Da Bossa Nova Ao Clube Da Esquina Dialogos e Relac
Da Bossa Nova Ao Clube Da Esquina Dialogos e Relac
Da Bossa Nova Ao Clube Da Esquina Dialogos e Relac
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Graduada em Ciências Sociais e em Música (instrumento violão) pela Universidade Federal de Uberlândia. É
mestre em Sociologia da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas e doutoranda em Sociologia da
Cultura pela mesma instituição. No doutorado, desenvolve pesquisa sobre a MPB vinculada à contracultura, ao
desbunde e à cultura marginal no período de 1969 a 1974. É autora da monografia de graduação Para além da
Zona Sul carioca: a Bossa Nova em Minas Gerais, e da dissertação de mestrado Nuve ciga a : a trajetória
do Clube da Esquina no campo da MPB. Email: [email protected]
PALAVRAS-CHAVE
Música Popular Brasileira, Bossa Nova, Clube da Esquina, diálogos musicais, estética musical.
ABSTRACT
This article explores some of the musical-aesthetics aspects that interconnect two musical manifestations of
Brazilian Popular Music: Bossa Nova and Clube da Esquina. The first one was originated in Rio de Janeiro
around 1958, almost at the same time as its version from Belo Horizonte, created by Pacífico Mascarenhas and
Roberto Guimarães. The second one refers to a group of artists from Minas Gerais that emerged in the
phonographic scenario in 1967, with Milton Nascimento as its most representative artist. This relationship
allows us to better understand the new paradigms presented towards the production of popular music in Brazil
during the advent of Bossa Nova and how it gained new arrangements in some songs of Clube da Esquina.
KEYWORDS
Brazilian Popular Music, Bossa Nova, Clube da Esquina, musical dialogues, musical aesthetics. 219 ▪
A canção bossa-novista
▪ 220 tensões5, as quais, muitas vezes, criavam melodias secundárias, formando contracantos à
melodia principal; procedimento já encontrado em obras como as do pianista Custódio
Mesquita (NASCIMENTO, 2001). As nuanças melódicas bossa-novistas, apesar de
introduzirem tensões à harmonia, distanciavam-se dos maneirismos vocais típicos do jazz,
afirmando, desse modo, a primazia da canção (MAMMI, 1992, p. 64-65)6. E o ritmo, cuja
1 Em 1958, além de participar do LP de Elizeth Cardoso Canção do amor demais, João Gilberto gravou dois 78
p ,à osà uaisài luiuàasà a ç esà Chegaàdeà“audade à To àJo i àeàVi i iusàdeàMo aes ,à Bi à o àeà H -ba-
lá-l à deàsuaàauto ia àeà Desafi ado à To àJo i àeàNe to àMe do ça .
2 Conforme indica Santuza Cambraia Naves, a naturalidade e o despojamento característicos do canto da Bossa
Nova remetem, em alguma medida, às interpretações de Noel Rosa e de Mário Reis, nos anos 1930 (NAVES,
1998, cap. 2).
3 De acordo com Brasil Rocha Brito, o cool jazzà à o tido,àa ti o t asta te. Não procura pontos de máximos e
mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como normalmente [se] fala. Não há sussurros alternados
o àg itos.àNadaàdeàpa o is os à B‘ITOà[ ]à ,àp.à -19).
4 Tom Jobim era fã das dissonâncias e das ambiguidades tonais de compositores como Arnold Schöenberg,
Claude Debussy, Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnattali. Jobim, na fase inicial de sua carreira, chegou a ser
parceiro de Radamés (NAVES, 2000).
5 As tensões harmônicas consistem em notas adicionadas à formação primária das tríades ou tétrades.
Ressalto, especialmente, a incorporação de notas nomeadas, em relação aos acordes, de nonas, décimas
primeiras e décimas terceiras.
6 Certos instrumentistas identificados com a Bossa Nova, como Eumir Deodato, Sérgio Mendes e o conjunto
Ta aà T io,à e t apola a à oà a te à el di oà daà a ç o.à E o aà oà a a do asse à u aà pe spe ti aà
asilei a ,àe à iasàdeàsuasàpe fo a esàh à o po ta e tosàest ti osà la a e teàjazzísti os,ào iu dosàdoà
bebop, tais como improvisações que fogem às linhas melódicas do canto, andamentos e convenções rítmicas
mais movimentadas e arranjos musicais densos.
7 Para maiores informações e detalhes sobre as polêmicas que marcaram o surgimento da Bossa Nova, entre o
final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, ver: PARANHOS, 1990.
8 Refiro-me à MPB como uma instituição sociocultural forjada a partir dos debates que caracterizaram o
cenário artístico-musical dos anos 1960, tendo ocorrido num nível mais sociológico e ideológico que puramente
estético (NAPOLITANO, 2001, p. 13).
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convidado pra gravar lá na [gravadora] Odeon mais um da série Sambacana. Aí eu combinei com
eles e começamos a ensaiar. Fizemos os arranjos com o Marcos de Castro [irmão de Luiz Cláudio,
cantor contratado da Rádio Nacional], que era um amigo nosso que tinha muito jeito pra fazer
10
arranjo. E fomos pro Rio gravar o disco .
9 Para uma análise da Bossa Nova produzida em Belo Horizonte, no início dos anos 1960, sobretudo via
composições de Pacífico Mascarenhas e Roberto Guimarães, conferir: DINIZ, 2010.
10 Cf. Entrevista de Pacífico Mascarenhas concedida à autora, Belo Horizonte, 9 jun. 2007, 60 min.
11 Há registros do Berimbau Trio no LP Música popular brasileira em expansão (1965), cuja primeira faixa
e i eàMilto àNas i e toà a ta doà Ca ç oàdoàsal ,àdeàsuaàauto ia.à
12 Cf. Entrevista de Fernando Brant concedida à autora, Belo Horizonte, 25 jul. 2008, 40 min.
13 Sobre o assunto, conferir, por exemplo: NAPOLITANO, 2014, p. 13-42; e RIDENTI, 2000, p. 33-42. Com base
nos ganhos estéticos da Bossa Nova, o LP de Carlos Lyra Depois do carnaval (19 àeàasà a ç esà Oà o oà oà
te à ez à To àJo i àeàVi i iusàdeàMo aes ,à Bo a d à EduàLo o àeà )el o à “ gioà‘i a do àe e plifi a àoà
engajamento social defendido por alguns músicos no início dos anos 1960. Carlos Lyra participou ativamente
do disco O povo canta, produzido e lançado pelo CPC da UNE em 1962.
14 Cf.àDepoi e toàdeàáffo soà‘o a oàdeà“a t á aà o edidoà àauto aà iaàe-mail, 24 jun. 2010.
15 Cf. Entrevista de Fernando Brant concedida à autora, op. cit.
16 Noto,à e à iasà a ç esà doà Clu eà daà Es ui a,à e toà o a tis o à ueà e eteà aà alo esà o u it iosà eà
tempos idos: infância, amizade, comunhão, fraternidade, religiosidade mineira, harmonia com a natureza,
trabalho como arte, encantamento da vida. Baseando-me em Michel Löwy e Robert Sayre (1995), entendo que
tais aspectos denotam uma maneira singular de crítica da modernização capitalista. Conforme argumenta, por
exemplo, Renato Ortiz, o Estado autoritário, embora amplamente repressor e coercitivo, foi o propulsor da
modernização capitalista na sua forma mais avançada (ORTIZ, 2006, p. 159-160).
▪ 226 Milton Nascimento (1967) e Courage (1968) – esteà últi oà o à oà títuloà B idges à –, foi a
que mais despertou o interesse do público e da crítica. Além de consagrar a Milton com o
prêmio de melhor intérprete, ela obteve a segunda colocação no II Festival Internacional da
Canção, promovido pela TV Globo em 1967 (MELLO, 2003, p. 223-250). A letra, ao contar a
história de um caixeiro viajante, remete aos causos dos homens nômades e sertanejos. A
saga amorosa de perda e superação, citando implicitamente Guimarães Rosa e Carlos
Drummond de Andrade, desenrola uma filosofia sofrivelmente conquistada: a construção do
próprio viver dependeria da travessia destemida e ininterrupta por um caminho de pedras.
Em compasso quaternário simples, desponta um toque violonístico pinçado, à moda de uma
toada, e marcações precisas do chimbal da bateria.
As propriedades rítmicas e os arranjos do LP de 1967 se apoiam no samba-jazz e
alude à aà pla osà isuaisà i e atog fi os,à e plo ados,à p i ipal e te,à aà a ç oà Gi aà
gi ou à deà Milto à Nas i e toà eà M ioà Bo ges .à Cata e to ,à úsi aà i st u e talà deà
Milton, exibe curtas vocalizações no início e no fim, reservando um pequeno comentário
17 Co oàde o st a,àpo àe e plo,à Cho e doà aà osei a ,àg a adaà oàLPà Elis & Tom (1974). Tal canção, nos
termos de Luiz Tatit (2004, p. 179), pode ser considerada como pa tí ipeàdeàu aà faseàe te sa àdaàBossaàNo a.
18 Oàsa aàaoà ualàVilelaàseà efe eà àaà a ç oà C a oàeà a ela à Milto àNas i e toàeà‘o aldoàBastos ,àg a adaà
no LP de Milton Nascimento e Lô Borges Clube da Esquina (1972).
19 A banda Som Imaginário, vinculada a uma estética contracultural e mesclando informações sonoras
ad i dasàdaàBossaàNo a,àdoàjazz,àdaà úsi aà l ssi a ,ào ie talàeàhisp i a,àfoiài i ial e teàfo ada,àe à ,à
para acompanhar Milton Nascimento em seus shows. Dela participavam Wagner Tiso (piano e teclados), Zé
Rodrix (órgão, vocal, flautas), Fredera (guitarra), Tavito (violão e viola de 12 cordas), Luiz Alves (baixo elétrico),
Robertinho Silva (bateria) e Laudir de Oliveira, que seria substituído por Naná Vasconcelos na percussão.
20 Lô Bo gesà oàdei ouàdeài u sio a àpelosà te e os àdaàBossaàNo a.àE à ,à oàCDàdeà‘o e toàGui a esà
– Roberto Guimarães & convidados –,àeleài te p etouà á o à e ti ho ,à a ç oàout o aàla çadaà aà ozàdeàJo oà
Gilberto.
21 A influência do rock nas canções de Milton Nascimento foi decisiva para a gestação da sonoridade que,
especialmente via imprensa, recebeu o título de Clube da Esquina. Antes dos LPs Milton (1970) e Clube da
Esquina à oàseà ogita aàaàideiaàdeà g upoà i ei o àtalà ualàseà o sag ou.àPa aàuma análise da trajetória
do Clube da Esquina e sua constituição como uma formação cultural, ver: DINIZ, 2012.
22 Até o lançamento do LP Milton (1970), Milton Nascimento era geralmente identificado pela crítica como um
úsi oà ueà ealiza aàu aà istu aàe polga teà[...]àdeà odaàdeà iolaàeàjazz à “OU“á,à .
▪ 230 seriam incapazes de entender a arte, a música e as coisas belas e alegres da vida. Embora a
restrição à liberdade artística continuasse persistindo, Milton Nascimento resistia ao
de la a :à o à oàte à aleg ia,à u aà fezà u aà a ç o/à por isso a minha poesia você não
ou a,à o .à
Vê-se que, noutro contexto histórico ou sob outras motivações, os sentidos
primeiramente conferidos a uma canção podem sofrer modificações intencionais rumo a
uma ressignificação ou, até mesmo, a uma dessignificação. Adalberto Paranhos salienta que
a ç oàalgu aà àu aàilhaà oltadaàpa aàde t oàdeàsi.àNe àse iaàpossí elàsu et -la a uma
blindagem que a mantivesse a salvo ante qualquer tentativa de reapropriação de seus
se tidos à Pá‘áNHO“,à ,àp.à .àCo tudo,à esmo distanciada de seus sentidos originais,
asà espe ifi idadesà est ti asà deà “a eà o ? à o ti ua a à o te pladas.à Co à e eç oà à
sonoridade dos sintetizadores elétricos executados por Wagner Tiso, os instrumentos
contrabaixo, bateria, flauta e guitarra reforçam, lentamente e com requinte e precisão, o
ritmo peculiar da Bossa Nova. Já a voz de Milton Nascimento, mesclando o legatto com
articulações rentes à fala, criou um clima camerístico corroborado por todo o arranjo
musical.
26 Independentemente do Clube da Esquina, Toninho Horta produziu dois discos dedicados à Bossa Nova: CD
Sem você (1995), em parceria com a cantora Joyce; e CD From Ton to Tom (1998). O músico também
participou como violonista do LP IV Sambacana (1976), do bossa-novista mineiro Pacífico Mascarenhas.
27 Cf. Entrevista de Toninho Horta. In: TEDESCO, 2000, p. 191.
▪ 232 dialogam diretamente com a Bossa Nova, já que exploram aspectos do pop rock, em alusão
aos seus arranjos originais. O disco, entretanto, aponta de um modo geral para a
contemporaneidade de uma concepção estética, não unívoca, gestada no fim dos anos 1950.
Pode-se dizer que Novas Bossas vai ao encontro de um comentário tecido por Carlos Lyra:
E à elaç oà àBossaàNo aàh àu à elhoàe uí o o:àoàdeàa ha à ueàelaàseào upouàape asàdoà
samba. Isso não é verdade. A Bossa Nova é modinha, é baião, é samba-canção, é tudo isso. A
BossaàNo aà àoàespí itoàdaà oisa à apud PARANHOS, 1990, p. 39).
Considerações finais
Referências
BORGES, Márcio. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. 5.ª ed. São Paulo:
Geração, 2004.
BRITO, B asilà‘o haà .à BossaàNo a .àIn: CAMPOS, A. (org.). Balanço da bossa e outras bossas.
3.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 17-40.
DINIZ, Sheyla Castro. Para além da Zona Sul carioca: a Bossa Nova em Minas Gerais. Monografia de
graduação em Ciências Sociais. Uberlândia: UFU, 2010.
________. Nuve iga a : a trajetória do Clube da Esquina no campo da MPB. Dissertação de
mestrado em Sociologia. Campinas: Unicamp, 2012.
28 Cf. Murilo Antunes. Texto grafado na orelha da contracapa do livro Os sonhos não envelhecem (BORGES,
2004).