A Documentação Pedagógica Como Mote para A Formação de Professores - o Caso de Uma Escola Participante Do OBECI

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A documentação pedagógica como

mote para a formação de professores:


o caso de uma escola participante do
OBECI
The pedagogical documentation as a motto for
teacher training: the case of a school participating in
the OBECI

Paulo Sergio Fochi*


Luciane Frosi Piva**
Luciane Varisco Focesi***

RESUMO ABSTRACT
O presente texto tem como proposta compartilhar o This paper aims to share the work that the Centre
trabalho que o Observatório da Cultura Infantil - for Children's Culture - OBECI has developed with a
OBECI vem desenvolvendo junto a um grupo de group of Early Childhood Education. The focus is to
escolas de educação infantil. O foco é evidenciar a highlight the perspective adopted by this
perspectiva adotada por este observatório a respeito observatory regarding pedagogical documentation,
da documentação pedagógica, especialmente, no especially with regard to its use as a motto in
que diz respeito ao uso dela como mote na formação teacher training. It is shared the process of
de professores. É compartilhado o processo de formation that one of the schools of the OBECI
formação que uma das escolas do OBECI vivenciou experienced with a group of teachers when
com o grupo de professores ao problematizar uma problematizing a scene of the daily life of the Early
cena do cotidiano da escola de educação infantil. Childhood Education. Finally, in addition to
Por fim, além de sublinhar a importância das emphasizing the importance of daily activities, the
atividades cotidianas, o texto demarca uma crença text highlight a belief in Pedagogy as a possibility of
em relação ao campo da pedagogia, como transformation of the context before the
possibilidade de transformação do contexto diante construction and contextual training.
da construção e vias de formação contextuais.
Keywords: Pedagogical documentation. Early
Palavras-chave: Documentação Pedagógica. Childhood Education. Observatory of Children's
Educação Infantil. Observatório da Cultura Infantil. Culture. Teacher training
Formação de professores

* Doutorando em Educação (USP); Mestre em Educação (UFRGS) e Pedagogo (Unopar). Professor do curso
de Pedagogia da Unisinos e Coordenador do OBECI – Observatório da Cultura Infantil. E-mail:
[email protected]
** Pedagoga (Unisinos), Especialista em Educação Infantil (Unisinos) e Coordenação Pedagógica (UFRGS),

assessora da Secretaria Municipal de Educação de Novo Hamburgo e membro do OBECI – Observatório da


Cultura Infantil. E-mail: [email protected]
*** Pedagoga (Feevale), Especialista em Educação Infantil (UFRGS), Coordenadora Pedagógica da EMEI

João de Barro de Novo Hamburgo e membro do OBECI – Observatório da Cultura Infantil. Email:
[email protected]
A documentação pedagógica como mote para a formação de professores 166

Contexto da formação
sse texto se ocupa em apresentar o trabalho desenvolvido no Observatório
da Cultura Infantil - OBECI, centrado na documentação pedagógica como
mote na formação de professores e gestores de Educação Infantil.
O OBECI nasceu de forma independente a instituições universitárias, a
fim de criar um grupo de profissionais da Educação Infantil que
estivessem interessados em refletir as dinâmicas do cotidiano e da formação dos
professores das suas instituições, a partir dos princípios da documentação pedagógica
(FOCHI, 2017). O nome deste grupo, Observatório da Cultura Infantil, está
diretamente ligado as crenças conceituais de pesquisa e a um dos pilares da
documentação pedagógica, o da escuta.

Assim, a proposta do observatório, enquanto um lugar legítimo para o


debate ampliado e de confronto a respeito das práticas educativas, é
despertar no adulto a sua capacidade para ver criticamente a pedagogia
latente nas escolas, reveladas por aquilo que está em curso no cotidiano da
instituição. Também, compreender e interpretar as atuações das crianças
para, então, saber planejar e projetar a continuidade do seu próprio fazer
enquanto professor (FOCHI, 2017, p. 03).

Neste grupo percebemos a documentação pedagógica como uma forma de


produzir conhecimento sobre a Educação Infantil, a partir da oportunidade de
aprender a olhar as experiências das crianças na escola e evidenciar o papel da
criança no processo educativo, convidando a reposicionar o papel do professor e a
construir um contexto educativo de qualidade. Além disso, entendemos que este
grupo configura-se como um espaço legítimo para as dúvidas e perguntas sobre a
práxis, pois “[...] compreender os impactos daquilo que diariamente estamos fazendo
nas creches e pré-escolas demanda desnaturalizar matrizes fortemente constituídas
em cada adulto que opera dentro das instituições” (FOCHI, 2017, p. 07).
As reflexões que acontecem no OBECI perseguem os princípios das pedagogias
em participação que, de acordo com Oliveira-Formosinho (2007, p. 14) trata-se de
uma “pedagogia transformativa, que credita a criança com direitos, compreende sua
competência, escuta sua voz para transformar a ação pedagógica em uma atividade
compartilhada”. Nesta perspectiva, a formação precisa romper com o modelo
escolarizante de ensinar para que os professores ensinem. Exige converter-se em uma
formação que mobilize o professor a escutar as crianças, assentar-se em teorias de
base, especialmente aquelas das pedagogias da infância e contrastar o cotidiano para
produzir o conhecimento pedagógico.
Atualmente o OBECI envolve cinco escolas de Educação Infantil, três públicas e
duas privadas, da região metropolitana de Porto Alegre. As ações do observatório
desdobram-se em atividades com periodicidades distintas, envolvendo públicos
diferentes e realizando micro intervenções (com as professoras especificamente, em
suas turmas) e macro intervenções (com a gestão da escola, em questões
institucionais). No quadro seguinte é possível ter um panorama das ações realizadas
no âmbito de 2016 e quais públicos estiveram envolvidos.

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Fochi, P. S.; Piva, L. F.; Focesi, L. V.
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Tabela 1. Ações do Obeci - 2017

Profissionais

Professores dos

Professores dos
Coordenadora

grupos de 0-3

grupos de 3-6

instituições e
professores e
profissionais

geral (outras
Pedagógica

Público em
das escolas
Diretor/a

Demais
anos

etc)
Atividades
1. Encontros quinzenais da Equipe Gestora x x
1.1Grupo fechado no Facebook para
x x x x x
divulgação e compartilhamento de materiais
2. Encontros mensais do Grupo de
Investigação-Ação (GIA) do Brincar x x
Heurístico
2.1 Grupo fechado no Facebook para
compartilhamento de materiais específicos
sobre o GIA Brincar Heurístico, além das x x x
investigações que as professoras estão
realizando em suas escolas
3. Encontros mensais do Grupo de
Investigação-Ação (GIA) do Ciclos de x x
Simbolização
3.1 Grupo fechado no Facebook para
compartilhamento de materiais específicos
sobre o GIA Ciclos de Simbolização, além das x x x
investigações que as professoras estão
realizando em suas escolas
4. Encontro de Investigação-Ação (GIA)
x x x x
sobre Jogos de Luz e Sombra
4.1 Grupo fechado no Facebook para
compartilhamento de materiais específicos
sobre o GIA Jogos de Luz e Sombra, além x x x x
das investigações que as professoras estão
realizando em suas escolas
5. Encontro semestral das Escolas
Observadoras tematizando sobre as Mini- x x x x x
Histórias
6. Jornada Anual de Educação Infantil
x x x x x x
tematizando a Documentação Pedagógica
7. Mostra fotográfica de Mini-Histórias:
Espalhando boas histórias: Rapsódias da x x x x x x
vida cotidiana na Educação Infantil
Fonte: Fochi, 2017

Feito a contextualização do observatório, nas próximas seções do texto,


apresentaremos a concepção de documentação pedagógica que comungamos no
OBECI e compartilharemos um exercício reflexivo de uma das escolas deste

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observatório, a Escola Municipal de Educação Infantil João de Barro, situada no


interior do Rio Grande do Sul.

A ideia de documentação pedagógica que comungamos


O argumento que queremos desenvolver neste texto tem o objetivo de ampliar a
noção a respeito da abordagem da documentação pedagógica em escolas infantis.
Muito tem se ouvido a respeito e, com frequência, tal abordagem é compreendida
como sinônimo de portfólios, sequências fotográficas, pareceres, avaliação ou,
simplesmente, como compilação de registros.
Ao contrário destas ideias que circulam, no OBECI compreendemos a
abordagem da documentação pedagógica como algo muito além dos exemplos citados
anteriormente. Percebemo-la como uma abordagem curricular que envolve o
engendramento de concepções, escolhas teóricas e de uma postura prática que coloca
a criança no centro do projeto educativo. Vale dizer que abordagem curricular é “uma
representação ideal de premissas teóricas, políticas administrativas e componentes
pedagógicos de um programa destinado a obter um determinado resultado
educativo” (BROWN, SPODEK, 1996, p. 15). Entendemos aqui por “um determinado
resultado educativo”, o direito dos meninos e meninas acessarem o patrimônio de
conhecimento atribuindo sentido e significado, distantes de propostas de reprodução
ou de sequências de atividades descontextualizadas.
Neste sentido, é importante destacar que a documentação pedagógica envolve a
conjugação de três partes inseparáveis: observação – registro – interpretação
(FOCHI, 2015). Estas não acontecem isoladamente, mas no seu engendramento é que
se torna possível cumprir com alguns dos pressupostos desta abordagem curricular
dos quais abordaremos a seguir.
O primeiro destes pressupostos é a compreensão da prática educativa como um
caminho que não é improvisado, mas tampouco naturalizado. Um dos aspectos
importantes desta abordagem curricular é o de contribuir para que o professor reflita
sobre a ação pedagógica e, tome decisões mais conscientes. Isso não significa planejar
uma prática fechada, diretiva e voltada para alcançar objetivos pré-fixados. Neste
sentido, destacamos um segundo pressuposto, a escuta.
Escutar as crianças, escutar os companheiros de trabalho, escutar as famílias é
um princípio ético da documentação pedagógica. Não é possível imaginar esta
abordagem curricular na solidão, ela está situada na abertura ao diálogo, ao
confronto, à participação. Daí sua função em envolver as famílias e outros
profissionais da escola nas experiências de aprendizagem das crianças.
O terceiro pressuposto diz respeito ao posicionamento desta perspectiva
enquanto uma teoria plural. Ou seja, o propósito da documentação pedagógica é
romper com as crenças lineares, absolutas e fechadas sobre o conhecimento; é propor
uma perspectiva mais complexa e provisória, em que a produção de sentidos está
diretamente envolvida com os sujeitos da própria experiência e suas percepções sobre
o mundo. Sua busca é evidenciar os múltiplos significados que surgem durante o
percurso educativo das crianças e dos professores.

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O trabalho educativo nesta abordagem curricular parte do princípio da escuta


das crianças, envolve “um processo cooperativo que ajuda os professores a escutar e
observar as crianças com que trabalham, possibilitando, assim, a construção de
experiências significativas com elas” (GANDINI; GOLDHABER, 2002, p. 150). Este
primeiro passo implica no adulto estar disponível para escutar as crianças, não com
ideias a priori, mas aberto a surpreender-se com os mundos possíveis que os meninos
e meninas criam em suas experiências diárias.
Assim, a ação pedagógica se dá em meio à produção de registros das falas das
crianças, de imagens do cotidiano, das produções dos meninos e meninas, ou seja,
evidências que tornam possível chegar a interpretação de alguns caminhos a serem
trilhados. Rinaldi (1998. p. 10) afirma que observação não é apenas uma ação, mas
também uma relação recíproca: uma ação, um relacionamento, um processo que nos
faz conscientes do que está acontecendo. Muitas vezes este é um processo longo, e
sempre que confrontado com outros pontos de vista, pode ser enriquecido e
encaminhado para possibilidades mais abertas e menos previsíveis. Por isso a
necessidade de se ter materiais concretos ou aquilo que Fochi (2015) define por
observáveis:

[...] registros feitos a partir de observações do cotidiano e que garantem a


possibilidade de serem utilizados para refletir. Os observáveis são,
necessariamente, materiais concretos, físicos: fotografias impressas,
arquivos de fotografia, arquivos de vídeo, anotações do professor,
exemplares de produções das crianças. Em outras palavras, algo que se
possa observar posteriormente ao momento em que ocorreu.

Observáveis são os materiais que se pode consultar, compartilhar e retomar


sempre que necessário para refletir a respeito das múltiplas experiências possíveis
que são propostas junto com as crianças.
É durante este momento que o professor poderá elaborar perguntas guias para o
trabalho que proporá às crianças, naquilo que apontamos como continuidade de seu
fazer enquanto professor. Com isso, destacamos que a prática não é improvisada, mas
tampouco, fechada. A utilização de observáveis gera indícios importantes para o
professor compreender as teorias provisórias das crianças e, ao mesmo tempo, criar
estratégias para ajudá-las a avançar em suas próprias elaborações. Rinaldi (1998, p.
16) enfatiza a atualização do professor que ocorre durante esse processo de revisitar
cenas do cotidiano e aponta esse âmbito formativo como direito individual e de grupo
e que pressupõe, além de outros,

[...] uma cotidianidade qualificada e que se re-qualifica continuamente


através de suas observações, interpretações e avaliações, modificando-se
graças as ações e reflexões conjuntas entre os adultos e as crianças: está é a
maior garantia que podemos dar, não só aos docentes, mas também às
crianças e as famílias.

Sintetizando esta primeira etapa, podemos dizer que o professor (i) observa as
crianças em suas relações e experiências cotidianas; (ii) registra por meio de
anotações ou imagens (fotográficas ou audiovisuais) e/ou resgata produções
realizadas pelos meninos e meninas; e (iii) interpreta tais observáveis para conseguir
compreender os interesses, teorias, assuntos ou perguntas que as crianças estão

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produzindo sobre si, sobre os outros e sobre o mundo. Ademais, o argumento que
temos construído é de que a documentação pedagógica pode ser compreendida
enquanto uma abordagem curricular, pois: (i) a observação e o registro tornam-se
auxílio para a tomada de decisão; (ii) a ação pedagógica é constituída a partir dos
registros gerados e interpretados e assentada em teorias que valorizem a cultura da
infância; e (iii) a narratividade das experiências tem a finalidade de comunicar os
percursos das crianças e dos professores, no sentido generativo de textos
pedagógicos.
Fochi (2017), menciona que esta concepção perseguida no OBECI considera que
na abordagem da Documentação Pedagógica existam dois níveis focais do trabalho:
“o primeiro, interno, de construção de uma prática observada, interpretada e
registrada para a sua retroalimentação e para a identificação das zonas de construção
de conhecimento das crianças e dos professores” (2017, p.10), o segundo nível,
externo, pois “trata-se da comunicação das crenças e dos valores que a instituição
construiu; da comunicação dos modos como as crianças interpretam e elaboram a si
mesmas, aos outros e ao mundo num nível de compartilhamento e diálogo
democrático com a comunidade” (2017, p. 11).

Imagem 1. Níveis da Documentação Pedagógica - 2017

Fonte: Fochi, 2017

O autor enfatiza que, sumariamente, pode-se dizer que esse primeiro nível:
[...] é aquele que cria um espaço de investigação ao perceber o cotidiano da
escola como algo que dá o que pensar e, por sua vez, que autoriza e
encaminha as tomadas de decisões sobre a criação de um contexto educativo
(tempo, espaços, materiais e grupos) de qualidade com base em evidências
concretas e refletidas (FOCHI, 2017, p. 11).

Destaca que esse “é um momento de produção de conhecimento pedagógico e


de autoformação dos profissionais envolvidos”. Ademais, é isso que nos interessa
abordar neste texto, por isso exemplificaremos a seguir um caso de uma das escolas

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participantes do OBECI. Ainda em relação ao segundo nível, Fochi (2107, p. 12)


enfatiza que nele o compartilhamento da experiência pedagógica ganha importância,
pois,

[...] ao deixarmos memória pedagógica sobre o que é feito nas escolas,


podemos afirmar a respeito de um momento particular da vida das crianças
em espaços institucionais e, mesmo que em um tempo distante, seja possível
perpetuar experiências que tenham um particular interesse no acolhimento
do universo das crianças e no respeito aos seus direitos fundamentais.

Por fim, temos acreditado que é dessa forma que torna-se possível criar uma
espécie de sistema, interconectando a cultura infantil com a cultura adulta,
diminuindo os abismos que existem entre elas (MALAGUZZI, 1999) para poder gerar
pedagogias mais respeitosas com estes que estão chegando no mundo. Tanto no
primeiro como no segundo nível da abordagem da documentação pedagógica, o
objetivo é a promoção da cultura da infância e de uma cultura pedagógica. Isso
porquê nossa crença de que a escola é o espaço privilegiado para a garantia dos
direitos das crianças e da “construção de um estatuto pedagógico que respeite os
meninos e meninas e que reconheça na área da pedagogia a possibilidade de inovar e
estabelecer-se como ciência que efetivamente contribua com os modos de fazer,
pensar e avaliar o que se faz na escola” (FOCHI, 2017, p. 12).

O caso da Escola Municipal João de Barro: brincar de


servir
A partir dos pressupostos apresentados nas seções anteriores, compartilhamos
uma experiência de formação, situada no âmbito deste observatório, demonstrando
contextualmente de que modo estamos refletindo os modos como pensamos, fazemos
e narramos a educação infantil.
A Escola Municipal de Educação Infantil João de Barro atende crianças de 0 a 3
anos (etapa creche) e participa do OBECI desde 2014. Como o restante das escolas
deste observatório, a temática relativa ao cotidiano tem gerado profundas reflexões
na tentativa de desnaturalizar o modo modus operandi da instituição. Por isso, se
organizou um momento de parar-se frente a própria experiência com os professores
das diferentes faixas etárias, no primeiro semestre do ano de 2015, a partir de uma
sequência de imagens de crianças (o qual chamamos de observáveis) de uma turma
da faixa etária um ano.
Na seleção escolhida previamente pela coordenadora pedagógica e discutida
dentro do OBECI, as crianças estão no solário da escola envolvendo-se em uma
brincadeira livre a partir de xícaras disponíveis nesse contexto da brincadeira. A
título de contextualização e compreensão da proposta seguem algumas dessas
imagens, utilizadas como observáveis, onde Laura e Lorenzo, de apenas 1 ano e meio,
brincam de servir-se:

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A documentação pedagógica como mote para a formação de professores 172

Voltar-se para esses observáveis de um episódio do cotidiano das crianças na


escola nos possibilitou problematizar concepções a respeito das crianças e da própria
noção de docência na educação infantil. O que podemos pensar ao olhar para esta
cena? Essa é a questão central. Ela não apenas nos diz a respeito daquilo que parece
ser óbvio, ou seja, sobre a qualidade das interações entre as crianças e como
diferentes materiais dão a possibilidade de criação de enredos mas, pode nos
descortinar outros aspectos importantes que refletem em diversas situações
presentes no cotidiano da educação infantil.
Neste sentido, foram feitas algumas questões norteadoras às professoras, a fim
de suscitar reflexões a partir dos acontecimentos do cotidiano, pois entendemos que
“valorizar o cotidiano na escola significa pôr atenção na realidade, não ensinar por
esquemas” (STACCIOLI, 2011 apud CARVALHO; FOCHI, 2016, p. 161).
Questões como: Descrevam o que vocês estão vendo nesta sequência de
imagens? O que podemos pensar sobre a ação das crianças? Quais são a qualidade
das interações que mais chamam a atenção? Qual a qualidade do envolvimento das
crianças nesta cena? O que vocês imaginam que as crianças destas imagens sabem?
Como aprenderam a respeito? O que está em foco na cena decorre de uma proposta
organizada pelo professor? Onde está o professor neste evento? Que tema central
poderíamos identificar neste registro? Quais os conteúdos formativos são possíveis
perceber na cena?
Com base nessas perguntas guias e em outras que emergiram durante a
conversa com as professoras, problematizamos junto a elas quais pistas que
pudessem ser extraídas desta cena e que nos indicasse modos para encaminhar a
prática pedagógica em dois sentidos: o primeiro, no que se refere à organização do
contexto (tempo, espaço e materiais) de tal modo que potencialize as investigações,
explorações e interações das crianças. O segundo, sobre a importância de pensarmos
em algumas estratégias para propor em pequenos grupos em situações comuns na

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Fochi, P. S.; Piva, L. F.; Focesi, L. V.
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vida cotidiana daquele grupo, como por exemplo, a transição entre o uso da
mamadeira e o uso do copo.
A partir do acompanhamento e da retroalimentação da sua própria prática, o
adulto percebe o papel que ocupa para que as crianças possam elaborar suas teorias
e, ao mesmo tempo, vai compreendendo como as crianças procedem, que hipóteses
têm, quais estratégias utilizam, como se relacionam com seus pares. Ou seja, é
sempre mais uma forma de aprender o como as crianças aprendem.
Emergiu, diante destes observáveis, comentários sobre a qualidade e
competência dos dois bebês em manusear os utensílios (neste caso, brinquedos) do
cotidiano. Além disso, o conhecimento que essas crianças já construíram a respeito
sobre como utilizamos determinados objetos. Esse conhecimento é fruto das
experiências pessoais dessas crianças em contextos reais, de suas participações a uma
cultura que manuseia tais objetos desta ou daquela forma, do pertencimento a
determinadas práticas sociais que figuram comportamentos e modos de agir.
Voltando-se a este exemplo de Laura e Lorenzo, do “brincar de servir”, nos
impulsionou a refletir com as professoras sobre as práticas sociais que ocorrem no
âmbito da escola. Como uma metáfora, essas imagens nos convidaram a pensar sobre
que maneira acontecem nessa escola práticas como: troca da mamadeira pelos copos,
troca dos copos com tampa para canecas; comer com colher para comer com garfo e
faca; uso do bico; servir-se no buffet; deslocamentos pelos espaços da escola.
Todos esses exemplos são práticas sociais que envolvem transições complexas
para as crianças e que muitas vezes passam despercebidas nas rotinas automatizadas
da jornada da escola. Quando os professores param frente a essas cenas e conseguem
extrair delas questões, possivelmente, o modo como passa a olhar para as transições
vividas pelas crianças na escola os ajudam a planejar esses momentos de forma a
respeitá-las. Staccioli (2013, p. 133) assinala que: "[…] devemos sempre nos lembrar
que cada criança é diferente e diferentes são suas estratégias para enfrentar e superar
os vários momentos de crescimento, por isso, certamente, será negativo prever
normas rígidas e iguais para todas. "
Ainda a respeito deste tópico, Oliveira-Formosinho, Passos e Machado (2016),
destacam que pensar em transições, como tudo na infância (e na vida) está
relacionado ao modo de experienciar as situações, pois:

É no modo de as viver que precisamos de construir a pedagogia das


transições. Esta relação do conhecimento com o modo como foi aprendido
diz-nos que a natureza da experiência de transições depende de como elas
são vividas pelas crianças, famílias e profissionais. (OLIVEIRA-
FORMOSINHO; PASSOS; MACHADO, 2016, p. 36, grifo do autor)

A partir das reflexões suscitadas diante da cena da Laura e do Lorenzo, foi


possível provocar novos significados para determinadas atividades do cotidiano,
desvelando, dessa maneira, valor para as conquistas autônomas dos pequenos,
considerando que são protagonistas de seu processo de aprender.
A título de exemplo, gostaríamos de inventariar algumas ações que
repercutiram a partir desta formação e que acreditamos estar contribuindo para o

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A documentação pedagógica como mote para a formação de professores 174

avanço em práticas que estão interessadas em contribuir para a autonomia e respeito


aos tempos de cada criança.
Essas ações são, muitas vezes, efêmeras, mas situam-se basicamente nas
diferentes transições do cotidiano que agora começaram a ser feitas com um certo
grau de consciência. Primeiramente, optamos por organizar o contexto de modo que
favorecesse o estar em pequenos grupos, oportunizando assim, espaço para as
diferentes manifestações das crianças, além de evitar colocá-las em um estágio de
desenvolvimento. Canecas com alça e jarras menores foram sendo oferecidas para as
crianças que se percebia estarem com interesse em usar esses utensílios ao invés da
mamadeira. Como forma de respeito à criança, que está muitas vezes sob
dependência de um adulto, nas ocasiões de saídas da sala referência começou a ser
avisada para antecipar sobre o que viria acontecer estabelecendo uma atmosfera de
convite às crianças a participarem das diferentes ações cotidianas. Especialmente
quando apenas um pequeno grupo sai para as sessões do brincar heurístico,
percebíamos que tanto as crianças que permaneciam na sala quanto aquelas que
saíam, não entendiam as razões do que estava acontecendo. Na organização dos
grupos de crianças para as sessões do brincar heurístico, são observadas, registradas
e refletidas as características das crianças, considerando possibilidades diversas dos
arranjos dos grupos. O buffet ganhou apoio para pratos e utensílios com dosagem
menor e cabos maiores, para que as próprias crianças pudessem se servir de acordo
com suas preferências, mesmo que ainda se faça o incentivo para servirem um pouco
de cada alimento e deixar “o prato colorido”. Garfos e facas foram sendo colocados no
campo visual das crianças no buffet para que, aquelas que se sentissem desafiadas a
os utilizarem, pudessem ter autonomia para tal e, consequentemente, realizarem suas
testagens. Com isso, gradualmente, crianças foram substituindo o uso da colher e
habitando-se a escolher o utensílio certo para o uso de cada alimento. Crianças foram
sendo convidadas a sentarem nos bancos para as refeições ao invés do cadeirão, além
disso, passou a ser oferecido uma colher para que pudessem experimentar comer
sozinhas, mesmo com a professora ao lado auxiliando com outra colher. O uso do
bico passou a ser autorizado mediante combinações da professora para, aos poucos,
depois do período de adaptação, fosse utilizado pelas crianças apenas nos momentos
de sono, final de tarde, na espera das famílias, até ser deixado de lado, em
combinação com as famílias e no tempo de cada criança.
Neste momento, o esforço das professoras e da equipe gestora é tornar público
essas experiências cotidianas. De posse deste rico material, evidencia os percursos
das crianças “como uma estratégia ética para dar voz as crianças, para a infância e
para devolver uma imagem pública [da pedagogia que é feita na escola] para a
cidade” (HOYUELOS, 2006, p. 197).
Ademais, o professor não só permite que outros possam produzir novas
interpretações sobre as crianças e sobre a prática educativa, como também deve
reconhecer esta ocasião como um momento ímpar para formular novas hipóteses
para alimentar a sua ação pedagógica. É, também, quando se acompanha as
transformações dos percursos projetados na formação, mantendo viva a postura de
curiosidade, de querer saber como atitude vertical que não quer responder as suas
próprias perguntas imediatamente, deixando espaço para que abram novos

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Fochi, P. S.; Piva, L. F.; Focesi, L. V.
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horizontes.
Embora saibamos que no cotidiano da escola existe uma potência muito grande
a partir das muitas relações estabelecidas pelas crianças com o tempo e o espaço
escolar, pois, assim como Carvalho e Fochi (2016, p. 160) nos apontam

Entendemos que é também nas espacialidades e temporalidades da vida


cotidiana escolar que as crianças constroem o sentido de suas ações, que
interrompem a ordem institucional e que propiciam novos inícios com base
em questionamentos e teorizações sobre a vida, sobre as relações que
estabelecem com seus pares e sobre si mesmas.

O desafio que estamos percebendo é sobre a importância do material


documentativo se fazer claro e compreensível, convidando aqueles que não estão
diretamente envolvidos a interpretar e construir sentidos diversos sobre as
experiências das crianças e dos adultos. Este é sempre um momento de comunicar a
imagem que temos de criança, de adulto e de conhecimento, por isso, é uma
oportunidade de confronto e debate que afrontem nossas certezas e gerem outras
perspectivas possíveis.
Sobretudo, é por tudo o que foi exposto que compreendemos a abordagem da
documentação pedagógica como algo muito além de um simples apanhado de
registros. Ao contrário, a percebemos como uma abordagem curricular que envolve o
engendramento de concepções, escolhas teóricas e de uma postura prática
transformadora que coloca a criança no centro do projeto educativo.

Algumas ideias finais


O percurso que tentamos apresentar neste texto é parte de uma complexa trama
de ações que este grupo de escolas, o Observatório da Cultura Infantil, desde 2013
vem constituindo. O exemplo compartilhado através das cenas de Laura e Lorenzo
exemplifica de que modo estamos produzindo um conhecimento dentro da escola a
partir dos práticos, ou seja, do professor que diante de sua práxis, reflete para tornar
visível suas crenças, valores e horizontes teóricos que são engendrados no cotidiano
da escola.
Podemos afirmar que tal processo tem possibilitado a construção de uma
gramática pedagógica (OLIVERIA-FORMOSINHO, 2007) que afirma que no
cotidiano da Educação Infantil está a subversão da ordem linear e previsível, típica
das pedagogias transmissivas (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007). Daí a importância
da constituição de uma pedagogia mais atenta aos acontecimentos extraordinários,
que mantenha viva as perguntas dos adultos para que possam estar interessados em
escutar a complexidade das relações entre todos os elementos que entram em jogo em
um contexto como o da escola (ALTIMIR, 2010). Ou seja, uma gramática pedagógica
que vê no adulto a possibilidade de “transformar esse percurso em uma longa e
bonita jornada a ser percorrida de mãos dadas, como alguém que acompanha, acolhe,
cuida, compartilha e impulsiona a experiência de vida do outro” (FOCHI, 2014, p.
110).
Por meio dos materiais documentativos que temos produzido, acreditamos ser

Crítica Educativa (Sorocaba/SP), v. 2, n. 2, p. 165-177, jul./dez.2016 ISSN: 2447-4223


A documentação pedagógica como mote para a formação de professores 176

possível interpretar para compreender e reinterpretar para transformar a ação


pedagógica, especialmente, com o senso de, continuamente, alimentar as ideias, as
hipóteses em torno de um grupo de crianças e do processo de pesquisa e de
experiências que elas estão construindo no interior das escolas.
Ao assumirmos esse modelo de formação focalizada nos contextos, tendo ainda
como mote para a transformação da prática a documentação pedagógica,
reposicionamos a imagem do adulto que se interroga de que forma pode valorizar as
peculiaridades da ação pedagógica com os meninos e meninas em seus percursos na
vida coletiva. Por isso, vemos no OBECI um lugar privilegiado em que teoria e prática
são evidenciadas, no qual as diferentes dissonâncias culturais e de pensamentos
presentes no interior do grupo educativo são aceitos como valores e transformados
em oportunidades de compreensão mútua.

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Recebido em 20/12/2017.

Aprovado em 28/12/2017.

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