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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

A RECONFIGURAÇÃO DA NORDESTINIDADE: IMAGENS DO


ESPAÇO NORDESTE EM ÁRIDO MOVIE, 2000 NORDESTES E NA
TRILOGIA DO ESCRITOR ANTÔNIO TORRES.

por

Manoela Falcon Silveira

Salvador - 2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

A RECONFIGURAÇÃO DA NORDESTINIDADE: IMAGENS DO


ESPAÇO NORDESTE EM ÁRIDO MOVIE, 2000 NORDESTES E NA
TRILOGIA DO ESCRITOR ANTÔNIO TORRES.

por

Manoela Falcon Silveira

Orientadora: Profa. Dra. Rachel Esteves Lima

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Literatura e Cultura do
Instituto de Letras da Universidade Federal
da Bahia como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Doutora em Letras.

Salvador - 2014
3

“O sertão é barroco, não é clássico ou


neoclássico. É onde o pensamento se forma
mais forte que o poder do lugar; o sertão dá
asas à imaginação, é ficção, fantasiação”.

Guimarães Rosa
4

AGRADECIMENTOS

A Deus e aos orixás, por abrir e iluminar o caminho.


À Rachel Lima, que me orientou os passos com atenção e generosidade.
Ao Bruno Falcon Silveira, pelo amor incondicional de filho e pela ajuda com as
formatações dos trabalhos no decorrer do curso.

Ao Flavio Gallotti, pelo amor, compreensão e respeito.

Aos meus familiares, pelo carinho e atenção.


Ao meu pai, madrinha e avó pelo incentivo e ensinamentos.
Aos professores e colegas do curso de doutorado em Literatura e Cultura, pelas
reflexões compartilhadas.

Aos estudantes de Letras da UFBA que cursaram as disciplinas LET C- 40 e LET C-42,
pelas reflexões sobre literatura e cinema compartilhadas durante as aulas ministradas no
tirocínio docente.

Aos amigos do Núcleo de Estudos da Crítica, pelos encontros e discussões.


A atenciosa revisão realizada pela colega e amiga Lívia Tosta dos Santos.
À coordenação e secretaria do PPGLitCult, pelo empenho e disponibilidade em atender,
sempre que possível, às solicitações feitas.

À Capes, pelo apoio financeiro.


Ao Antônio Torres e a sua produção literária, por me mostrar que ser-tão nordestino é
ser do mundo.

Aos diretores Lírio Ferreira, David França e Vicente Amorim pelas construções das
imagens do Espaço Nordeste representado contemporaneamente no cinema brasileiro.

Ao Instituto Federal Baiano pela colaboração e compreensão.


5

Ficha de aprovação
6

RESUMO

O trabalho tem como objetivo discutir o perfil da nordestinidade apresentado pelas


obras literárias e cinematográficas contemporâneas, a partir da análise do Espaço
Nordeste que permeia a trilogia do escritor Antônio Torres nos romances Essa Terra
(1976), O cachorro e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006) e da cinematografia
de Árido Movie (2005), de Lírio Ferreira e 2000 Nordestes (2000), documentário
dirigido por David França Mendes e Vicente Amorim. A reconfiguração do Nordeste
brasileiro, marcada pelo livre acesso às novas tecnologias, tem deslocado o significado
destes espaços representados por um imaginário de precariedades, construído pela
literatura e pelo cinema das décadas de 1930 a 1970. Hoje, o olhar sobre a paisagem
nordestina possibilita outras maneiras de apreender os modos de vida e a organização
social desta população, assim como as formas e noções de pertencimento habitadas na
subjetividade dos indivíduos pertencentes a esses lugares. Estudar como os espaços
ficcionais, territoriais, biográficos e culturais nordestinos vêm se constituindo e
transformando a partir do contato com as novas tecnologias é a principal meta deste
trabalho.

Palavras-chave: Representações do Nordeste; Antônio Torres; Árido Movie; 2000


Nordestes.
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ABSTRACT

The work aims to provide a profile of nordestinidade [“the feeling of being


Northeastern”] found in contemporary literary and cinematographic works, from the
analyze of Northeastern spaces which permeate the Antônio Torres trilogy, in the novels
Essa Terra (1976), O cachorro e o lobo (1997) and Pelo fundo da agulha (2006), and
the cinematography of Árido Movie (2005), by Lírio Ferreira, and 2000 Nordestes
(2000), documentary directed by David França Mendes and Vicente Amorim. The
reconfiguration of Northeastern Brazil marked by the free access to the new
technologies has changed the meaning of these spaces, which are represented by an
imaginary of precariousness consisted of the literature and cinema in the 1930s to
1970s. Nowadays, the view on the Northeastern environment enables other possibilities
of understanding ways of life and the social organization of these people, as well as
belonging forms and notions inscribed in the subjectivity of individuals who belong to
these places. Studying how fictional, territorial, biographic and cultural Northeastern
spaces have been forming and changing as a result of the contact with new technologies
is the main objective of this work.

Keywords: Northeastern space; Antônio Torres; Árido Movie; 2000 Nordestes.


8

SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................ 10

1 A pluralidade do sertão multicultural................................................................ 20

1.1 O sofrê, o sofraco e o sofrido, uma fábula espacial tecida sobre o sertão
nordestino ................................................................................................................ 22

1.2 O projeto estético da cinematografia contemporânea e a atual construção


imagética do espaço-sertão brasileiro....................................................................... 30

1.3 Na esteira das citações, as subjetividades .......................................................... 45

2 Imagens da (re)configuração da nordestinidade............................................. 54

2.1 A tessitura de vidas no Espaço Nordeste............................................................ 56

2.2 O traçado da “identidade nordestina” no imaginário brasileiro.......................... 67

2.3 O sujeito distorcido em Essa Terra e Árido Movie............................................ 81

2.4 As representações do espaço-Nordeste e da “cultura da mobilidade” na


literatura e no cinema contemporâneo brasileiro...................................................... 92

3 O lastro autobiográfico na literatura e no cinema contemporâneo................ 103

3.1 A narrativa autobiográfica: o sujeito, a máscara e a assinatura.......................... 105

3.2 O pacto referencial na trilogia de Antônio Torres e em Árido Movie................ 112

3.3 Na teia da autobiografia, a ficção....................................................................... 116

3.4 As rotas do documentário: “Uma câmera na mão” e histórias de vida na


tela............................................................................................................................. 125

Considerações finais................................................................................................ 136

Referências.............................................................................................................. 140

Anexos....................................................................................................................... 151
9

“Espaço sem janelas e sem porta de entrada e de saída”.


Guimarães Rosa
10

INTRODUÇÃO

A temática apresentada neste estudo gira em torno das possibilidades de


descortinar o espaço-Nordeste representado nas imagens literárias e cinematográficas do
nosso tempo. A escolha da trilogia literária do escritor Antônio Torres se deu por
identificarmos o quanto a sua escrita aproxima os espaços, rural-urbano / interior-
citadino / centro-periferia, recorrendo frequentemente à projeção das imagens e dos sons
que circulam pelos meios de comunicação de massa, colocando-a incessantemente, em
diálogo direto com o seu texto.
Ao realizarmos a análise literária das obras Essa Terra (1976), O cachorro e o
lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006), do escritor Antônio Torres, o faremos no
intuito de verificar como os espaços construídos através da escrita dizem da atual
condição do sujeito nordestino, que continua a se deslocar, e nesses deslocamentos
avaliamos também a condição em que se dão os de caráter subjetivo.
A condição de escritor e sua reinvenção a partir do contato com os meios de
comunicação de massa serão temas abordados porque a literatura produzida por Antônio
Torres reflete esse percurso do autor que, ao focar a escrita a partir das memórias,
imagens e figurações do vivido, como demonstrado pelo escritor em várias entrevistas
que apresentaremos no decorrer do capítulo três da tese, trará para as nossas páginas a
discussão sobre as possíveis respostas que as ficções culturais contemporâneas têm
traçado, possibilitando o diálogo sobre os espaços e os papéis que a literatura tem
assumido, em plena era da visibilidade propagada pelas mídias.
Nesse sentido, o espaço-Nordeste representado pela trilogia vai apontando para a
confluência entre as culturas populares e as novas tecnologias. A literatura sobre esses
“nordestes” reflete o contexto dos sujeitos nordestinos envolvidos nesses espaços
midiáticos e de acesso aos bens de consumo produzidos pela sociedade globalizada.
Ao analisar essas relações na trilogia literária escrita por este autor, percebemos
que ela diverge das problemáticas discutidas pela literatura sobre o nordeste escrita no
período de 1930 a 1960, por exemplo. Sabemos que o enfoque, assim como a postura
dos escritores era outra, uma vez que o contexto histórico referente às produções
literárias também diverge intensamente. Tomando o contexto histórico como peça-
chave para analisarmos a interferência da escrita literária de determinada época e sua
relação direta com a produção cultural do período, no primeiro subcapítulo faremos um
zapping sobre algumas obras que abordaram o espaço-Nordeste nas décadas de 1930-
11

1960, para percebermos as diferenças marcadas pelo atual contexto social, em que os
sujeitos nordestinos têm acesso fácil aos meios de comunicação de massa, além dos
diversos recursos tecnológicos facilitadores da comunicação e transposição da própria
condição de deslocamento percebida pelos estudos desses espaços.
As produções midiáticas interferem diretamente na relação de sociabilidade
estabelecida entre os sujeitos na contemporaneidade. Os estudos desenvolvidos pela
geografia cultural já indicam a imposição de novas formas de sociabilidade a partir da
acessibilidade às novas tecnologias. A trilogia do escritor Antônio Torres aponta para a
condição deste sujeito nordestino em deslocamento constante, tanto do seu espaço
geográfico territorial, enquanto ser que migra da sua terra de origem para o centro
urbano, quanto daquele que se desloca subjetivamente, através da forma como se
relaciona com a cultura com que mantém contato através da mídia. A escrita de Antônio
Torres está marcada pelas imagens, sons e espetáculos que tecem a malha da sua vida
cotidiana: a escolha em narrar de forma fragmentária e a escrita de capítulos curtos
também coincidem com a forma atual de se viver em nossa sociedade.
O cotidiano hoje está programado para enfrentar a curta durabilidade dos objetos:
da geladeira à televisão, do computador ao livro, tudo é feito para durar pouco. A
obsolescência das coisas atinge ainda a nossa construção subjetiva, em que a fugacidade
do pensamento e a efemeridade dos acontecimentos se tornam grandes desafios para se
pensar o tempo presente. O autor se coloca na posição de alguém que observa as
diferenças espaciais existentes entre território e subjetividades pertencentes ao Junco da
década de 1970 à cidadezinha do final do século XX. As narrativas transitam e
evidenciam a centralidade que os aparelhos televisivos e outros meios tecnológicos
assumem em nossas vidas, ao serem instalados no coração de nossas casas.
Esse olhar de Antônio Torres para a obsolescência dos objetos é a base da
sustentação para a “superficialidade” da vida. Vemos um exemplo dessa visão em
entrevista concedida a Diego Damasceno, intitulada “Não sou sambista de uma nota
só”1. Ao responder à indagação sobre as suas idas e vindas pelo mundo e a sensação de
desenraizamento, típica de seus personagens, Torres afirmou que também já se sentiu
assim:

1
Ver íntegra da entrevista em anexo IX.
12

Antônio Torres: Sim. Ipatinga, Minas Gerais. Feira de livros em um


shopping. Eu entro naquele shopping, fico me perguntando se estou no Brasil
ou se estou em Amsterdã. Há um aspecto do nosso mundo hoje, parece que a
singularidade desapareceu. Mesmo no Junco, cheguei lá ontem, as moças
parecem que estão em Ipanema. O jeito de vestir, o comportamento, o estilo.
E aí eu me sinto meio estrangeiro nesse tempo, no sentido existencial. Parece
que estamos num grande aeroporto o tempo todo. Em Junco, não tem
shopping, mas tem a presença da internet, da televisão, já não há mais aquela
sociabilidade dos fins de tarde, as pessoas na calçada, a rua fica deserta, a
praça deserta, todo mundo em casa pendurado na televisão, dá um
estranhamento.

O escritor, que também trabalhou como publicitário no início da carreira de


jornalista, traz na sua escrita autobiográfica o delineamento da construção do seu
percurso literário, que perpassa as telas de cinema, a publicidade, o jornalismo, e vão
além do contato com os livros. A formação do escritor está fortemente referenciada pela
ficção cinematográfica e pela música. O audiovisual é parte intrínseca do processo de
composição do ato criativo na escrita deste autor. Eneida Maria de Souza faz uma
avaliação sobre esta condição da criação do texto ficcional em nossa atual produção
literária:

Uma vez que o objeto literário encontra-se, há muito tempo, desprovido da


aura e transformado em mercadoria, recalcando-se o traço do trabalho que o
produziu, torna-se igualmente difícil identificar o repertório de leituras do
escritor. Esse sentimento de perda estende-se ainda à memória, que tanto
pode ser cultivada como o reduto das grandes obras presentes na biblioteca
dos autores, quanto como resquícios de outras manifestações culturais, entre
as quais aí se inclui o universo da cultura de massa. (SOUZA, 2002, p. 86)

A escolha deste escritor tem sido dialogar com o popular e o erudito, recorrendo às
aproximações possíveis entre a escrita literária e os outros formatos mais difundidos
pela mídia. Interessa-nos a escrita de Torres porque a mesma reflete em seu espaço
literário as diferenças culturais que formam o sujeito nordestino no seu próprio território
ou longe dele. Os espaços subjetivos são filtrados pelas formas narrativas dos meios de
comunicação de massa, produzindo uma literatura que reflete a condição da cultura
atual, na qual a subjetividade é formada por múltiplos referentes.
Como afirmou a autora de Crítica cult, é difícil analisar uma obra literária
produzida recentemente sem perceber nela os traços das manifestações culturais
populares ou de obras que perfazem o universo midiático. Nesse sentido, o primeiro
capítulo, mais precisamente o subcapítulo intitulado “Na esteira das citações, as
subjetividades”, traz a análise da composição das obras, através da utilização das
13

referências nelas encontradas. Vemos o uso das citações como um investimento da


escrita contemporânea na criação de uma literatura que olha abertamente para a estética
massiva.
A opção de Torres pelos capítulos e frases curtas e a utilização das repetições
fazem parte do jogo de aproximações com os recursos utilizados pela cultura de massa e
o modo acelerado em que informa o seu leitor-zapeador. As lembranças, ou melhor, a
memória do narrador-personagem da trilogia torriana perfaz o traçado da escrita que
trabalha na falha. A memória apresenta-se de forma fragmentária, afirmando o indício
do exercício da escrita autoficcional existente na literatura contemporânea a partir do
uso intenso dos lapsos e das fissuras da memória apresentadas pelo escritor.
O caráter autobiográfico dos romances de Antônio Torres analisados aqui é
percebido pela relação que o escritor estabelece entre o passado e as reconstituições das
experiências vividas. As aproximações entre a “identidade” do autor e sua criação nos
indica a existência do caráter autoficcional nos seus romances.
A escrita autobiográfica evidenciada na obra do escritor confirma a desconfiança
de que tudo é ficção, de que não há possibilidade de se realizar uma autobiografia longa
e ordenada no contexto de um mundo globalizado marcado pela velocidade e por uma
realidade cada vez mais complexa e estilhaçada.
No exercício da escrita autobiográfica, Antonio Torres ficcionaliza o passado, a
experiência vivida, reafirmando o exercício da autoficção e a condição de invenção
existente nessa escrita. Em Corpos escritos, Wander Melo Miranda afirma a condição
da encenação ilusória existente na literatura autobiográfica, ao passo que

O pacto fantasmático, ao realçar o desdobramento do autor em figuras e


“personagens” diversos, permite entrever, já em processo, a noção de autor
como um ser de papel, e a da autobiografia não como a representação
verídica e fiel de uma individualidade, mas como uma forma de encenação
ilusória de um eu exclusivo. (MIRANDA, 1992, p.38)

O autor, revestido da composição da ficção e da não-ficção, traça o percurso


autobiográfico a partir das memórias (entre elas a audiovisual da cultura
contemporânea), das experiências de vida que são materiais para a construção da
narrativa do romance.
Os autores das obras fílmicas escolhidas para o corpus deste trabalho também
seguem a trilha da composição autobiográfica em suas obras, estabelecendo o diálogo
aberto com a cultura de massa que ocupa hoje o centro de todo espaço da região
14

Nordeste. Lírio Ferreira, em Árido Movie (2005), retrata a experiência vivida quando
criança, ao viajar pelo interior de Pernambuco com o seu pai. Já nas imagens projetadas
pelo documentário 2000 Nordestes (2000), dos diretores David França Mendes e
Vicente Amorim, vemos os personagens, como os próprios interlocutores, tendo suas
experiências de vida resvaladas pelo contato direto com a televisão e a cultura de massa.
Considerando a condição autoral implícita em toda construção narrativa, e
embora saibamos as diferenças existentes entre a literatura e o cinema, podemos
observar que as atividades dos cineastas citados anteriormente se aproximam daquelas
desempenhadas pelo escritor contemporâneo em tempos audiovisuais. O diálogo entre
literatura, imagem e sociedade ressaem como texto de base para repensar um legado
cultural construído por imagens depositadas na memória, pela influência direta que os
meios de comunicação assumem na formação social e cultural do espaço-Nordeste.
Nesse sentido, o documentário 2000 Nordestes registra, através dos depoimentos
dos personagens do filme, a narração dos acontecimentos e da forma de se pensar o
espaço nordeste através de pontos de vista pouco usuais, no que tange à representação
dessa região pela cinematografia brasileira. A poesia das imagens sobressai nos gestos e
declarações feitas pelos depoentes, e não pela manipulação da técnica pela técnica.
As paisagens filmadas em alternância com a objetividade dos discursos abertos
dos personagens-narradores, assim como a inserção das músicas e cenas de filmes que
retratam as paisagens nordestinas através do olhar de cineastas como Glauber Rocha e
Nelson Pereira dos Santos, marcam a capacidade de tornar visível aquilo que se deve
rever ou recordar, não na perspectiva da repetição, mas no desejo de perceber nesse
retorno as diferenças cruciais desses espaços apresentados pelas narrativas fílmicas, no
século XXI.
O poético e a pluralidade semântica desses filmes surgem do efeito diferencial do
ato de narrar, através da sutileza das palavras e da quase falta de pretensão de respostas
objetivas dos depoentes, na simplicidade dos diálogos travados na frente da câmera, em
que se pode captar a riqueza das experiências vividas, transformando-as naquilo que
Denilson Lopes descreve como o uso afetivo da imagem:

O ato de narrar implica o uso afetivo da imagem, como aproximação entre


obra e público, num contexto indissociado do mercado, mas que não deixa as
obras aprisionadas no lugar-comum e no clichê, mas joga com estes
elementos para elaboração de produtos com uma pluralidade semântica
(LOPES, 2014, p.5).
15

O documentário 2000 Nordestes traz a possibilidade de interpretarmos o espaço-


Nordeste em seus múltiplos significados. Os diretores, ao jogarem com a perspectiva do
deixar falar, para que nós espectadores possamos captar entre as narrativas dos
depoentes-personagens a força que emerge através das expressões de quem a priori não
teria como ser ouvido, investem na máxima de que documentar o “real” é perceber que
a verdade dos documentários está no sujeito, nas palavras, no corpo.
Imagem, sujeito, corpo; as cenas projetadas pela narrativa cinematográfica de
Árido Movie refletem o espaço-Nordeste a partir do movimento de câmera propiciado
pela técnica cinematográfica característica ao road movie. As estradas percorridas pelo
protagonista do filme mapeiam a aridez da paisagem e dos indivíduos que estão
inseridos no espaço territorial fundado pelo coronelismo e ainda com problemas como a
escassez de água. Mas a película investe na possibilidade de repensarmos este espaço a
partir das experiências entre os sujeitos que ocupam atualmente a região e o contexto
social também marcado pela evolução tecnológica.
Abre-se na narrativa de Árido Movie a condição para uma análise crítica da lógica
de se pensar esse espaço-Nordeste, desconsiderando-se o atual contexto social, fundado
na noção de espetáculo e de dispositivo, os quais fazem parte constantemente da
materialidade em cena. Cenas formadoras dos sujeitos em contato com as novas
tecnologias e que, vivendo numa era de produção e reprodução digital, criam ainda
novas possibilidades de configurações sociais.
O mundo sertanejo encenado no cinema e na literatura das décadas de 1950 e
1960 convocava a representação do rural para a construção da identidade nacional que
já se encontrava em crise. No primeiro capítulo da tese, vamos analisar os discursos
engendrados por algumas obras sobre a região Nordeste, avaliando como essas
representações podem ser vistas hoje a partir da encenação dos processos de
desterritorialização ou descentramento vividos pelo sujeito, seja ele habitante do espaço
rural ou urbano.
Na análise do filme Árido Movie, de Lírio Ferreira, visualizamos como as
personagens vivem hoje essas experiências de descentramento, ao mesmo tempo em que
os aspectos míticos da cultura sertaneja são mesclados e incorporados às crenças
culturais cosmopolitas. Nas narrativas dos romances Essa Terra, O cachorro e o lobo e
Pelo fundo da agulha, de Antônio Torres, essa desterritorialização é vivida pelo
protagonista a partir da experiência diaspórica, também representada pelo simbolismo
do deslocamento da viagem (A ida/ O retorno) do interior nordestino para o grande
16

centro urbano. No documentário 2000 Nordestes, percebemos a identificação de


permanências e transformações observadas nas imagens do povo nordestino, transpostas
através das técnicas escolhidas pelos diretores.
O estudo aponta para a desconstrução dos discursos engendrados pela tradição
cultural e pelas formas de representação do espaço e da subjetividade sertaneja,
apresentados pelas narrativas fílmicas e literárias na contemporaneidade. A
representação do espaço-Nordeste possibilita-nos o questionamento sobre os processos
de apropriação e criação das identidades, ao jogar com novas possibilidades de
formação subjetiva do indivíduo. Para discutirmos essas questões, abordaremos alguns
aspectos localizados na análise das narrativas fílmicas e literárias em questão.
O intuito desta tese é, pois, tentar refletir e analisar como as identidades estão
sendo estruturadas pela relação que os sujeitos estabelecem com os espaços habitados,
procurando evidenciar como os diálogos entre as palavras e imagens, a criação literária
e a linguagem cinematográfica, num movimento de “mão-dupla”, têm contribuído para
os deslocamentos das reflexões sobre os espaços contemporâneos, marcados por uma
‘cultura de fluxos e instabilidades’2.
Nesse sentido, propomos uma leitura dos espaços apresentados pelas narrativas
fílmicas e literárias, elegendo o “espaço’’ como categoria para pensar o mundo
contemporâneo e as formas de negociação cultural entre o rural e o urbano, inserindo
nesse questionamento as reflexões sobre o espaço autobiográfico tão presentes nas
narrativas literárias e cinematográficas do nosso tempo.
No primeiro capítulo, intitulado “A pluralidade do sertão multicultural” é
descrito um breve panorama dos estudos sobre as narrativas literárias e
cinematográficas que representam o espaço-Nordeste no atual contexto histórico social,
em contraposição aos discursos engendrados pelas obras literárias e fílmicas que
abordavam a região nordestina nas décadas de 1920 a 1960. Desenvolve-se ainda, a
análise de como as experiências diaspóricas representadas interferem na projeção da
construção da identidade, apontando para os possíveis processos de apropriação e
criação dos indivíduos pelas narrativas literárias e fílmicas em questão, mapeando-se o
funcionamento dos discursos que se articulam em torno da formação cultural do sujeito

2
Ver artigo Espécie de espaço, publicado pelo pesquisador Heidrun Krieger Olinto.In:
MORGATO, Izabel & Renato Cordeiro Gomes (Org.).Espécies de espaço: territorialidades,
literatura, mídia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
17

contemporâneo com os espaços e seus correlatos (lugar, não-lugar, entre-lugar, local,


global, centro e periferia, margem, desterritorialização etc.). Nesse capítulo também
realizamos um estudo pautado no diálogo entre a linguagem literária e cinematográfica,
a partir da observação dos “espaços em trânsito’’ produzidos pelas narrativas literárias
do escritor Antônio Torres e pelas narrativas fílmicas dos diretores Lírio Ferreira,
Vicente Amorim e David França.
No segundo capítulo é realizado o estudo comparativo entre os discursos
engendrados pela atual crítica cultural e os procedimentos adotados pela produção
cinematográfica e literária em questão, no que diz respeito à reestruturação do espaço e à
modificação do seu significado social, pois se percebe nas narrativas a tentativa de
configuração das paisagens representativas das mobilidades inscritas na
contemporaneidade. Dessa forma, o estudo sobre os deslocamentos do espaço-Nordeste,
nas narrativas em questão, assim como a maneira como as noções de urbanidade e
ruralidade são alteradas a partir da projeção do rural tecnológico, é abordado no
desenvolvimento do subcapítulo intitulado “As representações do espaço-Nordeste e da
‘cultura da mobilidade’ na literatura e no cinema contemporâneo brasileiro”. O
desenvolvimento do estudo sistemático sobre os saberes que delineiam o modo de
apresentação dos espaços, da sua desterritorialização, margens e zonas de exclusão na
literatura e no cinema contemporâneo corroboram com as questões sobre a formação
identitária que orientam nossa leitura.
No terceiro capítulo da tese analisamos a forma como a construção das narrativas
indica a presença da voz autoral e dos indícios autobiográficos visualizados nos textos
romanescos e nas imagens fílmicas de Árido Movie e 2000 Nordestes.
O caráter autobiográfico das narrativas marca a produção cultural contemporânea e
reafirma a condição da visão do passado como construção, o que implica na
possibilidade de abertura para repensarmos o deslocamento da representação do espaço-
Nordeste centrado na imagem da aridez e da seca, para se concentrar nas condições
existenciais do sujeito.
A questão da referencialidade, abordada nesse capítulo, também é muito
significativa para discutirmos a condição do descortinamento dos espaços descritos nas
narrativas fílmicas e literárias, por trazer à cena as memórias e, de certa forma, a maneira
como os autores enxergam e reproduzem essa região. Ao falar de si, fala-se do outro e,
nesse sentido, a escrita autobiográfica revela a forma como esse sujeito-autor, que
18

vive(u) no espaço-Nordeste constrói o presente, a partir das reminiscências e dos


fragmentos de vida experimentados.
Os gêneros biográficos, como a autobiografia e a entrevista interessam-nos pela
possibilidade de percebermos, através desses materiais, a forma como as subjetividades
manifestas nas obras em estudo se constituem a partir da tessitura do imaginário
nordestino construído pelas experiências de vida dos autores.
19

“O sertão está em toda parte”.


Guimarães Rosa
20

1. A PLURALIDADE DO SERTÃO
MULTICULTURAL
21

“O sertão é do tamanho do mundo”.


Guimarães Rosa
22

1.1. O SOFRÊ, O SOFRACO E O SOFRIDO: UMA FÁBULA ESPACIAL


TECIDA SOBRE O SERTÃO NORDESTINO

As narrativas literárias e cinematográficas que representam o espaço-Nordeste, no


atual contexto histórico-social e econômico, têm deslocado, na medida do possível, a
condição interpretativa associada à tradição regionalista das obras dos anos 1930 a
1960. A expressão “na medida do possível” deve ser considerada por percebermos que a
caracterização dos espaços a que as obras em questão se referem perpassa
intrinsecamente pela experiência histórica vivida pelos narradores e pelos sujeitos
representados ficcionalmente nas páginas dos livros ou nas telas do cinema/televisão.
Na experiência histórica representada, alguns mitos e ritos são inevitavelmente
retomados, ainda que busquem nessa ação a reelaboração e atualização crítica do que se
configurou como tradição regionalista. Concordamos com Jacques Rancière quando
afirma que “escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de
verdade” (RANCIÈRE, 2005, p. 58). Para o autor, a constatação de que a ficção da era
estética determinou formas de interligação da apresentação dos fatos e das maneiras de
ler e compreender o mundo tornou indefinido o limiar fronteiriço entre a razão dos fatos
e a razão da ficção, enfatizando-se que esses modos de interligação são considerados
fundamentais para os estudos desenvolvidos pelos historiadores e analistas da realidade
social. O autor indica que essa perspectiva não pressupõe nenhuma “tese de realidade ou
irrealidade das coisas”, mas que, antes, surge como uma espécie de compensação para
determinada ideia de história:

(...) um modelo de fabricação de histórias está ligado a uma determinada


ideia da historia como destino comum, com uma ideia daqueles que “fazem
história”, e que essa interpretação entre razão dos fatos e razão das histórias é
própria de uma época em que qualquer um é considerado como cooperando
com a tarefa de “fazer” a história. Não se trata pois de dizer que a “História”
é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a
“razão das histórias” e as capacidades de agir como agentes históricos andam
juntas. A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto
é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se
vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. (RANCIÈRE,
2005, p.59)

Em Era uma vez no nordeste: Ficção e representação regional I, José Edílson de


Amorim mapeia, no desenvolvimento de sua tese de doutorado transformada em livro, a
forma como as tramas narrativas do espaço-Nordeste anunciadas pelas obras do final do
23

século XIX e início do século XX são responsáveis pela fundação do discurso cultural e
simbólico sobre o Nordeste. O autor afirma que tanto o romance O sertanejo (1875), de
José de Alencar, quanto O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, trazem em seus
discursos as formas narrativas do mascaramento, e enquanto Os sertões (1902), de
Euclides da Cunha, contrariamente, indica o lugar dos impasses e a revelação do
confronto, ao invés do seu ocultamento. Segundo Amorim,

... o mascaramento ou a revelação dos conflitos, entre grupos e classes


sociais, constituem opções ideológicas que delimitam o lugar do narrador na
história. O Mascaramento ou a revelação se expressam em formas narrativas
que vão construindo, como discurso dominante, ora o mito e a hierarquia ora
a reflexão crítica; eles têm como temas, mais das vezes, as determinações
opositivas que recebem o nome de atraso e progresso, antigo e moderno,
entre outros, sem deixar de entrar pelas repercussões dramáticas que estas
representam no cotidiano de coletividades e de indivíduos. Foi assim que
começou o discurso de construção cultural e simbólica do Nordeste.
(AMORIM, 2008, p. 44-45)

Para analisarmos o que engendra os discursos e as obras produzidas sobre a


região Nordeste, faz-se necessária a contextualização histórica, econômica e social da
época de sua produção. Mas é preciso esclarecer que a nossa intenção aqui não é
realizar uma análise aprofundada sobre as perspectivas em torno dos romances de 1920-
1930-1970, mesmo porque já existem estudos bem realizados sobre a literatura
produzida nesse período. Interessa-nos mapear e fazer referência a esses estudos para
podermos comparar, de modo a evidenciar as diferenças e semelhanças que compõem
as obras em análise no corpus da pesquisa, verificando, assim, como se faz o
contraponto entre moderno e pós-moderno nessas obras.
Nesse sentido, se retomarmos as condições econômicas que estruturavam o
Nordeste nas décadas de 1920 a 1930, visualizaremos um espaço marcado por estruturas
arcaicas, atravessando um momento de intensa crise financeira, decorrente da
decadência econômica açucareira que assolava a região.
Diversos estudos realizados sobre esse período vão apontar para a estratégia
política e cultural que foi encontrada pelo movimento regionalista dos anos 1920 para
tentar sustentar, através de um discurso conservador, o poder da elite regional e a
participação dessa elite na política nacional.3

3
Ver : 1. Tese de doutorado de Neroaldo Pontes de Azevedo. Modernismo e Regionalismo – Os anos 20
em Pernambuco, 1984. 2.O livro O regionalismo nordestino: existência e consciência da desigualdade
regional, de Rosa Godoy, 1984. 3. Livro A tradição re(des)coberta: Gilberto Freyre e a literatura
24

Houve durante este período uma tentativa de promover o fortalecimento da região


para servir como uma espécie de sustentação aos confrontos com o sul. Os romances
passaram a destacar o passado de glória da região contrapondo-se às tendências
‘modernistas’ ou futuristas, que eram contrárias aos interesses da elite local.

Nessa linha, abre-se espaço para o conservadorismo, marcado pelo privilégio


do rural sobre o urbano, acentuando-se, além do mais, aquela tendência
bairrista de ver o Nordeste como a mais brasileira de todas as regiões do país.
Dessa postura de conteúdo político é que derivam, em consequência, as
orientações de ordem cultural, com o objetivo de se valorizar tudo que fosse
característico da região (AZEVEDO, 1984, p. 51).

Assim, Neroaldo Azevedo demarca a condição de construção de uma imagem do


Nordeste fundada pela iniciativa cultural e política do movimento regionalista dos anos
1920. Essa discussão será ampliada posteriormente, ao analisarmos algumas imagens
trazidas pelas obras literárias do escritor Antônio Torres e pela narrativa fílmica do
diretor Lírio Ferreira, ocasião em que retornaremos à discussão sobre a tradição para
analisarmos como ela está presente e que papel desempenha nas obras contemporâneas.
A partir da leitura e da análise dessas imagens poderemos dialogar com o
conceito de Invenção do Nordeste, proposto pelo pesquisador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior. Mas, antes, interessa-nos ainda contextualizar a dinâmica de
permanência e transformação imbricadas na produção cultural sobre o regionalismo,
evidenciando agora as características dos romances de 1930.
No ensaio intitulado “Literatura e subdesenvolvimento”, Antonio Candido (1987,
p. 140-162), ao escrever sobre o regionalismo nordestino e a consciência da
dependência por parte do atraso e do subdesenvolvimento da região, mapeia as
tendências cristalizadas a partir dos romances de 1930. As narrativas dessa década
confluem em pontos que se encaixam em discursividades que englobam a modernidade
paulista, enquanto nova sensibilidade, e a avaliação da tradição histórica ao representar
o regionalismo defendido pela intelectualidade local, com o seu resgate mítico-
nostálgico sobre a região Nordeste e a defesa do projeto nacionalista e centralizador
patrocinado pelo governo Vargas.
A ideia de pátria, diretamente vinculada às belezas naturais do território
brasileiro, tentava compensar o atraso material da nossa sociedade por meio da

regionalista, 1992. 4. A Invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, de
2011 (5ª Ed.).
25

supervalorização dos aspectos regionais, a partir da invenção dos espaços “construídos”


na escrita literária da época. Para Candido, essa era a realidade forjada também por
muitos escritores da América Latina.
A partir da Segunda Guerra Mundial os escritores e intelectuais começaram a
perceber na ideia de subdesenvolvimento uma nova condição de se pensar e discutir os
espaços brasileiros em nossa literatura. Candido observa que

A consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial


e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950. Mas desde o decênio
de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção
regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dadas a sua
generalidade e persistência. Ela abandona, então, a amenidade e curiosidade,
pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto
pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o
homem rústico. Não é falso dizer que, sob este aspecto, o romance adquiriu
uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos
economistas e políticos (CANDIDO, 1989, p.142).

Como afirmou Candido, a fase de pré-consciência do subdesenvolvimento,


demarcada entre as décadas de 1930 e 1940, traz para a literatura os problemas pautados
na realidade social do homem nordestino, e as obras da época descrevem as condições
de vida dos grupos que ocupavam os precários espaços da região Nordeste.
Os romances sociais da época refletem os aspectos regionais, diferindo em
relação à questão do otimismo patriótico e do exotismo recorrente na ficção naturalista,
para centrar-se nas complexidades do homem que habita o espaço-Nordeste, refletindo
sobre as condições econômicas impostas ao sujeito e à forma como ele negocia o seu
destino individual, a partir da consciência de que é parte da espoliação econômica.
Dessa forma é fundada a tradição crítica da ficção de 1930. Os romances do
período são marcados pela condição centralizadora do poder político no país. E a
consolidação de regimes autoritários, tanto na década de 1930 quanto na de 1970,
aproximam os pontos de confluência entre os romances escritos no e sobre o Nordeste
nesses períodos.
O romance intitulado Essa Terra, que abre a trilogia do escritor Antônio Torres,
abordado nesta pesquisa, diferencia-se dos romances de 1930 por carregar em seu
discurso um intenso diálogo com a contemporaneidade. A análise crítica trazida pela
problematização das largas oposições como Sul-progresso versus Nordeste-atraso, traz
em si um desmonte do discurso narrativo fundado na Invenção, propondo a
desconstrução da visão de um espaço Nordeste fundado pela estética regionalista e
26

tradicionalista da década de 1920. Mas, como afirmou Silviano Santiago, esses


romances não deixam de elaborar um saudável retorno à prosa de caráter regionalista:

Paralelamente ao questionamento dos processos autoritários de centralização


do poder, há um saudável retorno da prosa de caráter regionalista, onde se
percebem as injustiças que são feitas em nome de um projeto de nação
unitário, centrado no sul. São romances de grande vendagem e sucesso de
crítica, como os de Antônio Torres e Márcio Souza, ou ainda os de Benedito
Monteiro e o Sargento Getúlio, de João Ubaldo (SANTIAGO, 1989, p. 37).

Ao apontar para o processo significativo de retorno da prosa regionalista, Silviano


Santiago observa como esses romances se encarregavam da ressignificação do espaço
nordestino, desmitificando o discurso homogeneizante da originalidade de nação, para
repensar as práticas e os discursos engendrados sobre os sujeitos habitantes dessa
região.
O que não significa dizer que diferem completamente dos romances de 1920 e
1930, a tradição desses romances permanecem como uma espécie de rastro, quando
vemos no cinema e na literatura contemporânea a reapropriação em diferença das
formas de vida desses sujeitos que habitam o espaço nordestino. Percebemos que as
questões trazidas pela tradição diferem em relação à formação do sujeito, que hoje se
encontra mergulhado num mar de informações e que culturalmente sofre as investidas
do sistema em assemelhar cada vez mais as subjetividades para obter certa
homogeneização cultural. Interferência que não acontece nos romances de 1930, pelo
próprio contexto espaço-temporal e a condição escassa de acesso aos aparatos
tecnológicos, fundamentalmente no espaço-Nordeste.
No início do segundo capítulo do romance Essa Terra, podemos verificar como o
escritor Antônio Torres metaforiza e associa o espaço do Junco (cidade do interior da
Bahia, onde se desenvolve a trama narrativa) a uma série de elementos, para jogar com
a própria condição de precariedade dos sujeitos e, consequentemente, do lugar habitado:

E foi assim que um lugar esquecido nos confins do tempo despertou de sua
velha preguiça para fazer o sinal-da-cruz.
O junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino
Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os
seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão.
A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais longo do mundo. O
cheiro do alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os
cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas
estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da
minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da
minha avó. As rosas do bem-querer:
27

‒ Hei de te amar até morrer.


Essa é a terra que me pariu.
‒‒ Lampião passou por aqui.
‒‒ Não, não passou. Mandou recado, dizendo que vinha, mas não veio.
‒‒ Ora, ele lá ia ter tempo de passar neste fim de mundo?
Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto aqui é o fim
do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca
mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os
homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade
(TORRES, 2005, p 13 e 14).

Ao descrever o Junco como um lugar esquecido no tempo, e que lembra um


pássaro vermelho chamado Sofrê, um animal que habita a caatinga e os campos secos,
de cor alaranjada, semelhante ao alaranjado do sol ao se pôr em dias muito quentes (a
cor vermelha atribuída ao pássaro pelo escritor intensifica a imagem que se quer
transpor ao leitor), o autor amplifica a sensação térmica e o sofrimento de quem vive no
lugar.
Outra característica dessa ave é imitar com perfeição o canto de outros pássaros
do local - no caso da narrativa, o Junco - enquanto Sofrê aprendeu a cantar/imitar o
Hino Nacional.
As lembranças da galinha pintada chamada Sofraco, em contraposição ao som
emitido pela galinha d’Angola – “tô-fraco”, indicativo de ser em substituição ao estar,
caracterizam o comportamento das pessoas em relação ao espaço e sua exterioridade:
“Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos”. Essa
espécie de ave também é conhecida pelo seu comportamento como guardiã, pois, ao
perceber a presença de estranhos sempre emite sons alertando sobre a possibilidade de
riscos.
O Junco é percebido enquanto “um boi de canga, o Sofrido. De Canga: entra
inverno, sai verão.” Coloca-se aqui a condição de imobilidade dos indivíduos, ao
utilizar o elemento canga para metaforizar os processos investidos contra os sujeitos e o
lugar, numa constante prática de tolher os movimentos dos habitantes, ditando quais os
passos que deverão ser seguidos. A imagem da canga no pescoço servindo para lembrar
ao boi quem é que manda é o próprio reflexo do objeto existente para fazer a vontade,
os desejos e sonhos sucumbirem em nome da obediência total e plena aos detentores do
poder político e econômico daquela cidade.
O mais bonito amanhecer e anoitecer, os sons, cheiros e sabores que fazem
recordar o espaço do Junco são também descritos no início do segundo capítulo. A
remissão ao acontecimento histórico voltado para o episódio do messianismo no
28

romance é feita não para reafirmar o mito, mas para reforçar a condição de
esquecimento do lugar, no qual nem mesmo Lampião teve tempo de passar.
A associação do Junco a “um fim de mundo”, a intensificação da paisagem seca e o
sonho das moças na janela em encontrar os rapazes da cidade para tirá-las daquele lugar
confirmam, em parte, o que Durval Muniz de Albuquerque Júnior discute em relação à
Invenção do Nordeste:

Embora as secas, como a mestiçagem, continuem a fazer parte de qualquer


história da região, não são mais os fatores naturais que definem, que dá
identidade, que estão na origem da região. São os fatos históricos e,
principalmente, os de ordem cultural que marcariam sua origem e
desenvolvimento como “consciência”. (...) A procura por uma identidade
regional nasce da reação a dois processos de universalização que se cruzam: a
globalização do mundo pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos
fluxos culturais globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das
relações de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais
burocratizado. A identidade regional permite costurar uma memória, inventar
tradições, encontrar uma origem que religa os homens do presente a um
passado, que atribuem um sentido a existências cada vez mais sem
significado. O “Nordeste tradicional” é um produto da modernidade que só é
possível pensar neste momento. (Albuquerque Jr., 2011, p. 90-91)

Esta confirmação “em parte” se dá pela forma como a narrativa do romance Essa
Terra dialoga com uma (des)invenção crítica dos elementos regionais, à medida que o
escritor enfatiza a experiência histórica vivida pelos sujeitos em contraposição à escrita
regionalista de 1920 a 1930, que reivindicava um recorte regional a partir do discurso
construído através da mitificação e hierarquização dos valores e dos espaços
nordestinos.
Na trilogia de Torres, e não só no romance Essa Terra, podemos perceber como
as relações entre espaço local (representado pelo Junco) e espaço cidade (centro urbano
paulista) representam os impasses e desencontros vividos numa região politicamente
demarcada pelo modelo centralizador de desenvolvimento. Em entrevista4 concedida ao
Jornal A Tarde pelo escritor Antônio Torres, podemos perceber a forma como ele
mapeia as diferenças existentes entre os seus romances e os romances realistas escritos
na década de 1930.

Carlos Ribeiro: Que diferença existe entre a abordagem do sertão em


seus livros e a do romance realista dos anos 30, por exemplo?

4
Ver anexo VIII.
29

Antônio Torres: Hoje, o Brasil urbanizou-se e, talvez, os meus livros


estejam preenchendo esses espaços, mas numa perspectiva muito diversa. Na
verdade, existem muitos livros com a dicção dos anos 30, e não dá mais para
se fazer isso. O Nordeste hoje continua com problemas dos anos 30, mas já
não é mais o mesmo. A urbanização chegou lá. Eu estive agora em Junco,
atual Sátiro Dias. O que vi lá: uma cidadezinha cheia de antenas parabólicas,
internetada, asfaltada, mas triste. Os jovens estão todos fora e lá é, agora, um
mundo de velhos indo para a igreja, encomendando a alma a Deus porque
estão perto da morte. Havia uma sociabilidade que não tem mais hoje. É
desse interior que estou tratando. O Cachorro e o Lobo trata disso.
Carlos Ribeiro: O que permanece igual? O que liga o agora com o
passado?
Antônio Torres: Uma coisa, que havia antes, continua: o suicídio. Um primo
meu se enforcou, e as pessoas dizem: igualzinho ao seu livro. Há casos de
suicídios de crianças: uma menina de 15 anos e um menino de 16 mataram-
se. Uma amiga fez algumas perguntas que calaram fundo em mim: Como foi,
o quê, por quê? Algo ligado à solidão? À falta de perspectivas? Esse é o
problema existencial mais forte do ser humano. Camus tratou disso em O
Mito de Sísifo, quando disse: pouco importa que o dia tenha 24 horas, que a
Terra tenha movimento de rotação, quando o homem se pergunta se vale a
pena viver.
Carlos Ribeiro: O suicídio está relacionado ao desenraizamento físico,
geográfico, que passa a ser um desenraizamento existencial?
Antônio Torres: A questão resume-se no seguinte: talvez o homem que
troca o seu lugar por outro perca o seu lugar e não conquiste o outro. Refiro-
me, no caso, à massa de retirantes. Vale dizer que não é a seca que expulsa, é
a civilização que atrai. Ela cria a sedução do progresso da modernidade. Senti
isso na minha infância com o surgimento, em Junco, do primeiro caminhão,
que endoideceu o lugar. Era a promessa do divertimento, o sonho do
consumo, surgido no final dos anos 50. A estrada era a viabilização do sonho
de partir.

Em todos os romances há o (des)encontro com percepções diferentes dos espaços


e, consequentemente, das formas de sobrevivência e convívio. Suas obras dramatizam
as relações locais no seu ponto de intersecção com a realidade nacional, instalam a crise
de um único lugar de formação identitária, repensam as articulações advindas da
dependência de espaços mais amplos, pontuando o quanto do global está presente
naquilo que acostumamos ver apenas como local. Em fragmento textual do romance O
cachorro e o lobo (1997) temos um exemplo da construção do universo mítico que
permeava o desejo de fuga do nordestino para as terras do Centro-Sul.

Depois passou-se a sonhar com o Sul, as terras ricas de São Paulo-Paraná. Os


que voltavam traziam novas histórias. Contavam as aventuras de uma cidade
com mais de trinta léguas de ruas. Onde, durante o dia, um ajudante de
pedreiro se besuntava na massa e na cal preparando o reboco para os edifícios
em construção e, à noite, se lavava todo, se perfumava e se vestia igual a um
doutor ‒ para tanto o dinheiro dava (TORRES, 1997, p. 50).

Dessa forma, as narrativas literárias vão construindo as imagens que passarão


Pelo fundo da agulha alinhando os fios da memória do autor/narrador numa tentativa de
30

religar “os homens do presente a um passado”, confirmando a tentativa do


escritor/diretor em atribuir sentido às “existências cada vez mais sem significado”. A
escrita da trilogia de Torres nos sugere a possibilidade de reflexão sobre o Nordeste,
seja ele inventado por uma tradição ou não, mas como afirmou Albuquerque Jr., como
“um produto da modernidade que só é possível pensar nesse momento” (2011 p. 91).

1.2. O PROJETO ESTÉTICO DA CINEMATOGRAFIA CONTEMPORÂNEA


E A ATUAL CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA DO ESPAÇO SERTÃO
BRASILEIRO

Considerando o Nordeste como produto da modernidade, e analisando a sua


inserção temática como um ponto forte na história do cinema brasileiro, percebemos
como os diversos usos das linguagens estéticas marcaram o recorte entre as narrativas
clássicas, que caminham pela romantização e manutenção do olhar sobre o espaço
nordestino de forma linear, optando consequentemente pela representação da tradição, e
as narrativas fílmicas que irão operacionalizar a inversão do fluxo, numa tentativa de
ressignificação do sertão nas suas imagens, nos seus discursos e na sua estética.
Não se trata aqui de tentarmos realizar um estudo sobre a genealogia da
filmografia sobre o Nordeste brasileiro, mas de verificarmos como o discurso
engendrado pelas imagens cinematográficas tem contribuído para a construção e
projeção das imagens produzidas hoje, sobre o sertão, o sertanejo e os espaços
nordestinos. Como o cinema contemporâneo tem representado essa região? Essa é a
questão de que tentaremos brevemente tratar aqui.
O retorno à análise de algumas escolhas estéticas é necessário para evidenciarmos
a interferência da memória, da história e de toda imaginação constituída em relação ao
Nordeste, que não se esgota no nostálgico espaço agrário, mas que funda uma
construção significativa de discursos que apontam para a invenção de novas formas de
vida.
Como ocorre com a literatura brasileira, o nosso cinema também é responsável
pela difusão do discurso tradicionalista e da afirmação dos mitos em relação à região
Nordeste. Na construção da “visibilidade e dizibilidade” regional, como afirma Durval
Muniz de Albuquerque Jr.,
31

O discurso tradicionalista toma a história como lugar da produção da


memória, como discurso da reminiscência e do reconhecimento. Ele faz dela
um meio de os sujeitos do presente se reconhecerem nos fatos do passado, de
reconhecerem uma região já presente no passado, precisando apenas ser
anunciada. Ele faz da história o processo de afirmação de uma identidade, da
continuidade e da tradição, e toma o lugar de sujeitos reveladores desta
verdade terna, mas encoberta. (ALBUQUERQUE J. p. 93, 2011)

No cinema contemporâneo, temos percebido a presença, ou melhor, o retorno às


narrativas clássicas, em que a linguagem e a fotografia transformam o sertão em espaço
exótico, através da projeção de belas paisagens, assim como temos também evidenciado
a presença de narrativas fílmicas que buscam uma releitura ou retomada dos temas,
personagens e paisagens do cinema novo, apostando numa espécie de reversão ética
desses espaços ou mesmo uma forma de contraposição destes em relação aos espaços
urbanos.
Ivana Bentes, em texto intitulado “Derivas desterritorializantes: Rural, urbano,
global”,5 tece uma discussão sobre o retorno da representação do sertão a partir da
adesão de alguns diretores ao que ela denomina de cinema neoclassicista. A autora
desfia a estética proposta pelo Cinema Novo de Glauber e retoma a questão da Estética
da Fome para contrapor ao que ela denomina hoje como o surgimento da Cosmética da
Fome. Bentes analisa a proposta adotada pelo filme Guerra de Canudos, de Sérgio
Resende, contrapondo-a a de Glauber Rocha:

A diferença básica entre os projetos é que Glauber esquece a história e


mergulha no imaginário popular, no transe místico, na rebeldia em estado
puro de beatos e cangaceiros criando tipos complexos e uma mise-em-scène e
narrativas originais que expressam um mundo em convulsão. Enquanto
Sérgio Rezende aposta no realismo, na história, com seus fatos, datas,
reconstituição de época, abandonando esse imaginário popular (BENTES,
2013, p.116).

Para a autora, é notório o retorno ao folhetim histórico e a uma certa dose do


discurso tradicionalista e naturalizante do espaço-sertão pela filmografia
contemporânea, com um cinema preocupado em projetar “o ‘belo’ e a ‘qualidade’ da
imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássica. Um cinema

5
BORGES, Augusto Carvalho e Heloísa Mª Murgel Starling (Org.). Imaginação da terra: memória e
utopia no cinema brasileiro. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2013. P.94-129.
32

‘internacional popular’ ou ‘globalizado’, cuja fórmula seria um tema local, histórico ou


tradicional, e uma estética ‘internacional’” (BENTES, 2013, p. 116.).
Na lista dos filmes que traduzem esse sertão romantizado, segundo a autora, são
acrescentados alguns outros filmes como Central do Brasil; Eu, tu, eles; Abril
despedaçado, de Walter Salles Jr., assim como a refilmagem de O Cangaceiro por
Aníbal Massaini. Propondo uma inflexão sobre as análises das estéticas e cosméticas da
fome desenvolvidas no texto, a autora também indica três filmes que renovam a
iconografia do sertão, apontando para a estética multicultural, sendo eles; O Sertão das
memórias, de José Araújo. Crede-mi, de Bia Lessa e Baile perfumado, de Lírio Ferreira
e Paulo Caldas.
Interessa-nos, com maior afinco, a análise realizada sobre este último, que retrata
o aparecimento de imagens de um sertão multicultural, no qual é realizada uma releitura
pop do sertão clássico, expondo-se o cruzamento do cangaço com a cultura de massas
nascente, do “arcaico com o moderno, num sertão verde e estilizado, virtuoso, embalado
pela música pop do recife, o manguebeat, de Chico Science” (BENTES, 2013, p.123).
A forma como os diretores investem na estilização da violência e na estética da
existência nesse filme será ampliada na produção do filme Árido Movie, de Lírio
Ferreira.
É nesse sentido que nos interessa verificar como a cultura pop urbana brasileira
se apropria do sertão já tomado como iconografia. É essa discussão tecida no texto de
Ivana Bentes que nos dá margem para formular os questionamentos para os espaços
sertão projetados pelo diretor Lírio Ferreira em Árido movie, que se volta para a questão
da estética que rompe com a tradição, a mimese e a mitificação dos espaços e da cultura
da região nordestina. Pois, como veremos no decorrer da análise de Árido movie, o
espaço-Nordeste trava uma via de mão-dupla, ou melhor, abre-se de forma rizomática
por diversos lugares e regiões brasileiras, provocando incessantes derivas
desterriorializantes entre o que supostamente poderia ser considerado rural-urbano-
global.
As imagens do sertão contemporâneo, que irrompem nos filmes e na literatura
brasileira, embora tragam o rompimento com a estética do Cinema Novo e do romance
de 1930, o fazem também investindo em outras formas de compreender, pensar e ver o
sertão.
Nas décadas de 1950 e 1960 predominaram questões que tiveram como ponto de
partida o pensamento sociológico nacional, bem perceptível através da já citada
33

retomada da tradição literária regional, representada pelos autores como José Lins do
Rego, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, que se tornavam referências diretas em
filmes de Glauber Rocha, Humberto Mauro, Nelson dos Santos, entre outros cineastas
que fariam das imagens projetadas do Nordeste um espaço mítico para buscar entender
a nossa brasilidade, a identidade nacional.
Em 1953, O Cangaceiro, de Lima Barreto, funda o ciclo de um cinema nacional
que traz para as telas a sociedade rural do Nordeste, reproduzindo nas imagens a
espetacularização da violência, substituindo o caráter sociológico, histórico e
econômico que imbricava a condição do cangaço e investindo numa leitura da região
como lugar da desordem, da violência e do atraso.
Contrapondo-se ao ciclo do cangaço, temos um exemplo de filme que buscou a
ruptura entre as imagens que vinham sendo construídas sobre o Nordeste através deste
ciclo, para investir na integração dessa região ao resto do país. Foi o caso de Viramundo
(1965), de Geraldo Sarno, que traduzia a chegada de trabalhadores nordestinos à cidade
de São Paulo para ocupar as vagas de serviços oferecidas nas indústrias e na construção
civil. Nesse período, o cinema insere uma questão sociológica fundamental para se
pensar o futuro do país. Aponta a condição indispensável para lidar com a modernidade
do Estado brasileiro, não eximindo da responsabilidade de vinculação do mundo
rural/agrário ao mundo industrializado que começava a ser construído.
Na atual filmografia brasileira podemos perceber como a retomada de temas e
imagens emergem para narrar, sobretudo, o espaço do sertão como lugar político,
colocando em jogo a discussão sobre as fronteiras, os deslocamentos e toda formação
cultural e identitária que são frutos das práticas sócio-culturais experimentadas pelos
indivíduos que vivem nessa região.
A primeira cena de Árido Movie já traz uma série de imbricamentos que serão
expostos ao longo da narrativa fílmica. A primeira imagem do rosto distorcido do
personagem invade a tela, e em seguida, alguém, que também não é visualizado
nitidamente, abre a porta e afirma: “Jonas, faltam cinco minutos”.
34

Figura 1: O rosto distorcido de protagonista e imagens do show na cidade de Rocha.

Em contraposição à imagem de Jonas, sem forma e sem rosto diante do espelho


do camarim de um estúdio jornalístico na cidade de São Paulo, cenas da festa na cidade
de Rocha-PE ao som da banda Renato e seus blue cap’s.
Quando a projeção retorna para o estúdio de TV vemos a nítida imagem da
apresentadora do telejornal comentando:

Apresentadora do telejornal: E pelo visto a coisa vai continuar quente em


Brasília. Depois da apuração foi constatado que três políticos, cujos nomes
não foram divulgados, podem também estar envolvidos na fraude da
irrigação. Por falar em tempo quente, como vai ser o dia amanhã, Jonas?
Jonas (O homem do tempo do telejornal): É, parece que as coisas não
mudam muito! A sexta-feira será de muita chuva na região Sul e Sudeste do
Brasil. A grande massa de ar seco que vem causando longo período de
estiagem no Nordeste continua estacionada nessa região.

Na projeção dessas imagens é perceptível a escolha do diretor em mostrar com


nitidez o rosto da apresentadora e ocultar a imagem do protagonista da narrativa para o
público. A estética fílmica traduz para o espectador a condição subjetiva do
personagem desde as primeiras cenas. Ao informar a previsão do tempo no estúdio, sua
imagem continua sendo deformada para o espectador. Este, só consegue ver de fato
quem é Jonas na cena do assassinato do seu pai, que acontece na recepção de um hotel
da cidade de Rocha.
35

Figura 2: Jonas como uma espécie de espectador fantasma do assassinato do pai

Lázaro, pai de Jonas, é assassinado na recepção de um hotel barato da cidade de


Rocha, e o filho acaba surgindo na cena como uma espécie de testemunha “ocular” do
assassinato. A câmera, no momento em que focaliza o corpo do pai morto caído no
chão, também enquadra a televisão sintonizada ao telejornal em que Jonas trabalha,
informando diariamente a previsão do tempo.
E pela primeira vez vemos a imagem nítida de Jonas, no exercício de sua
profissão. Verificamos aí a forma como o diretor joga com a intrigante relação da
presença-ausência, causada pelos veículos midiáticos no cotidiano das pessoas.
Esses são os primeiros seis minutos que antecedem a entrada dos créditos e as
imagens das águas dos arrecifes, que surgem ao som da música HDeus, de Otto.

HDeus vinte milhões de faces


Rodas de gigas, vidas vividas
Primeira planta no mar, primeira pedra polida
Quando as chuvas passaram e o mar se formou
Há muito tempo que as águas baixaram
Há muito tempo que o mar secou
Há muito tempo que eu tô de cara

As águas invadem a tela, e o deslocamento da temática da seca já vem


operacionalizado pela apropriação de tomadas que recorrem à estética utilizada por
Glauber Rocha (presença fantasmática no nome da cidade onde se passa a história do
filme), mas que retornam em diferença, para narrar outro sertão, outro lugar. As
questões culturais e políticas continuam sendo problematizadas e evidenciadas nas
narrativas fílmicas contemporâneas, mas não acreditamos que se trate de um uso
meramente “cosmético”, pois os recursos técnicos contemporâneos permitem leituras
36

que implodem com a condição de violência exposta pelas imagens, pois na maioria das
vezes, o ato mais violento é narrado sem qualquer respingo de sangue na tela.

Figura 3: Longa panorâmica sobre os arrecifes da Capital de Pernambuco abre os créditos do filme

A condição do olhar mais treinado do espectador em relação à estética


cinematográfica permite que a narrativa contemporânea invista em novas possibilidades,
não se limitando às tentativas frustradas de mimetizar a Estética da fome, quando os
aparatos tecnológicos disponíveis permitem outras opções. O ato criativo e a
radicalidade do pensamento, sim, deve ser mola propulsora do narrar em qualquer
tempo. Árido Movie traz muitas citações dos filmes de Glauber, mas percebemos que se
trata de uma narrativa fílmica que não se quer mímese.
Na narrativa de Árido Movie, quando vemos a questão da seca e do racionamento
de água ser deslocada do interior para o litoral, instaurando a possibilidade de reflexão
sobre o presente, percebemos que o recorrer ao passado não passa de uma tentativa de
investimento na rasura, configurando-se, através das imagens uma espécie de abalo
sobre a nossa compreensão do real, na medida em que proporciona ao espectador novas
possibilidades de leitura.
Após os créditos iniciais de Árido Movie, vemos as cenas em que Jonas encontra-
se em Recife, dentro de um táxi, a caminho da casa da mãe. No diálogo entre o
protagonista e o taxista, a citação de um verso do poema de João Cabral de Melo Neto
surge como uma metáfora-síntese do filme:

Jonas: Dá para o senhor abaixar o rádio um pouquinho, por favor?


Obrigado!
Nossa, Recife tá mais quente ou é impressão minha, hein?
Taxista: É por conta do mormaço, doutor! Esse mormaço no final do dia
você tá um nada. É, tem mais a frescura da água viu? É foda mesmo,
37

desculpe a expressão viu? Mas é que é foda mesmo, tem que racionar água.
Eu não entendo uma coisa, Recife é no meio da água e não tem água. E fico
com a gota serena por causa disso.
Jonas: Mesmo “sol de dois canos”.

O sol de dois canos faz referência a Sol de Pernambuco, poema em que João
Cabral de Melo Neto, em sua escrita cortante, de faca, mandacaru e fuzil, rompe com
uma estética mimética da realidade nordestina para, a partir da forma e da dureza do que
lhe é concreto, refletir sobre a realidade da condição do homem dessa região:

O sol em Pernambuco leva dois sóis,


sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois: o fuzil de fogo.
incendeia a terra: tiro de inimigo.
O sol ao aterrissar em Pernambuco,
acaba de voar dormindo o mar deserto;
mas ao dormir
se refaz, e pode decolar mais aceso;
assim, mais do que acender incendeia,
para rasar mais desertos no caminho;
ou rasá-los mais, até um vazio de mar
por onde ele continue a voar dormindo.
(...)

A citação do verso do poema de João Cabral indica o investimento na narrativa


cerebral, no exercício da engenharia da linguagem em prol da recriação da realidade na
narrativa. Nesse sentido, o filme explode o sertão e vem nos revelar a sua
multiplicidade. Os seres migram, mas em rumos incertos, sem o traçado do destino final
dos personagens. A diferença entre a questão da migração no filme Viramundo (1965) e
em Árido Movie (2006) encontra-se no aspecto pontual do deslocamento pelo espaço,
que neste último acontece para garantir aos personagens a projeção de mudanças
internas.
Analisando o caráter multifacetado de filmes como Árido Movie e outras
filmografias contemporâneas que focalizam as imagens dos espaços sertão, a
historiadora Meize Regina de Lucena Lucas, em artigo intitulado “Por entre paisagens
cinematográficas: O sertão no cinema contemporâneo,” afirma:

Na cinematografia recente o ambiente aparece multifacetado: O sertão não


existe sem seu par, a cidade e seu espaço urbano, e aliás ele próprio não é só
o campo; a água corre com a vegetação, pois a seca não é sua única
configuração, e a falta dela encontra seu reverso na abundância que,
igualmente, é um problema; o moderno e sua tecnologia andam com antigas
sociabilidades e objetos; o feminino e o masculino não se estreitam nos
38

papéis formais de homem e mulher; as personagens pertencem ao litoral e ao


rural. Tal densidade se torna possível, entre outras razões, pela dimensão
histórica. (...) As alusões ao passado e as experiências cosmopolitas e
contemporâneas das personagens compõem a matéria-prima do enredo da
obra. Os objetos culturais existem e são vivenciados em campos de constante
reconfiguração, além de trocas e compartilhamentos (LUCAS, 2011, pg. 216-
217)6.

Em Árido Movie vemos o retorno das projeções imagéticas que incidem em


temáticas antigas sobre o sertão, como a seca, o coronelismo, o messianismo, ou seja,
temas que se mesclam aos mais atuais, como a questão das drogas e o interesse cultural-
artístico pelas manifestações e hábitos culturais do espaço-Nordeste.
No filme, a videomaker Soledad, ao oferecer carona a Jonas para que ele chegue
mais rápido ao enterro do pai, fala sobre o trabalho que está desenvolvendo na viagem
feita de São Paulo até Pernambuco:

Soledad: E é mais ou menos isso, eu tô, eu tô desenvolvendo a partir de um


lugar específico, no caso o vale do Rocha, uma leitura sobre as consequências
e embates criados pela água. Pela falta d’água na sociedade. E dentro desse
universo sertanejo eu consegui identificar vários pontos dessas nuâncias. Por
exemplo, em Rocha eu vou encontrar o discurso mítico e político da água. De
que maneira é distribuída a pouca água da região, seu uso político, sua
ocupação(...)

Soledad, assumindo o papel de interventora de arquivos vivos, utiliza a arte da


fotografia e do documentário apostando na construção da memória. A videomaker,
como uma espécie de arcontes pós-moderno, realiza, como sugere Rachel Esteves Lima,
“a compilação dos anais da desordem”, o ato de filmar e entrevistar aqueles que
participam ativamente da formação cultural da região, promove a construção de um
arquivo que pode jogar com a construção de uma memória contra-hegemônica
considerando os novos meios de comunicação de massa. Como afirma a autora,

Imunes ao conservadorismo, o trabalho de reciclagem cultural não pode


prescindir da atuação nos espaços propiciados pelo desenvolvimento dos
novos meios de comunicação de massa, como o rádio, a televisão, o cinema,
a internet etc., pois não se pode mais desconsiderar o fato de que, menos do
que destruição, eles promovem um reaproveitamento da tradição, sob novos
parâmetros. (LIMA In SOUZA, 2011, p.34)

6
LUCAS, Meize Regina de Lucena. Por entre paisagens cinematográficas: O sertão no cinema
contemporâneo. In: MEDEIROS, Fábio Henrique Nunes e Taiza Mara Moraes. (Org.) Salve o cinema II.
Joinville, SC. Editora da Univille, 2011.
39

A “Poética das águas” definida pelo líder religioso “Meu Velho”, reforça a
perspectiva de que a água transpassa por toda a filmografia, contrastando com o título e
a reversão da fruição do mesmo, quando o termo árido é distorcido pelas imagens das
águas que vão inundando a narrativa fílmica. Desde o início, a abertura do filme projeta
os arrecifes (Recife) contrapondo imagens do rio Tietê, com sua água escura, parada,
instaurando um ar melancólico que é contrastado pelo brilho das águas do mar de
Recife.
Antes do encontro com o líder religioso “Meu Velho”, Soledad entrevista um
senhor que utiliza a forquilha para encontrar água na região e vai ampliando o seu
material filmográfico e a sua pesquisa para elaboração da instalação artística que
desenvolverá em São Paulo.

Figura 4: Soledad e o senhor que pratica a busca da água na prática da forquilha.

Senhor: É, água qui tá difícil mesmo. A gente só tem que contar só com a
sorte e com Deus. Os dois sempre tem que vim juntos, viu? E a sorte que é
uma benção divina se manifesta na própria natureza. É ela que é a cara de
meu Deus aqui na Terra. Bom, como eu tava dizendo, então eu pego minha
forquilha e caminho por essas terras toda. Já achei muita água para muita
gente, gente importante, gente pobre, até político.
Soledad: Mas qualquer pessoa pode fazer isso? Por exemplo, se eu pegar
uma forquilha e sair por aí eu também posso encontrar água?
Senhor: ôxen, minha filha, pode nada. Se assim fosse existia falta d’água
coisa nenhuma! Ó, primeiro tennha a fé, que é o querosene da alma. Depois o
dom, tem gente que tem, tem gente que não tem. Quem tem o dom da palavra
tem o pensamento, quem tem o dom da força, tem a fazenda, Quem tem o
dom da forquilha, tem a água.
Soledad: Mas aqui ainda tem água para ser achada?
Senhor: Mas minha filha, aqui num tem água não.
Soledade: Tudo bem, não tem problema nenhum. Era só para ter o senhor
mostrando um pouco da sua arte.

A posse da terra, do poder ideológico e político sobre o controle de distribuição


de água e das plantações de maconha por uma mesma família, a família do protagonista
40

Jonas, segue a lógica do poder familiar de caráter coronelista, que confirma a


configuração de um tempo histórico em diálogo direto com a ideia de ruptura e
permanência que é adotada na narrativa fílmica através do investimento na mudança de
paisagens e de personagens que, embora tragam algumas diferenças, não representam
necessariamente a mudança de poder, pois há apenas uma reconfiguração deste poder.
Passado e presente entrelaçam-se através de relações e fluxos que são organizados
pelo novo e pelo antigo, numa dinâmica que é travada pelos espaços ocupados pelos
personagens, que não se orientam pelo deslocamento da capital para o interior, mas das
experiências que possibilitam as vias de mão-dupla entre o arcaico e o moderno.
A ideia da vingança da família, articulada pela matriarca e pelos tios de Jonas
traduzem outra condição de ruptura trazida pelo filme de Lírio Ferreira. Pensando nas
construções imagéticas do espaço sertão no Brasil, as imagens de Árido Movie são
contrapostas à memória estabelecida, através dos contatos com os textos e imagens
projetadas pelo nosso cinema nacional ao longo dos anos.
E as imagens projetadas pelo nosso cinema têm frequentemente utilizado o
espaço como eixo de reflexão sobre a identidade nacional. Aliás, como já pontuamos
aqui, não só o cinema, como primordialmente a nossa literatura se encarregou de fazer
com que as imagens espaciais do país formulassem as diversas matrizes para sua
interpretação.
O que vem ocorrendo na filmografia contemporânea, e neste sentido citamos
Árido Movie como exemplo, é que o programa estético assumido pelos diretores tem
associado diretamente as referências do mundo pop aos temas clássicos da nossa
filmografia, articulando globalização e localismo. Isso pode ser percebido claramente no
filme a partir do surgimento de personagens como o índio Zé Elétrico ou como o líder
religioso Meu Velho. Soledad, em diálogo com Jonas durante a ida para Rocha, fala um
pouco da sua procura e intenção de filmar o Meu Velho e registrar ou capturar o
discurso mítico sobre a “Poética das águas”.

Soledad: Eu já andei falando com umas pessoas sobre Meu Velho. Eu não
imaginei que ele fosse tão popular aqui.
Jonas: Mas quem é esse tal de Meu Velho afinal, hein?
Soledad: Eu não te falei? É um líder religioso daqui, ele tem um fundamento
relacionado ao uso da água. E eu tenho que registrar suas palavras porque ele
tem exatamente o discurso que eu tô procurando. Não conheço ele não, mas
sei que ele é uma figura.
Jonas: Eu nunca ouvi falar dessa história.
Soledad: Ah, mas tudo isso eu ouvi dizer... por isso que eu vim pra cá.
41

E ao chegar na cidade de Rocha, a videomaker mantém o primeiro contato com o


índio Zé Elétrico e estabelece de imediato um diálogo sobre Meu Velho.

Figura 5: Encontro da videomaker Soledad com o índio e dono do posto/bar Zé Elétrico.

Zé Elétrico: Ele chegou aqui feito garimpeiro. Ele comprou umas terras aqui
perto. Água nem pensar. Mas falava que tinha umas coisas lá e fez umas
cavernas, mas terminou conseguindo foi nada. Aí dizem que ele começou a
conhecer os índios e aí ele teve as primeiras visões e recebia umas
mensagens, coisa de encantamento, os encantados, você sabe né? Foi assim
que começou. Depois ele construiu o castelo.
Soledad: Um castelo?
Zé Elétrico: É, o castelo, em cima dessas minas, que transformou em
cisterna que fica cheia d’água. Aí ele benze e torna a água milagrosa.
Soledad: Sei.
Zé Elétrico: Agora, dizem que o que faz a água ser milagrosa, além da fé do
Meu Velho, é que a água é enriquecida com urânio, daí vem a força. (Logo
em seguida Zé Elétrico faz os gestos: Não falo, não ouço, não vejo.
Soledad: Você não quer falar né?
Zé Elétrico: E hoje o homem tá lá, entocado no meio do vale.

Figura 6: Não falo, não ouço e não vejo.

Em Cinema, terra e imaginação periférica, João Marcelo Ehlert Maia faz uma
análise dessa condição implícita de alguns filmes brasileiros que são retratados como
“evidências de uma potência expressiva e da persistência de certos modos de pensar o
42

país” (EHLERT, 2008, P.164). O autor, ao colocar como importância primordial a


necessidade de verificar como os espaços trazidos para a tela contribuem para avaliar a
forma como o mundo brasileiro é compreendido, toma o espaço como modo de
cognição, e afirma que

Em Árido Movie, a viagem surge novamente como condição básica de uma


sociedade que nunca consegue fechar o debate sobre sua identidade. (...) O
espaço não é figurado como estático ou bucólico, mas é coalhado de sentidos
e simbolismos produzidos pela própria imaginação sobre o sertão. O que
parecia inicialmente uma geografia perdida e parada mostra-se repleta de
surpresas, de sentidos insuspeitos e de uma verdadeira efervescência dos
homens. Veja-se, por exemplo, o personagem Meu Velho, que antes de líder
religioso foi um garimpeiro nômade. Ou Zé Elétrico, indígena desenraizado
que já traficou drogas para São Paulo e foi leão de chácara num prostíbulo da
capital paulista. O próprio Jonas se diz “um estrangeiro em qualquer lugar”,
e, numa cena fortemente lisérgica, aprende com Elétrico a olhar a
aparentemente imóvel paisagem sertaneja com outros olhos, atentos para
imagens e lendas de um país que se move tão rapidamente que deixa
inúmeras ruínas pelo caminho. Como diz Elétrico, “índio é uma raça que
derreteu”. Nem o latifúndio tradicional guarda mais sua dimensão letárgica,
retratada nas tradicionais extensões de monocultura. Agora ele é
intrinsecamente ligado ao mercado global de entorpecentes. Seguramente não
estamos diante de uma terra supostamente “autêntica”, ficção nativista a nos
assegurar uma origem histórica estável e sólida (EHLERT, 2008, p. 178).

Concordamos com a leitura de João Marcelo Ehlert Maia e reafirmamos o caráter


desestabilizador do espaço-Nordeste projetados pela “câmera” de Árido Movie. Não
apenas pela forma como são construídos os personagens na narrativa, mas, somada a
essas escolhas, a maneira como a estética desenvolvida pelo diretor, através de citações,
colagens e intensos jogos metafóricos, operam de forma incisiva esse possível
deslocamento.
O filme começa com a aparente realização da profecia utópica, afirmada por
Glauber em Deus e o Diabo na terra do sol, a imagem do mar substituindo a da aridez
do sertão. O início do filme é um longo plano-sequência em travelling aéreo sobre o
mar que ocupa a totalidade da tela; ao som de Otto (a música também faz remissão
direta à temática e ao fluxo das águas). A câmera, deslizando da esquerda para a direta,
reproduz o contorno dos arrecifes da cidade de Recife-PE, evidenciando o brilho e a
claridade das águas à medida que os créditos vão se sobrepondo às imagens. Em
seguida, a projeção do título Árido Movie, que faz uma alusão ao road movie (se
configurando como tal), inverte a própria noção de aridez do espaço, pois na narrativa
fílmica a aridez esta mais associada às condições dos personagens e suas dimensões
subjetivas do que ao próprio espaço.
43

Os procedimentos adotados pela estética estruturante da narrativa buscou dar


conta não só da trajetória dos personagens, como das escolhas ideológicas na construção
dos espaços, pois a incorporação da aridez e os possíveis deslocamentos individuais e
sociais visualizados na narrativa fílmica apontaram para diferentes formas de olhar e
questionar os problemas nacionais.
Embora a abertura do filme aponte para uma visão utópica do sertão, retomando a
alegoria da raiz na formação do espaço Nordeste e o mito messiânico conselheirista
tantas vezes reafirmados pela nossa literatura, o sertão em Árido Movie não vira mar;
aliás, como o próprio título evidencia através da utilização de um termo em língua
inglesa, o sentimento utópico fundador da pseudo origem-nacional é substituído pela
perda de um projeto de país nutrido pela nacional-popular, sendo deslocado para uma
estética internacional-popular7.
Lírio Ferreira retoma as imagens do sertão a partir de um projeto estético que se
distancia da configuração de um espaço puro, sem investir em um cenário que configure
a nossa autêntica experiência. O sertão é filmado a partir da explosão de sentidos e
através de investimentos simbólicos que podem ser repensados quando os espaços
reproduzem o imaginário construído pela nossa tradição intelectual anterior. Conforme
sugeriu Ivana Bentes, em seu artigo “Sertões e favelas no cinema brasileiro
contemporâneo: estética e cosmética da fome”, ao observar que os diretores utilizam
uma imagem gasta, optando por associá-la aos recursos do pop e ao uso de referências
ou citações para metalinguisticamente “retornar” ao sertão de forma aberta e não linear,
percebe-se que eles reproduzem, através das imagens,

Uma representação do sertão que não traduz nenhuma busca de identidade ou


brasilidade última, mas que se abre a diferentes leituras e construções do
sertão por um olhar “estrangeiro”, o sertão tomado já como iconografia e
imagem, que a cultura pop urbana brasileira vem se apropriar. (BENTES,
2007, p. 201)

O sertão de Árido Movie inscreve-se entre a periferia e a globalização, articulando


os efeitos sofridos entre os sertanejos pelo capitalismo moderno. Nessa articulação o
espaço-Nordeste se configura mais como invenção do que como origem, já que as
dimensões das paisagens mapeiam a geografia civilizatória de um mundo modernista

7
Termo definido por Renato Ortiz em Mundialização e Cultura, 1994.
44

periférico, no qual os objetos, práticas e modos de vida são associados ao movimento


em aberto, não linear, garantido pela estética desenvolvida na narrativa.
A instalação da videomaker Soledad em uma estação subterrânea de metrô na
capital paulista, fechando a narrativa de Árido Movie, explicita o fluxo cultural, em vias
de mão dupla, caminho percorrido e adotado pela artista. As manifestações culturais
nordestinas foram ressignificadas no espaço paulistano e os problemas relacionados à
escassez de água e ao excesso de informação foram colocados em xeque para a
população.

Figura 7: Imagens e voz de Meu Velho projetadas nas telas da instalação artística montada em são
Paulo

Figura 8: Instalação artística sobre a Poética das águas, realizada em SP pela videomaker Soledad

Esses aspectos e a opção pelo road movie, ou cinema de estrada, podem estar
associados às relações intrínsecas que esses filmes mantêm com a condição de
nomadismo, necessidade de locomoção e deslocamentos efetivados pelos indivíduos.
Os filmes de estrada, além de estarem diretamente associados às condições
citadas anteriormente, também estão interligados de forma direta com a
imprevisibilidade, a improvisação, o contato dos personagens com a realidade. Como se
45

fosse um documentário, a busca pela “verdade” da observação também acaba


proporcionando as fugas das rotas traçadas pelo roteirista e diretor. Como afirmou
Walter Salles em artigo escrito para o Caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo8, os
filmes de estrada estão diretamente ligados às crises identitárias dos personagens, que
coincidentemente têm a ver com a crise das próprias culturas nacionais.

1.3 NA ESTEIRA DAS CITAÇÕES, AS SUBJETIVIDADES

Entre os recursos estilísticos utilizados na construção das narrativas em questão,


podemos verificar que a escolha da citação tem um lugar preponderante na elaboração
dessas obras. A presença das referências fílmicas nos filmes Árido Movie, 2000
Nordestes e na trilogia torriana reelabora o espaço da narrativa que, ao abordar
temáticas voltadas para os aspectos da fragmentação da informação, intensamente
vividos pelos sujeitos na contemporaneidade, permite-nos analisar os deslocamentos
que essas citações provocam num processo de economia fílmica estruturado pelas regras
do intercâmbio entre as linguagens literárias e cinematográficas.
A citação enquanto estratégia faz parte da estilística de uma escrita fragmentária
pós-moderna que se insere no universo globalizante das tecnologias da informação.
Enquanto ação, produz a atividade de recorte e colagem em vidas espalhadas por todos
os espaços onde a cultura midiática possa ser propagada, entre eles o aqui denominado
espaço-Nordeste.
Considerando o intertexto como um indício de rasura, poderemos localizar em
2000 Nordestes, Árido Movie e nos romances de Torres aqui analisados uma economia
da escritura em que a enunciação pode ser considerada como um processo de
apropriação da língua, propondo através da atividade prática do “trabalho da citação”
(COMPAGNON, 1996).
Compagnon reflete sobre a possibilidade do processo de apropriação, enquanto
citação, afirmando que

8
SALLES, Walter. Cinemas, aspirinas e urubus uma forma e geografia. Folha de S. Paulo. São Paulo, 27
de Nov. 2005. Ilustrada, P E6.
46

Não somos súditos de um rei, não estamos subjugados, que cada um


abandone o estatuto de intérprete, que cada um fale, não em seu nome, mas
em nome de alguém, fale de outro modo o discurso do outro. Que cada um se
autorize a si mesmo: esse é o emblema da apropriação. (COMPAGNON,
1996, p. 148-149).

Partindo da noção de apropriação sugerida pelo teórico francês, analisaremos as


cenas em que elas aparecem de forma direta ou indireta nas narrativas, usando como
aporte teórico os trabalhos desenvolvidos também por autores como Stuart Hall,
Umberto Eco, Jesús Martin-Barbero e outros que veem na utilização da citação uma
prática fundamental para a diversidade das práticas culturais na literatura e no cinema.
Ao procurarmos demonstrar as funções das citações nas narrativas fílmicas e
literárias, não o faremos sem levar em consideração que elas só acontecem a partir da
ação, de um trabalho que as movimentam e que só posteriormente lhes atribui sentido.
Como afirma Gilles Deleuze (2001), retornando a Nietzsche, o sentido de qualquer
coisa está na força que se apropria dela, e que nela se exprime. Sendo assim, aqui, o
campo das forças atuantes é que vai indicar o sentido da citação. O que ela quer dizer?
Por que a imagem se apodera de outra para tentar dizer algo diferente? São estas as
questões que nos interessam aqui discutir.
No filme Árido Movie, a cidade fictícia de “Rocha”, no interior pernambucano, faz
alusão direta ao cineasta Glauber Rocha, traduzindo o devir revolucionário de
transgressão da leitura de um Nordeste estigmatizado pela seca, ao ativar o
deslocamento temático da narrativa para o elemento água e evidenciar quem tem acesso
a ela, graças às novas tecnologias. A narrativa de Árido Movie também aponta para a
permanência das mesmas práticas políticas representadas pelos filmes produzidos por
Glauber no passado.
Na cena de abertura, já fica evidente o mosaico de citações que irão permear o
discurso fílmico: a música da banda Renato e seus Blue Caps invade a tela, assim como
os créditos, também irão mencionar cenas da abertura de Deus e o diabo na terra do sol
(1964). A letra da música que acompanha os créditos, de autoria de Otto, também
remete ao mito conselheirista: O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão (...), que
incide diretamente na perspectiva das cenas projetadas pelo diretor Lírio Ferreira, ao
colocar numa tomada aérea, em plano geral, as imagens dos arrecifes e do mar verde se
fundindo com o verde da vegetação, desestabilizando os traços que compõem o
imaginário nacional voltado para o espaço Nordeste e, consequentemente, para a região
sertaneja. Podemos nos referir ainda à luz utilizada em algumas cenas para filmar a
47

paisagem de Rocha, como citação do recurso estilístico usado por Glauber ao


representar o sertão através da luminosidade explodida em Deus e o Diabo na Terra do
Sol.
O título da crítica tecida por Inácio Araújo, crítico de cinema do Folha Ilustrada,
na ocasião do lançamento nacional de Árido Movie − Diretor enlaça histórias em filme
de exuberância barroca − exemplifica um pouco da estética adotada pela narrativa
fílmica:

(...) exuberância barroca, em que a luz é marcada por contrastes radicais e a


imagem, por panorâmicas de 360 graus, cenas inteiras compostas em
espelhos retrovisores, uma câmera que se posta ora lá em cima, ora cá
embaixo e que parece se abrir a todas as influências do mundo: Godard e
Welles, Sergio Leone e o faroeste, Glauber Rocha e o cinema dito marginal.9

Figura 9: Soledad e a visão do vale do Rocha e a panorâmica sobre o espaço sertão de Rocha.

Outro aspecto significativo da citação nesse filme encontra-se na projeção das


frases “Aonde a água chega, a água faz o resto”, visualizada na lameira do caminhão-
pipa que segue pela estrada de chão para a fazenda do personagem Meu Velho
(interpretado pelo autor José Celso Martinez), na cena em que a videomaker Soledad
(interpretada pela atriz Giulia Gam) está se dirigindo ao encontro do velho místico para
filmar o seu depoimento sobre a “política das águas”. O mesmo se passa na cena em que
a videomaker inaugura a instalação artística em São Paulo, quando vemos a projeção da
frase “Excesso de informação, falta d’água”, permitindo uma reflexão sobre a forma
como as novas tecnologias, as antenas parabólicas de TV e todo um aparato tecnológico
chegam até as cidades interioranas, como a cidade de Rocha.

9
Ver crítica na íntegra em anexo V.
48

Percebe-se a condição paradoxal vivida pela modernidade brasileira quando


vemos a população estar “antenada” para diversas questões que acontecem no mundo,
ao mesmo tempo em que se distancia dos problemas mais próximos, urgentes e
imediatos vividos pelas comunidades locais. Os meios de comunicação parecem investir
na criação de pontos de fuga para a sociedade, na medida em que não lhe proporciona
meios plausíveis de pensar as próprias realidades e solucionar problemas enfrentados
em seu cotidiano. É preciso que aconteça outro investimento por parte das produções
culturais e midiáticas para que os sujeitos possam reconhecer e transformar as situações
que os atingem diariamente, talvez seguindo a senda vislumbrada por Martin-Barbero
em busca de novos caminhos,

(...) “tateando sem mapa ou tendo apenas um mapa noturno. Um mapa que
sirva para questionar as mesmas coisas – dominação, produção e trabalho –
mas a partir do outro lado: as brechas, o consumo, o prazer. Um mapa que
não sirva para a fuga, e sim para o reconhecimento da situação a partir das
mediações e dos sujeitos” (MARTIN-BARBERO, 2006, p.290).

Figura 10: Frase da lameira do caminhão: Aonde a água chega a água faz o resto e Instalação/SP

Um mapa que indique nas entrelinhas do movimento árido, os processos de


desterritorialização ou descentramento vivido pelo sujeito contemporâneo, seja ele
habitante do espaço rural ou urbano.
As frases das imagens acima estão dispostas na narrativa fílmica como uma
espécie de epígrafe, transportando uma carga simbólica especial. De acordo com
Compagnon (1996), a epígrafe cumpriria este papel, uma vez que se constitui como uma
citação por excelência, uma espécie de “quintessência da citação”, pois carrega um
valor complexo permitindo a relação de um discurso com outro discurso,
49

transformando-se em um ícone, ao descortinar para o leitor o caminho a ser pensado no


decorrer da narrativa.
A epígrafe se comportaria, ao mesmo tempo, como citação e simulacro, e como
citação “... é sempre questão de discurso, de enunciação; não há citação que engaje
apenas o enunciado, que se libere dos sujeitos da enunciação e que não tenha intenção
de persuadir” (COMPAGNON, 1996, p.80). Cabe-nos analisar as condições de
persuasão assumidas pelas citações ao longo das narrativas fílmicas e literárias.
Se traçarmos um breve levantamento das citações presentes no
documentário 2000 Nordestes, veremos que a descrição da própria atividade que
Compagnon identificou como um gosto arcaico do trabalho da citação (o recorte e a
colagem) está intensamente presente nas imagens projetadas pelo documentário. Em
2000 Nordestes, temos novamente as citações de filmes de cineastas como Glauber
Rocha e Nelson Pereira dos Santos, em imagens justapostas aos depoimentos dos
nordestinos entrevistados. Mas as imagens da cultura pop, focalizadas paralelamente às
falas de depoentes como: 1. a da senhora que mora em palafitas (casas construídas em
cima da água) quando a câmera focaliza os jornais e pôsteres dos filmes colados na
parede, entre eles o do filme Santo Pecado, enquadrando a foto do ator brasileiro
Rodrigo Santoro, ou do filme O outro lado da nobreza, com a descrição dos nomes dos
atores Robert Downey Junior, Meg Ryan e Hugh Grant), os dois expostos como
quadros, encobrindo as falhas da pseudo-parede da casa; 2. em Juazeiro do Norte, as
imagens de Padre Cícero e de outros santos católicos são contrapostas à imagem do
imenso outdoor da Coca-cola presente na avenida que atravessa a cidade; num pequeno
estabelecimento comercial estão à venda discos de vinil da novela infanto-juvenil
mexicana Chiquititas, discos de Angélica (cantora e apresentadora de programas da
Rede Globo) e do popular Padre Marcelo Rossi.

Figura10: Pôster do filme Santo Pecado e do filme O Outro lado na nobreza.


50

Figura 11: Estátua de Padre Cícero, Imagens de santos católicos e outdoor da Coca-cola.

O recurso estilístico explorado na narrativa do documentário, utilizando a técnica


da colagem (recurso pop por excelência), consegue projetar para o espectador uma
espécie de “visão antropológica dos clichês do mundo moderno”, como analisa Hoisel:

No plano da iconografia, o pop representou graficamente tudo que antes era


considerado insignificante, irrelevante pela arte, todos os níveis de ilustração
publicitária, revistas, jornais, estrelas de cinema, ídolos políticos, etc.,
fazendo ainda sobressair o aspecto Kitsch dos objetos que circulam no
mundo quotidiano. [...] Se a antiguidade criou seus mitos e fetiches valendo-
se, com freqüência, de elementos tomados do mundo natural, o homem
moderno cria mitos e fetiches tomando-os de empréstimo os elementos pré-
fabricados, com freqüência mecânicos, produzidos pelo homem, porém
desumanizados. [...] O repertório iconográfico do pop se insere num sistema
de temas convencionais e postos em circulação pelo mass media. Os
símbolos e ícones de que se utiliza podem ser agrupadas em unidades
temáticas anteriores inclusive a própria obra, uma vez que eles apenas são
parodiados quando da sua apropriação pelos diversos artistas. (HOISEL,
1980, p. 137).

Para Hoisel (1980), essa “estética da consumibilidade” proposta pela cultura pop
não ocorre de forma acrítica e desprovida de uma postura política. A arte pop, ao se
manifestar de forma múltipla, investe consequentemente, numa proposta alegórica.
A utilização do recorte e da colagem nas cenas projetadas no documentário 2000
Nordestes, fundamentalmente aquelas que recorrem às cenas dos filmes Deus e o Diabo
na terra do sol e Vidas secas, colabora para que a imagem citada torne-se uma espécie
de fórmula autônoma dentro da narrativa. Como indica Compagnon, sua projeção
distancia-se da sua função anterior, a qual será posteriormente preenchida pela junção
51

dos fragmentos de imagens, indicando-lhe outra narratividade, assumindo outros


sentidos, fazendo explodir o texto primeiro. A análise desse exercício praticado pela
linguagem cinematográfica acaba por descobrir e reter alguns fatos que a narrativa
explicita.

Figura 12: Caminho para o Monte Santo seguido pelos seguidores do beato Sebastião em Deus e o
Diabo na Terra do Sol intercalado por imagem de habitante de Canudos-Bahia, no mesmo local da
cena filmada por Glauber.

Para o espectador, o deslocamento operado pode levá-lo ao estado de


reconhecimento (de outra narrativa fílmica ou literária) que lhe permita o encontro com
uma cena que para ele seja legível. O papel da citação, nesse caso, seria garantir a
acessibilidade e a acomodação da narrativa por parte do espectador, ou o
reconhecimento pelo estranhamento do aparentemente conhecido.
A função da citação na narrativa fílmica assemelha-se à literária, à medida que usa
o encontro do espectador/leitor com a narrativa apresentada, como indica Compagnon,
ao demonstrar que o texto literário deve oferecer um ponto de acomodação para o leitor.
Podemos dizer que as imagens projetadas também investem na mesma perspectiva, em
relação ao espectador:

A citação é um elemento privilegiado da acomodação, pois ela é um lugar de


reconhecimento, uma marca de leitura. É sem dúvida a razão pela qual
nenhum texto, por mais subversivo que seja, renuncia a uma forma de
citação. A subversão desloca as competências, confunde sua tipologia, mas
não as suprime em princípio, o que significaria privar-se de toda leitura. ...
a citação é um lugar de acomodação previamente situado no texto. Ela o
integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das
competências requeridas para a leitura; ela é reconhecida e não
compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. ....
(COMPAGNON, 1996, p. 22)
52

Nesse sentido, a primeira função assumida pela citação seria associada à utilização
do processo fático, onde lhe caberia o papel de proporcionar ou manter a comunicação
entre o sujeito leitor/espectador e a obra.
Na trilogia de Antônio Torres, as citações são viabilizadas no texto sempre
mescladas com formulações sobre as alterações nas formas de se ler o mundo ou nas
transformações dos hábitos e costumes do povo, que, a partir do convívio produzido
pelo contato com os novos aparatos tecnológicos, deixa os velhos hábitos de lado, entre
eles a conversa com os amigos durante a noite na praça ou nas portas das casas. Em O
cachorro e o lobo (1997) temos algumas passagens que ilustram esta afirmativa:

Antenado com o admirável novo mundo eletrônico, o prefeito ostenta uma


flor metálica sobre o seu telhado rudimentar, singela obra artesanal
engendrada outrora em olarias como a que o meu pai já teve. A peça de
escultura modernosa é um contraste na singularidade da paisagem. Mais
parece um guarda-chuva aberto ao contrário. Ou um girassol cibernético,
símbolo do desenvolvimento tecnológico nacional, o que esse mundo velho
não pode ignorar. Montado de teto em teto, forma um desordenado jardim
suspenso, como o cenário de um filmete de TV patrocinado por uma empresa
interplanetária de telecomunicações. Eis aí as antenas parabólicas, a
rastrearem os sinais de um novo tempo. Chamemos a isso de progresso.
(TORRES, 1997, p. 160)

Narrando um passeio ao lado do pai para rever as pessoas e redescobrir a cidade,


o personagem Totonhim vai revelando para o leitor as novas práticas e sociabilidades
pertencentes à comunidade após o surgimento das antenas parabólicas, ao passo que
também faz um paralelo com os próprios hábitos e costumes vividos por ele mesmo na
urbanidade paulista, ao considerar que se ele estivesse em sua casa em São Paulo
também estaria grudado na TV, atendendo, irritado, aos diversos telefonemas que
atrapalhavam a sua atenção para as notícias do telejornal.
Ao continuar percorrendo as ruas da cidade com o velho Antão, o narrador
percebe o silêncio que é instaurado tanto nas ruas quanto nas praças da cidade, e numa
tentativa de reanimar o pai no passeio, trava um diálogo convidando-o para passar de
casa em casa, proseando

Que tal a gente ir de casa em casa, pra fazer uma visitinha rápida a todos os
nossos parentes que ainda moram aqui?
Pra quê?
Pra prosear um pouco, dar risada com eles, como o senhor sempre gostou de
fazer.
53

A esta hora, meu filho? Logo na hora que todo mundo ta vendo televisão e
não quer conversa? Aqui agora é assim: televisão, televisão, televisão. Até
caírem das cadeiras, mortos de sono. (TORRES, 1997, p. 161-162)

Como uma espécie de saída para o passeio do fim de noite, Totonhim sugere uma
volta de carro até o Cruzeiro da Piedade, ao som do repertório de Luiz Gonzaga, o Rei
do Baião. Os trechos das letras de várias músicas cantadas por Gonzagão são descritos
nas páginas do romance, na empreitada de mais uma vez fazer da invasão da citação na
trama, um mecanismo de tradução da memória afetiva e de reflexão sobre a atual
condição de vida naquele lugar.
54

2. RECONFIGURAÇÃO DAS IMAGENS DA


NORDESTINIDADE
55

“O sertão é a sombra de cada um”.


Guimarães Rosa
56

2.1. A TESSITURA DE VIDAS NO “ESPAÇO NORDESTE”

A trama entrecruzada pelas narrativas literárias e cinematográficas abordadas


neste estudo visa discutir o conceito de “espaço” justaposto pelas narrativas
representadas, considerando que o entendimento da noção de “espaço” envolve
diretamente as transformações ocorridas na experiência humana.
Quando falamos do espaço Nordeste, sabemos que a região ainda é marcada por
enormes diferenças de renda entre seus habitantes. Milton Santos, em O espaço
dividido, avalia como o nível de renda acaba sendo definido no Brasil em função da
localização do indivíduo, e mapeia a sua situação como produtor ou como consumidor,
afirmando que

O comportamento do espaço acha-se assim afetado por essas enormes


disparidades de situação geográfica e individual.
Essa seletividade do espaço, no nível econômico assim como no social, é, a
nosso ver, a chave da elaboração de uma teoria espacial. Esse termo exprime
duas coisas diferentes segundo se considere a produção ou o consumo. A
produção tende a se concentrar em certos pontos do território com tanto mais
força quanto se trate de atividades modernas. O consumo responde a forças
de dispersão, mas a seletividade social age como um freio, pois a capacidade
de consumir não é a mesma qualitativa e quantitativamente. No entanto,
como os gostos novos se difundem na escala do país, enquanto os gostos
tradicionais subsistem, o aparelho econômico deve adaptar-se ao mesmo
tempo aos imperativos de uma modernização poderosa e às realidades
sociais, novas ou herdadas. Isso é válido tanto para o aparelho de produção
como para o de distribuição. Criam-se dois circuitos econômicos,
responsáveis não só pelo processo econômico, mas também pelo processo de
organização do espaço. (2008, p.21-22)

Hoje essa divisão é afetada, de certa forma, pelas questões informacionais. O


acesso aos meios de comunicação é um aspecto tão significativo quanto a questão
econômica do lugar. Estamos inseridos em uma economia que organiza os espaços, sim,
mas são investidas novas formas de ocupações e, consequentemente, novas práticas de
exercício de poder acabam se mesclando às práticas tradicionais.
A globalização constrói espacialidades que fazem parte do global/nacional e do
regional/local, quebrando algumas fronteiras e reforçando outras. Mas todas, de certa
forma, atravessam as linhas traçadas pelo capitalismo.
Para Josefina Ludmer, em Aqui na América Latina vivemos numa “fábrica de
realidades”, termo utilizado pela autora para especificar os existentes regimes
territoriais de significação, que seriam as “marcas, fronteiras, limites, muros, distâncias,
mapas, linhas, redes, sites, domínios”, entre outros. Para esta autora,
57

“Território” é uma delimitação do espaço e uma noção eletrônica-geográfica-


econômica-social-cultural-política-estética-legal-afetiva-de gênero- e de sexo,
tudo ao mesmo tempo. (...)
O território, como princípio geral, é como o tempo, uma noção abstrato-
concreta. Pode ser imaginado a partir da marca que o constitui e que corta o
espaço, assim como a partir das linhas e caminhos que o recortam e se
entrecruzam. Colocar uma marca é delimitar um território que pertence ao
sujeito que o produz; atualmente, posso territorializar meu corpo com
tatuagens e piercings. A marca (uma pedra, uma assinatura, uma fronteira,
uma linha, um limite) é lida com qualquer uma das várias linguagens ou
gramáticas: a literária, a filosófica, a estética, a política, a econômica, a da
arte e do poder. (2013, p.110-111)

Em 2000 Nordestes, as experiências relatadas pelos nordestinos que vivem na


capital paulista refletem as transformações dos lugares que habitam. A forma como
mapeiam as suas territorialidades são indicadas pelas escolhas dos objetos de decoração
das casas, das referências musicais, da permanência dos hábitos alimentares,
demonstrando que o espaço é preenchido pelos objetos materiais que estão diretamente
associados à recordação do lugar de origem.
Para além dessas escolhas, verificamos a forte presença da subjetividade que
define o nordestino na grande cidade. Há aqueles que se aproximam e incorporam ao
máximo as formas de vida efetivadas no ambiente familiar nordestino e aqueles que
buscam se distanciar dessas lembranças e recordações, numa tentativa de negação do
passado em prol de outra possibilidade de experimentar a vida no presente.
Aqui, mapearemos as noções de espaço, territorialidade e paisagem, necessárias
para repensarmos o espaço-Nordeste no atual contexto sócio-político-cultural brasileiro.
Colocaremos em evidência a leitura de identidades e territorialidades das paisagens
narradas e encenadas pelas obras em questão, considerando os símbolos e signos que
transitam pelos territórios dos indivíduos e pelas relações que eles são capazes de
negociar.
Nesse sentido, a noção de territorialidade encontra-se diretamente interligada às
relações subjetivas dos indivíduos, relações fluidas e em constantes mutações, presentes
em espaços sempre construídos, como sugere Bhabha (2004), ao defender o conceito de
“terceiro espaço” como um locus intermediário, marcado pela fluidez e pela
intertextualidade, mas que, ao proporcionar a leitura do “outro”, faz com que
reavaliemos a constituição do “nós”, fragilizando-se, consequentemente, as barreiras
rígidas entre lugares aparentemente distintos.
58

Este autor considera que a questão-chave para a discussão travada entre as noções
de espaço e identidade deve ser perseguida através da observação dos locais de fala,
verificando-se aquele que pratica o discurso, pois

Se a diversidade cultural é uma categoria da ética, da estética ou da etnologia


comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através do
qual enunciados sobre ou em uma cultura diferenciam, discriminam e
autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e
capacidade (BHABHA, 2004, p.34).

No documentário 2000 Nordestes, os primeiros depoimentos dos nordestinos que


habitam a cidade de São Paulo deixam à mostra essa diversidade cultural e o quanto esta
cultura é responsável pela ativação e produção desses campos de força. Ao vermos na
elaboração de seus discursos o reconhecimento de que a presença do sujeito nordestino
foi e é fundamental para a transformação do espaço da capital paulista, somos
imediatamente informados sobre as atribuições de sentidos dadas por estes indivíduos
ao espaço vivido.
Quando dizem esse é o “lugar” onde encontramos trabalho, percebemos o
deslocamento da noção de espaço sendo substituída pelo sentido cultural impregnado de
uma subjetividade que atribui à cidade paulista a condição de ser o “lugar” do trabalho,
colocando em jogo as representações que os indivíduos constroem dos lugares, assim
como o sentido que eles atribuem aos mesmos.
São Paulo passa a representar o sinônimo da certeza da empregabilidade por parte
dos nordestinos migrantes. Mas, em pouquíssimos momentos, foi possível ver, através
dos depoimentos do documentário, a reflexão sobre a condição de precariedade vivida
pelos sujeitos em seus empregos na capital paulista. Não é colocada em questão a hora
em que acordam, a distância que percorrem até o local de trabalho, ou mesmo se o
salário que ganham é suficiente para sustentá-los mensalmente com dignidade. Ainda
assim, percebemos que a ideia de ser o “lugar” do trabalho permanece no imaginário
dos nordestinos.
Na atribuição de um sentido cultural ao espaço, percebemos a transformação do
mesmo para o “lugar de”, colocando em evidência a capacidade humana de
transformação do espaço em lugar. Esse é um dos espaços definidos pelos cidadãos
nordestinos que chegam aos grandes centros urbanos e os transformam em lugar de
59

trabalho. Nos depoimentos do documentário 2000 Nordestes flagramos a associação


direta da cidade paulista transformada neste lugar.

Figura 13: Nordestinos trabalhando na construção civil e vendedor de Ervas medicinal em SP.

Mas pensar as transformações dos espaços na contemporaneidade implica


diretamente na consideração de que grande parte dos indivíduos está inserida num
processo de grande expansão da informação através do acesso às tecnologias de
informação e comunicação. Nesse sentido, as escolhas dos objetos de estudo deste
trabalho foram realizadas levando em consideração o caráter interdisciplinar desta
pesquisa, uma vez que a noção do “Espaço Nordeste” adotada interliga as relações
econômicas, culturais e políticas da sociedade globalizada, ampliando o diálogo com a
geografia cultural, que, segundo Berque, “(...) sempre levará em conta o material físico
no qual cada cultura imprime a marca que lhe é própria – marca que ela considerará
como uma geo-grafia em primeiro grau: a escrita da terra por uma sociedade”
(BERQUE, 1998, p.86).
Nesta esteira da escrita da terra, geógrafos e cientistas sociais articulados a partir
da inter-relação entre discursos, poder e linguagem, já abarcada pela noção pós-
estruturalista de texto e intertextualidade no desenvolvimento da teoria crítica literária,
têm utilizado a noção de texto enquanto paisagem, incluindo as produções culturais
como pinturas, imagens e mapas, como uma textualidade produzida pela sociedade.
Em 2000 Nordestes temos as projeções de cenas intercaladas entre os
depoimentos dos sujeitos nordestinos residentes na capital paulistana ou nas diversas
cidades nordestinas com imagens de filmes como Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra
do Sol, e outros filmes e documentários que produziram em suas textualidades a marca
cultural transmitida pela comunicação de valores sociais, culturais, históricos e políticos
60

que ora podem traduzir-se em uma instabilidade de significados, através das


transgressões propostas pela inversão dos signos e símbolos, interligados à cultura
nordestina, ora reproduzir a noção e função desses signos e símbolos como produtores
da conformidade social do ser nordestino.

Figura 14: Imagens do sujeito habitante do espaço nordeste com sua família versus Fabiano e o
menino mais novo e o menino mais velho, intercaladas em 2000 Nordestes.

As imagens intercaladas no documentário sugerem que os anseios dos pais de


família nordestinos coincidem com os mesmos produzidos pelo cinema novo. Em Vidas
Secas, de Nelson Pereira Santos, o personagem Fabiano se alegra com a possibilidade
de alimentar adequadamente a família. Em 2000 Nordestes, a cena do depoente da Fig.
14, também vai indicar essa condição. O sujeito afirma que a sua maior alegria é poder
chegar em casa e ver seus filhos, sua família “de barriga cheia”. A contraposição das
imagens na narrativa estabelece um jogo estético de possibilidades interpretativas para
se repensar as atuais condições dos espaços nordestinos. E consequentemente, o que
tem mudado de lá para cá.
61

Figura 15: Meninos em cidade do nordeste trabalhando como guia turístico versus imagem do
menino mais novo que imita Fabiano.

As imagens intercaladas no documentário, e apresentadas aqui na figura 15,


traduzem a mudança radical sofrida pelos valores culturais que perpassam pelas
relações familiares. Os meninos nordestinos trabalham para ajudar a mãe na
manutenção da casa e da subsistência da família, relato muito comum nas famílias
nordestinas em que geralmente a figura paterna migra para São Paulo ou grandes
centros urbanos para procurar trabalho e deixam os seus lares numa tentativa de
proporcionar uma melhoria de vida para a família.
A seguir, na figura 16, veremos outro exemplo de utilização da contraposição das
imagens para pensar as condições dos indivíduos nordestinos e a violência cotidiana que
assola o corpo desses sujeitos. As imagens apresentadas abaixo mostram o momento em
que o depoente coloca em xeque a luta diária para conseguir alimentar a família. Ao
lado da filha pequena, expõe que em alguns dias não tem o que dar de comer para ela.
Nesse instante ele pede ajuda ao cineasta, afirmando que os que trabalham na televisão
precisam fazer algo por eles. Porque ele não pode pegar numa arma para roubar! Ele é
um trabalhador! Nesse momento, a imagem do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol é
citada, e a cena em que o matador de cangaceiro Zé das Mortes dispara os tiros invade a
tela do documentário.
62

Figura 16: Depoente do documentário 2000 Nordestes e o Matador de cangaceiro Zé das Mortes.

Ao projetar a fala dos depoentes do documentário em contraste com as imagens


dos filmes de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, a estética adotada relativiza a
interligação do espaço social ao tempo social, levando-nos a refletir, na esteira do
pensamento do geógrafo Milton Santos, que “o espaço social não pode ser explicado
sem o tempo social” (SANTOS, 1980, p.206).
Michel Zaidan Filho, em livro intitulado O fim do Nordeste & outros mitos,
afirma que no contexto de produção dos romancistas da década de 1930 existem três
perspectivas de abordagem que conjugam em seus espaços sociais a representação
literária ilustrativa do tempo ao qual elas pertencem. Para este autor, a criação de uma
“brasilidade nordestina” é resultante da fabricação e difusão de uma das mais bem
sucedidas “identidades culturais”, produzidas pelo modernismo e regionalismo da
década de 1930, através da projeção de romances de autores como José Américo,
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e outros. Focalizando o
processo de fetichização da cultura nordestina, Zaidan destaca que não se pode
desconsiderar determinadas perspectivas de abordagem: “(...) primeira, a relação entre
projeto literário e projeto ideológico (a “brasilidade nordestina”); segunda, as
características comuns dessa literatura “regionalista”; e, terceira, o imaginário das secas
(ou seja: a figura do “homem telúrico”)”(ZAIDAN FILHO, 2003, p. 17).
O autor afirma ainda que, ao lado da prosa, a poesia e a pintura nordestinas
também reproduziam esse desejo de divulgação de um espaço e cultura “nordestina”, a
partir dos anos 1920 com as produções de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Ascenso
Ferreira, Cícero Dias, Vicente do Rego Monteiro, entre outros que invocavam em suas
criações os elementos tradicionais que resultavam “(...) na ideia de uma ‘cultura
63

regional’ (nordestina) como fonte de uma identidade nacional: a brasilidade


nordestina.” (ZAIDAN FILHO, 2003, p.17)
Se o tempo social dos romances regionalistas de 1930 estava intrinsecamente
ligado ao espaço social, político e cultural daquela época, não se pode negar a
importância das narrativas desses autores para a leitura de um nordeste oligárquico e
para a possibilidade de releitura do nordeste atualizado pelas novas textualidades que
abarcam toda cultura produzida na região.
Nesse sentido, o próprio Zaidan afirma, em capítulo intitulado “A reinvenção do
Nordeste: O Nordeste e os desafios do Terceiro Milênio, que

(...) é possível dizer que a “região” não é uma positividade geográfica, mas,
ao contrário, um produto sociocultural das disparidades geográficas no
processo de desenvolvimento econômico capitalista. Em segundo lugar, é
preciso dar conta da extraordinária obra de publicistas, pensadores,
produtores culturais e lideranças políticas na construção simbólico-cultural da
“região” ou da “identidade regional”. Obra de artistas, ensaístas, poetas,
literatos, compositores etc. É assim que nasce uma “região”, ou seja, a partir
da disparidade econômico-social (na dinâmica do desenvolvimento
capitalista) e da produção discursiva de uma “identidade social” o Nordeste,
o Movimento Armorial, a brasilidade nordestina, o homem telúrico etc.
(ZAIDAN FILHO, 2003, p.44)

Não há a possibilidade de visualização de um Nordeste, mas de vários nordestes


e, neles, a representação do cangaço, do messianismo e da seca, símbolos da década de
1930 foram substituídos pelo tempo social de um espaço geopolítico competitivo em
relação às economias regionais.
Nas narrativas de Árido Movie, 2000 Nordestes e na trilogia torriana, podemos
visualizar como a falta de políticas públicas para o desenvolvimento regional desintegra,
fragmenta e enfraquece determinados hábitos sócio-culturais, promovendo uma nítida
alteração dos valores fundados no caráter solidário da comunidade nordestina.
Em Essa Terra, a iniciativa do pai de Totonhim em tomar um empréstimo com
“os homens do banco” para financiar a modernização da cultura do sisal em suas terras
causou a desintegração e a ruptura dos laços familiares, obrigando o patriarca a vender
as terras e contribuindo para que parte da família migrasse para a cidade de Feira de
Santana-Bahia.
Em Árido Movie, a política assistencialista dos envios de verbas por deputados
federais para a compra de água em “caminhões- pipa” para a fazenda de Meu Velho e os
64

desvios de verbas para promover a irrigação de vários hectares de terras em fazendas


com plantações de maconha, também corrobora para o individualismo e a competição
desenfreada do lucro e detenção do poder econômico/ideológico na fictícia cidade
pernambucana chamada Rocha.

Figura 17: Jonas na casa da Avó paterna, Caminhões-pipa parados com faixa de deputado
afirmando que “onde a água chega a água faz o resto”, Deputado em negociação com a família de
Jonas.

Já em 2000 Nordestes são vários os exemplos que evidenciam a competição


capitalista desenfreada. A relação de dependência que os moradores de Porto Seguro
(Bahia) estabelecem entre nativos e turistas, o desejo de vários depoentes em migrar
para a capital paulista para se tornarem famosos, perseguindo o sonho de ser artista
(cantor/a, ator/atriz, vinculados às grandes emissoras nacionais), evidenciam que há
múltiplas subjetividades sendo produzidas e assimiladas pelos nordestinos de hoje, num
espaço multifacetado que se situa tanto no Nordeste quanto no Sul do país.
Como afirma Albuquerque Jr., “O Nordeste não é recortado só como unidade
econômica, política ou geográfica, mas primordialmente, como um campo de estudos e
produção cultural, baseado numa pseudo-unidade cultural, geográfica e étnica”
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p.33). Na esteira dos estudos desenvolvidos pelo
autor, nos quais a preocupação em relativizar a Invenção do Nordeste está diretamente
voltada para a análise da produção da imagem, da textualidade que marca a
espacialidade na instância das relações de poder (avaliando o campo de forças que aí se
encontra instituído), propomos um corte nas tramas, nas redes de imagens e falas tecidas
nas narrativas literárias e fílmicas em estudo, para visualizarmos como as subjetividades
desses nordestinos são formadas pelo constante contato com as informações
fragmentadas, o intertexto, as citações literárias e culturais.
65

Nesse sentido, quando analisamos as representações do espaço na trilogia literária


do escritor Antônio Torres, buscamos refletir sobre ele como o lugar praticado. Vamos
considerar o espaço da narrativa como aquele que traça um percurso, e, através das
estruturas adotadas, assumem valores de sintaxes espaciais. Como sugere Michel de
Certeau em “Relações de espaços”,

Todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço. (...) Essas


aventuras narradas, que ao mesmo tempo produzem geografias de ações e
derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um
‘suplemento’ aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. Não se
contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato,
organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés a
executam. (A invenção do Cotidiano – Artes de fazer, p.200)

Para este autor, a forma como o mundo se coloca hoje descentraliza a tradição
narrativa dos espaços descritos em torno dos heróis e dos mitos fundadores do Estado-
Nação para o espaço subjetivo do sujeito e da forma como ele se relaciona com os
lugares. As ações dos sujeitos são colocadas em evidência, e sua prática realizada pela
narrativa através dos relatos transformam os lugares em espaços.
Nos romances de Antônio Torres podemos analisar a forma como o espaço é
praticado e, a partir das inferências feitas pelo narrador Totonhim, evidenciamos os
aspectos que transformam o lugar conhecido como Junco e/ou os espaços paulistanos
descritos nos romances.
Ao citarmos o início das narrativas da trilogia de Torres, veremos como a
estrutura narrativa confirma a lógica da utilização de indicadores de “percursos” para a
construção do relato em suas experiências narrativas.

— Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse.


— O que foi que o senhor disse?
Naquela hora eu podia fazer uma linha reta da minha cabeça até o sol e,
como um macaco numa corda, subir por ela até Deus — eu, que nunca tinha
precisado saber as horas.
Era meio-dia e eu sabia que era meio-dia simplesmente porque ia pisando
numa sombra do tamanho do meu chapéu, o único sinal de vida na velha
praça de sempre, onde ninguém metia a cabeça para não queimar o juízo.
Loucos ali só eu e o matuto com seu cavalo suado, que surgiu como uma
aparição dentro de uma nuvem de poeira, para deter minha aventura debaixo
da caldeira de Nosso Senhor.

É a partir desses relatos do cotidiano e das experiências dos sujeitos com o seu
tempo que as cidades, as pessoas, os acontecimentos e lugares vão sendo inseridos
66

numa complexa relação que envolve os personagens no e com o lugar. A representação


das formas de viver e os modos de uso e apropriação do espaço produzem no território
do Junco outros significados para a experiência vivida.
O narrador não precisa “mapear” o espaço daquele território como um ambiente
seco, tão típico à paisagem geográfica do nordeste descrita nos romances modernistas
da década de 1930, para indicar as condições e hábitos que ainda permanecem no local.
Ao citar a necessidade do uso do chapéu e fazer referência à aventura que se realizava
“debaixo da caldeira de Nosso Senhor”, o narrador indica o “percurso” da narrativa ante
ao processo descritivo usualmente utilizado pelas narrativas da década de 1930.
Antônio Torres, ao escolher estruturar a narrativa através do “percurso”, propicia
aos seus leitores o descortinamento do espaço-Nordeste pela ótica da ampliação dos
significados construídos.
As obras de Torres não chegam a dessacralizar esses espaços, mas possibilita a
abertura para leituras que podem ser vinculadas a uma rede de produção de
subjetividade que pode estar associada a uma produção global/ local/ individual. Como
assinala Foucault, a vida cotidiana ainda é significativamente marcada por demarcações
de espaços naturalizadas, “... espaço privado/espaço público, espaço família/espaço
social, espaço cultural/ espaço útil, espaço de lazer/ espaço de trabalho; todos são
movidos por uma secreta sacralização” (FOUCAULT, 1984, p.413).
Fugindo à regra da sacralização do espaço Nordeste enquanto lugar seco, que
empurra grande parte dos habitantes para o sul do país, o foco das obras gira em torno
do sujeito nordestino que desarticula e desestabiliza o lugar comum das narrativas que
evidenciam apenas a representação social dessa região brasileira.
O romance começa assim em O cachorro e o lobo (1997):

Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai,
que disso tudo tem um pouco.
E se aqui estou é por causa dele mesmo. Ou malhor, dos seus oitenta anos.
Foi uma festa de arromba, me disseram. No dia seguinte! (p.7)

O narrador, ao associar a terra o título de um lugar de filósofos e loucos, inserindo


o pai no perfil descrito, traça na narrativa uma série de passagens que refletem o
cotidiano da vida dos sujeitos narrados, o compartilhamento dos hábitos adquiridos, as
atitudes e rotinas que delineiam a forma particular de construção e conhecimento do
mundo.
67

Na página de abertura do romance Pelo fundo da agulha (2006), Antônio Torres


distingue “o presente como espaço e o espaço como presente” (SANTOS, 1997, p.9),
nos fornecendo pistas sobre as práticas cotidianas que marcam as singularidades dos
espaços contemporâneos. As primeiras linhas desse romance já indicam a condição de
se repensar a identidade perdida, assim como a sensação de não-pertencimento vivida
pelo personagem-narrador.
A imagem de um homem na cama, em sua primeira noite de aposentadoria, puxa
o fio do pensamento que passará pela memória da mãe, bem velhinha e sem óculos,
enfiando uma linha pelo fundo da agulha, na tentativa de saber como ela via o mundo
por aquele orifício. Totonhim encontrava-se em São Paulo, “a cidade onde você é capaz
de suportar tudo, quase tudo, menos a falta do que fazer.” É dessa forma que em Pelo
fundo da agulha vão passando as linhas que tecem a vida dos sujeitos nordestinos em
São Paulo. O escritor, enquanto contador de histórias, não deixa de ativar em suas
obras a possibilidade de vislumbrarmos, a partir do seu relato, o estudo dos espaços
praticados, como sugeriu Certeau.
E assim, retomando o começo do romance, e a ideia de mobilidade perseguida por
todos os personagens tratados nas obras em questão, sejam eles reais ou fictícios,
aponta-se para abertura de fluxos a partir das formas de mobilidade experimentadas no
nosso cotidiano, para volta e meia dizermos: Eis-me de regresso a essa terra de
filósofos e loucos...

2.2. O TRAÇADO DA “IDENTIDADE NORDESTINA” NO IMAGINÁRIO


BRASILEIRO

A trilogia romanesca de Antônio Torres, a narrativa fílmica do diretor Lírio Ferreira


e os depoimentos do documentário 2000 Nordestes, dos diretores Vicente Amorim e
David França Mendes, trazem para o espaço da representação a persistência da
problemática que questiona a noção de identidade existente no cenário cultural
brasileiro. O descentramento do sujeito nas narrativas em questão mobiliza ainda a
representação da região interiorana nordestina, na qual a tradição e o desejo de
modernidade encontram-se já indissociáveis na formação dos indivíduos. Por isso, o
desejo de partida para o centro em busca do cotidiano cosmopolita, marca a narrativa de
68

Jonas, em Árido Movie (2006), de Totonhim, narrador de Essa terra (1976), O


cachorro e o lobo (1997) e Pelo Fundo da agulha (2006), assim como a de quase todos
os depoentes do documentário 2000 Nordestes (2000).
Ao sair do espaço nordestino e migrar para São Paulo, os protagonistas traduzem a
experiência diaspórica vivida pelo homem moderno na contemporaneidade. Os
processos de identificação são encenados pelas páginas e pela câmera, possibilitando a
discussão sobre os movimentos de desterritorializações ou descentramentos vividos
pelos sujeitos, sejam eles habitantes dos espaços rurais ou urbanos.
Na análise do filme Árido Movie, verificamos como as personagens vivem as
experiências da migração, ao mesmo tempo em que os aspectos míticos da cultura
sertaneja são mesclados e incorporados às crenças culturais cosmopolitas.
Já nas narrativas dos romances Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da
agulha, de Antônio Torres, essa desterritorialização é vivida pelo protagonista a partir
da experiência diaspórica, também representada pelo simbolismo do deslocamento da
viagem (A ida/ O retorno), do interior nordestino para o grande centro urbano.
Em 2000 Nordestes vemos as imagens da negociação entre as subjetividades
sociais formuladas pelo espaço citadino e globalizado da cultura pós-moderna.
Este capítulo aponta para a análise dos discursos engendrados pela tradição
cultural e pelas formas de representação do espaço e da subjetividade sertaneja,
apresentados pelas narrativas fílmicas e literárias. O questionamento da representação
dos espaços-Nordestes nessas obras visa refletir sobre os processos de apropriação e
criação das identidades, repensando-se a construção subjetiva do nordestino na
contemporaneidade.
Para discutirmos estas questões, abordaremos alguns aspectos localizados na
análise das narrativas fílmicas e literárias: em Árido Movie, a projeção do sujeito
distorcido, os mitos e ritos encenados que desmitificam o espaço sertanejo
contemporâneo; em 2000 Nordestes, a condição dos sujeitos que habitam os grandes
centros urbanos e as cidades nordestinas, seus sonhos e projeções; já na trilogia de
Torres, visualizamos como se traduz de forma instigante as inquietações diretamente
ligadas aos problemas identitários surgidos pela convivência entre o “eu” e o estranho
“outro”, a partir dos lugares habitados.
69

Figura 18: Menina que está no nordeste e sonha em ir para São Paulo, Nordestinos trabalhadores
da construção civil em São Paulo (2000 Nordestes).

A questão da formação do sujeito através da fragmentação das informações e


citações realizadas pela linguagem cinematográfica de Árido Movie é apresentada por
uma estética narrativa que transgride a linearidade e investe no olhar que desconstrói o
cenário perpetuado pela idealização do Nordeste tradicional e arcaico. Percebemos que
a construção da imagem do índio Zé Elétrico aposta nessa perspectiva. Na cena em que
ele estabelece o diálogo com Jonas no Vale do Rocha vemos a forma de pensar desse
personagem e a maneira como ele concebe o estar naquele espaço:

Zé Elétrico: Essa terra tem muita história. Tinha um povo que habitava essa
região e sabia usar bem ela. Um povo que veio depois, que invadiu e matou.
Chamavam os primeiros habitantes de índios. De índios. E os índios foram se
dividindo, se misturando, de donos viraram empregados. As mulheres
viraram putas. Primeiro a gente perdeu as terras. E logo depois o respeito, e
junto começamos a perder os dentes. Às vezes aparece um pessoal que diz
que tudo era nosso, tudo era lindo, mas nem era. Tinha guerra, tinha disputa,
tinha fartura e tinha falta, mas era nosso. E a gente terminou sem nada. E saiu
por aí. Eu mesmo já morei até em São Paulo. Fui levar maconha e terminei
trabalhando num puteiro na avenida São João. Mas voltei, porquê?

Para autores como Canclini (2007), a estratégia de utilização das citações e do uso
das informações de forma fragmentária encontra-se diretamente ligada ao processo
homogeneizador da globalização. Canclini apresenta esse traço de uma forma muito
clara, quando afirma que “o que se costuma chamar de globalização apresenta-se como
um conjunto de processos de homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação
articulada do mundo, que reordena as diferenças e as desigualdades sem suprimi-las”
(CANCLINI, 2007; p. 44-45). Nesse sentido, a globalização não somente homogeneiza
70

as subjetividades dos indivíduos, ela também aproxima, multiplica as desigualdades e as


diferenças.
Nesse sentido, se observarmos o percurso mapeado por Zé Elétrico para descrever
sua trajetória de vida para Jonas, vamos verificar que as suas idas e vindas ao
Sul/Sudeste do país indicavam a busca pelo capital. O índio, formado pelo contato
direto com a cultura massificada trazia referências dos ídolos musicais do Rock’n roll
nacional. O ir e vir de Zé Elétrico era promovido pelo sistema de produção e consumo
da Cannabis, evidenciando-se mais uma vez a perspectiva de deslocamento do sujeito a
partir das relações consumistas, fruto do processo da mundialização global.
As citações de objetos, rostos de pessoas, ou melhor, ídolos facilmente
reconhecidos em determinada cultura, também fazem parte das estratégias midiáticas
utilizadas como investimento no fenômeno conhecido como “homogeneização
cultural”. Esse fenômeno tem sido constantemente discutido pelos teóricos culturais
quando avaliam a transformação das identidades, analisando a tensão estabelecida entre
o “global” e o “local”. Para eles, essa tensão seria sustentada pela difusão do sistema
econômico fundamentado nas relações de consumo.
O teórico Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade, ao analisar
os efeitos da globalização sobre as formações identitárias, afirma que houve entre as
nações uma espécie de partilhamento das identidades geradas pela relação que os
indivíduos mantêm com os fluxos culturais e com os bens de consumo. Ao consumirem
os mesmos bens, serviços, mensagens e imagens, os indivíduos, mesmo estando
distantes uns dos outros, partilham deste efeito global que visa fabricar os gostos,
hábitos e costumes. Para o autor,

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades
se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicas e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados
por uma gama de identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor,
fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível
fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja
como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural”.
(HALL, 2006, p. 74).

Em perspectiva semelhante ao confronto identitário descrito por Hall, no que diz


respeito à relação entre o sujeito e o consumo, concordamos com o posicionamento de
alguns teóricos que se voltam para a vinculação da formação identitária a partir do
71

contato dos indivíduos com os meios de comunicação. Entre eles destacamos a


importância dos estudos desenvolvidos por Martin-Barbero (2006), quando ele defende
a ideia de que há um crescente investimento realizado pelo sistema econômico
globalizado no intuito de utilizar os meios midiáticos como instrumento de
homogeneização cultural. Por esse viés, a cultura fragmentária, inclusive a massiva,
pode deslocar a ideologia dominante atribuída a certos produtos culturais e transvalorar
o seu caráter homogeneizador.
O autor desmistifica o caráter de uma crítica cultural acostumada a atribuir um
super poder homogeneizador, associado principalmente às produções televisivas e
cinematográficas contemporâneas. Ao adotar uma configuração móvel da hegemonia
enquanto processo ativo, afirma que “não há hegemonia, mas sim que ela é feita e
desfeita, se refazendo permanentemente num “processo vivido”, feito não só de força,
mas também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de sedução e de
cumplicidade” (Gramsci apud Martin – Barbero, 2006 p. 112).
O sujeito seria, portanto, membro participativo da construção das “pseudo”
hegemonias, o que nos permite afirmar que nem todo empreendimento investido pelos
“sujeitos de hegemonia” é uma garantia à reprodução do sistema. As citações e
apropriações da cultura nordestina encenadas e descritas nas narrativas literárias e
fílmicas trabalhadas aqui podem jogar com a reversão da lógica atribuída ao sistema
cultural tradicionalista e deslocar, ou melhor, vislumbrar outros sentidos, outros
significados para a leitura dos possíveis nordestes construídos socialmente.
No filme Árido Movie, ainda entre o diálogo do índio Zé Elétrico e Jonas, no Vale
do Rocha, agora após ingestão do chá alucinógeno, vemos como o olhar do indígena-
nordestino transvalora as questões marcadas pela tradição cultural e a formação do
sujeito.

Figura 19: Encontro de Jonas com Zé Elétrico no Vale do Rocha.


72

Zé Elétrico: Eu não sei se você entende, as coisas estão aí e a gente não


consegue ver! Não é que não consegue ver! Não consegue é entender. Essa
pedra mesmo, tá vendo, é a pedra do cachorro. Tá vendo, é um cachorro
deitado de costas pra gente, ói a cabeça do bicho estirada. É um cachorro
escritinho, sem tirar nem por. Viu né? Tava aí, sempre teve. Antes mesmo de
existir cachorro já tinha pedra. Agora eu só vi o cachorro muito depois. Só
reparei quando me falaram: olhe, ali é a pedra do cachorro! Eu não via porra
de cachorro nenhum. Aí me disseram que tava deitado. Aí depois disso eu só
via o cachorro, e nem sei como eu conseguia não ver. Tá vendo, as coisas
estão por aí e a gente não vê. Sabe porquê? Preconceito. As pessoas só
querem ver o que deixam. É preguiça e preconceito! É por isso que eu gosto
de Raul Seixas. Eu não gosto de uma opinião formada.
Tá mais calmo? Pois bem... Ali, olhe! Ali é o elefante. Essa aí que foi foda.
Mas eu não conseguia ver nem que uma bexiga, eu olhava...Só se for um
elefante que não existe mais, dizia para os velhos que me mostravam. Aí, um
dia eu tinha fumado bem a erva santa, e fiquei admirando, aí percebi que era
um elefante afundado na água, tá vendo? A água no meio dele e a tromba
saindo, vê a orelha do bicho. Rapaz, foi feito alucinação. Porque eu pensava
assim: Se aquilo sempre esteve ali e eu nunca consegui ver, quanta coisa
existe pelo mundo que tá embaixo do nariz e a gente nem vê.

Figura 20: A visão da pedra do cachorro e da pedra do elefante.

O diálogo entre o índio Zé Elétrico e Jonas desloca a tradição de se pensar o


indivíduo interiorano-nordestino como aquele que não reflete sobre a sua realidade. Na
narrativa fílmica de Árido Movie, o discurso de Zé Elétrico mostra ao sujeito que vem
do grande centro urbano a necessidade de deslocar o olhar para saber ver o que se
encontra encoberto pelas estruturas sociais que nos informam. Discurso que se confirma
quando o índio lembra ao protagonista que toda aquela terra avistada por ele é dele, ele
querendo ou não.
73

Figura 21: Zé Elétrico e Jonas refletindo sobre a condição existencial.

Na trilogia de Torres, por exemplo, é perceptível a forma como a narrativa


literária desloca a visão de um nordeste tradicionalmente representado pela literatura
brasileira enquanto descrição de um cenário seco, em que a aridez acaba sendo refletida
na formação subjetiva dos personagens, como verificamos em boa parte dos romances
modernistas da geração de 1930, para investir num espaço sertão agora representado
como uma espécie de não-lugar10. Retrata-se, assim, a complexidade da sensação de
pertencimento daqueles que partiram e, ao retornar não conseguem mais se identificar
com o lugar de origem.
Encontramos na narrativa de Árido Movie e do romance Pelo fundo da agulha, a
citação de Albert Camus sobre a condição do sujeito que se sente um estrangeiro. Na
narrativa fílmica ouvimos o desabafo de Jonas com Soledad. Pela manhã, num quarto de
hotel, o protagonista expõe a sua sensação de não ser de Rocha nem de São Paulo,
perguntando a videomaker se ela já tinha lido Camus. No romance de Torres a longa
citação do trecho do O mito de Sísifo é descrita quando Totonhim analisa o contexto do
suicídio do sogro, indagando sobre o seu engano em relação às suas existências, ao
afirmar que pensava que o estrangeiro ali fosse ele.

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a


vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão filosófica
fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o
espírito tem nove ou doze categorias, vem depois... Há muitas causas para um

10
O conceito de não-lugar definido por Marc Augé em Não Lugares: introdução a uma antropologia
da supermodernidade, considera que, na contemporaneidade, aspectos como o excesso de
acontecimentos, a superabundância espacial e a individualização das referências , levam o sujeito à falta
de reconhecimento da identidade, do sentimento de pertença e da afetividade relacionada às experiências
vividas. O não-lugar espelha o vazio de referências históricas e culturais, ele não cria uma identidade
singular, é fruto da atual comunidade informacional. (AUGÉ, 1994, p.79)
74

suicídio e, de um modo geral, as mais aparentes não têm sido as mais


eficazes... Aquilo que provoca a crise é quase sempre incontrolável. Os
jornais falam muitas vezes de “desgostos íntimos” ou de “doença incurável”.
São explicações válidas. Mas era preciso saber se nesse próprio dia um amigo
do desesperado não lhe falou num tom diferente. Ele é o culpado. Porque isso
pode bastar para precipitar todos os rancores e todos os cansaços ainda em
suspenso... Um mundo que se pode explicar, mesmo com más razões, é um
mundo familiar. Mas, pelo contrário, num universo subitamente privado de
ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro...11

No romance Essa Terra, o suicídio por enforcamento do irmão Nelo também


marca a condição de estranhamento ou desencontro com as origens. Ao retornar vinte
anos depois Nelo é recebido como um sujeito da metrópole, rico, bonito, com sotaque
paulistano. Enquanto o que de fato desejava era apagar da memória as experiências
frustrantes vividas na capital paulista. A constatação de que não havia mais essa saída
leva-o ao suicídio, como narra o irmão Totonhim:

‒ Nelo ‒ gritei da calçada. ‒ Vem me ensinar como se flutua em cima do


tronco de mulungu. Me disseram que você já foi bom nisso. Não ouvi o que
ele respondeu, quer dizer, não houve resposta. Não houve e houve. Na roça
me falavam de um pássaro mal-assombrado, que vinha perturbar uma moça,
toda vez que ela saía ao terreiro, a qualquer hora da noite. Podia ter sido o
meu irmão quem acabava de piar no meu ouvido, pelo bico daquele pássaro
noturno e invisível, no qual eu nunca acreditei. Atordoado, me apressei e bati
na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse ‒ e para que eu
fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no
armador da rede.
‒ Deixa disso, Nelo ‒ bati com a mão aberta no lado esquerdo do seu rosto e
devo ter batido com alguma força, porque sua cabeça virou e caiu para a
direita. ‒ Deixa disso, pelo amor de Deus ‒ tornei a dizer, batendo na outra
face, e ele se virou de novo e caiu para outro lado.
Pronto.
Eu nunca mais ia querer subir por uma corda até Deus (TORRES, 2005, p. 12
e 13).

Nas narrativas literárias, as sensações de estrangeirismo tentam ser vencidas pelo


contexto da homogeneização cultural citado anteriormente. Nas narrativas de Torres é
visível a presença dos símbolos veiculados pelos meios de comunicação de massa,
permitindo a percepção de como a cultura pop já se encontra disseminada na cultura
nordestina através da acessibilidade dos meios tecnológicos. Assim como também é
visível a comparação dos espaços em que as identidades são reforçadas pelo contato
direto com os bens culturais, investindo na aproximação entre os sujeitos, numa espécie
de “pseudo” familiarização com os objetos culturais:

11
Ver citação do trecho de O mito de Sísifo, de Camus In: TORRES, Pelo fundo da agulha, 2006, p. 182.
75

(...) A terra dorme. Com o que este lugar estará sonhando? Durante o dia
achei que o cenário era perfeito para um filme de cowboy. Agora o cenário
está desmontado. Fecharam o último saloon, nenhum pistoleiro chegando,
ninguém toca gaita, realejo ou violão. Nenhuma moça à janela. Nenhum Bob
Nelson cantando: “ô-ti-ro-lê-i-ti”. E eu não serei mais gongado num
programa de calouros. The end. Só os galos cantam. E os cachorros uivam,
solidários com as minhas velhas dores. (...) (TORRES, 1997, p. 190-191).
Voltaria àquele subúrbio feio, pobre, triste. E nele encontraria mais pessoas
para ter saudades da sua terra do que o escrivão de polícia que acabava de
conhecer. Nem parecia que aquele lugar, chamado São Miguel Paulista, fazia
parte das redondezas da maior cidade da América do Sul, da qual era um
apêndice inchado, graças às contribuições dos retirantes sertanejos à sua
densidade demográfica. O alto-falante da praça cantava: Eu penei, mas aqui
cheguei...
Eis aí: a voz do mesmo Luiz Gonzaga, o rei do baião, ouvida em todas as
praças do sertão. Sentiu-se no Junco (TORRES, 2006, p.141).

Em Árido Movie, na trilogia torriana e nas narrativas de 2000 Nordestes a


problemática da identificação, do processo de descentramento do sujeito contemporâneo,
aliado às formas de representatividade do espaço-Nordeste, centraliza o foco da discussão
sobre as linhas de forças que atravessam os campos discursivos que lidam com a
formação identitária do sujeito sertanejo.
As multiplicidades de narrações encontradas nas imagens encenadas pelos filmes ou
pelas construções romanescas fazem parte da articulação da estética fragmentária
disseminada e exercida pelas estruturas sociais e culturais contemporâneas. A forma
como a estrutura social repercute na elaboração objetiva dos imaginários faz com que os
sujeitos representem seu lugar a partir da crença de que gostos e hábitos que antes eram
estranhos passem a ser familiares, ou seja, comecem a fazer parte das experiências
vividas por eles, em contato direto com os agenciamentos dos processos globalizadores.
Nestor Garcia Canclini (2007) vincula a sobrevivência deste sistema à existência
da interculturalidade, defendendo que “a globalização sem a interculturalidade é um
“OCNI”, definindo a sigla como Objeto Cultural Não Identificado” (CANCLINI, 2007,
p.46) e que intencionalmente o caráter estratégico dessa hegemonia interessa somente
àquilo que diz respeito às políticas do mercado. Para este autor, é nesse contexto que
podemos analisar a condição de formação identitária do sujeito contemporâneo, em suas
narrativas em conflito, inseridas constantemente em diversas comunidades imaginadas.

(...) Mas o que sabemos das identidades indica que estas não têm consistência
fora das construções históricas em que foram inventadas e dos processos em
que se decompõem ou se esgotam. Alguns elementos utilizados para delimitar
76

cada identidade, por exemplo, o uso da língua, são passíveis de estudos


rigorosos, mas outros componentes que muitas vezes são dados como
definições identitárias (cor da pele, gosto, hábitos) oscilam entre o
determinismo biologicista e vagas convicções subjetivas.” (CANCLINI, 2007,
p.78)

Parafraseando Canclini, podemos considerar que a “identidade nordestina” habita o


imaginário brasileiro a partir do contato com diversas narrativas. Se pensarmos na
produção literária da década de 1930 ou do Cinema Novo da década de 1960, veremos o
Nordeste a partir de unidades discursivas que reforçam as imagens da região voltadas
para o subdesenvolvimento, o atraso econômico, a fome e, fundamentalmente, para a
abordagem da temática da seca.
Nas produções literárias do escritor Antônio Torres, considerando ainda as
narrativas fílmicas de Árido Movie e 2000 Nordestes, veremos que o imaginário
associado aos personagens ou depoentes estão impregnados de características
arquetípicas e mitológicas em relação às diversas estratégias discursivas de poder que se
cristalizaram como características expressivas da região.
Em Árido Movie, por exemplo, embora a temática da seca tenha sido deslocada
para a da “política das águas”, temos uma série de outras representações da permanência
do imaginário místico e coronelista da região. Albuquerque Júnior (2011) já advertia que,
ao se tomar como objeto o Nordeste como tema, fosse na arte ou em trabalhos
acadêmicos, não se poderia fazê-lo desejando qualquer condição de neutralidade. Para
este autor,
A visibilidade e a dizibilidade da região Nordeste, como de qualquer espaço,
são compostas também de produtos da imaginação, a que se atribuem
realidade. Compõe-se de fatos que, uma vez vistos, escutados, contados e lidos,
são fixados, repetem-se, impõem-se como verdade, tomam consistência, criam
“raízes”. São fatos, personagens, imagens, textos, que se tornam arquetípicos,
mitológicos, que parecem boiar para além ou aquém da história, que, no
entanto, possuem uma positividade, ao se encarnarem em práticas, em
instituições, em subjetividades sociais. São imagens, enunciados, temas e
“preconceitos” necessariamente agenciados pelo autor, pelo pintor, pelo
músico ou pelo cineasta que querem tornar verossímil sua narrativa ou obra de
arte (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 217).

Através do estudo da recepção de objetos culturais que problematizam as questões do


atual nordeste brasileiro, entre o local e o global, o urbano e o rural, o espaço tecno-
mítico-logicizado do interior nordestino em diálogo com a urbanidade paulistana,
podemos tornar possível a ativação de um olhar estético-político-cultural que aponte não
77

só para o questionamento da visão do espaço rural e urbano, sugerido pelo projeto


racionalista moderno, baseado no raciocínio binário e excludente, como pensar as
transformações que esses espaços causam ao se inscreverem como uma espécie de
releitura da modernidade. Pois o fácil acesso às novas tecnologias tem desafiado o
próprio processo de compreensão das expressões espaciais da modernidade, sobretudo,
quando se trata das noções que envolvem o espaço urbano e o rural, na
contemporaneidade. As tênues distinções que vêm demarcando estes espaços surgem
como consequência de processos sociais variados.
Esses processos de transformações ocorridos e o que denominamos aqui de
espaço-Nordeste já não podem ser explicados por uma perspectiva puramente
econômica, haja vista que esta perspectiva não é capaz de dar conta das formas e
interações espaciais portadoras de uma objetividade. E por outro lado, ao avaliarmos as
explicações fundamentadas num viés econômico, podemos perceber o quanto estão
distanciadas de uma reflexão sobre as relações entre cultura e espaço.
Sendo assim, acreditamos que a análise espacial do atual Nordeste implica ainda
uma reflexão sobre as noções de espaço, lugar, paisagem e território abordados pela
nova geografia cultural, repensando o índice de abstração expresso por estes conceitos,
pois como afirma Milton Santos, “trata-se de formular um sistema de conceitos (jamais
um só conceito!) que dê conta do todo e das partes em interação” (SANTOS, 1999,
p.93). O conceito de espaço não está livre das interferências causadas pelo fluxo cultural
e midiático que vem formando a sociedade. A reflexão sobre a noção de espaço tem
contribuído para a compreensão das mudanças e das novas configurações estruturais do
mundo contemporâneo.
Em seu livro Microfísica do Poder, no capítulo X, intitulado “Sobre a geografia”,
Foucault chama atenção para as incertezas das espacializações e dos usos metafóricos
que se faz de algumas dessas noções, entre elas a de território, “(...) vejamos o que são
estas metáforas geográficas. Território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é antes
de tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por um certo tipo de poder
(FOUCAULT, 1979, p.157)”. E ampliando a discussão sobre a necessidade de se
descortinar as relações estratégicas de poder que envolvem as noções espaciais nas
diversas sociedades, este autor justifica a sua obsessão pelo tema da seguinte forma:

Reprovaram-me muito por essas obsessões espaciais, e elas de fato me


obcecaram. Mas através delas, creio ter descoberto o que no fundo procurava:
78

as relações que podem existir entre poder e saber. Desde o momento em que
se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de
deslocamento, de transferência, pode-se aprender o processo pelo qual o
saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma
administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam
pelo saber e que naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas
formas de dominação a que se referem noções como campo, posição, região,
território (FOUCAULT, 1979, p.158).

São essas relações de saber-poder imbricadas na “Invenção do Nordeste” que se


descortinam nas narrativas e trazem para a cena a ampliação das noções de espaço,
considerando intrínsecos os espaços geográficos, culturais, político-econômicos e
(auto)biográficos, como aqueles capazes de indicar as possíveis visibilidades e
dizibilidades dos atuais espaços-Nordestes nas produções literárias e cinematográficas
contemporâneas.
Assumindo uma concepção de espaço que abarca a forma (material) e o conteúdo
(social), as narrativas literárias e fílmicas dialogam com uma noção de espaço que se
propõe a “examinar o espaço como um texto, onde as formas são portadoras de
significados e sentidos” (GOMES, 1997, p. 38).
Seguindo este viés, analisaremos a seguir algumas cenas produzidas pelas
narrativas situadas no filme Árido Movie, no documentário 2000 Nordestes e na obra
literária Essa Terra, que inaugura a trilogia do escritor Antônio Torres.
Em 2000 Nordestes, temos um filme que segue um roteiro geográfico e que
mesmo sem ideias pré-formatadas, ao percorrer 4.000 km e cruzar cinco estados
nordestinos (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia), revelam
imagens de uma paisagem que negocia o tempo inteiro com a espetacularização pós-
moderna que molda os cenários do espaço-Nordeste em pleno final do século XX.
Em entrevista ao Jornal Agência Estado, França afirma que queriam “fugir de
documentários sociológicos e etnográficos. Não queríamos provar nada, nem tínhamos
tese a defender. Saímos apenas com um roteiro geográfico sem ideias preconcebidas”,
(...) “Nossa intenção principal era entrar em contato com o imaginário nordestino de
hoje (...)”.
E através da lente da câmera, o imaginário do nordestino “invade a tela”, em
depoimentos que mobilizam os sonhos e expressam as subjetividades de indivíduos que
aspiram ser artista ou demonstram grande identificação com os ídolos que aparecem na
TV. Os espaços, alterados pelas relações culturais, traduzem os atuais problemas
79

enfrentados contemporaneamente ao se tentar definir ou estabelecer limites entre a


formação identitária, o imaginário e a difusão dos meios de informação.
Ao atribuir ao documentário o adjetivo de “tecno-pop-impressionista”, os
diretores, indiretamente, chamam a atenção do espectador para a forma como a cultura
pop está disseminada na região nordestina, assim como as formas de apropriações
culturais são aí constantemente intensificadas. Em suas palavras, “(...) O nordeste é
muito menos óbvio e mais pop do que se imagina, com uma capacidade de deglutir a
cultura de massa de forma muito diferente da que ocorre no Rio e em São Paulo”.
No documentário 2000 Nordestes, a vida dos depoentes são representadas e
aproximadas da realidade experimentada pelos mesmos nos espaços habitados. Diante
da impossibilidade de representar o real plenamente, vemos as incertezas que marcam
sua apresentação na tela.

Figura 22: Depoente afirma “Quem sabe é Deus”e a imagem do beato Sebastião é contraposta em
2000 Nordestes.

Os recursos utilizados para filmar o documentário, enquanto uma ficção


estrategicamente calculada, estabelecem paralelamente a distinção entre a representação
e a crença. Cenas de filmes como Vidas Secas e Deus e o diabo na terra do sol, já
citados anteriormente, misturam-se à câmera que se impõe, que é vista pelos
espectadores a partir da redução da distância entre ela e aqueles que são filmados.
A câmera que registra o documentário 2000 Nordestes está presente, ela filma de
perto os seus objetos, os corpos e sua presença tátil, encontra-se ao alcance das mãos de
quem está filmando e de quem está sendo filmado, passando a pertencer ao espaço
próprio das pessoas que estão sendo filmadas como se fizesse parte de seu território.
Os diretores David França e Vicente Amorim investem na escuta das falas das
pessoas, daquelas que eles se propõem a filmar. E essas pessoas atuam a partir de suas
80

próprias palavras. Daí, são construídos os blocos, as falas dos depoentes delimitam a
forma da decupagem do material cinematográfico, e as cenas aparentemente simples se
transformam em “pura” dramaturgia.
Na dramaturgia de 2000 nordestes os depoentes fazem o quadro, são eles quem se
colocam no campo. E esta é a tarefa considerada mais difícil no fazer documentário, se
formos interligá-la à questão da aceitação do público espectador. Pois as falas, ou
melhor, a escuta do filme documentário não coincide com a fluidez e rapidez da
linguagem televisiva vivenciada pelos sujeitos hoje. Essa realidade é constatada pelas
imagens do próprio documentário, que traz em diversos blocos a interferência da
televisão na vida das pessoas e na própria construção subjetiva dos depoentes
participantes. Como podemos exemplificar a partir da descrição de determinadas cenas:

Figura 23: Depoente cita Ratinho como programa que ajuda a resolver os problemas sociais.

Nesta sequência do documentário, o depoente que se diz cidadão nordestino e que


não tem a menor vontade de abandonar a sua terra, afirma que as pessoas que trabalham
na televisão precisam ajudar a melhorar a vida da população. Quando questionado pelo
cineasta se ele vê esse tipo de ajuda na TV, o depoente cita o programa de Ratinho, que
imediatamente invade a tela. O depoente continua, pedindo ao cineasta que ajude a
melhorar a condição do rio que lhe fornecia a matéria-prima para sua sobrevivência, que
denuncie a poluição e ajude a população a sair daquela situação.

Além das condições reais de vida dos nordestinos, como as exemplificadas


anteriormente, as suas impressões, aquilo que pensam sobre o lugar que habitam, o
documentário 2000 Nordestes focaliza também a problematização da diáspora
nordestina em São Paulo e no Rio de Janeiro, tema abordado pela ficção do diretor Lírio
81

Ferreira (em Árido Movie) e nas obras literárias do escritor Antônio Torres, que serão
discutidos no subcapítulo a seguir.

2.3. O SUJEITO DISTORCIDO EM ESSA TERRA E ÁRIDO MOVIE

A narrativa desenvolvida em Essa terra, romance do escritor Antônio Torres,


esconde, através do simbolismo do deslocamento da viagem (A ida / O retorno), a
marca de uma partida fundada através da identificação com “os outros” (os
estrangeiros  os homens do banco), enquanto o retorno refletiria um sentimento de
não reconhecimento, de não pertencimento a lugar algum, desestabilizando o sujeito
que não sabe ou não aprendeu a lidar com as circunstâncias impostas pelo
deslocamento vivido.
Na partida, há a emergência de um sujeito que vive a negação de uma narrativa
originária para investir na “projeção de um reflexo narcísico do Um no Outro”,
revelando aquilo que BHABHA (1998, p.85) denomina de duplicação da identidade,
processo que segundo o autor, só é atingido pela negação de uma narrativa originária
de realização, alcançada pelo processo psicanalítico de identificação fundado no
desejo.
Nesse sentido, o desejo de migrar para uma terra desconhecida em busca de
uma melhor qualidade de vida torna-se realizável através da negação da origem,
através do sentimento de não pertencimento ao povoado do Junco, que é marcado no
romance, consequentemente, pelo processo de duplicação da identidade.
Desde o início da narrativa de Essa Terra, podemos verificar como o processo
de duplicação da identidade vivido pelo autor também influencia e interfere
diretamente na criação dos personagens das obras em análise. Essa Terra poderia
perfeitamente ser considerado um romance autobiográfico por narrar a precariedade
e o desconforto do autor, que coincide, em certo sentido, com o desconforto do
personagem submerso na parafernália apresentada pela modernidade da cidade
paulistana. Antônio Torres traduz de forma instigante as inquietações ligadas aos
problemas de natureza identitária, surgidas pela convivência do eu com o estranho
outro.
82

Dessa forma, o sujeito (autor/personagem) se expõe para o outro em busca de


afirmação e de reconhecimento. A maneira como o autor descreve a condição em que
surgem as primeiras linhas do romance nos fornecem as pistas necessárias para
verificar o quanto a narrativa acaba sendo orientada através da política do
reconhecimento.
“Se estiver vivo um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse”. (TORRES,
1976, p. 7). Com a criação dessa frase está iniciada a narrativa do romance Essa
Terra. Trabalhando como redator de publicidade numa agência da Avenida Paulista
em 1975, o autor afirma, em entrevista concedida a Ceci Alves (Jornal A Tarde, em
17/01/2002, Salvador-BA), que “a obra nasceu a partir de um momento de uma crise
no trabalho, entre a produção dos anúncios de um Volks, de um forno qualquer, e do
barulho infernal da construção do metrô em São Paulo”. Nasceu refletindo as cenas
produzidas pelos operários que trabalhavam naquela obra, onde em cada rosto havia
o reconhecimento de um parente distante, “que depois de muitas idas e vindas para
São Paulo, dezenas de vezes, acabou se matando”.
Pela identificação do semelhante, pelo reconhecimento de pessoas e familiares
em diferentes rostos, gestos e vozes, a narrativa desse romance permite-nos realizar
uma atividade crítica comprometida com uma teoria pautada na política do
reconhecimento. É através dela que pretendemos analisar a forma como a narrativa
acaba se estruturando e trazendo à tona as problemáticas vividas por vários
nordestinos que migram para o sudeste do país em busca de melhores condições
sócio-econômicas, não só para sua sustentação, mas também para a de quem fica na
terra de “origem”.
Essa Terra narra a história de Nelo, um sujeito que trilha o caminho de volta
da grande São Paulo (uma cidade devoradora), para o antigo lar, no povoado de
Junco, situado no interior da Bahia.
Contrariando as expectativas depositadas pela família, a trajetória vivida por
Nelo traça o percurso dos fracassos e dos dilemas que lhe acompanharam desde a
partida da terra natal à cidade grande, culminando com o suicídio por enforcamento.
Interessa-nos questionar a maneira como a identidade cultural encontra-se
articulada a partir da migração de um local. Que sentimento de identificação
(reconhecimento) é produzido pelas personagens em Essa terra? O que afasta e
aproxima as personagens da sua terra natal, o Junco? Como o mito da prosperidade e
riqueza da grande São Paulo se constrói e se dilui?
83

Nelo, ao deixar o povoado do Junco, leva consigo o sonho de uma vida


melhor, a esperança por melhores roupas, maior desempenho linguístico-cultural e de
um grande sucesso com as mulheres. Sonhos projetados a partir do contato com os
“estrangeiros”, e de um olhar que pretende se reconhecer através da leitura do
“outro”.

Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe.
Estava com 17 anos. Ele iria passar mais três anos para se despregar do cós
das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites com a fala e as
roupas daqueles bancários ― a fala e a roupa de quem, com toda certeza,
dava muita sorte com mulheres (TORRES, 1976, p. 11).

Já o narrador personagem Totonhim, na tentativa de avaliar a causa da


migração do irmão Nelo do Junco rumo à cidade de São Paulo, faz ao mesmo tempo
uma retrospectiva da partida como uma espécie de justificativa:

“(...) um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar,


como que por encantamento, num homem belo e rico, com seus dentes de
ouro, seu terno folgado e diferente de casimira, seus raybans, seu rádio de
pilha―faladorzinho como um corno―e um relógio que brilha mais do que a
luz do dia. Um monumento, em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa
terra também podia gerar grandes homens” (TORRES, 1976, p.14).

O fragmento textual mostra-nos como a projeção de uma vida bem sucedida


encontra-se no romance apropriada pela efetivação do poder de aquisição de bens
materiais. A narrativa coloca em evidência a relação do sujeito, da sua construção
identitária a partir da realização do consumo desses bens, a exemplo da identificação
do próprio indivíduo com “um monumento, em carne e osso”, que seria
“reconhecido” e valorizado como grande homem.
A relação dos indivíduos com os bens materiais, com o consumo desses bens,
orienta a vida das personagens do romance e justifica suas atividades no decorrer da
narrativa.
Nesse sentido, a projeção está voltada mais para a noção de identidade (da
construção da identidade através do olhar do outro), do que a uma política de
reconhecimento que integra a alteridade, ou seja, que possibilite a dialética do
mesmo e do outro  o que permitiria entender as razões de cada um e a estrutura dos
conflitos e das negociações.
84

Nelo é descrito como um filho maravilhoso pelo olhar da mãe, a qual se


lembra dos envelopes gordos, que chegavam todo “mês com dinheiro vivo, paulista,
rico”.
Totonhim, o pai e toda a parentada de Junco também viam em Nelo a
personificação de um indivíduo bem sucedido na vida. E a projeção da identidade de
Nelo segue na narrativa sendo formada a partir do julgamento do meio exterior,
confirmando o que Hall define como a construção da identidade na constituição do
sujeito pós-moderno, ou seja, “o outro” passa a ser o elemento central do processo de
identificação, pois a identidade surge: “(...) de uma falta de inteireza que é
preenchida a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nos imaginamos
ser vistos pelos outros”. (HALL, 1999, p.39)
Enquanto Nelo é visto como aquele que migra para se salvar, como aquele
que fugiu das limitações impostas pelo lugarejo interiorano, a experiência da
migração vivida pelo personagem é narrada mostrando o intenso sentimento de
estranhamento da experiência diaspórica enfrentada pelo sujeito, que parte de um
ambiente miserável, mas ainda conservador de certos valores humanos, “para uma
São Paulo sem rosto e sem forma”.
É esse sentimento de estranheza, experimentado pelo personagem principal do
romance Essa Terra, o grande responsável pelo conflito existencial vivido pelo
indivíduo. Ao investir no descentramento do sujeito, que não consegue mais se
identificar com a cidade grande, muito menos com o ex-familiar espaço nordestino/
interiorano, a narrativa acaba produzindo no personagem a sensação de não
pertencimento a lugar algum. Nelo conheceu e viveu no Junco e em São Paulo, mas
não se sente pertencente a estes lugares. São Paulo representa ao mesmo tempo o
exílio e a perda:

“Dinheiro, dinheiro, dinheiro.


Cresce logo, menino, pra você ir para São Paulo.
Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco”.
(TORRES,1976, p. 63)
85

Na experiência vivida por Nelo coexiste o enigma de uma “chegada” sempre


adiada, como se fosse uma espécie de pressentimento, uma consciência de que o seu
desenraizamento já não lhe permitiria a reintegração à terra natal.
Ao narrar a trajetória de migrantes nordestinos, a obra literária, de certa forma,
questiona o fato de como a identidade cultural acaba sendo articulada pelos
fragmentos da própria experiência diaspórica vivida pelo personagem.
Assim, o retorno do migrante, que se sente ou não realizado na metrópole, mas
também não mais pertencente aos lugares de origem, encena uma narrativa que
assume as características das experiências vividas na pós-modernidade, na qual, de
acordo com Nestor Garcia Canclini, o indivíduo percebe que muitas perguntas como
― “a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem
representa meus interesses ― recebem suas respostas também pela relação que
estabelece com o consumo privado de bens materiais” (CANCLINI, 1999, p. 37).
A migração, como um fenômeno universal, também representa a configuração
desigual dos lugares. Mundialmente, as metrópoles, cidades e campos fazem parte
dos caminhos cruzados nos países. A linha de partida e chegada daqueles que se
deslocam, desenraizam, fazem transitar os valores, comportamentos e o imaginário
cultural dos sujeitos, investindo em outras condições de vida. É procurando
compreender o sentido dessa busca, que o narrador Totonhim relata os fios da trama
dos romances da trilogia, tentando responder seus próprios questionamentos e
impasses, afirma:

Vinte anos para frente, vinte anos para trás. Eu no meio, como dois ponteiros
eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa ‒ um velho
relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas. Eis como
me sinto e não apenas agora, agora que sei como tudo terminou. (TORRES,
2005, p.18)

Totonhim vai revelando todas as mazelas vividas por Nelo em São Paulo. A
imagem do migrante vencedor, rico e bem sucedido, como idealizada pela família, se
desfaz na contraposição do retorno do homem falido, traído e abandonado pela
mulher. Essas narrativas vividas intensamente por Nelo e Jonas mostram grande
parte das tensões produzidas pela condição arquetípica da modernidade tardia: a
experiência de estar dentro e fora. Experiência que para Stuart Hall tem se tornado
cada vez mais comum, desde que a migração constituiu-se como o grande evento
histórico-mundial representante da experiência pós-moderna.
86

Nesse sentido, as narrativas de Árido Movie e Essa Terra registrariam não só o


processo diaspórico vivido pelo sujeito que já não pode se considerar originário de
um único lugar, produzindo o que Hall chama de o “estrangeiro familiar” (HALL,
2002, p.416), mas ainda produzem o reordenamento do indivíduo diante das relações
orientadas pelo consumo de bens materiais, bens que na contemporaneidade, além de
assumir o poder de articular a vida do sujeito pós-moderno, investe ainda na
construção da sua identidade.

Muitos sentem que a “terra” tornou-se irreconhecível. Em contrapartida, são


vistos como se os elos naturais e espontâneos que antes possuíam tivessem
sido interrompidos por suas experiências diaspóricas. Sentem-se felizes por
estar em casa. Mas a história, de alguma forma, interveio irrevogavelmente
(TORRES, 2005, p.27).

Já a distorção do sujeito em Árido Movie é perceptível logo na primeira cena: no


momento em que vemos a projeção da imagem de Jonas completamente deformada, a
câmera materializa na tela o conteúdo mental da personagem, enquadrando seu rosto
sem permitir ao espectador a sua nítida visualização. A visão embaçada da imagem de
Jonas, como primeiro índice do processo narrativo subjetivo produzido por Árido
Movie, antecipa a despreocupação do diretor com a “exatidão realista” e a
verossimilhança representativa da imagem, seja introduzindo no filme imagens que não
pertencem à diegese, ou recorrendo a meios técnicos baseados na truncagem.
No início da narrativa fílmica, a alternância entre a imagem distorcida de Jonas
(no estúdio de gravação de um telejornal em São Paulo) e os acontecimentos
decorrentes de uma noite agitada na cidade fictícia de Rocha expressa, através da
imagem acima referida e do corte abrupto das cenas, a evocação de uma atividade
psíquica voltada para a questão identitária. Quando a câmera adota o ponto de vista do
personagem, vemos na tela o que ela crê, vê e sente: Jonas está diante do espelho e
através da antropomorfização da câmera, como um olho que tudo vê e sente, como
sugeriu David Bordwell, vemos na tela o que a personagem vê, a imagem distorcida do
seu rosto.
87

Figura 24: Jonas no estúdio do telejornal em São Paulo e imagens do rio Tietê

O cinema, como afirma Marcel Martin, ao conseguir exteriorizar e visualizar,


através de diversas formas, certo número de comportamentos psicológicos de ordem
íntima, cria uma maneira de filmar que este autor considera como “irrealista”, se o
personagem aparece no plano que materializa seu conteúdo mental. Para Marcel Martin:

(...) neste caso a câmera capta ao mesmo tempo o protagonista e o objeto ou


efeito de sua atitude psíquica; esta audaz expressão é muito interessante e
denomino-a “irrealista” devido ao duplo nível de realidade em que se situa o
conteúdo deste tipo de plano: percebemos diretamente a personagem e, em
segundo grau porém simultaneamente, como percepção da sua própria
percepção, seu conteúdo mental. (MARTIN, 1963, p. 158)

O termo distorção, semanticamente associado à condição de “aberração


determinada pelo sistema óptico, caracterizado por diferenças de ampliação para
diferentes regiões do sistema e pelo fato de serem deformadas as imagens por ele
produzidas” (MARTIN, 1963, p. 159), é extremamente significativo para análise fílmica
em questão, por se tratar de uma narrativa que, ao colocar em evidencia o caráter de
descentramento do sujeito, investe no trabalho do trânsito cultural entre o rural e o
urbano, deslocando o olhar para o mito da identificação do rural ao espaço natural e
simples, ao espaço perdido ou ultrapassado em relação à cidade.
Jesús Martin-Barbero, em seu livro Dos meios às mediações: Comunicação,
cultura e hegemonia, ao tratar da mistura de povo e massa no urbano afirma em relação
ao índio, ao camponês, por exemplo, que

(...) a tendência mais forte é pensá-los como primitivos, portanto, como um


outro, fora da história, diante do popular urbano a concepção mais freqüente
é negar pura e simplesmente sua existência cultural. Trata-se de um mito tão
forte que falar em popular evoca automaticamente o rural o camponês. E seus
traços de identificação: o natural e o simples, o que seria o irremediavelmente
88

perdido ou superado pela cidade, entendida como o lugar do artificial e do


complexo. (MARTIN-BARBERO, 2006, p. 268)

Mas, na narrativa de Árido Movie o natural, o simples, o artificial e o complexo


fundem-se através dos discursos engendrados pelo índio Zé Elétrico (José Dumont) ou
através do misticismo religioso propagado por Meu Velho (José Celso Martinez).
As práticas discursivas e os códigos utilizados por eles são tão antigos e tão bem
distribuídos entre a comunidade cultural brasileira, e não somente sertaneja, que muitas
vezes podem até parecer que não foram construídos. A forma da propagação discursiva
de Meu Velho, ao trabalhar com a operação de códigos naturalizados, como sugeriu
Hall, “revela não a transparência e ‘naturalidade’ da linguagem, mas a profundidade, o
caráter habitual e a quase universalidade dos códigos em uso. Eles produzem
reconhecimento aparentemente ‘naturais’ (HALL, 2006, p. 371)”. Na transcrição da
cena em que Soledad entrevista Meu Velho, vemos a naturalização dessa prática através
da narrativa fílmica.

Figura 25: Encontro de Soledad e Meu Velho

Meu Velho: Minha filha, isso aqui é e não é! Mas está sendo! Nesse
momento ocorre um trânsito intenso pra Saturno, muitas pessoas estão indo
pra lá. E essas pessoas vão ficar por lá, porque eu as fecharei, eu tenho a
chave e não hesitarei em usá-la.
Soledad: E pra onde vocês vão?
Meu Velho: Para Júpiter. Beber a água mimosa de íon. Lá me instalarei e
ficarei a espera, para realizar minha nova missão.
Soledad: E qual seria a sua próxima missão?
Meu Velho: O retorno do Caos e a recriação do Universo. Não há vida sem o
estado líquido, e eu tenho a poética das águas.
89

Figura 26: Soledade na casa de Meu Velho

No filme, o discurso místico vai encobrindo os efeitos ideológicos utilizados por


políticos, latifundiários, empresários e migrando para os grandes centros urbanos,
encobrindo as práticas de codificação do presente. A frase “excesso de informação, falta
d’água”, projetada na instalação em São Paulo, antecipa a problematização da evolução
dos aparatos tecnológicos, ocorridos principalmente no âmbito midiático e das novas
tecnologias informacionais, enquanto problemas básicos como a falta de água
continuam a existir.
No primeiro diálogo da videomaker Soledad com Meu Velho podemos verificar a
prática discursiva propagada, para logo depois sermos informados pela película que a
água mimosa destinada às cisternas da fazenda de Meu velho chegava por ordem da
força política que atuava na cidade de Rocha e do deputado federal eleito para
representar a região em Brasília.

Figura 27: Soledad a caminho da fazenda de Meu Velho


90

Figura 28: Meu Velho em momentos que antecedem a filmagem com a videomaker

Soledad: Meu Velho, posso chamá-lo assim?


Meu Velho: Antes, quando meu pai apareceu a primeira vez pra mim meu
nome era Zé, depois ele preferiu que me chamassem de Agneton, agora , sou
Meu Velho.
Soledad: E quem é o seu pai?
Meu Velho: Meu pai é o de todos aqui da Terra. A diferença é que eu sou um
dos filhos diretos dele. E seu mensageiro também. Eu falo diretamente com
ele. Ele me ilumina e eu reparto esse conhecimento com os que me seguem.
A ligação do divino como profundo.
Continuação do diálogo de Soledad e Meu Velho
Meu velho: É isso mesmo, no começo só existia o vale do Rocha. E o céu
cobrindo tudo. Aí eu cheguei, comecei a garimpar, muito arenito, eu cavei,
cavei, e o tempo começou a existir a partir daí. Quer dizer, o tempo daqui, o
tempo cíclico, que marca tudo. Ainda não existia os índios...
Meu Velho: E aí vieram os índios. Só aí que vieram os índios e depois dos
índios vieram outros homens. Aí apareceu a água.
Soledad: E de onde veio essa água?
Meu Velho: Do profundo, brotava dos paredões e irrigava tudo. E o que
antes sobrava, começou a faltar. Por isso eu comecei a guardar água. Água
mimosa.
Soledad: E onde o senhor guarda essa água?

Figura 29: Meu Velho se preparando para a filmagem

O discurso místico e as práticas políticas disseminadas na narrativa do Árido


Movie vão nos levando aos caminhos da fictícia cidade de Rocha, trilhados por uma
91

espécie de “aridez cinematográfica” que continua a revisitar e deslocar as


representações do sertão no imaginário brasileiro.
As imagens sertanejas revisitadas por várias fases do cinema nacional, enquanto
metáforas de uma condição representativa e tradutória da crise identitária vivida num
tempo de modernização acelerada, como a da pequena cidade sertaneja de Jardim das
Piranhas, em O Dragão da maldade contra o Santo guerreiro (1969, Glauber Rocha),
se esbarram na construção ideológica de uma brasilidade que via a sua identidade
associada à permanência da relação coronelista, relação ainda perpetuada pelas imagens
projetadas em Árido Movie, mas que agora surgem com um novo olhar sobre a velha
paisagem.
O olhar de Jonas (Guilherme Weber), protagonista do filme, distorce as cercas e a
paisagem da aridez sertaneja da cidade de Rocha. A sua visão deforma o real numa
tentativa de (des)construção dos discursos engendrados ao longo do tempo pela tradição
cultural e pelas formas de representação do espaço e da subjetividade sertaneja.
Jonas olha para dentro de si mesmo e não consegue estabelecer qualquer vínculo
com a cidade em que nasceu, assim como Nelo, protagonista do romance Essa Terra,
não se sente pertencente ao povoado de Junco (cidade do interior da Bahia, onde nasceu
e cresceu o personagem), nem à grande São Paulo. Nos dois casos, percebemos como o
sentimento de desterritorialização12 habita o interior dos protagonistas das narrativas
filmica e literária.
Nestor Garcia Canclini, em Consumidores e cidadãos, afirma que:

(...) as identidades pós-modernas são transterritoriais e multiliguísticas.


Estruturam-se menos pela lógica dos estados do que pela dos mercados; em
vez de basearem-se nas comunicações orais e escritas que cobriam espaços
personalizados e se efetuavam através de interações próximas, operam
mediante a produção industrial de cultura, sua comunicação tecnológica e
pelo consumo diferido e segmentado de bens. A clássica definição
socioespacial de identidade, referida a um território particular, precisa ser
complementada com uma definição sociocomunicacional. Tal reformulação
teórica deveria significar, no nível das políticas “identitárias” (ou culturais),

12
O conceito de desterritorialização construído por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia (V. 5), contribui para auxiliar na reflexão sobre a importância de se pensar
esta noção, considerando que não há território sem um vetor de saída do território, ao passo que não
há desterritorialização sem que aconteça por parte do sujeito um esforço para se reterritorializar em
outro lugar. Para estes autores esta noção é uma importante ferramenta para entendermos melhor as
questões filosóficas, as práticas sociais e a construção da política da subjetividade em nosso tempo.
DELEUZE&GUATTARI, 1997, p.224.
92

que estas, além de se ocuparem do patrimônio histórico, desenvolveram


estratégias a respeito dos cenários informacionais e comunicacionais onde
também se configuram e renovam as identidades. (CANCLINI, 1996, p.35-
36)

Tanto nos romances como nos filmes em questão, as identidades fragmentadas


ou “transterritoriais”, como considera Canclini (1996), são retratadas através da
exemplificação de como os indivíduos não só entrecruzam suas identidades diante do
contato com outras culturas, mas levam a sua territorialidade, reproduzindo-as em
outros locais. Percebe-se que esse processo não afirma a formação de uma identidade a-
territorial, nem que as identidades territoriais estão desaparecendo, mas, sim, se
reformulando.
No subcapítulo a seguir veremos como esse processo de reformulação dos
territórios identitários estão sendo reformulados a partir dos territórios informacionais
que são responsáveis pela redefinição dos lugares físicos e dos espaços de fluxos no
mundo globalizado. O acesso às novas tecnologias tem possibilitado outras formas de
relações com os espaços e redefinindo os sentidos de lugar. Esta discussão atravessa o
universo ficcional das obras aqui abordadas. E a partir da discussão sobre a cultura da
mobilidade, buscaremos avaliar a atual condição do espaço-Nordeste enquanto território
que ora se inclui, ora se exclui desse universo tecnológico.

2.4. AS REPRESENTAÇÕES DOS ESPAÇOS NORDESTE E DA “CULTURA


DA MOBILIDADE” NA LITERATURA E NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
BRASILEIRO

Pôs na boca, provou, cuspiu


É amargo, não sabe o que perdeu
Tem um gosto de fel, raiz amarga
Quem não vem no cordel da banda larga
Vai viver sem saber que mundo é o seu
Gilberto Gil

Em Banda larga cordel, o cantor e compositor Gilberto Gil metaforiza a condição


existencial do sujeito contemporâneo mediante a inserção na experiência cultural da
mobilidade, ao afirmar que o coração pede “Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom”,
93

em sintonia com o ruído emitido pelos primeiros acordes das conexões de rede via
telefonia discada.
O compositor coloca em evidência a necessária reflexão sobre a condição de
inclusão dos sujeitos nessa cultura. Atento ao processo de distribuição e acessibilidade
aos meios informacionais, sugere o alargamento emergencial desse processo em todo
espaço brasileiro.

E o meu coração pediu assim, só


Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom
Ou se alarga essa banda e a banda anda
Mais ligeiro pras bandas do sertão
Ou então não, não adianta nada
Banda vai, banda fica abandonada
Deixada para outra encarnação
Rio Grande do Sul, Germania
Africano-ameríndio Maranhão
Banda larga mais demografizada
Ou então não, não adianta nada
Os problemas não terão solução

Trazer algumas estrofes da canção Banda larga cordel para este texto implica
numa proposta de redefinição dos processos narrativos sobre o espaço-Nordeste
produzidos pela arte contemporânea, entre elas a literatura e o cinema. Analisando como
corpus desta pesquisa a trilogia literária do escritor Antônio Torres a partir dos
romances Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, o filme Árido
Movie, de Lírio Ferreira e o documentário 2000 Nordestes, de Vicente Amorim e David
França vemos como se reconstrói o espaço, ou melhor, a multiplicidade de espaços no
atual nordeste brasileiro.
Nas primeiras cenas do filme Árido Movie, a representação do protagonista
focalizada pelas câmeras do estúdio de um telejornal paulistano indica a transposição de
imagens que tendem a construir uma nova representação da aridez. O árido desloca-se
do espaço, enquanto lugar, para questionar a própria condição do sujeito, ser identitário
em crise e exposto aos processos narrativos que redefinem as pessoas à medida que o
tempo muda, e junto com ele as transformações causadas pelo caráter globalizador das
atuais construções sociais, econômicas e históricas inerentes ao processo de
globalização mundial.
O “Estado de violência” gerado pelo processo de modernização que não
acompanhou as necessárias mudanças econômicas, sociais e também culturais,
promoveu o que Nízia Villaça, em artigo intitulado “Apelos e apelações do
94

contemporâneo” (VILLAÇA, 1996, p.18) considera como perda identitária causada pelo
intenso desenvolvimento tecnológico e consequentes mudanças que os mesmos
provocavam na maneira de o sujeito enxergar a si e ao mundo em que vive. Para esta
autora, isso repercute também na forma como a literatura e a arte passam a representar
esse mundo.
E o que percebemos é que as alterações provocadas pelos novos aparatos
tecnológicos, assim como a disposição da acessibilidade aos novos meios
informacionais, modificaram também a criação dos processos estilísticos de
representação do literário e do cinematográfico através das novas imagens projetadas do
espaço-Nordeste. Na trilogia do escritor Antonio Torres vemos explicitamente a forma
como as citações e a escrita fragmentária promovida através da narração dos fatos, dos
lapsos de memória ou da frequente recorrência ao memorialístico, rompe com a noção
de tempo.
Anacrônicos, os romances contemporâneos passam a se apresentar como uma
espécie de grande coleção de imagens, como uma espécie de colagem fotográfica que
visa montar o mosaico dos “acontecimentos” de forma tão fragmentária quanto a
expressão da vida que se orienta cada vez mais pelo espaço, não podendo ser mensurada
pelo tempo. Essa lógica espacial tem sido reproduzida pelo contato direto com os meios
tecnológicos (a televisão, o rádio, a internet, o cinema, entre outros).
No romance intitulado Pelo fundo da agulha, que fecha a trilogia iniciada pelo
escritor Antonio Torres em Essa Terra, o protagonista começa a embalar a narrativa
através da imagem da mãe velhinha, enfiando a linha pelo fundo da agulha. As imagens
produzidas pelo romance parecem passar sempre pelo mesmo orifício. Pelo fundo da
agulha passam os fragmentos de vida e memórias narradas no romance, passam ainda o
fluxo intenso de citações literárias, músicas, filmes, filósofos, escritores e ditos
populares que permeiam o romance.
As três narrativas estão pautadas nas atuais condições de subjetivação do
espaço/tempo contemporâneo. Nos romances de Torres podemos perceber que a questão
da subjetividade perpassa tanto pelo “sujeito da escritura” quanto pelo “sujeito na
escritura”, como adverte-nos Nízia Villaça em texto intitulado “Novas subjetividades”.
O caráter autobiográfico das obras reflete a constituição do sujeito autoral no texto, sem
deixar de lado a questão do sujeito ficcional no texto, confirmando a perspectiva da obra
literária enquanto representação da comunicação artística entre os sujeitos no texto e os
sujeitos leitores, extra-textuais, como propõe Bakhtin em Marxismo e filosofia da
95

linguagem (1979, p. 109). Para a autora, as novas subjetividades são expressas nas obras
apontando-se o caráter paradoxal da cultura contemporânea. Se cada época corresponde
a uma representação do indivíduo, as obras contemporâneas instalariam o campo de
batalha entre os diferentes processos de construção do sujeito (VILLAÇA, 1996, p. 55).
Nesse sentido, verificamos que as obras literárias e fílmicas abordadas refletem o
espaço/tempo de cidades que possuem suas dimensões físicas e informacionais. E é a
partir do contato entre as duas dimensões que são produzidas as subjetividades. Nos
depoimentos do documentário 2000 Nordestes, percebemos o fluxo de informações que
percorre os ambientes visitados. De acordo com as imagens projetadas em diversas
localidades do Nordeste, podemos perceber que “a cultura da mobilidade não é neutra
nem natural” (LEMOS, p.18).
Em ensaio intitulado “Cultura da mobilidade”, André Lemos, professor e
pesquisador em cibercultura, indica que

A mobilidade informacional-virtual tem impactos diretos sobre a mobilidade


física e sobre o lugar e o espaço onde opera e vice-versa. Não podemos
dissociar comunicação, mobilidade, espaço e lugar. A comunicação é uma
forma de “mover” informação de um lugar para outro, produzindo sentido,
subjetividade, espacializaçã (LEMOS, 2011, p.17).

Os depoimentos dos indígenas de Porto Seguro, na Bahia, diferem dos


depoimentos dos agricultores cearenses ou dos seguidores do Padre Cícero. A produção
subjetiva destes sujeitos está diretamente relacionada ao índice informacional que os
mesmo possuem. Os espaços são produzidos a partir das dimensões da mobilidade
assumida no local.
As obras literárias e fílmicas em questão vêm deslocar o caráter homogenizador
de configuração dos espaços nordestinos na cultura contemporânea. As subjetividades
nordestinas, seus sonhos e desejos, são construídos pelo acesso, ou melhor, a partir da
possibilidade de contato com o mass media, a internet, o rádio, o cinema, enfim pelas
produções da indústria cultural que chega aos indivíduos.
A relação entre os personagens delineados nas obras e o lugar que habitam
perpassa diretamente pela condição de mobilidade por eles assumida. Muitos ainda
estão inseridos no formato da mobilidade globalizada (relativa aos meios de transporte e
comunicação do século XX), outros no da virtualizada, com acesso a internet através de
dispositivos de conexão móvel e sem fio.
96

Em 2000 Nordestes, as diferenças são facilmente percebidas. Mapeamos sem


dificuldades os depoentes que estão inseridos nestes tipos de mobilidades, e verificamos
como a espacialização é construída em função dessa relação comunicacional. Nesse
sentido, concordamos com André Lemos, quando afirma que

No que se refere as mobilidades “globalizada” e “virtualizada”, a


possibilidade de movimentação pelas informações – seja através dos mass
media (tevê, rádio, imprensa) ou das novas mídias de função pós-massiva
(redes, computador, celular) – vem criando, como espacialização diferenciada
(construção social no espaço), novas territorializações e, consequentemente,
novos sentidos de lugar. A historia das mídias (e do desenvolvimento
tecnológico como um todo) apresenta processos de produção do espaço, de
subjetividade e de sociabilidade segundo o estado das artes, das técnicas e
das culturas de determinada formação histórica da mobilidade. (LEMOS,
2011, p19).

Se no início do século XX a mobilidade se deu a partir do desenvolvimento


tecnológico dos novos meios de transporte, hoje, os celulares com câmeras, note books
e demais aparatos são extremamente necessários para repensarmos que produto social
temos. Assim sendo, como definir quantos tipos de mobilidade insere-se no atual
contexto do ser nordestino? Como definir os espaços produzidos socialmente diante da
atual mobilidade e do produto cultural que o espaço-Nordeste reflete? Para a
subjetividade nômade nordestina, a busca não se faz mais apenas em prol do oásis, da
fonte de água, mas de espaços informacionais, pois os desejos são produzidos pela
cultura midiática.
Ao considerarmos as narrativas de Árido Movie, 2000 Nordestes e a trilogia
torriana pertencentes ao universo em que o espaço geográfico delineia os nordestes
apresentados como tela, como suporte de discursos e práticas que investem na defesa
dos movimentos, locações e espaços, podemos analisar e refletir sobre como estas obras
referem-se ao corpo.
Os corpos dos personagens e atores nos atualizam sobre as experiências no
espaço, no território, nos lugares, sendo necessário abordá-los em sua dimensão
performática, verificando a relação e o diálogo estabelecido com a esfera geográfica.
Para Bhabha, esse processo de atualização do espaço tem sido fruto da nossa atual
condição de mobilidade:

Encontramo-nos no momento de transição em que espaço e tempo se cruzam


para produzir conformações complexas de diferença e identidade, passado e
presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. A outra face disso é um
97

senso de desorientação, um distúrbio de direção; um movimento exploratório


incessante (BHABHA, 1994, p.1).

As imagens do documentário vão nos informando sobre as direções e


movimentos que são tomados pelos nordestinos na transição do século XX para o século
XXI, assim como os desejos de mobilidade construídos através do contato com a
“realidade” transmitida pelas antenas parabólicas e pelos aparelhos televisivos. As
dimensões físicas e informacionais criadas pela dinâmica tensa da mobilidade entre o
que está próximo e o que está distante, entre os espaços públicos e privados, têm
produzido a política, a cultura, a sociabilidade e a subjetividade contemporânea.

Figura 30: Imagens de depoentes nordestinos que sonham em ser famosos, dançar na televisão, ser
cantor(a).

As dimensões da mobilidade apresentadas pelas obras fílmicas e literárias estão


diretamente relacionadas com os variados aspectos do cotidiano, com a vida social, a
relação dos indivíduos com as novas mídias e o próprio sentido de lugar.
As diferenças entre as obras em questão e aqueles que representavam o sertão e a
vida do nordestino no modernismo são marcadas pela facilidade do ir e vir, assim como
pela presença do fluxo de informações, que chegam e saem dos atuais espaços
nordestinos apresentadas nas obras da atualidade.
Como sugeriu André Lemos, o principal responsável por esse caráter dinâmico da
mobilidade é a interação direta que a comunicação estabelece com as relações sociais. O
autor aponta três dimensões para essa mobilidade: 1. a do pensamento, onde aconteceria
o embate da desterritorialização; 2. a física, que envolve a condição existencial do corpo
e dos objetos e 3. A informacional-virtual, em que as informações encarregam-se da
ampliação da mobilidade, potencializando as dimensões físicas e informacionais. Lemos
98

afirma que “Não podemos dissociar comunicação, mobilidade, espaço e lugar. A


comunicação é uma forma de ‘mover’ informação de um lugar para outro, produzindo
sentido, subjetividade, espacialização” (LEMOS, 2009, p.29).
Mas é perceptível que essa mobilidade está diretamente associada às classes
sociais. Nas imagens da narrativa fílmica de Árido Movie vemos que as pessoas que
possuem maior mobilidade física também são aquelas que possuem maior mobilidade
informacional, assumindo formas de poder, controle e vigilância dentro da sociedade da
pequena cidade ficcional de Rocha.
A mãe do protagonista Jonas (Renata Sorrah), na ocasião da chegada do filho em
Recife para seguir o enterro do pai, lembra ao filho que ele não deve esquecer que é
uma personalidade na pequena cidade de Rocha, e que todos os dias a avó, o pai, todos
os cidadãos daquela cidadezinha viam sua imagem pela tela de TV.

Figura 31: Conversa de Jonas com a mãe em Recife e no enterro do pai.

Mãe: Eu não sei o resto, mas Salustiano me disse que D. Carmen só sossegou
quando eu prometi que ia te convencer a ir no enterro de Lázaro. É até
engraçado isso, mas de um jeito ou de outro você é neto dela e apesar de você
ter partido há muito tempo é melhor você saber que você aparece quase todo
dia na televisão.
Jonas: Engraçado, sabe que eu nunca tinha pensado nisso assim? Que o meu
pai e a minha vó me viam todo dia.
Mãe: Televisão faz você virar um fantasma. Você tá o tempo todo em lugares
que você nem sabe. De qualquer forma é bom você lembrar que você é a
estrela de Rocha. O artista da cidade.
Jonas: Acho que eu vou querer uma dose de uísque sim.

A relação entre mobilidade e vida social encontra-se entrelaçada, e enquanto


produto cultural deve ser analisada como parte intrínseca do processo civilizatório. A
cultura da mobilidade tem sido responsável pelos fluxos migratórios da região Nordeste.
Esse processo, que não é novo, como mapeou Ely Souza Estrela em Os Sampauleiros:
cotidiano e representações, vem sendo transformado desde 1940, quando se sonhava
99

comemorar a chegada do trem, após anos de promessas que não se cumpriam, como
explicita a crônica publicada no jornal A Penna, citada pela autora no capítulo intitulado
“O cotidiano do deslocamento”:

Até as primeiras décadas do século xx, os trilhos da Central do Brasil


chegaram um pouco além da capital mineira, e os da Leste Brasileiro
chegaram à estação de Machado Portela, inaugurada por volta de 1920. A
lentidão na ligação ferroviária provocava desânimo nos filhos do alto sertão,
inspirando a crônica publicada no jornal A Penna (Zacharias, 5.12.1940).
Vejamos:
Na Pena li com prazê
Uma notiça agradáve
Dizeno que vamo tê
Um benifió notáve

É, Qui o progresso nos venha,


Cum elle agora, de verdade
Quem o progresso desdenha?
Elle é qual a claridade
Qui nos traz a liberdade

Paréce de grande alcance,


Pra nosso meio, o presente
Qui vão dá; e Qui avance
Nosso sertão e sua gente
Nossa estrada, para a frente

Induvido tom si verá


O grande mioramento
Qui nos prometem p’ra já;
Pois dêsna o meu nascimento,
Fazem tal prometimento...

E n’é d’hoje que nasci!


O meu pai já me falava
Nessa promessa. Vivi
Nessa esperança e pensava
Nesse trem qui não chegava...
Agora dizem que vae
De verdade, a bella impreza
Sê cumprida...e não me sahe
Desta cabeça, franqueza
A milagre das riquezas

Vou conhecer, minha gente,


Esse cavalo de ferro,
E espero, muito contente,
Ouvi por cá o seu berro...
E nessa crença mi encerro
(ESTRELA, 2003, pp. 85-86-87)

Em 1940, os sampauleiros comemoravam ansiosos o desenvolvimento das


ferrovias e estações de trens, e ansiavam em conhecer o “cavalo de ferro”; hoje
poderíamos afirmar que os sampauleiros comemoram as promoções das agências
100

nacionais de transportes aéreos e a possibilidade de voar em seus “pássaros de ferro”.


Para visitar ou se fazer presente nas casas dos parentes utilizam as redes sociais,
computadores, tablets, celulares e toda parafernália eletrônica que permita minimizar a
sensação de distanciamento. Essa mudança é representada em fragmento textual do
romance O cachorro e o lobo (1997):

Agora sou eu o que volta, sem festa nem foguetório. Pelo tempo que estou à
janela e pela rapidez com que as notícias correm neste lugar, já era para ter
sido notado. Mas ninguém apareceu ainda para os rapapés de antigamente.
Vai ver o ir e vir se tornou tão banal que já não impressiona a pessoa alguma.
São Paulo virou um caminho de roça. O mundo ficou pequeno. Viajar já não
é mais uma aventura emocionante (TORRES, 1997, p. 69).

No passado, a intensificação dos fluxos foi ampliada pelo desenvolvimento


tecnológico dos meios de transportes e pelo aumento da mão-de-obra nos grandes
centros urbanos; hoje os fluxos são ampliados pela disponibilidade e acessibilidade às
novas tecnologias.
O nomadismo, enquanto processo sempre instituiu meios de territorialização. A
diferença hoje é que na prática do nomadismo virtual buscamos os territórios
informacionais. Nômades de diferentes regiões deslocam-se em busca de um local com
antenas para se informar sobre os acontecimentos regionais, nacionais, mundiais,
através das reportagens transmitidas pelos telejornais.
Em Árido Movie, nas imagens da pequena cidade de Rocha, vemos a quantidade
de antenas parabólicas que ocupam os telhados das casas daquela cidadezinha
interiorana, esquecida no meio do sertão.

Figura 32: Antenas parabólicas sob o sol do sertão de Rocha.


101

Ainda que a mobilidade encontre-se ampliada pela evolução tecnológica, as


imagens fílmicas indicam que elas não substituem as experiências fundadas em lugares.
Os indivíduos não se distanciam nem perdem a dimensão espacial e o seu sentido de
localidade. Como afirma André Lemos, as mídias não tiram o nosso sentido de lugar,
mas o amplia: “mídias produzem desde sempre espacialização e subjetividade, pela
escrita, depois os jornais (...) e hoje a internet e as mídias digitais” (LEMOS, 2009, p.
31). O autor destaca o fato de a mobilidade não ser inimiga do local, mas nos permitir
estreitar laços e fazer do espaço informacional um aliado para a construção das nossas
subjetividades.
Um outro aspecto relevante dessa mobilidade é que ela aparece em espaços
delineados pela turbulência inerente aos fluxos, à flexibilidade e à incerteza.
O termo turbulência tem sido comumente encontrado nos discursos pertencentes
às teorias sociais, políticas e culturais contemporâneas, como indicou Deleuze e
Guattari. Através da descrição da mobilidade, estes autores afirmam que ela não ocorre
de maneira uniforme num espaço contínuo:

(...) o modelo hidráulico da ciência nômade e da máquina de guerra consiste


em se expandir por turbulência num espaço liso, em produzir um movimento
que tome o espaço e afete simultaneamente todos os seus pontos, em vez de
ser tomado por ele como no movimento local, que vai de tal ponto a tal outro
(Deleuze&Guattari, 1997, pp.27-28).

É o que tem acontecido entre os espaços nômades localizados no documentário


2000 Nordestes. A incerteza dos depoentes é percebida nas diversas falas e a condição
de mobilidade passa a ser uma questão que deve ser observada levando-se em
consideração a instabilidade e a não-fixidez dos sujeitos aos espaços de origem..
A mobilidade visualizada em 2000 Nordestes indica um frágil entrelaçamento
entre movimento, representações e práticas, além de ser definido também por
perspectivas geográficas e históricas identificáveis.
Os territórios ocupados pelos nordestinos que migraram da região nordeste para o
sudeste, por exemplo, refletem uma movimentação não estruturada em relação aos
lugares ocupados nos centros urbanos. Os primeiros depoentes de 2000 Nordestes dão
os indícios de como migraram e como foi acontecendo a ocupação das margens da
cidade carioca pelos seus conterrâneos e demais nordestinos.
102

A figura 33, apresentada a seguir, traz uma dessas imagens. Na transcrição da fala
do depoente, percebemos a condição do lugar em que começou a construir a vida ao
chegar à capital do Rio de Janeiro.

Figura 33: Depoente migrante do Ceará para o Rio de Janeiro em 1969.

Depoente: Eu cheguei aqui em 69, isso aqui era um lugar desabitado, só


tinha umas barraquinhas aí de madeira e o resto era capim e água, mais
nada(...)
Depoente: O nordeste eu não sei como é que está, lá não sei como é que tá, lá
não sei se tá chovendo.
Diretor: Nunca mais voltou...
Depoente: Nunca mais fui lá. No Ceará mesmo eu fui lá em 87, minha mãe
faleceu aqui e removeu pra fazer a sepultura lá. De lá pra cá não viajei mais,
não sei como tá o nordeste esse período. Ontem eu soube que tava chovendo.

Compreender essa noção de mobilidade é também buscar entender como a


política da mobilidade envolve a existência de diferentes tipos de condição de
deslocamento ou movimento. Não basta identificarmos que vivemos em um mundo
móvel, mas devemos questionar o tipo de mobilidade que nos afeta. Quem joga com
essa mobilidade? De que forma? Como essa movimentação criada pela logística
televisiva está ligada à formação subjetiva dos indivíduos? Quem se move e por que se
move? As razões, rotas, destinos, direções e pontos de partida são aspectos que
perpassam por um mundo de fluxos e instabilidades e que inevitavelmente se insere no
espaço de turbulência contemporâneo.
No documentário percebemos as instabilidades vividas no espaço-Nordeste, ao
mesmo tempo em que podemos interligá-los aos sistemas políticos e econômicos que
historicamente marcaram a região. A forma como ela foi tratada pela política nacional,
assim como os resíduos e memória do passado, têm afetado seu presente e seu futuro.
103

3. O LASTRO AUTOBIOGRÁFICO NA LITERATURA E


NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
104

“O sertão se sente, é dentro da gente”.


Guimarães Rosa
105

3.1. A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA: O SUJEITO, A MÁSCARA E A


ASSINATURA.

A história, mãe da verdade, a ideia é assombrosa.


Ménard, contemporâneo de William James, não define
a história como indagação da realidade, mas como sua
origem. A verdade histórica, para ele, não é o que
aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As
cláusulas finais exemplo e aviso do presente,
advertência do futuro são descaradamente
pragmáticas.13
Jorge Luis Borges

Em Pierre Ménard, o autor de Quixote, Borges além de propor a abertura para a


reflexão sobre a noção de autoria, indica-nos ainda o caráter singular existente em cada
sujeito a partir das experiências vividas. Para Ménard, reescrever palavra por palavra o
Dom Quixote era tarefa extremamente difícil, pois, ao contrário de Cervantes, teria que
se livrar de todas as outras possibilidades de escrita. Por isso a história, ou melhor, a
verdade histórica para Ménard não poderia se resumir à descrição do fato acontecido,
mas incorporaria o julgamento que fizeram dele.
Nas narrativas descritas e encenadas nas obras do escritor Antônio Torres e no
filme do diretor Lírio Ferreira, podemos perceber como estes autores deixam o lugar em
aberto para se repensar uma série de “verdades” históricas produzidas pela literatura e
pela história oficial. As narrativas descritas e encenadas nas obras em questão não se
ocupam apenas com a atividade de reconstrução dos fatos, mas tentam fazer com que os
leitores/espectadores pensem sobre os fatos que foram “mitologicamente” disseminados
no imaginário social brasileiro em relação à narratividade do espaço-Nordeste.
Na construção dessas narrativas, a voz autoral, a máscara e a assinatura entram
em jogo constantemente, demarcando os indícios autoficcionais que vão sendo
visibilizados no corpo do texto romanesco e nas projeções das imagens
cinematográficas.
Antonio Torres e Lírio Ferreira, ambos nordestinos, conhecedores da realidade
local, manifestam em diversas entrevistas concedidas à mídia brasileira, que as suas
obras, ao tratarem desses espaços, acabam promovendo um retorno ao passado e ao

13
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2001. P.62
106

mesmo tempo trazem uma série de estranhamentos que também compõem essas obras.
Para estes autores, o presente das narrativas está impregnado de estranhamentos em
relação a ele.
Sobre essa relação entre os acontecimentos do passado e a construção do
presente, a escritora Beatriz Sarlo (2007) afirma que:

As “visões de passado” (segundo a fórmula de Benveniste) são construções.


Justamente porque o tempo do passado não pode ser eliminado, e é um
perseguidor que escraviza ou liberta, sua irrupção no presente é
compreensível na medida em que seja organizado por procedimentos da
narrativa, e, através deles, por uma ideologia que evidencie um continuum
significativo e interpretável do tempo (SARLO, 2007, p.12).

Como já discutimos anteriormente, na trilogia torriana e em Árido Movie, o


retorno ao passado, experimentado na construção das narrativas, não segue a lógica
tradicionalista de representação de um Nordeste configurado pela aridez da região seca,
mas propõe o deslocamento do tema, antes concentrado na questão territorial, para
colocar os sujeitos em evidência. Nesse sentido, as condições existenciais atravessam
também toda ideologia contemporânea ordenada pelo poder material ou simbólico.
Em Essa Terra, romance publicado em 1976 que inaugurou a trilogia de Torres,
tem-se o exemplo desse deslocamento temático ao vermos ser retratado o impacto da
cidade paulistana sobre o nordestino que migra por identificação com o progresso
tecnológico representado pela metrópole.
Ao retratar esses aspectos em sua obra, o autor, “antenado” com as questões do
seu tempo, nos deixa margem para refletirmos sobre algumas questões despontadas
pelos estudos culturais. Diante da análise da obra percebemos que a problemática é
desviada para as questões identitárias, dialogando com as teorias acadêmicas
desenvolvidas nas décadas de 1970 e 1980, a partir dos avanços dos Estudos Culturais.
Nesse período a representação da narrativa voltava-se para os discursos em
primeira pessoa: os relatos, as biografias, os diários, as autobiografias, os discursos das
minorias. As lembranças, a memória e todo método utilizado para representar a
experiência do passado sofreu, como pontua Sarlo (2007), um reordenamento
ideológico a partir do desenvolvimento dos Estudos Culturais. A autora, aludindo ao
pioneirismo de Richard Hoggart, com a publicação do livro The uses of literacy, destaca
107

que, a partir dessa publicação, as histórias de novos sujeitos passam a demandar novas
exigências e novos métodos que se debrucem sobre os “discursos de memória”.
O reflexo do conjunto de inovações dessa tendência acadêmica que se propôs a
valorizar a textualidade e a rememoração das experiências de vida constitui o que
Beatriz Sarlo denomina como “guinada subjetiva”.
Nessa guinada é preciso destacar a importância que a memória assume na
representação das narrativas, sem deixar escapar o valor que deve ser atribuído ao
pensamento, assim como a noção de que toda narração está fundada numa
temporalidade:

A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real


do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas
tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo
da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a
transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a
experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer, mas a de sua
lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada
repetição e a cada variante torna a se atualizar. (SARLO, 2007, p. 24-25)

Na narrativa cinematográfica de Árido Movie, temos uma demonstração dessa


atualização realizada pela repetição do mito conselheirista que funda a temporalidade no
presente, mas para isso recorrendo à experiência do passado. Meu Velho, personagem
interpretado por José Celso Martinez, é o detentor das águas e reconhecido pela
comunidade como o profeta que guiará os seus seguidores da pequena cidade do Rocha
para “a lua de íon”.
Como podemos perceber, determinadas lembranças estão intimamente ligadas à
formação subjetiva dos indivíduos. Os aspectos culturais, as histórias e cantigas
aprendidas na infância fazem parte desse sujeito que narra a cena e une corpo e voz às
experiências do passado, mesmo que esse passado muitas vezes represente diretamente
as experiências vividas pelo outro.
A criação do processo narrativo não pode estar desvinculada da apropriação
discursiva que envolve os mitos, as crenças, as histórias produzidas por outros
escritores, cineastas, poetas, críticos e historiadores. Somos quase todos herdeiros da
poética borgiana que prima pelo espaço da escrita no qual a alteridade se impõe ao
sujeito na mesma medida em que a condição autoral anseia pela apropriação do outro.
Se Pierre Ménard (autor ficcional) se apropria do texto de Miguel de Cervantes, a
108

proposta borgiana é que o faça em diferença, já que a memória de Ménard, e


consequentemente a sua imaginação, não coincidirá jamais com a de Miguel de
Cervantes.
Borges, ao transformar em suas obras os conceitos tradicionais em imagens
ativadas para serem usadas como operadores de leitura promove a abertura
interpretativa desses conceitos: 1. em Funes, a ativação do conceito de memória e a
relação direta entre ela e o esquecimento; 2. no conto A memória de Shakespeare, a
descrição de como a memória do autor inglês foi dada de presente a um escritor
(narrador) por um desconhecido.
A metáfora da memória alheia, “permitiria definir a tradição poética e a herança
cultural da literatura contemporânea?” (SOUZA, 2011, p.92) pergunta Eneida Maria de
Souza em artigo intitulado “A memória de Borges”. Considerando a valoração
associada à obra de Borges, a autora afirma que:

(...) O consagrado valor atribuído à sua obra se resumiria no desejo


deliberado de se apropriar da cultura alheia como contraponto à afirmação
de autoria e originalidade (...). A extrema visibilidade que a assinatura
Borges adquire ao longo do tempo se pulveriza no gesto contrário, o da
invisibilidade. (SOUZA, 2011, p.92-93)

O jogo entre o visível e o invisível na constituição autoral marca a criação da


narrativa que constrói o seu discurso considerando as lacunas e os espaços que podem
ser preenchidos pelo diálogo produzido a partir do pensamento dos leitores/espectadores
da obra assinada. As máscaras utilizadas pelo sujeito/autor não destitui o seu caráter
autobiográfico, muitas vezes associado de forma direta à construção da história
ficcional. Beatriz Sarlo (2007), utilizando a conceituação de Paul de Man para
autobiografia (a autorreferência do eu), define-a como:

(...) o tropo que outorga a palavra a um morto, um ausente, um objeto


inanimado, um animal, um avatar da natureza. Nada resta da autenticidade de
uma experiência posta em relato, já que a prosopopeia é um artifício retórico,
inscrito na ordem dos procedimentos e das formas do discurso, em que a voz
mascarada pode desempenhar qualquer papel: avalista, conselheiro (Man
enumera). A voz da autobiografia é a de um tropo que faz as vezes de sujeito
daquilo que narra, mas sem poder garantir a identidade entre sujeito e tropo.
(SARLO, 2007, p. 31)
109

O caráter autobiográfico atribuído à trilogia de Antonio Torres e ao filme do


diretor Lírio Ferreira tem considerado o aspecto de que contar uma história, ainda que
ela represente uma experiência própria, pode não abarcar os questionamentos que seus
objetos encerram pela condição de familiaridade que os encobre. As experiências
narradas podem representar as subjetividades dos próprios autores, de pessoas
conhecidas, de anônimos, de personagens históricos ou ficcionais. Há no constructo
narrativo do escritor Antônio Torres e do cineasta Lírio Ferreira, o amplo uso de
metáforas, com o intuito de permitir ao leitor o próprio “exercício do pensamento”
através da imaginação. Como a narração vai se construindo a partir de lembranças e
memórias, é comum verificarmos nos textos a marca do jogo entre o visível e invisível
na construção autoral:

E assim se passaram vinte anos, pensarei, ao chegar lá. Assim se passaram


vinte anos sem eu ver estes rostos, sem ouvir estas vozes, sem sentir o cheiro
do alecrim e das flores do mês de maio. Nem o das cambraias engomadas das
meninas cheirando a sabonete Eucalol, as que levavam flores para a igreja,
nas novenas do mês de maio. Assim se passaram vinte anos: sem eu queimar
a sola dos pés no tabuleiro, nem nos caminhos de massapé das baixadas. Sem
escorregar no tauá da ladeira da Tapera Velha, sem subir de joelhos em
penitência até o cruzeiro da piedade. Sem roubar goiaba em quintal alheio e
pedir perdão ao Cruzeiro dos Montes e à Virgem Mãe de Deus, Nossa
Senhora do Amparo, a nossa padroeira (TORRES, 1997, p.17).

O destaque dessas narrativas autobiográficas encontra-se na forma como o


narrador constrói o imaginário de “si mesmo como outro”. A identidade narrativa fluida,
de certa forma, nega o excesso de subjetivação e libera o sujeito-narrador para o
exercício da criatividade. As experiências apresentadas pelas obras em análise
possibilitam ao olhar de quem decifra o exercício tradutor, a partir da diluição da
concepção entre aquilo que é original, ou melhor, do que mais se assemelharia à vida
“real” do autor e do que se configuraria como autenticidade criativa – reflexo das
experiências vividas ou contadas por outros.
Há um investimento por parte destas narrativas em propor o desenvolvimento da
escrita que retorne à atividade tradutória. Esta atividade implica ainda na forte
interferência de uma releitura da tradição cultural, pois entre o exercício memorialístico
de “si mesmo” e da memória alheia vemos emergir a articulação de uma escrita pautada
na noção contemporânea de subjetividade, fundada na incompletude, na não
essencialidade e na suscetível autocriação do sujeito.
110

Na trilogia torriana e na narrativa fílmica de Árido Movie vemos a


ficcionalização da escrita de si e da escrita do outro sendo praticada com desenvoltura
pelo autor dos romances e pelo diretor do filme. Antonio Torres e Lírio Ferreira fazem
parte do grupo de criadores que situam seus discursos narrativos na interface entre real e
ficcional, mapeando a escrita de si no espaço virtual das narrativas contemporâneas,
marcadas diretamente pela presença autobiográfica.
Ao considerarmos essas obras como autobiográficas, aludimos aos aspectos
discutidos e apontados por Philippe Lejeune (1996) em relação à conceituação do
“espaço autobiográfico”, que para este teórico remete ao somatório de todas as
informações que giram ao redor da figura do autor, como as memórias, entrevistas,
biografias e tudo que dizem sobre suas próprias criações ficcionais.
Diana Klinger (2007), em Escritas de si, escritas do outro, destaca a grande
recorrência da escrita autobiográfica na narrativa contemporânea, citando as
considerações de teóricos como Ítalo Moriconi e Philippe Lejeune:

Ítalo Moriconi acredita que “o traço marcante na ficção mais recente é a


presença autobiográfica real do autor empírico em textos que por outro lado
são ficcionais “(2005), de maneira que se trata de discursos explicitamente
situados na interface entre real e ficcional.
Na definição de autobiografia de Philippe Lejeune (1996), o que diferencia
a ficção da autobiografia não é a relação que existe entre os acontecimentos
da vida e sua transcrição no texto, mas o pacto implícito ou explícito que o
autor estabelece com o leitor, através de vários indicadores presentes na
publicação do texto, que determina seu modo de leitura. Assim, a
consideração de um texto como autobiografia ou ficção é independente do
seu grau de elaboração estilística: ela depende de que o pacto estabelecido
seja “ficcional” ou “referencial” (KLINGER,2007, p.12).

Na trilogia torriana podemos verificar como os índices referenciais presentes nas


narrativas revelam os traços autobiográficos. O espaço ficcional escolhido para o
desenvolvimento da história remete ao povoado do Junco e à cidade de São Paulo,
espaços percorridos pelo autor ao longo da vida.
Antonio Torres nasce no Junco, povoado do interior da Bahia que pertencia à
cidade de Inhambupe, e depois de emancipado, o lugarejo recebe o nome de Sátiro Dias.
Em Essa terra (1976), O cachorro e o lobo (1997) e Pelo fundo da agulha (2006),
podemos observar esses espaços biográficos mapeados pelas lembranças do autor
vinculadas a uma escrita que evidencia: 1. A forma como a escrita ficcional reflete o
olhar de si e do outro; 2. O jogo das subjetividades colocadas em questão, marcando a
dupla inscrição das narrativas em estudo, a partir da construção da figura do “outro”
111

ligada constantemente à primeira pessoa do discurso, traçando uma discursividade que


passa a questionar a ideia de representação; 3. O pacto entre autor/leitor, que estabelece
a possibilidade de dissolução entre o “real” e o ficcional.
Na narrativa fílmica de Árido Movie, acompanhamos o retorno da personagem
principal à cidade de Rocha, no interior de Pernambuco, para o velório do pai que
acabara de falecer. O olhar de Jonas (Guilherme Weber), protagonista do filme, distorce
as cercas e a paisagem da aridez sertaneja da cidade de Rocha. A sua visão deforma o
real numa tentativa de (des)construção dos discursos engendrados ao longo do tempo
pela tradição cultural e pelas formas de representação do espaço e da subjetividade
sertaneja.
Jonas olha para dentro dele mesmo e não consegue estabelecer qualquer vínculo
de identificação com a cidade em que nasceu, assim como Nelo e Totonhim,
protagonistas dos romances Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha,
que não se sentem pertencente ao povoado do Junco, onde nasceram e cresceram os
personagens, nem à grande São Paulo.
Nos três casos, percebemos como o sentimento de desterritorialização habita o
interior dos protagonistas das narrativas fílmica e literárias, confirmando as possíveis
formas de classificação dos sistemas heterogêneos, sugeridas por Foucault, ao jogar
com o (re)conhecimento identitário do sujeito e ao problematizar o fato de que “se a
genealogia coloca, por sua vez, a questão do solo que nos viu nascer, da língua que
falamos ou das leis que nos regem, é para classificar os sistemas heterogêneos que, sob
a máscara de nosso eu, nos proíbem de toda identidade”. (FOUCAULT, 2002, p.35)
Discursos identitários, memórias e narrativas autobiográficas perfazem os
caminhos trilhados pela produção artística desses autores. Em entrevista sobre o seu
trabalho como cineasta, ao ser questionado sobre o fato do filme Árido Movie ter sido
considerado pela crítica de cinema um filme muito “aberto”, gerando polêmicas, o
diretor Lírio Ferreira explica suas escolhas, afirmando que

Ele é muito generoso, pois cada um sai com o seu final. É um filme pessoal,
tem memórias, ideias, neuroses. As pessoas não precisam decifrar seus
signos, mas podem senti-los. Ele é também uma homenagem à expressão
Árido movie, cunhada pelo jornalista Amin Stepple, uma espécie de guru da
minha geração. 14

14
Disponível em: <http://quadro-magico.blogspot.com.br/2009/08/com-sede-de-cinema-entrevista-com-
lirio.html> Acesso em 09 de abril de 2012. Lírio Ferreira explica o significado da expressão Árido Movie,
cunhada por um grupo de diretores e músicos ligados ao Movimento manguebeat em Recife no intuito de
afirmar as produções culturais realizadas na região naquele período.
112

Ao narrar a trajetória de Jonas, identificamos os espaços biográficos percorridos


também por esse diretor. O fio da memória reconstrói e recria os espaços da fictícia
cidade de Rocha. Jonas, figura representativa do espaço público midiático migra para as
“telas” da irrealidade árida do espaço nordestino marcado pelas experiências familiares
que lhe causam estranheza.
A representatividade dessas narrativas que tentam traduzir o “eu” e o “outro” num
espaço contemporâneo marcado pela espetacularização do sujeito tem se tornado uma
constância. As subjetividades das personagens pertencentes às narrativas em questão
são estruturadas em contato com o fluxo cultural midiático.
Vemos nas obras literárias e no filme em questão a presença da ficcionalidade que
expõe os paradoxos da identidade de quem narra. De acordo com o pesquisador
Denilson Lopes, “(...) o fato de muitos romances contemporâneos se voltarem sobre a
própria experiência do autor não parece destoar da sociedade marcada pelo falar de si,
pela espetacularização do sujeito” (LOPES apud KLINGER, 2007, p. 22). Nesse
sentido, a ficcionalização da escrita de si dialoga constantemente com outros textos da
cultura contemporânea, estabelecendo uma presença forte na nossa atual discursividade.

3.2. O PACTO REFERENCIAL NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES E EM


ÁRIDO MOVIE

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura


constituiu, um ‘corpo’. E é preciso compreender esse corpo
não como um corpo de doutrina, mas sim – segundo a
metáfora da digestão, tão frequentemente evocada – como
o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras,
delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita
transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue.
Michel Foucault

As narrativas dos romances da trilogia torriana e da ficção cinematográfica de


Árido Movie, independentemente das elaborações estilísticas adotadas para contar as
histórias, estabelecem além do pacto “ficcional”, o “referencial”. As narrativas em
113

questão trazem nitidamente o caráter (auto)referencial e reelaboram os espaços narrados


ao deslocarem a rigidez do binarismo entre o que se considerava fato e ficção.
A invasão das imagens produzidas pelo discurso memorialístico dos autores
evidencia a presença marcante da textualidade autobiográfica, definida por Philippe
Lejeune (1996) através da relação que os textos estabelecem com a referencialidade:

O “espaço autobiográfico” compreende o conjunto de todos os dados que


circulam ao redor da figura do autor: suas memórias e biografias, seus (auto)
retratos e suas declarações sobre sua própria obra ficcional. Se num sentido
geral, todo texto de ficção participa do espaço autobiográfico, as ficções em
primeira pessoa e com traços autobiográficos ocupam aí um lugar de
destaque: estabelecem o que Lejeune chama de “pactos indiretos”, pois o
autor, por meio de alguma indicação, os dá a ler indiretamente como
“fantasmas reveladores do indivíduo”. (KLINGER, 2007, p. 12-13)

Em Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, o apelido do


narrador personagem alude de forma direta ao nome do escritor Antônio Torres, pois
embora seja apresentado na trilogia pelo nome de Antão Filho, Totonhim é usualmente
o apelido dado a quem se chama Antônio. Outras referências são evidenciadas na
publicação da vigésima edição do romance Essa Terra (2005). Entre elas podemos citar
o comentário na contracapa, realizado pelo crítico e escritor Affonso Romano de
Sant’Anna, que tece a seguinte consideração: “Torres, como Graciliano, optou pelo
mais honesto; escrever sobre o seu Nordeste. E assim como Graciliano identificava as
personagens de Vidas Secas mostrando que saíram de sua família, Essa Terra tem no
lastro biográfico a sua força original”.
As marcas da referencialidade presentes nessas obras podem ser encontradas na
escrita do Posfácio da edição citada anteriormente, escrita pela professora de Literatura
Brasileira da Faculdade de Letras de Lisboa, Vânia Pinheiro Chaves, quando afirma que
o escritor Antônio Torres, ao abordar o universo contemporâneo do sertanejo, o faz
libertando-se “das restrições de uma poética uniformizadora” seguida no passado. Para
ela, o autor

(...) soube encontrar a sua própria estrada, o que é tanto mais evidente quanto
a recriação do universo sertanejo, tem nela muito de autobiográfico e
catártico.
Sob a forma de um relato fragmentário e memorialístico, Essa Terra,
apresenta a história trágica de uma família de origem rural: a do narrador-
personagem Totonhim. (p.176-177)
114

Seguindo a escrita do posfácio do romance Essa Terra, a professora Vânia


Pinheiro Chaves faz uma retomada da afirmação do romance enquanto autobiográfico e
catártico para justificar ao leitor a citação descrita na sua análise crítica da obra, a qual
ela expõe da seguinte forma:

Caberia finalmente explicar por que se afirmou anteriormente ter a recriação


do universo sertanejo em Essa Terra algo de autobiográfico e de catártico.
Esta ideia encontra fundamento em semelhanças importantes detectadas nas
biografias de Antônio Torres e do seu narrador, entre as quais se contam: a
família numerosa, o nascimento no Junco, os estudos ginasiais em povoações
vizinhas mais adiantadas, a emigração para o sul, a atividade literária. Ajuda
ainda a sustentá-lo o fato de aquela personagem ser designada apenas através
do apelido Totonhim, frequentemente dado a quem tem o nome de Antônio.
É, por sua vez, sintomático do aspecto catártico da obra – de fácil
comprovação na sua estrutura interna, pois o sentido de expiação constitui o
fulcro da relação do narrador com o seu relato – a presença obsessiva na
produção romanesca do escritor dos mesmos dramas e do mesmo universo.

Outro índice de referência à condição autobiográfica da trilogia torriana é


encontrado na análise crítica sobre o romance Essa Terra, resenhado pelo escritor e
professor Ítalo Moriconi na escrita do prefácio à edição de bolso (2008), onde o autor
afirma:

(...) Em última instância, a obra narra uma história de família, uma história de
família em situação extrema de diáspora, separação, distância, como
contingência mesmo da vida em diáspora. Uma história de família narrada
por quem ficou e recolhe os restos de tanta dificuldade de diálogo para talvez
no futuro construir sua própria narrativa – narrativa essa que Torres veio
efetivamente a colocar no papel em livros posteriores. Assim como em Joyce
e Virginia Wolf, a lição básica de Faulkner é um modernismo narrativo que
combina fragmentação a fluxo discursivo na tentativa de mimese dos
processos subjetivos internos. Em Antônio Torres, essa combinação
representa o esforço de recuperação dos laços afetivos, no contexto árido e
rascante de relações humanas irremediavelmente falhadas. Eu disse
irremediavelmente? Mas para Torres, existe um remédio para as falhas do
afeto: sua redenção pela palavra romanesca, que é também, sempre, palavra
poética.

Nessa edição de bolso temos a adição de uma pequena descrição biográfica do


autor, informando o lugar onde nasceu, a sua ida para São Paulo aos 20 anos, os
trabalhos desenvolvidos, os livros escritos e prêmios conquistados ao longo de sua
carreira. Em outras edições não verificamos a presença desse resumo biográfico, e
115

ficamos conhecendo o autor pela análise crítica presente no prefácio ou posfácio,


quando os mesmos fazem parte da edição da obra. Em O cachorro e o lobo e no
romance Pelo fundo da agulha, por exemplo, não há presença da descrição biográfica,
nem do prefácio ou posfácio, sendo as obras apresentadas por críticos, escritores ou
estudiosos da literatura.
Em O cachorro e o lobo, esse tipo de referência que foge à narrativa da obra é
trazido para o romance pelos escritos da tradutora e crítica literária Alice Raillard (Paris,
1997), em que ela declara: “Esse território da memória poderia ser a Itambira mineira de
Carlos Drummond de Andrade. Mas não, estamos realmente no interior da Bahia, na
Junco de Antônio Torres. Atualmente ‘uma cidadezinha quieta, silenciosa, enfeitada de
árvores e antenas parabólicas, à espera do fim do mundo’.
Embora todos esses índices referenciais tendam a apontar para a escrita de si
implícita na trilogia torriana, interessa-nos perceber como o falar de si reivindica o
deslocamento do olhar para narrar “o outro”. Interessa-nos analisar em que medida os
relatos de “outridades” são perceptíveis nas obras e em que medida são capazes de
traduzir as subjetividades representadas pelo ser nordestino ali construído. Este olhar se
quer antropologizante à medida que busca dialogar com duas tendências da narrativa
contemporânea chamadas de “retorno do autor” e de “virada etnográfica”. O que Diana
Klinger apresenta em Escritas de si, escritas do outro, como característica do corpus
que analisa e que pode ser apropriada nas obras aqui estudadas:

(...) a construção da figura do “outro” vinculada à presença marcante da


primeira pessoa, desconfia da transparência e da neutralidade, e assim
questiona a ideia de representação. O que resulta mais instigante é notar que
a própria antropologia tem desenvolvido uma crítica da representação
exatamente a partir do momento em que o antropólogo começou a olhar a si
próprio. Veremos que a combinação de auto-reflexão e olhar etnográfico
aproxima estes romances da antropologia pós-moderna, pois ela mesma
pressupõe um “retorno do autor”, no marco do discurso não ficcional.
Deixando de lado qualquer pretensão de objetividade e de neutralidade
“científicas”, os textos da antropologia pós-moderna narram experiências
subjetivas de choque cultural. (...) a antropologia, ao mesmo tempo que se
transformou numa “língua franca” transversal aos diferentes campos das
humanidades e da teoria atual, sofreu ela mesma uma virada, ao colocar a
questão da escrita e do sujeito, redefinindo assim as polaridades sujeito-
objeto. (KLINGER, 2007, p.15)
116

Na complexidade da dupla inscrição das narrativas torrianas em questão,


buscaremos analisar no próximo subcapítulo esses espaços da memória e a relação
direta proposta pela escrita textual e o sujeito da escrita, que ora se inscreve no texto.

3.3 NA TEIA DA AUTOBIOGRAFIA, A FICÇÃO

Como gênero biográfico não canônico, a entrevista funda um retrato do sujeito


que ultrapassa a própria percepção de si mesmo. Na esteira dos estudos desenvolvidos
por Philippe Lejeune, Leonor Arfuch e Diana Klinger, analisaremos como a
discursividade deste gênero traduz para os “outros” uma experiência vivida que pode
servir de espelho para o entrevistador ou leitor/espectador.
A análise das obras do escritor Antônio Torres e do cineasta Lírio Ferreira
realizada aqui, problematiza o caráter autobiográfico que engendram; assim como o alto
índice subjetivo da nordestinidade afirmada por estes indivíduos em entrevistas
disponibilizadas para a mídia eletrônica.
O interesse pelo estudo da autoficção, da autobiografia e da entrevista, enquanto
gêneros biográficos, é justificado por acreditarmos que a escrita das experiências de
vida tem contribuído para a ampliação da discussão em torno dos sentidos e significados
que essas narrativas representam para a sociedade. O uso das entrevistas dos autores
como material biográfico visa entender a forma como as suas subjetividades estão
paradoxalmente manifestas na composição das obras em estudo; e, por conseguinte,
como podem auxiliar na percepção da maneira que os mesmos elegeram para tecer o
imaginário nordestino que povoa os espaços representados pelas suas obras. O lugar da
entrevista, como sugere Rachel Esteves Lima, pode ser visto ainda como

(...) um lugar para se questionar as visões dicotômicas que opõem


subjetividade e objetividade, história privada e pública, memória individual e
coletiva etc., politizando os espaços narrativos através dos quais se processa a
construção e a reconstrução das identidades (LIMA IN SOUZA, 2011, p.40).

Interessa-nos perceber como o falar de si reivindica o deslocamento do olhar para


narrar “o outro”. Interessa-nos analisar em que medida os relatos de “outridades” são
perceptíveis nas obras e como são capazes de traduzir as subjetividades representadas
117

pelo ser nordestino ali construído. Este olhar que se quer antropologizante, à medida
que busca dialogar com as duas tendências das narrativas contemporâneas chamadas de
“retorno do autor” e de “virada etnográfica”, insere-se na complexidade da dupla
inscrição das narrativas em questão, para tentar avaliar a forma como esses territórios da
memória estabelecem uma relação direta a partir das considerações encontradas através
da escrita textual e do sujeito da escrita, que ora se inscreve no texto. Como destacou
Arfuch em seu livro O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea,

Como gênero biográfico, mesmo não sendo considerada habitualmente entre


os “canônicos”, que apresentam vidas diversamente exemplificadoras, por
excelência ou defeito, a entrevista é também de educação, aspecto modélico
por antonomásia. O “retrato” que a entrevista brinda irá, então, para além de
si mesmo, dos detalhes administrativos e identificatórios, em direção a uma
conclusão suscetível de ser apropriada em termos de aprendizagem. Falando
da vida ou mostrando-se viver, o entrevistado, no jogo dialético com seu
entrevistador, contribuirá sempre, mesmo sem se propor, para o “acervo”
comum (ARFUCH, 2010, p.153).

É esse acervo que pretendemos desvendar ao analisar algumas entrevistas do


escritor Antônio Torres e do cineasta Lírio Ferreira, todas acessadas através da mídia
eletrônica e disponibilizadas integralmente nos anexos deste trabalho.
Numa tentativa de mapeamento do caráter autobiográfico das obras a partir das
entrevistas concedidas pelos autores, faremos a análise de trechos de algumas delas
concedidas pelo escritor Antônio Torres e em seguida, a mesma atividade será realizada
para as entrevistas concedidas pelo cineasta Lírio Ferreira.
Em entrevista intitulada ‘A seca não expulsa, é a civilização que atrai’, concedida
ao jornalista Rogério Assis, do Folha Imagem (1998)15, na ocasião de uma visita
realizada pelo autor à cidade natal de Sátiro Dias, podemos destacar algumas passagens
instigantes da fala do autor, quando questionado pelo entrevistador sobre as mudanças
percebidas em relação ao espaço e ao tempo vividos na cidade do Junco e a atual Sátiro
Dias:

Folha - Era a seca que expulsava os baianos do sertão?


Torres - É. As secas eram até menos frequentes que hoje, mas eram bem
piores. Lembro de uma, em 1950, em que a gente tinha que andar muito para
achar água. O gado morria na nossa frente. Eu via os bois subindo as

15
Ver anexo I
118

encostas, atrás de um filetinho de verde, um mínimo de vegetação. Mas já


estavam fracos demais, despencavam da ribanceira e quebravam o pescoço.
Muito triste.
Hoje, se a seca é brava, é possível conseguir ajuda, é mais fácil. Ela deixou
de expulsar as pessoas. Em três horas de carro, a gente chega em Salvador.
Antes era a pé ou a cavalo. Saía daqui, dormia em Inhambupe. Esperava uma
carona para Alagoinhas e lá tomava um trem para Salvador. Depois pegava
outro trem, que sempre descarrilava em Monte Azul, Minas Gerais.
Demorávamos sete dias para chegar a São Paulo.

Num primeiro momento, a fala do escritor Antônio Torres parece convergir para a
formulação da hipótese de que a seca era responsável pela saída das pessoas do Junco
em direção às grandes cidades. Mas logo em seguida, ao ser questionado sobre o motivo
de sua própria saída do Junco, o autor deixa a entrever que o êxodo das pessoas ocorria
menos pelo motivo da seca do que pelo deslumbramento causado a partir do contato
com as evoluções tecnológicas que chegavam à cidade do Junco e atiçavam o desejo das
pessoas do povoado:

Folha - Quando o senhor saiu, estava fugindo da seca?


Torres - No meu caso, eu saí porque queria estudar. Mas na minha cabeça, a
busca pelo trabalho fora daqui começa quando chega o primeiro caminhão,
no início dos anos 50. Aquele cheiro de combustível embriagou a gente.
Mexeu com a cabeça. Quando começam a chegar os caminhoneiros, os
rapazes de fora, eles aparecem vestidos de outro jeito, falando gírias
desconhecidas. As meninas ficavam loucas, e a gente queria sair para voltar e
ser igual a eles.

Esta justificativa para o deslocamento migratório da região Nordeste para São


Paulo é nitidamente visualizada na narrativa romanesca de Essa Terra. Quando
Totonhim descreve o motivo da partida de Nelo em direção à cidade grande, vemos que
o irmão sonhava em falar e se vestir como os homens do banco que chegavam à cidade
e deixavam as meninas sonhando com a volta deles. Na sequência da entrevista Antônio
Torres também é questionado sobre o processo de criação de Essa Terra:

Folha - Como foi o processo de criação de "Essa Terra"?


Torres - Em 73, um primo contou que um parente nosso, depois do ir e vir de
São Paulo, tinha se enforcado na armação de uma rede. E que outro primo viu
o morto e foi dar um tapa no rosto dele, achando que estava dormindo. E o
rosto pendeu para o outro lado. Essa cena está no livro. Mas quando vim para
cá, ninguém queria me contar. Só diziam para eu esquecer o assunto.
Aconteceu que, do fracasso do repórter, nasceu o ficcionista. Por que ele se
matou daquela forma tão horrível? Ele trocou um lugar pelo outro, não
119

conquistou o segundo e perdeu o primeiro. Deixou um bilhete, pedindo para


não acusar o dono da casa e pedindo que o Nenê Vieira providenciasse o
enterro dele. Depois o dono da casa se matou também. Fiz até psicanálise
nessa época.

É nesse momento que percebemos o índice mais elevado da presença da


autoficção na criação narrativa deste autor. Nesse contexto, somos levados a dialogar
com as considerações tecidas por Klinger, quando compreende

(...) a autoficção como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção


de si tem como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e sim o
autor como personagem construído discursivamente. Personagem que se
exibe “ao vivo” no momento mesmo de construção do discurso, ao mesmo
tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma crítica
perante os seus modos de representação. (KLINGER, 2007, p.62)

Em entrevista publicada pelo jornal A Tarde, no lançamento da edição


comemorativa dos vinte e cinco anos do romance Essa Terra, o jornalista e também
escritor Carlos Ribeiro dialoga com o escritor Antônio Torres sobre a criação dos seus
personagens e a sua própria condição de retirante, além de abordar a perspectiva do
tratamento dado pelo autor à forma de representar o sertão e o sujeito que o habita.

CR: Você se considera, como os personagens do seu livro, um retirante?


AT: A minha trajetória pessoal de retirante plasmou meu próprio texto,
minha escrita. O fato de ter sido arrancado da minha terra foi fundamental na
construção do meu imaginário e isso reflete no meu texto. (...)

É esse o pacto ficcional assumido pelo autor do romance Essa Terra. Da


experiência dos acontecimentos vividos surge a narrativa. As subjetividades vão se
intercruzando na construção do espaço autobiográfico e sendo representadas de forma
crítica diante dos aspectos sociais abordados pela narrativa construída. Essa condição
fica mais evidenciada na finalização da entrevista,

Folha - "Essa Terra" se passa nessa cidade há mais de 20 anos. Os


personagens ainda estão aqui?
Torres - Acho que não. O Brasil e essa terra mudaram muito. Em 1970,
quando eu vinha aqui, as pessoas me perguntavam: "Meu filho, você é aquele
que mora naquelas terras tão longe?".
Agora ninguém mais me pergunta isso. A Embratel e o asfalto encurtaram
essa distância. Eles não são mais os personagens de Essa Terra. Eles são os
personagens de O cachorro e o lobo, que eu lancei no ano passado. Puxa,
120

meu avô morreu em 77 sem ter visto uma televisão ou um telefone!


Conheceu só o correio e o rádio. Hoje estamos aqui na casa dele e tem TV,
videocassete, parabólica, som hi-fi, CDs do Sepultura. É um novo povo.

A não-identificação dos personagens do romance com as pessoas que habitam em


1998 a cidade de Sátiro Dias - Bahia, apontada pelo escritor, revela o caráter reflexivo e
a intencionalidade autoral voltada para as diversas condições da forma subjetiva na
contemporaneidade.
O escritor Antônio Torres, ao distanciar os atuais moradores de Sátiro Dias do
contexto de formação dos personagens de Essa Terra e aproximá-los dos personagens
do romance O cachorro e o lobo (1997), considera a relação espaço-temporal já referida
neste trabalho em subcapítulo anterior, como uma relação que veicula as subjetividades
ao espaço nordestino mediado pelo fácil acesso às novas tecnologias.
Por ocasião do lançamento do romance O cachorro e o lobo, em 1997, Torres
concede entrevista à jornalista Patrícia Moreira, para o suplemento do Caderno 2 do
Jornal A Tarde, em Salvador-BA. Dela, destacamos um trecho extremamente
significativo por envolver reflexivamente o posicionamento do autor em relação à forma
como o mesmo encara a relação entre escritor-personagem:

PM – Até que ponto você, enquanto autor experimenta o envolvimento


com seus personagens?
AT – Uma certa vez, um estudante de Letras me disse uma coisa fantástica:
que eu escrevia uma espécie de autobiografia abstrata. Meus livros não são
autobiográficos, se baseiam nas minhas referências, mas tudo acaba virando
ficção. Sou ficcionista, tudo passa pela estratégia do romancista, O cachorro
e o lobo foi escrito em primeira pessoa, uma forma de me colar ao
personagem como se fôssemos uma mesma coisa. Tento quebrar o
distanciamento entre o autor e personagem, o que também, permite ao leitor
se colar à história.

Esse conflito em torno do gênero literário, se ficção ou autobiografia, discutido


anteriormente quando fizemos alusão ao pacto referencial nas narrativas desse escritor,
é levantado por ele, que entra em contradição quando afirma que os seus livros não são
autobiográficos e logo em seguida diz que eles apenas se baseiam em suas próprias
referências, condicionando o caráter autobiográfico de sua obra, se considerarmos a
noção de pacto autobiográfico definida por Lejeune (1996): “... a consideração de um
texto como autobiografia ou ficção é independente do seu grau de elaboração estilística:
ela depende de que o pacto estabelecido seja ‘ficcional’ ou ‘referencial’”. (KLINGER,
2007, p.12). Como o próprio autor sugere, seus romances incorporam muitos elementos
121

que investem numa leitura textual a partir da referencialidade disposta e reconhecida na


narrativa literária, o que nos leva a considerar que os índices desses elementos textuais
apontam para a escrita autobiográfica.
Essa relação de referencialidade e a questão espaço-temporal da escrita do
romance também é considerada em entrevista concedida ao CLISERTÃO16, quando
Antônio Torres é questionado sobre a forma como o sertão representado nos seus
romances vai mudando ao longo do tempo, modernizando-se e aproximando-se do
progresso. Torres afirma que recebe informações sobre a sua terra natal, sobre o
aumento da violência e outros dramas que assolam o lugarejo.

Antônio Torres: Frequentemente recebo notícias do sertão em que nasci,


dando conta da realidade de violência que o assalta, deixando-o em pânico. O
que me leva a pensar que o sertão que migrou acaba retornando carregado
dos estereótipos (urbanos) da modernidade, sendo o mais notório deles o do
tráfico de drogas. No quadro atual, o sertão mítico, ao que me parece, cede o
seu lugar de referência a uma cultura de massa imposta pela lógica do
consumo – o que afinal está por trás dos índices de violência que
conhecemos. A minha sensação é que o mundo está todo igual – no que tem
de pior.

A análise descrita por Antônio Torres sobre a atual condição do sertão nordestino
coincide com as imagens projetadas pela filmografia do diretor Lírio Ferreira. Em Árido
Movie, as cenas de violência apresentadas na pequena cidade de Rocha são provocadas
por aqueles que comandam as áreas de latifúndios de plantação de maconha e
consequentemente, o tráfico da droga na região.
Se é perceptível a presença do pacto referencial, matizado pela reelaboração
imaginária dos fatos, nas narrativas literárias em questão, poderíamos afirmar que o
mesmo acontece no filme de Lírio Ferreira. Em entrevista intitulada “Por trás do seco,
tem o mar” realizada pelo jornalista Rodrigo Campanella (do Pílula Pop – BH) com o
cineasta pernambucano, temos, a partir do título da entrevista, o primeiro indício da
tematização trazida pelo filme, que é o deslocamento da visão da aridez da seca para o
mar e sua imensidão de água. A presença versus ausência da água, como tema central da
narrativa fílmica é parte integrante do acervo comum experimentado por diversos
nordestinos.

16
Ver em Anexo VII a entrevista concedida ao blog CLISERTÃO, na passagem do escritor pela cidade
de Petrolina-BA.
122

Já o título do filme Árido Movie se insere numa referência às experiências vividas


por um grupo de cineastas em Pernambuco, no mesmo período em que principalmente a
música vivia um momento de efervescência em Recife.

Pílula pop: De onde vem o termo ‘Árido Movie’?


Lírio Ferreira: As pessoas pensam que é um movimento, mas na verdade é
uma mística criada pelo cineasta Amin Stepple, com quem eu dirigi um curta
chamado That´s a Lero-Lero, sobre a passagem do Orson Welles em Recife.
Foi criado como um contraponto ao manguebeat. Recife vivia um momento
de muita efervescência na música, nas artes plásticas, no movimento de
curtas-metragens. E a gente se sentava no bar, com uma idéia na cabeça e um
uísque na mão para discutir cinema e essa possibilidade de fazer filmes. Eu,
Cláudio (Assis, de Amarelo Manga), Marcelo (Gomes, de Cinema, Aspirinas
e Urubus), Paulo (Caldas, O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas
Sebosas), Feijão (Paulo Jacinto, fotógrafo do Baile). O título do filme é uma
homenagem a esse tempo.

Nessa entrevista, Lírio Ferreira cita algumas referências diretas para a elaboração
e processo criativo da história e da técnica cinematográfica presente em Árido Movie.
Ao ser questionado em relação à estranheza experimentada pelo personagem
principal e pelo próprio espectador ao assistir o filme, o diretor revela que esse processo
de estranheza encontra-se enraizado em sua subjetividade, suas lembranças da infância.
A ativação da memória aos tempos de infância, por exemplo, representam para o
próprio cineasta a sua condição de estrangeiro no espaço nordestino.

Pílula Pop: De onde vem a sensação de estranheza, tão forte no filme?

Lírio Ferreira: Desde criança, anos 70, viajo pelo sertão de Pernambuco,
com meu pai. Até hoje quando eu cruzo o sertão me sinto meio estranho com
a geografia, o clima, o tratamento das pessoas. Sempre sentia que penetrava
num lugar que não me pertencia. O filme tem isso, quis impregnar nele essa
coisa do olhar estranho. Temos um personagem que nasceu em Pernambuco
mas que tem 1,92 de altura, é loiro, olhos claros. Ele nasceu e tem memórias
afetivas ali, mas se desgarra. Quando volta, se sente um estranho na própria
terra. Tudo isso é calcado na própria realidade que a gente vivia em Recife. O
Guilherme é um ator paranaense, mas o Otto, que fez a trilha do filme,
nasceu na cidade vizinha das filmagens e é loiro, grande, aquele tipo europeu.

O filme do diretor Lírio Ferreira, ao apontar para a perspectiva de uma


construção narrativa autobiográfica, na qual a presença marcante da memória afetiva é
parte integrante do constructo das imagens projetadas na tela, possibilita através da
arte cinematográfica o diálogo entre as diversas formas de subjetivação que vão sendo
123

configuradas entre os espaços rurais e urbanos dos “nordestes” que habitam a cidade
paulistana e o interior de Pernambuco. A maneira como este conflito identitário
invade as telas gera ao filme a crítica de ele ser muito aberto, pois o não fechamento
das histórias de vidas das personagens narradas causa a impressão de um fluxo
subjetivo sempre inconcluso.
Em entrevista cedida ao Diário de Pernambuco em 09/08/2009, Lírio Ferreira foi
questionado em relação à controvérsia gerada por essa crítica. O cineasta reage,
afirmando que se trata de um filme muito generoso ao permitir que cada espectador
saia do cinema com a liberdade de imaginação do seu final.
Em entrevista concedida à repórter Silvana Arantes17, e confirmando o caráter
autobiográfico do filme, Lírio Ferreira comenta que a cena da ressurreição de Lázaro,
pai de Jonas, foi a primeira lembrança cinematográfica recorrente em sua cabeça,
quando retornou para Recife e lembrou dos filmes que assistia no antigo Cine Rivoli:

“Fechei os olhos na cena em que ele ressuscita", lembra Ferreira, 41,


voltando 36 anos no tempo, até o Cine Rivoli, no bairro da Casa Amarela e
de sua infância em Recife. Onde havia o Cine Rivoli hoje há uma agência de
banco.
Essa é uma das mudanças que Ferreira percebe sempre que volta à cidade que
trocou pelo Rio de Janeiro, em 1997, quando seu primeiro longa-metragem
("Baile Perfumado", em co-direção com Paulo Caldas) cumpria o objetivo de
"colocar Pernambuco na geografia cinematográfica do país".
"Árido Movie" está repleto de memórias e referências à vida de Ferreira e a
de seus amigos. Homem de turma, como se define, e amigo dos bares, ele
concebeu o longa com "uma idéia na cabeça e um copo na mão".

Folha - O que há de autobiográfico no filme sobre um nordestino que


se tornou o "homem do tempo" na megalópole e retorna ao sertão para
rever laços familiares?

Lírio Ferreira - Todo filme tem um caráter um pouco autobiográfico. "Árido


Movie" tem, não só meu, mas das pessoas que me cercam. Descobri o sertão
quando criança. Meu pai tinha um armazém no interior da Bahia.
Cruzávamos o sertão de Pernambuco em direção ao interior da Bahia.
O sertão era presente e cotidiano na minha infância. Ao mesmo tempo, eu me
sentia completamente estranho ali. Tudo me impressionava muito. As
pessoas, sua maneira elegante, educada e sincera; a luz, o clima."Árido
Movie" é autobiográfico no sentido dessa volta, da busca de memórias. Tem
também homenagens a amigos, a pessoas que me cercam. E outras coisas
mais.

Ao confirmar a existência de algo pessoal na narrativa fílmica, incluindo nela


suas neuroses e memórias, Lírio Ferreira nos dá pistas para trilhar os caminhos dessa
17
Ver em anexo VI a entrevista na íntegra.
124

autoficção, em busca das “verdades” criadas pelo autor para as suas próprias
experiências. Klinger (2007), na esteira de Doubrovsky (1988), afirma que

O sentido de uma vida não se descobre e depois se narra, mas se constrói


na própria narração: o sujeito da psicanálise cria uma ficção de si. E essa
ficção não é nem verdadeira nem falsa, é apenas a ficção que o sujeito cria
para si próprio. É dessa concepção psicanalítica da subjetividade como
produção que Doubrovsky deriva o conceito de autoficção: ‘ A autoficção
é a ficção que eu, como escritor, decido apresentar de mim mesmo e por
mim mesmo, incorporando, no sentido estrito do termo, a experiência de
análise, não somente no tema, mas também na produção do texto’”.
(Doubrovsky, 1988 Apud Klinger, 2007, p. 51-52).

As experiências do “eu” aparentes na produção da textualidade do escritor


Antônio Torres ou do cineasta Lírio Ferreira remete-nos à noção da escrita pontuada
por Michel Foucault em A escrita de si (2010).
A capacidade de transformação das coisas vistas ou ouvidas em atividade
escrita faz surgir o exercício das narrativas a partir da deglutição de experiências
vividas, lidas, ouvidas e em seguida transformadas em suas verdades. As entrevistas
dão as pistas que precisamos seguir, e no próximo subcapítulo veremos que em 2000
Nordestes, vidas se inscrevem também como um “corpo”.
Pensando em afirmar a passagem, ou melhor, o trânsito aberto entre as obras
analisadas, propomos um mergulho nas águas da epígrafe foucaultiana citada na
abertura do subcapítulo 3.2 desta tese18, a fim de retomar a força que a escrita tem e a
forma como marcam os corpos, para em seguida submergir em outras histórias de
vidas, em outras escritas.

18
Subcapítulo intitulado “O pacto referencial na trilogia de Antônio Torres e em Árido Movie”.
125

3.4. AS ROTAS DO DOCUMENTÁRIO: “UMA CÂMERA NA MÃO” E


HISTÓRIAS DE VIDA NA TELA

(...) A experiência que passa de pessoa a pessoa é


a fonte a que recorreram todos os narradores.

Walter Benjamin

As primeiras imagens projetadas pelo documentário 2000 Nordestes traduzem a


multiplicidade de espaços em que o Nordeste ocupa no território brasileiro. Ao som do
triângulo, instrumento que evoca as raízes musicais nordestinas, e que aos poucos vai se
mesclando com as batidas do funk, vemos os primeiros índices da realidade
multicultural experimentada nesses espaços.
Os primeiros quadros encenados são contrapostos aos planos-sequências de
filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha e de Vidas Secas, de
Nelson Pereira dos Santos, num jogo metafórico sobre os movimentos migratórios que
movem a cultura e o espaço habitado. Seja este espaço parte da capital do Rio de
Janeiro ou de São Paulo, as primeiras imagens que antecipam o aparecimento do título
do documentário apresentam o atual espaço-Nordeste.
“Como será que está o Nordeste?” Esta é a pergunta de um dos depoentes,
migrante do Ceará para o Rio de Janeiro em 1969. Vivendo na Cidade Maravilhosa,
especula sobre os indícios de chuva na região Nordeste. Em sua fala, evidencia-se o
desejo de retornar para ver a família. A cena aparece logo na abertura dos créditos
iniciais do documentário, seguida pela projeção do título 2000 Nordestes.
Como uma espécie de resposta a esta pergunta, as cenas são filmadas inicialmente
nos espaços cariocas e paulistanos. Os diretores ouvem vários depoimentos de
nordestinos que ocupam os espaços do sudeste do país, para em seguida a câmera
focalizar em plano geral estático e com a voz em off do depoente, a imagem da
paisagem completamente seca do espaço nordestino. A partir daí as imagens investem
nas contraposições em relação ao urbano e ao rural. As falas dos depoentes nordestinos
descortinam as subjetividades daqueles que estão tanto nos espaços da seca quanto nas
palafitas das regiões litorâneas, através de uma estética cinematográfica que prima pela
linguagem afetiva.
126

Figura 34: Imagens do Rio de Janeiro e São Paulo contrapostas pelas imagens do sertão nordestino.

A estética apresentada pela linguagem cinematográfica utilizada na produção do


filme documentário 2000 Nordestes possibilita a identificação de permanências e
transformações observadas nas imagens do povo nordestino, transpostas através das
técnicas escolhidas pelos diretores. Se fizermos uma comparação em relação aos
documentários produzidos em outro espaço-tempo, como os do período do Cinema
Novo, percebemos como os recursos usados foram mudados, confirmando-se a tese de
que o estilo muda, quando são identificadas outras possibilidades de representação.

As representações das imagens dos nordestinos hoje já não coincidem com a


vontade de representação do povo-nação da época glauberiana. A introdução de
personagens mais complexos toma o lugar do camponês, do analfabeto e do mestiço,
surgindo a representação do “multicultural”, do “poliglota” (representado no
documentário), do nordestino que é formado por uma pluralidade cultural absorvida
pelas experiências vividas no cotidiano.
Se essa possibilidade de acesso às informações chega com os avanços
tecnológicos disponíveis por diversas mídias, o mesmo acontece potencialmente em
relação às novas tecnologias que são as molas propulsoras do desenvolvimento e da
ampliação de investimento em documentários brasileiros contemporâneos.
Não cabe analisar aqui os desdobramentos possíveis obtidos a partir do
surgimento do cinema digital, mas, sem dúvida, precisamos considerar que ele permitiu
um relevante crescimento do número de filmes documentários no país, e foi com a
câmera na mão e a vontade de conhecer as histórias de vida dos nordestinos que os
diretores Vicente Amorim e França Mendes saíram dirigindo um carro em direção ao
nordeste do país, sem deixar escapar o espaço-Nordeste que integra a capital do Estado
de São Paulo e do Rio de Janeiro.
127

Com esse tipo de montagem dos filmes documentários contemporâneos, os


lugares de fala e os depoimentos dos personagens têm tomado a cena e confirmado o
interesse dos cineastas pelas histórias de vida “representadas” na tela, contrapondo-se ao
período do Cinema Novo, no qual a enxurrada de imagens narrava a história de sujeitos
camponeses sem consciência de classe, representantes do atraso cultural e frutos da
perversidade política brasileira. Épocas diferentes, estilos artísticos também diferentes.
O que não se diferencia é o fato de termos na figura daquele que opera diretamente a
película, através da montagem, o poder de manipulação dos fatos:

Com um incrível poder de criar o efeito de verossimilhança com o mundo, o


cinema passou a ser visto como o simulacro, o falsificador, a máquina da
distorção da realidade. Se a câmera por um lado capta o real com aparente
fidelidade e perfeição, a montagem manipula fatos e versões ao bel prazer de
quem a dirige. O processo de colagem dos fragmentos do filme seria a etapa
de deformação. (SILVA, 2008, p. 117) 19.

É na análise das escolhas técnicas realizadas pelos diretores do documentário


2000 Nordestes que pretendemos discutir a forma como a temática proposta pela
narrativa do documentário é apresentada.
As escolhas realizadas por Vicente Amorim e David França vão delineando a
linguagem fílmica que compõe o corpus analisado e deixando entrever as modificações
representadas na imagem construída do sujeito nordestino em comparação com as
produções das últimas décadas.
Não há muitas diferenças também em relação à falta de uma política séria no que
tange às possibilidades de intervenção e melhoria social da vida de milhares de
nordestinos que habitam os espaços brasileiros. Os cineastas em questão, na tentativa de
interpretar o mundo e não de revelar a “verdade” supostamente pertencente a esses
sujeitos, primam por captar o olhar do entrevistado, perceber suas sensações, suas
memórias, e é essa verdade da experiência que o filme quer transmitir para o espectador.
Os cineastas de 2000 Nordestes decidem produzir o documentário apresentando o
que pensam, o que querem e quem são os nordestinos hoje, tentando aproximar-se de
um universo aparentemente distante, para em seguida produzirem o filme de ficção O

19
SILVA, Sávio Tarso Pereira. História, documentário e exclusão social. In: NÓVOA, Jorge e José
D’Assunção (org.). Cinema – História: Teoria e representações sociais no cinema. 2.ed. – Rio de
Janeiro: Apicuri, 2008.
128

Caminho das Nuvens (2003), que narra o deslocamento da família (o casal e cinco
filhos) do caminhoneiro desempregado Romão, da cidade de Santa Rita-PB para o Rio
de Janeiro, percorrendo três mil e duzentos quilômetros de bicicleta. Romão (Wagner
Moura), o pai desempregado e Rose (Claudia Abreu) partem em busca de uma vida
melhor e da realização de vários sonhos, entre eles, o de um emprego em que Romão
consiga ganhar um salário de Um Mil Reais para sustentar a família. Esta narrativa,
baseada na história real de Cícero Ferreira Dias, foi filmada em oito semanas, tendo
como locação as cidades de Juazeiro do Norte e arredores, Porto Seguro e Rio de
Janeiro.
Mas para iniciar a filmagem, Vicente Amorim percorre o interior do Nordeste e
filma o documentário que resolve intitular de 2000 Nordestes pela percepção da
pluralidade espacial que ultrapassa as fronteiras regionais oficiais e da própria formação
multicultural dos depoentes, em plena virada de século.
Na produção do documentário, o uso da linguagem que opta pelo modelo
interativo20, ao proporcionar a intervenção do cineasta, da equipe de produção em
interação com os “atores sociais”, propicia a partir da dialética filme versus realidade, a
construção das “verdades” do sujeito, que saltam para a tela a partir das narrativas das
experiências vividas. Essa sensibilidade captada pelo documentário foi perseguida pelo
cineasta, numa tentativa de evitar levar para o filme de ficção um retrato da
subjetividade nordestina estereotipada.
Quando afirmamos a condição de produção do filme documentário, não estamos
desconsiderando o caráter ficcional presente nas narrativas apresentadas pelos diretores
David França e Vicente Amorim. O próprio ato da filmagem em si, assim como as
investidas nos cortes, na montagem, na possibilidade de manipulação e escolha das
imagens capazes de interpretar a realidade sobre o atual nordeste já indicam que os
documentários, assim como os filmes de ficção, são colocados em cena.
Na introdução do livro Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão,
ficção, documentário, de Jean-Louis Comolli, os organizadores César Guimarães e
Ruben Caixeta relembram que o documentário é uma invenção da realidade e um objeto
do mundo, reafirmando o que Comolli reitera incansavelmente em seus escritos:

20
Para utilizarmos a classificação do pesquisador americano Bill Nichols (2004).
129

Se o documentário exige a invenção, é porque ele não pode pura e


simplesmente ser assimilado a um documento desprovido de um ponto de
vista (produzido por um sujeito, precisamente!): “Subjetivo é o cinema e,
com ele, o documentário. Não há a menor necessidade de lembrar essa
verdade, que, contudo, geralmente se perde de vista: o cinema nasceu
documentário e dele extraiu seus primeiros poderes (Lumière)” (COMOLLI,
2008, p.45).

A distinção e a potência dos filmes documentários encontram-se na difícil tarefa


de fazer com que depoentes não atores encarnem a mise-en-scène e submetam-se ao
risco e ao jogo do real. Esta é a concepção do documentário defendida por Comolli, e é
ela que nos leva a refletir sobre a sua função num mundo no qual a espetacularização da
vida encontra-se cada vez mais a serviço da formação de espectadores que reproduzam
a vontade e a subjetividade produzida pelo sistema audiovisual contemporâneo.
O documentário 2000 Nordestes investe num cinema que tenta se aproximar da
singularidade dos sujeitos reais, habitantes de espaços em que a cultura nordestina
perpassa cotidianamente. Nesse sentido, interessam as subjetividades desses sujeitos
que são trazidos para as cenas a partir de uma forma narrativa e do uso da técnica que
rompe com a condição de criação de um filme que venha a reproduzir imagens que
exaltem a força espetacular tão comum aos meios televisivos.
A experiência documentária, através das transformações nos modos de narrar,
continua a colocar em jogo o primado do real, relacionando o mundo a ser filmado à
máquina filmadora e os atores, que não são representados por profissionais:

(...) o cinema transformou a figura humana. A máquina-cinema inclui o


mundo como o mundo inclui a máquina. O cinema documentário é a mesa de
gravação dessa reciprocidade. Tal como ele a produz, a relação
cinematográfica anula ou suspende qualquer distinção estável entre “dentro”
e “fora”, “verdadeiro” e “falso”, “documentário” e “ficção”, “objetivo” e
“subjetivo”: assim como o observador faz parte da observação, o espectador
faz parte do espetáculo, o corpo filmado mantém com a máquina que o filma
uma relação fantasmática – sedução, desdém, vontade de potência etc. – que
se deixa decifrar como tal. A câmera é uma ferramenta crítica. A duração do
registro é uma prova reveladora. É tudo isso que é legível na experiência
documentária. (COMOLLI, 2008, p.29)

A busca dos diretores pelas experiências de vida no espaço-Nordeste faz parte


dessa tentativa de afastar o olhar estrangeiro para narrar o filme de ficção. Por isso
constatamos em 2000 Nordestes uma espécie de mergulho na vida dos “atores sociais”,
sinalizando a perspectiva assumida pelo narrador benjaminiano de usufruir da
130

experiência que passa de pessoa para pessoa. E é na montagem desse documentário que
visualizamos o poder de fala como uma inversão na lógica das narrativas encenadas:

(...) O filme indiscutivelmente é a montagem. Mas se o controle da


linguagem concentra-se naquele que detém os aparatos técnicos de produção,
a fala o escapa. O depoimento é um domínio dos personagens. A arma na luta
pela representação social. Recurso de linguagem em que se dá a
“apropriação” do cinema pelo ator social. Instrumento pelo qual o povo e os
excluídos forçaram as transformações no documentário moderno. Se
anteriormente, esperava-se das falas somente dados que confirmassem os
argumentos, ao longo das experiências de filmar o povo, foram esboçando
vozes repletas de fabulações, opiniões políticas, visões de mundo contrárias à
moldura que pré-configurava o roteiro do filme. Dessa forma se deu a
metamorfose. (SILVA, Op. Cit., p. 154)

A estética construída no documentário 2000 Nordestes tenta valorizar o lugar de


fala, e o som traz para este documentário o peso da narrativa. A voz que narra faz
explodir o universo e o nível de politização dos cidadãos depoentes. Entre as falas surge
a montagem das imagens do Nordeste que permeiam a condição subjetiva de cada
indivíduo. Mas a voz é contraposta às imagens de filmes como Vidas Secas e Deus e o
Diabo na Terra do Sol. A estética do fragmento e da colagem é transpassada pela

Estética da crueza e do sertão também trabalhada na montagem, no corte


seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia
contrastada, no uso da câmera na mão. Estética cinemanovista que tinha
como objetivo evitar a folclorização da miséria e que colocava uma questão
fundamental: como criar uma ética e uma estética para essas imagens de dor
e revolta? (BENTES, 2007, p.196)

Essa aproximação não chega, acreditamos, a promover um diálogo direto com a


“Cosmética da fome”, conceito desenvolvido pela pesquisadora Ivana Bentes para
explorar a condição política das atuais produções cinematográficas que retratam os
nordestes e favelas brasileiras, mas vemos que o documentário aqui analisado se
apropria imageticamente das obras que traduzem a “Estética da fome” para contrapor
outra forma de politização articulada pelo cinema documentário contemporâneo.
Ivana Bentes, em artigo intitulado “Sertões e favelas no cinema contemporâneo”
(2007), traça um mapa da representação dos sertões e das favelas no espaço
cinematográfico brasileiro considerando o cenário das obras significativas dos anos
1960 como o já citado Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o
Diabo na Terra do Sol (1969), O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969),
131

de Glauber Rocha, entre outros que remetem à precarização dos espaços rurais e
urbanos. A autora destaca a passagem do Brasil rural ao urbano, marcados na década de
1960 pela transformação dos sertanejos em favelados e suburbanos, mas chama a
atenção para a mudança de perspectiva a partir do cinema brasileiro dos anos 1990,
período em que aponta para o deslocamento do discurso em relação a estes territórios
como imagens de “jardins exóticos” ou museus da história. Na análise do que foi
modificado na construção desses territórios, há uma ênfase na condição do contexto
político e na proposta estética desenvolvida pelos filmes. Nesse sentido, a autora
intensifica a força da estética adotada pelos filmes glauberianos, que, embora tenham
sido extremamente significativos para a reversão do pensamento e da intervenção
política do cinema moderno brasileiro, trouxe questões estéticas e éticas que para a
autora não foram resolvidas pelo cinema brasileiro

(...) contra as imagens clichês da miséria que até hoje alimentam o circuito da
informação internacional, Glauber coloca questões éticas e estéticas que ao
meu ver não foram superadas ou resolvidas, nem pelo cinema brasileiro, nem
pela televisão, nem pelo cinema internacional. Essas questões estão
diretamente relacionadas ao tema dos sertões e das favelas, ontem e hoje.
(BENTES, 2007, p.193)

Para a autora, Glauber, naquele momento conseguiu dar as respostas política,


ética e imagética por meio da estética da violência. Concordamos com a afirmação
tecida por ela sobre a repetição de imagens-clichês recorrentes nas telas dos filmes de
ficção e documentários que se referem ao espaço-Nordeste contemporâneo, mas
ressaltamos a existência de certa impossibilidade de vislumbrarmos uma alteração
significativa em muitos dos velhos problemas que parecem fazer parte intrínseca à
própria região.
Nesse sentido, o uso de uma estética que muitas vezes tem retomado ou mesmo
citado imagens diretas dos filmes dos cineastas que pertenceram ao cinemanovismo,
retrata a perspectiva de um cinema produzido pela estética da colagem ou da citação,
mas não significaria necessariamente afirmar uma posição despolitizada, acrítica ou
meramente reprodutora do mesmo. A estética utilizada tem, inúmeras vezes, sido
condizente com o contexto e a própria condição da produção artística contemporânea,
marcada pela fragmentação da narratividade pós-moderna e fazendo uso dos recursos
disponíveis para flagrar, construir e pensar as subjetividades.
132

Nas primeiras imagens do documentário 2000 Nordestes (analisando os quatro


minutos iniciais da película), filmadas sete anos antes da publicação do texto “Sertões e
favelas no cinema contemporâneo” (2007), já citado anteriormente, verificamos que o
espaço ao invadir a tela aponta para o centro do Rio de Janeiro. As paisagens dos
morros cariocas viraram cenários, ou melhor, uma espécie de “pano de fundo” que se
contrapõe às falas dos depoentes nordestinos que migraram para o Rio em busca de uma
qualidade de vida melhor e ocuparam os espaços das favelas cariocas.
Ainda nestas cenas iniciais, algumas falas são contrapostas às imagens de dois
filmes pertencentes ao Cinema Novo, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas.

Figura 35: Depoentes do documentário 2000 nordestes e imagem do beato Sebastião.

“O que era realidade hoje não é mais realidade!” e “Quem sabe é Deus!”, são as
duas primeiras falas ouvidas em 2000 Nordestes. Entre as imagens de dois depoentes
distintos, segue o corte seco e, após a execução da segunda frase temos as imagens do
Beato Sebastião pregando e hasteando a “bandeira” para o caminho da salvação no alto
do Monte Santo invadindo a tela, apontando para a crítica ao posicionamento místico
ainda forte e profundamente enraizado na subjetividade desses sujeitos.
Em seguida, mais duas frases ouvidas, “O que for de dança eu tô dançando!” e
“Vida difícil!”, e depois, novamente o corte seco e a reprodução das imagens da
sequência de Vidas Secas, em que estão focalizados Sinha Vitória (carregando o menino
mais novo e os pertences da família), Fabiano e o menino mais velho caminhando com
as trouxas numa fuga desatinada causada pela seca da região.
133

Figura 36: Sequências do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.

As imagens da figura 36 são intercaladas no documentário 2000 Nordestes com


as projeções das cenas em que vários viajantes nordestinos falam sobre as suas
expectativas ao chegar a São Paulo. Os diretores entram nos ônibus interestaduais para
ouvir o que estão buscando aqueles que estão partindo das cidades nordestinas rumo às
cidades e à capital do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro.
O diálogo entre 2000 Nordestes, Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol,
verificados nos oito minutos iniciais do documentário em questão, é justaposto às
imagens do eixo Rio-São Paulo. O espaço escolhido pelos diretores para começar a
narrar as experiências subjetivas e práticas dos nordestinos brasileiros, de certa forma,
antecipa a análise proposta por Bentes (no artigo citado anteriormente), ao ativar as
imagens da urbanidade paulistana habitada por migrantes nordestinos e focar o “espaço-
favela” carioca, apontando para a permanência de nordestinos que sonhando com a
mudança de vida, foram habitar os centros das grandes cidades brasileiras, vivenciando
“A mudança” de tantas “Sinhas Vitórias”, tantos “Fabianos” e “meninos” nordestinos.
Nos primeiros minutos da película, a referência direta ao filme de Glauber e de
Nelson Pereira Santos, além de aludir à condição política desses sujeitos, traz a
problematização sobre a natureza paradoxal da imagem produzida pelo documentário na
contemporaneidade.
Os relatos dos indivíduos, enquanto documento da expressão subjetiva dos
mesmos, são contrapostos às imagens ficcionais dos filmes de Nelson Pereira dos
Santos e Glauber Rocha, possibilitando-nos ativar a discussão em relação ao caráter de
falsificação e de não autenticidade atribuído às imagens em movimento e reforçando a
condição de força daquilo que é visível na cultura midiática.
134

A estética adotada no documentário em questão investe contra a tendência de uma


parte de críticos, teóricos e cineastas que insistem em aproximar o documentário como
uma forma de cinema apoiada na concepção da imagem como representação do real.
Consuelo Lins, em artigo intitulado “Documentário: uma ficção diferente das outras?”
retoma a afirmação do crítico francês A. Bergala para defender a condição
“ontologicamente falsa” de toda imagem ao considerar que “(...) a reprodução pura e
simples não garante nenhuma autenticidade histórica. Ela pode sempre esconder outra
coisa, ser sempre falsificada.” Para Lins,

O empirismo da imagem, que constitui o suporte essencial da equação visível


= real, compõe, na verdade, uma espécie de grau zero da câmera. É uma
espécie de garantia do momento apenas da exposição, da filmagem, e não de
uma exatidão documentária. Mesmo que se reconheçam pessoas, lugares,
sons, a imagem é menos uma evidência do real do que a filmagem de um
mundo cujo estatuto mantém-se ambíguo. Além disso, no cinema, a imagem
está sempre em movimento, ela é imagem-movimento, e os dados imediatos
da imagem só existem agenciados pela narração, daí a multiplicidade de
sentidos possíveis (LINS, In BENTES, 2007, p.226).

A narração produzida pela imagem-movimento não deixa de fora o caráter


subjetivo, que está sempre lá, marcando as escolhas das imagens cinematográficas
realizadas. Embora a tradição queira aproximar o documentário da imagem- realidade,
fundamentados nas teses do teórico André Bazin, igualando a objetiva da câmera à
objetiva da representação, verificamos que essa objetividade técnica não é possível e os
estudos desenvolvidos pela semiologia do cinema têm confirmado a hipótese e apontado
para o postulado defendido por Godard, no qual se afirma que todos os grandes filmes
de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à
ficção (1985, p. 182). As palavras de Godard fazem referências aos movimentos
cinematográficos preocupados com a capacidade de intervenção humana na elaboração
de uma cultura capaz de exprimir e refletir sobre a realidade dos indivíduos.
Quando David França e Vicente Amorim se propõem a filmar o documentário
2000 Nordestes, eles destacam essa necessidade de compreender a forma como vivem
os nordestinos em diferentes espaços brasileiros, o que demonstra o intuito desses
cineastas em garantir a possibilidade de intervenção humana nas relações sociais e
culturais. Nesse sentido, a análise do documentário permitiu a visualização das formas
de ocupação desses espaços e como as subjetividades desses indivíduos estão sendo
construídas. Como pensam, o que querem e o que sonham os nordestinos daqui e de lá.
135

“E nada está terminado, nem mesmo as pessoas, pois vão sempre mudando”.
Guimarães Rosa
136

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As construções do imaginário do espaço-Nordeste no Brasil sempre estiveram


presentes na literatura e no cinema, em narrativas que expressavam a ideia de sertão
advinda desde os tempos coloniais. Essas narrativas foram realizadas de diversas formas
e através de diferentes leituras, todas investindo na formação da identidade nacional,
emergindo de forma conflituosa nos discursos de muitos romancistas, cineastas e
intelectuais.
Enquanto construções culturais, as imagens do espaço-Nordeste foram se
transformando com o tempo, carregando em seu constructo os interesses e
conveniências das elites políticas e intelectuais do país. A condição de mobilidade, a
partir do século XX, foi aspecto significativo para a migração de vários nordestinos para
o eixo sul-sudeste do território brasileiro, e a ficção literária e cinematográfica da época
narravam essa dramática disputa entre o novo centro econômico e político do país, a
região Sul/Sudeste, e o antigo centro o Norte/Nordeste. Nesse período o imaginário
cultural do Nordeste vai sendo construído através da representação do lugar do atraso,
da ignorância, do rústico, da miséria e do barbarismo.
No desenvolvimento deste trabalho, tomamos como corpus para a análise da
construção do atual imaginário do espaço-Nordeste e da identidade nordestina, as
imagens produzidas pela trilogia literária de Antônio Torres e pelos filmes Árido Movie
e 2000 Nordestes, como lugares emblemáticos de representações desses espaços na
atual literatura e do cinema brasileiro.
Em torno dessas obras percebe-se o aparato técnico da cultura da mobilidade
modificando a forma de se pensar as formações identitárias desses sujeitos migrantes na
contemporaneidade. O lugar da barbárie e da pobreza também é negociado pelas novas
relações e acessos aos bens tecnológicos. Se problemas antigos permanecem marcando
profundamente a paisagem da aridez regional, como a seca que continua a assolar a
região, a falta d’água se junta a outros tipos de escassez para inserir os espaços-
Nordestes no cenário de uma conjuntura política, econômica e social digna de
acompanhamento das transformações ocorridas nas regiões mais desenvolvidas do país.
Os sujeitos que migram das cidades nordestinas, dos seus espaços rurais
para viver a urbanidade dos grandes centros, encontram nesses lugares a barbárie
reproduzida pela violência social, pela falta de moradia, pela disputa de um teto de
137

zinco para se abrigar e posteriormente realizar o sonho de trazer o restante da família.


As narrativas dos romances e dos filmes analisados trazem explícitas as permanências
dos antigos problemas como a seca no Nordeste, mas informa-nos das diferenças nos
modos de vida das pessoas que habitam aqueles espaços. As culturas e hábitos
cotidianos são transformados a partir do contato com as novas tecnologias.
Se antes havia o encontro das pessoas para as longas conversas na porta durante
as noites enluaradas do sertão, as narrativas vêm nos confirmar que o velho costume foi
substituído pela concentração de pessoas em frente ao aparelho televisivo para assistir
aos próximos capítulos das novelas e dos noticiários que informam sobre os
acontecimentos no mundo.
As memórias também são invadidas pelas informações midiáticas e pelo contato
com a cultura pop. A força da memória ativada nas narrações dos romances de Torres e
no filme de Lírio Ferreira aponta para um devir diferente. As memórias do vivido
embaralham-se às experimentadas pelos filmes assistidos, músicas ouvidas e livros
lidos. Esses sujeitos, enquanto nordestinos, traduzem suas experiências de vida e toda a
sua formação intelectual acaba também sendo transposta e colocada em xeque na
tessitura das obras.
Nesse sentido, o mapeamento da subjetividade dos nordestinos como aqueles que
se encontram distantes das investidas da produção subjetiva de quem está no eixo sul-
sudeste é colocado em jogo. E o que encontramos é uma espécie de tentativa de
homogeneização do cotidiano.
A força dessa memória é ativada para proporcionar um devir diferente. O sujeito
que migra sabe que não haverá mais o retorno, e alguns deles já não desejam esse
retorno, por identificar que os modos de produção e as relações sociais tendem a se
repetir nos pontos de partida e chegada. Dessa forma, não percebemos nas obras aqui
analisadas o discurso do migrante frustrado ou arrependido: o narrador de Pelo fundo da
agulha, por exemplo, encerra o último romance da trilogia afirmando o sentimento de
imersão num mundo hostil, o qual não consegue compreender e nem se sente
compreendido. Mas não há a perspectiva de apontar para uma condição radical do
sujeito descentrado; se afirma, antes, a transculturação vivida pelo migrante, um sujeito
duplo ou situado em mais de um espaço. No final do romance, após analisar os lugares
de suas experiências, ouvir as múltiplas vozes de suas memórias que se negam ao
esquecimento, afirma:
138

‒ Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus
irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou
pelo que lhe deixaram de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se
sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo
(TORRES, 2006, p. 217).

O autor afirma outros modos de sensibilidade, foge aos modos de manipulação e


formatação do cotidiano, para propor outra forma de relação com o mundo. Nesse
sentido, a perspectiva de apontar para o valor da vida, fugindo do devir morte
apresentado pelas passagens de suicídio nesta obra, aposta naquilo que Guattari
configurou como o desenvolvimento de modos de subjetivação singulares, como aquilo
que poderíamos chamar de “processos de singularização”, ou seja,

(...) uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação


preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando,
recusá-los para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de
relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que
produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial que
coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de
construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de
dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são
os nossos. (GUATTARI, 1999, p.17)

As imagens da nordestinidade apresentadas pelas obras analisadas não se afastam


dos elementos associados à pobreza, ao conflito, à ruralidade, à falta de saneamento
básico nos espaços habitados pelos nordestinos.
Mas o efeito das projeções no imaginário nacional e internacional explora a
condição singular de ser nordestino a partir da subjetividade de personagens em contato
com a diversidade cultural que invade os espaços da sua casa, de seu trabalho, de seu
cotidiano.
As dificuldades persistem, mas não produzem o discurso do atraso. Os elementos
discursivos e as imagens produzidas pelas obras constroem dialeticamente o espaço-
Nordeste representado pela distância versus proximidade entre as pessoas, a alegria
versus a tristeza, o feio versus o belo, o antigo versus o atual.
A textualidade apresentada pelas obras que compuseram o corpus da pesquisa
traduz as marcas desses personagens nordestinos que viajam, leem se formam
intelectualmente e interagem com os espaços habitados a partir das experiências vividas.
A mesma representatividade encontrada nos índices autoficcionais permite-nos afirmar
que Antônio Torres e Lírio Ferreira também fogem à regra do sujeito nordestino que
pensa a realidade dos seus conterrâneos a partir da visão do atraso.
139

As experiências vividas por esses autores e pelos depoentes do documentário


2000 Nordestes, afirmam a existência do espaço-Nordeste considerando a sua
multiplicidade e riqueza cultural.
A afirmação dessa potência nas narrativas ficcionais se dá a partir do
investimento numa estética que considera a força dos discursos e dos níveis de
significação produzidos por ele.
Como considera Jacques Rancière, o grande poder efetivado pela literatura não se
localiza nos limites da redoma do ficcional, e sim pelas aproximações entre “a razão das
ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordenações da descrição e
interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social” (RANCIÈRE, 2005, p. 55).
Nesse sentido, a literatura, assim como o cinema e outras formas narrativas, estaria
encarregada de mostrar os rastros poéticos e artísticos inscritos na realidade.
Foram esses rastros que seguimos para realizar a análise de como tem se
configurado o espaço-Nordeste brasileiro. Nessa investida fomos analisando o cinema
documentário da produção de 2000 Nordestes e descobrindo em cada depoimento a
força da invenção ficcional. No rosto do depoente que permanece mudo, a expressão
ressoando, através da montagem, os valores de verdade atribuídos a cada “realidade”.
Todas as obras que fizeram parte do nosso corpus, independentemente do grau de
ficcionalidade, permitiram-nos refletir sobre a questão da distinção entre as formas de
inteligibilidade em relação à construção e os fenômenos históricos que compõem os
espaços nordestes na atualidade.
140

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2000 NORDESTES. Direção David França Mendes e Vicente Amorim. Produção:


Lucy Barreto e Luiz Carlos Barreto. Documentário. Europa Filmes, Rio de Janeiro,
2000, VHS, color/70 min.

ÁRIDO Movie. Direção: Lírio Ferreira. Produção: Murilo Salles e Lírio Ferreira.
Intérpretes: Guilherme Weber; Giulia Gam; José Dumont; Selton Mello; Mariana Lima;
Gustavo Falcão; Matheus Nachtergaele; Paulo César Pereio; José Celso Martinez
Corrêa e outros. Roteiro: Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira, Lírio Ferreira e Eduardo
Nunes. Europa filmes, Recife, 2005 DVD, color/118 min.
150

DEUS e o diabo na terra do sol. Direção: Glauber Rocha. Produção: Agnaldo Azevedo.
Intérpretes: Geraldo Del Rey; Yoná Magalhães; Maurício do Valle; Othon Bastos; Lídio
Silva; Sônia dos Humildes e outros. Argumentista: Glauber Rocha.Copacabana Filmes;
Rio de Janeiro, 1964. DVD, preto e branco/ 125 min.

O CAMINHO das nuvens. Direção: Vicente Amorim. Produção: Bruno Barreto.


Intérpretes: Carol Castro; Claudia Abreu e Wagner Moura; as crianças: Manoel
Sebastião Alves Filho, Felipe Newton Silva Rodrigues, Cícera Cristina Almino de
Lima, Cícero Wallyson A. Ferreira e Cícero Wesley A. Ferreira. Disney/Buena Vista;
Rio de Janeiro, 2003. DVD, color/87 min.

VIDAS Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos.Produção: Luiz Carlos Barreto;
Herbert Richers e Danilo Trelles. Intérpretes: Átila Iório (Fabiano); Maria Ribeiro
(SinháVitória);Baleia – cachorra; Gilvan Lima e Genivaldo Lima (Meninos); Jofre
Soares (Fazendeiro) e Orlando Macedo, entre outros. Produções Cinematográfica
Herbert Richers S.A., Rio de Janeiro, 1963. VHS, preto e branco/103 min.
151

ANEXOS
152

ANEXO I:

Entrevistas concedidas pelo escritor Antônio Torres que foram citadas no


desenvolvimento da escrita desta tese.

'A seca não expulsa; é a civilização que atrai’

Rogério Assis/Folha Imagem << O escritor Antonio Torres passeia pelas ruas de
Sátiro Dias, Bahia do enviado a Sátiro Dias (BA)

Há três meses, Antônio Torres abandonou o trabalho que exerceu, paralelamente à


escrita, nos últimos 35 anos: a publicidade.

Criador de campanhas para a Volkswagen, Danone, Brahma, Skol e algumas marcas de


cigarros, Torres agora vai se dedicar exclusivamente aos livros e a textos
encomendados. "Agora sou free-lance", diz.

Há duas semanas, o escritor voltou à sua cidade natal e percebeu que, apesar das
melhorias na infra-estrutura de Sátiro Dias, seus conterrâneos continuam a sair de lá em
direção às grandes cidades. "É o fascínio pela civilização", afirma.

Na casa de sua avó em Sátiro Dias, no sábado retrasado, entre as visitas de uma tia e
outra, ele deu a seguinte entrevista à Folha.

Folha - O senhor viveu aqui até 1954, quando Sátiro Dias ainda se chamava Junco.
Existe alguma semelhança entre as duas cidades ou esses 44 anos mudaram tudo?

Antônio Torres - Vejo que, hoje, a situação é menos dura. Antes não tinha hospital;
hoje tem dois. Eu nasci de parteira. Educação, era só o primário. Agora já tem segundo
grau. Não tinha estrada. Tinha dois rádios a bateria, um na venda do Josias Cardoso,
onde ouvi a morte do Getúlio Vargas, em 1954. Não tinha luz. Eu me lembro quando
chegou o motor de luz, que só funcionava até as 22h, a óleo diesel. Água, tinha que
buscar no tanque, que a gente cavava na terra e esperava chover pra encher.
153

Folha - Era a seca que expulsava os baianos do sertão?

Torres - É. As secas eram até menos frequentes que hoje, mas eram bem piores. Lembro
de uma, em 1950, em que a gente tinha que andar muito para achar água. O gado morria
na nossa frente. Eu via os bois subindo as encostas, atrás de um filetinho de verde, um
mínimo de vegetação. Mas já estavam fracos demais, despencavam da ribanceira e
quebravam o pescoço. Muito triste.

Hoje, se a seca é brava, é possível conseguir ajuda, é mais fácil. Ela deixou de expulsar
as pessoas. Em três horas de carro, a gente chega em Salvador. Antes era a pé ou a
cavalo. Saía daqui, dormia em Inhambupe. Esperava uma carona para Alagoinhas e lá
tomava um trem para Salvador. Depois pegava outro trem, que sempre descarrilava em
Monte Azul, Minas Gerais. Demorávamos sete dias para chegar a São Paulo.

Folha - Quando o senhor saiu, estava fugindo da seca?

Torres - No meu caso, eu saí porque queria estudar. Mas na minha cabeça, a busca pelo
trabalho fora daqui começa quando chega o primeiro caminhão, no início dos anos 50.
Aquele cheiro de combustível embriagou a gente. Mexeu com a cabeça. Quando
começam a chegar os caminhoneiros, os rapazes de fora, eles aparecem vestidos de
outro jeito, falando gírias desconhecidas. As meninas ficavam loucas, e a gente queria
sair para voltar e ser igual a eles.

Folha - E para onde ia quem saía daqui?

Torres - Muitos iam para São Miguel Paulista, na Grande São Paulo. Isso porque o
primeiro homem de Junco a chegar em São Paulo foi para lá. Então começaram a chegar
cartas com o remetente de São Miguel Paulista. O segundo foi para lá também e assim
foi. Era esse movimento de cartas que ia levando as pessoas.

Em 61, no meu primeiro fim-de-semana em São Paulo, fui para São Miguel. Todo
mundo estava lá, dançando forró; eles tinham levado o forró para o Sudeste. Nunca me
esqueço da primeira coisa que me perguntaram: "Você sabe se está chovendo em
Junco?". Porque eles já queriam voltar! E é esse o eixo de "Essa Terra". Apesar de um
alemão que leu o "Diese Erde" ("Essa Terra" em alemão) ter dito que o eixo é a solidão
em um país grande.
154

Folha - Se a vida melhorou por aqui, por que os satirodienses continuam saindo?

Torres - Acho que o ir e vir ficou intenso a partir do asfalto da Rio-Bahia, na era
Kubitschek. E depois veio a televisão, em 75. A civilização começou a chegar dentro
das casas das pessoas, poderosamente sedutora. A sociedade de consumo mexe com a
cabeça do mundo inteiro. É o fascínio pela civilização. Em Cuba, em 83, senti isso. Na
Bulgária, em 85, senti também. É o mesmo problema dos países comunistas, que não
atendiam aos desejos de consumo.

E tem também outra coisa: em São Paulo, todo mundo podia ser ajudante de pedreiro,
passar o dia inteiro melado na massa e depois tomar banho e se sentir doutor. Porque na
cidade grande ninguém te conhece. Então, pelo menos aparentemente, não havia
discriminação.

Folha - Como os moradores daqui vêem seus livros? Se sentem os próprios


personagens?
Torres - Os que estão em São Paulo se sentem mais ainda do que os que ficaram aqui.
Uma vez, me fizeram uma homenagem na Associação dos Funcionários do Frigorífico
Central de Santo André. É que o "Essa Terra" tinha sido lançado em Paris, e a notícia
saiu em vários jornais da cidade. Eles ficaram muito orgulhosos, me abraçavam e
choravam.

Folha - Como foi o processo de criação de "Essa Terra"?

Torres - Em 73, um primo contou que um parente nosso, depois do ir e vir de São
Paulo, tinha se enforcado na armação de uma rede. E que outro primo viu o morto e foi
dar um tapa no rosto dele, achando que estava dormindo. E o rosto pendeu para o outro
lado. Essa cena está no livro. Mas quando vim para cá, ninguém queria me contar. Só
diziam para eu esquecer o assunto.

Aconteceu que, do fracasso do repórter, nasceu o ficcionista. Por que ele se matou
daquela forma tão horrível? Ele trocou um lugar pelo outro, não conquistou o segundo e
perdeu o primeiro. Deixou um bilhete, pedindo para não acusar o dono da casa e
pedindo que o Nenê Vieira providenciasse o enterro dele. Depois o dono da casa se
matou também. Fiz até psicanálise nessa época.
155

Folha - "Essa Terra" se passa nessa cidade há mais de 20 anos. Os personagens


ainda estão aqui?

Torres - Acho que não. O Brasil e essa terra mudaram muito. Em 1970, quando eu
vinha aqui, as pessoas me perguntavam: "Meu filho, você é aquele que mora naquelas
terras tão longe?".

Agora ninguém mais me pergunta isso. A Embratel e o asfalto encurtaram essa


distância. Eles não são mais os personagens de "Essa Terra". Eles são os personagens de
"O Cachorro e o Lobo", que eu lancei no ano passado. Puxa, meu avô morreu em 77
sem ter visto uma televisão ou um telefone! Conheceu só o correio e o rádio. Hoje
estamos aqui na casa dele e tem TV, videocassete, parabólica, som hi-fi, CDs do
Sepultura. É um novo povo.
156

ANEXO II:

FONTE: http://www.antoniotorres.com.br/entrevistas.htm

A Tarde – Caderno 2, Salvador, 01/05/1997


Patrícia Moreira

Um autor, um cachorro e um lobo

Aos 56 anos, o escritor e publicitário baiano Antônio Torres, que fez parte do
seleto grupo de autores brasileiros traduzidos no exterior e cuja obra é alvo de inúmeras
teses acadêmicas em universidades brasileiras e européias, está em Salvador, onde
lança, amanha O cachorro e o lobo. Na sexta-feira, ele estará no projeto “Com a
Palavra, o Escritor” (às16h30min, na Biblioteca central da UFBA). Oitavo romance da
carreira e uma continuação de sua obra mais consagrada, Essa Terra, o novo livro é
segundo o autor, “uma tentativa de enternecer o mundo”. Entre um lançamento e outro,
Torres concedeu entrevista exclusiva ao jornal A Tarde.

PM – Você diz que O Cachorro e o Lobo é uma viagem de volta. Por que esse
retorno ao ambiente do Junco?

AT – É um pouco uma espécie de fuga dessa realidade tão pesada, da violência


urbana do Rio de Janeiro e de São Paulo. Antes de começar O Cachorro e o lobo, estava
escrevendo um romance que se passava entre o Rio e São Paulo e ele acabou
desandando. Passei a não mais suportar o peso dessa realidade. Daí surgiu a idéia da
volta ao tema de Essa Terra e sentir prazer em fazer isso. Foi o livro mais prazeroso da
minha carreira. É terno, leve, uma espécie de retorno à terra que me pariu. O que espero
é que o leitor sinta esse mesmo prazer que tive ao escrever o livro, no fundo uma
homenagem aos velhos contadores de historia que a pós-modernidade acabou.

PM – Entre Essa Terra e O Cachorro e o lobo o que mudou?

AT – Essa Terra Foi escrito num período muito pesado, em plena ditadura e o
lançamento em São Paulo foi no auditório Waldimir Herzog, do Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo. Em função disso, as pessoas começaram a ver o livro como
uma metáfora da tortura e da violência (o jornalista Wladimir Herzog foi encontrado
enforcado na prisão e a ditadura tentou passar a versão de que ele tinha se suicidado.
Em Essa Terra o personagem principal é um baiano do Junco que parte para São Paulo,
para tentar a sorte, volta para a Bahia 20 anos mais tarde, não suporta a cobrança do
lugar por não ter vencido na vida e acaba se suicidando). Embora a linguagem seja bem
poética, o livro é bastante trágico. Em O Cachorro e o Lobo, Totonhim é o irmão do
outro personagem que também vai para São Paulo, onde fica 20 anos sem dar notícias,
período em que convive com um fantasma na cabeça, achando que se retornar ao Junco
vai repetir o gesto do irmão. Um dia recebe uma carta da irmã, dizendo que o pai vai
157

completar 80 anos. Ele então decide retornar e, na convivência com o lugar, vai revendo
sua própria história e recuperando a memória local. Quando escrevi Essa Terra, a
jornalista Ana Arruda Callado, que é minha amiga, me disse que eu parecia estar
querendo enlouquecer o mundo. Se fosse para fazer um paralelo, O Cachorro e o Lobo
parece que quer enternecer o mundo, como se estivéssemos cansados dessa tragédia.

PM – Até que ponto você, enquanto autor experimenta o envolvimento com


seus personagens?

AT – Uma certa vez, um estudando de Letras me disse uma coisa fantástica: que
eu escrevia uma espécie de autobiografia abstrata. Meus livros não são autobiográficos,
se baseiam nas minhas referências, mas tudo acaba virando ficção. Sou ficcionista, tudo
passa pela estratégia do romancista, o cachorro e o Lobo foi escrito em primeira pessoa,
uma forma de me colar ao personagem como se fôssemos uma mesma coisa. Tento
quebrar o distanciamento entre o autor e personagem, o que também, permite ao leitor
se colar à história.

PM – Que avaliação você faz do mercado editorial nacional atualmente?

AT – A literatura, de alguma maneira, está perdendo espaço no mundo. Há uma


certa tendência a se fazer produtos – biografias encomendadas, projetos- que se vendam
em larga escala. Mas ainda acho que há espaço para tudo. Veja, por exemplo, o Manoel
de Barros, que fez um livro de poesia e ganhou o Prêmio Nestlé. Foi uma surpresa pra
todo mundo. Outro caso é a Record (editora), que tem como tradição editar best ssellers,
mas está criando uma nova griffe com autores nacionais, que está dando certo. A
questão é como se faz e como se promove.

PM – Você trabalha como publicitário e também escreve livros. Como


consegue conciliar as duas atividades? Quanto tempo você levou parra escrever O
Cachorro e o Lobo?

AT – Tem gente que faz piada e diz que quem escreveu o livro foi minha mulher,
Sônia. Na verdade, levei quatro anos para concluir a obra utilizando férias, feriados,
alguns carnavais, Semanas Santas. Nesse período foram vários avanços, recuos,
paradas. Em 1995, estava na Itália, lançando Essa Terra e durante uma discussão, na
Universidade de Roma, comecei a fazer a viagem de volta. Se em 95 ainda se discutia
um romance de 1976, eu estava no caminho certo. Durante a discussão, foi dito que
talvez o que esse velho mundo precisasse era de uma velha história bem contada. O
Cachorro e o Lobo é isso.
158

ANEXO III:

Entrevista concedida pelo cineasta Lírio Ferreira ao Pílula POP, citada no


desenvolvimento da escrita desta tese.

http://www.pilulapop.com.br/retro/ressonancia.php?id=50

Por Trás do Seco, Tem um Mar

por Rodrigo Campanella


(Fotos: Daniel Oliveira)

Não há como não perceber que Lírio Ferreira chegou. Alto, expansivo, fala rápida,
cumprimenta e já comenta de saída “Cara, época de lançamento de filme a gente
conhece tanta gente, putaquepariu”. Não é reclamação, mas constatação. Quase dez
anos depois da divulgação de ‘Baile Perfumado’, em 1997, ele enfrenta de novo a
maratona de entrevistas, festivais, debates. De boa vontade, diga-se de passagem.
Responde com paciência as perguntas de praxe, que dezenas de jornalistas já
fizeram antes, e conta histórias novas.

Boné com a bandeira de Cuba puído na aba, óculos escuros da Diesel, barba por
fazer, Lírio parece encarnar de uma vez o trio-parada-dura de amigos de Jonas, em
‘Árido Movie’. A seguir, a entrevista exclusiva que o Pílula Pop fez com o diretor
em sua primeira vinda a Belo Horizonte.

Pílula Pop: Como está sendo a carreira do filme?

Lírio Ferreira: O ‘Árido’ estreou ano passado numa exibição no Festival de


Veneza, desde lá vem passando em festivais internacionais e nacionais. Em abril o
filme começou a carreira comercial, estreou em São Paulo, no Rio, em Recife e
agora em Belo Horizonte e Porto Alegre.

Pílula Pop: E ao mesmo tempo você vem gravando um documentário sobre o


Cartola.

Lírio Ferreira: Teve essa infeliz coincidência de ter que fazer em paralelo os dois
projetos. O Cartola começamos a fazer (Lírio e Hilton Lacerda) antes do ‘Árido’. A
gente termina o filme agora, entra em mixagem em julho e no início de agosto já
deve ter uma cópia pronta.
159

Lírio com Cuba na cabeça

Pílula Pop: Como foi a captação da verba para o ‘Árido Movie’?

Lírio Ferreira: A primeira grana foi do edital de baixo orçamento do Ministério da


Cultura, em 2001. A gente ia filmar em 2002, mas não conseguiu captar todo o
dinheiro. Mas usamos o período parado em prol do filme, trabalhando no roteiro.
Filmamos a parte de Pernambuco em 2003 e só conseguimos a grana pra filmar em
SP em novembro de 2004. Durante esse ano parado, filmamos o Cartola e fiquei
montando o filme junto da Vânia Debs.

Pílula Pop: Como fica viver de cinema no país, se às vezes são gastos quatro anos
para se fazer um filme?

Lírio Ferreira: É complicado, porque é preciso fazer um projeto atrás do outro.


Além do ‘Árido’ e do Cartola, termino de filmar em 2006 um documentário que eu
venho fazendo há três anos, chamado “O Homem que Engarrafava Nuvens”, sobre o
Humberto Teixeira, parceiro do Luiz Gonzaga. Talvez eu ainda monte o filme novo
do (fotógrafo do ‘Árido’) Murilo Salles, chamado ‘História Real’. As filmagens
terminaram agora, é com a Leandra Leal, baseado num livro da Clara Averbuck.
Mas nem reclamo muito, porque a maioria das profissões no Brasil é muito cruel. É
cruel pra caramba ser professora primária aqui, por exemplo.

Pílula Pop: Você enxerga um amadorismo e uma falta de visão nos donos de
cinema e nas distribuidoras?

Lírio Ferreira: Não, acho hoje até as pessoas menos condescendentes. Vou dar um
exemplo. Quando a gente lançou o ‘Baile Perfumado’, conseguiu um apoio muito
grande em Pernambuco, participação da sociedade civil, espaço em outdoors e na
televisão. Nas primeiras semanas com o filme em cartaz, os números que a gente
recebia mostravam 260, 280 pagantes em salas com 250 lugares. Tinha gente
sentada na escada vendo o filme! Depois de três semanas, tiraram o ‘Baile’ de cartaz
160

para entrar com uma merda lá, um ‘Volcano’ da vida. Porque para exibir um
‘Titanic’, você é obrigado a comprar outras vinte merdas e exibir. As distribuidoras
não vendem só o filme, mas tudo que tem ali por trás. Vendiam o cigarro que o
Humphrey Bogart fumava, com todo aquele glamour.

Pílula Pop: Como você vê essa mudança no Brasil, dos cinemas agora estarem nos
shoppings?

Lírio Ferreira: Na década de 70, o público brasileiro era muito C e D e os cinemas


eram de bairro.

Esse público não vai ao shopping porque tem vergonha ou não tem grana pra pagar
o estacionamento e tudo mais. A gente acha que o cinema brasileiro vai bem quando
atinge 18% ou 20% das salas, mas na verdade são três ou quatro filmes que resultam
nesse número. Agora nós produzimos filmes, mas a questão da distribuição e da
exibição ainda não foi resolvida. Fizeram uma conta que até maio tinham lançado
180 filmes no Brasil, o que é quase um filme e meio lançado por dia. A disputa é
muito grande e vários desses filmes precisam de tempo para ganhar público, no
boca-a-boca.

Pílula Pop: Entrando diretamente no ‘Árido Movie’. Não deu pena começar a
história matando o (personagem do) Paulo César Peréio logo de cara?

Lírio Ferreira: É, (risos) olha só, um ator maravilhoso com quem eu sempre sonhei
trabalhar mas enfim, era uma idéia. No ‘Árido’ tudo pode tender pro certo e pro
errado, mas nada é de graça. Chamei o Peréio e a Renata Sorrah pra serem os pais
do Jonas porque eu achava que ele era filho do ‘Matou a Família e foi pro cinema’
do Julio Bressane e do ‘Bang, Bang’ do Andrea Tonacci, que são filmes com a
Renata Sorrah e o Peréio. Mas ainda consegui que ele ressuscitasse, o nome do cara
não é Lázaro? Ressuscitou... (risos)
161

Sobre gravadores e cigarros

Pílula Pop: De onde vem o termo ‘Árido Movie’?

Lírio Ferreira: As pessoas pensam que é um movimento, mas na verdade é uma


mística criada pelo cineasta Amin Stepple, com quem eu dirigi um curta chamado
That´s a Lero-Lero, sobre a passagem do Orson Welles em Recife. Foi criado como
um contraponto ao manguebeat. Recife vivia um momento de muita efervescência
na música, nas artes plásticas, no movimento de curtas-metragens. E a gente se
sentava no bar, com uma idéia na cabeça e um uísque na mão para discutir cinema e
essa possibilidade de fazer filmes. Eu, Cláudio (Assis, de Amarelo Manga), Marcelo
(Gomes, de Cinema, Aspirinas e Urubus), Paulo (Caldas, O Rap do Pequeno
Príncipe Contra as Almas Sebosas), Feijão (Paulo Jacinto, fotógrafo do ‘Baile’). O
título do filme é uma homenagem a esse tempo.

Pílula Pop: Quais são as outras influências por trás dele?

Lírio Ferreira: Tem o Easy Rider, o Dragão da Maldade, do Glauber, os filmes do


Sérgio Leone e até do John Ford. E também um filme brasileiro muito pouco visto,
de Pernambuco, chamado A Noite do Espantalho, do Sérgio Ricardo. Carlos
Reichenbach falou que se o (cineasta) Rogério Sganzerla estivesse vivo, ia falar
assim do ‘Árido’: “Temos o primeiro faroeste do terceiro mundo desse milênio”.
(risos)

Pílula Pop: Parece que houve uma camaradagem dentro do set de filmagem que
aparece também na tela.

Lírio Ferreira: Tinha esse espírito mesmo. Nunca houve escola de cinema em
Pernambuco, sempre teve espírito de brodagem pra vencer as dificuldades e a pouca
grana. A gente trabalha com amigos desde os curtas e, se é difícil você cobrar, essas
pessoas dão uma segurança tremenda porque entram mesmo no projeto, não acham
162

que é um trabalho qualquer. Com os atores aconteceu o mesmo. O filme tem uma
mais-valia na tela maior que a grana que foi gasta. As pessoas se apaixonaram pelo
roteiro e houve uma coisa de agregação, de carinho mesmo.

Pílula Pop: De onde vem a sensação de estranheza, tão forte no filme?

Lírio Ferreira: Desde criança, anos 70, viajo pelo sertão de Pernambuco, com meu
pai. Até hoje quando eu cruzo o sertão me sinto meio estranho com a geografia, o
clima, o tratamento das pessoas. Sempre sentia que penetrava num lugar que não me
pertencia. O filme tem isso, quis impregnar nele essa coisa do olhar estranho.
Temos um personagem que nasceu em Pernambuco mas que tem 1,92 de altura, é
loiro, olhos claros. Ele nasceu e tem memórias afetivas ali, mas se desgarra. Quando
volta, se sente um estranho na própria terra.

Tudo isso é calcado na própria realidade que a gente vivia em Recife. O Guilherme
é um ator paranaense, mas o Otto, que fez a trilha do filme, nasceu na cidade
vizinha das filmagens e é loiro, grande, aquele tipo europeu.

Lírio-rapper dá a rima do 'Árido'

Pílula Pop: O filme chega a ser até um pouco ‘bipolar’ no modo como você ri e
logo vai pro fundo do poço.

Lírio Ferreira: É legal ter o frescor do filme de estrada com aquela cacetada no
fim.O ‘Árido’ é para deixar dúvidas, não é um filme de respostas, que se fecha.
Gosto da sensação de mal-estar no final, sair do cinema pensando no filme.

Pílula Pop: Como foi sua relação com o Guilherme Weber?


163

Lírio Ferreira: O Guilherme faz uma atuação muito generosa, que foi uma coisa
pedida por mim. Os personagens que povoam o caminho do Jonas são muito
intensos e eu queria que Guilherme fizesse um personagem totalmente pálido,
imparcial, um repórter envolvido com tudo aquilo ali. Ele foi muito generoso e
seguiu o que eu queria. As pessoas solam ao lado dele todo o tempo, e ele fica como
o condutor da história. É uma maneira diferente de compor.
164

ANEXO IV
FOLHA ILUSTRADA São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006

ANÁLISE
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1404200608.htm

Jonas: homem de um tempo


NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Jonas , o protagonista de "Árido Movie", é homem do


tempo, expressão carregada de possibilidades: homem do
tempo pode ser, por exemplo, Deus; um meteorologista
(caso do próprio); um filósofo; um guru.
Certamente, no filme, Jonas é homem de UM tempo, o de
São Paulo -tempo de utilidades e certezas.
E é no Nordeste -no sertão árido onde morreu seu pai,
pertencente a uma família de coronéis em que ainda
prevalece a "vendetta"- que ele conhece um outro tempo.
Ou melhor, vários.

O tempo do sol, da seca; o tempo que não passa, também


do sol, mas igualmente da "vendetta"; o tempo dos índios,
ameaçados de extinção literal e representados de forma
agressivamente comovedora por José Dumont, o Zé
Elétrico, que, num momento do filme, diz que vai sair
para meditar, já que "o mundo tá transitando na
contramão".

O sol de João Cabral

Dentro de um táxi, no Recife, Jonas, o homem do tempo,


sussurra para um motorista que não o entende,
praguejando contra o sol mormacento: "Sol de dois
canos". É o sol de João Cabral de Melo Neto: "O sol em
Pernambuco leva dois sóis/ sol de dois canos, de tiro
repetido;/ o primeiro dos dois, o fuzil de fogo/ incendeia a
terra: tiro de inimigo./ O sol em Pernambuco leva dois
sóis,/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o segundo dos
dois, o fuzil de luz,/ revela real a terra: tiro de inimigo".
E Jonas e o espectador deveriam então aprender que o sol,
no Nordeste (pelo menos no sertão), é sempre inimigo.
165

Mas não aprendemos, não.

Eu, pelo menos, me senti idêntica à personagem


interpretada por Giulia Gam, Soledad, videomaker
pseudo-intelectual que se deixa fascinar ingenuamente
pelo discurso aforístico-sabido de Meu Velho,
personagem interpretada por Zé Celso, líder religioso no
estilo "Coração das Trevas", que diz frases como "isso
aqui é e não é, mas está sendo".

Imagino que, se estivesse no lugar dela, cairia direitinho


nas palavras dele e também o acharia lindo, sem fazer
idéia de que ele faz parte da trama exploratória de água
dos coronéis da região.

Mas, como ajuizadamente diz o nome do posto de


gasolina de Zé Elétrico, Oposto, não tenho certeza se a
ingenuidade é mesmo o pior desta história.
Talvez aqueles jagunços absurdos sejam tudo menos
ingênuos, mas não sei se são o oposto disso. E muitas
vezes acho melhor a credulidade do possível ao
pragmatismo do factível.

Noemi Jaffe é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica


Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra)
166

ANEXO V

FOLHA ILUSTRADA São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1404200607.htm

CRÍTICA

Diretor enlaça histórias em filme de exuberância barroca

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O cartão de visitas, Lírio Ferreira entrega logo nas cenas de


abertura: desfoques, uso ousado de lente grande-angular, um
plano vertiginoso de Recife, angulações inesperadas.
O que vem a seguir não desmente esse início vertiginoso.
Estamos no território do barroco, aonde nos leva já um
roteiro com várias histórias que parecem nascer umas das
outras.
A primeira delas, central, diz respeito a Jonas, homem do
tempo de um canal de TV em São Paulo, que precisa se
deslocar a Pernambuco para os funerais de seu pai,
assassinado, a quem não via há milênios. De Recife ele viaja
para Rocha, no interior, onde sua família o espera, enquanto
prepara a vingança.

Em Recife, ele encontra um grupo de amigos "outsiders" que


resolve fazer uma excursão até Rocha para acompanhar o
amigo. A viagem será acidentada.

A terceira história diz respeito ao encontro de Rocha com a


artista Soledad, que trabalha as relações decorrentes da seca
na região. Podemos acrescentar a essas uma quarta história, a
da família do assassino do pai, isto é, dos descendentes de
indígenas que moram na região.

Com todos esses elementos (que lembram essas teias


ficcionais hiperbólicas em que é pródigo um Carlos
Reichenbach) para organizar num todo coerente, não é de
espantar que estejamos diante de um filme de exuberância
barroca, em que a luz é marcada por contrastes radicais e a
imagem, por panorâmicas de 360 graus, cenas inteiras
compostas em espelhos retrovisores, uma câmera que se
posta ora lá em cima, ora cá embaixo e que parece se abrir a
todas as influências do mundo: Godard e Welles, Sergio
Leone e o faroeste, Glauber Rocha e o cinema dito marginal.
Lírio Ferreira se entrega a sua arte com paixão. Ele filma o
167

agreste pernambucano como quem fizesse um faroeste.


Mostra o sentimento de seus atores (Luiz Carlos Vasconcelos
e Aramis Trindade em particular) ocultando-lhes os olhos.
Retrabalha o clichê das vinganças nordestinas até desfigurá-
lo. Ele pinta as estradas secas do Nordeste buscando o mesmo
ânimo de Welles ao descrever a fronteira EUA/México.
Aos poucos, a gama de contrastes se alastra, ocupa o filme:
branco e índio, interior e capital, seca e água, misticismo e
racionalidade, Sudeste e Nordeste. É em meio a essas tensões
que "Árido Movie" instala seu protagonista, que, com justa
razão, se vê perdido nesse espaço múltiplo, labiríntico,
incompreensível, talvez absurdo em que se dá esse drama do
subdesenvolvimento cavalar.

Drama que, não sem ironia, o filme vê se transformar, no Sul,


em exposição de arte, tutelada pela imagem de Meu Velho, o
místico picareta. Sabemos então que "Árido Movie" quer
extrair dessa paisagem e de seus personagens uma imagem do
Nordeste que seja verdade, não arte. Em poucas palavras:
esse primeiro vôo solo de Ferreira é bem mais que animador.
168

ANEXO VI
FOLHA ILUSTRADA São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1404200606.htm
Road movie do sertão

"Árido Movie", segundo longa do pernambucano Lírio


Ferreira, que estréia hoje, é uma viagem em direção ao
interior do Brasil

SILVANA ARANTES

DA REPORTAGEM LOCAL

"Árido Movie" começa quando Jonas (Guilherme Weber)


deixa a metrópole onde vive e volta ao sertão onde nasceu
para o enterro do pai (Paulo César Pereio). Forasteiro na
própria terra, ele vê tudo fora de lugar -há um caixão no meio
da sala e uma mulher que não larga a idéia de vingança.
A avó de Jonas (Maria de Jesus Bacarelli) quer que o neto
mate o assassino do pai. Trata-se do índio Jurandir (Luiz
Carlos Vasconcellos), que agiu acreditando defender a
própria honra ao ver a irmã, Wejda (Suyane Moreira),
enredada por seu maior desafeto.

O pai de Jonas se chama Lázaro. Lázaro é também o


personagem bíblico cuja ressurreição na tela fixou a primeira
memória cinematográfica do autor de "Árido Movie", o
cineasta Lírio Ferreira.

"Fechei os olhos na cena em que ele ressuscita", lembra


Ferreira, 41, voltando 36 anos no tempo, até o Cine Rivoli,
no bairro da Casa Amarela e de sua infância em Recife.
Onde havia o Cine Rivoli hoje há uma agência de banco.
Essa é uma das mudanças que Ferreira percebe sempre que
volta à cidade que trocou pelo Rio de Janeiro, em 1997,
quando seu primeiro longa-metragem ("Baile Perfumado",
em co-direção com Paulo Caldas) cumpria o objetivo de
"colocar Pernambuco na geografia cinematográfica do país".
"Árido Movie" está repleto de memórias e referências à vida
de Ferreira e a de seus amigos. Homem de turma, como se
define, e amigo dos bares, ele concebeu o longa com "uma
169

idéia na cabeça e um copo na mão".

A seguir, o cineasta fala sobre seu filme e sobre "árido


movie", que, um dia, foi um manifesto pelo cinema
nordestino. Hoje não é mais. O tempo passa. O Nordeste
entrou no mapa.

Folha - O que há de autobiográfico no filme sobre um


nordestino que se tornou o "homem do tempo" na
megalópole e retorna ao sertão para rever laços familiares?
Lírio Ferreira - Todo filme tem um caráter um pouco
autobiográfico. "Árido Movie" tem, não só meu, mas das
pessoas que me cercam. Descobri o sertão quando criança.
Meu pai tinha um armazém no interior da Bahia.
Cruzávamos o sertão de Pernambuco em direção ao interior
da Bahia.

O sertão era presente e cotidiano na minha infância. Ao


mesmo tempo, eu me sentia completamente estranho ali.
Tudo me impressionava muito. As pessoas, sua maneira
elegante, educada e sincera; a luz, o clima.

"Árido Movie" é autobiográfico no sentido dessa volta, da


busca de memórias. Tem também homenagens a amigos, a
pessoas que me cercam. E outras coisas mais.

Folha - Que outras coisas?

Ferreira - É um mergulho para dentro e para fora. Não é à


toa que o nome é "Árido Movie", é um estado de espírito de
determinado momento da minha vida. Ele rouba da realidade
várias coisas.

Folha - "Baile Perfumado", seu filme anterior, é de 1997.


Por que o segundo demorou tanto?

Ferreira - A realização às vezes é inversamente proporcional


à imaginação. São várias dificuldades. Quando terminei
"Baile Perfumado", pensei em adaptar um livro, fiquei um
tempo nisso, depois desisti.

O [filme sobre] Cartola já é um projeto que vem de antes,


mas teve dificuldade de captação [de dinheiro para a
produção]. No início do segundo semestre deverá estar
pronto. "Árido Movie" é um projeto que começou em 2000.
Mas, nesse ínterim, não fiquei parado. Trabalhei muito com
videoclipe, que é o contrário do cinema -você tem uma idéia,
produz em quatro dias, filma em dois e já vê pronto.
Utilizei esse tempo que o "Árido Movie" ficou entre idas e
vindas aprimorando o que eu queria fazer, jogando a favor do
170

filme e não transformando isso em empecilho, em algo


desmotivador.

Folha - O rótulo "árido movie" surgiu como uma bandeira


do cinema nordestino. Hoje, nenhum dos cineastas que a
levantaram faz questão de defendê-la. Por quê?
Ferreira - "Árido movie" nunca foi um movimento nem um
manifesto. É uma mística. É uma expressão cunhada pelo
cineasta e jornalista Amin Stepple, com quem dirigi [o curta-
metragem] "That's a Lero Lero" [1994].

Era uma mística sobre o momento em que a gente estava


vivendo, em que [o cineasta] Marcelo [Gomes] estava
escrevendo o roteiro de "Cinema, Aspirinas e Urubus"
[2005], em que [o cineasta] Cláudio [Assis] estava pensando
no "Amarelo Manga" [2002], em que a gente estava
acabando de sair do "Baile Perfumado" [1997]. Era também
um contraponto ao mangue beat. Mas era mais um estado de
espírito do que um movimento em si.

O filme resgata esses momentos. É uma grande homenagem


àquela época e àquele momento inquieto em que a gente
tentava colocar Pernambuco na geografia cinematográfica do
país.
A gente sentava numa mesa de bar, discutia muito cinema e
bebia muito uísque. Era uma idéia na cabeça e um copo na
mão.

Folha - Qual a frase que seus amigos mais lhe dizem?


Ferreira - Lírio, vá com calma!

Folha-Você ouve?

Ferreira - Ouço com respeito, mas não sei se conjugo.

Folha - Por que escolheu Guilherme Weber para viver


Lírio Ferreira?

Ferreira - Não é o Lírio Ferreira [risos].

Folha - É o Selton Mello quem interpreta Lírio Ferreira?


Ferreira - Não sei. Talvez um pouquinho de cada um.

Folha - "Árido Movie" é deliberadamente filme para pouco


público?
Ferreira - Muito pelo contrário. Quero que o máximo de
gente assista. Tenho desejo de público.
171

ENTREVISTAS ANTONIO TORRES

http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm

ANEXO VII

Entrevista com Antônio Torres

Antônio Torres nasceu no pequeno povoado do Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), no
interior da Bahia, no dia 13 de setembro de 1940.
Aos 32 anos lançou seu primeiro romance, Um cão uivando para a Lua, que causou grande
impacto, sendo considerado pela crítica “a revelação do ano”. O segundo Os Homens dos
Pés Redondos, confirmou as qualidades do primeiro livro. O grande sucesso, porém, veio
em 1976, quando publicou Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que
aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes
metrópoles do Sul, principalmente São Paulo.
Hoje considerada uma obra-prima, Essa terra ganhou uma edição francesa em 1984,
abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor baiano, que hoje tem seus livros
publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos,
Israel, Holanda, Espanha e Portugal.
Em resumo: autor premiado, com várias edições no Brasil e traduções em muitos países,
Antônio Torres é um dos nomes mais importantes da sua geração, com um obra expressiva
que abrange 11 romances, 1 livro de contos, 1 livro para crianças, 1 livro de crônicas, perfis e
memórias. além de dois projetos especiais (O centro das nossas desatenções, sobre o centro
do Rio de Janeiro – e que rendeu um documentário para a TV Cultura, São Paulo -, e O
circo no Brasil, da série História Visual, da Funarte, Fundação Nacional de Arte).

*Texto adaptado do site oficial do autor.


A seguir, uma pequena entrevista concedida por Antônio Torres ao nosso blog:

CLISERTÃO - Você estará na mesa “Sertão: espelho, miragens – O Nordeste


Mítico e o Nordeste Contemporâneo na Literatura”. O que você pode adiantar
da discussão que será trazida para a mesa?

Antônio Torres – O que posso adiantar é que será um prazer participar do Clisertão, em
Petrolina – ou seja, à beira do São Francisco e de cara para a Bahia, o meu estado natal.
Alegria maior é estar à mesa com o meu querido amigo Raimundo Carrero, escritor que
muito admiro e parceiro de tantas jornadas. Quanto ao tema – O Nordeste mítico e o
172

Nordeste contemporâneo na literatura, é uma oportunidade para refletirmos sobre as


permanências do legado literário nordestino e suas transformações, em função das
mudanças de paradigmas no nosso tempo.
CLISERTÃO – Você tem uma trilogia célebre, iniciada por “Essa terra”, de
1976, seguida por “O cachorro e o lobo”, de 1997, e finalizada com “Pelo fundo
da agulha”, de 2006. Todos os livros são ambientados no sertão da Bahia, mas
um sertão que muda ao longo dos romances, se moderniza, conhece o
progresso. Como o senhor vê e trabalha o sertão?

Antônio Torres – Frequentemente recebo notícias do sertão em que nasci, dando conta
da realidade de violência que o assalta, deixando-o em pânico. O que me leva a pensar que o
sertão que migrou acaba retornando carregado dos estereótipos (urbanos) da modernidade,
sendo o mais notório deles o do tráfico de drogas. No quadro atual, o sertão mítico, ao que
me parece, cede o seu lugar de referência a uma cultura de massa imposta pela lógica do
consumo – o que afinal está por trás dos índices de violência que conhecemos. A minha
sensação é que o mundo está todo igual – no que tem de pior.
CLISERTÃO - No último livro da trilogia a questão da identidade perdida é
muito explorada. O personagem sertanejo já não se encaixa nas suas
memórias. Fale um pouco do “Pelo fundo da agulha”.

Antônio Torres – Esta é a história: um homem na cama, na primeira noite de sua


aposentadoria. Só que era São Paulo esta noite, a cidade onde você é capaz de suportar
tudo, quase tudo, menos a falta do que fazer. Eis o conflito básico do personagem cujas
marcas (sertanejas) de origem afloram em sua memória. E toda a história passa a girar em
torno de uma imagem: a da mãe dele, já velhinha, enfiando uma linha pelo fundo de uma
agulha – sem óculos. E tudo o que ele deseja naquele momento é ir ao seu encontro, para
saber como ela via o mundo através daquele ínfimo buraco. “Pelo fundo da agulha” é
também um balanço da vida de um nordestino em São Paulo, com um certo olhar amoroso
para a cidade que lhe acolheu, lhe deu espaço de sobrevivência e experimentações, mas
também com a sensação de não-pertencimento.
CLISERTÃO – O fato de você ser nascido no sertão, no povoado de Junco, terra
natal também do personagem principal da trilogia, influencia a literatura que
você produz?

Antônio Torres – Um ponto de partida: um caso real que me contam, uma lembrança de
um rosto, de uma voz, de uma situação que me marcou. Mas o começo depende da primeira
frase. Ela é que vai dar o tom do texto, e puxar a fabulação. Muita gente pensa que tudo, ou
quase tudo, que escrevo é autobiográfico. Bom, não acho que tenha uma vida capaz de caber
em 11 romances, um livro de contos etc. Mas que minhas vivências têm me dando um
adjutório considerável, isso tem.
173

CLISERTÃO – Por que, em sua opinião, o sertão é matéria-prima tão


recorrente na literatura brasileira?
Antônio Torres – Imagino que é porque o sertão gerou muitos escritores. Mas não foi um
sertanejo que disse: “Escreva sobre tua aldeia que escreverás sobre o mundo” – bem, estou
citando isso de memória.
CLISERTÃO – “Sobre Pessoas”, seu último livro, é de crônicas, perfis e
memórias. Como foi trabalhar com esse novo formato?

Antônio Torres – Foram uns exercícios efêmeros, como um descanso entre um romance
e outro. Mas gostei de publicar um livro com textos, digamos, mais leves, enquanto ganho
fôlego para um voo mais largo. O que já venho ensaiando há tempos.
No CLISERTÃO, Antônio Torres estará na mesa redonda “Sertão: espelho, miragens –
O Nordeste Mítico e o Nordeste Contemporâneo na Literatura”, no dia
15/05, juntamente com o escritor Raimundo Carrero (PE). A mediação será da Profª
Elisabet Moreira (UPE/IFE).
174

Anexo VIII

"SEMPRE ME COLOQUEI AO LADO DOS OPRIMIDOS"

ENTREVISTA - Antônio Torres lança edição comemorativa de 25 anos do


romance Essa Terra.
Jornal A Tarde - 11/06/01
Carlos Ribeiro

Um dos mais importantes romances da literatura


brasileira contemporânea, Essa Terra, de Antônio
Torres, ganha reedição comemorativa aos 25 anos,
pela Record. O acontecimento trouxe, mais uma vez,
o escritor baiano, autor de O Cachorro e o Lobo e de
Meu Querido Canibal, para debaixo dos holofotes:
somente na X Bienal Internacional do Livro do Rio
de

Janeiro, realizada recentemente, ele participou de dois debates e de uma sessão de


autógrafos, no estande da Record. A agenda cheia do escritor inclui a participação em
um café literário, na Piazza Navona, em Roma, e (ainda este ano) na Feira Internacional
do Livro em Guadalajara, no México, onde será lançada a edição em espanhol de Essa
Terra, pela Casa de Las Américas. Além disso, já foi proposta, por uma editora
espanhola, a publicação de Meu Querido Canibal, para todos os países de língua
hispânica.

Na entrevista a seguir, feita no café da livraria Letras e Expressões, em Ipanema, Torres


fala sobre o interesse crescente pela obra dele, sobre os temas que ela suscita, como a
solidão, o suicídio e o sentimento de não-pertencimento de seus personagens. E afirma:
“É preciso que os autores regionais persigam um texto que esteja inserido na
contemporaneidade e que estejam mais afinados com as questões do nosso tempo”.

P – Ao que você atribui o interesse crescente por sua obra, além, é claro, de sua
evidente qualidade literária?

R – A um conjunto de fatores: primeiro, da minha inserção no quadro internacional. Os


meus livros estão sendo editados em muitos países, têm sido temas de teses em várias
universidades, na Itália, na Alemanha, em Portugal. Tenho recebido convites para vários
congressos. Deve-se considerar, também, a minha passagem para a editora Record, num
momento em que ela deixava de ser um contêiner de best-sellers estrangeiros, para
tornar-se uma grife de autores nacionais, com a entrada de Luciana Villas-Boas.
175

P – A Record está reeditando seus livros anteriores. Isto se deve ao sucesso


alcançado por o Cachorro e o Lobo?

R – Consegui, com a edição de O Cachorro e o Lobo, uma unanimidade da crítica, em


1997. Ele ficou nas listas de melhores e ganhou o prêmio hors-concours de romance da
União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro. No ano passado, foi publicado na
França com uma excelente repercussão, não só da crítica francesa, como da belga e da
suíça. Daí, a editora fez um programa de novas edições: relançou Os Homens dos Pés
Redondos e a Balada da Infância Perdida, publicou o livro de contos Meninos, Eu
Conto e lançou, fortemente, Meu Querido Canibal. Todos tiveram enorme repercussão.

P - O sucesso dos seus livros são uma prova de que é possível ser um autor bem-
sucedido sem fazer concessões?

R - Sim, e isso me dá uma grande satisfação, porque nunca escrevi nada para ser
vendido. Nunca fiz concessão de espécie alguma, nem política, nem ideológica, nem
mercadológica. Nunca submeti meu texto a uma ideologia, embora seja um autor de
esquerda. Sempre me coloquei ao lado dos oprimidos.

P - Você se considera, como os personagens do seu livro, um retirante?

R - A minha trajetória pessoal de retirante plasmou meu próprio texto, minha escrita. O
fato de ter sido arrancado da minha terra foi fundamental na construção do meu
imaginário e isso se reflete no meu texto. Carlinhos de Oliveira dizia que o meu texto
situava-se no eixo do deslocamento nacional. Eixo de mão dupla: deslocamento externo
e o interior, da repercussão dessa viagem dentro dos personagens. Isso dá um caráter
diferenciado dos autores localistas. Essa Terra não é regional, no pé da letra. Por isso,
talvez, ele seja cada vez mais apreciado no exterior.

P - Isso se deve também ao fato de suscitar questões relativas aos Estudos


Culturais, tão em voga atualmente nas universidades americanas?

R - Existe uma contextualização dentro do quadro internacional. Ele está sendo


discutido dentro de questões contemporâneas, como o pós-colonial, o lugar do não-
pertencimento, do descentramento do homem no seu espaço cultural. Tudo isso leva o
texto a ser enquadrado dentro dessa discussão.

P - Qual o problema principal dos escritores que moram fora do eixo Rio-São
Paulo?

R - Afora os mineiros e os gaúchos, todos reclamam dessa questão de estar fora do eixo
Rio-São Paulo. Eu penso o seguinte: é claro que existe uma concentração excessiva da
produção, da distribuição e da circulação nesse eixo. Mas, no caso do Nordeste, a coisa
agrava-se por falta de iniciativas locais que criem pólos regionais fortes na área do livro.
Existem estatísticas que apontam para um número muito baixo de vendas de livros em
todo o Nordeste: apenas 14% em todo o quadro nacional. Isso enfraquece as editoras da
região.
176

P - É preciso realmente morar no Rio e em São Paulo para se conseguir uma


projeção em nível nacional?

R - Existem muitos autores que penam por não estar aqui (lá), onde as coisas realmente
acontecem. Inclusive gente que vem com produção desde os anos 60 e não consegue
retomar o passo no eixo editorial. Mas, no caso da Bahia, existem nomes de muita
visibilidade nacionalmente. É o caso de Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, que têm
seus espaços. Luiz Antonio Cajazeira Ramos está despontando bem por aqui (lá). Agora
mesmo, Myriam Fraga participou do júri de um prêmio importante, o Maison de France
- Finac, do Consulado Francês, que vai premiar a melhor tradução francesa no Brasil,
nos últimos anos.

P - A questão básica, me parece, não é de discriminação em relação a escritores de


outras regiões, mas de uma certa indiferença com relação a quem não está
convivendo ali, num mesmo espaço...

R - O que eu acho é que os baianos precisam mexer-se mais. Mesmo porque, não é
verdade que se fechem as portas para autores nordestinos. O Rio é muito aberto, basta
ver a quantidade de autores de outros Estados que se integraram à vida cultural da
cidade, como José Lins, Graciliano Ramos, Rubem Braga, Fernando Sabino. É preciso
estar no lugar certo. Glauber Rocha dizia que todas as cidades são uma aldeia nos seus
lares e bares, e a aldeia do Rio de Janeiro é a zona sul. É Copacabana, Ipanema, Leblon.
O badalo aqui é no centro da cidade ou nesse eixo.

P - Como você vê a produção literária que é feita hoje fora desse eixo?

R - É preciso que os autores regionais persigam um texto que esteja inserido na


contemporaneidade, que estejam mais afinados com as questões do nosso tempo. É
preciso sair da dicção neoparnasiana, neo-rilkiana, da qual muitos poetas de hoje estão
impregnados. Isso não só no Nordeste, como também no Rio. Devemos evitar o
modernoso, mas é preciso estar mais afinado com a linguagem da contemporaneidade.

P - Que diferença existe entre a abordagem do sertão em seus livros e a do


romance realista dos anos 30, por exemplo?

R - Hoje, o Brasil urbanizou-se e, talvez, os meus livros estejam preenchendo esses


espaços, mas numa perspectiva muito diversa. Na verdade, existem muitos livros com a
dicção dos anos 30, e não dá mais para se fazer isso. O Nordeste hoje continua com
problemas dos anos 30, mas já não é mais o mesmo. A urbanização chegou lá. Eu estive
agora em Junco, atual Sátiro Dias. O que vi lá: uma cidadezinha cheia de antenas
parabólicas, internetada, asfaltada, mas triste. Os jovens estão todos fora e lá é, agora,
um mundo de velhos indo para a igreja, encomendando a alma a Deus porque estão
perto da morte. Havia uma sociabilidade que não tem mais hoje. É desse interior que
estou tratando. O Cachorro e o Lobo trata disso.

P - O que permanece igual? O que liga o agora com o passado?

R - Uma coisa, que havia antes, continua: o suicídio. Um primo meu se enforcou, e as
pessoas dizem: igualzinho ao seu livro. Há casos de suicídios de crianças: uma menina
de 15 anos e um menino de 16 mataram-se. Uma amiga fez algumas perguntas que
177

calaram fundo em mim: Como foi, o quê, por quê? Algo ligado à solidão? À falta de
perspectivas? Esse é o problema existencial mais forte do ser humano. Camus tratou
disso em O Mito de Sísifo, quando disse: pouco importa que o dia tenha 24 horas, que a
Terra tenha movimento de rotação, quando o homem se pergunta se vale a pena viver.

P - O suicídio está relacionado ao desenraizamento físico, geográfico, que passa a


ser um desenraizamento existencial?

R - A questão resume-se no seguinte: talvez o homem que troca o seu lugar por outro
perca o seu lugar e não conquiste o outro. Refiro-me, no caso, à massa de retirantes.
Vale dizer que não é a seca que expulsa, é a civilização que atrai. Ela cria a sedução do
progresso da modernidade. Senti isso na minha infância com o surgimento, em Junco,
do primeiro caminhão, que endoideceu o lugar. Era a promessa do divertimento, o
sonho do consumo, surgido no final dos anos 50. A estrada era a viabilização do sonho
de partir.

P - Um sonho semelhante, hoje em dia, aos brasileiros que vão morar no exterior?

P - Sim, daí o fato de os meus livros encaixarem-se na questão da diáspora, do lugar do


não-pertencimento, tratados na contemporaneidade. O texto acopla-se nessa questão,
que é um fenômeno novo, no Brasil, que é o da migração para o exterior. O cineasta
Paulo Thiago me disse: “O seu personagem não está em São Paulo, ele está nos Estados
Unidos”.
178

ANEXO IX

Salvador, domingo 19/09/2010


Diego Damasceno

“Não sou sambista de uma nota só”

Pode ser o tempo, pode ser a distância. A verdade é que, ao viajar do Rio
de Janeiro, onde mora, para a cidade de Sátiro Dias, sua terra natal, Antônio
Torres sentiu-se como alguns de seus personagens: fora do lugar. “Já não há
mais aquela sociabilidade dos fins de tarde, a rua fica deserta, todo mundo em
casa, pendurado na televisão”, disse. Situada a cerca de 250 km de Salvador,
Sátiro Dias também não é um nome familiar para Torres. Quando ele nasceu,
em 13 de setembro de 1940, o local se chamava Junco, e foi assim que passou
para suas histórias. Um exemplo é Essa Terra, romance que mostra o retorno
de um retirante e seu livro mais conhecido. Foi traduzido em sete países e
acaba de entrar na lista do vestibular da Universidade do Estado da Bahia
(Uneb). O sucesso também trouxe a pecha de escritor regionalista. “Faz
sentido até certo ponto”, diz, lembrando livros como O nobre seqüestrador, de
inspiração histórica, e sua estréia na literatura, Um cão uivando para a lua, um
relato urbano. Autor de 11 romances, Torres compareceu ao seminário
Narrativas e viagens do Junco ao mundo: 70 anos Antonio Torres, na
Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Lá, o autor conversor com
Muito.

Aos 70, novas histórias continuam aparecendo?

Sempre, sempre. Eu vivo de escrever falar sobre isso. Vivo viajando e


falando disso. No caminho dessas viagens, você vai sempre se municiando de
novas paisagens, novos cenários, novo imaginário, novos personagens, novas
histórias. Acho que elas sempre aparecem desde a que agente esteja vivo.

Então pretende continuar escrevendo-as? Trabalha em alguma


nova?

Eu dei um tempo. Entre 2006 e 2007, eu publiquei três livros. Pelo


fundo da agulha, um livro infantil muito bonitinho – bonito que eu digo é
graficamente; Minu, o gato azul; e um livro de crônicas, perfis e memórias
179

chamado Sobre pessoas. Então foram três livros em um ano. Aí, decidi dar um
tempo para mim mesmo, até para “reassuntar” a minha própria literatura.

O senhor acredita que o tempo mudou seus motivos para escrever?

Acho que sim, porque de alguma maneira você faz parte do tempo. Você
percebe o tempo, percebe o que está mudando. Talvez essa minha parada
estratégica seja para repensar minha própria literatura. Minha editora me
perguntou: quando você vai fazer um novo romance? E eu falei: eu estou
tentando colocar os pés no nosso tempo. Nesse mundo. E aí ela falou assim:
não ponha os dois, não. Basta um (risos).

O que acha de ser chamado de escritor regionalista?

O que leva a isso é o meu título mais forte até hoje, que é o Essa terra
(1976), que gerou uma trilogia com O cachorro e o lobo (1996) e com o Pelo
fundo da agulha (2006). Também tenho mais dois romances dentro dessa
espécie de polígono das secas literário. O Carta ao bispo (1979) e o Adeus,
velho (1981) . Mas eu não sou um sambista de uma nota só, quer dizer, luto
para não ser um sambista de uma nota só. Passeio também por ambientes
urbanos, em livros como Um cão uivando para a lua (1972) e Um táxi para
Viena d’Áustria (1991), só para dar dois exemplos, e por romances que fazem
uma espécie de interface da história, como no caso de Meu querido canibal
(2000) e O nobre seqüestrador (2003). Logo, essa impressão de que eu sou
um escritor regionalista faz sentido até um certo ponto. Quem leu só o Essa
terra ou a trilogia pode ficar com essa impressão. Mas se buscar mais do meu
trabalho verá que não é bem assim.

A que atribui o sucesso de Essa terra?

Para mim, é um mistério, porque é um romance que tinha tudo para ser
um fracasso. É a história da viagem de volta de um personagem que acaba se
matando. Não entendo como é que essa história de fracasso virou sucesso. Eu
não saberia explicar. Um crítico uma vez me disse que era pelo tom emocional
do livro. E pelo seu lado poético também. Eu não sei, a crítica tem dito coisas
assim, tem aventado essas possibilidades. Ou pela carga de realidade que está
por trás dele. Só que é um realismo brutal, e eu sinceramente fiquei surpreso,
até hoje eu sou.
180

Porque a forma do romance o atrai?

No sertão, quando eu era menino, se falava do “rimance”, o romance em


verso, que vem a ser o cordel. Daí, “rimance”. Isso causou um encanto, a
palavra desceu tão redonda que eu quis ser romancista. Isso é uma explicação,
mas não é toda. Você pode ter uma sensibilidade mais afinada com uma
história curta ou já vir com a mente adequada para o poema. Meu primeiro
romance, a idéia era escrever um conto. Não sei como se processa dentro de
nós, talvez cada indivíduo tenha já dentro de si uma inspiração qualquer para
um gênero. Não é comum grandes romancistas serem grandes contistas. Ou o
contrário. Claro, Machado de Assis joga bem nos dois. Mas não dá para
comparar o Jorge Amado romancista com o contista, o Gracíliano
romancista... Talvez eu escreva romance por incapacidade de escrever um
poema ou uma música. Tocar um computador não faz o mesmo efeito de um
piano. Mas busco no computador alguma sonoridade ao ouvido do leitor.

O senhor tem criticado o escritor-celebridade. A Flip (Festa


Literária internacional de Paraty) é um evento criticado por
supostamente estimular esse papel. Como foi sua experiência na feira, em
2007?

Acho que eu não criticaria mais... Não mantenho essa visão da sua
pergunta. Porque acho que estamos em um momento muito delicado para a
literatura. Os espaços nos jornais estão diminuindo, a competitividade
estrangeira é muito forte, a sedução dos produtos que nos trazem o imaginário
global é avassaladora, e eu acho que o escritor brasileiro tem que encontrar o
seu espaço nesse mundo. E aí, as feiras, as festas literárias, têm sido um bom
palco para o escritor. Minha experiência como Flip foi a melhor possível. O
Público que vai para lá vai à procura dos autores. E eu fiquei realmente
impressionado, que eles vão para comprar seus livros, não vão só para ouvir
você. Não é só o aspecto da badalação. Ao contrário. Nesse caso, a badalação
em torno da Flip beneficia os autores convidados porque os leva a serem mais
lidos.

Sem crítica, o que a literatura perde?

Perdemos os nossos interlocutores. Nossos mediadores. Nossos


avaliadores. E isso nos leva a uma tremenda solidão. Não há literatura que
cresça, que possa crescer sem a contrapartida da critica, eu sou um exemplo
disso. Devo muito de meu desenvolvimento literário a críticos como Hélio
Pólvora, Carlos Nelson Coutinho, Marcos Santamita, que escreveram
elogiando ou mesmo apontando defeitos dos meus livros de forma muito
objetiva, o que me levou a pensar meu próprio caminho de escritor. Eu fui
muito ajudado por esses críticos, imagine uma nova geração toda que está
181

surgindo aí e que vai pouco a pouco perdendo esse dialogo como a crítica.
Espero que voltemos ter espaço para a crítica.

Como nasceu sua candidatura à ABL?

Foi o Aleiton [Fonseca, poeta e professor universitário]. Ele foi ao Rio,


teve uma longa conversa comigo, dizendo que era uma vaga da Bahia, que eu
tinha que concorrer. Só que eu entrei atrasado. E me disseram isso de cara.
Mas acharam muito boa minha candidatura. Não me arrependo, Relaxei
também quando vi que não ia ganhar.

Voltaria a se candidatar?

Isso é para o futuro. É um assunto delicado, sobre o qual a gente não


deve falar.

Como foi essa história de reescrever 33 vezes o mesmo capítulo?

Foi com Um Táxi para Viena d’Áustria. Eu tenho obsessão por


reescrever, por isso meus livros demoram tanto. Quando acabei o livro,
mandei para a editora, na época a Companhia de Letras, aí o editor [Luiz
Schawarcz] me escreveu, disse que gostou do livro e pediu para eu dar uma
olhada no capitulo tal. Quando olhei, eu disse: poxa, bendito editor. Aquele
capítulo todo em diálogo estava meio cansativo. Aí fiquei reescrevendo,
reescrevendo... Levei 33 vezes, e foi aí que começaram a surgir coisas.
Bendito editor que me levou a achar o texto. Então, quando um editor disser
para você, meu jovem escritor, ”dar uma olhada”, não se zangue.

Em suas idas e vindas, em algum momento sentiu-se desenraizado


como alguns de seus personagens?

Sim. Ipatinga, Minas Gerais. Feira de livros em um shopping. Eu entro


naquele shopping, fico me perguntando se estou no Brasil ou se estou em
Amsterdã. Há um aspecto do nosso mundo hoje, parece que a singularidade
desapareceu. Mesmo no Junco, cheguei lá ontem, as moças parece que estão
em Ipanema. O jeito de vestir, o comportamento, o estilo. E aí eu me sinto
meio estrangeiro nesse tempo, no sentido existencial. Parece que estamos num
grande aeroporto o tempo todo. Em Junco, não tem shopping, mas tem a
presença da internet, da televisão, já não há mais aquela sociabilidade dos fins
de tarde, as pessoas na calçada, a rua fica deserta, a praça deserta, todo mundo
em casa pendurado na televisão, Dá um estranhamento.
182

ANEXO X
ENTREVISTA à Vandré Abreu e André de Lleones

http://www.canissapiens.blogspot.com/

SEM PERDER O RITMO E RUMO DAS HORAS

Em entrevista exclusiva, o escritor Antônio Torres fala sobre Pelo Fundo da


Agulha, seu romance recém-lançado, suas influências e a finalidade da
literatura nos dias de hoje, dentre outras coisas.

Antônio Torres é um menino. Um menino nascido em 1940, no interior da


Bahia. Autor de mais de uma dezena de livros, muitos dos quais traduzidos em
países como Holanda, Estados Unidos, Israel, França, Itália, Bulgária e
Alemanha, Torres recém-lançou Pelo Fundo da Agulha (Ed. Record, R$ 34,90).
Com ele, fecha a trilogia iniciada há trinta anos com Essa Terra, já em sua
vigésima edição, e que teve prosseguimento com O Cachorro e o Lobo. Nesses
livros, escreve, para usar expressão de Affonso Romano de Sant’Anna, sobre o
“seu Nordeste”, a sua Junco natal, da qual muitos fogem e para a qual outros
tantos convergem. São romances habitados por homens partidos ao meio,
divorciados de sua terra e de si mesmos. Para gente assim, muitas vezes só
resta o suicídio. Poucos escritores contemporâneos escrevem sobre temas
tão complexos de forma marcante, e Antônio Torres é um deles. Com uma
vantagem: mantém, “por malandragem”, um diálogo efetivo com as novas
gerações de autores. Torres conversou conosco sobre este e outros assuntos de
sua residência em Copacabana, no Rio de Janeiro.

"Pelo fundo da agulha" encerra uma trilogia iniciada com "Essa Terra" e "O
Cachorro e o Lobo". Quando escreveu "Essa Terra", já tinha isso planejado? Se
não, quando lhe ocorreu isso?

ANTÔNIO TORRES - Nunca tinha pensado antes em fazer desdobramentos da


história do Essa Terra. A coisa começou num dia de chuva aqui em
Copacabana, onde moro. Senti o cheiro da terra com as primeiras pancadas da
água e me lembrei de uma canção do belga Jacques Brell, Ne me quittes pas,
na qual ele canta: "Eu te oferecerei pérolas de chuvas vindas de um país onde
nunca chove". Aí me lembrei do lugar onde nasci, que antigamente se chamava
Junco (hoje, cidade de Sátiro Dias), no sertão da Bahia. Lá era seco. Depois de
longas estiagens, quando chovia, os homens vestiam terno branco e rolavam
na lama de tanta alegria. Foi aí, com essa lembrança, que me veio a idéia de
escrever O Cachorro e o Lobo, que é uma revisita ao Essa Terra 20 anos
depois. Nesse livro, há uma imagem forte, de uma mãe passando a linha pelo
fundo de uma agulha, sem óculos. Essa imagem viria a ser o ponto de partida
para a escritura de Pelo Fundo da Agulha, que aí está, causando emoções e
machucando corações.
183

Um dos temas desses livros é o suicídio. Em O Mito de Sísifo, Albert Camus


argumenta que o suicídio é o único problema filosófico relevante. O que pensa
acerca disso?

AT - Assino embaixo. Tanto que, em dado momento de Pelo Fundo da Agulha,


eu reproduzo um longo trecho de O Mito de Sísifo.

Que escritores ajudaram a definir seu estilo?

AT - Meu estilo começa na infância no sertão, ou seja, na cultura popular que


vem da literatura de cordel, das lendas de um povo, dos cânticos religiosos e
profanos, das festas populares. Venho de um mundo de contadores de história
e isso formatou meu imaginário. Quanto às influências eruditas, incluo Machado
de Assis, os romancistas da chamada Geração de 30 (Jorge Amado, Graciliano
Ramos etc.), e os norte-americanos, como William Faulkner, Scott Fitzgerald,
Ernest Hemingway, Truman Capote, e tudo mais, de Dostoievski ao francês
Boris Vian, de James Joyce ao português José Cardoso Pires.

A esmagadora maioria das pessoas não lê ou procura apenas livros de auto-


ajuda. Por que tantos ignoram ou desconhecem a grande Literatura?

AT - Outro dia fizeram uma pergunta parecida para o escritor norte-americano


Gore Vidal. A questão era: "Por que os grandes autores dos Estados Unidos há
muito tempo não figuram mais nas listas de best-sellers?". Ele respondeu que
literatura sempre foi mesmo para poucos, mas, no nosso tempo, os leitores de
literatura estão se tornando menos ainda. No ano passado, durante uma
conferência numa universidade francesa, um estudante me perguntou: "Como o
senhor explica o seu país, que deu escritores como Machado de Assis,
Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, e até o
senhor (risos), ter as listas de best-sellers que tem hoje?". Respondi: "São as
mesmas de Paris. Porque o mundo ficou igual naquilo que tem de pior. Não
eram vocês que queriam derrubar o Muro de Berlim? Agora, agüentem a auto-
ajuda".

Ainda é preciso escrever? Ou a literatura, para citar Kant, é uma finalidade sem
fim?

AT - Para mim, é uma razão de viver. Então, como pode ser uma atividade sem
fim? Apesar de tudo, ou talvez por causa de tudo, nunca houve tantos
escritores no mundo quanto hoje. E me refiro aos de literatura. Basta ver o
exemplo do Brasil. A quantidade de jovens escritores que vêm surgindo, e
alguns muito bons, é um espanto! Melhor assim.
184

O senhor é um dos poucos autores consagrados que mantém um diálogo


efetivo com as novas gerações. Em que medida essa troca é importante?

AT - Para mim, é fundamental. Como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto,
"o novo infecciona o velho". Procuro acompanhar a produção dos jovens e
dialogar com eles por pura malandragem. Assim, espero, não perderei a dicção
do nosso tempo. Mantenho-me atualizado com as técnicas de linguagem,
maneiras de ver o mundo e de fazer literatura. Logo, não pense que é porque
eu sou bonzinho que me relaciono bem com os escritores mais novos. É para
não perder o ritmo e o rumo das horas.
185

Anexo XI
COM A PALAVRA O ESCRITOR

"Prezadíssimo Carlos Ribeiro: reescrevi tudo. Enxuguei tudo, reduzindo o texto


praticamente à metade, tentando torná-lo publicável. Do jeito que estava - longo,
repetitivo, chato - parecia que dei aí a minha pior palestra de todos os meus anos de
palestrante nacional e internacional. Menino, achei um horror. De me matar de
vergonha. Espero que tenha melhorado, pelo menos um pouquinho. Ainda assim, me
sinto devedor de uma palestra decente para os meus conterrâneos. Outra coisa: acabo
de escrever uma crônica sobre Jorge Amado, sob encomenda do “site”do Banco do
Brasil, que está disponível no seguinte endereço: www cultura - e.com.br (depois
busque orbita e depoisestado da arte.) Se achar, e achar que vale a pena, por favor,
peça aos amigos para darem uma olhada (Aleilton, Gerana e quem mais possa se
interessar). Bom, já são 4 da matina de domingo. Essa revisão acabou sendo uma
refação. Deu um trabalho do cão. Um abração e obrigadão. Antônio Torres."

COM A PALAVRA O ESCRITOR ANTÔNIO TORRES


Data: 13/06/97

Em primeiro lugar, meus agradecimentos a Ildásio Tavares pela brilhante apresentação.


Realmente, ele tem razão: depois da sua fala não tenho muito mais a dizer (risos).

Bem, quero agradecer às instituições baianas que tornaram possível essa minha presença aqui
em Salvador. Refiro-me à Fundação Casa de Jorge Amado e à Universidade Federal da Bahia. E,
claro, a todos vocês.

Fiquei muito contente com o que o meu querido Ildásio Tavares falou sobre O Cachorro e o
Lobo, ao dizer que é um momento muito diferente na minha literatura. Acrescentaria que este
romance coincide com um momento diferente na minha vida. É a idade avançando e, quem
sabe, a maturidade chegando.

Permitam-me contar-lhes a curiosa reação de Luciana Vilas Boas, a diretora editorial da Record,
logo que o leu, ainda nos originais. Ela me telefonou para perguntar como era que eu tinha
conseguido criar um personagem “tão bem resolvido.” Se eu era uma pessoa “bem resolvida.”
Respondi-lhe que certamente que não; que talvez o personagem estivesse na contra-mão dos
meus próprios impasses pessoais. A verdade, porém, é que quando escrevi o livro, ele me
deu, em primeiro lugar, muito prazer, e, em segundo, me trouxe um certo apaziguamento.
Assim que o terminei, enviei uma cópia pra Paris, para Alice Raillard, que é tradutora de Jorge
Amado e conselheira para a língua portuguesa, na editora Gallimard. E ela me mandou uma
carta tão bonita, tão entusiástica, que eu pensei que não precisava mais publicar o livro: aquela
carta já me bastava. Andei um tempão com ela no bolso, já me dando por satisfeito.

Deixei O Cachorro e o Lobo na gaveta e parti para outra empreitada: a de escrever um livrinho
de encomenda para uma coleção chamada Cantos do Rio,do Rio-Arte, instituto da Secretaria de
Cultura do Município do Rio de Janeiro. A nova tarefa resultou num volumezinho intitulado O
Centro das nossas desatenções, que me fez bater perna pelo centro da cidade, vasculhando-o
em seus becos, bares, espaços culturais, legados históricos e, até, nos cocorutos de seus
arranha-céus. Perigrinei também pelas ilhas, que são marcos da história do Rio: a de
Villegagnon, a das Cobras e a Fiscal - esta, a do famoso baile que derrubou o Império. Além
desse corpo-a-corpo, também mergulhei num trabalho de pesquisa que, passo a passo, ia se
revelando fascinante. Tanto que esqueci O Cachorro e o Lobo por uns tempos. Até porque o
livro sobre o Centro do Rio era uma encomenda com prazo de entrega e publicação.
186

Durante as minhas pesquisas percebi que, assim como eu, a maioria dos cariocas andam pelo
Centro da cidade sem dar a menor atenção à história que existe nele, e que é riquíssima. Daí
ter me ocorrido esse título de O Centro das nossas desatenções. E que colou. E olhem que eu
temia o que os naturais do Rio de Janeiro iam dizer. “Como que um baiano se atreve a contar a
nossa própria história?” Para minha surpresa, a recepção foi extremamente simpática. Até hoje
continuo recebendo caixas e caixas de livros ensebados, alfarrábios caindo aos pedaços, com
pedidos de leitores para que eu escreva mais sobre o Rio. Logo, o resultado foi altamente
compensador.

Se O Cachorro e o Lobo foi apaziguador em relação ao meu passado de retirante, o livro sobre
o Centro do Rio poderá me abrir perspectivas futuras, pois me deixou fascinado pelo estudo da
História, e, sobretudo, o estudo da História das nossas cidades, como Rio de Janeiro, Salvador
e Recife, por exemplo. Ainda não sei aonde esse novo interesse vai me levar, literariamente
falando. Mas, para já, concluo que o conhecimento da História é fundamental para um
romancista.

E já que o escritor aqui está com a palavra, permitam-me mostrar como a história que escrevi
sobre o Centro do Rio se inicia. Porque as linhas que vou ler tem muito a ver com a trajetória
deste narrador que vos fala - um baiano que passou boa parte da vida se descolando de um
lugar para outro: do Junco para a Alagoinhas, depois Salvador, São Paulo, Lisboa, Porto e
outras Oropas e, finalmente, Rio de Janeiro. Vejamos:

“Comecemos pelo aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de vinte anos chegou,
olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do
Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de
Moraes. Ano: 1961. O passageiro estava em trânsito. Vinha da Bahia com destino a São Paulo.
Desceu aqui para fazer uma conexão, depois de cinco horas preso numa cadeira de uma
geringonça ensurdecedora e vagarosa, relíquia aeronáutica da Segunda Grande Guerra. Um pau
de arara do ar chamado kurtis commander que, mal avistava uma pista de aterrissagem, ia
baixando.

Descer no Rio havia sido uma bênção. Para os seus ouvidos, suas pernas, seus olhos. Assim o
vejo: olhando a cidade por trás dos vidros que o enjaulavam no saguão do aeroporto, enquanto
aguardava a chamada para o embarque. Azul era também a cor do seu paletó. Ele estava
convenientemente vestido para sua primeira viagem de avião. Trajava até uma gravata
vermelha, sobre uma camisa branca. E seus sapatos espelhavam, de tão bem lustrados. Numa
das mãos, portava uma maleta com tudo que possuía de seu, aos 20 anos - o que incluía meia
dúzia de livros -, além da roupa do corpo. Já que não podia sair, contentou-se em olhar à
distância a cidade que só conhecia de prosa e verso, cinema e canções, e tudo nela, o que
vinha dela, o fascinava. E dava medo. Imaginava-a fora da rota dos imigrantes, inatingível para
principiantes. O Rio era a Corte - dos sabidos e malandros. Suas artes e letras, sua natureza
deslumbrante (“ Deus fez o mundo em sete dias, dos quais tirou um para fazer o Rio de
Janeiro,” dizia a voz de ouro de Luiz Jatobá, num documentário de Jean Manzon), o atraíam.
Mas a manchete do jornal comprado na banca do aeroporto o amedrontava. Era sobre uma
operação de extermínio chamada chamada de mata-mendigos. E ali estava ele, entre duas
visões da cidade: uma sedutora, outra assustadora. Teve vontade de ficar. A chamada para o
vôo o levou em frente. Tinha que ir para São Paulo. Assim estava escrito na sua passagem. Era
um baiano do interior, um tímido roceiro, e estava indo para a locomotiva da nação, onde
sempre haveria de cabermais um. Voltaria ao Rio um dia, para vê-lo de perto, entrar nele,
conhecê-lo nas solas dos seus sapatos, se para tanto não lhe faltasse coragem. O Rio não era
uma cidade para capiaus, tabaréus da roça.

Trinta e cinco anos depois, um passageiro diário das linhas urbanas de Copacabana-Centro,
Centro-Copacabana, vai retornar ao Santos Dumont. A pé. Para tentar descobrir o que foi
mesmo que aquele garoto interiorano viu - e se por um momento poderiam voltar a ser a
mesma pessoa -, ainda capaz de ver a cidade com um olhar de novidade. E vai chegar moído.
Esbodegado. Como se tivesse batido nos cascos a longa estrada Bahia-São Paulo, embora seu
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fique logo ali. Aqui mesmo, no miolo do Centro, o número 110 da avenida Rio Branco, entre a
rua do Ouvidor e a 7 de Setembro, onde era o Jornal do Brasil.”

Até aí, não é ainda a História do Rio que está no centro da narrativa, mas a do narrador, que se
move sobre o seu próprio eixo de deslocamento. Todos os meus livros contém esse núcleo. Em
alguns dos meus romances, acho que de alguma maneira em todos eles, tento buscar um
entendimento do que se passa com os homens que trocam a sua terra por outra e que - é
minha percepção - lá no fundo de si mesmos perdem a que tinham e não conquistam a outra.
Isso a partir de minhas vivências junto aos baianos que foram para São Paulo.

Os que migravam do Junco, digo, de Sátiro Dias, se instalavam em São Miguel Paulista, na
periferia da cidade. Quando chegava o mês de junho, eles pegavam uma sanfona, um zabumba
e um triângulo e iam para os botequins, para comemorar os famosos santos do mês, como se
estivessem na Bahia. A vizinhança chamava a polícia, que chegava e os revistava. Assim que a
polícia ia embora, pediam um rabo-de-galo, despejavam um pouco para o santo e diziam: “Eles
estão na sina deles e nós na nossa. Vamos lá!” E o forró varava o tempo, até a polícia voltar. E
quando cheguei àquelas bandas, todos me perguntavam: “Sabe dizer se está chovendo por lá?”
Então entendi tudo: se dissesse que sim, muitos pegariam a estrada de volta.

Eis aí o substrato de romances como Essa Terra, que é a trágica história de uma viagem de
regresso às origens. Carta ao Bispo e Adeus, Velho seguem a trilha do ir-e-vir, só que com
personagens procurando um lugar dentro do mapa da Bahia mesmo. Em Adeus, Velho o
deslocamento é do interior para a capital, depois do pólo petroquímico, da insdustrialização do
estado, com novas oportunidades de trabalho, que reduzem os fluxos migratórios para o Sul.

Balada da Infância Perdida é essa Bahia nas paredes de um quarto em Copacabana. Inspirado
num poema de Garcia Lorca - Balada da pracinha -, é a história de um desfile de crianças
vestidas de azul e branco levando os anjinhos para o céu - ou seja, os caixõezinhos azuis. Isso
às 5 horas da manhã, com um narrador de porre, com um olho na parede e outro no
despertador. Nessa parede desfilam 25 anos da história do Brasil contemporâneo. É um delírio.

Tanto quanto há algo de delirante em Um táxi para Viena d’Áustria, que tem por cenário uma
esquina de Ipanema, e por ingredientes a violência urbana e o desemprego, na era Collor, pré-
globalização. E mais: uma banda com Mozart ao piano, Art Blakey à bateria, Charlie Parker ao
saxofone, Miles Davis ao trompete, nosso Baden Powell ao violão, Charles Mingus no
contrabaixo e Sigmund Freud ao reco-reco. Todos regidos pelo próprio Deus, em pessoa. E a
decretação da morte de todos os escritores do mundo, incluindo também a entrega dos restos
mortais de Dostoiévski aos urubus de Niterói. Tanto na Balada, como no Táxi, os personagens
centrais são nordestinos. E cada um, à sua maneira, está às voltas com o seu deslocamento.

Queria aqui falar da minha ligação com a música, que vem da minha infância, quando o Jazz de
Inhambupe ia tocar na missa solene e, à noite, no baile do Mercado do Junco. E depois, na
adolescência, ouvi muito todos aqueles maravilhosos e inesquecíveis vidas-tortas da minha
terra, que ficavam na calçada da igreja tocando para a Lua ou improvisando bailes, para animar
a moçada. O Junco (naquele tempo Sátiro Dias ainda era o Junco, um distrito de Inhambupe)
exportou muitos músicos para o Sul. Em São Paulo, peguei muita carona na carava de um
trompetista meu conterrâneo, chamado Zé Bispo, que tocava nos bailes de São Miguel Paulista,
Itaquera, Ermelino Matarazzo e outras cidades periféricas. Esse foi um dos que voltaram, não
para se matar, como o personagem de Essa Terra, mas para morar em Feira de Santana, de
onde arrasta a sua banda aí pelo interior. Mas há um outro, o Zito de Zé de Satu, o professor
de violão e maestro Zito de Oliveira, que assentou praça em Presidente Prudente, no Oeste
paulista, montando uma escola de música também em Presidente Venceslau, e que ainda faz a
festa até às margens do rio Paraná. E há ainda o João do Bolero, cujo cavaquinho exerce seus
domínios lá para os lados de Marília, também no Estado de São Paulo, derretendo os corações
paulistas com os sons do Junco. Tenho um irmão, aqui em Salvador, chamado José Raineldes,
Nem para a família, que é profissional do baixo elétrico. E um filho baterista, para desespero
dos meus vizinhos. Eles compensam um pouco a minha frustração de só tocar o teclado das
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letras. Mas antes que eu me esqueça: foi o trompete de Miles Davis, um gigante do jazz, que
inspirou um de meus títulos: Um Cão Uivando para a Lua. E o piano de Thelonius Monk sempre
dá uma certa cadência às minhas mal-traçadas linhas, que batuco dando razão a Caetano
Veloso: “Como é bom poder tocar um instrumento!”

Foi a lembrança de uma música, e as minhas memórias da chuva - com licença do poeta Ruy
Espinheira Filho - que me levaram a escrever O Cachorro e o Lobo. A música se chama Ne me
quites pas e é do belga Jacques Brel. A chuva veio num domingo. Cheguei à minha janela em
Copacabana e senti o cheiro da terra, com as primeiras gotas caindo no terreno baldio ao lado
do prédio onde moro. Os passarinhos cantavam. As árvores se eriçavam. Então me lembrei de
Jacques Brel, quando cantava: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde
nunca chove.” Então pensei: “Este país é o meu. E se chama Junco.” E me lembrei de que,
quando chovia no sertão, os homens vestiam terno branco e rolavam na lama, loucos de
alegria. Corri para o teclado e bati nele: “Eis aí. Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e
loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” Pronto, foi como se o espírito
de Totonhim, o narrador de Essa Terra que partiu para São Paulo, aos 20 anos, houvesse
baixado em minhas mãos, entrando em cena e pedindo para voltar às páginas, ou seja, para
fazer uma viagem de regresso à Bahia. O narrador aqui rendeu-se ao apelo do personagem e
deu-lhe estrada. O que significou uma volta da volta. E se as coisas não tivessem acontecido
deste modo, eu não teria voltado também, para ter o prazer de estar aqui com vocês.

Para terminar, queria lembrar que se a volta de Nelo, o personagem de Essa Terra, foi um
desencontro com final trágico, a de seu irmão Totonhim foi um reencontro. Ou por outra: a
recuperação da sua memória afetiva, do seu passado, de sua história, de si mesmo. Essa é a
diferença entre um livro e outro, entre esse romance de agora e os outros, o que nosso amigo
Ildásio Tavares percebeu. É como se o Totonhim afinal me fizesse compreender que esse
mundo está mesmo perdido, vai ver ele até já acabou faz tempo, e o que nos resta a fazer é
cuidar bem dos nossos afetos.

Na mesma medida digo a vocês: muitíssimo obrigado pela atenção afetuosa com que me
ouvem nesta Universidade Federal da Bahia. E fico por aqui, por não ter mais palavras para lhes
agradecer.

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