre esse assunto que já foi tratado à
exaustão.”124 Em contraposição a essa opinião, podemos afirmar que um havia um
objetivo político no ato de Piercy em revisitar determinado momento histórico:
Se esse é o caso, o fato de seis das dez perspectivas serem femininas é fundamental.
Piercy estava em consonância com o movimento dos estudos historiográficos, que nos
anos 1960 e 1970 se expandiram para tratar de assuntos antes desconsiderados. Numa
primeira fase, seguindo uma linha mais sociológica, os estudiosos lidavam com
questões de “classe, raça e até certo ponto etnia (no contexto norte-americano)”. Na
fase seguinte, mais para os anos 1970 e 1980, o crescimento e desenvolvimento do
campo de estudo abriram caminho para estudos sobre gênero e partiram para uma
perspectiva mais antropológica. 126
124 YARDLEY, Jonathan. “Marge Piercy’s Big War Novel”. Apud Shands, p. 125
125 LYONS, Bonnie. “An Interview with Marge Piercy”. p. 334
126 KAYE, Harvey. The Powers of the Past. op. cit., pp. 29-30
61
Igualmente, os temas como a reparação (healing) e sobrevivência (dos judeus), a
importância da conscientização e luta política estão presentes no romance. Piercy se
propõe a mostrar que existe uma necessidade de destruição para a recriação da vida,
mas que tal destruição, quando motivada pela crueldade e não pela natureza, deve ser
combatida.
O décimo romance de Piercy foi publicado em 1989, com o título Summer People. O
enredo se centra no relacionamento poligâmico de três personagens: a compositora
Dinah, Willy, um escultor politicamente engajado e sua esposa, Susan. A história se
passa em Cape Cod, para onde a autora havia se mudado no início dos anos 1980.
A diferença nesse romance, do ponto de vista formal, está na escolha pelo ponto de
vista. Um narrador com onisciência limitada adere às perspectivas dos personagens
principais e acaba reproduzindo a incapacidade deles de distinguir entre realidade e
fantasia, interpretando erroneamente as ações uns dos outros, chegando a conclusões
baseadas nos seus próprios estados emocionais e desejos cambiantes e
passageiros.127
Tal escolha do foco narrativo traz à tona um dos temas do romance que é a autoilusão
das personagens. Susan é a personagem que marca as várias divisões na linha
narrativa: sua quase morte em uma nevasca, que causa o rompimento do triângulo, e
seu suicídio por afogamento. Ela marca dois tipos de discurso e emula os valores dos
veranistas (que passa a ser o grupo dominante), que dão o nome para o romance,
enquanto rejeita o que pode ser adquirido localmente (o grupo que é “emudecido”). São
aquelas pessoas, na figura do rico Tyrone Burdock, que contrapõem o glamour e
urbanidade a valores mais ligados à natureza.
Em outro nível, Piercy vai discutir as questões dos valores de conexão contra o
sentimento de separação: ainda que não fale sobre as relações de gênero tão
fortemente, a situação de trabalho da mulher é um tema muito importante. Igualmente,
Dentro do mundo emudecido dos moradores locais, Piercy ainda comenta sobre outros
grupos que sofrem mais de uma mudez. Um exemplo seria as dificuldades enfrentadas
pela empregada negra e sem estudos, Celeste. Além disso, Piercy desenvolve melhor
a relação com sua herança judaica e é mais explícita sobre ela.
Será no romance seguinte que o judaísmo aparecerá de forma lapidar. Em 1991, Piercy
publica He, She And It (que foi publicado na Inglaterra com o título Body of Glass).
Escrito na tradição da ficção científica, a autora mistura os gêneros da distopia e do
cyberpunk em uma nova história de mistério. Repetindo diversos detalhes já
apresentados no capítulo distópico de Woman on the Edge of Time, a autora faz uma
projeção sobre o que pode acontecer “se as coisas continuarem como estão”. Tratando
de ecologia, o livro é publicado quase simultaneamente à conferência Rio 92. Devido
aos temas, formas e conteúdos dialogarem mais diretamente com o seu romance
utópico, ele será também objeto de um estudo mais detalhado.
O romance seguinte, publicado em meados dos anos 1990, retorna para o tipo de
romances contemporâneos e de costumes. Piercy centra o enredo na descrição da vida
de três personagens, de diferentes origens e classes. The Longings of Women (1994) é
dividido em duas partes: a primeira serve para nos situar a respeito das três
personagens – Leila, Mary e Becky. A segunda parte vai aproximá-las, numa rede de
conexões, e mostrar seus destinos a partir das escolhas que fizeram.
Podemos localizar ainda dois temas importantes, desenvolvidos de uma nova forma:
primeiramente, a invisibilidade afeta todas os personagens, com maior ou menor
intensidade. Para o marido de Leila, ela deve ser submissa e suas qualidades são
invisíveis. Mary precisa ser invisível para poder sobreviver e Becky é considerada como
um ser sem visibilidade pela família do marido e por outras pessoas que não acham que
ela seja da classe deles.
Existe uma importante discussão sobre lugar e espaço e, como em Fly Away Home, a
figura da casa vai ter um significado particular. Leila termina seu casamento e se muda,
buscando o que ela chama de “seu espaço próprio”. Mary, que a princípio não tinha
onde dormir, descobre um prédio abandonado, que vira seu lar, apesar das condições
precárias, mas ela o perde em um incêndio criminoso. Para Becky, seu status e sua vida
Então, City of Darkness, City of Light é publicado pela autora em 1996. Novamente
lançando mão de seu interesse pela história, Piercy localiza na Paris da Revolução
Francesa o ponto de partida para o enredo. A ação se passa entre os períodos de 1780
e 1812, e o foco narrativo se divide em diversas perspectivas: três masculinas e três
femininas. Misturando personagens históricos a personagens ficcionais cujas histórias
raramente são contadas pelos livros de História, a autora tenta explorar as experiências
de diversas classes sociais e das mulheres tanto quanto dos personagens masculinos.
Na medida em que ela fala sobre estruturas de poder e os diversos jogos políticos das
diversas facções – Realistas, Cordeliers, girondinos e jacobinos –, Piercy reconstrói
ficcionalmente o dia a dia de pessoas cujas vidas estavam afetando e sendo afetadas
pelas forças históricas do final do século XVIII.
Duas personagens femininas foram criadas pela autora, Claire Lacombe e Pauline Leon.
A primeira é uma garota que foge de casa aos quinze anos e se junta a uma trupe de
artistas, questionando os valores da época e buscando sua independência. A segunda
é dona de uma loja de chocolates, uma líder nata, organiza as mulheres e lidera as
manifestações por pão, entre outras exigências. A terceira personagem é a figura
histórica Manon Phillipon, também conhecida como Madame Roland, visto que é esposa
de Jean Roland. Ela tomava conta de um dos salões que reunia os revolucionários. Ela
era uma girondina moderada que acaba sendo guilhotinada pelos jacobinos em 1793.
Os três romances que seguiram esse décimo terceiro volume se classificam no grupo
de romances de Piercy relacionados ao comentário da vida contemporânea. Utilizando
suas estratégias do narrador múltiplo ou com apenas uma perspectiva, relacionamentos
são debatidos, o papel da família, violência e a experiência das mulheres, seus sonhos
e medos, no início do século XXI. Uma diferença entre eles e seus outros romances do
gênero seria a presença de personagens envolvidos diretamente com a política, seja no
nível local, seja em âmbitos nacional.
Escrito em colaboração com seu marido Ira Wood, Piercy publica em 1998 Storm Tide.
O enredo conta a história de David Greene, um jogador de beisebol que quase alcançou
o sonho de jogar na primeira divisão. Divorciado, com um filho que ele está impedido de
ver, ele retorna para sua vila natal, Saltash, em Cape Cod, não mais como o herói do
lugar. Lá ele conhece Judith Silver, uma advogada, e seu marido, Gordon Stone,
professor universitário aposentado, que é vítima de um câncer. Os dois “adotam” David
132 HARRIS, Michael. “A New Take on the French Revolution; CITY OF DARKNESS, CITY OF LIGHT by
Marge Piercy”. Los Angeles Times. Los Angeles, Calif. 14 Oct 1996. p. 6.
133 STEINBERG, Sybil S. Publishers Weekly. Issue 243.39 Sep 23, 1996. p. 54.
134 PIERCY, Marge. “City of Darkness, City of Light”. Retirado de http://margepiercy.com/portfolio-items/city-
Em meio a essas emoções todas, David vence a eleição, mas se envolve com Crystal
Sinclair, uma mãe solteira que usa o filho para seduzir David e que trabalhava para
Lynch. Contado a partir das perspectivas de David, Judith e Johnny Lynch, o enredo
atinge seu clímax quando, depois de uma tempestade, o corpo de uma das personagens
é encontrado no mangue e todos os outros estarão envolvidos de alguma forma. Piercy
e Wood utilizam, portanto, diversos temas comuns à obra da autora, como ecologia,
política e um crime a ser investigado.
Em Three Women, publicado em 1999, a autora retoma seu foco nas personagens
femininas, se aproximando da fórmula de The Longings of Women. Porém, diferente do
romance anterior, as mulheres desse romance do final do século são da mesma família.
No que é chamado de “uma história multigeracional”136, Piercy conta a história de três
protagonistas, novamente partindo da perspectiva de cada uma delas. Suzanne Blume
é uma bem-sucedida advogada e professora universitária em Boston. Sua vida está
estabilizada até que sua filha mais nova, Elena, volta para casa, depois de insucessos
profissionais e sua mãe, Beverly está incapacitada após um derrame.
Beverly foi uma militante e sempre colocou a luta à frente das responsabilidades
maternas. Por mais que sua vida tenha se pautado por ajudar as pessoas, ela não
conseguiu estabelecer uma relação saudável com sua filha Suzanne. A forma como o
derrame a deixa à mercê da filha é um dos motores da narrativa.
Para Suzanne, diversas situações vão alterar o seu cotidiano regrado. Uma paixão pela
internet que se torna real, na figura do ambientalista Jake, a doença de sua mãe e as
duas filhas, Rachel e Elena, a primeira com planos de se tornar uma rabina e a segunda
135
Trata-se de uma instância política comum da região da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos. No original,
Board of Selectmen é composto de 3 a 5 habitantes e suas funções são o gerenciamento e administração
da cidade ou vila.
136 http://www.publishersweekly.com/978-0-688-17106-3
67
ainda lidando com seus traumas da adolescência – uma distante, e a outra próxima
demais.
Dessa maneira, o décimo quinto romance de Piercy nos coloca em perspectiva com o
passado militante e político, assuntos contemporâneos, como o cuidado com o meio
ambiente e relacionamentos virtuais, além de imperativos morais como adultérios e
eutanásia.
O último romance desse ciclo foi The Third Child, publicado em 2003. Contando a
história de Melissa Dickinson, terceira filha do senador americano Dick Dickinson, a
autora nos remete a uma versão moderna de Romeu e Julieta e um comentário sobre a
política norte-americana.
Melissa, uma garota de 19 anos, é oprimida dentro de casa por uma mãe extremamente
controladora, uma irmã que é a favorita dos pais e um irmão que está sendo preparado
para seguir os passos políticos do pai. Sozinha e imatura, sua ida para a faculdade é
vista como uma chance de escapar de tal situação. Na faculdade, ela conhece Blake
Ackerman, que representa tudo que é oposto nos valores de Melissa: em vez de um
WASP conservador, ele é negro, filho adotado por um casal de advogados judeus
liberais. E ele guarda um segredo: ele era na verdade filho de Toussaint Parker, um
militante cuja pena de morte não foi revogada pelo então governador da Pennsylvania
Dick Dickinson. Enquanto Melissa se entrega a uma paixão, aos poucos é revelado que
Blake deseja usá-la para se vingar da morte do pai, ao divulgar algum segredo do
político, que possa prejudicar a carreira do pai de Melissa. O resultado é uma tragédia
moderna, na qual todos os personagens falham em atingir algum tipo de redenção.
137
PIERCY, Marge. “Marge Piercy on Three Women – A Conversation with Marge Piercy”. Retirado de
http://www.harpercollins.com/author/authorExtra.aspx?authorID=7699&isbn13=9780060937027&displayT
ype=bookinterview. Último acesso: 13-02-2013.
68
Segundo a própria autora138, esse romance seria um dos seus menos sucedidos, apesar
de o público universitário gostar. Podemos, de fato, ver alguns dos elementos que
permeiam a obra da autora, mas pouco da energia de cuidado e reparação está
presente. A desconexão e a falta de comunicação são praticamente hegemônicas.
Por fim, o romance mais recente de Marge Piercy foi publicado em 2005. Em Sex Wars,
a escritora empreende uma nova viagem na história para nos apresentar alguns
personagens que fizeram parte da formação da sociedade americana.
A ação se passa entre 1862 e avança até os primeiros anos do século seguinte. Em
Nova York, logo após a Guerra Civil, o enredo se pauta em mostrar como os
personagens principais atingem ou falham em atingir os objetivos estabelecidos por
eles: Victoria Woodhull, Freydeh Levin, Elizabeth Cady Stanton e Anthony Comstock
são os personagens cujas perspectivas vão ser acompanhadas pelo foco narrativo.
Todos são figuras históricas, exceto Levin.
Woodhull foi espírita e divulgadora de ideias como casamento livre e liberdade sexual.
Sempre buscando fama e respeitabilidade, foi a primeira mulher a ter ações na bolsa e
a se candidatar a presidência dos Estados Unidos. Elizabeth Cady Stanton e Susan
Anthony lutam pelo direito do sufrágio para as mulheres. Independentes, buscam
melhorar a situação das mulheres, cujas opções se restringiam a um casamento ou
trabalhos domésticos. Freydeh, imigrante russa e judia, representa mais profundamente
o sonho americano. Passando de emprego a emprego, sempre mal remunerada, ela
desenvolve uma das primeiras empresas de preservativos sexuais e começa a
prosperar.
Anthony Comstock, por sua vez, engendrou uma batalha pessoal contra a depravação
da moral e dos bons costumes, buscando acabar com a pornografia, o aborto e os
métodos contraceptivos. Outros personagens, como o rico Cornelius Vanderbilt e seus
concorrentes, maquinam formas de ficarem mais ricos. Porém, como personagens
complexos, o apoio de Cornelius, por exemplo, é fundamental para Woodhull. Os
homens são retratados de diversas maneiras, desde os que veem as mulheres como
inferiores até os que apoiam todas as exigências de igualdade.
O que se pode observar da compilação das obras de Piercy é que muitos temas vão ser
recorrentes em sua obra. Variando no grau de exploração, de romance para romance,
percebemos que as questões das mulheres – questões ligadas ao corpo, à
138 FURLANETTO, Elton. “There is no Silence: An Interview with Marge Piercy”. Utopian Studies
69
domesticidade, à liberdade – são centrais. Exemplos de cuidado e cooperação são
contrapostos a instâncias de agressividade e opressão. Além disso, percebemos sua
preocupação com o resgate de eventos do passado que estão muito relacionados com
o momento presente. As estratégias artísticas também são parecidas, sendo a autora
uma usuária contumaz da perspectiva múltipla e do espelhamento de personagens.
Ainda que a perspectiva dos romances em estudo seja majoritariamente de uma
protagonista (Connie e Shira), teremos a presença da narrativa de Malkah em He, She
and It e algumas outras estratégias narrativas (como o forte dialogismo) em Woman.
Para entendermos melhor as questões formais dos romances, vamos nos concentrar
em quais características os inscrevem nos gêneros literários a que pertencem.
Na voz da própria Marge Piercy, temos a classificação dos gêneros aos quais os
romances pertencem. Ela também completa que se trata de uma forma crítica de lidar
com os impulsos genéricos. Porém quais são as características formais dos romances
que os inscrevem em determinada tradição?
No caso de Woman on the Edge of Time, a despeito de termos feito até esse momento
um resumo do enredo, mantivemos nossa observação dentro de um dos níveis da
narrativa. Contudo, pela complexidade dos deslocamentos que a personagem sofre, a
narrativa se desenrola em diferentes espaços e tempos. Por esse motivo, a fortuna
crítica aponta para uma dificuldade de especificar, por exemplo, qual seria o gênero ao
qual o romance pertence140: trata-se de uma utopia? Quando Connie visita o futuro ela
tem acesso a uma sociedade cuja organização parece ser qualitativamente melhor do
que a sociedade em que vive. Mas como lidar com a parte do romance que se refere ao
seu presente, tão extensa quanto a parte do futuro? Há também o capítulo 15, no qual
139RODDEN, John; PIERCY, Marge. “A Harsh Day's Light: An Interview with Marge Piercy” In The Kenyon
Review, New Series, Vol. 20, No. 2 (Spring, 1998), pp. 132-143.
140 Kerstin Shands elenca as propostas dos diversos autores que se propuseram a determinar os tipos de
narrativas presentes no romance. Utilizamos, portanto, suas classificações nos parágrafos seguintes.
SHANDS, K. Op cit. p. 65.
70
Connie se projeta para uma versão do futuro pior do que seu presente. Teríamos então
uma distopia, apenas por causa de um capítulo?
Marks não é tão clara sobre o que seria a forma diferente do que chama de narrativa do
holográfico. O que a pesquisadora faz, além de mencionar (ou cunhar) esse conceito, é
dizer que em certo episódio Piercy “faz uma crítica do processo artístico ele mesmo”.
141 MARKS, Patricia. Re-writing the romance narrative: Gender and Class in the novels of Marge Piercy.
Tese de Doutorado. Universidade de Oregon. 1990. Disponível em PDF, p. 103.
142 MARKS, Patricia R. Idem.
71
Sem fazer uma descrição da cena do holi (chamado assim porque é um filme em três
dimensões, que parece quase real), Marks passa apenas a analisar uma cena na qual
as personagens do futuro discutem tal obra de arte feita pelos personagens Jackrabbit
e Bolivar. Luciente, em especial, é bastante crítica com relação ao conteúdo e forma do
holi, e uma discussão acerca das diversas formas de analisar uma obra de arte é
colocada em pauta. Ainda que seja uma discussão um tanto quanto específica e
parentética, ela não parece diferenciar-se muito de outros tipos de discussão que as
visitas de Connie ao futuro suscitam.
Novamente, durante sua análise do capítulo distópico do romance, Marks não volta a
utilizar o termo que criou, e não explica o que seria a diferente construção “narrativa do
pornográfico”. Certamente, sua análise trata do corpo da mulher – todo alterado
cosmeticamente para servir um propósito sexual – e de seu papel como contratada para
servir sexualmente o homem. Marks também seleciona um pequeno trecho do romance
no qual Gildina, a personagem da distopia onde Connie acidentalmente vai parar,
mostra para Connie um catálogo de programação do Sense-All, uma espécie de
entretenimento parecido com a nossa televisão. Marks analisa as sinopses dos
programas de uma perspectiva do papel submisso e super-sexualizado, mas novamente
não explica como esse registro narrativo se diferencia de outros detalhes que Piercy
descreve na sua revelação daquele futuro, o qual exagera elementos já existentes no
presente de Connie.
O romance inicia no presente e numa sociedade que não apresenta muitos elementos
de estranhamento para os leitores, mas começa a ser invadido por tais elementos nos
primeiros capítulos. Primeiramente, isso acontece na figura da personagem Luciente, e
nos diálogos que as duas personagens estabelecem. Em certo ponto da narrativa,
Luciente oferece à Connie a possibilidade, ou os meios, para que esta possa se deslocar
temporalmente, atingindo a realidade futura.
145 Woman on the Edge of Time, p. 143. No original: “the mad are invisible”.
73
da utopia clássica. Chris Ferns elenca esses aspectos: a narrativa de viagem, a forte
presença do diálogo e o tratamento dado aos detalhes.146 Tais categorias formais
coincidem com o que Tom Moylan chamou de as três operações realizadas pelo texto
utópico: o registro icônico, ou seja, a sociedade alternativa ou o mundo gerado sendo o
tema principal do relato de um viajante; o registro minucioso (discrete) na figura do
protagonista que visita a utopia, por meio de quem se operam os diálogos. Finalmente,
“as contestações ideológicas no texto que trazem o artefato cultural de volta para as
contradições da história”147, que podem ser vistos por meio dos detalhes que afastam o
mundo idealizado do mundo empírico, ao passo que são detalhes relevantes para quem
habita esse segundo tanto quanto o primeiro.
Para tornar tais relações formais menos abstratas, precisamos observar no romance
como elas se dão.
A autora não parece muito preocupada com as minúcias descritivas do processo. O uso
do neologismo “nevel” demonstra um nível de aprimoramento mental dos seres do
futuro, que construíram conceitos para processos inexistentes na atualidade. A
comparação da experiência que Connie tem, colocada no mesmo nível de um sonho,
também dá sinais de que a chave de leitura para o leitor será aquela na qual o meio é
menos importante que o fim: como Connie consegue chegar ao futuro importa menos
do que o fato do que ela vai vivenciar e aprender lá. O processo, com o decorrer da
narrativa, se torna quase automático. A personagem não reflete sobre as tecnicalidades
envolvidas em sua “viagem”. A certa altura da narrativa, a personagem ou o leitor já
acostumados às idas e vindas de Connie, não questionará a forma como ela realiza tal
processo. Além disso, neste primeiro retorno de Connie ao presente, a personagem está
incapacitada de pensar, exausta, ela se deixa levar pelas ondas de pensamento.
Um detalhe importante: ainda que seja uma viajante, a história de Connie não é contada
em primeira pessoa, como um relato fechado de uma ação já terminada. Em vez de ter
retornado ao seu tempo, tendo vivido as experiências do futuro, para contar a história,
a narrativa se apresenta como algo em constante movimento, entre os tempos e, desse
148 Woman on the Edge of Time, pp. 78-9. No original: “Luciente put an arm around her. “You look gutted.
Remember this food will not sustain.” “Why not?” She fell thick with fatigue and the room swayed. “I can
taste it.”“As in dreams. You experience through me. … We better go back,” […] “Your body is where it was,
unchanged in dress. Understand, you are not really here. If was knocked on the head and fell unconscious,
say into full nevel, you’d be back in your time instantly …. “Luciente drew her into I the firm embrace with
their foreheads touching. She was too spent to do more than fall into Luciente’s concentration as into a fast
stream, the waters churning her under. She came to propped against the wall of the seclusion room.”
75
modo, perde-se um pouco a ideia da utopia tradicional como um “lugar estático” – um
relato pessoal em primeira pessoa baseado na memória, de uma personagem que já
entende os dois mundos. Portanto, para enfocar no processo, a história do futuro deve
ir se constituindo como uma espécie de presente.
Uma inversão interessante realizada por Piercy dos princípios genéricos da utopia está
no fato de que, segundo Ferns, a narrativa não começa com a chegada de um visitante
ao “lugar melhor”, mas com a “intrusão da utopia na realidade quase completamente
esquálida dos dias modernos em Nova York”149. Lembremos que o romance começa
com Connie refletindo sobre sua sanidade ao apontar para a presença do elemento
intrusivo, já na primeira frase do romance: “levantou-se da mesa e deu passos lentos
até a porta. Ou eu o vi ou não vi nada e estou realmente louca dessa vez”150.
Por essa razão, tanto Chris Ferns quanto M. Keith Booker vão chamar a atenção para
o fato de que o romance não seja um relato de uma viagem feita a priori. Ele se organiza
em episódios que alternam a realidade com a utopia e tal estratégia será fundamental
para “colocar em primeiro plano a conexão entre utopia e a realidade, e o conflito
essencial entre eles.”151 Booker, além desse conflito, vai estabelecer uma comparação
de Woman com Utopia de Thomas More no sentido da forma: o autor necessita de uma
primeira parte, onde aponta os males sociais da Inglaterra de seus dias e que justifica a
segunda parte, na qual desenvolve a descrição de uma sociedade onde “os problemas
apresentados na Parte Um foram resolvidos.”152 No romance em estudo, entretanto, as
partes não se seguem, se justapõem ou coexistem, o que ajuda a enfatizar a relação
direta entre futuro e presente.
Nesse mesmo início do romance, apesar do susto de Connie e dos estranhos modos do
personagem que a visita: sua maneira de se vestir e suas reações a elementos
cotidianos, como um cigarro ou o barulho do trânsito, a protagonista, ainda que
relutante, permite que travem contato. A partir daí, a relação que se estabelece entre as
personagens é majoritariamente dialogada. Connie questiona, demonstra não entender.
Luciente se posiciona como possuidora de mais conhecimento, porém não é onisciente
Fiction Studies, Vol. 21, No. 3 (Nov., 1994), pp. 337-350. p. 339
76
e se maravilha com certas coisas que enxerga no passado. Como o leitor, Connie
percebe certo tom professoral, e reage a ele. Ainda que uma das características da
utopia seja o diálogo, a autora demarca a dificuldade de estabelecer tal diálogo, ou seja,
aponta o que está implícito na tentativa de dialogar com a diferença. Vejamos alguns
exemplos:
Esse excerto mostra uma tentativa de conversa, e percebemos, pelo uso vocabular, que
Luciente realmente parece falar uma espécie de dialeto, com palavras que não
pertencem ou não fazem sentido com Inglês Padrão (slinging, redding, fasure, por
exemplo). Importante chamar a atenção para a existência explícita de uma
predisposição de se comunicar (“we must work to commune”), principalmente por parte
da personagem que entende melhor o que está acontecendo. A atitude de Connie é
153Woman on the Edge of Time, p. 42. No original: ‘To explain anything exotic, you have to convey at once
the thing and the vocabulary with which to talk about the thing…. Your vocabulary is remarkably weak in
words for mental states, mental abilities, and mental acts –’ ‘I had two years of college! Just because I’m
Chicana and on welfare, don’t try to tell me what poor vocabulary I speak with. I bet I read more than you
do!’ ‘You plural – excuse me. A weakness that remains in our language, though we’ve reformed pronouns.
By your language I mean that of your time, your culture. No personal slinging meant. (…) In our culture you
would be much admired, which I take it isn’t true in this one?’ ‘Your culture! What are you into anyway – a
real La Raza trip? The Azteca stuff, all that?’ ‘Now I lack vocabulary.’ Luciente reached for her arm, but she
dodged. ‘We must work to commune, because we have such different frames of redding. But that we see
each other, that feathers me fasure!’
77
muito parecida com a que ela toma diante de personagens que procuram exercer mais
poder que ela: uma postura defensiva, não admite ser rebaixada, apesar de reconhecer
que sendo chicana e desempregada, possui algumas características que configuram
uma perda social. Os pronomes possessivos estabelecem certo distanciamento na fala
de Luciente. Ela localiza Connie em uma cultura, e se coloca como representante de
outra cultura. Luciente busca se explicar, e nas suas explicações, novas confusões e
dificuldades são criadas. Para resolver o conflito, Luciente explicita que a diferença de
linguagem, a aparente impossibilidade comunicativa está no fato de elas terem padrões
diferentes de “lucidar”, sua lógica diversa.
154 Woman on the Edge of Time, p. 53. No original: They stared at each other in mutual confusion.
155 Woman on the Edge of Time, p. 52-3. No original: “Let me get this straight. You’re from the future, and
naturally you picked me to visit rather than the President of the United States because I’m such an important
and wonderful person”
156 Uma ocasião onde se pode enxergar este tipo de fenômeno artístico é nos romances históricos, por
exemplo, de Walter Scott. Ele vai mediar a relação dos leitores com o passado medieval, ao imprimir valores
daquela comunidade leitora, a burguesia ascendente, nas personagens do tempo passado.
78
A partir da metade do segundo capítulo, os diálogos começam a tomar a forma que
terão no restante da narrativa. Luciente, exercendo o papel de guia, faz um relato de
como funciona o “sistema educativo” do futuro, o tratamento de lixo, os estudos da
mente, as relações familiares. Explica o que é seu kenner, um aparelho que serve para
comunicação e está conectado a um computador central, que transmite informações e
dados. Porém, nesse ponto do romance, tudo é narrado de forma rápida, sem maiores
detalhes. Deve-se manter em vista, também, que a conversa ainda é perpassada o
tempo todo por sinais que indicam que a comunicação se efetiva, porém a muito custo:
“Luciente balançou a cabeça com tristeza, seus olhos negros e expressivos molhados
de tristeza: ‘Eu estava lucidada pra isso, mas não consigo encontrar a porta para o que
você está querendo dizer metade das vezes’.” 157
A alteridade do futuro vai se tornar mais concreta quando, a partir do capítulo 3, Connie
passa a visitar Mattapoisett. Tal fator é importante para conceder mais realismo ainda à
narrativa desse futuro que existe, em potencialidade, mas se afasta bastante daquela
realidade empobrecida em que Connie se insere.
Assim, ao levar Connie a Mattapoisett, Luciente faz mais do que apenas dar sugestões
e explicações fragmentadas sobre esse futuro: ela permite que vejamos, pelos olhos de
Connie, como aquela sociedade funciona na prática. Woman on the Edge of Time, nesse
ponto, não difere muito, então, do que vemos em outros romances e obras do subgênero
utopia. Em cada uma das projeções-visitas de Connie, a personagem aprende mais
sobre alguns aspectos diferentes de tal sociedade: organização da família, do trabalho,
relação das pessoas com a natureza, com as normas e condutas políticas. Os encontros
são sempre mediados por diálogos tradicionais, nos quais Connie passa a fazer
perguntas e Luciente vai dando explicações bastante didáticas:
157Woman on the Edge of Time, p. 56. No original: “Luciente shook her head sadly, his expressive dark
eyes liquid with sorrow. ‘I was redded for this, but I can’t find the door to what you’re meaning half the time.’”
79
coloridos, se pudermos evitar, para que a criança não esteja
envolvida em picuinhas de amor.”158
Podemos notar por meio da apresentação de dados, que Luciente pode informar Connie
minuciosamente sobre os detalhes da comunidade utópica. As perguntas de Connie
refletem dúvidas dos leitores. Como mãe, Connie quer saber se nesta sociedade
diferente, a personagem guia compartilha com ela alguma experiência. Além disso,
importa a ela saber a paternidade das crianças, visto que ela sabe que Luciente possui
diversos amantes. Por meio deste curto diálogo, também temos acesso a dois novos
conceitos: o das pessoas que são vinculadeiras, ou seja, pessoas que provavelmente
criam vínculos e socializam as crianças, e as comães. Como saberemos a seguir a
família sofreu uma refuncionalização e é formada por três membros de ambos os sexos,
chamados de comães. A concepção e gestação acontecem por meio extrauterino e a
criação é muito mais coletiva do que individual: todos os membros da comunidade
podem participar da educação e cuidado dos pequenos. Desse modo, mesmo sendo
uma cientista, Luciente possui a habilidade de integrar as crianças e, por isso, recebe
esta espécie de título por seus pares.
Esse trecho serve de ilustração de um fenômeno formal que vai se repetir em todas as
visitas de Connie. Ela vai questionando tudo o que vê e o que lhe dizem. Não raro vai
desaprovar as mudanças, ficar enojada. Ou vai refletir que certas medidas poderiam ser
implementadas no seu tempo, já que parecem tão comuns e aplicáveis na sociedade do
futuro. Seria esta a função do diálogo? Refletir sobre as mudanças, saber mais detalhes,
servir como uma mediação de uma educação para a diferença?
158 Woman on the Edge of Time, p. 73-4. No original: “Do you have any children?” “Below the age of twelve,
forty-nine in our village. We’re maintaining a steady population.” “I mean you: have you had any children?”
“I myself? Yes, twice. Besides, I am what they call a kidbinder, meaning I mother everybody’s kids.” (...) “So
how old are your children?” “Neruda is thirteen. Dawn is seven.” That put Luciente at least into her thirties.
“Is your lover Bee the father? Or the other one?” “Father?” Luciente raised her wrist, but Connie stopped
her. “Dad. Papa. You know. Male parent.” “Ah no, not Bee or Jackrabbit. Comothers are seldom sweet
friends if we can manage. So the child will not be caught in love misunderstandings.”
80
de “pai”, ao qual a personagem Luciente reage com estranhamento. Ela precisa
consultar sua base de dados para saber do que Connie está falando.
Tal afirmação faz sentido para os estudiosos da dialética, seja a clássica ou a hegeliana,
que se pautam na contraposição da tese com a antítese, produzindo uma síntese.
Porém, Ferns nos lembra que as convenções do renascimento, as quais remontam aos
diálogos platônicos, usam este artifício formal para provocar a “ilusão, não a realidade,
do diálogo”. Trata-se da “aparência do debate”, um mecanismo retórico que “reforça a
autoridade de um ponto de vista único”160.
Ainda que Ferns enfatize que algumas utopias recentes permitam e incentivem tal
interrogação produtiva, percebemos que o diálogo restringe no nível ideológico as
possibilidades libertárias do texto. As utopias “desafiam as ‘visões de mundo
estabelecidas’, mas as alternativas que propõem são geralmente apresentadas de uma
maneira não menos dogmática.”161
Assim, o diálogo entre guia e visitante, sendo um dos frutos da narrativa de viagem, vai
sofrer a tensão constante entre seu impulso didático, tal como educação do desejo, e o
dogmatismo que pode estar inerente na forma dialógica. Woman on the Edge of Time
não escapa desta tensão ainda que a dificuldade de estabelecer um diálogo efetivo e a
forma enfaticamente negativa com que Connie reage a certos elementos apresentados
a ela pelo diálogo relativizem em certo grau as possíveis críticas de o livro ser carregado
de dogmatismo. Na inabilidade de Connie de aceitar diversas das soluções encontradas
pelos diversos personagens do futuro, na sua desaprovação – que pode encorajar os
leitores também a resistir serem convencidos que aquela seja a inevitável e melhor
159
RUPPERT, Peter. Reader in a Strange Land: The Activity of Reading Literary Utopias. Athens: The
University of Georgia Press, 1986. p. 6
160 FERNS, Chris. Narrating Utopia. p. 23
161 Idem. p. 24
81
solução –, percebemos que existe certo nível de autorreflexão imposto à forma do
diálogo.
Connie, entretanto, muda de assunto. Luciente profere essa frase quando elas
conversavam sobre prostituição, algo conhecido pela mattapoisettiana apenas por meio
de histórias, e o diálogo continua com uma pergunta sobre os hábitos sexuais no futuro.
Fica em suspenso e não dito a forma como essa mudança entre o comprar tudo para o
comprar nada aconteceu. Esses não-ditos formam uma rede de lacunas na narrativa,
visto que a personagem não parece enxergar a profundidade desse pequeno detalhe
mencionado por sua guia. O narrador também não explica, porque talvez não saiba
como. Uma justificativa para tal silêncio seria que no mundo empírico não está
162 Woman on the Edge of Time, p. 64. No original: “we don’t buy or sell anything.”
82
disponível uma forma plausível de se materializar a transição de um estado para o outro.
Assim, não ocorre a Connie questionar como tal estado veio a ser.
Um diferente nível de detalhes não está nos diálogos, mas no que Connie vivencia
quando visita o futuro. O narrador vai observando tudo, juntamente com a personagem,
e registra de forma quase realista os estímulos aos sentidos, as diversas minúcias do
cotidiano daquele povo:
Chris Ferns destaca que Marge Piercy não deixa de descrever longamente os detalhes
em diversas ordens: moradia, trabalho, e mesmo naqueles assuntos aparentemente
tediosos e mundanos, como as longas reuniões políticas, as discussões sobre arte ou
o julgamento das relações interpessoais, que pareceriam menos próximos de um ideal
de perfeição. Isso acontece porque a autora não quer, continua o estudioso, cair em
uma supersimplificação, que não é incomum ao gênero.164
163 Woman on the Edge of Time, p. 76. No original: “Large platters of food passed from hand to hand: a
cornbread of coarse-grained meal with a custard layer and a crusty, wheaty top; butter not in a bar but in a
mound, pale, sweet and creamy; honey in an open pitcher, dark with a heavy flavor. The soup was thick with
marrow beans, carrots, pale greens she could not identify, rich in the mouth with a touch of curry. In the
salad were greens only and scallions and herbs, yet it was piquant, of many leaves blended with an oil
tasting of nuts and a vinegar with a taste of…sage?”
164 FERNS, Chris. Narrating Utopia, p. 207
83
O que percebemos é que a soma dos detalhes fornece o mapa da nova sociedade
imaginada. Eles são, dessa maneira, necessários. Porém, como afirma Jameson, “são
os detalhes, a implementação e decoração ou embelezamento, do esquema, que às
vezes nos atraem mais irresistivelmente”165. Em outras palavras, o senso de surpresa
mascara um pouco o juízo crítico. Ficamos mais fascinados por máquinas mirabolantes,
até mesmo novos tipos de vegetais e condimentos e, por isso, deixamos de reparar em
detalhes com a aparência de serem mais simples, tal como o fato de não se vender ou
comprar nada naquela nova organização social.
Dessa maneira, não buscamos afirmar que os detalhes do futuro imaginado por Piercy
resolvem o dilema entre enredo e estilo. Eles fazem parte da discussão maior e refletem
a tensão ou contradição que Jameson aponta. Portanto, se na forma do romance estão
inscritos e são necessários elementos que darão o sabor para a narrativa, suas cores e
seus sons, eles representam igualmente uma crise, que, juntamente com outras
tensões, o romance fará questão de destacar.
levels of plot and of style, which can never really be reunited; but it is clear that it is an opposition which runs
through everything else, valorizing narrative at the same moment that it calls its primacy into question, and
surfacing as a crisis in the political at the same time that it calls all the older ethical formulas in doubt, along
with the newer psychoanalytic ones. It is not a matter of solving this dilemma, or better still of resolving its
fundamental antinomy: but rather of producing new versions of it, new ratios between the two terms, which
disrupt the older ones (including those invented in the modern period) and make of the antinomy itself the
central structure and the beating heart of Utopia as such.”
167 Woman on the Edge of Time, p. 289. No original: “Connie smiled with sophistication. It was almost fun.
[…] Now she was the visitor from elsewhere. […] ‘I’m no hallucination’, Connie felt like giggling. It was so
weird to be reassuring somebody else.”
85
esta associado a seu conhecimento e familiaridade com o sucesso da premissa da
viagem no tempo: da projeção mental a outro tempo e lugar.
Gildina diz que elas estão em um “plexo” em Nova York. Trata-se de um lugar
“segregado e guardado”, ao qual apenas uma parcela das pessoas pode ter acesso. As
pessoas são dividas em níveis: “upper level”, “middle level” (onde a personagem se
coloca) e “lower-level”. Além destes, há os “ricaços” (richies) e os trastes (duds). As
informações pessoais delas estão gravadas em um implante subcutâneo.
168
Woman on the Edge of Time, p. 288. No original: “a tiny waist, enormous sharp breasts, that stuck out
like the brassieres Connie herself had worn in the fifties – but the woman was not wearing a brassiere. Her
stomach was flat but her hips and buttocks were oversized and audaciously curved. She looked as if she
could hardly walk for the extravagance of her breasts and buttocks […]”
86
sexual”: “significa que você concorda em se submeter por tal tempo e por tal valor”. 169
Eles têm duração variada e resultam em algum dinheiro para a contratada, para roupas,
drogas e reoperações.
As pessoas velhas, que assim são consideradas a partir dos quarenta anos, são
enviadas para um lugar chamado Geri e entende-se que sejam eliminadas (portanto, a
eutanásia se transforma numa ferramenta de controle populacional). Pelo senso comum
de Gildina, apenas os “ricaços” vivem bastante, pois “tudo é determinado pelos genes”.
As crianças são geradas pelas “mamães”, contratadas apenas para essa função.
Não existe um governo, posto que as decisões são tomadas pelas “multis”, empresas
às quais as pessoas pertencem. A certa altura, um personagem desse futuro define que
“as multis são tudo”171.
Drogas são fornecidas por um dispositivo ao lado da cama. Médicos foram substituídos
por computadores e só em filmes eles aparecem, como pessoas quase míticas. Além
de um sistema televisivo, as pessoas daquela época possuem um aparelho chamado
Sense-All que permite que a pessoa seja imersa no filme, sentindo tudo como se ela
estivesse de fato atuando nele. Ao invés de apenas a visão e a audição, todos os
sentidos são estimulados. Porém, tal tecnologia custa muito caro, não podendo ser
usado de modo frugal.
No banheiro, há uma série de mecanismos e Connie vê uma janela. Gildina explica que
é uma figura, que muda ao se apertar um interruptor. A própria ideia de se enxergar o
exterior parece surpreender Gildina: Connie lhe disse que “‘Costumávamos ter janelas,
169 Woman on the Edge of Time, p. 289. No original: “it means you agree to put out for so long for so much”
170
Woman on the Edge of Time, p. 291. No original: “they are diseased, all of them, just walking organ banks
(...) it isn’t like they have any use. I mean some are pithed for simple functions, but they live like animals out
where it isn’t conditioned”
171 Woman on the Edge of Time, p. 300. No original: “The multi is everything.”
87
todo mundo tinha. Era só um vidro pra que a luz pudesse entrar’ ‘Luz? Como? De fora?’”
Depois Connie pergunta das outras partes do apartamento, que não existem. Ela
descobre que eles não cozinham, pois todo alimento é entregue em pacotes e é
sintetizado a partir de carvão, algas e subprodutos da madeira. O que é descartado é
colocado em um compartimento na parede e “desaparece”.
Não apenas as mulheres são alteradas nesse futuro. Os homens também podem sofrer
“melhorias”, que os classificam como CAs, ou controle apurado (sharpened control).
Isso os permite desligar as sensações de dor, medo, fatiga ou sono. Podem controlar a
temperatura corporal e os impulsos na coluna vertebral. Gildina compara os homens
alterados a Cybos ou Assassinos. Ela explica que os ricos ou as multinacionais usam
pessoas alteradas geneticamente – “em vez de uma pulsão sexual, eles têm uma pulsão
básica assassina e um centro de obediência”172 – para acertar as diferenças entre elas.
Poderíamos dizer que o capítulo sobre Gildina traz em Woman on the Edge of Time a
semente do que foi observado pelo estudioso na citação anterior. O que ele chama de
“combinação dialógica” concede ao romance um caráter mais dialético: a visão do futuro
não é exclusivamente positiva, nem exclusivamente negativa. Ela não pode ser
nenhuma dessas porque o futuro é ambos – um conjunto de possibilidades positivas e
negativas. Assim, a importância desse capítulo distópico é a de demonstrar um novo
passo no desenvolvimento político de Connie. Para que Connie compreenda, mais do
172
Woman on the Edge of Time, p. 298. No original: “instead of sex drive, they have a basic killer drive and
obey center”.
173 BOOKER, M. Keith. “Woman on the Edge of a Genre: The Feminist Dystopias of Marge Piercy”. Science
Fiction Studies, Vol. 21, No. 3 (Nov., 1994), p. 337. (tradução nossa)
88
que saber sobre as possibilidades, ela precisa experimentar ou viver as possibilidades.
Se Mattapoisett é uma representação de nossas aspirações, a Nova York de Gildina é
um retrato de nossos medos. E ao encarar acidentalmente tal retrato, Connie dá
concretude ao que antes era uma figura abstrata ou ausente na fala dos
mattapoisettianos.
No final do décimo quinto capítulo, percebemos, portanto, que algo mudou em Connie.
O desfecho do episódio acontece quando um policial ciborgue vai até o cômodo de
Gildina e tenta prender Connie. Sabemos que todos os ambientes eram monitorados,
Gildina menciona esse fato diversas vezes. Assim, ao notar que existe algo errado, que
desvia da norma daquele mundo, as autoridades decidem agir. Porém, a atitude de
Connie é diferente. Diante da figura de autoridade, em um dos pensamentos da
protagonista, o narrador capta que “era maravilhoso se sentir tão confiante diante de
uma espécie de policial.”174 Tal confiança não se configura apenas como um
pensamento de Connie. O próprio policial a explicita, usando sua linguagem estranha
pertencente àquele futuro:
174 Woman on the Edge of Time, p. 299. No original: “[i]t was wonderful to feel so confident facing a sort of
cop.”
175 Woman on the Edge of Time, p. 300. No original: “My sensing devices monitor your outputs. I reg
adrenaline but no sympathetic nervous system involvement. You feel anger and not fear?” The hand
squeezed harder. “A dud cannot react so, after coring and behavior mod. You have no monitor implant. Are
you on a drug I cannot scan? Not acetycholine. Something is wrong. You look me in the eyes, unlike a fem.
All duds are brain damaged and modded. Therefore you are only disguised as a dud!”
89
Se no presente Connie era invisível, e no futuro utópico ela era uma peça importante
para a luta, uma pessoa da família, neste capítulo Connie vai ser vista, nos termos de
Kirsten Shands, como uma “anomalia”176. Conversar com Gildina, tentando
desnaturalizar seus atos cotidianos, estar presente em um local vetado, monitorado,
sem as alterações físicas e sem o contrato necessários para que ela se adequasse aos
padrões, são todos exemplos de como algo realmente estava errado, tanto para o
policial quanto para Connie, que sente raiva e não pode acreditar que esse tipo de futuro
como tal pudesse realmente vir a ser.
O último capítulo, que segue a sequência numérica dos outros capítulos, não sendo,
portanto, chamado de epílogo, é o único que tem um título: “Trechos da História Oficial
de Consuelo Camacho Ramos”. O que segue são fragmentos selecionados a partir de
um texto mais longo, com mais de cem páginas, escrito na forma de um relatório, com
seções como “identificação”, “histórico”, “reações emocionais”, “diagnóstico” e etc.
(...)
DIAGNÓSTICO: Esquizofrenia paranóica, tipo 295.3
Das anotações da internação em Bellevue: Na tarde de hoje esta
mulher porto-riquenha obesa de 37 anos, segundo consta,
atacou uma parente e seu noivo com uma garrafa. No
atendimento, ela foi encontrada deitada no chão, gemendo de
forma incorente, e confirmou estar desorientada sobre tempo e
espaço. Estava hostil, pouco cooperativa, e ameaçou todos.
177 Woman on the Edge of Time, p. 379-80. No original: DIAGNOSIS: Paranoid Schizophrenia, type 295.3.
From Bellevue Admission Notes: This evening this 37-year-old obese Puerto Rican woman allegedly
attacked a relative and a relative’s fiancé with a bottle. Upon examination she was found lying on the floor,
groaning incoherently, and proved disoriented as to time and place. She was hostile, uncooperative, and
threatening. She was abusive to relative and relative’s fiancé. Admit. Thorazine 1000 mg by injection.
Restraint. From Rockover State Admission Notes: This patient is a 37-year-old Mexican-American Catholic
mother, separated from her husband Edward, whose child has been put out for adoption through the state
agency. Has a history of violent psychotic episodes, including robbery, assault, and child abuse. Eleven
days go this patient attacked her niece Dolores Campos and her niece’s fiancé. This patient is known to us
and has been previously hospitalized in Rockover. After ten days at Bellevue, transferred here. Remained
acutely psychotic. During hospitalization, she has been mute and withdrawn with occasional violent
outbursts. She has been uncooperative, attempting to refuse medication, and has no insight into her illness.
Has delusions of persecution by niece’s fiancé and speaks of the State of New York as “murdering” a Negro
boyfriend. This patient also constantly complains about the child put out for adoption. The patient has no
consistent notions of right or wrong.
91
impressão de que tudo o que lemos até o momento foi o sonho de uma esquizofrênica,
sem noções morais e de comportamento instável.
Há incoerências nas diversas seções que compõem essa parte da narrativa. Podemos
observar uma quando os diferentes hospitais classificam Connie ora como porto-
riquenha, ora como mexicana. Evidentemente, para um observador externo, as
características físicas de Connie e a posição em que ela se encontra são determinantes
para inscrevê-la em uma classe de pessoas: os latinos. Porém, tal generalização implica
num desconhecimento das particularidades (históricas, culturais e sociais) dos diversos
povos que formam a chamada América Latina. Em última análise, na falta de
preocupação com tais detalhes, como o registro da correta origem da personagem, o
relatório se mostra falho e propenso a generalizações.
Não há identificação de quem escreve os relatórios, não há datas e isso os torna muito
mais impessoais e “objetivos”. Não parece haver pessoas por trás da observação e do
registro, apenas uma entidade que imparcialmente observa, avalia e imprime os fatos
como eles são. Connie é referida, tanto nesse excerto quanto em outras partes do
relatório, apenas como “a paciente”, “esta paciente”, “este indivíduo desorganizado”,
92
“esta mulher de 35 anos mexicana-americana”, e “esta mulher porto-riquenha obesa de
37 anos”. Ela deixa de ser uma pessoa de carne e osso, ou mesmo a personagem que
conhecemos nas páginas anteriores, para ser apenas uma paciente. Nem mesmo seu
nome ou sobrenome é utilizado. A desumanização de Connie parece ter por finalidade
tanto a maior “objetividade” quanto confirmar a visão que tivemos da forma desumana
de tratar a personagem nos lugares onde ela esteve encarcerada.
A crítica vai ter opinões diversas sobre a presença dos relatórios ao final do romance.
Patricia Marks, por exemplo, acredita que em vez de um “mecanismo de
distanciamento”, o capítulo final exige que o leitor decifre ou traduza o discurso
científico. Para ela,
Portanto, cabe ao leitor perceber sua marginalidade diante daquele mesmo discurso
oficial, seja da ciência, seja, seguindo a mesma lógica, da mídia, para poder tomar uma
posição. Como já visto, os relatórios contêm contradições em vários níveis. Primeiro,
contradizem a si mesmos: uma das afirmações neles é que a personagem chorava
demais e sem motivo, e isso é dito depois de uma listagem de fatos graves na vida de
Connie que por si só seriam motivo mais que suficientes para justificar sua tristeza e
angústia.
O último capítulo, portanto, parece funcionar a partir de sua contraposição com os outros
gêneros da narrativa. Tal estratégia narrativa poderia ter como objetivo antecipar uma
crítica ao seu romance, que, tendo terminado na ação climática representada pelo ato
de Connie de envenenar o café, precisaria de um julgamento diegético para mostrar ao
leitor se a atitude da personagem seria punida ou celebrada. Segundo Keith Booker,
esse julgamento não deixa de incorrer em um risco:
179 Woman on the Edge of Time, p. 381. No original: “Mr. Camacho is a well-dressed man (gray business
suit) … I would consider him to be a reliable informant who expresses genuine concern for his sister”
180 WALKER, Nancy. Feminist Alternatives: Irony and Fantasy in the Contemporary Novel by Women.
94
naquele discurso que se coloca como objetivo. Moylan concorda com Booker que o foco
deverá sempre ser na interação dos gêneros, na aposta que o leitor deve decifrar a
realidade do realismo para que a mensagem do romance seja mais política:
Até o momento, percebemos que o romance é formado por uma série de gêneros que
se justapõem e se reforçam ou se contradizem. Temos um registro realista em terceira
pessoa sobre a vida de Connie no presente, suas projeções para o futuro utópico e sua
projeção para o mundo de Gildina. Além deles, temos o capítulo final, com os
prontuários, cuja função narrativa acabamos de comentar. Para finalizar, poderíamos
comentar sobre mais um tipo de gênero que, ainda que não esteja tão evidente,
separado em um capítulo especial, como a distopia ou o histórico, perpassa toda a
narrativa. Trata-se das projeções de Connie para seu passado. Diferente de uma visita,
ou um deslocamento no tempo, o narrador acessa o passado da protagonista por meio
de sua onisciência.
O acesso ao passado de uma personagem pode ter diversas funções. Uma delas seria
a de contribuir na caracterização da personagem: mostrar suas origens, suas
experiências passadas que serviram para configurar sua identidade atual. Uma segunda
alternativa de uso do passado no processo da narrativa está mais ligada ao que
comentamos sobre a projeção para o futuro. Tanto um quanto o outro servem como
estratégia de desfamiliarização do presente, ou seja, mostram que as coisas não vão
ser sempre como são (no caso do futuro) e que as coisas nem sempre foram como
estão (no caso do passado). O mecanismo narrativo que melhor representa a projeção
da ação ao passado é o flashback. Ainda que não configure um tipo de discurso
A análise dos flashbacks, que deriva dos estudos sobre o cinema, aponta para uma
gama de teorias como o formalismo e o estruturalismo, teoria da imagem e semiótica,
psicanálise e teoria da percepção, teorias da ideologia e filosofias da memória e
consciência.183
183 São essas as fontes que embasam a tentativa de estabelecer uma teoria do flashback, feita por Maureen
Turim em seu livro Flashbacks in Film: Memory & History
184 Woman on the Edge of Time, p. 381. No original: She could remember herself at fifteen and it did not
feel different, only louder, more definite. “I won’t grow up like you, Mamá! To suffer and serve. Never to live
my own life! I won’t!” “You’ll do what women do. You’ll pay your debt to your family for your blood. May you
love your children as much as I love mine.” “You don’t love us girls the way you love the boys! It’s everything
for Luis and nothing for me, it’s always been that way.” “Never raise your voice to me. I’ll tell your father. You
sound like the daughters of the gangsters here.” “I’m good in school. I’m going to college. You’ll see!” “The
books made you sick! College? Not even Luis can go there.” “I can! I’m going to get a scholarship. I’m not
going to lie down and be buried in the rut of family, family, family! I’m so sick of that word, Mamá! Nothing in
life but having babies and cooking and keeping the house. Mamacita, believe me—oígame, Mamá—I love
you! But I’m going to travel. I’m going to be someone!” “There’s nothing for a woman to see but troubles. I
wish I had never left Los Calcinados.”
96
No diálogo selecionado, podemos ter acesso a um aspecto da personalidade de Connie.
Já tendo conhecimento do contexto de vida da protagonista, e sabendo de sua condição
de privação e falta de esperança, a narrativa nos impulsiona para um ponto do passado
no qual ela ainda acreditava que seria capaz de conquistar mais do que era esperado
dela. Poderíamos dizer que a juventude de Connie concedia a ela um impulso utópico,
uma disposição de quebrar os moldes, expandir seus horizontes e aprender mais. Ainda,
ela é crítica da sua realidade no momento em que aponta a diferença de tratamento
entre os filhos homens e mulheres, que é confirmado na ameaça de “contar para o seu
pai” feita por outra mulher.
Essa outra voz no diálogo, que tenta controlar o volume da primeira, é sua mãe, Mariana.
A narração já havia a apresentado enquanto migrante e mãe de vários filhos. Sua
trajetória de vida pode justificar sua opinião tão pessimista com relação ao que Connie
a oferece. Algumas pessoas poderiam afirmar, na verdade, que nela podemos encontrar
a “voz da razão”, aquela que, tendo interpretado a realidade, percebe seus limites
históricos e se conforma em respeitar esses limites, como se fossem intransponíveis.
Além disso, envolvida totalmente nas ideologias de família e do patriarcalismo, ela age
e pensa de forma a neutralizar o impulso utópico, que ela mesma sentiu ao abandonar
suas raízes e procurar uma vida melhor em outro país.
No conflito de vozes, não apenas duas gerações se contrapõem, mas há dois princípios
em contradição: Connie representa o princípio do prazer, que despreza as convenções
e a família e quer buscar mais conhecimentos e vivências. De outro lado, temos a
ideologia da família, a voz do princípio de realidade, dizendo que as condições de vida
de Connie só permitem certas escolhas e há limites bem marcados de até onde a
personagem pode ir.
185 TURIM, Maureen C. Flashbacks in Film: Memory & History. New York: Routledge, 1989. p. 2
97
e Piercy, não poderiam ter acesso a essas instituições reconhecidamente caras nos
Estados Unidos. O sonho de Connie, portanto, se baseia numa nova realidade histórica
na qual um número cada vez mais elevado de pessoas passava a integrar o corpo
discente das universidades. Segundo as estatísticas oficiais,
Ainda que Connie tenha conseguido atingir esse objetivo, ela não vai se envolver com
os movimentos estudantis. Os flashbacks continuam apontando a juventude de Connie
como um locus de alegria, uma espécie de nostalgia que recupera um momento de
felicidade que, tanto quanto o futuro, vai servir de contraponto para o presente árido da
personagem. Vejamos mais um exemplo disso:
Tinha uma época que ela comprava o The New York Times toda
noite, quando ela estava trabalhando como secretária – ou,
melhor dizendo, secretária-amante – do professor Silverter da
CUNY, outro período curto, como os seus quase dois anos de
faculdade, quando ela tinha sido feliz. Ela tinha conseguido o
emprego logo depois da sua chegada em Nova York, vindo de
Chicago. Como ela adorava ser secretária – ou devíamos dizer,
secretária-amante-garota de recados-lavadeira-empregada-
assistente de pesquisa – do Professor Everett Silverter. Era
186
SNYDER, Thomas D (Ed.). 120 Years of American Education: A Statistical Portrait. U.S. Department of
Education, Office of Educational Research and Improvement, National Center for Education Statistics, 1993.
Disponível em: http://nces.ed.gov/pubs93/93442.pdf
187 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. p. 290
98
sofisticado. Era, se ela fechasse os olhos agora, quase onde ela
gostaria de estar.188
188 Woman on the Edge of Time, pp. 49-50. No original: At one time she had bought The New York
Times every night, when she had been working as secretary—let us say, secretary-mistress—to Professor
Silvester of CUNY, another short time, like her almost two years in the community college, when she had
been happy. She had got the job shortly after she had arrived in New York from Chicago. She had adored
being secretary—should we say, secretary-mistress-errand girl-laundress-maid-research assistant—to
Professor Everett Silvester. It was civilized. It was, if she shut her eyes just right, almost where she wanted
to be.
189 ARONOWITZ, Stanley. False Promises. pp. 86-7
99
Portanto, existe uma ambiguidade com relação ao tipo de resultado pretendido pelo
flashback. Ao mesmo tempo em que ele nos leva para um ponto passado da vida da
protagonista, que, em relação ao seu presente, parece melhor, uma memória dos bons
tempos, é possível perceber o quanto tal percepção escapa da maneira tradicional
daquilo que pode ser visto como o melhor. Para alguns leitores, a ideia que a
personagem prefira uma situação de submissão a um homem, somente pelo prestígio
e pelas facilidades financeiras (além de sexuais), ou ainda, estudar numa faculdade
comunitária, com todos os pressupostos ideológicos por detrás de seus objetivos, pode
estar longe do que eles chamariam de uma situação “feliz”.
Além desse tipo de distanciamento ideológico que pode existir numa leitura, existe outra
forma de distanciar o leitor, ou de aproximá-lo. Maureen Turim chama a atenção para a
dupla função do flashback: como mecanismo de desfamiliarização, que interrompe a
ação, ele “tem um potencial de perturbar uma visão participativa em [uma narrativa] e
encorajar uma grande distância intelectual”. Por outro lado, aproximar o leitor do modo
de pensar da personagem, ela prossegue, implica que “as forças compensatórias que
naturalizam os flashbacks como memórias pessoais podem produzir justamente o efeito
oposto – em vez de distância emocional, identificação extrema.”190
Um dos principais elementos desse trecho é que não existe muita surpresa sobre o
passado de Connie. Diferente do presente ou do futuro, que trazem surpresas e
desenvolvimentos inesperados, sabemos onde a personagem está e supomos qual foi
o caminho que a levou até aquele ponto; portanto, é muito mais fácil, num movimento
retrospectivo, fazer as relações entre o passado e o presente e construi-los numa
relação de causa e efeito.
Ninguém quer, entretanto, se sentir um lixo humano como Connie. A identificação que
apontamos aqui surge mais da comiseração que se tem com a personagem e tal
sensibilização também é uma forma de aproximar o leitor de Connie. O que se espera
é um sentimento de que as coisas não teveriam ter sido ou nem deveriam ser assim,
incorrendo o risco de desenvolver um juízo moral, de que uma vida de sofrimento é ruim,
portanto, um meio que justificaria certos fins.
191 Woman on the Edge of Time, pp. 279-80. No original: Lying in the partial dark, she found anger swelling
up in her like sour wind. There wasn’t enough! Oh, not enough things, sure—not enough food to eat, clothes
to wear, all of that. But there wasn’t enough … to do. To enjoy. Ugliness had surrounded her, had imprisoned
her all her life. The ugliness of tenements, of slums, of El Barrio—whether of El Paso, Chicago, or New
York—the grimy walls, the stinking streets, the stained air, the dark halls smelling of piss and stale cooking
oil, the life like an open sore, had ground away her strength. Whoever owned this place, these cities, whoever
owned those glittering glassy office buildings in midtown filled with the purr of money turning over, those
refineries over the river in Jersey with their flames licking the air, they gave nothing back. They took and
took and left their garbage choking the air, the river, the sea itself. Choking her. A life of garbage. Human
garbage. She had had too little of what her body needed and too little of what her soul could imagine. She
had been able to do little in the years of her life, and that little had been ill paid or punished. The rest was
garbage. Who could ever pay for the pain of bringing a child into dirt and pain? Never enough. Nothing you
wanted to give her you ever could give her, including yourself, what you wanted to be with her and for her.
Nothing you wanted for her could come true. Who could ever pay for the pain of rising day after day year
after year in a dim room dancing with cockroaches, and looking out on a street like a sewer of slow death?
All her life it felt to her she had been dying a cell at a time, a cell of hope, of joy, of love, little lights going out
one by one.
101
Evidentemente, como já discutimos, acoplada a essa memória de Connie está uma série
de reflexos históricos, já que suas observações partem de detalhes domésticos como
as paredes e o cheiro do óleo, e se referindo ao contexto de moradia, até se expandir
para campos mais amplos na sociedade, como a poluição produzida pelas empresas,
na figura da refinaria, e os problemas acarretados pelo capital financeiro, representado
pelos prédios envidraçados cheios de dinheiro.
Outras partes do enredo vão trazer flashbacks que ora apresentam fragmentos do
passado feliz de Connie, ora vão reforçar sua situação presente de privação. Essas
interrupções do fluxo normal ou prospectivo da narrativa acontecem quando ela se
lembra de algo sobre seus amantes, principalmente Claud e Martín. Algumas vezes,
conversando com a personagem Sybil, as duas imaginam como seria o passado se elas
De uma forma similar ao romance Woman on the Edge of Time, o outro romance de
Piercy vai se desenrolar por meio de uma série de diferentes discursos ou registros de
gênero. Se formos fazer um levantamento das características centrais das distopias, já
perceberemos que, a mistura (blending) ou a indistinção genérica (generic blurring) está
presente na maioria dos comentários a respeito desse gênero194.
195Yurt é uma tenda ou cabana circular usada tradicionalmente pelos pastores nômades mongóis e de
outros povos da Ásia Central, como os quirguizes. [N. doT.]
104
irracionais, assim como as que são fundamentadas ou
experimentais. Nossas mentes ajudam a construir o mundo que
achamos que habitamos. Sou eu mesma uma feiticeira que no
outono passado seduziu uma máquina, então me sinto no direito
de me projetar ao passado, até o Maharal e dizer que ele
também criou o ser que os boatos afirmam ter sido dele. Você
não acha, meu amigo, que você é algo além do comumente
humano, um milagre?196
O capítulo do qual retiramos o longo excerto se chama “Malkah conta a Yod uma estória
pra dormir”. Nele, a personagem vai estabelecer as regras para a narrativa que segue
em paralelo com a narrativa principal. Nos primeiros dois capítulos havíamos conhecido
Shira e seus alinhamentos, além do mundo que a cercava, por intermédio dos diversos
nova, elementos de novidade da ficção científica que vão servir para construir o universo
imaginado pela autora (os domos, as vestimentas, as calçadas rolantes, etc).
A caracterização do espaço, poluído, daninho para a vida sem proteção contra o calor
e a radiação, é reforçada pela comparação de Malkah do mundo como um deserto, que
é tanto no sentido físico, os efeitos dos desatres climáticos, quanto espiritual, no
196 He, She and It, pp. 19-20, 27. No original: Thus, dear Yod, the story I am about to leave you in the Base
is not the way I told it to my child Riva or to my child Shira or to Shira and Gadi when they would sit on their
haunches like little frogs, all bug eyes and appetite. I am recording this story just for you in the nights of my
ash-gray insomnia, when my life feels like an attic full of boxes I have put away, things once precious and
now dusty and half forgotten but still a set of demands that I put it, all of it, in order and deal with it, as
bequests, as trash, as museum to set open to the family or the world. This is a time of beginnings and
endings, of large risks and dangers, of sudden death by mental assassination. It is also the time my sight is
failing again, and this time it cannot be repaired. The darkness of night apes the darkness I dread, and sleep
is the lover I fear perhaps more than I truly desire his soft warm weight on me. This is the story, then, of the
Golem: not you, my own little Golem […] Avram has forbidden me to see you, but we can still communicate
through the Base, and there I create my bubeh maisehs for you. I am not at all sure to what extent I am guilty
of great folly and overweening ambition for my role in your programming, or to what degree I am instead that
figure of Strength on the Tarot deck, the woman who tames the lion, who taught you to temper your violence
with human connection. A task Avram interrupted. I am telling this story for you as I lie alone in my own huge
antique bed in the bedroom shaped to me like an old familiar garment, with the scent of narcissus from the
courtyard, in this the house of my family with its oasis of green in the desert the world has become. I lie
awake sensing the danger gathering around us in this fragile modern ghetto. This is a tale of my family from
long ago when the world seemed to be breaking open. They called it rebirth. Renaissance. But nothing ever
comes back the same. The world moves in epicycles on the human level, although at the time in which my
story is wanting to be told, it was those very projected epicycles of the universe that were being discarded
by a few brave astronomers in favor of a system that was simple, clear and utterly alien to the human or
rather the man-centered universe held to be immutable and preeminently Christian by most of those living
in Europe. But like the Ptolemaic universe, my story has a human center. […] Is it fair to tell this tale? It is a
tale of kabbalah, of religious magic. Most scholars insist that it has no basis in the life of this exemplary
religious thinker and educational reformer, this historian and polemicist. What has he to do with the creation
of monsters? But as a woman who spends her working days creating fictions and monsters, how can I feel
I am committing calumny against Judah? I believe in the truth of what is perhaps figurative, although Moshe
Idel has found recipe after recipe, precise as the instructions for building a yurt or baking French bread, for
making golems. I cannot always distinguish between myth and reality, because myth forms reality and we
act out of what we think we are; we know on many levels truths that are irrational as well as reasoned or
experimental. Our minds help create the world we think we inhabit. I am myself a magician who last fall
seduced a machine, so I can project myself back into the Maharal and say that he, too, may have created
the being that folk memory records as his. Do you not think, my friend, that you are something beyond the
ordinarily human, a miracle?
105
(des)controle da vida pelas corporações, que competem entre si, tornando o mundo um
lugar mais árido. Além disso, também nesse trecho, que parece sintetizar o movimento
geral do romance, a personagem narradora aponta para a dificuldade de viver aquele
presente: “Estamos numa época de começos e términos, de altos riscos e perigos, de
mortes súbitas por assassinatos mentais.” Malkah adiciona o elemento do perigo que
ronda, do arriscado modo de vida num futuro próximo numa nova etapa do capitalismo
tardio. Por se tratar de um momento de início e término de algum processo, podemos
pensar nele como uma situação de transição, porém, não fica claro, a princípio, a que a
personagem se refere com a ideia de começo e fim de alguma coisa. Seria o começo
de uma era pós-humana, representada na figura do dito ciborgue? Tal leitura poderia
ser defendida com o final dessa seleção da fala dela: a de que Yod não seria outra coisa
senão um milagre?
A personagem aponta para sua cama, seu pátio ou quintal, e podemos dar um passo
além, para sua cidade, Tikva, uma das cidades-livres, como um oásis. No decorrer do
Além do apelo ao medo, ou o caráter admonitório das distopias, outro elemento formal
que define o gênero e o diferencia das utopias é a questão do (não-)deslocamento. Não
é comum para as distopias a viagem pelo tempo ou espaço. O narrador ou o
protagonista não são pessoas de outro tempo, lugar ou cultura. Não são os diálogos
então que vão trazer os elementos de novidade presentes na narrativa, para que se
possa melhor caracterizar uma projeção para o futuro. São os novuns que, como
fragmentos de um paradigma ausente, vão se colocando, e a cada nova informação, o
leitor vai alterando suas pressuposições a respeito do mundo imaginado e imaginário.
Uma terceira caraterística da forma do romance que vai ter relação direta com as
expectativas do gênero distópico é a atenção dada à linguagem. Moylan aponta para os
trabalhos de Raffaella Bacollini nas seguintes observações: que o texto distópico é “a
construção de uma narrativa [da ordem hegemônica] e uma contranarrativa [de
resistência]”. No nosso caso, enquanto temos a narrativa do futuro, com Shira, e na
terceira pessoa, vários capítulos da história de Malkah vão aparecendo. A
contranarrativa, portanto, é não apenas um desdobramento do enredo, mostrado de
outra perspectiva, mas temos uma tomada de voz, a narração em terceira pessoa dá
lugar à personagem como narradora.
Ao passo que Malkah explica que a história que conta é proibida, já que ela não deve
fazer mais contato com Yod, tendo sido proibida pelo seu criador, Avram, ela revela um
nível já subversivo da sua contação. Ao apropriar a voz narrativa e fazer dela sua
maneira de expressão Malkah quase cria um romance histórico, que vai acompanhando,
complementando e se contrapondo ao romance de ficção científica. A veracidade da
história não é uma das preocupações da personagem, para quem, voltando à citação
anterior, “[n]ão se pode sempre distinguir entre mito e realidade, porque os mitos formam
a realidade e agimos baseados no que pensamos que somos. Sabemos, em diversos
níveis, verdades que são irracionais, assim como as que são fundamentadas ou
experimentais” 201
, ou seja, nossas mentes, por meio da construção social de
significados, ajudam a construir a realidade, o mundo que achamos que habitamos.
E finalmente, como a história que Malkah conta acontece no passado, ela vai provocar
no leitor um sentimento parecido de deslocamentos entre o futuro e o passado, fazendo
conexões entre eles e estabelecendo diferenças. A história de Yod e Shira não é apenas
uma modernização da história do gueto de Praga. Se por um lado, há possíveis
aproximações, no papel de criaturas do golem e do andróide, por exemplo,
caracteristicas históricas, espaciais, e mesmo das ações das personagens são
marcadamente bastante diferentes. Portanto, em vez de contar duas vezes a mesma
história, em registros diferentes, uma ficção científica sendo endossada por um tipo de
romance histórico, o passado e futuro servirão como uma forma de desfamiliarizar o
presente, sempre se referindo a ele como potencialidade (do passado) e causa (do
futuro).
Mas a memória, enquanto elemento individual, psicologizante, não tem muita força.
Como a própria Malkah continua a refletir, as memórias “são ainda, entretanto, um
conjunto de necessidades que eu coloquei em ordem, todas, e com as quais tive que
lidar, como herança, como lixo, como museu aberto para a família ou para o mundo.
Estamos numa época de começos e términos [...]” Isso parece indicar que há processos
de diversas ordens envolvidos na questão da memória. Mais do que uma nostalgia
vazia, ela é um mecanismo de organização da realidade, de ordenação de prioridades.
Uma das coisas que a constitui é a Tradição (herança), ou seja, os alinhamentos
ideológicos que formam a subjetividade.
Por estarem dispostas, como em um museu, as memórias vão servir para (in)formar as
novas gerações, apontando assim para as possibilidades de futuro. Liga-se, nesse
momento de socialização, o individual e o coletivo, o sujeito com a pequena unidade da
família e a unidade máxima que é o mundo. Na lembrança individual e monádica,
podemos verificar a materialização da História e suas determinações. A personagem
novamente nos dá indícios para realizarmos este salto, de um nível de interpretação
para outro, já que ao mencionar o mundo que vai ter acesso a suas memórias, continua
a pensar em termos de épocas em vez de eventos isolados.
Há ainda outra camada na história de Malkah. Como uma personagem feminina que vai
contar a estória sobre a História204, ela retoma a preocupação da autora explicitada em
seus romances classificados imediatamente como romances históricos – a recuperação
das preocupações e experiências das mulheres e não apenas delas:
203 JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Trad. Hugo Mader. Novos Estudos CEBRAP,
77, 2007. p.191
204 O capítulo 2 vai tratar da diferença do uso entre os dois termos.
110
por meio do seu tratamento do passado. Talvez mais importante
para escritoras tem sido o modo que o romance histórico
permitiu que elas inventassem ou “reimaginassem” [...] as vidas
sem registro das pessoas marginalizadas e subordinadas,
principalmente as mulheres, mas também as classes
trabalhadoras, os negros, escravos, os povos colonizados, e
para configurar narrativas que são mais apropriadas do que
aquelas da história convencional.205
No caso do romance, mais do que uma estratégia narrativa que vai contribuir para
inscrever o texto na tradição das distopias, a memória se relaciona com outros aspectos
formais, como o apelo ao medo. Para McAlear,
Para o presente trabalho, a memória com sua interseção vai ter peso determinante, já
que ela está associada à história e, por vivermos um momento de crise da história, uma
análise mais aprofundada de ambas será realizada adiante.
A fortuna crítica, ao tratar dos romances de Piercy sob análise, acaba sempre apontando
algumas confluências e diferenças entre eles, porém não consegue escapar da
necessidade de realizar esta comparação ou aproximação. O caráter de projeção da
Se, por um lado, os assuntos dos romances são parecidos, a dizer, duas protagonistas
que passam por um processo de politização e autoconhecimento, suas interações com
mundos tão parecidos com o nosso presente, e outros marcadamente diferentes, e
principalmente, a representação estética de possibilidades de resistência e reação à
opressão, a forma dos romances também vai ser de extrema importância para uma
politização da forma.
O aspecto que analisamos e mais nos chama a atenção é a dos gêneros literários.
Percebemos que a totalidade de cada um dos romances é formada pela mistura, ou
justaposição de diversos discursos, com características próprias. Alguns desses
discursos ou estratégias narrativas se reunem em grupos de ideias que formam um
gênero literário. Lembrando o que nos explica Jameson, “[g]êneros são essencialmente
contratos entre o escritor e seus leitores; melhor que isso, para usar um termo que
Claudio Guillén tão convenientemente recuperou, são instituições literárias, que como
as outras instituições da vida social são baseadas em acordos ou contratos tácitos.”208.
Assim, enquanto contratos, cada gênero terá regras próprias, que servem tanto para
criar uma identidade quanto para impor limitações, segundo pudemos ver na análise
dos discursos realistas, utópicos, distópicos e de remissão ao passado. A forma histórica
de lidar com tais limites imposto por tais acordos das formas foi a mistura de gêneros.
207
WEEKS, Kathi. The Problem with Work: Feminism, Marxism, Antiwork Politics, and Postwork
Imaginaries. Durham: Duke UP, 2011. p. 183
208 JAMESON, Fredric. “Magical Narratives: Romance as Genre”In: New Literary History. Vol. 7, No. 1,
Por outro lado, a distopia, ainda que baseada no medo, deve manter aberto um espaço
para resistência e, para fazer isso, seu discuso também se baseia em uma crítica,
principalmente do presente que levou àquele futuro. É preciso haver elementos utópicos
para que a distopia não se torne resignada e afunde em um cinismo ou uma fatalidade.
Não apenas estes, mas o realismo também sofre ação dessa reflexividade e crítica.
Temos o discurso científico se opondo à narrativa tradicional, e essas diversas
manifestações do realismo servem de mediação para as relações do passado e o futuro
com o presente. Lembrado do que comenta Booker,
209 Termo utilizado por Keith Booker em “Woman on the Edge of a Genre”. Op. cit. p. 337
210 BOOKER, Op. Cit. p. 341
211 AUERBACH, Erich. Mimesis, p. 413
113
rearticulados numa prática literária radical que artisticamente antecipa uma nova
formação social.”212
Dois críticos do romance buscam explicar essa formação social a que Moylan se refere.
Chris Ferns indica que quando a utopia perde a centralidade da narrativa, coexistindo
com outras formas não-utópicas ou, no nosso caso, abertamente distópicas, apresenta-
se uma “multiplicidade de perspectivas”, uma opção entre uma variedade de
possibilidades. Não apenas Woman on the Edge of Time funciona dessa forma, mas os
críticos dão outros exemplos, como The Female Man de Joanna Russ e Triton, de
Samuel Delany.213
Em uma época na qual “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do
capitalismo”, a ideia de futuros alternativos é importante como uma forma de resistência.
O nosso contexto histórico impede a visão de um mundo reparado, curado, sem a
mediação de outros futuros, mais críveis, porém menos utópicos. Para Nancy Walker,
Além disso, a vida das pessoas se move em um ritmo acelerado, que dificulta o acesso
ao passado, uma experiência mais efetiva de suas memórias e vivências. O crescente
grau de alienação também é obstáculo para que se possa enxergar o futuro, para que
se possam realizar projetos coletivos de mudanças a curto ou longo prazo. Portanto, ao
se utilizar de uma estrutura narrativa que permita o leitor se deslocar entre tempos –
pensar tempos simultâneos, enxergar relações entre as diversas camadas cronológicas,
perceber que o futuro é, de fato, resultado de suas escolhas no presente – Marge Piercy
consegue estabelecer um diálogo entre a arte e seu tempo, e tal diálogo deve ser
recuperado nos dias de hoje para que as pessoas, presas na ideologia dominante do
114
eterno presente, possam questionar suas práticas, igualmente desenvolvendo e
exercitando sua imaginação política. É dessa maneira que Moylan explica que, em He,
She and It, apesar do aspecto duplo da narrativa, entre o passado e o futuro, na verdade
temos três:
Acreditamos que este terceiro espaço de reflexão, aquele fora do texto, mas que é
criado por ele também, seja uma das maiores conquistas dos romances. Em Woman,
este nível integra a narrativa e ajuda a mediar essa relação dos saltos entre os tempos.
Em He, She and It, ele se ausenta na matéria explícita do romance e somente aparece
neste movimento extradiegético.
Não apenas Piercy estava preocupada com esses temas e formas. Como podemos
perceber pela fortuna crítica, ambos romances dialogavam com uma série de outras
obras contemporâneas, de Joana Russ, Ursula LeGuin, Samuel Delany, Suzy Charnas,
Octavia Butler, Kim Stanley Robinson, Margaret Atwood, entre outros. Colocados lado
a lado, não apenas em cada um dos romances, essa série de obras projeta uma série
de futuros, mais ou menos utópicos ou distópicos, alimentando nossa imaginação e
tornando o sonho por um mundo melhor uma característica coletiva e social.
A propria autora assume que há poucos elementos realmente exóticos em seu futuro de
Woman on the Edge of Time. Para ela, seu romance ”é muito intencionalmente não uma
utopia porque não é surpreendentemente novo. As ideias são basicamente ideias do
movimento feminista”215. Como vimos na análise dos detalhes, eles são os elementos
Para entender melhor o nosso presente, e as formas de luta e resistência que Piercy
oferece em sua obra, vamos passar da análise das estratégias e elementos de
construção da narrativa para a maneira como o romance dá forma a duas grandes
antinomias modernas.
A primeira é o papel da História na narrativa. Como ela é recuperada e qual a sua função
política? Vimos que um deslocamento importante realizado pelos romances é em
direção ao passado. Exemplos disso estão na memória individual de dias melhores, dos
dias de opressão, nas causas cujos efeitos enxergamos no desenrolar do enredo, até
nas reconstituição de cenas de grandes acontecimentos históricos. Piercy tem uma tese
sobre a importância da memória, e ao colocarmos esse assunto em posição central no
nosso estudo, chamamos a atenção para as formas de se lidar com a atual crise da
consciência histórica.
116
Capítulo 2 – “Dos que estão agora mortos assim como daqueles que ainda vivem”
Os dois romances em estudo vão estabelecer em suas páginas uma determinada visão
da História e vão conceder a ela diferentes formas de importância, as quais devem ser
levadas em conta pelos leitores da época de publicação do romance e os de hoje.
Pense desta forma: havia muita coisa boa na vida dos ancestrais
que viviam neste continente antes que o homem branco viesse
conquistar. Houve muito que foi trazido de lá e era útil. Tem
levado muito tempo para colocar o antigo e bom junto com o
novo e bom para termos um bem maior...216
O primeiro excerto é uma fala da personagem Luciente quando ela está apresentando
o mundo futuro para a visitante Connie. Ela se refere ao passado colonial dos Estados
216 Woman on the Edge of Time. p. 71. (grifo nosso) No original: Think of it this way: there was much good
in the life the ancestors led here on this continent before the white man came conquering. There was much
brought that was useful. It has taken a long time to put the old good with the new good into a greater good
…
217
He, She and It. p. 30. (grifo nosso) No original: At any moment in history, certain directions are forbidden
that lie open to the inquiring mind and the experimental hand. Not always is the knowledge forbidden
because dangerous: governments will spend billions on weapons and forbid small sects the peyote of their
ecstasy. What we are forbidden to know can be— or seem—what we most need to know.
117
Unidos como forma de apresentar um ponto do tempo em que havia coisas boas que
podiam ser usadas na organização da sociedade e na relação do homem com a
natureza. Sem dar maiores detalhes do que seria, ela relembra que os conquistadores
trouxeram coisas boas, igualmente. Isso não significa que Luciente estivesse
defendendo as atrocidades envolvidas no processo de colonização, mas que junto com
tais atrocidades, a vinda ao novo continente trouxe uma série de melhorias que antes
se circunscreviam ao velho continente.
O que parece estar implícito na fala de Luciente, portanto, é que o presente dela é uma
confluência de fatores, entre os quais estão as coisas boas existentes no passado e os
elementos bons descobertos no presente (este seria o futuro de Connie e do leitor). Isso
demonstra que em qualquer momento histórico há elementos bons e ruins, e trata-se de
uma necessidade social realizar o julgamento do que é bom ou ruim e a eliminação do
que é considerado nocivo para aquela comunidade. Portanto, o conhecimento e
avaliação do passado são primordiais para a criação de uma sociedade utópica (ou, na
visão de Luciente e seus conterrâneos, uma sociedade justa e equilibrada).
Evidentemente, o romance revela que tal medida não é apenas uma potencialidade. Ela
é uma realidade, porém, apenas uma determinada classe de pessoas (aquelas com
poder) realiza essa avaliação e seleção dos elementos do passado que devem justificar
suas ações no presente. É dessa forma, por exemplo, que se constitui certa visão do
que seja a ideologia.
No segundo excerto, parte do outro romance em análise He, She and It, a fala de Malkah
traz outra questão relacionada ao conhecimento do passado que Luciente apresentou.
Ele não se dá de forma livre, desimpedida. Existem forças sociais as quais provocam
uma interdição ao conhecimento, ao investir tantos recursos no apagamento de
determinados momentos do passado. Exatamente nesta proibição jaz uma mensagem:
aquilo que está oculto, ou aquilo se busca apagar, deve ser conhecido, pois isso tem
valor na hora de se estabelecer qual é o bem antigo. Portanto, a História é composta de
experiências positivas e negativas e o conhecimento de todos esses matizes é parte de
uma luta, na qual um lado busca suprimir ou impedir o acesso a uma parte do
conhecimento das experiências e outro lado deve lutar para conhecer com propriedade
exatamente o que se tenta proibir. Isso nos leva a pensar nas implicações do que os
romances revelam sobre a História, tendo como ponto de partida o debate sobre a
definição da própria História.
118
O conhecimento do passado: o conceito de História
218 TOUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History, Boston: Beacon
Press, 1995, p. 6
219
APPADURAI, Arjun. “The Past as a Scarce Resource”. In Man, New Series, Vol. 16, No. 2 (Jun., 1981),
pp. 201-219. Segundo o autor, cada uma dessas categorias é difinida de seguinte maneira: autoridade
envolve um consenso cultural sobre a origem, fonte e garantia de credibilidade da informação sobre o
passado. Continuidade implica igualmente um consenso sobre a ligação entre a fonte de autoridade e a
119
Apesar de tais fatores, como vimos, o estudo da História se baseia na ambiguidade de
sentidos que mencionamos e na dificuldade de diferenciar a história de uma estória.
Assim como o inglês, a língua portuguesa permite a diferenciação entre os fatos e as
narrativas, em dois termos diferentes, porém só um deles – história – tem prestígio no
português padrão e pode adquirir as duas conotações220.
Não foram poucos autores que tentaram encontrar uma definição do conceito de
História. Mais do que um simples campo de conhecimento das ciências humanas, foi
necessário entender os processos envolvidos na organização desses conhecimentos e,
ao discuti-los, podemos identificar de que maneira diversos elementos tais como
memória, história, conhecimento e conscientização estão interligados com a utopia e a
distopia. Como nos lembra Raffaela Baccolini221, a utopia normalmente tem uma relação
problemática com a história já que é considerada o “fim da História”, a realização final
do processo. Mas conforme ela segue observando, a utopia é, em vez de uma fuga da
história, um produto dela. A distopia também tenta suprimir a história, mas ela está mais
diretamente calcada nela. A grande parte do que acontece na distopia é o
desenvolvimento positivo ou negativo de algum elemento do presente, revelando nesta
mudança (que exagera alguns fatores ou destrói outros) o processo histórico em si. Não
é à toa que a maior parte das distopias clássicas demonstra um interesse grande na
história e, principalmente no seu controle (para revisionismo e apagamento), sendo o
exemplo mais notório o trecho de 1984, no qual Orwell fala sobre o controle do passado
como forma de dominação do futuro.
Baccolini nos aponta que o estudo sistemático do que seria a história, em perspectiva
filosófica, começa com Nietzsche em seu ensaio “O Uso e Abuso da História”. Por algum
motivo, a autora desconsidera os estudos sobre a Filosofia da História de Hegel, que
servirão de base para as filosofias da História posteriores, principalmente aquelas do
marxismo, que, no século XX, vão ter entre seus principais representantes o livro de
Georgy Lukács História e Consciência de Classe.
expressão do passado. Profundidade se refere ao consenso cultural dado ao valor relativo de diferentes
temporalidades na avalição do passado e interdependência está relacionada com a necessidade de
convenções sobre a ligação de tal fato passado com outros fatos passados que possam lhe ajudar a garantir
credibilidade.
220
No presente trabalho vamos preferir utilizar a história com os dois sentidos e usaremos estória apenas
quando deserjarmos não deixar nenhuma ambiguidade sobre o caráter mais ficcional do texto.
221 BACCOLINI, Raffaella. "A useful knowledge of the present is rooted in the past": Memory and Historical
Igualmente para Benjamin, "a história é o objeto de uma construção, cujo lugar não é
formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo-de-
agora"223.
Para exemplificar essa relação e torná-la mais clara, ele a ilustra: a moda (fashion)
mantém as últimas tendências ao passo que traz de volta aquilo que já foi utilizado no
passado. Porém, o filósofo ressalta, a moda é uma falsa mudança, posto que ela é a
maneira que a classe dominante encontrou de repetir o mesmo e ocultar seu horror a
mudanças mais profundas.
Seguindo essa linha de raciocínio, o que tanto Benjamin quanto Luciente indicam como
parte do processo histórico é a necessidade de se montar uma constelação com os fatos
do passado e o do presente, dando o que Benjamin chama de "o salto do tigre em
direção ao passado". Na interpretação de Michel Lowy, estamos falando de "se apropriar
de um momento explosivo do passado, carregado de tempo-de-agora. A citação do
passado não era necessariamente uma obrigação ou uma ilusão mas podia ser uma
fonte formidável de inspiração, uma arma cultural poderosa no combate do presente"224.
Assim, quando o mundo está vivendo momentos decisivos, o presente parece se
cristalizar e busca se naturalizar como se sempre tivesse sido assim, um eterno retorno,
o passado se faz necessário, como exemplo e contra-exemplo, uma forma de enxergar
materialmente, alternativas para o status quo.
222 LOWY, Michel. Aviso de Incêndio. p. 16. O livro de Lukács continua até os dias de hoje servindo de
modelo para a discussão do processo histórico. Um exemplo ilustre dessa discussão pode ser visto em
JAMESON, Fredric. “History and Class Consciousness as an Unfinished Project”. In: SOARES, Marcos;
Cevasco. Maria Elisa. Crítica Cultural Materialista. São Paulo: Humanitas, 2008. pp. 13-46
223 LOWY, Michel. Aviso de Incêndio. Tese XIV, p. 119
224 Idem. p. 121
121
Como veremos, o presente de Mattapoisett, mais do que o presente de Connie, se
apoderou criativamente de elementos relevantes do passado para tecer uma nova
malha social que os direciona e organiza as relações entre as pessoas.
Se o modelo de cidades não funcionou, foi preciso buscar outra forma de organização
do espaço social. Pela análise da história, a possibilidade escolhida, entre as diversas
opções disponíveis, foi a vila. Mattapoisett e as outras vilas que aparecem no decorrer
do enredo são pequenos bolsões de habitantes, que enfatizam as práticas coletivas, no
que concerne a alimentação (temos o comideiro [fooder]), a educação das crianças (a
casa das crianças), porém mantendo a individualidade, dando a cada um seu espaço
de moradia e seu quarto.
Uma característica importante das vilas é que existe um rigoroso controle de natalidade.
Cada bebê só pode nascer a partir da morte de algum dos membros daquela
comunidade. Tal controle pode ser visto como resposta simbólica ao medo do
crescimento desenfreado do contingente populacional. Em He, She and It, verificaremos
o movimento oposto, na figura da Glop, onde as taxas de natalidade são grandes e o
crescimento é desenfreado. E em Woman, o fato de que as mulheres não dão mais a
luz, o sexo sendo apenas recreacional, é um dos outros fatores que permite um controle
mais centralizado do número de habitantes: somente após um pedido para o setor
responsável pelo brooder, a “fábrica de bebês”, nas palavras de Connie, os fetos são
gerados, a partir de uma sopa de genes. Ela é a materialização mais radical do chamado
melting pot.
Não bastou apenas escolher a forma de vila, como a experiência mais válida de
organizar a sociedade: cada uma dessas vilas se associa com certos valores do
225 Woman on the Edge of Time. p. 68. No original: “We don’t have big cities – they didn’t work.”
122
passado, e tais valores são bastante específicos. A personagem Bee explica para
Connie que os
226 Woman on the Edge of Time. p. 103-4 No original: “Wamponaug (sic) Indians are the source of our
culture. Our past. Every village has a culture.” [...]“I suppose because you’re black. In my time black people
just discovered a pride in being black. My people, Chicanos, were beginning to feel that too. Now it seems
like it got lost again.” […]“At grandcil—grand council—decisions were made forty years back to breed a high
proportion of darker-skinned people and to mix the genes well through the population. At the same time, we
decided to hold on to separate cultural identities. But we broke the bond between genes and culture, broke
it forever. We want there to be no chance of racism again. But we don’t want the melting pot where everybody
ends up with thin gruel. We want diversity, for strangeness breeds richness.”
123
políticas, que passavam de lutas ofensivas para defensivas, mas
a forma mais característica de repressão durante este período
foi uma vigilância e agitação massiva e encoberta por agentes
do governo que desacreditavam tais atividades.227
Paralelamente a esse movimento, ocorria algo parecido com o que o personagem Bee
descreve para Connie. Enquanto os movimentos sociais eram massacrados pelos
aparelhos do Estado como as polícias e as legislações, um efetivo de pessoas acessava
as universidades e, a partir delas, faziam celebrações pela diferença. Houve uma
explosão de estudos de gênero e raça, de criação de institutos para estudos de minorias.
Se era impossível lutar na vida social, pelo menos no âmbito da teoria era possível exigir
um tratamento mais equânime. O que acontecia era um retorno daquilo que estava
sendo reprimido, à época da escrita do romance. Aquele orgulho perdido nas ruas era
recuperado nos corredores das universidades e no discurso acadêmico. Porém, ele
vinha com certo preço: a celebração das diferenças também servia como um discurso
para a afirmação das identidades e, como consequência, estava implícito determinado
discurso de pureza e uma nostalgia com relação às raízes. Deveria se recuperar uma
certa imagem modelo de raça ou etnia, que precedesse os processos históricos. A
mistura, portanto, não era tão bem vista por certos teóricos, mais puristas, que a
consideravam uma forma de falsificar o impulso de identidade dentro dos estudos da
diferença.228
Portanto, o discurso de Bee dialoga diretamente com aquele movimento crescente que
enfatizava as culturas diferentes, a variedade. Elas igualmente se colocavam contra a
homogenização da cultura, via mídia e outros aparelhos culturais do Estado. Tratava-se
de um caminho diverso daquele descrito por Connie em seu presente, visto que não
apenas na teoria, o modo de vida dos personagens do futuro era pautado por essa
imagem de uma cultura específica, a qual determinaria práticas sociais e até mesmo
valores.
227 GOLDSTEIN, Robert. Political Repression in Modern America from 1876 to 1976. Urbana: U of Illinois,
2001, . p. 555
228
Esta posição é baseada no pressuposto que apenas um membro de determinada minoria pode ser um
representante das suas ideias, portanto, somente um acadêmico negro pode falar sobre as questões
negras, somente uma mulher pode ser feminista, e somente um homossexual pode falar das expressões
queer. Isso é defendido por certos setores dentro desses campos de estudo.
124
Norte, essa cultura tinha uma série de maneiras diferentes de organização da
sociedade, um tipo específico de relação com a natureza, de lida com a terra e de
organizar seus papéis de gênero, etc. Devido às doenças trazidas pelos europeus, e as
guerras travadas com eles por posse de terras ou poder político, a população original
de quase 100.000 índios chegou a ser reduzida para 2.000.229 Ao recuperar elementos
dessa cultura, a vila de Mattapoisett parece dar materialidade a um processo de
reparação ou recuperação histórica. Durante os séculos XVIII e XIX, os remanescentes
das tribos indígenas viviam em enclaves e bolsões, praticamente isolados e invisíveis;
praticamente considerados cidadãos de segunda classe. Somente na segunda metade
do século XX as tribos conseguiram estabelecer diálogos com as autoridades, os
governos federais e estaduais, conquistando direitos e inclusão. Novamente, trata-se de
outra minoria que buscava ter algum tipo de voz na época do romance e conquistava
espaço na sociedade com bastante esforço.
A racionalização de um processo social como o racismo já existia séculos atrás. Ela foi
motivação de guerras e escravidão; as diferentes características físicas das pessoas as
marcavam enquanto identidade, e estabeleciam parâmetros de julgamento,
normalmente inferiorizando certos traços e valorizando outros, segundo o critério
daqueles no poder.230
229 CALLOWAY, Colin G. After King Philip's War: Presence and Persistence in Indian New England. Hanover
e Londres: University Press of New England, 1997.
230 Aqui podemos apontar para os estudos de Carlos Moore, no seu livro Racismo & Sociedade, p. 18:
“Tanto o racismo anglo-saxônico, surgido a partir da Modernidade ocidental e tendo como fundamento a
pureza racial, quanto o racismo dos países da dita América Latina, baseado no fenótipo ou na aparência
física, são simplesmente variantes históricas e reformulações de um mesmo racismo cuja consciência
histórica é mais antiga do que nos é apresentada, pois prolonga suas raízes nas estruturas pré-capitalistas
e pré-industriais.”
125
era exagerada, mas não tenho mais tanta certeza desde que
comecei a viajar no tempo.”231
Um ponto ao qual se deve chamar a atenção, contudo, está na fala de Luciente, que
segue a observação de Connie. Não apenas houve uma separação entre as
características genéticas e as determinações culturais, as pessoas do futuro podem
circular por entre as diversas culturas. Tal circulação parece depender da livre escolha
do indivíduo mediante ao fato de se identificar ou não com a cultura do lugar onde foi
criado e, se tal identificação não acontecer, pode-se procurar outro conjunto de valores
que se identifiquem melhor com as aspirações do indivíduo. Essa mobilidade vai de
encontro com duas teorias, populares à epoca de escritura do romance: a teoria da
utopia tradicional e a teoria da ideologia.
A primeira, já discutida em detalhe em nossa Introdução, afirma que para uma utopia se
afirmar, ela prescinde de certo isolamento espacial. Em seu ensaio “Of Islands and
Trenches: Naturalization and the Production of Utopian Discourse”, Fredric Jameson
afirma que desde os primórdios, com a Utopia de Thomas More, o gênero apontava
para um tipo de insularidade do desejo utópico: para funcionar, o desejo utópico precisa
ser contido em um espaço determinado. Ao invés disso, a estrutura aberta de que nos
fala Luciente parece indicar uma movimentação possível e até encorajada para aquele
tipo de ordem social acontecer.
231 Woman on the Edge of Time. p. 104. No original: “It’s so … invented. Artificial. Are there black Irishmen
and black Jews and black Italians and black Chinese?”“Fasure, how not? When you grow up, you can stick
to the culture you were raised with or you can fuse into another. But the one we were raised in usually has
a … sweet meaning to us.” “We say ‘we,’” Luciente began, “about things that happened before we were
born, cause we identify with those decisions. I used to think our history was exaggerated, but I’m less sure
since I time-traveled.”
126
defendiam que as determinações ideológicas eram formadoras e inescapáveis. Se este
fosse o caso na realidade do futuro, cada sujeito estaria fadado àquela cultura na qual
ele havia nascido. Porém, pelos conhecimentos de outras culturas e sem as
determinações genéticas implicadas em um local de nascimento, ou um grupo
específico, a pessoa pode ressignificar seu alinhamento à determinada cultura,
buscando em outras sua realização enquanto sujeito. Luciente, novamente, torna a
explicação mais plausível ao dizer que existe uma liberdade maior para se movimentar
entre culturas, porém, a cultura inicial tende a prevalecer mais, indicando a dificuldade
de se transcender seus alinhamentos ideológicos, ainda que naquela projeção, tal
transcendência seja mais realizável que no mundo de Connie ou no mundo fora do
romance.
Ao explicar que a pessoa tinha possibilidade de modificar sua cultura a partir da sua
escolha, podendo se mover de lugar para lugar dependendo do que acreditasse, o
excerto nos dá sinais de uma tentativa de solucionar os problemas apresentados pelo
gênero da utopia e pelo pensamento da época em que o romance foi escrito. O trecho
aponta para a história na medida em que apresenta uma resolução simbólica para um
determinado problema da época, o qual ainda se coloca como uma questão nos nossos
dias: como o sujeito pode resistir aos seus alinhamentos e se engajar com valores
diferentes, às vezes até opostos daqueles que formaram sua identidade.
Por fim, Luciente busca explicar o que quer dizer com a palavra “nós”, e ela o faz para
determinar como o pronome se refira a uma coletividade de pessoas, tanto aquelas
próximas de Luciente, quanto seus antepassados, os quais tomaram algumas decisões
e estabeleceram determinadas tradições que não apenas são conhecidas pelos sujeitos
do futuro, como também aceitas. Tal perspectiva, ao estabelecer uma continuidade das
decisões do passado, demonstra uma maior consciência histórica dos personagens de
Mattapoisett, porém esta é relativizada na sequência por Luciente, quando ela indica a
dificuldade de se conhecer os fatos históricos mais distantes no tempo sem haver uma
mediação grande, ou seja, algum tipo de exagero. Mesmo com possíveis formas mais
eficientes de armazenamento de informações e acesso a elas, a guia de Connie duvida
da veracidade de certos dados, fatos e relatos, e isso indica a dificuldade de se obter
informações históricas “objetivas”. No caso, há uma saída para tal sensação no
romance, a partir do momento que eles possuem a tecnologia para se projetar para o
passado e até trazer a consciência de Connie, de forma corporificada, para o tempo
deles. Isso permite a Luciente, e em menor medida a outros personagens, experimentar
o passado e confirmar (ou ressignificar) seus conhecimentos sobre ele. No caso dela,
127
houve uma confirmação daquelas histórias as quais, mesmo sendo verídicas, eram tão
absurdas ao olhar do futuro que poderiam ser consideradas exageros, justificados por
terem se transformado em narrativas de alerta (cautionary tales), lições de moral
inventadas para se evitar repetir os erros daquele passado.
232 Woman on the Edge of Time. p. 125. No original: “Our technology did not develop in a straight line from
yours,” Luciente said seriously, looking with shining black gaze, merry, alert in a way that cast grace notes
around her words. “We have limited resources. We plan cooperatively. We can afford to waste … nothing.
You might say our—you’d say religion?—ideas make us see ourselves as partners with water, air, birds,
fish, trees.” “We learned a lot from societies that people used to call primitive. Primitive technically. But
socially sophisticated.” Jackrabbit paced, frowning. “We tried to learn from cultures that dealt well with
handling conflict, promoting cooperation, coming of age, growing a sense of community, getting sick, aging,
going mad, dying—”
233 JAMESON, Fredric. “Progress versus Utopia, or, Can We Imagine the Future?”. In: Archaeologies of the
No século XX, essa opinião não era a regra. A imaginação do futuro se dava através de
metáforas do desenvolvimento técnico, de forma hegemônica. Sempre que estava no
poder, a Direita usava o discurso do progresso para justificar sua militarização, seu
controle. Porém, a alternativa a essa posição política também defendia o progresso.
Como explicava Walter Benjamin, já na década de 1930 e 1940, a própria Esquerda
(principalmente na figura dos socialistas stalinistas e dos socialdemocratas) contava
com o sucesso do progresso, pois ela defendia que “a representação de um progresso
do gênero humano na história é inseparável da representação do avanço dessa história
percorrendo um tempo homogêneo e vazio”235. Ele queria dizer que uma leitura
superficial de Marx fazia os socialistas enxergarem os modos de produção “evoluindo”
um do outro, como se o capitalismo fosse a consequência lógica e inevitável do
feudalismo, e o socialismo o resultado “natural” e inescapável do capitalismo.
Diferente da visão hegemônica de história como causa e efeito, ou como uma linha reta,
no sentido de acumulação de técnica, o romance dá sinal de uma ruptura e um
desenvolvimento não-linear da tecnologia, das ciências e, principalmente, da
sofisticação social exemplificadas por sociedades ditas primitivas. Este trecho, ainda
que não volte a repetir explicitamente, nos evoca a visão das sociedades indígenas, que
desenvolviam relações muito mais orgânicas com a natureza, coletivas e de cuidado
com seus membros.
Existe, sem dúvida, certa nostalgia pelos ideais pré-industriais e pré-capitalistas, mas
ela é seletiva, uma vez que ainda temos uma forte presença da tecnologia afetando
profundamente a vida social (vide o caso dos kenners, aparelhos que não existiam na
época do romance, mas hoje podem ser identificados como qualquer smartphone ou
tablet). O romance indica que essa seletividade é uma forma lícita de desenvolvimento
social.
234
MARCUSE, Herbert. “A noção de progresso à luz da psicanálise”. In: Cultura e Psicanálise. Trad. Isabel
Loureiro. São Paulo, Paz e Terra, 2001, pp. 114-5.
235 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. In: Löwy, M. Aviso de Incêndio, Trad. Wanda
No outro romance de Marge Piercy, He, She and It, a importância de uma identidade
cultural que organiza a vida das pessoas em pequenas sociedades é marcante. Dentre
os diversos tipos de comunidade do romance, aquela que se assemelha mais ao tipo de
relação vista entre história e cultura é a cidade livre de Tikva.
No presente da protagonista, algumas pessoas alteram seu nome e tal alteração tem
um objetivo bem claro: apagar suas raízes e buscar ser aceito em um tipo de sociedade
diferente daquela de onde surgiram. Trata-se da sobrinha de Connie, Dolores, que
passa a ser Dolly e seu irmão, Luis, que passa a ser Lewis. No segundo caso, mais do
que no primeiro, temos a tentativa de adquirir a pretensa respeitabilidade que o nome
de origem latina não permitiria dentro daquele tipo de sociedade em que eles viviam.
No romace distópico He, She and It, os personagens possuem nomes tradicionais: Shira
e Malkah Shipman, Avram e Gadi Stein, etc. Somente alguns persongens escapam
disso, no caso o ciborgue Yod e a visitante Nili, mas em certo episódio, Shira chama a
atenção para tal fato: “Se eu tiver que apresentá-lo seu nome será... Yod Oblensky.
Você é um primo do Avram.”237 Percebemos na hesitação da personagem que ela
entende que a ausência de um sobrenome naquele tipo de organização social causaria
certo estranhamento e poderia acarretar suspeitas, afinal, o sobrenome indica a filiação,
ou seja, as origens da pessoa. Além disso, pode ser indicador, por exemplo, da classe
social ou da origem étnica do sujeito, tanto quanto o primeiro nome era para Luis e
Dolores.
237He, She and It. p. 93 No original: “If I have to introduce you, your name is… Yod Oblensky. You’re a
cousin of Avram’s.”
131
passam a ter prioridade nas relações entre as pessoas e tornam-se mais significativos
que nossos nomes ou sobrenomes em nossa identificação (e, numa perspectiva menos
imediata, na nossa identidade). Piercy parece denunciar com tal detalhe o alto nível de
burocratização e desumanização realizado nessa inversão quando um número passa a
ocupar o lugar de um nome. Trata-se de uma estratégia narrativa que dá sinal de uma
das preocupações históricas da autora, uma vez que esse processo de inversão, em
menor medida, já era uma realidade na época de escrita do romance e ainda o é.
Existe uma liberdade na escolha dos nomes. O romance até faz uma ironia com a ideia
de sobrenome:
A explicação de Connie sobre a forma como ela acumulou nomes a partir de suas
relações é naturalizada, sua identidade é formada e reformada apenas no âmbito do
casamento e das relações de parentesco. Ainda que tente explicar de forma
simplificada, para os habitantes do futuro, todo aquele sistema era estranho,
238 Woman on the Edge of Time. p. 76. No original: Luciente was saying everyone’s name, leaving her
battered. Nobody seemed to have more than one. “Don’t you have last names?” “When we die?” Barbarossa,
a man with blue eyes and a red beard, raised his eyebrows at her. “We give back with the name we happen
to have at that time.” “Surnames. Look, my name is Consuelo Ramos. Connie for short. Consuelo is my
Christian name, my first name. Ramos is my last name. When I was born I was called Consuelo Camacho.
Ramos is the name of my second husband: therefore I am Consuelo Camacho Ramos.” She left out Álvarez,
the name of her first husband, Martin, for simplicity.
132
desconhecido. Ele pressupunha muitas coisas (casamento, família nuclear) da qual eles
haviam se desvencilhado muito tempo atrás. Diferente de uma extrapolação do que
existia, como no caso de Gildina, tratava-se de um sistema completamente diferente.
Mas Connie não se conforma e quer saber mais:
239Woman on the Edge of Time. p. 76-7. No original: They looked at each other, several adults and children
consulting the kenners on their wrists. Finally Luciente said, “We have no equivalent.” She felt blocked. “I
suppose you have numbers. I guess you’re only called by first names because your real name—your
identification—is the number you get at birth.” “Why would we be numbered? We can tell each other apart.”
The tall intense young person was staring at her. Jackrabbit, Luciente had said: therefore male. […] “But the
government. How are you identified?” “When I was born, I was named Peony by my mothers—” “Peony
sounds like a girl’s name.” “I don’t understand. It was the name chosen for me. When I came to naming, I
took my own name. Never mind what that was. But when Luciente brought me down to earth after my
highflying, I became Jackrabbit. You see. For my long legs and my big hunger and my big penis and my
jumps through the grass of our common life. When Luciente and Bee have quite reformed me, I will change
my name again, to Cat in the Sun.” […] “But why have two names at one time? In our village we have only
one Jackrabbit. When I visit someplace else, I’m Jackrabbit of Mattapoisett.”
133
trás o nome originário. Ainda, poderia ser uma forma de ocidentalizar os nomes dos
índios e escravos, cujas culturas de origem não seguiam a lógica dominante, ou a
tentativa, por parte de alguns judeus de esconder a origem pra fugir das perseguições.
Na fala de Jackrabbit há uma ideia implícita: somente numa comunidade cujo número
de habitantes é fortemente controlado e pequeno, todos se conhecem, um sistema de
nomeação como aquele funcionaria, a tal ponto que até mesmo fora daquela
comunidade, ele seria a determinada pessoa, a única, pertencente a ela. Esse tipo de
configuração social, a pequena vila com seus poucos moradores, parece ser uma
manifestação de um desejo igualmente histórico, uma espécie de nostalgia pelo que
Raymond Williams chamava de “comunidade cognocíveis” e Lukács se referiu como
“culturas fechadas”240. Mattapoisett é uma comunidade que lidou com a possibilidade do
crescimento populacional desenfreado e o resolveu, na forma de um controle de
natalidade bastante estrito e a separação total do sexo e da procriação.
Outra questão que aparece na fala de Jackrabbit é o seu nome de criança. Connie,
ainda desacostumada com o enfraquecimento das noções de gênero, indica que aquele
nome era feminino. Até hoje, nomes de flores são associados a mulheres. Mas o que
vemos, é que os personagens vão escolher seus nomes, de forma livre, sem se
preocupar muito com as questões de gênero. Então se antes os nomes estavam
atrelados a noções de parentesco, casamento ou gênero, eles passam a ser livre dessas
limitações.
Porém, ainda existem certas normas na escolha dos nomes. Moylan aponta três razões
principais para a origem dos nomes241: a natureza, a política e a língua espanhola. Na
lista que se segue estão inclusos personagens mais protagonistas e os secundários ou
terceários.
240 Tanto Raymond WILLIAMS em seu livro, The Country and the City, quanto Georgy LUKÁCS, em seu
Teoria do Romance, desenvolvem respectivamente os conceitos que tratam de uma cultura congnocível e
fechada, onde todos têm noção das regras que organizam a sociedade e as relações são muito mais
determinadas.
241 MOYLAN, Tom. Demand the Impossible. p. 135-6
134
Os nomes que Moylan indica estarem em espanhol, na verdade provêm do latim e
parecem fazer parte apenas do futuro. São eles Luciente, Innocente e Magdalena.
Exceto o último, os dois primeiros não são nomes muito comuns e se referem mais a
características específicas dos personagens: Luciente é aquela que traz a luz, e
poderíamos entender esta luz como uma metáfora para o processo de esclarecimento
(ou iluminação) pelo qual Connie passa e do qual Luciente é a pivô. Innocente está
relacionado com a ideia de pureza e, não à toa, é o nome de uma criança, a qual vai
passar pelo ritual de sobrevivência e nomeação, quando deixa para trás sua infância (e,
por mais clichê que seja, sua inocência) para escolher um novo nome, com o qual se
identifique mais, a partir dos seus conhecimentos do mundo.
Os outros nomes são aqueles escolhidos a partir de motivações políticas. É por eles
que os mattapoisettianos dão sinais da importância que a história vai ter para eles. Se
em nossos tempos, no Brasil, a forma mais comum de se nomear uma criança é dando
a ela nomes de celebridades, personagens bíblicos ou justapondo nomes comuns, no
caso de Mattapoisett, a ênfase em certos tipos de nomes será uma indicação da posição
ideológica, tanto da autora quanto dos personagens. Temos, assim, Diana, Sappho,
Deborah, Sojourner, Susan B, Erzulia, Neruda, Sacco-Vanzetti, Luxembourg, Red Star,
Bolivar, Tecumseh, Parra, Selma e Crazy Horse. Podemos dividi-los em categorias e
analisar a que tipo de formação ideológica e cultural tais personagens aludem.
Um dos únicos nomes que não indica uma pessoa é Red Star. O significado mais
facilmente recuperado pelo nome é a do símbolo do socialismo. A maioria das bandeiras
e estandartes dos países socialistas continha em si uma ou várias estrelas vermelhas.
Estaria o personagem buscando fazer uma homenagem a tais países? Por mais que
defendesse o marxismo, Piercy nunca foi abertamente uma defensora do comunismo
enquanto um partido, ou um sistema. Porém para a personagem, o símbolo e sua
histórica continha em si algo que merecesse ser lembrado.
Três dos nomes remetem a personagens mitológicos: Diana era a deusa da caça e da
lua. Virgem, abdicou do casamento e vivia na floresta. Ela era uma deusa que havia
conquistado uma independência dos desígnios masculinos. Não por acaso, Diana
aparece no romance como uma personagem forte e representando o lesbianismo (suas
seguidoras, todas mulheres) e no seu amor por Luciente. A segunda era a personagem
bíblica Deborah, que era a profetisa, conselheira, guerreira, ou seja, uma mulher
poderosa em Israel. Foi a única mulher juíza, uma espécie de líder das tribos e uma
autoridade. A terceira é a curandeira Erzulia, cujo nome recupera a tradição yorubá dos
135
deuses vudus, sendo ela a deusa da beleza, amor, dança, luxúria e das flores.242 São,
portanto, nomes femininos que invocam certa força, mas pertencem a personagens
secudários do futuro, os quais a narrativa não explora muito.
Os nomes masculinos são menos comuns, mas aparecem e também são significativos
enquanto resgaste de certos momentos e posturas históricas. Bolivar é referência direta
ao general responsável pelo processo de independência de diversos países latino-
americanos. Um pouco mais recente, temos Neruda, o qual, muito provavelmente se
refere a Pablo Neruda, poeta e político chileno, uma das maiores figuras do comunismo
chileno. O personagem que trabalha na criadeira (brooder) possui um nome composto:
Sacco-Vanzetti. A homenagem neste caso é feita a duas pessoas, Nicola Sacco e
Bartolomeo Vanzetti, anarquistas italianos presos, processados, julgados e condenados
nos Estados Unidos na década de 1920, sob a acusação de terem matado um contador
242 Em nossas pesquisas, encontramos o nome grafado sempre com um E final, normalmente com outros
nomes associados: Erzulie Fréda Dahomey, seria um exemplo.
243 Nas pesquisas, percebemos uma certa ambiguidade porque o nome do personagem está grafado com
OU, parecendo se referir ao país europeu, mas o nome da militante, mesmo em inglês é Luxenburg. Marge
Piercy pode ter tido acesso a informações sobre ela em fontes francesas. Um momento do romance que
prova nosso ponto sobre a referência a Rosa está na página 153, na qual fica óbvia a grafia do nome
afrancesado ao mesmo referente: “We’re the flavor of Eastern European Jewry. Freud, Marx, Trotsky,
Singer, Aleichem, Reich, Luxembourg, Wassermann, Vittova—all these were Ashkenazi!”
136
e um guarda de uma fábrica de sapatos. O julgamento ficou famoso mundialmente e foi
bastante controverso.
Dois nomes masculinos se diferenciam dos outros porque apontam para o período
colonial americano e personagens históricos relacionados à herança cultural indígena
daquela comunidade. São eles Crazy Horse, um dos líderes nas guerras dos índios
contra os brancos para proteger suas terras, e o líder da tribo dos Sioux; Tecumseh foi
um herói indígena, líder dos Shawnee. Ele lutou ao lado dos britânicos na guerra civil
porque os americanos estavam tomando suas terras.
Outro aspecto que vai trazer a história para um primeiro plano é a relação dela como
uma prática social e tal prática se materializa no papel dos feriados. Eles servem como
um exercício de memória, quando uma situação tendo sido considerada importante é
re(a)presentada a todos.
“Temos dezenas e dezenas de feriados” Jackrabbit se gabou.
“Para libertadores famosos. Para eventos importantes, como o
domesticamento do milho e do trigo. A virada do sol do norte
para o sul. Conflitos famosos… sua sociedade não usava rituais
para corporificar o que achavam bom? Como seus jogos de
futebol, desfiles, execuções...”244
244
Woman on the Edge of Time. p. 120. No original: “We have tens and tens of holidays,” Jackrabbit boasted.
“For famous liberators. For important events, like the domes-ticking of corn and wheat. The turning of the
sun north and south. Famous struggles … Didn’t your society use rituals to body what you thought good?
Like your football games, parades, public executings—”
137
O personagem Jackrabbit faz uma analogia de como os feriados materializam
determinados valores, aqueles que mais importam estão dentro do modelo de vida de
determinada sociedade. Pelos conhecimentos da história dele, no tempo de Connie
eram determinados eventos públicos que tinham prioridade enquanto modo de
corporificação da moral. Ele até confunde os dados históricos e coloca na mesma chave
os eventos esportivos e as execuções. Connie demonstra que ele está sendo
anacrônico, uma vez que os linchamentos ou outros tipos de execuções públicas não
são mais legais. Isso pode ser contradito por verificações históricas que nos dizem que,
mesmo sendo menos comuns, práticas de execuções sumárias ainda são presentes,
até em lugares democráticos como os Estados Unidos (cadeira elétrica, injeção letal245,
por exemplo).
O enfoque que a sociedade utópica dá aos feriados está ligado às já mencionadas teses
sobre o conceito de História de Walter Benjamin. Como nos explica Lowy, “para
Benjamin os calendários representam o contrário do tempo vazio: são expressão de um
tempo histórico, heterogêneo, carregado de memória e de atualidade.”246
138
revolucionárias que os decoram e as histórias de vida delas, daí
você pega seu bolinho e come. Daí, todos vamos pra festa.
“Mas isso é daqui duas semanas. Vocês têm grandes feriados a
cada duas semanas?”
“Temos cerca de dezoito feriados regulares, talvez outros dez
menores, e então as festividades quando ganhamos ou
perdemos uma decisão e quando quebramos recordes de
produção. Gostamos de feriados - uma época para lembrar das
heroínas e heróis, afrouxar as tensões, se divertir, para elogiar a
história que leva até nós...”
“Como a Harriet Tubman saqueando o Pentágono?”
“Zo, isso corporiza ideias vitais na luta… A história que a gente
da sua época celebra - todos os reis e presidentes e Colombo
que descobriu um país convenientemente vazio que já tinha sido
descoberto por um monte de pessoas que calhavam de estar
morando aqui - era tão lengendária quanto… Você gostou da
comida?”247
247 Woman on the Edge of Time. pp. 173-4. No original: “History gets telescoped a little. The kids get restless
if the ritual runs too long. They like best the part where they sack the Pentagon. Everybody joins in and then
at the bottom are little honey cakes with quotes from revolutionary women baked in them and stories of their
lives, so you can have your cake and eat it too. Then we all go party.” “That’s only two weeks away. Do you
have a big holiday every two weeks?” “We have around eighteen regular holidays, maybe another ten little
ones, and then the feasts when we win or lose a decision and when we break production norms. We like
holidays—a time to remember heroines and heros, to loose tensions, to have a good time, to praise the
history that leads to us—” “Like Harriet Tubman sacking the Pentagon?” “Zo, that does body vital ideas in
the struggle… The history you people celebrate—all kings and presidents and Columbus discovered a
conveniently empty country already discovered by a lot of people who happened to be living here—was just
as legendary… Did you enjoy the food?”
139
A reação de Connie ao ser apresentada a esta relação para ela tão estranha não é a de
questionar a qualidade do ritual, a maneira que a história se rematerializa, e sim a
proximidade entre uma celebração e outra. Se no mundo de Connie há no espaço de
um ano cerca de 12 feriados nacionais, o número elevado de celebrações no futuro a
surpreende.
Tal reação é reveladora de uma das diferenças cruciais entre o mundo de Connie e o
de Luciente: as diferentes relações dos dois com os conceitos de trabalho e lazer. Para
Connie, a ética do trabalho deve sempre sobrepujar todas as outras. A produtividade
numa escala maciça não deve ser interrompida com um afroxamento excessivo das
tensões, ou seja, os momentos de lazer não devem interromper o fluxo de trabalho. O
desejo por mais feriados está relacionado a outra demanda histórica, provinda das
classes trabalhadoras, relacionadas com a diminuição legal da jornada de trabalho, sem
consequente diminuição salarial. Esse era um dos assuntos em pauta à época da
publicação do romance, ao qual ele tenta dar uma resolução simbólica, ao reorganizar
as relações de trabalho, colocando-o mais como um fim do que como um meio. Os
personagens, nesse episódio, estabelecem um diálogo com a obra de estudiosos como
Paul Lafargue (em seu O Direito à preguiça), que desde o século XIX tratava da
crescente hegemonia do trabalho sobre o não-trabalho, e Herbert Marcuse, em diversos
de suas obras sobre o papel do trabalho contraposto ao lazer248.
O trecho termina com uma mudança brusca de assunto, conforme já observamos ser
uma característica de alguns dos diálogos, quando a explicação está se tornando muito
filosófica ou extensa.
248 Cf. LAFARGUE, P.O direito à preguiça (J. Teixeira Coelho Netto, trad.). São Paulo: Hucitec, 1999.
KILINÇ, Doğan Bariş. Labor, Lesiure and Freedom in the Philosophies of Aristotle, Karl Marx And Herbert
Marcuse. (Tese) Disponível em:
http://www.marcuse.org/herbert/booksabout/00s/06Dogan_Baris_Kilinc_Tez.pdf. Acessado em 28-05-
2015. Além disso temos a releitura de Freud e a discussão de Marcuse, em Eros e Civilização, sobre os
princípios da realidade e do prazer.
140
identificado como “Quinze anos atrás: o dia de Alef”, portanto, a premissa deste capítulo
é ser um flashback, no caso, sobre a adolescência de Shira.
As projeções para o passado, em Woman on the Edge of Time, podem ser classificadas
como sendo sobre determinados aspectos da vida de Connie. Alguns deles se referem
a episódios distintos de sua vida pregressa: sua relação com a família (pai, avó,
infância), suas relações amorosas (Claud, Martin), algumas experiências de privação ou
de alegria.
Uma das primeiras questões que pode surgir é sobre a veracidade dessa memória, que
é acessada em um momento de crise. Connie se encontra no hospital, em vias de ser
operada contra sua vontade, tendo uma crise nervosa. Seu medo a faz se projetar para
uma batalha no futuro, ao mesmo tempo em que sua consciência retorna para uma cena
250Woman on the Edge of Time. p. 331-2. No original: Suddenly she was standing in the living room of the
apartment where she had lived with Martin. Hot. Sweat ran down her back and collected under her breasts.
The air was so thick and sulfurous she began to cough. She was frightened, her stomach ached with fear.
Why? Martin was down there somewhere. Yes, in the street he was barricaded behind turned-over cars,
throwing bottles and rocks at the police. The riot police, the TPF, armed with rifles and shotguns and pistols
and tear gas canisters and gas grenades, came clanking down the street, stiff and mechanical. But their
voices bouncing off the houses were course with the joy of fury: Motherfuckin cocksuckin nigger spics! She
stood at the window watching, clutching herself across the breasts in her flower print summer dress. Martin
was out there somewhere, screaming helpless rage and about to be murdered, as the police gunned down
a fourteen-year-old they said had stolen a car, starting this riot. Then one of the police had turned and,
seeing her at the window, raised his gun and shot right at her. The window shattered inward. In terror she
screamed and fell to the floor among the breaking glass. For two days she had picked bits of glass out of
her arms. But he had missed her. They had missed Martin too that time.
142
do seu passado que igualmente retrata um conflito. Seria aquela uma impossibilidade
de escapar do sofrimento, para onde quer que se projetasse? Uma impossibilidade de,
em momentos extremos, figurar um lugar melhor, mais bonito?
Tendo experimentado realmente tal situação ou sendo ela apenas um reflexo, para o
passado, da sua incapacidade de fugir da dor, muitos elementos contidos na descrição
da personagem tornam verossímil a sua participação em um momento histórico recente
dos Estados Unidos: a repressão armada e ostensiva contra os negros e latinos por
meio da violência gratuita. Veja-se que na cena, há dois personagens: Connie, no
interior do apartamento, não está misturando-se com as pessoas que reagem na rua.
Ela observa de uma posição superior e escolhe não agir, visto que a ação se passa no
espaço externo. Porém, ainda que não realize nenhum tipo de ação contra o avanço da
polícia e mesmo tendo motivos para tal (seu marido está em algum lugar indefinido,
parte da resistência), a violência do momento histórico explosivamente invade sua
realidade, primeiramente a casa onde ela mora, por meio do tiro, depois o seu corpo, na
figura dos cacos de vidro. Mesmo sendo uma mera observadora da história, tal qual
uma pessoa que escolhe não agir, ela sofre as consequências dolorosas do proceso,
por menores que sejam, apenas fragmentos e cacos. Havia o risco que o tiro acertasse
o alvo, mesmo que aquele alvo não fizesse realmente parte do movimento de resistência
nas ruas.
E ao terminar o flashback, Connie faz uma observação. Houve uma espécie de falha no
objetivo da polícia. Uma falha dupla, ao tentar reprimir tanto o movimento interno
(doméstico) e o externo (protesto). Tanto ela quanto Martin haviam sido poupados.
Maureen Turim explica que “os flashbacks normalmente terminam no ponto exato no
qual devem ser bloqueados, no qual os imperativos de fixar intrepretações e fazer
julgamentos no presente devem se impor.”251 O julgamento aqui não é de Connie, que
está ocupada demais, sendo acometida por uma crise, para refletir. Mas o leitor pode
se perguntar: e se o polícial não errasse? E se o movimento negro ou a resistência latina
fossem completamente reprimidos, virando apenas um eco do passado? E se a situação
de Connie no passado ensinou algo para ela, e para o leitor, a respeito de como a
história vai afetar a todos, sejam aqueles que observam, sejam aqueles que participam?
Uma resposta preliminar seria que o presente está sendo afetado pela sua posição
enquanto latina, de pele mais escura. Aquele mesmo tiro parece ter tomado outras
formas, como o do bisturi, e pensamos: será que desta vez Connie vai conseguir
Enquanto, Turim continua, “consciente do passado, o espectador está livre pra esquecê-
lo mais uma vez”252, tal espectador ou leitor vai ser transformado por aquilo que observa,
e vai acumular a energia de compreensão e um desejo por mudar aquilo que foi, no
momento em que estiver pronto para realizar esta mudança. No caso do romance,
apenas no futuro, na sociedade que vê Connie como uma igual, que a considera uma
pessoa importante e crucial, ela terá meios de se defender e contra-atacar.
Ao registrar um momento histórico, o flashback serve como uma lição para demonstrar
uma experiência, vivida pela personagem ou por outras pessoas, e relaciona tal
experiência com o presente. Ela normalmente aparece em momentos cruciais, como o
do referido episódio e, ainda que disfarçado de uma memória dolorosa e uma cena na
vida de Connie, ela pressupõe um conhecimento dos movimentos históricos, da
materialidade daquele passado em consonância com uma série de outros eventos e
acontecimentos históricos que são seus pressupostos (a possibilidade da repressão) ou
suas consequências (o desempoderamento das ditas minorias de suas conquistas
sociais).
Porém, existe outro nível, já discutido em outro capítulo, que é a inserção da história na
narrativa por meio da escolha de gênero. Parte considerável do romance He, She and
It se caracteriza como uma narrativa dentro de outra narrativa e, porque essa segunda
narrativa fala de um tempo passado, estamos nos domínios do romance histórico.
252 Idem.
144
Muitas pessoas já discutiram o papel do romance histórico na atualidade. Segundo
Diana Wallace, ele foi um dos gêneros mais importantes do século XX para autores e
público femininos. Porém, o que houve foi uma movimentação da crítica no sentido de
apontar a produção dos romances históricos, principalmente aqueles escritos por
mulheres, apenas como romances com histórias de amor (em inglês, romance)
escapistas.253
Ademais, estudiosas feministas apontaram para a exclusão das mulheres das narrativas
históricas ditas tradicionais. Por isso, as autoras precisaram ressignificar a forma do
romance, para que elas pudessem dar conta dos que foram excluídos da Grande
História. Na pena de tais escritoras, o gênero sofreu então uma hibridização,
associando-se a outros gêneros considerados mais populares como o romance água-
com-açúcar, o de aventuras, o de detetive, a fantasia e o gótico.
Podemos encontrar diversas camadas na forma que o romance vai se relacionar com a
história, ou seja, ser propriamente considerado histórico:
Além de todos esses usos, podemos ver também o passado sendo usado como uma
forma de apontar para representações alternativas, como as de raça ou os de
sexualidade ou gênero, dessa forma, provando-os contingentes e historicamente
construídos em vez de essenciais.
253 WALLACE, Diana. The Woman’s Historical Novel. British Woman Writers 1900-2000. London: Palgrave,
2005.
254 Idem. p. 4
145
do que seja a narrativa, e estabelece o tipo de relação com o seu leitor, seja Yod, seja
o leitor do romance:
Se a história não é a mesma que aquela contada antes, podemos ler uma mudança,
uma interpretação do passado a partir das experiências do presente. A grande questão
de Yod, no momento em que Malkah o está programando, se refere a sua humanidade.
Seria ele humano ou não? Portanto, Malkah acha válido apresentar uma narrativa na
qual um de seus personagens se debate com as mesmas questões. Por sua criação
judaica, ela procura nesta tradição o exemplo que pode servir para estabelecer seu
ponto. Não apenas nisso, há uma série de coincidências que aproximam Praga da
imaginada Tikva: ambas sofrem uma ameaça externa, o golem, assim como o ciborgue,
se apaixona por uma jovem de seu convívio (Chava e Shira), etc. Porém, diversos
detalhes da história não serão relevantes, porque eles não servem diretamente para
contradizer ou reforçar a lição que Malkah busca ensinar a Yod.
Além disso, Malkah se associa a uma diferente noção da verdade. Ela não quer se
comprometer com Yod ou com um historiador tradicional que teriam acesso aos
documentos, a outros tipos de registros dos fatos, que poderiam contrariar a narradora.
Moshe Idel, no início da década de 1990, apresenta sua obra Golem: Jewish Magical
and Mystical Traditions on the Artificial Anthropoid. Nesse livro, o acadêmico faz uma
crítica a Scholem, no sentido que ele desconsiderou tradições mágicas de outras
culturas, no encontro com a cultura judaica. Apesar disso, Idel excluiu de seu trabalho
as representações do golem como figuras literárias.
O referido texto de Grimm, uma nota colocada em um artigo seu escrito em 1808,
baseava-se em outros textos como o do poeta alemão Cristoph Arnold. Porém, não
havia nessas primeiras histórias uma ligação entre a figura do golem, Praga e o rabino
Lowe. Somente em meados do século XIX, com o romance Spinoza de Berthold
147
Auerbach, a tradição do golem de Praga começa, e no decorrer do século XX diversos
autores vão recorrer a essas figuras, dando a elas, por exemplo, o papel de herói
salvador dos judeus contra os movimentos de líbelo de sangue e os pogrom (os ataques
em massa espontâneos ou premeditados contra os judeus e outras minorias étnicas na
Europa).
Após Auerbach, que escreveu seu romance em 1837, temos nos anos 1840 diversos
autores se remetendo à figura do golem, sendo eles alemães judeus, tcheco-alemães
judeus e não judeus.256
Porém, conhecedora de toda essa tradição, Malkah de He, She and It e Piercy decidem
alterar algumas coisas. Uma das alterações mais significativas está na importância dada
a uma personagem que não consta das outras narrativas de golem, a neta dele, Chava.
A presença dela serve ao propósito de Malkah de estabelecer um tipo de paralelo entre
a realidade do futuro, na figura de sua neta Shira257.
Em certo trecho do romance, Malkah indica a sua adesão a este tipo de comportamento,
de alteração do passado como uma espécie de mediação, para que um fim seja atingido.
Apesar de este episódio estar nos capítulos do futuro, em uma conversa com a neta
Shira, ele serve ao propósito de explicar o modo operacional da personagem na sua
narrativa para Yod:
256 As referências dos últimos parágrafos foram retirado de NEUBAUER, John. “How did the Golem get to
Prague”. In CORNIS-POPE, Marcel; NEUBAUER, John. History of the Literary Cultures of East-Central
Europe: Junctures and Disjunctures in the 19th and 20th Centuries. Amsterdam: J. Benjamins, 2010.
257 Ambos os nomes provêm do hebraico. No caso de Chava, que é uma parteira, seu nome remete à
primeira mulher, Eva, em português, e siginifica “a mãe de todos”. Shira, por sua vez, também um nome
proveniente da mesma língua, significa “minha canção”. Evidentemente, além dos significados, também há
marcas das diferentes características das personagens e tais diferenças são importantes para a percepção
que as duas narrativas não se espelham apenas, mas são desenvolvimentos diferentes em contextos socio-
históricos diferentes.
148
da sua mãe. Pra que você não ficasse me fazendo perguntas.
Sua mãe é uma fugitiva política, que vive da sua esperteza e
seus contatos.”
Shira fitou sua avó, boquiaberta. “Você quer dizer que não foi
criada pela sua avó e assim acontecia por dez gerações?”
“Foi uma boa história, não é?” Malkah disse, com orgulho. “Acho
que você gostava dela.”
Mas Shira estava sentindo que todas suas certezas de infância
mudavam de lugar.258
Da mesma forma que a reação de Shira é a ressignificação dos paradigmas que ela
conhecia até então, ao descobrir que as tradições também são socialmente construídas,
e não dados, fatos estanques, a posição do leitor ao descobrir fatos sobre o passado
das personagens é a de alterar suas pressuposições, questionar, ou revalidar suas
posições. Essa mudança acontece quando o leitor é colocado em contato com a história
de Joseph e ela é um suporte para que se compreenda melhor a história de Yod e o
mundo em que ele vive.
A característica final, sobre como a forma da narrativa histórica pode sofrer influências
do presente, é o uso da linguagem. Piercy fala sobre suas escolhas de linguagem na
nota que apresenta em City of Darkness, City of Light. Segundo a autora, ela buscava
mais um senso de verdade em seus personagens do que uma questão de
verossimilhança linguística, principalmente nos diálogos. Em He, She and It, ela não
comenta nada sobre o assunto na sua nota final, mas podemos observar um movimento
parecido. Uma série de palavras em hebraico é usada, de forma esparsa, mas se busca
adequar a linguagem diante da posição de cada personagem, sem um rebuscamento
que a linguagem do século XVI teria. Ademais, como já apontado, a personagem é a
narradora e os capítulos normalmente começam com comentários, paralelos que ela
mesmo traça, dicas para que Yod perceba determinados detalhes. Malkah coloca Yod
258 He, She and It. p. 83. No original: “No, love, she was never going to take Ari. Her life is too dangerous
for any child to run with her. When you were a child, I made up that little myth about our family to explain to
you why you were being raised by me instead of your mother. So you wouldn’t ask questions. Your mother
is a political fugitive, and she lives by her wits and her connections.” Shira found herself staring with slack
jaw. “Are you telling me you weren’t raised by your grandmother, back to the tenth generation?” “It was a
good story, wasn’t it?” Malkah said proudly. “I thought you enjoyed it.” But Shira felt as if all the rooms of her
childhood had suddenly changed place.
259 WALLACE, Diana. Op. cit. p. 204
149
em uma posição especial dentro da narrativa, de forma que, mesmo que o leitor tenha
problema em sentir empatia com as dificuldades do ciborgue, eles vão compartilhar um
mesmo espaço: aquele de leitor.
Esse é um diálogo entre o golem Joseph e o personagem David Gans. Podemos dividi-
lo em duas partes. Na primeira, o cientista explica a Joseph sobre a relatividade da
verdade dependendo da mudança de posição ou ponto de vista. Tal informação reforça
outros exemplos já citados sobre a adesão da narradora a certo tipo de modo de
enxergar a realidade. Se Bruno utilizava essa premissa nas suas teorias matemáticas e
físicas, Malkah as vai utilizar na sua forma de organizar seu relato. A segunda parte
trata do receptor da mensagem, e relaciona o fato de ser leitor ou ouvinte com a
posicionalidade na História (num crescendo, a mensagem se dirige a Joseph, a Yod,
que é o ouvinte de Malkah, e aos leitores do romance).
A parte em destaque no excerto expressa, assim, uma das opiniões acerca do conceito
de história, e a necessidade da leitura como forma de travar contato com a tradição e
com as atualidades. Ao propor essa posição, Piercy estabelece uma terceira posição no
jogo de temporalidades do romance.
Se temos a ação que se passa em Tikva, num futuro próximo, e a projeção para o
passado ocorre na estória contada por Malkah, vamos perceber a temporalidade do
260He, She and It. p. 240. (grifo nosso) No original: “The idea you have just postulated resembles the theories
of Giordano Bruno, who says that observation and ultimately truth is relative to the position from which we
observe. The Inquisition has had him for eight years now, torturing him to make him recant. Many people,
Joseph, assume you are slow mentally because you are ignorant of many things. But the two are different.
One is an inherent weakness, but the other is simply a lack to be overcome.” “Chava says I can think, that
I’m not stupid. She’s been teaching me to read and write German and Czech and Hebrew.” “When you read,
Joseph, you can place yourself in history and share in all the thoughts of those who are now dead as well
as those now living.”
150
leitor inscrito na narrativa, no papel de um dos espelhos que Marge Piercy desenvolve.
Joseph pode ser a contraparte de Yod, mas enquanto são os receptores da estória e da
história, Yod e o leitor compartilham desse mesmo lugar, fazendo sentido das ações
daqueles que estão mortos e daqueles que ainda vivem.
O romance vai se configurar como um romance histórico autêntico, porque ele cria
exatamente essa terceira posição, que só pode existir como o ponto de interseção entre
o futuro e o presente. Segundo Jameson, que vai tentar definir o romace histórico a
partir do que ele não é, temos a seguinte situação:
Conforme pudemos demonstrar na presente análise, He, She and It cria uma ligação,
ou nos termos de Jameson a interseção entre dois tempos (futuro com passado) e os
dois planos (histórico e existencial). Se aproximando dessa noção de Jameson, o crítico
Robert McAlear nomeia tal posição intermediária: ele chama a narrativa de
A grande protagonista deste capítulo foi a História. Parte dela, e a compondo, tivemos
a memória. Sua importância está relacionada com o fato de ela ser objeto de diversas
disciplinas e poder receber uma série de conotações, porém neste contexto, assim como
Vincent Geoghegan, pensamos nela enquanto um conjunto de “sistemas e práticas”264.
A memória está associada com processos conscientes e inconscientes e as diversas
maneiras como algo é memorizado, depois se tornando objeto da lembrança. Podemos
nos lembrar de fatos, informações, regras e procedimentos, não apenas da memória de
experiências individuais. Podemos nos lembrar, de maneira similar, daquilo que
diretamente experimentamos e do que aprendemos por meio de outras pessoas ou
meios diversos: textos, imagens, situações.
262
McALEAR, Robert. Op. cit., p. 173-4
263 LYONS, Bonnie. An Interview with Marge Piercy. Contemporary Literature, Vol. 48, No. 3 (Fall, 2007),
pp. 327-344. University of Wisconsin Press. p. 334
264 GEOGHEGAN, Vincent. “Remembering the Future”. p. 15
152
ficção. Escrevo ficção focada em personagens. A vida dos outros
é fascinante para mim.265
O ponto principal na discussão desses autores, e sua ligação com a Utopia, é, por
exemplo, a distinção estabelecida por Bloch entre a anamnesis ou recordação
(recollection) e a anagnorisis ou reconhecimento (recognition). Enquanto a primeira se
baseia inteiramente no passado, a segunda implica que não existe nunca uma relação
de correspondência entre o passado e o presente devido aos elementos de novidade
que se encontram entre um e outro. Assim, “para que a memória e a história não sejam
um entrave para o progresso e a Utopia, tem que haver espaço para a novidade” 267.
O segundo romance de Piercy sob estudo neste trabalho, He, She and It, foi publicado
em 1991, bem próximo a quando o ideólogo nipo-americano Francis Fukuyama afirmou
o fim da História. Evidentemente, a obra de Fukuyama, intitulado O fim da História e o
último homem, defendia que a História, a qual, segundo o marxismo ortodoxo, nada
153
mais era que a luta de classes, estava terminada, com a dissolução da União Soviética
e o “fracasso do socialismo real”.
O romance, sendo em parte um romance histórico, vai captar o mesmo tipo de estrutura
de sentimento, porém, parece objetivar a demonstração que nada poderia ser mais
equivocado do que uma defesa do “fim da história”. Piercy, em diversas ocasiões, vai
se colocar como uma defensora da História, e faz dela um dos seus materais narrativos
mais importantes.
Mas qual é o objetivo ou a motivação para que o romance, sendo ficção científica, se
preocupe com o passado em vez de se projetar apenas para o futuro? Qual é o real
interesse na história, que é uma disciplina não relacionada com a arte, e sim com fatos,
dados?
Em diversas situações, Piercy vai se colocar como uma defensora de certa posição
sobre a História. Todas essas opiniões, dadas em entrevistas e ensaios só servem para
reforçar as ideias e conceitos de história e de memória presentes nos romances. São
todas manifestações diferentes do mesmo fênomeno, ou seja, do programa político-
ideológico e estético-filosófico da autora.
A mais séria consequência tem a ver com o dito popular de reinventar a roda, ou seja,
por desconhecimento do passado, o presente vira uma repetição de sucessos ou
fracassos antes já experimentados. E uma das causas apontadas pela escritora é a
onipresença da mídia, que faz uma seleção e uma transformação da história em meros
espetáculos e eventos. Esses passam a ser a única forma de acesso à história, que
busca apagar o passado ou disfarçá-lo. Isso se aproxima bastante a um trecho de He,
She and It, no qual a substituição da história pela mídia também era denunciada:
271 Aqui Marge se refere a programas da TV americana, respectivamente, “Pawn Stars”, “Hillbilly
Handfishin’” e “Ancient Aliens”. O primeiro é um reality show sobre a vida de uma família que possui uma
casa de penhores. O segundo é um programa sobre pesca e o terceiro apresenta hipóteses de antigos
astronautas e propõe que textos históricos, arqueologia e lendas contêm evidências de contato humano-
extraterrestres.
272 FURLANETTO, Elton. “There is no Silence. 419-20
155
que eles conheciam era o que pegavam no estímulis, portanto
Robin Hood, Zowie, o cachorro voador, e Napoleão, eram
igualmente históricos e todos simultâneos.273
Ciente de todas essas determinações, Piercy precisava indicar alguma solução para
combater tal processo ou resistir a ele. Assim como a memória e a história são sociais
e coletivas, o esquecimento e o apagamento da história permeiam a sociedade
contemporânea e têm motivações políticas. A arte, para Piercy, vira a ferramenta pela
qual a história voltará ao centro do palco e as diversas manifestações dela vão convidar
o leitor a se questionar sobre seu passado e como consequência, seu presente. Para
Piercy, como revela o nome de um de seus ensaios, as pessoas devem ser “ativas no
tempo e na história”. Ela se sente particularmente “responsável por muitas pessoas com
vidas enterradas: pessoas que foram consideradas invisíveis pela história já que elas
são despoderados na sociedade que é criada, povoada, limpa, arrumada e defendida
pelo trabalho deles.”274
Ela volta a reforçar esse ponto, da atividade, do engajamento com o seu tempo, a partir
do que a pessoa conhece do seu passado individual e do passado da sua (e de outras)
cultura(s). Não apenas o que está desaparecendo, a história precisa ser consertada,
reescrita:
Quando eu era criança, foi a primeira vez que notei que nem a
história que me ensinavam nem as estórias que me contavam
se relacionavam comigo. Comecei a consertá-las. Estou fazendo
isso até agora. Para mim é uma tarefa importante nos situar na
linha do tempo para que sejamos ativos na história. Precisamos
de um passado que tenha relação conosco. Depois de qualquer
revolução, a história é reescrita, não apenas por empolgação
partidária, mas porque o passado mudou. Da mesma forma, o
que a gente imagina estar nos projetando para o futuro tem muito
peso em definir o que a gente considera factível para produzir o
futuro que queremos e evitar o futuro que tememos.275
273 He, She and It. p. 320 No original: Most kids in the Glop went to work at ten, never having learned to
read or write. The only history they knew was picked up from the stimmies, so Robin Hood, Zowie the Flying
Dog and Napoleon were equally historical and all simultaneous.
274 PIERCY, Marge. Active in Time and History. In: Allende, Isabel et al. Paths of Resistance: The Art and
156
and the Promise of America, The British Marxist Historians, The Powers of the Past, The
Education of Desire e "Why do Ruling Classes Fear History" and Other Questions.
Em seu livro The Powers of the Past, o subtítulo é “Reflexões sobre a crise e a promessa
da História”. Tal crise já havia sido detectada por Jameson, por exemplo, no começo
dos anos 1980, quando ele percebeu estar num contexto no qual a história não era um
dado, e lançou a máxima “Always Historicize”. Para Kaye, a dita crise tinha quatro
causas específicas: a crise no sistema educacional, a crise nas grandes narrativas, a
apropriação do passado pela Nova Direita e a popularização do “fim da história”.
Uma segunda razão para a crise está na perda de interesse nas grandes narrativas
(grand narratives) ou narrativas governativas (governing narratives). Com a perda do
consenso nacional após a Segunda Guerra, muitos países precisavam de uma nova
maneira de manter a coesão social, uma nova ideologia que desse conta de unir
diversas classes mascarando interesses comuns, dando uma forma simbólica de
coesão. A social-democracia do Estado de Bem Estar Social foi o modelo escolhido a
princípio, mas ele foi paulatinamente substituido por uma ideologia de progresso e
melhoria. Porém, em meados dos anos 1970, as grandes narrativas sofrem um revés
provocado pelo pós-modernismo. De acordo com David Harvey, “Abstendo-se da idéia
de progresso, o pós-modernismo abandona todo o sentido de continuidade histórica e
memória, ao mesmo tempo que desenvolve uma capacidade incrível para saquear a
história e absorver o que ele encontra nela como se fosse algum aspecto do
presente.”277
Além disso, o mundo atravessava uma crise nos anos 1970 e 1980, e houve uma
reestruturação econômica, numa nova fase do capitalismo com sua financeirização e de
poder com a ascenção da Nova Direita. Já falamos destes processos quando tratamos
da passagem de um período mais utópico, para um mais distópico. Como um novo
poder, e mesmo com o declínio das grandes narrativas, esses políticos precisavam de
276
KAYE, The Powers of the Past, p. 31
277HARVEY, David. The Condition of Postmodernity (1989) apud KAYE, Harvey. p. 63. Ele também aponta
para a obra de Jameson sobre o Pós-Modernismo para uma discussão a respeito do ataque às grandes
narrativas.
157
um corpo de valores e ideias para provocar algum consenso que os mantivesse no
poder. Eles precisavam demonstrar que seus valores, aspirações e preocupações eram
aqueles do “povo”, da “nação”. Para tal, por meio da modificação do currículo escolar,
episódios da história foram apropriados e ressignificados e passaram a ser episódios
chave que vão justificar, ou naturalizar, as ideias do presente. Kaye chama tal
movimento de “os usos e abusos do passado”278. Nas palavras do autor, “[p]ara
conseguirem soldar os elementos díspares da Direita, confrontando e minando os
consensos pós-liberais e pós-social-democratas, Thatcher e Reagan forçosamente
mobilizaram versões particulares do passado dos Estados Unidos e da Grã-
Bretanha.”279
Finalmente, mesmo com a saída da Nova Direita do poder, muitos sucessos foram
alcançados por ela, como a neutralização do movimento operário tanto nos Estados
Unidos como na Inglaterra, e em maior âmbito, uma despolitização da vida pública. O
consenso virou acomodação e resignação.280 Os anos 1990, na verdade, como já
identificamos na obra de Fukuyama buscava
158
informações históricas de maneira a estabelecer constelações, juntando presente e
passado e projetando futuros de forma inovadora, modelos para elogio ou crítica, que
visavam resistir à hegemonia da classe dominante.
Anos antes de Kaye estabelecer soluções simbólicas para a crise da história, que nos
afeta até os dias de hoje, Marge Piercy, e toda a tradição à qual ela pertence, já lidava
de alguma forma com os conteúdos históricos da “amnésia social”, em busca de uma
utilização política e engajada, sobretudo crítica, do passado (e, consequentemente do
futuro).
A autora mobiliza, então, os diversos aspectos que Harvey Kaye indica formarem os
poderes do passado, a dizer, perspectiva, crítica, consciência, recordação
(remembrance) e imaginação.283
Perspectiva, para Kaye, é “a consciência de que a forma como as coisas são não é a
maneira como elas sempre foram ou a forma como elas vão, ou devem,
necessariamente, ser no futuro.”284 No âmbito dos romances, percebemos o contraste
enorme entre a forma como as coisas são e a forma como elas vão ser, numa sociedade
como a de Mattapoisett. As novidades introduzidas por aquele futuro servem como
forma de criticar aqueles elementos da sociedade atual dos quais Piercy discorda.
159
projeta para o futuro "286. Portanto, na medida em que os romances terminam de forma
aberta, sem realmente selar alternativas, deixando no ar o que vai acontecer aos
personagens e àquela sociedade inventada, percebemos o exercício desse tipo de
tratamento da história. Mesmo na utopia, com seu impulso de totalização e fechamento,
há uma ênfase na imperfectibilidade e na busca por mais melhorias, levando-nos a
entender a história como processo e a luta como sempre necessária.
Importante ressaltar, que Piercy demonstra consciência também ao ver a história não
apenas como um processo dialético tradicional de tese, antítese e síntese, como deseja
Kaye, porque tal concepção, lembra Diana Wallace, é masculina, vinda de Hegel e
Lukács. Wallace, e como observamos nos romances a própria Piercy, busca em Gerda
Lerner um modelo de história das mulheres, que normalmente se caracteriza como
“espasmódica, desigual e repetitiva”.287
160
sociais e apresenta soluções simbólicas mais ligadas a uma ética humanizadora e
reparadora.
Assim como os personagens de Woman on the Edge of Time, que se deslocam do futuro
ao passado, para alistar Connie em suas lutas para que o futuro em que vivem seja
aquela que virá a ser, nossa ida ao passado, até quando o romance foi produzido,
também tem uma motivação presente. Ambos os romances apresentam formas de se
lidar com a memória social e a história que se diferenciam da maneira hegemônica atual
e ao buscar questionar tal relação contemporânea, os elementos do passado
apresentam alternativas, organizam argumentos e liberam a imaginação. A semelhança
entre a teorização dos poderes do passado por Harvey Kaye e a colocação de tais
poderes em prática, na figura dos romances, encoraja que busquemos nos dias de hoje
uma nova mediação de tais poderes, para que não apenas historiadores, mas artistas,
leitores e uma variada gama de agentes sociais sejam mais críticos e defensores de um
futuro mais justo e emancipado para todos.
A crise da história, vale lembrar, não afeta apenas os Estados Unidos. Ela faz parte de
um processo mundial de globalização e parece ter um efeito forte nos países coloniais,
os quais se dizem ser países com uma história recente. O que parece haver é uma
busca pelo apagamento dos processos violentos que eram pressupostos da colonização
e da exploração, e começar a contar a história de um país a partir de sua independência,
por exemplo, é fator determinante nesse processo ideológico. O Brasil, assim como
outros países da América Latina, da Ásia e África precisa se confrontar igualmente com
seu passado, recente ou distante, para que não haja uma relação acrítica que pode ser
denunciada como um “abuso do passado”. Se há pessoas, em 2015, que protestam pela
volta de uma ditadura militar, isso parece ser sintomático o suficiente para que se
busquem alternativas de mediar o passado com o presente, utilizar os poderes do
passado para tornar a sociedade (em âmbito local, na mesma medida que global) de
hoje mais crítica e, por conseguinte, mais justa.
Finalmente, outro dos grandes temas que organizam as narrativas, e do qual vamos
falar, é a questão da violência. Tanto na forma dos romances, quanto, e principalmente,
em seus conteúdos, a violência se faz presente e ela é um dos temas mais importantes
para a Esquerda no século XX e começo do XXI. Ela está ligada a questões históricas
e éticas, e qualquer pessoa que se diga política deve tomar alguma posição diante dela.
161
Capítulo 3 – “Essa é uma história real, isso é o que eu conheço sobre virtude, isso
é o que eu conheço de bondade nessa nossa época”290
Os romances estudados vão, dessa maneira, servir como registros dos mais diversos
tipos de violência. Nosso primeiro passo será apresentar os modos de representação,
as possibilidades e relações da violência no mundo. Para tal, será necessário apresentar
algum tipo de mediação teórica, dos estudos da filosofia política sobre o assunto. Além
dessas mediações, o episódio inicial de cada romance vai servir como um primeiro
exemplo da presença permeante de elementos violentos no romance.
Finalmente, os personagens vão realizar uma ação baseada nas reflexões deles. Tais
ações dão conta do caráter dialético do debate, já que as obras oferecem uma visão
alternativa para o uso da violência, não apenas enquanto destruidora, mas como um
aspecto de resistência e luta. O fechamento dos romances, o episódio que interrrompe
a ação, será o lócus onde poderemos enxergar tais consequências mais claramente.
290 Emprestamos o título deste capítulo de um poema de Marge Piercy chamado “A day in the life”, publicado
originalmente em What are big girls made of? e republicado em The Hunger Moon: New and Selected
Poems, 1980-2010. New York: Alfred A. Knopf, 2012. O poema descreve o dia de uma pessoa que trabalha
em uma clínica de aborto.
291 FURLANETTO, Elton. There is no Silence: An Interview with Marge Piercy. p. 425
162
Representações: dissecando a violência
A cena inicial de Woman on the Edge of Time estabelece o tom do romance. Somos
apresentados a diversos personagens em uma situação-limite, que pode ser sintetizada
pelo excerto:
Nas primeiras cenas de Woman on the Edge of Time vemos, portanto, a materialização
de um conflito. Ele se configura pela presença de duas mulheres, Connie e Dolly, sendo
292 Woman on the Edge of Time, p. 12-3. No original: Geraldo hit the door harder. “Open the door, you old
bitch! Open or I’ll break it down. Bust your head in. Corne on, open this fucking door!” He began kicking so
hard the wood cracked and started to give way. He would break it down. She yelled, “Wait! Wait! I’m coming!”
Not a door opened in the hallway. Nobody came to look out. She undid the locks and hopped back, before
he could slam the door to the wall and crush her behind it. […]“Tía Consuelo,” he crooned. “Caca de puta.
Old bitch. Get your fat and worthless ass out of my way. Move!” “Get out of my house! You hurt her enough.
Get out!” “Not anything like I’m going to hurt that bitch if she doesn’t shape up.” The back of his arm striking
like a rattlesnake, he shoved her into the sink. […]Now turn it off or Slick will bust your lip.” Geraldo leaned
on the doorframe, lighting a cigarette and dropping the lit match on the floor, where it slowly burned out,
making a black hole in the worn linoleum. “Time to rise and fly. I brought a doctor to fix you. Up now. Move!”
“No! I don’t want him to touch me! Geraldo honey, I want this baby!” “What shits you pushing? You think I
sweat bricks for the kid of some stupid trick with dragging balls?
163
agredidas por um homem chamado Geraldo e um outro homem, ao qual ele se refere
como Slick. As atitudes do homem são descritas em detalhes, e ele usa sua força para
entrar na casa e afastar Connie da outra mulher. Há uso de palavras de baixo calão,
reforçando a atitude hostil de Geraldo e por mais que as mulheres busquem apresentar
argumentos para que ele aja de forma razoável, ele repetidamente reage de forma
violenta, fazendo ameaças e dando ordens.
O que chama atenção para esta cena é sua precocidade na narrativa. Não conhecemos
ainda nenhum dos personagens profundamente e pouco se pode inferir a partir da
situação. É possível criar algumas impressões que poderão ser confirmadas ou
descartadas com o desenvolvimento das ações. Aparentemente, trata-se de uma
situação limite, na qual as mulheres estão sendo atacadas porque uma delas, Dolly,
está grávida e deseja manter a gestação. Geraldo, seu namorado, deseja a interrupção
da gravidez. Como uma prostituta, que trabalha para ele, Dolly é sua posse e, como tal,
deve obedecer seus desígnios, concordando com eles ou não, visto que a mulher não
deve ter nenhum poder de decisão sobre seu corpo. Tais constatações vão atribuir dois
tipos de violência: uma física, na qual o bem-estar de uma ou ambas as partes está em
risco. A segunda é uma violência mais simbólica, que busca descaracterizar as
mulheres, chamando-as de “velha vadia”, “bruxa”, “caca” e “putas”. A imagem que se
relaciona com tal tipo de violência é o fósforo aceso que Geraldo joga no chão. Uma
mancha preta se forma a partir de uma indiferença dele para aquilo que pertence a outro.
O homem parece despreocupado com a consequência de seus atos, sendo displicente
nas marcas que pode deixar por onde passa. Outro nível dessa mesma violência
simbólica é a retirada do poder da mulher de escolha em manter o bebê. As opiniões de
Dolly e Connie não importam realmente.
Em um movimento similar, He, She and It também inicia sua narração a partir de uma
situação limite. Porém, ela se configura de forma um tanto quanto diferente do que
encontramos em Woman on the Edge of Time. Se neste a violência primeiramente
visível era aquela de um sujeito contra outro, naquele o tipo de violência se configura de
forma um pouco mais abstrata. Alguns trechos da cena inicial do romance são:
293 He, She and It, p. 3-7. No original: Josh, Shira’s ex-husband, sat immediately in front of her in the Hall of
Domestic Justice as they faced the view screen, awaiting the verdict on the custody of Ari, their son. […] Her
hands were sweating too, but from nervousness. [...]The room glittered in black and white marble, higher
than wide and engineered to intimidate, Shira knew from her psychoengineering background. […]“In regard
to this matter the judgment of the panel is to award custody to the father, Joshua Rogovin, status T12A, the
mother, Shira Shipman, status T10B, to have visitation privileges twice weekly, Wednesdays and Sundays.
This verdict rendered 28 January 2059, automatic review on 28 January 2061. Verdict recorded. Out.” Josh
turned in his seat and glared at her. His lawyer was beaming and slapping his shoulder. “What did I tell you?
165
A narrativa localiza os personagens em um local específico: um tribunal. Podemos
observar que a própria personagem identifica características arquitetônicas que
objetivam certa intimidação. Diversos registros vão dar conta do mal-estar de Shira
diante de sua situação, há um desconforto pungente, que se reflete, por exemplo, no
suor de suas mãos. A linguagem objetiva da sentença, que concede a guarda do filho
para o pai, é uma outra forma velada de expressar um tipo de poder. Essa entidade
maior, chamada corporação, toma decisões no sentido de manter a ordem dentro de
sua jurisdição. Não percebemos a presença do Estado, da maneira que o conhecemos,
mas vemos que a empresa tomou o lugar dele enquanto responsável pela criação e
manutenção da ordem. Não existe, nem precisa existir, uma explicação lógica para a
decisão tomada pelas autoridades. Ainda que Shira se sinta vítima de uma injustiça e
deseje apelação, nada disso é válido, visto que o motivo apresentado pelos advogados
é o de que a lei vai pender mais para o lado daquele com mais poderes. Se Josh possui
um grau mais elevado na hierarquia social, pouco pode ser feito para mudar a situação
da personagem. É revelado, mais adiante, que a decisão judicial fazia parte de um plano
da corporação, que suspeitava da construção de Yod e desejava plantar uma espiã
involuntária no cerne de Tikva. Esse tipo de manipulação se configura como um tipo de
violência e vai ser combatida à altura: os heróis invadem o domo da Y-S e resgatam o
filho de Shira.
No momento que ela abandona o salão de justiça, ela se move rapidamente para a
escola do filho, com objetivo de levá-lo para casa. Ainda que tenha sido ordenado que
só tome contato com ele em certos dias, ela deseja interagir com ele, explicar-lhe a
situação. No caminho, ela reflete sobre um aspecto daquela sociedade: poucas pessoas
vão desobedecer às regras sociais, implícitas ou explícitas, devido ao medo de serem
observadas e julgadas. Como sociedade, portanto, a regra é aquela do vigiar e punir.
Os romances associam, sem demora, dois conceitos sociais que são praticamente
indivisíveis: a violência e o poder. Por mais que remetam a diferentes tipos de violência
– uma mais física e confrontativa, de sujeito contra sujeito, e outra mais
institucionalizada, do Estado (corporativo) contra o sujeito –, ambas as obras vão
elencar e discutir formas de poder e maneiras de estabelecer a violência como material
social.
In the bag.” “They can’t do this!” Shira said. “They can’t take Ari!”[...] She realized she never saw an adult
run on these streets. Everyone was too conscious of being observed, of being judged.
166
Nesse ponto, antes de apontarmos outras formas de violência presentes nas obras,
seria ideal fazermos um esforço no sentido de definir os conceitos que norteiam nossa
análise. Alguns dos autores importantes que falam sobre a noção da violência foram
Sigmund Freud, Hannah Arendt, Walter Benjamin, Michel Foucault e Slavoj Zizek.
Hannah Arendt, por outro lado, busca, em Da violência, estabelecer distinções entre as
noções de “poder”, “força”, “autoridade” e “violência”.295 Segundo a filósofa, há uma
confusão epistemológica no uso apropriado de cada um desses conceitos. Opondo-se
a Freud (e no aspecto filosófico a Hobbes e Maquiavel), na defesa do inatismo da
dominação e agressividade, ela implica os termos como meios pelos quais é possível
entender as noções de governabilidade. Para ela, “poder” está relacionado com comum
acordo: pertence a um grupo e existe apenas na medida em que esse grupo esteja
investido de agir em nome dessa coletividade. A palavra “força” trata apenas da energia
liberada por meios físicos (natureza) e sociais (circunstâncias), e não deve ser usada
como sinônimo de violência e coerção. “Autoridade” está relacionada ao
reconhecimento de obediência, sem necessidade de coerção ou persuasão, visto que
tal reconhecimento é recíproco e mantido por meio do respeito. Finalmente, e mais
importante, Arendt enxerga o caráter instrumental da “violência”, que é usada para a
multiplicação do vigor (independêcia) natural, até que possa, em última instância,
substituí-lo. Como resume Luiz de Caux, para Arendt,
Michel Foucault, por sua vez, não aborda diretamente o tema da violência, motivo pelo
qual este não pode ser um ponto de partida para a compreensão de suas análises.
Contudo, como afirma Eduardo Sugizaki, a questão da violência é iluminada em sua
obra na medida em que ele teoriza sobre como as relações de poder se estabelecem.297
Em seu ensaio, “O sujeito e o poder”, Foucault desenvolve o conceito de poder como
algo decorrente da relação entre dois polos ativos, na qual não há consentimento ou
poder anterior à própria relação que se estabelece298. Por outro lado, nas poucas vezes
em que “violência” aparece em sua obra, ela é compreendida como uma ação externa
à própria relação de poder, algo que está no limite extremo da relação e que age sobre
os corpos de modo mecânico. Em outras palavras, na violência haveria um polo ativo
(polo que age de modo violento) e um polo passivo (um corpo mecânico, a vítima). A
violência, portanto, está para os corpos, como o poder está para o discurso e este é o
foco central do filósofo. Por sua visão de violência apenas como meio e dissociada do
poder, sua teorização será de pouca valia para nossa análise.
Mais relevante para nossas reflexões, em uma das mais atuais contribuições da filosofia
política, o esloveno Slavoj Zizek escreve o livro Violência: seis reflexões laterais. Nele,
o autor faz um balanço dos estudos mais conhecidos sobre a violência. Ele fala sobre
os conflitos no Oriente Médio, o fundamentalismo e o Ocidentalismo. O mais relevante
para nossa análise é a forma como ele classifica a violência em três tipos: a subjetiva,
a objetiva e a simbólica. A violência subjetiva é aquela mais perceptível, quando alguma
ação interrompe o curso de normalidade. A violência objetiva está relacionada com o
estabelecimento desse “normal”, ou seja, é aquilo que aparentemente não é violência
porque é apenas pano de fundo. Essa violência, chamada por ele também de sistêmica,
refere-se às consequências catastróficas do funcionamento adequado de nossos
296 CAUX, Luiz Philipe Rolla de.“Conceitos ambíguos para fenômenos ambíguos: o direito, o poder e a
violência em Walter Benjamin e Hannah Arendt” In: Revista do CAAP, 1º semestre, 2009. Disponível em:
<http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/viewFile/22/21> Acessado em: 04-06-
2015
297 SUGIZAKI, Eduardo. Foucault e a violência. Disponível em:
http://www2.ucg.br/flash/artigos/080708foucault.html, acessado em: 20-06-2015
298 FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995, p. 231-249.
168
sistemas políticos e econômicos. Normalmente, a violência subjetiva é individual e
contra a lei e a objetiva faz parte ou constituiu a legalidade. Apesar de ser individual, a
subjetiva pode originar de indivíduos, instituições, aparatos repressivos ou multidões.
Fundamentalismos e racismo são exemplos coletivos desse tipo de violência. Um
exemplo de violência objetiva é a criação automática de indivíduos excluídos e
dispensáveis.
Além disso, será de extrema valia a retomada que o autor faz de dois conceitos centrais
para nossa análise: a violência mítica e a violência divina, ambos de Walter Benjamin.
A primeira se refere à violência fundamental que sustenta o funcionamento “normal” do
Estado, enquanto a segunda indica a igualmente imprescindível violência que sustenta
toda e qualquer tentativa de minar o funcionamento do Estado. Falaremos delas mais
adiante.
299 IASI, Mauro. Posfácio – Violência, esta velha parteira: um samba-enredo. In: Violência: seis estudos
laterais. Trad. Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014. (grifo nosso)
169
“These versions of violence // sometimes subtle, sometimes clear”300
Woman on the Edge of Time já inicia mostrando a violência de um homem contra duas
mulheres. A própria personagem remete a outras instâncias de violência anterior,
comparando Geraldo a seu pai, que batia nela, seu primeiro marido e uma experiência
de estupro que ela sofreu.
Além disso, podemos notar uma violência mais simbólica nas descrições que Connie
faz das interações que tem com a assistente social, na qual ela olha para Connie como
se essa fosse um inseto (“human-to-cockroach look”), na sua descrição da histerectomia
forçada quando estava no hospital por causa de um aborto e de ter apanhado de Eddie.
Também, ela se viu injustiçada no fato de terem tirado a guarda de sua filha após apenas
uma situação-limite, no qual, em luto pelo segundo marido, Connie bate na criança.
É, entretanto, quando ela está no hospital psiquiátrico que ela e seus companheiros de
internação sofrem o maior número de violências. Aparentemente, porque todas aquelas
pessoas desviam-se da “norma”, era possível estabelecer uma nova normalização de
certas atitudes, que, como já dissemos, amortecem o horror, ou acolchoam o impacto
provocado pela realidade, visto que métodos de quase tortura são racionalizados como
“o melhor para essas pessoas”. Eletrochoques, isolamentos radicais, até o ponto de
instalarem um aparelho no cérebro para controlar os impulsos das pessoas são apenas
alguns exemplos.
Um dos atos sutis de violência dentro do hospital psiquiátrico era a forma como as
pessoas que ali trabalhavam, enfermeiras, médicos e psiquiatras enxergavam Connie e
seus companheiros de encarceramento como animais ou dejetos, segundo as
comparações que já indicamos. A maneira como a personagem é tratada no hospital
psiquiátrico reforça uma impressão da própria Connie: “os loucos são invisíveis” 301.
Não foi aleatório que Connie estivesse em um hospital psiquiátrico. Nos anos 1970,
principalmente, havia muita atenção para tais instituições, devido a um processo social
É a esse material social que Piercy vai recorrer na sua descrição realista dos lugares
onde Connie fica internada. Evidentemente, ela não é maltratada por todos, porém,
existe certo endurecimento, falta de afeto, no tratamento direcionado a ela e outros
internos. Um dos exemplos mais marcantes, e uma das grandes críticas do romance,
está direcionado ao personagem Skip. Sendo ele um personagem abertamente
homossexual, essa era a razão pela qual estava internado. Seus pais tinham vergonha
de sua sexualidade e, na época, a Organização Mundial da Saúde ainda não havia
retirado a homossexualidade da lista de transtornos mentais, o que vai acontecer
apenas uma década e meia depois303.
De qualquer modo, sendo um interno, Skip vai sofrer a cirurgia de implante de controle
mental. O trecho a seguir vai mostrar as consequências desse ato invasivo, a violência
subjetiva, além da simbólica, representada pela homofobia implícita na celebração pelo
“sucesso” do procedimento:
302 Cf. BASSUK, Ellen L.; GERSON, Samuel. Deinstitutionalization and mental health services. In: Scientific
American, Vol 238(2), Fevereiro 1978, 46-53. Disponível em:
http://www.nature.com/scientificamerican/journal/v238/n2/pdf/scientificamerican0278-46.pdf. Acessado
em: 15-07-2015 e BACHRACH, Leona L. Deinstitutionalization: An Analytical Review and Sociological
Perspective. In National Institute of Mental Health, DHEW Publication. Washington, D.C., 1976. Disponível
em: http://files.eric.ed.gov/fulltext/ED132758.pdf, acessado em: 13-07-2015.
303
A Associação Americana de Psiquiatria retirou a opção sexual da lista de transtornos mentais em 1973.
Já a Associação Americana de Psicologia o fez em 1975. Porém, a Organização Mundial de Saúde só agiu
em conformidade com essa decisão em 1990. No Brasil, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia
deixou de considerar a opção sexual como doença em 1985, antes mesmo da resolução da OMS.
171
sentia morto por dentro. Os médicos estavam contentes com ele;
iam escrever um artigo sobre ele para uma revista médica.304
Em He, She and It a violência vai ter uma coloração um pouco diferente. Enquanto a
violência econômica e política do sistema fica menos visível que os maus tratos sofridos
por Connie em Woman, o funcionamento do sistema vai se configurar como a mais clara
fonte de violência. Um dos motivos para essa mudança de ator social da violência pode
estar relacionado com o tempo histórico de cada um dos romances: enquanto nos anos
1970 a violência das pessoas contra pessoas ou de certas instituições sociais eram mais
visíveis, nos anos 1990 serão as empresas, as instâncias mais imediatas do capitalismo
que estarão visíveis. Veja que o romance é escrito no auge do processo de globalização,
no qual as empresas tomavam uma proporção sem precedentes.305
Um deles é o domo da multi onde Shira trabalha. O domo de vidro é necessário para
poder proteger as pessoas das condições atmosféricas e radiotivas, consequência das
mudanças climáticas que as multis mesmas causaram.306 Por meio de sua exploração
304 Woman on the Edge of Time, p. 270. No original: “It was true, Skip had changed. He parroted back
whatever they said to him; he told them he was grateful. When they took him out and tested him with
homosexual photographs, he had no (sic) what they called negative reactions. Meaning he didn’t get a hard-
on. He told her he felt dead inside. They were pleased with him; they were going to write him up for a medical
journal.”
305
Documentários como The Corporation (2003) e Roger e Eu (1989) vão mapear cognitivamente esses
aspectos das consequências nefastas do controle das empresas sobre a vida das pessoas.
306 O domo parece ser a metáfora utilizada para o que Naomi Klein chama de “bolha”. Sua descrição da
situação do mundo em 2007 era muito semelhante ao que descrevia Piercy sobre o futuro: “O nome mais
172
desenfreada dos recursos naturais, as diversas defesas naturais se esgotam e criam-
se os espaços protegidos e condicionados e o ambiente a céu aberto (the raw). Para a
grande massa excluída de pessoas que mora na Glop, e não está sob a proteção do
domo, as condições de vida, tendo que usar roupas de proteção e máscaras, são muito
difíceis. O romance chama a Glop de “O labirinto em chamas”, e nas cenas nas quais a
protagonista atravessa esse espaço, descritas a partir de violência e descaso, não há
nenhum tipo de infraestrutura. Não faz parte das intenções das multis, preocupadas com
o lucro, o oferecimento de melhores condições de vida para as pessoas, nem mesmo
para aquelas que se movem para os domos cotidianamente para serem os
“trabalhadores diaristas”. Esse seria um tipo de violência por omissão.
Mesmo para os técnicos, que moram dentro do domo e são mais protegidos das
intempéries e da falta de estrutura, existe um tipo de violência. Se considerarmos a
nossa situação histórica atual, na qual se preza algum nível de liberdade, veremos que
isso se perde no âmbito da multi. Nas palavras da própria Shira, como já citado, ela
“nunca havia visto um adulto correndo pelas ruas. Todo mundo está preocupado demais
em ser observado, em ser julgado.” Tal vigilância, como já apontamos, é uma espécie
de violência simbólica, que vai criar um sistema que impede que se desvie da norma,
aquela mesma norma criada e imposta pelas pessoas que gerenciam as multis.
apropriado para um sistema que elimina as fronteiras entre o Grande Governo e o Grande Negócio não é
exatamente liberal, conservador ou capitalista, mas sim corporativo. Suas principais características são
enormes transferências de riqueza pública para mãos privadas, frequentemente acompanhadas de uma
explosão do endividamento, uma polarização cada vez maior entre os muito ricos e os pobres descartáveis,
e um nacionalismo agressivo que justifica gastos exorbitantes com a segurança. Para aqueles que vivem
dentro da bolha da extrema riqueza criada por esse tipo de arranjo, não existe melhor modo de organizar
uma sociedade. No entanto, em função das desvantagens impostas à grande maioria da população que
fica fora dessa bolha, outros aspectos do Estado corporativo são vigilância agressiva (de novo, com troca
de favores e contratos entre governo e grandes corporações), prisões maciças, redução drástica dos
direitos civis e, com frequência, porém nem sempre, tortura” KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: a
ascensão do capitalismo de desastre. Trad. Vania Cury. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008, p.
25
173
no capítulo “25: Quando a Elite se encontra”. Shira e a Y-S marcam um encontro que
acontece na Cybernaut, uma outra corporação, que serve como local neutro. O motivo
da reunião, convocada pela multi, era de capturar Shira e Yod. Os assassinos e gorilas
atacam, mas os protagonistas reagem e fogem. A corporação já tinha ciência da
existência de Yod e, descobrimos posteriormente, havia enviado Shira de volta, tirando
a guarda do filho como uma tentativa de acessar a cidade e obter a tecnologia de
fabricação do ciborgue para si.
Um último tipo de emprego de violência exercido pelas multis, além dos meios já citados,
está relacionado com uma tecnologia que existe apenas no romance. A Rede, a internet
deles, possibilita que as pessoas se conectem fisicamente a um mundo virtual. Há
plugues nos cérebros que servem de interface com essa realidade alternativa para onde
as pessoas podem se projetar e obedecem a diferentes leis da física, etc. No caso, o
perigo jaz no fato de que, ao ser conectada, uma pessoa fica vulnerável a um ataque
nesse campo virtual. Se for atingida lá, ela sofre uma descarga elétrica que pode
paralisá-la ou simplesmente queimar seu cérebro. Isso acontece a diversos
personagens secundários no decorrer da narrativa.
Os exemplos que selecionamos dos dois romances buscam ser abrangentes sem ser
exaustivos. Buscamos ressaltar apenas as principais manifestações de violência contra
as personagens principais. Porém, como já afirmamos não basta apenas representar a
violência. Como material social, é impossível que esteja ausente, mas ela não pode
aparecer somente enquanto sintoma. Cada uma das obras estabelece um
questionamento ético que coloca a violência como uma das preocupações centrais do
romance, e parece haver um cuidado em criar um debate sobre a existência de algum
tipo de dialética em sua expressão artística.
La mujer mala
“Luciente, você acha que é sempre errado matar?”307 pergunta a personagem Connie
para sua guia e conselheira da sociedade do futuro que ela visita em Woman on the
Edge of Time. Entendemos, pelo contexto no qual esse diálogo aparece, que essa
questão está longe de ser apenas retórica. Ainda assim, não há preâmbulos, ela surge
307 Essa e as citações seguintes se referem ao mesmo trecho, que estará referenciado completamente no
último dos excertos.
174
de forma espontânea e sem meias palavras. Não tinha relação com o que estava sendo
dito antes. A ausência do objeto para o verbo mostra que a personagem está no
processo de elaborar o que ela quer dizer. A pergunta parece meio experimental e o
advérbio de frequência “sempre” dá a entender que Connie quer encontrar uma brecha
no mandamento milenar: “não matarás.”
Parte do estranhamento que temos ao ler essa pergunta provém do fato que a
personagem que a enuncia tinha sido, até esse ponto na narrativa, bastante inócua e
passiva. Ela está em constante contato com a violência, mas em poucas situações a
protagonista é a origem dela.
175
“Como posso encarar algo tão abstrato?” reflete Lucience e o leitor. Mesmo que Connie
tenha sido mais específica, nós ainda temos mais perguntas do que respostas. A ideia
permanece transitiva, mas o autor implícito decide não fazer nenhum comentário na
linha de raciocínio da personagem. Ele permite que o diálogo transcorra sem
interrupções ou juízos e o estranhamento vai crescendo. Até mesmo para Luciente, o
que Connie está dizendo é abstrato demais.
“Matar alguém com poder sobre mim. Que quer acabar comigo.”
Finalmente, Connie conclui sua ideia e é totalmente explícita, já que não há mediação
nenhuma para nos ajudar a descobrir o que havia em sua mente. A maneira como ela
coloca a questão, entretanto, é curiosa porque ela não está dizendo que ela quer matar
o presidente dos Estados Unidos ou seu irmão, Luis, responsável por seu
encarceramento. Ela ainda não personaliza quem quer que seja essa pessoa com poder
sobre ela. Ela expressa, mas reformula a frase, parece mais confiante de dizer em voz
alta quem ela quer matar. A primeira frase parece mais abstrata e retirada dos discursos
do tempo em que o romance foi escrito: feministas e até mesmo socialistas falando
sobre a tomada do poder. Empoderamento da mulher, empoderamento do cidadão. A
segunda frase é mais coloquial e não é tão carregada de insinuações políticas. Uma
ideia complementa a outra, mostrando que Connie está tentando articular diferentes
formas de dizer alguma coisa, uma mais popular e intuitiva, outra mais organizada e
racionalizada.
A hesitação de Connie quando ela formula sua pergunta, dando elemento após
elemento, parece ser um passo a mais no processo que o romance materializa: da
privação à ação, da alienação e desamparo ao engajamento com um esforço coletivo
em direção a um futuro melhor.
Esse diálogo inscreve Connie nos debates dos anos 1970. Por um lado, havia o
movimento hippie defendendo a não-violência, os movimentos pacifista e antiguerra
(dos quais Marge Piercy fez parte) protestando contra os conflitos armados. Por outro
lado, havia um setor da Esquerda que queria a luta armada e pensava que a única forma
de atingir a verdadeira revolução era pela força – havia até mesmo manuais de
guerrilha.308 Qual dessas posições era a mais correta?
308Um dos exemplos mais famosos da época surgiu no Brasil, em 1969, o Minimanual do Guerrilheiro
Urbano, de Carlos Marighella, que já no ano seguinte circulava pelas universidades americanas e
europeias.
176
Essa é a questão que inscreve a preocupação de Connie na situação atual do mundo
político. Isso pode ser observado mundialmente, mas vamos focar a nossa análise no
contexto brasileiro.
Em 2013, o Brasil foi notícia no mundo quando grandes protestos aconteceram em todo
país. Começando como pequenos protestos nas maiores cidades contra o aumento das
tarifas dos transportes, os protestos foram duramente reprimidos pelas forças policiais.
Pessoas chegaram a ser presas por estarem carregando vinagre, que é uma proteção
contra gás lacrimogêneo, mas está longe de ser uma substância ilícita. Tal reação, por
parte das autoridades, em vez de esvaziar o movimento, fez com que ele crescesse:
novos protestos eram convocados, mais pessoas davam apoio às causas. Foram as
maiores manifestações desde 1992, quando a mídia orquestrou um impeachment do
então presidente Fernado Collor. E com o crescimento do número de pessoas, novas
questões surgiram.
Uma das características mais marcantes é que o Brasil, diferente de outros países
vizinhos, como a Argentina, não tem uma cultura de protestos. Quaisquer que sejam as
razões ou demandas, sempre foi muito difícil mobilizar um grande contingente de
pessoas, além do fato de a mídia subestimar os números de participantes. Então,
mesmo os analistas políticos estavam surpresos com o número de pessoas protestando.
Entretanto, com o passar das semanas, o movimento foi enfraquecendo, por diferentes
razões. Uma delas foi que uma grande gama de manifestantes era abertamente
apartidária ou antipartidária. Havia uma aversão explícita contra grupos ou instituições
que tendiam para a organização coletiva, como sindicatos e agremiações. Igualmente,
os protestos eram animados por exigências concretas, mas com o tempo, as motivações
se tornavam confusas ou abrangentes demais. Muitas pessoas estavam confusas sobre
o porquê estavam protestando. E a terceira razão para a diminuição da participação nas
manifestações era o aumento da violência. A imprensa realizou uma campanha contra
parte do movimento, que eles começaram a chamar de “black blocs”, o governo criticava
a ação dos chamados “baderneiros” e grande parcela das pessoas começava a se
perguntar: seria a violência um instrumento efetivo para contra-atacar a violência?
Estamos de volta à pergunta de Connie e estamos curiosos para saber o que Luciente,
supostamente uma personagem mais politicamente engajada tem a dizer. Sua resposta
é essa:
177
“Poder é violência. Quando ele foi destruído pacificamente? Todos lutamos quando
estamos encurralados contra um muro – ou para derrubar muros. Você sabe que
matamos pessoas que escolhem ferir os outros mais de uma vez. Não achamos certo
matá-los. Apenas conveniente.”
O primeiro elemento dessa resposta é uma cópula. Ele equaciona dois conceitos que
estão, como já vimos, política e filosoficamente interligados. Parece óbvio observar que
agir de modo violento implica certa quantidade de poder, mas o oposto também é
verdade? Ter poder é sempre um exercício de violência? Não poderíamos pensar em
nenhum tipo de poder benigno?
Para melhor entender a afirmação categórica feita pela personagem, devemos nos
apoiar em um texto escrito em 1921. Quando tinha 28 anos, Walter Benjamin escreveu
o ensaio chamado Zur Kritik der Gewalt. A tradução desse substantivo é um pouco
problemática: em alemão a palavra Gewalt pode significar tanto poder como violência.
O tradutor do texto para o português colocou um título duplo na sua versão: Crítica do
poder – Crítica da violência. Numa nota de rodapé, ele explica que na maior parte dos
contextos ambas as palavras poderiam ser usadas, então ele apela para um asterisco
quando o contexto abarcaria as duas possibilidades e usa ora uma ora outra quando o
sentido é mais aparente.309
Essa é a dicotomia que ele discute: há violência para preservar a lei e violência para
fundar novas leis. Para ele, o exemplo disso é a polícia: ela representa uma violência
legal que não é cerceada por nenhum direito. Sua função é a de manter a lei, mas
lançando mão de algo fora da lei, instaurando uma nova lei.
Essa aporia nos leva de volta à explicação de Luciente. Quando ela está falando sobre
como sua sociedade pune aqueles que não atingem o padrão estabelecido pela
comunidade, ela apela para a conveniência (“apenas conveniente”).
Consequentemente, naquela sociedade, eles não podem lançar mão de um discurso de
certo ou errado. Ele configura, nas palavras de Zizek, uma situação na qual “matar não
é uma expressão de uma patologia pessoal (impulso destrutivo, idiossincrático), nem
um crime (ou a punição dele), nem um sacrifício sagrado.”312 Temos aqui a violência
como a verdadeira destruição da lei, como algo que Benjamin vai alegorizar como “poder
divino ou violência divina”.
310Idem, p. 168
311 Idem, p. 170
312 ZIZEK, Slavoj. Violence: Six Sideways Reflexions, New York: Picador, 2008, p. 198
313
Por exemplo, AVELAR, Idelber. “O Pensamento da Violência em Walter Benjamin e Jacques Derrida”
In: Cadernos Benjaminianos. n. 1 (2009). Disponível em:
http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cadernosbenjaminianos/article/viewFile/5300/4708 Acessado em
28-04-2015
179
do Evento: não há critérios “objetivos” que nos permitam identificar atos de violência
como divinos; o mesmo ato que, para um observador externo, é uma mera explosão de
violência pode ser divina para aqueles envolvidos nela – não há um grande Outro
garantindo sua natureza divina; o risco de ler e assumir a ação como divina é
inteiramente do próprio sujeito.”314
Apesar de a resposta de Luciente não ter sido tão completa quanto a de Benjamin, ao
estabelecer uma reflexão sobre os papéis da violência e do poder, é uma forma direta
de defender a escolha de lados. Ela concorda com a solidão implícita na ideia do alemão
sobre a responsabilidade do sujeito. A pergunta que Connie faz ressoa os
questionamentos de diversos grupos esquerdistas, nas figuras de seus teóricos, por
quase todo século XX. As respostas variavam de acordo com cada contexto histórico e
experiência pessoal. Reconhecer o poder e a violência parece uma tarefa fácil, mas
saber como contra-atacá-los é um assunto delicado. A violência pode ser neutralizada
pela não-violência? Ou poderia uma neutralização violenta da violência levar a um futuro
não-violento?
O tipo de sistema de mundo no qual Connie está inserida, por outro lado, faz da
segurança e violência, nas palavras de Connie, “um meio de vida”. A indústria bélica é
uma das mais poderosas, o sistema passa a depender do crime para poder organizar
sua estrutura de empregos no combate a ele. A violência é uma consequência das
desigualdades inerentes ao capitalismo, mas ela também é encorajada por esse mesmo
sistema, para que seja parte das formas como ele se reproduz. Connie está certa ao
dizer que é uma “espécie de poder”, e é uma forma de poder inexistente no tipo de
sociedade como Mattapoisett. Assim, a violenta deposição de um sistema de
“Nós todos lutamos”, afirma Luciente, e ela tenta tornar o argumento de Connie menos
abstrato. É uma forma de defesa ou de ataque contra aquilo que acreditamos. Mas não
fica claro se depois de derrubar os muros o resultado é a punição ou a emancipação. E
o próprio romance dá conta de demonstrar essa tensão, já que o diálogo é deslocado,
a conversa muda de direção sem que uma resposta seja atingida. Exatamente quando
fica claro sobre o que Connie perguntava, mesmo que as perguntas dela não tinham um
sujeito ou objeto definido, a guia de Connie precisa de algum tipo de confirmação: “Você
está cogitando matar alguém, minha amiga?”
A personagem não pode falar, e ela não consegue nem ouvir mais o que a outra está
dizedo, aquilo se torna barulho. Apenas pelo movimento de cabeça Connie é capaz de
abertamente responder à pergunta que causa nela orgulho e vergonha. Se a
protagonista já tomou uma decisão sobre sua ação, afinal, esse diálogo acontece após
já ter declarado guerra contra os inimigos, sua atitude não deixa de demonstrar que tal
decisão está saturada de vergonha e moralidade: ela é uma mulher má. O narrador até
mesmo usa a palavra em espanhol, não é um julgamento da sua parte do caráter da
personagem, é uma citação da forma como Connie se vê: sua autoimagem, sua própria
voz, o momento de reflexão que vai preceder a ação e não seguí-la.
315 Woman on the Edge of Time, p. 370-1. No original: “Luciente, do you think it’s always wrong to kill?” “We
live by eating living beings, whether vegetable or animal. Without chlorophyll in our skins, we have no
choice.” Luciente caught flakes on her outstretched palm. “I mean to kill a person.” “How can I face something
so abstract?” “To kill someone with power over me. Who means to do me in.” “Power is violence. When did
it get destroyed peacefully? We all fight when we’re back to the wall—or to tear down a wall. You know we
kill people who choose twice to hurt others. We don’t think it’s right to kill them. Only convenient. Nobody
wants to stand guard over another.” “In my time people are willing to stand guard. It’s a living. I guess maybe
it’s power, too.”“You brood on killing someone, my friend?” She nodded, disentangling herself from Luciente
to clutch her hands together before her breasts. She felt pride and shame wash through her. Mala, the
woman who acted. To thrust herself forward into the world. Luciente was speaking, but under the rush of
her blood, the words mumbled like stones in the bed of a river.
181
A decisão de Connie é de eliminar aquelas pessoas mais diretamente prejudicando sua
vida. Se, como Angelika Bammer afirma, o resultado da sua ação de matar quatro
pessoas é admitida como um infortúnio por Connie, o romance “propõe, in extremis que
os escrúpulos morais sejam suspensos; numa guerra, baixas são inevitáveis.”316 Porém,
essa suspensão e inevitabilidade não são aproblemáticas, como mostra o diálogo. O
caminho da passividade para a ação é pavimentado com dúvidas e dilemas morais.
Esse diálogo sobre poder e violênca, apesar de sintetizar o argumento que subjaz o
romance como um todo, é apenas um exemplo entre muitos de como os personagens
interagem e realizam diversas ações. O foco não é representar “o poder de um heroismo
isolado ou liderança”, mas “a importância do comprometimento da pessoa dentro da
ação coletiva”318: ela não vai apenas matar os médicos que estão tentando instalar
eletrodos no seu cérebro para controlar seu comportamento, mas ela está
conscientemente tentando atrasar ou eliminar a possibilidade de um futuro onde os
meios de controle serão uma regra, não uma exceção. Não se trata simplemente do
indivíduo Connie se rebelando contra aquilo que faz mal a ela, mas de um sujeito que
enxerga com clareza a guerra (de classes) na qual ela se insere e deve tomar uma
posição e lutar.
O que o romance está tentando mostrar, em um nível, é que, nas palavras de Zizek,
“punir a violência de cara, condená-la como ‘ruim’ é uma operação ideológica por
execelência, uma mistificação que colabora com a invisibilidade das formas
fundamentais da violência social.”319 Quando la mala, a mulher que agiu, age finalmente,
ela desmonta essa operação ideológica e mostra que, apesar de ser mais aceitável
resolver a situação de forma não-violenta, por meio da lógica e da conversa, “processos
316 BAMMER, Angelika. Partial Visions: Feminism and Utopianism in the 1970s. New York: Routledge, 1991,
p. 95
317 MOYLAN, Tom. Demand the Impossible. p. 146.
318 MOYLAN, Tom. Demand the Impossible. p. 147
319 ZIZEK, op. cit., p. 206
182
de mudança radical são complexos e ocorrem mediante a uma estrutura de poder
violenta.”320
A terrorista e o soldado
Se Piercy localiza o poder hegemônico nas multis, os poderes de resistência podem ser
localizados em diversos lugares: tanto Moylan quanto McAlear apontam para três:
Safed, a comunidade palestina-israelense na Zona Negra; Tikva, que representa as
cidades livres do romance; e as nascentes organizações coletivas que se assemelham
aos sindicatos, na Glop.
A internet era uma realidade no início dos anos 1990, mas ainda não tinha a presença
maciça que possui nos dias de hoje. Somente alguns anos depois os estudos sobre uma
nova era da vida social tomariam uma proporção considerável. A fala de Riva vai ecoar
discursos diferentes que eram correntes no processo da digitalização da vida: por um
lado, as informações se tornavam mais abundantes e variadas. Por outro, elas se
associavam com a lógica da mercadoria, prontas para o consumo, sem uma
preocupação de sua origem, sua veracidade. Mais do que uma redestribuição de
equilíbrio entre as multinacionais, o que se buscava era uma liberação de informações
para aqueles que não podiam pagar por elas.
A internet, desde sua origem esteve ligada a esse duplo movimento, sendo os
computadores produtos do complexo científico-militar da guerra fria. Eles
representavam a burocracia e a desumanização. A internet, primeiramente uma rede
militar que facilitava a transmissão de dados, foi lentamente se espalhando para outras
áreas, principalmente as universidades, igualmente instituições ligadas a interesses
bélicos e distanciados do homem comum. Porém, nas palavras de Fred Turner,
Além do aspecto da informação, Riva afirma que havia dois outros elementos ligados à
sua profissão proscrita: teologia e motivação política.
322
TURNER, Fred. From Counterculture to Cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth Network, and the
Rise of Digital Utopianism. Chicago: U of Chicago, 2006. p. 1-2
323 SILVA, Gilda Olinto do Valle. Capital Cultural, Classe e Gênero em Bourdieu. In: INFORMARE: Cad Prog
Novamente, podemos estabelecer contatos com os dias de hoje. Apesar de não usar a
palavra “terrorista” nenhuma vez em referência à personagem (ela a usa apenas uma
vez no romance, quando fala da pessoa responsável pelo bombardeiro do Oriente
Médio), Piercy associa a figura do rebelde a uma teologia, o que nos dias de hoje nos
leva a pensar nos fundamentalismos. No contexto americano, o atual Outro é o
terrorista, seja um inimigo externo (normalmente árabe) ou interno, portanto a questão
da religião se liga intimamente com a noção política.
Como uma atividade política, Riva é classificada como uma criminosa, visto que ela fere
a lei mais importante das multis: conhecimento é propriedade privada. Ele deve assim
continuar porque se for divulgado, haverá consequências, provavelmente nefastas, para
aqueles que dominam. Há igualmente uma associação de sua luta com uma certa
tradição. Lembra-nos Moylan que ela está inserida numa linha de “criminosos” como
Robin Hood, Ned Kelly, Pretty Boy Floyd326 e, porque não acrescentarmos, Edward
Snowden, Julian Assange e outros responsáveis por sites como o Wikileaks.
O lucro próprio não era a motivação principal deles, mas buscavam realizar uma
reparação¸ palavra muito importante para Piercy em toda a sua obra. Riva exemplifica
o tipo de produto da exploração desenfreada das multis, especialmente para países
mais pobres. Uma forma de exercer a justiça, portanto, é conceder a eles a chance de
receber as informações para poder melhorar a condição de suas populações, sem
estarem dependentes dos caprichos das multis. Há um antecedente histórico de uma
situação que conecta os três pilares da crença de Riva e daqueles que estão juntos com
ela em sua luta (a pirataria não é uma atividade idiossincrática, mas reflete a
preocupação de um setor social, do qual Riva serve quase como um tipo). Se para
324 ZIZEK, S. Violence, p. 59 e BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003.
325 Fredric Jameson faz uma comparação similar entre a tecnologia e a religião em uma entrevista. Segundo
o crítico, “The passion for acquiring all of these new kinds of post-modern informational technologies was
really delirious because what was involved was not just buying something additional like a new car. This
process really amounted to consuming the postmodern itself; it is a symbolic appropriation of the most
advanced equipment of the new stage of capitalism and of history. And so there was a symbolic consumption
of information technology that I think really took place in a religious mode, just as Marx spoke of the religious
structure of the commodity.” JAMESON, Fredric; BUCHANAN, Ian. Jameson on Jameson: Conversations
on Cultural Marxism. Durham, NC: Duke UP, 2007, p. 226
326 MOYLAN, Tom. Scraps, p. 262
186
Luciente “Violência é poder”, a forma de exercer poder e violência (contra aquilo que a
subjuga) é:
327 He, She and It, p. 201-2. No original: “You steal information.” “I liberate it. Information shouldn’t be a
commodity. That’s obscene. Information plus theology plus political bias is how we sculpt our view of reality.”
Riva watched Nili padding toward the table. “Is that what you tell yourself? But then you sell the commodity
to another multi.” “Depends on what we find. Some we sell. Medical stuff, real science, we give to the stripped
countries. The places where the multis cut down the rain forest, deep and strip mined, drove the peasants
off the land and raised cash crops till the soil gave out.” Riva came into a sharper focus, and her voice was
serrated, magnetic. “The distant tropical backdrops where they fought little counterinsurgency wars. Left the
people robbed of their tribal identities, with a taste for sugar, tobacco and gadgets, with a countryside starving
and vast slum cities seething.” “The ability to access information is power,” Nili said with her slight accent in
her husky voice. Her dark skin glistened with sweat. Her exercise garb was soaked. In fact she reeked. “The
ability to read and write belonged to the Church except for heretics and Jews. We are people of the book.
We have always considered getting knowledge part of being human. With the invention of the printing press,
literacy spread. With mass literacy, any person no matter how poor could learn how the society operated,
could share visions of how things might be different. Now few read.” Riva said, “Most folks press the diodes
of stimmies against their temples and experience some twit’s tears and orgasms, while the few plug in and
access information on a scale never before available. The many know less and less and the few more and
more.”
187
desenvolver um senso crítico para discernir as informações relevantes daquelas que
apenas servem propósitos distracionais e compensatórios. Da mesma forma que é uma
atitude política desenvolver critérios para a seleção de eventos passados que farão
constelação com os movimentos presentes, parece ser necessário e parte do trabalho
político, organizar as informações para separar “o joio do trigo”, seguindo o ditado
popular. O foco aqui é não apenas a quantidade de informações disponíveis, mas a
forma de filtrar essas informações e dar valor a elas. Se pensarmos no que acontece
hoje em dia, sabemos que a quantidade de dados cresce de forma exponencial e já
atinge números estratoféricos. Mas existe uma diferença entre o acesso à pornografia
(uma das campeãs de quantidade de dados), referida por Riva na figura do orgasmo, e
os dados políticos e econômicos liberados em “vazamentos” como o do já citado
Wikileaks.
Por esse motivo, assim como Moylan, identificamos uma transformação no papel de
Riva na narrativa. Ela passa de “proscrita” para “organizadora” e essa transformação é
marcada até mesmo pela morte simbólica no romance, uma morte encenada, para que
seus inimigos deixem de persegui-la e ela possa se dedicar a novos projetos: depois de
ter sido fundamental na revelação do plano da Y-S de roubar os segredos de Tikva e
Yod via Shira, ela vai ajudar os moradores da Glop a se organizarem enquanto
coletividade, compreendendo o direito, suas falhas e podendo lutar em diversos fronts.
Ela não se coloca como líder, apenas como “mediadora ou catalista” dos processos do
mundo. É “Riva, portanto, que traz uma ilustração totalizante do poder do capitalismo
global para cada grupo com o qual trabalha, e são essas informações eletrizantes e sua
análise que levam as diversas comunidades a entrarem na coalizão anticapitalista que
ela está gradualmente ajudando a construir.”328
Yod foi criado com um propósito. Esse propósito é o de ser um instrumento de defesa.
Vários críticos, tais como Moylan, McAlear e Neverow329 percebem certa inconsistência
no papel atribuído a Yod. Por mais que ele seja uma arma de defesa, é exatamente a
sua construção que faz com que a corporação libere seu ataque sob Tikva. Motivações
à parte, o questionamento de Yod, ao entender a natureza de sua criação é oposto à
ética mais elementar do ser humano. A relação colocaria em curto seu apelo em ser
reconhecido enquanto tal.
O episódio em questão acontece no capítulo 12. Chamado “Um mar de mudança”, Shira
decide nadar na praia para pensar na vida e Yod a acompanha. No momento em que
estão nadando, um barco cheio de caçadores de orgãos tenta capturá-los. Yod utiliza
suas defesas pela primeira vez e consegue levá-los de volta à segurança. Porém, o
episódio causa uma marca em Yod, uma percepção a qual acabaria aparecendo mais
cedo ou mais tarde:
329NEVEROW, Vara. The Politics of Incorporation and Embodiment: Woman on the Edge of Time and He,
She and It as Feminist Epistemologies of Resistance. In: Utopian Studies 5.2 (1994): 16-35.
330He, She and It, p. 111. No original: “Shira, I must tell you something. This is the first time I have truly
defended. It was highly pleasurable. Yet my philosophical and theological programming informs me I’ve
committed a wrong. I liked killing them, do you understand? Is that how it should be? Is that right?” She was
startled and took several moments to formulate an answer. “Yod, your programming creates your reactions.
You didn’t choose to enjoy it.” “Killing them was as enjoyable as anything I’ve ever experienced. I think I
must be programmed to find killing as intense as sexual pleasure or mastering a new skill. It was that strong.”
“What does it mean for you to feel pleasure?” “How can I answer that? What does it mean to you? I know
that it’s entirely mental with me, but mammals, too, have a pleasure center in their brains. You’re
189
As reflexões embutidas nos questionamentos de Yod demonstram os limites da
violência mesmo enquanto defesa. Mesmo sendo pautado por princípios éticos e
teológicos, sua programação permite que ele sinta prazer ao matar. Não se trata apenas
de uma sensação de dever cumprido ou uma insensibilidade ao eliminar uma vida. O
que mais choca o ciborgue e a protagonista é a forma como um gozo pode ser extraído
de um aniquilamento do outro. A psicanálise já afirmava algo parecido, como vimos nas
teorias de Freud e Lacan, mas a sociedade estabeleceria as regras morais e psíquicas
que impediriam que tal destruição fosse levada a cabo.
Piercy deixa claro em diversas ocasiões que Yod era uma analogia a um soldado
americano. Tendo vivído a experiência dos movimentos antiguerra da Coréia e do
Vietnã, e vendo a guerra do Golfo se desenrolar quase que simultaneamente à escrita
do romance, a autora busca debater a necessidade de se treinar uma pessoa para que
ela seja especialista em destruir outras vidas:
programmed to like sweet tastes and avoid bitter ones. I’m programmed to find some things pleasurable and
others painful.”
331 FANTINA, Robert. Desertion and the American Soldier, 1776-2006. New York: Algora Pub., 2006
190
arma que Piercy vai criticar o militarismo em sua face mais feia, de alteração dos desejos
das pessoas, nos processos desumanizadores da preparação e execução das guerras.
Seriam tais guerras necessárias? Por que “a manutenção das forças armadas dos
Estados Unidos é agora uma das atividades econômicas em maior crescimento no
mundo”332? Talvez uma melhor resposta para essas perguntas possam ser desenhadas
em nossa próxima seção.
A virada
trouble. again no Claud, again no Angelina, again the rent due, again no job, no hope.”
191
Connie consegue ela mesma dar corpo às forças antagônicas que buscam sua
observância.
A já analisada cena inicial do romance, por exemplo, mostra o momento em que Connie
reage à violência do cafetão de sua sobrinha, mesmo que isso venha a ser o motivo de
seu encarceramento como uma pessoa “perigosa”. Tal atitude já dá sinais de que ela
acredita na possibilidade de reagir. Dentro do hospício, ela busca estabelecer laços com
outras pessoas335, principalmente com a interna Sybil, quem a ajuda numa tentativa de
fuga que, a princípio, dá certo, mas cujo resultado é sua recaptura e reclusão em regime
mais severo.
É de novo o personagem Bee, juntamente com Luciente, que dá voz a uma tentativa de
resposta à Connie. Por meio do diálogo, a protagonista desenvolve uma consciência de
sua própria situação e entende que as relações entre as pessoas estão mediadas por
um conflito maior. Vejamos como o romance materializa a discussão sobre a opressão
e os caminhos que as pessoas podem tomar para sua liberdade. Em uma conversa com
Connie, Bee afirma:
335Cf. CAVALCANTI, Ildney. Marge Piercy’s female protagonists: beyond the stereotype of passivity?
Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós- Graduação em Letras, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 1989. pp. 65-6
192
desigual, você pode encontrar ou forçar uma abertura para
contra-atacar. No seu tempo, muitos sem poder encontraram
formas de lutar. Até que isso se tornou um poder.”336
336 Woman on the Edge of Time, p. 328. No original: “We are all at war. You’re a prisoner of war. May you
free yourself.” gently he hugged her. She laughed shortly, disentangling herself. “How can I?” “Can I give
you tactics?” Bee turned her chin back toward him. “There is always a thing you can deny an oppressor, if
only your allegiance. Your belief. You co-oping. Often even with vastly unequal power, you can find or force
an opening to fight back. In your time many without power found ways to fight. Till that became a power”
337 Não coincidentemente, Piercy nomeia seu ensaio sobre os anos 1950, cuja pressão ideológica ela mal
pode suportar, como “Through the Cracks” em Parti-colored Blocks for a Quilt. Essa abertura, ou rachadura
é teorizada pelo crítico cultural britânico Alan Sinfield. Ele chama tais espaços de faultlines, conceito
traduzido como fissuras ou linhas de falha. Segundo o autor, “a ordem social não pode senão produzir
fissuras pelas quais seus próprios critérios de plausibilidade caem em controvérsia e desordem. Tal foi
teorizado por Stuart Hall e seus colegas no Centre for Contemporary Cultural Studies na Universidade de
Birmingham: ‘a cultura dominante de uma sociedade complexa nunca é uma estrutura homogênea. Ela é
formada em camadas, refletindo diferentes interesses dentro da classe dominante (ex. uma perspectiva
aristocrática versus uma burguesa), conter diferentes traços do passado (ex. ideias religiosas dentro de
uma cultura majoritariamente secular), tanto quanto elementos emergentes do presente. Culturas
subordinadas nem sempre estarão em conflito aberto com a cultura dominante. As primeiras podem, por
longos períodos, coexistir com ela, negociar os espaços e as brechas existentes nela, fazem incursões nela
guerreando com elas a partir dela própria.’” SINFIELD, Alan. Faultlines: Cultural Materialism and the Politics
of Dissident Reading. Berkeley, University of California Press, 1992, pp. 45-6
193
que o estado de coisas se mantenha inalterado e deixará de ser fiel a princípios que se
imprimem do exterior. A consciência e a retomada dos próprios movimentos de suas
crenças configuram o chamado processo de engajamento.
Bee não sugere a Connie que ela faça uma revolução. Ele não é ingênuo a ponto de
implicar isso no seu discurso, visto que uma revolução depende das forças coletivas
que estão fora do alcance de Connie. O que se pode ler no discurso bélico do
personagem do futuro é que uma forma de resistência poderia ser a negação da
dominação como algo natural e inevitável. A colonização ou subsunção do Capital deve
ser combatida a partir da vontade, e a forma de fazê-lo assemelha-se a chamada tática
de guerrilha. A palavra “tática”, se retirada desse contexto bélico proposto pelo próprio
personagem ao dizer “[n]ós estamos todos em guerra”, ressoa outro teórico da cultura,
Michel de Certeau, quando estabelece a diferença entre os conceitos de estratégias e
táticas.338
338DE CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, Vozes, 1998. pp. 99-102
339Woman on the Edge of Time, p. 328. No original: “But you’re still fighting. It isn’t over yet!” “How is it ever
over?” Luciente waved a hand. “In time the sun goes nova. Big bang. What else? We renew, regenerate. Or
die. (…) Someday the gross repair will be done. The oceans will be balanced, the rivers flow clean, the
wetlands and the forest flourish. There’ll be no more enemies. No Them and Us. We can quarrel joyously
with each other about important matters of idea and art. The vestiges of old ways will fade. I can’t know that
time – any more than you can ultimately know us. We can only know what we can truly imagine.”
194
Há aqui uma dupla interpretação das possibilidades que o romance apresenta. Por um
lado, ver o futuro como um lugar perfeito poderia neutralizar os impulsos do presente,
posto que, se o futuro será um lugar melhor, poderíamos esperar, como uma etapa
depois da outra, uma melhora gradual, irreversível e inevitável. Conforme já vimos,
durante muito tempo, uma corrente do marxismo ocidental acreditava que a Revolução
seria automática: tal ideia abriu espaço para leituras positivistas e evolucionistas dos
processos históricos, que serviriam para paralisar os impulsos de luta no presente.340 A
própria motivação das personagens do futuro ao interpelarem Connie já rejeita essa
interpretação. Ainda assim, há uma segunda interpretação, no jogo de se pensar a
revolução ou qualquer tipo de luta contra a dominação como um processo longo, repleto
de etapas. Essa lentidão, entretanto, não seria um problema em si para Luciente, visto
que ela afirma categoricamente a possibilidade de que seja feito (“will be done”), demore
o tempo que demorar. Não existe, nas palavras da personagem, o conformismo diante
de uma dualidade inescapável, uma eterna luta do “eles” contra o “nós”341, tão caro ao
sistema ideológico norte-americano. Uma resolução final não se apresenta em
Mattapoisett, como seria de se esperar, visto que ela representaria a materialização dos
sonhos de justiça e igualdade de Connie.
A própria personagem do futuro distancia a solução final, dizendo que nem ela pode
conhecê-la. Ela apela aos limites da imaginação histórica de cada tempo, mas tal atitude
poderia ser problematizada pelo fato de que muitos especialistas entendem Luciente
basicamente como uma projeção do subconsciente de Connie, uma das formas que ela
encontra para reagir e combater a passividade342. Se assim fosse, todos os personagens
do futuro não poderiam ultrapassar os limites da imaginação da própria protagonista,
mas eles extrapolam tais limites e tentam convencê-la de que suspeitar da função
positiva da manutenção da luta até a reparação completa é um ato infundado, ainda que
compreensível.
Assim, esse diálogo serve como uma reflexão e autocrítica sobre as formas de se atingir
uma sociedade mais justa e humanizada. Percebemos, juntamente com Connie, outros
elementos necessários envolvidos na luta que se trava por um mundo melhor. Há
340 Cf. LÖWY, Michel. Aviso de Incêndio. Trad. Wanda N. C. Brant. São Paulo, Boitempo, 2005.
341 Já discutimos esta ideia de transcendência da dicotomia nós e eles ao estudarmos os anos 1950. Cf.
FURLANETTO, Elton. “Uma questão de consciência”. In: Revista Crop. Número 13/2008. Disponível em:
http://200.144.182.130/revistacrop/images/stories/edicao13/v13a10.pdf, pp. 114- 127. e Reificação e Utopia
na Ficção Científica norte-americana da Guerra Fria. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
342 Patricia Marks é uma das estudiosas que discute e defende esse ponto de vista.
195
também a confirmação de que Mattapoisett, mesmo sendo um lugar aparentemente
mais agradável do que o presente de Connie, está longe de ser o lugar perfeito. Nas
palavras de Moylan, há nos textos utópicos produzidos nos anos 1970, nos quais
Woman está incluso, uma “consciência das limitações da tradição utópica, portanto, tais
textos rejeitam a utopia como esquema enquanto a preservam como sonho”343. Booker
resume tal ideia afirmando que “tais utopias conseguem funcionar efetivamente como
críticas ao status quo, ao passo que mantêm uma consciência autocrítica que impede
que elas sejam rebaixadas a clichês utópicos esvaziados.”344 Kirsten Shands também
chama atenção para essa consciência autocrítica ao afirmar que ela concede à narrativa
um dinamismo do processo histórico, que está ligado aos conceitos de luta e esforço.345
343 MOYLAN, Tom. Demand the Impossible: Science Fiction and the Utopian Imagination. New York,
Methuen, 1986. p. 10.
344 BOOKER, M.K. Woman on the Edge of a Genre, p. 339
345 SHANDS, K. op. cit. p. 82. “Para Piercy, é suficiente apontar para o processo em direção à harmonia,
igualdade, equilíbrio entre seres humanos e a natureza, união sem unidade: um processo que implica luta
e esforço.”
346 Woman on the Edge of Time, p. 336. No original: “she glanced around and saw all the enemy floaters
zeroing in on them as if summoned to this attack. As she stared to left and right she saw that they were
piloted and manned by Judge Kerrigan, who had taken her daughter, by the social worker Miss Kronenberg,
196
Esse episódio é chamado por Tom Moylan de “uma visão crepuscular entre mundos”347,
e difere um pouco de natureza das projeções de Connie. Se até esse momento os
elementos do futuro apenas lembravam características de seu presente (por exemplo,
a semelhança da menina Dawn com sua filha Angelina), o presente contamina o futuro
e a dita alucinação de Connie finalmente parece se confirmar como tal ao misturar
explicitamente o futuro com ansiedade e seus medos do presente da protagonista. Esse
trecho retira um pouco da ambiguidade que a própria autora queria conceder ao
romance quando, em uma entrevista sobre o romance, ela afirma:
Além disso, o uso repetido da conjunção “e”, somado ao ritmo sintático provocado pela
(ausência de) pontuação, dá ao leitor uma impressão de acumulação ou listagem,
justapondo todos os elementos que estiveram presentes na vida de Connie em
momentos diferentes. Essa estratégia narrativa cria uma impressão de um bloco que
pode confundir ou incomodar o leitor. Tal bloco intensifica a sensação de que a pressão
provém de várias frentes, seja qual for sua posição na rede de poder que a envolve.
by Mrs. Polcari, by Acker and Miss Moynihan, by all the caseworkers and doctors and landlords and cops,
the psychiatrists and judges and child guidance counselors, the informants and attendants and orderlies,
the legal aid lawyers copping pleas, the matrons and EEG technicians, and all the other flacks of power who
had pushed her back and turned her off and locked her up and medicated her and tranquilized her and
punished her and condemned her.”
347 MOYLAN, Tom. Demand the impossible. p. 145
348 PIERCY, Marge. Parti-Colored Blocks for a Quilt, p.110.
197
Todos os personagens citados e as instituições que eles representam, sem dúvida,
atacaram-na das diversas maneiras elencadas no final da citação.
349 Woman on the Edge of Time, p. 338. No original: “War, she thought. I’m at war. No more fantasies, no
more hopes. War.”
350 MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky, p.275.
198
Desarmada e isolada no presente, Connie procura estabelecer um plano. Porém, tal
plano não é, de forma alguma, uma solução fácil.
O que o romance tenta enunciar – talvez ecoando o mesmo questionamento feito por
Marge Piercy em um de seus romances anteriores, Dance the Eagle to Sleep – são os
limites da autodefesa, ou seja, o sacrifício da personagem não como punição, mas como
ação consciente em direção à liberdade. Peter Fitting indica que o romance “nos pede
para considerarmos se o uso da violência na construção ou preservação de uma
sociedade melhor quer dizer que a violência – a mesma violência que a nova sociedade
rejeita – vai, não obstante, se tornar parte integrante dessa sociedade.”351
O narrador, como forma de permitir que Connie dê vazão à sua decisão, concede a ela
a palavra em um trecho que segue a conversa citada que teve com Luciente sobre
poder. O romance usa a primeira pessoa apenas em falas e diálogos de Connie. A maior
parte do tempo, mesmo quando se trata do pensamento de Connie, o narrador utiliza a
terceira pessoa para expor e analisar os pensamentos da protagonista. Porém, por
vezes, Connie consegue expressar seus sentimentos ela mesma, utilizando a primeira
pessoa, sem ser necessariamente uma fala. Em um desses casos, em um monólogo
sem interlocutores, ela apresenta a justificativa para sua luta:
351 FITTING, Peter. Beyond the Wasteland: A Feminist in Cyberspace. In: Utopian Studies 5.2 (1994): 4-15
199
“Também sou uma mulher morta agora. Eu sei disso. Mas eu
lutei. Não tenho vergonha. Eu tentei.352
Para Zizek, o ato de Connie reflitiria uma tentativa de “uma recusa de ‘normalizar’ o
crime, de torná-lo parte do curso habitual/explicável/compreensível das coisas, de
integrá-lo numa narrativa de vida consistente e dotada de sentido.”353 O crime, no caso,
seria o exercício de poder e violência da instituição mental contra ela.
Booker traz à luz esse questionamento, defendendo a autora por sua escolha do
desfecho narrativo como “solução simbólica” ou fechamento para o conflito que Connie
vivencia – ainda que problematize e aponte a ambiguidade do ato da protagonista:
Em resumo, Piercy evita a repetição de práticas opressivas ao
se recusar a exigir que seu romance, ainda que didático, seja
interpretado de qualquer forma dada. O final do livro é do mesmo
modo ambíguo. Ramos envenena fatalmente vários membros da
equipe do hospital, o que poderia ser (e tem sido, pela maioria
dos críticos) tomado como uma defesa da violência política
necessária. Mas mantém-se, de fato, um questionamento sobre
a efetividade política desse assassinato múltiplo, ainda que ele
possa ser lido como uma acusação a um sistema que insiste tão
cegamente em definir Ramos como violenta e perigosa que isso
mais cedo ou mais tarde faz com que ela seja assim. Tal como
Carol Farley Kessler sugere, a eventual reação violenta de
352 Woman on the Edge of Time, p. 375. No original: “I murdered them dead. Because they are the violence-
prone. Theirs is the money and the power theirs the poison that slow the mind and dull the heart. Theirs are
the powers of life and death. I killed them. Because it is war.” Her hands shook like a willow branch pulled
by water deep in the ground. “I’m a dead woman now too. I know it. But I did fight them. I’m not ashamed. I
tried”
353 ZIZEK, Slavoj. Violence, p. 189
200
Ramos à violência que foi feita a ela pode ser entendida como
um comentário sobre como a violência em nossa sociedade gera
mais violência, demonstrando a “violência que nosso presente
distópico perpetua entre os inocentes e sensíveis sem poder
(powerless) em nosso meio” (315). Mas se poderia
simplesmente ler esse final como uma demonstração que o
diagnóstico de Ramos estava realmente correto o tempo todo.354
Além dessas reações, é preciso notar que o desfecho do romance causa nos leitores
uma espécie de satisfação, que é eticamente problemática, pois há uma ligação
empática com a protagonista, e sua ação provoca uma impressão de justiça, uma
sensação de empoderamento por meio da vingança, baseada em uma premissa
maquiavélica: a do olho por olho.
Mais do que tentar resolver a ambiguidade de que a violência de Connie seja uma
reação inevitável à violência sofrida por ela ou uma confirmação de sua personalidade
violenta, segundo apontado por testes e pelas autoridades médicas, parece ser
relevante questionar como a privação se introjeta na protagonista e a transforma. Seria
essa uma transformação negativa?
Ao enxergar que sua vida e seu futuro podem ser diferentes, ou seja, no momento em
que o reverso da privação se faz perceptível, ao se materializar em uma sociedade mais
justa e mais humanizada, Connie consegue entender sua sociedade de forma mais
completa e, retirada sua capacidade de interação e ação, nada mais lhe parece sobrar
senão uma atitude violenta e extrema, cujo instrumento ela retira do seio daqueles que
serão vítimas dela. É uma estratégia muito parecida com o que faz Skip, ao se aproveitar
de um deslize dos médicos e dos pais. Mas em vez de direcionar a violência para si
mesma, conforme acontece na vida em sociedade na versão da psicanálise, Connie
percebe ser o Outro que merece ser punido, numa neutralização do superego, o qual
deveria internalizar todo impulso violento como culpa.
O romance não é, ao mesmo tempo que poderia ser, um romance sobre um crime. Ele
busca apontar o foco ao processo, mais do que ao produto das mortes que Connie
provoca. Com toda a narrativa como base, seria precipitado afirmarmos que a
protagonista simplesmente seja insana. Há, portanto, a politização do ato de Connie,
em um contexto que não encoraja nenhum tipo de atitude política, um exemplo de como
Parte da fortuna crítica do romance afirma que a ação de Connie foi exagerada e que a
violência foi gratuita, e que uma ação irracional no fechamento do romance é prova do
diagnóstico da protagonista como pessoa “louca” ou “perigosa”. A posição de alguns
teóricos, como Carrie Hintz e Katherine Broad, é de que “o livro de Piercy se baseia
fortemente numa retórica implacável que complica – e talvez até enfraquece – a posição
utópica do romance”. Piercy foi “exagerada” ao situar sua personagem dentro de um
presente tão distópico, tão privado de tudo. Igualmente, o futuro aterrorizante de Gildina,
somado ao presente quase tão irreal (de uma perspectiva específica de classe), por ser
excessivamente lúgubre, com experiências à la Frankenstein, e toda sorte de poderes
(dos pequenos aos grandes) pressionando Connie, desautoriza a beleza do futuro
utópico. Segundo tais pesquisadores, em certo grau o leitor é manipulado ou persuadido
(no mau sentido da palavra) a escolher Mattapoisett como a melhor saída:
Mas parece ser necessário historicizar tal resposta crítica. A escolha pela violência, ou
mesmo a escolha por Connie tal como ela é como protagonista, está baseada em um
conteúdo social e histórico específico: a existência de Connie e sua imensa privação
assim como a de muitos outros como ela, que vivem cotidianamente a invisibilidade, é
verossímil em um mundo baseado em contradições. Não se trata de um conteúdo
distópico, mas realista, do ponto de vista da classe de Connie. Só poderia ser lido como
uma distopia, uma projeção negativa, por classes média e alta que tentam reprimir o
seu reverso. Entender essas contradições e lutar para que elas sejam transformadas e
HINTZ, Carrie; BROAD, Katherine. “Extreme States: Utopian and Dystopian Logic in Marge Piercy's
355
Woman on the Edge of Time” In: Society for Utopian Studies 36th Annual Conference Abstracts Overview.
Out. 2011, State College, PA.
202
transcendidas pode ser o ponto a que o engajamento da personagem, assim como o da
autora, parece nos levar. E a maneira como ela o faz, sonhando um mundo melhor, ao
mesmo tempo em que nos mostra que há alternativas ruins, caso o estado de coisas
não mude, serve como exemplo de como a união de diferentes forças estéticas pode
nos servir como ferramenta para a reflexão política. A trajetória de conscientização de
Connnie, ainda que não esteja acompanhada de um engajamento real a uma classe,
visto que ela está encarcerada, portanto isolada, demonstra que Mattapoisett não é uma
possibilidade distante, mas uma possibilidade factível, desde que a luta (individual e
coletiva) não dê lugar ao conformismo e à alienação.
A autodestruição
No caso de He, She and It, como temos diversos atores sociais, também temos
diferentes desfechos para cada um dos personagens. Aquela que tem mais destaque,
Shira, segundo podemos observar, atinge, no decorrer da narrativa uma série de
conquistas: ela se livra de qualquer tipo de controle que a corporação poderia ter sobre
ela, ao mesmo tempo que da culpa e dos questionamentos sobre ser uma boa mãe,
profissional, etc. Além do treinamento contínuo com Yod, que interroga certos aspectos
do que é considerado normal, levando Shira a também refletir acerca de tais aspectos,
ela é peça fundamental para o desenvolvimento das estratégias que vão levar ao
fracasso da Yamamura-Stichen. No sentido da motivação do enredo, Shira consegue
seu filho de volta e passa a compreender as forças que regem seu mundo e si mesma.
Ela segue viva e junto com Malkah é a voz que explica as consequências das ações
ocorridas durante o romance e como se espera que as coisas se processem (nos
capítulos “Seguindo Chava” e “A escolha de Shira”)
É Yod, portanto, que vai ter o papel fundamental na alteração da situação política da
história. O enredo caminha ao ponto de seu clímax, quando a Y-S já sabe da existência
do ciborgue, eles ignoram uma das poucas leis existentes naquele mundo, uma
responsável por manter o delicado equilíbrio entre as diversas instâncias sociais, e
anunciam um ataque à cidade livre. A única forma de evitar esse ataque é a rendição
de Yod para eles. Em posse de uma tecnologia tão avançada, a corporação iria se
destacar enquanto líder e a organização social daquele mundo certamente sofreria uma
grande mudança.
203
A cidade se divide nas posições de Yod como ser humano e Yod como máquina. De
qualquer modo, Avram decide ceder e enviar o ciborgue para eles. Sabe-se que haveria
uma reunião de cúpula em poucas semanas, e tal oportunidade colocaria todo alto
comando da hierarquia da multinacional numa posição vulnerável. Shira não concorda
com a solução e deseja se juntar ao ciborgue nesse momento. Talvez ela espere que
eles consigam causar algum dano, causar alguma distração e fugir. Yod é mais realista
e apresenta para ela sua visão dos fatos. Este é o diálogo que se passa entre o casal:
“Você tem que ficar em casa. Por favor, você tem que
sobreviver.” Ele a abraçou, se afastou um pouco e a encarou
profundamente. “É para isso que fui criado. Sou a arma de
Avram. Matar é o que eu faço melhor.” “Não é justo!” “Não acho
que seja,” ele disse baixinho. “Não quero ser uma arma com
consciência, isso é em si uma contradição porque ela
desenvolve laços, ética e desejos. Ela não quer ser uma
ferramenta de destruição. Eu me julgo por matar, ainda assim,
minha programação assume o controle em caso de perigo.”
“Minha programação como mãe me faria sacrificar qualquer
coisa ou qualquer um pelo Ari. Qual a diferença? Mas se eu for
com você, podemos ter uma chance, Yod!” “Estou em interface
com o computador central no laboratório. Se eu não me
autodestruir até um certo momento predefinido, Avram vai fazer
com que eu exploda de qualquer forma. Veja, Shira, não há
nenhuma forma pela qual sua presença possa ser de grande
ajuda.” Ainda abraçado a ela, ela tocou a sua face com a mão
direita, correndo dedos pelo contorno do maxilar e sua
bochecha. “Estou para morrer, mas preciso me certificar que
você esteja em segurança.”356
Nessa cena, Yod descreve qual será a sua missão. Ainda que misture a sentença de
morte de Yod com certo tom romântico, nos gestos do ciborgue, Marge Piercy
novamente lança mão do tema do sacrifício como forma de concluir a narrativa. O
sacrifício no caso é de Yod, que vai dar a vida para afastar o perigo iminente para a
cidade de Tikva, e de Shira, que de certo modo vai permitir que seu amante faça isso,
356 He, She and It, p. 424. No original: “You must remain at your home. Please. You must survive.” He took
her in his arms, holding her out a little, staring into her eyes. “This is what I was created for. I am Avram’s
weapon. Killing is what I do best.” “It’s not just!” “I don’t think it is,” he said quietly. “I don’t want to be a
conscious weapon. A weapon that’s conscious is a contradiction, because it develops attachments, ethics,
desires. It doesn’t want to be a tool of destruction. I judge myself for killing, yet my programming takes over
in danger.” “My maternal programming makes me sacrifice anyone and anything to Ari. W hat’s the
difference? But if I go with you, we might have a chance, Yod.” “I am in phase with the master computer in
the lab. If I don’t self-destruct by a certain preset time, Avram will cause me to explode anyhow. You see,
Shira, there’s no way your presence can help me.” Still holding her, he touched her face with his right hand,
lightly tracing the line of her cheekbone, the curve of her cheek. “I am to die, but I must know you’re safe.”
204
e não insiste para que ele a leve. A violência radical da explosão se configura, portanto,
como um ato político, como um ato de libertação.
Além disso, há uma remissão de Yod ao seu status como arma, que já havia sido
questionado antes como uma grande contradição interna que o formava. Mesmo
Malkah, perto da conclusão do romance vai considerar Yod um erro. Segundo ela, Nili,
o ser humano geneticamente modificado, com sentidos mais aguçados e implantes é o
melhor caminho para o futuro. O movimento chave de Yod, sua verdadeira prova de
autonomia e escolha, é que além de se autodestruir, levando consigo os representantes
de poder daquele mundo, ele causa uma reação em cadeia e faz com que o computador
do laboratório de Avram também exploda. Nisso, ele fecha as possibilidades de que
uma nova entidade como ele venha a ser construída, evitando que um novo ser-arma
viva uma contradição tão profunda quanto a que ele viveu. Shira descobre que há uma
forma de replicá-lo, a despeito dos desejos e planos de Yod que isso não aconteça,
porque Yod não havia destruido os arquivos de Malkah, mas ela acaba decidindo não
fazê-lo, apesar da tentação de ter o “parceiro e pai perfeito para Ari”.
Mas por qual razão Yod deve se sacrificar? Para Fitting e Moylan, este movimento está
relacionado com as limitações da autodefesa. Numa guerra, nos termos que Connie
coloca, que é a mesma que está sendo lutada pelas pessoas de Tikva, a luta de classes,
momentos explosivos de violência são por vezes necessárias para solucionar opressões
mais diretas. Elas podem variar desde as greves, conforme Benjamin nos indica,
protestos, até a violência definitiva, da autodestruição. Evidentemente, não existe a
apologia de Marge Piercy para que seus leitores imitem os fundamentalistas religiosos
e se transformem em homens e mulheres bomba. Porém, ela implica que o engajamento
político demanda sacrifícios. Para Neverow,
Ainda que extremamente impressionados pela virulência dos atos sumários dos
protagonistas nos dois romances, o leitor pode concluir, para além da escrita, que
aqueles sujeitos, por mais que fossem afetados por suas condições objetivas, tomaram
atitudes para conhecer melhor as estratégias de resistência e por diversos meios, e não
sem um oneroso sacrifício, puderam lutar contra a opressão e no sentido de que uma
sociedade como Mattapoisett, mais próxima ou mais distante do horizonte de
possibilidades pudesse vir a ser. O futuro que luta por existir deve ser aquele do sonho
social, do melhor lugar, e ao tomar uma posição dentro da luta de classes, ambos os
romances são monumentos dessa luta, que a hegemonia, como modo de se
salvaguardar, tenta apagar: demoniza-se a violência, naturaliza-se o crime cometido
pelo sistema contra os indivíduos, neutraliza-se toda forma alternativa de pensamento
e ação, chegando ao ponto de afirmar que uma sociedade melhor, posto que diferente
da atual, é impossível, inviável, uma loucura muito além da ficção (visto que nem mesmo
nesse nível ela possa se concretizar mais).
Por mais que os romances se passem nos Estados Unidos, eles dão sinais de algo que,
para Klein, “existe independentemente de qualquer governo e vai continuar
entrincheirada até que a ideologia hegemônica das corporações que lhe dá suporte seja
identificada, isolada e questionada. Esse complexo é dominado pelas empresas norte-
americanas, mas é global.”358 Portanto, estamos presos a essa lógica no Brasil, tanto
207
Epílogo – Para ser de uso
Amo pessoas que se arreiam, como boi para uma carroça pesada,
Que puxam como búfalos-d’água, com sólida paciência,
Que lutam contra lama e lodo para levar as coisas adiante,
Que fazem o que deve ser feito, repetidamente.
Um dos poema mais citados de Marge Piercy, “Para ser de uso” apresenta uma
importante característica a respeito de sua obra e de nosso trabalho. Antes de falar
sobre ela, vamos traçar novamente os caminhos que nos trouxeram até aqui.
Este trabalho buscou dar conta de três conceitos gerais dentro da obra de Marge Piercy.
Primeiramente apresentamos um pouco sobre a vida da autora, seus alinhamentos e
como ela se engaja com os assuntos mais importantes de seu momento histórico. Dois
entre seus diversos romances, Woman on the Edge of Time e He, She and It
materializam em si uma série de temas e questões, com suas soluções simbólicas e
contradições, que buscamos apontar e comentar.
O primeiro aspecto que se fez preemente para nossa discussão foi a definição do
conceito de Utopia. Esse é um campo em franco desenvolvimento no mundo anglófono,
com sua Sociedade de Estudos Utópicos, e desde os anos 1970 produz obras
359 PIERCY, Marge. “To be of use”. In: Circles on the Water. New York: Knopf, 1982. (tradução nossa)
208
analisando o impulso utópico e suas manifestações. Autores como Lyman Sargent,
Darko Suvin e Ruth Levitas foram apenas alguns estudiosos apresentados e cujas
análises da Utopia partiam de algum ponto de vista diferente: diversas leituras enfatizam
ora suas características formais, ora de conteúdo e, alternativamente, sua função. Ideias
como o “sonho social” e a “educação do desejo” pautaram nosso estudo e
demonstraram os princípios dos quais partimos: a literatura assume uma função didática
e vai tanto representar o desejo quanto problematizá-lo. Em tempo, passamos para
Jameson e sua ideia de Utopia enquanto neutralização, ou seja, a demonstração de
nossa incapacidade de imaginar o futuro. Definimos que a utopia seria para nós um
modo de mediação da imaginação, uma ligação entre aquilo que é a uma forma radical
de pensar ou agir: a representação da diferença, portanto, uma ferramenta política, um
mapeamento das possibilidades e dos limites históricos, importante em um contexto no
qual a própria concepção de alternativas está problematizada ou impedida.
Nossa tese foi que as obras de Piercy abrem espaço para o pensamento autorreflexivo
de alternativas em uma época de crise política e histórica. Elas assim o fizeram na época
em que foram escritas e ainda o fazem nos dias de hoje. Guardadas as proporções dos
respectivos momentos históricos, as obras representam uma recuperação de aspectos
relevantes do passado e um salto para o futuro, na sua mistura de desejos e medos,
utopia e distopia. Segundo dissemos, como método, a Utopia vai funcionar como um
“espaço onde o leitor é tanto levado a experimentar uma alternativa quanto a fazer
julgamentos sobre ela”360 e as “imagens do futuro nos ajudam a dar forma ao verdadeiro
futuro”.361
210
No capítulo seguinte, o tema tratado foi a violência. O primeiro passo foi a análise dos
episódios de abertura como marcas iniciais da violência presentes nos romances.
Seguiu-se um levantamento de outros tipos de violência, que chamamos de subjetivas,
seguindo Zizek, tanto num âmbito coletivo, a partir dos aparelhos ideológicos do
Estado/corporações, quanto na esfera individual, um sujeito contra o outro.
Identificamos também ocorrências de violência simbólica e objetiva, nas pressuposições
do sistema, na violência invisível que “normaliza” estados violentos como naturais. O
próximo passo foi a análise de episódios do romance que diretamente questionavam as
questões da violência. Essa era uma das estratégias de autorreflexividade, do pensar
sobre a matéria social que se imprime nas obras. Tanto numa conversa de Connie sobre
a relativização da maldade no ato de matar, quanto Riva defendendo o cyberterrorismo
e Yod expressando suas preocupações enquanto ser arma, existe uma primeira
tentativa de pensar na violência no seu aspecto libertador e “divino”. Finalmente, a última
parte é uma análise das cenas de fechamento dos romances e a forma como a violência
passa a ser ressignificada: a defesa se torna um ataque e tal ataque está relacionado
com um sacrifício. E o ato individual dos sujeitos é colocado pelas forças do romance
em uma perspectiva coletiva, um passo, pequeno, mas prospectivo, na luta por uma
alteridade radical. Tal como Zizek, “partimos da rejeição de uma falsa antiviolência e
chegamos à aceitação da violência emancipatória”362.
Todas as análises e reflexões apontam para a importância dos debates sobre os temas
tratados no cenário político de hoje. Se Marge propunha, no seu poema que abre esta
seção, que um trabalho que vale a pena é aquele que é verdadeiro e útil, a utopia hoje
é um tema imprescindível para que se possa pensar no futuro de forma verdadeira e
útil. Na mesma linha, os organizadores do livro Utopia Método Visão, Tom Moylan e
Raffaela Baccolini, colocam como subtítulo “O valor de uso do sonho social”. Não se
trata portanto de uma utilidade no sentido mais instrumental, ainda que esse sentido
não esteja excetuado, mas é no seu papel como necessidade do homem que ela deve
ser tratada.
Como vimos, é essencial que as conexões entre o presente, o passado e o futuro sejam
debatidas e as teorias e práticas da Utopia e a História têm um papel fundamental para
que essas relações sejam explicitadas e consideradas. A violência, como um tema que
perpassa todas essas categorias temporais vai servir como exemplo de como se deve
articular, de modo político, os poderes do passado e do futuro, sempre pautados nas
O “vocês” a que o personagem se refere inclui tanto Connie quanto o leitor. Ele nos
lembra que podemos nos tornar, como David Harvey sugere em seu Spaces of Hope,
arquitetos insurgentes:
363 Woman on the Edge of Time, p. 197-8. No original: “Are you really in danger?” “Yes”. His big head nodded
in cordial agreement. “You may fail us.” “Me? How?” “You of your time. You individually may fail to
understand us or to struggle in your own life and time. You of your time may fail to struggle altogether… We
must fight to exist, to remain in existence, to be the future that happens. That’s why we reached you”
364
HARVEY, David. Spaces of Hope. University of California Press, 2000, p. 255. (tradução nossa)
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