Materialidade e Os Bebês ANA JULIA
Materialidade e Os Bebês ANA JULIA
Materialidade e Os Bebês ANA JULIA
CURITIBA
2020
ANA JULIA LUCHT RODRIGUES
CURITIBA
2020
Ficha catalografica elaborada pelo Sistema de
Bibliotecas/ UFPR — Biblioteca do Campus Rebougas
Tania de Barros Baggio - CRB9/760
com os dadosfornecidos pelo(a) autor(a)
327f.
TERMO DE APROVACAO
Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pés-Graduagao em EDUCAGAOda Universidade
Federal do Parand foram convocadospara realizar a arguigdo da dissertacao de Mestrado de ANA JULIA LUCHT RODRIGUES
intitulada: MATERIALIDADE(S) E OS BEBES: UM ESTUDO SOBRE SUAS ACGOES E A CONSTRUGAO DO ESPAGO DA
CRECHE, soborientagdo da Profa. Dra. ANGELA MARIA SCALABRIN COUTINHO, que apésterem inquirido a aluna e realizada a
avaliagao dotrabalho, s80 de parecer pela sua APROVAGAOnorito dedefesa.
A outorga dotitulo de mestre esta sujeita a homologagao pelo colegiado, ao atendimento de todas as indicag6es e corregbes
solicitadaspela banca e ao pleno atendimento das demandasregimentais do Programa de Pés-Graduagao.
Julio Cortázar
Rayuela – Cap.105
RESUMO
Este estudo tem por objeto de pesquisa o processo de construção do espaço da creche a partir
de uma análise das materialidades e das ações dos bebês. A investigação sustenta-se em um
quadro teórico interdisciplinar, mobilizando conceitos provenientes do campo da educação, da
sociologia, da geografia e da antropologia. O diálogo entre os diferentes referenciais teóricos
adotados ocorre a partir dos princípios da diferença, da pedagogia da infância e das pesquisas
com crianças. Assim, este estudo tem por objetivo compreender o processo de construção do
espaço da creche por meio das relações construídas entre os bebês e a(s) materialidade(s). A
fim de atender ao objetivo proposto, realizou-se um estudo etnográfico com bebês de 13 a 23
meses em uma instituição pública de educação infantil do munícipio de Curitiba (PR) durante
o ano de 2019. Como ferramentas e procedimentos de pesquisa, foi realizado amplo
levantamento bibliográfico sobre a temática do espaço e da creche, observação participante,
elaboração de um diário de campo, registros fotográficos e audiovisuais, entrevistas com as
professoras do berçário e com a diretora da instituição, assim como a contagem e catalogação
dos materiais disponíveis no centro municipal de educação infantil em que se realizou a
pesquisa. A investigação teve início com um estudo exploratório, o qual viabilizou a pesquisa
de campo. O processo de inventariar e categorizar as materialidades ofertadas aos bebês e
disponibilizadas na instituição permitiu que o espaço fosse compreendido como uma categoria
porosa e dinâmica, permanentemente em transformação. A análise dos processos de
constituição do acervo deu visibilidade aos desafios de preservação da infraestrutura e
renovação do acervo material, apontando para o isolamento da instituição, como um efeito dos
processos de descentralização de recursos financeiros. Do mesmo modo, observou-se a
apropriação criativa feita pelos adultos dos diferentes espaços e materiais aos quais têm acesso.
As relações entre os bebês e a(s) materialidade(s), por sua vez, permitiram uma reflexão acerca
da dimensão material da experiência humana e das práticas da cultura das bebês, por meio das
quais a creche se transforma de um lugar para os bebês, em um lugar deles. Como práticas
culturais e materiais dos bebês, foi dado destaque para o perambular, os usos funcionais das
coisas e as coreografias do brincar. Observou-se que as relações entre os bebês e as
materialidades se dão a partir dos emaranhados material-semióticos a partir dos quais eles se
constituem e constroem o espaço, sendo necessário mobilizar conceitos que reconheçam esta
indissociabilidade entre as ideias e a materialidade. Da mesma forma, o movimento e aspectos
não-representáveis da experiência humana devem ser considerados no processo de observação
dos bebês e análise de suas ações. A acolhida do imprevisto e o reconhecimento dos convites
feitos pela matéria se tornam latentes nos eventos do brincar e nos encontros efêmeros vividos
pelos bebês. A partir destes resultados, apresenta-se um conjunto de orientações propositivas
para a organização do espaço da creche, as quais acolhem e favorecem as práticas infantis,
garantindo e promovendo os direitos das crianças, desde bebês.
The object of this research is the process of construction of the nursery school space, focusing
on the materiality and babies’ agency. Based on an interdisciplinary theoretical approach, this
investigation deploys concepts derived from the field of education, sociology, geography and
anthropology. The dialogue among the different theoretical references occurs through the
principles of difference, early childhood education and research with children. This study aims
to understand the process of construction of the nursery school space through the relations
established between babies and materialities. It was realized an ethnographical study with
babies of 13 up to 23 months at a nursery school of the city of Curitiba (PR) during the year of
2019. The main tools and research procedures were large bibliographical research, participant
observation, field journal, photos and videos, interviews with the babies’ teachers and the head
teacher, as well as an inventory of the materials and furniture available at the nursery school.
The investigation was sustained by an exploratory study. The space has been perceived as a
porous and dynamic category, which is continuously changing. By looking at the inventory, it
was noticed how adults make creative appropriations of spaces and materials to which they
have access and its analysis has given visibility do the challenges of preservation and renovation
of the material inventory, pointing to the isolation of the nursery school as an effect of the
decentralization processes of financial resources. The relations established between babies and
materialities have allowed a reflection about the material dimension of the human experience
and the practices of babies’ cultures, through which the space becomes their place instead of a
place for them. It has also been highlighted the practices of wandering, the functional systems
created by the babies and the choreographies of play. It has been noticed that the interactions
between babies and things occur through the material-semiotic entanglements from which they
constitute themselves and construct the lived space. This research shows that it is necessary to
deploy concepts that recognize the indissociability of materiality and ideas. In the same way,
movement and non-representable dimensions of the human experiences must be considered in
the processes of babies’ observation and at the analysis of their actions. The acceptance of
unforeseeable events and the recognition of the material invitations become visible at the play
events and the ephemeral encounters lived by babies. To conclude, there are presented some
prospective suggestions for the organization of the nursery school space, which include and
foster childhood practices, guaranteeing and promoting babies’ rights.
Keywords: Research with babies. Quality Criteria. Materiality. Nursery School. Space.
LISTA DE QUADROS
PRELÚDIO
De que modo começar um texto que revele o caminhar da pesquisa, suas perambulações, as
experimentações de palavras, os devaneios teóricos? Como encontrar modos de começar um
texto que interpele o leitor a interpretar os vazios produzidos? Como traduzir o vivido pelos
bebês em palavra escrita?
Espero que algo aconteça aos leitores e leitoras em seus encontros com os mundos de vida das
crianças e que isso, em certa medida, seja possível por meio da leitura. Digo “em certa medida”,
porque não acredito que este texto seja representação das práticas e dos sentires dos bebês, mas
acredito que é preciso enfrentar o desafio de comunicar e de descobrir aquilo que acontece aos
sujeitos em suas vivências cotidianas.
O texto também está intimamente ligado àquilo que me move a realizar a pesquisa. Adentro no
campo enquanto pesquisadora e professora que se aproximou em sua trajetória das abordagens
12
1 produzir uma pesquisa comprometida com a promoção de uma educação de qualidade e que,
portanto, não nega a reflexão acerca de questões da prática pedagógica. Uma pesquisa que
produz teoria a partir da prática para retornar a ela: praxiológica.
2 avançar na pesquisa em termos dos pressupostos dos Estudos da Infância, acompanhando o
movimento atual do campo, marcado por um giro ontológico e pela revisão de tópicos centrais
por meio de novos olhares que abrem o campo ao diálogo com outras pesquisas das ciências
sociais.
3 comprometer-me com uma pesquisa que reconhece a validade de conhecer os mundos das
crianças e que produz conhecimento a partir disto, assumindo a diferença enquanto princípio.
Este prelúdio é ensaio para me apresentar e apresentar o texto. Ele surgiu, em grande parte, da
necessidade de falar diretamente com vocês, leitoras e leitores, pois se essa pesquisa se realiza
é porque desejo que possamos dialogar sobre as os bebês e lutar pela construção de uma
educação infantil de qualidade. Aviso, para encerrar, que as seções de análise podem ser lidas
de maneiras distintas, a depender dos seus interesses. Caso desejem conhecer as ações dos bebês
para depois descobrir o contexto material do CMEI, é possível fazer essa inversão.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 15
1 INTRODUÇÃO
Temos bibliotecas inteiras que contêm tudo o que sabemos das crianças e legiões de
especialistas que nos dizem o que são, o que querem e do que necessitam (...) A
infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram:
algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que
podemos acolher. (...) Não obstante, e ao mesmo tempo, a infância é um outro: aquilo
que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos
saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o
edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. (LARROSA, 2017,
p.229-230)
A citação acima, do filósofo e pedagogo espanhol Jorge Larrosa, aborda duas questões
sobre a infância e as crianças1. A primeira refere-se ao grande arsenal de estudos já existentes
acerca das crianças e a segunda diz respeito a tudo aquilo que nos escapa quando nos colocamos
diante das crianças e das suas infâncias e encontramo-nos com elas. Contrapostas, essas
questões parecem contraditórias, paradoxais, pois como é possível conhecer as crianças e ao
mesmo tempo reconhecer que há muito que não se sabe e que nunca será descoberto? Ou, ainda
mais, perceber que o encontro com elas esfacela as certezas arduamente defendidas?
Contudo, ambas partem de uma mesma premissa: a criança é um outro e, por assim o
ser, jamais poderá caber nas amarras do conhecimento científico tradicionalmente concebido.
Ou seja, apesar desta produção tomar a infância para si e produzir teorias sobre as crianças que
permitem ao indivíduo racional capturá-la, prever etapas, determinar estratégias e avaliar a
precisão de suas ações, o encontro com as crianças, com o Outro, abala as certezas e abisma o
edifício de nossas escolas2, nos impele a repensar aquilo que sabemos sobre elas e a rever o
modo de fazer ciência.
_______________
1
No decorrer da citação, o autor não diferencia os termos “criança” e “infância” de acordo com o referencial
mobilizado neste trabalho. No primeiro capítulo, apresenta-se o marco teórico da pesquisa e diferenciam-se esses
termos a partir da discussão da sociologia da infância.
2
No decorrer do trabalho, ainda que se dê preferência ao termo “instituições”, mobilizo também o termo escola
para falar da educação infantil. O faço porque reconheço a necessidade de construirmos uma escola que acolha
a todas as crianças em todas as etapas educativas e porque acredito que ao falarmos de uma escola para as
crianças pequenas podemos provocar reflexões para todo o sistema educativo. É um modo de fazer um elogio à
escola.
16
Parto desta citação para introduzir esta pesquisa sobre bebês3, as materialidades e o
espaço da creche4 e declarar que o percurso que aqui se realiza compromete-se com uma
educação e uma produção científica fundamentada no encontro com o Outro. Enfrento o desafio
de realizar uma pesquisa implicada neste encontro, o que significa reconhecer o outro enquanto
diferença absoluta, fazer pesquisa com ele, descobrir novos modos de encarar esta tarefa e
elaborar pressupostos teóricos que interrompam a lógica linear do pensamento técnico-
científico.
Assim, busquei nos Estudos da Infância5 e na Pedagogia da Infância6 (ROCHA, 2001)
fundamentos que tornassem possível a realização de uma pesquisa comprometida com o outro
e com uma prática docente permeada pelas culturas infantis e as múltiplas linguagens
(EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016) que as crianças mobilizam ao estabelecerem
relações com o mundo. A imagem da criança, desde bebê, competente e potente, assim como a
compreensão da diferença como marca do humano são os pontos de encontro para as diversas
teorias e abordagens que mobilizo no decorrer deste texto.
Nesse sentido, os referenciais teóricos selecionados para promover a discussão acerca
do espaço (LEFEBVRE, 1991; MASSEY, 1994; 2005; SANTOS, 2014b,a) e da materialidade
(BROUGÈRE, 2003; 2010b; INGOLD, 2011; 2012a,b; MILLER, 2005; 2007) também
dialogam com esta perspectiva do conhecimento científico e acolhem a pluralidade. O exercício
de reflexão sobre a relação construída entre os bebês e a materialidade promoveu a realização
de uma pesquisa eminentemente interdisciplinar: os estudos da infância e o pensamento
educacional entrelaçam-se com conceitos provenientes da geografia, da antropologia e da
sociologia, promovendo um processo contínuo de questionamentos acerca dos sentidos da
pesquisa, da interpretação das ações das crianças e do cotidiano na educação infantil.
_______________
3
A terminologia “bebês” será mobilizada a fim de dar destaque ao grupo usualmente classificado como pertencente
a esta categoria intrageracional. No primeiro capítulo discorre-se acerca do termo a fim de problematizá-lo em
termos de sua definição etária e dar destaque ao caráter político da produção textual ao fazer a seleção dos termos
que serão mobilizados. Ao longo do trabalho, os termos “crianças bem pequenas” (1 ano e 7 meses a 3 anos e
11 meses) e “crianças pequenas” (4 anos a 5 anos e 11 meses) também serão utilizados.
4
Ao longo do trabalho, o termo “creche” será utilizado para destacar a especificidade do trabalho educativo com
os bebês e as crianças bem pequenas que compõem o grupo etário de 0 a 3 anos de idade e que, como previsto
na Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), configura-se como público deste segmento
da educação infantil.
5
Os Estudos da Infância configuram-se como um campo interdisciplinar de pesquisas, congregando referenciais
teóricos da Sociologia, Antropologia, História, Geografia, Educação, dentre outras, a partir da defesa consensual
das crianças enquanto agentes sociais e sujeitos de direitos.
6
O termo Pedagogia da Infância remete ao trabalho de pesquisa realizado por Eloisa Rocha (2001) e aos estudos
conseguintes decorrentes do reconhecimento da especificidade do trabalho docente nesta etapa da educação
básica a partir do reconhecimento da criança e da escuta atenta de seus modos de ser e estar no mundo.
17
O termo materialidade ocupa um papel central ao longo deste texto, pois por meio
deles refiro-me à concretude das relações e à dimensão material da experiência humana. Este
conceito chama atenção para a força constitutiva da relação concreta com o mundo (SPYROU,
2019) e para o dinamismo das relações, situando a pesquisa no âmbito de uma abordagem
relacional. Por meio do termo materialidades, por sua vez, dou destaque aos móveis, objetos,
brinquedos e elementos naturais (galhos, pedras, terra) que compõem o espaço da creche, assim
como à estrutura física (paredes, pisos, portas) e ao mobiliário. O jogo com essas terminologias,
materialidade(s), mobilizado no título deste trabalho provoca simultaneamente a reflexão
acerca do conceito e nos remete ao acervo material das instituições. Ambas as questões são
centrais no desenvolvimento dessa pesquisa.
Diante disso, este estudo caminha na contramão de produções científicas acerca dos
bebês, do espaço e, de forma mais ampla, sobre as práticas educativas, que dizem tudo saber
sobre o outro, dominando-o e enclausurando-o na certeza de suas verdades. Produções
esvaziadas da caótica e concreta relação do ser humano com o mundo, fundamentadas em uma
compreensão estática e tecnicista do saber pedagógico. Rompe-se com essa perspectiva, na qual
o desenvolvimento motor, social, cognitivo e emocional das crianças, assim como a
aprendizagem de regras sociais por meio da socialização, são formas de controle da criança,
campos dominados pelo saber técnico.
Este rompimento convida a uma reflexão acerca dos elementos que podem compor
uma didática da Pedagogia da Infância. O reconhecimento da materialidade da experiência
parece ser elemento central para uma pedagogia da escuta e do encontro, que reconhece a
falibilidade dos preceitos técnico-racionais, promove a acolhida da imprevisibilidade e
reconhece atravessamentos sinestésicos gerados pelo mundo material. Retomar o termo didática
e situá-lo no âmbito de uma produção pedagógica que reconhece a criança, despindo-a do
imaginário do aluno, pode ser um caminho para a realização de uma pesquisa comprometida
com o caráter praxiológico da pesquisa em educação (ROCHA, 2001).
Parece-me indispensável começar este texto desta forma porque comprometo-me com
esta perspectiva epistemológica e tento produzir um texto que não sujeite os bebês aos discursos
produzidos sobre eles, criando espaço para que suas vozes ecoem. Isto significa que esta
pesquisa, além de reconhecer a necessidade de promovermos uma aproximação da academia
aos mundos de vida das crianças, pressupõe que elas são informantes importantes e
competentes, valorizando as linguagens plurais que elas mobilizam em seus processos de
descoberta do mundo e de si mesmas e a infância vivida por cada uma delas.
18
Espero que aquilo que os bebês7 me mostraram reverbere nesta produção, de modo a
refletir acerca da construção do espaço da creche a partir do que acontece na relação entre os
bebês e as materialidades. Pois este texto:
(...) pode ser o único jeito de apresentar o ‘terreno áspero’ no qual os agentes vivem e
movem-se, mostrando a complexidade das relações vividas e formas para as quais
palavras e teorias ainda não existem, mas as quais de alguma forma, na prática e nas
concretas relações do campo, conectam alguns dos elementos que interessam ao
pesquisador. (WILLIS, 2000, p. 118,tradução nossa, grifos nossos) 8 9
Nesse sentido, a pesquisa que aqui se apresenta dialoga com a minha trajetória
profissional e acadêmica, representa parte desta caminhada na qual a professora e pesquisadora
em que me constitui se depara com as crianças e seus cotidianos. No meu percurso acadêmico,
me encontrei com as crianças no início do meu processo formativo no curso de graduação em
Pedagogia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), por meio da participação no Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil (NEPIE)10. Esta caminhada me mostrou a
importância da escuta dos sujeitos adultos e crianças para que seja possível fortalecer e construir
projetos educativos de qualidade.
No percurso profissional, pude ser professora de bebês, me deparar com as crianças
pequenas e viver com elas um cotidiano rico em possibilidades, permanentemente atravessado
pelo inesperado. Também pude exercer a função de coordenação pedagógica em uma
instituição de educação infantil e tenho a oportunidade de pensar sobre a formação continuada
de professoras e de elaborar junto a elas ferramentas de escuta e observação das crianças, desde
_______________
7
Refiro-me aos dezenove bebês que conheci no decorrer dos quatro meses de campo de pesquisa e que me
apresentaram seus mundos de vida, são eles: Alice, Allan, Allicia, Bernardo, Beatriz, Davi, David, Heloísa A.,
Heloísa M., Kaylan, Laura, Lívia, Luiza, Mateus, Melissa, Nathiely, Pedro, Valentina e Yasmin.
8
No decorrer da dissertação, algumas citações serão traduzidas de forma livre, pois sempre que possível os textos
foram lidos no idioma original. Elas também serão acompanhadas do trecho original em nota de rodapé,
garantindo aos leitores e leitoras a possibilidade de confrontarem-se com as palavras dos autores.
9
No original: “This can be the only means of presenting the ‘rough ground’ on which agents live and move,
showing the complexity of lived relations and forms for which words and theories do not yet exist, but which
somehow, in practice, and in the practical relations of the field, connect up some of the important elements that
interest the researcher.” (WILLIS, 2000, p. 118)
10
No NEPIE/UFPR, tive a oportunidade de participar da vida universitária no âmbito da pesquisa e da extensão.
Realizei, sob orientação da Profa Dra Gizele de Souza, pesquisas no campo da História da Infância: uma pesquisa
de iniciação científica sobre as representações de infância no movimento de assistência à infância no Paraná do
século XIX e trabalho de conclusão de curso sobre a circulação de ideias sobre proteção e educação das crianças
no âmbito das Conferências da Casa Branca de Proteção à Criança nas redes pan-americanas e latino-americanas
do início do século XX. Também pude participar junto com as professoras do NEPIE, Profa Dra Gizele de Souza,
Profa Dra Catarina Moro e Profa Dra Angela Coutinho, do projeto internacional de formação em rede sobre
avaliação de contexto, o qual me aproximou do cotidiano das escolas, da discussão acerca de qualidade e da
abordagem italiana de educação infantil. No âmbito da extensão, atuei na elaboração e publicação da Revista
Virtual de Educação Infantil (ReVirEI) sob orientação da Prof a Dra Catarina Moro, uma publicação virtual
semestral que tem por objetivo alcançar os docentes de creche e pré-escola.
19
_______________
11
Verifica-se que a Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos da Criança (1990), estabelece que devemos
pensar os direitos das crianças em termos dos três “Ps”: proteção, provisão e participação. Isto implica, no
âmbito educativo, em pensar o espaço das creche e as relações que se estabelecem entre infância e educação em
termos da garantia e da efetivação destes direitos.
12
Ao referir-me às práticas culturais-materiais, destaco a indissociabilidade destas dimensões. O rompimento com
os falsos binômios como o de natureza-cultura, materialidade-discurso, implica no reconhecimento de que as
práticas dos bebês estão imbrincadas em um contexto que se constrói de forma relacional. Tim Ingold (2011)
aponta que ao invés de compreendermos natureza e cultura como dois lados de uma mesma moeda, é preciso
interpretá-las como dimensões situadas em um mesmo campo relacional.
13
A ordem social vigente, em seus esforços por colonizar o pensamento e estabelecer padrões sociais de valor,
hierarquiza diferentes categorias sociais e se constrói com base nos princípios epistemológicos de uma minoria
da população, representada pelo homem, branco, heterossexual, ocidental, adulto, sem deficiências, não-
estrangeiro.
20
das práticas vividas com este grupo de crianças e evitando que eles se encontrem subsumidos
às práticas características da pré-escola, o que justifica a realização e o aprofundamento das
pesquisas com bebês. Os Estudos da Infância têm caminhado no sentido de incluir os bebês e
as crianças pequenas, mas também nesse campo de estudos eles ainda não têm garantido o
mesmo espaço que as outras crianças.
Fúlvia Rosemberg (1996; 2006) já apontava a importância de considerarmos este grupo
de crianças nas nossas pesquisas e elaborava uma análise sobre a forma como a categoria de
idade condiciona as vidas das crianças. A idade permanece como absoluto universal,
justificando o tipo de políticas pensadas para a infância e a própria ausência das crianças
pequenas nas pesquisas. Eles precisam ser reconhecidos no âmbito da pedagogia e socialmente
como sujeitos sociais e políticos, cidadãos que devem ter seus direitos respeitados e garantidos.
Eles não são pré-sujeitos (JAMES; PROUT, 1990), cidadãos em formação, eles já o são e têm
voz, precisamos elaborar ferramentas que nos permitam escutá-las e fazê-las ecoar. A
diversidade provém da aproximação aos seus mundos de vida, ao considerá-los como dignos
de estudo por si próprios e promovermos pesquisas com eles e não sobre eles, fissurando a
compreensão clássica de socialização e do processo de desenvolvimento infantil (JAMES;
PROUT, 1990; JOBIM E SOUZA, 1996).
Trabalhos recentes na produção acadêmica nacional apontam o crescimento de
pesquisas sobre bebês nos últimos anos (BUSS-SIMÃO; ROCHA; GONÇALVES, 2015)14,
mas permanecem indicando a necessidade de realização de pesquisas voltadas às práticas
pedagógicas visto que ainda são predominantes as investigações sobre o desenvolvimento
infantil (GONÇALVES, 2014). Nas produções internacionais, Niina Rutanen (2011) retoma a
importância de se considerar as crianças bem pequenas nos Estudos da Infância, aproximando-
nos das experiências dos sujeitos categorizados segundo este marcador intrageracional: ser um
bebê (0-1 anos) ou um toddler15 (2-3 anos). Compreender os bebês enquanto sujeitos integrantes
desta categoria intrageracional implica em reconhecer o impacto destas denominações,
_______________
14
As autoras fazem um levantamento da produção científica recente, tomando como base as produções de teses e
dissertações e os trabalhos publicados na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(Anped). Elas indicam a possibilidade de novas perspectivas de análise e destacam que as pesquisas recentes
acerca das crianças de 0-3 anos têm investigado questões relativas às especificidades da docência com bebês;
organização do espaço e do tempo; ampliação das reflexões sobre o cuidado; linguagem; literatura; relações com
as famílias; relações étnico-raciais; processos de inserção; e atendimento das crianças nas escolas do campo.
15
O termo toddler não é um marcador presente nas produções brasileiras, contudo aparece na produção
internacional em inglês sobre a temática e foi mobilizado no levantamento bibliográfico realizado para esta
pesquisa. O termo toddler, repensando por Niina Rutanen (2011), refere-se a uma categoria intrageracional
composta pelos bebês que já conquistaram a marcha e ainda não dominam a linguagem verbal.
21
frequentemente balizadas por marcadores etários, nas experiências de infância dos sujeitos. A
idade é elemento simbólico determinante das experiências vividas, sendo ressignificada a partir
de contextos socioculturais específicos.
Ao olhar para os bebês e verificar-se como eles estão contemporaneamente vivendo suas
experiências de infância, observamos que a vida dos bebês que têm acesso à creche16 encontra-
se marcada pela sua presença por tempos estendidos nestas instituições educativas, em sua
maioria em período integral. Promover uma educação de qualidade implica tanto na garantia
do acesso quanto na promoção de contextos educativos ricos em possibilidades. Assim, é
preciso que a luta por vagas seja acompanhada de uma discussão aprofundada sobre os espaços
e tempos nos quais desejamos que os bebês vivam suas experiências de infância.
Isto implica na necessidade de pensar estes espaços desde os sujeitos que ali vivem e de
repensar as práticas educativas a partir dos elementos que podem compor uma didática da
educação infantil a partir da perspectiva da Pedagogia da Infância. Voltamos o olhar para os
espaços e para as coisas que o compõem: brinquedos, elementos da natureza, objetos de uso
cotidiano e mobiliários. Neste sentido, reforça-se o compromisso em garantir espaços de
qualidade onde eles possam ser e estar no mundo, construindo sentidos compartilhados com
seus pares e com os adultos, descobrindo-se, expressando-se, comunicando-se, em suma,
participando de forma ativa da construção de suas infâncias.
Além disso, compreende-se que o espaço vivido se constrói a partir da ação das crianças,
desde bebês, em um processo dinâmico de criação de emaranhados materiais-semióticos
(SPYROU, 2019) por meio dos quais elas se constituem e constroem o espaço. A materialidade
integra a experiência educativa e, portanto, é preciso dar destaque às narrativas construídas com
os objetos e falar sobre a matéria (INGOLD, 2011).
Diante disso, me pergunto sobre como garantir um espaço de qualidade nas instituições
e sobre a forma como se constituem os acervos materiais das creches, reconhecendo a forma
como os adultos selecionam os materiais, determinam as condições do espaço e do seu uso – a
qual aparece intrinsecamente relacionada à organização do tempo (BARBOSA, 2013). Destaco
que, assim como em outros trabalhos e pesquisas no campo da educação (BOLLIG; MILLEI,
2018; HARRISON; SUMSION, 2014), e dos estudos da infância (HOLLOWAY;
_______________
16
Atualmente no Brasil, segundo dados de monitoramento do PNE 2014-2024, de 2016, 30,4% das crianças de 0
a 3 anos e 11 meses têm acesso à creche. Este acesso é marcado por desigualdades regionais, local de residência
(urbana e rural) e, principalmente, renda familiar (SESIUK, 2019). Em Curitiba, com base no Censo de 2017,
35,7% das crianças têm acesso à creche, sendo 17,1% em creche pública; dentre elas, 99% permanecem de 7 a
11 horas diárias nas instituições (SESIUK, 2019). Destaco que se sabe pouco sobre a vida dos bebês que não
acessam à creche e que esta é uma lacuna nas pesquisas com bebês.
22
_______________
17
No segundo capítulo da dissertação, discorro acerca da concepção de espaço em que se fundamenta esta
pesquisa.
18
Embora o debate sobre educação democrática com bebês seja incipiente, mobilizo o termo a fim de dar destaque
ao caráter político da tarefa educativa. Não existe educação neutra e, portanto, ao promovermos a escuta e a
participação dos bebês, assumimos uma perspectiva democrática.
19
Mobilizo o conceito de participação a partir de sua interpretação como a possibilidade de as crianças usufruírem
“(...) da cidadania que juridicamente lhe é reconhecida, tornando pública a sua opinião.” (COUTINHO, 2013a,
p. 223), garantindo que elas influenciem os processos de decisão (WYNESS, 2013) e compreendendo-a a partir
de relações de interdependência. Na seção de análise 4.3, discorro sobre a participação dos bebês nos rituais da
turma, de modo que o conceito pode ser melhor compreendido a partir da leitura desta seção.
23
os bebês têm acesso em seu cotidiano e quais são os significados produzidos em torno deles?
De que modo os bebês se apropriam destes elementos materiais e ao mesmo tempo culturais e
simbólicos que lhes estão dispostos a fim de comunicar aos adultos e aos seus pares a sua visão
de mundo? Como o espaço e a materialidade se apresentam como campo de possibilidades para
a ação dos bebês?
Estas perguntas garantem o sentido democrático porque tomam como princípio a
cidadania das crianças e promovem a construção de projetos educativos colaborativos e
fundamentados nos princípios da diferença e do respeito à criança, na garantia dos seus direitos
de provisão, proteção e participação. Neste sentido, promovem meios de resistir ao poder e de
fissurar as narrativas modernas que produzem a diferença enquanto negatividade (SKLIAR,
2003) e transformam a criança em outro a ser controlado e dominado (LARROSA, 2017). O
reconhecimento da alteridade é princípio democrático (LARROSA, 2017). Assim, pensar sobre
o espaço e a materialidade significa se comprometer com a construção de uma política do
espaço (MASSEY, 2005), tornando visíveis as relações que o constroem por meio do exercício
de se perguntar sobre ele e desnaturalizá-lo.
Ou seja, espaço e materiais precisam ser pensados e considerados no âmbito da
Pedagogia da Infância, tanto para garantir uma organização do tempo e do uso do espaço que
reconhece que as crianças participam de forma ativa de sua construção quanto para
promovermos um pensamento pedagógico comprometido com as múltiplas linguagens que as
crianças mobilizam, sem hierarquizá-las e condicioná-las a uma leitura do outro de acordo com
supostos referentes universais de desenvolvimento. É preciso avançar no reconhecimento do
espaço enquanto uma categoria que expressa a intencionalidade pedagógica e que também se
constitui em campo de possibilidades para as ações das crianças, adquirindo novos significados
e se constituindo em lugar a partir desta produção simbólica. As materialidades, por sua vez,
são elementos constituintes do espaço, das práticas pedagógicas, das experiências educativas
dos bebês e de suas práticas culturais-materiais.
Desse modo, enfrenta-se nesta pesquisa o desafio de promover uma análise em que o
espaço seja considerado como categoria central, posto que ele não pode ser considerado de
forma tangencial no fortalecimento de projetos educativos em que se deseje garantir o respeito
e a escuta dos bebês. Esta reflexão dialoga com a produção atual sobre educação infantil, a qual
vem rediscutindo o conceito de experiência e dando ênfase à importância da organização do
espaço na construção do currículo da educação infantil (CABANELLAS; ESLAVA, 2005;
HORN, 2004; HOYUELOS, 2005; PANDINI-SIMIANO, 2016a; VIEIRA, 2016). Além disto,
a discussão já fortalecida do campo da cultura escolar e da cultura material (ESCOLANO, 2001;
24
INGOLD, 2012a; MILLER, 2005; VIÑAO FRAGO, 1996) também contribui para pensarmos
sobre os significados atribuídos ao espaço e mobilizados pelos sujeitos em sua construção
cotidiana.
Diante disso, esta pesquisa tem por objetivo compreender o processo de construção
do espaço da creche por meio das ações dos bebês diante das materialidades que o
compõem, estudando-o a partir das ações dos bebês em uma instituição de educação infantil
municipal de Curitiba e considerando a pluralidade de linguagens que eles utilizam e sua forma
específica de ser e estar no mundo. Para isto, esta pesquisa tem por objetivos específicos:
a) Inventariar e categorizar o espaço ofertado no berçário em termos de sua
materialidade, elaborando um inventário do espaço da creche: estrutura física,
móveis, brinquedos e demais objetos dispostos na instituição.
b) Averiguar a forma como as materialidades condicionam a ação dos bebês e como se
dá o seu provimento.
c) Narrar e analisar as ações dos bebês ao explorarem as materialidades e mobilizarem
repertórios culturais em sua interação com o espaço e o outro.
A partir destas concepções e dos objetivos de pesquisa acima delineados, se faz
necessário desenhar um caminho metodológico que garanta a escuta dos bebês, visto que olhar
para eles como sujeitos pressupõe uma metodologia de trabalho que considere a sua ação social
(COUTINHO, 2013b) no processo de produção e de análise de dados. Acolhê-los na pesquisa
implica em outra forma de escutá-los e de visibilizar as suas formas de expressão, pois eles têm
formas outras de conhecer e explorar o mundo. Nesse sentido, realizo um percurso de pesquisa
que:
Este percurso também implica em avançar em termos da ética nas pesquisas, garantindo
que as crianças estejam sempre cientes dos processos que estão ocorrendo, dos problemas de
pesquisa e do papel da pesquisadora. As pesquisas sobre a infância se localizam em meio ao
paradoxo de que o pesquisador é o sujeito que faz a seleção de dados, de métodos e que decide
_______________
20
No original: “(...) granting them instead the status of participants and constructors in the very processes that
make their - and our - world. This derives from approaching social life as a dynamic field of confrontations and
struggles between social forces.” (ALANEN, 1988, P.65)
25
os procedimentos de pesquisa, o que chama a atenção para as relações de poder que existem
entre pesquisador e criança (CHRISTENSEN, 2004). Ao refletirmos sobre a ética, verifica-se
que:
No âmbito dos estudos com as crianças uma das prerrogativas do papel dos/as
investigadores/as - adultos – é descentrar-se desse lugar social geracional ao propor
conhecer a ação das crianças, o que não significa destituir seu estatuto de adulto, mas
não tomá-lo como referência ao interpretar os sentidos atribuídos pelas crianças às
suas ações, o que não resolve a problemática da interpretação das subjetividades, mas
permite uma reflexão mais situada do ponto de vista do ator. (COUTINHO, 2013a, p.
220)
_______________
21
O estudo exploratório ocorreu nos meses de fevereiro a março; a observação dos bebês de março a junho e as
entrevistas e inventário do acervo material de agosto a dezembro.
26
compõe os métodos visuais. O cuidado ético na pesquisa foi buscado por meio de uma relação
honesta com os participantes da pesquisa: as professoras tiveram acesso aos meus registros
diários e compartilhei com as crianças parte das fotografias que realizei, comunicando a elas o
papel que ocupo na instituição. O registro cotidiano ocorreu segundo os indícios dados pelas
crianças, em um movimento de acompanhar os sujeitos da pesquisa, verificando elementos de
continuidade22 e conhecendo as linguagens mobilizadas pelas crianças.
A discussão acerca do espaço também implicou em uma análise dos materiais
disponíveis na instituição, registrando e mapeando os bens naturais e culturalmente produzidos
e selecionados para o trabalho pedagógico com bebês. Desta forma, foi realizado um inventário
dos materiais que compõem o espaço da creche. A fim de atingir o objetivo proposto, também
foram realizadas entrevistas com a diretora e professoras do berçário do CMEI pesquisado
e levantadas informações sobre o provimento material da instituição. Estas são estratégias
metodológicas que permitiram a análise do inventário de materiais e ajudaram a compreender
os sentidos atribuídos às materialidades.
Esta etapa da pesquisa foi viabilizada pela realização de um estudo exploratório, o qual
possibilitou uma aproximação ao campo de pesquisa e um processo adequado de entrada no
campo devido a uma cuidadosa aproximação inicial aos participantes da pesquisa: bebês e
professoras das turmas de berçário, coordenação e direção da instituição. Neste estudo, dez
instituições foram previamente selecionadas a partir das imagens com bebês divulgadas em
redes sociais, o que dá indícios do lugar produzido para eles no âmbito de cada instituição e
considera a autonomia das escolas para divulgarem o seu trabalho nas redes sociais. A partir de
uma visita aos espaços, considerando as materialidades presentes e a disponibilidade dos
adultos para participar da pesquisa, assim como de uma breve análise do contexto das
instituições, o que levou em conta sua história e o levantamento de dados sobre desigualdade
social nos bairros de Curitiba, foi selecionada uma instituição para a realização do estudo
etnográfico.
A pesquisa também partiu de amplo levantamento bibliográfico, em âmbito nacional
e internacional, das produções sobre bebês em sua relação com o espaço. Este levantamento
_______________
22
Na última seção da análise (item 4.4) discorro acerca do conceito de continuidade a partir dos eventos do brincar
registrados e analisados no decorrer da pesquisa. Ela é compreendida como a retomada de brincadeiras a partir
de elementos diacrônicos presentes nos eventos do brincar, como a formação de grupos de pares estáveis e a
escolha de objetos ou conteúdos simbólicos semelhantes em dias distintos, compondo parte da trama na qual os
bebês se encontram uns com os outros e com as coisas.
27
permitiu situar esta pesquisa no campo científico e aprofundar a compreensão sobre a ação dos
bebês.
No intuito de percorrer este caminho e realizar este processo de construção e
desconstrução de conceitos e teorias, apresento os capítulos que se seguem. No segundo
capítulo, discorro acerca do espaço, da materialidade e das concepções de bebê, criança,
infância e educação infantil, pois fazer pesquisa com os bebês significa reconhecer os
significados produzidos na construção deste marcador intrageracional. É imprescindível
compreender o processo de construção social da geração e o valor atribuído à idade nas
sociedades ocidentais a fim de que se realize uma análise da condição do bebê na
contemporaneidade e dos efeitos deste marcador na vida dos sujeitos. Para isso, exponho um
levantamento bibliográfico acerca da temática e discuto os fundamentos teóricos.
No terceiro capítulo, apresento a metodologia escolhida para esta pesquisa, dando
destaque aos significados da ética na pesquisa com bebês e introduzindo alguns elementos do
campo de pesquisa. Discorro também sobre a relação que construí com eles ao largo do trabalho
de campo, posicionando-me enquanto pesquisadora e reconhecendo as implicações da minha
presença na creche.
No quarto capítulo, realizo a análise dos dados produzidos em campo, cotejando-os com
a teoria e mobilizando texto e imagens na produção deste texto. Para promover esta discussão,
também apresento o inventário da materialidade a qual os bebês têm acesso. Este capítulo está
dividido em quatro partes, as quais enfatizam diferentes questões relativas a profunda relação
estabelecida entre o espaço, os bebês e a materialidade. Na primeira delas, dou destaque ao
contexto material da instituição e, nas seguintes, aos acontecimentos advindos dos encontros
dos bebês com as coisas23. Além disso, é possível aceder a um endereço virtual em que se
apresenta o acervo material da instituição a partir de duas classificações distintas (categorização
pedagógica e panorama da matéria).
Por fim, nas considerações finais, apresentam-se algumas sugestões e orientações para
o trabalho com bebês considerando-se a reflexão sobre o espaço e as materialidades. O diálogo
entre os Estudos da Infância e a Pedagogia permanece como fio condutor desta reflexão. Desejo
que a voz dos bebês reverbere nesta dissertação e que seja possível reconhecermos a
importância de considerar este recorte geracional e etário na produção acadêmica e nas práticas
educativas.
_______________
23
Ressalto que, apesar da ordem das seções da análise, elas não precisam ser lidas nesta ordem, porque apesar do
diálogo entre elas, elas são independentes.
28
A casa, descrita acima por Virginia Woolf, atravessa o tempo e se modifica conforme
sujeitos e objetos passam a habitar o seu espaço. Cada qual a ocupa de modo diferente,
relacionando-se com ela e apropriando-se dos objetos que ali se encontram. Vemos como o
encontro com a materialidade constitui os sujeitos e a concretude do espaço físico
subjetivamente se altera segundo a relação estabelecida por eles, seja o teto caído, as tábuas
nuas ou o caco de porcelana. Estes significados simultaneamente constroem o espaço.
Esta casa pode ser metáfora para pensarmos na escola e nos percursos travados em seu
interior por crianças e adultos: histórias que se encontram, espaços que se constroem por meio
da ação dos sujeitos e que se modificam de acordo com os significados atribuídos no decorrer
de suas trajetórias. Os bebês vivem experiências de infância plurais, marcadas por esses
encontros dinâmicos com os espaços e tempos que eles habitam. Pensar a escola como lugar de
encontro das histórias de crianças e adultos implica em reconhecermos que o espaço não é algo
estático, fixo, imóvel.
Usualmente, o tempo é percebido enquanto experiência subjetiva e o espaço
assemelha-se a um contêiner vazio à espera da ação das pessoas. É comum dizer que o “tempo
passou voando” ou que “ele não passa”. São frases que dizemos com frequência ao
expressarmos aquilo que sentimos em diferentes momentos. Refutar a imobilidade do espaço
significa compreender que, assim como a experiência de tempo é subjetiva, a espacialidade
vincula-se à concretude material da vida e aponta para a experiência do espaço, para sua
singularidade e subjetividade. Esta é a abordagem de espaço defendida no decorrer desta
pesquisa: ele é construído pelos sujeitos que o ocupam e que atribuem significados diversos
para ele a partir da interação com os elementos concretos e com os símbolos presentes.
Isto significa pensar o espaço das instituições de educação infantil como um lugar
marcado pelas relações que os sujeitos estabelecem com imagens distintas de infância, o lugar
para as crianças, assim como um lugar continuamente alterado diante das relações construídas,
o lugar das crianças (RASMUSSEN, 2004). As concepções de criança, infância e educação
29
_______________
24
Destaco que em alguns momentos do decorrer do trabalho recorremos à crítica à psicologia do desenvolvimento
tradicional e uma visão restrita de cognição como um argumento que nos ajuda a construir uma reflexão crítica
em relação à padrões universais de desenvolvimento revestidos do caráter de cientificidade e racionalidade
próprios do pensamento moderno. Eles se apresentam como padrões de normalidade que colonizam nossas
imagens de infância, criança e educação infantil. Na seção 4.1, em que se analisa o lugar construído para os
bebês, é possível notar como a imagem de criança construída a partir desta visão clássica do desenvolvimento
infantil é um elemento que constringe as materialidades às quais os bebês têm acesso e atravessa os produtos e
brinquedos socialmente produzidos e categorizados enquanto materiais de uso dos bebês. A cultura para os bebês
é, em grande parte, marcada por essa imagem de infância. Contudo, é importante compreender que esta crítica
precisa ser lida de modo situado. Primeiro, ela compõe parte dos argumentos que justificam a consolidação deste
campo específico de estudos e, portanto, é frequente nas produções da área. Segundo, a crítica é pontual, ou seja,
ela se refere às concepções clássicas de desenvolvimento infantil que olhavam para a criança como um objeto
de pesquisa, a estudavam aparte de seus contextos de vida (em situações unicamente de estudos clínicos),
ranqueavam e escalonavam o desenvolvimento, assim como o compartimentavam. Leituras contemporâneas de
desenvolvimento infantil e demais áreas da psicologia constroem outras perspectivas sobre a criança e
contribuem para o desenvolvimento desta pesquisa e para a forma como o desenvolvimento infantil é
compreendido ao largo de toda a investigação. Nesse sentido, dialogamos com investigações que compartilham
de metateorias processuais-relacionais (OVERTON, 2015). São pesquisas que compreendem o desenvolvimento
infantil de forma relacional e processual, sem fragmentá-lo em diferentes dimensões; assim como o
compreendem em relação com a cultura e as dinâmicas do social e olham para as crianças como sujeitos,
considerando seus contextos de vida e as inter-relações com outras categorias sociais (BURMAN, 1996; 2006;
ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; OLIVEIRA, 2009; UPRICHARD, 2010). Nestas pesquisas, é possível
notar uma crítica à visão tradicional a partir do próprio campo da psicologia e, em específico, da psicologia do
desenvolvimento.
25
No desenvolvimento de pesquisas da sociologia da infância, observa-se que foi vivido, primeiramente, um
momento em que a criança é um objeto de socialização, para passar a ser em seguida um agente social, sujeito
das suas relações, entre si e com outras gerações. No decorrer do trabalho, ao reconhecermos a forma como os
bebês se colocam em relação com os outros, reinterpretam a cultura e produzem cultura de pares, também
provocamos um rompimento com a leitura tradicional dos processos de socialização.
31
_______________
26
No original: “(…) a ‘step forward’, giving voices and visibility to a group in society that for centuries has been
silenced, only on the basis of age as a discriminatory classification.” (VANDENBROECK; BIE, 2006, p.127)
27
No original: “But participation in the sense of the being and acting in society does not begin first when a defined
age limit or degree of adultness has been reached”. (ALANEN, 1994, p.28).
32
aos efeitos produzidos por meio da relação de pertença a diferentes formas de estratificação
social – etnia, raça, gênero, classe, nacionalidade, dentre outras. De modo que se fazem
necessárias, no campo de pesquisa, a análise das dimensões homogêneas, a existência
permanente da categoria geracional, e das heterogêneas, que se referem à investigação
interpretativa das singularidades.
A análise desta dimensão homogênea dialoga com o foco de análise de Jens Qvortrup
(QVORTRUP, 2010a,b), o qual destaca a relevância do estudo das questões estruturais,
compreendendo a infância como uma categoria permanente da estrutura geracional da
sociedade, marcada pela constante substituição de seus integrantes, os quais ocupam posições
diferentes na ordem social de acordo com o período histórico e a cultura, partindo do
pressuposto que “meios, recursos, influência e poder estão distribuídos de maneiras diferentes
entre as categorias (...)”(QVORTRUP, 2010a, p. 638).
Leena Alanen (1994), por sua vez, faz um paralelo com os estudos feministas, afirmando
que o termo geração ocupa o mesmo papel de gênero no processo de investigação e
interpretação da realidade. Ou seja, se faz necessário dar destaque a este processo de construção
social em detrimento de uma rígida ordem de desenvolvimento e determinação dos sujeitos a
partir de seus atributos físicos ou de sua idade. Para isto, a autora propõe que o termo geração
seja analisado como variável dependente de aspectos estruturais e simultaneamente como
independente devido às ações das crianças.
Ou seja, as categorias de idade, classe, raça, gênero, geração, dentre outras, constroem
os mundos de vidas das crianças. Estas categorias emergem da análise empírica, assim como
urge considerar a questão das interseccionalidades (CRENSHAW, 2002), analisando-se a
forma como elas compõem cenários distintos nos quais os sujeitos adultos e crianças vão atuar.
Desta forma, estes estudos consideram que as experiências de infância são diversas e que não
se pode compreender os mundos de vida das crianças sob a égide de uma grande categoria com
aparência de universalidade. Para isso, se faz necessário romper com aquilo que é visto como
natural, elaborando uma reflexão permanente acerca dos processos políticos, históricos e sociais
que marcam estrutural e conjunturalmente a vida em sociedade.
Nesse sentido, as pesquisas de Deise Arenhardt (2015; 2014) buscam analisar as
relações entre as categorias de classe e geração, observando o duplo constrangimento vivido
por crianças de classes sociais diferentes. As de Neusa Gusmão (2003), por sua vez, tomam o
conceito de geração como fundamento e objeto de análise para estabelecer uma relação entre
infância e velhice, apontando a forma como a sociedade ocidental produz desigualdade a partir
33
da diferença e reduz os sujeitos crianças e idosos a construções universais: as crianças são quem
ainda não é, e os idosos aqueles que já foram.
Também consideramos fundamental retomar o conceito de geração como mobilizado
por Karl Mannheim (1993) a fim de compreender e reforçar a ideia de que a identificação do
sujeito de acordo com um grupo geracional – conexão e unidade geracional – implica em
considerar outros elementos juntamente com a questão etária ou com o coorte de nascimento.
Este autor, pioneiro nos estudos geracionais, sustenta a ideia de que a contemporaneidade dos
indivíduos garante a possibilidade de compartilhar uma mesma posição geracional, mas o
impulso coletivo das enteléquias implica na experiência de não-contemporaneidade, de forma
que os sujeitos assumem diferentes conexões e posições geracionais apesar de sua
contemporaneidade.
A forma como este autor complexifica o conceito de geração o torna mais diverso e
heterogêneo que a concepção de geração que toma como referência o coorte. Uma aproximação
a estes estudos pode possibilitar que as análises de geração se ampliem a fim de garantir um
olhar atento aos mundos diversos das crianças. Compreender a pluralidade da infância, as
infâncias, implica em mobilizarmos conceitos também plurais e multifacetados. A classificação
unívoca por meio da idade impacta na redução do conceito de geração, como exposto acima, e
produz marcadores intrageracionais esvaziados de seu caráter complexo e eminentemente
social.
Sob esta ótica, observa-se que a questão do tempo é fundamental nos Estudos da
Infância e que ela precisa ser continuamente tomada enquanto objeto de reflexão a fim de que
seja desnaturalizada. Barrie Thorne (2004) ressalta que “o desafio teórico de conectar o tempo
biológico, de desenvolvimento, biográfico e histórico merece ampla atenção” (THORNE, 2004,
p. 405, tradução nossa)28. Nesse sentido, compreende-se que a construção social da infância
atribui significados à idade, condicionando e organizando os espaços e tempos que os sujeitos
ocupam durante seu curso de vida (GIDDENS, SUTTON, 2016). As crianças são os sujeitos
que vivem este tempo de vida, a infância, e a vivenciam enquanto tempo cronológico de sua
experiência pessoal e tempo estruturante (QVORTRUP, 2010a) de suas possibilidades de
existência.
Deste modo, assumir uma postura crítica nos Estudos da Infância implica também no
questionamento da categoria idade, verificando-se a sua relação com a geração e aspectos
_______________
28
No original: “The theoretical challenge of connecting biological, developmental, biographical and historical
time deserves more extensive attention” (THORNE, 2004, p. 405).
34
contraditórios que advêm dela. A fim de promover uma reflexão sobre a categoria bebês de
forma crítica e de refletir acerca desta concepção social, discorre-se no próximo item sobre as
questões etárias e da alteridade própria aos bebês.
_______________
29
O que torna possível pensar na noção de desenvolvimento da infância como defendida por Jens Qvortrup
(2010b), ou seja, a forma como a infância enquanto estrutura permanente se altera no decorrer do tempo
histórico, esta é “(...) uma noção cuja dinâmica se encontra nos parâmetros sociais, e não nas características
individuais [das crianças].”(QVORTRUP, 2010a, p. 637)
35
adulto, além de desconsiderarmos a forma e as condições nas quais ele vive este tempo de sua
vida.
Prout e James (2005) observam que deixamos de utilizar este tipo de classificação etária
quando nos referimos aos adultos, um sinal, segundo os autores, do valor atribuído à idade no
processo social de construção da infância. Conforme as crianças passam por diferentes estágios
e experienciam a passagem do tempo em seu curso de vida, elas têm acesso a espaços diversos
e lhes são possibilitados usos diferentes do tempo. A geração adulta progressivamente lhes
concede mais acesso aos espaços públicos, mais possibilidade de participação na vida política,
maior possibilidade de escolha de como usufruir do tempo, mais possibilidades de encontros
com seus pares em espaços diferentes do escolar, dentre outros aspectos. A criança cresce e a
ela lhe é conferido um estatuto de ser social e político (JAMES; PROUT, 1990), o qual lhe é
muitas vezes negado enquanto bebê.
Ou seja, a idade é tomada como algo previsível, passível de acompanhamento e controle.
Discorremos acerca do tempo vivido, contamos a passagem dos anos, mas pouco mencionamos
os espaços que o sujeito habita ou as relações em que se encontra inserido. Esta leitura moderna
e ocidental do curso de vida implica na compreensão de geração enquanto algo mensurável e
pré-determinado, elemento que Karl Mannheim (1993) problematiza ao assumir como
pressuposto a não contemporaneidade dos contemporâneos. Ou seja, “mesmo entre bebês da
mesma idade podem ocorrer diferenças significativas devido a fatores como estrutura familiar,
renda e orientação religiosa.” (GOTTLIEB, 2009, p.325).
Os estudos antropológicos contribuem para esta reflexão ao apontarem a forma como
diferentes culturas constroem marcadores sociais diferentes, o que nos ajuda a fissurar a
concepção ocidental da idade enquanto um simples e universal indicador de tempo. Alan Prout
e Allison James (2005) mobilizam conceitos provenientes da antropologia, como age classes e
age grades, além de realizarem uma reflexão aprofundada acerca do significado do tempo nos
Estudos da Infância: estabelecendo uma diferença entre o tempo da e na infância.
Alma Gottlieb (2009) também tensiona este critério etário, posto que ele “(...) não é
uma certeza biológica, mas uma convenção cultural pressuposta no calendário ocidental.”
(2009, p.317). Ou seja, não há uma definição natural acerca de qual idade marca o início ou o
fim da infância, esta é uma determinação dada pela cultura. A autora também destaca que estes
critérios tomam como base as normas de desenvolvimento construídas “(...) com base em
crianças europeias e americanas de classe média, excluindo dos estudos a maioria das crianças
do mundo.” (GOTTLIEB, 2009, p. 328).
36
Assim, na cultura ocidental, a terminologia bebês parece estar associada aos atributos
físicos das crianças (CLARK-KAZAK, 2009), às linguagens que mobilizam e aos diferentes
níveis de dependência em relação aos adultos. Na literatura internacional, o levantamento de
pesquisas sobre bebês requer o uso dos termos infants (0 a 1 ano), toddlers (1 a 2 anos) e babies
(sem critério de tempo definido). Três terminologias distintas em relação às quais não há um
uso consensual e que diferem entre si de acordo com outros marcadores sociais associados a
elas, como o início da fala e a conquista da postura bípede.
Ou seja, a idade não basta para se definir as crianças, é preciso se considerar outros
aspectos culturais, como também indicam Tatek Abebe e Yaw Ofusu-Kusi (2016) ao refletirem
acerca das infâncias africanas. Bame Nsameneng (1999; 2008)aponta para a possibilidade de
outras perspectivas que podem fundamentar tanto as pesquisas, em suas delimitações, quanto a
37
_______________
30
Ao longo do trabalho, o termo agência será mencionado com frequência a fim de referirmo-nos a ação social
das crianças enquanto atores sociais, compreendendo-a a partir dos contextos de interação em que elas se
encontram (COUTINHO, 2013a) e reconhecendo sempre as dinâmicas de interdependência. Assim, a noção de
agência mobilizada no decorrer do trabalho considera que ela é social e relacionalmente produzida (SPYROU,
2019), não sendo uma qualidade inerente ao sujeito. Esta compreensão acolhe dimensões afetivas e subjetivas,
dissociando o conceito de agência de interpretações que o mobilizam unicamente a partir de uma perspectiva
individual e racional. No capítulo metodológico, esta questão é melhor discutida e, da mesma forma, na terceira
seção da análise, item 4.3, discorro sobre a agência dos bebês a partir de uma reflexão sobre as situações nas
quais eles fazem um uso funcional dos objetos.
38
_______________
31
Na primeira seção da análise (Item 4.1) promovemos uma análise sobre o impacto da categoria bebê no acesso
a materiais e espaços do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) em que se realizou a pesquisa. Nas
seções de análise seguintes (4.2, 4.2 e 4.4) damos destaque às ações dos bebês diante de seus encontros com as
materialidades, o espaço e os pares, dando visibilidade às práticas culturais dos bebês.
32
Coloco estes dois aspectos em destaque, dentre outros que poderiam ser mobilizados, pois foram mencionados
no decorrer desta discussão sobre a idade e os bebês como dois marcadores sociais importantes para a construção
desta categoria intrageracional.
40
_______________
33
A fim de resguardar a autoria dos bebês, foi solicitada a autorização das famílias para a utilização do nome
verdadeiro. Foi criado um novo fictício somente para um dos bebês, o Bernardo.
34
As classificações intrageracionais criadas para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não operam na
organização das turmas da creche.
41
bebês tenham diferentes competências motoras e de uso da linguagem verbal, todos são
chamados de bebês pelas professoras. Ou seja, nesse contexto, a organização destes sujeitos
em uma turma denominada de “berçário” tem um efeito de construção e consolidação desta
categoria intrageracional.
Desta forma, a experiência dos bebês na creche ocorre na relação com esta estrutura:
a imagem de bebê impacta nos processos de seleção de materialidades e organização dos
espaços, além de determinar aquilo é considerado adequado para o trabalho com eles. Ela
constrói a paisagem ao mesmo tempo em que se altera por meio da ação das crianças, os quais
constituem-se bebês diante do contexto vivido. Assim, a categoria socialmente construída
“bebês” precisa ser considerada como um fator que atua no contexto da creche, devendo ser
tensionada e considerada no decorrer da pesquisa ao defendermos uma abordagem relacional
(ALANEN, 2019).
Nesse sentido, considerando a produção teórica exposta acima, aspectos estruturais e
relacionais do campo de pesquisa, denominamo-los de bebês no decorrer deste trabalho a fim
de dar visibilidade às suas formas específicas de se colocar em relação com o mundo, as quais
diferem dos modos de agir mobilizados por outras crianças e para destacar a forma como este
marcador etário intrageracional opera na determinação de suas condições de vida. É uma forma
de reconhecimento da alteridade e uma defesa política, produzindo para eles um espaço no qual
as suas vozes possam repercutir na formulação de políticas que considerem sua especificidade.
No percurso exposto acima, verificou-se o modo como as definições etárias e o estudo
da sociedade por meio de uma abordagem geracional implicam em uma discussão sobre o
tempo e o reconhecimento de terminologias distintas que devem ser mobilizadas de forma coesa
no decorrer da pesquisa. Os termos infância, infâncias, crianças e bebês serão utilizados ao
largo deste trabalho e irão tensionar o processo de análise dos dados por funcionarem enquanto
mecanismos analíticos. Outros conceitos delimitadores da pesquisa são os referentes ao espaço
e a materialidade, sobre os quais discorremos a seguir.
42
A pergunta acima faz parte de um artigo publicado pelo Tate, Museu britânico de arte
Moderna, pela equipe de pesquisa responsável pelo semi-documentário “Robinson in ruins”,
longa lançado em 2010 e que conta a trajetória de um personagem fictício, Robinson, pelo sul
da Inglaterra35. Esta produção foi elaborada junto à geógrafa feminista Doreen Massey, a qual
propõe aos interlocutores uma reflexão sobre o espaço, enquanto categoria construída pela
multiplicidade de trajetórias, as “stories so-far”. Para a autora, o espaço não é estático, ele é
composto por uma simultaneidade dinâmica e está imbuído com a temporalidade (MASSEY,
1994; 2005). Esta concepção de espaço atravessa esta produção cinematográfica, provocando
os espectadores a reimaginarem o mundo a partir desta perspectiva.
A reflexão que Massey propõe dialoga com outras pesquisas (LEFEBVRE, 1991;
SANTOS, 2014a) que rediscutem a forma como o espaço vem sendo concebido nas pesquisas
sociais, refutando uma imagem de espaço fixo e imóvel e convidando a uma desconstrução da
imagem moderna de espaço, a qual está sedimentada nos pares espaço-lugar (DELYSER, 2010;
FRANCO, 2015) e espaço-tempo (MASSEY, 2005) enquanto categorias binárias. A concepção
de espaço que emerge deste conjunto de pesquisas é a de concebê-lo enquanto prática social e
produto das relações em suas dimensões micro e macro, ou seja, descontruir uma ideia absoluta
e defender uma imagem relacional do espaço (THRIFT, 2003).
Esta concepção visa desconstruir a ideia de espaço proveniente das ciências exatas, nas
quais ele é compreendido enquanto um conceito geométrico, o denominado espaço euclidiano,
evocando a ideia de superfície e de área vazia. Ao ser compreendido desta forma, ele pode ser
conquistado (MASSEY, 2005), atravessado ou repetido em diferentes testes laboratoriais, os
_______________
35
Neste artigo, a equipe de pesquisa – Stephen Daniels, Patrick Keiller, Doreen Massey e Patrick Wright – discorre
acerca de alguns temas centrais apresentados no filme, fazendo uma reflexão sobre o tempo, o espaço e a
construção das subjetividades. Ao colocarem algumas ideias acerca do conceito de lugar e de pertencimento,
eles afirmam que: “Sentir que você pertence a um lugar não significa, necessariamente que ele pertenca a você,
nem que você tenha que mover-se para sentir-se deslocado” (“Feeling you belong to a place in no way necessarily
entails that it belongs to you, nor that you have to move to be displaced.”) (DANIELS et al., 2012)
43
quais são reconhecidos enquanto científicos e verdadeiros. Ele é categoria técnica, posto a
serviço da ação humana para fins específicos.36
Esta concepção de espaço predominou na produção científica acompanhando o
movimento de construção da ciência moderna e do próprio estatuto de ciência a partir dos
princípios da razão e da objetividade, os quais se desenvolveram junto às ciências exatas.
Sustentado pela noção de verdade, ele se mantém no imaginário social e passa a ser
compreendido de forma naturalizada, impedindo que se realize uma reflexão aprofundada sobre
as relações que o produziram. A ideia de verdade oculta estas relações subjetivas, marcas
humanas na construção dos espaços.
Henri Lefebvre inicia sua obra “A Produção do Espaço” (LEFEBVRE, 1991) refutando
esta noção de espaço euclidiana e produzindo uma reflexão acerca do significado de espaço
para a filosofia e as ciências sociais. Ele compreende que:
Espaço (social) não é uma coisa entre outras coisas (…). É o resultado de uma
sequência e conjunto de operações e, portanto, não pode ser reduzido à posição de
simples objeto. (...) Ele mesmo o resultado de ações passadas, o espaço social é o que
permite que novas ações aconteçam, ao mesmo tempo em que sugere outras e impede
outras. (LEFEBVRE, 1991, p. 73, tradução nossa)37
Em sua obra, ele divide o espaço em três categorias distintas, as quais podem ser
utilizadas na análise do social, são elas o espaço concebido, percebido e vivido. O espaço
concebido é aquele pensado pelos urbanistas, arquitetos, engenheiros, tecnicamente
representado; o espaço percebido é aquilo que podemos observar da relação dos sujeitos com o
espaço e as materialidades; e o vivido é o espaço concreto experienciado subjetivamente38.
Ao rejeitar a concepção tradicional de espaço, o autor refuta também uma visão binária
que o contrapõe ao conceito de lugar. Ou seja, ainda que o espaço possa ser divido nestes
conceitos devido a uma finalidade analítica, ele deve ser compreendido como um só: “o espaço
é inteiro e entrecortado, total e fragmentado, de uma só vez e ao mesmo tempo. Assim, ele é ao
_______________
36
Massey (2005) associa esta ideia à forma como a sociedade ocidental passou a organizar os Estados-Nações
com base na noção de território, posse e limites bem construídos, assim como promove uma compreensão do
processo de globalização em seu formato contemporâneo como movimento natural, impedindo uma reflexão
que nos leve a compreendê-lo enquanto processo atravessado pelo pensamento neoliberal.
37
No original: “(Social) space is not a thing amongst other things (…). It is the outcome of a sequence and set of
operations, and thus cannot be reduced to the rank of a simple object. (…) Itself the outcome of past actions,
social space is what permits fresh actions to occur, while suggesting others and prohibiting yet
others.”(LEFEBVRE, 1991, p. 73).
38
Estas categorias tem sido mobilizadas nas pesquisas de Niina Rutanen sobre o espaço para crianças de dois anos
de idade (RUTANEN, 2014b).
44
Ao longo de sua obra, a autora defende a ideia de que esta reorientação da imaginação
acerca do espaço implica em três proposições iniciais: a primeira é a de compreendê-lo como
um produto de inter-relações, sendo sempre constituído do global ao minúsculo; a segunda é de
que ele é a esfera que possibilita a heterogeneidade, de modo que multiplicidade e espaço são
co-constitutivos; e a terceira é a de que ele está sempre em permanente processo de construção,
sendo o produto de relações contidas nas práticas materiais. Pensar sobre o espaço a partir destes
princípios também significa imaginar as suas implicações políticas: as identidades são
constituídas por meio de inter-relações, comprometendo-se com o anti-essencialismo; a
multiplicidade implica na simultaneidade de histórias e em suas particularidades,
desconectando-se de uma história universal; e o desconhecimento do futuro torna-se um
pressuposto devido ao movimento de resistência às narrativas modernas. O espaço, para
Massey, é a esfera:
_______________
39
No original: “For space ‘is’whole and broken, global and fractured, at one and the same time. Just as it is at once
conceived, perceived and directly lived” (LEFEBVRE, 1991, p. 356).
40
No original: “What might it mean to reorientate this imagination, to question that habit of thinking of space as
a surface? If, instead, we conceive of meeting-up of histories, what happens to our implicit imaginations of time
and space?” (MASSEY, 2005, p. 4)
45
Milton Santos, por sua vez, apresenta o espaço como “um conjunto indissociável,
solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações (...)” (SANTOS,
2014, p. 63), de modo que o espaço, enquanto conjunto, deve ser estudado como processo e
resultado da interação entre os sistemas. Ele é eminentemente social, posto que se constrói a
partir da ação dos sujeitos sobre a paisagem, sobre a forma. Ou seja, “uma casa vazia ou um
terreno baldio, um lago, uma floresta, uma montanha não participam do processo dialético
senão porque lhes são atribuídos determinados valores, isto é, quando são transformados em
espaço.” (SANTOS, 2014, p. 109).
Os trabalhos de Milton Santos também nos ajudam a elaborar ferramentas analíticas
para pensar a materialidade que compõe o espaço da creche, pois elabora uma teoria do espaço
que inter-relaciona objetos e ações e, com isso, nos dá ferramentas para pensar a creche como
um campo de possibilidades. Ele afirma que:
Esta reflexão sobre os objetos implica em pensarmos que a partir de uma visão relacional
e dinâmica do espaço, os elementos que o compõem devem ser pensados em sua relação com
os sistemas sociais e com as ações dos sujeitos que os utilizam em sua vida cotidiana. Ou seja,
a partir da ação dos sujeitos o objeto atualiza-se continuamente apesar de suas vocações
originais, sendo forçado a agir em conjunto, de modo que a organização espacial somente pode
ser compreendida por meio da interpretação do processo através do tempo (SANTOS, 2014b).
_______________
41
No original: “This is space as the sphere of a dynamic simultaneity, constantly disconnected by new arrivals,
constantly waiting to be determined (and therefore always undetermined) by the construction of new relations.
It is always being made and always therefore, in a sense, unfinished (…). If you really were to take a slice
through time it would be full of holes, of disconnections, of tentative half-formed first encounters.” (MASSEY,
2005, p. 107).
46
A definição de objeto elaborada por este autor é outra ferramenta analítica importante
para pensarmos na materialidade e referirmo-nos à concretude da vida e, simultaneamente, à
subjetividade do espaço, construído por meio da ação humana:
Para os geógrafos, os objetos são tudo o que existe na superfície da Terra, toda herança
da história natural e todo resultado da ação humana que se objetivou. Os objetos são
esse extenso, essa objetividade, isso que se cria fora do homem e se torna instrumento
material de sua vida, em ambos os casos uma exterioridade. (SANTOS, 2014a, p. 72)
Ao discorrer sobre os objetos, Milton Santos nos provoca a pensar sobre a materialidade
e a concretude da experiência humana, aproximando-nos a uma reflexão acerca da relação entre
objetos e sistemas de ações. O conceito mobilizado pelo autor tampouco restringe aquilo que
poderia ser compreendido enquanto um objeto, abarcando tanto coisas produzidas pela
atividade humana quanto a herança da história natural. Nas produções científicas acerca da
cultura material publicadas na língua inglesa, o termo things, coisas, é utilizado a fim de
referirmo-nos aos objetos em sua relação com o social. Tim Ingold (2012) afirma que as coisas
são:
O autor defende o uso do termo coisa ao invés de objeto, pois este último parece
colocar-se “(...) diante de nós como um fato consumado, oferecendo para nossa inspeção suas
superfícies externas e congeladas.” (INGOLD, 2012b, p.29). Do mesmo modo, a terminologia
coisas parece romper com os binômios de objetividade-subjetividade, objeto-sujeito, os quais
são rechaçados diante de uma perspectiva que compreende as coisas em profunda relação com
a rede do social 42. A esse respeito, a historiadora Inés Dussel afirma:
_______________
42
Diferentes teóricos que se dedicam ao estudo da materialidade tomam como ponto de partida um conceito dos
objetos, das coisas, que os compreendem enquanto intimamente ligados ao social e ao movimento. Esta é a
leitura de objeto que atravessa este trabalho. Contudo, há divergências entre eles, uma discussão ampla sobre
agência dos objetos (INGOLD, 2012; KNAPPETT; MALAFOURIS, 2008; MILLER, 2005) e uma crítica à
ausência de uma perspectiva crítica que implica em uma reflexão sobre poder e desigualdade nestas teorias
(HOLLOWAY; HOLT; MILLS, 2019). Contudo, este debate não será abordado no decorrer deste trabalho e,
cientes das divergências, partilhamos com eles a perspectiva do dinamismo e da porosidade que permeiam a
materialidade.
47
Debatiendo con quienes ven a los objetos o las cosas como entidades totalmente
definidas y estáticas, estas teorías los consideran devenires nunca realizados por
completo. Este proceso de devenir no es secuencial, como cuando se cree que primero
estamos nosotros, y luego, como el reflejo en un espejo, los objetos. Al contrario: los
objetos, tanto como los humanos, también están en movimiento, tienen una historia
que no es previa a los sentidos que se construyen sobre ellos ni a las redes en que se
inscriben. (DUSSEL, 2019, p. 18).
_______________
43
No original: “(…) materiality is an integral dimension of culture, and that there are dimensions of social
existence that cannot be fully understood without it.” (TILLEY et al., 2006, p.1).
44
No original: “In other words, while bodies do signify such things such as gender, race, age and ability, which
have very important material consequences, the materiality of bodies also exceeds representation.” (HARKER,
2005, p.54).
48
_______________
45
Na seção 4.4 damos destaque às construções dos bebês em torno dos brinquedos e demais materiais ofertados a
eles na creche.
46
Gilles Brougère (2018) retoma esta discussão em um texto chamado “Toys: between rhetoric of education and
rhetoric of fun”, no qual discute a retórica da educação e do desenvolvimento, de uma suposta função do
brinquedo, em torno da indústria e dos brinquedos comercializados a partir deste argumento. Esta perspectiva
também está associada a uma compreensão de desenvolvimento enquanto resultado de um mecanismo objetivo
de estímulo e resposta (OVERTON, 2015). Nesta interpretação, o objeto seria capaz de convocar uma resposta
determinada que promoveria o desenvolvimento. Contudo, esta perspectiva desconsidera o contexto e a inciativa
dos sujeitos. Isto não significa afirmar que as coisas não participam dos processos de desenvolvimento, mas
considerá-las como parte da aprendizagem das crianças. No decorrer das seções de análise (4.2, 4.3 e 4.4) são
evidenciadas as formas como as coisas se integram às suas aprendizagens.
49
Ademais, Gilles Brougère e Antoine Dauphragne (2017) apontam que uma reflexão
global sobre os bens das crianças também remete a uma análise de objetos de naturezas
diferentes, não somente os brinquedos, mas também mobiliários, livros, itens de papelaria e
outros objetos destinados a elas, a partir dos quais elas têm acesso a diferentes manifestações
da cultura e da cultura para as crianças e com as quais atuam na construção de suas infâncias.
Assim, ainda que as crianças transformem outras coisas em brinquedos, elas estão
inscritas em outros sistemas de produção e consumo. São materialidades que não são
originalmente destinadas ao público infantil, como equipamentos tecnológicos, utensílios
domésticos e outros objetos que compõem o espaço. Portanto, a noção de coisas (INGOLD,
2011; 2012b), incluindo-se aqui os brinquedos, também acolhe a profunda transformação dos
objetos a partir de sua inserção nos sistemas de ações (SANTOS, 2014), sendo impossível
compreendê-los aparte da multiplicidade que caracteriza o espaço (MASSEY, 2005) e do
dinamismo do social.
Desta reflexão acerca da multiplicidade e do movimento também parte uma nova
compreensão sobre o conceito de lugar a fim de conceituá-lo a partir de uma abordagem
relacional. O conceito de lugar, central ao campo da geografia, é polissêmico e carrega consigo
uma ampla trajetória de reflexões acerca de seu significado (CASTREE, 2003).
Tradicionalmente ele era compreendido como contraposto ao espaço, sendo o lugar marcado
pela noção de identidade e o espaço pelo vazio. Yu-Fu Tuan (1977), ao referir-se aos lugares,
aponta que eles constituem parte da experiência humana47 sendo compreendidos por meio da
relação estabelecida entre corpo e espaço, de modo que “(...) parte do que torna as pessoas
humanas é uma intensa, sensorial e frequentemente apaixonada afeição ao lugar.”48
(CLIFFORD et al., 2003, p. 67).
Ou seja, usualmente, o espaço era concebido enquanto um elemento objetivo e era
contraposto ao conceito de lugar, posto que “(...) o espaço era visto como uma abstração (talvez
parecido como uma superfície lisa Euclidiana aguardando o mapeamento das atividades das
pessoas), enquanto os lugares eram infundidos com os sentidos de identidade e pertencimento.”
_______________
47
Rogério Haeesbart aponta que a concepção de lugar de Tuan contrapõe-se a noção de espaço e lugar defendidas
por Massey pois não acolhe o dinamismo. Ele afirma em um artigo escrito para o dossiê sobre Doreen Massey
que para a autora o: “(…) conceito de lugar, ao contrário de visões antes dominantes, envolve sobretudo redes,
conexões, encontros. E de conexões profundamente marcadas pela materialidade. Doreen, assim, inovou ao
condenar as visões que ela denominava “reacionárias” do espaço e do lugar, visto por muitos (como Yu Fu-
Tuan) como lócus de estabilidade e segurança. (HAESBAERT, 2017, p. 7)”.
48
No original: “(...)part of what made people human was an intense, sensual, and often passionate, attachment to
place.” (CLIFFORD et al., 2003, p. 67).
50
(DELYSER, 2010, p. 10)49. Massey problematiza o termo lugar logo no inicio de sua obra
“Space, Place and Gender”(1994), destacando que usualmente esta terminologia é associada a
ideia de identidade, ao seu lugar no mundo, a partir de uma perspectiva estática do espaço. A
ideia de pertencimento a um lugar é contestada pela autora diante do dinamismo das relações,
da abertura ao Outro e da multiplicidade do espaço:
Assim, é preciso situar o lugar em uma nova perspectiva, pois o espaço é produto das
relações, traz marcas subjetivas, é dinâmico e a própria noção de identidade que sustentava a
concepção tradicional de lugar fundamentava-se em uma perspectiva essencialista
(WOODWARD, 2014) que é alterada diante da perspectiva da diferença. Espaço e lugar não
são categorias binárias: a ideia de lugar também precisa acolher o dinamismo e a multiplicidade
que caracterizam o espaço.
Deste modo, o lugar pode ser compreendido como um momento específico e dinâmico
dentro do espaço produzido, um encontro de trajetórias, posto que tanto espaço quanto lugar
são subjetivamente construídos. Massey afirma que:
Deste modo, o que antes era visto como fixo, marcado, delimitado, fortemente
relacionado a uma imagem estável e imutável de identidade, passa a ser interpretado como
_______________
49
No original: “(…)space was seen as an abstraction (perhaps akin to a flat Euclidean surface awaiting the mapping
of people’s activities), while places were infused with the senses of identity and belonging.” (DELYSER, 2010,
p. 10).
50
No original: “’Place’ in this formulation was necessarily an essentialist concept which held within it the
temptation of relapsing into past traditions, of sinking back into (what was interpreted as) the comfort of Being
instead of forging ahead with the (assume progressive) project of Becoming.” (MASSEY, 1994, p. 119)
51
No original: “If space is rather a simultaneity of stories-so-far, then places are collections of those stories,
articulations within these wider power-geometries of space. Their character will be a product of these
intersections within that wider setting, and of what is made of them. And, too, of the non-meetings-up, the
disconnections and the relations not established, the exclusions. All this contributes to the specificity of place.”
(MASSEY, 2005, p. 130).
51
construído por meio das relações e adquire um caráter mutável. O lugar é marcado pela ideia
de thwrontogethernnes (MASSEY, 2005), ou estarlançadosjuntos, como o:
Com isso, a pergunta que abriu este subcapítulo “O lugar pertence a nós?” segue
reverberando, posto que ao defendermos que tanto o espaço quanto a identidade não são
princípios absolutos, passamos a questionar a nossa ideia de pertencimento aos lugares,
reconhecendo a agência dos sujeitos e o fato de que são as pessoas que passam a atribuir sentido
ao vivido, conectando-se aos lugares com os quais se identificam e constituindo-se nesse
encontro. Nossa identidade não está dada pelo espaço que ocupamos, o lugar não existe a priori
e tampouco é permanente, fixo, estável, dado que “espaço e lugar emergem por meio de práticas
materiais ativas” (MASSEY, 2005, p. 118, tradução nossa).
Deste modo, reconhecer o dinamismo dos lugares tampouco significa abandonar a
noção de identidade, mas reconfigurá-la a partir de uma perspectiva progressista que acolhe o
dinamismo e a pluralidade. Ou seja, “se se reconhece que as pessoas têm identidades múltiplas,
pode-se dizer a mesma coisa dos lugares. Ademais, essas identidades múltiplas podem ser uma
fonte de riqueza ou de conflito, ou de ambas.” (MASSEY, 2000, p. 183).
Compreender que o espaço e o lugar se configuram como categorias relacionais,
permanentemente em transformação e em construção pelos sujeitos que o ocupam, assim como
que as materialidades não são entidades fixas, provoca perguntas sobre o espaço escolar,
qualidade que lhe é atribuída diante dos processos vividos pelos sujeitos que o constroem. Além
disso, a compreensão de que a materialidade se apresenta enquanto um elemento indelével da
sociabilidade, pois atuamos sobre e com emaranhados materiais-semióticos (SPYROU, 2019),
suscita novos questionamentos e complexifica a questão acerca do processo de escolha e
organização dos materiais nas creches.
Nesse sentido, retomamos a pergunta de Massey (2005) acerca da possibilidade de
questionarmos o hábito de pensar no espaço enquanto uma superfície e passarmos a
compreendê-lo como o encontro de histórias. De que modo o espaço escolar pode ser revisto a
partir desta compreensão relacional do espaço? Duas questões se apresentam inicialmente.
Uma primeira possibilidade a partir desta colocação, é a de que a deve-se reconhecer
a agência das crianças na produção do espaço e dos lugares. Ou seja, é preciso olhar para os
52
sujeitos e suas práticas espacializadas, compreendendo que o espaço é produzido pela ação
humana, o que decorre em uma política do espaço (MASSEY, 2005). Uma compreensão de
espaço e lugar estáticas dificilmente irá acolher o imprevisto e o dinamismo que marcam a ação
dos bebês, assim como manterá invisibilizadas as relações de poder que o constroem e a
profunda relação do global com o local. Por segundo, a produção sobre a temática do espaço
deve ser revisitada e os significados atribuídos ao espaço explicitados, dando visibilidade às
geometrias de poder que atravessam o espaço. Uma reflexão crítica acerca das terminologias
mobilizadas na pesquisa implica na coerência entre o fazer científico-prático-político. Isto
implica em contestar a noção de espaço e sua ideia de exterioridade, contraposto ao tempo –
mais frequentemente associado a questões subjetivas – assim como uma concepção de lugar
eminentemente essencialista.
As pesquisas da geografia da infância, assim como estudos interdisciplinares que
tomam a espacialidade como ponto de reflexão para pesquisas na área da educação e dos
estudos da infância, tem feito o exercício de adereçar-se à primeira questão mencionada acima
– acerca da construção do espaço a partir da agência das crianças – assim como rompem com a
ideia de um espaço neutro e apolítico. Os estudos sobre materialidade e brinquedos também nos
ajudam a enxergar a dimensão material das relações (e vice-versa). São pesquisas que nos
ajudam a reimaginar o espaço, o encontro de trajetórias, a partir de um olhar para as crianças e
suas experiências de espaço.
Os conceitos de infância, infâncias, crianças e bebês são mobilizados pelos geógrafos
da infância no intuito de compreender as espacialidades infantis e as relações estabelecidas por
elas e para elas com o espaço, o lugar e o território. O reconhecimento e o estudo das
espacialidades infantis significam aproximarmo-nos da escola enquanto lugar fruto de uma
construção moderna de infância e, deste modo, um lugar para as crianças, e das crianças
enquanto um encontro de trajetórias.
_______________
52
Compreendida enquanto uma produção científica relacionada a reflexão da teoria e da prática (ROCHA, 2001).
54
reconhecidas, tais como a Scielo, Web of Science, Jstor e Scopus. O acesso via proxy UFPR
também permitiu o acesso aos artigos completos. No Google Acadêmico foi possível localizar
trabalhos de outras revistas não-indexadas na base da CAPES e alguns livros referentes à
temática.
Foram utilizados os operadores booleanos AND e OR para fazer o cruzamento entre
os distintos descritores e suas correspondências em inglês. O recurso das aspas (“”), do asterisco
(*) e dos () também foram empregues, garantindo a busca por termos no plural e singular e a
busca de termos em conjunto. A fim de delimitar melhor o alcance das pesquisas, os três grupos
foram cruzados por meio do operador AND na base da CAPES, garantindo que fossem
localizados artigos referentes ao espaço da instituição.
No Google Scholar foram feitos dois cruzamentos distintos, pois a plataforma não
suporta o uso de três grupos de descritores. Também foi necessário selecionar o filtro de
presença dos descritores nos títulos dos artigos localizados porque apareciam muitos resultados
sem a utilização deste filtro, devido à polissemia do termo espaço. Nesta plataforma a busca foi
feita simultaneamente em português e inglês.
É importante ressaltar que os dois primeiros grupos de descritores, sujeitos (1) e
instituições (2), foram pensados a partir dos termos comuns tanto à creche quanto à pré-escola
e com o uso de termos específicos referentes ao atendimento das crianças pequenas de 0-3 anos.
Esta estratégia foi utilizada porque um mapeamento anterior à revisão sistemática de literatura
já havia indicado que não há uniformidade dos termos utilizados nas pesquisas para se referir à
especificidade do trabalho com crianças de 0-3 anos, de modo que se fez necessário ampliar os
termos utilizados para que fosse possível identificar as pesquisas.
Tampouco há consenso quanto a forma como denominamos os sujeitos desta faixa
etária: crianças, crianças pequenas ou bebês – como exposto acima. Um processo análogo
ocorre nas pesquisas em inglês, sendo ainda dificultado pela pluralidade de contextos a partir
dos quais os sujeitos fazem suas pesquisas e pelo uso do inglês como segunda língua. Além
disso, os termos utilizados para se referir às instituições tampouco se apresentaram de forma
consistente. Os artigos provenientes dos Estados Unidos, por exemplo, somente utilizam o
termo kindergarden para se referir aos grupos de crianças de 5 anos de idade (FEES; HOOVER;
ZHENG, 2014; MORRISSEY, 2010), enquanto na Noruega o termo é utilizado para se referir
à educação infantil como um todo (BØRVE; BØRVE, 2017;VUORISALO; RAITTILA;
RUTANEN, 2018).
O terceiro grupo de descritores, espaço (3), foi organizado de forma ampla para que
pudéssemos compreender quais pesquisas já foram realizadas acerca da temática e identificar
55
quais são as lacunas no campo. É importante destacar que tampouco há definição consensual
quanto ao uso do termo espaço e ambiente físico, estando associados a pesquisas diversas e
apresentando somente alguns indicativos de consenso53.
O diagrama de fluxo abaixo (Figura 1) apresenta os resultados encontrados e o
processo de seleção dos artigos para estudo. A partir dele é possível observar a grande
quantidade de artigos localizados a partir dos descritores e o processo detalhado de leitura de
resumos a fim de que fosse realizado um filtro adequado. Os critérios de exclusão dos artigos
foram elaborados após este mapeamento inicial, considerando-se a necessidade de compreender
o campo e de identificar quais são os estudos produzidos e que estão fundamentados na
concepção de criança enquanto sujeito de direitos. Observa-se que a grande quantidade de
resultados iniciais também se deve a pluralidade de concepções acerca do espaço, termo
usualmente mobilizado como um referente universal a partir da noção de espaço geométrico.
Observou-se por meio desse levantamento que não é frequente a menção ao grupo
etário a partir do qual se está realizando a discussão acerca do espaço. Os estudos com pesquisas
de campo deixam este dado explícito, mas muitos trabalhos seguem sem indicar a idade das
crianças e sem distingui-las a partir das terminologias utilizadas. Esta observação remete a uma
hipótese inicial acerca da falta de consenso no uso dos diferentes descritores. Bernardete Gatti
(2012) nos alerta para a importância de que os conceitos mobilizados em nossas pesquisas sejam
bem definidos, de modo que o campo se fortaleça tomando como base a segurança conceitual,
que em nosso caso se constitui na interdisciplinaridade. Ela defende que este procedimento
“trata-se de consistência na construção dos problemas do campo educacional e do exercício da
crítica – da liberdade de pensar nos limites de métodos robustos” (GATTI, 2012, p.22).
_______________
53
Este tema será abordado mais adiante com base na apresentação de alguns dos trabalhos localizados.
56
DESCRITORES
1 SUJEITOS 2 INSTITUIÇÕES 3 ESPAÇOS
IDENTIFICAÇÃO
nestas pesquisas e no trabalho que aqui se apresenta. Nestes artigos, a ação social das crianças
não era considerada e elas não eram tomadas enquanto participantes das pesquisas.
Também foi possível identificar dois caminhos distintos tomados pelos pesquisadores
brasileiros e por aqueles provenientes de outros países, principalmente dos Estados Unidos. As
pesquisas produzidas no Brasil frequentemente mencionam o espaço como um elemento
estruturante da experiência educativa das crianças nas instituições, contudo se atêm
principalmente às relações que se estabelecem a partir deste espaço e não mencionam as
materialidades disponíveis. Em uma perspectiva internacional, observa-se que grande parte dos
trabalhos são produzidos a partir destas escalas de avaliação, em um processo de regulação dos
espaços da educação infantil e pouca consideração acerca das relações construídas entre os
sujeitos adultos e crianças que os habitam.
Os 38 trabalhos selecionados após o processo de triagem e leitura inicial também
ajudam a situar a presente pesquisa no campo científico, posto que nos indicam quais têm sido
os temas mais abordados e as diferentes metodologias que têm sido utilizadas no campo de
pesquisa. Destaca-se que dentre estes trabalhos, somente 7 artigos são resultados de pesquisas
com crianças, a qual se configura como a perspectiva adotada na presente investigação; dentre
estes, três trabalhos são fruto de uma pesquisa de cunho etnográfico desenvolvida por Niina
Rutanen (2012; 2014a;2015) e dois da pesquisadora Luciane Pandini Simiano também a partir
de uma pesquisa a nível de doutorado de cunho etnográfico (2014; 2016b).
As pesquisas localizadas demonstram, confirmando a hipótese inicial, que não há uma
definição compartilhada pelos pesquisadores quanto ao uso dos diferentes termos. Apesar de
alguns referentes comuns, os autores dificilmente defendem teoricamente a escolha das
terminologias utilizadas e há trabalhos que não se adequam a categorização exposta a seguir.
Ainda assim, é possível observar que o termo ambiente vem frequentemente associado
às pesquisas provenientes da psicologia ou às escalas internacionais de avaliação da qualidade.
Ele também está associado àquilo que se constrói por meio das relações entre criança-criança e
criança-adulto, sendo frequente o seu uso em estudos que se dedicam a analisar as mediações
das professoras em um processo de consolidação de um ambiente educativo adequado (FEES;
HOOVER; ZHENG, 2014; GLOECKLER; CASSELL, 2012). O termo espaço, por sua vez, é
mais comum em estudos que fazem uma descrição das materialidades (BOLLIG; MILLEI,
2018; ONE, TE, 2011; PANDINI-SIMIANO, 2014; RUTANEN, 2011). Nota-se que acerca da
perspectiva do espaço como terceiro educador defendida na abordagem educativa de Reggio
Emilia, localizou-se somente um trabalho acerca da temática dentro do período pesquisado
(HALL, 2017).
58
Estes termos, ambiente e espaço, também vêm acompanhados de outras palavras que
buscam adjetivá-los e sobre as quais tampouco se apresentam reflexões. É possível localizar
pesquisas que falam de play environment (LITTLE; WYVER, 2008) e natural environment
(BRUDER, 2010; LITTLE; SWELLER, 2015). Também foi localizado um trabalho que usou
o termo spatial environment (SLUNJSKI, 2015). O termo natural environment, por exemplo,
é utilizado tanto em pesquisas do campo da educação especial para se referir às atividades
cotidianas e rotineiras vividas pelas crianças e que se constituem enquanto um campo rico em
possibilidades de aprendizagem (BRUDER, 2010), quanto para se referir as condições do meio-
ambiente: como temperatura, maior incidência de chuvas, luminosidade, etc (LITTLE;
SWELLER, 2015).
Ao olhar de forma mais ampla para as diferentes pesquisas localizadas e pensar na forma
como se constitui o espaço das instituições de educação infantil, verifica-se também que
diferentes partes do edifício vem sendo pensadas nas pesquisas, com maior ênfase no espaço
da sala e no espaço externo. Os corredores, pergolados e varandas foram mencionados em
somente uma pesquisa54 sobre a ação das crianças de 3- 5 anos de idade nestes espaços, sendo
nomeados na arquitetura de espaços transicionais (MONSUR, 2013).
Também foram localizados trabalhos acerca do espaço externo das instituições,
salientando sua importância no processo de relacionamento da criança com a natureza e em sua
relevância ao criar boas condições para as brincadeiras de faz de conta (DOWDELL; GRAY;
MALINE, 2011). A maior parte dos trabalhos localizados sobre o planejamento dos espaços
externos das instituições se localizam no âmbito da educação física e destacam a importância
de que as crianças pequenas tenham acesso ao tempo e o espaço para que a atividade física
aconteça, sendo estruturante as condições ofertadas nas instituições de educação infantil e a
organização do tempo e grupos nas instituições; esses estudos também salientam que um
importante elemento é a oportunidade de correr riscos (LITTLE; SWELLER, 2015;LITTLE;
WYVER, 2008).
Estes estudos, apesar de incluírem a faixa etária das crianças de 2-3 anos não discutem
a especificidade da prática com este grupo ou de espaço. Neste sentido, o trabalho de Marie,
Kaarby e Tandberg (2017) menciona questões específicas deste grupo e considera a agência das
crianças nas relações que são estabelecidas nos espaços externos. O trabalho de Moser e
_______________
54
Este trabalho constitui-se em um trabalho publicado em congresso, localizado a partir do levantamento no google
acadêmico antes da utilização do filtro de artigos. Ele foi separado para posterior uso e análise devido ao caráter
inusitado de estudo sobre o espaço dos corredores e varandas.
59
Martinsen (2010) também estuda as condições de espaço e de tempo usufruídas pelas crianças
nos espaços externos em instituições norueguesas.
Ao olhar para as pesquisas, nota-se que os estudos localizados na fase de triagem
realizados no âmbito da educação física se preocupam tanto com os materiais presentes nas
instituições quanto com o uso destes materiais. É válida a colaboração entre os campos para se
pensar o corpo-criança na escola a partir da concepção da criança enquanto sujeito. Por
exemplo, há alguns estudos que visam compreender as razões da pouca movimentação das
crianças na creche, com estudos acerca do tempo que as crianças passam sentadas (ELLIS;
CLIFF; OKELY, 2018) ou que analisam a quantidade de movimentos realizados pelas crianças
em espaços fechados (FEES et al., 2015) ou abertos.
Somente dois trabalhos discutiram a questão de organização dos espaços. O estudo de
Ana Rosa Moreira (2013) discute a reorganização do espaço da creche a partir de sessões
realizadas com os educadores e Nicole Leggett e Margot Ford (2016) o fazem a partir de um
estudo sobre como os professores estavam interpretando as orientações para trabalhos em
pequenos e grandes grupos nas novas políticas educativas da Austrália. Tampouco é
mencionado neste trabalho (LEGGETT; FORD, 2016) a faixa etária das crianças atendidas na
instituição ou as diferenças entre os grupos, o que impede que identifiquemos a especificidade
da organização do espaço na educação infantil.
Em relação à materialidade foram localizados alguns estudos sobre brinquedos e
materiais a partir de perspectivas que consideram a agência das crianças e o seu direito de
participação (KOCHER et al., 2014; KULTTI, 2015; KULTTI; PRAMLING, 2015; LØKKEN;
MOSER, 2012). Há também estudos sobre o uso de materiais recicláveis (GUERRA, 2017;
GUERRA; ZUCCOLI, 2014; UYANIK et al., 2011). Urge compreender este processo de
seleção de materiais e brinquedos, pois as condições materiais estruturam as experiências de
infância e estão sempre associadas a uma imagem de criança.55
_______________
55
Além destes estudos, também se verificou dentre os primeiros trabalhos selecionados na fase de triagem alguns
trabalhos da área da educação física, da psicologia e dos estudos de gênero. Ainda que estes estudos não partam
do princípio da agência dos bebês, é importante considerá-los brevemente neste trabalho a fim de compreender
de forma mais aprofundada as diferentes ideias que concorrem na constituição do espaço da educação infantil.
Os trabalhos da educação física versam sobre quais movimentos eram possibilitados por diferentes móveis e
objetos (PEDEN et al., 2017;SOINI et al., 2014;VANDERLOO et al., 2015;WIJTZES et al., 2013), analisando-
se o espaço físico das instituições e índices de sedentarismo. Os estudos do campo da psicologia, por sua vez, se
caracterizam por serem estudos experimentais que analisaram a interação entre famílias e bebês com o uso de
brinquedos eletrônicos, as diferentes interações entre crianças pelo uso de brinquedos do tipo social ou isolado
(IVORY; MCCOLLUM, 1999),a forma como as crianças fazem aprendizagens do tipo instrumental ou social,
salientando-se a relevância dada pelas crianças ao caráter cultural dos gestos de faz de conta (RAKOCZY;
TOMASELLO; STRIANO, 2005). Os trabalhos sobre gênero e materialidade realizaram algumas reflexões
60
_______________
acerca da forma como as materialidades e os espaços estão atravessados pelas questões de gênero (BØRVE;
BØRVE, 2017;TODD; BARRY; THOMMESSEN, 2017).
56
Massey (2005) sustenta esta hipótese ao recorrer alguns trabalhos do campo da Filosofia, Geografia e História
e promover uma análise das concepções de espaço mobilizadas nestas obras.
57
Estes estudos foram localizados a partir das referências de outros trabalhos e de uma busca nas mesmas bases
da revisão sistemática.
61
pedagógicos que potencializam o brincar. Este foi o único estudo localizado em que se
menciona as materialidades presentes nas escolas de educação infantil.
Katia Agostinho (2003) e Rosinete Schmitt (2008), em suas pesquisas de pós-graduação,
também olham para a educação infantil, buscando compreender os significados produzidos
pelas crianças. Agostinho (2003), em sua dissertação, verifica que as crianças, tomam o espaço
da creche como um lugar de encontro: “(...) um lugar em que as crianças vão imprimindo suas
marcas, registrando sua forma de pensar, seus desejos (...)” (p.134). Schmitt (2008), por sua
vez, foca seu estudo nas ações dos bebês no espaço da creche, indicando uma lacuna de pesquisa
ao observar que:
Este capítulo aponta alguns dos conceitos centrais a esta pesquisa, situando-os a partir
da perspectiva da diferença. A acolhida do inesperado no cotidiano educativo e a escuta dos
bebês, em um permanente confronto com a alteridade, implicam na defesa de conceitos que
carregam consigo a surpresa, o movimento, o dinamismo. O árduo e impetuoso desafio de
imaginar o espaço a partir do encontro de histórias e compreender o dinamismo dos lugares,
assim como assumir que a relação do sujeito com o mundo é marcada pelo permanente
confronto com a materialidade, implicam na audácia de assumir “(...) o desafio do espaço
múltiplo onde o Outro sempre reserva uma condição para o inesperado.” (HAESBAERT, 2017,
p. 7), escolha política e acadêmica defendida por Doreen Massey.
Assim, no decorrer deste capítulo, apontou-se a forma como os estudos das
materialidades, assim como os Estudos da Infância e a compreensão do espaço, têm se renovado
a partir de uma abordagem relacional e do reconhecimento da multiplicidade. Ao serem
compreendidas como categorias relacionais, verifica-se a forma como os sujeitos podem alterá-
las e, ao mesmo tempo, como são condicionados por elas.
As reflexões expostas acima nos permitem observar que se faz necessário compreender
a idade como principal indicador do posicionamento geracional dos sujeitos, mas problematizar
esta construção devido ao fato de que que a definição etária dos limites geracionais e dos
marcadores intrageracionais – ser um bebê, adolescente ou um jovem adulto – são produções
arbitrárias e simbólicas intimamente relacionadas aos processos sociais e à cultura, estando
localizadas no tempo e no espaço e atravessadas pelas relações de poder. Os conceitos de idade
e geração, fundamentais para o desenvolvimento do campo, precisam ser objeto permanente de
discussão e reflexão a fim de que se compreendam suas possibilidades de uso na análise das
questões sociais e no processo de aproximação aos mundos de vida das pessoas. O seu amplo
potencial analítico deve ser considerado para garantir o avanço das pesquisas no campo.
Do mesmo modo, o espaço apresenta-se como elemento determinante da experiência
dos sujeitos, sendo permanentemente construído por eles e estando sempre indissociado dos
sistemas de objetos. As materialidades disponíveis na escola, marcadas pelas trajetórias dos
adultos que fazem a escolha destes objetos, assim como por processos globais de definições
políticas e variáveis como recursos disponíveis e oferta do mercado, se configuram enquanto
campo de possibilidades para as ações dos bebês.
O espaço se constrói a partir desta multiplicidade, colocando em relação o que
acontece no momento e as histórias trazidas pelos agentes humanos e não-humanos, que se
63
A casa de Ingold (2012) nos remete a casa de Virginia Woolf com a qual se iniciou
este capítulo. Uma casa movida, onde as coisas estão permanentemente acontecendo e se
transformando. Folhas e madeira apodrecem, chegam novos habitantes, venta, chove, crescem
as urtigas. O reconhecimento da multiplicidade nos convoca a pensar na escola real e na vida
que ali habita. Por isso, é preciso ter coragem e reimaginar a pesquisa a partir da reimaginação
do espaço.
_______________
58
No original: “(…) shift the focus away from individualised acts of cognition and encourage us to view education
in terms of change, flows, mobilities, multiplicities, assemblages, materialities and processes.” (TAYLOR;
IVINSON, 2013, p. 665).
64
Pode-se, neste caso, somente adicionar uma nova estrofe à velha canção que diz ‘Se
eles se tornassem mais como nós, isto seria melhor para eles e para nós’.
Recontextualizar a agência das crianças pode incluir olhar para as desigualdades nas
condições de negociação, assim como reconhecer que a agência pode ter diferentes
formas em diferentes contextos.59 (VANDENBROECK; BIE, 2006, p.140, tradução
minha)
Além disso, o giro ontológico que tem marcado a pesquisa no campo das ciências sociais
também se soma a essa reflexão. O novo materialismo (TAGUCHI, 2014) e o giro ontológico,
por meio de seus impactos nos Estudos da Infância (GALLACHER; GALLAGHER, 2008;
SPYROU, 2017; 2018; 2019), chamam a atenção para a forma como pesquisador faz parte do
contexto de relações observado e para tudo aquilo que escapa ao pesquisador e que confere um
caráter sensorial ao mundo vivido. Deste modo, se faz necessário auscultar outras relações
estabelecidas pelos sujeitos e por meio deles e que diferem da imagem do indivíduo moderno,
o qual sustenta suas ações em princípios cartesianos. A noção de agência retorna, pois é preciso
reconhecer que ela é “social e relacionalmente produzida ao invés de ser uma qualidade
essencial e individual da criança.”60 (SPYROU, 2019, p. 2, tradução nossa). Deste modo, ela
não irá se configurar do mesmo modo em grupos diferentes de crianças, modificando-se de
acordo com o contexto vivido por elas.
Este reconhecimento decorre da definição de um estatuto ontológico para a criança –
não somente epistemológico – que se sustenta na noção de devir. A criança, assim como o
adulto ou o idoso, não se definem com base na noção de identidade, mas na de diferença. O que
define o ser é o processo, não a completude, não há uma ideia de ser estabelecida a priori. As
noções de sujeito, agência e competência precisam ser sempre vistas sob a ótica do processo,
da mudança, da fluidez. A criança não passará a ser alguém – sujeito, cidadão – somente ao
tornar-se adulto, mas ela é sempre devir: o ser é marcado pelo movimento, não pela rigidez.
Este reconhecimento da fluidez complexifica o trabalho do pesquisador e o desenho
metodológico, pois exige-se o exercício de compreensão deste processo multifacetado por meio
do qual os bebês atribuem sentidos às suas ações. Sentidos estes que se produzem no tempo
presente, a partir daquilo que a materialidade e as relações suscitam. Na pesquisa etnográfica,
é possível embrenhar-se neste mundo sensório, sinestésico, a fim de compor parte dele e tentar
_______________
59
No original: “It may, in that case, just add a new strophe to the old song saying that ‘If they became more like
us, that would be better for them and for us’. Recontextualizing children’s agency may include looking at
inequalities in the conditions for negotiation; as well as acknowledging that agency may take different forms in
different contexts.” (VANDENBROECK; BIE, 2006, p.140)
60
No original: “(...) socially and relationally produced rather than being an essential quality of the individual
child.” (SPYROU, 2019, p. 2)
68
traduzir aquilo que ali acontece. Ângela Coutinho (2013a), ao refletir acerca disso, também se
pergunta: “como interpretar as subjetividades constitutivas das ações sociais do outro tendo por
base o sentido que ele próprio lhe atribui, se esse sentido é, geralmente, tecido no
entrelaçamento de elementos legíveis e ilegíveis?” (COUTINHO, 2013a, p. 220, grifos nossos).
Deste modo, o reconhecimento da agência das crianças e o processo de escuta de suas
múltiplas linguagens nos percursos de pesquisa e no desenho metodológico precisam considerar
sempre que as vozes das crianças não estão descoladas das relações intra e intergeracionais que
elas estabelecem, assim como daquilo que advêm do mundo físico, as suas percepções
sensoriais. A voz precisa ser metáfora profícua que considere as relações estabelecidas – e
mantendo em vista a íntima interação do local e do global –, as quais incluem sempre elementos
que o pesquisador não conseguirá captar. Na pesquisa com bebês, a metáfora da voz também
abarca as linguagens do corpo: movimentos, olhares, toques. Por este motivo, “as interações
das crianças são compreendidas como suas vozes. Estas vozes estão entrelaçadas com um dado
contexto e interconectadas com a pré-escola enquanto um mundo cultural e social”61
(JOHANSSON, 2017, p.17, tradução nossa). Ou seja:
(...) o desafio que se coloca, é olhar para os bebês sob uma nova perspectiva, não os
reconhecendo mais como “infans”, “incapazes de falar”, mas como sujeitos potentes,
capazes, que precisam ser valorados. Nesse processo, uma escuta sensível e refinada
é fundamental. Não apenas escuta de verbo, mas de diferentes linguagens para
conseguirmos substituir o “monólogo” pelo “diálogo” com os bebês. (SIMIANO,
2016, p.24-25)
Angela Coutinho (2013) destaca que as ações dos bebês se baseiam em inúmeros
elementos, que a escolha dos pares não é ocasional e que condições dadas para o movimento
livre, geralmente controladas pelo adulto, podem possibilitar às crianças gozarem do seu direito
de se expressarem e fazerem escolhas. Ou seja, é importante reconhecer que os bebês mobilizam
formas específicas de se relacionar com o mundo, explorando com competência a linguagem
do corpo.
As pesquisas etnográficas apontam que a presença em campo a partir de recursos que
lhe confiram densidade – não só o tempo, mas também a intimidade do pesquisador com as
ferramentas utilizadas e com o exercício da observação – garantem possibilidades de
compreensão dos significados produzidos pelos sujeitos. A observação participante também é
recurso importante para que o pesquisador se insira no campo de pesquisa e para que tente
_______________
61
No original: “The children’s interactions are understood as their voices. These voices are intertwined in a given
context and interconnected with preschool as a cultural and social world.” (JOHANSSON, 2017, p.17)
69
(...) darem dois passos para trás durante o processo de pesquisa: o primeiro representa
o passo tradicionalmente dado pelos pesquisadores a fim de tentar obter uma
impressão geral do que está acontecendo e o segundo representa o pesquisador dando
um passo para fora de si para compreender como ele é parte do contexto e contribui
para o seu desdobramento como todos os outros.62 (CONNOLLY, 2017, p. 105,
tradução nossa)
Alguns dos desafios expostos acima são comuns às pesquisas qualitativas e se fazem
presentes nas reflexões sobre a etnografia: o reconhecimento dos sujeitos enquanto informantes
competentes sobre seus mundos de vida, a assimetria da relação entre eles e o pesquisador,
assim como a necessidade de desenvolver estratégias de pesquisa que engajem os sentidos
(PINK, 2008) devido a pluralidade de linguagens mobilizadas pelos sujeitos e pela dinâmica
produção de sentidos no contexto observado. Na pesquisa com crianças, o exercício de
descentramento da posição geracional ocupada pelo pesquisador adere aos desafios expostos
_______________
62
No original: “(…) to take ‘two steps back’ from the research process: the first step represents the traditional one
taken by researchers in attempting to gain an overall impression of what is going on and the second represents
the researcher stepping back from themselves in order to understand how they are as much a part of and
contribute to the unfolding social milieu as everyone else.” (CONNOLLY, 2017, p. 105)
70
acima. Na pesquisa com bebês, a questão das linguagens também ganha força: as formas de
expressão dos bebês não eram usualmente reconhecidas nas pesquisas.
Assim, a partir do reconhecimento do papel exercido pelo pesquisador no decorrer da
pesquisa, juntamente com o desafio de compreender as vozes das crianças a partir de uma
abordagem relacional e do reconhecimento da interdependência (WYNESS, 2013), são
definidas estratégias variadas que ampliam o escopo de ação do pesquisador. Nas investigações
de Virginia Morrow (2007a; 2008), a pesquisadora observou que “(...) a combinação de
diversos métodos foi útil para abrir uma janela para seus mundos de vida cotidianos a partir dos
seus pontos de vista”63 (2007a, p.8), mobilizando recursos como desenhos, textos e fotografias
realizadas pelas crianças e discussões em grupo. A perspectiva da Mosaic Approach defendida
por Allison Clark (2011) também considera a importância da utilização de diferentes
metodologias para construir um mosaico e acessar as compreensões das crianças acerca do
vivido.
Portanto, no decorrer desta pesquisa, as estratégias de observação participante e do
registro por meio de um diário de campo foram acompanhadas do uso de metodologias visuais.
A voz dos bebês, enquanto metáfora, pode ser registrada por meio de fotografias e de vídeos, o
que pode ajudar a compreender o vivido a partir do ponto de vista dos atores. Desta forma, os
recursos audiovisuais ajudam a dar visibilidade aos movimentos, olhares e sons realizados pelos
bebês.
O reconhecimento deste desafio, de que o pesquisador também se torna parte do
contexto pesquisado, implica em reconhecer que as imagens não são registro objetivo e que,
portanto, comunicam tanto sobre o que acontece no campo de pesquisa, quanto sobre aquilo
que guia o olhar do pesquisador. A fotografia tampouco é representação, ela é narrativa
produzida por quem faz a foto e comunica sobre o lugar ocupado pelo pesquisador, pois a
“imagem é um objeto comunicativo construído a partir de um ponto de vista particular, que
exprime uma realidade social.” (SARMENTO, 2014).
Deste modo, os registros em foto e vídeo são considerados enquanto narrativas visuais,
são interpretações que nos ajudam a captar a ação das crianças em sua inteireza (COUTINHO,
2016a). As fotografias e os vídeos podem também ser cotejados com o diário de campo,
ajudando o pesquisador a retomar as memórias do vivido e a compreender o que estava
acontecendo, podendo narrá-las e interpretá-las. Da mesma forma, ao buscar compreender a
_______________
63
No original: “(…) using several methods in combination, and this was found to be a useful way of building up
a picture, or opening a window upon their everyday worlds from their points of view” (MORROW, 2007, p.8)
71
forma como a materialidade condiciona a ação dos bebês e o modo como o espaço da creche
configura-se enquanto campo de possibilidades, se fez necessário registrar e documentar o
acervo de materiais aos quais os bebês têm acesso.
A construção deste inventário de materiais permitiu a construção de um olhar
aprofundado para as concepções de bebê e educação mobilizadas por meio da materialidade.
Assim, as fotos, nesta pesquisa, também foram utilizadas para compor o inventário de materiais
da sala de referência da turma do berçário, produzido a partir da descrição e caracterização dos
objetos e das imagens.
As entrevistas também são uma estratégia desta pesquisa. A presença em campo
possibilita a compreensão dos sentidos, mas algumas dúvidas permanecem acerca das histórias
dos objetos, do percurso que eles travaram a fim de chegar em sala e compor este campo de
possibilidades para a ação dos bebês. Neste sentido, a entrevista também possibilita uma
compreensão mais aprofundada acerca das relações construídas no espaço da creche. Os
sentidos atribuídos pelos adultos aos materiais puderam ser mais bem compreendidos por meio
deste diálogo.
Este conjunto de ferramentas metodológicas possibilitou a construção de um texto que
torna visível o terreno em que habitam os atores, o seu trabalho de produção simbólica e,
também, os acontecimentos da vida dos bebês na escola. Estes acontecimentos, a experiência
educativa dos bebês é, por sua vez, objeto da Pedagogia enquanto ciência. Espaço e materiais
podem ser pensados enquanto elementos didáticos no fortalecimento de uma Pedagogia da
Infância (ROCHA, 2001), compreendida enquanto uma pedagogia participativa
(CARBONELL, 2016) e que toma enquanto princípio a imprevisibilidade no cotidiano. Aquilo
que escapa, as possibilidades criadas pelos atores ao habitarem e construírem o espaço, passa a
ser reconhecido no âmbito da prática pedagógica e da pesquisa científica que entrelaça saberes
da pedagogia e dos Estudos da Infância.
estruturas de poder que fortalecem e promovem a divulgação desta história única, contada sob
a perspectiva do “vencedor”, que decide como, quando e quem irá contar esta história,
guardando relação com uma organização social hierárquica e classificatória.
Neste sentido, Walter Benjamin (2012) afirmava que é preciso escovar a história a
contrapelo, referindo-se a este processo de produzir uma nova perspectiva sobre a história ao
recontá-la a partir do ponto de vista daqueles que não venceram. Histórias plurais permitem o
encontro com a diferença, com o outro e, por isso, humanizam. Elas produzem o caráter positivo
da diferença.
Poderíamos afirmar que neste trabalho elabora-se um contra-discurso, discorre-se
sobre o terreno áspero (WILLIS, 2000) em que habitam os sujeitos reconhecendo os sentidos
que eles produzem em seu cotidiano e garantindo que suas vozes ecoem em espaços que
usualmente lhes são negados. Djamila Ribeiro (2017), ao refletir sobre a expressão “lugar de
fala”, afirma que pensar sobre este lugar “(...) seria romper com o silêncio instituído para quem
foi subalternizado” e que “(...) só fala no lugar de ninguém quem sempre teve voz e nunca
precisou reivindicar a sua humanidade.” (p. 90).
Ainda que ao corporificar as narrativas dos bebês nos textos escritos pelos adultos, ela
se altere, fazer esse exercício e contar as histórias das crianças significa reconhecer que muitas
vezes as suas histórias foram contadas somente a partir da perspectiva dos adultos, os quais
acreditavam tudo saber sobre o outro e que olhavam para as crianças a partir de referentes
característicos do mundo adulto e de uma imagem hegemônica de infância, construindo uma
cultura adultocêntrica expressa nas produções acadêmico-científicas e no pensamento
pedagógico.
Deste modo, ao olhar para o espaço da creche e reconhecer a forma como ele se
constrói a partir das ações de crianças e adultos em sua relação com os sistemas de objetos,
define-se um percurso metodológico que enfrenta o desafio de visibilizar as narrativas
produzidas pelas crianças em sua relação com o outro, o meio e consigo mesmas. Narrativas
que também surgem a partir daquilo que a materialidade gera e ocasiona aos bebês.
A escolha dos procedimentos metodológicos da pesquisa, a opção por um estudo
etnográfico, é fruto do reconhecimento do desafio de traduzir em linguagem escrita os sentidos
produzidos pelos bebês em sua relação com a materialidade e aquilo que o encontro com ela os
causa. Desafio de construir uma escrita que se produz no confronto entre a teoria e o vivido e
que se configura como processo de interpretação de quem realiza a pesquisa, visto que:
73
A linguagem nunca será um espelho da realidade (...) e o texto final só pode ser um
produto da sensibilidade do pesquisador (incluindo-se seus quebra-cabeças e teorias
em processo de formação) em seu encontro com as práticas e teorias da prática entre
os agentes.64 (WILLIS, 2000, p. 116, tradução nossa).
_______________
64
No original: “Language can never be a mirror of reality, and (…) the final written account can only be a product
of the researcher’s own sensibility (including its forming puzzles and theories) as it encounters another set of
practices and practical theories among agents.” (WILLIS, 2000, p.116)
65
No original: “How can we respond to the very energetic demands of children, pass them on, and allow them to
be free to proliferate and display. One way, I suggest, is (modest) witnessing and narrative.” (JONES, 2008, p.
206)
74
A dupla hermenêutica das ciências sociais vem novamente à tona, pois ainda que a
mudança de um contexto não seja um objetivo próprio desta pesquisa, ela é promovida ao
darmos visibilidade às narrativas das crianças e ao garantirmos possibilidades de enfrentamento
ao discurso dominante que toma as crianças enquanto indivíduos marcados pela falta para
defender um estatuto sociológico que as reconhece enquanto sujeitos e um estatuto ontológico
baseado na mudança, no devir. As histórias que as crianças contam precisam ecoar.
Sheena Elwick, Ben Bradley e Jennifer Sumsion (2014) ao refletirem sobre a pesquisa
com bebês jogam com a ideia da (im)possibilidade da investigação. As discussões expostas
acima, acerca da reflexividade e do desafio de narrar a experiência dos bebês por meio da
linguagem escrita, são atravessadas por uma reflexão acerca de uma ética viável
75
_______________
66
No original: “Respecting the alterity of the Other in the ethics of an encounter has implications for thought and
knowledge, understanding knowledge as the construction of new understandings. For if we make the Other into
the Same, if everything is always predetermined, if learning and life are about conformity to norms, if surprise
and uncertainty are programmed out – then knowledge is endlessly recycled in a process of transmitting
prefabricated meaning and life stultifies in endless repetition. But if we learn how to listen to the Other, in a
respectful way, we may find ourselves provoked by this encounter to think, to produce new ideas and theories,
to abandon our preconceptions ) (DAHLBERG; MOSS, 2005, p. 116)
76
Este autor, ao referir-se ao princípio de que toda criança tem o direito de ser
adequadamente pesquisada – fruto do trabalho liderado por Judith Ennew67 – elabora uma
discussão que se contrapõe a dois tradicionais argumentos que afastam as crianças das
pesquisas, sendo eles, como aponta Natalia Fernandes (2016), o de que as crianças não são
sujeitos confiáveis para elaborar discursos sobre si mesmos e o argumento paternalista que
enfatiza a sua vulnerabilidade68. A autora, ao reconhecer as crianças enquanto atores sociais,
sujeitos de direitos e seres competentes, abraça o desafio indicado por Ann Farrell (2005) de
confrontarmo-nos com novos dilemas éticos e responsabilidades. Fernandes afirma que assumir
esse compromisso:
Significa, finalmente, que não há uma ética à la carte passível de ser replicada em cada
contexto, mas sim que as relações éticas são portadoras de diversidade e complexidade
e exigem um cuidado ontológico permanente de construção e reconstrução, porque a
ética está ligada à construção ativa de relações de investigação e não pode ser baseada
em pressupostos ou estereótipos acerca das crianças e da infância – depende, afinal,
da consideração da alteridade que configura a infância. (FERNANDES, 2016, p. 763)
A autora, ao elaborar um estado da arte sobre ética na pesquisa com crianças retoma,
dentre outras questões, a imagem da criança enquanto participante ativa (ALDERSON apud
FERNANDES, 2016), a qual está informada da pesquisa e pode influenciar sobre a forma como
decorre a sua participação. Assumir a participação das crianças na pesquisa implica em permitir
que as preconcepções dos pesquisadores sejam alteradas e modificadas no decorrer do processo
de pesquisa. Ou seja, considerar o status de participantes das crianças é um ponto de partida na
pesquisa com crianças, pois considerá-las enquanto participantes significa promover a ética do
encontro e confrontarmo-nos com a alteridade, possibilitando a compreensão do mundo a partir
do Outro.
Sheila Degotardi (2015) apresenta algumas das decisões tomadas no decorrer do
processo de pesquisa com base nesta ética do encontro. Ela afirma que na pesquisa com bebês
e crianças bem pequenas, o reconhecimento das crianças enquanto sujeitos participantes da
pesquisa, implica em saber quando aproximar-se das crianças, distanciar-se ou segui-las.
Lesley-Ann Gallacher e Michael Gallagher (2008), por sua vez, contam sobre como as crianças
_______________
67
Este princípio foi desenvolvido por um grupo internacional de pesquisadores liderado por Judith Ennew, sendo
composto também por Tatek Abebe (Norwegian University of Sciences and Technology), Sharon Bessell (The
Australian National University), Harriot Beazley (University of Queensland) e Roxana Waterson (National
University of Singapore).
68
Além dos trabalhos de Natalia Fernandes (2016)Priscila Alderson (2008) apresenta os argumentos usualmente
apresentados a partir de uma ótica protecionista das crianças, contrapondo-os a partir de uma reflexão sobre o
seu direito de participação.
77
se apropriaram não somente de suas ferramentas de pesquisa, como seus cadernos de campo,
mas deles próprios, fazendo-os correr ou negociando o colo, em um contínuo movimento de
negociação das relações e de exercício de poder.
Natalia Fernandes (2016) também retoma o roteiro ético proposto por Priscila Alderson
e Virgina Morrow no livro denominado “The Ethics of Research with Children and Young
People: a practical handbook”. Neste roteiro, estão previstas reflexões sobre cinco tópicos
distintos: objetivos; custos e benefícios; forma de seleção dos participantes; e consentimento
informado. Estes itens devem ser sempre atravessados por uma reflexão sobre o melhor
interesse da criança, sendo realizados “(...) processos justos, isentos e promotores de bem-estar
para todos os envolvidos” (FERNANDES, 2016, p.769).
Além disso, devem ser acompanhados da contínua reflexão sobre a ética do encontro e
sobre a imaturidade metodológica (GALLACHER; GALLAGHER, 2008), pois a partir de uma
perspectiva relacional, compreende-se que todos os sujeitos – adultos, crianças, idosos – são
sujeitos em processo, são devires, não sabem tudo. E é exatamente esta imaturidade que
possibilita a existência da pesquisa, pois:
_______________
69
No original: “If researchers were fully mature, they would know all the answers; and if they knew all the answers,
there would be no need for research. It seems to us that, if research is to achieve anything, it should proceed
from a position of ignorance.” (GALLACHER; GALLAGHER, 2008, p.512)
78
legais e dos bebês, a divulgação das imagens e a autoria dos bebês. Elas serão apresentadas no
decorrer da discussão acerca das ferramentas metodológicas utilizadas.
_______________
70
O TCLE está disponível no Apêndice I.
80
Para as crianças, foi necessário buscar estratégias, que acolhessem seus modos de
relacionar-se com o mundo. Por isso, a devolutiva ocorria de forma contínua, pois eles podiam
solicitar que eu mostrasse as imagens da câmera ou eu me aproximava deles e apresentava
algumas das imagens realizadas. Na construção dessa relação, os bebês passaram a
compreender que poderiam solicitar minha presença quando queriam ser registrados ou ver as
imagens. Além disso, foi construído um livro com imagens deles e relatos de suas ações. Este
livro foi apresentado aos bebês e entregue como um presente para a turma (duas cópias) e para
a instituição (uma cópia)71.
As devolutivas configuram-se como um procedimento ético na medida em que partem do
princípio de que as narrativas e as histórias dos bebês contadas na pesquisa pertencem aos
sujeitos que as vivem e as constroem no seu cotidiano. Nesse sentido, um desenho ético de
pesquisa não pode prescindir da devolutiva aos sujeitos participantes.
_______________
71
No Apêndice II são apresentadas algumas figuras das páginas do livro. Foram omitidas as imagens do Bernardo,
visto que a família não autorizou o uso do nome e da imagem, assim como de uma criança de outra turma que
convivia com as crianças do berçário, mas que não participou da pesquisa.
81
interessado na temática e no qual fosse possível observar a interação das crianças com as
materialidades. Duas condições se colocaram a partir disto: a primeira foi a de encontrar uma
instituição com grande variedade de materialidades, o que enriqueceria o estudo; a segunda, foi
procurar um espaço no qual as crianças não só tivessem acesso a eles, mas em que devido à
organização pedagógica da instituição, tivessem condições adequadas de uso do tempo e
possibilidade de explorar os objetos. Outra escolha feita a priori foi a de realizar a pesquisa em
uma instituição pública de educação, devido a um compromisso político com a educação
pública.
A primeira etapa da pesquisa consistiu em um estudo exploratório, realizado entre
fevereiro e março de 2019, por meio do qual foram acessadas todas as páginas de facebook das
instituições públicas de Educação Infantil do Município de Curitiba. No site da Prefeitura de
Curitiba foi possível acessar o nome destas instituições e, em seguida, foi feita a busca na
internet. Os dados das instituições foram organizados em um quadro para registro das
informações de caracterização da instituição – nome, bairro, regional e telefone – e de análise
das imagens disponibilizadas online72. Ao analisar as imagens foram observados os seguintes
itens: a autoria da imagem ou a pessoa que postou – verificando se foi alguém responsável pela
instituição ou outros –, o ano de publicação, a quantidade de fotos de bebês publicadas e o teor
destas imagens.
Nas páginas mais ativas, foi estabelecido um filtro de análise, sendo acessadas somente
as imagens dos últimos 5 anos (2014 – 2019). Neste primeiro momento, as fotos publicadas
foram salvas e organizadas para análise posterior; dentre as 203 instituições de educação infantil
municipais listadas no site da prefeitura no momento de acesso, no segundo semestre de 2018,
51 instituições tinham feito postagens sobre os bebês ou suas salas de referência.
A partir deste primeiro filtro, foram selecionadas as instituições que tinham publicado
imagens de bebês em seu cotidiano e que indicassem uma prática pedagógica não antecipatória
para o trabalho na creche por meio da análise das fotos das salas de referência das turmas do
berçário. Fotos nas quais observávamos a atividade do calendário, alfabeto na parede, figuras
estereotipadas ou salas com muitas mesas e cadeiras ou sem brinquedos e objetos ao alcance
das crianças trouxeram indicativos de uma prática pedagógica que ainda estava avançando no
processo de reconhecimento do trabalho com bebês e crianças pequenas. As imagens tornadas
públicas pela instituição comunicam parte do ocorrido no cotidiano, do currículo vivido,
_______________
72
O quadro com dados de análise das páginas do facebook está disponível no Apêndice III
82
práticas e vivências às quais a equipe atribui valor e que considera adequadas que seja
publicizadas nas redes sociais. O interesse da instituição pela qualificação do trabalho realizado
com o grupo do berçário também poderia indicar a vontade de participar da pesquisa.
Dentre as páginas visitadas, foram destacadas as instituições nas quais as imagens
revelavam o planejamento do espaço da sala de referência, o uso de objetos diversificados, a
acessibilidade aos brinquedos e objetos, o uso criativo de mobiliários – como berços
transformados em casinhas ou painéis construídos a partir de materiais não-estruturados –, o
acesso dos bebês ao espaço externo da instituição e o planejamento do trabalho com bebês. A
partir da análise dessas questões, a coordenadoria de Educação Infantil do município foi
contatada para que a pesquisa fosse autorizada e os CMEI’s selecionados pudessem ser
visitados para que se verificasse o interesse da equipe da instituição e se realizasse uma segunda
análise da sala de referência dos bebês e da estrutura da instituição a partir de visitas aos locais.
O diagrama abaixo (Figura 2) apresenta este processo de seleção do CMEI para realização da
pesquisa de campo.
O primeiro contato com as instituições foi feito via telefone durante o mês de fevereiro
de 2019. Dentre as dez instituições selecionadas, duas não tiveram interesse em participar da
pesquisa e receber a visita. Nas oito visitas realizadas foi entregue uma carta com o projeto de
pesquisa e cópia da autorização da prefeitura, ocorreu uma conversa com a equipe gestora da
instituição e a visita aos diferentes espaços da instituição com o uso de registros fotográficos
em que não aparecessem as crianças.
Após as visitas, os dados dos CMEI’s foram organizados e comparados a fim de
elaborar critérios e selecionar a instituição para realização da pesquisa etnográfica. Os primeiros
critérios elaborados consistiam em considerar: interesse e acolhida por parte da instituição e a
organização da sala de referência. As três instituições selecionadas nesta última etapa
83
demonstraram vontade de receber a pesquisa e interesse pela temática, assim como variedade
de materiais e brinquedos ofertados.
A fim de fazer a seleção do campo, dois critérios adicionais foram elaborados a fim de
realizar uma análise das três instituições pré-selecionadas após a visita e compreender melhor
o contexto das instituições, foram eles os dados socioeconômicos do bairro e o uso realizado
pela equipe dos outros espaços do CMEI, dada sua planta arquitetônica. Dentre as três
instituições, duas delas localizavam-se em bairros com os piores indicadores do município,
estando em quase todos os indicadores abaixo da média da cidade.
Os CMEI’s visitados também tinham diferentes padrões arquitetônicos devido ao
período em que foram construídos, sendo marcados pelas concepções pedagógicas em
circulação nos períodos correspondentes. Dentre os dez CMEI’s selecionados para a pesquisa,
quatro modelos diferentes de construção foram observados. Dois destes modelos se mantiveram
após a exclusão das outras instituições durante a análise dos critérios anteriores. Dentre as três
instituições pré-selecionadas ao final, observamos que eles têm histórias distintas quanto ao ano
de fundação e o padrão arquitetônico, tendo três estruturas diferentes.
O CMEI selecionado para a realização da pesquisa era o mais antigo dos três e, na
visita inicial, havia sido possível observar o uso criativo dos espaços realizado pela equipe
pedagógica, em um processo de ressignificação do padrão arquitetônico, além do trabalho
realizado de organização do acervo material. Em contraposição, as outras duas instituições
tinham uma planta mais recente e nas quais não foi possível observar um uso diferenciado dos
espaços. Neste sentido, o uso criativo dos espaços do CMEI dada a planta arquitetônica foi um
critério de inclusão.
A partir dos critérios expostos acima, o CMEI Porto Seguro foi selecionado para a
pesquisa de campo. Ele tem 30 anos, tendo sido construído no ano de 1988, e é uma das
instituições mais antigas do município de Curitiba, além de ter sido construído no período de
maior ampliação da rede. Abaixo, apresentamos o mapa político do Brasil, a fim de situar a
cidade de Curitiba (Figura 3). O CMEI Porto Seguro situa-se no bairro da Cidade Industrial, na
administração regional de mesmo nome, conforme pode ser observado no mapa abaixo (Figura
4) e indicado com um círculo vermelho. O mapa abaixo apresenta as regionais de Curitiba e as
delimitações internas dos bairros.
84
_______________
73
Na Parte I do Capítulo IV será ampliada esta apresentação da instituição com uma descrição dos espaços.
74
Como exposto previamente, a devolutiva para as crianças também ocorreu durante o próprio processo.
Diariamente, elas viam as fotos tiradas e sentavam ao meu lado para observar a câmera. Eu também contava
para elas o que estava escrito no caderno.
86
3.2.3.3 Entrevistas
Duas situações de entrevista foram vividas: com a diretora e com a equipe de professoras
da turma do berçário em formato de grupo focal. Estas ferramentas ajudam a compreender o
contexto em que os bebês agem e os sentidos produzidos pelas professoras ao habitarem a sala
de referência.
A entrevista com a diretora da instituição teve por objetivo produzir dados para uma
análise do provimento material da creche, a fim de descobrir como estas materialidades
passaram a fazer parte do acervo desta instituição. Ela teve duração de uma hora e meia e
ocorreu no espaço da instituição no mês de dezembro de 2019 com um roteiro de entrevista
com perguntas semi-estruturadas.
A entrevista coletiva com as três professoras da turma também foi uma estratégia para
visibilizar os sentidos produzidos no cotidiano da prática educativa, visto que as materialidades
às quais as crianças têm acesso são em grande parte resultado das decisões da equipe docente.
No grupo focal foram utilizadas fichas dos materiais da sala, construídas a partir das imagens
produzidas para o inventário a fim de provocar o diálogo sobre os materiais por meio do
exercício de categorização das fichas. A entrevista ocorreu em uma sala reservada do Edifício
89
Teixeira Soares, Campus Rebouças da UFPR, no período da noite, com duração de duas horas
e com a presença de uma auxiliar de pesquisa75.
Esse momento foi organizado em três etapas distintas: na primeira, foram realizadas
perguntas semi-estruturadas sobre a organização da sala de referência do berçário e seleção de
brinquedos e materiais; na segunda, foram apresentadas as fichas que continham todas as
materialidades disponibilizadas aos bebês no primeiro semestre de 2019 e as professoras foram
convidadas a conversar sobre a trajetória desses materialidades e a forma como elas eram
utilizadas no cotidiano para em seguida categorizá-los (Figura 5); na terceira, foi apresentado
um croqui da planta da sala e elas realizaram juntas a tarefa de escolher quais materiais
gostariam de disponibilizar aos bebês e como os organizariam na sala em uma nova
oportunidade.
_______________
75
A Ana Luisa Manfredini, graduanda de Pedagogia e professora de bebês, ofereceu suporte voluntário para a
realização das etapas finais da pesquisa de campo (novembro e dezembro), atuando como assistente de pesquisa.
Durante a realização do grupo focal, ela auxiliou com os registros escritos e de imagem.
90
_______________
76
No original: “(...) plethora of events – actions and interactions from which both subjects and knowledges
emerge.” (GALLACHER; GALLAGHER, 2008, p.511)
77
No Apêndice IV apresenta-se um quadro completo com os registros do dia 12/04/2019. É possível observar a
data, a numeração, a nomeação dos materiais e das crianças. Este quadro também mostra a forma como os
eventos foram organizados. Este foi um dia com uma quantidade menor de fotos, pois nos primeiros dias evitava
usar a câmera em algumas situações e fui inserindo-a progressivamente, ainda que ela tenha me acompanhado
no campo desde o primeiro dia da pesquisa.
91
Após esta primeira organização dos eventos, eles foram analisados individualmente e
confrontados com as anotações do diário de campo. Deste modo, os eventos foram revistos e
reorganizados em uma base de dados que abrangeu outras informações a partir do estudo
metódico dos registros em foto e vídeo, assim como do diário de bordo. A partir dessa revisão,
foram localizadas as unificações automáticas equivocadas e verificou-se que, ao todo, foram
registrados 2941 eventos.
Com isso, o registro de eventos final passou por um processo de análise em que consta
a descrição do evento (texto descritivo, sujeitos envolvidos, materialidades presentes, local,
data e ação dos bebês sob cada materialidade), tipo de registro (foto, vídeo e diário de campo)
e a sua categorização em uma das três grandes categorias de análise. Estas informações estão
reunidas no quadro abaixo (Quadro 6):
A partir da organização dos registros das fotos e vídeos em eventos foi possível
organizar novos quadros que tinham o objetivo de ajudar a identificar os sentidos produzidos
pelas crianças, individualmente e enquanto grupo, e a variedade de brincadeiras e de modos
com que as crianças se apropriam das materialidades. O exercício de pensar a construção do
espaço a partir de uma abordagem relacional também implica em compreender os sentidos
atribuídos pelas professoras às materialidades disponibilizadas às crianças. Estes sentidos
podem ser observados na forma como os materiais e microambientes78 da sala estão dispostos,
pois o espaço organizado para as crianças comunica a compreensão de criança e educação que
_______________
78
O termo “microambiente” é utilizado para referirmo-nos à organização da sala de referência em espaços
circunscritos nos quais são apresentadas propostas de brincadeiras para as crianças. Optamos por este termo
devido aos indicativos da pesquisa de Daniele Vieira (2016), que mobiliza o termo a partir dos estudos de Miguel
Zabalza acerca da organização da sala em cantos no livro “Didáctica de la Educación Infantil” (2016).
92
o orienta. Eles puderam ser observados pela forma como os materiais eram apresentados e
ressignificados no decorrer da jornada e por meio da entrevista. No decorrer do trabalho, nos
referimos a eles como a intencionalidade pedagógica de cada materialidade, compreendendo
que o valor pedagógico é atributo da ação docente.
O quadro abaixo (Quadro 7) exemplifica a forma como os eventos foram organizados
de acordo com as diferentes materialidades. Neste quadro, é possível visualizar os sentidos
atribuídos ao caixote plástico preto, o qual está presente cotidianamente em sala. Indica-se no
quadro os sentidos produzidos por adultos e bebês no decorrer dos eventos.
_______________
79
O Quadro está apresentado parcialmente no corpo do texto. No Apêndice V é possível localizar o quadro na
íntegra do Bernardo.
94
No caso do Bernardo, por exemplo, foi possível observar a frequência com que ele se
apoiava nos escaninhos para alcançar outros materiais recém-modificados de lugar ou, ainda,
para ficar de pé durante o processo de conquista da marcha. A mesa e a cadeira também eram
utilizadas por ele para essas mesmas finalidades.
Além disso, a mesa também foi lugar de encontro para a relação construída com o
Kaylan, pois ele o procurava nos momentos do almoço ao invés de aguardar que uma das
professoras o chamasse. Sempre que o Bernardo se posicionava ao lado do Kaylan durante o
almoço, ele dividia o seu prato de comida. O Bernardo percebeu que o Kaylan era o único bebê
que parecia não se incomodar com a presença das outras crianças durante o almoço e que dividia
a sua comida quando solicitado e, portanto, quando estava com fome a aguardando pela sua
vez, se levantava e solicitava o alimento ao Kaylan. Além de apoio para permanecer em pé, a
mesa se transformava em um ponto de conexão entre as ações de ambos os bebês.
A repetição de um mesmo modo de atuar também apareceu no uso de materiais não-
estruturados, pois o Bernardo também retomava uma mesma investigação, a de fazer os objetos
girarem. Ele sabia como e onde segurar os objetos para que eles girassem sob seu próprio eixo.
Ele repetia essa ação com a esponja, o mouse e a tampa. O quadro organizado por bebê (Quadro
8) ajudam a observar estas produções simbólicas e a elaborar categorias de análise. Do mesmo
modo, permitem observar quais interações com a materialidade foram registradas, o que oferece
elementos para a elaboração de categorias das materialidades.
É importante destacar que tanto o exercício de quantificação dos eventos –
inicialmente por meio de ferramenta automática e, em seguida, a partir de uma análise e do
confronto entre o diário de campo e os registros de imagem -, assim como de elaboração dos
quadros foi fundamental para organizar e registrar o processo de reflexão acerca dos dados,
assim como para a sua sistematização e elaboração das categorias de análise. Neste sentido,
eles contribuíram para o processo de interpretação e análise dos eventos na medida em que
ajudaram a identificar os grupos de pares mais recorrentes, os repertórios mobilizados com
maior frequência pelo grupo de bebês e as preferências dos bebês por alguns brinquedos, locais
ou materiais específicos.
Contudo, eles também provocaram um conjunto de reflexões quanto aos
procedimentos de pesquisa e suas potencialidades, indicando alguns de seus limites e
provocando novas reflexões sobre a cultura dos bebês e a materialidade da experiência. Isto
ocorreu porque estes exercícios de sistematização tornaram evidente o confronto da lógica
adulta, que impera nos procedimentos de pesquisa, com o dinamismo e a fluidez que
caracterizam a ação dos bebês e as relações construídas entre eles e as materialidades.
95
CATEGORIZAÇÃO PEDAGÓGICA
CATEGORIA DESCRIÇÃO MATERIALIDADES
Brinquedos interativos com pilha ou bateria, jogo de
Materialidades que são
construção de borracha, jogos de construção com peças
Brinquedos comercializadas como
plásticas grandes, chocalhos, mordedores, miniaturas
para Bebês produtos exclusivos para
emborrachas com apito, brinquedos com estímulos sensoriais.
bebês.
Brinquedos
Brinquedos de
comercializados para a Jogos de encaixe diversos e blocos de madeira.
Construção
brincadeira de construção
_______________
80
A reflexão acerca do dinamismo dos eventos é explorada no decorrer da seção 4.2. Nesta parte da análise é
possível nos aproximarmos à dinâmica dos bebês de encontro e relação com as coisas e o espaço.
81
Os sistemas funcionais criados pelos bebês e o dinamismo do brincar são objeto de análise, respectivamente,
das seções 4.3 e 4.4.
96
Jogos de lógica
Jogo da memória, Dominó, Uno, Quebra-cabeça variados,
Jogos comercializados e/ou
Jogos de encaixe, Resta-Um e Tangram.
produzidos na instituição
Materiais de
Materialidades utilizadas
Leitura e Fantoches, dedoches, um cenário para a história dos três
para a contação e leitura de
Contação de porquinhos e livros de papel, tecido ou plástico
histórias
Histórias
Arma de brinquedo, banheira, bichos de pelúcia variados,
bonecas brancas e negras, boneco, abayomis, itens de cozinha,
roupas de boneca, telefones, computadores, itens de cuidado
Materialidades
Materiais de de saúde (estetoscópio, termômetro...), itens de salão de beleza
apresentadas às crianças
Jogo (secador de cabelo, prancha de cabelo...), carrinhos, carrinho
em contextos de jogo
Simbólico de boneca, carrinho de praia, comidas, fantasias, furadeiras,
simbólico.
instrumentos musicais, pista de carrinhos, tábua de lavar
roupa, móveis de casinha, miniaturas comerciais.
_______________
82
A escolha dessa terminologia indica a principal função para a qual esses objetos foram criados, pois são materiais
que convidam ao movimento corporal. Isso não significa que os demais não possibilitem o movimentar-se e, do
mesmo modo, que as crianças não os utilizam para outras finalidades.
83
No original: “(...) materiali non orientati a un utilizzo univoco e predefinito, ma che suggeriscono combinazioni
aperte e che prevedono uma possibilità di azioni flessibili e composite.” (GUERR, 2017, p.18).
97
_______________
84
Esta discussão é apresentada de forma aprofundada na primeira seção do capítulo quatro.
98
Ressalta-se que os bebês por vezes fizeram usos distintos dos previstos, tensionando o
significado de cada uma das categorias pedagógicas do brinquedo. No decorrer do trabalho,
elas são apresentadas e problematizadas a fim de considerar os sentidos produzidos por bebês
e adultos em uma perspectiva relacional85. Ou seja, eles mobilizam diferentes características
das materialidades em suas brincadeiras ou atribuem novas funções aos objetos que escapam
de quaisquer tentativas de padronização ou categorização a priori. Do mesmo modo, eles se
constituem a partir do encontro com as materialidades.
O gráfico abaixo (Figura 6) também permite observar que a maior parte dos eventos
registrados envolveram o uso de materiais não-estruturados, brinquedos de jogo simbólico e a
ressignificação dos itens do mobiliário e de elementos estruturais. Juntos, os eventos que
envolveram o uso desses quatro tipos de materiais, representam 74% da amostra, sendo que os
dois primeiros grupos incluem 47% das situações analisadas. Este registro guarda relação com
frequência com a qual os materiais eram apresentados aos bebês, com o fato de que o grupo foi
poucos momentos aos espaços externos – somente em cinco momentos no decorrer da pesquisa
de campo – e com as escolhas dos bebês sobre quais materialidades utilizar. Também é
importante destacar que parte dos materiais disponíveis no CMEI e citados no Quadro 9 não
eram disponibilizados para os bebês, deste modo, as materialidades citadas no gráfico abaixo
são aqueles apresentados aos bebês no primeiro semestre de 2019.
A frequência dos eventos que envolvem a exploração e ressignificação de “brinquedos
para bebês” parece estar diretamente associada às escolhas dos bebês em relação a quais
materiais explorar, visto que essas materialidades eram ofertadas diariamente e, muitas vezes,
permaneciam espalhadas pela sala sem que as crianças interagissem com elas. Nessas situações,
os pertences pessoais, mobiliários e elementos estruturais eram transformados por meio da ação
das crianças. Na contramão, os eventos envolvendo os “Materiais grafo-plásticos”, “Materiais
de Convite ao Movimento” e “Brinquedos de Construção” estão relacionados a oferta ocasional
destes materiais. Ressaltamos que situações que envolveram livros, brinquedos de pelúcia e
elementos naturais não foram incluídas no gráfico por representarem uma quantidade menor de
eventos, correspondentes juntos a 5% da amostra.
_______________
85
A categorização dos materiais é objeto da primeira parte do capítulo 4.
99
Percentual acumulado
2500
70%
Quantidade
2000 60%
50%
1500
40%
952
1000 779 30%
620
20%
500 288 192 166 145 98 10%
56
0 0%
de Construção
Pertences
Brinquedos
Não-Estruturados
Mobiliário
Materiais de Convite
Jogo Simbólico
Estruturais
Grafo-Plásticos
Elementos
para Bebês
Pessoais
Brinquedos
Materiais de
Materiais
ao Movimento
Materiais
A partir dos dados expostos acima, as categorias elaboradas para análise dos eventos,
considerando a ação das crianças e as materialidades são as seguintes:
- Modos de ocupar o espaço: vagar e divagar - esta categoria surge a partir dos eventos
registrados em que os bebês circulavam pelo espaço, com ou sem objetos em suas mãos,
parecendo integrar-se ao contexto e modificar suas ações com base nos encontros que
aconteciam. Em diversas situações, os bebês moviam-se pelo espaço, explorando os
modos como seus corpos se encontravam com as coisas. São eventos em que são
narradas essas vivências espaciais dos bebês e nos quais se manifesta a impossibilidade
da compreensão dos sentidos atribuídos por eles aos objetos. A experiência do
movimento e do espaço aparecem como formas de estar e produzir o mundo. Além
disso, são narrados seus encontros com as coisas a partir daquilo que o encontro com
elas convoca.
- Uso funcional dos objetos – esta categoria é produzida a fim de que se possa narrar os
eventos nos quais os bebês apropriaram-se dos sentidos produzidos socialmente pela
cultura, expressa nas intencionalidades pedagógicas ou no conteúdo simbólico dos
objetos, ou criaram uma nova função para as coisas sem transformá-las em brinquedo.
100
- A coreografia do brincar – a partir desta categoria são apresentados os eventos nos quais
os bebês brincavam com as coisas e transformavam-nas em brinquedos. Foi possível
observar a reiteração de brincadeiras por um mesmo bebê ou por um grupo, os processos
de ressignificação e criação de brinquedos a partir dos materiais não-estruturados ou de
jogo simbólico e a recriação pelo grupo de bebês de rituais construídos pelas professoras
para a organização da rotina. São momentos nos quais elas agiam sobre os bebês,
fazendo-os alterar suas brincadeiras e ações a partir dos encontros com a materialidade.
Produzir uma pesquisa comprometida com os bebês significa criar espaços no texto
que permitam que nos aproximemos deles e conheçamos um pouco sobre seus modos de agir
na relação com o mundo e com o outro. Falar sobre quem eles são é um grande desafio, pois o
que se conhece de cada um foi aquilo que permitiram que fosse descoberto, aquilo que
desejaram apresentar e trazer para a relação construída com a pesquisadora no decorrer do
campo.
Nesse sentido, é possível contar sobre o que construímos juntos e sobre o que eles
mostraram. Chamá-los pelo nome é comprometimento ético com os processos vividos por eles
e falar da relação construída é reconhecer que quem pesquisa se torna parte do contexto
observado. Habita-se a escola real86 enquanto uma reunião de vidas (INGOLD, 2012) da qual
passamos a fazer parte assim que nos aproximamos dela.
Por isso, essa seção encerra com uma reflexão em primeira pessoa sobre o processo de
entrada em campo, no qual os preceitos éticos se concretizam conforme se constrói uma relação
entre quem faz a pesquisa e os adultos e bebês que já habitam esse espaço. Do mesmo modo,
apresentam-se os bebês participantes da pesquisa.
Como mencionado anteriormente, no momento da devolutiva aos bebês foi construído
um livro impresso com capa artesanal que pudesse acompanhá-los no decorrer de sua trajetória
no CMEI e que contasse um pouco do vivido no decorrer do tempo permanecido em campo.
Este material começa com o título “Os Bebês e a Materialidade” e, em seguida, contêm a foto
e o nome de cada um dos bebês que participaram da pesquisa.
_______________
86
No final do capítulo 2 é feita uma referência à casa real (INGOLD, 2012), aqui retomamos a metáfora da escola
real apresentada durante a reflexão.
101
Também é com estas imagens que os bebês são apresentados neste trabalho. Cada uma
dessas fotos foi selecionada a partir de registros do diário de campo que indicavam os momentos
em que os bebês se aproximavam, demonstravam gostar de uma imagem vista no écran da
câmera, quando solicitavam que fosse feito um retrato deles ou ainda em uma situação de
brincadeira em que a minha participação fosse requisitada pelos bebês. Ao lado de cada uma
dessas fotos, está indicado o primeiro nome, a data de nascimento e a situação em que a foto
foi feita.
O reconhecimento dos bebês enquanto participantes da pesquisa, o permanente
exercício da reflexividade e o confronto com os preceitos éticos implicam em reconhecer essas
situações nos quais os bebês parecem consentir com a realização da pesquisa e desejar a
construção de uma relação com a pesquisadora. Esta é uma afirmação possível a partir de uma
escuta sensível e do reconhecimento da sutileza com as quais os bebês informam que estão
sentindo-se à vontade com a presença de quem realiza a pesquisa. De modo mais amplo, isto
significa defender os direitos das crianças e garantir o seu melhor interesse durante o tempo
todo em que se realiza a pesquisa.
Nesse sentido, os registros fotográficos de cada bebê, ainda que autorizados por seus
familiares, passou a se realizar somente após as primeiras aproximações dos bebês. Situações
nas quais eles me procuraram com o olhar, sorriram, caminharam até mim ou engajaram-me
em brincadeiras. Esses momentos também se repetiram no decorrer do semestre, quando alguns
bebês construíram modos específicos de relacionarem-se comigo, assim como quando
alteravam a posição onde eu me encontrava na sala (puxando-me pela mão para outros lugares),
apropriavam-se do meu colo, das minhas ferramentas (câmera e diário) ou negociavam aquilo
que eu podia ou não fazer em campo.
As imagens apresentadas abaixo são, deste modo, representantes de um largo processo
de construção da relação com os bebês, em que os nossos papeis estavam em constante
negociação. O reconhecimento da agência das crianças implica nesta fluidez das relações e em
um reposicionamento constante. As situações narradas no quadro abaixo (Quadro 11) marcam
momentos marcantes nos quais cada bebê indicou que eu poderia me aproximar deles e a partir
dos quais passamos a construir a nossa relação.
102
Allan - 13/01/2018
Momento no qual ele brincou de se esconder atrás da cortina: procurando-
me, desaparecendo e voltando a me encontrar; engajando-me, com isso, em
sua brincadeira.
Allicia
13/01/2018
Momento em que ela me procurou com o olhar enquanto explorava um pneu
da área externa apesar da distância em que eu me encontrava.
Beatriz - 20/09/2017
Situação na qual ela me chamou para ver a foto de sua família na parede. Ela
caminhou na direção da parede, olhando para trás para observar se eu a
acompanhava.
Bernardo - 22/09/2017
Foi a primeira criança a se aproximar no dia em que a pesquisa de campo
começou. Ele apoiou-se na mesa e caminhou até mim, permanecendo ao
meu lado enquanto brincava.
Davi - 06/02/2018
Momento em que ele veio engatinhando até mim e apoiou-se no beiral de
madeira ao meu lado, posicionando-se na frente da câmera e sustentando o
olhar.
Kaylan - 26/05/2017
Ele passou a se aproximar de mim pelo interesso pelos objetos que me
acompanhavam, pediu primeiro para ver o diário de campo e, depois, para
que eu fizesse fotos dele.
Laura
12/07/2017
Em um momento no solário, ela trouxe duas almofadas. Uma para mim e
outra para ela, assim como bichos de pelúcia e tecidos.
Lívia - 15/02/2017
Logo que eu cheguei na sala, ela trouxe uma cadeira para sentar-se na minha
frente e permaneceu próxima a mim observando fotos no écran da câmera.
104
Luiza - 27/02/2018
Ela veio engatinhando na minha direção e brincou de se esconder atrás do
armário, procurando-me para ver se eu a estava observando. Nessa situação,
ela aproximou-se e passou a brincar ao meu lado.
Mateus - 23/05/2017
Essa imagem registra um dia em que ele me seguiu pelos espaços,
permanecendo próximo a mim durante toda a jornada e solicitando fotos
dele.
Melissa - 13/07/2017
A Melissa aproximava-se diariamente de mim para solicitar fotos e
manusear o diário de campo. Ela costumava permanecer sentada ao meu
lado por longos períodos.
Nathiely - 25/08/2017
Ela me puxou pela mão para me mostrar um objeto que ela havia jogado
através da grade do portão. Esta foto registra esse momento.
Pedro - 12/08/2017
Ele me pediu por uma foto após observar que eu estava acompanhando e
observando uma brincadeira sua com uma pedra.
Valentina - 20/06/2017
Pedido de foto feito diariamente após trazer uma cadeira para mim e
posicioná-la ao lado da porta do fraldário.
Yasmin
29/12/2017
Registro de um momento em que ela observava uma réstia de sol logo após
ter me olhado e apontado para fora devido ao barulho de um carro.
Os eventos brevemente descritos acima revelam uma pluralidade de formas por meio
das quais os bebês aproximaram-se de mim, assim como o processo que nos acompanhou na
construção dessa relação. O uso dos seus primeiros nomes configura-se enquanto uma situação
ética na qual se reconhece a autoria (KRAMER, 2002) dos bebês. Ainda que a privacidade e a
confidencialidade dos dados sejam uma premissa ética das pesquisas, isto confronta-se com a
permanente negação dos direitos dos bebês e do seu status enquanto sujeitos. É devido a esse
reconhecimento que esta pesquisa faz o enfrentamento da questão da confidencialidade frente
à discussão sobre autoria.
Posto que no decorrer da pesquisa não nos confrontamos com situações nas quais as
crianças fossem colocadas em risco, nas quais o pesquisador precisa enfrentar o dilema da
confidencialidade das informações fornecidas pelas crianças e simultaneamente da demanda de
denúncia para a defesa de seus direitos, a divulgação de seus primeiros nomes não implica em
um risco para elas. Pelo contrário, produz como resultado a forte defesa do bebê enquanto ator
social, um efeito que impacta positivamente os sujeitos participantes da pesquisa e que nos
move a optar pelo uso dos seus primeiros nomes.
Além disso, a questão do anonimato se complexifica quando refletimos acerca do uso
das imagens das crianças. Nas pesquisas visuais, o anonimato já foi rompido devido ao uso das
fotos. Neste sentido, Helen Lomax (2015) discute as questões de ética nas pesquisas visuais,
propondo uma reflexão acerca das imagens publicizadas e disponíveis digitalmente.
Contemporaneamente, a questão da autoria precisa ser balanceada com uma reflexão sobre o
tempo: como as crianças participantes da pesquisa verão o uso destas imagens no futuro? A
autora defende o potencial ético da visibilidade e cita a Paul Sweetman, o qual afirma que isto
“permite e encoraja o reconhecimento do Outro” (SWEETMAN apud LOMAX, 2015, p.495)87.
A autoria das crianças se faz presente, portanto, tanto nas imagens quanto nos nomes
delas. O reconhecimento dos bebês a partir desta perspectiva também ajuda a romper com
paradigmas universalistas que submetem os processos plurais vividos por esses sujeitos a
padrões e regras de desenvolvimento sem considerar a cultura e a agência.
O uso das imagens, além de sua divulgação, também remete a forma como a câmera
fotográfica é introduzida em campo e a relação que os bebês constroem não somente com quem
realiza a pesquisa, mas também com os objetos que o acompanham. Durante as observações,
me parecia que eu, a câmera e o diário configurávamos uma só pessoa. Movíamo-nos juntos
_______________
87
No original: “allow(s) for and encourages(s) acknowledgement of the other” (SWEETMAN apud LOMAX,
2015)
106
pelo espaço e éramos apropriados pelos bebês de diferentes maneiras. Em uma situação na qual
apoiei o caderno tombado sobre o balcão, a Laura me questionou sobre o “pexe”, forma dela
referir-se ao diário devido à ilustração de um peixe na contracapa.
Foi preciso manter uma imagem da Lolo salva na memória da câmera porque ela pedia
para ver a mesma foto diariamente. Do mesmo modo, ela conseguiu expressar verbalmente que
não queria que eu a fotografasse em uma situação que havia ficado brava com as professoras.
A Laura me pediu um dia para fotografar o botão da sua blusa e o Kaylan e a Melissa sempre
pediam para que eu tirasse uma foto deles e depois se debruçavam sobre mim para ver a câmera
e observar a sua foto.
Do mesmo modo, os bebês passaram a escolher o local onde eu ficaria na sala, puxando-
me pela mão para acompanhá-los em outros processos ou, ainda, trazendo uma cadeira para
próximo da porta e apontando para que eu me sentasse. Eles passaram a colocar a cadeira no
mesmo lugar onde permaneci nos primeiros dias, um espaço mais distante deles, apropriando-
se de um sentido que eu havia produzido ao passar a fazer parte daquele espaço. No início, eu
não os conhecia e optei por manter-me à distância e aproximar-me conforme eles
demonstrassem tranquilidade com a minha presença. Constantemente me questionava sobre o
local onde deveria sentar-me ou quanto poderia me aproximar.
Contudo, com o tempo, e devido aos sinais dados pelos bebês, as dúvidas sobre
aproximar-me ou não deles a fim de registrar suas ações passaram a ser mais facilmente
resolvidas. As relações traziam as respostas para as dúvidas de posicionamento e uso da câmera,
pois o reconhecimento da agência dos bebês implica em negociar as relações que se constroem,
ceder, descentrar-se do seu papel geracional, buscando uma maior simetria ética por meio do
reconhecimento de suas experiências (HARCOURT; PERRY; WALLER, 2011, p. 71). Eles
sabiam que podiam indicar que eu me distanciasse ou me trazer para perto deles, assim como
engajar-me em suas brincadeiras. Em uma situação em que as professoras criaram um túnel, o
Kaylan me puxou para baixo da mesa, segurando minha mão até que eu o imitasse e fazendo-
me engatinhar dentro do túnel junto com eles.
Degotardi (2015) também descreve em seu artigo parte dos dilemas e decisões tomadas
durante a pesquisa de campo e aponta para o fato de que ainda que a pesquisa etnográfica
consista na produção de dados por meio da observação, é preciso decidir em campo sobre como
e quando participar das brincadeiras devido aos pedidos das crianças e às relações que se
constroem com elas. Gallacher e Gallagher (2008) também discutem a forma como as crianças
se apropriaram das ferramentas e deles próprios no decorrer das pesquisas etnográficas
realizadas. Eles afirmam que:
107
_______________
88
No original: “The children in our projects no only appropriated our search tools; they often appropriated us too.
Children would find all kinds of inventive ways to turn our presence in their classrooms and play areas to their
advantage. We found ourselves used as play-things, props, or even stooges to children’s activities. The children
would also use us as means to gain advantage over other children, or to get around the school/nursery rules in
various ways.” (GALLACHER; GALLAHER, 2008, p. 509).
108
Nesse sentido, este capítulo se encerra com uma imagem da mão da Heloísa manipulando
o diário de campo (Figura 7). As narrativas que se apresentam neste trabalho são fruto da relação
entre pesquisadora e bebês. Portanto, enfrento a tarefa de traduzir em palavras os encontros
vividos pelos bebês com as materialidades.
109
Minha primeira impressão ao entrar na sala do berçário foi marcada pelo som e pelo
cheiro de comida. A lactarista preparava o almoço e pude sentir o cheiro e ouvir o
barulho alho fritando que em breve seria usado no tempero do feijão. O barulho da
panela de pressão também era constante, mas os bebês pareciam já estar acostumados
e dificilmente dirigiam o olhar em sua direção. Talvez o cheiro do feijão, do alho e o
barulho das panelas já fossem elementos familiares ou talvez presentes em suas casas.
Réstias de sol entravam pelas janelas altas e os bebês moviam-se pela sala,
engatinhando ou caminhando. Alguns bebês aproximaram-se de mim, enquanto
outros não pareceram estranhar ou interessar-se, continuaram movendo-se, pegando
brinquedos, entrando embaixo das mesas, circulando ao redor das professoras. Sentei-
me no canto da sala, inicialmente na companhia da diretora, a Luisa, em uma cadeira
baixa e dura de madeira que pertencia aos bebês e permaneci ali, buscando descobrir
os modos pelos quais iniciaríamos a nossa relação. Antes de sair, ela me pediu que
sempre entrasse pela porta do fraldário, visto que os bebês choravam ao abrir-se a
porta principal, pois a relacionavam com suas famílias. (Diário de campo, 12 de abril
de 2019)
precisam ser mencionados, pois a materialidade é uma qualidade dos seres humanos e do mundo
em que vivemos (MILLER, 2013)
Do mesmo modo como esses elementos atuavam continuamente nas nossas
experiências do espaço, outros elementos diversos se fazem presentes durante a leitura deste
texto para cada leitor e leitora. John Horton e Peter Kraftl (2006), ao refletirem acerca dos
desafios das pesquisas no campo da geografia da infância, provocam os leitores e as leitoras a
refletirem sobre como se sentem no momento da leitura do texto e sobre como ela seria diferente
se os objetos que nos rodeiam, como o lápis, a mesa, a cadeira e o próprio corpo estivessem
diferentes. Eles fazem a seguinte provocação:
O que está acontecendo com/em seu corpo enquanto você lê essas palavras? Imagine,
agora, como a experiência de onde você está poderia ser muito diferente: se você fosse
maior ou menor; se você fosse mais míope, se você estivesse com dor de cabeça ou
de dente; se você tivesse mais dificuldade para mover-se; se você estivesse de ressaca
ou chapado; se você estivesse com frio ou resfriado, se você estivesse realmente
cansado, ou realmente estressado, ou realmente tranquilo; se você tivesse acabado de
bater a cabeça no caixilho de uma porta baixa; se você estivesse realmente com fome
ou satisfeito; se você estivesse se sentindo deprimido ou dando risada por causa de
alguma coisa.89 (HORTON; KRAFTL, 2006, p. 76, tradução nossa)
_______________
89
No original: “What is going on with/in your body as you read these words? Imagine, now, how your experience
of wherever you are could be very different: if you were bigger or smaller; if you were more short-sighted; if
you had a headache or tooth- ache; if you had more difficulty getting around; if you were hung-over or High; if
you felt cold, or had a Cold; if you were really tired or really stressed-out or really calm; if you’d just smacked
your head on a low doorframe; if you were really hungry or full-up; if you were feeling depressed, or if you
were chuckling away at something.” (HORTON; KRAFTL, 2006, p. 76).
111
Assim, este capítulo dedica-se à análise e à interpretação dos dados produzidos durante
o processo de pesquisa, reconhecendo-se os emaranhados materiais-semióticos e dando
destaque aos eventos, aos encontros, às ações dos bebês. A construção de categorias que
permitissem a interpretação dos seus encontros com as coisas (INGOLD, 2012) parte da
compreensão de que a materialidade é co-constitutiva da rede do social.
Nesse sentido, as quatro seções que se apresentam a seguir buscam destacar diferentes
aspectos presentes na construção do espaço da creche enquanto lugar para e dos bebês,
considerando-se em todas elas os emaranhados materiais-semióticos (SPYROU, 2019): o
corpo, os sentidos, a matéria, os símbolos. A categorização apresentada é uma forma de narrar
e interpretar as ações dos bebês, contudo ela não é a única forma de contar sobre a experiência
de ser bebê na creche. Ou seja, na pesquisa, as divisões produzidas a fim de organizar a escrita
e o pensamento não podem reduzir a complexidade e o inesperado do vivido a categorias
estáticas.
Durante o processo de pesquisa, observou-se que os bebês chegam a um lugar que já
foi pensado e organizado para eles e que o habitam, modificando-o a partir de um uso funcional
dos materiais e de práticas autotélicas – práticas que tem uma finalidade em si mesmas – , como
divagar pelo espaço e o brincar e explorar os elementos. A descrição densa, juntamente com os
registros audiovisuais, mobilizou essas reflexões sobre o processo de construção do espaço da
creche.
Nesse sentido, a primeira seção do trabalho apresenta uma análise sobre as
materialidades da creche, o mobiliário, os brinquedos e outros objetos que compõem o espaço.
A análise deste conjunto de materiais possibilitou uma reflexão sobre o universo material a que
os bebês têm acesso, sobre suas marcas simbólico-materiais e sobre a constituição da categoria
intrageracional “bebês”, calcada em uma experiência material. A apresentação deste inventário,
assim como a sua análise, implica deste modo em uma reflexão sobre a ação pedagógica,
processos globais e locais e suas interconexões. Assim, o lugar pensado para os bebês, com os
quais eles se confrontam ao chegar na creche, é o objeto desta primeira parte da análise.
Na segunda seção, as ações dos bebês passam a ganhar destaque. O movimento dos
bebês de divagar, perambular, mover-se pelo espaço é apresentado e interpretado nesta parte do
trabalho com uma prática da cultura dos bebês. São modos de ocupar o espaço e colocar-se em
relação com suas diferentes dimensões, possibilitando novos eventos, novos encontros com a
materialidade. Um movimentar-se pelo qual os bebês expressam a potência da descoberta de si.
As paredes, o chão, os sons, a luz, as coisas, contracenam com os bebês ao dar-se visibilidade
112
_______________
90
Todas as menções ao material virtual foram transformadas em hiperlinks para o site. Também é possível acessá-
lo no seguinte endereço: https://anajulr.wixsite.com/materialidades.
113
A cada dia, quando os bebês chegavam ao CMEI, eles deparavam-se com um espaço
a sua espera. Encontravam os familiares armários, as colmeias onde eram organizados seus
pertences pessoais, os livros e o tapete emborrachado que demarcava o local de encontro com
o grupo e as professoras, pois era utilizado nos momentos da prática da chamada, em rodas de
canto e contações de história e, frequentemente, para apresentar um novo brinquedo ou material.
Além disso, sempre havia alguns móbiles e brinquedos disponíveis e acessíveis para os bebês,
apresentados sobre as mesas ou no tapete.
Isto se repetia diariamente e, do mesmo modo, a sala de referência foi organizada e
planejada pelas professoras no início do ano a partir dos materiais disponíveis e com o
acompanhamento da equipe pedagógica. Esse acervo material foi construído ao largo da história
de 30 anos do CMEI Porto Seguro e ressignificado a partir do projeto educativo vigente e das
escolhas que as profissionais cotidianamente realizam. A instituição foi construída no ano de
1989 para acolher às crianças pequenas na cidade de Curitiba e, desde então, segue sendo um
espaço destinado a elas. O CMEI configura-se, deste modo, em um espaço pensado para as
crianças a partir do conjunto de objetos que o compõe: um lugar para os bebês.
Há duas discussões que fundamentam o título desta seção: “um lugar para os bebês”.
A primeira delas refere-se a forma como “(...) as infâncias passam a ser lugares destinados às
crianças e que se materializam em formas de paisagens nas diferentes sociedades.”(LOPES,
2013, p. 291). O termo lugar91, nesta primeira discussão, remete à definição das experiências
às quais os sujeitos definidos socialmente enquanto bebês e, portanto, pertencentes à categoria
geracional infância, terão acesso. Não diz respeito somente aos espaços formalmente previstos
para serem ocupados e habitados pelas crianças, como suas próprias casas, espaços
recreacionais e escolas, refere-se às experiências dos sujeitos de forma mais ampla e por isso
compreende toda a cultura material destinada a elas e os discursos em circulação abarcando,
mas não restringindo-se aos locais construídos a fim de serem ocupados pelas crianças.
Isto implica no reconhecimento de que as crianças, desde bebês, se constituem enquanto
tal a partir dos mundos materiais e discursivos em que suas vidas estão ancoradas (SPYROU,
2019) e nos provocam a perguntar “quais arranjos materiais-semióticos, quando e porquê,
_______________
91
No capítulo dois, apresenta-se uma reflexão sobre os termos espaço, lugar, infância, criança e bebê em que se
ancora a discussão sobre o lugar das crianças. Na distinção realizada agora, o termo lugar é problematizado a
partir de sua relação com as questões de poder e identidade.
114
tornam certas perspectivas, vozes ou pontos de vista possíveis (ao invés de outras)?”92
(SPYROU, 2019, p.4). Ou seja, as materialidades destinadas às crianças comunicam sobre a
construção social do bebê em nossa sociedade, enquanto categoria intrageracional, pois “se nós
soubermos como lê-los, provisões públicas para as crianças oferecem narrativas sobre a sua
sociedade, seus valores e concepções dominantes.” (MOSS; PETRIE, 2002, p.172, tradução
nossa)93.
Ou seja, este lugar construído para as crianças, manifesta-se nos espaços socialmente
destinados a elas, o que nos remete a uma segunda discussão do lugar para os bebês: os espaços
construídos para eles. Lugares formalmente previstos para atenderem aos bebês, como os seus
quartos, as escolas e espaços de recreação, como já mencionado acima.
Também é necessário apontar outra sutil distinção que justifica o título da seção. O
pesquisador Kim Rasmussen (2004), ao estudar a forma como as crianças conectam-se aos
lugares, elabora duas compreensões distintas: o lugar para as crianças e o lugar das crianças.
Por meio destas terminologias, refere-se ao “lugar para as crianças” para definir os espaços
que foram formalmente pensados para elas e que comunicam as concepções dos adultos sobre
as crianças e “lugar das crianças” como o espaço com o qual as crianças conectam-se
fisicamente e no qual expressam modos de ocupá-lo que frequentemente parecem bagunçados,
perigosos e caóticos do ponto de vista dos adultos. Peter Moss e Pat Petrie (2002) adereçam-se
a essa mesma discussão ao diferenciarem o conceito de serviços das crianças – children’s
services – e espaços das crianças – children’s spaces, construindo uma diferenciação
semelhante da apresentada por Rasmussen (2004) a partir dos termos “para” e “das”.
Ambas as discussões remetem ao espaço planejado para receber os bebês e que se
configura em objeto de análise desta seção. A realização do inventário de materiais do CMEI,
juntamente com as entrevistas realizadas com a direção e as professoras, produziu dados que
comunicam sobre o lugar para os bebês: sobre a construção social do bebê e sobre as
características materiais da educação infantil enquanto serviço para as crianças. A reflexão
sobre a materialidade também se aprofunda a partir da descrição da estrutura, mobiliário,
materiais e brinquedos que constroem o espaço da creche. A historiadora Inés Dussel (2019)
afirma que a especificidade da escola não está dada pelo edifício, mas é mais bem definida
pelos objetos que ali se encontram.
_______________
92
No original: “Which material -semiotic arrangements, when and why, make certain perspectives, voices or
standpoints possible (rather than others)?” (SPYROU, 2019, p.4)
93
No original: “If we know how to read them, public provisions for children offer narratives about their society,
its values and dominant understandings.” (MOSS; PETRIE, 2002, p. 172)
115
O lugar para os bebês remete, portanto, ao lugar simbólico e físico pensado pelos
adultos para a acolhida das crianças. Neste sentido, quais são objetos presentes na creche e qual
a experiência educativa que eles possibilitam? Quais objetos transformam o edifício em uma
escola, garantem a especificidade do trabalho com bebês e crianças bem pequenas e
possibilitam que o lugar para as crianças se transforme em lugar das crianças? A partir destas
perguntas, apresentam-se e analisam-se a seguir a estrutura física da instituição, seu mobiliário,
materiais e brinquedos.
O que existe dentro de uma escola de educação infantil? De quantas salas ela é
composta? Como são as paredes, pisos e janelas? De que cor, material e formato são os
brinquedos que ali se encontram? O que indica que aquele espaço será habitado por bebês?
Diferente da escola de ensino fundamental e médio ou até mesmo das universidades,
para as quais é possível rapidamente construir uma imagem de salas contendo carteiras, cadeiras
e um quadro, quando não uma mesa de professora ou, antigamente, um pupitre – como ao que
se refere Walter Benjamin (1987)94 – a materialidade da educação infantil parece mais nebulosa
e menos bem definida. É certo que ela tem sido objeto de pedagogias distintas ao largo do
tempo, Froebel, Montessori e recentemente na abordagem de Reggio Emilia, os materiais
aparecem com força e ganham destaque no desenho destas perspectivas pedagógicas. Contudo,
e como observado no levantamento bibliográfico realizado95, pouco se fala sobre a concretude
desta experiência educativa e por vezes é difícil imaginar – construir imagens – da escola da
infância.
O CMEI Porto Seguro foi construído em 1989, momento de maior expansão da rede96.
Elisangela Mantagute (2013), em sua pesquisa, identifica padrões diferentes de construção
desse período, que representam as concepções de criança e educação que fundamentavam a
organização da educação infantil em Curitiba97. Segundo a autora, “o departamento responsável
_______________
94
Tive acesso a este trabalho de Walter Benjamin por meio da produção de Inés Dussel (2019) que cita o pupitre
de Benjamin para referir-se a outros modos de pensar sobre a materialidade na história.
95
Este levantamento é objeto de discussão de uma das seções do segundo capítulo desta dissertação.
96
Em 1980, havia sido iniciada “(...) uma discussão do processo de criação de uma rede municipal de creches, de
maneira integrada entre IPPUC e Departamento de Desenvolvimento Social (...)”(PMC, 2016, p.15), que
culminou na definição de critérios e parâmetros para a construção de creches.
97
A tese de Elisangela Mantagute (2017) e o “Caderno I – Princípios e Fundamentos” (PMC, 2016) publicado
pela prefeitura municipal de Curitiba, trazem alguns indicativos para se pensar nos padrões arquitetônicos das
116
pelo planejamento destas construções e elaboração de plantas era o IPPUC; no entanto, estas
plantas e projetos de construção não foram catalogados.” (MANTAGUTE, 2013, p. 16).
No CMEI Porto Seguro, o muro de palitos coloridos, a fachada amarelada da
instituição e um muro grafitado e colorido com o nome do CMEI e desenhos de animais
marinhos indicam a chegada na instituição (Figura 8). Há um ponto de ônibus logo à frente, a
faixa de pedestres e lombadas em ambos os sentidos da rua. A instituição localiza-se em uma
esquina e é possível observar o movimento dos carros e as pessoas que circulam pela praça
situada logo em frente. O ruído dos carros não é alto, mas ao longe é possível escutar o barulho
gerado pelo tráfego de caminhões em uma rodovia nacional, pois o CMEI está próximo dela. O
bairro em que se situa a instituição é a principal região industrial da cidade de Curitiba e há um
fluxo grande de veículos, em especial de caminhões, pela rodovia.
A entrada da instituição é protegida com um toldo e é possível acessá-la por uma escada
ou rampa, pois o terreno está em um nível mais alto que a rua. Ao adentrar na instituição, é
possível visualizar bem a sua estrutura física. Um refeitório largo e comprido aponta para dois
corredores e diversas portas que levam aos diferentes espaços ocupados por adultos e crianças.
A instituição dispõe de uma área externa com gramado, árvores e caixa de areia. Esta
área verde circunda o CMEI por três de suas laterais apresentando desníveis suaves e
possibilitando a visualização de diferentes paisagens através dos muros de palito. Uma horta,
_______________
instituições de educação infantil do Município. No “Caderno I – Princípios e Fundamentos” (PMC, 2016) indica-
se que entre os anos de 1970 e 1990, foram construídas 108 creches, configurando-se como o período de maior
expansão da rede. Deste conjunto, 60 foram construídas durante o governo do prefeito Roberto Requião (1986-
1988), sendo que 5 delas já haviam sido iniciadas no governo que o antecedeu (Maurício Fruet, 1983-1985) e
10 foram inaugurados no governo posterior (Jaime Lerner, 1989-1992).
117
com sinais de abandono, também compõe esse espaço externo. Além disso, ao todo, a estrutura
física da instituição comporta 18 cômodos, os quais são apresentados na planta abaixo (Figura
9) juntamente com uma indicação da área externa:
2
21
22
23
12
24 14
16 13 1
2 6
17 15
18
20 5
19
7 2
3
8
10
4
9
11
As salas do Berçário (1), Maternal I (23) e Maternal II (22), assim como a Sala de
Estudos/ Descanso (7) e a Sala Multifuncional (24) têm o mesmo tamanho e foram construídas
no projeto arquitetônico inicial como salas de referência para atender aos grupos de crianças de
creche e pré-escola. Ou seja, o CMEI Porto Seguro foi inicialmente construído para atender a
cinco turmas, operando no ano de 2019 com a oferta de três grupos devido às estratégias de
reorganização da Secretaria Municipal de Educação (SME) quanto à oferta de vagas para a
118
educação infantil98 e como efeito da falta de professoras no quadro da rede municipal99. A Sala
Multifuncional (24) localizava-se ao final de um dos corredores e podia ser ocupada pelas três
turmas, além de ser utilizada como espaço de reuniões com as famílias e com a equipe docente.
A sala do Berçário dá acesso ao solário (3), assim como era a única sala ocupada por
crianças que tinha um banheiro de acesso direto, o fraldário (5), e que tinha a comida preparada
diretamente na instituição, o que acontecia no lactário (6). Devido a esses cômodos, a turma do
berçário sempre ocupa essa sala, como relatado pelas professoras durante a entrevista. Todas
as crianças da instituição também ocupam o espaço do refeitório (12), ainda que de modos
diferentes, pois o Berçário utiliza este espaço somente quando da realização de propostas
durante o primeiro semestre de 2019, passando a utilizá-lo para as refeições no segundo
semestre do ano. Há dois banheiros infantis (17/18) disponíveis para as turmas do Maternal I
e II.
As professoras e demais funcionários tinham acesso a uma sala onde havia armários
para guardar os pertences pessoais, denominada aqui de vestiário (15)100, além de contarem
com uma copa (19) e um banheiro de adultos (16). Devido à vacância de uma das salas de
referência, ela foi transformada em uma sala de descanso e estudo (7) para as professoras. A
pedagoga também organizava seus materiais nesta sala, em uma escrivaninha em um dos
cantos, logo em frente à porta de entrada.
A instituição também contava com dois espaços dedicados aos outros serviços
fundamentais para a educação infantil em tempo integral: uma cozinha (8) e uma lavanderia
(10). Dois espaços diferentes eram utilizados para organizar materiais e guardar bens da
instituição, são eles a sala de materiais (14) e o almoxarifado (9). Além disso, as famílias das
crianças tinham acesso à secretaria da instituição (21), um espaço que funcionava
simultaneamente como sala da direção, e a um espaço dedicado à amamentação (13)
denominado de “mama- nenê”101 devido a um projeto municipal de apoio ao aleitamento
materno.
_______________
98
Patrícia Sesiuk (2019), em sua dissertação, analisa a forma como as estratégias de reorganização do município
para atender a demanda total de 4 a 5 anos interferiram no acesso à Creche Pública.
99
A diretora me comunicou sobre a falta de professoras no quadro da rede municipal e sobre o impacto disto na
oferta de turmas em conversas informais durante o primeiro semestre de 2019.
100
No segundo dia em campo, a diretora me deu uma chave para um dos armários do vestiário. Me assegurou que
eu poderia guardar o que desejasse ali e que me sentisse à vontade. O processo de entrada em campo foi, deste
modo, marcado também pelo tornar-me parte daquele lugar: deixando vestígios concretos da minha presença e
do trabalho de pesquisa que estava acontecendo.
101
No site da Prefeitura de Curitiba, é possível aceder a mais informações sobre este projeto, fruto de uma parceria
da secretaria da saúde e da educação fundado em 2007: https://educacao.curitiba.pr.gov.br/noticias/projeto-
mama-nene/8212.
119
_______________
102
As três seções seguintes ocupam-se de discutir e narrar as ações dos bebês ao ocuparem o espaço da creche. As
ações realizadas por adultos e famílias não são objeto de estudo desta pesquisa, contudo a materialidade da
creche (estrutura física, mobiliário, materiais, brinquedos) convoca a esta reflexão acerca da forma como o
espaço condiciona e possibilita a ação dos sujeitos.
120
DEMANDAS
•Famílias •Espaço mama-nenê
•Comunidade •Secretaria
•Atendimento e
Externa •Refeitório
Acolhida
•Corredores
•Banheiro
SUJEITOS ESPAÇOS
O espaço de amamentação (Figura 11), é pensado para o acolhimento das mães que
amamentam e que dispõem de flexibilidade no trabalho para que possam continuar
amamentando após o final da licença maternidade. Ele conta com objetos completamente
distintos dos demais encontrados na instituição. Uma das orientações do projeto é de que este
espaço garanta o acolhimento da mãe e do bebê e, para isso, ele foi organizado pela equipe
gestora e pedagógica da instituição em um espaço reservado e decorado com fotografias, toalhas
de crochê e uma cortina de fuxicos. É também um dos poucos espaços que conta com assentos
almofadados, neste caso, uma poltrona e um banco comprido.
121
corredores quanto no refeitório, é possível deparar-se com murais de avisos às famílias e ripas
de madeira coloridas indicando espaços para expor documentações pedagógicas e produções
das crianças.
O refeitório é o espaço pelo qual todos os sujeitos adentram na instituição e a presença
dos murais, assim como de elementos que o tornam mais aconchegante, como cortinas e plantas,
comunicam sobre a tentativa de ambientá-lo a fim de que ele se configure em um hall, uma área
de entrada. Maria da Graça Souza Horn (2017) refere-se ao hall como um espaço que compõe
as instituições de educação infantil e no qual crianças e famílias são acolhidas. Elinor
Goldschmied e Sonia Jackson (2007) referem-se a este mesmo espaço como a área de entrada,
apontando que ele constitui “(...) uma declaração pública, por parte da creche, de seus valores
e prioridades.” (2007, p. 36).
_______________
103
Uma discussão sobre o termo “materiais não-estruturados” e o seu uso em diferentes concepções pedagógicas
será abordado adiante, partindo da reflexão de Simon Nicholson (1972) e sua teoria de loose parts.
123
(...) as professoras não passavam nem perto daquela prateleira. "Acho que se eu passar
muito perto eu vou ter que usar", sabe?! E foi difícil, porque elas realmente não viam
função naquilo, de que forma as crianças podiam brincar com aquilo, como que usava,
como que montava aquilo... Ainda não atingiu a minha expectativa, mas hoje elas
usam, as vezes de uma maneira meio indiscriminada, as vezes tipo só soltando pras
crianças, mas elas tem mais acesso, elas gostam, elas veem uma função. (Entrevista
com a Diretora, Dezembro de 2019)
Assim como a presença destes materiais provoca reflexões sobre a atividade docente
e sobre o modo como a entrada de novos elementos suscita processos reflexivos acerca do
trabalho realizado, as ausências também comunicam sobre as representações de infância,
criança e educação que movem a equipe docente na reestruturação e reutilização criativa do
espaço. Neste sentido, a ausência de imagens estereotipadas e personagens de desenhos
animados no espaço de entrada da instituição, assim como nas portas das salas, comunica sobre
o projeto educativo, declara seus valores e prioridades. A imagem de infância colocada em
destaque é a da potência e da criação devido ao local central onde são apresentados os materiais
não-estruturados. A diretora, Luiza, destaca que ela realizou a aquisição destes materiais diante
da inventividade infantil no uso dos materiais, esta é a imagem de infância que é declarada às
famílias, comunidade externa e crianças ao adentrarem na instituição:
É, eu acho que justifica-se pedagogicamente assim, né?! Pensando que, aquela história
de material não-estruturado, das possibilidades de criação das crianças, a
possibilidade das crianças de imaginarem, criarem suas brincadeiras a partir de um
brinquedo, de um material que não diz o que tem que ser feito. Um carrinho você
brinca de carrinho, né?! Mas, madeirinhas, a criança pode inventar. Então, a ideia foi
essa. (Entrevista com a Diretora, Dezembro de 2019)
Um último espaço que pode ser utilizado pelas famílias é o banheiro dos adultos. Em
toda a instituição, para acolher às 11 professoras, diretora, coordenadora pedagógica, lactarista,
secretário e equipes da cozinha e limpeza (4 funcionárias), havia um banheiro. Este mesmo
banheiro pode ser utilizado por visitantes e famílias quando estiverem na instituição.
Ele é um espaço que também é mencionado no diagrama abaixo (Figura 13), em que
se aponta alguns espaços necessários para acolher às ações das professoras e demais
funcionários. Há dois grupos distintos de demandas neste diagrama, a primeira refere-se às
atividades de planejamento, avaliação, gestão da educação, formação continuada, assim como
de cuidados com alimentação e higiene, ou seja, trabalho pedagógico; já a segunda são os
espaços pensados para serem ocupados pelos adultos e garantirem o seu bem-estar.
124
DEMANDAS
•Secretaria/ Sala Direção
•Professoras e •Biblioteca/ Sala de
demais •Trabalho Pedagógico descanso
funcionários da •Bem-estar •Cozinha
instituição. •Lactário
•Lavanderia
SUJEITOS •Sala de Materiais
•Almoxarifado
•Sala Multiuso
•Copa
•Banheiro ESPAÇOS
•Vestiário
_______________
104
Em específico na turma do berçário, a lactarista ajudava diariamente a alimentar as crianças. As professoras
relatam que no segundo semestre de 2019 elas escolheram uma foto deste momento de alimentação para
ambientar o espaço das refeições, a fim de valorizar o vínculo construído entre os bebês e a lactarista.
125
equipes de limpeza dão suporte e apoio para que as demais atividades previstas no projeto
educacional possam ocorrer de forma adequada e garantir o direito de proteção das crianças, ao
zelar-se por sua segurança.
A copa, o banheiro e o vestiário (Figura 14) são três espaços pequenos no CMEI Porto
Seguro e que garantem o bem-estar da equipe. A jornada das professoras de educação infantil105
é extensa e o reconhecimento do trabalho profissional que se realiza junto aos bebês, que
envolve esforço físico e disponibilidade corporal, implica no acolhimento dos sujeitos e na
garantia de espaços onde eles possam descansar, alimentar-se e preparar-se para viver a jornada
com as crianças.
Considerando-se que o trabalho educativo é eminentemente relacional, o bem-estar
dos funcionários implica diretamente nas relações que serão construídas com os bebês. Neste
sentido, outras duas dimensões do espaço apontadas por Zabalza (1998) também atuam
diretamente: a estética – espaços acolhedores, belos e proporcionais – e a ambiental – frio, calor,
ruído, luminosidade.
Figura 14 – Copa
_______________
105
Em Curitiba, a carreira de professora da educação infantil é estabelecida por um concurso de 40h semanais.
126
Apesar deste espaço não estar inicialmente previsto no projeto da instituição, a atenção
à organização do projeto educativo implicou na reconfiguração desta antiga sala a fim de
promover o bem-estar da equipe e garantir que exista um local onde os adultos possam
permanecer em seus momentos de intervalo. Além disso, possibilitou a organização de um
espaço de estudo e trabalho durante a hora permanência106. O uso criativo dos colchonetes e da
sala sobressalente também comunicam sobre o desejo por parte da equipe profissional de
espaços onde os adultos sintam-se bem, rodeados por outros elementos estéticos, como vasos
de plantas, com materiais responsivos e em tamanho adequado.
Este espaço também era ocupado pela pedagoga em suas manhãs de trabalho, sendo
deste modo utilizado para demandas diversas decorrentes do trabalho pedagógico e do processo
de formação continuada da equipe docente. A diretora, por sua vez, tinha uma mesa na sala da
secretaria, dividindo este espaço com o secretário.
A profissionalização da docência no âmbito da educação infantil implica no
reconhecimento das demais tarefas envolvidas no projeto educacional e que não se realizam
diretamente com as crianças. A estrutura da instituição precisa possibilitar e comunicar que se
dá relevância a essas tarefas do trabalho docente, ou seja, processos continuados de formação,
planejamento e avaliação. Os momentos de diálogo e confrontos possibilitados pelo uso
compartilhado de uma sala de estudos, ganham notoriedade diante da existência deste espaço.
_______________
106
Durante o primeiro semestre de 2019, o quadro de professoras permitiu que a permanência ocorresse de forma
adequada, garantindo que semanalmente as professoras dispusessem de um dia de trabalho sem a presença das
crianças.
127
A existência de um espaço dedicado ao trabalho coletivo, assim como a área de entrada, é uma
declaração dos valores e da especificidade do trabalho educativo na educação infantil.
As professoras também têm acesso ao almoxarifado, onde são guardados os materiais
consumíveis como papeis, lápis e tinta; à sala de materiais (Figura 16) onde ficam guardados
alguns colchonetes sobressalentes, um computador e uma televisão antiga que compõe parte
dos bens do CMEI e da qual eles não podem se desfazer; e à sala multiuso, onde ficam
organizados os brinquedos disponíveis e, portanto, na qual elas apenas circulam para buscar
outros materiais, permanecendo ali somente quando na companhia das crianças.
Observa-se na sala multiuso que algumas caixas organizadoras de brinquedos foram
etiquetadas com o nome do material e com sugestões de contextos diferentes que podem ser
construídos e elaborados pelas professoras para que as crianças brinquem e explorem. A mobília
deste espaço, como já ressaltado previamente, é toda em tamanho infantil, apesar de ser também
utilizado por professoras e famílias em reuniões e encontros.
tamanhos específicos para garantir a boa postura do adulto no momento em que alimentam as
crianças, uma cadeira com apoio adequado para a coluna, e para quando estão acompanhando
suas brincadeiras, uma cadeira com rodinhas. Além disso, preveem a compra de poltronas onde
os bebês possam ser alimentados e escadas para acesso aos trocadores, as quais favorecem o
exercício da autonomia por parte dos bebês e asseguram que as professoras não ergam muito
peso.
Nos documentos nacionais que regulam a oferta da Educação Infantil é possível notar
que não há uma descrição minuciosa de móveis para a creche ou pré-escola e não é feita menção
às questões ergonômicas relacionadas ao trabalho docente. A Associação Brasileira de Normas
e Técnicas (ABNT) tem uma norma que regula a produção de cadeiras escolares, determinando
as suas dimensões de acordo com o público (NBR 14006/ 2008). Do mesmo modo, possui uma
normativa que orienta a dimensão de carteiras, incluindo nesse quadro as crianças de 0 a 6 anos.
A prescrição do tamanho adequado de carteiras para bebês de um ano revela uma discrepância
entre a imagem de criança comunicada por meio das orientações legais para a Educação Infantil
e as normas de móveis escolares, produzidas a partir de referentes que não dialogam com a
imagem de infância defendida nos documentos nacionais.
No documento “Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos
Fundamentais das Crianças” (MEC, 2009a), menciona-se a necessidade de um espaço de
privacidade, estudo e encontro para os profissionais de educação. Do mesmo modo, no
documento de avaliação “Indicadores para a qualidade na Educação Infantil” (MEC, 2009b) há
um indicador que faz referência à existência desse espaço e a necessidade de que ele seja
ambientado com mobiliário adequado.
Neste mesmo documento, é feita referência à necessidade de banheiros exclusivos e a
altura adequada da bancada destinada para a troca de fraldas. Contudo, seguem ausentes
orientações específicas quanto ao mobiliário de outros espaços da creche, como as salas de
referência e a sala multiuso, ou a questões ergonômicas e de saúde do trabalho. A única menção
129
DEMANDAS
ESPAÇOS
multifuncional e a área externa. Nota-se que os murais construídos para a exposição das
produções das crianças e documentações pedagógicas estão situados no campo de visão das
crianças, possibilitando as interações e brincadeiras das crianças a partir dos materiais expostos.
A partir do corredor da direita também é possível acessar os banheiros do Maternal I e
II, ambos contando com três sanitários e pias infantis, assim como com espelhos, os quais
encontram-se danificados devido à ação do tempo. Em um dos banheiros também há um
chuveiro, contudo existe estrutura hidráulica e de energia para a instalação de outros três (Figura
19). Nas paredes do banheiro, imagens diversas provenientes da internet mostram crianças
lavando às mãos ou limpando o nariz. Algumas destas imagens mostram crianças negras,
contudo a maioria é de crianças brancas.
Em cada uma das salas de referência era possível encontrar mobílias semelhantes: um
ou dois armários fechados, um tapete emborrachado, uma estante alta, mesas e cadeiras baixas
– ainda que altas para os bebês, que sempre balançavam os pés – e colmeias (mochileiros) para
organizar os pertences individuais das crianças. Além disso, cada uma contava com um
ventilador, um filtro de água, uma prateleira pequena alta onde as professoras mantinham o
álcool em gel, uma lixeira e um suporte para papel higiênico ou papel toalha (apoiado sobre o
balcão do mochileiro ou fixo na parede). Estas mobílias tinham o mesmo padrão da observada
nos espaços ocupados somente, ou prioritariamente, pelos adultos: móveis com estruturas de
metal, de fórmica bege ou madeira branca. Somente em uma das salas do maternal, assim como
na sala multiuso, havia um conjunto de mesa e cadeiras de madeira coloridas com pintura e
aspecto desgastado. A diretora relatou que no início de sua gestão (2017) ela solicitou via ofício
novas mesas e cadeiras para as salas de referência, as quais foram entregues pela prefeitura,
motivo pelo qual elas aparentam ser novas e não têm marcas de desgaste devido ao uso.
A sala do berçário era a única sala de referência com acesso direto ao espaço externo,
uma porta com “portãozinho” permitia o acesso ao solário (Figura 20) e, a partir dele, ao quintal
anterior da instituição109. Outro portãozinho localizado na extremidade direita também dava
acesso à antiga horta, que não estava sendo utilizada, e a um corredor de serviço que levava ao
quintal posterior. O solário tem um muro alto que impede o acesso das crianças e reduz o seu
campo de visão, uma das paredes é recoberta por azulejos para pintura e diariamente as
professoras colocavam um equipamento com escorregador plástico neste espaço. Os bebês e
suas professoras eram os únicos com acesso a esse espaço e que era vivenciado de modos
diferentes.
_______________
109
No final de 2019, os espaços estavam sendo reconfigurados para acolher as novas turmas e foram feitas algumas
mudanças de salas. Devido a organização das turmas, elas optaram por mudar as turmas de sala e ambientar
novas salas como biblioteca e sala multiuso. A presença de uma porta para acesso ao fraldário, por exemplo,
motivou a troca do Maternal I para o cômodo onde encontrava-se o espaço de convivência e estudo das
professoras.
133
Figura 20 – Solário
Figura 21 – Fraldário
da direita, também indicam um uso criativo dos espaços, na valorização do desnível do terreno
e do gramado onde as crianças brincam110.
O uso dos espaços e do mobiliário realizado no CMEI Porto Seguro torna visível a
intencionalidade pedagógica e a relação entre a funcionalidade dos espaços e o
desenvolvimento do projeto educativo. A equipe pedagógica da instituição buscou construir
espaços onde as crianças pudessem se encontrar, declarou a imagem da criança potente ao
introduzir os materiais não-estruturados e criou uma sala de estudos para as professoras. Ou
seja, a reutilização criativa do espaço do refeitório e das salas vacantes comunica sobre o desejo
de construir uma escola onde os sujeitos possam se encontrar e sentir-se bem.
Ao observar-se o esforço da equipe em ressignificar os ambientes da instituição
também é possível notar que a estrutura física do CMEI Porto Seguro, datada de 1989, não
abrangia alguns dos espaços a que hoje se faz referência nos novos edifícios construídos a fim
de acolher a educação infantil e comunica sobre a imagem de criança e educação em vigor no
período. Ou seja, há uma intencionalidade pedagógica que se expressa a priori por meio do
projeto arquitetônico, da escolha do terreno e da área verde disponível, da localização no
território e do acervo inicial de móveis, brinquedos e materiais. Ela se altera a partir da ação da
equipe pedagógica, contudo, há limites para essa renovação dos espaços e é necessário que
direção, pedagoga e professoras enfrentem cotidianamente as constrições dadas pelo projeto
arquitetônico.
_______________
110
Outros materiais e brinquedos são trazidos para este espaço quando as crianças passam a ocupá-lo, como os
materiais de manipulação da areia, pás, formas e baldes, ou materiais de convite ao movimento, como bolas e
bambolês.
137
_______________
111
Em 2006, publica-se o documento nacional Parâmetros de Infraestrutura para Instituições de Educação Infantil
(MEC/SEB, 2006) que, dentre outras recomendações, sugere que haja variedade de materiais na construção a
fim de transformar o próprio edifício em um elemento possível para as investigações e explorações das crianças.
112
O cobogó é um elemento característico da arquitetura brasileira definido como:
“Peça de construção, feita geralmente de cimento, argila, gesso ou vidro, como um tijolo parcialmente
vazado, destinada a permitir iluminação parcial e arejamento”. (COBOGÓ, 2020).
113
O Programa Fundo Rotativo é a estratégia da prefeitura de Curitiba para realizar a descentralização dos recursos
para todas as unidades educacionais da rede municipal. Mais informações e um manual descritivo sobre o
funcionamento do programa podem ser acessadas no site da Prefeitura:
https://educacao.curitiba.pr.gov.br/conteudo/manual-do-programa-fundo-rotativo/7479.
139
recebido do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE)114. Além dessas duas fontes, o CMEI
criou um caixinha da instituição, por meio da qual recebe doações da comunidade e arrecada
dinheiro com rifas realizadas semestralmente por meio da Associação de Pais, Professores e
Funcionários (APPF).
A diretora afirma que a maior parte dos gastos da instituição ocorrem com as despesas
de manutenção, sendo uma demanda contínua devido à ação do tempo sobre o edifício:
É... hoje a prioridade realmente da unidade é a manutenção. Tudo o que a gente puder
direcionar nesse sentido. Infelizmente o valor que a gente recebe do fundo rotativo
em serviço ele é pequeno, enfim é pequeno porque é... proporcionado por criança e é
uma unidade que precisa de manutenção. A gente acaba na verdade apagando
incêndio, sabe?! A gente vai fazendo essa manutenção. Ah, aconteceu isso, daí
resolve. Dificilmente a gente consegue com o valor de manutenção que vem do fundo
rotativo planejar, como a gente fez com o PDDE a troca de uma porta. (Entrevista
Diretora, Dezembro de 2019).
Ela relata que no ano de 2019 foi necessário trocar uma porta e realizar uma compra
de ventilador, enquanto nos anos de 2018 e 2017, elas investiram na troca do forro de duas salas
de referência. Ambos os serviços foram possíveis com o dinheiro do PDDE que, diferentemente
do Fundo Rotativo, no qual o valor remanescente deve ser sempre devolvido à Prefeitura no
final do ano, permite que o capital recebido acumule de um ano ao outro, o que possibilita o
planejamento da verba para custear reformas mais caras. O forro das outras três salas, por sua
vez, foi trocado com o dinheiro proveniente de uma emenda parlamentar. No ano de 2019, a
expectativa era que fosse possível renovar os muros exteriores de palito através de emenda
parlamentar, contudo o valor excedeu e foi feita uma requisição via ofício para a Prefeitura. Os
recursos do PDDE também são continuamente necessários para a manutenção dos canos dos
filtros de água, pois em dias de muito calor eles racham e alagam as salas da instituição.
Esse processo de descentralização dos recursos permite que a gestão de cada
instituição possa adquirir bens e desenvolver projetos educativos de acordo com as necessidades
específicas de cada local como, por exemplo, a idade das crianças que frequentam as
instituições, projetos de pesquisa realizado pelos grupos e elementos culturais do território.
_______________
114
“Criado em 1995, o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) tem por finalidade prestar assistência
financeira para as escolas, em caráter suplementar, a fim de contribuir para manutenção e melhoria da
infraestrutura física e pedagógica.” (FNDE, Acesso em 9/03/2020). Mais informações podem ser acessadas no
site: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/pdde/sobre-o-plano-ou-programa/sobre-o-pdde. Para uma
leitura crítica sobre o tema, também é possível acessar o artigo de Theresa Adriao e Vera Peroni: Implicações
do Programa Dinheiro Direto na Escola para a gestão da escola pública. Educ. Soc. [online]. 2007, vol.28,
n.98, pp.253-267. ISSN 0101-7330.
140
Contudo, produz um isolamento das instituições na tarefa de manter a estrutura física e atualizar
os materiais e mobiliários, além de transferir a responsabilidade para ela, pois não há uma
avaliação por parte da rede municipal acerca dos recursos necessários para cada instituição
manter a estrutura e oferecer um padrão mínimo e igualitário. Com os recursos aos quais a
instituição tem acesso, ficam pendentes reformas do pátio situado na área externa, pinturas,
instalação de chuveiros e compra de mobílias adequadas para o tamanho dos bebês. Quem dera,
realizar reformas grandes na estrutura da instituição.
Também é possível observar que os recursos necessários para possibilitar a
manutenção da estrutura e a compra de material didático variam de acordo com a história de
cada instituição e suas características estruturais, o que não é considerado no processo de
distribuição dos recursos; que somente considera a quantidade de crianças atendidas e a
matrícula em creche ou pré-escola. Instituições novas, por exemplo, não requerem recursos
constantes para manutenção, assim como já são entregues com mobiliários e materiais que
dialogam com o projeto educativo em vigor na rede. Do mesmo modo, instituições mais antigas,
com maior área construída ou, ainda, com uma ampla área verde terão custos distintos de
serviços e manutenção.
A autonomia de cada instituição para a aquisição de materiais agiliza o processo de
compra e respeita os processos vividos por cada escola, contudo isenta a rede municipal de
acompanhar a qualidade do material oferecido e dificulta a luta por igualdade entre os centros
municipais de educação infantil. Ou seja, a distribuição dos recursos de acordo com a
quantidade de crianças é um critério importante para a distribuição dos recursos, contudo
invisibiliza as despesas das instituições com a manutenção da estrutura física e serviços.
O que se observa é que apesar do reconhecimento do espaço como um elemento
estruturante das práticas educativas e da frequente menção de materiais e brinquedos como
elementos centrais na consolidação de projetos educativos para as crianças pequenas, há uma
ausência da ação da rede para o acompanhamento dessas questões. No embate entre autonomia
e acompanhamento direto da rede municipal, as instituições mais antigas, como o CMEI Porto
Seguro, encontram-se sozinhas no desafio de ressignificar o espaço a fim de oferecer uma
educação infantil que sustenta-se nos eixos de interações e brincadeiras, valoriza as culturas
infantis e promove a profissionalização da docência ao reconhecer-se o trabalho de
planejamento e avaliação realizado pelas professoras, além de buscar garantir o bem-estar de
crianças e adultos.
O segundo maior gasto do CMEI ocorre com a compra de materiais de limpeza – papel
higiênico, papel toalha, sabão em pó, detergentes, desinfetante, dentre outros. Segundo a
141
[00:18:18] ANA JULIA - Como foi esse processo de escolha dos materiais? (...)
[00:18:41] PAULA – Eles são só para o berçário.
[00:18:42] MARIANE – É que eles não podem ir para as outras turmas porque eles
levam para fora e todo esse processo.
[00:18:47] DAIANE – Agora, mais no segundo semestre, a gente começou a pegar os
brinquedos daquela última sala, para eles terem contato.
[00:18:53] PAULA - Que agora eles já estão um pouquinho maior né... Então daí a
gente pega outros brinquedos, mas aqueles ficam sempre ali. Até por conta do, do
jeito do brinquedo. É mais para bebê mesmo né... Aqueles brinquedinhos. É uma pena
que eles não funcionam, né?! Mas, é para a idade deles mesmo, né?! (...)
[00:19:46] PAULA - Mas tem brinquedo que faz muito tempo que tá ali no berçário.
[00:19:49] DAIANE - Eu lembro que tem uns brinquedos de encaixe da época que eu
trabalhava no berçário. (Grupo Focal com as professoras, Dezembro de 2019)
Durante a gestão da Luiza, ela também adquiriu alguns materiais novos não-
estruturados para a turma do berçário a fim de propor a prática do cesto dos tesouros116. É
incerto o momento no qual a compra dos materiais ocorreu, pois a diretora relata a aquisição
deles durante a reorganização do acervo, em 2017, enquanto as professoras afirmam que o cesto
foi adquirido em 2018. Contudo, é certo que esta prática passou a ser vivenciada a partir de
2018. Elas também relatam que durante 2019 o acervo se ampliou com materiais trazidos pelas
famílias, os quais, segundo as professoras, trouxeram uma marca afetiva para os objetos, pois
os bebês os reconheciam.
Na prefeitura de Curitiba, a aquisição de brinquedos e materiais deve ocorrer no CMEI
a partir de processos de licitação e para utilizar o recurso do PRF é preciso selecionar produtos
_______________
115
Paula e Mariana atuam no CMEI há sete anos e acompanharam o trabalho realizado por quatro equipes
diferentes de gestão durante esse período.
116
O cesto dos tesouros é uma prática criada por Elinor Goldshmied que consiste na oferta de materiais diversos
em um cesto amplo para bebês que se sentam independentemente, mas ainda não caminham. (GOLDSCHMIED;
JACKSON, 2006)
143
_______________
117
No site da Secretaria Municipal de Educação, na Aba Secretaria, item “Coordenadoria de Recursos Financeiros
Descentralizados” (https://educacao.curitiba.pr.gov.br/conteudo/coordenadoria-de-recursos-financeiros-
descentralizados-crfd/4834) é possível fazer o download da lista completa de itens ou acessar informações sobre
os fornecedores cadastrados no portal e-compras. No Manual do Programa do Fundo Rotativo, também há
indicação completa de itens que requerem a aprovação da SME.
118
As recomendações de livros de literatura para a educação infantil e de livros técnicos para estudos dos
profissionais pode ser acessada no site da Secretaria Municipal de educação, na Aba Secretaria, item
“Departamento de Educação Infantil – Indicação de livros”
(https://educacao.curitiba.pr.gov.br/conteudo/indicacao-de-livros/4735).
144
poderiam ser propostos e organizados pelas professoras e essas caixas estão em um espaço
comum e acessível para todas as professoras do CMEI. Os materiais transformam-se em um
bem compartilhado, responsabilidade de todas as professoras e, ao estarem reunidos em um
mesmo espaço, permitem que toda a equipe docente conheça o acervo.
Nota-se que apesar do berçário ter brinquedos próprios, as professoras podem buscar
materiais na sala multiuso e ocupar esse espaço com os bebês. A professora Paula também
ressaltou que a organização dos brinquedos na Sala Multiuso foi positiva para a organização da
sala de referência, pois quando as caixas eram separadas por turma não havia espaço suficiente
para organizá-las e a sala ficava apertada com o grupo de crianças e seus pertences pessoais,
professoras, mobiliário e caixas organizadoras.
A segunda estratégia é a aquisição dos materiais não-estruturados e a sua apresentação
em um local de destaque na instituição. O suporte de madeira de um antigo buffet de
alimentação transformou-se em uma prateleira na qual os elementos estão organizados e
classificados, possibilitando o fácil acesso de professoras e crianças. A diretora também relata
que buscou diversificar a matéria desses objetos, contudo não conseguiu fugir da supremacia
do plástico.
Ao final de 2019, o acervo do CMEI Porto Seguro era composto por 13.011 itens119 e
180 tipos de materialidades. O maior impacto da ampliação do acervo em 2017 descrita acima
apresenta-se não em relação à quantidade de materialidades, mas quanto à variedade, como
pode ser observado na tabela abaixo (Tabela 1).
_______________
119
Neste total, não se incluem os livros e os materiais de almoxarifado, pois não foi possível aceder ao número
exato de livros da instituição, pois eles circulavam pelas casas das crianças e ao encerrarem-se as atividades,
foram guardados em um local ao qual não tive acesso. Os materiais de almoxarifado, por sua vez, variam
continuamente devido às compras de materiais e uso pelas turmas. Um compilado das imagens e materialidades
do CMEI pode ser acessado virtualmente. Este é um convite analítico para promover um “mergulho” no acervo
material da instituição. Na sequência deste capítulo, apresentam-se outras explicações sobre esse material virtual.
145
Os cestos dos tesouros, por exemplo, continham 150 itens, sendo 49 tipos diferentes de
materialidades. Na estante de materiais não-estruturados, estavam disponíveis 40 tipos
diferentes, sendo 1266 itens. Com a ampliação do acervo a partir do investimento em materiais
não-estruturados e elementos naturais, ampliou-se o acesso das crianças ao patrimônio material
e cultural da humanidade. Isso significa que elas passaram a ter acesso a um conjunto maior de
materiais para as suas brincadeiras e interações no espaço da creche devido a ação local e aos
recursos provenientes de doações.
Ao nos determos para observar os processos de aquisição dos materiais, torna-se
visível que os recursos provenientes do PRF e do PDDE não são suficientes, no CMEI Porto
Seguro, para permitir a renovação e ampliação do acervo devido às demandas de manutenção
do edifício escolar. O recurso ao qual tem acesso para promover a ampliação do acervo é o
angariado pela APPF. Contudo, a manutenção e desenvolvimento do ensino compete ao
município e inclui a aquisição de material didático-escolar, tal obrigação decorre do inciso VIII,
do artigo 7º da LDB (Lei 9394/96). Sobre esta discussão, Silva (2015) destaca que:
_______________
122
Os critérios utilizados nessa classificação e uma descrição dos itens que compõe cada categoria estão
apresentados no capítulo 3.
149
3%
2% 4%
Outros 4%
Borracha
Tecido
67%
Madeira
Plástico
e, por meio do brinquedo, ele é convidado a desenvolver as habilidades que futuramente lhe
permitirão desenvolver-se cognitivamente e que precisam ser estimuladas. Ou seja, precisam
ocorrer a partir de um agente externo e não como habilidades que podem se desenvolver a partir
da ação autônoma do bebê.
A indústria do brinquedo e educacional, da mesma forma como traz consigo a imagem
de uma infância global, parece normatizar os sentidos e os sentimentos. A separação entre corpo
e pensamento, com a qual a modernidade opera, se faz presente nos brinquedos e objetos
produzidos para as crianças. De modo conectado, o foco no desenvolvimento das habilidades
cognitivas – característica dos jogos de construção, lógica e memória largamente presentes no
acervo – implica em um apagamento dos sentidos e do corpo.
A tradição pedagógica de valorizar o pensamento é fruto dos falsos binômios produzidos
pelo pensamento ocidental e de um persistente costume de avaliar as crianças e suas
potencialidades somente a partir da perspectiva tradicional da psicologia do desenvolvimento e
de escalas que normatizam e universalizam o desenvolvimento humano. Na tabela abaixo
(Tabela 3) é possível observar a grande quantidade de materialidades produzidas tendo em vista
o desenvolvimento cognitivo (brinquedos para bebês, construção, jogos e letramento).
_______________
123
Destaca-se que quatro categorias não foram incluídas a fim de facilitar sua leitura e apresentar dados coesos.
São elas: materiais de práticas pedagógicas (chamada, roda...), visto que são somente 22 itens, o que representa
menos de 1% do total de materialidades; instrumentos musicais (painéis sonoros, flautas e instrumentos
elaborados no CMEI), que também compreendem menos de 1% do total; materiais grafo-plásticos, visto que
não foram contabilizados os materiais de almoxarifado; e materiais de leitura e contação de histórias (composto
por pape, tecido e plástico), pois não foi realizada a listagem de todos os livros da instituição.
124
Os critérios de classificação das materialidades segundo a intencionalidade pedagógica estão disponíveis no
capítulo metodológico, no Quadro 9.
154
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Essas são as qualidades materiais da borracha que promovem o seu uso em mais de 70%
dos brinquedos para bebês disponíveis no CMEI. Ou seja, outras características desse material,
como o fato de que ele é maleável, permitindo que os brinquedos sejam pressionados, ou sua
versatilidade, o que permite que seja utilizado para a criação de materiais de tamanhos e formas
diversas não são os critérios mais importantes na produção do brinquedo. Aparte dos brinquedos
para bebês, a borracha só está presente na instituição em bolas e tapetes emborrachados.
Os materiais derivados de fibras têxteis, artificiais ou naturais, estão presentes nos
brinquedos para bebês, materiais de jogo simbólico (fantasias e comidas de casinha), materiais
de movimento (cordas e elásticos) e nos materiais não-estruturados (retalhos de tecidos). Ao
olhar-se atentamente para eles, observa-se que os tecidos naturais estão pouco presentes, sendo
encontrados principalmente em itens de vestuário reutilizados como fantasias e nas bonecas de
tecido cru confeccionadas pela turma do berçário. Com mais frequência, encontram-se
brinquedos de feltro ou fantasias de tecidos sintéticos.
A tatibilidade dos tecidos encontra-se reduzida a superfícies lisas e em que dificilmente
se observa a trama. Veludos, lãs, sedas, algodão e fibras naturais que oferecem outro tipo de
experiência sensorial são raridades. A riqueza dos tecidos aparece na sua maleabilidade,
elasticidade e diversidade de cores e formatos, mas as crianças têm raras oportunidades de
descobrir a variação de textura.
155
_______________
125
A pesquisa de Gandhy Piorski (2016) constituiu em um estudo etnográfico em que ocorreu o acompanhamento
de crianças em comunidades litorâneas, serranas e sertanejas do território cearense durante o período de dois
anos. A especificidade do contexto pesquisado implicou no encontro com esses tipos diferentes de brinquedos,
profundamente vinculados à cultura local e às experiências materiais destas populações.
156
por elas ao processo e não ao produto. Do mesmo modo, os brinquedos criados pelos bebês têm
valores simbólicos muitas vezes inacessíveis aos adultos porque são produzidos no decorrer da
brincadeira e porque ela acontece a partir das regras criadas por eles e geralmente
incompreensíveis para os adultos126.
Além disso, ao verificar-se a procedência dos materiais que compõem o espaço da
creche127, observa-se que 70,57% das materialidades ofertadas para as crianças passaram por
um amplo processo industrial de produção antes de chegar até a escola (Tabela 4). Dentre o
universo, 9182 são produtos industriais destinados ao uso infantil ou educativo, 3074 materiais
são de reuso, 462 consistem em elementos da natureza comprados ou coletados, 115 foram
produzidos dentro da instituição, 177 consistem em materiais de produção local e um jogo foi
produzido pela secretaria de educação de Curitiba e entregue ao CMEI.
_______________
126
No decorrer da pesquisa, foi possível registrar brinquedos criados pelos bebês, eles são apresentados no decorrer
deste capítulo ao depararmo-nos com os encontros dos bebês com as coisas.
127
Os critérios para a categorização das materialidades segundo o seu processo de produção e/ou origem
apresentam-se no Quadro 10, disponível no capítulo metodológico.
157
das desigualdades. Manuel Sarmento (2003) ao falar sobre os produtos culturais para a infância
destaca que:
Ao olhar para o conjunto de materiais elaborados no CMEI, observa-se que 51% dele
(59 itens) foi produzido durante o ano de 2019 devido à participação de duas professoras no
projeto “Músico da Família” da UFPR128 e que 43 itens eram de uso exclusivo do berçário. A
observação do acervo também indica que os materiais produzidos no CMEI têm menor
durabilidade e são muitas vezes produzidos para demandas específicas do grupo, como as coisas
do berçário, e, portanto, muitas vezes não se integram ao conjunto após a finalização do ano.
As bonecas de pano artesanalmente feitas pelas famílias e professoras no período de
familiarização dos bebês, por exemplo, não foram localizadas na instituição no final do ano.
Dentre os materiais criados pelas professoras, estão também as bonecas de tecido natural, o
algodão cru, e duas abayomis encontradas na sala multiuso.
A separação dos materiais entre o uso exclusivo do berçário e uso geral também se altera
com o passar do tempo. As professoras do berçário relatam que criaram no início do ano
mamadeiras para os bebês brincarem em contextos de maternagem129. Essas mamadeiras foram
recuperadas da empresa que presta o serviço de alimentação nos CMEIs de Curitiba e que é
orientada a descartar os utensílios ao final de cada ano. Com as mamadeiras em mãos, elas as
preencheram parcialmente com bolinhas de isopor, lacraram a parte superior e inventaram
mamadeiras que davam a impressão de que o “leite” se movia dentro do objeto. Inicialmente
apresentadas aos bebês, elas foram emprestadas para as outras professoras e passaram a ser
guardadas na sala Multiuso antes do final do primeiro semestre de 2019.
A pouca variedade dos materiais de produção local também pode ser destacada, pois
nota-se que dentre os 177 itens, 145 são comidas de brinquedo costuradas em feltro. Além delas,
há cestas de vime, um carrinho de madeira, um cenário de papelão para contar a história dos
três porquinhos, dedoches, fantoches e móveis de casinha de madeira. É importante destacar
que dentre os itens produzidos industrialmente é possível que alguns dos jogos de encaixe de
madeira, assim como blocos de construção de madeira, sejam provenientes de indústrias locais
com produção reduzida e menor distribuição, contudo não há indicativos de trabalho artesanal
ou referências de imagem ou de matéria que remetam à cultura brasileira ou a especificidade
_______________
128
O projeto “Músico da família ao vivo: um contexto de educação musical” é um projeto existente desde 2011 e
coordenado pelo professor Guilherme Romanelli – UFPR, no qual professoras de CMEIs recebem formação sobre
música na educação infantil e acolhem os músicos da comunidade.
129
Este era um termo mobilizado pelas professoras da turma do berçário no cotidiano do grupo e que foi utilizado
por elas para referirem-se às brincadeiras dos bebês nas quais eles cuidavam de bonecas ou de bichos de pelúcia,
como dar de comer ou ninar. A fim de produzir um engajamento crítico com o termo, destacamos que
reconhecemos que ele parece estar diretamente vinculado ao cuidado dos bebês pelas mulheres e que está sendo
utilizado neste contexto pois estamos referindo-nos ao discurso das professoras.
159
do território. Por este motivo, foram classificados como produtos da indústria, dada sua
possibilidade de produção em larga escala.
Os elementos provenientes da natureza podem ser encontrados tanto no cesto dos
tesouros dos bebês quanto em alguns potes e um cesto com elementos naturais disponibilizado
na sala Multiuso. É importante também esmiuçar os itens que compõem a categoria de reuso.
Esses materiais são aqueles utilizados na instituição para um propósito distinto do qual foram
originalmente concebidos. Ou seja, reuso não é sinônimo de doação. Ainda que alguns possam
ser provenientes de doações da comunidade130 ou das professoras, eles não se restringem a elas,
tendo sido adquiridos em centros de reciclagem ou lojas. Os itens disponíveis no cesto dos
tesouros, por exemplo, foram em grande parte adquiridos em uma loja: descansos de panela,
xícaras, molduras, copos medidores, esponjas, peneiras, dentre outros. Muitos materiais desta
categoria foram produzidos industrialmente, enquanto outros são resíduos industriais.
A reutilização de itens produzidos inicialmente para o uso dos adultos remete à
transformação deles em brinquedos por meio da ação da criança e à atribuição de um status de
“objetos pertencentes ao universo infantil” e de “materiais pedagógicos” pelas professoras por
meio do processo de seleção e organização dos materiais. Esta operação de coletar e reutilizar
estes materiais produz, desse modo, um novo status para o objeto.
Gilles Brougère (2017), ao estudar os bens infantis, aponta a diversidade de modalidades
por meio das quais um objeto é destinado às crianças e destaca que “o consumo pode ser
marcado por uma liberdade de usos que não respeitam aquilo que propõe o objeto”131 (2017,
p.74). Ele faz essa observação ao mencionar o uso por adultos de objetos da Hello Kitty, mas
aqui destaca-se o sentido inverso. Objetos inicialmente produzidos tendo em vista o adulto
enquanto destinatário, são ressignificados por meio do consumo e passam a ser destinados às
crianças. Ou seja, o reuso de materiais na instituição remete a um trabalho simbólico por meio
do qual se alteram as possibilidades objetivas dos materiais, gerando futuros significados
possíveis (WILLIS, 2000).
É interessante notar que parte dos objetos de reuso eram anteriormente utilizados na
própria instituição. Esse é o caso dos copos, potes, pratos e mamadeiras que seriam descartados
pela empresa de alimentação ao final do ano letivo e que foram entregues às professoras. Ou
_______________
130
Do mesmo modo, há brinquedos e materiais que são doados ao CMEI e que mantêm o seu propósito inicial no
processo de classificação e organização do espaço promovido pelas professoras. Esse é o caso, por exemplo, dos
brinquedos eletrônicos de bebês, móbiles, miniaturas comerciais, bonecas, carrinhos e até mesmo mobiliário que
possa vir a ser doado à instituição.
131
No original: “La consummation peut être marquee par une liberté d’usages qui ne respecte pas ce qui propose
l’objet.” (BROUGÈRE, 2017, p.74).
160
seja, esses objetos foram utilizados por adultos e crianças no momento de alimentação e
nenhum outro tipo de uso era aceitável ou permitido por parte de adultos ou crianças enquanto
eles mantiveram esse valor simbólico. Contudo, ao serem ressignificados e iniciarem um novo
ciclo de vida como “brinquedos” e materiais pedagógicos, eles foram guardados em uma caixa
organizadora e passaram a ser apresentados às crianças em contextos de jogo simbólico, como
materiais para construção de torres, acompanhados de tecidos e caixas de papelão ou em
espaços em que estavam disponíveis para o acesso das crianças.
Um processo análogo ocorre com itens de escritório/ tecnologia que são apresentados
às crianças em contextos de jogo simbólico. Teclados, mouses, telefones celulares, telefones e
câmeras fotográficas passam a ser compreendidas pelos adultos como bens infantis. E devido a
esse novo status, as crianças podem aceder às materialidades e explorar usos diferentes dos
convencionais. Ou seja, alteram-se as suas possibilidades objetivas. Além disso, esse processo
de reuso permite que um novo ciclo de vida do objeto se inicie ao transformarem-se em bens
das crianças.
Além destas materialidades de reuso, há os materiais não-estruturados provenientes de
resíduos da indústria ou que seriam descartados, como os apresentados na figura abaixo (Figura
26). Canos de pvc, prismas, rolos de papelão e carretéis não são objetos frequentemente
utilizados no cotidiano e apresentam-se às crianças como coisas inusitadas quanto a sua função.
Alguns dos materiais eram desconhecidos até mesmo para os adultos, que não sabiam indicar
uma função prévia ou nomeá-los. Durante a entrevista com as professoras, por exemplo, elas
demoraram para nomear a ficha em que se apresentava os carretéis dispostos no refeitório.
Essa diferença de valor simbólico em relação aos outros itens da categoria de reuso
produz uma diferenciação dos usos realizados pelos adultos. Ou seja, enquanto itens de salão
de beleza, eletrônicos ou saúde eram apresentados às crianças em situações que convocavam
uma estrutura narrativa, como brincar de escritório ou de médico/médica; os materiais não-
estruturados eram apresentados em contextos sem uma estrutura narrativa unívoca. Eram
situações em que as crianças podiam escolher o que fazer com o material e atribuir diferentes
valores simbólicos a depender da brincadeira iniciada.
Antes da gestão da Luiza, os únicos materiais não-estruturados que compunham o
acervo da instituição consistiam em sucatas, como caixas de papelão, garrafas PET, caixas de
ovos, plástico-bolha e tampinhas de garrafa. É certo que é possível elaborar materiais
interessantes com base nesses suportes, como as garrafas sensoriais criadas pelas professoras,
e que caixas de papelão são convites para diversos tipos de brincadeiras. Contudo, a entrada
dessas novas materialidades e o valor que lhes foi atribuído provoca outras reflexões e uma
revisão do sentido tradicional do “material pedagógico”.
É importante destacar que é a ação pedagógica de professoras e gestoras que provoca a
entrada de materiais que não foram produzidos para a escola ou enquanto brinquedos para as
crianças. Ou seja, são materiais que passam a fazer parte do espaço da creche devido as ações
dos adultos que trabalham na escola. A fim de consolidar o projeto educativo elas apropriam-
se dos artefatos culturais para construir o espaço, para criar um lugar para as crianças e rever a
produção cultural para elas. O novo status desses materiais enquanto bens infantis e materiais
pedagógicos, como mencionado previamente, evidencia o entrelaçamento do processo de
produção dos objetos com as ações de consumo. A criatividade simbólica (WILLIS, 2000) dos
sujeitos evidencia o modo como os processos de produção de sentido estão interconectados com
uma rede mais ampla de relações.
Ainda que a maior parte das coisas presentes na creche traga as marcas da produção em
larga escala, o que implica na supremacia do plástico e na produção de uma imagem de infância
normatizada, globalizada e que se pressupõe universal, as professoras reconstroem o lugar para
as crianças ao promovem a entrada de materialidades que podem promover a diferença e a
complexificação das experiências delas na creche. Ou seja, a construção do espaço da creche é
um processo dinâmico no qual produções de sentido em redes locais e globais estão
combinadas, sendo impossível compreendê-las de forma indissociada.
Se estudados a partir de uma lógica binária e enquanto pontos opostos em uma escala,
a ideia de local e global invisibilizam o dinamismo do espaço. Contudo, se se reconhece “(...)
162
‘o global no local’ e o ‘local no global’ abre-se espaço para engajar-se com assuntos estruturais,
indiscriminados, e seus resultados nas vidas das crianças.”132 (HANSON et al., 2018, p. 273,
tradução nossa). Sarah Holloway e Gill Valentine (2007), por sua vez, também salientam a
relevância do rompimento do binarismo entre essas terminologias, apontando que “(...) nossa
compreensão de processos ‘globais’ se aprofunda com o estudo dos mundos ‘locais’ das
crianças, e a nossa apreciação dos mundos ‘locais’ das crianças é matizada por meio da análise
da importância das influências ‘globais’.”133 (HOLLOWAY; VALENTINE, 2007, p. 769,
tradução nossa). Neste sentido, essas terminologias operam como campos relacionais, instáveis
e difundidos no dia-a-dia e possibilitam a criação de chaves teóricas que operam por meio de
novas terminologias. O termo glocal (CLIFFORD et al., 2003; GREGORY et al., 2009)nos
ajuda a compreender a forma como representações de educação e infância que circulam em
redes globais adquirem novos contornos ao serem apropriadas e, portanto, ressignificadas pelos
atores sociais. No âmbito local, elas se transformam ao entrarem em confronto com processos
situados no contexto de vida dos sujeitos.
A imagem de bebê comunicada por miniaturas emborrachadas com apitos, mordedores,
móbiles e brinquedos interativos é distinta da imagem de bebê produzida por um cesto com
materiais inusitados ou pelos elementos naturais. Mesmo que processos globalizados de
produção do brinquedo encontrem sustentação na noção da falta, a ação pedagógica pode
produzir outro lugar para os bebês. Os atores agem condicionados pela estrutura, mas produzem
o cotidiano, dão novos contornos a processos globais e, com isso, produzem a categoria
intrageracional “bebês” a partir do substrato material, desta ancoragem em um emaranhado
material-semiótico. Ou seja:
(…) os espaços de socialização dos bebês não são lugares fechados, mas espaços
abertos e conectados, dissecados e conectados por processos sociais, culturais,
econômicos e políticos em uma variedade de escalas interconectadas, do local ao
global.134 (HOLT, 2013, p.10)
_______________
132
No original: “(…) we recognize the ‘global in the local’ and the ‘local in the global’ opens space for engaging
with broadbrush, structural issues and their outcomes for children.” (HANSON et al., 2018, p.273).
133
No original: “(…) our understanding of ‘global’ processes is deepened by an examination of children’s ‘local’
worlds, and our appreciation of children’s local worlds is further nuanced through an analysis of the importance
of ‘global’influences.”
134
No original: “(…)the early socialisation sites of infants are not bounded places but open and connected spaces,
dissected by and connected to social, cultural, economic, and political processes at a variety of interconnected
scales, from the local to the global.” (HOLT, 2013, p. 10)
163
(...) uma estreita ligação entre a vivência da infância e o local onde ela será vivida,
pois cada grupo social não só elabora dimensões culturais que tornam possível a
emergência de uma subjetividade infantil relativa ao lugar, mas também designa
existência de locais no espaço físico que materializa essa condição. (LOPES;
VASCONCELLOS, 2006, p.112)
Gobbato (2011) também faz menção à exclusão dos bebês e ao potencial de transformação dos
espaços a partir da acolhida da simultaneidade e das múltiplas linguagens mobilizadas pelos
bebês.
Contudo, esta construção social que implica na superproteção e consequente exclusão
dos bebês de outros processos sociais, assim como a perspectiva de estímulo a fim de promover
o desenvolvimento cognitivo e motor – as quais orientam a elaboração de brinquedos interativo-
sensoriais e de andadores ou apoios para sentar – é por vezes confrontada pelas práticas
simbólico-materiais vividas no CMEI.
As professoras relatam que trouxeram mais bonecas, carrinhos e produziram
artesanalmente uma pista de carrinhos para a ambientação da sala no início do ano. Assim como
indicaram que os brinquedos que gostariam que fossem permanentes na sala eram os brinquedos
de casinha, fogão, panelas e pratos. Olhar para os bebês como sujeitos que criam brincadeiras
de jogo simbólico representa um confronto com a imagem construída socialmente. Nos
produtos à venda para bebês, panelas e pratos são brinquedos com etiquetas que os indicam
somente para crianças maiores de dois anos.
A presença dos cestos dos tesouros e os materiais não-estruturados também produzem
um confronto com a imagem social do bebê. Ter em mãos por tempo prolongado e com a
possibilidade de mover-se pela sala objetos originalmente produzidos para outros fins ou
elementos naturais representa outra mudança na construção da categoria intrageracional no
âmbito da creche. Ao invés dos bebês acessarem os materiais produzidos como “cultura para
os bebês”, eles passam a também acessar um amplo acervo composto por outros materiais,
formas, texturas, temperaturas, peso e densidade. Há um rompimento com o padrão hegemônico
que pode possibilitar o acesso dos bebês a materiais produzidos a partir de outros referentes
culturais.
Ou seja, a partir do encontro com a materialidade, os bebês têm a possibilidade de
vivenciar experiências diversas das possibilitadas pelos bens de consumo. Assim, é possível
que “nós imaginemos como a noção de infância [de bebê/babyhood] é praticada, materializada
e espacializada (...)” (HORTON, KRAFTL, 2006, p. 88)135
A relevância do uso de produtos locais e a entrada de materiais de reuso podem
provocar, portanto, a construção de um lugar para os bebês em que se promova a diferença e
que se produz um confronto com a imagem de infância normatizada. Apesar do panorama
_______________
135
No original: “We wonder, for intance, how the notion of ‘childhood’itself is practiced, materialized and
spatialized as something thoroughly affective.” (HORTON, KRAFTL, p. 88)
165
Hay uma simetria em esa interacción humanos-objetos que hay que considerar como
punto de partida de la investigación; en esa dirección, habría que ir más allá de decir
que la historia de um artefacto depende de los usos y sentidos que les damos a los
objetos y buscar atender a lo que ese artefacto produjo em la nueva red humanos-
objetos que se creó a partir de su presencia. (DUSSEL, 2019, p.17)
_______________
136
No original: “There is no humanity defined in opposition to materiality” (MILLER, 2005, p.36)
166
_______________
137
Durante a entrevista, a diretora relatou que é frequente que um cano fino e estreito dos filtros de água das salas
arrebente com o calor. Cada vez que isso ocorre, é adquirido um cano novo.
167
carrinhos mantem a mesma matéria e a forma para qual foram originalmente concebidos, ainda
que para outros fins.
As mudanças na matéria, juntamente com um orçamento que não abarca todas as
demandas de manutenção e conservação, provocam novos usos dos materiais. O brinquedo
grande da caixa de areia, por exemplo, é pouco utilizado devido a partes com madeira podre e
outros materiais danificados que poderiam oferecer risco às crianças. Aos bebês, o uso era
interditado. As crianças, como poderemos observar nas seções posteriores, também produzem
novos significados ao encontrar-se com as coisas.
Não é objetivo desta pesquisa construir uma história social dos objetos, tampouco foi
possível cartografar as suas trajetórias, acompanhando-os nas mudanças que são produzidas
com eles e por eles no percurso do tempo, contudo é imprescindível destacar que os objetos da
escola permanecem na instituição através do tempo, provocando o confronto e o encontro dos
sujeitos. Eles são continuamente ressignificados e apropriados pelos sujeitos, transformando-
se a partir dos usos criativos.
Ao longo do tempo, os edifícios escolares vão se transformando como efeito de
políticas, mudanças sociais e da ação dos sujeitos. A compreensão de um espaço poroso,
político, dinâmico, que atravessa este trabalho move a reflexão sobre os lugares para as
crianças. Ou seja,
_______________
138
No original: “Then there are the manifold connections, trajectories, stories and relationships which must happen
just so for particular material geographies to appear just so; the contingency, particularity and unpredictability
of such connections; and yet also, the complex and often-tacit (power-)relations and politics which order such
connections.” (HORTON, KRAFTL, 2006, p.73)
168
as paredes. As coisas que continuamente transformam-se diante deste fluxo de vida (INGOLD,
2012).
A discussão acerca dos lugares para as crianças pode ser retomada juntamente com a
reflexão sobre os lugares das crianças. Kim Rasmussem (2004), observa como as crianças
constroem lugares tanto nos espaços formais previstos para elas quanto em locais diversos que
não foram pensados para serem ocupados por elas, apontando que:
_______________
139
No original: “The many meanings and kinds of ‘children’s places’ should make us aware of children as social
and cultural actors who create places that are physical and symbolic and call attention to ‘the interfaces’ between
adults’ understanding of what one can and should do in a place for children and children’s understanding of this
matter.” (RASMUSSEN, 2004, p. 171)
140
Professora e colaboradora voluntária no Laboratório de Psicologia da Universidade de Hamburgo que no início
do século XX faz uma pesquisa sobre o espaço de vida das crianças na cidade.
169
_______________
141
No original: “Things could have been different; and they might be again. The world is a doing and a making
that may be regulated by the past, that may be con- strained in its present, but that remains open to the powers
of imagination and invention” (SMITH, 2001, p.36 apud HORTON; KRAFTL, p.75).
170
Três excertos distintos foram escolhidos para o começo desta discussão. São eles: uma
frase do artista caminhante Hamish Fulton sobre os passos e a experiência do andar; a obra de
Richard Long, “A Line Made by Walking” (Figura 27), que apresenta a linha criada pelo
movimento contínuo do artista de ir e vir sob a grama; e um evento registrado durante a pesquisa
de campo (Figura 28), no qual os bebês vagam pelo espaço e modulam o movimento de acordo
com os encontros vividos: neste caso, com a linhas criadas pelo desnível do piso e pela sombra
do telhado.
A citação, a fotografia e o relato nos conduzem a uma reflexão sobre o movimento
perambulante dos bebês, a experiência e a constituição da creche enquanto lugar dos bebês por
meio do caminhar errante. A análise de suas ações em seu encontro com a materialidade
começa142, desta forma, com um olhar dirigido ao movimento e não à pausa. À incerteza e não
à exatidão. Àquilo que é transeunte, não permanente. À imprevisibilidade e não ao que pode
ser programado e (pre)visto.
Muitos dos eventos narrados nesta parte do trabalho me capturaram por sua fugacidade e
pela insistência em escapar ao registro fotográfico. Foi difícil traduzir os sentidos atribuídos
pelos bebês a essas vivências, pois a experiência do movimento143 é um acontecimento difícil
de ser narrado e que se modifica ao ser representado em linguagem escrita. A experiência, por
si só, dada sua singularidade, não pode ser separada do indivíduo que a vive (LARROSA,
2002). Neste sentido, observar o movimento dos bebês produziu a constante reflexão sobre a
(im)possibilidade da pesquisa (ELWICK; BRADLEY; SUMSION, 2014), ou seja, sobre a
necessidade de narrar por meio da palavra escrita – constante confronto da linguagem na
linguagem – as vivências espacializadas dos bebês e, simultaneamente, a impossibilidade de
resumi-las ao texto escrito, pois sempre há algo que escapa.
A discussão realizada nesta parte do trabalho surgiu, portanto, da necessidade de discorrer
acerca das práticas autotélicas (RAUTIO, 2013), aquelas com sentido interno, e seu potencial
revolucionário (KOHAN, W. O.; OLSSON; AITKEN, 2015), de acolhida da imprevisibilidade,
para a prática educativa. Alex Orrnalm (2020) relata a forma como o envolvimento dos bebês
com as meias era algo que lhe maravilhava e que seguia intrigando-a no decorrer de sua
_______________
142
Nesta parte, inicia-se a análise das ações dos bebês a partir dos registros fotográficos e audiovisuais. É a primeira
das três em que se apresentam narrativas visuais e uma análise decorrente da observação das ações dos bebês.
143
Franceso Careri (2013), em “Walkscapes: O Caminhar como Prática Estética”, discorre sobre as estratégias
encontradas pelos artistas caminhantes, do dadaísmo ao surrealismo a fim de “(...) transmitir a sua experiência
em forma estética.” (p.132), ou seja, de transformar o caminhar em representação gráfica. Ao discorrer sobre os
artistas, ele relata a forma como eles se deparavam com o desafio da representação de um caminhar errante,
aberto ao mundo e efêmero.
173
pesquisa etnográfica. Do mesmo modo, o contínuo vagar dos bebês me surpreendia diariamente
e me faltavam palavras para narrá-lo. Assim: “aqui, ao prestar atenção aos movimentos do bebê,
sejam ou não práticas que possam ser nomeadas, se torna uma forma de tentar expandir os
modos possíveis de pensar e imaginar como pode ser a cultura dos bebês.”144 (ORRNALM,
2020, p.100, tradução nossa). Isso representa o exercício de rompimento com a cultura
adultocêntrica e, portanto, o reconhecimento de que a cultura dos bebês contém elementos
próprios à forma como os bebês vivem os seus encontros com o mundo.
Me parece necessário retomar o percurso reflexivo da primeira parte da análise a fim de
situar melhor essa nova discussão e também aproximá-las, indicando pontos de encontro. Nela,
vimos como o acervo material constitui-se ao largo do tempo, com marcas locais e globais e é
criativamente reutilizado e transformado pelos sujeitos que circulam pelas instituições
educativas. Do mesmo modo, é possível observar a forma como os sujeitos apropriam-se da
estrutura física disponível e, apesar das constrições impostas pelo projeto arquitetônico, buscam
criar espaços de encontro e que possam promover o bem-estar da equipe que trabalha na
instituição145.
O espaço pode assim ser dissociado da noção de fechamento e estaticidade e
compreendido a partir dos pressupostos da abertura, heterogeneidade e vida (MASSEY, 2005),
o que permite que ele seja compreendido a partir do seu dinamismo e que se coloque em
destaque o caráter político da construção do espaço. O contínuo devir é o que o caracteriza,
sendo ele produto de relações incrustadas em práticas materiais (MASSEY, 2005). Desta
forma, ao olharmos para o CMEI Porto Seguro, vemos como o espaço é construído por meio
do entrelaçamento de processos econômicos, políticos e culturais com as trajetórias dos sujeitos
que ocupam esse espaço, tanto adultos quanto bebês. Ele é um lugar em constante
transformação e que se constitui a partir do interlace de processos que podem ser analisados em
uma escala global e local, constituindo o que pode ser denominado de glocal.
Do mesmo modo como o dinamismo e o movimento nos convocam a reimaginar o
espaço, é preciso mobilizar conceitos que nos ajudem a olhar para o cotidiano dos bebês e
reconhecer que o corpo e o movimento são elementos indissociáveis da experiência e
constituintes da cultura dos bebês. Tampouco é possível falar de suas ações sem reconhecer que
_______________
144
No original: “Here, attending to the baby’s movements, whether or not they are nameable practice becomes a
way of trying to expand how it is possible to think of and imagine what babies’ culture might be.” (ORRNALM,
2020, p.100)
145
É necessário considerar que as questões de bem-estar apresentadas no decorrer deste trabalho decorrem da
observação participante na creche, embora não tenham sido consideradas nas análises por não se configurarem
em objeto de estudo. Destaca-se que se faz necessário aprofundar os estudos sobre a temática.
174
eles atuam em relação com os elementos ao seu redor: com os sujeitos e coisas. A abordagem
preconizada, portanto, é aquela que reconhece uma ontologia relacional.
Os três excertos iniciais convocam a essa reflexão sobre o movimento, a reimaginação do
espaço e os rastros deixados pelos sujeitos ao encontrarem-se com as coisas do mundo no
mundo. A citação de Hamish Fulton nos ajuda a produzir uma imagem do caminhar: a imaginar
os bebês em contínuo perambular pelo espaço. Se as nuvens não se assemelham aos passos
quanto ao meio em que se encontram (INGOLD, 2011), elas se avizinham a eles quanto ao
movimento contínuo. As nuvens mudam constantemente de forma e sempre estão em um novo
lugar, é impossível imaginá-las e não pensar em como elas continuamente se movem em
resposta aos ventos e à umidade. Tim Ingold (2011) afirma que “observar as nuvens não é
observar o mobiliário do céu, mas vislumbrar o céu-em-formação, nunca o mesmo de um
momento ao outro.”146 (2011, p. 117, tradução nossa). Do mesmo modo, observar o perambular
dos bebês nos aproxima a um lugar-em-formação que se constitui dinamicamente como
resposta aos eventos. Ou seja, a creche pode transformar-se em um lugar dos bebês por meio
do movimento e das interações com as materialidades.
Na fotografia de Richard Long (Figura 27) observa-se o rastro deixado pelo caminhar
contínuo em uma mesma linha, indo e vindo ininterruptamente. Esse traçado não é indelével,
pelo contrário, com a ação do tempo e devido a vida da matéria, outros animais podem alterar
a linha, assim como o vento pode soprar a terra, pedras podem rolar com a chuva e a grama
pode voltar a crescer. Para esse artista, o caminhar deixa rastros e, por isso, o mundo pode
transformar-se em uma “(...) tela sobre a qual desenhar através do caminhar.” (CARERI, 2013,
p. 133). O piso azulejado ou coberto com assoalho impossibilita que as trajetórias dos bebês
sejam inscritas no chão, mas os percursos travados por eles alteram o espaço, provocam que os
objetos mudem de lugar, constroem situações em que o corpo pode ser performado de novas e
diferentes maneiras, refletindo as respostas dos bebês àquilo com que eles se encontram ao
deambular. As marcas que os bebês inscrevem no espaço também são efêmeras e comunicam
sobre a forma como eles se relacionam com os elementos disponíveis no contexto.
O movimento de Pedro e Nathiely (Figura 28) também nos conta sobre a forma como os
bebês expressam por meio dos gestos uma resposta aos encontros vividos ao vagarem pelo
espaço. O perambular parece ser condição de abertura ao inusitado e, portanto, da experiência
(LARROSA, 2002). Pedro deparou-se com duas linhas imprevistas e encontrou duas formas
_______________
146
No original: “To observe the clouds is not to view the furniture of the sky but to catch a fleeting glimpse of a
sky-in-formation, never the same from one moment to the next.” (INGOLD, 2011, p.117
175
diferentes de atravessá-las. Ele não quis caminhar sobre elas, na borda efêmera que separava o
território ensolarado e o assombreado do solário, ele optou por fazer travessias. No primeiro
encontro, saltou com os dois pés juntos e, no segundo, de cócoras, deu um passo ao lado. Ele
deu continuidade à exploração gráfica sem deixar de se mover e de fazer novas escolhas a cada
passo dado e a cada novo acontecimento. Ele também escolhe retomar o desenho e repetir o
movimento da mão e do antebraço. Caminhou, moveu-se, adotou diferentes posturas, observou
os gestos de Nathiely, desenhou com o corpo e com a caneta.
Doreen Massey (2005) fala de “stories so-far” e de trajetórias para discorrer acerca do
dinamismo e da característica relacional do espaço. A palavra trajetórias também nos
acompanha nesta parte do trabalho, pois ajuda a conjugar as ideias de tempo e espaço; noção
necessária a fim de observar a forma como os bebês constroem as relações com as coisas e
como o espaço é simultaneamente percebido e construído de modo diverso para cada sujeito. É
a partir deste conceito e da ideia de experiência estética que são narrados os percursos dos
bebês. A sombra do telhado e a linha criada pelo desnível dos azulejos também convocam os
conceitos de materialidade e a ideia de continuidade. Por fim, a noção de errância (KOHAN,
2019) e o duplo sentido do termo deriva (CARERI, 2013) provocam uma reflexão sobre as
implicações da acolhida do movimento para a prática docente.
Nesse sentido, essa reflexão está dividida em três partes. Na primeira, discorre-se sobre
a experiência de divagar pelo espaço como uma prática dos bebês. Na segunda, sobre a
dimensão material da experiência, sobre os contínuos encontros com as coisas e abertura para
o mundo. E, na terceira, à modo de conclusão, sobre o movimento e uma prática educativa
errante.
Eles escolhem colocar-se em movimento e deparar-se com as coisas que acontecem ao seu
redor, fazendo pausas segundo os diferentes encontros vividos.
Portanto, as narrativas contadas por professoras e pesquisadoras acerca da vida na
creche precisam encontrar formas de comunicar sobre o movimento, o dinamismo e a
simultaneidade, sobre a efemeridade do cotidiano. Perceber o perambular como um elemento
da cultura dos bebês implica na refuta de uma perspectiva adultocêntrica e de viés utilitário que
percebe o caminhar somente como uma ferramenta para chegar a um destino predeterminado.
No decorrer da pesquisa, no exercício de registrar suas interações com a materialidade, dois
desafios se apresentaram e permitiram com que a perambulação dos bebês se transformasse em
uma categoria de análise por meio da qual os dados produzidos ganhassem vida.
O primeiro deles diz respeito ao registro fotográfico de um evento. Era complexo
identificar em que momento parar de fotografar um evento para registrar algo diferente ou
decidir continuar registrando as ações de um mesmo bebê, pois em algumas situações as
interações eram breves e difíceis de serem nomeadas ou descritas. Eles caminhavam, pegavam
um brinquedo, o abandonavam, pegavam outra coisa, caminhavam com ela em mãos e depois
novamente a abandonavam. Contudo, ainda que essas interações fossem breves, permanecia a
impressão de que os diferentes gestos performados pelos bebês eram marcados por um ritmo
próprio e pela continuidade da ação. Ou seja, ainda que eles começassem a fazer algo
completamente diferente, os modos como seus gestos se encadeavam pareciam fazer sentido,
mesmo que eu não pudesse acessá-los.
Por isso, era difícil decidir quando iniciar ou finalizar uma filmagem ou uma sequência
de fotos. O exercício de construir narrativas visuais exigia constantemente uma conexão com o
ambiente e uma profunda atenção para o que os bebês estavam realizando a fim de interpretar
as suas ações e interações com a materialidade a partir dos elementos próprios da cultura dos
bebês. Como pesquisadora, os questionamentos que me assolavam diziam respeito a
compreender o que garantia a continuidade da brincadeira e de que modo suas ações me
contavam sobre a relação com a materialidade e a construção do espaço da creche.
Essas perguntas deram margem para o segundo desafio no processo de produção e
análise dos dados. Na busca de compreender o que produzia sentido para cada bebê ao
brevemente interagir com diferentes materiais, se tornou necessário olhar não somente para o
que cada bebê fazia com as materialidades disponíveis, mas me perguntar sobre o que acontecia
entre cada nova escolha de um objeto.
Entre cada nova interação e em cada uma delas, os bebês se moviam, perambulavam,
andavam a esmo, abriam-se ao inédito e aos imprevistos: o fato de que não carregavam nada
177
em mãos, não indicava que não havia nada acontecendo. Pelo contrário, o próprio movimento
e o perambular era um acontecimento e uma maneira de relacionar-se com os outros bebês,
professoras e materialidades. Eles estavam vagando pelo espaço, de forma errante, vivenciando
o movimento e novos e inusitados encontros com o outro e com as coisas, brinquedos, objetos,
mobiliários e elementos que nos escapam, como a luz e os sons. Ou seja, a continuidade entre
as interações e a percepção do espaço e das coisas era possibilitada pelo movimento e pelo
perambular dos bebês.
É importante destacar que o termo “perambular” foi escolhido para acolher às trajetórias
e aos diferentes modos de se deslocar utilizados pelos bebês: caminhando, movendo-se de
joelhos, engatinhando e arrastando-se. Pois os bebês não somente caminham, mas inventam
diferentes maneiras de deslocar-se pelo espaço e continuamente percebê-lo, mobilizando suas
conquistas posturais como um recurso para colocar-se em relação com o mundo. A forma como
os bebês exploram o movimento e o seu corpo não pode ser tratada como imperfeita ou
incompleta (PROUT, 2000). Compreender o perambular como uma prática da cultura dos bebês
significa olhar para a cultura produzida pelos bebês, visibilizando as suas práticas culturais, ou
seja, para suas formas de relacionar-se com os elementos culturais-materiais que lhes são
apresentados (ORRNALM, 2020).
Alex Orrnalm (2020) ao mobilizar esse termo destaca que “(...) conceitos como ‘cultura
infantil’ e ‘cultura material’ foram desenvolvidos e repensados sem que os bebês estivessem
explicitamente em voga. Isto, portanto, requer um engajamento crítico com esses conceitos.”
(p.94, tradução nossa). Isso significa que é preciso rever os conceitos e encontrar maneiras de
visibilizar as formas particulares dos bebês de construírem relações e exercerem a agência, pois
aquilo que lhes é específico dificilmente é reconhecido quando do uso dessas terminologias.
Falar de cultura dos bebês parece ser uma estratégia para promover este engajamento crítico.
A insistência em se falar sobre o perambular também se configura como um ato de
resistência em um tempo de uma humanidade sentada (LE BRETON, 2001), profundamente
marcada pela lógica da produtividade e pela força do racionalismo. Na vida adulta e na escola,
o perambular é uma prática que vai na contramão e que convoca outros modos de produzirmos
a existência e organizarmos o espaço. Ele implica na errância, na falta de um objetivo final e
na vivência do processo, pressupostos que não se adequam ao imaginário da produtividade. No
cotidiano dos bebês, para eles, este é um fazer que dá sentido à experiência educativa, pois é
algo que lhes pertence e que eles escolhem realizar. Assim, ao ser narrado e traduzido no texto,
podemos aproximarmo-nos dos modos particulares com os quais eles se relacionam com o
mundo.
178
Nós caminhamos sem motivo, pelo prazer de desfrutar do tempo que passa, desviar
do curso da existência para melhor nos reencontrarmos ao largo do caminho, descobrir
lugares e rostos desconhecidos, ampliar o conhecimento, por meio do corpo, de um
mundo inexaurível de sentidos e sensorialidade ou simplesmente porque o caminho
está ali.149 (LE BRETON, 2001, p.2-3, tradução nossa).
_______________
147
O movimento e o corpo também se apresentaram como elementos constituintes da coreografia do brincar e dos
processos de construção da cultura de pares. Nesta seção, o movimento ganha destaque como uma prática
autotélica e, nas próximas partes da análise, são narrados eventos nos quais o corpo e o movimento são recursos
mobilizados pelos bebês a fim de participar da vida coletiva do grupo, da qual participam as professoras, e como
elemento do brincar.
148
No original: “(…) pour s’aventurer corporellement dans la nudité du monde” (LE BRETON, 2001, p.2).
149
No original: “On marche pour rien, pour le plaisir de goûter le temps qui passe, faire un détour d’existence pour
mieux se retrouver au bout du chemin, découvrir des lieux et des visages inconnus, élargir sa connaissance par
corps d’un monde inépuisable de sens et de sensorialités ou simplement parce que la route est là.” (LE BRETON,
2001, p.2-3).
179
O perambular pela sala de referência e pelos outros espaços do CMEI aos quais os bebês
tinham acesso era um processo contínuo de estranhamento e maravilhamento com o mundo e
com a diferença, descoberta e criação de novos caminhos pelo próprio prazer de mover-se.
Ao chegarmos nesse espaço, registrei diferentes brincadeiras com esses materiais, como
a Valentina e o Kaylan empurrando as caixas, a coleção de potes do Davi e a brincadeira da
Lolo, Beatriz e Nathiely de entrar e sair de uma das caixas. No momento em que registrei o
Pedro perambulando pelo espaço, o grupo estava concentrado nos pneus com terra e havia
transformado os potes e pratos em utensílios para a manipulação da terra. Pedro não
acompanhou o grupo nesta brincadeira e deu continuidade ao que vinha realizando durante
aquele período no jardim: ele perambulava de um lado ao outro, passando por espaços estreitos
e subindo e descendo das muretas.
180
A experiência que Pedro vive de si mesmo no espaço é algo que é percebido com o
corpo todo. Ele parece estar profundamente atento ao que acontece cada vez que toca em um
novo palito do muro, quando se agacha, passa com cuidado pelo vão ou desce da mureta com
o apoio das mãos e o lento movimento dos pés. Nesse dia, ele não corria enquanto perambulava,
ainda que pudesse fazê-lo. O espaço que ele experimentava não era algo dado, mas algo que
era construído também por meio do seu movimento. A compreensão de Francesco Careri do
caminhar como prática estética nos ajuda a perceber que:
Desta forma, ao colocar-se em ato, Pedro se abre para a relação com tudo aquilo que no
momento presente se coloca naquele espaço: as luzes, as sombras, os ruídos e cada mudança
no terreno. Assim como para os encontros possíveis com as coisas. A conexão que se dá com o
mundo também está visível no evento que introduziu essa seção (Figura 28), quando ele
performa o corpo na relação com as linhas. Em ambas, é possível notar como o Pedro varia a
direção e adota diferentes posturas conforme o espaço se transforma junto com ele. Ou seja, o
perambular dos bebês é uma prática em que eles se embrenham no espaço e na qual estão atentos
ao seu corpo e aos seus movimentos. Desse modo, se faz necessário “(...) corrigir o difundido
equívoco de que o treinamento do corpo por meio de exercícios repetitivos (...) leva à
progressiva perda de consciente ciência ou concentração na tarefa.”150 (INGOLD, 2011, p.60-
61, tradução nossa).
Ou seja, é importante destacar que o Pedro, assim como os outros bebês ao
perambularem, caminha de forma rítmica e atenta. Ele não caminha com um destino
predeterminado e o caminhar não é uma forma de chegar até o destino preconcebido. Cada
passo precede o seguinte e possibilita que ele performe o seu corpo, mude a direção e altere a
posição do seu tronco, pernas, pés, cabeça, braços e mãos. Ao caminhar, a cada novo passo,
tudo se altera e modifica o enquadramento a partir do qual um novo passo será dado: a forma
como os pés se colocam no chão, aquilo que se sente sob eles e a sua posição. Um passo nunca
_______________
150
No original: “I emphasise this point in order to correct the widespread misapprehension that the training of the
body through repetitive exercise (…) leads to a progressive loss of conscious awareness or concentration in the
task.” (INGOLD, 2011, p.60-61).
181
é igual ao outro. Nisso, novamente seria possível dizer que eles se assemelham às nuvens, como
na citação de Hamish Fulton. O ritmo, desta forma:
(...) não é um movimento, mas a dinâmica combinação dos movimentos. Cada nova
combinação é uma ressonância específica, e a sinergia do praticante, ferramenta e
matéria prima estabelece um campo completo de tais ressonâncias. Contudo, este
campo não é monótono. Posto que cada ciclo não está dado dentro de parâmetros
fixos, mas em um enquadramento que está em si mesmo suspenso no movimento, em
um ambiente no qual nada é o mesmo de um momento a outro.151 (INGOLD, 2011,
p.60, tradução nossa).
O caminhar do Pedro não é algo que ele realiza de forma automática, apesar de já ter
repetitivamente treinado para realizar essa tarefa e, tampouco, é monótono. Não basta repetir o
mesmo passo, é preciso sempre estar atento às mudanças no terreno e no seu próprio corpo. Dar
um novo passo é também viver a possibilidade de uma nova experiência, reiterar no sentido de
reviver. Não há parâmetros fixos que determinem a métrica de cada novo passo.
Liselott Olsson (2009), ao referir-se a esse dinamismo, descreve os movimentos de um
bebê ao perambular enquanto também discorre sobre a sua experiência de aprender a surfar.
Em ambas as situações, o sujeito precisa se colocar em relação com o espaço a fim de executar
o movimento e aceitar modificar o gesto segundo as transformações da superfície: “do mesmo
modo como o mar é imprevisível, o terreno também está em movimento contínuo. O terreno
caminha com a criança e o mar surfa com o surfista.”152 (OLSSON, 2009, p.3, tradução nossa).
Do mesmo modo como é necessária corrigir o equívoco de pensarmos no caminhar
dos bebês como um gesto automatizado, é preciso também vermos que o conhecimento está
associado ao movimento, ele não é uma esfera restrita ao pensamento racional e é produzido
diante de uma experiência material e corporal. Ou seja, como destaca Liselott Olsson (2009), o
cérebro se faz presente de outra forma quando estamos nos movendo. Ele está junto com o
corpo e com o movimento, contudo não com a função de explicar.
Pode parecer óbvio afirmarmos que percebemos o mundo com o corpo todo e que o
“eu” é sempre corpo-pensamento, podendo ser convidado a novas interações segundo tudo o
aquilo que sente. Contudo, como aponta Tim Ingold (2011), a tradição ocidental procedeu com
_______________
151
No original: “Rhythm, then, is not a movement but a dynamic coupling of movements. Every such coupling is
a specific resonance, and the synergy of practitioner, tool and raw material establishes an entire field of such
resonances. But this field is not monotonous. For every cycle is set not within fixed parameters but within a
framework that is itself suspended in movement, in an environment where nothing is quite the same from
moment to moment.” (INGOLD, 2011, p.60).
152
No original: “To the same extent that the sea is unpredictable, the ground is in continuous movement. The
ground walks with the child and the sea surfs with the surfer.” (OLSSON, 2009, p.3).
182
uma hierarquização dos sentidos, colocando o tato abaixo da visão e da audição, como se esses
sentidos estivessem alheios da experiência material. A narrativa moderna de progresso
estabelece o pensamento racional e a cognição como a essência e finalidade do ser humano,
esferas elevadas e desconectadas do contato com o mundo. A falsa cisão entre discurso e
materialidade implica na desvalorização de tudo aquilo que convoca a nossa mundanidade.
Os pés, constantemente embrenhados na terra, dificilmente são mencionados nos
discursos pedagógicos153 e o movimento, os corpos, se transformam em objeto de controle por
meio de todo uma tecnologia educativa: como carteiras e cadeiras enfileiradas, interpretações
equivocadas da prática de organização de micro-ambientes154 e restrição do movimento ao
espaço externo, aos momentos de recreio ou as “aulas” de psicomotricidade. Tim Ingold (2011)
aponta para o fato de que as cadeiras, as botas e a pavimentação das ruas também são elementos
que comunicam sobre esse imaginário social: “(…) a bota e a cadeira estabeleceram um
fundamento tecnológico para a separação do pensamento da ação e da mente do corpo”155
(INGOLD, 2011, p.323, tradução nossa). O afastamento do corpo do conhecimento é um
elemento da cultura escolar e da cultura ocidental.
Tim Ingold (2011), ao discorrer sobre a forma como os sujeitos percebem o mundo por
meio do corpo todo e elaborar uma crítica à narrativa evolucionista construída, afirma que:
_______________
153
Catherine Burke (2018), ao refletir sobre footwork e footwear nos séculos XIX e XX, destaca que o ato de
caminhar como aprendizagem nos permite observar três experiências educativas diversas: primeiro, as
aprendizagens informais decorrentes do deslocamento entre a casa e a escola; segundo, a experiência da
caminhada na natureza; e, terceiro, a experiência de iniciativas urbanas anarquistas que viam o perambular
guiado como parte essencial de um projeto educativo progressista. As alternativas apresentadas pela autora são
contrapontos às concepções de infância e educação que orientavam o enclausuramento dos pés e a sua
estaticidade na escola.
154
Refiro-me aqui às situações nas quais a sala de referência é organizada em micro-ambientes, mas onde as
crianças não têm a possibilidade de escolher onde ir e como utilizar os materiais disponibilizados. Nesses
contextos, esta estratégia própria das pedagogias ativas e participativas se configura como uma nova roupagem
para velhas formas de ver a educação. Ao invés dos micro-ambientes garantirem a possibilidade das crianças
fazerem escolhas, estabelecerem relações entre diferentes materiais, determinarem o ritmo de suas brincadeiras
e interagirem com crianças diferentes no decorrer da jornada, eles se transformam em uma estratégia de controle
do movimento e de centralização na professora, pois as crianças se veem restritas à exploração de um único
espaço, com pares, ambiente e tempo escolhidos e determinados pelo adulto. A sala não contém carteiras e
cadeiras, mas a forma como os adultos estabelecem a relação com as materialidades ainda é determinada por
uma cultura material escolar tradicional.
155
No original: “(...) the boot and the chair establish a technological foundation for the separation of thought from
action and of mind from body.” (INGOLD, 2011, p.323).
183
Para Darwin, então, a descendência do homem na natureza foi também a sua ascensão
para fora dela, pois progressivamente liberou os poderes do intelecto do seu ônus
corporal no mundo material. A evolução humana foi retratada como a ascensão, e
eventual triunfo, da cabeça sob os pés.156 (INGOLD, 2011, p. 316, tradução nossa).
Com isso, como aponta o autor, o caminhar foi visto como uma atividade mundana, que
deveria ser realizada somente com o objetivo de chegar a um destino. As narrativas sobre as
viagens, por exemplo, contavam sobre o que acontecia ao chegar ao ponto final, mas não faziam
menção aos percursos que permitiram que eles chegassem até lá. As mãos se viram libertas e
poderiam exercer o controle do mundo com o movimento apreensivo possibilitado pelo polegar.
A educação volta-se para a pausa: para aquilo que os sujeitos realizam quando estão
parados e que pode ser marcada como um destino. Com isso, como aponta Catherine Burke
(2019):
Este imaginário da pausa atravessa a forma como os bebês foram vistos ao longo do
tempo: ao negarmos o movimento, nos resta compartimentarmos as conquistas corporais e
transformá-las em etapas de desenvolvimento que ajudem no processo de controle do percurso.
Do mesmo modo, o movimento pode ser restrito a alguns momentos do cotidiano e
desconectado de outros processos de aprendizagem e descoberta do mundo. Não se fala sobre
o que acontece entre uma etapa ou outra ou sobre os processos. O foco está no ponto inicial e
no ponto final sem que saibamos acompanhar ou narrar o processo que levou de um ponto ao
outro. Os processos educativos correm o risco, até mesmo, de se transformarem no
acompanhamento enfadonho até um destino previamente conhecido. Quando se estabelece um
único caminho, passamos a enxergar somente o final do percurso. Novamente, a atenção é dada
para a pausa, não para o movimento.
É este ranqueamento dos sentidos e a falsa cisão entre ação e pensamento que torna
urgente a contínua repetição de que os bebês, assim como os adultos, se colocam em relação
_______________
156
No original: “For Darwin, then, the descent of man in nature was alson na ascent out of it, in so far as it
progressively released the powers of intellect from their bodily bearings in the material world. Human evolution
was portrayed as the rise, and eventual triumph, of head over heels.” (INGOLD, 2011, p.316).
157
No original: “Walking was associated with an absence of knowledge and life on the margins of education.
Walking as a way of knowing has been disregarded by the modern school which regarded walking as incidental
rather than fundamental to knowledge acquisition.” (BURKE, 2018, p. 9).
184
com o mundo por meio das cem linguagens (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016) e que
faz com que seja necessário repetir que o conhecimento e a aprendizagem acontecem a partir
de todos os sentidos e como uma experiência simbólico-material. O caminhar é uma prática que
torna evidente a conexão do ser humano com o mundo e a impossibilidade dele se desconectar
de sua dimensão material.
A materialidade, se compreendida como algo alheio ao humano, se transforma em uma
categoria ineficaz para a interpretação do vivido e do observado. Não somos ideias
corporificadas que pensam sem tocar na matéria. Ou seja, a radicalidade do conceito de
materialidade, a compreensão visceral do conceito, nos aponta para a materialidade da
experiência: o próprio corpo é material e todo conhecimento também se dá por meio da conexão
com o mundo. O perambular é uma prática material e produtora de saberes.
_______________
158
Como apresentado previamente, no decorrer da pesquisa foram acompanhados 19 bebês. Contudo, no mês de
abril, a Allicia e o Allan ainda não frequentavam o CMEI e passaram a compor parte da turma do berçário com
a saída de um bebê no final do mês de abril. Desta forma, no momento em que foi registrada essa situação de
interação entre a Luiza e a Heloísa, o grupo era formado por 18 bebês.
186
adultocêntrica que opera nos processos de educação dos corpos e que faz com os corpos dos
bebês e da população idosa sejam constantemente objeto de controle, fora de lugar, corpos
continuamente em risco (LUPTON, 2012). As crianças, assim como a população idosa, como
aponta Neusa Gusmão (2003), “(...) tornam-se alvos de procedimentos educativos que visam à
homogeneidade do diverso.” (p. 25). Espera-se que eles sejam capazes de se sentar, engatinhem
e andem. Nesta ordem e com prontidão.
Como em uma corrida, olhamos para os bebês na expectativa de que rapidamente
passem de uma etapa para outra. Cadeiras com apoio, andadores e cadeirões afastam os bebês
do chão e lhes comunicam sobre uma cultura na qual se espera que eles prontamente aprendam
a caminhar para que possam crescer. Infelizmente, no final do percurso, após a conquista da
marcha, ao invés do pleno usufruto desta habilidade, espera-se que as crianças permaneçam
quietas, paradas, sentadas e continuamente rodeadas de aparatos que lhe impedem o contato
com o mundo: cadeiras, calçados e pisos pavimentados (INGOLD, 2004). O movimento se vê
restrito a poucos espaços e tempos destinados exclusivamente para ele, em um processo de
separação entre conhecimento e movimento. É por isso que fazer menção ao perambular se
configura como um ato de resistência, dado que toda escolha é sempre política e comunica
sobre a forma como produzimos a nossa relação com o mundo.
O foco no desenvolvimento motor dos bebês frequentemente implica em um
apagamento de tudo aquilo que acontece ao bebê e que ele realiza com o seu corpo entre cada
nova etapa de desenvolvimento. O que o bebê faz antes de virar de barriga para baixo, sentar-
se ou andar? O que ele nos conta sobre a sua experiência de mundo quando explora cada objeto,
encontra-se com outro e depara-se consigo mesmo ao girar o corpo de um lado para ou outro,
rastejar ou permanecer de barriga para cima? Perambular engatinhando também não é uma
forma de conhecer o mundo? Como planejamos o espaço e o que oferecemos aos bebês para
que eles explorem e descubram tudo o que são corporalmente capazes de fazer?
No momento em que a Heloísa se coloca de joelhos para perambular ao lado da Luiza,
ela parece estar ciente desta construção social associada aos modos de se deslocar e ao que
significa ser um bebê. Nesse evento, o prazer do movimento permanece e ao mesmo tempo ela
mobiliza esse conteúdo simbólico. A fim de interagir com a Luiza, ela se move como ela
engatinhando e se coloca em contato com o chão. Ainda que a construção social associada ao
movimento e as posturas também implique em uma escala de valor, os bebês, nesse contexto,
não parecem mobilizar este elemento da cultura.
Em outros eventos, os deslocamentos dos bebês e a pluralidade de posições performadas
com o corpo nos apontam para a prática do perambular como uma forma de conexão com o
187
ambiente e com os outros gestos realizados. É possível olhar para movimento como um
elemento indissociável da experiência educativa e da relação com o mundo. Ou seja, é possível
olhar para as competências motoras de cada bebê e compreendê-las como condição e
possibilidade da sua ação no mundo. Alan Prout (2000) afirma que “o corpo não é somente
moldado pelas relações sociais, mas também entra nesta construção como um recurso e uma
constrição.”159 (PROUT, 2000, p.5, tradução nossa).
Os bebês são atores sociais que ativamente percebem e exploram as formas de se
posicionar no mundo. No evento descrito abaixo (Figura 31), Nathiely e Kaylan desenham nas
paredes e pisos do solário enquanto simultaneamente exploram outras formas de se deslocar
pelo espaço. Eles não sabiam aonde iriam chegar ao riscar as superfícies e a exploração gráfica
não se distingue da exploração do movimento.
_______________
159
No original: “The body is not only shaped by social relations, but also enters into their construction as both a
resource and a constraint.” (PROUT, 2000, p.5).
160
No original: “It is about how the human being entwines and overlaps with the material world to which he or
she is situated as lived.” (JOHANSSON; LØKKEN, 2014, p. 890).
188
de si e do mundo. Sandra Richter e Angela Pohlmann (2010) apontam para a forma como a
percepção:
É muito mais referir-se a agir, associar, justapor, aproximar, juntar, separar, dissociar,
analisar, sintetizar do que pensar em alguma coisa que já está no interior da mente.
Perceber é uma ação que envolve organizar, ordenar, compor, juntar, coletar. E, para
isso, há que se ter disponibilidade e envolvimento com o que está sendo ‘percebido’.
(POHLMANN; RICHTER, 2010, p. 34)
Tim Ingold (2011) parte do mesmo princípio para referir-se à percepção, ou seja, se ela
“é uma função do movimento, então aquilo que nós percebemos deve, ao menos em parte,
depender de como nos movemos. Locomoção, não cognição, deveria ser o ponto de partida para
a atividade perceptiva (Ingold 2000a: 166).”161 (INGOLD, 2011, p.331, tradução nossa). Deste
modo, ela não está no interior da mente, mas as coisas, o outro, o espaço são percebidos e
construídos a partir do movimento. Assim, o que está em voga não é o porquê do movimento
acontecer e os bebês perambularem, mas como se movem e o que isso nos conta sobre a
percepção e criação do espaço vivido. O caminhar, como afirma Careri (2013) é ato perceptivo
e criativo.
Ao falarmos de materialidade, parece ser fácil compreender que os discursos têm um
substrato material, que as ideias são corporificadas e materializadas. Mas a compreensão
radical, visceral, do que significa acolher ao corpo implica no reconhecimento destas situações
nas quais não é possível capturar os porquês, os motivos. Nessa busca por sempre encontrar
uma razão para a ação, nós corremos o risco de subestimar a matéria. Ou seja, ao olharmos para
a cultura dos bebês é preciso reconhecer que os seus fazeres representam suas respostas aos
elementos simbólicos e materiais que lhes envolvem.
Quando a Nathiely engatinha e o Kaylan se move de joelhos eles parecem estar dando
uma resposta ao encontro do seu corpo com o mundo, de si com o ambiente. O fato de que,
nesse evento, nós não possamos acessar os motivos do corpo ser performado desta forma não
significa que suas ações não tenham valor. Significa que o sentido se constrói no movimento e
na contínua descoberta do mundo por meio do envolvimento com o que se percebe
(POHLMANN; RICHTER, 2010).
As três imagens abaixo mostram uma das formas como a Yasmin se colocou em relação
com o mundo em suas deambulações. Nos dias 10, 15 e 17 de maio ela tirou o tênis do pé
_______________
No original: “But if perception is thus a function of movement, then what we perceive must, at least in part,
161
depend on how we move. Locomotion, not cognition, must be the starting point for the study of perceptual
activity (Ingold 2000a: 166).” (INGOLD, 2011, p.331).
189
esquerdo, manteve a meia e passou a caminhar com o desafio de ter os pés em alturas diferentes
e de sentir o mundo de modo diverso a cada novo passo. Nos dias que antecederam e se
seguiram a esses registros, ela não voltou a repetir este gesto. Mas, nesses três dias do mês de
maio ela permaneceu quase todo o período com somente um pé calçado e, ainda que as
professoras voltassem a calçá-la, ela novamente retirava o tênis do pé esquerdo. A percepção
do mundo e do próprio caminhar seguramente se alteravam quando ela colocava o pé em
contato direto com o mundo. Não é preciso que o adulto observador compreenda o motivo de
sua ação para que ela se coloque em relação com o contexto e explore o movimento de
diferentes maneiras.
_______________
162
Ambos os termos, “lugar de ir” e “lugar de estar” são mobilizados por Francesco Careri (2013) ao discorrer
sobre o nomadismo e ganham novas conotações nesta reflexão sobre o movimento dos bebês.
190
transformados pelos bebês. Espaços debaixo das pias, o canto de um armário e o espaço criado
embaixo da mesa são sim lugares onde os bebês parecem buscar por intimidade e conforto,
noções que também estão associadas a ideia de lugar. No decorrer da pesquisa, foi possível
observar a forma como o Davi Luccas diariamente entrava no armário das bonecas ou como a
Luiza procurava esse mesmo canto escondido para brincar tranquilamente com a sua boneca de
preferência. Eram lugares importantes para eles, contudo, a noção de afeto, intimidade com as
coisas e marcas subjetivas não pode restringir-se a estes locais. Ou seja, a constituição da creche
enquanto lugar se dá por meio da ação perceptiva realizada pelos bebês ao moverem-se,
explorarem os objetos, deslocarem-se e continuamente recriarem o espaço.
Em algumas situações, ao deslocarem-se, os bebês também pareciam fundir-se aos
objetos que utilizavam e que estavam explorando. Nos eventos abaixo, é possível observar
como a exploração do movimento e a percepção de si se deu por meio e com uma bacia de metal
disponibilizada aos bebês em um dos cestos do tesouro. A Yasmin esfrega a bacia no chão e a
empurra com a força feita pelos seus pés, intercalando os pés que iniciam o novo passo (Figura
33).
_______________
163
No original: “Bodies cannot be separated from the spaces, objects and other bodies with which they interact.”
(LUPTON, 2012, p.39).”
191
a relação com o mundo. Se faz necessário romper com os binarismos que sustentam algumas
práticas educativas e manter-se continuamente atento a fim de exercitar o pensamento reflexivo.
O evento que deu início a essa reflexão foi registrado em uma manhã do mês de junho,
quando, a fim de organizar a sala com novos materiais para os bebês brincarem e explorarem,
193
_______________
164
Nesta situação, as professoras não deram consignas para orientar o uso do material e/ou da ação dos bebês. Ou
seja, eles não receberam qualquer tipo de orientação por parte das professoras. Seja quanto ao uso feito da
canetinha ou quanto a forma como deveriam posicionar-se, ou seja, o movimento dos bebês não foi restringido.
No decorrer da pesquisa, era frequente que elas orientassem os bebês quanto ao que deveriam realizar somente
em situações de produção de trabalhos para o portfólio ou quando utilizávamos um espaço do CMEI menos
frequente (como o refeitório ou o parque de areia).
194
suportes para o desenho. As linhas não foram e não poderiam ter sido antecipadas pois não há
como prever os encontros vividos pelo outros, neste caso, pelos bebês.
Nas imagens abaixo apresenta-se outro evento em que algo acontece a uma bebê. É
possível observar o momento no qual a Melissa para de caminhar para dirigir a atenção a sua
mão, à sombra e à parede. Ela estava caminhando entre o portão de acesso ao jardim e a parede
azulejada com uma canetinha em mãos. Ocasionalmente, ela toca na parede e permanece parada
com a mão esticada. Ela estica e dobra os dedos, parecendo tentar pegar a sombra de sua mão
e/ou sentir a temperatura e a textura da parede. O braço, o tronco e as pernas permanecem
imóveis, a cabeça gira no mesmo sentido que a mão e o queixo se alinham com os dedos
enquanto ela os abre e fecha, o que nos indica que o seu olhar estava direcionado para sua mão.
Faltam palavras para nominar os gestos da Melissa, pois o sentido para a sua ação não
é externo a ela, mas é produzido diante do encontro com a parede e a sombra. Ele encontra-se
na própria experiência do gesto. Os gestos dos bebês comunicam uma abertura as coisas que
lhes acontecem.
Assim como o movimento de Pedro de atravessar as linhas, o vai e vêm dos dedos de
Melissa e o olhar atento dirigido a eles pode ser compreendido como uma prática autotélica.
Este é um conceito útil para enfrentarmos o tenso desafio de traduzirmos o movimento em
palavra escrita e que pode ser compreendido como as “(...) atividades com as quais nós
continuamente nos engajamos sem qualquer recompensa externa (...). Práticas autotélicas têm
motivações internas e, nelas, a atividade é o objetivo e a recompensa em si mesma.” (RAUTIO,
2013, p.394).
É importante destacar que adultos e crianças se engajam neste tipo de práticas. A
autora, Pauliina Rautio (2013), por exemplo, faz referência ao gesto de organizar os alimentos
195
na fruteira segundo as suas cores e a uma caminhada na mata que ganha novos rumos segundo
o que acontece àquele que vaga na floresta. As pedras também são o fio condutor de sua reflexão
e, assim como podem ser lançadas na água para saltar, podem ser recolhidas nos bolsos das
crianças. Pauliina Rautio (2013) destaca que dificilmente saímos em busca de pedras para lançar
em um lago ou guardar nos bolsos, pelo contrário, nos deparamos com as pedras e atribuímos
um sentido ao ato de recolhê-las ao mesmo tempo que nos acontece o gesto de segurá-las em
nossas mãos.
A autora compreende que os sujeitos se engajam neste tipo de práticas em situações
nas quais apresentam uma abertura estético-afetiva. Ela mobiliza este conceito de Jane Bennet
(2010)165 para refletir acerca da pergunta: “O que está acontecendo quando as crianças carregam
pedras em seus bolsos?”166 (RAUTIO, 2013, p.395, tradução nossa). Segundo a autora, este
gesto tem relação com a abertura delas para as materialidades que as rodeiam, situações nas
quais as crianças encontram-se disponíveis para o que lhes possa acontecer.
A palavra acontecimento, assim como a ideia do encontro e do evento, remete ao
conceito de experiência. Jorge Larrosa (2002) ao escrever sobre ela, na tradução para o
português, a conceitua a partir do verbo acontecer, ou seja, ela é o que nos acontece. O autor
afirma que a informação não é experiência e que ela é cada vez mais rara pelo excesso de
opinião, pela falta de tempo e pelo excesso de trabalho. Ao ser aquilo que nos acontece, vemos
que o sujeito da experiência é marcado por um tipo de passividade, de abertura, de
disponibilidade. Ele afirma:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto
de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar
para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se
nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender
o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,
falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte
do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002,
p. 24, grifos nossos)
com elas que eles elaboram respostas e criam novas formas de expressar-se e colocar-se em
relação com as coisas. Eles não controlaram os acontecimentos, mas produziram sentidos ao
vivenciarem o encontro. O que nos permite compreender que:
Ou seja, o reconhecimento de que não temos controle sobre aquilo que nos acontece
tampouco significa que os sujeitos não sejam responsáveis por aquilo que realizam ao adentrar
nesses encontros com o mundo, com as coisas, emaranhados materiais-semióticos (SPYROU,
2019). Isso significa que é preciso assumir uma ontologia relacional para ler o mundo e romper
com uma postura antropocêntrica e narcisista (BENNETT, 2010). O ser humano não está no
controle de tudo o que acontece no mundo e a vida lhe é independente, pois ela provêm da
matéria (INGOLD, 2011) e não de um substrato essencial, como a alma, ao qual poderíamos
referir-nos. Contudo, ele age em relação com o mundo, no mundo. A mundanidade o constitui
e, portanto, o saber da experiência é encarnado.
Ao observar o encontro dos bebês com as coisas, há outro elemento que se tornou
evidente. Nos eventos, era difícil identificar quando eles encerravam uma brincadeira ou uma
interação e iniciavam algo novo. Os bebês pareciam estar constantemente concentrados no
gesto que estavam realizando e simultaneamente disponíveis para interromper a sua ação e
modificar o seu curso. A continuidade da ação dos bebês, seja a interação com os pares ou uma
brincadeira, se dava por meio da possibilidade de iniciar algo novo, de estar ao mesmo atento
atentos ao que estavam realizando e às coisas que lhes aconteciam ao redor. A partir dessa
perspectiva é possível notar como os eventos do Pedro e da Melissa colocam em xeque a ideia
de que os bebês não permanecem concentrados. Eles não poderiam deparar-se com as linhas no
chão ou com a sensação advinda do toque na parede se não estivessem atentos ao ambiente e
ao que estava acontecendo consigo mesmos.
A ideia de concentração e atenção que sustenta essa leitura dos bebês encontra alicerce
em uma epistemologia e ontologia que divide corpo e pensamento e que, portanto, associa
concentração à pausa, à estaticidade e à homogeneidade. Nesta perspectiva, o que está em voga
não é a continuidade da brincadeira, do movimento e da exploração realizada pelos bebês, mas
a repetição e a uniformidade das respostas dadas por eles a um único objeto. O que está posto
em destaque é um corpo alheio às sensações e uma mente descorporificada. O conhecimento se
198
torna objeto restrito às operações intelectuais e tudo aquilo que perpassa o corpo, seu
movimento e sinestesia, passa a ser compreendido como instintivo, biológico, animal e,
portanto, não constitui o ser humano do pensamento ocidental, que é fundamentalmente
compartimentado:
Sandra Richter (2005) mobiliza a palavra perigo para referir-se aos riscos do olhar
distraído, intimamente conectado com a experiência e com a abertura, à adesão ao mundo.
Poderíamos, até mesmo, retomar a referência ao radical per, presente na ideia de travessia,
experiência e perigo para mobilizarmos novos usos do termo “atenção” ao nos referirmos às
ações dos bebês. Para isso, é necessário romper com essa perspectiva dualista que separar corpo
e pensamento. Com esta fissura, passa a ser possível valorizar as ações dos bebês e o saber que
advêm da experiência. Ela também possibilita a reconstrução do olhar do observador, que pode
ser exercitado pelos adultos que acompanham os bebês em sua relação com o mundo, pois passa
a ser possível olhar para o movimento e o gesto dos bebês e reconhecer que algo está
acontecendo.
No evento descrito abaixo (Figura 37), a Allicia estava sentada no chão observando os
outros bebês quando se deparou com alguns traços deixados no piso. Ela muda de posição,
ajoelhando-se e, em seguida, apoiando-se em três apoios, e observa as marcas da canetinha. Ela
passa os dedos por cima do traçado, que se altera, e move a mão abaixo do desenho. Ela olha
para frente, parecendo procurar outros desenhos, e engatinha em direção a algumas marcas
azuis deixadas por outro bebê. Ao chegar até elas, ela repete o gesto das mãos. Passa os dedos
abaixo do desenho e sobre ele. Ao erguer o braço e olhar para a frente, ela se depara com a
sombra de sua mão e seu braço, movendo-o para cima e para baixo, atenta às mudanças de sua
sombra. O gesto encontra o duplo.
Do mesmo modo como a linha surgiu na brincadeira do Pedro e a parede para Melissa,
a sombra também parece lhe acontecer a Allicia. Ela estava atenta aos desenhos no chão e ao
mesmo tempo permanecia aberta ao que lhe passava ao redor. Essa é a atenção distraída a que
Sandra Richter (2005) se refere e que precisa ser considerada ao narrarmos as ações dos bebês:
“é como se um certo coeficiente de desatenção à vida, no próprio âmago da percepção atenta,
fosse vital para a dinâmica da vida mesma.” (2005, p. 196).
199
Contudo, para um observador desavisado que olha para o mundo sem reconhecer os
corpos e dar atenção à materialidade da experiência, os gestos da Allicia ao procurar pelos
desenhos e encontrar a sombra de seu braço, provavelmente passariam desapercebidos. Ela não
estava desenhando, não tinha uma caneta em mãos, não estava falando e tampouco caminhava
austera pelo espaço em exercício da habilidade adquirida e socialmente super-valorizada como
meio de chegar a algum lugar.
É importante destacar que a Allicia já caminhava com segurança no momento deste
registro, pois havia conquistado a marcha em fevereiro, e que da mesma maneira como ela está
atenta aos desenhos no chão, o modo como ela se desloca também se configura em uma resposta
aos acontecimentos. Ela escolhe permanecer próxima ao chão: ela engatinha até outros
desenhos. Faz o mesmo gesto com as mãos, como se tentasse comprovar a sua hipótese sobre
200
Mas foi ao tocar esta pedra em particular que você se colocou em contato com a
materialidade do mundo? Não há nada material que não esteja encerrado em objetos
sólidos e tangíveis como as pedras? Nós devemos realmente acreditar que o que quer
que resida para cá dos objetos é imaterial, incluindo o próprio ar que que garante a
liberdade de movimento e que te possibilita estender a mão e tocá-los, sem mencionar
o seu próprio dedo – e, por extensão, o resto do corpo, vistos que os dedos não são
controlados pela mente com um controle remoto? Seria o ar que você respira um éter
para a mente e seu dedo nada mais que um fantasma da imaginação? (INGOLD, 2011,
p. 23, tradução nossa) 167
_______________
167
No original: “But has touching this particular stone put you in touch with the materiality of the world? Is there
nothing material that is not locked up in solid, tangible objects like stones? Are we really to believe that whatever
lies on the hither side of such objects is immaterial, including the very air that affords the freedom of movement
201
Ou seja, não estamos desconectados das coisas do mundo, a materialidade faz parte da
experiência humana. Essa conexão, adesão ao mundo, permite que o próprio espaço vivido se
expanda. No exercício de construirmos lugares para os bebês precisamos, portanto, imaginar
que a escola real irá surgir a partir das ações dos sujeitos que a ocupam e das contínuas
transformações da matéria. Haverá luzes, texturas e sons que não serão previstos e que irão
convocar os bebês a elaborarem respostas. Elas, por sua vez, estarão conectadas ao corpo e ao
movimento e cada bebê irá expressar-se a partir de um conjunto de elementos diversos, como
suas competências corporais, marcas da cultura, de gênero, de raça e repertórios pessoais. Da
mesma forma, é fundamental que essas questões sejam consideradas tanto nos projetos
arquitetônicos quanto na organização dos espaços. De que forma é possível trazer novos cheiros
para dentro das salas de referência? Quais elementos arquitetônicos podem criar sombras e
modificar a luz? Quais interferências sonoras é possível criar nos espaços?
No decorrer da pesquisa, fiz dois registros da mesma bebê, a Yasmin, ao escutar o som
de um avião. Eventos nos quais ela interrompeu o que estava fazendo para dar-se tempo de
escutar o ruído. Narro ambos na sequência a fim de observarmos duas situações nas quais o
som convida uma resposta de Yasmin. Não é somente a palavra falada que nos convoca a
elaborar sentidos para o mundo, é sempre preciso reconhecer que os elementos materiais e
simbólicos se encontram entrelaçados e que as ações dos bebês também são fruto e condição
deste entrelaçamento entre materialidade e discursos.
O primeiro deles (Figura 38) aconteceu durante o período da manhã do dia seis de junho,
logo após a colação, e estende-se para além do registro fotográfico, como pode observar-se no
texto do diário de campo:
As crianças foram deixando o “espaço da coleção” de acordo com seu próprio ritmo.
A Nathiely e a Allicia estavam sentadas no fundo da sala com o suco, momento em
que a Beatriz e a Yasmin se aproximaram. O som de um avião fez com que a Beatriz
e, em seguida, a Yasmin parassem para olhar para a janela. Elas permaneceram
olhando até o momento em que o som terminou. Logo após, a Beatriz voltou a
aproximar-se das meninas sentadas sob as almofadas e a Yasmin me viu e caminhou
na minha direção. Ela parou na minha frente com as mãos em meus joelhos e, após
um momento de silêncio e troca de olhares, perguntei-lhe se ela tinha ouvido o avião.
Ela olhou para mim e em seguida para a janela. Ela estava atenta ao que acontecia e
notou o som de um carro que passava próximo ao CMEI, o som não estava alto, mas
ela começou a dançar. Dançou até não escutar mais o som. (Diário de Campo, 6 de
junho de 2019).
_______________
enabling you to reach out and touch them, not to mention the finger itself – and, by extension, the rest of the
body, since fingers are not operated from the mind by remote control? Is the air you breathe an ether of the mind,
and your finger but a phantom of the imagination?” (INGOLD, 2011, p.23)
202
Beatriz e Yasmin abandonam o que estavam fazendo para poder escutar o som do avião
e olham na direção da janela. Elas conseguem perceber de onde provêm o som e parecem
identificá-lo. Ao cessar o ruído, a Beatriz escolhe retomar a brincadeira com a Allicia e a
Nathiely. A Yasmin, por sua vez, se depara com a minha presença e caminha até mim. Ela ainda
estava atenta aos ruídos do lado de fora da sala quando um carro passou ao longe e ela dançou
com a música. Não é possível e tampouco necessário dizer o porquê ela dançou e parou para
escutar o avião, mas é necessário vermos que ambas as ações faziam sentido dentro do contexto
que ela estava vivendo e a partir de seus repertórios pessoais.
Os sons pareciam ser algo frequentemente mobilizado pela Yasmin na exploração dos
objetos e em sua relação com o mundo. As professoras da turma comentaram que já a haviam
visto transformar um bloco em telefone após ter escutado o telefone da escola tocar. Como a
sala ficava próxima à secretaria, era possível ouvi-lo chamar. Do mesmo modo, os outros bebês
presentes na sala e inclusive os adultos também puderam ouvir o avião e a música do carro, mas
ninguém fez um comentário sobre isso ou expressou-se de um modo que fosse possível notar
que haviam escutado os sons. Devido ao contexto específico, os ruídos do lado de fora afetaram
a Yasmin e a convidaram a elaborar uma resposta, o que nos traz indicativos sobre a
singularidade da experiência e sobre a simultaneidade do espaço.
O segundo evento aconteceu durante o período da tarde no dia doze de junho, na
semana seguinte, enquanto estávamos no solário:
203
Estava sentada ao lado do portão do solário quando notei que a Yasmin apontava para
o céu, olhei para cima e demorei para escutar o barulho do avião. O espaço pareceu
expandir-se com a sua passagem, pois ela estendeu os braços para cima e voltou o
rosto inteiro para o céu. Permaneceu assim até perdê-lo de vista. Ela aproximou-se do
portão e começou a pendurar-se nele e a mexer no trinco quando escutou um ruído,
parou, espantou-se, procurou no céu e depois olhou para a frente. Notou que estavam
cortando a grama ao lado da calçada e apontou nessa direção. (Diário de Campo, 12
de junho de 2019)
Nesse dia, a Yasmin novamente se depara com o som do avião e ergue os braços como
se quisesse alcançá-lo. Desta vez, ela pode escutá-lo e vê-lo cruzar o céu. Ela colocou o dedo
em riste antes de vê-lo, acompanhou sua trajetória e em seguida encontrou um novo convite.
Ela se dirige ao portão e tenta abri-lo, que logo antes havia sido objeto das tentativas da Lolo e
da Beatriz, e é interrompida por um novo ruído. Ela manifesta sua surpresa e o procura no céu,
não o encontra e volta a olhar para frente. Observa um homem cortando a grama e aponta para
ele. Ela parece identificar a nova fonte do ruído após descartar a possibilidade de ser um novo
avião.
204
“O que me atrai na metáfora marina da deriva é que o terreno sobre o qual ocorre o
movimento é um mar incerto, que muda continuamente com base na mutação dos
ventos, das correntes, dos nossos estados de ânimo, dos encontros que se dão. O ponto
é, com efeito, como projetar uma direção, mas com uma ampla disponibilidade à
indeterminação e à escuta dos projetos dos outros. Velejar significa construir uma rota
e modifica-la continuamente (...) encontrando, em suma, no próprio território e em
quem o habita as energias que podem levar adiante o projeto indeterminado no seu
devir: as pessoas certas, os lugares adequados e as situações em que o projeto possa
crescer, modificar-se e tornar-se terreno comum. É claro que um projeto determinado
necessariamente cairá aos pedaços com as primeiras lufadas. Ao passo que um projeto
do outro tipo certamente tem mais esperança de ser realizado.” (CARERI, 2013,
p.172)
Aproprio-me da metáfora mobilizada por Careri (2013) para pensar que da mesma forma
como no velejar, os projetos educativos podem ser construídos à deriva. Isso significa que é
necessário acolher os desvios na rota, assumir a errância e acolher o devir. O reconhecimento
do dinamismo do espaço e da forma como ele se constitui diante dos encontros imprevistos
vividos pelos sujeitos, em um processo dinâmico no qual eles atuam sob a estrutura disponível,
ou seja, em relação com outros processos da esfera macro, nos move a pensar que projetos
determinados também cairão aos pedaços. Os bebês, ao perambularem, criam e descobrem o
mundo, em um contínuo processo de criação de um terreno comum por meio dos encontros
com os outros e com as coisas.
É possível afirmar que a metáfora da deriva, do movimento, tem duas implicações
distintas. A primeira delas diz respeito a acolhida das culturas infantis, da cultura dos bebês, no
espaço da creche. O perambular, apresentado no decorrer desta seção como uma prática
material e cultural dos bebês, é uma forma deles se apropriarem da cultura e se colocarem em
relação com o outro e com as coisas.
205
Eles constroem relações e brincadeiras a partir dos encontros e das mudanças no terreno.
Eles não saem rumo a um destino predeterminado, mas caminham abertos a alterar a rota, a
fazer pausas, a constituir-se continuamente por meio de encontros desconhecidos e imprevistos.
Eles perambulam de forma rítmica, assumem diferentes posturas, percebem a si mesmos e as
coisas, exploram a sua possibilidade de mover-se e de estar no mundo. Além disso, o
movimento compreendido como parte indissociável da aprendizagem e do conhecimento. É ato,
disponibilidade para o encontro e a experiência. A corporeidade também é encontro com as
materialidades, experiência de si no mundo e do mundo em si mesmo.
A segunda implicação refere-se à forma como a prática docente pode ser uma prática
dinâmica e não estática, que acolhe a efemeridade, àquilo que é transeunte, que se constrói à
deriva. Na docência e no fortalecimento de uma prática educativa com bebês se torna necessária
a defesa da indissociabilidade entre corpo e mente, conhecimento e ação, materialidade e ideias.
A acolhida dos bebês e o seu reconhecimento como atores sociais implica em visibilizar a forma
como eles constroem o espaço e a dimensão material da experiência.
O reconhecimento da materialidade provoca a construção de outros lugares para os corpos
dos bebês e requer uma abertura estético-afetiva (RAUTIO, 2013) por parte das professoras a
fim de acolher às mudanças e ao inesperado do cotidiano. Uma escola real, um espaço de vida,
não pode se eximir de valorizar as transformações, o movimento e as coisas que escapam ao
nosso controle.
Dar centralidade à matéria não significa destituir os bebês do seu potencial agêntico.
Significa radicalmente mudar o pensamento a fim de perceber que a relação entre as coisas se
dá de forma horizontal, não vertical e hierarquicamente. Além disso, ao defendermos que a
matéria importa, estamos dizendo que o corpo importa. Ao subvertermos a lógica do
pensamento e passarmos a enxergar os emaranhados materiais-semióticos, o dinamismo do
espaço e do lugar, a inter-relação entre natureza e cultura, corpo e pensamento, estamos dizendo
que reconhecemos e nos confrontamos com a alteridade do bebê. Ao romper-se a supremacia
do pensamento cartesiano, podemos acolher ao Outro. Na educação, isso significa valorizar as
múltiplas linguagens e as profundas conexões entre o global e o local. Significa construir um
projeto educativo à deriva, que se transforma de acordo com os encontros e que sustenta na
participação de todos os sujeitos envolvidos: adultos e crianças.
Ou seja, há necessidade de reconhecer que a construção de uma Pedagogia da Infância
implica na defesa do potencial educativo que reside no imprevisto e no ocasional. A abertura
ao outro implica em resistirmos à tentação de enclausurá-lo, seja por meio do controle de suas
ações ou do poder que deriva do ato de nomear aquilo que o outro faz. A construção de uma
206
Um mote que guia as nossas caminhadas é ‘quem perde tempo, ganha espaço’. Se, de
fato, se quer ganhar ‘outros’ espaços, é preciso saber brincar, sair deliberadamente de
um sistema funcional-produtivo e entrar num sistema não funcional e improdutivo. É
preciso aprender a perder o tempo, a não buscar o caminho mais curto, a deixar-se
conduzir pelos eventos, a dirigir-se a estradas impraticáveis onde seja possível ‘topar’,
talvez encalhar-se para falar com as pessoas que se encontram ou saber deter-se,
esquecendo que deve agir. Saber chegar ao caminhar não intencional, ao caminhar
indeterminado. (CARERI, 2013, p.171)
Deste modo, a observação do grupo de bebês no decorrer da pesquisa aponta para outra
lógica de organização dos tempos, espaços e materiais, dissociada de uma perspectiva utilitária
e fundamentada na ideia de transformação da escola em um ambiente de vida. Para que a creche,
enquanto lugar construído para os bebês, possa transformar-se em um lugar deles – ainda que
eles não o possuam – é preciso que a creche seja um lugar onde sejam visíveis as produções
culturais dos bebês. E, visibilizar o perambular, significa garantir espaços amplos onde eles
possam mover-se e onde, devido à riqueza e complexidade dos conteúdos materiais e
simbólicos disponibilizados, eles possam viver novos e inesperados encontros.
Ao referirmo-nos aos bebês e ao perambular também é preciso rever o campo
semântico a partir do qual narramos a experiência do movimento. No livro “Walkscapes: o
caminhar como prática estética” (2013), Francesco Careri conjuga páginas de texto com pausas:
páginas azuis com citações, fotografias, folhetos, mapas e outros documentos chamados pelo
autor de testemunhos daqueles que “(...) se tem preocupado mais em caminhar do que em deixar
rastros.”(p.23). A primeira página azul contém três colunas de palavras que podem ser
enlaçadas e que constroem um campo semântico a partir do qual é possível falar sobre o
caminhar como uma prática estética.
No decorrer desta seção, mobilizamos um conjunto de termos que podem provocar o
pensamento e disparar novas narrativas sobre a constituição da creche enquanto lugar por meio
do movimento dos bebês. Palavras como errância, deriva, imprevisibilidade, transeunte,
percurso, trajetória, ritmo, direção e os verbos deambular, perambular, vagar e divagar parecem
conter fagulhas para provocar a construção de práticas educativas revolucionárias. A
transformação da creche em um lugar dos bebês parece se tornar possível diante de um
cotidiano educativo em que se valorize o dinamismo, o movimento, a transformação e a
diferença. Uma prática educativa na qual:
207
(...) a errância constitui-se também num princípio político da educação: o mundo pode
ser de outra maneira. O mundo e as vidas que o compõe podem ser de outra maneira,
e nossa vida não pode ser indiferente, consolidar ou legitimar um estado de coisas
como o que vivemos, em que algumas vidas carecem do mais vital para serem o que
são ou simplesmente são discriminadas pela sua cor, gênero, idade, classe; sempre é
possível fazer alguma coisa; não sabemos como deve ser o mundo, não sabemos como
deve ser vivida a vida e também não queremos saber, porque a própria tarefa educativa
é uma construção coletiva, em aberto... Mas sabemos que educar diz respeito a colocar
em questão, problematizar, sacudir, resistir a esse mundo que é menos mundo para
muitos e transformar as formas de vida que habitamos, embora não saibamos o destino
final desse movimento. (KOHAN, 2019, p.155)
O perambular é uma prática dos bebês no mundo e a fim de que seja possível acolher
suas práticas culturais, é preciso que os projetos educativos se saibam à deriva, assumindo o
compromisso com o novo e com a mudança.
208
Afirmar que os bebês utilizam os objetos de modo funcional pode parecer algo
corriqueiro. A convivência com eles e a experiência docente nos trazem memórias de situações
nas quais eles demonstram saber como usar um controle remoto, identificam botões de
aparelhos eletrônicos, sabem onde estão e como acionar interruptores, alimentam-se com
colheres e garfos. Se considerarmos essas situações banais, partiremos do pressuposto de que
cada objeto tem qualidades que lhe são inerentes e que governam de forma unívoca as nossas
ações. Um controle, um garfo e um interruptor sempre foram e nunca deixarão de ser o que são,
tendo somente uma função.
Contudo, se reconhecemos que os bebês são atores sociais e que a utilização dos
objetos se dá em um processo complexo de interpretação e apropriação dos códigos culturais,
é preciso dar destaque a esses eventos e buscar conceitos que nos ajudem a dar visibilidade para
a agência dos bebês e para as formas plurais como eles podem interagir com as coisas. Assim,
veremos que as coisas podem se transformar por meio das narrativas (INGOLD, 2011)
construídas a respeito delas e que a sua utilização segundo os sentidos convencionais também
implica em um conhecimento prévio sobre as diversas materialidades e os gestos que elas
convocam.
No evento da Laura (Figura 40), vemos como a minha entrada em campo mobiliza um
novo significado em relação à cadeira. Quando eu entro em sala, ela se vê diante da
possibilidade de permanecer sentada (uso 1), mas escolhe levar a cadeira até mim para que eu
performasse as minhas atividades de pesquisadora (uso 2). Ou seja, ela podia permanecer
sentada e eu de pé, mas ela opta por levar a cadeira, acionando o repertório construído
coletivamente pelo grupo de bebês como uma resposta à minha escolha de colocar uma cadeira
ao lado da porta, junto ao balcão, e de permanecer nela durante a maior parte do tempo168. Além
disso, vemos como ela compreende os rituais do grupo no momento de alimentação, entregando
seu copo e prato para a professora e recolhendo o pote utilizado pela Yasmin.
Este evento e outras situações que serão narradas e analisadas na sequência nos ajudam
a problematizar o significado do termo funcional a fim de compreendê-lo como parte das
narrativas criadas pelos bebês a partir de repertórios individuais e coletivos. Ou seja, os mesmos
_______________
168
Antes da realização da pesquisa, a cadeira não costumava ser colocada no canto da sala e tampouco era utilizada
com frequência pelos adultos que integravam o grupo, pois as professoras costumavam permanecer de pé ou
sentadas sobre as almofadas. A minha entrada na sala do berçário provocou uma mudança nos valores simbólicos
associados ao uso da cadeira: ela passou a ter um novo lugar e a ser ocupada por um adulto diferente. Eu
costumava chegar antes do momento do café da manhã, ou após ele, e a partir do quarto dia de idas à campo, os
bebês passaram a sempre me trazer uma cadeira. Na parte final do capítulo metodológico (capítulo 3) é possível
localizar outras considerações sobre a cadeira e o processo de entrada em campo.
210
objetos, em contextos diversos, adquirem outras funções, têm propósitos diferentes. Isto faz
com que a ideia de função seja problematizada e que compreendamos que os objetos não têm
atributos que lhes são inerentes: a função é dada pela narrativa construída acerca deles
(INGOLD, 2011).
Esta discussão se conecta com as pesquisas sobre a cultura material na medida em que
reconhece que as coisas fazem as pessoas e as pessoas fazem as coisas. Isto não significa, como
já destacado previamente, tornar animadas as coisas inanimadas, mas assumir a dimensão
material da experiência humana e o entrelaçamento dos aspectos materiais e simbólicos.
Significa perceber a trama por meio da qual interagimos com as coisas a partir dos aspectos
material-semióticos, reconhecer suas possibilidades e condicionamentos e acolher o movimento
e a mudança como algo inerentes à matéria (INGOLD, 2011). Esta perspectiva sobre a
materialidade também demanda um olhar atento acerca dos usos funcionais e da forma como
as coisas permanecem sempre abertas ao futuro.
Este conjunto de reflexões sobre a cultura material e o significado de função possibilita
a valorização das ações dos bebês e o reconhecimento de sua agência, pois os situa como atores
sociais que reinterpretam os sistemas de ações e os alteram a partir do processo de criação de
novas funções para as coisas. O exercício da agência pelas crianças, desde bebês, é tomado
enquanto ponto de partida, como indicado por Alan Prout (2000) e como um conceito
consolidado no campo dos Estudos da Infância (COUTINHO, 2013a; HOLLOWAY; HOLT;
MILLS, 2019; JAMES; JAMES, 2017; VALENTINE, 2011). Ele é um processo plural
imbrincado no contexto vivido por cada bebê e que envolve emoções, linguagens e as
materialidades. O tipo de agência169 exercido nos eventos dessa seção envolve a mobilização
de repertórios e uma leitura do contexto.
Assim, apresentam-se a seguir alguns eventos a partir dos quais podemos refletir sobre
a multiplicidade de usos funcionais dos objetos e ver as coisas em transformação a partir das
ações dos bebês. Realiza-se uma análise do uso funcional dos objetos diante das mudanças no
contexto, considerando-se os repertórios coletivos e individuais.
_______________
169
Faço referência a tipos de agência a fim de situar o trabalho na produção acadêmica atual acerca do conceito.
Sarah Holloway, Louise Holt e Sarah Mills (2019) em artigo recente publicado a partir de um estudo de estado
da arte aponta para diferentes tipos de agência exercidas pelas crianças. Elas apontam que esta abordagem
permite reconhecer os contextos diversos experenciados pelas crianças.
211
_______________
170
Reafirmo que a classificação realizada na pesquisa a fim de evidenciar as diferentes formas como os bebês
interagem com a materialidade e produzem o espaço (perambular, uso funcional e o brincar) são categorias
elaboradas no decorrer da pesquisa, após o processo de produção dos dados, a fim de que fosse possível
evidenciar as narrativas dos bebês e construir uma pesquisa eminentemente ética. No cotidiano, essas diferentes
formas de interação e de ação social estavam entremeadas e os bebês transitavam entre elas, pois a ordem que
organiza o cotidiano dos bebês é a da narrativa e a da relação, não a da separação e classificação.
212
Beth Preston (2000) destaca que ao falarmos sobre função é preciso reconhecer a sua
multiplicidade e dinamismo. Ela concilia duas diferentes concepções filosóficas a fim de
estabelecer uma classificação ontológica que nos permite defini-las enquanto funções
apropriadas e funções sistêmicas171 e promove uma reflexão que nos ajuda a olhar com atenção
para os objetos que os bebês utilizam diariamente.
Nesta perspectiva, denomina-se de “função apropriada” aquela para a qual o objeto é
reproduzido. Por exemplo, uma cadeira é reproduzida e adquirida com o propósito de que as
pessoas se sentem. Podemos chamar de “função sistêmica”, por sua vez, o uso da cadeira como
um apoio sob o qual podemos ficar de pé e alcançar objetos. Segundo a autora (PRESTON,
2000), as funções sistêmicas incluem sistemas que se repetem e usos singulares. Neste sentido,
o uso dos objetos de forma idiossincrática também pode ser considerado uma função.
A divisão utilizada pela autora nos ajuda a acolher essa pluralidade funcional potencial
que emerge dos objetos quando eles passam a se inserir em um sistema, em um campo de ações.
A perspectiva de Tim Ingold (2011) também nos ajuda a analisar essas interações, pois
passamos a compreender que “as coisas deste mundo são as suas histórias, identificadas não
por atributos fixos mas por suas trajetórias em um contínuo campo de relações” (p.160, tradução
nossa)172, deste modo, “funcionalidade e narratividade são dois lados de uma mesma moeda”
(Ibidem, p.57, tradução nossa). O autor não faz menção à diferentes categorias de funções e
convida leitores e leitoras a interpretarem os objetos a partir da noção de movimento e de
trajetória, um elemento característico de sua produção teórica. Daniel Miller (2007), por sua
vez, chama atenção para o fato de que as coisas não podem ser compreendidas sem
considerarmos os processos de consumo, ou seja, os usos que são feitos delas.
As perspectivas trazidas por esses autores nos auxiliam a interpretar e narrar os usos
funcionais dos objetos, inserindo-os em seus contextos de uso e como parte constituinte dos
sistemas de ações. Além disso, essa perspectiva mais ampla sobre função também provoca
perguntas e reflexões que nos levam a adensar o conceito, pois uma perspectiva demasiado
geral e restrita do termo não acolhe as funções idiossincráticas, e por vezes efêmeras, atribuídas
pelos bebês aos objetos e legitima as suas ações somente quando elas equivalem aos usos
adultos das coisas. Ou seja, dizer que a única função de uma cadeira é sentar-se é reduzir o
_______________
171
No inglês, essas terminologias são denominadas de “proper function” e “system function” (PRESTON, 2000).
172
No original: “For the things of this world are their stories, identified not by fixed attributes but by their paths
of movement in an unfolding field of relations.” (INGOLD, 2011, p.160).
213
objeto a sua função hegemônica, marcadamente adultocêntrica e reduzir a agência a uma atitude
racional.
A cadeira era um objeto de contínua negociação entre professoras e bebês. Em alguns
momentos do cotidiano, ela somente era um objeto sob o qual se podia sentar, em outros ela
poderia se transformar em brinquedo nas mãos dos bebês173 e, segundo o contexto, também
poderia ser usada com a função de apoio para que se alcançassem prateleiras tanto por adultos
quanto por bebês. Isso significa que ela era envolta por tensionamentos quanto às funções que
ela poderia tomar segundo os rituais da turma. Ou seja, havia configurações espacial-temporal
específicas que demarcavam para adultos e bebês alguns limites para a transformação das
funções do objeto. Por exemplo, quando as professoras contavam histórias ou durante a prática
da chamada, momentos nos quais todos eram convidados a permanecer no território demarcado
pelo tapete, os bebês ainda tinham a possibilidade de fazer outras coisas na sala e podiam subir
e descer das cadeiras, brincando com o seu corpo e inserindo-as como um elemento do
perambular e da experiência do movimento, contudo não se permitia que eles empurrassem as
cadeiras devido ao barulho.
Em outras situações, não havia essa restrição sonora e os bebês criavam narrativas
diversas: eles podiam empurrá-las, engatinhar sob suas pernas, usá-las como apoio para
alcançar o topo dos balcões ou para ficar de pé (gesto frequente do Bernardo, do Davi e da
Luiza) ou ainda sentar-se para descansar ou para realizar alguma brincadeira sobre a mesa a
partir de sua própria iniciativa. O momento da minha chegada era uma dessas situações nas
quais era possível fazer barulho ao empurrar a cadeira, pois as professoras percebiam a
intencionalidade da ação dos bebês e não impunham quaisquer restrições.
No momento em que eles me traziam a cadeira, eles estavam aderindo às funções
simbólicas produzidas dentro do grupo do berçário a partir da relação uns com os outros, com
os adultos (professoras e pesquisadora) e com as professoras. O ritual de começar meu dia
sentada na cadeira no canto da sala se manteve ao largo de toda a pesquisa, porque isso passou
a fazer parte da minha relação com os bebês. Esse valor simbólico que a cadeira teve no decorrer
do processo é fruto deste sistema específico e de suas formas de funcionamento.
_______________
173
Gilles Brougère (2010a) destaca que o brinquedo é um objeto extremo, pois nele o símbolo se transforma na
função. Destaco que a definição do autor, que será retomada na próxima seção de análise, se fundamenta em
uma distinção entre símbolo e função. Esta perspectiva não contradiz a categorização proposta por Beth Preston
(2000), pois a autora parte do princípio da multiplicidade de funções e afirma que, a partir de outros estudos, é
possível também caracterizar os objetos, por exemplo, segundo suas funções técnicas e simbólicas. O termo
função, apesar de ser utilizado pelos autores a partir de perspectivas sutilmente distintas, é mobilizado por ambos
como algo plural, múltiplo e dinâmico.
214
_______________
174
No grupo acompanhado, os bebês faziam 5 refeições no dia: café da manhã, colação, almoço, colação e janta.
215
expressar o seu desejo, necessidade e comunicar a sua aceitação da ordem dominante a partir
do exercício de uma agência tática (LANGEVANG; GOUGH, 2009)175.
_______________
175
As autoras (LANGEVANG; GOUGH, 2009), ao cunharem o termo, partem da distinção entre os conceitos de
tática e estratégia de Certeau a fim de destacar a forma como as crianças dão respostas criativas à estrutura da
sociedade, sob a qual lhes falta controle.
216
(...) as pessoas jovens não são simplesmente atores sociais independentes; sua
habilidade de exercer a agência emerge no contexto de dependências inter e
intrageracionais, as quais, dependendo do contexto, podem sustentar ou suspender
possibilidades para que elas cumpram suas necessidades atuais e futuras. 176
(HOLLOWAY; HOLT; MILLS, 2019, p. 463, tradução nossa)
Assim, o uso simbólico das cadeiras e mesas nos traz indicativos para pensar sobre a
forma como a consolidação destes rituais, destas rotinas culturais (CORSARO, 2011),
promovem e garantem a participação dos bebês. Nas situações de alimentação, os babadores
também eram um elemento que indicava aquilo que aconteceria à seguida e, com frequência,
eles se sentavam próximos às mesas e encerravam as brincadeiras que estavam realizando ao
notarem os babadores. O ritual de alimentação lhes permitia de forma autônoma encerrar suas
brincadeiras e escolher uma nova forma de se colocar em relação com os outros e com as
materialidades, ou seja, lhes garantia uma possibilidade para que atendessem as suas
necessidades.
Os eventos em que se registram a interação dos bebês com os elementos presentes nos
rituais de alimentação nos apontam que esses momentos, ainda que marcados por regras mais
restritas quanto àquilo que os bebês podiam realizar, não podem ser compreendidos sem
olharmos para a forma como eles aderiam ao uso convencional destes objetos, mobilizavam os
códigos elaborados no cotidiano do grupo e tensionavam o seu desenrolar.
O Bernardo, em uma situação, sobe na mesa para procurar pela professora Paula e gera
uma mudança no momento do almoço:
Neste dia, a professora Paula estava tratando a Lolo e, ao seu lado, a Laura permanecia
de pé, aguardando. A Paula já havia anunciado que a Laura seria a próxima. Contudo,
o Bernardo localizou uma cadeira sobressalente e subiu na mesa, colocando-se
sorrindo em frente à professora. Este evento altera o desenrolar da refeição: a
professora o alimenta em seguida e explica para a Laura que ela precisaria aguardar
porque o Bernardo estava com fome. (Diário de Campo, 10/05/2019)
Não é possível afirmarmos que o Bernardo sobe na mesa para pedir pelo almoço, mas
a sua ação nos provoca a reflexão sobre como os bebês interagem com as materialidades e se
posicionam de forma diferente no espaço segundo seus interesses pessoais. Ele desejava se
relacionar com a professora Paula no momento da alimentação e usa a mesa e a cadeira com
_______________
176
No original: “(…) young people are not simply independent social actors; their ability to exercise agency
emerges in the context of inter and intra-generational dependencies which, depending on the context, can open
or foreclose possibilities for meeting their current and future needs.” (HOLLOWAY; HOLT; MILLS, 2019, p.
463).
217
uma função diversa da convencional a fim de estabelecer essa relação. Durante esses momentos,
como já exposto acima, parecia haver uma espécie de acordo tácito entre professoras e bebês e
eles não costumavam subir nas mesas e cadeiras durante as refeições, gestos frequentes em
outras situações do cotidiano. A ação de Bernardo de subir na mesa, exatamente devido ao
contexto em que ocorre, é interpretada pela professora177 como fome e ela acolhe o uso que ele
fez dos objetos nesse momento. As materialidades disponíveis permitem que ele interrompa a
ordem constituída e lhe possibilitam o exercício da agência.
As cadeiras, mesas, talheres, pratos e copos, desta forma, comunicam sobre as
convenções sociais produzidas com e a partir delas, sobre àquilo que socialmente é considerado
legítimo, contudo, aquilo que eles comunicam não é unívoco e a sua própria existência pode
provocar a criação de novos significados. Os bebês aderem a esses usos funcionais
convencionais e encontram também a possibilidade de inserí-los em novos sistemas.
Nos eventos da Laura, Davi Luccas, Valentina e Bernardo, vemos como os repertórios
coletivos se constituem ao largo da vida na creche por meio da relação entre bebês e adultos e
do compartilhamento de significados sobre os objetos. Deste modo, assim como a função dos
objetos não lhes é inerente, ela tampouco está desconectada das trajetórias dos sujeitos e das
materialidades. Ou seja:
(...) tampouco os usos das ferramentas são simplesmente inventados no local, sem
considerar a história de práticas passadas. Pelo contrário, eles são revelados aos
praticantes quando, frente a uma tarefa recorrente na qual se sabe que os mesmos
recursos haviam sido empregados, eles são percebidos como meios de proporcionar a
sua realização. Então, as funções das ferramentas, assim como os significados das
histórias, são reconhecidas por meio do alinhamento de circunstâncias do presente
com conjunturas do passado. 178 (INGOLD, 2001, p.57, tradução nossa)
_______________
177
A interpretação da professora Paula também pode guardar relação com o fato que o Bernardo, em especial, era
um bebê que costumava reiteradamente aproximar-se do balcão com a comida e chorar, expressando o seu desejo
de comer. No início do ritual do almoço, também era frequente que alguns bebês se aproximassem às cadeiras
ou se sentassem, comunicando o seu desejo em se alimentar e participar deste momento.
178
No original: “But neither are the uses of tools simply invented on the spot, without regard to any history of past
practice. Rather, they are revealed to practitioners when, faced with a recurrent task in which the same devices
were known previously to have been employed, they are perceived to afford the wherewithal for its
accomplishment. Thus the functions of tools, like the meanings of stories, are recognized through the alignment
of present circumstances with the conjunctions of the past.” (INGOLD, 2011, p.57, tradução nossa).
218
Durante o decorrer do semestre, houve situações nas quais as almofadas não estavam
em sala179 e a Yasmin buscou por outros objetos semelhantes que lhe conferissem um conforto
similar e lhe permitissem descansar (Figura 43). De forma proposital, ela escolhe uma boneca
com o corpo almofadado e um grande livro de tecido sob o qual pode se recostar. Ela leva
ambos até o tapete emborrachado e retoma o seu ritual de descanso.
Diante da sua necessidade pessoal, ela reconfigura o espaço e explora a potencialidade
funcional das materialidades. As professoras também notam as escolhas de Yasmin e, em um
dia que as almofadas não podiam estar em sala, garantiram a presença do livro para possibilitar
_______________
179
Essas situações ocorreram em dias que as almofadas estavam sendo higienizadas e durante um surto da doença
“mão, pé, boca”. Para evitar o contágio, todos os tecidos foram retirados para limpeza.
219
Os bebês podem exercer uma agência tática (LANGEVANG; GOUGH, 2009) e o uso
funcional dos objetos passa por questões corporificadas e tendo em consideração a forma como
nos constituímos material e simbolicamente. Além disso:
_______________
180
Informalmente, as professoras me disseram que tinham guardado todos os livros de tecido, mas haviam
garantido que este livro permanecesse na sala para que a Yasmin pudesse se sentir bem.
220
(...) sua corporificação temporalmente situada como ‘ser e devir biossocial’ tem, ao
menos potencialmente, implicações para a forma como a sua agência se dá (e a
resposta que recebe). Neste sentido, sua agência é inevitavelmente biossocial, visto
que ambas suas ações estratégicas e propositais, e suas emoções, hábitos, disposições
e elementos extra-racionais de conduta, estão inter-relacionados com as
potencialidades da sua corporeidade ao emergirem em contextos mais amplos de
poder. (HOLLOWAY; HOLT; MILLS, 2019, p. 472, tradução nossa)181
Isto é, os bebês fazem o uso funcional dos objetos a partir de repertórios individuais,
como o ritual de descanso da Yasmin, e de repertórios coletivos, como os estabelecidos pelos
momentos de alimentação, e parecem compreender os condicionamentos espaço-temporal
dados pelo contexto vivido. Contudo, o reconhecimento da competência dos bebês em
interpretarem o contexto em que se situam não significa uma adesão a uma imagem estritamente
liberal do que significa agência, a qual somente é reconhecida em situações nas quais os atores
sociais exibem racionalidade e escolha de formas convencionais (VALENTINA, 2011).
O uso incomum de uma boneca ou de um livro como um objeto que confere
comodidade e que se adequa ao ritual de descanso da Yasmin seria invisibilizado sem a defesa
de que a agência envolve o corpo, o gesto e que emerge em contextos que a possibilitam. Além
disso, em outras situações do cotidiano, os bebês também atribuíam novas e imprevisíveis
funções aos objetos.
No dia em que ocorreu uma festa junina no CMEI Porto Seguro, os bebês passaram
parte da manhã junto com as outras crianças no espaço do refeitório. A Nathiely optou por
permanecer próxima a um familiar de outra turma e a Luiza permaneceu junto a sua mãe, que
neste dia estava responsável pelo grupo. Ao retornarmos desta vivência, a Luiza chorava muito
sentada sobre o tapete emborrachado, onde sua mãe a havia colocado (Figura 44).
A Luiza estava chorando bastante hoje no retorno da festa. Ao vê-la chorando sentada
no tapete, o Allan aproximou-se e tentou dar a ela uma garrafa sensorial que encontrou
no chão. Ele estende o braço e a apresenta para a Luiza, tentando entregar-lhe o objeto.
Apesar do choro não parar e de ela negar com a cabeça, ele insistia. Em um momento,
ele achou que a Luiza iria pegar a garrafa e a deixa cair. Ele volta a segurá-la e mantém
o braço esticado. Ele deixa a garrafa apoiada em sua perna, me vê e vem me dar um
abraço (Diário de Campo, 07/06/2019).
_______________
181
No original: “(...) their time-specific embodiment as a ‘biosocial being and becoming’ has, at least potential,
implications for the form their agency takes (and the response it receives). In this sense, their agency is inevitably
biosocial, as both their strategic and purposeful actions, and their emotions, habits, dispositions and extra-
rational elements of conduct, are entwined with the potentialities of their corporeality as they emerge in wider
contexts of power.” (HOLLOWAY; HOLT; MILLS, 2019, p. 472).
221
Outros usos funcionais feitos pelos bebês dos objetos também envolvem o corpo e
surgem diante de situações específicas possibilitadas pelas materialidades. Era recorrente que
as cadeiras, mesas, ripas de madeira e outros mobiliários fossem usados pelos bebês que não
caminhavam como apoios para ficar de pé. Esses não são usos convencionais e as funções
atribuídas a essas materialidades somente podem ser compreendidas a partir da leitura do
contexto e da interpretação situada a partir do ponto de vista dos atores.
Nas imagens abaixo (Figura 45), vemos como o Davi usa a cadeira como um
prolongamento do seu corpo, algo externo que lhe permite adotar uma nova postura e ver o
mundo de outra perspectiva:
222
Vemos como a cadeira, que estava inicialmente com o encosto voltado para a parede,
gira com o peso do corpo do Davi quando ele ergue as duas mãos e pressiona o seu quadril
contra o assento, pois a altura da cadeira permite que ele encontre um ponto de equilíbrio e
retire as duas mãos para brincar com a vareta. Ao girar, os pés da cadeira acidentalmente se
encaixam nas laterais do tapete, o que impede que ela se mova e permite que o Davi possa voltar
a utilizá-la como uma ferramenta para ficar de pé e dar prosseguimento à brincadeira.
O Davi não previa que a cadeira ficaria estável devido a pressão feita pelo tapete e
descobriu de forma exploratória que poderia permanecer de pé somente com o apoio dos
quadris, ou seja, sem o uso de ambas as mãos. Contudo, a cadeira foi propositalmente usada
como uma ferramenta que lhe permitiu ficar de pé. Este não é o propósito da cadeira, mas essa
função emerge dentro deste contexto específico.
Em outra situação, vemos como a Luiza usa a mesa como um apoio para ficar de pé e
tentar pegar a garrafa que está nas mãos da Melissa (Figura 46). Nas imagens abaixo, vemos
como a Luiza se apoia na mesa e estica um braço até a garrafa, ela permanece olhando para a
garrafa e, em seguida, para a Melissa. Ela, por sua vez, percebe o interesse da Luiza e mantém
a mão longe dela.
223
Outros objetos também eram utilizados frequentemente como apoios para alcançar
locais mais altos e, em específico, para que eles mexessem no trinco e na maçaneta da porta
que conectava a sala ao solário. Eles não tentavam abrir a porta que levava ao fraldário e
tampouco a porta por onde acontecia o ritual de acolhida e de despedida. Os bebês escolhiam
tentar abrir especificamente essa porta e, de modo recorrente, usavam o caixote onde ficavam
guardados os livros para tentar abri-la.
No evento abaixo (Figura 47), vemos como o Kaylan traz o caixote até a porta do solário
e sobe para tentar alcançar a maçaneta. Nesse processo, ele abandona o seu “cheirinho” no chão,
libera as duas mãos e olha com atenção para a porta. O olhar precede o gesto: ele estica a mão
direita e a mantém sobre a maçaneta, levemente movendo-a de um a lado ao outro.
Na sequência, ele desce do caixote e o empurra para longe. A Laura, que antes estava
observando o Kaylan, se dirige até o caixote, o empurra e o coloca em frente à porta (Figura
48). Ela sobe e escolhe mexer na trava do portão, senta-se e é acompanhada pelo olhar atento
da Yasmin, que também sobe no caixote para aproximar-se da Laura. Após um tempo, ela
desce, vira o caixote, colocando-o na sua posição mais frequente e o empurra até o canto onde
ele costuma permanecer. Ao chegar próxima ao tapete, ela levanta o caixote e o coloca no seu
lugar.
Esta sequência de eventos, do Kaylan e da Laura, nos aproxima dos outros usos
funcionais dos objetos feitos pelos bebês ao longo da jornada. Assim como apoiar-se em mesas,
cadeiras, armários e até mesmo na ripa de madeira que circunda a sala eram gestos frequentes
por parte dos bebês; cadeiras, mesas e o caixote se transformavam em convites de exploração
225
Outros bebês, nesse dia, mobilizaram outros gestos ao interagirem com os pneus e a
terra. Vemos o Davi deitado sobre o pneu e a forma como o pneu parece criar um território para
226
a brincadeira do Davi Luccas. Os gestos diferentes acionados por cada um dos bebês também
nos provocam a tensionar uma visão fechada e restritiva acerca dos objetos e a acolher a
gestualidade como uma expressão dos repertórios de cada bebê. Os apontamentos de Tim
Ingold também nos provocam a adensar essa reflexão sobre a gestualidade.
Tim Ingold (2011) destaca que nesse processo relacional a partir do qual as coisas
passam a exercer novas funções, por meio das histórias de uso antecedentes e da profunda
relação com o tempo presente, se passa a reconhecer que esse processo narrativo não acontece
sem o gesto. Ele toma como exemplo uma serra e observa como ela pode exercer essa função
somente ao estar integrada ao conjunto material e simbólico: mão, mesa, madeira e serra. A
memória da função não reside no objeto, mas no gesto, de modo que “(...) a gestualidade é
fundante tanto da criação das ferramentas quanto do uso das ferramentas.” (p. 58, tradução
nossa).182
Esta potencialidade funcional dos objetos é explorada pelos bebês ao longo da jornada
a fim de que eles atendam as suas necessidades e demandas. Do mesmo modo, as professoras
fazem usos diversos das materialidades, inserindo-as em sistemas de ação e de significado
atravessados pela dinâmica do que se considera educativo e propício para a educação de bebês.
Ao elaborarem contextos para os bebês brincarem e explorarem, as professoras também fazem
uso dessa multiplicidade funcional e intuitivamente partem do princípio de que os bebês podem
transformar pisos, paredes, mobiliários e materiais diversos em brinquedos. Ao reconhecerem
_______________
182
No original: “It follows that gesture is foundational to both toolmaking and tool use.” (INGOLD, 2011, p.58)
227
esse dinamismo, elas criam situações nas quais operam outras regras de uso dos materiais e que
favorecem as práticas dos bebês. As almofadas são usadas em um contexto de jogo simbólico
e as cadeiras são colocadas de cabeça para baixo, criando um novo lugar para acolher as
brincadeiras dos bebês.
O uso funcional dos objetos é um processo marcado pela construção de narrativas que
permitem aos bebês ler o mundo e produzi-lo ao atuarem com os objetos, interagindo com a
matéria e mobilizando os significados culturais que os envolvem. Ao partirmos deste
pressuposto, vemos como cadeiras, mesas, copos, pratos, talheres, colchões, travesseiros,
almofadas e estantes são materialidades presentes na creche e que envolvem o
compartilhamento de significados e de rituais.
A previsão do acervo material da creche igualmente se dá por meio do reconhecimento
dos processos diversos dos quais os bebês participam no dia a dia na escola e é preciso
reconhecer a autoria dos bebês nas diversas interações. Estes momentos rotineiros, que
compõem a jornada educativa, também são situações nas quais os bebês nos comunicam sobre
a relação que eles vêm construindo com os objetos da cultura e dos quais se apropriam
criativamente. Acompanhar os bebês em seus começos também significa olhar com atenção
para o acervo material ao qual eles têm acesso ao largo de sua jornada na escola.
O uso de cada um desses objetos nos conta sobre as trajetórias dos bebês e as relações
que eles constroem cotidianamente na escola e em suas casas com cada um destes elementos
da cultura material. Do mesmo modo, comunica sobre a forma como os bebês se apropriam de
alguns dos significados sociais que envolvem o uso dos objetos. Nas interações construídas
pelos bebês com os elementos da cultura material é possível notar a forma como eles se
apropriam destes significados e os mobilizam em favor de suas lógicas próprias, negociando as
condições de uso e transformando os símbolos a fim de posicionar-se nas relações sociais.
Desta forma, no decorrer desta seção, observou-se que os atores sociais, adultos e
bebês, constroem narrativas contextualizadas ao fazerem uso das materialidades, calcadas na
228
história dos objetos, nos repertórios dos sujeitos e em relação com o contexto183. Além disso,
reside sempre a possibilidade de construção de narrativas abertas ao futuro devido à
indeterminação do novo, da acolhida do diverso e do exercício da agência. Ou seja, a função
dos objetos não reside neles, mas nas narrativas elaboradas pelos sujeitos a partir da
interpretação dos significados e relação com as coisas e com o outro.
A própria ideia de que as pessoas fazem as coisas e as coisas fazem as pessoas nos
provoca a perceber que o bebê e a forma como ele exerce a agência na relação com o mundo é
algo que se constrói com as coisas. Os bebês não somente as utilizam para se expressarem e
atuarem no mundo, mas eles não existem separados daquilo que as coisas lhes possibilitam e
impedem de realizar. Nesse processo, eles se constituem em relação com tudo o que lhes rodeia
e as coisas não existem desconectadas das narrativas situadas construídas com elas. Escapamos
do risco de reduzir o objeto à representação e de reificá-lo e passamos a compreendê-lo como
um produto de relações temporal e espacialmente localizadas. Do mesmo modo, passamos a
compreender a agência dos bebês como algo que emerge dos contextos vividos.
Nesse sentido, a participação dos bebês nos rituais da turma e a forma como eles
utilizam os utensílios do cotidiano segundo as convenções sociais também se configuram como
uma escolha, uma possibilidade de exercer a agência. Eles poderiam inserir as coisas em
narrativas outras, contudo, optam por fazer o uso convencional dos objetos e por meio destas
ações autônomas comunicam para os adultos e os outros bebês o seu desejo de participar destes
momentos do coletivo. Do mesmo modo, quando fazem um uso funcional idiossincrático das
coisas, eles estão elaborando novas narrativas e transformando-as em ferramentas. Eles têm um
propósito em vista e escolhem os materiais adequados para atenderem as suas necessidades.
Isso nos aponta para o fato de que a potencialidade funcional das coisas não é algo que
lhes é inerente, mas que está intimamente relacionada com as rotinas culturais (CORSARO,
2012) e com os repertórios culturais-materiais-gestuais. Quando os bebês tentam fazer o uso
dos talheres, pratos, copos, travesseiros, lençóis, pomadas e outros objetos que lhes são
cotidianos em suas rotinas de cuidado eles estão acionando a memória desse gesto e os sentidos
produzidos nas situações de uso desses materiais.
No cotidiano da creche, compete às professoras buscarem interpretar e conhecer os
sentidos e gestos conhecidos pelos bebês, pois quando eles fazem o uso desses materiais, eles
_______________
183
Por contexto, concordamos com a perspectiva de Anna Bondioli, traduzida por Angela Coutinho, Daniele Vieira
e Catarina Moro, como: “(...) entendemos o contexto educativo constituído de elementos concretos (pessoas,
mobiliário, materiais, etc.) que compõem as dimensões materiais, relacionais e simbólicas, articulam-se e se
definem de modo dinâmico, recíproco e contínuo.” (2019, p. 55).
229
Olhar para esses usos funcionais das coisas tampouco significa reduzir o potencial das
coisas ou construir uma visão que compartimenta e categoriza as ações dos bebês. A exploração
de outras posições corporais, assim como o movimento de deambular pelo espaço e a
transformação das coisas em brinquedos acontecem de modo fluido e contínuo. Eles alteram o
uso dos materiais com frequência, produzindo sentidos internos ao próprio movimento e
sentidos funcionais que podem ser capturados pelo olhar adulto. Tendo isso em vista, a próxima
seção tem como mote a discussão das brincadeiras dos bebês e a inserção das coisas na
coreografia do brincar.
231
A palavra coreografia nos remete à dança, aos movimentos, ao corpo, à forma como
nos relacionamos com o espaço, comunicamos sentidos e acionamos gestos. A memória da
dança nos indica algo fluido em que cada novo movimento acontece em relação com o cenário,
o palco, os gestos dos outros bailarinos. Ela nos remete ao conjunto e a cada cuidadoso
movimento que o compõe, o altera, o desconstrói e reconstrói. Há coreografias onde cada
posição é meticulosamente prevista e há aquelas que convocam à improvisação, arranjos
provisórios que se compõe no instante em que ocorrem como uma resposta cinética dos
bailarinos àquilo que lhes acontece.
Se coreografia significa a arte de dançar ela é metáfora nesta seção de análise para
narrarmos e analisarmos as brincadeiras dos bebês a partir de uma perspectiva que reconhece
que as coisas e os sujeitos se constituem por meio dos emaranhados material-semióticos e que
o brincar é um processo dinâmico e coreografado por meio de improvisações. Ou seja, as
situações nas quais os bebês interagiram com as materialidades disponíveis e as transformaram
em brinquedos são situações dinâmicas e fluidas nas quais as coisas convocam os gestos,
comunicam sentidos, os bebês interpretam os símbolos, promovem mudanças nas formas,
alteram os significados. São situações cultural e materialmente situadas nas quais observamos
o jogo de improvisação provocado pelo encontro entre os bebês e as coisas, acontecimentos
provisórios na medida em que são irrepetíveis, ainda que envolvam a reiteração.
Falar sobre o brincar dos bebês em consonância com os conceitos mobilizados no
decorrer desta pesquisa significa refutar perspectivas que compreendem o brincar como uma
prática que se coloca em função do desenvolvimento infantil (BROUGÈRE, 2018;
EVALDSOON, 2008), como uma preparação para o futuro, e compreendê-lo como uma prática
social e autotélica (RAUTIO, 2013). Nesse sentido, Harker (2005) aponta para a necessidade
de teorizarmos sobre alguns aspectos do brincar a fim de compreendê-lo como um processo
fluido e polimórfico. Assim, ao buscarmos analisar as distintas interações dos bebês com as
materialidades, o intuito é o de observar como ocorrem esses encontros e não o de classificá-
los segundo diferentes tipologias de brincadeiras. Não nos interessa estabelecer categorizações
rígidas nas quais as brincadeiras de jogo simbólico são apresentadas separadamente das
explorações sensoriais e motoras, pois essas diferentes nuances estão inter-relacionadas na
experiência do brincar.
Isto implica no rompimento de outros binarismos que atravessam a produção sobre o
brincar, como a “(...)diferenciação entre brincadeira e jogo, diferenciações de gênero e
distinções entre o brincar e a seriedade, o brincar e o trabalho, dentre outras.” (EVALDSOON,
233
2008, p.316, tradução nossa)184. Assim, parte-se do pressuposto que o brincar é um elemento
central das culturas infantis (CORSARO, 2011), que não está alheio à cultura adulta e que, do
mesmo modo, não pode ser compreendido separadamente da atividade lúdica dos adultos
(HARKER, 2005).
Também é preciso chamar atenção para o fato que o brincar tem sido visto como uma
atividade descarnada185 (MANSO; FERREIRA; VAZ, 2017), promotora do desenvolvimento
cognitivo, e que o reconhecimento do brincar como uma ação corporificada (HARKER, 20005)
envolve atenção aos afetos, à sensorialidade, àquilo que não é representável. Ou seja, o
reconhecimento do corpo e do movimento não pode se restringir a “(...) trazer mentes
descorporificadas em contato com o mundo material.” (INGOLD, 2011, p.21, tradução
nossa)186.
Não basta mencionar as materialidades e descrever os movimentos do corpo somente
em termos de linguagem e de comunicação ou de investigações cognitivas sobre as suas
propriedades. Ou seja, na exploração dos materiais, não está em jogo a investigação sobre suas
propriedades físicas como uma atividade cognitiva que se realiza sobre a matéria, o que ocorre
é um processo dinâmico de encontro do bebê corpo-mente com as coisas. O corpo adentra no
brincar com todas as suas marcas simbólicas e materiais, dimensões representáveis e não-
representáveis.
Assim, a forma como o brincar é conceituado nesta pesquisa acolhe o dinamismo das
relações, a pluralidade de processos por meio do qual o espaço se constitui e reconhece a
dimensão material da experiência humana. A metáfora da coreografia187 é um convite para
reconhecermos o corpo e o movimento como elementos indissociáveis da prática do brincar,
assim como para darmos atenção ao como, ao processo, às improvisações. Deste modo, os
eventos narrados nessa seção nos aproximam do brincar dos bebês à medida em que nos
_______________
184
No original: “such as (…) play and games as different activities, gender differentiation in play, and the
distinctions between play and seriousness, play and work, and so on”. (EVALDSOON, 2008, p.316).
185
As autoras falam de “flesheless activiy” e mobilizo na tradução o termo literal para flesheless, contudo
reconheço os limites da palavra “descarnada”.
186
No original: “(…) brings incorporeal minds into contact with a material world.” (INGOLD, 2011, p.21).
187
Susana Manso, Manuela Ferreira e Henrique Vaz (2017) publicaram um artigo denominado “Children’s play
events as improvisational choreographies” no qual eles traçam um paralelo entre elementos presentes na
coreografia da dança com questões corporais e de movimento que emergem no brincar. Eles consideram que o
brincar corresponde a uma coreografia de improvisação e discorrem sobre os significados atribuídos pelas
crianças aos objetos. O uso do termo e a forma como os eventos do brincar são narrados ao longo desta seção
ampliam a perspectiva apresentada pelos autores ao reconhecermos os elementos exploratórios do brincar e a
matéria. Na análise dos autores, eles dão destaque ao potencial comunicativo do corpo, contudo não fazem
menção aos elementos não-representáveis. Nesta seção da dissertação, por sua vez, o corpo também é
considerado em sua dimensão material e não-representável: afetos, sensações, sentimentos, emoções. Com isso,
acolhemos aos sentidos internos produzidos durante as coreografias do brincar.
234
permitem visualizar esta coreografia, este movimento que é fruto do entrelaçamento de aspectos
materiais e semióticos. Os encontros com o mundo, que irrompem e muitas vezes interrompem
o que estava em curso para iniciar algo novo, também nos convocam a acionar a dimensão
lúdica do encontro com as coisas.
O lúdico, desta forma, se manifesta como a possibilidade de liberar o gesto e as coisas
de vinculações contextuais ao romper com as formas canonizadas do cotidiano (ANTONACCI,
2017). Se na seção anterior vimos como as coisas se transformam em ferramentas e adquirem
um valor funcional a partir da sua inserção em narrativas, no brincar vemos como se ampliam
as possibilidades de exploração e interação com as materialidades ao potencialmente
desvinculá-las dos rituais e dos códigos que as envolvem a fim de inseri-las na coreografia do
brincar, também marcado por seu próprio ritmo e pela vinculação dos bebês com as coisas.
Esta seção foi introduzida com uma narrativa de um evento do brincar no qual vemos
a forma como os bebês constroem juntos um sentido para o movimento e o toque da vareta nas
mãos e na mesa (Figura 51). A Nathiely, a Heloísa e a Beatriz se comunicam com o olhar e se
deparam com a possibilidade de dar respostas inéditas ao que lhes acontecia ao verem e
sentirem a vareta. Era uma vareta de madeira com filetes de TNT que era entregue aos bebês
quando as professoras lhes convidavam para dançar, denominada pelas professoras de
“pompom”. Este material, ao participar do brincar, produz sensações e sentidos internos ao
próprio jogo. Ele é extensão do corpo da Nathiely, posicionando-se no espaço segundo o sentido
estabelecido pelo seu dedo indicador. Ela segura a vareta com cuidado, posicionando o dedo
sobre a hasta de uma maneira que ela se transforma em um prolongamento do seu corpo. A
Heloísa mantém a mão estática, seguindo a vareta com o olhar. A Beatriz, por sua vez, toca no
local onde a vareta esteve: as marcas deixadas pela vareta seguem se transformando com a sua
ausência.
Destaca-se que no processo de análise desses eventos em que observamos o brincar,
nos detemos a essas situações do micro, da escala local, mas que tampouco podem ser
compreendidas aparte de suas conexões com outros processos globais. Reside no brincar o
potencial revolucionário de fazer as coisas diferentes e de transformar os objetos e os
significados, mas ele não pode ser compreendido separadamente de regimes discursivos de
poder (HARKER, 2005). A beleza do encontro com as coisas, portanto, não pode ser
prerrogativa para produzirmos o apagamento das condições que reproduzem desigualdades
geracionais, educacionais, sociais e criam situações de exclusão das crianças, desde bebês. A
romantização do brincar tem como efeito venéreo a ausência de ações que promovam o acesso
de todas as crianças a materiais, relações e condições sócio-temporais que favoreçam e
235
Ainda que os termos sincrônico e diacrônico estejam mais vinculados ao tempo, eles
também podem ser pensados em relação ao espaço, o que nos ajuda a compreender o contexto
mais amplo em que ocorre o brincar. Doreen Massey (2005) aponta para a forma como o tempo
e o espaço devem ser pensados juntos, não porque sejam idênticos, mas porque a forma como
os compreendemos produzem implicações um no outro. Reimaginar o espaço a partir de “(...)
um novo conjunto de ideias (heterogeneidade, relacionalidade, contemporaneidade, vivacidade,
portanto) no qual ele libera um cenário político mais desafiador.”188 (2005, p.13, tradução
nossa) e concebê-lo desta maneira no pensamento educacional significa acolher a pluralidade
de trajetórias e substituir a história única por muitas histórias. Ao reimaginarmos o espaço e o
brincar, passamos a compreender que há muitos processos acontecendo simultaneamente,
diversas formas de narrar o vivido e uma pluralidade de percursos de desenvolvimento e de
aprendizagem
Assim, enquanto elementos sincrônicos, daremos destaque àquilo que emerge do
encontro entre os sujeitos e as coisas nos eventos do brincar: palavras, gestos, sensações e
símbolos. No plano diacrônico, por sua vez, nota-se como a forma como as relações entre pares,
construídas ao largo do tempo, assim como os repertórios mobilizados por cada bebê e os
significados produzidos em torno dos objetos, estruturam os eventos do brincar. Destacamos
que esses aspectos se encontram continuamente e dinamicamente entrelaçados e que a distinção
entre sincrônicos e diacrônicos é uma chave de leitura teórica que nos auxilia a compreender o
brincar como uma prática cultural e materialmente situada por meio da qual ocorre o encontro
de trajetórias. Isto é, as coreografias do brincar envolvem improvisações que se dão em relação
com as trajetórias dos bebês e das coisas. A fim de aprofundar essa análise e discorrer acerca
destes elementos, apresentam-se a seguir outros eventos do brincar, os quais foram descritos
minuciosamente para dar visibilidade ao gesto, ao corpo, aos afetos189.
_______________
188
No original: “(…) among another set of ideas (heterogeneity; relationality; coevalness… liveliness indeed)
where it releases a more challenging political landscape.” (MASSEY, 2005, p.13)
189
No decorrer desta seção, o tipo de descrição realizada é uma escolha estratégica que visa promover um olhar
atento para o brincar dos bebês e para a sua complexidade. Nesse sentido, essas narrações demandaram uma
transcrição detalhada dos registros audiovisuais e visam provocar os leitores e leitoras a reimaginar o brincar
dos bebês a partir das chaves de leitura mobilizadas no decorrer desta pesquisa.
237
Era o último dia de observação com os bebês e eu estava sentada na cadeira ao lado da
porta quando a Melissa se aproximou com uma pedra em mãos. A câmera estava apoiada sobre
o balcão e eu tinha as duas mãos livres:
Ela estica um braço e entrega a pedra em uma de minhas mãos. Em seguida, ela puxa
a mão apoiada sobre a minha perna e coloca uma ao lado da outra. Eu mantenho as
palmas das mãos abertas e voltadas para cima, curiosa em compreender quais as regras
que a Melissa estabeleceria para esse jogo. Me mantenho em silêncio e me sinto
intimamente responsável em participar desta brincadeira, fico atenta a ela e a mim
mesma. Ela olha para mim, troca a pedra de mão e empurra meus dedos para dentro,
fazendo com que a minha mão se feche. Eu abro as mãos, ela pega a pedra e repete o
mesmo movimento com suas mãos: abre e fecha ocultando a pedra por alguns
instantes. Ela me devolve a pedra e empurra levemente os meus dedos. Eu repito o
gesto, troco a pedra de mão, a recubro com meus dedos e volto a abrir as mãos. Ao
mesmo tempo, a Melissa abre e fecha a mão, em sincronia com o meu ritmo. Ela pega
a pedra novamente e o jogo se repete. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes... Na sexta
vez, eu fecho as mãos e cruzo os braços, mantendo-os esticados. Ela deixa de olhar
para baixo, me fita nos olhos e diz “Cadê brinquedo?”. Eu abro ambas as mãos, ela ri
e volta a empurrar os dedos para dentro, me convidando para continuar o jogo. (Diário
de Campo, 26/06/2019)
Este evento do brincar no qual eu e a Melissa jogamos com nossas mãos, a pedra e o
oculto, foi disparador para que mobilizássemos o termo coreografia do brincar a fim de narrar
e analisar esses eventos. No momento em que vivenciei este evento com a Melissa, ao tornar-
me um sujeito brincante e reunir-me com a Melissa no processo de transformar meu corpo e a
pedra em brinquedos, eu me vi participante deste acontecimento. Eu percebia que qualquer
mudança alteraria a brincadeira, porque ela se dava entre nós, nossos corpos, as coisas, os
sentidos, os afetos. A pesquisa etnográfica possibilita o engajamento dos sentidos (PINK, 2008)
e foi participando do brincar e reconhecendo a minha presença no campo que pude buscar
conceitos que nos aproximassem da complexa e porosa vida cotidiana (WILLIS, 2000).
Se a pedra escorregasse e rolasse, talvez o jogo mudasse, terminasse ou fosse
retomado, isso dependeria das outras coisas que simultaneamente aconteceriam e poderiam
passar ao nosso redor. Se a Melissa trouxesse uma segunda pedra, haveria uma nova mudança.
Se eu abaixasse ou levantasse os braços, ou se eu falasse, novas transformações poderiam
acontecer. Havia ainda um amplo conjunto de acontecimentos externos que poderiam atravessar
o jogo: alguém poderia pedir pela cadeira, outro bebê poderia me demandar uma foto, alguém
poderia chamar pela Melissa, querer participar da brincadeira ou trazer novas coisas. O próprio
brincar era caracterizado pelo devir, pela possibilidade de a cada instante transformar-se em
algo diferente. Era um contínuo processo de tornarmo-nos brincantes enquanto brincávamos
238
traz indicativos para pensar sobre a forma como os materiais eram apresentados aos bebês e
sobre como a estrutura fixa desses brinquedos e as imagens comunicadas por meio deles não
atraíam o interesse dos bebês. Distribuí-los sobre o tapete ou apresentá-los dentro de uma caixa
plástica não é uma ação docente que valoriza os brinquedos e provaca novas situações de
interação. Da mesma forma, as ações dos bebês nos indicam que o tipo de brinquedo
comercialmente produzido para eles não é o que mais lhes interessa. Outros brinquedos
produzidos industrialmente, como bonecas, carrinhos, fantasias, panelinhas, eram mais
atrativos e escolhidos com mais frequência. Mordedores, brinquedos com botões e chocalhos
eram frequentemente relegados a segundo plano.
Em outras situações ocasionais, os eventos nos quais os bebês interagiam com esses
brinquedos envolviam explorações que nos indicam essa provisoriedade e imprevisibilidade da
coreografia do brincar, como o jogo inusitado criado pela Nathiely, Heloísa e Beatriz no evento
que deu início a esta seção (Figura 51). Davi Luccas, por sua vez, ao brincar com um peixe-
chocalho, joga com o equilíbrio e tenta deixar o peixe apoiado no chão sem que ele o segure
(Figura 52). Esse brinquedo, enquanto produto comercial, tem esferas miúdas em um centro
transparente e laterais com diferentes texturas. Ao ser produzido, era previsto que este
brinquedo seria objeto de explorações sensoriais e sonoras. A exploração da Davi Luccas
caminha em outro sentido ao inseri-lo em um jogo de equilíbrio. O tamanho e a resistência do
peixe podem ser elementos que convidaram a essa investigação, assim como os repertórios do
David.
As cenas deste evento apontam para a forma como a inserção das coisas no brincar
implica em sua possível destituição de atributos iniciais: o Davi Luccas podia brincar com este
objeto como se ele fosse um peixe, podia explorar texturas e sons, assim como pôde explorar o
equilíbrio e mobilizar gestos que lhe eram familiares. Ao posicionar o peixe, ele mantém as
mãos esticadas, próximas ao objeto, tira as mãos com lentidão e troca a posição do corpo. Ele
inicia esta brincadeira sentado com as pernas abertas e a finaliza agachado e, ao trocar de
posição, ele tampouco abandona o peixe. O corpo participa da coreografia, condicionando e
simultaneamente possibilitando novas maneiras de colocar-se em relação com as coisas e ser
afetado por elas. A barbatana encaixa entre seus dedos e ele, por alguns instantes, se equilibra
em três apoios: um pé, uma mão e uma mão-peixe. Reside no brincar a possibilidade de que
provisoriamente aconteça algo novo, pois cada encontro é potencialmente diferente.
241
Ela ajoelhou-se ao lado dele, junto com a Yasmin e, enquanto ela se demorava em
tocar cada ponta da pinha e contê-la entre suas mãos, a Laura observava e selecionava
alguns materiais. Primeiro, ela pegou as pedras, brancas e marrons, depois separou os
cocos e escolheu também toras pequenas de madeira. Ela posicionou cada parte do
coco em um lugar diferente, uma a sua frente e outra atrás. Em seguida, colocou uma
tora do seu lado direito e outra do lado esquerdo.
Rodeada pelos materiais que escolheu, ela pegou as pedras brancas e colocou dentro
dos cocos, transportando-as de um lado ao outro e permitindo que elas escorregassem
para dentro do novo côncavo. Depois, ela pega as pedras marrons e as posiciona dentro
das conchas, colocando-as uma de cada lado da tora que estava a sua frente. Ela
observa com atenção e repete o movimento de trocar as pedras de concha. Ela volta a
colocar uma a sua frente e segura a outra em suas mãos, em seguida, esvazia a concha
e coloca uma pedra em cima da tora. Ela olha para o cesto em busca de algo e pega
mais uma pedra marrom. A coloca do outro lado e observa ao seu redor. Coloca mais
uma tora do seu lado direito e, engatinhando, escapa entre os materiais. Ela está atenta
à posição de suas mãos, troncos, pernas e pés. O corpo não toca na composição quando
ela se retira. (Diário de campo, 31/05/2019)
243
Faço uma foto da composição final, da marca efêmera deixada pela Laura. Me sento
e vejo que ela escolheu duas peneiras brancas, colocou pedras dentro e as está
transpondo de um lado ao outro. Ela me vê, coloca as peneiras entre as minhas pernas
e caminha na direção do outro cesto. Pega os três recipientes azuis: uma xícara e dois
vasos, coloca pedras dentro e retoma o jogo de deixá-las cair e trocar de receptáculo.
(Figura 54)(Diário de campo, 31/05/2019)
244
_______________
195
No dia 26/04, eu havia realizado o registro fotográfico do acervo do berçário e, ao fazer as fotografias e contar
a quantidade de materiais, eu as classifiquei segundo a matéria. No dia 31, quando as professoras apresentam os
cestos para os bebês, eles ainda estavam separados por matéria. Normalmente, as professoras não operavam com
nenhum critério de separação dos materiais nos cestos. Contudo, nesse evento, essa separação parece ter
favorecido esta brincadeira criada pela Laura.
245
Esse jogo durou cerca de vinte minutos, tempo em que a Laura se viu capturada por
esses objetos. Há uma breve interrupção no jogo em um momento em que uma professora
verifica se a fralda dela precisa ser trocada, mas ela não para, segue passando a pedra de um
lado ao outro. Ela também se move enquanto brinca, encontra um destino final para as peneiras,
caminha por toda a extensão do tapete com as coisas em mãos e dá uma volta em uma das mesas
da sala enquanto segura os recipientes azuis em suas mãos. Ela explora diferentes posições do
seu corpo enquanto joga com os materiais. Ela começa ajoelhada e segue, durante a composição
de elementos naturais, apoiada sobre uma perna, sustentando a outra levantada. As pernas
abertas parecem criar os vetores de seu posicionamento e dos objetos no espaço. Ela engatinha
quando sai de dentro do território criado no processo de composição com os elementos naturais,
passa a perambular e se agacha quando encontra novos materiais que lhe capturam. As posições
que ela adota no decorrer da brincadeira, ou seja, aquilo que o seu corpo pode fazer no momento
que está vivenciando o brincar, se apresenta como um elemento sincrônico desta coreografia.
A quantidade de materiais semelhantes e que, comparados, podiam sugerir novas
combinações também se constituiu em um elemento central para o jogo. Além disso, o contexto
também era propício: havia tempo para que a Laura se dispusesse a novos encontros, área que
lhe permitia perambular e ela passou por intervenções suaves por parte das professoras. Os
objetos também percorreram trajetórias diversas até chegarem ao CMEI: a xícara havia sido
utilizada como utensílio de alimentação no ano anterior, um dos vasos tinha marca de uso e o
outro ainda continha resquícios de cola da etiqueta com o preço. Os cocos já haviam alimentado
alguém e previamente já haviam sido parte de um processo de pintura, pois continham marcas
de tinta azul e vermelha.
Cada uma dessas materialidades pode ser compreendida por meio de sua constituição
material e simbólica. Há rastros dos processos de produção e coleta desses materiais que não
podem ser dissociados de sua fisicalidade. Do mesmo modo, os gestos que a Laura mobiliza ao
transpor as pedras de um lado ao outro são gestos arraigados na cultura. A concha não é um
objeto que guarda coisas dentro de si, assim como as toras de madeira não são suportes para as
conchas. As coisas se transformam por meio das narrativas construídas e adentram nesse
processo com suas potencialidades. Se assumirmos que os materiais disponibilizados aos bebês
são coisas, nos vemos convocados a reconhecer o devir, pois:
246
A coisa, por sua vez, é um ‘acontecer’, ou melhor, um lugar onde vários aconteceres
se entrelaçam. Observar uma coisa não é ser trancado do lado de fora, mas ser
convidado para a reunião. (...) Há decerto um precedente dessa visão da coisa como
uma reunião no significado antigo da palavra: um lugar onde as pessoas se reúnem
para resolver suas questões. Se pensamos cada participante como seguindo um modo
de vida ia sugerido, como um “parlamento de fios” (Ingold, 2007b, p. 5). Assim
concebida, a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se
situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de estarem
nele contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa
palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam
temporariamente em torno delas. (INGOLD, 2012b, p. 29)
natureza são provenientes da fauna e da flora do contexto em que se situa a instituição, assim
como os descartes da indústria guardam relação com os processos produtivos que atuam na
configuração deste espaço. O panorama tátil, visual, sonoro e odorífico com o qual a Laura se
depara deixa rastros que podem capturá-la e ser capturados por ela de maneiras plurais e
diversificadas. Além disso, o cesto dos tesouros era ofertado com frequência para os bebês e a
Laura parecia ter intimidade com os elementos escolhidos. As marcas simbólicas que vinculam
as materialidades ao território também se produzem ao largo do tempo e conforme os bebês têm
a oportunidade de se encontrar novamente com os mesmos materiais.
Em outros eventos do brincar vemos como as palavras e a observação da ação dos outros
bebês também podem participar da coreografia. Compreender o brincar como uma prática
situada implica em reconhecermos a pluralidade de processos que ocorrem simultaneamente e
que deixam suas marcas no evento do brincar197. Em uma manhã, os bebês encontraram a sua
disposição um conjunto de cilindros vazados plásticos e opacos:
A Lívia se dirige até o tapete e começa a empilhá-los, o mesmo gesto que a professora
havia realizado ao apresentar o material e convidar os bebês para brincarem no tapete
Em seguida, ela caminha e descobre que o seu pé encaixa dentro do cilindro. Ela
caminha arrastando o pé e, de longe, a Lolo a observa. (Diário de Campo, 10/05/2019)
(Figura 55)
_______________
197
A fim de dar visibilidade aos processos e às mudanças sutis, grande parte dos eventos que serão apresentados
a seguir foram divididos em sequências de imagens distintas. São situações de brincadeiras que ocorreram
durante períodos mais prolongados e que exigiram uma nova estratégia de apresentação das narrativas.
248
Assim que a Lívia abandona o cilindro, a Lolo se dirige até ele, se apoia na mesa e
encaixa o pé (Figura 56). Eu me aproximo para fotografá-la e ela caminha até mim
arrastando o cilindro. Ela repete o mesmo gesto da Lívia. E, em seguida, ela o recria.
Eu me sento em uma cadeira, ela coloca uma mão sobre cada um dos meus joelhos e
tenta colocar os dois pés dentro do cilindro. Ela olha para mim e para baixo, mais de
uma vez após ter colocado os pés dentro. Depois, ela coloca seu peso novamente sobre
meus joelhos e tira os dois pés de dentro do cilindro. Ela o segura em suas mãos e
apoia sobre uma cadeira que estava ao meu lado. (Diário de Campo, 10/05/2019)
Depois que a Lolo coloca o cilindro sobre outra cadeira, eu me afasto para também
acompanhar a brincadeira que a Laura havia iniciado. Simultaneamente, elas
participavam de eventos diversos e que estavam conectados entre si pela participação
da mesma materialidade e pelo movimento disparado pela Lívia. A Laura caminha
até a porta do fraldário, indo e voltando, percorrendo o mesmo trajeto duas vezes
(Figura 57). Diferente das outras bebês, a Laura não arrasta o pé e tenta erguê-lo a
cada novo passo, produzindo um som diferente. O barulho antes era “arrastado” e na
brincadeira de Laura há uma batida rítmica que acompanha os seus passos. Ela se
apoia na mesa para tirar o cilindro e ele encaixa no seu sapato. Acidentalmente, o
sapato é tirado pelo cilindro. Ela segura o tênis em sua mão, recoloca o cilindro no pé
descalço e volta a percorrer o mesmo trajeto. Agora, ela arrasta o pé e a sua brincadeira
contém elementos sonoros e táteis distintos. (Diário de Campo, 10/05/2019)
Enquanto isso, a Lolo encaixa o cilindro em sua cabeça e tenta tirar as mãos,
equilibrando-o (Figura 58). Ela se vira em direção a mesa enquanto tenta equilibrar o
cilindro e o seu movimento chama a atenção da professora Paula, que passa a observá-
la. Ao tirar a mão, o cilindro cai em cima da mesa e a professora diz: “caiuu...”. A
palavra prolongada e suave chama a atenção da Lolo, que olha para a professora,
segura o cilindro em mãos e o arremessa no chão repetindo: “caiiiuu”. A professora
lhe olha com seriedade e a Lolo recolhe o objeto do chão e sai correndo para lhe dar
um abraço. (Diário de Campo, 10/05/2019)
A Laura escuta a professora Paula interagindo com a Lolo, muda seu trajeto e se dirige
até ela sem o cilindro e com o tênis em mãos. Enquanto isso, a Yasmin pega um
cilindro do chão e o coloca sobre sua cabeça (Figura 59). Ela o apoia na testa e mira
com um olho pela fresta. Em seguida, ela o abaixa, espia o chão e volta a levantá-lo,
desta vez colocando-o sobre seu rosto, emoldurando-o. Pouco a pouco, ela empurra o
cilindro para trás e encaixa na parte de trás da sua cabeça. Ela dá alguns passos com
ele equilibrado. Quando ele cai, ela volta a colocá-lo sobre a cabeça e a caminhar com
ele. (Diário de Campo, 10/05/2019)
250
O evento do cilindro, da Lívia, Lolo, Laura e Yasmin torna latente alguns elementos
sincrônicos do brincar. Como uma prática situada, ele está em relação com outros
acontecimentos e com as trajetórias das coisas e dos sujeitos. Na primeira parte, vemos como a
251
_______________
198
No original: “Instead of asking what a sock ‘is’, the approach pushes us to ask what a sock becomes, and has
the potential to become, when we focus on babies’ own engagements.” (ORRMALM, 2020, p.96).
252
fruto da relação com um material ou uma proposta preparada para as crianças, se faz necessário
pensar na diversidade de processos de aprendizagem, desenvolvimento, criação e subjetivação
possibilitados pelo encontro com as coisas e com os outros. Do mesmo modo, há a necessidade
de reconhecer as trajetórias de cada bebê e um olhar atento para os repertórios que eles trazem
consigo e para aqueles que podem conhecer dentro do espaço da escola, assim como o exercício
de um pensamento heurístico que busca descobrir as potencialidades de cada material e se
pergunta sobre o que esse material pode se tornar, não sobre o que ele é.
O evento do cilindro também nos aponta para a seriedade com que os bebês se engajam
em suas brincadeiras. Cada novo momento da brincadeira implicou em um conjunto de regras
distintas quanto a como dar respostas apropriadas ao que estava acontecendo com o material e
consigo mesmos. Ele é lançado ao chão quando a palavra da professora aciona esse repertório
e a Lolo identifica que esta é uma resposta possível para o que estava acontecendo. No chão,
ele convoca o ritmo do passo, o som arrastado ou batucado. Na cabeça, solicitava um corpo
atento à posição das mãos, do tronco, da perna, da cabeça, para que fosse possível jogar com o
equilíbrio. A última imagem da Yasmin revela a forma como ela está implicada em levantar-se
com o cilindro na cabeça (Figura 59). Ele já está encaixado e braços e pernas se posicionam de
uma forma que o tronco se mantenha ereto: um braço para baixo e outro para cima e,
inversamente, uma perna para baixo e outra levantada. Corpo, palavras, gestos e olhares
compõem esta coreografia.
No evento abaixo vemos outros conjuntos de regras criadas pelos bebês no decorrer do
evento e que constroem um marco a partir do qual o brincar acontece. É possível notar os
diferentes acontecimentos que provocam mudanças no brincar e vermos as ações que a
exploração da areia suscita, as sensações tatéis que ela provoca são um elemento central neste
evento. Os bebês transformam as coisas ao mesmo tempo em que são transformados por elas,
exploram e são explorados, capturam os rastros e são capturados. Na coreografia do brincar,
coisas e sujeitos podem ser compreendidos como agentes performativos (TAGUCHI, 2014).
A brincadeira começa com a Beatriz se curvando em frente à areia, ela junta dois
punhados, mantém os punhos fechados, caminha até o pátio e lança a areia (Figura
60). Ela olha para sua mão enquanto a areia escorrega entre seus dedos, mas não a
abre e tenta contê-la até chegar na beirada do caminho. Quando a lança, a areia cruza
sua sombra e a Beatriz olha para a areia caindo. Parte dela segue encrustada nas dobras
dos dedos e enquanto caminha para repetir o processo, ela bate as mãos uma na outra.
(Diário de Campo, 14/06/2019)
253
Em uma de suas idas e vindas, Beatriz se depara com o Kaylan, que interagia com a
areia de outra maneira (Figura 61). Ele colocava as mãos na areia, pegava dois
punhados, deixava as marcas dos seus dedos no chão e em seguida abria as mãos,
olhando para elas atentamente enquanto a areia caía. A areia fazia algo diferente no
Kaylan. Ele repetiu esse gesto algumas vezes e depois passou a transportar a areia até
o gramado com as palmas das mãos abertas.
Beatriz faz uma pausa a fim de observá-lo e modifica o destino da areia. Ela curva o
tronco, agarra dois punhados e com as mãos fechadas caminha até a areia, vira-se e
lança a areia, observando-a cair. Ao retornar, o Kaylan participava de uma nova
mudança. Ele se deita no caminho concretado e estica os dois braços, jogando a areia
para a fora. A Beatriz olha para ele, para o chão e para a areia caída sobre o concreto.
Essa reunião de coisas parece convidá-la a performar o corpo. Até então, ela só havia
colocado as mãos na areia e havia se mantido de pé. A partir desse momento, ela senta-
se e começa a colocar novos punhados de areia ao redor de si. (Diário de Campo,
14/06/2019)
254
Os sentidos produzidos pela Beatriz e as sensações e gestos provados pela areia são os
dois elementos comuns ao largo de toda essa brincadeira e que se fazem presentes nos cinco
momentos apresentados e que ocorrem ao largo de um período de quarenta minutos. Um
258
primeiro elemento que destacamos diz respeito à forma como as materialidades participam do
brincar. A areia brilha devido à luz do sol, ela dança sobre a sombra da Beatriz, se esconde nas
dobras dos dedos, permanece incrustada na pele, se deposita sobre os sapatos, escorrega entre
os dedos, escapa do poder apreensivo das mãos, provoca novas sensações. A areia atua na
coreografia do brincar, provocando novas ações e respostas por parte dos bebês. Ela se
transforma em brinquedo porque se encontra participante deste evento. Do mesmo modo, as
miniaturas emborrachadas, produzidas para outros fins, se tornam extensões dos corpos dos
bebês: elas empurram a areia, deixam rastros no chão, encobrem-se com ela. É diferente puxar
a areia com as mãos ou com o suporte de um boneco, da mesma forma como é diverso recobrir
seu corpo com a areia ou encobrir as miniaturas.
Isto significa que da mesma forma como o material não determina a ação humana, a
presença dessas materialidades tampouco é inerte, pois ela condiciona e possibilita novas
formas de tornar-se com os bebês. Hillevi Lenz Taguchi (2014), ao discorrer sobre uma
brincadeira com a areia evidencia esse caráter processual do brincar por meio do qual as
crianças e os materiais se constituem mutuamente:
As interações dos bebês com a terra, a grama e a areia no espaço externo implicam em
uma nova ampliação de possibilidades para o brincar. As mudanças que transformam a creche
em uma escola real (INGOLD, 2011) se tornam latentes com a presença de materialidades
mutáveis e com a ação de outros elementos que por vezes são postos do lado de fora das salas
de referência: como o vento, a luz e os sons da cidade. O sol e o vento também participam do
evento do brincar narrado acima, assim como é o espaço externo que possibilita o encontro com
_______________
199
No original: “The child cannot thinkfeel (perceive) the beauty of sand swirling and shining in the Wind and
sunlight without these particular grains of sand, the wind and the sunlight. And the grains of sand cannot be
grabbed, tossed in the air, rearranged or reflect sunshine as they are dropped from the hand of the child without
the child and its discursively inscribed actions, the wind and the sun. The sand cannot swirl around without the
wind either, independently of the human child. Mutual transformations, thus becomings-with, are produced
among all these agents in their intra-actions. In the chain of events, human discursive thinking is entangled
somewhere along the line as well.” (TAGUCHI, 2014, p.84).
259
as crianças das outras turmas. A ampla gama de possibilidades que se produzem na interação
com o outro e com as materialidades sustenta o brincar dos bebês.
Ao longo desse evento, também vemos como a Beatriz transforma os seus gestos e passa
a interagir com a areia de formas diferentes conforme outros bebês participam da brincadeira.
Há um conjunto diversificado de maneiras de agarrar e transportar a areia. Os repertórios são
complexificados a partir da interação com os pares e com as crianças das outras turmas. É
possível ver como o Kaylan e a Alice adentram no brincar com um repertório distinto de gestos:
ele mantém as mãos espalmadas e a Alice guarda a areia entre as palmas de suas mãos. A
Beatriz muda o jogo ao posicionar-se no chão e ao esfregar as mãos sobre o concreto junto com
a Alice. As mãos arrastam-se sobre o chão, os pés, as pernas, os peitos e, por último, sobre as
miniaturas emborrachadas.
A Beatriz acolhe a participação dos outros bebês da sua turma, contudo ela e a Alice
não desejam a participação dos meninos mais velhos. Juntas, elas encontram uma maneira de
afastá-los, elaborando uma tática que envolveu o movimento de lançar a areia. Ao fazerem isso,
elas produzem um significado que pode ser compreendido pelas outras crianças. Contudo,
quando eles se aproximam com os bonecos em mãos, elas acolhem essa mudança no brincar e
aceitam a sua participação. Os meninos mais velhos também elaboraram uma tática que lhes
permitiu participar da brincadeira que estava em curso. O dinamismo e a complexidade do
brincar demandam uma atenção ao que está sincronicamente acontecendo ao redor e que pode
alterar a brincadeira. O brincar também é um processo que envolve a negociação da participação
na brincadeira, como também apontam outras pesquisas (CORSARO, 2009; EVALDSOON,
2008; GALLACHER, L.-A., 2005; MANSO; FERREIRA; VAZ, 2017)
Há um conjunto de observações realizadas previamente a este evento que também nos
ajuda a elaborar outras hipóteses para compreendermos as ações e as escolhas das bebês. Antes
da Beatriz iniciar a brincadeira, as professoras haviam pedido para que as crianças não ficassem
na areia e tinham pego no colo os bebês que foram até lá. No início do evento, a Beatriz não
pisa na areia e tampouco se senta próxima a ela, o que pode indicar que ela estava atenta aos
pedidos prévios e estava brincando com a areia de uma maneira que não se opusesse à ordem
estabelecida. Ao mesmo tempo, ao brincar com a areia sem pisar nela, ela reconfigura esta
convenção.
Antes dela brincar na areia, os mesmos meninos mais velhos também tinham colocado
caixas de papelão sobre suas cabeças e corrido atrás da Alice e da Beatriz. Ou seja, a relação
construída entre eles continha marcas específicas e que podem ter influenciado a decisão delas
em os deixarem participar do jogo. Corsaro (2009) relata que as crianças sabem por experiência
260
prévia que a participação de outras crianças pode alterar o curso da brincadeira e, por isso,
elaboram regras e convencionam condutas que lhes permitam controlar a entrada dos seus pares.
Além disso, enquanto a Beatriz já estava brincando com a areia, a Alice estava mexendo
nas miniaturas emborrachadas e já havia manuseado o pato de borracha que ela escolhe para
trazer até a areia em um momento posterior. Quando ela vê os meninos com os bonecos, ela
sabe onde estão guardados e quais são alguns dos bonecos. A escolha que ela faz e o caminhar
certeiro em direção à caixa organizadora têm relação com a sua vivência prévia.
Estas observações apontam para a forma como os eventos do brincar também se
sustentam em repertórios construídos por meio da interação com as materialidades e com os
outros ao longo do tempo, ou seja, elementos diacrônicos. É diante destas constatações que se
apresentam a seguir alguns eventos onde se tornam evidentes o compartilhamento de
repertórios, as relações construídas com os objetos e a relação entre pares.
Depois de ficar satisfeita com o resultado, ela passou a niná-la e em seguida caminhou
na direção de uma almofada laranja localizada próxima à porta. Ali, ela permaneceu
por um tempo buscando permanecer sentada na almofada com a boneca ao seu lado.
A cada pouco, a boneca escorregava e caía no chão devido ao movimento da almofada,
o que fazia com que a Heloísa se levantasse e novamente tentasse sentar-se sob a
almofada com a boneca ao lado. Enquanto a Heloísa estava sentada neste canto da
sala, as professoras preparavam uma corda com bexigas penduradas e a Heloísa
segurava a boneca e observava o movimento das professoras e dos seus pares. (Diário
de Campo, 22/05/2019)
263
A Alice não hesita e passa a brincar com a boneca. Brinca um pouco em frente à mesa,
passa a mão sob os seus olhos e nota o movimento de abrir e fechar das pálpebras200.
Em seguida, a segura entre seus braços e ocupa um canto da sala. Este canto
costumava estar ocupado pelos colchões e, neste dia, eles estavam sendo higienizados
e, portanto, este novo espaço havia sido criado. Neste lugar, ela passa a amamentar a
boneca com uma bexiga transformada em mamadeira. Ela segura com cuidado na
bexiga, escolhendo uma de suas pontas para encostar na boca da boneca. (Diário de
Campo, 22/05/2019)201
Em um momento, a Heloísa a nota e se aproxima. Ela pega a boneca negra das mãos
da Alice, que olha ao seu redor e decide pegar a boneca branca que estava ao lado.
Elas passam a brincar juntas, neste canto, cada uma com uma boneca (Figura 69). A
brincadeira se encerra quando as professoras chamam os bebês para guardarem os
brinquedos e se dirigirem até o solário. (Diário de Campo, 22/05/2019)
_______________
202
Informalmente, as professoras relataram que o irmão dela havia nascido recentemente e que o cabelo dele era
igual ao da boneca.
266
nos cabelos dessa boneca. Além disso, a Heloísa também desejava a presença da Alice, que já
havia lhe acompanhado em outras brincadeiras de boneca nos últimos meses. Ela elabora duas
táticas distintas para convidá-la: puxando-a pela mão e chamando-a pelo nome.
A extensão deste evento e a contínua movimentação das bebês pelo espaço também
apontam para um espaço que acolhe os movimentos e a deambulação e para a necessidade de
organização da jornada de uma maneira que possibilite tempos flexíveis e estendidos. A
presença diária da boneca na sala de referência, assim como a oferta de outros elementos (a
bexiga que se transforma em mamadeira, a almofada e a coberta) garantem a continuidade e a
transformação da brincadeira ao longo do tempo. Ela é marcada de memória e de afetos, pois
os bebês a encontravam diariamente na estante da sala de referência. Neste evento, vemos
como a continuidade da brincadeira se dá diante das marcas da relação construída com esta
boneca específica (elemento material), com a brincadeira de cuidar de nenéns (conteúdo
simbólico) e com a relação entre a Heloísa e a Alice (grupos de pares). A possibilidade de
combinar diversos materiais garante o enriquecimento do brincar. Acolher a simultaneidade do
espaço no pensamento pedagógico significa oferecer diariamente e simultaneamente um
conjunto de materialidades que possam ser combinadas, agrupadas, classificadas.
Uma boneca miniatura em específico também era frequentemente escolhida pelos bebês.
Ela era negra, tinha cabelos compridos e flexíveis, sua cabeça girava e o chapéu rosa localizado
no topo da cabeça parecia encaixar no côncavo das mãos dos bebês. Lívia e Alice, em dias
distintos, a seguram pelo chapéu, fazem a cabeça girar, observam seu rosto e cabelo, passam os
dedos por suas feições e a mantêm na posição vertical, batendo os pés dela no chão ou em outro
brinquedo (Figura 70).
No evento narrado abaixo, por sua vez, vemos como uma brincadeira com as bolas se
transforma quando a Lolo mobiliza gestos e sons e é acompanhada pela Laura. Há três grandes
momentos nessa brincadeira, nos quais vemos a forma como elas dão respostas aos movimentos
da bola e mobilizam conteúdos simbólicos. Além disso, a brincadeira de dormir será
posteriormente mobilizada pela Lolo no espaço do solário e com outro material, pois a escolha
dos conteúdos simbólicos mobilizados nas brincadeiras depende dos repertórios dos bebês: eles
fazem a reprodução interpretativa (CORSARO, 2012) da cultura dos adultos e escolhem dar
continuidade a brincadeiras específicas. A relação construída entre a Lolo e a Laura é outro
elemento importante, pois elas costumavam brincar juntas com diferentes materiais e em
espaços diversos. Novamente aparece a questão da relação entre os pares como um elemento
diacrônico que atua nos eventos do brincar.
Com o corpo na horizontal, barriga para baixo, as mãos ao lado da bola e a bochecha
apoiada na bola, a brincadeira ganha um novo rumo. A Lolo fecha os olhos e começa
a roncar. A pressão segue acontecendo, a bola pressiona o seu corpo e, com seu peso,
a Lolo mantém a bola sob sua cabeça. O gesto convoca uma brincadeira de faz de
conta. Entre os roncos, ela se levanta, segura a bola entre o braço e o peito e grita. As
professoras dão risada e dizem que ela está roncando. Ela ri e volta a se deitar, ronca
e repete o jogo com a voz. (Diário de Campo, 24/04/2019)
269
Enquanto isso, as bolas estão sendo lançadas para fora do solário e o Pedro circula em
busca de novas bolas. Ele tenta pegar a bola da Lolo, que resmunga e pressiona a
cabeça com força contra o chão. As professoras dizem para o Pedro parar e lhe
mostram outra bola, a Lolo se senta, apoia uma mão na parede e outra na bola. Segue
o Pedro com o olhar até que ele esteja longe e com outra bola em suas mãos.
Simultaneamente, ela abre e fecha a mão. A textura rugosa e áspera da parede convoca
o movimento dos dedos. A Laura surge com outra bola em mãos, para em frente da
Lolo, deita-se e apoia a cabeça. A Lolo sorri ao vê-la, coloca as duas mãos na bola,
deita-se, apoia a cabeça, fecha os olhos e volta a roncar.
270
Ao longo desse evento, vemos como a bola participa da brincadeira com a Lolo e a
Laura e a forma como elas operam com significados e sensações ao longo da brincadeira. Os
gestos vinculados ao momento do sono, como a mão na bochecha, o corpo na horizontal e os
olhos fechados podem ser combinados e utilizados em uma situação completamente diversa
dos momentos de descanso. O ambiente não é o do descanso, mas o gesto pode ser convocado
e acionar essa memória, esse repertório compartilhado. Os gestos mobilizados pela Lolo são
novamente acionados em outro dia em uma brincadeira com a pista de carrinhos. Ela se
transforma em cama e a Lolo convoca os mesmos movimentos: ela ronca, coloca as mãos sob
as bochechas e o corpo na horizontal.
271
transforme em uma prisão203. Segundo Harker (2005), o brincar não pode ser confinado a único
ritmo, sendo necessário perceber que ele pode ocorrer através de múltiplas temporalidades e
ritmos.
Ou seja, ao darmos destaque para a forma como as relações entre pares dão
sustentação para um evento – como na brincadeira com a boneca da Heloísa e da Alice –, para
os significados vinculados aos objetos – como em relação à boneca favorita ou as bolas do Davi
Luccas –, ou ainda em relação à mobilização de um mesmo repertório a partir de materialidades
diferentes – como na brincadeira com a bola da Lolo – estamos ressaltando elementos
diacrônicos que se colocam em relação com àquilo que sincronicamente está acontecendo e que
possibilitam diversas situações do brincar. Dar atenção à diacronia não significa criar uma linha
reta, um único caminho, que determina o que irá acontecer nos eventos do brincar. Pelo
contrário, o entrelaçamento das múltiplas trajetórias de cada bebê e das coisas nos provoca a
reconhecer a multiplicidade do espaço e o dinamismo do brincar. Enxergar a trama não
significa, portanto, determinar os acontecimentos, mas perceber que as trajetórias podem se
conectar em pontos diversos e produzir outros nós.
Tim Ingold (2011) também provoca esta reflexão ao falar de malha/ trama ao invés de
rede, ele afirma:
O que eles [os viajantes] formam, como pudemos ver, não é uma rede de conexões
ponto-a-ponto, mas uma emaranhada trama de linhas entrelaçadas e complexamente
atadas. Cada linha é um caminho da vida e cada nó um lugar. Portanto, a malha é algo
como uma rede no seu sentido original de um tecido em construção por meio de
cordões entrelaçados ou atados. (...) A chave para essa distinção é o reconhecimento
de que as linhas da malha não são conectores. Elas são os caminhos por meio dos
quais a vida é vivida. E é por meio da união destas linhas, não da conexão dos pontos,
que a malha se constitui. 204 (INGOLD, 2011, p. 151–152, tradução nossa)
_______________
203
Harker (2005) aponta para esse risco ao tensionar alguns dos conceitos mobilizados por Richard Schecher.
204
No original: “What they form, as we have already seen, is not a network of point-to-point connections, but a
tangled mesh of interwoven and complexly knotted strands. Every strand is a way of life, and every knot a place.
Indeed the mesh is something like a net in its original sense of an open-work fabric of interlaced or knotted
cords. (…) The key to this distinction is the recognition that the lines of the meshwork are not connectors. They
are the paths along which life is lived. And it is in the binding together of lines, not in the connecting of points,
that the mesh is constituted.”
273
nós através do encontro de trajetórias múltiplas. A interação entre essas trajetórias pode,
inclusive, provocar a produção de novas linhas.
Desta forma, o reconhecimento destes aspectos diacrônicos aponta simultaneamente
para a continuidade de explorações e brincadeiras e para as suas transformações. É exatamente
o encontro destas trajetórias múltiplas que possibilita o surgimento de algo novo e/ou a
complexificação do que vinha se desenvolvendo ao largo do tempo. Isto também remete à
reflexão acerca de concentração e ritmo apresentadas na segunda seção de análise. Dar
continuidade a uma brincadeira não significa realizá-la da mesma forma, como uma ação
automática, mas retomá-la e vivenciá-la a partir de uma atenção a tudo o que acontece ao redor,
atitude que é possibilitada por meio de uma abertura estético-afetiva (RAUTIO, 2013).
Esta distinção entre rede e malha indicada por Tim Ingold (2011) também provoca
uma reflexão sobre o papel docente. A acolhida do imprevisto, das improvisações que
produzem os eventos do brincar, do dinamismo das relações, se apresentam, à primeira vista,
como conceitos difíceis de serem traduzidos em práticas educativas. Contudo, uma prática
docente que assume de forma radical a ética do encontro e a acolhida da diferença, e, portanto,
uma Pedagogia da Infância (ROCHA, 2001), precisa assumir o descentramento do lugar do
adulto e da professora a fim de acolher uma ontologia relacional. O fazer docente, nesta
perspectiva, implica na construção de projetos educativos que se construam ao longo do
processo, abertos à mudança e às transformações das trajetórias. Organizar e planejar o
cotidiano das crianças a partir dos eixos de interações e brincadeiras (DCNEI, 2010) significa
viver a vida na escola a partir da relação construída com as crianças, observando e buscando
compreender as suas trajetórias (elementos diacrônicos) e acolhendo a provisoriedade
produzida por esses encontros (elementos sincrônicos).
vividas sempre serão diversas e os rastros capturados serão diferentes a cada novo encontro. A
escolha dos materiais e as contínuas decisões e respostas dos bebês também são fruto das suas
trajetórias e têm relação com um contexto mais amplo. Eles podem escolher dar continuidade
a algumas brincadeiras e transformá-las cada vez que a retomam, assim como podem se
encontrar imersos em encontros inusitados e provocar o cruzamento de repertórios, gestos e
palavras que não tinham sido relacionados previamente.
Assim, se faz necessário reconhecer que o acervo material ofertado aos bebês
condiciona suas interações e brincadeiras. Como, por exemplo, as questões previamente
elucidadas quanto à forte presença do plástico, a supremacia da cor rosa em brinquedos
relacionados ao cuidado da casa, as miniaturas provenientes de brindes de grandes redes e as
dificuldades de manutenção da estrutura física. Este reconhecimento nos provoca a construir
novas estratégias que permitam que os inventários materiais sejam complexificados e
qualificados, a fim de favorecer as culturas dos bebês e seus processos de aprendizagem e
desenvolvimento.
As materialidades se apresentam como um dos elementos da construção do espaço,
configurando-se como parte desta rede complexa por meio da qual os sujeitos dão sentido às
suas ações e confrontam-se com o mundo material (corporal) e simbolicamente. As interações
dos bebês com a materialidade, seja por meio do perambular, do uso funcional das coisas ou do
brincar nos remetem ao caráter processual da construção do espaço.
Desta forma, para os adultos, o conjunto material ofertado às crianças passa a ser
compreendido como material didático – recursos que atendem à demanda de consolidação de
uma prática educativa na primeira etapa da Educação Básica, a qual visa promover as interações
e as brincadeiras a partir de princípios éticos, políticos e estéticos (DCNEI, 2010) – para os
bebês, por sua vez, este mesmo acervo material pode sustentar as práticas das culturas infantis
e promover situações de brincadeira na qual eles possam deparar-se com o novo, complexificar
repertórios, dar vazão a seus interesses e continuidade as suas explorações.
275
O caminho duplo produzido pelas indagações de Vea Vecchi (CEPPI; ZINI, 2013)
acompanha essas considerações finais, sintetizando a inquietação que moveu a realização desta
pesquisa: o desejo de realizar um estudo que contribuísse para a construção de uma escola de
qualidade na qual os bebês possam viver bem, onde seus direitos são assegurados e promovidos.
No decorrer dessa trajetória, o espaço e a(s) materialidade(s) se apresentaram como duas
categorias fundamentais para a consolidação de uma didática da Pedagogia da Infância e
simultaneamente provocaram novas possibilidades de pesquisa devido às lacunas da produção
acadêmica.
As perguntas acima reconhecem a forma como o espaço condiciona e possibilita as
práticas educativo-pedagógicas (ROCHA, 2001) e que a vivência do espaço depende delas, isto
é, eles estão intimamente relacionadas e se constituem mutuamente. Este pressuposto
acompanhou o processo de desenho e realização desta pesquisa e me provocou a reimaginar o
espaço da creche a partir das noções de fluidez, dinamicidade, simultaneidade e multiplicidade.
Encerrar esta dissertação significa resgatar alguns dos pressupostos iniciais,
rememorar o processo e retomar algumas das considerações que foram feitas no decorrer da
análise, pois o processo da pesquisa tampouco pode ser dissociado de seus resultados. Me
perguntava sobre como os bebês constroem o espaço da creche a partir das materialidades
disponíveis e sobre como ele se apresenta como campo de possibilidades. Ao buscar responder
a esta questão, a trajetória desta investigação conta sobre os caminhos percorridos a fim de
atender ao objetivo de compreender o processo de construção do espaço da creche por meio
das ações dos bebês diante das materialidades que o compõem. Para isso, foi preciso narrar e
analisar as ações dos bebês em interação com as materialidades, categorizar e analisar o acervo
material do CMEI e averiguar a forma como a materialidade condiciona a ação dos bebês.
O percurso metodológico, que envolveu um amplo levantamento bibliográfico, a
observação participante em campo, narrativas visuais construídas por meio dos registros
fotográfico e audiovisual, assim como os registros no diário de campo, entrevistas e a
construção de um inventário dos materiais da creche produziram uma grande quantidade de
276
dados sobre as ações dos bebês e sobre o acervo material da instituição, suas características e
condições de provimento. Com eles, foi possível defender uma concepção de espaço dinâmica,
plural e política, assim como perceber e analisar as diferentes formas como os bebês interagiam
com as materialidades disponíveis.
Os diferentes dados produzidos e o referencial teórico escolhido como base para a
realização desta investigação também exigiram a realização de uma pesquisa eminentemente
interdisciplinar. Conceitos provenientes da geografia, da antropologia, da sociologia e da
educação foram cotejados e postos em diálogo a fim de que fosse possível escrever o texto e
analisar os dados de forma ética e com rigor metodológico.
A perspectiva interdisciplinar adotada implicou em dois avanços distintos quanto à
produção acadêmica sobre o espaço e as materialidades. A primeira é a de fortalecer a discussão
sobre o espaço da creche e as materialidades a partir do diálogo com outras áreas do
conhecimento. Os estudos de Tim Ingold (INGOLD, 2011; 2012b,a) e de Doreen Massey
(MASSEY, 1994; 2000; 2005), em especial, foram fundamentais para a construção da
abordagem sobre as materialidades e o espaço preconizada neste trabalho. Nesse sentido, a
pesquisa realizada aponta para o potencial destes conceitos para o fortalecimento das
investigações comprometidas com a perspectiva da diferença e uma produção crítica.
Abandonar a ideia de objeto como algo alheio a experiência humana e como um produto
cultural materializado – premissa que desconsidera os efeitos da matéria – e do espaço como
uma superfície absoluta e lisa, exigiram o constante confronto das teorias e o tensionamento da
escrita. A eficácia política dos conceitos demanda uma coerência visceral, como afirma
Haesbaert (2017) sobre a produção de Doreen Massey.
A segunda questão é de que esse diálogo interdisciplinar pode contribuir para
fortalecer a imagem do bebê como sujeito de direitos e ator social em outras pesquisas das
ciências sociais e humanas. É um movimento duplo de apresentar a forma como estudos com
os bebês podem contribuir para questões mais amplas compartilhadas pelas ciências sociais e
de como os bebês não podem ser desconsiderados na formulação destes conceitos. Enquanto
atores sociais, suas práticas e culturas estão entrelaçadas com a cultura adulta e material de
forma mais ampla, constituindo-a e constituindo-se a partir dela.
A pesquisa com bebês também produz desafios específicos quanto a forma de traduzir
o gesto em texto escrito e de continuamente buscar compreender as interações com as
materialidades a partir do ponto de vista dos bebês. A decisão de dar destaque à autoria dos
bebês com o uso dos seus primeiros nomes e a divulgação do nome da instituição em que se
realizou a pesquisa também são escolhas políticas, pois dão visibilidade à ação social dos bebês
277
Esta pesquisa teve início com um levantamento bibliográfico que apontou para uma
lacuna na produção acadêmica sobre o espaço na educação infantil. Nas pesquisas, o termo
espaço era recorrente, contudo, com frequência, ele era abordado de forma tangencial e a sua
materialidade estava ausente. Por um lado, um conjunto de pesquisas o apresentava como
categoria técnica e universal e os elementos materiais eram citados sem menção a aspectos
subjetivos; por outro, no ímpeto de dar visibilidade às relações sociais, havia uma reflexão sobre
o espaço sem referência aos seus aspectos materiais. Havia um consenso quanto a relevância
do espaço na promoção de uma educação infantil de qualidade, contudo a compreensão
dicotômica que separa matérias e ideias e que sustenta grande parte da produção impede o
reconhecimento dos emaranhados material-semióticos e fortalece uma leitura euclidiana do
espaço. Além disso, nas pesquisas em educação em âmbito nacional não foi localizado nenhum
trabalho que se realizou com base no conceito de materialidade.
A análise do acervo material do CMEI Porto Seguro e um estudo sobre as demandas dos
sujeitos que habitam o espaço da escola em relação com a infraestrutura física, suas
apropriações criativas dos espaços e a seleção das materialidades nos permitiu olhar para a
creche e reconhecer a pluralidade de processos espacializados por meio dos quais ela se
constitui, rompendo com esse olhar dicotômico e realizando uma reflexão sobre aspectos
simbólicos e materiais. O espaço se constitui de modo relacional a partir dos constantes
encontros dos sujeitos com as coisas. Assim, observamos que a experiência do espaço é múltipla
e que é necessário olhar para ele como quem enxerga através de um caleidoscópio. Assim, a
porosidade e multiplicidade do espaço implicam no reconhecimento das múltiplas
278
II. Das práticas da cultura dos bebês: dimensão material da experiência educativa
e escapa do poder apreensivo do polegar; um buraco na parede convida um único dedo a habitar
seu interior (Figura 76). A matéria também provoca mudanças no brincar.
10. Os mobiliários das salas de referência devem possibilitar o rearranjo na sala para
acolher às demandas específicas dos grupos de crianças e as reorganizações que ocorrem
no decorrer da jornada. O tamanho da sala também deve favorecer dinâmicas de
organização da jornada que acolham tempos de descanso distintos e os distintos rituais
de sono das crianças.
Materialidades
1. O cenário material da instituição deve ser diversificado a fim de ampliar o panorama
sensorial ao qual as crianças têm acesso e ofertar mais possibilidades para o brincar.
Portanto, é preciso romper com a supremacia do plástico. A premissa da higiene que
sustentou a profusão de materiais plásticos se embasa em uma concepção de bebê
fundamentada na ideia da falta. Do mesmo modo, a ideia de durabilidade desconsidera
as transformações que o plástico sofre no decorrer do tempo: a depender da qualidade
do brinquedo muitos quebram com facilidade e produzem pontas que oferecem risco às
crianças, ele se torna áspero e de difícil limpeza e exala um odor forte quando guardado.
Assim, as crianças, desde bebês, devem ter acesso a matérias distintas que podem
enriquecer às situações de brincadeira e interações, como madeira, borracha, acrílico,
vidro, silicone, palha, fibras têxteis, couros, metais, dentre outros. As características de
sazonalidade e mutabilidade, assim como a unicidade dos elementos naturais e as
transformações que ocorrem no decorrer do tempo podem favorecer outras brincadeiras
e investigações das crianças. Neste sentido, deve ser dada especial atenção aos materiais
orgânicos e aos elementos naturais.
2. A seleção dos materiais deve priorizar produtos locais que comuniquem sobre práticas
e rituais da cultura, assim como que utilizem matérias-primas vinculadas ao território.
Os produtos locais também trazem marcas culturais diferentes das dos brinquedos e
objetos produzidos em larga escala. Deste modo, quais são os elementos naturais
característicos da região e de que forma as crianças podem ter acesso a eles no espaço
da instituição? Quais são os objetos e brinquedos característicos do território?
3. Os brinquedos de jogo simbólico devem permitir que as crianças acessem conteúdos
simbólicos que convoquem repertórios conhecidos e que possibilitem a sua ampliação.
Eles também não podem reproduzir estereótipos de gênero e devem promover a
igualdade étnicorracial. Neste sentido, as crianças têm acesso a bonecas brancas e
negras? Essas bonecas são diferentes entre si e refletem a diversidade de tons de pele,
olho, cabelos...? As miniaturas de animais fazem referência à fauna brasileira? Os
287
com as crianças de 0-3 anos visto que representam uma interpretação enviesada do que
significa o trabalho com a leitura e a linguagem escrita na creche.
9. Jogos de construção diversificados em termos de encaixe e, principalmente, de
matéria-prima podem compor o acervo da instituição. Na seleção destes jogos, portanto,
deve-se considerar, a matéria-prima e a qualidade do encaixe. Além disso, eles podem
ser combinados com miniaturas de animais, materiais não-estruturados, bonecos e
bonecas a fim de potencializar um leque maior de interações. Deve se ter em conta,
também, que um acervo amplo de materiais não-estruturados, em grande quantidade e
com possibilidades de combinação diversa, pode igualmente provocar ricos contextos
de construção a partir de uma curadoria das professoras. Contextos de construção com
materiais não-estruturados bem selecionados podem provocar desafios de equilíbrio,
simetria e composição mais diversificados que os possibilitados pelos jogos de encaixe.
10. Materiais de manipulação (baldes, pás, rastelos, formas) devem ser disponibilizados
no espaço externo e ser de fácil alcance para as crianças. Esses materiais podem compor
contextos de brincadeira com a areia, terra, água e outros materiais não-contáveis
(sementes, grãos, ervas) disponibilizados para a exploração das crianças em contextos
nos espaços internos e externos. A sua seleção também deve considerar a diversidade
da matéria-prima.
11. Os materiais grafo-plásticos e de modelagem devem ser considerados na composição
do acervo material: diversidade de papeis (tamanho, cor, forma, densidade, tipologia),
assim como de riscantes (canetinhas, lápis, carvão), tintas (naturais, guache) e a argila.
cenário material e simbólico plural. Contudo, a diversidade não pode se restringir a essas
práticas, é necessário adensar a reflexão sobre as múltiplas maneiras de realizá-las e
criar novos contextos segundo a demanda local de cada instituição e a especificidade do
público atendido.
V. Epílogo
Espero que a leitura deste trabalho tenha provocado reflexões sobre a dimensão
material da experiência humana e aproximado cada um de vocês, leitores e leitoras, das
narrativas e práticas culturais dos bebês. O complexo, dinâmico e contínuo processo de
construção do espaço da creche se tornou visível para mim por meio do mergulho no acervo
material e no encontro com os bebês. Para vocês, ele se torna visível também por meio do
encontro com esse texto.
Para mim, esse processo de escrita foi repleto de idas e vindas. Nenhum texto ou leitura
se constrói de forma linear, assim com os projetos educativos e os percursos de aprendizagem
e descoberta do muno. Os contínuos encontros e inesperados atravessamentos também nos
constituem enquanto pesquisadoras, escritoras, leitores e leituras. Nesse sentido, desejo que as
trajetórias de cada um de vocês também tenham sido múltiplas.
Obrigada por chegarem até aqui e tentarem encerrar esse texto comigo. Capturamos
rastros e deixamos outros para serem apanhados por outros sujeitos e coisas.
292
REFERÊNCIAS
A
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guidelines. Children’s Geographies, [s.l.], v. 12, no 1, p. 126–133, 2014. ISBN: 0-7803-8525-X/04, ISSN:
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306
APÊNDICES
APÊNDICE I – LIVRO DE DEVOLUTIVA PARA OS BEBÊS
i (as :
ALICIA BERNARDO BEATRIZ MATHEUS
v 8
AVI LUCCAS HELOISA HELOISA NATHIELLY \VALENTINA ANA,JULIA
O carretel é apoio
para ver acima das
grades, convite
para esticar as
pernas e descobrir
uma novaposi¢do,
descanso para o
corpo e material |
empilhavel que
permite a
descoberta do
equilibrio...
307
308
309
Meu nome é Ana Julia Lucht Rodrigues, sou estudante de mestrado pela
Universidade Federal do Paraná e estou fazendo a minha pesquisa de mestrado na turma do
berçário da escola do seu/sua filho(a). Deste modo, ele/ela está sendo convidado/a participar
da pesquisa de mestrado intitulada “Os Bebês e a Materialidade: um estudo sobre suas ações e
a construção do espaço da creche”, realizada sob orientação da Profa Dra Ângela Maria
Scalabrin Coutinho.
A pesquisa tem por objetivo identificar as ações das crianças em sua relação com a
materialidade (mobiliário, brinquedos e materiais), comprometendo-se com a garantia de uma
educação pública de qualidade e se posicionando em defesa dos direitos das crianças. No
decorrer desta pesquisa são investigadas questões como: quais significados os bebês atribuem
aos espaços? Quais brinquedos escolhem ou criam e como brincam com eles? A quais materiais
os bebês têm acesso em seu cotidiano e quais são suas características?
Para que possamos atingir os objetivos desta pesquisa, eu estarei presente no CMEI
durante o primeiro semestre deste ano, observando as estratégias mobilizadas pelas crianças em
suas relações com a materialidade. As imagens são fundamentais para o sucesso desta
investigação, pois precisamos captar os movimentos das crianças e a sua sutileza na
comunicação umas com as outras, como trocas de olhares, risadas e gestos.
Assim, preciso de autorização para que para que seu/sua filho/a participe deste estudo e
eu colete, analise e publique os dados observados por meio de registros escritos, fotográficos e
de filmagens, para a comunidade científica, bem como para a sociedade civil. Destaco que:
a) A participação da criança neste estudo é voluntária, portanto, é possível desistir a qualquer
momento e solicitar que lhe seja devolvido este Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
assinado.
b) A pesquisa não oferece riscos à criança e respeita a sua individualidade, primando pela ética.
Neste sentido, desejamos divulgar o primeiro nome da criança. Caso desejem que ele seja
mantido em sigilo, asseguraremos a privacidade e não divulgaremos o nome da criança.
c) As imagens serão utilizadas para constituição da dissertação e/ou para formação de acervo do
grupo de pesquisa do qual a pesquisadora faz parte, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância
e Educação Infantil (NEPIE)https://www.facebook.com/NEPIE.UFPR/ da Universidade
313
Federal do Paraná. Ao liberar o uso de imagem da criança, você cede a título gratuito os direitos
autorais, o que permite a utilização de fotos ou vídeos que se façam necessários para fins
científicos e de estudos (livros, artigos, slides, relatórios, cursos).
d) As despesas necessárias para a realização da pesquisa, transporte e equipamentos digitais não
são de sua responsabilidade e você não receberá qualquer valor em dinheiro pela participação
da criança.
e) As pesquisadoras, Ana Julia Lucht Rodrigues e Ângela Maria Scalabrin Coutinho, responsáveis
por este estudo, poderão ser contatadas pelo telefone (41) 996734607 ou pelo email
[email protected], para esclarecer eventuais dúvidas que você possa ter e fornecer-lhe as
informações que queira, antes, durante ou depois de encerrado o estudo.
___________________________________________
ASSINATURA
No quadro abaixo apresenta-se parte do processo de análise das imagens publicadas pelas
instituições em suas páginas do facebook. As instituições indicadas em verde foram as 51 selecionadas
para análise mais detalhada de suas imagens devido a presença dos bebês ou referência indireta a eles e
as em laranja são as dez instituições que passaram para a etapa da visita. A pergunta das colunas
correspondem aos códigos a seguir: “Tem fotos publicadas na página”(A); “As fotos foram publicadas
pela própria instituição?” (B); e “Os bebês ou suas salas de referência aparecem nas fotos? Qual o ano?”
(C). No quadro abaixo, omite-se uma coluna com observações adicionais sobre páginas ou blogs sobre
o trabalho da instituição, mas que não eram gerenciados por ela, ou sobre fotos postadas por outras
pessoas e localizadas a partir do nome da instituição
CMEIS A B C CMEIS A B C
CMEI 1 SIM SIM SIM (2016) CMEI 103 SIM SIM SIM (2018)
CMEI 2 SIM SIM NÃO CMEI 104 NÃO - -
CMEI 3 NÃO - - CMEI 105 NÃO - -
CMEI 4 SIM SIM NÃO CMEI 106 SIM SIM SIM (2014)
CMEI 5 SIM SIM SIM (2014) CMEI 107 NÃO - -
CMEI 6 SIM NÃO NÃO CMEI 108 NÃO - -
CMEI 7 SIM NÃO NÃO CMEI 109 NÃO - SIM (2016)
CMEI 8 SIM NÃO NÃO CMEI 110 NÃO - -
CMEI 9 SIM SIM SIM (2016) CMEI 111 NÃO - -
CMEI 10 SIM SIM NÃO CMEI 112 SIM SIM NÃO
CMEI 11 SIM SIM NÃO CMEI 113 NÃO - -
CMEI 12 NÃO - - CMEI 114 SIM SIM SIM (2015)
CMEI 13 NÃO - - CMEI 115 NÃO - -
CMEI 14 NÃO - - CMEI 116 NÃO - -
CMEI 15 NÃO - - CMEI 117 SIM SIM SIM (2014)
CMEI 16 NÃO - - CMEI 118 NÃO - -
CMEI 17 NÃO - - CMEI 119 NÃO - -
CMEI 18 SIM SIM SIM (2015) CMEI 120 SIM SIM NÃO
CMEI 19 NÃO - - CMEI 121 NÃO - -
CMEI 20 SIM NÃO NÃO CMEI 122 NÃO - -
CMEI 21 NÃO - - CMEI 123 NÃO - -
CMEI 22 SIM NÃO NÃO CMEI 124 NÃO - -
CMEI 23 SIM NÃO NÃO CMEI 125 NÃO - -
CMEI 24 NÃO - - CMEI 126 SIM SIM SIM (2017)
CMEI 25 SIM SIM SIM (2018) CMEI 127 SIM SIM SIM (2018)
CMEI 26 SIM NÃO NÃO CMEI 128 NÃO - -
315
04/12_44_Caninho papel_Bernardo.JPG
04/12_45_Caninho papel_Bernardo.JPG
Caninho papel_Bernardo.
04/12_46_Caninho papel_Bernardo.JPG
04/12_47_Caninho papel_Bernardo.JPG
04/12_48_Professora_Rotina_Guardar.JPG
04/12_49_Professora_Rotina_Guardar.JPG Rotina_Guardar_ Professora
04/12_50_Professora_Rotina_Guardar.JPG
04/12_51_Balde_Caninho.JPG Balde_Caninho
04/12_52_PortãoS_Bernardo.JPG PortãoS_Bernardo
04/12_54_Eloisa Tocume.JPG Eloisa Tocume
04/12_55_Dança_Filetes de TNT_Tapete emborrachado.JPG
04/12_56_Dança_Filetes de TNT_Tapete emborrachado.JPG Dança_Filetes de TNT_Tapete emborrachado.
04/12_57_Dança_Filetes de TNT_Tapete emborrachado.JPG
04/12_58_Eloisa T.JPG
Eloisa T
04/12_59_Eloisa T.JPG
04/12_60_Luiza_Caninho papel.JPG
04/12_61_Luiza_Caninho papel.JPG
04/12_62_Luiza_Caninho papel.JPG Caninho papel_Luiza
04/12_63_Luiza_Caninho papel.JPG
04/12_64_Luiza_Caninho papel.JPG
04/12_65_Boneca cabelo_Luiza.JPG
04/12_66_Boneca cabelo_Luiza.JPG Boneca cabelo_Luiza
04/12_67_Boneca cabelo_Luiza.MOV
04/12_68_Grade_Luiza.JPG
04/12_69_Grade_Luiza.JPG Grade_Luiza
04/12_70_Grade_Luiza.JPG
04/12_73_Rotina_Almoço.JPG
04/12_74_Rotina_Almoço.JPG Rotina_Almoço
04/12_75_Rotina_Almoço.JPG
04/12_76_Mobilia_bonecas tecido.JPG Mobilia_bonecas tecido
04/12_77_Elastico CD_Luiza.JPG Elastico CD_Luiza
04/12_79_Pedido foto_Kaylan.JPG
04/12_80_Pedido foto_Kaylan.JPG Pedido foto_Kaylan
04/12_81_Pedido foto_Kaylan.JPG
04/12_83_Colchões_Pelúcia.JPG Colchões_Pelúcia
04/12_84_Lolo.JPG Lolo
04/12_85_Solário.JPG Solário
Fonte: A autora (2020)
319
Bernardo
Sujeitos
Materialidades Ações Eventos
envolvidos
Professora 05/10_409_Almoço_Professora e Bernardo
Subir para pedir almoço
Patricia
Apoiar-se para aguardar o Nathiely e 05/17_292_Espera almoço_Mesa_Kaylan_Bernardo e
almoço Kaylan Nathiely
Kaylan 05/24_451_Almoço_Kaylan_Allan_Bernardo
Apoiar-se para comer
Mesa 06/05_698_Sala_Alnoço_Bernardo_Kaylan
- 04/12_10_Flauta_Bernardo
Heloísa 05/03_23_Mesa_Bernardo e Heloísa
Apoiar-se para ficar de pé
05/15_84_Mesa_Cadeiras_Observação tapete_
Bernardo e Heloísa
Apoiar-se para observar - 06/19_352_Sala_Jogo cozinha_Mesa_Bernardo
Heloísa 05/15_84_Mesa_Cadeiras_Observação tapete
Apoiar-se para ficar de pé
_Bernardo e Heloísa
Subir para ver imagem colada - 05/31_234_Imagens
Cadeira no escaninho juninas_Bernardo_Cadeira_Pesquisadora
Valentina, 06/26_29_Cadeira_ Bernardo_Valentina
Explorar a estrutura metálica
Allan,
com ela virada
Pedro
Apoiar-se para olhar e pedir o Professora 05/24_172_Potes_Fome_Bernardo
almoço Patricia
Apoiar-se para apontar para Professora 06/05_139_Sala_Balão_Bernardo
Escaninho
objeto recém-colocado em Milena
cima
Apoiar-se para tocar no rádio - 06/05_246_Sala_Rádio_Bernardo
Equilibrar o objeto sobre a - 04/12_10_Flauta_Bernardo
Flauta
mesa
Mover sobre a mesa, Davi 04/12_17_Caninhos papel_Davi e Bernardo
Caninho de explorando o espaço e
Papel deparando-se com um livro.
Ao encontrá-lo, ele o cutuca
Livro Manipular, ler as imagens - 04/12_25_Livro abóbora_Bernardo
- 04/12_52_PortãoS_Bernardo
Portão de
Apoiar-se para ficar de pé 05/08_440_PortãoQ_Bernardo
Segurança
Laura 05/10_398_Caminhar_Laura e Bernardo
320
Umbral da - 05/08_426_Parede_Apoio_Bernardo
Apoiar-se para ficar de pé
Porta
- 05/08_479_Espelho_Bernardo
Observar-se
05/15_58_Fantasias_Chapéu_Bernardo
Espelho
Observar-se com chupeta de - 05/10_234_Chupeta_Bernardo
outra criança
Brinquedo - 05/08_458__Brinquedos Variados_Some e
interativo para Empurrar bonecos Aparece_BernardoJPG
bebês
Pista Carrinhos Local para sentar e deitar - 05/10_279_Pista Carrinhos_Bernardo
Móbile de - 05/15_69_Móbile lamina celofane_Bernardo
Puxar para baixo
Celofane
Girar no chão - 05/17_281_ Esponja girar_ Bernardo
Esponja Allicia 05/31_188_Cesto dos Tesouros_Esponja _
Pressionar
Bernardo e Allicia.JPG
Professora 05/24_244_Túnel_Bernardo_Professoras
Minhocão/
Entrar, atravessar Patricia e
Túnel
Diana
Professora 05/24_282_Lençol_Puxar_Prof_Kaylan,
Milena, Valentina, Bernardo, Heloísa, Laura e Pedro
Kaylan,
Sentar junto com outras Valentina,
Lençol
crianças para ser puxado Heloísa,
Laura e
Pedro
Professora 06/05_386_Sala_Lata_Bola_Prof
Bola Arremessar em lata
Diana Dayane_Bernardo_Kaylan_Lívia_Alice_Allan
Lata Bater em cima Allan 06/05_437_Sala_Lata_Bernardo_Allan
- 05/31_234_Imagens
juninas_Bernardo_Cadeira_Pesquisadora
Imagem parede Observar
06/05_886_Sala_Leitura imagem_Bernardo
06/26_8_Chamada_Bernardo
Bernardo 06/19_71_Sala_Chamada_Bernardo
Foto chamada Mover-se com ela na mão
06/26_8_Chamada_Bernardo
Carrinho de - 06/19_413_Sala_Carrinho boneca _Bernardo
Empurrar
bonecas
Carrinho Empurrar - 06/19_515_Solário_Carrinho_Bernardo
Blocos de Professora 06/19_424_Sala_Blocos madeira_Laura_
Empilhar
madeira Patricia Bernardo_Prof
Colocar miniaturas de comidas - 06/19_434_Sala_Jogo cozinha_Bernardo
Jogo Cozinha
dentro da panela
Ana Julia 05/08_39_Aproximação_Pedido Bernardo
05/08_39_Aproximação_Pedido Bernardo
Câmera
Pedir foto 06/05_42_Sala_Pedido foto_Bernardo
Fotográfica
06/19_1_Pedidofoto_Bernardo_Allan_Heloísa_Melissa
06/26_1_Pedido foto_Bernardo
ANEXOS
ANEXO I – MAPA DETALHADO DA CIDADE INDUSTRIAL
BAIRRO
CIDADE INDUSTRIAL
DE CURITIBA
SIMBOLOS E CONVENCGOES
ARRUAMENTO tL
ARRUAMENTO NAO IMPLANTADG: aL —
DIMISA DE BAIRRO —x
(Decrato Municfpal r? 74/1076 en" 516/1082)
DMISA DE MUNICIPIO —
{LolEstadual n* 7901951 a n° 16371/2008)
EDIFICAGAO REPRESENTATIVA 4
CEMITERIO [+4]
CANTEIROS E MEIO-FIO
CALGADAO
FERROVIA +
CURSO D'AGUA =
LAGOSE LAGOAS OD
CAVAOU VARZEA, GD
VIADUTOS E PONTES ==
TRINCHEIRA ale
LINHA DE TRANSMISSAO DE ENERGIA bt
IGREJA t+
ESCALA N
0 250 500 750 1000
Metros A
LOCALIZAGAO
cmADE
INDUSTRIAL,
DECURMEA
wo
, ‘ db
IPPUC
PREFEITURA MUNICIPAL
DE CURITIBA
INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO
URBANO DE CURITIBA
DIRETORIA DE INFORMAGOES
SETOR DE GEOPROCESSAMENTO
EDICAO OFICIAL
novembro - 2019