A Ordem Pública Internacional em Seus Diversos Patamares
A Ordem Pública Internacional em Seus Diversos Patamares
A Ordem Pública Internacional em Seus Diversos Patamares
DIVERSOS PATAMARES
Jacob Dolinger
Professor titular de Direito Internacional Privado na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Miami.
Conferencista da Academia de Direito Internacional de Haia.
1. Introdução
A ordem pública no direito internacional privado tem duas fronteiras: de um lado, com o
direito interno e, de outro lado, com o direito internacional lato sensu.
Estas duas vizinhanças, em dois extremos, levam a uma classificação diferenciada dos
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sucessivos graus de ordem pública em operação.
Tradicionalmente não havia em nossa legislação civil uma regra expressa sobre a
inderrogabilidade de leis protegidas pelo princípio da ordem pública. Clóvis Beviláqua
dispusera em seu projeto, no art. 14, que "ninguém pode derrogar por convenção, as
leis que regulam a constituição da família, nem as que interessem a ordem pública e aos
bons costumes", mas esta norma não foi incluída no Código Civil de 1916 (LGL\1916\1).
No Código Comercial, o art. 129 dispõe sobre a nulidade dos contratos comerciais que
recaírem sobre objetos proibidos pela lei, ou cujo uso ou fim for manifestamente
ofensivo da sã moral e bons costumes, sem referência expressa à ordem pública. O
Código Civil (LGL\2002\400) continha uma regra semelhante no art. 145, que
considerava nulo o ato jurídico quando ilícito ou impossível o seu objeto, mas igualmente
sem referência alguma à ordem pública, nem sequer aos bons costumes.
Sobre a ausência da ordem pública do Código de 1916 escrevi que "nosso legislador civil
provavelmente considerou que não há necessidade de explicitar a proteção operada pela
ordem pública. Esta, no plano do direito interno, pode permanecer oculta, irrevelada, no
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anonimato. Sua vigilância é uma questão tão manifesta, tão integrante do sistema
jurídico que o legislador não precisa preocupar-se em manifestá-la expressamente.
Qualquer ofensa a uma lei, a uma instituição, protegida pela ordem pública será afetada
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na sua validade, ora anulável, ora nula".
Esta filosofia foi alterada pelo Código Civil (LGL\2002\400) de 2002, cujo art. 122
dispõe:
"São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à ordem pública ou aos bons
costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o
negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes".
"Se o serviço for prestado por quem não possua título de habilitação, ou não satisfaça
requisitos outros estabelecidos em lei, não poderá quem os prestou cobrar a retribuição
normalmente correspondente ao trabalho executado. Mas se deste resultar benefício
para a outra parte, o juiz atribuirá a quem o prestou uma compensação razoável, desde
que tenha agido com boa-fé.
Parágrafo único. Não se aplica a segunda parte deste artigo, quando a proibição da
prestação de serviço resultar de lei de ordem pública".
De qualquer modo, permanece hoje, no regime do novo Código, a mesma idéia básica
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de antes - ao aplicador da lei caberá determinar o que pode e o que não pode ser
pactuado pelas partes em seus contratos. Assim, os nubentes que firmarem um pacto
antenupcial liberando-se reciprocamente dos deveres estabelecidos para os cônjuges no
art. 1.566 (fidelidade, vida em comum, mútua assistência) terão este acordo
reconhecido ou rejeitado pelas autoridades judiciárias, em caso de desavença entre os
contratantes, de acordo com a filosofia moral vigente à época da apreciação judicial, que
se materializa por meio da reserva da ordem pública.
Não é toda lei local, cogente - das que não podem ser derrogadas pela vontade das
partes no plano interno -, que não poderá ser substituída por lei estrangeira, diversa, no
plano do direito internacional privado. Assim, um menor de 15 anos de idade não
poderá, no plano interno do direito brasileiro, renunciar à proteção que lhe é estendida
pelo legislador ao considerá-lo relativamente incapaz, por ser esta uma questão de
ordem pública. Mas no plano internacional, indicada lei estrangeira por regra de conexão
que considera uma pessoa de 15 anos capaz, poderemos aceitar e aplicar esta norma,
sem preocupações para com a ordem pública.
Mais raro ainda o recurso à ordem pública quando se trata de reconhecer direitos
adquiridos no exterior, que classificamos como o terceiro grau, ou o terceiro nível da
ordem pública.
Exemplo clássico é o da poligamia. Apesar de nossa lei vedar a poligamia, e ser esta
uma norma cogente, inspirada nas bases fundamentais de nossa filosofia de direito da
família, cujas origens vêm da longínqua influência bíblica, passando pelo direito
canônico, podemos perfeitamente reconhecer efeitos jurídicos de um casamento
poligâmico, celebrado em jurisdição que permite o regime multimatrimonial. Se uma
segunda, ou terceira esposa, que contraiu núpcias em que o casamento poligâmico é
aceito, cujo marido se encontra no Brasil, terá ela direito de processá-lo em nossa
Justiça por alimentos e por qualquer outra reivindicação que lhe seja facultada por sua
lei pessoal, e nossa Justiça poderá conceder-lhe estas pretensões. Isto porque, tendo
adquirido o direito a estas reivindicações de forma legítima no exterior, a ordem pública
não se opõe a execução destes direitos em nosso território.
O art. 17 da Lei Introdutória, como redigido, não deixa entrever a distinção entre estes
dois graus da ordem pública no plano interno. O dispositivo reza: "as leis, atos e
sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia
no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons
costumes", que, segundo a classificação aqui exposta, deve ser interpretado da seguinte
forma:
Temos, assim, os três níveis de ordem pública quando justaposto o direito internacional
privado ao direito interno: a proteção contra a vontade contratual das partes, a proteção
contra a aplicação de determinadas normas de direito estrangeiro e a proteção contra
certas situações adquiridas no exterior, inclusive sentenças estrangeiras, em que o raio
de alcance da ordem pública decresce do primeiro para o segundo nível e do segundo
para o terceiro.
3. Distinção entre vizinhança com o direito interno e com o direito internacional lato
sensu
A seguir, passa-se a cuidar da ordem pública de terceiro grau, que atua no direito
internacional em seu sentido mais amplo, em que o princípio tem caráter totalmente
diverso, de natureza positiva e não negativa: é a ordem pública mundial, ou
"verdadeiramente internacional", que estabelece e defende princípios universais nos
vários setores do direito internacional e das relações internacionais, servindo os mais
altos interesses da comunidade mundial, as aspirações da humanidade. Trata-se de uma
ordem de valores situada acima dos sistemas jurídicos internos, que, eventualmente,
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poderá colidir com interesses circunstanciais das nações individualmente consideradas.
Assim, no plano do direito de cada jurisdição, na perspectiva doméstica, por assim dizer,
cabe ser detalhista e destacar um grau para aplicar a lei estrangeira e outro grau
relativo ao cumprimento da sentença estrangeira e qualquer outra manifestação de
direito adquirido no exterior. Mas, quando se coloca o direito internacional privado ao
lado do direito internacional em sua dimensão mais ampla, em sua perspectiva
realmente internacional, as distinções do recurso à ordem pública no plano interno
perdem um pouco de sua importância, não mais relevante o cuidado em classificar o
funcionamento da cláusula de exceção para efeitos internacionais em aplicação direta e
aplicação indireta da lei estrangeira, sendo perfeitamente natural que as duas
manifestações da ordem pública no campo do direito internacional privado ocupem um
só grau na escala de aplicação do princípio. É tudo uma questão de relatividade.
Mas, voltando ao plano interno, quando se examina o fenômeno como medida protetora
da ordem jurídica interna, é perfeitamente aceitável e até recomendável que se elabore
a classificação tripartite da ordem pública no campo contratual (1), no campo da
aplicação da lei estrangeira (2) e no campo do reconhecimento de situações adquiridas e
sentenças prolatadas no exterior (3).
Decisão fundada na mesma filosofia foi prolatada pelo Tribunal de Lyon, na França, onde
um fabricante desatendera normas de segurança de equipamentos destinados à
exportação.
Ambas as decisões foram criticadas pelo internacionalista francês Antoine Pillet, que
advogou a tese de que normas internas não deveriam ser aplicadas à exportação, pois
tal poderia resultar em uma interferência abusiva na ordem pública estrangeira. No caso
da decisão da Corte de Iowa, Pillet achava que ela pretendia impor o padrão de
moralidade de seu Estado a outro Estado. "Quererá o Estado de Iowa ensinar os outros
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Estados americanos como se comportar?", indagava o mestre francês. "Não seria isto
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um atentado à soberania dos outros Estados?"
Essa é uma concepção estritamente técnica sobre a ordem pública, que não deve ser
aceita ante o atual sentido de solidariedade internacional, em que cumpre atentar para a
segurança, a saúde pública e demais formas de proteção das populações de outras
soberanias, no espírito da ordem pública verdadeiramente internacional ou ordem
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pública universal.
Alguns tribunais estrangeiros decidiram que é obrigação do Estado evitar que se efetuem
atos em seu território que sejam atentatórios à ordem pública de outro Estado, seja no
plano penal, fiscal, proteção a patrimônio cultural etc.
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Um caso conhecido é o K. C. Sethia, Ltd , julgado pela Câmara dos Lordes, em 1944, em
que a mais alta corte inglesa considerou válida a recusa do réu de exportar juta para a
África do Sul, apesar de o contrato ter previsto a aplicação da lei inglesa, porque esta
transação feria frontalmente a lei indiana que, à época, vedava este tipo de operação.
"Da mesma forma que a ordem pública rejeita contratos que ofendam nossa lei interna,
rejeitará igualmente contratos que violem a lei de um Estado estrangeiro, e tal ocorrerá
porque a ordem pública exige o respeito à civilidade internacional.
Do fato que nossos tribunais não aplicariam lei tributária estrangeira a pedido de Estado
interessado, não significa que dariam execução a um contrato que exigisse a realização
de um ato em um país estrangeiro que violasse o direito tributário deste país. As duas
hipóteses não são complementares ou co-extensivas. Veja-se a mesma situação no
direito penal: um tribunal inglês não aplicará o direito penal de um Estado estrangeiro a
seu pedido; no entanto, seria surpreendente se ordenasse o cumprimento de um
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contrato que envolvesse a perpetração de um crime neste Estado".
No mesmo sentido, a Suprema Corte de Israel decidiu no caso Havardy vs. Klinsky que
um contrato de venda de diamantes, cujo preço estava abaixo do valor real, visando a
reduzir os tributos alfandegários em outro país, contrariava a ordem pública
internacional, que exige respeito mútuo entre os Estados com relação a estas
obrigações.
A Suprema Corte holandesa confirmou o julgamento no caso De Vries vs. Van Kroon no
sentido de que "o acordo feito em violação consciente aos regulamentos cambiais da
Indonésia era contrário à boa moral, no sentido do art. 1.373 do CC".
que sustentam a teoria de que o Judiciário não examina a validade dos atos de outra
soberania, mesmo quando se trata de confisco ocorrido em seu próprio território e que
se reclame que o ato constituiu uma violação do direito internacional costumeiro.
Segundo os mais autorizados autores daquele país, não há lugar para qualquer ordem
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pública que conflite com a política do act of state.
Em seguida, a Corte disse algo da maior relevância sobre a ordem pública internacional:
Por mais ofensivo à ordem pública deste país que uma expropriação deste tipo possa
ser, concluímos que tanto o interesse nacional como o progresso do objetivo de
estabelecimento da rule of law entre as nações são mais bem servidos pela manutenção
intacta da doutrina do act of state neste campo de sua aplicação.
A preocupação de que a rule of law entre as nações fique acima da ordem pública de
cada país é uma lídima manifestação da prevalência da ordem pública verdadeiramente
internacional.
Os crimes que causam dano vital aos interesses internacionais, pondo em perigo a
segurança da comunidade internacional, afetam a ordem pública internacional e como tal
pedem uma regulamentação e uma jurisdição de caráter universal para julgar aqueles
que consideramos hostis humani generis - inimigos do gênero humano. As terríveis
atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e os julgamentos que se
seguiram no Tribunal de Nuremberg e no Tribunal de Tóquio - que estabeleceram a
responsabilidade perante a comunidade internacional dos organizadores e perpetradores
do crime de genocídio, de crimes contra a humanidade e crimes de agressão e de guerra
- começaram a conscientizar o mundo da necessidade de disciplinar esta matéria e
regulamentar uma jurisdição universal. Os tribunais criados pela ONU para julgar os
crimes cometidos na ex-Iugoslávia e na Rwanda, e, mais tarde, a criação do Tribunal
Penal Internacional, com a aprovação do Estatuto de Roma, demonstram a evolução da
idéia da ordem pública internacional neste aspecto fundamental da vida da comunidade
internacional.
A ordem pública internacional quer que as moedas nacionais sejam protegidas, ela zela
pela estabilidade financeira de cada um dos membros da comunidade internacional, para
evitar que o desastre de um ou alguns leve a uma debacle econômica mundial de
grandes proporções, como quase ocorreu por mais de uma vez nos últimos anos. A lex
monetae passou a ser uma conexão de considerável importância.
iii) Direito fiscal - O princípio de que nenhum país quer se transformar em fiscal dos
interesses tributários de outro ainda impera, mas já se registraram sinais de que isto
poderá modificar-se em breve.
Penso que, se os Estados - quando réus - podem renunciar à sua imunidade mesmo em
matéria ius imperium, também deveriam ser aceitos como autores em matéria de seus
interesses soberanos. A prestação jurisdicional de outro Estado se enquadra bem na
cooperação judicial internacional, cada vez mais desenvolvida e utilizada.
1. Em cada jurisdição a ordem pública local rejeita a aplicação de direito estrangeiro que
ofende os valores básicos do Foro (princípio do direito internacional privado).
2. Cada jurisdição estende as regras internas que refletem sua ordem pública para
proteger outros países, mesmo quando estes não estabeleceram para si mesmos a
mesma proteção.
(1) Vide Ricardo Ramalho Almeida (Org.). "A exceção da ofensa à ordem pública na
homologação da sentença arbitral estrangeira - Questões de doutrina e da prática".
Arbitragem interna e internacional, p. 129 e especialmente p. 145, nota 46.
(4) Vide Haroldo Valladão, Direito internacional privado, 5. ed., vol. I, p. 498.
(5) Vide Rolin, "Vers um ordre public réelement international", Hommage d'une
génération de juristes au président basdevant, 1980, p. 441.
(6) Antoine Pillet. De l'ordre public en droit international privé. Mélanges, vol. I, p. 475.
(7) Em verdade, o debate entre a posição adotada pelos tribunais de Iowa e de Lyon de
um lado e de Antoine Pillet de outro lado continua até hoje, como se verifica no choque
de decretos assinados pelo Presidente Jimmy Carter, em 15.01.1981 e pelo Presidente
Ronald Reagan, 32 dias mais tarde. Aquele, no final de sua presidência, assinou decreto
no sentido de que, ocorrendo exportações americanas de produtos proibidos pela
legislação deste país, mas não vedados pela legislação do país importador, seria
obrigação do governo americano informar ao governo do país importador sobre os riscos
da mercadoria exportada. Assumindo a presidência americana, Ronald Reagan revogou a
medida, visando, tudo leva a crer, o desenvolvimento do poder de concorrência das
exportações norte-americanas. São duas visões diversas de como se olha para o mundo,
para a humanidade, quais as prioridades que devem nortear a vida dos povos entre si.
Vide Dolinger, op. cit., p. 426, nota 85 para maiores detalhes sobre os dois decretos
presidenciais americanos.
(10) F. Rigaux. Droit public et droit privé dans les relations internationales, p. 199.
(14) The changing structure of international law, 1966, p. 240-241. Vide também B.
Goldman, op. cit., p. 464 que também se refere à ordem pública internacional no que
concerne à proteção dos direitos humanos.
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