As Origens Agrarias Do Terror 2023

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MENSAGEM DO EDITOR - MAIO 2023

O filme de terror político que vimos em Brasília não começou em 8 de janeiro de 2023. Antes
tivemos os bloqueios de rodovias, após a realização do segundo turno. Ali não víamos só cami-
nhões, mas também tratores. Reparem neste signo: os tratores. Este projeto se propõe a contar
de onde vêm esses tratores reais e simbólicos, as pressões políticas que resultam em golpes,
em boa parte articuladas pela bancada ruralista. O terror agrário no Brasil antecede o bolso-
narismo, embora costure com ele políticas de destruições. O relatório As Origens Agrárias do
Terror surgiu porque é necessário identificar de forma mais ampla — e estrutural — aqueles que
apostam contra a democracia e o povo brasileiro. É uma iniciativa do núcleo de pesquisas do
De Olho nos Ruralistas, observatório criado em 2016 para mostrar a face oculta do agronegó-
cio e os impactos sociais, políticos e econômicos do modelo de uso da terra adotado no Brasil.
Para ampliar seus territórios e manter a desigualdade, os donos dos tratores são capazes disso
e muito mais.

Alceu Luís Castilho

© De Olho nos Ruralistas Maio 2023


Autores: Bernardo Fialho, Bruno Stankevicius Bassi, Luís Indriunas, Mariana Franco Ramos e
Nanci Pittelkow
Cartografia: Eduardo Luiz Damiani Goyos Carlini
Projeto gráfico: Felipe Fogaça
Coordenação editorial: Alceu Luís Castilho

Para mais informações sobre este documento, envie um email para contato@deolhonosruralis-
tas.com.br

Esta publicação é registrada em nome do observatório De Olho nos Ruralistas, mas pode ser
utilizada gratuitamente para fins de advocacia pública, campanhas, pesquisa e educação, res-
guardada a menção completa da autoria. A cópia, tradução ou adaptação de partes ou da ín-
tegra do documento em outras publicações deve ser previamente consultada, podendo haver
cobrança. Para quaisquer dúvidas consultar o email [email protected]

As informações disponíveis nesta publicação foram checadas e estão atualizadas até a data da
publicação.

Fotos de capa, em sentido horário: 1. Bolsonaristas vandalizam a sede do Congresso Nacional em 8 de ja-
neiro de 2023 (Marcelo Camargo/Agência Brasil); 2. Fazendeiros protestam em Brasília pelo impeachment
de Dilma Rousseff, em 2016 (Humberto Pradera/PSB Nacional); 3. Multidão se reúne na Central do Brasil
para ouvir o discurso de João Goulart em defesa das reformas de base (Correio da Manhã); 4. Tratores se
enfileiram em manifestação antidemocrática de 7 de setembro de 2021 (Reprodução/TV Brasil); 5. Estátua
do líder seringueiro Chico Mendes é destruída por bolsonaristas em Rio Branco (Reprodução/Juan Diaz);
6. Cartazes da Frente Parlamentar da Agropecuária durante votação do impeachment de Dilma Rousseff,
em 2016 (Valter Campanato/Agência Brasil); 7. O então presidente Jair Bolsonaro posa em trator durante
o Agrishow, em Ribeirão Preto, em 2019. (Alan Santos/PR).

Dedicado a Marcelo Zelic (1963-2023), defensor incansável do direito à memória em um país que insiste em
esquecer seu passado.
(Ronaldo Bernardi/RBS)
(Isaac Risco/DW)

ÍNDICE

DESTAQUES DO RELATÓRIO

INTRODUÇÃO

PARTE 1: O AGRONEGÓCIO E O TERROR


• Ruralistas apoiaram o terror em Brasília
• Quem está por trás de George Washington
• Mais que um mero gerente de posto
• Conexão Sobral
• Roteiro do golpe seguiu logística do agronegócio
• Fazendeiros doaram R$ 1,3 milhão para Bolsonaro

PARTE 2: AGROBOLSONARISMO
• Agronegócio bancou manifestações golpistas em 2021
• Tratores tomaram a Esplanada
• Voto de cabresto
• Terroristas são os outros

PARTE 3: TERRORISMO NÃO COMEÇOU EM 2023


• “Deus, pátria e família”
• Terror agrário
• Leilão para compra de animais prenunciava terror
• Impeachment ou agrogolpe?

CONCLUSÃO
(Paulo Pires/GES)
DESTAQUES
DO RELATÓRIO
• Atores do agronegócio brasileiro tiveram participação decisiva no financiamento e
no apoio logístico aos atos de terrorismo ocorridos na Praça dos Três Poderes, no
dia 8 de janeiro de 2023.

• Alguns fazendeiros e donos de empresas agropecuárias estiveram em Brasília nesse


dia. Outros foram presos.

• A lista de apoiadores dos atos golpistas inclui empresas e cooperativas do agrone-


gócio, sojeiros, pecuaristas e madeireiros. Eles deram suporte político e jurídico aos
acampamentos bolsonaristas em quartéis do Exército.

• Líderes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – a face institucional da ban-


cada ruralista no Congresso – contribuíram diretamente com discursos golpistas.

• Em 2022, a rede de bloqueios em rodovias que antecedeu a tentativa de golpe se-


guiu a cadeia logística do agronegócio. No Mato Grosso, dos 43 financiadores identi-
ficados em inquérito do Supremo Tribunal Federal, 29 são produtores ou comercian-
tes de soja.

• O terrorista George Washington de Oliveira Sousa, que organizou atentado a bomba


no aeroporto de Brasília, em dezembro de 2022, citou dois contatos ao ser preso.
Um deles é o fazendeiro Bento Carlos Liebl. A família dele é dona de 30 mil hectares
em São Félix do Xingu (PA), em área vizinha da Terra Indígena Apyterewa, a mais
desmatada do Brasil entre 2019 e 2022.

• Os municípios de Sobral, no Ceará, e Xinguara, no Pará, são os pontos de conexão


entre George Washington e o jornalista cearense Wellington Macedo, apontado
como membro da mesma célula terrorista.

• O apoio do agronegócio ao golpe de Estado defendido por Jair Bolsonaro prece-


de o período pós-eleições. Líderes do setor mobilizaram caminhões e tratores para
atos antidemocráticos de 7 de setembro, em 2021 e 2022, e ameaçaram funcionários
para que não votassem em Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro apoiou diretamente o
armamento do setor.

• O terrorismo registrado em Brasília se soma a uma longa lista histórica de agrogol-


pes e atos de terror agrário. O setor que se mobilizou para o impeachment de Dilma
Rousseff é o mesmo que organizou o Leilão da Resistência, uma mobilização de ru-
ralistas contra indígenas no Mato Grosso do Sul, em 2013, voltada inicialmente para
obter armas.

• O golpe de 1964 foi também um golpe agrário.


(Reprodução/Instagram)
INTRODUÇÃO (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Apontar as Origens Agrárias do Terror im- dezembro de 2022, não é apenas um


plica oferecer um olhar econômico e seto- fanático político e um mero empresário
rial para o dia 8 de janeiro de 2023. Tirar o do setor de combustíveis. Por trás dele
foco deste ou daquele manifestante mais há uma intrincada cadeia de relações que
raivoso, folclórico ou manipulável. Impli- recai em atores importantes do agrone-
ca construir uma perspectiva histórica e gócio brasileiro e da expansão econômica
geográfica para os fatos, ao contrário da nos arcos de desmatamento e destruição
espetacularização acrítica promovida pela do ambiente. Entre os presos do dia 8 de
maior parte dos meios de comunicação, janeiro há dezenas de sojeiros, pecuaristas
estes a olhar apenas a ponta do iceberg. e madeireiros, responsáveis por financiar
caravanas, manter acampamentos em
Os atos golpistas na Praça dos Três Pode- quartéis e organizar ações golpistas nos
res significaram mais do que a destruição estados — seguindo, em grande parte, as
irreparável do patrimônio público. Eles são rotas logísticas usadas pelo agronegócio.
a parte mais visível de um projeto de po-
der com décadas — ou séculos — de atu- O núcleo de pesquisa do De Olho nos Ru-
ação sistemática. As hordas bolsonaristas ralistas apresenta o relatório “As Origens
tiveram apoio explícito do Exército Brasi- Agrárias do Terror” com o objetivo de
leiro e da Polícia Militar do Distrito Federal explicitar as relações — ignoradas ou mini-
porque generais e coronéis estão histori- mizadas pela imprensa comercial brasilei-
camente habituados a atender os interes- ra — entre o agronegócio e a tentativa de
ses de determinadas elites econômicas, golpe à democracia perpetrada em Brasí-
as velhas aristocracias que não suportam lia. Organizações como a Repórter Brasil1
políticas de inclusão e de combate à desi- e alguns poucos jornalistas procuraram
gualdade, mesmo que propostas por go- jogar uma luz nesse sentido. Mas ainda é
vernos conciliadores. necessário fazer circular mais informações.
O que está por trás da radicalização gol-
O discurso de ódio do ex-presidente Jair pista de fazendeiros Brasil afora? Quais
Bolsonaro (PL) não surgiu do nada. Geor- são os bolsões do “agrobolsonarismo”?
ge Washington de Oliveira Sousa, mentor
da tentativa frustrada de atentado a bom-
ba no aeroporto de Brasília, em 24 de
O terror agrário é um reflexo do bolsonarismo ou foi esse fenômeno po-
lítico que bebeu nas águas golpistas (e racistas e terroristas) de décadas
passadas?

Para responder a essas perguntas, traçamos um panorama de como o se-


tor reagiu a mudanças sociais e políticas ocorridas na última década para
mostrar que, dentro de uma perspectiva histórica, ações como o Leilão da
Resistência de 2013, ou os tiros disparados contra a caravana de Luiz Iná-
cio Lula da Silva no interior do Paraná, em 2018, já eram um prenúncio dos
atos de terrorismo estimulados por fazendeiros e líderes bolsonaristas.

O relatório também detalha a participação ativa de líderes do setor agro-


pecuário na deterioração da democracia. Seja na vinculação definitiva
entre a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e o bolsonarismo; seja
no engajamento de representantes do setor, como o presidente da Asso-
ciação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), Antonio Galvan, nos
ataques ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e à credibilidade das urnas
eletrônicas.

Por fim, trazemos revelações sobre as conexões agrárias dos principais or-
ganizadores dos atos terroristas. Quem são os 29 sojeiros que financiaram
bloqueios em estradas do Mato Grosso? Quem é o fazendeiro Bento Car-
los Liebl, vizinho da Terra Indígena Apyterewa, e como ele se conecta com
o terrorista George Washington de Sousa? Como Xinguara, no Sudeste do
Pará, e Sobral, no Ceará, tornaram-se epicentros do golpismo brasileiro?

A imprensa continuará a apostar em personagens periféricos, como a se-


nhora catarinense que invadiu a sede do Supremo com vocabulário esca-
tológico. Ou o rapaz que quebrou o relógio trazido por Dom João VI. Eles
estão longe de ser personagens centrais dessa história. Para entender o
Brasil é preciso estender o olhar para gente muitíssimo mais poderosa.

As filas de tratores nas estradas, nos bloqueios de outubro e novembro de


2022, dias após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, não lembram filas
de tanques somente por coincidência.
PARTE 1:
O AGRONEGÓCIO
E O TERROR

(Caio de Freitas Paes/Agência Pública)

RURALISTAS APOIAM O
A pesquisa qualitativa do histórico econô-
TERROR EM BRASÍLIA mico e político dos terroristas presos pela
tentativa de golpe de Estado em Brasília
Os ataques golpistas do dia 8 de janeiro mostra que, mais do que casos isolados,
de 2023 foram cuidadosamente orquestra- houve uma articulação direta de empre-
dos. Embora boa parte do noticiário tenha sários do agronegócio e do setor logístico
se concentrado no saque e depredação — bem como de fazendeiros, madeireiros
das sedes dos Três Poderes, em Brasília, e garimpeiros — no financiamento e orga-
células avançadas bolsonaristas execu- nização dessas células terroristas.
taram ações de Norte a Sul, bloqueando
rodovias em cinco estados,2 trancando a Entre os ruralistas que participaram dos
entrada de portos e refinarias de petróleo,3 atos do dia 8 de janeiro ou de suas articu-
destruindo torres de energia4 e organi- lações está Alípio Schuwank Maggi, primo
zando caravanas para a capital federal,5 do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi
conforme mostra o mapa do terror, Velho e do “rei da soja” Eraí Maggi — donos, res-
Oeste, apresentado na página anterior. pectivamente, dos grupos Amaggi e Bom
Futuro, dois dos maiores grupos agro-
As evidências apresentadas até aqui em pecuários do país.8 Outro nome que se
inquéritos movido pelo Supremo Tribu- destaca é o de Raijan Mascarello, sobrinho
nal Federal (STF) e nas diligências da de um dos maiores proprietários de ter-
Operação Lesa Pátria, da Polícia Federal ras do Brasil, e que, em 2020, iniciou uma
(PF), mostram a existência de uma rede campanha para que empresários demitisse
de empresários e políticos orquestrando “petistas e esquerdistas” de suas compa-
e financiando a derrubada do governo nhias.9
eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).6
Mas boa parte da mídia comercial insiste Além deles, corporações como Urbano
em alçar personagens insólitos – como a Agroindustrial, maior produtora de arroz
“Vovó do Barro”, uma senhora aposentada do país, as cooperativas Lar e Coopavel, e
de 67 anos7 – como líderes do movimento a distribuidora de agrotóxicos Agrosanta,
golpista. Quais as razões para ocultar a tiveram veículos apreendidos pela Polícia
participação explícita do setor corporativo Rodoviária Federal (PRF) por participar de
— ou, no melhor dos casos, apontar casos bloqueios em rodovias.10
individuais como exceção à regra?
Entre os mais de 1.400 presos nos dias de arroz e feijão Urbano Agroindustrial —
seguintes ao 8 de janeiro há diversos no- dona de uma fazenda sobreposta à Terra
mes associados aos setores agropecuário, Indígena Pindoty, em Jaraguá do Sul (SC),
madeireiro e garimpeiro. É o caso de Enric conforme revelou o relatório “Os Invaso-
da Costa Lauriano, pecuarista de Xinguara res: quem são os empresários brasileiros e
(PA) e dono de uma construtora que re- estrangeiros com mais sobreposições em
cém-iniciou atividades de lavra garimpeira, terras indígenas”, publicado em 19 de abril
conforme informado pela Repórter Brasil. pelo De Olho nos Ruralistas.12
Ele atua no movimento Direita Xinguara
junto do empresário e político Ricardo Um dos sócios da Urbano, Renato Fran-
Pereira da Cunha (Pros-PA), cujo telefone zner, representa Santa Catarina na direto-
aparece no inquérito do terrorista George ria da Associação Brasileira da Indústria
Washington de Sousa como uma das duas Arroz (Abiarroz).13 Outro sócio, André Luís
pessoas com quem ele teve contato após Franzner, é diretor vice-presidente da Re-
a prisão, conforme veremos adiante. gião Sudeste na Associação Brasileira da
Indústria do Feijão (Abifeijão).14 José Jair
Também participaram do quebra-quebra Franzner é o atual prefeito de Jaraguá do
líderes setoriais do agronegócio, como Sul.
o ex-presidente da Associação dos Cria-
dores de Brahman do Brasil (ACBB), Ary Além da Urbano, também financiaram as
Marcos de Paula Bárbara, dono da Fazen- caravanas empresas como as distribuido-
da Santa Bárbara, em Santa Bárbara de ras de agrotóxicos e fertilizantes Agrosan-
Goiás (GO), onde cria novilhos premiados, ta e Life Agro; as cooperativas Coanor, de
e dono da TSE Automação Industrial, de Minas, e Coopavel, do Paraná; e o Sindica-
Valinhos (SP). Outros três pecuaristas fo- to Rural de Castro, ligado à ex-deputada
ram identificados entre os golpistas, entre bolsonarista Aline Sleutjes (Pros-PR).
eles Juliano Antoniolli que, junto do pai,
Valdemar, leiloou mais de mil cabeças de
gado para custear a ida de golpistas mato-
-grossenses a Brasília.11

Ao todo, De Olho nos Ruralistas identificou


dezesseis fazendeiros entre os participan-
tes da invasão da Praça dos Três Poderes,
além de outros dez empresários do setor
investigados pelo STF por financiarem
diretamente as caravanas golpistas. Entre
as empresas que bancaram o transporte
dos bolsonaristas destaca-se uma gigan-
te do agronegócio brasileiro, a produtora

Confira a seguir os nomes e as conexões econômicas e políticas dos empresários


e fazendeiros que tentaram aplicar um golpe de Estado em 8 de janeiro:
Com as prisões de militantes bolsonaristas em Brasília, na semana seguinte ao dia 8 de
janeiro, teve início um movimento de legitimação dos atos golpistas — ou de sua moti-
vação. “Denúncias” de violações de direitos humanos foram encabeçadas por membros
do governo Bolsonaro e por líderes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a
face institucional da bancada ruralista no Congresso.

Vice-presidente para a região Sudeste, o deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) ten-


tou usar seu status de parlamentar para entrar no centro de triagem da Polícia Federal,
onde estavam sendo separados os presos pelos atentados. O objetivo era liberar Luis
Augusto Militão, ex-secretário municipal e candidato a prefeito de Divinópolis (MG) em
2016, um dos principais aliados políticos de Sávio no Oeste de Minas.15

Com 241 deputados e 39 senadores, a bancada concentra 47% dos assentos nas duas
casas e possui no Instituto Pensar Agro (IPA) seu principal braço logístico. Criado em
2011 com o propósito de prestar assessoria técnica na formulação de pautas legislati-
vas para a FPA, o IPA é mantido com verbas mensais pagas por 48 associações patro-
nais do agronegócio, incluindo gigantes multinacionais como JBS, Basf, Cargill, Syn-
genta, Nestlé, Bunge e LDC.16

Além dele, outros oito políticos ligados à FPA declararam apoio — uns mais, outros me-
nos diretos — ao movimento golpista. Confira abaixo seus nomes:
Por fim, identificamos outros dez empresários, políticos e líderes do agronegócio que
declararam apoio ou ofereceram apoio logístico aos golpistas:
Notem que, entre os 44 personagens identificados, boa parte exerce suas atividades
nos principais centros de poder do agronegócio. Minas Gerais (9), São Paulo (8) e Para-
ná (8) lideram entre os estados com maior presença de golpistas ligados ao setor agro-
pecuário. Os três estados são os que possuem, historicamente, maior número de polí-
ticos membros da FPA. Juntos, eles respondem por um terço da bancada ruralista na
Câmara e possuem sete dos 47 senadores vinculados à frente. Entre eles está o próprio
presidente da FPA, o deputado Pedro Lupion (PP-PR), que, logo após os atentados,
condenou a violência mas disse considerar as manifestações “legítimas”.

Além do eixo Sul-Sudeste, há uma expressiva participação de empresários e ruralistas


dos estados de Pará e Mato Grosso — respectivamente, maiores produtores nacionais
de carne bovina e de soja. São sete paraenses e seis mato-grossenses identificados no
levantamento.

Como veremos a seguir, os dois estados tiveram papel central na articulação do golpe
frustrado.
QUEM ESTÁ POR TRÁS DE
GEORGE WASHINGTON?

da Frente Parlamentar da Agropecuária,


“Eu sou gerente de postos de gasolina, no comando da comissão de Segurança
quatro postos no momento, e mais alguns no Campo.
só quando eles mandam eu ir fazer levan-
tamento”, respondeu George Washington Nascido em Sobral (CE), George Washin-
de Oliveira Sousa, ao ser perguntado so- gton disse durante os depoimentos que
bre a sua atividade profissional na audi- trabalhava numa rede de postos, sem dizer
ência de custódia realizada no domingo quem eram os proprietários. Como vere-
de Natal, 25 de dezembro de 2022. O mos, ele era bem mais que um gerente.
terrorista tinha sido preso pela Polícia Civil Tampouco informou de que forma obteve
do Distrito Federal na véspera, por tentar a quantia para adquirir o arsenal apreendi-
explodir uma bomba no Aeroporto Inter- do em Brasília.
nacional Presidente Juscelino Kubitschek,
em Brasília. Apesar de não indicar seus “patrocina-
dores”, o terrorista paraense entrou em
O plano do atentado, descrito em depoi- contato com duas pessoas para avisar
mento, foi concebido por um grupo de que tinha sido preso: um amigo de nome
terroristas acampados em frente do Quar- Ricardo e um fazendeiro de nome Bento.
tel General (QG) do Exército, onde ganhou Disponibilizados no inquérito policial, os
força a ideia de explodir dinamites no es- números de telefone indicados pertencem
tacionamento do aeroporto e emitir falsos ao empresário e político Ricardo Pereira
alertas de bomba, buscando instaurar o da Cunha e ao fazendeiro Bento Carlos
caos na capital federal, o que possibilita- Liebl.
ria a decretação de estado de sítio. Era o
primeiro passo, segundo o plano dos bol- O bolsonarista Ricardo Pereira da Cunha
sonaristas, da tomada do poder por parte é uma figura conhecida entre a direita
das Forças Armadas.17 paraense: foi pré-candidato a vice-gover-
nador e candidato a deputado estadual
Perto do aeroporto, a bomba preparada pelo Pros, sem sucesso. Ele é dono da
por Washington foi colocada no eixo tra- empresa USA Brasil de Xinguara, destina-
seiro de um caminhão carregado de que- tária da chave PIX divulgada por diversos
rosene de aviação, com capacidade para fazendeiros do Pará que recolhiam doa-
60 mil litros. O dispositivo foi acionado ções para financiar atos antidemocráticos,
mas, por uma falha de montagem, não conforme mostrou a Repórter Brasil.20 Em
ocorreu a detonação.18 Em dois aparta- entrevista ao portal O Antagonista, ele ne-
mentos alugados pelo empresário foram gou ter enviado qualquer valor para Geor-
apreendidos cerca de R$ 160 mil em ar- ge Washington ou para a célula terrorista
mas e munição. Sem guia de transporte que planejou os atentados em Brasília. “O
dos revólveres e fuzis trazidos do Pará, o Washington é uma pessoa boa”, afirmou
terrorista afirmou que, caso fosse parado Cunha ao site. “O problema dele são os
pela polícia, sua ideia era acionar o depu- remédios controlados que ele toma”.21
tado eleito Marcos Pollon (PL-MS), líder
do Movimento Pró Armas, voltado para A outra pessoa indicada como contato de
o lobby a favor do armamento civil, para emergência pelo terrorista foi Bento Car-
justificar sua participação em uma compe- los Liebl, natural de São Bento do Sul (SC),
tição de tiro.19 Meses depois, no início de fazendeiro e pecuarista em São Félix do
2023, Pollon tornou-se um dos diretores Xingu (PA). O núcleo de pesquisas do De
Olho nos Ruralistas constatou que, juntos, Liebl e sua família são donos de pelo menos
15.000 hectares de terras na região, segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro
Rural, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (SNCR/Incra).22

Bento Carlos Liebl é proprietário da Fazenda Santa Tereza, em São Félix do Xingu, com
4.274 hectares, enquanto seu pai, Bento Liebl, é dono de 4.181 hectares da Fazenda Ma-
moeiro. Outra familiar, Bernadete Liebl Peschl possui a Fazenda São Carlos, com 4.342
hectares, enquanto a cunhada de Bento Carlos, Simone Rudnick Liebl, aparece como
proprietária da Fazenda São Bento, de 3.000 hectares, alvo de embargo do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) por desmatamento
de 24 ha de floresta; desmatamento com uso de fogo. Duas propriedades vizinhas, as
fazendas Bituva Grande, de 6.786 hectares, e Minuano, de 5.523 hectares, estão regis-
tradas em nome de Olivia Reusing, sogra de Bento Carlos.
Juntas, as seis fazendas compõem um mega-latifúndio de quase 30 mil hectares, locali-
zado na fronteira Sul da Terra Indígena (TI) Apyterewa, a mais desmatada do país entre
2019 e 2022.23 Três dos imóveis são imediatamente vizinhos do território do povo Pa-
rakanã, conforme mostra o mapa elaborado por De Olho nos Ruralistas, com base em
dados georreferenciados do Incra:

George Washington (esq.) e seu filho posam ao lado do irmão em trio elétrico
Faraó, durante protesto pelo impeachment de Dilma Rousseff.
(Reprodução/Facebook)
PROPRIEDADES RURAIS DAS FAMÍLIAS
LIEBL E REUSING
EM SÃO FÉLIX DO XINGU - PA

Duas investigações da Repórter Brasil, em vancy (TNC). No projeto, a Marfrig passou


2020 e 2022, apontaram São Félix do Xin- a fornecer à rede de supermercados Wal-
gu como epicentro do desmatamento ile- mart a marca “Rebanho Xingu”, composta
gal associado à pecuária irregular na Ama- por lotes com certificado de “boas práti-
zônia. Ali, rebanhos provenientes de áreas cas ambientais” provenientes de proprie-
dentro da TI são abatidos em proprieda- dades pré-selecionadas da região, incluin-
des do entorno como forma de “piratear” do a Fazenda Bituva Grande, do pai de
a procedência do gado ilegal. Esses reba- Solange, José Otto Reusing, registrada em
nhos alimentam a cadeia de produção da nome da mãe Olívia.25
Marfrig e de outros grandes frigoríficos.24
Dona da Fazenda São Bento, Simone Rud-
A multinacional presidida por Marcos nick Liebl é casada com Adison Joel Liebl,
Molina está ligada a pelo menos uma das irmão de Bento Carlos. Adison é diretor de
fazendas identificadas por este observató- uma das maiores transportadoras do país,
rio. Bento Carlos Liebl é casado com So- a Rápido Sunorte, dona de uma imensa
lange Reusing Liebl, que foi presidente da frota de caminhões, além de armazéns no
Associação dos Produtores Rurais de São Porto de Itajaí, tendo como principal ati-
Félix do Xingu. Em 2016, ela despontou na vidade o transporte de madeira.26 Apesar
mídia especializada como uma das líderes da Rápido Sunorte ter sede em São Bento
do projeto “Carne Sustentável: do campo do Sul (SC) — local onde reside boa parte
à mesa”, realizado pela Empresa Brasileira da família — existe um registro de 1990 de
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em uma empresa com razão social Madeireira
parceria com a ONG The Nature Conser- Sunorte, de mesmo nome da transporta-
dora, em São Félix do Xingu. A empresa
se encontra baixada por não ter iniciado
oficialmente suas atividades. O tio de George Washington, Sebastião
José de Souza, é também proprietário da
MAIS QUE UM MERO Transportadora Patriarca Ltda, a Transpal,
com sede em Marituba (PA), região me-
GERENTE DE POSTO tropolitana da capital Belém. A Transpal
está autorizada a transportar materiais
George Washington omitiu um detalhe im- perigosos, como combustíveis, e já trans-
portante em seu depoimento à Polícia Civil portou madeira ilegalmente.28 A carga foi
do Distrito Federal. Apesar de ter declara- carregada em Rurópolis (PA) e tinha como
do receber apenas R$ 5 mil mensais como destino Ribeirão Preto (SP).
gerente de postos de gasolina, De Olho
nos Ruralistas revelou em reportagem que Outro primo do terrorista, Sebastião José
ele é sobrinho de Sebastião José de Sou- Sousa Júnior, conhecido como Tiãozinho,
za, dono de uma grande rede de postos de filho de Sebastião José de Souza, foi acu-
combustíveis espalhada em diversos esta- sado de envolvimento na morte do inspe-
dos da Amazônia Legal. A família aparece tor Manoel Otávio Amaral da Rocha, da
como sócia em diversos CNPJs, incluindo Polícia Rodoviária Federal, assassinado em
as primas de George Washington (filhas 2004.29 A denúncia do Ministério Público
de Sebastião): Francisca Alice e Michelle Federal (MPF) se referia à liberação irre-
Tatianne Sousa. Uma das empresas, inclu- gular de uma pá carregadeira do Instituto
sive, sediada em Belém, carrega as iniciais Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-
de George Washington, a G W de O Sousa cursos Naturais Renováveis (Ibama). Ela
& Cia Ltda, mas se encontra registrada em estava no posto de fiscalização da Polícia
nome de Sebastião José de Souza, tio do Rodoviária Federal de Benevides (PA)
terrorista.27 e foi retirada, segundo o MPF, por meio
de um ofício falso, atribuído à autarquia.
São pelo menos dezessete postos em Tiãozinho e outro réu teriam vendido a
nome de Francisca Alice, filha de Sebas- carregadeira com a participação do ins-
tião: o Auto Posto Pará Sul, que fica em petor assassinado. Mas o policial passou a
São Félix do Xingu (PA), capital da pecuá- cobrar sua parte no esquema, R$ 60 mil.
ria no Brasil e território de grilagem; Pos- Foi a partir daí, segundo o MPF, que Davi
tos Goiabeira, em Aurora do Pará, Super Fonseca Flexa Junior e Tiãozinho contra-
Posto Pioneiro e Auto Posto Tourão, em taram executores, entre eles Darci Bari-
Tucumã, Posto Vitória, na vizinha Ananin- chello, para matar o inspetor”. O posto era
deua, Auto Posto Goianésia, em Goianésia o Brasil 2000, hoje em nome das filhas de
do Pará, Posto São Miguel, em São Mi- Sebastião, primas de George Washington.
guel do Guamá, Posto Gol, em Marabá e
Ourilândia do Norte, Auto Posto Parazão, Davi Fonseca Flexa, pai de outro envolvido
em Redenção, Posto Santa Clara do Rio no assassinato, Davi Flexa Junior, possui
Araguaia, em Palestina do Pará. Todos no em seu nome uma empresa denominada
Pará. “Lanchonete dos Garimpeiros”, com sede
em Marabá (PA), aberta em 1980 e baixa-
A rede em nome da filha de Sebastião se da por não ter iniciado oficialmente suas
estende ainda pelo Maranhão, com o Auto atividades. Tiãozinho faleceu antes de ser
Posto Vila Nova e o Posto Bernardo Sayão, julgado pelo Tribunal do Júri Federal em
em Imperatriz; por Roraima, com o Super Belém.
Posto Dimalice, em Alto Alegre; e no To-
cantins, com o Auto Posto Serra do Norte,
em Axixá do Tocantins. Sebastião possui
ainda um posto de combustíveis em Be-
lém, e foi sócio de outro em Alto Alegre
(RR).
representante, o ex-governador cearense
CONEXÃO SOBRAL Ciro Gomes (PDT), disputou (e perdeu) a
corrida pela presidência em 2022.
O atentado planejado por George Washin-
gton de Oliveira Sousa foi frustrado após
Antes de se lançar na militância e ser can-
o motorista do caminhão-tanque perceber
didato a deputado federal pelo PTB de São
a presença do explosivo e acionar as auto-
Paulo, ele se dividia entre a cobertura de
ridades. Em depoimento, Alan Diego dos
eventos em Sobral e um projeto de recupe-
Santos Rodrigues, comparsa de George
ração de dependentes químicos chamado
Washington responsável por depositar a
Instituto Filadélfia, ligado a igrejas evangé-
bomba no estacionamento do aeropor-
licas.33 Como jornalista, em 2016, Macedo
to, preso no dia 19 de janeiro, confirmou
chegou a fazer imagens de drone de um
o que a Polícia Civil já havia investigado:
incêndio que atingiu um galpão da empre-
para executar o plano, Alan e George
sa Cidade Limpa Ambiental, onde o irmão
Washington contaram com a ajuda de um
do terrorista George Washington, Ítalo
terceiro terrorista, Wellington Macedo de
Carlos de Oliveira Sousa, atua como diretor
Souza, youtuber bolsonarista que já havia
executivo.34
sido preso em 2021 por decisão do mi-
nistro do Supremo Tribunal Federal (STF)
A empresa, também conhecida como
Alexandre de Moraes, relator do inquérito
Transcidade Serviços Ambientais Eireli,
das fake news.30
possui atuação justamente na região me-
tropolitana de Belém e em cidades do Cea-
Identificado pela imprensa como eletri-
rá como Sobral e Caucaia. Segundo dados
cista e taxista, Alan Diego foi candidato
do Portal da Transparência, foram firmados
a vereador de Comodoro (MT) em 2016
R$ 9.494.536,99 em contratos entre go-
pelo PSD, sendo expulso do partido após
verno federal e Cidade Limpa Ambiental
seu envolvimento no atentado. Nas re-
ao longo dos anos.35 Em Ananindeua (PA),
des sociais, Alan afirmava ser funcionário
sede da empresa, Ítalo é conhecido por
do Grupo Bom Futuro, da família Maggi
ser o dono do trio elétrico Faraó, que já
Scheffer, latifundiários donos de milhares
foi alugado para manifestações em apoio
de hectares de plantação de soja no Mato
ao governo Bolsonaro, conforme mostra o
Grosso.31
perfil do empresário no Instagram.36
Wellington Macedo, responsável por levar
Assim como o irmão George Washington,
Alan até o local onde depositou o artefa-
visto frequentando uma audiência públi-
to explosivo, foi assessor de comunicação
ca no Senado em 30 de novembro, Ítalo
do Ministério da Mulher, Família e Direitos
Sousa, que foi filiado ao MDB de Maritu-
Humanos entre fevereiro e outubro de
ba (PA), goza de prestígio junto a figuras
2019, à época comandado pela atual se-
políticas relevantes. Durante um evento
nadora Damares Alves (Republicanos-DF).
evangélico em seu trio elétrico, ele aparece
Foragido desde janeiro, Macedo contou no
posando ao lado de Paulo Bengtson (PTB-
dia 26 de abril, em entrevista à Folha de S.
-PA), deputado federal — ruralista — pelo
Paulo, que estava escondido em uma fa-
mesmo partido pelo qual Wellington Mace-
zenda pertencente a um dos bolsonaristas
do tentou se candidatar.
que conheceu no acampamento golpista.
Afirmou que não sabia da existência do
artefato explosivo, disse que é perseguido
pelo STF e que não se entregará à Justiça.
“Estou bem isolado, estou longe”, afir-
mou.32

Assim como George Washington, Welling-


ton Macedo é natural de Sobral (CE), cida- Ítalo Sousa em divulgação da
de conhecida nacionalmente como berço empresa Cidade Limpa, onde ocupa diretoria.
político da família Gomes — cujo principal (Reprodução/Instagram)
Fazendeiros bloqueiam a rodovia BR-163, conhecida como “rota da soja”, após derrota eleitoral de
Jair Bolsonaro. (Reprodução/Só Notícias)

ROTEIRO DO GOLPE SEGUIU


LOGÍSTICA DO AGRONEGÓCIO

Sorriso é o município com maior produ- acusadas, pessoas físicas e seus familiares
ção de soja em Mato Grosso, o estado que doaram oficialmente R$ 1,35 milhão a Jair
mais produz grãos no Brasil. É ali que se Bolsonaro.39
encontra uma das mecas dos financiado-
res do golpe e da carreira política de Jair Vinte e quatro das empresas e empresá-
Bolsonaro. Esta não é somente uma teoria: rios golpistas têm sedes ou filiais em Sor-
são os fatos que dizem, os números. riso.40 Sojeiros, transportadores de cargas,
No dia 15 de dezembro de 2022, o ministro pecuaristas, comerciantes de insumos,
do Supremo Tribunal Federal (STF) Ale- equipamentos e veículos agrícolas, dis-
xandre de Moraes bloqueou as contas de tribuidores de combustíveis, instituições
43 empresas e indivíduos que financiaram financeiras e corretores imobiliários com-
ações golpistas como os acampamentos, põem esse grupo ligado ao agronegócio
comboios para Brasília e bloqueios de es- e, principalmente, à soja. Dos 43 nomes
tradas.37 apontados, De Olho nos Ruralistas en-
controu 29 com atividades envolvendo
Relembremos: nos dois primeiros dias diretamente o plantio e comercialização
após a vitória do presidente Luiz Inácio de soja. Outros 14 nomes estão ligados a
Lula da Silva, 28 trechos de rodovias fo- outras atividades do agronegócio, como
ram bloqueados por caminhões e tratores. transporte, pulverização de agrotóxicos e
Nada menos que 51 dos 116 caminhões en- comercialização de máquinas e insumos
volvidos em protestos golpistas em Brasí- agrícolas.
lia saíram do estado.38 Sócios de empresas
Manifestantes golpistas queimam pneus e toras de madeira em bloqueio em Sinop (MT).
(Reprodução/Só Notícias)

Governador reeleito Mauro Mendes e ex-presidente Jair Bolsonaro, durante evento em Sinop.
(Governo de Mato Grosso)
FAZENDEIROS DOARAM
R$ 1,3 MILHÃO PARA BOLSONARO

Dono de doze empresas, o piloto de rally Eleitoral.


amador Atílio Elias Rovaris foi o maior
doador para a campanha de Bolsonaro Uma das empresas bloqueadas pelo STF,
nesse grupo ligado ao agronegócio, com o Banco Rodobens, braço financeiro do
R$ 520 mil. Rovaris produz e comercializa Grupo Rodobens, não produz soja. Seus
soja no Mato Grosso, Pará e Piauí. Em maio sócios têm negócios em dezesseis esta-
de 2022, antes do início da campanha, ele dos. Mas o banco é um grande financia-
participou de um evento com o político. O dor do agronegócio brasileiro, com uma
então presidente da República mostrou, cartela de opções do leasing ao consór-
nas palavras do empresário, a “união do cio agrícola. Para Bolsonaro, os sócios da
agronegócio do Brasil” em apoio a Bolso- empresa doaram R$ 60 mil. A instituição
naro.41 financeira com R$ 342 milhões de capital
social informou em nota que não financia
O sojeiro Diomar Pedrassani e seus fami- os protestos e que os veículos identifica-
liares colaboram oficialmente com R$ 88 dos são alugados. A empresa respondia
mil para a campanha. O gaúcho de Espu- ao mercado, já que o braço imobiliário do
moso tem um histórico de violência. Em grupo tem ações na bolsa. Dois sócios da
março de 2022, foi acusado de ameaçar empresa, Milton Jorge de Miranda Hage e
de morte, socar e atirar contra um moto- Waldemar Verdi Junior, são também pecu-
rista que transportava soja de uma de suas aristas.45
fazendas, no município de Jangada (MT).
Em 23 de outubro de 2023, foi preso por Outra empresa mato-grossense com di-
porte ilegal de arma após ameaçar uma mensão nacional e digital golpista é a
pessoa com uma Taurus. Ele pagou mil Comando Diesel Transporte, empresa de
reais de fiança e foi liberado.42 distribuição de combustível presente em
21 estados. Alguns entre seus sócios são
Argino Bedin é um dos pioneiros em Sor- pecuaristas.46
riso (MT), onde chegou nos anos 1970,
levado pelo lema do governo militar de Além do financiamento privado golpista, o
“integrar para não entregar”. Ele e sua fa- poder público local foi acusado de crime
mília doaram R$ 160 mil para a campanha eleitoral a favor de Bolsonaro. No segundo
de Bolsonaro, político que afirma defender turno das eleições, o prefeito de Sorriso,
até “debaixo d’água”.43 Bedin chegou na Ari Lafin (PSDB), divulgou um vídeo pe-
região com o pai, um madeireiro, e criou dindo que moradores levassem eleitores
fortuna. Hoje tem catorze empresas no de outros municípios para votar no candi-
Mato Grosso, entre elas um shopping e dato à reeleição, promovendo o transporte
uma empresa de locação de aeronaves. irregular.47
Mas a maioria é ligada ao negócio de soja.
Entre 1998 e 2008, Bedin foi multado em Reeleito governador em Mato Grosso no
R$ 200 mil por desmatamento.44 primeiro turno, Mauro Mendes (União Bra-
sil) repetiu inúmeras vezes durante a cam-
Outra família de doadores, a Scholl, é um panha estar “100% com Bolsonaro”. Após
exemplo da abrangência do agronegócio. o resultado do segundo turno, Mendes,
Proprietária da Sipal Indústria E Comércio lamentou nas redes sociais: “Consciência
Ltda, seus integrantes são sojeiros, pecua- limpa. Essa culpa eu não carrego”. O go-
ristas e canavieiros, com atuação em nove vernador ilustrou o texto com o laço preto
estados brasileiros. Juntos, eles doaram do luto.48
R$ 50 mil à campanha de Bolsonaro, con-
forme as informações do Tribunal Superior Após os atos terroristas de 8 de janeiro,
Mendes foi leniente. Os acampamentos de bolsonaristas no Mato Grosso só foram des-
montados pela Polícia Militar por ordem do ministro Alexandre de Moraes, emitida no
dia seguinte aos atentados em Brasília. O político faltou à reunião de emergência com
os governadores convocada pelo presidente Lula para discutir o golpismo. Mendes ale-
gou estar de férias e mandou o vice, Otaviano Pivetta (PDT).

Confira abaixo a lista completa de doadores entre as empresas de logística e transpor-


tes listadas no inquérito do ministro Alexandre de Moraes:
(Reprodução/RS Notícias)

PARTE 2:
AGROBOLSONARISMO

(Rafaela Felicciano/Metrópoles)
AGRONEGÓCIO BANCOU afirmou Bolsonaro durante evento. “Mas,
se alguém quiser jogar fora dessas quatro
MANIFESTAÇÕES GOLPISTAS linhas, nós mostraremos que poderemos
EM 2021 fazer também”, completou.50

A fusão da extrema-direita com o ruralis- Para que as manifestações saíssem do


mo criou um novo fenômeno na política papel, era preciso dinheiro. E novamente o
brasileira. A ideia de uma “guerra santa” agronegócio entrou em ação. Embora não
em nome da pátria, propagada por seg- tenham participado in loco no 7 de setem-
mentos religiosos alinhados a Bolsonaro, bro de 2021, líderes do setor foram men-
encontrou eco na defesa fervorosa da pro- cionados diversas vezes pelos oradores ao
priedade privada e do individualismo pelo microfone, inclusive pelo deputado federal
agronegócio. Essa união deu início a um Eduardo Bolsonaro, o filho 03, evidencian-
processo de radicalização de proprietários do a importância que ganharam nos atos.
rurais e empresários do setor madeireiro O recuo se deu após a divulgação das
e do garimpo — alimentados diariamente falas do cantor Sérgio Reis em plena man-
por teorias conspiratórias e notícias falsas são da Associação Brasileira dos Produ-
disseminadas em grupos de WhatsApp. tores de Soja (Aprosoja), no Lago Sul de
Brasília, em agosto.51 O presidente da or-
Embora boa parte das políticas econômi- ganização, Antonio Galvan, é também o
cas e ambientais implementadas durante principal líder do Movimento Brasil Verde
o governo Bolsonaro tenham favorecido e Amarelo e chegou a apoiar, em vídeo,
apenas as multinacionais e o grande agro- as ações antidemocráticas. Depois, negou
negócio, o presidente conseguiu mobilizar que falasse em nome da associação, cuja
as classes médias rurais em torno de um sede já foi utilizada pela FPA.52
projeto golpista e ideológico. A velha luta
do “nós” contra “eles” — contra os grupos A vinculação da Aprosoja ao golpismo
minoritários que defendem seus territórios ficou mais explícita após a decisão do
e as florestas — se tornou uma das bases ministro Alexandre de Moraes de bloquear
do “agrobolsonarismo”. as contas da organização para investigar
quem financiava os atos. Ainda assim,
Durante quatro anos, Bolsonaro utilizou Galvan pediu ao Supremo autorização
inaugurações de obras de infraestrutura para participar das manifestações. Não foi
logística e cerimônias de entrega de tí- atendido.53
tulos fundiários para atacar ministros do
STF e espalhar fake news sobre vacinas e De Olho nos Ruralistas pesquisou as mar-
urnas eletrônicas. Esses atos tinham ampla cas dos caminhões que invadiram a Es-
presença de sindicatos rurais e de associa- planada dos Ministérios em 2021 e iden-
ções do agronegócio. O uso político das tificou, entre seus proprietários, histórias
titulações do Instituto Nacional de Coloni- de trabalho escravo, crimes ambientais e
zação e Reforma Agrária foi um dos des- conflitos com camponeses. Essas empre-
taques do relatório “Incra vira máquina de sas também faziam lobbies junto a parla-
votos”, parte do Dossiê Bolsonaro, lançado mentares. Entre elas estavam a Dez Ali-
pelo De Olho nos Ruralistas em agosto de mentos, a Arroz e Feijão Grão Dourado e a
2022.49 ID Agronegócio, de Goiás e Minas Gerais,
algumas entre aquelas que financiaram
Um desses atos ocorreu durante o evento os atos antidemocráticos. Banners iden-
de assinatura da Ferrovia de Integração tificavam caravanas do agronegócio de
Oeste-Leste (Fiol), em Tanhaçu (BA), em Sergipe, da Bahia, de Mato Grosso e Mato
3 de setembro de 2021, às vésperas das Grosso do Sul.54
manifestações antidemocráticas do Dia
da Independência. “Nós não precisamos
sair das quatro linhas da Constituição”,
Presidente da Aprosoja, Antonio Galvan, organizou carreata de tratores para prestar depoimento à PF.
(Reprodução/Facebook)

TRATORES TOMAM grilagem e venda de sentenças na região.


Franciosi já foi multado em R$ 1,6 milhão
A ESPLANADA por desmatamento ilegal pelo Ibama,
como mostrou levantamento do De Olho
A situação se repetiu em 2022, em Brasí-
nos Ruralistas.56
lia. Dessa vez, sem caminhões. Chamados
pelo próprio Bolsonaro, foram os tratores
O Movimento Brasil Verde e Amarelo, de
que tomaram conta do desfile, recebidos
Antonio Galvan, organizou caravanas e foi
pela plateia aos gritos de “Agro, Agro”. Ao
responsável pelo carro de som usado por
contrário dos veículos de carga, maquiná-
Bolsonaro como palanque. Isso ocorreu
rios agrícolas não precisam carregar placa
enquanto o presidente da Aprosoja era
de identificação. Mesmo assim, a Agência
investigado e impedido pelo STF de parti-
Pública identificou os proprietários de 24
cipar dos atos golpistas.57
dos 28 veículos que participaram do even-
to do Bicentenário da Independência. Se-
Dias antes das festas da Independência, o
gundo a reportagem, os donos dos maqui-
observatório esteve em Lucas do Rio Ver-
nários investiram de R$ 4 mil a R$ 15 mil.55
de, município de 67,6 mil habitantes que,
com Sorriso e Sinop, compõe a tríade dos
Um dos presentes era o gaúcho João An-
mais altos índices de Produto Interno Bru-
tônio Franciosi, dono do grupo Franciosi,
to (PIB) em Mato Grosso. Lá, o preço de
que compra e vende latifúndios e cultiva
um hectare de terra é contado em sacas
algodão e soja em larga escala no oeste
de soja. Por todo lado se viam as cores da
da Bahia. O empresário foi investigado
bandeira brasileira e sinais inequívocos de
na operação Faroeste, um escândalo de
apoio a Bolsonaro — e a nenhuma outra
vertente política.

Dois ônibus do Movimento Conservador de Lucas do Rio Verde partiriam para a capital
federal. O grupo bolsonarista foi articulado três meses antes e já contava com 270 par-
ticipantes no WhatsApp. Em dez dias, levantou cerca de R$ 100 mil para financiar a via-
gem, junto a fazendeiros da região. Um dos fundadores do grupo, Glauber Ferreira, 33,
não revelou quem eram os financiadores, apenas o setor: “É o pessoal do agro, né?”.58

Caminhões do agronegócio ocuparam Esplanada em 2022. (Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas)

VOTO DE CABRESTO
Outro fazendeiro baiano obrigou as fun-
Sojeiros, pecuaristas e donos de frigorífi- cionárias a votar com celular no sutiã. O
cos cometeram crime eleitoral ao assediar assédio partiu de Adelar Eloi Lutz, dono
trabalhadores para que votassem no can- de propriedades rurais em Formosa do Rio
didato do PL, com denúncias de compra Preto, a 756 quilômetros de Salvador. Há
de votos em todas as regiões do país. Este registro do crime eleitoral em gravações
observatório reuniu, em reportagem e que circulam em aplicativos de mensa-
vídeo, exemplos de Rondônia à Bahia, do gens.60 O pecuarista Cyro de Toledo Ju-
Maranhão ao Rio Grande do Sul, passan- nior, ou Nelore Cyro, como é conhecido
do pelo Paraná. À medida que o segundo em Araguaçu, no Tocantins, prometeu
turno se aproximava, as irregularidades se pagar 15º salário caso Bolsonaro ganhasse.
multiplicavam. “Eu quero gente que pensa igual a mim e
vista a camisa da fazenda”, afirmou o pe-
Entre esses empresários estava a sojeira cuarista.61
Roseli D’Agostini Lins, presidente da Asso-
ciação de Produtores Rurais do Alto Hori- Mas de onde saía o dinheiro desse voto
zonte, no oeste da Bahia. “Eu queria falar de cabresto? Em Roraima, o garimpeiro e
algo para os nossos agricultores”, disse ela candidato bolsonarista a deputado federal
a colegas. “Façam um levantamento, quem Rodrigo Cataratas (PL) foi preso em fla-
vai votar no Lula e demitam. Demitam sem grante com material eleitoral, R$ 6 mil em
dó”.59 espécie e uma lista com nome de pesso-
as e valores para distribuição. Cataratas declarou à Justiça Eleitoral R$ 4,5 milhões em
dinheiro vivo.62

Ele é investigado pela Polícia Federal por suspeita de apoiar a exploração ilegal de
minérios na Terra Indígena Yanomami. Já foi indiciado por suspeita de crime ambiental,
crime contra a ordem econômica e posse e comercialização ilegal de munição de arma
de fogo. Agora, compra de votos. O candidato não se elegeu.

Bolsonaro, Tereza Cristina e Nabhan Garcia emplacaram perseguição aos movimentos de luta pela terra.
(Divulgação/Twitter)

TERRORISTA SÃO OS OUTROS rinoceronte, recebendo críticas da impren-


sa, de organizações não governamentais e
“Esse governo é de vocês”. Assim dizia de governos de outros países”.63
Jair Bolsonaro durante café da manhã
com membros da Frente Parlamentar Meses antes, em outubro de 2018, antes
da Agropecuária, em 4 de julho de 2019. do segundo turno, um grupo de vinte
A pauta anti-indígena, antiquilombola e parlamentares da FPA entregara um mani-
antiambiental patrocinada pela bancada festo apoiando a candidatura de Bolsona-
ruralista estava fortalecida com a ascensão ro. “Vamos trabalhar com ele no segundo
do político. E ele dava o tom dessa rela- turno, para que ele vença as eleições e
ção. “Como deputado, em 100% das vezes possa colocar em prática tudo aquilo que
votei acompanhando a bancada ruralista”, os agricultores brasileiros esperam dele”,
afirmou. “E vocês sabem que votar com a disse a atual senadora Tereza Cristina, en-
bancada ruralista é quase como parto de tão presidente da frente.64
Com a vitória de Bolsonaro, a parlamen-
tar foi nomeada ministra da Agricultura,
da Pecuária e do Abastecimento, vencen-
do uma queda de braço com Luiz Anto-
nio Nabhan Garcia. Ele era presidente da
União Democrática Ruralista (UDR) após
a refundação da organização em 1996, e
amigo pessoal de Bolsonaro. Apontado
pela CPI da Terra, de 2005, como che-
fe de um grupo paramilitar criado para
combater militantes sem terra no Pontal Governo Bolsonaro promoveu armamento rural em
do Paranapanema (SP), Garcia se tornou anúncio do Dia do Agricultor, em 2020.
secretário especial de Assuntos Fundiá- (Divulgação/Secom)
rios, comandando o projeto de implosão
da reforma agrária e de criminalização da
luta pela terra.65 “LCP, se prepare! Não vai
Saiu dele a ordem para enviar a Força ficar de graça o que vocês
Nacional de Segurança Pública (FNSP)
para reprimir militantes do Movimento dos estão fazendo. Não tem es-
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em
Prado (BA). Isso ocorreu após o próprio paço aqui para grupo ter-
governo estimular um conflito interno ao
entregar títulos de terra para assentados rorista. Nós temos meios
bolsonaristas, em 2020.66 Foi também de
Nabhan Garcia a articulação com o gover- de fazê-los entrar no eixo
nador Marcos Rocha (União), de Rondônia,
para empregar a Força Nacional no esta- e respeitar a lei.”
do para combater a Liga dos Campone-
Jair Bolsonaro incita violência contra LCP
ses Pobres (LCP), definida por Bolsonaro durante inauguração da Ponte do Abunã,
como “guerrilha” e “grupo terrorista”.67 entre Acre e Rondônia.
Rondônia teve um papel especial nas arti- (Diego Gurgel/Secom AC)
culações golpistas do 8 de janeiro e repre-
senta um dos principais eixos do “agrobol-
sonarismo”. Garcia foi um dos responsáveis pela publi-
cação da Instrução Normativa nº 9/2020
da Fundação Nacional do Índio (Funai),
que removeu do Sistema de Gestão Fun-
diária (Sigef) as 237 terras indígenas que
ainda passavam por processo de demar-
cação, tornando possível sua ocupação,
venda e loteamento por proprietários
privados.68 Suspensa pelo STF em feverei-
ro de 2022, a medida teve impacto direto
para os territórios não-homologados, que
presenciaram um aumento no número de
invasões durante o governo Bolsonaro.69
(Memorial das Ligas Camponesas)
PARTE 3:
TERRORISMO NÃO
COMEÇOU EM 2023 (Jornal de Brasília)

“DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA” à urbanização acelerada e ao progressis-


mo. No Brasil, o integralismo se juntou às
Publicado no ano de 1984, o livro “Origens oligarquias rurais em oposição à luta de
agrárias do Estado brasileiro” tornou-se classes, tanto na cidade como no campo,
um marco dos estudos sociais no país. ao defender a natureza “sagrada” da pro-
Nele, o sociólogo Octavio Ianni narra as priedade privada.71
transformações da estrutura fundiária na-
cional e seus reflexos sobre a articulação Sob o lema “Deus, Pátria e Família” — que
política das oligarquias rurais: da reação voltaria a ser proferido publicamente por
à Revolução de 1930 às pressões contra o Jair Bolsonaro e seus seguidores, oito
projeto de reforma agrária proposto pelo décadas depois —, os integralistas promo-
presidente João Goulart que culminaram veram em maio de 1938 uma tentativa de
na adesão dos latifundiários ao golpe golpe bastante similar à testemunhada em
militar de 1964 . O capitalismo agrário
70 8 de janeiro de 2023: invadiram e depre-
descrito por Ianni é marcado pelo rea- daram o Palácio da Guanabara, então sede
cionarismo e pela visão ufanista do setor do governo, no Rio de Janeiro.72 Assim
agropecuário como motor de desenvolvi- como a intentona bolsonarista, a ação ter-
mento do país. rorista da AIB não teve sucesso.

Essa mesma visão era propagada, desde A defesa da propriedade privada e do lati-
os anos 1930, pela Ação Integralista Bra- fúndio ganhou novamente força nos anos
sileira (AIB), fundada pelo jornalista Plínio 1960 por meio da Sociedade Brasileira de
Salgado com base nos preceitos do fas- Defesa da Tradição, Família e Propriedade
cismo italiano, que pregava um retorno (TFP), organização conservadora funda-
ao tradicionalismo católico em oposição da em 1960 pelo advogado e constituinte
de 1934 Plinio Corrêa de Oliveira. Entre os de líderes indígenas Karajá e Javaé junto a
eixos centrais de atuação da TFP estava a extrativistas da Ilha do Bananal, no início
luta feroz contra quaisquer políticas pú- dos anos 1980.75
blicas de reforma agrária ou expropriação
de terras. O tema ganhara projeção com O saldo da ditadura militar para os povos
o surgimento, em 1955, das Ligas Campo- do campo foi catastrófico. As Ligas Cam-
nesas, como fruto da articulação campo- ponesas foram dizimadas e o projeto de
-cidade do Partido Comunista Brasileiro uma reforma agrária popular deu lugar à
(PCB).73 expansão desenfreada de fronteiras agrí-
colas na política do “integrar para não en-
tregar”, iniciando o ciclo atual de destrui-
ção da Amazônia. Sob o governo Ernesto
Geisel (1974-1979), o ministro da Agricultu-
ra Alysson Paulinelli — que depois presidiu
a Confederação da Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA) — introduziu o plantio de
soja no Cerrado, dando ao agronegócio
brasileiro a forma que conhecemos hoje,
pautado na monocultura e no uso intensi-
vo de pesticidas.

Entre perseguidos pelo regime e vítimas


de latifundiários, ao menos 1.196 campone-
ses e apoiadores da luta pela terra foram
mortos ou desaparecidos de 1961 até 1988,
segundo o Relatório da Comissão Cam-
ponesa da Verdade.77 A maior parte deles
permanece até hoje excluída dos direitos
da Justiça de Transição, sem investigação
dos crimes, sem reparação aos familiares,
sem reconhecimento do Estado. Entre os
povos originários, estima-se que mais de
8.350 indígenas morreram vítimas de ex-
Panfleto antireforma agrária distribuído pela TFP pulsões, doenças, prisões, tortura e execu-
nos anos 1980. (Divulgação) ções.78

Propagando a histeria anticomunista, a


TFP se uniu à Sociedade Rural Brasilei-
ra (SRB) e ao empresariado urbano para
derrubar o presidente João Goulart (1961-
1964), cujo anúncio das reformas de base
— em especial, a reforma agrária — no
Comício da Central do Brasil deflagraria
o golpe militar de março de 1964. Nesse
processo, o movimento angariou fileiras
nas fronteiras agrícolas, ajudando a conso-
lidar Comandos de Caça aos Comunistas
(CCCs) e grupos paramilitares na região
de Dourados (MS), onde atuava em par- Enclave do “agrobolsonarismo”, Rondônia recebeu
ceria com a Ação Democrática de Mato outdoors com lema integralista em 2022
Grosso (Ademat).74 Ou na divisa entre Pará (Reprodução/Tudorondônia)
e Tocantins, onde promoveu ações terro-
ristas para impedir a organização política
aças nas sessões. Fazendeiros entravam
armados nas reuniões e, em mais de uma
ocasião, o debate terminou em pancada-
ria. Derrotados no embate sobre a “função
social da terra” — inserida no artigo 186
da Constituição —, Caiado e seus aliados
dariam o troco na comissão sobre reforma
agrária, onde conseguiram limitar as capa-
cidades do Estado para expropriar apenas
as propriedades rurais improdutivas — um
conceito que seria bastante flexibilizado
nos anos seguintes.

Longe dos corredores de Brasília, a UDR


promovia um verdadeiro massacre. Entre
1985 e 1989, a violência no campo atingiu
seu ponto mais extremo, com 640 assassi-
natos. Um dos casos ganhou repercussão
internacional: o assassinato do líder se-
ringueiro Chico Mendes, em dezembro de
1988, por fazendeiros ligados à UDR. Após
a saída de Caiado para assumir mandato
de deputado federal, o grupo passou por
um período de desmobilização. Em 1996,
com a intensificação das ocupações pelo
Jornal de Brasília, de 11 de maio de 1988, reper- MST, o número de mortes voltou a crescer.
cute vitória da UDR em votação sobre reforma Antenor Duarte do Valle, um dos persona-
agrária. (Acervo) gens centrais do massacre de Corumbiara,
foi fundador da UDR em Rondônia. Dois
TERROR AGRÁRIO anos depois, em 1998, dois dirigentes da
entidade no noroeste do Paraná, Marcos
Com o fim da ditadura, em 1985, e o início Prochet e Tarcísio Barbosa, foram denun-
das negociações para inaugurar uma nova ciados pelo envolvimento no assassinato
Assembleia Constituinte, a TFP retomou do líder sem-terra Sebastião Camargo Fi-
ações mais incisivas em defesa do lati- lho. Em 2022, Prochet foi condenado pela
fúndio. Desta vez, auxiliada por uma nova terceira vez por júri popular.80
organização, criada naquele mesmo ano
como contraponto ao surgimento do Movi- A TFP, por sua vez, mantinha-se viva,
mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra fazendo a defesa pública do latifúndio,
(MST). Liderada pelo pecuarista Ronaldo organizando campanhas contra o aumen-
Caiado, hoje governador de Goiás, a União to do Imposto Territorial Rural — que, na
Democrática Ruralista (UDR) promoveu visão dela, infringia o direito à proprieda-
a articulação nacional de proprietários de e, portanto, “violava os mandamentos
de terras, grileiros e “coronéis” para atuar de Deus”.81 A organização estimulava a
contra a inclusão na carta magna da refor- estigmatização do MST como movimento
ma agrária e da função social da terra.79 “guerrilheiro” e “terrorista”.82 Anos de-
pois, Bolsonaro e membros da bancada
Durante a Constituinte, a mobilização da ruralista tentariam, de forma parecida,
UDR e da TFP soterrou a proposta do Pla- enquadrar as ocupações de terras como
no Nacional de Reforma Agrária. Em julho terrorismo.83 Em 2023, já como oposição
de 1987, uma marcha convocada pelos lati- ao governo Lula, articularam a criação de
fundiários com 30 mil pessoas sitiou Brasí- uma CPI do MST.
lia, imprimindo um clima de tensão e ame-
Leilão da Resistência de 2013 foi prenúncio da participação do agrone-
gócio em terrorismo. (Nadyenka Castro/ G1 MS)

LEILÃO PARA COMPRA DE Agropecuária, o lobby ruralista transfor-


mou-se em uma das principais forças-mo-
ARMAS PRENUNCIAVA trizes do Congresso. Apesar de sua inter-
TERROR face com o capital internacional ligado à
“sustentabilidade”, a FPA é liderada por
Os últimos vinte anos promoveram mu- políticos envolvidos em casos de racismo
danças intensas no universo agrário. O e ameaças contra comunidades tradicio-
ruralismo mudou de nome e endereço. nais. Isso chegou a incluir o incentivo à
Hoje prefere ser chamado de “agronegó- formação de milícias armadas para expul-
cio” — ou “Agro”, com letra A maiúscula e sar indígenas. Esse episódio ocorreu em 7
sem a palavra “negócio”. Apesar de apos- de dezembro de 2013, em Campo Grande,
tar em campanhas de marketing que valo- quando produtores sul-mato-grossenses
rizam o campo, seus principais líderes não arrecadaram R$ 640,5 mil para resistir,
estão mais nas fazendas, mas em mansões com armas, contra as retomadas Guara-
e escritórios luxuosos em São Paulo, Rio ni Kaiowá no Sul do estado, emulando as
de Janeiro, Curitiba, Goiânia e Cuiabá. Não táticas de arrecadação adotadas nos anos
raro, são vistos em viagens de negócios 1980 pela UDR.
em Nova York, Xangai, Bruxelas e Dubai,
ou defendendo o setor em conferências Nomeado “Leilão da Resistência”, o evento
sobre clima e sustentabilidade mundo foi barrado dias antes pela Justiça, aten-
afora.84 dendo a uma ação pública da organização
indígena Aty Guasu e Conselho do Povo
Mas é nos corredores de Brasília que o Terena. Na decisão, a juíza Janete Lima
ruralismo revela sua verdadeira face. Por Miguel, da 2ª Vara da Justiça Federal de
trás da máscara de modernidade, o agro- Campo Grande, afirmou que o leilão te-
negócio luta ferozmente pela manutenção ria “o poder de incentivar a violência”. No
de privilégios. De benefícios fiscais ao “di- entanto, uma decisão liminar emitida na
reito” de desmatar legalmente. De investi- véspera do leilão garantiu sua realização,
mentos públicos para baratear a logística sob a condição de que o valor arrecadado
de exportação à abertura de terras indíge- fosse depositado em juízo, onde se encon-
nas para exploração comercial. A atuação tra até hoje, por decisão do Tribunal Re-
do grupo é coesa. gional Federal da 3ª Região (TRF-3).85

Coordenado pela Frente Parlamentar da


Segundo nota publicada à época pelo to parecido na semana anterior, durante
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a uma audiência pública em Vicente Dutra
tentativa de suspender o encontro ruralis- (RS), em 29 de novembro, onde qualificou
ta foi respondida com ameaças e ataques. as minorias supracitadas como “tudo o
O líder Paulino Terena foi alvo de uma em- que não presta”. Sucedendo o colega no
boscada em Miranda (MS) e teve o veículo palanque, o deputado Alceu Moreira fez
incendiado. Os escritórios do MST e da uma recomendação aos fazendeiros que
Federação dos Trabalhadores em Educa- tivessem terras ocupadas por militantes
ção de Mato Grosso do Sul, que também do MST: “Que se fardem de guerreiros (...)
apoiaram a ação judicial, receberam liga- e expulsem do jeito que for necessário”.
ções com ameaças de morte.86 Os dois foram alvos de inquérito por ra-
cismo no Supremo Tribunal Federal (STF),
mas o processo foi arquivado pelo minis-
tro Dias Toffoli.87

Tereza Cristina levou o anti-indigenismo do Leilão


Tereza Cristina levou o anti-indigenismo do Leilão da Resistência para a CPI da Funai e Incra.
da Resistência para a CPI da Funai e Incra. (Divulgação/Mapa)
(Divulgação/Mapa)

Durante o Leilão da Resistência, latifundiá-


rios e políticos se enfileiravam no palanque
para atacar indígenas e ONGs, precedendo
o discurso de ódio promovido anos depois
por Bolsonaro. Entre os líderes ruralistas
presentes no encontro destacavam-se os
então deputados Luis Carlos Heinze (PP-
-RS), na época presidente da FPA, Tereza
Cristina (PL-MS) e Alceu Moreira (MDB-
-RS), que comandaram a frente entre 2018
e 2020. Tereza Cristina se tornou ministra
da Agricultura em 2019. Também esti-
veram em Campo Grande a ex-ministra,
ex-senadora e ex-presidente da CNA Kátia
Abreu (PP-TO), e o ex-governador Reinal-
do Azambuja (PSDB-MS).

Foi ali que Heinze, hoje senador da Re-


pública, repetiu seu famoso discurso ata-
cando “índios, negros, sem terra, gays,
lésbicas”. Segundo o político ruralista,
eles estariam “aninhados” no gabinete do
secretário-geral da Presidência, Gilberto
Carvalho. Heinze fizera um pronunciamen-
O Leilão da Resistência foi ainda o embrião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
da Funai e do Incra, instaurada cinco meses após o impeachment de Dilma Rousseff,
em outubro de 2016. Ela resultou no indiciamento de 96 servidores públicos, indige-
nistas e membros de ONGs ambientais, em um caso histórico de criminalização da luta
pela terra.88 A CPI foi comandada pelos mesmos ruralistas que participaram do leilão:
Moreira e Heinze foram, respectivamente, presidente e vice-presidente da comissão; o
relator foi Nilson Leitão (PSDB-MT), ex-deputado e ex-presidente do Instituto Pensar
Agro, assessorado pela então deputada Tereza Cristina. Luiz Henrique Mandetta (União-
-MS), que se tornaria ministro da Saúde de Bolsonaro, ocupou a 2ª vice-presidência. Um
ano antes, em 2015, o político fora flagrado em um ataque de ruralistas à Terra Indígena
Ñande Ru Marangatu, território dos Guarani Kayowá em Antônio João (MS), que resul-
tou na morte do líder indígena Simeão Vilhalva, de 24 anos.89

Trinta anos depois de marcha da UDR, fazendeiros voltaram à Brasília, em mobi-


lização contra Dilma Rousseff. (Humberto Pradera/PSB)

IMPEACHMENT sionalizando de vez o lobby agropecuário


em Brasília.
OU AGROGOLPE?
Apesar dessa força, a FPA mantinha-se
O início do governo de Dilma Rousseff
limitada a temas econômicos e agrários,
(PT) coincidiu com o período de fortale-
navegando paralelamente aos governos
cimento da Frente Parlamentar da Agro-
petistas. Desde 2003, o bloco ruralista
pecuária no Congresso. A bancada rura-
mantinha o poder de indicação de nomes
lista havia provado sua força durante as
para o Ministério da Agricultura, enquanto
negociações do Código Florestal de 2012,
a agenda de reforma agrária era encabe-
ao emplacar uma versão mais permissiva
çada pelo Ministério do Desenvolvimento
do novo regulamento ambiental. Um ano
Agrário, ligado aos movimentos do campo.
antes, em 2011, formara o IPA — o irmão
Essa política de conciliação durou pouco.
siamês da FPA — como braço de articula-
ção com fazendeiros e empresários, profis-
A ruptura definitiva ocorreu no fim de
2012, no segundo ano de Dilma, após o do Desenvolvimento Agrário ao status de
governo autorizar uma inédita ação de secretaria e aprovou uma anistia de R$ 8,6
desintrusão, na Terra Indígena Marãiwat- bilhões em dívidas de fazendeiros com o
sédé, no Mato Grosso.90 Líderes do setor Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
promoveram um estardalhaço midiático, (Funrural).95
condenando a política fundiária do gover-
no — não à toa, o discurso do “tudo que Em resposta, como mostrou novamente
não presta”, de Luis Carlos Heinze, ocorreu este observatório, mais da metade dos
em dezembro de 2013. Insatisfeitos com a votos que, no ano seguinte, mantiveram
petista, os ruralistas se fixaram como opo- Michel Temer (MDB) no poder saíram da
sição dentro e fora do Congresso. FPA.96 Entre eles, 124 deputados ruralistas
apoiaram tanto a derrubada de Dilma, em
A desaceleração da economia brasileira, abril de 2016, como o arquivamento da de-
a reeleição apertada em 2014 e a enorme núncia de corrupção passiva contra Temer,
repercussão midiática da operação Lava em agosto de 2017.97
Jato impulsionaram uma greve de ca-
minhoneiros em novembro de 2015, que Para o professor Clifford Andrew Welch,
resultou em 49 bloqueios em 14 estados, que dá aulas de pós-graduação em Histó-
pedindo a renúncia da presidente após ria na Universidade Federal de São Paulo
uma mudança na política de fretes.91 Con- (Unifesp), a articulação de fazendeiros
forme atos pró-impeachment tomavam e políticos do agronegócio contra Dilma
corpo, financiados pela Federação das Rousseff representa uma continuidade na
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) tradição brasileira dos “agrogolpes”. “[Em
— que em 2019 se tornaria membro oficial 1964] uma das forças mais importantes
do complexo IPA/FPA —, a Confederação foi a organização dos latifundiários para
da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) defender o controle sobre a terra, sem
e as federações de Goiás (Faeg) e Mato precisar negociar com ninguém, principal-
Grosso do Sul (Famasul) aderiram ao pedi- mente com os trabalhadores rurais. Por
do de impeachment.92 isso, o golpe contra Goulart cabe dentro
da definição de um agrogolpe”, afirma o
Finalmente, em março de 2016, a FPA se pesquisador. “No caso do impeachment da
posicionou de forma favorável ao afas- presidente Dilma Rousseff em 2016, embo-
tamento da presidente, oficializado pela ra tenha se dado através do parlamento,
Câmara em 17 de abril daquele ano e rati- mais uma vez os povos do campo foram o
ficado pelo Senado em 31 de agosto.93 Dos foco”.98
367 votos favoráveis ao impeachment de
Dilma Rousseff, como mostrou o De Olho Não à toa, durante o governo Temer, o
nos Ruralistas, fundado naquele ano, me- Brasil saltou à primeira posição no ranking
tade saiu de deputados filiados à frente da mundial de países mais perigosos para
agropecuária. atuar em defesa da terra, das florestas e
rios. Segundo a ONG Global Witness, um
Com a ascensão de Michel Temer (MDB) quarto (57) dos assassinatos por conflitos
ao poder, o alinhamento entre ruralistas no campo registrados em 2017 ocorreu no
e governo foi automático. O novo presi- Brasil.99 O período teve um recorde históri-
dente se comprometeu a defender pautas co de conflitos no campo — 1.547 registros
caras ao setor, como o parcelamento de em 2018, segundo o relatório Conflitos
dívidas, o combate à reforma agrária, a no Campo, da Comissão Pastoral da Ter-
anistia à grilagem e a liberação de agrotó- ra (CPT). Esse número seria ultrapassado
xicos.94 Em apenas um ano, 13 dos 17 pon- durante o governo de Jair Bolsonaro, em
tos prioritários da bancada já haviam sido 2020, com 2.054 conflitos.100
atendidos. Temer não homologou terras
indígenas, paralisou a demarcação de ter- Esses casos incluíram uma proliferação
ritórios quilombolas, rebaixou o Ministério inédita de atentados cometidos contra
o patrimônio e os servidores de órgãos ambientais e indigenistas. Em julho de 2017,
madeireiros atacaram uma carreta que transportava caminhonetes do Ibama em Novo
Progresso (PA), para impedir que os veículos fossem usados em ações de fiscalização.101
Três meses depois, em 27 de outubro de 2017, criminosos incendiaram as sedes do
Ibama e do Instituto Chico Mendes em Humaitá (AM), em represália a uma operação de
combate ao garimpo ilegal no Rio Madeira.102 Após investigação da PF, constatou-se a
participação do prefeito e do vice-prefeito do município, ambos ligados a líderes ga-
rimpeiros. No ano seguinte, em outubro de 2018, veículos do Ibama foram novamente
alvos, desta vez em Buritis (RO).103

Ainda em 2018, pouco tempo após a vitória eleitoral de Bolsonaro, em 22 de dezem-


bro, foi a vez da Funai — que já tinha sido alvo, em dezembro de 2013, de ataques com
coquetel molotov, em Humaitá.104 Pescadores ilegais efetuaram disparos contra a Base
Ituí-Itacoaí, especializada na proteção aos povos isolados da Terra Indígena Vale do
Javari.105 Uma embarcação foi danificada, mas felizmente nenhum servidor foi ferido. Os
ataques se repetiram nos anos seguintes até que, quatro anos depois, já nos estertores
do bolsonarismo, a mesma região ganhou atenção internacional.

Ali, onde a ilegalidade faz fronteira com o terror, o indigenista Bruno Pereira e o jorna-
lista britânico Dom Philips foram brutalmente assassinados durante uma emboscada,
em junho de 2022. Os mandantes foram descobertos apenas em janeiro de 2023 — não
à toa, somente após a derrota e fuga de Jair Bolsonaro.106

Bancada ruralista promoveu golpe parlamen-


tar contra Dilma Rousseff.
(Valter Campanato/Agência Brasil)
CONCLUSÃO

A história das violências no Brasil está amalgamada à história da questão agrária.


Somos o país dos latifúndios e dos coronéis, dos aristocratas e de uma expansão
territorial movida a destruições socioambientais.
E essa história de nossos biomas subtraídos e de nossos povos do campo sob
eterna coação possui uma interface política explícita. Falamos aqui de Origens
Agrárias do Terror também em homenagem àqueles (teóricos, intelectuais) que
não deixam a memória coletiva sucumbir às manipulações midiáticas.

Essa história acaba sendo deixada de lado na mesma medida em que os donos
dos meios de comunicação — esses mesmos que dizem que o agronegócio é
pop — jogam informações cruciais para debaixo do tapete. Mais do que vítima de
fake news, o Brasil é vítima de um jornalismo falso, omisso, que omite as digitais
econômicas e políticas da violência no campo.
Estamos utilizando a palavra “terror” neste relatório exatamente porque é dis-
so também que se trata, quem conhece as histórias de despejos, assassinatos e
extermínios no campo não pode deixar de falar em terror. George Washington
não é um lunático, não é um ponto fora da curva, não é um empresário dissocia-
do dessa história de ataques contra a Amazônia e os camponeses e quilombolas
e indígenas.
Só que temos gente muito mais articulada que George Washington. Temos um
sistema. Um sistema político ruralista que já demonstrou várias vezes que não se
importa com golpes e não se importa com manipulações, como aquelas relativas
ao instrumento constitucional — e inserido na ordem capitalista — da reforma
agrária.

O terror agrário e político no Brasil não se resume ao 8 de janeiro porque ele


costuma ser bem mais articulado do que a turba se propôs a fazer naquele mo-
mento na Praça dos Três Poderes. O que estava por trás daquilo era mais capilar,
mais territorializado. Começou muito antes. E não acabará com a prisão deste ou
daquele criminoso, ou deste ou daquele bode expiatório.

Se o Brasil quer enfrentar de frente a barbárie, que olhe para o campo, mas que
também olhe para o campo a partir dos filtros corporativos e políticos — está na
hora dessa gente engravatada mostrar seu gosto pelo terror.
REFERÊNCIAS

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