37 Manoela Falcon Silveira
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INSTITUTO DE LETRAS
por
Salvador - 2014
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INSTITUTO DE LETRAS
por
Salvador - 2014
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Guimarães Rosa
4
AGRADECIMENTOS
Aos estudantes de Letras da UFBA que cursaram as disciplinas LET C- 40 e LET C-42,
pelas reflexões sobre literatura e cinema compartilhadas durante as aulas ministradas no
tirocínio docente.
Aos diretores Lírio Ferreira, David França e Vicente Amorim pelas construções das
imagens do Espaço Nordeste representado contemporaneamente no cinema brasileiro.
Ficha de aprovação
6
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................ 10
1.1 O sofrê, o sofraco e o sofrido, uma fábula espacial tecida sobre o sertão
nordestino ................................................................................................................ 22
Referências.............................................................................................................. 140
Anexos....................................................................................................................... 151
9
INTRODUÇÃO
1960, para percebermos as diferenças marcadas pelo atual contexto social, em que os
sujeitos nordestinos têm acesso fácil aos meios de comunicação de massa, além dos
diversos recursos tecnológicos facilitadores da comunicação e transposição da própria
condição de deslocamento percebida pelos estudos desses espaços.
As produções midiáticas interferem diretamente na relação de sociabilidade
estabelecida entre os sujeitos na contemporaneidade. Os estudos desenvolvidos pela
geografia cultural já indicam a imposição de novas formas de sociabilidade a partir da
acessibilidade às novas tecnologias. A trilogia do escritor Antônio Torres aponta para a
condição deste sujeito nordestino em deslocamento constante, tanto do seu espaço
geográfico territorial, enquanto ser que migra da sua terra de origem para o centro
urbano, quanto daquele que se desloca subjetivamente, através da forma como se
relaciona com a cultura com que mantém contato através da mídia. A escrita de Antônio
Torres está marcada pelas imagens, sons e espetáculos que tecem a malha da sua vida
cotidiana: a escolha em narrar de forma fragmentária e a escrita de capítulos curtos
também coincidem com a forma atual de se viver em nossa sociedade.
O cotidiano hoje está programado para enfrentar a curta durabilidade dos objetos:
da geladeira à televisão, do computador ao livro, tudo é feito para durar pouco. A
obsolescência das coisas atinge ainda a nossa construção subjetiva, em que a fugacidade
do pensamento e a efemeridade dos acontecimentos se tornam grandes desafios para se
pensar o tempo presente. O autor se coloca na posição de alguém que observa as
diferenças espaciais existentes entre território e subjetividades pertencentes ao Junco da
década de 1970 à cidadezinha do final do século XX. As narrativas transitam e
evidenciam a centralidade que os aparelhos televisivos e outros meios tecnológicos
assumem em nossas vidas, ao serem instalados no coração de nossas casas.
Esse olhar de Antônio Torres para a obsolescência dos objetos é a base da
sustentação para a “superficialidade” da vida. Vemos um exemplo dessa visão em
entrevista concedida a Diego Damasceno, intitulada “Não sou sambista de uma nota
só”1. Ao responder à indagação sobre as suas idas e vindas pelo mundo e a sensação de
desenraizamento, típica de seus personagens, Torres afirmou que também já se sentiu
assim:
1
Ver íntegra da entrevista em anexo IX.
12
A escolha deste escritor tem sido dialogar com o popular e o erudito, recorrendo às
aproximações possíveis entre a escrita literária e os outros formatos mais difundidos
pela mídia. Interessa-nos a escrita de Torres porque a mesma reflete em seu espaço
literário as diferenças culturais que formam o sujeito nordestino no seu próprio território
ou longe dele. Os espaços subjetivos são filtrados pelas formas narrativas dos meios de
comunicação de massa, produzindo uma literatura que reflete a condição da cultura
atual, na qual a subjetividade é formada por múltiplos referentes.
Como afirmou a autora de Crítica cult, é difícil analisar uma obra literária
produzida recentemente sem perceber nela os traços das manifestações culturais
populares ou de obras que perfazem o universo midiático. Nesse sentido, o primeiro
capítulo, mais precisamente o subcapítulo intitulado “Na esteira das citações, as
subjetividades”, traz a análise da composição das obras, através da utilização das
13
Nordeste. Lírio Ferreira, em Árido Movie (2005), retrata a experiência vivida quando
criança, ao viajar pelo interior de Pernambuco com o seu pai. Já nas imagens projetadas
pelo documentário 2000 Nordestes (2000), dos diretores David França Mendes e
Vicente Amorim, vemos os personagens, como os próprios interlocutores, tendo suas
experiências de vida resvaladas pelo contato direto com a televisão e a cultura de massa.
Considerando a condição autoral implícita em toda construção narrativa, e
embora saibamos as diferenças existentes entre a literatura e o cinema, podemos
observar que as atividades dos cineastas citados anteriormente se aproximam daquelas
desempenhadas pelo escritor contemporâneo em tempos audiovisuais. O diálogo entre
literatura, imagem e sociedade ressaem como texto de base para repensar um legado
cultural construído por imagens depositadas na memória, pela influência direta que os
meios de comunicação assumem na formação social e cultural do espaço-Nordeste.
Nesse sentido, o documentário 2000 Nordestes registra, através dos depoimentos
dos personagens do filme, a narração dos acontecimentos e da forma de se pensar o
espaço nordeste através de pontos de vista pouco usuais, no que tange à representação
dessa região pela cinematografia brasileira. A poesia das imagens sobressai nos gestos e
declarações feitas pelos depoentes, e não pela manipulação da técnica pela técnica.
As paisagens filmadas em alternância com a objetividade dos discursos abertos
dos personagens-narradores, assim como a inserção das músicas e cenas de filmes que
retratam as paisagens nordestinas através do olhar de cineastas como Glauber Rocha e
Nelson Pereira dos Santos, marcam a capacidade de tornar visível aquilo que se deve
rever ou recordar, não na perspectiva da repetição, mas no desejo de perceber nesse
retorno as diferenças cruciais desses espaços apresentados pelas narrativas fílmicas, no
século XXI.
O poético e a pluralidade semântica desses filmes surgem do efeito diferencial do
ato de narrar, através da sutileza das palavras e da quase falta de pretensão de respostas
objetivas dos depoentes, na simplicidade dos diálogos travados na frente da câmera, em
que se pode captar a riqueza das experiências vividas, transformando-as naquilo que
Denilson Lopes descreve como o uso afetivo da imagem:
2
Ver artigo Espécie de espaço, publicado pelo pesquisador Heidrun Krieger Olinto.In:
MORGATO, Izabel & Renato Cordeiro Gomes (Org.).Espécies de espaço: territorialidades,
literatura, mídia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
17
1. A PLURALIDADE DO SERTÃO
MULTICULTURAL
21
século XIX e início do século XX são responsáveis pela fundação do discurso cultural e
simbólico sobre o Nordeste. O autor afirma que tanto o romance O sertanejo (1875), de
José de Alencar, quanto O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, trazem em seus
discursos as formas narrativas do mascaramento, e enquanto Os sertões (1902), de
Euclides da Cunha, contrariamente, indica o lugar dos impasses e a revelação do
confronto, ao invés do seu ocultamento. Segundo Amorim,
3
Ver : 1. Tese de doutorado de Neroaldo Pontes de Azevedo. Modernismo e Regionalismo – Os anos 20
em Pernambuco, 1984. 2.O livro O regionalismo nordestino: existência e consciência da desigualdade
regional, de Rosa Godoy, 1984. 3. Livro A tradição re(des)coberta: Gilberto Freyre e a literatura
24
regionalista, 1992. 4. A Invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, de
2011 (5ª Ed.).
25
E foi assim que um lugar esquecido nos confins do tempo despertou de sua
velha preguiça para fazer o sinal-da-cruz.
O junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino
Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os
seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão.
A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais longo do mundo. O
cheiro do alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os
cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas
estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da
minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da
minha avó. As rosas do bem-querer:
27
romance é feita não para reafirmar o mito, mas para reforçar a condição de
esquecimento do lugar, no qual nem mesmo Lampião teve tempo de passar.
A associação do Junco a “um fim de mundo”, a intensificação da paisagem seca e o
sonho das moças na janela em encontrar os rapazes da cidade para tirá-las daquele lugar
confirmam, em parte, o que Durval Muniz de Albuquerque Júnior discute em relação à
Invenção do Nordeste:
Esta confirmação “em parte” se dá pela forma como a narrativa do romance Essa
Terra dialoga com uma (des)invenção crítica dos elementos regionais, à medida que o
escritor enfatiza a experiência histórica vivida pelos sujeitos em contraposição à escrita
regionalista de 1920 a 1930, que reivindicava um recorte regional a partir do discurso
construído através da mitificação e hierarquização dos valores e dos espaços
nordestinos.
Na trilogia de Torres, e não só no romance Essa Terra, podemos perceber como
as relações entre espaço local (representado pelo Junco) e espaço cidade (centro urbano
paulista) representam os impasses e desencontros vividos numa região politicamente
demarcada pelo modelo centralizador de desenvolvimento. Em entrevista4 concedida ao
Jornal A Tarde pelo escritor Antônio Torres, podemos perceber a forma como ele
mapeia as diferenças existentes entre os seus romances e os romances realistas escritos
na década de 1930.
4
Ver anexo VIII.
29
5
BORGES, Augusto Carvalho e Heloísa Mª Murgel Starling (Org.). Imaginação da terra: memória e
utopia no cinema brasileiro. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2013. P.94-129.
32
retomada da tradição literária regional, representada pelos autores como José Lins do
Rego, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, que se tornavam referências diretas em
filmes de Glauber Rocha, Humberto Mauro, Nelson dos Santos, entre outros cineastas
que fariam das imagens projetadas do Nordeste um espaço mítico para buscar entender
a nossa brasilidade, a identidade nacional.
Em 1953, O Cangaceiro, de Lima Barreto, funda o ciclo de um cinema nacional
que traz para as telas a sociedade rural do Nordeste, reproduzindo nas imagens a
espetacularização da violência, substituindo o caráter sociológico, histórico e
econômico que imbricava a condição do cangaço e investindo numa leitura da região
como lugar da desordem, da violência e do atraso.
Contrapondo-se ao ciclo do cangaço, temos um exemplo de filme que buscou a
ruptura entre as imagens que vinham sendo construídas sobre o Nordeste através deste
ciclo, para investir na integração dessa região ao resto do país. Foi o caso de Viramundo
(1965), de Geraldo Sarno, que traduzia a chegada de trabalhadores nordestinos à cidade
de São Paulo para ocupar as vagas de serviços oferecidas nas indústrias e na construção
civil. Nesse período, o cinema insere uma questão sociológica fundamental para se
pensar o futuro do país. Aponta a condição indispensável para lidar com a modernidade
do Estado brasileiro, não eximindo da responsabilidade de vinculação do mundo
rural/agrário ao mundo industrializado que começava a ser construído.
Na atual filmografia brasileira podemos perceber como a retomada de temas e
imagens emergem para narrar, sobretudo, o espaço do sertão como lugar político,
colocando em jogo a discussão sobre as fronteiras, os deslocamentos e toda formação
cultural e identitária que são frutos das práticas sócio-culturais experimentadas pelos
indivíduos que vivem nessa região.
A primeira cena de Árido Movie já traz uma série de imbricamentos que serão
expostos ao longo da narrativa fílmica. A primeira imagem do rosto distorcido do
personagem invade a tela, e em seguida, alguém, que também não é visualizado
nitidamente, abre a porta e afirma: “Jonas, faltam cinco minutos”.
34
que implodem com a condição de violência exposta pelas imagens, pois na maioria das
vezes, o ato mais violento é narrado sem qualquer respingo de sangue na tela.
Figura 3: Longa panorâmica sobre os arrecifes da Capital de Pernambuco abre os créditos do filme
desculpe a expressão viu? Mas é que é foda mesmo, tem que racionar água.
Eu não entendo uma coisa, Recife é no meio da água e não tem água. E fico
com a gota serena por causa disso.
Jonas: Mesmo “sol de dois canos”.
O sol de dois canos faz referência a Sol de Pernambuco, poema em que João
Cabral de Melo Neto, em sua escrita cortante, de faca, mandacaru e fuzil, rompe com
uma estética mimética da realidade nordestina para, a partir da forma e da dureza do que
lhe é concreto, refletir sobre a realidade da condição do homem dessa região:
6
LUCAS, Meize Regina de Lucena. Por entre paisagens cinematográficas: O sertão no cinema
contemporâneo. In: MEDEIROS, Fábio Henrique Nunes e Taiza Mara Moraes. (Org.) Salve o cinema II.
Joinville, SC. Editora da Univille, 2011.
39
A “Poética das águas” definida pelo líder religioso “Meu Velho”, reforça a
perspectiva de que a água transpassa por toda a filmografia, contrastando com o título e
a reversão da fruição do mesmo, quando o termo árido é distorcido pelas imagens das
águas que vão inundando a narrativa fílmica. Desde o início, a abertura do filme projeta
os arrecifes (Recife) contrapondo imagens do rio Tietê, com sua água escura, parada,
instaurando um ar melancólico que é contrastado pelo brilho das águas do mar de
Recife.
Antes do encontro com o líder religioso “Meu Velho”, Soledad entrevista um
senhor que utiliza a forquilha para encontrar água na região e vai ampliando o seu
material filmográfico e a sua pesquisa para elaboração da instalação artística que
desenvolverá em São Paulo.
Senhor: É, água qui tá difícil mesmo. A gente só tem que contar só com a
sorte e com Deus. Os dois sempre tem que vim juntos, viu? E a sorte que é
uma benção divina se manifesta na própria natureza. É ela que é a cara de
meu Deus aqui na Terra. Bom, como eu tava dizendo, então eu pego minha
forquilha e caminho por essas terras toda. Já achei muita água para muita
gente, gente importante, gente pobre, até político.
Soledad: Mas qualquer pessoa pode fazer isso? Por exemplo, se eu pegar
uma forquilha e sair por aí eu também posso encontrar água?
Senhor: ôxen, minha filha, pode nada. Se assim fosse existia falta d’água
coisa nenhuma! Ó, primeiro tennha a fé, que é o querosene da alma. Depois o
dom, tem gente que tem, tem gente que não tem. Quem tem o dom da palavra
tem o pensamento, quem tem o dom da força, tem a fazenda, Quem tem o
dom da forquilha, tem a água.
Soledad: Mas aqui ainda tem água para ser achada?
Senhor: Mas minha filha, aqui num tem água não.
Soledade: Tudo bem, não tem problema nenhum. Era só para ter o senhor
mostrando um pouco da sua arte.
Soledad: Eu já andei falando com umas pessoas sobre Meu Velho. Eu não
imaginei que ele fosse tão popular aqui.
Jonas: Mas quem é esse tal de Meu Velho afinal, hein?
Soledad: Eu não te falei? É um líder religioso daqui, ele tem um fundamento
relacionado ao uso da água. E eu tenho que registrar suas palavras porque ele
tem exatamente o discurso que eu tô procurando. Não conheço ele não, mas
sei que ele é uma figura.
Jonas: Eu nunca ouvi falar dessa história.
Soledad: Ah, mas tudo isso eu ouvi dizer... por isso que eu vim pra cá.
41
Zé Elétrico: Ele chegou aqui feito garimpeiro. Ele comprou umas terras aqui
perto. Água nem pensar. Mas falava que tinha umas coisas lá e fez umas
cavernas, mas terminou conseguindo foi nada. Aí dizem que ele começou a
conhecer os índios e aí ele teve as primeiras visões e recebia umas
mensagens, coisa de encantamento, os encantados, você sabe né? Foi assim
que começou. Depois ele construiu o castelo.
Soledad: Um castelo?
Zé Elétrico: É, o castelo, em cima dessas minas, que transformou em
cisterna que fica cheia d’água. Aí ele benze e torna a água milagrosa.
Soledad: Sei.
Zé Elétrico: Agora, dizem que o que faz a água ser milagrosa, além da fé do
Meu Velho, é que a água é enriquecida com urânio, daí vem a força. (Logo
em seguida Zé Elétrico faz os gestos: Não falo, não ouço, não vejo.
Soledad: Você não quer falar né?
Zé Elétrico: E hoje o homem tá lá, entocado no meio do vale.
Em Cinema, terra e imaginação periférica, João Marcelo Ehlert Maia faz uma
análise dessa condição implícita de alguns filmes brasileiros que são retratados como
“evidências de uma potência expressiva e da persistência de certos modos de pensar o
42
7
Termo definido por Renato Ortiz em Mundialização e Cultura, 1994.
44
Figura 7: Imagens e voz de Meu Velho projetadas nas telas da instalação artística montada em são
Paulo
Figura 8: Instalação artística sobre a Poética das águas, realizada em SP pela videomaker Soledad
Esses aspectos e a opção pelo road movie, ou cinema de estrada, podem estar
associados às relações intrínsecas que esses filmes mantêm com a condição de
nomadismo, necessidade de locomoção e deslocamentos efetivados pelos indivíduos.
Os filmes de estrada, além de estarem diretamente associados às condições
citadas anteriormente, também estão interligados de forma direta com a
imprevisibilidade, a improvisação, o contato dos personagens com a realidade. Como se
45
8
SALLES, Walter. Cinemas, aspirinas e urubus uma forma e geografia. Folha de S. Paulo. São Paulo, 27
de Nov. 2005. Ilustrada, P E6.
46
Figura 9: Soledad e a visão do vale do Rocha e a panorâmica sobre o espaço sertão de Rocha.
9
Ver crítica na íntegra em anexo V.
48
(...) “tateando sem mapa ou tendo apenas um mapa noturno. Um mapa que
sirva para questionar as mesmas coisas – dominação, produção e trabalho –
mas a partir do outro lado: as brechas, o consumo, o prazer. Um mapa que
não sirva para a fuga, e sim para o reconhecimento da situação a partir das
mediações e dos sujeitos” (MARTIN-BARBERO, 2006, p.290).
Figura 10: Frase da lameira do caminhão: Aonde a água chega a água faz o resto e Instalação/SP
Figura 11: Estátua de Padre Cícero, Imagens de santos católicos e outdoor da Coca-cola.
Para Hoisel (1980), essa “estética da consumibilidade” proposta pela cultura pop
não ocorre de forma acrítica e desprovida de uma postura política. A arte pop, ao se
manifestar de forma múltipla, investe consequentemente, numa proposta alegórica.
A utilização do recorte e da colagem nas cenas projetadas no documentário 2000
Nordestes, fundamentalmente aquelas que recorrem às cenas dos filmes Deus e o Diabo
na terra do sol e Vidas secas, colabora para que a imagem citada torne-se uma espécie
de fórmula autônoma dentro da narrativa. Como indica Compagnon, sua projeção
distancia-se da sua função anterior, a qual será posteriormente preenchida pela junção
51
Figura 12: Caminho para o Monte Santo seguido pelos seguidores do beato Sebastião em Deus e o
Diabo na Terra do Sol intercalado por imagem de habitante de Canudos-Bahia, no mesmo local da
cena filmada por Glauber.
Nesse sentido, a primeira função assumida pela citação seria associada à utilização
do processo fático, onde lhe caberia o papel de proporcionar ou manter a comunicação
entre o sujeito leitor/espectador e a obra.
Na trilogia de Antônio Torres, as citações são viabilizadas no texto sempre
mescladas com formulações sobre as alterações nas formas de se ler o mundo ou nas
transformações dos hábitos e costumes do povo, que, a partir do convívio produzido
pelo contato com os novos aparatos tecnológicos, deixa os velhos hábitos de lado, entre
eles a conversa com os amigos durante a noite na praça ou nas portas das casas. Em O
cachorro e o lobo (1997) temos algumas passagens que ilustram esta afirmativa:
Que tal a gente ir de casa em casa, pra fazer uma visitinha rápida a todos os
nossos parentes que ainda moram aqui?
Pra quê?
Pra prosear um pouco, dar risada com eles, como o senhor sempre gostou de
fazer.
53
A esta hora, meu filho? Logo na hora que todo mundo ta vendo televisão e
não quer conversa? Aqui agora é assim: televisão, televisão, televisão. Até
caírem das cadeiras, mortos de sono. (TORRES, 1997, p. 161-162)
Como uma espécie de saída para o passeio do fim de noite, Totonhim sugere uma
volta de carro até o Cruzeiro da Piedade, ao som do repertório de Luiz Gonzaga, o Rei
do Baião. Os trechos das letras de várias músicas cantadas por Gonzagão são descritos
nas páginas do romance, na empreitada de mais uma vez fazer da invasão da citação na
trama, um mecanismo de tradução da memória afetiva e de reflexão sobre a atual
condição de vida naquele lugar.
54
Este autor considera que a questão-chave para a discussão travada entre as noções
de espaço e identidade deve ser perseguida através da observação dos locais de fala,
verificando-se aquele que pratica o discurso, pois
Figura 13: Nordestinos trabalhando na construção civil e vendedor de Ervas medicinal em SP.
Figura 14: Imagens do sujeito habitante do espaço nordeste com sua família versus Fabiano e o
menino mais novo e o menino mais velho, intercaladas em 2000 Nordestes.
Figura 15: Meninos em cidade do nordeste trabalhando como guia turístico versus imagem do
menino mais novo que imita Fabiano.
Figura 16: Depoente do documentário 2000 Nordestes e o Matador de cangaceiro Zé das Mortes.
(...) é possível dizer que a “região” não é uma positividade geográfica, mas,
ao contrário, um produto sociocultural das disparidades geográficas no
processo de desenvolvimento econômico capitalista. Em segundo lugar, é
preciso dar conta da extraordinária obra de publicistas, pensadores,
produtores culturais e lideranças políticas na construção simbólico-cultural da
“região” ou da “identidade regional”. Obra de artistas, ensaístas, poetas,
literatos, compositores etc. É assim que nasce uma “região”, ou seja, a partir
da disparidade econômico-social (na dinâmica do desenvolvimento
capitalista) e da produção discursiva de uma “identidade social” o Nordeste,
o Movimento Armorial, a brasilidade nordestina, o homem telúrico etc.
(ZAIDAN FILHO, 2003, p.44)
Figura 17: Jonas na casa da Avó paterna, Caminhões-pipa parados com faixa de deputado
afirmando que “onde a água chega a água faz o resto”, Deputado em negociação com a família de
Jonas.
Para este autor, a forma como o mundo se coloca hoje descentraliza a tradição
narrativa dos espaços descritos em torno dos heróis e dos mitos fundadores do Estado-
Nação para o espaço subjetivo do sujeito e da forma como ele se relaciona com os
lugares. As ações dos sujeitos são colocadas em evidência, e sua prática realizada pela
narrativa através dos relatos transformam os lugares em espaços.
Nos romances de Antônio Torres podemos analisar a forma como o espaço é
praticado e, a partir das inferências feitas pelo narrador Totonhim, evidenciamos os
aspectos que transformam o lugar conhecido como Junco e/ou os espaços paulistanos
descritos nos romances.
Ao citarmos o início das narrativas da trilogia de Torres, veremos como a
estrutura narrativa confirma a lógica da utilização de indicadores de “percursos” para a
construção do relato em suas experiências narrativas.
É a partir desses relatos do cotidiano e das experiências dos sujeitos com o seu
tempo que as cidades, as pessoas, os acontecimentos e lugares vão sendo inseridos
66
Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai,
que disso tudo tem um pouco.
E se aqui estou é por causa dele mesmo. Ou malhor, dos seus oitenta anos.
Foi uma festa de arromba, me disseram. No dia seguinte! (p.7)
Figura 18: Menina que está no nordeste e sonha em ir para São Paulo, Nordestinos trabalhadores
da construção civil em São Paulo (2000 Nordestes).
Zé Elétrico: Essa terra tem muita história. Tinha um povo que habitava essa
região e sabia usar bem ela. Um povo que veio depois, que invadiu e matou.
Chamavam os primeiros habitantes de índios. De índios. E os índios foram se
dividindo, se misturando, de donos viraram empregados. As mulheres
viraram putas. Primeiro a gente perdeu as terras. E logo depois o respeito, e
junto começamos a perder os dentes. Às vezes aparece um pessoal que diz
que tudo era nosso, tudo era lindo, mas nem era. Tinha guerra, tinha disputa,
tinha fartura e tinha falta, mas era nosso. E a gente terminou sem nada. E saiu
por aí. Eu mesmo já morei até em São Paulo. Fui levar maconha e terminei
trabalhando num puteiro na avenida São João. Mas voltei, porquê?
Para autores como Canclini (2007), a estratégia de utilização das citações e do uso
das informações de forma fragmentária encontra-se diretamente ligada ao processo
homogeneizador da globalização. Canclini apresenta esse traço de uma forma muito
clara, quando afirma que “o que se costuma chamar de globalização apresenta-se como
um conjunto de processos de homogeneização e, ao mesmo tempo, de fragmentação
articulada do mundo, que reordena as diferenças e as desigualdades sem suprimi-las”
(CANCLINI, 2007; p. 44-45). Nesse sentido, a globalização não somente homogeneiza
70
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades
se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e
tradições específicas e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados
por uma gama de identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor,
fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível
fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja
como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural”.
(HALL, 2006, p. 74).
10
O conceito de não-lugar definido por Marc Augé em Não Lugares: introdução a uma antropologia
da supermodernidade, considera que, na contemporaneidade, aspectos como o excesso de
acontecimentos, a superabundância espacial e a individualização das referências , levam o sujeito à falta
de reconhecimento da identidade, do sentimento de pertença e da afetividade relacionada às experiências
vividas. O não-lugar espelha o vazio de referências históricas e culturais, ele não cria uma identidade
singular, é fruto da atual comunidade informacional. (AUGÉ, 1994, p.79)
74
11
Ver citação do trecho de O mito de Sísifo, de Camus In: TORRES, Pelo fundo da agulha, 2006, p. 182.
75
(...) A terra dorme. Com o que este lugar estará sonhando? Durante o dia
achei que o cenário era perfeito para um filme de cowboy. Agora o cenário
está desmontado. Fecharam o último saloon, nenhum pistoleiro chegando,
ninguém toca gaita, realejo ou violão. Nenhuma moça à janela. Nenhum Bob
Nelson cantando: “ô-ti-ro-lê-i-ti”. E eu não serei mais gongado num
programa de calouros. The end. Só os galos cantam. E os cachorros uivam,
solidários com as minhas velhas dores. (...) (TORRES, 1997, p. 190-191).
Voltaria àquele subúrbio feio, pobre, triste. E nele encontraria mais pessoas
para ter saudades da sua terra do que o escrivão de polícia que acabava de
conhecer. Nem parecia que aquele lugar, chamado São Miguel Paulista, fazia
parte das redondezas da maior cidade da América do Sul, da qual era um
apêndice inchado, graças às contribuições dos retirantes sertanejos à sua
densidade demográfica. O alto-falante da praça cantava: Eu penei, mas aqui
cheguei...
Eis aí: a voz do mesmo Luiz Gonzaga, o rei do baião, ouvida em todas as
praças do sertão. Sentiu-se no Junco (TORRES, 2006, p.141).
(...) Mas o que sabemos das identidades indica que estas não têm consistência
fora das construções históricas em que foram inventadas e dos processos em
que se decompõem ou se esgotam. Alguns elementos utilizados para delimitar
76
as relações que podem existir entre poder e saber. Desde o momento em que
se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de
deslocamento, de transferência, pode-se aprender o processo pelo qual o
saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma
administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam
pelo saber e que naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas
formas de dominação a que se referem noções como campo, posição, região,
território (FOUCAULT, 1979, p.158).
Figura 22: Depoente afirma “Quem sabe é Deus”e a imagem do beato Sebastião é contraposta em
2000 Nordestes.
próprias palavras. Daí, são construídos os blocos, as falas dos depoentes delimitam a
forma da decupagem do material cinematográfico, e as cenas aparentemente simples se
transformam em “pura” dramaturgia.
Na dramaturgia de 2000 nordestes os depoentes fazem o quadro, são eles quem se
colocam no campo. E esta é a tarefa considerada mais difícil no fazer documentário, se
formos interligá-la à questão da aceitação do público espectador. Pois as falas, ou
melhor, a escuta do filme documentário não coincide com a fluidez e rapidez da
linguagem televisiva vivenciada pelos sujeitos hoje. Essa realidade é constatada pelas
imagens do próprio documentário, que traz em diversos blocos a interferência da
televisão na vida das pessoas e na própria construção subjetiva dos depoentes
participantes. Como podemos exemplificar a partir da descrição de determinadas cenas:
Figura 23: Depoente cita Ratinho como programa que ajuda a resolver os problemas sociais.
Ferreira (em Árido Movie) e nas obras literárias do escritor Antônio Torres, que serão
discutidos no subcapítulo a seguir.
Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe.
Estava com 17 anos. Ele iria passar mais três anos para se despregar do cós
das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites com a fala e as
roupas daqueles bancários ― a fala e a roupa de quem, com toda certeza,
dava muita sorte com mulheres (TORRES, 1976, p. 11).
Vinte anos para frente, vinte anos para trás. Eu no meio, como dois ponteiros
eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa ‒ um velho
relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas. Eis como
me sinto e não apenas agora, agora que sei como tudo terminou. (TORRES,
2005, p.18)
Totonhim vai revelando todas as mazelas vividas por Nelo em São Paulo. A
imagem do migrante vencedor, rico e bem sucedido, como idealizada pela família, se
desfaz na contraposição do retorno do homem falido, traído e abandonado pela
mulher. Essas narrativas vividas intensamente por Nelo e Jonas mostram grande
parte das tensões produzidas pela condição arquetípica da modernidade tardia: a
experiência de estar dentro e fora. Experiência que para Stuart Hall tem se tornado
cada vez mais comum, desde que a migração constituiu-se como o grande evento
histórico-mundial representante da experiência pós-moderna.
86
Figura 24: Jonas no estúdio do telejornal em São Paulo e imagens do rio Tietê
Meu Velho: Minha filha, isso aqui é e não é! Mas está sendo! Nesse
momento ocorre um trânsito intenso pra Saturno, muitas pessoas estão indo
pra lá. E essas pessoas vão ficar por lá, porque eu as fecharei, eu tenho a
chave e não hesitarei em usá-la.
Soledad: E pra onde vocês vão?
Meu Velho: Para Júpiter. Beber a água mimosa de íon. Lá me instalarei e
ficarei a espera, para realizar minha nova missão.
Soledad: E qual seria a sua próxima missão?
Meu Velho: O retorno do Caos e a recriação do Universo. Não há vida sem o
estado líquido, e eu tenho a poética das águas.
89
Figura 28: Meu Velho em momentos que antecedem a filmagem com a videomaker
12
O conceito de desterritorialização construído por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia (V. 5), contribui para auxiliar na reflexão sobre a importância de se pensar
esta noção, considerando que não há território sem um vetor de saída do território, ao passo que não
há desterritorialização sem que aconteça por parte do sujeito um esforço para se reterritorializar em
outro lugar. Para estes autores esta noção é uma importante ferramenta para entendermos melhor as
questões filosóficas, as práticas sociais e a construção da política da subjetividade em nosso tempo.
DELEUZE&GUATTARI, 1997, p.224.
92
em sintonia com o ruído emitido pelos primeiros acordes das conexões de rede via
telefonia discada.
O compositor coloca em evidência a necessária reflexão sobre a condição de
inclusão dos sujeitos nessa cultura. Atento ao processo de distribuição e acessibilidade
aos meios informacionais, sugere o alargamento emergencial desse processo em todo
espaço brasileiro.
Trazer algumas estrofes da canção Banda larga cordel para este texto implica
numa proposta de redefinição dos processos narrativos sobre o espaço-Nordeste
produzidos pela arte contemporânea, entre elas a literatura e o cinema. Analisando como
corpus desta pesquisa a trilogia literária do escritor Antônio Torres a partir dos
romances Essa Terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, o filme Árido
Movie, de Lírio Ferreira e o documentário 2000 Nordestes, de Vicente Amorim e David
França vemos como se reconstrói o espaço, ou melhor, a multiplicidade de espaços no
atual nordeste brasileiro.
Nas primeiras cenas do filme Árido Movie, a representação do protagonista
focalizada pelas câmeras do estúdio de um telejornal paulistano indica a transposição de
imagens que tendem a construir uma nova representação da aridez. O árido desloca-se
do espaço, enquanto lugar, para questionar a própria condição do sujeito, ser identitário
em crise e exposto aos processos narrativos que redefinem as pessoas à medida que o
tempo muda, e junto com ele as transformações causadas pelo caráter globalizador das
atuais construções sociais, econômicas e históricas inerentes ao processo de
globalização mundial.
O “Estado de violência” gerado pelo processo de modernização que não
acompanhou as necessárias mudanças econômicas, sociais e também culturais,
promoveu o que Nízia Villaça, em artigo intitulado “Apelos e apelações do
94
contemporâneo” (VILLAÇA, 1996, p.18) considera como perda identitária causada pelo
intenso desenvolvimento tecnológico e consequentes mudanças que os mesmos
provocavam na maneira de o sujeito enxergar a si e ao mundo em que vive. Para esta
autora, isso repercute também na forma como a literatura e a arte passam a representar
esse mundo.
E o que percebemos é que as alterações provocadas pelos novos aparatos
tecnológicos, assim como a disposição da acessibilidade aos novos meios
informacionais, modificaram também a criação dos processos estilísticos de
representação do literário e do cinematográfico através das novas imagens projetadas do
espaço-Nordeste. Na trilogia do escritor Antonio Torres vemos explicitamente a forma
como as citações e a escrita fragmentária promovida através da narração dos fatos, dos
lapsos de memória ou da frequente recorrência ao memorialístico, rompe com a noção
de tempo.
Anacrônicos, os romances contemporâneos passam a se apresentar como uma
espécie de grande coleção de imagens, como uma espécie de colagem fotográfica que
visa montar o mosaico dos “acontecimentos” de forma tão fragmentária quanto a
expressão da vida que se orienta cada vez mais pelo espaço, não podendo ser mensurada
pelo tempo. Essa lógica espacial tem sido reproduzida pelo contato direto com os meios
tecnológicos (a televisão, o rádio, a internet, o cinema, entre outros).
No romance intitulado Pelo fundo da agulha, que fecha a trilogia iniciada pelo
escritor Antonio Torres em Essa Terra, o protagonista começa a embalar a narrativa
através da imagem da mãe velhinha, enfiando a linha pelo fundo da agulha. As imagens
produzidas pelo romance parecem passar sempre pelo mesmo orifício. Pelo fundo da
agulha passam os fragmentos de vida e memórias narradas no romance, passam ainda o
fluxo intenso de citações literárias, músicas, filmes, filósofos, escritores e ditos
populares que permeiam o romance.
As três narrativas estão pautadas nas atuais condições de subjetivação do
espaço/tempo contemporâneo. Nos romances de Torres podemos perceber que a questão
da subjetividade perpassa tanto pelo “sujeito da escritura” quanto pelo “sujeito na
escritura”, como adverte-nos Nízia Villaça em texto intitulado “Novas subjetividades”.
O caráter autobiográfico das obras reflete a constituição do sujeito autoral no texto, sem
deixar de lado a questão do sujeito ficcional no texto, confirmando a perspectiva da obra
literária enquanto representação da comunicação artística entre os sujeitos no texto e os
sujeitos leitores, extra-textuais, como propõe Bakhtin em Marxismo e filosofia da
95
linguagem (1979, p. 109). Para a autora, as novas subjetividades são expressas nas obras
apontando-se o caráter paradoxal da cultura contemporânea. Se cada época corresponde
a uma representação do indivíduo, as obras contemporâneas instalariam o campo de
batalha entre os diferentes processos de construção do sujeito (VILLAÇA, 1996, p. 55).
Nesse sentido, verificamos que as obras literárias e fílmicas abordadas refletem o
espaço/tempo de cidades que possuem suas dimensões físicas e informacionais. E é a
partir do contato entre as duas dimensões que são produzidas as subjetividades. Nos
depoimentos do documentário 2000 Nordestes, percebemos o fluxo de informações que
percorre os ambientes visitados. De acordo com as imagens projetadas em diversas
localidades do Nordeste, podemos perceber que “a cultura da mobilidade não é neutra
nem natural” (LEMOS, p.18).
Em ensaio intitulado “Cultura da mobilidade”, André Lemos, professor e
pesquisador em cibercultura, indica que
Figura 30: Imagens de depoentes nordestinos que sonham em ser famosos, dançar na televisão, ser
cantor(a).
Mãe: Eu não sei o resto, mas Salustiano me disse que D. Carmen só sossegou
quando eu prometi que ia te convencer a ir no enterro de Lázaro. É até
engraçado isso, mas de um jeito ou de outro você é neto dela e apesar de você
ter partido há muito tempo é melhor você saber que você aparece quase todo
dia na televisão.
Jonas: Engraçado, sabe que eu nunca tinha pensado nisso assim? Que o meu
pai e a minha vó me viam todo dia.
Mãe: Televisão faz você virar um fantasma. Você tá o tempo todo em lugares
que você nem sabe. De qualquer forma é bom você lembrar que você é a
estrela de Rocha. O artista da cidade.
Jonas: Acho que eu vou querer uma dose de uísque sim.
comemorar a chegada do trem, após anos de promessas que não se cumpriam, como
explicita a crônica publicada no jornal A Penna, citada pela autora no capítulo intitulado
“O cotidiano do deslocamento”:
Agora sou eu o que volta, sem festa nem foguetório. Pelo tempo que estou à
janela e pela rapidez com que as notícias correm neste lugar, já era para ter
sido notado. Mas ninguém apareceu ainda para os rapapés de antigamente.
Vai ver o ir e vir se tornou tão banal que já não impressiona a pessoa alguma.
São Paulo virou um caminho de roça. O mundo ficou pequeno. Viajar já não
é mais uma aventura emocionante (TORRES, 1997, p. 69).
A figura 33, apresentada a seguir, traz uma dessas imagens. Na transcrição da fala
do depoente, percebemos a condição do lugar em que começou a construir a vida ao
chegar à capital do Rio de Janeiro.
13
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2001. P.62
106
mesmo tempo trazem uma série de estranhamentos que também compõem essas obras.
Para estes autores, o presente das narrativas está impregnado de estranhamentos em
relação a ele.
Sobre essa relação entre os acontecimentos do passado e a construção do
presente, a escritora Beatriz Sarlo (2007) afirma que:
que, a partir dessa publicação, as histórias de novos sujeitos passam a demandar novas
exigências e novos métodos que se debrucem sobre os “discursos de memória”.
O reflexo do conjunto de inovações dessa tendência acadêmica que se propôs a
valorizar a textualidade e a rememoração das experiências de vida constitui o que
Beatriz Sarlo denomina como “guinada subjetiva”.
Nessa guinada é preciso destacar a importância que a memória assume na
representação das narrativas, sem deixar escapar o valor que deve ser atribuído ao
pensamento, assim como a noção de que toda narração está fundada numa
temporalidade:
Ele é muito generoso, pois cada um sai com o seu final. É um filme pessoal,
tem memórias, ideias, neuroses. As pessoas não precisam decifrar seus
signos, mas podem senti-los. Ele é também uma homenagem à expressão
Árido movie, cunhada pelo jornalista Amin Stepple, uma espécie de guru da
minha geração. 14
14
Disponível em: <http://quadro-magico.blogspot.com.br/2009/08/com-sede-de-cinema-entrevista-com-
lirio.html> Acesso em 09 de abril de 2012. Lírio Ferreira explica o significado da expressão Árido Movie,
cunhada por um grupo de diretores e músicos ligados ao Movimento manguebeat em Recife no intuito de
afirmar as produções culturais realizadas na região naquele período.
112
(...) soube encontrar a sua própria estrada, o que é tanto mais evidente quanto
a recriação do universo sertanejo, tem nela muito de autobiográfico e
catártico.
Sob a forma de um relato fragmentário e memorialístico, Essa Terra,
apresenta a história trágica de uma família de origem rural: a do narrador-
personagem Totonhim. (p.176-177)
114
(...) Em última instância, a obra narra uma história de família, uma história de
família em situação extrema de diáspora, separação, distância, como
contingência mesmo da vida em diáspora. Uma história de família narrada
por quem ficou e recolhe os restos de tanta dificuldade de diálogo para talvez
no futuro construir sua própria narrativa – narrativa essa que Torres veio
efetivamente a colocar no papel em livros posteriores. Assim como em Joyce
e Virginia Wolf, a lição básica de Faulkner é um modernismo narrativo que
combina fragmentação a fluxo discursivo na tentativa de mimese dos
processos subjetivos internos. Em Antônio Torres, essa combinação
representa o esforço de recuperação dos laços afetivos, no contexto árido e
rascante de relações humanas irremediavelmente falhadas. Eu disse
irremediavelmente? Mas para Torres, existe um remédio para as falhas do
afeto: sua redenção pela palavra romanesca, que é também, sempre, palavra
poética.
pelo ser nordestino ali construído. Este olhar que se quer antropologizante, à medida
que busca dialogar com as duas tendências das narrativas contemporâneas chamadas de
“retorno do autor” e de “virada etnográfica”, insere-se na complexidade da dupla
inscrição das narrativas em questão, para tentar avaliar a forma como esses territórios da
memória estabelecem uma relação direta a partir das considerações encontradas através
da escrita textual e do sujeito da escrita, que ora se inscreve no texto. Como destacou
Arfuch em seu livro O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea,
15
Ver anexo I
118
Num primeiro momento, a fala do escritor Antônio Torres parece convergir para a
formulação da hipótese de que a seca era responsável pela saída das pessoas do Junco
em direção às grandes cidades. Mas logo em seguida, ao ser questionado sobre o motivo
de sua própria saída do Junco, o autor deixa a entrever que o êxodo das pessoas ocorria
menos pelo motivo da seca do que pelo deslumbramento causado a partir do contato
com as evoluções tecnológicas que chegavam à cidade do Junco e atiçavam o desejo das
pessoas do povoado:
A análise descrita por Antônio Torres sobre a atual condição do sertão nordestino
coincide com as imagens projetadas pela filmografia do diretor Lírio Ferreira. Em Árido
Movie, as cenas de violência apresentadas na pequena cidade de Rocha são provocadas
por aqueles que comandam as áreas de latifúndios de plantação de maconha e
consequentemente, o tráfico da droga na região.
Se é perceptível a presença do pacto referencial, matizado pela reelaboração
imaginária dos fatos, nas narrativas literárias em questão, poderíamos afirmar que o
mesmo acontece no filme de Lírio Ferreira. Em entrevista intitulada “Por trás do seco,
tem o mar” realizada pelo jornalista Rodrigo Campanella (do Pílula Pop – BH) com o
cineasta pernambucano, temos, a partir do título da entrevista, o primeiro indício da
tematização trazida pelo filme, que é o deslocamento da visão da aridez da seca para o
mar e sua imensidão de água. A presença versus ausência da água, como tema central da
narrativa fílmica é parte integrante do acervo comum experimentado por diversos
nordestinos.
16
Ver em Anexo VII a entrevista concedida ao blog CLISERTÃO, na passagem do escritor pela cidade
de Petrolina-BA.
122
Nessa entrevista, Lírio Ferreira cita algumas referências diretas para a elaboração
e processo criativo da história e da técnica cinematográfica presente em Árido Movie.
Ao ser questionado em relação à estranheza experimentada pelo personagem
principal e pelo próprio espectador ao assistir o filme, o diretor revela que esse processo
de estranheza encontra-se enraizado em sua subjetividade, suas lembranças da infância.
A ativação da memória aos tempos de infância, por exemplo, representam para o
próprio cineasta a sua condição de estrangeiro no espaço nordestino.
Lírio Ferreira: Desde criança, anos 70, viajo pelo sertão de Pernambuco,
com meu pai. Até hoje quando eu cruzo o sertão me sinto meio estranho com
a geografia, o clima, o tratamento das pessoas. Sempre sentia que penetrava
num lugar que não me pertencia. O filme tem isso, quis impregnar nele essa
coisa do olhar estranho. Temos um personagem que nasceu em Pernambuco
mas que tem 1,92 de altura, é loiro, olhos claros. Ele nasceu e tem memórias
afetivas ali, mas se desgarra. Quando volta, se sente um estranho na própria
terra. Tudo isso é calcado na própria realidade que a gente vivia em Recife. O
Guilherme é um ator paranaense, mas o Otto, que fez a trilha do filme,
nasceu na cidade vizinha das filmagens e é loiro, grande, aquele tipo europeu.
configuradas entre os espaços rurais e urbanos dos “nordestes” que habitam a cidade
paulistana e o interior de Pernambuco. A maneira como este conflito identitário
invade as telas gera ao filme a crítica de ele ser muito aberto, pois o não fechamento
das histórias de vidas das personagens narradas causa a impressão de um fluxo
subjetivo sempre inconcluso.
Em entrevista cedida ao Diário de Pernambuco em 09/08/2009, Lírio Ferreira foi
questionado em relação à controvérsia gerada por essa crítica. O cineasta reage,
afirmando que se trata de um filme muito generoso ao permitir que cada espectador
saia do cinema com a liberdade de imaginação do seu final.
Em entrevista concedida à repórter Silvana Arantes17, e confirmando o caráter
autobiográfico do filme, Lírio Ferreira comenta que a cena da ressurreição de Lázaro,
pai de Jonas, foi a primeira lembrança cinematográfica recorrente em sua cabeça,
quando retornou para Recife e lembrou dos filmes que assistia no antigo Cine Rivoli:
autoficção, em busca das “verdades” criadas pelo autor para as suas próprias
experiências. Klinger (2007), na esteira de Doubrovsky (1988), afirma que
18
Subcapítulo intitulado “O pacto referencial na trilogia de Antônio Torres e em Árido Movie”.
125
Walter Benjamin
Figura 34: Imagens do Rio de Janeiro e São Paulo contrapostas pelas imagens do sertão nordestino.
19
SILVA, Sávio Tarso Pereira. História, documentário e exclusão social. In: NÓVOA, Jorge e José
D’Assunção (org.). Cinema – História: Teoria e representações sociais no cinema. 2.ed. – Rio de
Janeiro: Apicuri, 2008.
128
Caminho das Nuvens (2003), que narra o deslocamento da família (o casal e cinco
filhos) do caminhoneiro desempregado Romão, da cidade de Santa Rita-PB para o Rio
de Janeiro, percorrendo três mil e duzentos quilômetros de bicicleta. Romão (Wagner
Moura), o pai desempregado e Rose (Claudia Abreu) partem em busca de uma vida
melhor e da realização de vários sonhos, entre eles, o de um emprego em que Romão
consiga ganhar um salário de Um Mil Reais para sustentar a família. Esta narrativa,
baseada na história real de Cícero Ferreira Dias, foi filmada em oito semanas, tendo
como locação as cidades de Juazeiro do Norte e arredores, Porto Seguro e Rio de
Janeiro.
Mas para iniciar a filmagem, Vicente Amorim percorre o interior do Nordeste e
filma o documentário que resolve intitular de 2000 Nordestes pela percepção da
pluralidade espacial que ultrapassa as fronteiras regionais oficiais e da própria formação
multicultural dos depoentes, em plena virada de século.
Na produção do documentário, o uso da linguagem que opta pelo modelo
interativo20, ao proporcionar a intervenção do cineasta, da equipe de produção em
interação com os “atores sociais”, propicia a partir da dialética filme versus realidade, a
construção das “verdades” do sujeito, que saltam para a tela a partir das narrativas das
experiências vividas. Essa sensibilidade captada pelo documentário foi perseguida pelo
cineasta, numa tentativa de evitar levar para o filme de ficção um retrato da
subjetividade nordestina estereotipada.
Quando afirmamos a condição de produção do filme documentário, não estamos
desconsiderando o caráter ficcional presente nas narrativas apresentadas pelos diretores
David França e Vicente Amorim. O próprio ato da filmagem em si, assim como as
investidas nos cortes, na montagem, na possibilidade de manipulação e escolha das
imagens capazes de interpretar a realidade sobre o atual nordeste já indicam que os
documentários, assim como os filmes de ficção, são colocados em cena.
Na introdução do livro Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão,
ficção, documentário, de Jean-Louis Comolli, os organizadores César Guimarães e
Ruben Caixeta relembram que o documentário é uma invenção da realidade e um objeto
do mundo, reafirmando o que Comolli reitera incansavelmente em seus escritos:
20
Para utilizarmos a classificação do pesquisador americano Bill Nichols (2004).
129
experiência que passa de pessoa para pessoa. E é na montagem desse documentário que
visualizamos o poder de fala como uma inversão na lógica das narrativas encenadas:
de Glauber Rocha, entre outros que remetem à precarização dos espaços rurais e
urbanos. A autora destaca a passagem do Brasil rural ao urbano, marcados na década de
1960 pela transformação dos sertanejos em favelados e suburbanos, mas chama a
atenção para a mudança de perspectiva a partir do cinema brasileiro dos anos 1990,
período em que aponta para o deslocamento do discurso em relação a estes territórios
como imagens de “jardins exóticos” ou museus da história. Na análise do que foi
modificado na construção desses territórios, há uma ênfase na condição do contexto
político e na proposta estética desenvolvida pelos filmes. Nesse sentido, a autora
intensifica a força da estética adotada pelos filmes glauberianos, que, embora tenham
sido extremamente significativos para a reversão do pensamento e da intervenção
política do cinema moderno brasileiro, trouxe questões estéticas e éticas que para a
autora não foram resolvidas pelo cinema brasileiro
(...) contra as imagens clichês da miséria que até hoje alimentam o circuito da
informação internacional, Glauber coloca questões éticas e estéticas que ao
meu ver não foram superadas ou resolvidas, nem pelo cinema brasileiro, nem
pela televisão, nem pelo cinema internacional. Essas questões estão
diretamente relacionadas ao tema dos sertões e das favelas, ontem e hoje.
(BENTES, 2007, p.193)
“O que era realidade hoje não é mais realidade!” e “Quem sabe é Deus!”, são as
duas primeiras falas ouvidas em 2000 Nordestes. Entre as imagens de dois depoentes
distintos, segue o corte seco e, após a execução da segunda frase temos as imagens do
Beato Sebastião pregando e hasteando a “bandeira” para o caminho da salvação no alto
do Monte Santo invadindo a tela, apontando para a crítica ao posicionamento místico
ainda forte e profundamente enraizado na subjetividade desses sujeitos.
Em seguida, mais duas frases ouvidas, “O que for de dança eu tô dançando!” e
“Vida difícil!”, e depois, novamente o corte seco e a reprodução das imagens da
sequência de Vidas Secas, em que estão focalizados Sinha Vitória (carregando o menino
mais novo e os pertences da família), Fabiano e o menino mais velho caminhando com
as trouxas numa fuga desatinada causada pela seca da região.
133
Figura 36: Sequências do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.
“E nada está terminado, nem mesmo as pessoas, pois vão sempre mudando”.
Guimarães Rosa
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
‒ Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus
irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou
pelo que lhe deixaram de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se
sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo
(TORRES, 2006, p. 217).
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Intérpretes: Guilherme Weber; Giulia Gam; José Dumont; Selton Mello; Mariana Lima;
Gustavo Falcão; Matheus Nachtergaele; Paulo César Pereio; José Celso Martinez
Corrêa e outros. Roteiro: Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira, Lírio Ferreira e Eduardo
Nunes. Europa filmes, Recife, 2005 DVD, color/118 min.
150
DEUS e o diabo na terra do sol. Direção: Glauber Rocha. Produção: Agnaldo Azevedo.
Intérpretes: Geraldo Del Rey; Yoná Magalhães; Maurício do Valle; Othon Bastos; Lídio
Silva; Sônia dos Humildes e outros. Argumentista: Glauber Rocha.Copacabana Filmes;
Rio de Janeiro, 1964. DVD, preto e branco/ 125 min.
VIDAS Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos.Produção: Luiz Carlos Barreto;
Herbert Richers e Danilo Trelles. Intérpretes: Átila Iório (Fabiano); Maria Ribeiro
(SinháVitória);Baleia – cachorra; Gilvan Lima e Genivaldo Lima (Meninos); Jofre
Soares (Fazendeiro) e Orlando Macedo, entre outros. Produções Cinematográfica
Herbert Richers S.A., Rio de Janeiro, 1963. VHS, preto e branco/103 min.
151
ANEXOS
152
ANEXO I:
Rogério Assis/Folha Imagem << O escritor Antonio Torres passeia pelas ruas de
Sátiro Dias, Bahia do enviado a Sátiro Dias (BA)
Há duas semanas, o escritor voltou à sua cidade natal e percebeu que, apesar das
melhorias na infra-estrutura de Sátiro Dias, seus conterrâneos continuam a sair de lá em
direção às grandes cidades. "É o fascínio pela civilização", afirma.
Na casa de sua avó em Sátiro Dias, no sábado retrasado, entre as visitas de uma tia e
outra, ele deu a seguinte entrevista à Folha.
Folha - O senhor viveu aqui até 1954, quando Sátiro Dias ainda se chamava Junco.
Existe alguma semelhança entre as duas cidades ou esses 44 anos mudaram tudo?
Antônio Torres - Vejo que, hoje, a situação é menos dura. Antes não tinha hospital;
hoje tem dois. Eu nasci de parteira. Educação, era só o primário. Agora já tem segundo
grau. Não tinha estrada. Tinha dois rádios a bateria, um na venda do Josias Cardoso,
onde ouvi a morte do Getúlio Vargas, em 1954. Não tinha luz. Eu me lembro quando
chegou o motor de luz, que só funcionava até as 22h, a óleo diesel. Água, tinha que
buscar no tanque, que a gente cavava na terra e esperava chover pra encher.
153
Torres - É. As secas eram até menos frequentes que hoje, mas eram bem piores. Lembro
de uma, em 1950, em que a gente tinha que andar muito para achar água. O gado morria
na nossa frente. Eu via os bois subindo as encostas, atrás de um filetinho de verde, um
mínimo de vegetação. Mas já estavam fracos demais, despencavam da ribanceira e
quebravam o pescoço. Muito triste.
Hoje, se a seca é brava, é possível conseguir ajuda, é mais fácil. Ela deixou de expulsar
as pessoas. Em três horas de carro, a gente chega em Salvador. Antes era a pé ou a
cavalo. Saía daqui, dormia em Inhambupe. Esperava uma carona para Alagoinhas e lá
tomava um trem para Salvador. Depois pegava outro trem, que sempre descarrilava em
Monte Azul, Minas Gerais. Demorávamos sete dias para chegar a São Paulo.
Torres - No meu caso, eu saí porque queria estudar. Mas na minha cabeça, a busca pelo
trabalho fora daqui começa quando chega o primeiro caminhão, no início dos anos 50.
Aquele cheiro de combustível embriagou a gente. Mexeu com a cabeça. Quando
começam a chegar os caminhoneiros, os rapazes de fora, eles aparecem vestidos de
outro jeito, falando gírias desconhecidas. As meninas ficavam loucas, e a gente queria
sair para voltar e ser igual a eles.
Torres - Muitos iam para São Miguel Paulista, na Grande São Paulo. Isso porque o
primeiro homem de Junco a chegar em São Paulo foi para lá. Então começaram a chegar
cartas com o remetente de São Miguel Paulista. O segundo foi para lá também e assim
foi. Era esse movimento de cartas que ia levando as pessoas.
Em 61, no meu primeiro fim-de-semana em São Paulo, fui para São Miguel. Todo
mundo estava lá, dançando forró; eles tinham levado o forró para o Sudeste. Nunca me
esqueço da primeira coisa que me perguntaram: "Você sabe se está chovendo em
Junco?". Porque eles já queriam voltar! E é esse o eixo de "Essa Terra". Apesar de um
alemão que leu o "Diese Erde" ("Essa Terra" em alemão) ter dito que o eixo é a solidão
em um país grande.
154
Folha - Se a vida melhorou por aqui, por que os satirodienses continuam saindo?
Torres - Acho que o ir e vir ficou intenso a partir do asfalto da Rio-Bahia, na era
Kubitschek. E depois veio a televisão, em 75. A civilização começou a chegar dentro
das casas das pessoas, poderosamente sedutora. A sociedade de consumo mexe com a
cabeça do mundo inteiro. É o fascínio pela civilização. Em Cuba, em 83, senti isso. Na
Bulgária, em 85, senti também. É o mesmo problema dos países comunistas, que não
atendiam aos desejos de consumo.
E tem também outra coisa: em São Paulo, todo mundo podia ser ajudante de pedreiro,
passar o dia inteiro melado na massa e depois tomar banho e se sentir doutor. Porque na
cidade grande ninguém te conhece. Então, pelo menos aparentemente, não havia
discriminação.
Torres - Em 73, um primo contou que um parente nosso, depois do ir e vir de São
Paulo, tinha se enforcado na armação de uma rede. E que outro primo viu o morto e foi
dar um tapa no rosto dele, achando que estava dormindo. E o rosto pendeu para o outro
lado. Essa cena está no livro. Mas quando vim para cá, ninguém queria me contar. Só
diziam para eu esquecer o assunto.
Aconteceu que, do fracasso do repórter, nasceu o ficcionista. Por que ele se matou
daquela forma tão horrível? Ele trocou um lugar pelo outro, não conquistou o segundo e
perdeu o primeiro. Deixou um bilhete, pedindo para não acusar o dono da casa e
pedindo que o Nenê Vieira providenciasse o enterro dele. Depois o dono da casa se
matou também. Fiz até psicanálise nessa época.
155
Torres - Acho que não. O Brasil e essa terra mudaram muito. Em 1970, quando eu
vinha aqui, as pessoas me perguntavam: "Meu filho, você é aquele que mora naquelas
terras tão longe?".
ANEXO II:
FONTE: http://www.antoniotorres.com.br/entrevistas.htm
Aos 56 anos, o escritor e publicitário baiano Antônio Torres, que fez parte do
seleto grupo de autores brasileiros traduzidos no exterior e cuja obra é alvo de inúmeras
teses acadêmicas em universidades brasileiras e européias, está em Salvador, onde
lança, amanha O cachorro e o lobo. Na sexta-feira, ele estará no projeto “Com a
Palavra, o Escritor” (às16h30min, na Biblioteca central da UFBA). Oitavo romance da
carreira e uma continuação de sua obra mais consagrada, Essa Terra, o novo livro é
segundo o autor, “uma tentativa de enternecer o mundo”. Entre um lançamento e outro,
Torres concedeu entrevista exclusiva ao jornal A Tarde.
PM – Você diz que O Cachorro e o Lobo é uma viagem de volta. Por que esse
retorno ao ambiente do Junco?
AT – Essa Terra Foi escrito num período muito pesado, em plena ditadura e o
lançamento em São Paulo foi no auditório Waldimir Herzog, do Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo. Em função disso, as pessoas começaram a ver o livro como
uma metáfora da tortura e da violência (o jornalista Wladimir Herzog foi encontrado
enforcado na prisão e a ditadura tentou passar a versão de que ele tinha se suicidado.
Em Essa Terra o personagem principal é um baiano do Junco que parte para São Paulo,
para tentar a sorte, volta para a Bahia 20 anos mais tarde, não suporta a cobrança do
lugar por não ter vencido na vida e acaba se suicidando). Embora a linguagem seja bem
poética, o livro é bastante trágico. Em O Cachorro e o Lobo, Totonhim é o irmão do
outro personagem que também vai para São Paulo, onde fica 20 anos sem dar notícias,
período em que convive com um fantasma na cabeça, achando que se retornar ao Junco
vai repetir o gesto do irmão. Um dia recebe uma carta da irmã, dizendo que o pai vai
157
completar 80 anos. Ele então decide retornar e, na convivência com o lugar, vai revendo
sua própria história e recuperando a memória local. Quando escrevi Essa Terra, a
jornalista Ana Arruda Callado, que é minha amiga, me disse que eu parecia estar
querendo enlouquecer o mundo. Se fosse para fazer um paralelo, O Cachorro e o Lobo
parece que quer enternecer o mundo, como se estivéssemos cansados dessa tragédia.
AT – Uma certa vez, um estudando de Letras me disse uma coisa fantástica: que
eu escrevia uma espécie de autobiografia abstrata. Meus livros não são autobiográficos,
se baseiam nas minhas referências, mas tudo acaba virando ficção. Sou ficcionista, tudo
passa pela estratégia do romancista, o cachorro e o Lobo foi escrito em primeira pessoa,
uma forma de me colar ao personagem como se fôssemos uma mesma coisa. Tento
quebrar o distanciamento entre o autor e personagem, o que também, permite ao leitor
se colar à história.
AT – Tem gente que faz piada e diz que quem escreveu o livro foi minha mulher,
Sônia. Na verdade, levei quatro anos para concluir a obra utilizando férias, feriados,
alguns carnavais, Semanas Santas. Nesse período foram vários avanços, recuos,
paradas. Em 1995, estava na Itália, lançando Essa Terra e durante uma discussão, na
Universidade de Roma, comecei a fazer a viagem de volta. Se em 95 ainda se discutia
um romance de 1976, eu estava no caminho certo. Durante a discussão, foi dito que
talvez o que esse velho mundo precisasse era de uma velha história bem contada. O
Cachorro e o Lobo é isso.
158
ANEXO III:
http://www.pilulapop.com.br/retro/ressonancia.php?id=50
Não há como não perceber que Lírio Ferreira chegou. Alto, expansivo, fala rápida,
cumprimenta e já comenta de saída “Cara, época de lançamento de filme a gente
conhece tanta gente, putaquepariu”. Não é reclamação, mas constatação. Quase dez
anos depois da divulgação de ‘Baile Perfumado’, em 1997, ele enfrenta de novo a
maratona de entrevistas, festivais, debates. De boa vontade, diga-se de passagem.
Responde com paciência as perguntas de praxe, que dezenas de jornalistas já
fizeram antes, e conta histórias novas.
Boné com a bandeira de Cuba puído na aba, óculos escuros da Diesel, barba por
fazer, Lírio parece encarnar de uma vez o trio-parada-dura de amigos de Jonas, em
‘Árido Movie’. A seguir, a entrevista exclusiva que o Pílula Pop fez com o diretor
em sua primeira vinda a Belo Horizonte.
Lírio Ferreira: Teve essa infeliz coincidência de ter que fazer em paralelo os dois
projetos. O Cartola começamos a fazer (Lírio e Hilton Lacerda) antes do ‘Árido’. A
gente termina o filme agora, entra em mixagem em julho e no início de agosto já
deve ter uma cópia pronta.
159
Pílula Pop: Como fica viver de cinema no país, se às vezes são gastos quatro anos
para se fazer um filme?
Pílula Pop: Você enxerga um amadorismo e uma falta de visão nos donos de
cinema e nas distribuidoras?
Lírio Ferreira: Não, acho hoje até as pessoas menos condescendentes. Vou dar um
exemplo. Quando a gente lançou o ‘Baile Perfumado’, conseguiu um apoio muito
grande em Pernambuco, participação da sociedade civil, espaço em outdoors e na
televisão. Nas primeiras semanas com o filme em cartaz, os números que a gente
recebia mostravam 260, 280 pagantes em salas com 250 lugares. Tinha gente
sentada na escada vendo o filme! Depois de três semanas, tiraram o ‘Baile’ de cartaz
160
para entrar com uma merda lá, um ‘Volcano’ da vida. Porque para exibir um
‘Titanic’, você é obrigado a comprar outras vinte merdas e exibir. As distribuidoras
não vendem só o filme, mas tudo que tem ali por trás. Vendiam o cigarro que o
Humphrey Bogart fumava, com todo aquele glamour.
Pílula Pop: Como você vê essa mudança no Brasil, dos cinemas agora estarem nos
shoppings?
Esse público não vai ao shopping porque tem vergonha ou não tem grana pra pagar
o estacionamento e tudo mais. A gente acha que o cinema brasileiro vai bem quando
atinge 18% ou 20% das salas, mas na verdade são três ou quatro filmes que resultam
nesse número. Agora nós produzimos filmes, mas a questão da distribuição e da
exibição ainda não foi resolvida. Fizeram uma conta que até maio tinham lançado
180 filmes no Brasil, o que é quase um filme e meio lançado por dia. A disputa é
muito grande e vários desses filmes precisam de tempo para ganhar público, no
boca-a-boca.
Pílula Pop: Entrando diretamente no ‘Árido Movie’. Não deu pena começar a
história matando o (personagem do) Paulo César Peréio logo de cara?
Lírio Ferreira: É, (risos) olha só, um ator maravilhoso com quem eu sempre sonhei
trabalhar mas enfim, era uma idéia. No ‘Árido’ tudo pode tender pro certo e pro
errado, mas nada é de graça. Chamei o Peréio e a Renata Sorrah pra serem os pais
do Jonas porque eu achava que ele era filho do ‘Matou a Família e foi pro cinema’
do Julio Bressane e do ‘Bang, Bang’ do Andrea Tonacci, que são filmes com a
Renata Sorrah e o Peréio. Mas ainda consegui que ele ressuscitasse, o nome do cara
não é Lázaro? Ressuscitou... (risos)
161
Pílula Pop: Parece que houve uma camaradagem dentro do set de filmagem que
aparece também na tela.
Lírio Ferreira: Tinha esse espírito mesmo. Nunca houve escola de cinema em
Pernambuco, sempre teve espírito de brodagem pra vencer as dificuldades e a pouca
grana. A gente trabalha com amigos desde os curtas e, se é difícil você cobrar, essas
pessoas dão uma segurança tremenda porque entram mesmo no projeto, não acham
162
que é um trabalho qualquer. Com os atores aconteceu o mesmo. O filme tem uma
mais-valia na tela maior que a grana que foi gasta. As pessoas se apaixonaram pelo
roteiro e houve uma coisa de agregação, de carinho mesmo.
Lírio Ferreira: Desde criança, anos 70, viajo pelo sertão de Pernambuco, com meu
pai. Até hoje quando eu cruzo o sertão me sinto meio estranho com a geografia, o
clima, o tratamento das pessoas. Sempre sentia que penetrava num lugar que não me
pertencia. O filme tem isso, quis impregnar nele essa coisa do olhar estranho.
Temos um personagem que nasceu em Pernambuco mas que tem 1,92 de altura, é
loiro, olhos claros. Ele nasceu e tem memórias afetivas ali, mas se desgarra. Quando
volta, se sente um estranho na própria terra.
Tudo isso é calcado na própria realidade que a gente vivia em Recife. O Guilherme
é um ator paranaense, mas o Otto, que fez a trilha do filme, nasceu na cidade
vizinha das filmagens e é loiro, grande, aquele tipo europeu.
Pílula Pop: O filme chega a ser até um pouco ‘bipolar’ no modo como você ri e
logo vai pro fundo do poço.
Lírio Ferreira: É legal ter o frescor do filme de estrada com aquela cacetada no
fim.O ‘Árido’ é para deixar dúvidas, não é um filme de respostas, que se fecha.
Gosto da sensação de mal-estar no final, sair do cinema pensando no filme.
Lírio Ferreira: O Guilherme faz uma atuação muito generosa, que foi uma coisa
pedida por mim. Os personagens que povoam o caminho do Jonas são muito
intensos e eu queria que Guilherme fizesse um personagem totalmente pálido,
imparcial, um repórter envolvido com tudo aquilo ali. Ele foi muito generoso e
seguiu o que eu queria. As pessoas solam ao lado dele todo o tempo, e ele fica como
o condutor da história. É uma maneira diferente de compor.
164
ANEXO IV
FOLHA ILUSTRADA São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006
ANÁLISE
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1404200608.htm
ANEXO V
CRÍTICA
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
ANEXO VI
FOLHA ILUSTRADA São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1404200606.htm
Road movie do sertão
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Folha-Você ouve?
http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm
ANEXO VII
Antônio Torres nasceu no pequeno povoado do Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), no
interior da Bahia, no dia 13 de setembro de 1940.
Aos 32 anos lançou seu primeiro romance, Um cão uivando para a Lua, que causou grande
impacto, sendo considerado pela crítica “a revelação do ano”. O segundo Os Homens dos
Pés Redondos, confirmou as qualidades do primeiro livro. O grande sucesso, porém, veio
em 1976, quando publicou Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que
aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes
metrópoles do Sul, principalmente São Paulo.
Hoje considerada uma obra-prima, Essa terra ganhou uma edição francesa em 1984,
abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor baiano, que hoje tem seus livros
publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos,
Israel, Holanda, Espanha e Portugal.
Em resumo: autor premiado, com várias edições no Brasil e traduções em muitos países,
Antônio Torres é um dos nomes mais importantes da sua geração, com um obra expressiva
que abrange 11 romances, 1 livro de contos, 1 livro para crianças, 1 livro de crônicas, perfis e
memórias. além de dois projetos especiais (O centro das nossas desatenções, sobre o centro
do Rio de Janeiro – e que rendeu um documentário para a TV Cultura, São Paulo -, e O
circo no Brasil, da série História Visual, da Funarte, Fundação Nacional de Arte).
Antônio Torres – O que posso adiantar é que será um prazer participar do Clisertão, em
Petrolina – ou seja, à beira do São Francisco e de cara para a Bahia, o meu estado natal.
Alegria maior é estar à mesa com o meu querido amigo Raimundo Carrero, escritor que
muito admiro e parceiro de tantas jornadas. Quanto ao tema – O Nordeste mítico e o
172
Antônio Torres – Frequentemente recebo notícias do sertão em que nasci, dando conta
da realidade de violência que o assalta, deixando-o em pânico. O que me leva a pensar que o
sertão que migrou acaba retornando carregado dos estereótipos (urbanos) da modernidade,
sendo o mais notório deles o do tráfico de drogas. No quadro atual, o sertão mítico, ao que
me parece, cede o seu lugar de referência a uma cultura de massa imposta pela lógica do
consumo – o que afinal está por trás dos índices de violência que conhecemos. A minha
sensação é que o mundo está todo igual – no que tem de pior.
CLISERTÃO - No último livro da trilogia a questão da identidade perdida é
muito explorada. O personagem sertanejo já não se encaixa nas suas
memórias. Fale um pouco do “Pelo fundo da agulha”.
Antônio Torres – Um ponto de partida: um caso real que me contam, uma lembrança de
um rosto, de uma voz, de uma situação que me marcou. Mas o começo depende da primeira
frase. Ela é que vai dar o tom do texto, e puxar a fabulação. Muita gente pensa que tudo, ou
quase tudo, que escrevo é autobiográfico. Bom, não acho que tenha uma vida capaz de caber
em 11 romances, um livro de contos etc. Mas que minhas vivências têm me dando um
adjutório considerável, isso tem.
173
Antônio Torres – Foram uns exercícios efêmeros, como um descanso entre um romance
e outro. Mas gostei de publicar um livro com textos, digamos, mais leves, enquanto ganho
fôlego para um voo mais largo. O que já venho ensaiando há tempos.
No CLISERTÃO, Antônio Torres estará na mesa redonda “Sertão: espelho, miragens –
O Nordeste Mítico e o Nordeste Contemporâneo na Literatura”, no dia
15/05, juntamente com o escritor Raimundo Carrero (PE). A mediação será da Profª
Elisabet Moreira (UPE/IFE).
174
Anexo VIII
P – Ao que você atribui o interesse crescente por sua obra, além, é claro, de sua
evidente qualidade literária?
P - O sucesso dos seus livros são uma prova de que é possível ser um autor bem-
sucedido sem fazer concessões?
R - Sim, e isso me dá uma grande satisfação, porque nunca escrevi nada para ser
vendido. Nunca fiz concessão de espécie alguma, nem política, nem ideológica, nem
mercadológica. Nunca submeti meu texto a uma ideologia, embora seja um autor de
esquerda. Sempre me coloquei ao lado dos oprimidos.
R - A minha trajetória pessoal de retirante plasmou meu próprio texto, minha escrita. O
fato de ter sido arrancado da minha terra foi fundamental na construção do meu
imaginário e isso se reflete no meu texto. Carlinhos de Oliveira dizia que o meu texto
situava-se no eixo do deslocamento nacional. Eixo de mão dupla: deslocamento externo
e o interior, da repercussão dessa viagem dentro dos personagens. Isso dá um caráter
diferenciado dos autores localistas. Essa Terra não é regional, no pé da letra. Por isso,
talvez, ele seja cada vez mais apreciado no exterior.
P - Qual o problema principal dos escritores que moram fora do eixo Rio-São
Paulo?
R - Afora os mineiros e os gaúchos, todos reclamam dessa questão de estar fora do eixo
Rio-São Paulo. Eu penso o seguinte: é claro que existe uma concentração excessiva da
produção, da distribuição e da circulação nesse eixo. Mas, no caso do Nordeste, a coisa
agrava-se por falta de iniciativas locais que criem pólos regionais fortes na área do livro.
Existem estatísticas que apontam para um número muito baixo de vendas de livros em
todo o Nordeste: apenas 14% em todo o quadro nacional. Isso enfraquece as editoras da
região.
176
R - Existem muitos autores que penam por não estar aqui (lá), onde as coisas realmente
acontecem. Inclusive gente que vem com produção desde os anos 60 e não consegue
retomar o passo no eixo editorial. Mas, no caso da Bahia, existem nomes de muita
visibilidade nacionalmente. É o caso de Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, que têm
seus espaços. Luiz Antonio Cajazeira Ramos está despontando bem por aqui (lá). Agora
mesmo, Myriam Fraga participou do júri de um prêmio importante, o Maison de France
- Finac, do Consulado Francês, que vai premiar a melhor tradução francesa no Brasil,
nos últimos anos.
R - O que eu acho é que os baianos precisam mexer-se mais. Mesmo porque, não é
verdade que se fechem as portas para autores nordestinos. O Rio é muito aberto, basta
ver a quantidade de autores de outros Estados que se integraram à vida cultural da
cidade, como José Lins, Graciliano Ramos, Rubem Braga, Fernando Sabino. É preciso
estar no lugar certo. Glauber Rocha dizia que todas as cidades são uma aldeia nos seus
lares e bares, e a aldeia do Rio de Janeiro é a zona sul. É Copacabana, Ipanema, Leblon.
O badalo aqui é no centro da cidade ou nesse eixo.
P - Como você vê a produção literária que é feita hoje fora desse eixo?
R - Uma coisa, que havia antes, continua: o suicídio. Um primo meu se enforcou, e as
pessoas dizem: igualzinho ao seu livro. Há casos de suicídios de crianças: uma menina
de 15 anos e um menino de 16 mataram-se. Uma amiga fez algumas perguntas que
177
calaram fundo em mim: Como foi, o quê, por quê? Algo ligado à solidão? À falta de
perspectivas? Esse é o problema existencial mais forte do ser humano. Camus tratou
disso em O Mito de Sísifo, quando disse: pouco importa que o dia tenha 24 horas, que a
Terra tenha movimento de rotação, quando o homem se pergunta se vale a pena viver.
R - A questão resume-se no seguinte: talvez o homem que troca o seu lugar por outro
perca o seu lugar e não conquiste o outro. Refiro-me, no caso, à massa de retirantes.
Vale dizer que não é a seca que expulsa, é a civilização que atrai. Ela cria a sedução do
progresso da modernidade. Senti isso na minha infância com o surgimento, em Junco,
do primeiro caminhão, que endoideceu o lugar. Era a promessa do divertimento, o
sonho do consumo, surgido no final dos anos 50. A estrada era a viabilização do sonho
de partir.
P - Um sonho semelhante, hoje em dia, aos brasileiros que vão morar no exterior?
ANEXO IX
Pode ser o tempo, pode ser a distância. A verdade é que, ao viajar do Rio
de Janeiro, onde mora, para a cidade de Sátiro Dias, sua terra natal, Antônio
Torres sentiu-se como alguns de seus personagens: fora do lugar. “Já não há
mais aquela sociabilidade dos fins de tarde, a rua fica deserta, todo mundo em
casa, pendurado na televisão”, disse. Situada a cerca de 250 km de Salvador,
Sátiro Dias também não é um nome familiar para Torres. Quando ele nasceu,
em 13 de setembro de 1940, o local se chamava Junco, e foi assim que passou
para suas histórias. Um exemplo é Essa Terra, romance que mostra o retorno
de um retirante e seu livro mais conhecido. Foi traduzido em sete países e
acaba de entrar na lista do vestibular da Universidade do Estado da Bahia
(Uneb). O sucesso também trouxe a pecha de escritor regionalista. “Faz
sentido até certo ponto”, diz, lembrando livros como O nobre seqüestrador, de
inspiração histórica, e sua estréia na literatura, Um cão uivando para a lua, um
relato urbano. Autor de 11 romances, Torres compareceu ao seminário
Narrativas e viagens do Junco ao mundo: 70 anos Antonio Torres, na
Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Lá, o autor conversor com
Muito.
chamado Sobre pessoas. Então foram três livros em um ano. Aí, decidi dar um
tempo para mim mesmo, até para “reassuntar” a minha própria literatura.
Acho que sim, porque de alguma maneira você faz parte do tempo. Você
percebe o tempo, percebe o que está mudando. Talvez essa minha parada
estratégica seja para repensar minha própria literatura. Minha editora me
perguntou: quando você vai fazer um novo romance? E eu falei: eu estou
tentando colocar os pés no nosso tempo. Nesse mundo. E aí ela falou assim:
não ponha os dois, não. Basta um (risos).
O que leva a isso é o meu título mais forte até hoje, que é o Essa terra
(1976), que gerou uma trilogia com O cachorro e o lobo (1996) e com o Pelo
fundo da agulha (2006). Também tenho mais dois romances dentro dessa
espécie de polígono das secas literário. O Carta ao bispo (1979) e o Adeus,
velho (1981) . Mas eu não sou um sambista de uma nota só, quer dizer, luto
para não ser um sambista de uma nota só. Passeio também por ambientes
urbanos, em livros como Um cão uivando para a lua (1972) e Um táxi para
Viena d’Áustria (1991), só para dar dois exemplos, e por romances que fazem
uma espécie de interface da história, como no caso de Meu querido canibal
(2000) e O nobre seqüestrador (2003). Logo, essa impressão de que eu sou
um escritor regionalista faz sentido até um certo ponto. Quem leu só o Essa
terra ou a trilogia pode ficar com essa impressão. Mas se buscar mais do meu
trabalho verá que não é bem assim.
Para mim, é um mistério, porque é um romance que tinha tudo para ser
um fracasso. É a história da viagem de volta de um personagem que acaba se
matando. Não entendo como é que essa história de fracasso virou sucesso. Eu
não saberia explicar. Um crítico uma vez me disse que era pelo tom emocional
do livro. E pelo seu lado poético também. Eu não sei, a crítica tem dito coisas
assim, tem aventado essas possibilidades. Ou pela carga de realidade que está
por trás dele. Só que é um realismo brutal, e eu sinceramente fiquei surpreso,
até hoje eu sou.
180
Acho que eu não criticaria mais... Não mantenho essa visão da sua
pergunta. Porque acho que estamos em um momento muito delicado para a
literatura. Os espaços nos jornais estão diminuindo, a competitividade
estrangeira é muito forte, a sedução dos produtos que nos trazem o imaginário
global é avassaladora, e eu acho que o escritor brasileiro tem que encontrar o
seu espaço nesse mundo. E aí, as feiras, as festas literárias, têm sido um bom
palco para o escritor. Minha experiência como Flip foi a melhor possível. O
Público que vai para lá vai à procura dos autores. E eu fiquei realmente
impressionado, que eles vão para comprar seus livros, não vão só para ouvir
você. Não é só o aspecto da badalação. Ao contrário. Nesse caso, a badalação
em torno da Flip beneficia os autores convidados porque os leva a serem mais
lidos.
surgindo aí e que vai pouco a pouco perdendo esse dialogo como a crítica.
Espero que voltemos ter espaço para a crítica.
Voltaria a se candidatar?
ANEXO X
ENTREVISTA à Vandré Abreu e André de Lleones
http://www.canissapiens.blogspot.com/
"Pelo fundo da agulha" encerra uma trilogia iniciada com "Essa Terra" e "O
Cachorro e o Lobo". Quando escreveu "Essa Terra", já tinha isso planejado? Se
não, quando lhe ocorreu isso?
Ainda é preciso escrever? Ou a literatura, para citar Kant, é uma finalidade sem
fim?
AT - Para mim, é uma razão de viver. Então, como pode ser uma atividade sem
fim? Apesar de tudo, ou talvez por causa de tudo, nunca houve tantos
escritores no mundo quanto hoje. E me refiro aos de literatura. Basta ver o
exemplo do Brasil. A quantidade de jovens escritores que vêm surgindo, e
alguns muito bons, é um espanto! Melhor assim.
184
AT - Para mim, é fundamental. Como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto,
"o novo infecciona o velho". Procuro acompanhar a produção dos jovens e
dialogar com eles por pura malandragem. Assim, espero, não perderei a dicção
do nosso tempo. Mantenho-me atualizado com as técnicas de linguagem,
maneiras de ver o mundo e de fazer literatura. Logo, não pense que é porque
eu sou bonzinho que me relaciono bem com os escritores mais novos. É para
não perder o ritmo e o rumo das horas.
185
Anexo XI
COM A PALAVRA O ESCRITOR
Bem, quero agradecer às instituições baianas que tornaram possível essa minha presença aqui
em Salvador. Refiro-me à Fundação Casa de Jorge Amado e à Universidade Federal da Bahia. E,
claro, a todos vocês.
Fiquei muito contente com o que o meu querido Ildásio Tavares falou sobre O Cachorro e o
Lobo, ao dizer que é um momento muito diferente na minha literatura. Acrescentaria que este
romance coincide com um momento diferente na minha vida. É a idade avançando e, quem
sabe, a maturidade chegando.
Permitam-me contar-lhes a curiosa reação de Luciana Vilas Boas, a diretora editorial da Record,
logo que o leu, ainda nos originais. Ela me telefonou para perguntar como era que eu tinha
conseguido criar um personagem “tão bem resolvido.” Se eu era uma pessoa “bem resolvida.”
Respondi-lhe que certamente que não; que talvez o personagem estivesse na contra-mão dos
meus próprios impasses pessoais. A verdade, porém, é que quando escrevi o livro, ele me
deu, em primeiro lugar, muito prazer, e, em segundo, me trouxe um certo apaziguamento.
Assim que o terminei, enviei uma cópia pra Paris, para Alice Raillard, que é tradutora de Jorge
Amado e conselheira para a língua portuguesa, na editora Gallimard. E ela me mandou uma
carta tão bonita, tão entusiástica, que eu pensei que não precisava mais publicar o livro: aquela
carta já me bastava. Andei um tempão com ela no bolso, já me dando por satisfeito.
Deixei O Cachorro e o Lobo na gaveta e parti para outra empreitada: a de escrever um livrinho
de encomenda para uma coleção chamada Cantos do Rio,do Rio-Arte, instituto da Secretaria de
Cultura do Município do Rio de Janeiro. A nova tarefa resultou num volumezinho intitulado O
Centro das nossas desatenções, que me fez bater perna pelo centro da cidade, vasculhando-o
em seus becos, bares, espaços culturais, legados históricos e, até, nos cocorutos de seus
arranha-céus. Perigrinei também pelas ilhas, que são marcos da história do Rio: a de
Villegagnon, a das Cobras e a Fiscal - esta, a do famoso baile que derrubou o Império. Além
desse corpo-a-corpo, também mergulhei num trabalho de pesquisa que, passo a passo, ia se
revelando fascinante. Tanto que esqueci O Cachorro e o Lobo por uns tempos. Até porque o
livro sobre o Centro do Rio era uma encomenda com prazo de entrega e publicação.
186
Durante as minhas pesquisas percebi que, assim como eu, a maioria dos cariocas andam pelo
Centro da cidade sem dar a menor atenção à história que existe nele, e que é riquíssima. Daí
ter me ocorrido esse título de O Centro das nossas desatenções. E que colou. E olhem que eu
temia o que os naturais do Rio de Janeiro iam dizer. “Como que um baiano se atreve a contar a
nossa própria história?” Para minha surpresa, a recepção foi extremamente simpática. Até hoje
continuo recebendo caixas e caixas de livros ensebados, alfarrábios caindo aos pedaços, com
pedidos de leitores para que eu escreva mais sobre o Rio. Logo, o resultado foi altamente
compensador.
Se O Cachorro e o Lobo foi apaziguador em relação ao meu passado de retirante, o livro sobre
o Centro do Rio poderá me abrir perspectivas futuras, pois me deixou fascinado pelo estudo da
História, e, sobretudo, o estudo da História das nossas cidades, como Rio de Janeiro, Salvador
e Recife, por exemplo. Ainda não sei aonde esse novo interesse vai me levar, literariamente
falando. Mas, para já, concluo que o conhecimento da História é fundamental para um
romancista.
E já que o escritor aqui está com a palavra, permitam-me mostrar como a história que escrevi
sobre o Centro do Rio se inicia. Porque as linhas que vou ler tem muito a ver com a trajetória
deste narrador que vos fala - um baiano que passou boa parte da vida se descolando de um
lugar para outro: do Junco para a Alagoinhas, depois Salvador, São Paulo, Lisboa, Porto e
outras Oropas e, finalmente, Rio de Janeiro. Vejamos:
“Comecemos pelo aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de vinte anos chegou,
olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do
Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de
Moraes. Ano: 1961. O passageiro estava em trânsito. Vinha da Bahia com destino a São Paulo.
Desceu aqui para fazer uma conexão, depois de cinco horas preso numa cadeira de uma
geringonça ensurdecedora e vagarosa, relíquia aeronáutica da Segunda Grande Guerra. Um pau
de arara do ar chamado kurtis commander que, mal avistava uma pista de aterrissagem, ia
baixando.
Descer no Rio havia sido uma bênção. Para os seus ouvidos, suas pernas, seus olhos. Assim o
vejo: olhando a cidade por trás dos vidros que o enjaulavam no saguão do aeroporto, enquanto
aguardava a chamada para o embarque. Azul era também a cor do seu paletó. Ele estava
convenientemente vestido para sua primeira viagem de avião. Trajava até uma gravata
vermelha, sobre uma camisa branca. E seus sapatos espelhavam, de tão bem lustrados. Numa
das mãos, portava uma maleta com tudo que possuía de seu, aos 20 anos - o que incluía meia
dúzia de livros -, além da roupa do corpo. Já que não podia sair, contentou-se em olhar à
distância a cidade que só conhecia de prosa e verso, cinema e canções, e tudo nela, o que
vinha dela, o fascinava. E dava medo. Imaginava-a fora da rota dos imigrantes, inatingível para
principiantes. O Rio era a Corte - dos sabidos e malandros. Suas artes e letras, sua natureza
deslumbrante (“ Deus fez o mundo em sete dias, dos quais tirou um para fazer o Rio de
Janeiro,” dizia a voz de ouro de Luiz Jatobá, num documentário de Jean Manzon), o atraíam.
Mas a manchete do jornal comprado na banca do aeroporto o amedrontava. Era sobre uma
operação de extermínio chamada chamada de mata-mendigos. E ali estava ele, entre duas
visões da cidade: uma sedutora, outra assustadora. Teve vontade de ficar. A chamada para o
vôo o levou em frente. Tinha que ir para São Paulo. Assim estava escrito na sua passagem. Era
um baiano do interior, um tímido roceiro, e estava indo para a locomotiva da nação, onde
sempre haveria de cabermais um. Voltaria ao Rio um dia, para vê-lo de perto, entrar nele,
conhecê-lo nas solas dos seus sapatos, se para tanto não lhe faltasse coragem. O Rio não era
uma cidade para capiaus, tabaréus da roça.
Trinta e cinco anos depois, um passageiro diário das linhas urbanas de Copacabana-Centro,
Centro-Copacabana, vai retornar ao Santos Dumont. A pé. Para tentar descobrir o que foi
mesmo que aquele garoto interiorano viu - e se por um momento poderiam voltar a ser a
mesma pessoa -, ainda capaz de ver a cidade com um olhar de novidade. E vai chegar moído.
Esbodegado. Como se tivesse batido nos cascos a longa estrada Bahia-São Paulo, embora seu
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fique logo ali. Aqui mesmo, no miolo do Centro, o número 110 da avenida Rio Branco, entre a
rua do Ouvidor e a 7 de Setembro, onde era o Jornal do Brasil.”
Até aí, não é ainda a História do Rio que está no centro da narrativa, mas a do narrador, que se
move sobre o seu próprio eixo de deslocamento. Todos os meus livros contém esse núcleo. Em
alguns dos meus romances, acho que de alguma maneira em todos eles, tento buscar um
entendimento do que se passa com os homens que trocam a sua terra por outra e que - é
minha percepção - lá no fundo de si mesmos perdem a que tinham e não conquistam a outra.
Isso a partir de minhas vivências junto aos baianos que foram para São Paulo.
Os que migravam do Junco, digo, de Sátiro Dias, se instalavam em São Miguel Paulista, na
periferia da cidade. Quando chegava o mês de junho, eles pegavam uma sanfona, um zabumba
e um triângulo e iam para os botequins, para comemorar os famosos santos do mês, como se
estivessem na Bahia. A vizinhança chamava a polícia, que chegava e os revistava. Assim que a
polícia ia embora, pediam um rabo-de-galo, despejavam um pouco para o santo e diziam: “Eles
estão na sina deles e nós na nossa. Vamos lá!” E o forró varava o tempo, até a polícia voltar. E
quando cheguei àquelas bandas, todos me perguntavam: “Sabe dizer se está chovendo por lá?”
Então entendi tudo: se dissesse que sim, muitos pegariam a estrada de volta.
Eis aí o substrato de romances como Essa Terra, que é a trágica história de uma viagem de
regresso às origens. Carta ao Bispo e Adeus, Velho seguem a trilha do ir-e-vir, só que com
personagens procurando um lugar dentro do mapa da Bahia mesmo. Em Adeus, Velho o
deslocamento é do interior para a capital, depois do pólo petroquímico, da insdustrialização do
estado, com novas oportunidades de trabalho, que reduzem os fluxos migratórios para o Sul.
Balada da Infância Perdida é essa Bahia nas paredes de um quarto em Copacabana. Inspirado
num poema de Garcia Lorca - Balada da pracinha -, é a história de um desfile de crianças
vestidas de azul e branco levando os anjinhos para o céu - ou seja, os caixõezinhos azuis. Isso
às 5 horas da manhã, com um narrador de porre, com um olho na parede e outro no
despertador. Nessa parede desfilam 25 anos da história do Brasil contemporâneo. É um delírio.
Tanto quanto há algo de delirante em Um táxi para Viena d’Áustria, que tem por cenário uma
esquina de Ipanema, e por ingredientes a violência urbana e o desemprego, na era Collor, pré-
globalização. E mais: uma banda com Mozart ao piano, Art Blakey à bateria, Charlie Parker ao
saxofone, Miles Davis ao trompete, nosso Baden Powell ao violão, Charles Mingus no
contrabaixo e Sigmund Freud ao reco-reco. Todos regidos pelo próprio Deus, em pessoa. E a
decretação da morte de todos os escritores do mundo, incluindo também a entrega dos restos
mortais de Dostoiévski aos urubus de Niterói. Tanto na Balada, como no Táxi, os personagens
centrais são nordestinos. E cada um, à sua maneira, está às voltas com o seu deslocamento.
Queria aqui falar da minha ligação com a música, que vem da minha infância, quando o Jazz de
Inhambupe ia tocar na missa solene e, à noite, no baile do Mercado do Junco. E depois, na
adolescência, ouvi muito todos aqueles maravilhosos e inesquecíveis vidas-tortas da minha
terra, que ficavam na calçada da igreja tocando para a Lua ou improvisando bailes, para animar
a moçada. O Junco (naquele tempo Sátiro Dias ainda era o Junco, um distrito de Inhambupe)
exportou muitos músicos para o Sul. Em São Paulo, peguei muita carona na carava de um
trompetista meu conterrâneo, chamado Zé Bispo, que tocava nos bailes de São Miguel Paulista,
Itaquera, Ermelino Matarazzo e outras cidades periféricas. Esse foi um dos que voltaram, não
para se matar, como o personagem de Essa Terra, mas para morar em Feira de Santana, de
onde arrasta a sua banda aí pelo interior. Mas há um outro, o Zito de Zé de Satu, o professor
de violão e maestro Zito de Oliveira, que assentou praça em Presidente Prudente, no Oeste
paulista, montando uma escola de música também em Presidente Venceslau, e que ainda faz a
festa até às margens do rio Paraná. E há ainda o João do Bolero, cujo cavaquinho exerce seus
domínios lá para os lados de Marília, também no Estado de São Paulo, derretendo os corações
paulistas com os sons do Junco. Tenho um irmão, aqui em Salvador, chamado José Raineldes,
Nem para a família, que é profissional do baixo elétrico. E um filho baterista, para desespero
dos meus vizinhos. Eles compensam um pouco a minha frustração de só tocar o teclado das
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letras. Mas antes que eu me esqueça: foi o trompete de Miles Davis, um gigante do jazz, que
inspirou um de meus títulos: Um Cão Uivando para a Lua. E o piano de Thelonius Monk sempre
dá uma certa cadência às minhas mal-traçadas linhas, que batuco dando razão a Caetano
Veloso: “Como é bom poder tocar um instrumento!”
Foi a lembrança de uma música, e as minhas memórias da chuva - com licença do poeta Ruy
Espinheira Filho - que me levaram a escrever O Cachorro e o Lobo. A música se chama Ne me
quites pas e é do belga Jacques Brel. A chuva veio num domingo. Cheguei à minha janela em
Copacabana e senti o cheiro da terra, com as primeiras gotas caindo no terreno baldio ao lado
do prédio onde moro. Os passarinhos cantavam. As árvores se eriçavam. Então me lembrei de
Jacques Brel, quando cantava: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde
nunca chove.” Então pensei: “Este país é o meu. E se chama Junco.” E me lembrei de que,
quando chovia no sertão, os homens vestiam terno branco e rolavam na lama, loucos de
alegria. Corri para o teclado e bati nele: “Eis aí. Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e
loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” Pronto, foi como se o espírito
de Totonhim, o narrador de Essa Terra que partiu para São Paulo, aos 20 anos, houvesse
baixado em minhas mãos, entrando em cena e pedindo para voltar às páginas, ou seja, para
fazer uma viagem de regresso à Bahia. O narrador aqui rendeu-se ao apelo do personagem e
deu-lhe estrada. O que significou uma volta da volta. E se as coisas não tivessem acontecido
deste modo, eu não teria voltado também, para ter o prazer de estar aqui com vocês.
Para terminar, queria lembrar que se a volta de Nelo, o personagem de Essa Terra, foi um
desencontro com final trágico, a de seu irmão Totonhim foi um reencontro. Ou por outra: a
recuperação da sua memória afetiva, do seu passado, de sua história, de si mesmo. Essa é a
diferença entre um livro e outro, entre esse romance de agora e os outros, o que nosso amigo
Ildásio Tavares percebeu. É como se o Totonhim afinal me fizesse compreender que esse
mundo está mesmo perdido, vai ver ele até já acabou faz tempo, e o que nos resta a fazer é
cuidar bem dos nossos afetos.
Na mesma medida digo a vocês: muitíssimo obrigado pela atenção afetuosa com que me
ouvem nesta Universidade Federal da Bahia. E fico por aqui, por não ter mais palavras para lhes
agradecer.