Ebook A Concepcao Dialogica de Linguagem e Suas Reverberacoes No Ensino de Lingua Portuguesa
Ebook A Concepcao Dialogica de Linguagem e Suas Reverberacoes No Ensino de Lingua Portuguesa
Ebook A Concepcao Dialogica de Linguagem e Suas Reverberacoes No Ensino de Lingua Portuguesa
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CDD – 410
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SUMÁRIO
ESTUDO SOCIOLÓGICO-DIALÓGICO DA 21
LINGUAGEM: REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS
Rodrigo Acosta Pereira
Rosângela Hammes Rodrigues
A INTERAÇÃO DISCURSIVA 57
Sueli Gedoz
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A DIMENSÃO SOCIAL E VERBO-VISUAL DOS 159
GÊNEROS DO DISCURSO
Tatiana Fasolo Bilhar de Souza
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REFLEXOS E REFRAÇÕES SOBRE OS PROCESSOS DE 281
ELABORAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DE UM PROJETO
DE LEITURA E ESCRITA COM A TEMÁTICA
“VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER”
Lorena Brito de Castro
Michelly Dayane Soares Nogueira
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PRIMEIRAS PALAVRAS: A FORMAÇÃO
CONTINUADA E SUAS REVERBERAÇÕES
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professores(as) da Educação Básica – Anos iniciais; 22%, da
Educação Básica – Anos Finais e/ou Ensino Médio. Os demais se
dividiram entre alunos do mestrado (7%), doutorado (11%) e
professores do ensino superior (8%), conferindo a estes um
certificado de 70 horas, distribuídas entre leitura dos textos
discutidos (encaminhados antecipadamente) e a presença síncrona
nos encontros.
Em cada encontro, as reflexões foram conduzidas por um(a)
docente diferente, perfazendo, assim, um total de 12 encontros, os
quais se voltaram para os seguintes conceitos: a) Alteridade,
dialogismo e discursos (Profa. Carmen Teresinha Baumgärtner); b)
Ideologia, signo social e ideológico (Prof. Fernando Arthur Gregol);
c) Sujeito, alteridade e excedente de visão (Profa. Terezinha da
Conceição Costa-Hübes); d) Campo de atividade humana, gêneros
do discurso, texto enunciado (Profa. Leliane Regina Ortega); e)
Dimensão extraverbal e verbo-visual do gênero do discurso Profa.
Tatiana Fasolo Bilhar de Souza; f) Método sociológico (Prof.
Rodrigo Acosta Pereira). Com base em tais reflexões, foram
conduzidos outros quatro encontros procurando estabelecer
aproximações entre a concepção dialógica de linguagem e as
práticas de oralidade (Prof. Renilson José Menegassi),
leitura/escuta (Profa. Sueli Gedoz), análise linguística/semiótica
(Profa. Rosemary de Oliveira Schoffen Turkiewicz) e produção
textual (João Carlos Rossi) no ensino de LP. Para finalizar o
processo de estudo, os dois últimos encontros ficaram disponíveis
aos docentes participantes que quisessem socializar alguma
vivência de sala de aula, embasada em tal concepção de linguagem.
Cada encontro registrou uma participação muito expressiva dos
inscritos, que interagiram com os demais colegas por meio do chat ou
microfone/vídeo para expressar compreensões, dúvidas e/ou
angústias. Tal participação foi possível porque entende-se que, em um
processo de formação continuada, é importante que “[...] todos os
agentes tenham voz para colocar suas experiências, compreensões e
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suas concordâncias e discordâncias em relação aos discursos de outros
participantes e ao seu próprio” (MAGALHÃES, 2004, p. 562).
Pode-se dizer que o diálogo ocorreu entre todos que quiseram
e estavam dispostos a dialogar, uma vez que se partiu do princípio
de que “[...] a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto
por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se
dirige” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 2053). Logo, no processo de
estudos empreendido, embora houvesse uma pessoa coordenando
as reflexões em cada encontro, não cabia somente a ela falar; todos
tinham direito à palavra.
De todo esse processo de estudos nasceu o interesse em
organizar este livro, em forma de coletânea, com o propósito de
registrar e propagar ainda mais as reflexões que foram
empreendidas no decorrer do percurso. Assim, para além dos
professores que coordenaram cada encontro, os demais
participantes também foram convidados a socializar, por meio da
produção de um capítulo, uma vivência de ensino amparada na
concepção dialógica de linguagem.
Dado o convite, o livro se configurou com 16 capítulos, os
quais, tendo em vista o foco dado às reflexões, foram divididos em
duas partes. Na primeira parte, intitulada como REFLEXÕES EM
PAUTA NA FORMAÇÃO CONTINUADA, constam 07 (sete)
capítulos que se voltam, de forma predominante, para os conceitos
bakhtinianos que, de alguma forma, se fizeram presentes durante
a formação. Na segunda parte, nominada como REVERBERAÇÕES
DA CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE LINGUAGEM NA PRÁTICA
DOCENTE, agrupam-se 09 (nove) capítulos que procuram
estabelecer alguma aproximação entre esta concepção de
linguagem, o ensino e a aprendizagem da língua portuguesa.
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A primeira parte do livro inicia-se com o capítulo Estudo
sociológico-dialógico da linguagem: reflexões introdutórias, organizado
por Rodrigo Acosta Pereira e Rosângela Hammes Rodrigues. No
texto, os autores promovem algumas reflexões que retomam
considerações de M. Bakhtin, V. Volochínov e P. Medviédev em
torno de um olhar sociológico e dialógico para os estudos
linguísticos. Para isso, dialogam com os leitores, buscando não
apenas reenunciar considerações fundantes sobre a linguagem
nesse campo de estudos como, por conseguinte, visando
problematizá-las à luz de seus próprios pressupostos teóricos e
metodológicos.
No capítulo seguinte - Ensino de língua portuguesa em perspectiva
enunciativa e discursiva – a autora, Carmen Teresinha Baumgärtner,
promove uma reflexão sobre sua compreensão a respeito dos
conceitos de alteridade, dialogismo e discursos, com base em estudos
do Círculo de Bakhtin, relacionando-os à perspectiva enunciativa e
discursiva de linguagem assumida pela Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) e ao ensino de língua portuguesa na escola.
Dando prosseguimento às reflexões, tem-se o capítulo A
interação discursiva, produzido por Sueli Gedoz. Nele, a autora se
propõe a aprofundar o entendimento sobre interação discursiva e
a apontar seu entrelaçamento com outros conceitos basilares
produzidos pelo Círculo de Bakhtin. Para além disso, procura
relacionar a temática ao ensino e ao trabalho com a língua e à
linguagem na escola, mostrando como a interação discursiva situa-
se (ou não) nas concepções de linguagem subjacentes ao ensino da
língua e às práticas desenvolvidas em sala de aula.
No capítulo Cronotopo: muito além do tempo e do espaço, a autora
Rosemary de Oliveira Schoffen Turkiewicz apresenta uma reflexão
acerca do conceito de cronotopo conforme pressupostos discutidos
por Bakhtin e o Círculo, re(significado) em leituras de vários autores
contemporâneos. Seu objetivo é ratificar o cronotopo como categoria
discursiva, elemento concretizador dos enunciados materializados
nos diversos gêneros do discurso, que possibilita aprofundar a
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experiência de compreensão, expressão e criticidade dos sujeitos ao
interagirem com e por meio das práticas de linguagem.
Em Ideologia, signo social e signo ideológico, Fernando Arthur
Gregol apresenta discussões pontuais a respeito de como se
constituem os conceitos de ideologia, signo social e signo ideológico no
ideário das discussões do Círculo de Bakhtin. Embora se trate de
reflexões teóricas, o autor se propõe a não perder de vista a relação
desses conceitos com o ensino na Educação Básica. Para isso, ao
longo do texto apresenta algumas discussões em relação à sala de
aula e aos documentos oficiais que dão suporte à educação
brasileira, especialmente no que tange à formação linguística em
língua materna.
O capítulo intitulado Enunciado: unidade concreta da
comunicação discursiva – é de autoria de Leliane Regina Ortega. No
texto, a autora tem por objetivo apresentar considerações teórico-
metodológicas a respeito da compreensão de enunciado a partir dos
estudos de Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov, destacando a
relação intrínseca desses conceitos com outros como: gêneros do
discurso, signo ideológico, autoria, acabamento, texto e discurso.
Defende que a compreensão desses conceitos, a partir da teoria
enunciativa-discursiva da linguagem, é essencial para superar
estudos simplificados da vida do discurso.
Fechando a primeira parte do livro, encontra-se o texto A
dimensão social e verbo-visual dos gêneros do discurso, cuja autoria é de
Tatiana Fasolo Bilhar de Souza. Nele, a autora tem como objetivo
discutir, a partir dos pressupostos do Círculo de Bakhtin, sobre a
língua(gem) e a dimensão social e verbo-visual dos gêneros do
discurso. Para isso, procura entremear, à discussão teórica sobre a
concepção dialógica de linguagem e os gêneros, a análise de um
enunciado moldado no gênero discursivo reportagem perfil,
pertencente à esfera social jornalística.
Na segunda parte do livro – REVERBERAÇÕES DA
CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE LINGUAGEM NA PRÁTICA
DOCENTE – os autores procuram estabelecer reflexões sobre a
formação e o papel social docente subsidiado pela compreensão
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dialógica de linguagem. Para além disso, apresentam-se vivências
de sala de aula com o ensino de língua portuguesa concretizado
em práticas de oralidade, leitura/escuta, análise linguística/
semiótica e produção (oral e escrita) de textos, amparadas em tal
concepção de linguagem.
No primeiro capítulo dessa segunda parte, a autora Terezinha
da Conceição Costa-Hübes promove uma reflexão sobre Sujeito,
alteridade e excedente de visão no papel social docente. Seu objetivo é
refletir sobre esses conceitos, amparados nos escritos do Círculo de
Bakhtin, na sua relação com o ato responsável do sujeito professor.
Para isso, levanta os seguintes questionamentos que direcionam
suas reflexões: qual a importância de o sujeito docente ter
consciência de sua alteridade nas interações que estabelece com
seus alunos? Que implicações têm o excedente de visão no ato
responsável do docente? A autora procura vivificar tais conceitos
quando os situa em relação ao papel social docente.
Em seguida, o capítulo intitulado De leitor a mediador:
experiências da formação docente, das autoras Madalena Benazzi
Meotti e Mirian Schröder apresenta uma experiência vivenciada na
formação inicial docente. Socializam três atividades práticas
voltadas ao ensino de leitura, desenvolvidas junto a acadêmicos de
um curso de Letras: a primeira com os calouros e voltada à análise
da leitura em livro didático; a segunda envolve uma equipe do
Pibid (1° e 2° ano) e o uso de tecnologias para o ensino de língua,
especificamente da habilidade leitora; e a terceira volta-se para a
prática realizada com acadêmicos do 3° e do 4° ano do curso, com
o intuito de orientar a produção de exercícios de leitura.
Com o propósito de explorar a prática da oralidade na sua
relação com a leitura e a produção textual, Renilson José Menegassi
organiza o texto Entonação valorativa em atividades com tirinha de
quadrinhos, no qual apresenta a entonação valorativa como um
elemento do discurso, discutido pelo Dialogismo, e como um
elemento a ser explorado no ensino de línguas. Para tanto, descreve
e analisa as manifestações de entonação valorativa nos quadrinhos
que compõem tirinhas, para se apresentar possibilidades de
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atividades que permitam o trabalho de produção de sentidos com
a entonação valorativa.
Com o propósito de desenvolver as habilidades linguístico-
discursivas da oralidade e da escrita, João Carlos Rossi e Madalena
Benazzi Meotti socializam uma prática com a linguagem no texto
Gêneros discursivos e as práticas sociais de linguagem: uma proposta
pedagógica para o ensino de língua portuguesa. Essa prática envolveu
alunos do Ensino Fundamental – anos finais e Ensino Médio, da
rede particular de ensino, promovendo o contato com a
modalidade formal da língua portuguesa, por meio de um
concurso de oratória. Pautados na concepção de linguagem como
forma de interação, os autores apresentam uma proposta de
trabalho com vistas a abordar a função social dos gêneros
estudados na escola, nesse caso, o dissertativo-argumentativo,
envolvendo temáticas que dialogassem com problemas sociais
relevantes. A análise da atividade evidenciou a importância da
criação de eventos pedagógicos que possibilitem aos alunos serem
protagonistas, para que possam também utilizar a linguagem em
contextos formais de interação.
No capítulo que vem a seguir – Leitura visual de tirinhas:
ampliando os caminhos da leitura em sala de aula – Alex Meneghete Vaz
e Ana Caroline Montrezol Diniz relatam duas experiências
didático-pedagógicas de leitura baseadas na Concepção Dialógica
de Linguagem do Círculo de Bakhtin. As experiências foram
realizadas em uma turma de 4º ano, Ensino Fundamental, de uma
escola pública municipal e reafirmam o quão é necessário o
professor trabalhar com seus alunos a partir de bases teórico-
metodológicas sólidas e que permitam os discentes se manterem
em uma perspectiva linguístico-discursiva, ou seja, a linguagem
voltada para a interação.
No capítulo seguinte, as autoras Lorena Brito de Castro e
Michelly Dayane Soares Nogueira registram uma experiência
envolvendo Reflexos e refrações sobre os processos de elaboração e
implementação de um projeto de leitura e escrita com a temática “violência
contra a mulher”. Para isso, em seu relato refletem acerca da
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elaboração e implementação de um projeto de leitura e escrita com
alunos do 8º ano do Ensino Fundamental, de uma escola pública da
rede estadual, a partir do trabalho com o gênero miniconto, cuja
temática foi “Violência contra a mulher”. Com base em
pressupostos do Círculo de Bakhtin, o projeto objetivou contribuir
para os estudos sobre o processo de ensino e aprendizagem de
língua materna, tanto nas habilidades de leitura quanto de escrita,
em perspectiva dialógica.
Os autores Jocieli Aparecida de Oliveira Pardinho, Lays
Maynara Favero Fenilli e Neil Franco, por sua vez, organizam o
capítulo intitulado Encaminhamentos didáticos para leitura e análise
linguística/semiótica de enunciados no gênero tira. A partir da seleção de
enunciado do gênero tira, apresentam possíveis encaminhamentos
didáticos que podem ajudar professores/as da Educação Básica a
construir um trabalho dialógico com as práticas de leitura e análise
linguística/semiótica. Partem do princípio de que essas práticas se
imbricam no momento da interação com o texto na sala de aula e que
ambas podem contribuir para a compreensão crítica e reflexiva dos
enunciados que são ideologicamente valorados por nascerem no
bojo das relações sociais.
Gercilene Vale dos Santos e Missilene Silva Barreto escrevem
sobre A constituição dialógica da discência e da docência: um olhar a
partir de uma atividade de análise linguística no 9º ano do Ensino
Fundamental. No capítulo, as autoras se propõem a refletir sobre o
processo de ensino e aprendizagem na perspectiva dialógica da
linguagem, a partir de uma atividade de análise linguística
implementada numa turma de alunos do 9º ano do Ensino
Fundamental, numa escola pública de Macapá/AP. Trata-se da
elaboração e implementação de uma atividade de ensino e
aprendizagem, envolvendo a oralidade, a leitura, a análise
linguística e a produção textual, relacionada ao tema fome, a partir
do poema O bicho, de Manuel Bandeira. O trabalho mostra que a
constituição dialógica discente e docente se fortalecem à medida
que o professor conduz a sua prática a partir das demandas sociais
e das necessidades de aprendizagem, de modo que refrata uma
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avaliação também dialógica porque promove o processo ação-
reflexão-ação.
Por fim, Maria Letícia Naime-Muza e Alessandra Benicchio
Muramatsu apresentam Vivências pedagógicas com canções. No texto,
as autoras defendem a canção como um gênero do discurso que
oportuniza as aprendizagens do léxico, da compreensão leitora, da
autoria e da análise linguística aos estudantes do Ensino
Fundamental. Para isso, relatam duas experiências vivenciadas em
uma escola da rede privada na cidade de São José do Rio Preto,
estado de São Paulo, e de uma escola da rede pública municipal de
Florianópolis, estado de Santa Catarina.
Com a organização deste livro atesta-se que os estudos
empreendidos por meio da formação continuada, além de
promoverem a escuta, a partilha de pensamentos, de ideias, de
conhecimentos, de experiências, de conflitos, de tensões, podem
incentivar os docentes a se reconhecerem como produtores de
conhecimentos que podem e devem ser socializados também por
meio do texto escrito.
O ato de ler, ouvir, refletir sobre determinado embasamento
teórico possibilita ter acesso a uma nova realidade, constituída pelo
outro. É com o acesso ao conhecimento que “[...] eu tomo
consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras,
as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim
mesmo” (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 373-374 4 ). E assim, ao
compreender a si mesmo, compreende-se, no ensino, as
necessidades dos outros que estão em busca de formação.
Fundado no princípio da alteridade, este livro apresenta
estudos realizados por professores em contexto de formação
continuada, e explicita, por meio de seus discursos, de relações
dialógicas que instauram, experiências de ensino tanto na
Educação Básica quanto no Ensino Superior, orientadas pela
filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin. O livro mostra que a
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discussão sobre a formação continuada e sobre o ensino de língua
portuguesa, feita com professores, e não sobre professores,
constitui-se em importante diálogo sobre responsividades e
responsabilidades que o ato ético educativo compreende. Espera-
se que o conjunto de capítulos deste livro suscite ressonâncias
dialógicas, por meio de contrapalavras, para a continuidade do
diálogo, e para avanços no que concerne a compreensões sobre o
trabalho docente.
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1ª PARTE
REFLEXÕES EM PAUTA
NA FORMAÇÃO CONTINUADA
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20
ESTUDO SOCIOLÓGICO-DIALÓGICO DA
LINGUAGEM: REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS
INTRODUÇÃO
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como ‘balizadores’ do estudo linguístico e não como ‘categorias
pré-definidas’ a serem aplicáveis em estudos da língua. Desse
modo, nossa compreensão é que os conceitos mobilizados no
conjunto da obra do Círculo nos permitem, dentre outras questões,
entendermos como podemos estudar a linguagem à luz das
interações sociais, a linguagem na vida.
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Partindo da concepção de linguagem, podemos afirmar que,
nessa concepção social de estudos linguísticos, a língua não é vista
como forma, estrutura ou sistema, mas entendida como discurso.
Para Bakhtin (2008 [1963]), discurso é a língua viva, a língua real, a
língua concreta, a língua nas relações intersubjetivas, a língua que
nos rodeia social, histórico, cultural e politicamente. Engendrada em
forças de estratificação social (BAKHTIN, 1998 [1975]) e saturada de
ideologias (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930]) e avaliações sociais
(MEDVIÉDEV, 2012 [1928]), a língua da vida é a língua da
heteroglossia, do plurilinguismo, das línguas sociais (BAKHTIN,
1998 [1975]). O discurso é a arquitetônica da língua viva, entretecida
ideológico-valorativamente por forças e línguas de estratificação e
das classes sociais. O discurso é o escopo a partir do qual o estudo
da língua passa de um panorama essencialmente sistêmico-
formalizado para uma abordagem dos usos linguísticos na vida
social. Se é na vida social que o discurso se constitui e funciona, este
só pode existir sob as amplitudes do tempo e do espaço.
As amplitudes do tempo e do espaço, segundo Bakhtin (1998
[1975]); 2008 [1963]), dizem respeito ao cronotopo. O cronotopo é a
ancoragem espaço-temporal de constituição dos sentidos do
discurso. Todo cronotopo regulariza um enquadre do mundo, uma
posição de/no/com o mundo e com a vida, engendrado em visões
da realidade e imagem de um sujeito no/com/para o mundo. Sem
as amplitudes espaço-temporais o discurso não existe, orbita no
vácuo, sem qualquer vida. São as constrições cronotópicas que
permitem referências e orientações de sentido no discurso que,
dado seu matiz em um tempo e em um espaço da vida, reverberam
projeções semântico-ideológico-axiológicas da história, da cultura,
da política, das crenças, dos ideais, dentre outras coerções do
mundo da vida. O cronotopo é o que Bakhtin (1998 [1975]) entende
por “[...] uma ligação particular do homem e de todas as suas ações
e peripécias com o mundo espaço-temporal […].” (BAKHTIN, 1998
[1975], p. 282). Se todo discurso é a língua viva ancorada em
amplitude espaço-temporais da vida social, como esse discurso se
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materializa e, por conseguinte, medeia nossas interações? Todo
discurso se materializa na forma concreta de enunciados.
Os enunciados são unidades da comunicação discursiva
(BAKHTIN, 2003 [1979]). Na abordagem sociológico-dialógica, os
enunciados se diferem das orações, frases ou palavras-isoladas.
Enquanto os enunciados são unidades discursivas e, portanto,
unidades de análise da língua vista como discurso, as orações,
frases e palavras-isoladas são vistas como unidades convencionais
e, dessa forma, unidades formais da língua como sistema. Ao
estudar a língua sob um viés que a entende nas interações, nossa
unidade de trabalho são os enunciados. Estudar os enunciados é
estudar a língua em seu contexto de uso. Sob esse panorama,
Bakhtin (2003 [1979]) explica que entre as unidades discursivas – os
enunciados – e as unidades convencionais – as orações, frases e
palavras-isoladas – há diferenças fundantes, ou seja, as unidades
discursivas se diferem das unidades convencionais em função de
feições constitutivo-funcionais.
Os enunciados se constituem como tais a partir do
engendramento de três feições que se entretecem na sua
constituição e funcionamento: (i) alternância de sujeitos do/no
discurso; (ii) conclusibilidade e (iii) expressividade. Essas três
feições somente caracterizam os enunciados e são, portanto, os
elementos que os diferem das unidades sistêmicas da língua, como
as orações, frases e palavras-isoladas. Além disso, todas as três
feições são balizadas pelas condições sociais de produção,
circulação e recepção dos enunciados – as esferas e as situações de
interação (que discutimos a seguir).
Sobre a alternância de sujeitos, podemos compreender que
todo uso da língua, na forma de enunciados, implica a participação
de sujeitos – sujeito autor e sujeito-interlocutor. Não há enunciados
sem autoria e sem interlocutor. Todo enunciado é bilateral
(VOLOCHÍNOV, 2013a [1930]), pois parte de um sujeito e se
direciona a outro. Na interação, esses sujeitos podem estar face-a-
face ou serem potenciais (interlocutores previstos, por exemplo, se
coloquem na posição de leitores da obra do Círculo). Toda
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enunciação demanda interlocução, ou seja, a troca de posições de
sujeitos na interação – autor que se torna interlocutor e vice-versa.
Ademais, a alternância de sujeitos implica responsividade, dado
que todo enunciado, nas interações, é sempre responsivo e baliza
diferentes relações interpessoais – hierárquicas, (as)simétricas,
(in)formais, (im)pessoais etc., a depender dos lugares, posições e
classes sociais dos interlocutores.
Outra particularidade dos enunciados é a conclusibilidade, a
possibilidade do enunciado ser relativamente conclusivo, acabado,
compreendido. Para Bakhtin (2003 [1979]) é como se todo
enunciado apresentasse um certo ‘dixi conclusivo’, isto é, um
potencial de acabamento, ao ponto que os interlocutores pudessem
compreendê-lo nas situações de interação. Esse relativo
acabamento pelo dixi conclusivo se dá por meio da inter-relação de
três instâncias: (a) a exauribilidade semântico-objetal; (b) a vontade
discursiva do sujeito; e (c) as formas tipificadas dos enunciados.
Acerca da exauribilidade semântico-objetal, podemos entender que
todo enunciado tem algo a dizer, um conteúdo temático a ser dito.
Mas, dadas as demandas da interação, um certo acabamento
precisa ser realizado e, como isso, o sujeito-autor tende a ‘exaurir’
os sentidos do objeto (do conteúdo) de seu enunciado. Esse relativo
fechamento dos sentidos de um determinado tópico/conteúdo é
uma das feições do dixi conclusivo – a exauribilidade semântico-
objetal. Além disso, todo sujeito-autor tem um projeto de dizer,
uma visada discursiva por traz que direciona e organiza seu
enunciado para outrem. Os objetos semânticos dos enunciados não
são aleatórios, mas respondem à vontade discursiva do sujeito-
autor, seu projeto de dizer na interação. Mas para concluir seu
projeto de dizer, o sujeito-autor organiza seus enunciados sob as
lentes da interação, o que implica na tipificação desse enunciado na
forma de um gênero do discurso (falaremos sobre gêneros do
discurso a seguir). Bakhtin (2003 [1979]) explica que só falamos na
forma de gêneros do discurso e que sem essas formas sociais típicas
de enunciar, a comunicação seria impossível. Os gêneros
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organizam nossa comunicação como, por conseguinte, realizam
discursivamente o dixi conclusivo da enunciação.
Outra particularidade da enunciação é sua expressividade.
Nenhum enunciado é neutro, isto é, ‘opaco de valores’. Pelo
contrário, todo enunciado traz uma certa tonalidade, uma certa
avaliação projetada pelo sujeito-autor em sua enunciação. Essa
forma de se relacionar de forma expressiva com seu enunciado é
uma das feições da conclusibilidade. Toda vez que nos
comunicamos, nos utilizamos de enunciados valorativos, que
reverberam nosso projeto de dizer e a avaliação sobre a interação.
Com isso, alternância dos sujeitos do discurso, conclusibilidade e
expressividade caracterizam os enunciados como unidades da
comunicação discursiva e, por consequência, os diferenciam das
unidades convencionais da língua – orações, frases e palavras-
isoladas. Mas precisamos ratificar que todo enunciado se tipifica
socialmente na forma de gêneros do discurso.
Os gêneros do discurso são enunciados relativamente
tipificados nas esferas sociais de atividades humanas. Em outras
palavras, os gêneros do discurso são enunciados que, das suas
feições constitutivo-funcionais tipificadas a partir das demandas
das situações de interação, tornam-se relativamente estabilizados à
luz das reverberações das esferas sociais. Todo gênero do discurso
se constitui e funciona a partir das coerções das esferas sociais da
atividade humana. As esferas são espaços sociais ideologicamente
formados nos quais e a partir dos quais os gêneros nascem,
circulam e são recebidos nas interações. As esferas trazem consigo
sempre ideologias e valorações típicas de seu espaço – pensem as
esferas da religião, da escola, do jornalismo, da universidade etc.
Toda esfera baliza seus gêneros à luz de suas feições semântico-
ideológico-avaliativas que não apenas os saturam nesses sentidos
como a partir deles realizam seu funcionamento nas interações. As
esferas, portanto, regularizam, tipificam e saturam
ideologicamente os gêneros do discurso. No interior das esferas se
engendram as situações de interação.
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As situações de interação são os espaços sociais nos quais os
sujeitos se engajam nas mais variadas interlocuções. As situações de
interação são orientadas a partir de horizontes do tempo e do espaço,
do conteúdo objetal e dos valores/avaliações que orbitam nesse
espaço (VOLOCHÍNOV, 2013d [1926]). Com isso, tais horizontes
(espacial, temporal, objetal e valorativo) se entretecem construindo a
baliza que referencia os sentidos dos gêneros do discurso. São nas
situações de interação que sujeitos-autores e sujeitos-interlocutores
interagem a partir da mediação dos gêneros do discurso.
Nas interações também se relacionam certos horizontes
aperceptivos (do sujeito-autor e do sujeito-interlocutor) que
balizam os sentidos e a organização da enunciação. Tais horizontes
seguem ancoragens sociais, históricas, culturais, político-
econômicas das mais variadas ordens que, por sua vez, refletem e
refratam sentidos nos gêneros em função de lugares, posições e
classes sociais dos sujeitos que interagem sob as lentes desses
horizontes. Os gêneros do discurso respondem axiologicamente a
essas demandas.
Além disso, todo gênero do discurso se constitui a partir de
elementos que relativamente o estabilizam nas interações: o
conteúdo objetal, o estilo e a composição. Não são elementos
entendidos de forma isolada, mas sempre coatuantes na relativa
estabilização dos gêneros. O conteúdo objetal diz respeito ao que
se diz nos gêneros, seu conteúdo semântico. Nem tudo pode ser
dito em determinados gêneros e, com isso, gêneros determinados
recortam a realidade a seu modo. Um romance recorta a realidade
diferente de uma notícia, por exemplo. Os conteúdos objetais, em
adição, são sempre discursivizados à luz das ideologias das esferas
e das demandas e coerções da situação de interação; por isso, por
exemplo, um ‘mesmo fato’ pode ser discursivizado de ‘formas
diferentes’ em notícias de diferentes empresas jornalísticas.
Todo conteúdo objetal mobiliza um estilo próprio do gênero.
Para Bakhtin (2003 [1979]; 2008 [1963]), onde há estilo, há um
gênero que o orienta. Essa elucidação estilística (BAKHTIN, 2013
[1940-1945]) dos gêneros é o que provoca o agenciamento de
27
determinados recursos lexicais, gramaticais e textuais no interior
da enunciação. Cada elemento da língua mobilizado responde
axiologicamente às demandas sociais do que se diz por meio de um
determinado gênero em uma determinada situação de interação. O
uso de elementos linguísticos na construção da enunciação não é
sistêmico ou formalizado, mas socialmente responde às demandas
das condições sociais da enunciação (esfera e interação).
Conteúdo objetal e estilo se organizam e se orquestram
discursivamente por meio da composicionalidade. A composição é
umas das feições dos gêneros que lhe dá mais caráter típico, em
função de dimensionar, desenhar, arquitetar e orquestrar o
acabamento do gênero do discurso. Além disso, a composição
também baliza a relação entre participantes que, por sua vez, se
engendra na construção discursiva do gênero. Com isso, conteúdo
objetal, estilo e composição se entretecem discursivamente na
constituição e no funcionamento dos gêneros nas situações de
interação social. Os gêneros são enunciados relativamente estáveis,
pela relativa estabilização do conteúdo objetal, do estilo e da
composição à luz das reverberações das esferas e das situações
sociais de interação.
Todo gênero do discurso é ideológico-valorativamente
constituído. Por ideologia, compreendemos, as formas de ver,
apreender, compreender e interpretar a realidade social. Toda
ideologia é material, isto é, linguisticamente formada. Sem
linguagem não há ideologia e sem ideologia a linguagem passa a
ser apenas um sistema fechado em si mesmo. As ideologias
saturam os usos da linguagem com modos sociais de interpretar a
realidade, consubstanciados pelas reverberações das esferas da
atividade humana. Com isso, em cada esfera ascendem diferentes
projeções ideológicas que saturam qualquer enunciado que se
produz, circula e é recebido nessas esferas. Assim, sejam gêneros
do discurso primários, sejam os secundários, todos são
engendrados em ideologias – ideologias do cotidiano e ideologias
sistematizadas respectivamente (BAKHTIN, 2003 [1979];
28
VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930]). Toda ideologia traz em si
modos de avaliar a realidade social – a avaliação social.
Por avaliação social, compreendemos formas, modos sociais
de avaliar, apreciar e tonalizar a realidade circundante em discurso.
A avaliação social é parte orgânica de qualquer enunciado e, dada
sua importância, acaba por interferir diretamente nas escolhas
léxicas e gramaticais que estruturam os enunciados (MEDVIÉDEV,
2012 [1928]). Todo enunciado e suas formas típicas, os gêneros do
discurso, são ideológico-avaliativamente constituídos. Não há
enunciados sem projeções de ideologia e de avaliação social.
O que podemos perceber é que diversos são os conceitos que
orientam um trabalho sociológico-dialógico de estudo da
linguagem. Neste capítulo, revisitamos alguns, mas nem próximo
de retomar todos que são mobilizados no conjunto da obra do
Círculo. Questões sobre sujeito, consciência, polifonia,
heterodiscurso, carnavalização, para citar alguns, não foram
retomados. Como a teoria dialógica não se esgota em si mesma e
nem busca verdades absolutas ou finalizações cristalizadas, este
capítulo não encerra a discussão aqui.
Dado o primeiro momento deste capítulo que é revisitar
algumas considerações conceituais, voltemo-nos agora para um
segundo momento desta discussão: propor algumas considerações
que chamamos de ‘fundantes’ para um trabalho de estudo da
linguagem sob o escopo da abordagem da metodologia
sociológico-dialógica à luz dos escritos do Círculo. Para tanto,
vamos delinear algumas considerações como ‘pontos de partida’
que, dadas suas especificidades, podem caracterizar as rotas de
trabalho com a abordagem sociológico-dialógica. Cabe novamente
ressaltar que são ‘propostas iniciais’ que podem ser discutidas,
debatidas, questionadas e redimensionadas.
29
PONTOS DE PARTIDA E CONSIDERAÇÕES FUNDANTES
PARA UM ESTUDO DA LINGUAGEM SOB O PANORAMA
SOCIOLÓGICO-DIALÓGICO
30
dialógica não se detém na análise de unidades convencionais da
língua, voltadas ao sistema imanente e formal, tais como as
palavras-isoladas, as frases e as orações. Mas, por outro lado, se
volta às unidades discursivas da comunicação social – os
enunciados. Os enunciados são unidades que se constituem e
funcionam nas interações. Eles devem ser estudados a partir dessa
‘relação resolutiva e integradora’ (VOLOCHINOV, 2013d [1926])
com as interações.
Contudo, mesmo sendo um estudo que contempla o social, a
análise de enunciados não dispensa a materialidade da língua e
nem poderia. Como existiriam enunciados sem língua? Mas não a
estuda à luz de sua forma, mas estuda o modo como tais recursos
da língua são mobilizados na enunciação à luz das feições das
interações sociais. Com isso, cada elemento da língua é visto sob
dois ângulos: o da ‘significação’ (que o entende como um elemento
lógico) e do ‘sentido’ (que o entende como um elemento dialógico).
Não basta entendermos que um dado recurso da língua (lexical,
gramatical) tem uma classificação no sistema. Interessa-nos saber
como esse recurso recebe diferentes matizes de sentido a cada
situação de interação (um verbo modal, por exemplo, pode ser
usado sob diferentes sentidos a depender dos gêneros em
diferentes interações).
(3) Gêneros do discurso como balizadores da análise: Se todo
enunciado passa a ser a unidade de análise, por conseguinte, os
gêneros do discurso são os balizadores dessa análise, haja vista que
todo enunciado se tipifica em gêneros. Não há como pensar uma
análise da linguagem, sob um viés sociológico-dialógico, que não
entenda que todo uso da linguagem se realiza em enunciados que,
dadas as especificidades da interação, se tipificam em
determinados gêneros do discurso. Os gêneros organizam nossas
comunicações e as tornam possíveis. À medida que nossas práticas
sociais se modificam, os gêneros, por consequência, se modificam.
Os gêneros acompanham as mudanças sociais, históricas e
culturais. Analisar a língua viva, a língua nas/das interações, é
analisar gêneros do discurso.
31
(4) Relações lógicas e relações dialógicas: como já dito acima, a
análise dos enunciados prevê uma análise de relações lógicas e de
relações dialógicas. Segundo Bakhtin (2008 [1963]), essas duas
instâncias não se fundem, mas precisam se combinar no estudo do
discurso. Por relações lógicas, podemos compreender as relações
de ordem sistêmico-formais da língua, o que pode ser reproduzido,
repetível e convencional: entender a orquestração dos fones,
fonemas, morfemas e sintagmas nas palavras (palavras-isoladas),
nas frases e nas orações, por exemplo, são análises do escopo das
relações lógicas. Quando nos voltamos a entender como essa
orquestração se engendra em sentidos particularizados pela
situação de interação, na ordem do discursivo, irrepetível e
semântico-ideológico-avaliativo, nos deparamos com o estudo das
relações dialógicas. Uma abordagem sociológico-dialógica se
orienta pela combinação entre relações lógicas e relações dialógicas
(BAKHTIN, 2008 [1963]).
(5) Materialidade da língua sob o matiz dos usos sociais: na
abordagem sociológico-dialógica, o estudo da materialidade da
língua não é excluído. Pelo contrário, ele é central. Não haveria
possibilidade de enunciação sem elementos da língua. Entretanto,
os recursos da língua não são estudados simplesmente sob o escopo
de uma análise formal ou essencialmente taxonômica. Os
elementos da língua são estudados pela sua seleção, combinação e
disposição na enunciação (VOLOCHÍNOV, 2013b [1930]) em
resposta às demandas da interação. Como cada enunciado é
irrepetível, único e singular, cada elemento da língua recebe as
mesmas caracterizações e matizes de sentido particulares a cada
situação interlocutiva. Uma conjunção em um enunciado é sempre
uma ‘conjunção’ para o/no sistema da língua, mas, em cada
enunciação, essa mesma ‘conjunção’ passa a ter sentidos plurais em
resposta aos horizontes de tempo, do espaço, do conteúdo objetal,
das valorações etc. que compõe a dimensão social da enunciação.
Com isso, a abordagem sociológico-dialógica estuda os recursos da
língua, mas no como estes se configuram e se reconfiguram sob o
escopo social da interação.
32
Delineamos 5 ‘pontos de partida’. De fato, são pontos iniciais que
nos lembram as ancoragens a partir das quais nosso estudo se
consocia. O Círculo debate esses 5 ‘pontos de partida’ em várias de
suas obras, tais como os ensaios de Volochínov entre 1926 e 1930,
como a obra completa do mesmo autor em 1929-1930, a qual, dentre
outras questões, já frisa em seu subtítulo os termos ‘método
sociológico’. Os textos completos e os inacabados (ensaios inacabados,
notas etc.) de Bakhtin, em especial, os escritos entre as décadas de 1930
e 1970. E o próprio Medviédev busca encarar a problemática da
‘poética sociológica’ em sua obra de 1928. A busca incessante e uma
reflexão centrada no ‘relativo acabamento’ caracteriza essa discussão
sobre o que seria, afinal, uma abordagem sociológica, dialógica ou
sociológico-dialógica (e outros tantos termos).
Para nossa próxima seção, vamos debater algumas outras
questões que afloram em debates contemporâneos sobre os escritos
do Círculo e que, dado seu teor e ‘tom’, merecem ser retomadas.
Seguimos o mesmo estilo, que é delinear aspectos, pontos, questões
e apresentar breves reflexões sobre.
33
(1) “É só um estudo social, é sociológico”: de fato, o estudo da
linguagem sob a perspectiva das obras do Círculo é um estudo
sociológico, posto que não se caracteriza sob os matizes
subjetivistas e nem objetivistas de investigação da língua. Mas um
estudo sociológico, para o Círculo, não se detém no social. Inclusive
Volochínov (2013c [1930]) explica isso em seu ensaio sobre a
construção da enunciação. Segundo o autor, se parássemos no
estudo do social, nossa investigação seria sociológica,
antropológica nos termos stricto sensu. A abordagem sociológica
se caracteriza dessa forma porque responde axiologicamente a
estudos que abstraem da língua sua dimensão social, voltando-se
especificamente ao seu sistema ou à cognição. Com isso, a
abordagem sociológico-dialógica é social, mas porque o social se
integra ao verbal (e às outras formas semióticas) de forma
‘resolutiva e integradora’, em que um ‘conclui’ o outro, de forma
orgânica e indissolúvel. Não se fundem em si mesmos, mas se
combinam dialogicamente.
(2) “Não tem metodologia”: a nosso ver, essa é uma posição de
quem não leu os escritos do Círculo. Iniciemos dizendo que alguns
dos próprios subtítulos das obras do Círculo demarcam
explicitamente a ideia de ‘método’, como por exemplo Marxismo e
filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na
ciência da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930]),
Metodologia das ciências humanas (BAKHTIN, 2003 [1979]) só para
dar exemplos mais explícitos. Ademais, só em ler alguns dos
ensaios finais reunidos na coletânea Estética da criação verbal
(BAKHTIN, 2003 [1979]), tais como aqueles voltados à questão dos
gêneros do discurso e à problemática do texto, nos deparamos com
inúmeras vezes que Bakhtin se utiliza dos termos ‘método’ e
‘metodologia’. Para completar (e não encerrar), citamos a obra
Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 2008 [1963]) que o
autor nos ilustra uma excelente análise discursiva, aparada por
várias orientações metodológicas à luz do que denominou uma
abordagem ‘metalinguística’.
34
Dados os exemplos de obras, cabe também ressaltar que uma
abordagem sociológico-dialógica não se orienta por categorias pré-
definidas aplicáveis a dados, nem por um quadro ou modelo
metodológico a priori. Como podemos visualizar a partir de
Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 2008 [1963]), as
categorias acendem dos dados, em ‘idas e vindas’, sob as lentes da
ancoragem teórico-metodológica. Com isso, cabe ao analista
‘semear’ os dados e, sob o escopo da abordagem teórico-
metodológica do Círculo, ‘colher’ categorias que possam
representar discursivamente as regularidades enunciativo-
discursivas de/em seus dados (desculpem-nos pela metáfora de
plantio). A teoria (e seus conceitos, pressupostos metodológicos,
reflexões etc.) orientam o semeio e o plantio, dando-lhe o matiz
característico desse campo de estudos. Bakhtin (2008 [1963]) não
detinha categorias prontas da sua análise da poética de Dostoiévski,
mas ao se debruçar no conjunto das obras deste autor e analisar as
regularidades discursivas que caracterizavam tais obras, é que foi
cunhando categorias para seu quadro analítico, como o que
apresenta em Bakhtin (2008 [1963], p. 228-229).
(3) “Não pode ser um referencial para a Linguística”: embora o
campo artístico-literário seja a esfera a partir da qual o Círculo, em
grande parte, se dedica a estudar, a abordagem sociológico-
dialógica não (deve) se restringe a essa esfera. O campo de estudos
dialógicos não é fechado e nem cristalizado a um determinado
campo da criação ideológica e nem poderia ser dado sua própria
arquitetônica teórico-metodológica. Essa abordagem de estudos se
abre a diferentes outras áreas, como os estudos contemporâneos em
Psicologia, Filosofia, Antropologia, Sociologia, Educação e Artes
Visuais, Artes Cênicas, Cinema apenas para citar alguns. Além
disso, o Círculo traz discussões extensas e substanciosas sobre
Linguística no conjunto da obra dos pensadores. Basta uma simples
leitura exploratória nos ensaios e obras completas de Volochínov,
de Bakhtin e de Medviédev para localizar belos diálogos com a
Linguística de sua época. É mais uma posição de quem não leu os
escritos do Círculo.
35
(4) “Não estuda língua”: essa posição parece resumir as
anteriores e ratificar ainda mais uma posição radical contrária a
estudos dialógicos. Se essa posição se refere a um estudo formal da
língua, de fato, precisamos reiterar: não é essa língua que a
abordagem sociológico-dialógica do Círculo estuda. O Círculo não
se dedica a estudar a língua no que ela tem de formal, mas no que
a língua se mostra de fluida, heterodiscursiva, estratificada,
cultural, historicizada e ideológica.
Não é a língua das categorias lógico-matemáticas, mas a língua
da vida, dos sujeitos, da interação. A abordagem sociológico-
dialógica estuda a língua, mas a estuda na vida e não em seu
sistema petrificado (VOLOCHÍNOV, 2013e [1928]).
(5) “Só serve para filosofar”: Bakhtin (2003 [1979]) explica, em
seu ensaio sobre a problemática do texto, que se dedica a uma
análise filosófica. Mas no mesmo ensaio, delineia uma extensiva
discussão (inacabada por meio de notas) que demarcam um olhar
antropológico para o estudo do texto – um texto que precisa estar
nas relações sociais, na vida do homem, e não um texto sem voz,
sem escuta, sem vida. O Círculo traz excelentes e densas reflexões
filosóficas, como não poderia ser diferente como pensadores de seu
tempo (início do século XX). São reflexões que orientam o trabalho
com a linguagem, não apenas pelo que trazem como ‘grandes
gestos interpretativos’, mas sobretudo, pelo como se apresentam
enquanto ‘grandes diretrizes’ teórico-metodológicas.
Não encerramos aqui. São muitas as discussões contemporâneas
sobre os escritos do Círculo e a abordagem sociológico-dialógica. São
muitas as vozes que ressoam no campo de estudos da linguagem, em
especial, dado o panorama deste capítulo, no campo dos estudos
discursivos. Aqui apenas esboçamos algumas de nossas reflexões, na
arena de/com vozes outras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
36
da pele. Há os que discordam fora do campo, há os que discordam
dentro do campo. Há ainda aqueles que concordam estando fora
ou consociados ao campo. Essa é a seiva que nutre a ciência. O que
seria se todos pensássemos iguais. É no debate, nos embates, nas
arenas que vozes se entrecruzam, desvelando sentidos, posições,
visões. Sobre a abordagem sociológico-dialógica (como ousemos
nomear) não seria diferente, afinal, como bem reitera Bakhtin (2003
[1979], p. 409-410, grifo do autor), “quanto a mim, em tudo eu ouço
vozes e relações dialógicas entre elas.”
REFERÊNCIAS
37
Wanderley Geraldi e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013b [1930]. p. 131-156.
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação. In:
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios.
Tradução de João Wanderley Geraldi e Valdemir Miotello. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2013c [1930]. p. 157-188.
VOLOCHÍNOV, V. N. Palavra na vida e a palavra na poesia.
Introdução ao problema da poética sociológica. In: VOLOCHÍNOV,
V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução de João
Wanderley Geraldi e Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013d [1926]. p. 71-100.
VOLOCHÍNOV, V. N. As mais recentes tendências do pensamento
linguístico ocidental. In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da
enunciação e outros ensaios. Tradução de João Wanderley Geraldi e
Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013e [1928].
p. 101-130.
38
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM
PERSPECTIVA ENUNCIATIVA E DISCURSIVA
INTRODUÇÃO
39
nem sempre se lhes atribuído os créditos, em documentos
norteadores do ensino (como a BNCC, por exemplo), os quais, por
necessidade do ofício, estão nas escolas. Não é só porque a BNCC
faz menção a esses termos, mas porque observo a pretensão de que
o que consta nesse documento seja incorporado no ensino, por
meio de planejamentos, materiais didáticos e pela mediação feita
por professores e professoras em sala de aula. Nesse caso, assentar
a compreensão em um dado campo teórico viabiliza o balizamento
sobre significados que posso atribuir à concepção enunciativa e
discursiva de linguagem verbalmente mencionada na BNCC.
Esta reflexão não pretende expor o que os autores
mencionados disseram sobre alteridade, dialogismo e discursos há
quase um século, a seus contemporâneos, com seus diálogos e
afetações também próprios daquela época e contexto. Minha
intenção é bem menos audaciosa. Contento-me em dizer o que eu,
no contexto e no tempo em que me situo, com meus interlocutores
imediatos e mediatos, compreendo a respeito do que disseram.
Portanto, trata-se de uma interpretação, dentre tantas outras
possíveis e pertinentes. A partir da minha leitura singular, esboço
algumas considerações a respeito do ensino de língua portuguesa,
que não são melhores nem piores que outras.
Embora se trate de gesto singular, parto do princípio
(bakhtiniano) de que meus modos de ler não nascem em mim. A
singularidade advém das afetações que me compõem. Portanto,
considero necessário dizer o meu lugar de enunciação, a partir do qual
assumo dadas posições frente ao assunto em análise. Com isso, de
antemão, evoco a não neutralidade de minhas reflexões, haja vista que
minha história, minhas vivências explodem no que penso (na maior
parte das vezes implodem, requerendo que reveja minha maneira de
pensar). Não farei esforço algum para tentar apagar as subjetividades
que me constituem, porque seria vão, e também porque compreendo
que gestos de interpretação são matizados por minhas posições
enquanto sujeito social e histórico, de modo que pensar que o que digo
ou penso é neutro seria ingenuidade ou má fé.
40
UM POUCO DE (MINHA) HISTÓRIA
41
em sala de aula. Professores, insatisfeitos e inquietos [...] queriam propostas,
respostas a suas indagações. Um diálogo frutífero estava em andamento [...]
com a participação não só de assessores universitários, mas, sobretudo, com
a presença de professores que procediam do chão da escola como
representantes de seus colegas (GERALDI, 2015, p. 382).
42
para o exercício do uso dos modos de raciocínio bakhtiniano sobre
a linguagem no ensino escolar de língua portuguesa. É no veio
dessa perspectiva que vou escavar, tendo como escoras os estudos
bakhtinianos, não para explicitar seus sentidos, muito menos para
esgotar suas discussões, mas apresentar a minha palavra, gestada
na escuta e no confronto de muitas vozes, que compuseram e
compõem o acontecimento singular da vida vivida, e da escrita
desse texto, que está aberto a contestações.
Para prosseguir nesse intento, além destas palavras
introdutórias, o presente texto está organizado em duas seções,
seguidas das considerações finais. Na primeira seção abordo os
conceitos de alteridade, dialogismo e discursos, com aporte em estudos
do Círculo de Bakhtin. Na seção seguinte, reflito sobre a
produtividade desses conceitos, observando que a inexistência de
definição na BNCC representa uma vereda aberta para
interpretações conceituais de estudos do Círculo, como
possibilidade para pautar o ensino de língua portuguesa em
perspectiva enunciativa e discursiva de linguagem.
relevantes para a discussão sobre o ensino de língua portuguesa, tais como enunciado,
enunciação, cronotopo, gêneros de discursos. Neste trabalho, contudo, atenho-me
apenas a pensar sobre alteridade, dialogismo e discurso, reconhecendo que talvez a
não incorporação desses outros conceitos pode fazer falta à presente reflexão.
43
Alteridade
O simples fato de que a partir de meu lugar único no ser eu veja, eu conheça
o outro, eu pense nele, eu não o esqueça, o fato de que para mim também ele é,
eu sou o único a poder fazê-lo para ele em um momento possível em todo o
ser. É precisamente o ato do vivido real em mim que completa seu ser, ato
absolutamente aproveitável e novo, e que eu sou o único a poder efetuar
(BAKHTIN, 2010, p. 70).
44
Os laços dialógicos entre o eu e o outro são mediados pela
linguagem, em suas mais variadas formas de manifestação. A
linguagem amalgama o eu e o outro, amalgamando também
sentidos e posições valorativas, dados e em devir. Esse outro é
concebido bakhtinianamente como ideologia, dimensão
constitutiva da linguagem, pode ser tanto o interlocutor quanto
discursos constitutivos de outros discursos. Nesse campo teórico, a
meu ver, a multivocalidade – traço característico de discursos -
origina-se no fato de que são impregnados pela memória de outros
discursos. Dada a importância da compreensão do conceito de
dialogismo, como correia que põe em mobilidade a relação com a
alteridade, na próxima seção teço considerações a esse respeito.
Dialogismo
45
participo, tecendo-me dialogicamente como ser humano histórico
e social. Nesse sentido, posso dizer que as palavras que pronuncio
vieram de fora. Mas que não são necessariamente submissas à
consciência do outro, porque no roçar de consciências podem se
produzir sentidos imprevisíveis. Não são totalmente livres, porque
pronunciadas na interação, gestada, e, portanto, afetada
predominantemente pelo mundo da cultura, visto como um grande
e infinito diálogo. Compreendo, portanto, a dialogia, a partir do
ponto de vista bakhtiniano, como princípio inexorável para a
constituição humana. Essa compreensão se apoia na ideia de que a
tessitura das relações dialógicas, costuradas pela linguagem
humana, incide sobre as manifestações da vida, e nelas se matiza.
Apontando na mesma direção, Bakhtin afirma que o existir da
linguagem se dá no diálogo:
46
compreensão se produz na relação entre sujeitos, implicadas por,
no mínimo, duas consciências, realidades semióticas marcadas
dialogicamente. Compreender requer exercícios de elaboração do
pensamento capazes de interpretar a multivocalidade, a
heterogeneidade, a plurissignificação, algo inconcluso a que, nesse
processo, se atribui acabamento provisório.
Essa formulação dá pistas sobre o ensino da leitura e da escrita
na escola, com ênfase para as relações sociais, marcadas por
encontros de alteridades, de intersubjetividades sociais, o que
implica pensar os textos como manifestação semiótica de
atividades dialógicas. Nesse sentido, a leitura e a escrita de textos
são atividades que pertencem à dimensão do mundo da criação
ideológica, caracterizando-se como gesto dialógico.
Entendo que quanto mais vastos e complexos forem os
encontros, o diálogo, tanto maiores serão as possibilidades de
interpretar a realidade de maneira crítica e elaborada. A promoção
de encontros com uma diversidade de vozes em sala de aula, por
meio da leitura de uma variedade de textos orais, escritos,
imagéticos, fílmicos, musicais, teatrais etc., pode contribuir para a
constituição das percepções de mundo pelos estudantes. Tais textos,
como elaborações humanas mediadas pela linguagem, colaboram
para o desenvolvimento da vida social, já que são "produto da
atividade humana coletiva e reflete" (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930],
p. 141), e refletem a organização econômica e sociopolítica da
sociedade que os engendra. Entendidos dessa forma, os textos, as
vozes e posicionamentos sociais que os compõem, devem ser vistos
em sua historicidade constitutiva, e em suas contradições.
Penso que até aqui consegui expor algumas de minhas
compreensões sobre alteridade e dialogismo, elaboradas a partir de
estudos do Círculo. A reflexão mostra uma relação inseparável
entre esses conceitos, e entre eles e o conceito de discursos,
entendido como tecido de relações dialógicas materializadas em
textos por sujeitos contextual e ideologicamente situados. Na
próxima seção desenvolvo a discussão sobre discursos, na tentativa
de dizer minha compreensão a partir dos estudos bakhtinianos.
47
Discursos
48
Assumir o dialogismo como princípio de constituição humana
e da relação eu/outro significa conceber discursos como elementos
articuladores de práticas sociais de linguagem. Como fios de
relações dialógicas que tecem a teia dos encontros de sujeitos
sociais, históricos, ideológicos, matizados por diferentes valorações.
Nos discursos confrontam-se lutas ideológicas originadas no
movimento da história.
Os discursos vêm de alguém - tendo como gatilho um projeto
enunciativo a ser concretizado - e dirigem-se para alguém. Portanto,
sua matriz está nas relações dialógicas, vistas como relações de
sentido que se estabelecem entre e intra enunciados, unidades reais do
fluxo comunicativo, produtos de atos discursivos, pavimentados
em/por práticas socioculturais ideologicamente valoradas.
Para o Círculo, os sujeitos não se apropriam da linguagem de
modo passivo (seguindo modelos, por exemplo). Essa apropriação
ocorre a partir do momento em que são convocados a participar
ativamente do diálogo, que já se iniciou bem antes e em outro lugar,
e que, portanto, traz marcas de alhures. Tal compreensão me
permite afirmar que, no ato de escutar a voz de outrem, os sujeitos
escutam discursos. Nesse encontro, sentidos são postos em relação,
e outros sentidos podem emergir. Vale destacar que a referência
que faço a “encontros”, “escuta” e “diálogo”, embora possa
significar consenso, significa também dissenso, divergência,
conflito, indagação, refutação, resultando tanto em convergências
quanto em divergências de sentidos que vêm de diversas vozes da
vida social, situadas ideologicamente.
Entendo que a relação com o outro está na base dos sentidos.
Em vista disso, os discursos resultam da interação de vozes que, ao
se entrecruzarem, produzem enredamentos de sentidos. Com base
nessa afirmação, vejo que enunciados concretamente proferidos em
práticas sociais de linguagem carregam potências de sentidos
instituídas em relações dialógicas. Desse modo, sua compreensão
só é possível se levado em conta de onde vem e a quem se dirige.
Sentidos do enunciado dependem fundamentalmente da sua
instauração como discursos, como manifestações de linguagem de
49
alguém para outro alguém. Isso mostra que os discursos compõem
um complexo de entrecruzamentos enunciativos, de onde
emergem os enunciados, dando concretude a diferentes posições
manifestadas pelas vozes sociais que o constituem. Daí que o
estudo de textos, sob orientação dos escritos do Círculo, supõe
antes a análise dos processos interacionais, vistos como
movimentos vigorosos de produção de discursos por sujeitos social,
histórica e ideologicamente constituídos.
Cabe lembrar também que os enunciados concretos
efetivamente produzidos em campos de atividade humana são do
plano dos discursos, porque são do âmbito da enunciação e das
relações dialógicas. Se tomo o enunciado concreto como elemento
da cadeia da comunicação discursiva, conforme apontam os
estudos bakhtinianos, estudá-lo requer atenção às relações
dialógicas que o tecem, relações de sentidos que derivam de
tomadas de posições axiológicas por sujeitos, de responsividades
que lhe são intrínsecas.
À análise é imprescindível considerar a presença de sujeitos
histórico-sociais e a situação imediata e mais ampla, elementos que
inoculam potências de sentidos, de valores, de posições sociais para
dentro dos enunciados. Isso mostra que uma análise que se limita
apenas ao material verbal de um enunciado perde de vista o
acontecimento histórico que lhe deu existência. E mais, uma análise
feita nesses moldes, exclui a discussão sobre discursos, sobre relações
de sentido, cuja compreensão está ligada a tal acontecimento.
Conceber a linguagem em perspectiva enunciativa e discursiva inclui
fundamentalmente considerar alteridade, dialogismo e discursos
como elementos essenciais de processos enunciativos.
50
natureza constitutivamente social, dialógica, em suas conexões
com o contexto extraverbal, situacional, contextual, histórico-
cultural, afetado ideologicamente. A meu ver, essa compreensão é
extensível ao ensino escolar de língua portuguesa. A BNCC 3
respalda um ensino assim configurado, quando, por exemplo, na
seção 4.1, em que trata da área de linguagens, explicita que as
práticas sociais é que organizam, por meio da linguagem, as
atividades humanas:
3 Diferente das seções anteriores que compõem este capítulo, nesta farei citações
51
interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade,
nos distintos momentos de sua história” (BRASIL, 2018, p. 65, grifo nosso).
52
discursivo, como alteridade, dialogismo, discursos, enunciado,
enunciação, signo ideológico, ideologia, cultura etc., para uma
concepção que tem foco na enunciação vista como o aqui e agora, a
interação per si, a BNCC sinaliza para a “centralidade do texto como
unidade de trabalho” (BRASIL, 2018, p. 65), enfatizando a
necessidade de estabelecer relações entre os textos e seus contextos
de produção. Assim como não houve esclarecimentos sobre em que
consiste a perspectiva enunciativa e discursiva de linguagem,
também não se o fez em relação à definição de texto, para a BNCC.
Abordei a questão da concepção de linguagem verbalmente
assumida pela BNCC, para dizer que a não especificação abre a
possibilidade de atribuir a ela a definição do campo teórico
bakhtiniano. Em vez de deslizar para um ensino de língua
portuguesa pautado apenas no texto em si, posso enveredar para o
campo da linguagem em sua dimensão enunciativa e discursiva,
para a qual os sentidos dos enunciados não se compõem apenas
pelas formas linguísticas.
Para o trabalho com o texto em sala de aula, é produtivo o
entendimento de que os sujeitos são dialogicamente constituídos
pela alteridade, e que os textos que produzem também o são. Não
caberia, portanto, solicitar aos alunos que digam se há ou não
dialogicidade, porque esta é inerente a todo texto. Na leitura, por
exemplo, o que se pode desencadear são discussões a respeito de
como ela está materializada na superfície textual, ampliando-se a
escuta de vozes que as vozes expressas no texto atualizam.
Certamente isso impõe que o trabalho com a leitura compreenda
conhecer a dimensão histórica que originou o encontro de vozes no
texto e com o texto, o que permite considerar os efeitos da interação,
analisar os encontros de visões de mundo e de orientações
axiológicas, sempre situadas contextualmente.
Quando aborda as dimensões inter-relacionadas nas práticas
sociais de linguagem (seção 4.1.1) a BNCC propõe práticas de leitura,
escrita e oralidade que envolvem aspectos enunciativos. Em vista
disso, posso recorrer à perspectiva de gênero de discursos de
53
orientação bakhtiniana. A menção a seguir ilustra a possibilidade de
andar nessa vereda, quando, por exemplo, trata de “práticas leitoras”:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
54
facilmente percebidas, e há aquelas que de tão longínquas são
quase inaudíveis. Todavia estão lá, participando do diálogo. Nesse
sentido, é papel do ensino problematizar quais e como os discursos
são materializados nos textos, em razão do projeto enunciativo que
se propõem concretizar.
Como anunciei no início deste capítulo, meu objetivo foi dizer
minhas compreensões sobre os conceitos de alteridade, dialogismo
e discursos, elaboradas a partir de estudos do Círculo de Bakhtin.
Em seguida, refleti sobre a produtividade dessas compreensões
para o ensino de língua portuguesa, relacionando-as à perspectiva
enunciativa e discursiva de linguagem, verbalmente assumida na
BNCC. Finalizo esse capítulo, recorrendo às palavras de Geraldi
(2013), para quem Bakhtin “tudo ou nada diz aos educadores: os
educadores podem dizer muito com Bakhtin”. Tentei fazer aqui o
exercício de educadora, dizendo algumas coisas sobre o ensino
ancorada em estudos do Círculo de Bakhtin.
REFERÊNCIAS
55
GERALDI, J. W. O ensino de língua portuguesa e a Base Nacional
Comum Curricular. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 9, n. 17, p.
381-396, jul./dez. 2015.
VOLOCHÍNOV, V. N. Que é a linguagem? In: VOLOCHÍNOV, V.
N. A construção da enunciação e outros ensaios. Tradução de João
Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013 [1930].
p. 131-156.
56
A INTERAÇÃO DISCURSIVA
Sueli Gedoz
INTRODUÇÃO
57
Sendo a interação discursiva a realidade fundamental da
língua (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930]), a todo momento as
reflexões aqui apresentadas apontam para a necessidade de
observarmos a linguagem e a língua em seu caráter histórico,
dialógico e ideológico, conforme premissas definidas pelo Círculo.
58
perspectiva a respeito da linguagem humana. Isso quer dizer,
segundo Brait (2006), que Bakhtin não formalizou uma teoria para
a análise do discurso, mas deixou apontamentos que sugerem
encaminhamentos teóricos e metodológicos nessa acepção. A
Análise Dialógica do Discurso trabalha com uma recuperação dos
conceitos apresentados nos textos do Círculo, o que norteia os
estudos que tomam a linguagem em seu caráter social e histórico.
Nesse viés, o olhar estabelecido para o discurso, na
perspectiva dialógica, inclui verificar as práticas discursivas, a
enunciação concreta e a linguagem como constitutiva das relações
humanas. A Análise Dialógica do Discurso traz uma
responsabilidade social em sua ação, uma vez que volta a atenção
para questões ideológicas e sociais, constantemente presentes na
língua e na linguagem.
Não cabe ao tema deste capítulo tracejar os direcionamentos
teóricos e metodológicos da Análise Dialógica do Discurso, mas sim,
mostrar como conceitos basilares da teoria bakhtiniana são verificados
nessa perspectiva de análise. Um dos conceitos essenciais que permeia
toda a produção do Círculo de Bakhtin é a interação discursiva.
Contudo, para entender a definição atribuída a esse termo, é
necessário verificar o entrelaçamento da interação discursiva com os
conceitos de língua, linguagem, enunciado, enunciação e gêneros do
discurso, tarefa que apresentamos na sequência.
59
de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], grifo do autor).
Assim entendida, percebemos que a concepção de língua, nos
escritos do Círculo, é discursiva e, por isso, a língua não pode ser
separada dos seus falantes e dos seus atos, tampouco das esferas
sociais e dos valores ideológicos. Para Volóchinov (2017 [1929-
1930]), a língua, em seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo
ideológico ou relativo à vida, não podendo ser vista como um
sistema abstrato reduzido à forma e à estrutura. A língua é
resultante de um trabalho coletivo e histórico e reflete as relações
sociais “relativamente estáveis” dos falantes. Se reconhecermos o
caráter social da linguagem, precisamos entender que a língua
também é dialógica e interacional, já que o que falamos ou
escrevemos dirige-se a interlocutores concretos que também
estabelecem uma relação dialógica com o mundo e nosso
conhecimento se constrói nesse processo de interação discursiva.
Dessa forma, para Volóchinov (2017 [1929-1930]), a língua é
concreta, realizando-se nos atos de fala, na interação discursiva
efetiva entre seus usuários. A fala caracteriza-se, assim, como um
elemento do discurso e como um meio de produção de enunciados.
O enunciado é a forma utilizada pelas pessoas para interagirem.
Portanto, é tudo o que ouvimos e reproduzimos na interação
discursiva efetiva com as pessoas que nos rodeiam. Quando
produzimos um enunciado, estamos fazendo uso de uma linguagem
social, pertencente a um grupo social particular de falantes e nisso se
encontra o processo de interação. Bakhtin aponta que “O emprego
da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele
campo da atividade humana” (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 261).
No processo de interação discursiva, a enunciação acontece, na
prática, pelo uso dos diferentes gêneros discursivos elaborados em
cada campo de atividade, portanto, o enunciado é social e não
individual. Enuncia-se sempre para alguém, de um determinado
lugar ou de uma determinada posição sócio-histórica. Entendemos,
assim, que a enunciação leva em consideração o contexto de
60
produção do enunciado: onde, quem, quando, para quem e por que
foi produzido, além de todo o conhecimento sócio-histórico-
ideológico que envolve os interlocutores a quem se destina a
produção elaborada. A palavra dirige-se a um interlocutor
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930]) e está muito além da simples
decodificação, porque pressupõe uma relação dialógica com os
participantes da situação de interação.
Volóchinov (2017 [1929-1930]) afirma que a enunciação é um
fenômeno social entre quem emite a palavra e para quem ela é
emitida. Sendo assim, é na enunciação que a característica dialógica
da linguagem se efetiva, o que remete ao conceito que estamos
entrelaçando nesta discussão: a interação discursiva. Para o autor,
a língua só existe, de fato, onde houver comunicação, interação,
diálogo, e esse espaço de interação social é um espaço privilegiado
para a enunciação. Assim, “[...] a interação discursiva é a realidade
fundamental da língua” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 218),
e esta se materializa ou ganha forma nos gêneros discursivos.
Para exemplificar os conceitos verificados nesta seção,
recorremos a um enunciado do gênero tira:
61
reflexiva, o cotidiano de uma família moderna. O autor da tira é o
cartunista, ilustrador e publicitário Pedro Leite, que procura
mostrar, por meio desses quadrinhos, a personalidade não
convencional de cada personagem criado (LEITE, 2020). Essa
contextualização sobre a referida tira é um dos primeiros passos
para os estudos dialógicos. É importante ratificar que Volóchinov
defende a proposição de que os estudo da língua deve iniciar pelo
estudo do contexto social em que se efetuam suas múltiplas formas,
daí a importância do conhecimento sobre as condições de produção
do enunciado e o campo de circulação em que é veiculado.
A intenção de produção da tira relaciona-se ao caráter
dialógico e interacional da língua, uma vez que o cartunista Pedro
Leite, criador dos personagens Sofia e Otto, dirige-se a
interlocutores concretos e suas criações expostas no veículo
https://sofiaeotto2.blogspot.com/search/label/Leitura, indicam um
processo de enunciação. O conteúdo das tiras produzidas pelo
autor é a palavra que dirige-se a um interlocutor. Nesse caso, a
enunciação atende aos postulados indicados por Volóchinov (2017
[1929-1930]) pois, tomando-se como exemplo a palavra “amigo”,
verificada na linguagem verbal da tira, é perceptível a necessidade
de considerar a leitura como um processo que vai muito além da
simples decodificação, já que pressupõe uma relação dialógica com
os participantes da situação de interação. Ao interlocutor cabe
reconhecer os sentidos expressos pelo texto, que revelam um
contexto cultural, social e ideológico marcado na cena final da tira,
a qual considera os livros como amigos e companheiros da
personagem. O texto, assim entendido, situa-se na abordagem da
interação discursiva, tema que discutimos na sequência do
presente estudo.
A INTERAÇÃO DISCURSIVA
62
palavra procede de alguém e se dirige para alguém; toda palavra
“[...] serve de expressão ao ‘um’ em relação ao ‘outro’”
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 205). Essa noção está
associada à concepção que considera o caráter dialógico da
linguagem e a toma como uma forma de interação. Na produção
que elabora sobre a interação discursiva, Volóchinov defende que
o pensamento filosófico-linguístico não está no subjetivismo
individualista, o qual se fundamenta numa enunciação monológica
da língua e a entende como expressão do pensamento; tampouco
no objetivismo abstrato, que propõe um sistema abstrato de formas
linguísticas, desconsiderando a língua como um fato social. Para o
autor, a realidade efetiva da língua está no “[...] acontecimento
social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de
vários enunciados” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 218).
Partindo dos conceitos apresentados, é importante assumir a
ideia de interlocução que perpassa a produção de enunciados e que
leva à constatação de que a natureza dialógica da linguagem a
transforma num espaço de interação entre locutores e
interlocutores. Os enunciados são as unidades de interlocução,
sendo a simples produção de uma réplica, por exemplo, uma
produção de enunciado. Ao falar ou escrever, atendendo à situação
de interlocução em que se encontra, o sujeito deixa evidente as
relações sociais e históricas nas quais se insere.
Volóchinov, nas discussões que empreende acerca da
interação discursiva, mostra-nos que a palavra é um ato bilateral,
“[...] determinada tanto por aquele de quem procede quanto para
aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o
produto das inter-relações do falante com o ouvinte” (VOLÓCHINOV,
2017 [1929-1930], p. 205, grifo do autor). Nesse sentido, a
comunicação é vista como um processo interativo, que abrange
muito mais do que a simples transmissão de informações. A
linguagem é uma forma de interação social. E, nesse contexto, o
enunciado só é compreendido a partir de uma interação ativa entre
os sujeitos. É na atividade de interação discursiva, por meio da
63
consideração também dos aspectos extralinguísticos, que a palavra
ganha significado, dependendo do contexto em que se insere.
Sobral (2009) aponta que a concepção de interação proposta
pelo Círculo é radicalmente dialógica e para melhor explicar esse
caráter radical do conceito de interação, descreve-a em quatro
níveis integrados. Segundo o autor os níveis são apresentados “[...]
de acordo com seu grau de amplitude, seu grau crescente de
abrangência, que vai do contato, direto ou não, entre sujeitos, do
tipo particular de relação entre consciências individuais [...],
passando pelas instituições sociais e pelos elementos conjunturais
presentes à interação” (SOBRAL, 2009, p. 41).
O primeiro nível exposto pelo autor está relacionado ao
intercâmbio verbal realizado entre o aqui e o agora dos
interlocutores, referindo-se a um contato mais limitado, voltado à
interação realizada num espaço físico, envolvendo um contato
verbal direto ou indireto entre, pelo menos, dois sujeitos. Em
seguida aparece o nível do contexto imediato do intercâmbio social,
que atinge a imagem que se tem de locutores e interlocutores e seus
papéis sociais, sujeitos que não deixam de ser quem são, pessoas
com uma dada identidade e que manifestam essa identidade de
uma maneira específica, a depender do outro diante do qual estão
e da situação em que se encontram. Após isso, aparece o nível do
contexto social mediato que envolve esferas de atividade e os
participantes da interação, além de determinações conjunturais,
ambientes culturais específicos e as relações entre os grupos sociais
que os sujeitos ocupam. Por fim, há o nível do horizonte social e
histórico mais amplo, abrangendo a cultura em geral, relações entre
diferentes culturas, épocas, gerações (SOBRAL, 2009).
A divisão proposta por Sobral (2009) indica que, numa
amplitude gradual de abrangência, a interação discursiva vai muito
além do contato face a face, já que envolve locutores e
interlocutores social e historicamente constituídos, além das
instituições e relações a que pertencem. Bakhtin (2011, p. 293)
afirma que “Viver significa tomar parte do diálogo: fazer perguntas,
das respostas, dar atenção, responder, estar de acordo e assim por
64
diante”. Nisso se ancora a interação discursiva, mostrando-se
também como um ato responsivo, que considera os sujeitos e as
relações que estabelecem com a linguagem e com a língua em seu
caráter social, histórico, cotidiano, carregado de ideologia.
65
enunciação monológica da língua, no ato puramente individual
como uma expressão da consciência.
No espaço escolar, ao tomar linguagem como expressão do
pensamento, a interação discursiva é praticamente desconsiderada.
O que se observa é um trabalho primordial com a gramática
normativa e, por consequência, os problemas ortográficos e as
questões gramaticais são os aspectos mais observados nas
atividades orais e escritas. O olhar que se estabelece ao texto
independe do contexto de produção e circulação e a língua tem a
função de exteriorizar o pensamento, gráfica ou fonicamente. Nas
atividades de leitura prevalece a extração de sentidos fixados pelo
autor do texto, configurando-se, principalmente, como
decodificação dos sinais linguísticos. A produção escrita está
condicionada às regras impostas pela gramática tradicional. O
processo dialógico de interlocução na oralidade não existe e as
variedades linguísticas (além da variedade padrão) não são
consideradas, pois a variedade padrão é soberana. Isso tudo resulta
num panorama que desconsidera o aspecto social e dialógico da
linguagem e, consequentemente, a interação discursiva é pouco
apreciada nas relações estabelecidas na aprendizagem.
A outra vertente indicada por Volóchinov (2017 [1929-1930])
refere-se ao objetivismo abstrato. Essa orientação, que tem influência
de Saussure, também relega o aspecto social da língua, propondo esta
como um objeto abstrato e ideal que rejeita as manifestações orais
individuais. Para os pensadores do Círculo de Bakhtin, os adeptos a
essa orientação teórica consideram o sistema linguístico (das formas
fonéticas, gramaticais e lexicais) como o centro organizador de todos
os fatos da língua. Dessa forma, o objetivismo abstrato não
compreende a natureza social da linguagem, deduz que o conteúdo
ideológico pode ser extraído das condições do psiquismo individual e
considera a enunciação como monológica.
Associando o objetivismo abstrato às concepções de
linguagem, temos então a linguagem concebida como um
instrumento de comunicação (GERALDI, 1984) e a língua
entendida como um conjunto de signos que se combinam para
66
estabelecer a comunicação, sendo esta, realizada por meio de
mensagens de um emissor a um receptor, ambos isolados social e
historicamente. Nesse âmbito, a interação discursiva é rasa. Em
termos de ensino escolar, nessa perspectiva, o ensino prescritivo da
língua, orientado tanto pela gramática normativa quanto descritiva,
prioriza modelos ideais de construções linguísticas, os quais devem
ser imitados e seguidos. O que se observa é um estudo da língua de
maneira isolada do seu uso, sem examinar os interlocutores, a
situação comunicativa e o momento histórico, desconsiderando,
assim, a interação discursiva. A noção de leitura que se estabelece
nessa concepção está voltada à interpretação do código usado na
comunicação, sendo este um produto representado por signos
linguísticos produzidos por um emissor a serem decodificados por
um receptor. A produção de textos pauta-se em imitação de
tipologias narrativas, descritivas e dissertativas, e a oralidade ainda
é pouco considerada, assim como as variedades linguísticas que
não atendem ao padrão formal da língua. Isso tudo dificulta a
interlocução, o ato responsivo, a produção de enunciados concretos
e faz com que a interação discursiva, mais uma vez, seja
praticamente anulada na prática escolar.
Numa crítica que estabelece a essas vertentes, Volóchinov
(2017 [1929-1930]) esclarece que o centro organizador de qualquer
enunciado não está no interior, mas no exterior, no meio social que
circunda o sujeito e “Na realidade, o ato de fala, ou, mais
exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma
ser considerado como individual no sentido estrito do termo [...]. A
enunciação é de natureza social” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-
1930]), p. 109). Essas palavras do autor mostram a importância da
enunciação e apontam que as vertentes do subjetivismo
individualista e do objetivismo abstrato não alcançam o verdadeiro
núcleo da realidade linguística, a interação discursiva. Ao trabalhar
com a interação, o autor traz crítica às concepções anteriores e
propõe um olhar dialógico sobre a linguagem. O pensador russo
não nega a estrutura da língua, mas afirma que ela deve ser
estudada e entendida em enunciados concretos.
67
Para Volóchinov (2017 [1929-1930]), a linguagem é um ato
social que se realiza e se modifica nas relações sociais e é, ao mesmo
tempo, meio para a interação humana e resultado dessa interação,
já que seus sentidos não podem ser desvinculados do contexto de
produção. A linguagem é, portanto, de natureza socioideológica. O
autor confirma, assim, na teoria que elabora, o caráter histórico e
dialógico da linguagem. O signo linguístico é visto, como um
elemento de natureza ideológica. Quando isolado, o signo não
possui valor em si mesmo. Sua contextualização é o que lhe dá uma
significação. Esse direcionamento nos remete a uma terceira
concepção, a que toma a linguagem como forma de interação
(GERALDI, 1984). Tal concepção mostra a linguagem como social,
resultado de uma construção coletiva e de processos de interação
discursiva. A enunciação ganha espaço, fortalecendo a ideia de que
nenhuma palavra é neutra, visto que locutores e interlocutores
atribuem-lhe sentidos, mostrando que “[...] a palavra é o território
comum entre o falante e o interlocutor” (VOLÓCHINOV, 2017
[1929-1930], p. 205). Sendo a enunciação de natureza social, a língua
passa a ser entendida não apenas para comunicar, mas sim, para
estabelecer a interação discursiva.
Em termos de atividades escolares com a língua e a linguagem,
ao considerar a linguagem como forma de interação, a própria
interação discursiva é fortalecida. Temos, então, uma preocupação
com a gramática internalizada, presente nos textos usados para
situações sociais de interação, sendo os textos considerados a partir
dos gêneros do discurso. A leitura se realiza numa dimensão
dialógica, por meio da exploração de contextos sociais, históricos e
ideológicos, e os sentidos do texto também são produzidos por
meio das condições de recepção. O leitor/ouvinte não é um sujeito
passivo, que apenas recebe a mensagem, mas sim, um interlocutor,
cuja resposta ativa é carregada de valoração, demonstrando assim
a interação discursiva. Atendendo à necessidade de interagir, a
produção textual é vista como um trabalho de interlocução,
realizado a partir de uma finalidade e de interlocutores definidos.
A prática da oralidade é considerada no mesmo nível da produção
68
escrita, mostrando a importância de observar os contextos de uso,
o que remete também à atenção estendida ao trabalho com as
variedades linguísticas na escola, as quais passam a ser
consideradas e estudadas conforme a circunstância de realização.
Seguindo a exemplificação apresentada em outra seção do
presente estudo, apontamos mais uma tira dos personagens Sofia e
Otto para verificar os conceitos supracitados acerca da concepção
de linguagem como forma de interação:
69
discursiva entre autor, texto e o leitor ativo. Além desses enfoques,
levando em conta a língua em situações de uso, os aspectos
notacionais indicados pela pontuação também poderiam ser
explorados, tanto na entonação pretendida com o uso do advérbio
de negação (nos três primeiros quadrinhos), como também na
separação do vocativo, no último balão. Toda essa abordagem
realizada a partir da tira de Pedro Leite demonstraria uma
contextualização de conteúdos de ensino com usos reais da língua,
o que reitera a proposição de trabalhar a linguagem na perspectiva
da interação e também o conceito basilar de interação discursiva
proposto pelo Círculo de Bakhtin.
Desse modo, o panorama aqui apresentado ratifica a
necessidade de um trabalho, na escola, planejado a partir da
interação discursiva. No contexto atual, a concepção de linguagem
como forma de interação prioriza o âmbito social de produção e de
circulação de enunciados e evoca a necessidade de situar o eu e o
outro no processo de interlocução. Esse pressuposto deve ser
mantido para que as práticas discursivas, realizadas com a língua
e a linguagem no ambiente escolar, contemplem o aspecto
dialógico e social que a interação discursiva necessita.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
70
Dos postulados apresentados, é possível verificar que
Volóchinov (2017 [1929-1930]) coloca a linguagem no centro das
relações dialógicas e assim desconstrói a ideia de sujeito idealista e
de enunciação monológica ao defender a natureza social e dialógica
da língua, mostrando que o sujeito se constitui a partir das
interações com e na linguagem.
Desse modo, a interação discursiva é realizada considerando
sentidos criados a partir da situação de enunciação, do contexto
histórico e social de interlocução, das condições de produção e dos
papéis sociais que os locutores e interlocutores desempenham. Isso
demonstra, conforme os estudos do Círculo, que a interação
discursiva acontece além dos aspectos linguísticos, pois considera
as condições de produção do discurso, uma vez que a língua evolui
historicamente na comunicação verbal concreta e não no sistema
abstrato das formas da língua, nem no psiquismo individual dos
falantes (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930]).
A concepção de linguagem exposta e defendida pelo Círculo,
entendida como forma de interação nos estudos de Geraldi (1984),
mostra que a linguagem não é neutra e realiza-se no diálogo
constante que considera o eu e o outro como sujeitos sociais,
históricos e ideologicamente situados. No campo escolar, quando a
linguagem é assim percebida, as práticas discursivas ancoram-se
na interação discursiva, o que promove um entendimento maior da
língua, tornando-a significativa, vista em sua totalidade e integrada
à vida humana.
Antes de tentar esgotar as discussões sobre a interação
discursiva, este capítulo instiga a busca por mais definições teórico-
metodológicas advindas do pensamento do Círculo de Bakhtin. As
novas traduções dos escritos do Círculo apontam a necessidade do
diálogo constante sobre os conceitos intensamente já estudados.
Olhar para a linguagem no contexto escolar e tentar estabelecer
relações com os pressupostos bakhtinianos é um desafio que ainda
sustenta muitas novas pesquisas.
71
REFERÊNCIAS
72
CRONOTOPO:
MUITO ALÉM DO TEMPO E DO ESPAÇO
INTRODUÇÃO
73
para então expressarmos a nossa própria palavra. Pois “os trabalhos
de pesquisadores, nacionais e estrangeiros, resultam em leituras e
interpretações que situam as categorias, os conceitos e as noções
advindas do pensamento bakhtiniano dentro do contexto
epistemológico e cultural que os originou.” (BRAIT, 2012 [2006], p. 15).
Pensemos na ideia de movimento, uma vez que, para Bakhtin, a
todo o momento uma gama de sentidos se coloca em movimento
durante os processos de interação humana. A própria pesquisa
empreendida por seus contemporâneos coloca a palavra em
circulação, sempre ansiando por atos responsivos. Movimentam-se
palavras, imagens, signos ideológicos na relação de um eu e o outro.
• E onde se movimentam?
• Em que espaço(s)?
• Quando/como esse movimento ocorre?
• Em que as categorias de tempo e de espaço influem para a compreensão dos
acontecimentos da vida humana?
74
Círculo, no qual se situa a Análise Dialógica do Discurso (ADD),
cunhagem brasileira que designa um campo de estudo discursivo
que traz ecos, reverberações dos escritos de Bakhtin e do Círculo.
75
Este é o primeiro apontamento para a nossa reflexão: a natureza discursiva do
cronotopo que não pode ser assumida apenas de forma empírica.
A gente está rodeado de ideologia por todos os lados, e é dentro dela que a
gente consegue pensar, não é fora dela, é dentro dela. [...] qualquer
pedacinho de realidade que você habitar, ela já está habitada. Quando você
quer botar um sentido numa palavra, você olha dentro dela, já tem milhares
que estão lá”(MIOTELLO, 2018, p. 50).
76
impressa, vislumbrar a concepção de mundo que o permeia,
desnudar uma concepção do próprio homem.
Antes de prosseguirmos, faz-se necessário, para esta reflexão,
sistematizarmos algumas observações:
77
Esse todo concreto, considerando-se o campo artístico-literário,
constitui-se na visibilidade proporcionada por meio de obras
artísticas e literárias. Observar as cenas de um filme ou de um
romance, acompanhar as ações, diálogos das personagens, locais
dos eventos, transformações ao longo do tempo nos permite
concretizar essa relação espaço-temporal que se mostra de uma
forma mais condensada e visível do que na vida real. Nas palavras
de Rufo (2014, p. 58), “o tempo, quando se trata de olhar para
nossas próprias vidas, parece tão lento e imutável [...]. No entanto,
o tempo parece tão palpável quando estamos assistindo um filme
ou lendo um livro.”
E, embora entretecidas num todo, a categoria tempo é o
elemento privilegiado, compreendido como o princípio condutor
em uma configuração cronotópica, como ressaltou o próprio
Bakhtin (2018 [1975], p. 15): “em todas as análises que se seguem,
concentraremos nossa atenção no problema do tempo (princípio
primeiro do cronotopos)”. Passamos a analisar melhor essa questão
de tempo em sua condução e constituição do espaço e do próprio
espaço entranhado no campo de mudanças, transformações e
movimento orquestrados pelo tempo.
78
1937-1938, expõe ter concebido o conceito como uma espécie de
metáfora advinda do termo utilizado pelo campo das Ciências,
contudo, ao transferir a ideia para o campo dos estudos literários,
evidenciou a importância dessa inseparabilidade espaço-tempo e
do equilíbrio entre essas duas dimensões. Propôs, assim, a fusão
das questões espaciais e temporais em um todo concreto, um
encontro entre aquele lugar, naquele tempo de um acontecimento
e desenrolar das ações, como aponta Amorin:
O que nos importa, pois, é o seguinte: sejam quais forem esses sentidos, para
que integrem a nossa experiência (e além disso, a experiência social), eles
devem ganhar alguma expressão espaçotemporal, ou seja, uma forma
sígnica que possamos ouvir e ver (um hieróglifo, uma fórmula matemática,
uma expressão linguístico-verbal, um desenho, etc.) [...] Consequentemente,
qualquer entrada no campo dos sentidos só se concretiza pela porta dos
cronotopos (BAKHTIN, 2018 [1975], p. 236).
79
Embora os escritos bakhtinianos tenham aprofundado a
questão a partir do gênero romance, suas palavras sugerem novas
possibilidades, nas quais “qualquer entrada no campo dos sentidos”
passa, necessariamente, pela porta deste conceito: cronotopo.
A título de exemplificar a possibilidade de análise da
dimensão cronotópica em outros campos de atividade, propomos
continuar este diálogo cotejando tais construtos teóricos a duas
manchetes publicadas recentemente, neste ano (2022), no site de
notícias da UOL. Ambas advindas da subseção Blogs e Colunas,
quais sejam:
Figura 1 – Texto-enunciado 1
Figura 2 – Texto-enunciado 2
80
discursivo) que permeiam o momento sócio-histórico do período
eleitoral brasileiro no ano de 2022, quanto à disputa da presidência
do país, com duas vertentes políticas (prenhes de questões
ideológicas, valorativas, axiológicas, históricas e sociais) bem
demarcadas: alianças partidárias de direita e de esquerda,
divergindo na preferência e atos responsivos do eleitorado. Esse
cronotopo denota uma “matriz espaço-temporal coletiva” na qual
“várias histórias se contam ou se escrevem”. Os
locutores/jornalistas (papel social assumido) retomam discursos
ligados aos partidos e candidatos daquele momento histórico-
social, para uma representação do real.
Ambos valem-se do mesmo recurso estilístico e linguístico
quanto ao uso dos verbos: intercalar a expressão verbal em dois
modos verbais distintos, mas que se complementam no enunciado. O
modo indicativo no tempo presente com as formas verbais “mostra”
e “usa”, modalidade recorrente para indicar ações verbais concebidas
como reais ou certas de realização; e o infinitivo dos verbos
selecionados para sua composição semântica, “defender vender” e
“esconder” como estratégia argumentativa para seu ponto de vista,
uma vez que o uso do infinitivo pode indicar significado declarativo,
com sentido imperativo e/ou ainda ser usado como verbo causativo,
exprimindo ação que leva a uma consequência.
No entanto, os pontos de vista revelados ao utilizar esses
elementos linguísticos e descrever certas ações de diferentes
sujeitos sociais citados no enunciado, denotam e/ou suscitam
posicionamentos antagônicos, ou, ao menos, diversos. O tempo e
espaço discursivos presentes para a compreensão desses
enunciados desvelam concepção de mundo, de sujeito histórico
social, de homem. Parte-se do real, dos discursos das
personalidades ali mencionadas, mas (re)enunciados por outrem,
materializados em outro gênero, em novo contexto de produção.
Há o retomar da palavra alheia, tornando-a palavra própria,
provavelmente com uma entonação distinta, abrindo-se às palavras
dos próprios interlocutores, que podem demonstrar interesse pela
manchete e procurar ler o texto-enunciado completo, endossando
81
ou refutando as relações ideológicas oriundas do tempo-espaço
que as suscitaram.
Trata-se de nossa compreensão leitora, como ato responsivo,
partícipe da arena de discursos e vozes que povoam o enunciado
assentado sobre um cronotopo – espaço e tempo discursivo - que
possibilitou a seleção quase natural desse gênero para sua
materialização. Os gêneros da esfera jornalística, em virtude de sua
potencialidade e relativa tipificação, favorecem suscitar e desvelar
posicionamentos valorativos/axiológicos, além de refletirem e
refratarem concepções da própria sociedade. Como se viu
anteriormente, o discurso ali emoldurado encontra-se entretecido
de relações dialógicas que respondem a questões de ordens
ideológica, axiológica, valorativa, as quais advêm dos espaços
sociais e condições históricas em que foram produzidas,
atravessadas por determinado cronotopo.
Não se limita apenas ao espaço físico/geográfico – Brasil – e ao
tempo cronológico – meses/semanas que antecedem período
eleitoral, pois há “o posto de observação” de quem produziu esse
enunciado, as concepções de homem e de sociedade mobilizadoras
da escolha do gênero, do léxico e de elementos linguísticos,
discursivos e textuais. Por exemplo, a utilização da expressão “o
seu Brasil”, como constituinte de espaço(s) outro(s): o Brasil de
Guedes, o do locutor, além do Brasil dos seus possíveis
interlocutores. Um espaço discursivo, que denota a luta de classes,
a divisão entre os diferentes “Brasis” incrustrados em um único
país, ao considerarmos a sua demarcação física e geográfica. “Se a
sociedade é dividida em grupos sociais, com interesses divergentes,
então os enunciados são sempre o espaço de luta entre vozes sociais,
o que significa que são inevitavelmente o lugar da contradição”
(FIORIN, 2016, p. 28).
A(s) ideologia(s) que permeiam o momento sócio-histórico, a
potencialidade adquirida pelos discursos emoldurados em gêneros
da esfera jornalística-midiática nesse cronotopo de período
eleitoral, a fusão tempo-espaço real e discursivo emaranhados em
um todo concreto (visível) - o enunciado, as marcas de dizer do
82
gênero e de seu campo de atividade, as diferentes vozes dessa
matriz coletiva social, a mobilização de palavras como signos
ideológicos e atos responsivos é que constituem a cronotopia.
No entanto, podemos considerar que no interior desse grande
cronotopo – espaço-tempo discursivo do período eleitoral
brasileiro 2022 – convivem pequenos cronotopos que se somam ou
debatem entre si, o cronotopo do eu autor, do eu social
(jornalista/colunista que representa a voz de determinado jornal),
do eu personalidade que proferiu seu discurso em um dado
cronotopo sendo este retomado na manchete, em outra expressão
cronotópica; além dos cronotopos da esfera política, de
posicionamento de direita ou de esquerda, e, por fim, do eu de cada
leitor que, ao auscultar a palavra alheia, expressa sua palavra, de
“seu posto de observação”.
Em síntese, cada cronotopo pode ainda conter outros cronotopos,
pois segundo Bakhtin, “os cronotopos podem se incorporar um ao
outro, coexistir, entrelaçar-se, permutar-se, confrontar-se, contrapor-
se ou encontrar-se em inter-relações mais complexas” (BAKHTIN,
2018 [1975], p. 229). Nessas inter-relações há o cronotopo “dominante”,
como se tivéssemos um grande cronotopo e pequenos ou
minicronotopos. O que ratifica o caráter dessas relações é o dialogismo,
conforme preceito bakhtiniano.
Esses mesmos enunciados, exemplificados anteriormente, se
retomados pelo leitor/interlocutor em outro momento de sua
existência, já não constituirão o mesmo evento e poderão suscitar
outras compreensões e outros atos responsivos, pois haverá uma
avaliação das circunstâncias. O que justifica a importância de
identificarmos o cronotopo predominante ou desencadeador de
cada enunciado em uma análise discursiva, tanto em práticas de
leitura, produção, como de análise linguística.
Assim, há necessidade de compreensão das
imagens/estratégias cronotópicas no próprio lócus ao qual
pertencem os textos-enunciados, nos diferentes gêneros que
refletem e refratam aspectos culturais e sociais do próprio campo
de atividade humana.
83
A CRONOTOPIA NA OBRA CINEMATOGRÁFICA: ESPAÇOS
(RE)SIGNFICADOS PELO TEMPO
84
Quadro 1 – Ficha Técnica do filme O Festival dos Trovadores (2022), da Netflix
85
ambientação das paisagens e condições climáticas que constituem
o “cenário” da obra.
Essa produção constitui possibilidades de reflexões críticas
sobre o tema tratado, sobre a construção da personagem, aspectos
ideológicos e da própria concepção de mundo que vão sendo
reveladas durante a experiência na estrada, ao longo de uma
temporalidade marcada pela própria viagem.
Embora as ações da trama desencadeiem-se no âmbito da
estrada, o início do filme se dá em outros espaços-tempos, os quais,
como minicronotopos, serão articulados aos grandes cronotopos da
Estrada e do Encontro. Referimo-nos à cena inicial protagonizada
por um jovem pai e um garoto (filho) em alegre passeio por cenário
composto pelas ruas e espaços comerciais de uma pequena cidade,
quadro que se encerra com a eternização desses momentos entre
pai e filho em um retrato.
O retrato parece “congelar” aquele tempo-espaço e a cena
sequencial do filme apresenta um encontro inesperado entre dois
homens adultos, um idoso e um jovem, em outro espaço-tempo,
engendrada no interior de um apartamento. Aos poucos, percebe-
se que se tratam dos mesmos personagens, mas em um hiato
temporal de 21 anos.
É nesse ponto que a produção, por meio dos diálogos ambíguos,
entrecortados por graves silêncios e memórias antigas retomadas em
breves flashbacks, enreda acontecimentos passados, presentes, e
antecipa o futuro da personagem do pai idoso, valendo-se dessas
estratégias discursivas para propor um verdadeiro emaranhado das
experiências subjetivas de seus personagens protagonistas.
Subjetividade ressaltada no aspecto dialógico manifestado nas vozes
e discursos dos personagens, demonstrando que o dialogismo se
constitui nas “relações entre sujeitos - relações personalistas: relações
dialógicas entre enunciados, [...] As relações entre consciências,
verdades, influências mútuas, o amor, o ódio, a mentira [...]”
(BAKHTIN, 2015 [1979], p. 374).
Ao selecionarmos como unidade de análise o texto enunciado
materializado em uma produção cinematográfica, acolhemos o
86
contexto das multissemioses, o qual já constitui, em si, um
ambiente dialógico. Nessa perspectiva, concentramo-nos nas
diferentes linguagens deste gênero discursivo que emoldura o
texto enunciado (filme), em suas imagens, fotografia, para que
permitam visualizarmos em suas dimensões social e verbo-visual,
a importância da relação tempo-espaço sobre a qual se assenta o
projeto de dizer, as ideologias e valorações que emergem das
situações de interação.
87
Figura 3 – Percurso da estrada1
88
paralisa o tempo-espaço aberto à amplitude exterior da estrada,
representado nas belas paisagens que se sucedem (sem uma função
mais densa na trama), e demarcam a mudança de uma localidade a
outra. Entretanto, no carro, o tempo se condensa, o drama continua
o mesmo, a temporalidade não “caminha” tão rápido como as
mudanças de locais e de paisagens da estrada.
89
da janela do automóvel, ou seja, a partir de seus próprios
posicionamentos e valores axiológicos.
Do interior do veículo, envolvidos em seu próprio universo,
encontram, a cada parada da estrada, com outros personagens,
novas localidades, novas culturas, novas paisagens. De seu próprio
posto de observação, abrem-se ao encontro do outro, ao mesmo
tempo em que se preservam do exterior, protegem sua visão da
vida – relutam em mudar de perspectiva, como tão bem reflete o
cronotopo reservado/privado do carro.
Durante o trajeto, as personagens aparentam certa
imobilidade, como se desde o início da trama estivessem prontas,
imutáveis, protegidas em suas próprias armaduras contra qualquer
traço de transformação. O enredo seria constituído, assim, apenas
pelos movimentos da vida, retomando aspectos herdados de certos
gêneros romanescos tradicionais descritos por Bakhtin e ainda
muito utilizados na denominada “literatura de massa”.
No entanto, aos poucos, o filme desconstrói essa lógica
aparente, ao adensar os diálogos empreendidos ao longo da
viagem, que promovem a alteração, a mudança. Os diálogos
constituem a verdadeira ação dramática. Conforme Amorin (2012
[2006], p. 107), em filmes como esse “o que importa é o diálogo que
pode ocorrer dentro dele. Diálogo no sentido bakhtiniano que não
tem nada de harmônico e que é muito mais uma arena, [...] mas
também um profundo entendimento.”
Tanto a Estrada quanto o Carro constituem a forte cronotopia
do filme, perpassados pelo cronotopo do Encontro. O carro indica
o local onde se desenrola a ação principal, o(s) (des)encontro(s)
entre as personagens, no qual se travam os diálogos profundos que
adquirem vital importância para o enredo. “Nos cronotopos atam-
se e desatam-se os nós do enredo. Pode-se dizer francamente que
pertence a eles o significado basilar gerador do enredo” (BAKHTIN,
2018 [1975], p. 226).
O espaço da estrada revela uma ampla e diversificada
geografia, focalizada de “passagem”. Há belíssimas paisagens,
vilarejos, animais no campo correndo livres, revoadas de pássaros,
90
em contraposição às personagens “presas” no carro, atadas a seus
próprios dramas e feridas, desvelados em palavras poucas, em
extensos silêncios.
A construção das imagens, como elemento do estilo do gênero,
é algo muito intenso nesse enunciado. A imagem de uma longa
estrada (Figura 3), da qual não se avista início, nem fim, sinuosa,
recortada por vilarejos nos quais figuram casas simples, antigas e
gente hospitaleira, ou emoldurada por belas paisagens em campos
solitários.
91
jovem pai com seu pequeno filho e o (re)encontro de um pai idoso
e seu filho adulto, constituído na viagem rumo ao Festival de
Trovadores. O que ocorre entre o marco inicial e o final não mudará
concretamente a história, mas, certamente, alterará os sujeitos.
O tempo-espaço é discursivo, pois o enredo pode se passar em
qualquer tempo, em qualquer estrada. Tempo e espaço reunidos na
estrada, no carro, entrecortados por cenas vividas em pequenos
cronotopos: do apartamento, dos vilarejos, do cemitério, do
hospital, do lago, do Festival. Carro e estrada unindo tempo e
espaço, no cronotopo do filme.
92
indecisão, do medo de ultrapassar o limiar) que muda a vida”
(BAKHTIN, 2018 [1975], p. 224). A Figura 4 nos remete a esse
momento, à cena do limiar.
Filho: Me trouxe aqui quando eu era pequeno. [...] Parou às margens desse
lago. Lembra? Para mim isso tudo era um grande e infinito oceano. Agora
tem menos água, acabando como o nosso tempo...
93
Pai: Acabando como o nosso tempo...a água está acabando como o nosso
tempo. Quando acabar não dá para recuperar.
94
A arquitetônica do filme apresenta-se constituída em dois
espaços principais: o carro e a estrada. Tal divisão tem razão de ser,
erigindo-se como marca discursiva da passagem temporal na obra,
e delimitando a visão particular do filho sobre seu pai, em seu
contexto privado, familiar (carro) e a visão de outros, no contexto
social em que o personagem (pai) assume outros papéis: músico,
amigo, amante (paradas na estrada).
É como se cada trecho percorrido da estrada constituísse um
minicronotopo inserido no grande cronotopo da Estrada, além de
revelar tempos narrativos distantes cronologicamente, vivenciados
ao longo dos anos. Os grandes cronotopos Carro/Estrada
possibilitam vislumbrar perspectivas diferentes sobre as cenas e
constituição das personagens, articulando-se aos minicronotopos
de cada parada na estrada, permeados pelo cronotopo do Encontro.
Confirmam-se assim os pressupostos bakhtinianos de que “no
âmbito de uma única obra e nos limites da criação de um autor,
observamos uma infinidade de cronotopos e relações recíprocas
complexas [...] um desses cronotopos costuma ser abrangente ou
dominante” (BAKHTIN, 2018 [1979], p. 229).
Essas estratégias empregadas pelo cineasta são perceptíveis
desde a construção metafórica do espaço, via elaboração do
microcosmo ficcional do carro/estrada que articula tempo-espaço,
até a passagem tempo metaforizada no deslocamento do carro em
trânsito e na contemplação das águas do lago.
95
Gêneros estes advindos de diferentes campos de atividade
humana; trazem, em si, orientações em relação ao tempo e ao
espaço, como corporificação/materialização regida por
determinadas condições sociais, culturais e históricas, mediando a
interação entre os interlocutores, além de confirmar a importância
de compreender e considerar a cronotopia na abordagem dialógica
dos gêneros do discurso e da língua(gem) no processo de ensino e
aprendizagem em LP, para o desenvolvimento das práticas da
oralidade, leitura e análise linguística. Tal compreensão só tem a
contribuir para a formação de sujeitos responsivos.
96
humana: as manchetes oriundas da esfera jornalística-midiática e
uma produção cinematográfica, elegendo a concepção de
cronotopo como uma possível categoria de análise.
A partir desses enunciados, que tornaram visíveis e concretas
as relações espaço-temporais, buscamos um percurso possível de
leitura, além de articular breves apontamentos para análise
linguística ao assumir a identificação de suas configurações
cronotópicas, como porta de entrada para a significação.
Procuramos asseverar o como esse conceito funde-se ao tema, ao
estilo e à construção composicional do próprio gênero, no intuito
de reconstruir o tempo real em sua relação com o tempo
representado e, nessa intersecção, construir os sentidos que possam
gerar responsividade. A palavra dirige-se em função do outro, das
relações dialógicas com um interlocutor real (físico) ou um
interlocutor virtual (presumido), em circunstâncias específicas,
tendo o cronotopo como integrante do discurso e não como mero
pano de fundo.
Com a análise da configuração cronotópica do filme Festival
dos Trovadores procuramos evidenciar que a ideologia, os
posicionamentos sociais e históricos dos sujeitos se fazem sentir
com intensidade não apenas na modalidade da linguagem verbal,
mas nas diferentes linguagens, em um emaranhado de imagens,
atuação dramática, cores, sons, movimentos e perspectivas.
97
sentidos e os próprios textos-enunciados são sempre construções
humanas, “os visíveis indícios complexos do tempo histórico, na
verdadeira acepção do sentido, são vestígios visíveis da criação do
homem, vestígios visíveis de suas mãos e da sua inteligência”
(BAKHTIN, 2015 [1979], p. 225).
Acreditamos que esta breve análise dos textos-enunciados,
apresentada neste capítulo, à reflexão acerca da importância de
compreender e assumir uma concepção dialógica e discursiva da
linguagem no exercício da docência em LP.
REFERÊNCIAS
98
FRANCO, N.; ACOSTA-PEREIRA, R.; COSTA-HÜBES, T. C. (org.)
Estudos dialógicos da linguagem: reflexões teórico-metodológicas.
Campinas: Pontes Editores, 2019.
MIOTELLO, V. Por uma escuta responsiva: a alteridade como ponto
de partida. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
O FESTIVAL dos Trovadores. Direção de Özcan Alper. Turquia:
Netflix. 2022. Serviço de Streaming por assinatura.
PONZIO, A. O cronótopo na obra de Bakhtin. In: GRUPO de
Estudos dos Gêneros do Discurso-GEGE-UFSCAR. Palavras e
contrapalavras: circulando pensares do Círculo de Bakhtin. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2013. p. 13-48.
RUFO, A. D. Somos heróis de nossas próprias jornadas. In: GRUPO
de Estudos dos Gêneros do Discurso-GEGE-UFSCAR. Palavras e
contrapalavras: constituindo o sujeito em alter-ação. São Carlos:
Pedro & João Editores, 2014. p. 58-61.
SAKAMOTO, L. Ao defender vender praia a rico, Guedes mostra
lugar do pobre no seu Brasil. UOL, [S. l.], 29 set. 2022. Disponível
em: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2022/
09/29/guedes-mostra-lugar-de-pobre-no-seu-brasil-ao-defender-
vender-praia-a-ricos.htm. Acesso em: 29 set. 2022.
SOUZA, J. Lula usa adesão ao voto útil como álibi para esconder
planos. UOL, [S. l.], 29 set. 2022. Disponível em: https://noticias.
uol.com.br/eleicoes/2022/09/29/josias-lula-usa-adesao-ao-voto-util-
como-alibi-para-esconder-planos.htm Acesso em: 29 set. 2022.
SPILER, W. ‘O Festival dos Trovadores’ emociona sem ser
apelativo. [S. l.]: Ultraverso, 2020. Disponível em: https://
www.ultraverso.com.br/o-festival-dos-trovadores-critica-do-
filme-da-netflix/. Acesso em: 02 out. 2022.
99
100
IDEOLOGIA, SIGNO SOCIAL E
SIGNO IDEOLÓGICO
PALAVRAS INICIAIS
1 Ao trazermos a discussão deste autor para este trabalho, optamos por preservar
a grafia de seu nome, de acordo com aquilo que apresenta cada uma das editoras
que divulgam as obras. Entretanto, ao referirmo-nos a ele de forma geral,
optaremos pela grafia “Valentin Volochínov”, tal como apresentam Sheila Grillo
e Ekaterina Américo Vólkova em suas traduções para a Editora 34. Justificamos
tal escolha em virtude de os trabalhos das autoras tomarem os originais em russo
para a tradução, não desmerecendo, contudo, as demais traduções que advêm de
línguas como o espanhol, francês, inglês e italiano.
101
de pensamento muito parecida com a de Volóchinov, apresenta
considerações daquilo que considera uma “ciência das ideologias”.
Por se tratar de uma discussão voltada para a formação de
professores da educação básica, ao longo do texto, apresentaremos
algumas discussões em relação à sala de aula e aos documentos
oficiais que dão suporte à educação brasileira, especialmente no
que tange à formação linguística em língua materna.
Desse modo, portanto, pautamo-nos nas discussões advindas
dos autores do Círculo de Bakhtin, especialmente as discussões em
Volóchinov (2013 [1930]), Volochínov (2017 [1929-1930]) e
Medviédev (2016 [1928]). Além disso, buscamos amparo em
escritores contemporâneos que dialogam com a perspectiva
dialógica e a trazem para o escopo de sua discussão teórico-
metodológica, tais como Faraco (2009), Miotello (2014), Renfrew
(2017) e Acosta Pereira, Rodrigues e Costa-Hübes (2019).
102
Por fim, a discussão em Volóchinov se acaba com a
constituição valorativo-axiológica que cada ser, em cada uma das
interações, frente a um tema socialmente relevante, confere aos
signos sociais e ideológicos.
103
é responsável pela produção de linguagem, tampouco nega sua
importância. Porém, para o autor, a consciência não é um produto
acabado e findado em si mesmo, conforme preconizavam os
autores que difundiam tal perspectiva. O autor entende que as
consciências individuais formam uma consciência coletiva, isto é,
uma consciência social. O diálogo existente entre os seres que
interagem por meio da linguagem se dá, portanto, entre as
consciências. Não se trata, pois, na enunciação, a expressão de um
pensamento individualizado, mas de uma consciência que é
respondente ao seu ambiente espacial e temporal. Conforme
explica o autor:
104
com as reais necessidades da interação discursiva da qual fazem
parte. Geraldi (1984), ao fazer uma leitura do trabalho de
Volóchinov apresenta essa concepção de língua, nomeando-a
linguagem como representação do pensamento. Essa conceituação de
Geraldi tem especial importância ao pensarmos nas práticas de
análise linguística.
No esteio dessa discussão o autor esclarece que “esta
concepção ilumina, basicamente, os estudos tradicionais. Se
concebermos a linguagem como tal, somos levados a afirmações –
correntes – de que as pessoas que não conseguem se expressar não
pensam” (GERALDI, 1984, p. 43). Daí, portanto, podemos chegar a
duas conclusões: (i) a linguagem tomada do ponto de vista da
representação do pensamento está alheia à ideologia, uma vez que
subentende um ser individual e isolado de uma interação social; (ii)
essa concepção não compreende, em uma aula de Língua
Portuguesa, toda a dimensão social e ideológica da língua,
essencial para o estabelecimento das práticas de análise linguística
de cunho dialógico. Acerca disso, complementam Acosta Pereira,
Rodrigues e Costa-Hübes (2019):
105
suas fundações no Curso de Linguística Geral, cuja autoria está
atribuída ao linguista genebrino Ferdinand de Saussure. As bases
das discussões saussurianas dizem respeito, principalmente, ao
entendimento de que o signo é a unidade de estudo da linguagem.
Entretanto, o objetivismo abstrato concebe a língua como um
sistema de signos isolado de um ambiente sócio-histórico, o que, na
visão de Volóchinov, causa uma perda das características
fundamentais da língua do ponto de vista interacional.
Desse entendimento de que o signo isolado não tem qualquer
valor semiótico e está desprovido de expressividade, Volóchinov
(2017 [1929-1930]) convenciona o “signo ideológico”. Esse não mais
é visto como uma unidade dos sistemas linguísticos, mas como um
elemento que constitui o mundo das interações sociais e discursivas.
Ainda, conforme o autor: “[...] o ideológico em si não pode ser
explicado a partir de raízes animais, sejam elas pré ou supra-
humanas. Seu verdadeiro lugar na existência está em um material
sígnico específico, que é social, isto é, criado pelo homem”
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 96).
O signo ideológico, portanto, é um elemento da realidade
material que estabelece a interação entre os seres, inseridos num
ambiente social, espacial, histórico e ideológico. A ideologia, nesse
sentido, é entendida como uma construção social que se estabelece
a partir da interação dos sujeitos. Ela é respondente à própria
organização dos seres em sociedade e é, em virtude dela, que a
linguagem vive e corre como sangue nas veias dos falantes, pois,
de acordo com o autor, “ao realizar-se no processo de comunicação
social, todo signo ideológico, inclusive o signo verbal, é
determinado pelo horizonte social de uma época e de um grupo
social” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 110, grifo do autor).
Geraldi (1984) também apresenta uma leitura acerca dessa
concepção de linguagem e a chama de linguagem como instrumento
de comunicação, fazendo referência à teoria da comunicação de base
estruturalista. Nas palavras do autor, essa concepção
106
[...] vê a linguagem como código (conjunto de signos que se combinam
segundo regras) capaz de transmitir ao receptador uma certa mensagem. Em
livros didáticos, essa é a concepção confessada nas instruções ao professor,
nas introduções, nos títulos, embora em geral seja abandonada nos
exercícios gramaticais (GERALDI, 1984, p. 43).
107
Sujeitos
Subentende o
interagentes,
Sujeito signo
mediados pelo
interacional, ideológico
Proposta dialógica universo
envolvido pelas como elemento
(nos parâmetros de material,
práticas sócio- que medeia as
Volóchinov) respondentes e
histórico- interações entre
ativos na
ideológicas. os seres
construção
situados.
interacional.
Fonte: elaborado pelo autor, a partir das discussões de Volóchinov (2017 [1929-
1930]) e Geraldi (1984)
108
OS CAMPOS DE ATIVIDADE HUMANA
IDEOLOGICAMENTE ORGANIZADOS
109
A partir dessa discussão inicial, entendemos que o conceito de
ideologia é intrínseco à constituição dos campos de atividade
humana. Como esferas sociais da comunicação discursivas, essas
esferas dão origem a certos conteúdos ideológicos específicos que
são próprios desse ou daquele campo. Embora cada campo se
oriente para a realidade de formas distintas, o autor também
clarifica que o fenômeno ideológico é comum a todos os campos,
independentemente de quais campos colocaremos em análise.
Para sistematizar aquilo que considera por “campo de
atividade humana”, Volóchinov (2017 [1929-1930]) retoma as
discussões de Karl Marx e Friederich Engels acerca dos conceitos
de infraestrutura e superestrutura. De uma forma rápida, podemos
definir que as infraestruturas constituem as forças de trabalho que
sustentam a base de produção do capital em uma sociedade,
enquanto as superestruturas são entendidas como a base da
divulgação das ideias de uma sociedade burguesa premida por
esse mesmo capital (ENGELS, 2019 [1884]). Para Miotello (2014),
Assim como se distinguiram por suas ideias e seus estudos sobre o problema da
ideologia, em uma perspectiva marxista, os membros do Círculo de Bakhtin
também aprofundaram outras questões que Marx e Engels apenas haviam
tocado, como a questão da relação da infraestrutura com a superestrutura, a
constituição e o papel dos signos, a questão da constituição da subjetividade e
da consciência, as questões da peculiaridade da palavra literária, o característico
da linguagem verbal e sua relação com outros sistemas sígnicos, a questão da
caracterização da arte (MIOTELLO, 2014, p. 167).
110
A ideologia do cotidiano é uma infraestrutura em nossa
sociedade. Ela sustenta a base das interações mais fortuitas e
corriqueiras do dia a dia. Nesse sentido, entendemos que a
ideologia do cotidiano trata da linguagem que medeia as interações
em âmbito social mais espontâneas, tais como uma conversa de
pais e filhos em um jantar, ou em um encontro espontâneo de dois
vizinhos no corredor do prédio em que vivem e, até mesmo o “bom
dia” dirigido ao porteiro, ao estranho que passa pela calçada e ao
colega de trabalho. Volóchinov (2017 [1929-1930]) entende a
ideologia do cotidiano do seguinte modo:
[...] existe um campo enorme da comunicação ideológica que não pode ser
atribuído a uma esfera ideológica. Trata-se da comunicação cotidiana. Essa
comunicação é extremamente importante e rica em conteúdo. Por um lado,
ela entra diretamente em contato com os processos produtivos e, por outro,
ela se relaciona com as várias esferas ideológicas já formadas e
especializadas (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 99, grifo do autor).
111
como superestruturas sociais. Há, portanto, uma conexão desses
últimos com o campo cotidiano. Um pai e um filho podem discutir
fervorosamente sobre em quem votar nas eleições presidenciais de
seu país, tomando discussões lidas em veículos de imprensa e, até
mesmo, em tratados filosóficos que fazem parte de sua vida de
trabalho e/ou educacional. Entretanto, no momento que o fazem,
não estão mediados pelo mundo do trabalho ou pelo mundo da
educação. Trata-se de uma discussão fortuita que pode acontecer
ao longo de um jantar em família ou até mesmo em frente à
televisão, enquanto assistem ao debate dos candidatos. Por fim,
essa interação entre pai e filho, embora mantenha relações com
elementos dos campos especializados da interação humana, faz
parte de uma interação que se dá no campo cotidiano.
Embora o texto “Os gêneros do discurso”, de Mikhail Bakhtin
(2016 [1952-1953]) seja escrito mais tardiamente, as discussões
sobre os gêneros já são antecipadas por Volochínov (2017 [1929-
1930]) em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”. De acordo com o
autor, “cada época e cada grupo social possui o seu próprio
repertório de formas discursivas da comunicação ideológica
cotidiana. Cada grupo de formas homogêneas, ou seja, cada gênero
discursivo cotidiano, possui seu próprio conjunto de temas”
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 109, grifo nosso). É evidente,
portanto, a fundamental importância que os campos de atividade
humana exercem sobre os gêneros do discurso.
Os gêneros do discurso do cotidiano são aqueles tidos no texto
de Bakhtin como gêneros primários, justamente por sua linguagem
mais fluida, dinâmica e fortuita. Os gêneros do discurso
secundários, por outro lado, são aqueles que advêm de práticas
interacionais em campos de atividade humana mais especializados,
que exigem uma linguagem mais especializada e um rigor, muitas
vezes, que são necessários a depender do campo de atividade
humana ao qual estão vinculados.
Mas como essas discussões chegam ao ensino da língua? De que
forma podemos entendê-las no seio da constituição escolar? A escola,
por si só, já é uma entidade que se constitui a partir de interações
112
especializadas e, por consequência, faz parte de um campo de
atividade humana oficial. A linguagem escolar tem por finalidade
atender a anseios relacionados aos aspectos filosóficos, artísticos e
científicos constituídos ao longo da história (SAVIANI, 1984). Mas,
além dessa concepção de escola, há ainda a constituição dos
documentos oficiais que parametrizam a educação em nosso país.
Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) (BRASIL, 1998) há uma tentativa de unificar as práticas
escolares no país e de estabelecer conteúdos e métodos de
aprendizagem para os alunos das escolas brasileiras. No que tange
ao ensino de Língua Portuguesa, a perspectiva dialógica da
linguagem tem, com frequência, aparecido de forma substanciosa
nas discussões que são apresentadas, a partir desse documento.
Em 2017, com a publicação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017), o compromisso com a
perspectiva dialógica, ao menos textualmente, é reforçado no
ensino da Língua Portuguesa. Porém, alguns problemas são
visíveis no documento, do ponto de vista conceitual e
epistemológico. Inegável é a menção de destaque que a base dá aos
gêneros do discurso, entretanto, ao fazer isso, deixa questões
interacionais e discursivas de lado, aproximando-se muito mais de
uma concepção de escola “biologicista”, cuja formação volta-se às
competências e às habilidades.
A parte mais preocupante do documento é a escolha de gêneros
do discurso que serão abordados ao longo da educação linguística
dos alunos. Se por um lado entendemos que o trabalho com os
gêneros do discurso é de fundamental importância, por outro
entendemos que a orientação deste documento não leva em
consideração aspectos de extrema importância como é o caso das
ideologias oficiais e da ideologia do cotidiano. Só o trabalho com
gêneros deslocado das práticas sociais de uso da linguagem não é
suficiente, fazendo com que os gêneros se reduzam a formas de texto.
A BNCC propõe uma lista de gêneros que, em sua maioria,
estão orientados para a cotidianidade. Como vimos acima, ao
discutirmos as propostas de Volóchinov (2017 [1929-1930]), as
113
relações do cotidiano são fortuitas e, de certo modo, acontecem de
forma dinâmica na sociedade. Não que a escola não possa abordá-
las, mas reduzir as aulas de leitura e produção textual a gêneros
cotidianos é, no mínimo, irrelevante, uma vez que todo ser,
membro de uma sociedade organizada, já tem domínio das práticas
que se fundam na base da ideologia do cotidiano.
Não entendemos, por assim dizer, que uma aula de Língua
Portuguesa, mediada por meio do gênero discursivo “playlist
comentada”, possa trazer ganhos reais à educação linguística dos
alunos. Ao passo que a perspectiva dialógica para o ensino de
línguas prevê o trabalho com os gêneros, ela não perde de vista as
formas da língua, enquanto signos sociais e ideológicos, na
constituição da formação linguística dos estudantes. Do mesmo
modo, uma “fanfic” não satisfaz as necessidades que se colocam no
campo artístico-literário. A apreciação estético-literária passa longe
de um gênero como esse e se materializa muito mais em gêneros
como conto, poema, soneto e romance, por exemplo.
Com tudo isso, não entendemos que a ideologia do cotidiano
não possa ser abordada na escola. Inseridos em uma perspectiva de
uma Linguística Aplicada de base dialógica seria contraditório não
levar em consideração o papel do campo cotidiano na construção
do conhecimento. Porém, entendemos que o papel deste referido
campo, como uma infraestrutura, deve, no máximo, ser um ponto
de partida e não um objeto de aprendizagem, que vise uma
produção final de conhecimento.
Nesse sentido, ainda, por último, é relevante destacar as
características da reflexão e da refração, que são exploradas no
texto de Volóchinov (2017 [1929-1930]). Entendemos, que o signo,
além de ser ideológico também é essencialmente social, pois, de
acordo com o autor, o signo reflete e refrata a sua realidade. “O
signo é um fenômeno do mundo externo. Tanto ele mesmo, quanto
todos os efeitos por ele produzidos, ou seja, aquelas reações,
aqueles movimentos e aqueles novos signos que ele gera no meio
social circundante, ocorrem na experiência externa”
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 94).
114
A realidade material é o meio mais comum ao signo, de acordo
com Volóchinov, pois, sem ela, não há qualquer suporte para a vida
do signo. De modo, portanto, que um ser, envolvido em uma
situação interacional não está alheio aos fenômenos sociais e
ideológicos. Ele é, por excelência, um resultado de suas interações
e um agente que deixa suas verdades, reificações, modos de agir,
estilos e entonações no mundo do signo. Isso é o que Volóchinov
entende por refração: a habilidade que o sujeito tem de transformar
o signo por meio da atividade interacional. De igual modo, ao passo
que refrata essa realidade, o ser reflete o seu mundo material, pois
é dele que surgem as suas referências para enunciar.
Da relação da refração surge outro ponto interseccional entre
o pensamento do autor com Marx e Engels: “a existência não é
apenas refletida no signo, mas também é refratada nele. O que
determina a refração da existência do signo ideológico? – O
cruzamento de interesses sociais multidirecionados nos limites de
uma coletividade sígnica, isto é, a luta de classes” (VOLÓCHINOV,
2017 [1929-1930], p. 112, grifo do autor). Em outras palavras, isso
significa que o signo é refratado em virtude das necessidades
sociais de interação entre os sujeitos usuários de uma língua, não
podendo essas características interacionais serem ignoradas nas
análises das formas da língua. Nesse sentido, complementamos
essa ideia, recorrendo a Bakhtin (2015 [1934-1936]),
115
signo como um representante do mundo social, que carrega inúmeros
sistemas ideológicos existentes na sociedade.
A reflexão e a refração do signo só podem existir, porque o
signo é colocado à prova do meio que o circunda. Portanto, na
próxima seção, exploraremos, por fim, as questões valorativas e
axiológicas da natureza da construção ideológica.
neste volume.
116
constitui como tema da enunciação (BAKHTIN, 2016 [1952-1953]).
Qualquer ser tem a habilidade de expor a sua valoração a um
enunciado, a um tema e até mesmo ao enunciado de outrem. Para
Volóchinov (2017 [1929-1930])
É por isso que todas as ênfases ideológicas, embora feitas por uma voz
individual (por exemplo, na palavra) ou por qualquer organismo individual,
são ênfases sociais, que pretendem o reconhecimento social, e apenas em prol
desse reconhecimento são realizadas no exterior, no material ideológico
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 111, grifo do autor).
117
pertençam a um universo ficcional, carregam em si elementos da
realidade material e, portanto, podem ser valorados num âmbito
social. O tema, portanto, pode ser valorado tendo em vista as
individualidades dos seres, mas mesmo essas individualidades
fazem parte da construção ideológica de um ser que é, por excelência,
um ser social: “um tema ideológico sempre recebe uma ênfase social.
É claro que todas essas ênfases sociais dos temas ideológicos
penetram também na consciência individual que, como sabemos, é
totalmente ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929-1930], p. 111).
Se o signo ideológico pertence ao social e os seres sociais
podem atribuir-lhe índices de valoração, a partir de suas vivências
e de suas subjetividades enquanto pertencentes a um horizonte
sócio-histórico, isso significa que o signo pode ser valorado mais de
uma vez por diferentes seres, pois eles estão também inseridos no
horizonte social e axiológico da vida social. A esse fenômeno,
Volóchinov convenciona chamar “multiacentuação” e a define do
seguinte modo:
118
por determinados grupos sociais quanto negativamente. É de vital
importância compreender que não existe uma característica
monoacentual quando tratamos das interações humanas.
A ideologia, em âmbito social, como querem muitos, é vista
como algo negativo que tende a deturpar uma realidade construída
nas subjetividades de determinados seres/grupos sociais que
querem estabelecer um status quo, atribuindo-a aos grupos de
esquerda, aos representantes do marxismo cultural, às
comunidades marginais da sociedade, tais como grupos de luta
social em prol das causas étnico-raciais, de gênero, de luta contra a
xenofobia etc. O que entendemos, nesse ensaio, é que a ideologia
faz parte de toda e qualquer interação e não há como se manter
neutro diante de nenhuma situação vivida. Assim também o é na
escola. Nas aulas de Língua Portuguesa, o docente deve explorar
os múltiplos significados, as múltiplas atitudes de valor e respeitar
as subjetividades de sua alteridade ao fazê-lo. Nesse sentido, por
fim, as formas da língua podem ser compreendidas como signos
sociais e ideológicos, para que o aluno compreenda a essência real
da linguagem e não a classificação e o conteúdo conceitual
deslocado de uma realidade material.
119
Embora a obra de Medviédev apresente em seu título uma
relação direta com os estudos literários, ela também traz em seu
escopo amplas discussões em torno da linguagem que contribuem
muito para a Linguística Aplicada de base dialógica. Assim como
Volóchinov, o autor busca um distanciamento de teorias
tradicionalistas, com métodos relacionados ao positivismo científico.
Para distanciar-se dos positivistas e, principalmente, dos formalistas
russos, bastante populares no início do século XX, Medviédev
aproxima-se do marxismo. Para tanto, o autor busca esclarecer
aquilo que chama de “ciência das ideologias”. Conforme Medviédev,
120
isso, o autor tece duras críticas a esta corrente justamente por
distanciar o objeto de estudo daquilo que chama de fenômeno
concreto. Em outras palavras, o autor se opõe à ideia de que o
objeto de estudo seja isolado de suas características sócio-histórico-
ideológicas para se tornar um elemento abstrato que está
desprovido de conteúdo vivo.
Uma das principais críticas apontadas pelo autor nessa obra
diz respeito aos trabalhos de Karl Vossler, um dos grandes
representantes da corrente que Volóchinov (2017 [1929-1930])
convencionou chamar de Subjetivismo idealista/individualista,
conforme discutido acima deste mesmo ensaio. Sua crítica se dá,
principalmente, em virtude da ideia de que a análise filológica não
constitui em si uma filosofia de linguagem com base nas
superestruturas sociais, simplesmente por estar desvencilhada de
seu eixo ideológico. Acerca disso, diz Medviédev (2016 [1928])
121
reais, encarnados, correm o risco de, por fim, objetificarem seus objetos,
falhando assim na apreensão e no relato daquilo que é essencial acerca da
experiência humana (RENFREW, 2017, p. 45, grifo do autor).
122
Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras,
nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos,
em uma palavra, em algum material em forma de um signo determinado. Por
meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda o homem
(MEDVIÉDEV, 2016 [1928], p. 48-49, grifo nosso).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
123
linguagem e, ao mesmo tempo, perceber a linguagem para além de
uma concepção apenas formal, dimensionando-a nas relações
sociointeracionais” (FARACO, 2009, p. 102). Assim sendo,
concluímos que (i) as correntes linguísticas são tomadas no escopo
dos textos do Círculo para a construção de uma concepção de
linguagem para além da mera categorização dos aspectos da língua
para um campo social e ideológico; (ii) Volóchinov e Medviédev
ampliam as discussões de infraestrutura e superestrutura para
compreender os campos de atividade humana e suas
especificidades; (iii) a valoração, enquanto índice social-axiológico
é determinante na natureza do signo ideológico, uma vez que o ser
se coloca no mundo por meio dela.
Por fim, Volochínov (2013 [1930]) apresenta, no ensaio “Que é
linguagem”, aquela que talvez seja a única conceituação formal do
que entende por ideologia:
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124
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126
ENUNCIADO: UNIDADE CONCRETA DA
COMUNICAÇÃO DISCURSIVA
INTRODUÇÃO
127
Diante da arquitetura engendrada por esses autores, o conceito
enunciado torna-se essencial para a compreensão dos demais pilares
de sustentação da Concepção Dialógica da Linguagem, pois se trata
da “real unidade de comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2010
[1979], p. 274). À vista disso, nosso objetivo, neste texto, consiste em
refletir sobre a noção de enunciado concreto como uma das
concepções do Círculo de Bakhtin que se orienta por uma
dialogicidade no processo de construção do conhecimento. Para isso,
situamo-nos nos escritos do Círculo de Bakhtin, principalmente em
Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov, retomando diretrizes de
ordem teórico-epistemológica e metodológica de estudo da
enunciação. Além de propor caminhos, possibilidades de
aprofundamentos por meio dos estudos de autores brasileiros
contemporâneos inseridos no campo de estudos da Análise
Dialógica do Discurso (ADD) como Sobral (2009); Brait e Melo
(2013); Alves (2016) e Acosta Pereira e Brait (2020).
Nas obras dos estudiosos do Círculo, a concepção de
enunciado ancora-se na teoria dialógica da linguagem e relaciona-
se com outros conceitos tais como relações dialógicas, gêneros do
discurso, signo ideológico, autoria, acabamento, texto e discurso,
concepções que se fazem pilares da arquitetura teórica construída
por esses pensadores. É imprescindível destacar que a noção de
enunciado não está presente em apenas uma obra, o conceito vai se
construindo ao longo do conjunto de várias obras assinadas (ou
com autoria em discussão) de alguns desses estudiosos. Cabe
ressaltar, ainda, que o conceito enunciado tem papel central na
Concepção Dialógica da Linguagem, pois situa-se no interior das
interações sociais e considera os sujeitos envolvidos como
produtores de enunciado concretos e plenos.
Para desenvolvermos o proposto, o capítulo se organiza da
seguinte forma: à princípio, nossas breves palavras iniciais; na
sequência, revisitamos os escritos do Círculo de Bakhtin e
buscamos demonstrar as vozes desses estudiosos sobre o conceito
enunciado em diálogo com pesquisas contemporâneas em ADD
que expandem a compreensão desse conceito; posteriormente
128
refletimos sobre a relação entre texto e enunciado. Finalmente,
apresentamos algumas considerações finais acerca das discussões
apresentadas como um acabamento provisório de nosso enunciado
e algumas referências mobilizadas na construção do capítulo.
129
linguísticas fonéticas, gramaticais e lexicais” (VOLÓCHINOV, 2017
[1929], p. 155). Essa corrente teórica concebe a língua como um
sistema de normas rígidas e imutáveis e o sistema linguístico é
resultante de uma análise abstrata a partir de elementos isolados.
Para os pensadores do Círculo, ambas as orientações não
percebem a linguagem em sua totalidade e a afasta da relação com
as atuações humanas e com a vida. São categóricos ao afirmar que
“A língua vive e se forma historicamente justo aqui, na
comunicação discursiva concreta, e não no sistema abstrato das
formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 220). Em vista disso, a linguagem
só pode ser compreendida na relação com os interlocutores, com a
realidade social e a histórica, com as circunstâncias comunicativas,
com o espaço e o tempo, com as materialidades visuais, sonoras e
verbais e, finalmente, com os gêneros do discurso. Então, não é o
ato individual ou o sistema abstrato, mas o diálogo, impulsionado
por forças sociais, que constrói as significações de toda forma de
comunicação.
Em adição a presente discussão, Volochínov afirma:
[...] a língua não é algo imóvel, dada de uma vez para sempre e rigidamente
fixada em regras’ e exceções’ gramaticais. A língua não é de modo algum
um produto morto, petrificado, da vida social: ela se move continuamente e
seu desenvolvimento segue aquele da vida social. Este movimento
progressivo da língua se realiza no processo de relação entre homem e
homem, uma relação não só produtiva, mas também verbal. Na
comunicação verbal, que é um dos aspectos do mais amplo intercâmbio
comunicativo – o social -, elaboram-se os mais diversos tipos de enunciações,
correspondentes aos diversos tipos de intercâmbio comunicativo social
(VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p. 157).
130
intermediadas pela língua(gem) e, por sua vez, possibilita o
processo de evolução das formas da língua. Sobre essa questão,
Volochínov (2013 [1930]) afirma que a língua(gem) não se configura
como produto morto e petrificado, mas, ao contrário, ela se
desenvolve continuamente em paridade com a vida social.
Ademais, para os teóricos do Círculo, a língua(gem) é um
espaço de embates ideológicos que se revelam em enunciados
concretos e únicos, os quais representam o posicionamento de
sujeitos sociais que assumem uma posição axiológica ao se
manifestarem por meio do discurso. Seus posicionamentos, que se
fundam no diálogo com discursos anteriores e posteriores,
contribuem para a refutação ou reforço de novas acepções, gerando,
desse modo, a transformação das relações sociais. É nas relações de
interação entre sujeitos que a língua(gem) se renova e se recria,
manifestando seu caráter dialógico.
Por conseguinte, Bakhtin assevera que “O emprego da língua
efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e
únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de
atividade humana. Esses enunciados refletem as condições
específicas e as finalidades de cada referido campo” (BAKHTIN,
2016 [1979], p. 11-12). Compreendemos que as formas de interação
são consideradas como dialógicas ao assimilar, em sua realização,
o contexto de produção que norteia o enunciado, o locutor e o
ouvinte. Assim sendo, o pensador elucida: “Ora, a língua passa a
integrar a vida através dos enunciados concretos (que a realizam);
é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na
língua. O enunciado é um núcleo problemático de importância
excepcional” (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 265).
Nessa perspectiva, buscamos detalhar nossos estudos sobre o
conceito enunciado em três subseções: apresentando o enunciado
como unidade discursiva; discorrendo sobre as peculiaridades do
enunciado e, por fim, examinando a relação entre enunciado e oração.
131
ELEMENTO DE COMUNICAÇÃO DISCURSIVA: O
ENUNCIADO
132
antes de tudo, pelas tarefas (pela ideia) do sujeito do discurso
(ou autor) centradas no objeto e no sentido (p. 289)
O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas (p. 298)
[...] formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do
discurso (p. 283)
Fonte: Bakhtin (2010 [1979])
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto
dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites).
Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos
passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por
todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de
desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do
desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de
sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo
desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados
e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada
absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação (BAKHTIN,
2010 [1979], p. 410).
133
significados podem estar vinculados a enunciados ainda nem
produzidos. Todo enunciado se organiza a partir de outros
discursos, muitas vezes emitidos em outro momento histórico, em
outra situação social, por meio da voz de outro sujeito e,
possivelmente, com outra intenção interlocutiva. À vista disso, a
todo o momento, sentidos adormecidos há muito tempo são
mobilizados e ganham vida nova em outra situação de interação.
Mesmo que o interlocutor desconheça essas relações, elas se
fazem presentes, uma vez que “dois enunciados alheios
confrontados, que não se conhecem e toquem levemente o mesmo
tema, entram inevitavelmente em relações dialógicas entre si. Eles
se tocam no território do tema comum, do pensamento comum”
(BAKHTIN, 2010 [1979], p. 320). São essas relações, mesmo que
muitas vezes ignoradas pelos interlocutores, que colocam o
enunciado na rede de discursos que ultrapassa o tempo e o espaço
e garante a comunicação efetiva em diferentes campos de atuação
humana. Portanto, esta é a realidade interdiscursiva da linguagem,
manifestada por meio das relações dialógicas, pois um enunciado
jamais terá sentido se não estiver vinculado a outro.
Para além dessas proposições, compreendemos que os sentidos
dos enunciados perpassam a materialidade do texto e vinculam-se
aos elementos que estabelecem a organização discursiva do
enunciado, dentre os quais incluímos o contexto de produção, o
momento histórico, os interlocutores e seus conhecimentos, enfim,
os entornos do discurso que determinam os modos de uso da
linguagem. Consequentemente, o enunciado possui um autor
situado socialmente, pois “Para se tornarem dialógicas, as relações
lógicas e concreto-semânticas devem [...] materializar-se, ou seja,
devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso,
ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja
posição ele expressa” (BAKHTIN, 2010 [1929], p. 210). Dessa forma,
a palavra precisa tornar-se enunciado, discurso, ao atender o projeto
discursivo de um autor, para então estabelecer relações dialógicas, o
que permite que seja compreendida muito além de sua expressão
linguística. Nesse campo do diálogo, absorve as necessidades
134
efetivas de interação, pois “é precisamente essa comunicação
dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem”
(BAKHTIN, 2010 [1929], p. 209). Logo, a palavra precisa ganhar
autor, um sujeito que enuncia, que se responsabiliza pelo enunciado
ao interagir com o outro.
Ademais, para os estudiosos do Círculo, o projeto enunciativo
do locutor engendra-se em função de um interlocutor, pois “A
responsividade é o princípio de qualquer compreensão”
(BAKHTIN, 2010 [1979], p. 317). Nessa direção, se o interlocutor
compreendeu o enunciado, proferirá uma resposta, sempre por
meio de enunciado em diálogo com outros enunciados, uma vez
que, “A compreensão responsiva é sempre de índole dialógica”
(BAKHTIN, 2010 [1979], p. 332). Destarte, o discurso é constituído
no interior de uma esfera social e materializado em enunciados
demarcados ideológica e valorativamente.
Entendemos, assim, que os interlocutores trocam de papel
durante a enunciação e que ambos são responsáveis pelos
enunciados. A interação verbal visa a uma resposta, do contrário
não se efetivaria. Ao compreender, o ouvinte/leitor,
obrigatoriamente, emite uma resposta, apresenta sua contribuição
para o enunciado, assume sua responsabilidade na interação,
transfere-se para o papel de falante/escritor. Se não houver reação,
pode não ter havido compreensão. Nas palavras de Bakhtin,
135
implícitas e desvelam diferentes posições enunciativas, haja vista
“[...] os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente
no contexto do enunciado; podem ser introduzidos somente
palavras isoladas ou orações” (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 297). Os
enunciados alheios podem ser assimilados de diferentes formas:
podem apenas servir como uma base, podem ser absorvidos no
silêncio e podem se configurar na entonação, na expressividade ou
na seleção dos recursos linguísticos, de qualquer forma, “A
expressão do enunciado, em maior ou menor grau, responde, isto
é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não
só a relação com os objetos do seu enunciado” (BAKHTIN, 2010
[1979], p. 298).
Acrescentamos, ainda, que o tempo e o espaço são aspectos
fundamentais na composição do enunciado e constituem
particularidades da situação extraverbal que são denominadas por
Bakhtin como cronotopo (BAKHTIN, 2014 [1975]). Os
interlocutores estão situados em relações cronotópicas ao
proferirem seus discursos. Essas relações constituem uma categoria
valorativa fundamental para a interpretação das relações entre os
sujeitos, pois os situa no tempo e no espaço visto que “[...] cada
tema possui o seu próprio cronotopo” (BAKHTIN, 2014 [1975], p.
357). Mesmo sendo um conceito atribuído, inicialmente, à literatura,
remete ao sujeito real em todas as situações da vida social. O
cronotopo refere-se, então, às valorações imputadas pelo tempo e
pelo espaço e sem esse conhecimento não é possível compreender
as condutas sociais ou situar o projeto de dizer do locutor, pois cada
momento, cada local carrega valorações sociais, históricas e
ideológicas.
Diante dessas proposições, Alves (2016) sintetiza a concepção
de enunciado desenvolvida pelos estudiosos do Círculo: “O
enunciado é pleno de tonalidades dialógicas: tonalidade de
expressão, tonalidade de sentido, tonalidade de estilo, tonalidade
de composição [...] Nossos enunciados ecoam, revozeiam
enunciados de outros num processo dialógico que envolve não
136
apenas um diálogo temático, mas estilístico, composicional, ético e
estético” (ALVES, 2016, p. 165).
Embora nosso estudo busque realizar uma reflexão teórico-
metodológica, utilizamos alguns enunciados para exemplificação.
Assim, intentamos exemplificar as proposições apresentadas por
meio do enunciado exposto a seguir. Trata-se de um texto
publicitário referente ao Dia dos Namorados vinculado na mídia
nos meses de maio e junho de 2022:
137
subtraindo de outros enunciados, a sugestão de presentear na
referida data.
Com relação aos sujeitos do discurso, o autor - empresa que
vincula o texto publicitário - visa a um interlocutor específico, ou
seja, os namorados e busca como resposta o consumo: que os
enamorados presenteiam seus parceiros como prova de seu
sentimento. O conteúdo semântico-objetal apresenta-se também
nas vantagens oferecidas, especialmente, por meio das condições
de pagamentos em “12X sem juros” e “até 30% de cashback”, o que
sugere que o consumidor poderá realizar um gesto de amor,
presenteando seu(sua) namorado(a), mesmo se não dispor de todo
valor monetário no momento da compra. Por fim, o enunciado
situa-se no tempo e no espaço e refere-se a uma data específica,
além disso incita o consumismo, pois sugere que um presente
materializado pode representar/comprovar um sentimento.
O enunciado estabelece diálogo com outros textos
publicitários, além de dialogar com formas de relacionamento, com
o universo artístico musical e com as negociações monetárias. E
finalmente, o enunciado tipifica-se na forma do gênero do discurso
Propaganda.
Na próxima subseção, apresentamos as peculiaridades do
enunciado.
PECULIARIDADES DO ENUNCIADO
138
Quadro 2 – As peculiaridades do enunciado nos estudos de Bakhtin (2010 [1979])
PECULIARIDADES DOS ENUNCIADOS
1) Os próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos
sujeitos do discurso. (p. 297)
2) Conclusibilidade específica do enunciado. (p. 280).
3) “A entonação expressiva é um traço constitutivo do enunciado” (p. 290)
Fonte: Bakhtin (2010 [1979])
139
interlocutores. Um enunciado é concluído quando o sujeito “passa
a palavra” para seu interlocutor e assim um novo enunciado inicia-
se, em diálogo com o enunciado anterior. Sobre essa questão, o
autor enuncia:
140
atividade humana que o provoca. O encadeamento desses
elementos concede a plenitude ao enunciado e lhe confere a
capacidade de obter uma atitude responsiva do interlocutor.
O primeiro fator, exauribilidade do objeto e do sentido, exprime
que todo enunciado tem um acabamento provisório. Como
podemos observar, os assuntos são inesgotáveis, porém, quando
são tomados como objetos de discurso dentro de uma situação de
interação e adentram o horizonte axiológico dos interlocutores,
passam a possuir um acabamento dentro daquela construção
enunciativa. E ainda, o locutor só passa a palavra ao outro quando
esgotou provisoriamente o que tinha a dizer. Logo, há um
acabamento (provisório) que permite ao interlocutor reconhecer
que agora a palavra é sua, pois “o falante termina o seu enunciado
para passar a palavra ao outro ou dar lugar a sua compreensão
ativamente responsiva” (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 275).
Por outro lado, no que se refere ao segundo fator, todo
enunciado atende a um projeto discursivo do locutor que tem alguma
coisa a dizer e, nessa perspectiva, planeja o seu discurso e o
concretiza no enunciado: “[...] a vontade discursiva do falante, que
determina o todo do enunciado, o seu volume e suas fronteiras”
(BAKHTIN, 2010 [1979], p. 281);
E, por fim, como terceiro fator, todo enunciado se organiza em
algum gênero discursivo que lhe dá um acabamento específico e
permite ao interlocutor reconhecê-lo como tal. Desse modo, o locutor
seleciona uma forma relativamente estável de construção do todo
para balizar a produção do enunciado. A escolha do gênero do
discurso é determinada pela “especificidade de um dado campo da
comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais
(temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela
composição pessoal dos seus participantes etc.” (BAKHTIN, 2010
[1979], p. 282).
Por último, a terceira peculiaridade do enunciado refere-se à
expressividade. Além de relacionar-se com a vida real, o enunciado
precisa reportar-se a outros enunciados e ainda carece da
expressividade individual para que o discurso seja concretizado.
141
Esse último elemento, conforme Bakhtin, consiste na “relação
subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do
objeto e do sentido do enunciado” (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 289).
Sobre isso, Brait esclarece
142
com a vida” (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p. 82). Entendemos,
então, que a entonação pode ser percebida pelo interlocutor muito
além das palavras. Quando o sujeito pressupõe alguma emoção
negativa em seu interlocutor, pode perceber isso por meio da
entonação e emitirá seus enunciados de outra forma.
Nesse sentido, é possível afirmar, recorrendo a Volochínov,
que “[...] com respeito ao objeto da enunciação [...] a entonação o
molesta, o acaricia, rebaixa ou engrandece” (VOLOCHÍNOV, 2013
[1930], p. 85), ou seja, amplia a capacidade metafórica das palavras,
especialmente nas esferas cotidianas, e tem o poder de ameaçar,
exaltar, desvalorizar ou supervalorizar o discurso, uma vez que
“Nos diferentes campos da comunicação discursiva, o elemento
expressivo tem significado vario e grau vario de força, mas ele
existe em toda parte: um enunciado absolutamente neutro é
impossível” (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 289).
Assim, a palavra, no processo de interação verbal, transforma-
se em enunciado e a entonação contribui para esse transcurso. Logo,
a entonação é determinante para a expressão verbal, uma vez que
“entoando e gesticulando, o homem ocupa uma posição social ativa
com respeito aos valores determinados, determinada pelas mesmas
condições de sua existência social” (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p.
85). O ser humano dispõe dessas possibilidades para
complementar o discurso oral: o tom de voz, o movimento dos
braços e das mãos, as expressões facial e corporal contribuem para
a constituição do enunciado e para a atitude responsiva do ouvinte.
Um simples gesto pode constituir uma resposta, uma reação de
aprovação ou desaprovação. Na escrita, a entonação se destaca na
seleção do gênero discursivo para organizar o enunciado, nos
recursos multimodais aos quais recorremos para configurar nosso
dizer, enfim, nas próprias marcas linguística-expressivas
(pontuação, por exemplo) que sistematizam o enunciado. De
acordo com Volochínov,
143
externa da voz – a entonação – e a escolha das palavras e sua composição
numa enunciação concreta. Uma simples exclamação mental – do tipo do
enojado ‘Chega! Acabemos com isto!’ ou do indignado ‘Nem pense nisso!’ -
contém já o chamamento a um ouvinte possível, seja companheiro,
testemunha simpatizante ou juiz reconhecido (VOLOCHÍNOV, 2013 [1930],
p. 166, grifos do autor).
144
socialmente, ao produzir um novo enunciado, busca as palavras em
outros discursos e as refrata a partir de uma expressão que
exterioriza para adequá-las ao seu projeto de dizer, além de se
basear nos interlocutores visados e em sua posição valorativa.
Para Volóchinov, “[...] a palavra como signo é tomada de
empréstimo pelo falante da reserva social de signos disponíveis; a
própria constituição individual desse signo social em um
enunciado concreto é determinada integralmente pelas relações
sociais” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 206). Essa orientação
sustenta-se na compreensão de que “A palavra da língua é uma
palavra semi-alheia. Ela só se torna própria, quando o falante a
povoa com sua intenção” (BAKHTIN, 2014 [1975], p. 100) e assim a
transforma com sua expressividade, tornando-a um novo
enunciado. E a palavra-enunciado ganha significado ao servir à
constituição do discurso entre interlocutores, pois já não mais se
encontra na língua neutra e impessoal. Para os estudiosos do
Círculo, as palavras-enunciados não são retiradas de um sistema
abstrato de formas linguísticas, nem de um repertório
psicofisiológico, mas de outros enunciados e são revaloradas pelo
locutor para serem realocadas em seu discurso.
Apresentamos, a seguir, um enunciado para exemplificar
nossas reflexões sobre as peculiaridades do enunciado:
145
Armandinho, enquanto assiste a uma reportagem, reflete sobre o
tratamento destinado aos professores. Embora não esteja explícito,
compreendemos que se refere a um tratamento ofensivo, pois
aparecem imagens de policiais na televisão do primeiro quadrinho e
a personagem questiona sobre os professores serem “perigosos”.
Podemos observar nesse enunciado, as peculiaridades apresentadas
por Bakhtin (2010 [1979]): primeiro, verificamos a alternância dos
sujeitos, o enunciado tem um acabamento no terceiro quadrinho
para que possa ser respondido por seus interlocutores e ainda
apresenta exauribilidade, pois contempla um assunto de forma
específica dentro de uma situação de interação - um menino que
possivelmente frequenta a escola, assusta-se com o noticiário,
observando a maneira como estão sendo tratados os professores.
Ademais, a intenção discursiva do autor é explícita,
especialmente na fala do adulto “Eles podem ensinar o povo a
pensar...”, ficando evidente a crítica que se pretende assumir com
relação ao tratamento destinado aos professores pelo governo e
pela sociedade em geral. O gênero selecionado para revestir a
intenção discursiva do autor é a Tira que possibilita a
expressividade por meio da linguagem verbal e da linguagem
visual. A entonação pode ser verificada tanto pela seleção de
palavras e pela escolha dos sinais de pontuação, quanto pelas
imagens, por exemplo, na expressão assustada da personagem
infantil nos primeiros quadrinhos e depois com a boca fechada no
último e até mesmo pelo olhar da figura do sapo que está atento à
televisão nos primeiros quadrinhos, mas modifica a expressão
facial e olha para a personagem infantil no último. Assim sendo,
trata-se de um enunciado concreto posicionado em uma situação
social que permite a observação da alternância entre os sujeitos, a
conclusibilidade e a expressividade.
Na próxima subseção, refletimos sobre a relação entre
enunciado e oração.
146
A RELAÇÃO ENTRE ENUNCIADO E ORAÇÃO
147
Quadro 3 – Relação entre enunciado e oração por Rodrigues (2004)
ENUNCIADO X ORAÇÃO
- Enunciado: unidade do discurso, é concreto. O enunciado é uma unidade de
sentido diante da qual se pode tomar uma atitude responsiva, relaciona-se com
a realidade extraverbal (a situação de interação).
- Oração: unidade convencional da língua, um elemento abstrato (não tem
alternância dos sujeitos, não dispõe de sentidos diferentes para cada situação,
não determina a responsividade) é de natureza gramatical.
Fonte: Rodrigues (2004, p. 425)
148
campos da atividade humana e da gramatical e unidade, pois é matéria
vida, pois é matéria de fala. de língua.
Fonte: Alves (2016, p. 166)
Falar, enunciar, é, desse modo, um ato que cria uma ligação entre o sistema
linguístico e o sistema concreto de relações sociais, que chegam à nossa
consciência por meio dos enunciados, dos discursos. No enunciado, os
sentidos só são compreensíveis se levarmos em conta a negociação
permanente entre os seres humanos em sociedade por meio de suas atuações,
verbais e outras (SOBRAL; GIACOMELLI, 2018, p. 309).
149
composição de um enunciado. Apenas um desses elementos não
basta, não concede à palavra o poder de expressar opinião,
julgamento, emoção ou indignação. Somente a fusão desses
elementos, centralizados em uma situação social, forma o
enunciado real e expressivo.
Os estudiosos do Círculo defendem que o discurso verbal por
si só é insuficiente, uma vez que depende de seu contexto
extraverbal para significar. Logo, o discurso atrela-se à vida e não
pode ser dissociado de uma circunstância social. Segundo
Volochínov, “Cada enunciação da vida cotidiana compreende,
além da parte verbal expressa, também uma parte extraverbal não
expressa, mas subentendida – situação e auditório – sem cuja
compreensão não é possível entender a própria enunciação”
(VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p. 159). O contexto extraverbal do
enunciado também constitui forças refratárias de conteúdo
ideológico, já que o enunciado se delineia a partir dos aspectos
extraverbais, ou seja, auditório e situação social. Pontuamos alguns
excertos de Volochínov sobre a influência da situação e do
auditório sobre o enunciado:
150
Portanto, a expressão verbal, a enunciação, não reflete passivamente a
situação, ela representa sua solução, torna-se sua conclusão valorativa e, ao
mesmo tempo, é condição necessária para seu posterior desenvolvimento
ideológico [...] Se os falantes não estivessem unidos por essa situação, se não
tivessem uma compreensão comum do que está ocorrendo e uma clara
atitude a esse respeito, suas palavras seriam incompreensíveis, insensatas e
inúteis. Graças ao fato de que para eles existe algo ‘subentendido’. Pode
realizar-se sua comunicação verbal, sua interação verbal (VOLOCHÍNOV,
2013 [1930], p. 173).
151
A charge apresenta uma situação na qual a personagem não
permite que os agentes de saúde “mexam” em seu quintal para
procurar possíveis focos de mosquito Aedes aegypti. O termo
“água parada” aparece diversas vezes, em sentido literal quando
as flechas apontam para locais onde aparece acúmulo de água e em
sentido figurado quando aponta para a cabeça da personagem. No
balão de fala consta “Aqui no meu quintal ninguém mexe!”, se
analisarmos no nível da oração, vislumbramos apenas os aspectos
linguísticos que transmitem a informação de que alguém não quer
que mexam em seu quintal. Entretanto, quando olhamos para o
enunciado, apreendemos os interlocutores e consideramos a
situação social, na qual temos um problema de saúde coletiva
decorrente de omissões individuais, ou seja, o descuido de algumas
pessoas pode favorecer a proliferação do mosquito que transmite a
Dengue. Na charge, a personagem, além de não cuidar de seu
quintal, posiciona-se contrário à fiscalização e cuidado dos
profissionais da saúde, demonstrando uma concepção distorcida
da realidade, quando a expressão “água parada”, sobre sua cabeça,
refere-se às ideias, também “paradas”, que não evoluem.
Na próxima seção apresentamos as discussões sobre o texto
como enunciado.
152
O texto (escrito ou oral) enquanto dado primário de todas essas disciplinas,
do pensamento filológico-humanista no geral. O texto é a realidade imediata
(realidade do pensamento e das vivências), a única da qual podem provir
essas disciplinas e esse pensamento. Onde não há texto não há objeto de
pesquisa e pensamento (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 307).
O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse
contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente,
iniciando dado texto no diálogo. Salientemos que esse contato mecânico de
‘oposição’, só possível no âmbito de um texto (mas não do texto e dos
contextos) entre os elementos abstratos (os signos no interior do texto) é
153
necessário apenas na primeira etapa da interpretação (da interpretação do
significado e não do sentido). Por trás desse contato está o contato entre
indivíduos e não entre coisas (no limite) (BAKHTIN, 2010 [1979], p. 401).
Portanto, por trás de cada texto está o sistema da linguagem. A esse sistema
corresponde no texto tudo o que é repetido e reproduzido, tudo o que pode
ser dado fora de tal texto (o dado). Concomitante, porém, cada texto (como
enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu
sentido (sua intenção em prol da qual ele foi criado). É aquilo que nele tem
relação com a verdade, com a bondade, com a beleza, com a história
(BAKHTIN, 2010 [1979], p. 309 - 310).
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS
155
elementos verbais e absorve as intenções enunciativas dos
interlocutores e as circunstâncias sociais.
REFERÊNCIAS
156
BRAIT, B.; MELO, R. Enunciado/enunciado concreto/enunciação.
In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo:
Contexto, 2013. p. 61-78.
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Guinshuy. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. 5. ed. São Paulo: Ática, 2011
[1984].
JUNIÃO. [Focos do Mosquito]. [S. l.]: Junião - Cartunista e
Ilustrador, [2008]. Disponível em: http://www.juniao.com.br/web
log/archives/charge_cartum/index.html. Acesso em: 22 nov. 2022.
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a
ideologia do contemporânea. Coordenação de tradução de
Valdemir Miotello. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
RODRIGUES, R. H. A análise de gêneros do discurso na teoria
bakhtiniana: algumas questões teóricas e metodológicas. Linguagem
em (Dis)curso – LemD, Tubarão, v. 4, n. 2, p. 415-440, jan./jun., 2004.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do
Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado das Letras, 2009.
SOBRAL, A; GIACOMELLI, K. Das significações na língua ao
sentido na linguagem: parâmetros para uma análise dialógica.
Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, v. 18, n. 2, p. 307-322,
maio/ago. 2018.
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios.
Tradução de João Wanderley Geraldi. Supervisão da tradução de
Valdemir Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013 [1930].
VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo:
Editora 34, 2017 [1929].
157
158
A DIMENSÃO SOCIAL E VERBO-VISUAL DOS
GÊNEROS DO DISCURSO
PALAVRAS INICIAIS
159
composição e da materialidade lingüística dos textos no gênero”
(ROJO, 2005, p. 185). Nessa segunda vertente, há menos espaço
para a busca das marcas discursivas implícitas no texto e que estão
presentes no contexto, isto é, no extralinguístico do enunciado. A
preocupação maior é com a estrutura composicional do gênero,
com o estudo da tipologia predominante nos textos, com a
descrição exaustiva do material linguístico, em detrimento de uma
análise mais demorada das suas condições de produção.
Os PCN (BRASIL, 1998) indicavam o trabalho com os gêneros
na educação básica, mas, embora referenciassem os estudos do
Círculo de Bakhtin, não o faziam no viés discursivo proposto por
esses estudiosos, e sim no viés textual do Interacionismo Sócio-
Discursivo de Bronckart (2003), indicando a metodologia da
Sequência Didática para o trabalho com a língua, numa perspectiva
mais textual e menos discursiva de estudo dos gêneros. Trata-se de
um viés interessante para o trabalho com a língua(gem). No
entanto, no caso deste capítulo, opto por me debruçar sobre a
concepção de gênero em perspectiva dialógica, ou sobre os gêneros
discursivos – a qual foi destacada em outros documentos
pedagógicos ao redor do país, como é o caso das Diretrizes
Curriculares da Educação Básica (PARANÁ, 2008).
Ao escolher tal perspectiva, aponto para a importância do
estudo dos gêneros a partir de sua função social. Ainda, justifico
minha escolha por entender que é essencial (re)conhecer o contexto
da enunciação antes de realizar a análise dos elementos linguístico-
semióticos utilizados na composição do enunciado que se molda
no gênero.
O estudo da língua(gem) nessa perspectiva parte do contexto
de produção do enunciado, dos fatores extraverbais que
motivaram seu uso – e que incluem o contexto da enunciação, a
valoração apresentada sobre o tema, os discursos e as relações
dialógicas presentes no texto-enunciado moldado em determinado
gênero discursivo –, para só depois focar na análise das formas da
língua(gem), nos elementos verbo-visuais do enunciado, uma vez
160
que eles só podem ser compreendidos se considerarmos a situação
de interação que motivou a produção do enunciado em análise.
Trabalhar sob essa perspectiva teórico-metodológica significa
considerar os estudos da língua(gem) inseridos em situações reais
de uso, a fim de tornar o aluno linguística e discursivamente
competente para as diversas situações de interação a que está
sujeito. A escola, em meu entendimento, se constitui em um lugar
de produção de subjetividades, em que se desvendam relações de
poder e na qual se propõem e desenvolvem processos educativos
que devem objetivar, primordialmente, a ampliação do espírito
crítico e da autonomia dos alunos-sujeitos em suas vivências nas
mais diversas esferas de interação social. Nesse sentido, o trabalho
com os gêneros discursivos em sala de aula visa a propiciar o
desenvolvimento desse espaço privilegiado de reflexões que
extrapolam a materialidade linguístico-semiótica e estabelecem
relações entre a língua(gem) e a sociedade.
Assim, neste capítulo – que sintetiza e organiza algumas
reflexões desenvolvidas em um curso de formação continuada para
professores da Educação Básica –, busco, a partir dos pressupostos
do Círculo de Bakhtin sobre a língua(gem)1, discutir a dimensão
social e verbo-visual dos gêneros do discurso.
Para tal, inicialmente abordo alguns pressupostos do Círculo
de Bakhtin sobre a língua(gem) e, na sequência, detenho-me na
análise da dimensão social e verbo-visual do gênero reportagem
perfil, da esfera jornalística, usando como exemplo um enunciado
publicado na Revista Veja.
Como professora e pesquisadora, que se dirige a colegas
professores e pesquisadores, desejo que a leitura destas páginas lhe
seja útil e aprazível, mas, principalmente, desejo que lhe seja
inquietante, e suscite muitas réplicas – na forma de
161
questionamentos, discussões, debates. Afinal, todo enunciado é um
elo no fluxo ininterrupto da comunicação discursiva.
2 Conforme Faraco (2009), faziam parte do grupo Matvei I. Kagan, filósofo; Ivan I.
grafar seu nome tal como ele se encontra nas versões das obras que utilizo como
embasamento teórico, de modo que pode haver variações ao longo do texto.
162
[1979]), o texto apresenta dois polos: o da língua como sistema e o
da língua como discurso, isto é, como enunciado. Nesse último, o
texto não pode ser compreendido dissociado do seu contexto de
produção, das condições e da situação de interação. Assim, o texto-
enunciado é único e irrepetível, apresenta locutor e interlocutor,
tem uma função ideológica e dialoga com outros textos-enunciados
e discursos já produzidos socialmente. Esses dois polos do texto
apontados por Bakhtin (2011 [1979]) – e a complexa relação entre
texto, enunciado, língua e discurso – podem ser didaticamente
visualizados na seguinte figura, elaborada por Rodrigues (2001):
163
Bakhtin e seu Círculo ocupam-se dos textos-enunciados, que
são construídos por meio de sistemas de signos – a língua
portuguesa, por exemplo –, e que são ideológicos, uma vez que, de
acordo com Volóchinov (2018 [1929]), não apenas refletem, mas
refratam o mundo que representam, expressando valorações. A
língua(gem), portanto, não é neutra, ela significa conforme o
contexto em que é utilizada, de modo que uma mesma palavra
pode ganhar diferentes sentidos em diferentes situações. E, se a
língua(gem) não é neutra, também os enunciados produzidos a
partir dela não o são.
Para o Círculo, nossos enunciados são ideológicos. Nós os
elaboramos para expressar nossas vontades, pedidos, opiniões etc.
Toda enunciação tem um propósito e expressa o posicionamento
axiológico do falante. Os enunciados ocupam-se, portanto, do
discurso, ou seja, da “[...] língua em sua integridade concreta e viva
[...]” (BAKHTIN, 2018 [1963], p. 207).
O discurso, dentre outras coisas, diz respeito ao que a
língua(gem) pode comunicar quando efetivamente utilizada num
recorte espaço-temporal específico e às valorações que construímos
sobre o objeto do dizer; está ligado aos elementos extraverbais que
se engendram nos enunciados para constituí-los e construir-lhes
sentidos; é a língua “ideologicamente preenchida” (BAKHTIN,
2015 [1930], p. 40).
E, conforme Bakhtin (2015 [1930]), tendo em vista que nenhum
de nós é o Adão mítico e, portanto, o primeiro a falar de qualquer
objeto do mundo à nossa volta, ao construirmos nossos enunciados,
os discursos que produzimos estabelecem relações com outros
enunciados e discursos já produzidos sobre o mesmo objeto – para
concordar ou discordar deles, refutá-los, complementá-los etc. Nas
palavras de Bakhtin, “[...] todo discurso concreto (enunciado)
encontra o objeto para o qual se volta sempre, por assim dizer, já
difamado, contestado, avaliado, envolvido por uma fumaça que o
obscurece ou, ao contrário, pela luz de discursos alheios já
externados a seu respeito” (BAKHTIN, 2015 [1930], p. 48). O
discurso, desse modo, sempre estabelece um diálogo com outros
164
discursos já produzidos a respeito do mesmo objeto; por isso o
Círculo entende que nossos enunciados são elos na cadeia da
comunicação discursiva. Trata-se de uma concepção dialógica de
língua(gem).
Tal concepção desloca o foco da materialidade linguística para
o processo de interação e os sentidos construídos nele, de modo que
não podemos estudar a língua(gem) sem (re)conhecer o contexto
em que ela foi utilizada. Assim, ao estabelecer uma ordem
metodológica para o estudo da língua(gem), Volóchinov (2018
[1929]) indica que iniciemos pelo contexto extraverbal da
enunciação, pelas “formas e tipos de interação discursiva em sua
relação com as condições concretas”, seguido pelo estudo das
“formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação
estreita com a interação da qual são parte, isto é os gêneros do
discurso [...]” (VOLÓCHINOV, 2018 [1929], p. 220, grifo nosso). Só
depois é que devemos tratar da análise da materialidade linguística.
Os gêneros do discurso, de acordo com Bakhtin (2011 [1979]),
são formas típicas de composição dos textos-enunciados
constituídas no processo de interação humana em suas diferentes
esferas de atividade e organizam o discurso no interior dessas
esferas. Nossos enunciados sempre se moldam em um ou outro
gênero do discurso conforme o campo de atividade humana em
que são produzidos e os objetivos que temos ao enunciar algo.
Esses campos de atividade humana, ou esferas/campos
ideológicos, são instâncias nas quais se organizam/
produzem/circulam os discursos, o que justifica a afirmação de
Bakhtin de que “todos os diversos campos da atividade humana
estão ligados ao uso da linguagem” (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 261).
Tais campos de atividade correspondem às esferas sociais onde a
interação humana ocorre. É no interior dessas esferas que surgem
os gêneros do discurso.
Nesse sentido, Bakhtin afirma que “[...] cada enunciado
particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, aos quais
chamamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 262, grifo
165
do autor). Cada esfera de atividade humana – jornalística,
publicitária, acadêmica, familiar, jurídica, religiosa etc. – organiza,
produz, sistematiza ‘modelos’ de enunciados aos quais seus
integrantes recorrem para organizar seu discurso que são
denominados por Bakhtin (2011 [1979]) de gêneros do discurso.
Na esfera jornalística, por exemplo, produzem-se notícias,
reportagens, editoriais, artigos de opinião, entre outros. Na esfera
acadêmica, são produzidos artigos científicos, resenhas, seminários,
aulas etc. E assim poderíamos citar muitos outros exemplos, uma vez
que, ao fazermos uso da linguagem para elaborar nossos enunciados,
sempre os moldamos em ou outro gênero, que será selecionado
conforme o nosso propósito discursivo: o que dizer, a quem, por que,
quando, para circular em que veículo e suporte, em qual contexto e
esfera de atividade humana? Nas palavras de Bakhtin:
166
como é o caso da epopeia, e outros que se transformaram, como as
notícias impressas, que não têm hoje a mesma organização do
século XIX. Por outro lado, o surgimento da internet, por exemplo,
propiciou o surgimento de diversos novos gêneros discursivos, tais
como os memes e os posts em redes sociais.
Assim, para agenciar os gêneros no ensino de LP, utilizando-
os como ferramentas para o trabalho com a língua(gem), é preciso
considerar que, da mesma forma como os enunciados se compõem
de duas faces – uma extraverbal e outra verbal, ambas em estreita
relação –, também o fazem os gêneros do discurso, uma vez que
eles se materializam nos enunciados, os quais são moldados nos
diferentes gêneros e possibilitam que tais gêneros sejam estudados.
Não basta, então, analisar apenas as características formais dos
gêneros. Na perspectiva da CDL, precisamos realizar um estudo
que contemple sua dimensão social também, que trate da esfera em
que o gênero circula, reconheça sua função discursiva, atente para
os discursos e as relações dialógicas, enfim, que se ocupe de
analisar os gêneros, e os enunciados neles moldados, num viés
discursivo e dialógico. O objetivo, claro, é sempre estimular a
criticidade de nossos alunos, de modo que possam compreender e
atuar melhor na realidade social em que estão inseridos.
Dessa forma, na sequência, abordo as duas dimensões dos
gêneros do discurso e, como forma de exemplificar a discussão
teórica, analiso, brevemente, o enunciado intitulado Marcela Temer:
bela, recatada e “do lar”4, escrito pela jornalista Juliana Linhares e
publicado em 18 de abril de 2016 na versão online da Revista Veja5,
moldado no gênero (da esfera jornalística) reportagem perfil.
Destaco, no entanto, que, para a produção deste capítulo, tive acesso apenas à sua
versão online.
167
DIMENSÃO SOCIAL E VERBO-VISUAL DOS GÊNEROS
DISCURSIVOS
2018 [1929], p. 227). Ele “transcende sempre a língua” e está orientado “para o todo
do enunciado como apresentação discursiva” (MEDVIÉDEV, 2016 [1928], p. 196).
O tema “[...] expressa a situação histórica concreta que gerou o enunciado”
(VOLÓCHINOV, 2018 [1929], p. 228) e é definido tanto pelas suas formas
linguísticas como, e principalmente, pelos seus aspectos extraverbais. “Sem esses
aspectos situacionais, o enunciado torna-se incompreensível, assim como
aconteceria se ele estivesse desprovido de suas palavras mais importantes. O tema
do enunciado é tão concreto quanto o momento histórico ao qual ele pertence”
(VOLÓCHINOV, 2018 [1929], p. 228). A língua enquanto sistema tem significação,
mas não apresenta um tema, um sentido, que só pode existir no enunciado
realizado em dado contexto, como um fenômeno histórico.
168
“[...] é precisamente a diferença das situações que determina a
diferença dos sentidos de uma mesma expressão verbal”
(VOLOCHÍNOV, 2013 [1930], p. 172).
Em consonância, Rodrigues (2001), ao abordar a teoria
bakhtiniana dos gêneros do discurso, afirma que eles se compõem
de duas dimensões distintas, mas indissociáveis: uma social, seu
contexto extraverbal, e outra verbal, que opto por chamar aqui de
verbo-visual 7 , com os aspectos temáticos, composicionais e
estilísticos dos gêneros.
A primeira trata das especificidades da esfera de atividade
humana em que o gênero ocorre, da situação particular de
interação desenvolvida no interior dessa esfera e que motivou sua
produção. A dimensão extraverbal ou social de um gênero diz
respeito, desse modo, conforme Rodrigues (2001), ao contexto
histórico-social e ideológico de sua produção, que inclui sua
finalidade discursiva, ou sua função social, sua circulação e a
concepção de autor e interlocutor desse gênero – quem geralmente
o produz, a partir de qual posição social, e quem costuma ser seu
interlocutor. Além disso, engloba também a situação particular de
interação em que um texto-enunciado, moldado em determinado
gênero, é produzido: quem o escreveu, para quem, em que
momento histórico-social, para circular onde, com qual finalidade
etc. Trata-se de “[...] uma dimensão fundamental para a formação
169
histórica, para a constituição e o funcionamento dos gêneros do
discurso [...]” (RODRIGUES, 2001, p. 120).
O gênero reportagem perfil, por exemplo, é um
desdobramento do gênero reportagem – o qual tem a função de
aprofundar assuntos a respeito de fatos que já estão repercutindo
socialmente. Para Lage (2001), a reportagem combina o interesse do
assunto com o maior número possível de dados, formando um todo
compreensível e abrangente. Uma reportagem é um relato
jornalístico com enfoque específico, mais profundo e envolvente do
que a notícia, sempre de interesse atual. Como forma de destacar
as características da reportagem, apresento o Quadro 1, em que
contraponho tal gênero à notícia.
170
pessoas, famosas ou não, que podem ser de interesse público,
destacando traços dessas personagens de forma a construir uma
imagem a seu respeito.
O gênero faz parte da esfera jornalística, na qual se incluem
enunciados que informam e interpretam fatos que impactam a
sociedade, e os quais são, geralmente, produzidos por jornalistas
em diferentes veículos de comunicação. É importante lembrar que
esses veículos são também empresas e, portanto, possuem
interesses comerciais norteando sua produção jornalística8. Além
disso, cada veículo tem um público pretendido e segmenta sua
cobertura a partir do que pode ser interessante a ele, direciona sua
produção jornalística ao foco nesses interlocutores.
Pautando-nos na CDL, não nos cabe mais acreditar que os
veículos de comunicação e suas matérias jornalísticas são
imparciais. Ora, se a própria língua(gem) de que se valem para
construir seus enunciados não o é, como poderiam sê-lo? Contrário
à ideia de que o jornalismo é um espelho da realidade, há o
paradigma das matérias jornalísticas como uma construção –
guiada por procedimentos rotineiros da profissão, como critérios
de noticiabilidade e de apuração. Desse modo, notícias e
reportagens são compreendidas como um recorte do todo, que,
embora não seja ficcional, sempre expressa um posicionamento
axiológico sobre seu objeto de dizer. Isso porque
171
para influenciar os outros, seja para um posicionamento político diante da
notícia. Quem diz constrói sentidos (VOIGT, 2011, p. 27).
172
sobre a política nacional em seus textos, defendendo, em geral, “ações
de direita”9 (VOIGT, 2011, p. 32) e que tem, enquanto público-alvo,
conforme Voigt (2011), a classe média brasileira. Tais considerações
são importantes para a compreensão dos aspectos verbo-visuais desse
enunciado moldado no gênero reportagem perfil.
Assim, a dimensão social de um gênero abrange aspectos
relacionados à esfera de atividade humana em que é produzido e à
situação de produção. E, como só é possível estudar um gênero a
partir de enunciados nele moldados, é preciso que (re)conheçamos
também o contexto e a situação particular de produção dos
enunciados moldados no gênero estudado, as valorações, discursos
e relações dialógicas que tal enunciado estabelece – todos aspectos
que compõem sua dimensão social e/ou extraverbal.
No caso do enunciado Marcela Temer: bela, recatada e “do lar”,
(re)conhecer o momento histórico-social vivido pelo país quando
da elaboração do texto, as características da esfera social e do
veículo de comunicação que o publicou é essencial para
compreender a reportagem perfil em questão e permite ampliar o
entendimento sobre o texto na medida em que se percebe que há
uma construção discursiva proposital em favor de um projeto
político para o país, apoiada em discursos machistas e patriarcais.
Veja posiciona-se, por meio de texto-enunciado, sobre o cenário
político vivido pelo país naquele momento e, ao fazê-lo, também
pode ter impactado a percepção de muitos de seus leitores sobre a
política nacional.
Além da dimensão social, temos a dimensão verbo-visual dos
gêneros. Bakhtin (2011 [1979]) explica que cada gênero reflete as
condições específicas e as finalidades da esfera que o produziu,
revelando-as por meio dos elementos que o constituem, quais
sejam: seu conteúdo temático, seu estilo e sua construção
173
composicional. Esses elementos, que configuram a dimensão
verbo-visual dos gêneros, só existem em profunda relação com a
dimensão social.
O conteúdo temático trata daquilo que pode ser dito por meio
de um gênero específico, considerando a função social que ocupa
dentro de sua esfera comunicativa. Ele é determinado não só pelas
formas verbo-visuais de sua composição, mas também, e
principalmente, pelos elementos extraverbais da situação que se
engendram nos enunciados, constituindo-os. Cada gênero, desse
modo, comporta um conteúdo temático que está estreitamente
relacionado com o contexto de sua produção, com a função social e
ideológica da esfera comunicativa em que é produzido. O conteúdo
temático diz respeito aos “[...] conteúdos ideologicamente
conformados – que se tornam comunicáveis (dizíveis) através do
gênero” (ROJO, 2005, p. 196).
Esse elemento, portanto, é “[...] um domínio de sentido de que
se ocupa o gênero” (FIORIN, 2016, p. 69) e não deve ser confundido
com o assunto abordado nos texto-enunciados. Rodrigues e
Cerutti-Rizzatti (2011) exemplificam a diferença entre conteúdo
temático e assunto, explicando que:
174
determina o conteúdo temático dos enunciados moldados nesse
gênero. No caso da reportagem perfil analisada, temos que seu
assunto é a esposa de Michel Temer, Marcela Temer. Contudo,
como destacam Rosa e Bilhar (2017), ao lhe traçar o perfil, o
enunciado ressalta algumas de suas características que valora como
elogiosas e constrói um discurso sobre a mulher e sua
posição/função na sociedade. Assim, o conteúdo temático desse
enunciado diz respeito ao papel social da mulher.
O conteúdo temático se estabelece na intersecção entre as
dimensões social e verbo-visual do gênero: ele é determinado pelo
contexto histórico-social de sua produção e pela situação social em
que a enunciação se realiza, mas vai ser expresso na materialidade
das formas linguísticas. Considerando a situação de produção do
enunciado, podemos inferir que seu conteúdo temático é
construído justamente para estabelecer uma oposição entre
Marcela Temer e Dilma Rousseff, de quem a Revista parece buscar
dissociar a imagem de Michel Temer.
Marcela é jovem, bonita, casada com um homem influente e mantida sob sua
proteção, estudada, devotada ao lar, um ideal imaginário de esposa que
ainda se faz muito presente em nossa sociedade. Em outras palavras, trata-
se de esclarecer para os leitores, que os valores que a família Temer defende
e nos quais se constitui são diametralmente opostos àqueles reforçados por
Dilma Rousseff (ROSA; BILHAR, 2017, p. 341).
175
comunicativas e semióticas compartilhadas pelos textos
pertencentes ao gênero” (ROJO, 2005, p. 196). Trata-se do modo de
estruturar o texto-enunciado, de organizá-lo, de dar acabamento à
totalidade discursiva.
Esse elemento também está vinculado à dimensão social e é
por ela determinado. Cada gênero tem uma construção típica, que
é relacionada à sua dimensão social. É por isso que as cartas, por
exemplo, trazem a indicação do local e da data em que foram
escritas, além do nome de seu destinatário e autor, pois “[...] sendo
a carta uma comunicação diferida, é preciso ancorá-la num tempo,
num espaço e numa relação de interlocução, para que os dêiticos
usados possam ser compreendidos” (FIORIN, 2016, p. 69).
A forma composicional do gênero, assim, leva em conta a
situação social de interação em que ele se realiza, considera
elementos como o interlocutor, a função social que ocupa em sua
esfera comunicativa e o conteúdo temático que aborda, para só
então delimitar uma estrutura formal típica. Os gêneros
apresentam uma forma composicional que considera seus aspectos
formais engendrados a aspectos extraverbais, os quais dizem
respeito ao contexto e à situação de interação social específica de
sua realização.
Essa estrutura não deve, contudo, ser entendida como
imutável. Também a composição dos enunciados é relativamente
estável. Nas palavras de Costa-Hübes: “[...] não podemos
aprisioná-la [a construção composicional] em formas estruturais
rígidas, haja vista que todo gênero se organiza dentro de uma
dimensão fluida e dinâmica [...]” (COSTA-HÜBES, 2014, p. 25). A
composição dos gêneros, portanto, é plástica e se modifica
conforme há transformações na sociedade e de acordo com a
situação particular de interação.
Reportagens perfil apresentam alguns elementos
composicionais: 1) título, que deve ser atraente e dar pistas sobre o
que será lido; 2) indicação de autoria e da data da publicação – o
que, na internet, costuma vir acompanhado do horário da
176
publicação10; 3) o texto, que inicia apresentando o perfilado a partir
de um enfoque pré-determinado pelo veículo e traz depoimentos,
do próprio personagem sobre quem se diz algo ou de pessoas
próximas a ele, os quais contribuem para formar uma imagem a seu
respeito, funcionando como argumentos que legitimam o perfil
construído pelo jornalista; 4) imagem(ens) que permita(m)
conhecer o personagem apresentado no texto e/ou ilustrem fatos e
episódios destacados pelos entrevistados; 5) legenda (texto que
complementa as imagens, acrescentando-lhe informações que
permitem ao leitor entender e avaliar o que está vendo).
Há também outros elementos que podem ser acrescidos à
composição de textos moldados nesse gênero. Os principais são:
chapéu, elemento verbal sucinto que precede o título e serve
para antecipar e territorializar a informação central do texto;
linha fina, que embora não seja obrigatória é muito utilizada em
textos do gênero, e se trata de uma frase que complementa o
título, acrescentando-lhe informações, e vem logo abaixo deste,
antes do texto em si; olho, títulos auxiliares ou pequenas frases
postas no meio do texto, em destaque, cujo objetivo é ressaltar
aspectos relevantes da matéria; infográfico, com possíveis
detalhamentos de aspectos abordados no perfil; box, caixa de
texto que traz informações complementares ao assunto discutido
no texto principal.
Na reportagem perfil sobre Marcela Temer, a Revista Veja traz
um chapéu – “Brasil” – que indica o “assunto” 11 com qual se
relaciona o texto e ancora o âmbito em que o devemos
sua última atualização, ancora o texto no tempo, e evita que o veículo seja
confrontado pela divergência de novos dados e fatos relevantes surgidos mais
tarde e não constantes no enunciado.
11 No menu do site da Revista Veja (http://veja.abril.com.br), há uma divisão por
177
compreender: o perfil tem relação com o país, é de interesse
nacional. Trata-se de um elemento que aponta para a importância
que a Revista dispensa ao conteúdo temático do enunciado. O título
e a linha fina, por sua vez, definem o enfoque dado ao perfil e
permitem entrever o conteúdo temático do enunciado. Na linha
fina é possível inferir o posicionamento de Veja sobre a conturbada
cena política que o Brasil vivia à época. Ao tratar Marcela como
“quase primeira-dama”, o veículo expõe sua confiança no
resultado positivo do processo contra Dilma Rousseff no processo
de impeachment.
Ainda, o enunciado se compõe de uma imagem, uma foto de
Marcela Temer, a qual ilustra a personagem em consonância com o
enfoque defendido – de mulher bela, recatada e “do lar”. Marcela
está retratada de forma comportada, com um vestido discreto,
parte dos braços coberta com uma echarpe, os cabelos parcialmente
presos, uma maquiagem suave, construindo a imagem de beleza e
recato que o título destaca. A legenda complementa a imagem e
destaca o relacionamento da personagem com o esposo, o político
Michel Temer, como algo carinhoso e romântico – o suposto ideal
de relacionamento que, numa sociedade patriarcal, as mulheres
deveriam almejar.
Temos uma construção discursiva que, nascendo do contexto
extraverbal, vai se materializando em seu conteúdo temático e
construção composicional, aspectos verbo-visuais do enunciado
moldado no gênero discursivo.
Além disso, os textos-enunciados moldados em um mesmo
gênero também contam com características linguísticas semelhantes:
o estilo. Para Bakhtin, “Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao
enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do
discurso” (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 265). Logo, onde há gênero há
estilo e onde há estilo, há gênero. Não se trata, contudo, apenas do
estilo individual do falante, mas de escolhas linguísticas que o
gênero nos possibilita fazer quando produzimos nossos textos-
enunciados. Nesse sentido, podemos dizer que há estilo do autor,
assim como há estilo do gênero:
178
Todo enunciado – oral e escrito, primário e secundário e também em
qualquer campo da comunicação discursiva – é individual e por isso pode
refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter
estilo individual. Entretanto nem todos os gêneros são igualmente propícios
a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou
seja, ao estilo individual. [...] As condições menos propícias para o reflexo da
individualidade na linguagem estão presentes naqueles gêneros do discurso
que requerem uma forma padronizada, por exemplo, em muitas
modalidades de documentos oficiais, de ordens militares, nos sinais
verbalizados de produção, etc. (BAKHTIN, 2011 [1979], p. 265).
179
configurações específicas das unidades de linguagem, traços da
posição enunciativa do locutor e da forma composicional do gênero”
(ROJO, 2005, p. 196). Expressa também a posição valorativa
daquele que enuncia sobre seu objeto de discurso, uma vez que as
escolhas linguísticas não são neutras, mas sempre revelam um
posicionamento axiológico.
Enunciados moldados no gênero reportagem perfil costumam
apresentar orações subordinadas conformativas, uma vez que o
jornalista escreve sobre o personagem a partir das informações
obtidas em entrevistas com terceiros ou com o próprio perfilado. Há
também o uso do discurso direto, marcado por aspas e seguido de
verbos dicendi, nome do entrevistado e sua qualificação, a qual
justifica a seleção deste entrevistado para a reportagem. O que se
busca é conferir credibilidade à matéria, uma vez que não é o jornalista
quem está dizendo, mas alguém que conhece o personagem. Espera-
se que os textos de reportagens perfil sejam escritos em variedade
padrão, mas isso não implica em que sejam rebuscados e complexos –
o que visa ao seu entendimento pelo público em geral. Tudo que se
apresenta sobre o personagem deve ser comprovado com fatos,
evidências ou depoimentos das fontes entrevistadas.
Enunciados moldados nesse gênero permitem alguma liberdade
estilística aos seus autores – que se expressa nas escolhas lexicais, na
seleção das fontes, no recorte de suas falas e no modo de apresentá-las
(quais aparecem em discurso direto e indireto, por exemplo), na
escolha dos verbos dicendi, na organização das informações ao longo
do texto, na seleção dos fatos e episódios a serem contados e dos
aspectos da personalidade/vida do personagem a serem destacados,
na opção por um narrador em 1ª pessoa (quando o próprio jornalista
convive com o personagem por um tempo e torna-se fonte) ou em 3ª
pessoa (ancorando-se nas observações de outrem para a construção
do perfil). Todos esses aspectos são selecionados conforme o contexto
extraverbal de sua elaboração e o projeto discursivo pretendido pelo
veículo de comunicação.
No caso da reportagem perfil da Veja, a escrita é realizada em
3ª pessoa e se ancora em fatos e depoimentos de terceiros, o que
180
visa a conferir mais credibilidade ao texto – que não se pauta
diretamente na opinião da jornalista, mas de suas fontes. Ainda,
embora se trate de um perfil sobre Marcela Temer, sua voz não
aparece no texto. A jornalista que elabora o enunciado opta por
trazer falas diretas e indiretas de parentes e amigos do casal, mas
não a da própria Marcela, fato que contribui para a ideia de uma
mulher recatada, devotada ao lar, que prefere não aparecer muito
(nem se autopromover em uma revista de circulação nacional). A
voz de Michel Temer, por sua vez, só aparece no trecho de um
poema que é transcrito na reportagem. Essa estratégia parece
implicitar que ele, como presidente interino, é um homem ocupado
com o futuro de uma nação, logo não teria tempo para dedicar à
frivolidade de uma reportagem perfil sobre sua esposa. Os aspectos
estilísticos12, portanto, contribuem para a construção dos sentidos
do enunciado.
Como forma de dar algum acabamento ao que foi dito,
apresento o Quadro 2, no qual busquei sintetizar as características
do gênero reportagem perfil.
12 Vale destacar que o objetivo não era realizar uma análise exaustiva do
enunciado moldado no gênero perfil. Até mesmo por uma limitação espacial,
destaquei apenas alguns aspectos estilísticos. Poderia ser abordado de forma mais
detida, por exemplo, o estilo adotado para a imagem que acompanha o texto, entre
outros aspectos.
181
produção do texto-enunciado moldado no gênero
reportagem perfil.
De forma geral, textos moldados nesse gênero apresentam
título; linha fina; indicação de autoria e da data da
publicação; o texto, que inicia apresentando o perfilado a
Construção partir de um enfoque pré-determinado pelo veículo e traz
composicional depoimentos, do próprio personagem sobre quem se diz
algo e/ou de pessoas próximas a ele; imagens que permitam
conhecer o personagem apresentado no texto e/ou ilustrem
fatos e episódios destacados pelos entrevistados; legenda.
Gênero cujos enunciados costumam apresentar orações
subordinadas conformativas e discurso direto, marcado por
aspas e, em geral, seguido de verbos dicendi; escritos em
Estilo variedade padrão da língua, mas visando a que sejam de
fácil compreensão pelo público em geral; podem ser
narrados em 1ª ou 3ª pessoa; buscam cativar o leitor, o que
permite alguma liberdade estilística aos seus autores.
Fonte: organizado pela autora
PALAVRAS FINAIS
182
dos elementos que os constituem, quais sejam: seu conteúdo
temático, seu estilo e sua construção composicional. Esses
elementos, que configuram sua dimensão verbo-visual, existem
sempre em profunda relação com sua dimensão social.
Organizados a partir das particularidades do campo de atividade
humana no interior do qual surgem, os gêneros são vistos não
apenas como o produto de interações sociais típicas, mas como
formas de estudar e compreender o processo social de interação
dentro de uma esfera comunicativa em dado contexto.
Para estudá-los, analisamos enunciados que se moldam nos
diferentes gêneros. Assim, é preciso considerar o contexto
extraverbal de produção desses enunciados: quando e onde foram
produzidos, por quem, para quem, para circular onde, com qual
finalidade, e em qual situação de interação e cenário social, para
conseguirmos observar as valorações que expressam sobre o objeto
de discurso e as relações dialógicas que estabelecem com outros
enunciados já produzidos socialmente, uma vez que tais aspectos
moldam a dimensão verbo-visual dos enunciados e, portanto, dos
gêneros discursivos.
Como professora de LP, atuante no ensino básico e superior,
acredito que, sem (re)conhecermos (e auxiliarmos nossos
estudantes a fazerem-no também) o contexto extraverbal de
produção dos enunciados moldados nos diferentes gêneros,
focando apenas nos aspectos composicionais e estilísticos,
deixamos de apreender boa parte de seus sentidos e perdemos a
oportunidade de desenvolver, junto a nossos alunos, uma leitura
mais crítica e aprofundada do mundo à nossa volta.
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183
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Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34,
2019 [1926].
185
186
2ª PARTE
REVERBERAÇÕES DA CONCEPÇÃO
DIALÓGICA DE LINGUAGEM NA
PRÁTICA DOCENTE
187
188
SUJEITO, ALTERIDADE E EXCEDENTE DE VISÃO
NO PAPEL SOCIAL DOCENTE
INTRODUÇÃO
189
de visão, pensando nas suas possíveis reverberações nas relações
estabelecidas entre professor e aluno. Na segunda parte,
resgatamos o conceito de ato responsável, em diálogo com o ato de
ser professor e suas atitudes responsivas.
190
em grande parte, é o aluno que baliza/determina as ações do
docente, as suas escolhas, as suas atitudes em sala de aula.
O aluno, por sua vez, nem sempre tem a consciência do quanto
ele determina e pode transformar a vida do professor, já que
socialmente entende essa relação – professor/aluno – como um ato
de subordinação: ele está ali para aprender e o professor para ensinar.
Portanto, é ele (aluno) que precisa ser transformado. Todavia, na
verdade, tanto o docente quanto o aluno se transformam porque,
como sujeitos sociais, estão sempre em constituição, estão
inacabados, são intermináveis. É essa premissa que determina o fato
de que nunca entramos e saímos de uma aula da mesma forma; ao
final de um dia letivo, somos outra pessoa existindo no mundo. Nas
palavras de Pires e Sobral (2013, p. 2010), “Somos todos sujeitos, mas
não somos os mesmos sujeitos sempre, devido ao processo dinâmico
de identificar-se que constitui nossa existência”. Embora cada sujeito
seja único, individual, singular, sua essência é cindida por tons
sociais que lhe imprimem as colorações do mundo, advindas por
meio das interações das quais participa. Por ser assim social, o sujeito
está sempre em transformação.
Mas o que faz com que o sujeito tenha consciência de si e de
seu agir no mundo?
Para responder a esse questionamento, situemos o sujeito no
espaço sala de aula a fim de exemplificar com a interação que se faz
necessária entre o docente e seu outro (o aluno), por meio da qual
se estabelece a alteridade de ambos, constituída por meio do
excedente de visão.
Sujeito e alteridade
191
de reconhecer o quanto o outro é importante em minha vida e o
quanto é necessário interagir, participar da vida social, sempre em
interação com outro sujeito no desenvolvimento das ações, por
meio de um processo dialógico. É na relação com o outro –
princípio da alteridade – que os sujeitos se constituem e, uma vez
constituídos, se alteram constantemente.
Conforme Bakhtin (2010 [1929]), o sujeito só adquire consciência
de si mesmo no contato com outros sujeitos, uma vez que é dialógico
por natureza. Ou, nas palavras de Volochinov e Bakhtin (1926, p. 192),
o “Eu só pode se realizar no discurso, apoiando-se em nós”. É na
relação dialógica com os outros que o sujeito vai se reconhecendo
como ser no mundo, capaz de agir, de pensar, de tomar atitudes, de
decidir, de mudar o rumo das coisas, de transformar a sua realidade
e, consequentemente, a realidade dos outros. Sim, porque se somos
sociais, todos os nossos atos têm consequências não só para nossa vida,
mas também para a vida dos outros.
Trata-se, assim, de um sujeito, conforme Sobral (2009, p. 123,
grifo do autor), que se “[...] define tanto na relação eu-para-mim, isto
é, na e pela subjetividade; e na relação eu-para-o-outro”, o que
corresponde à inserção desse sujeito “[...] no plano relacional
responsável/responsivo que lhe dá sentido: só me torno eu entre
outros eus”.
O que implica tal compreensão quando a transladamos para o
papel do docente?
192
identidade no mundo, na relação eu-para-mim, eu-para-o-outro e
outro-para-mim, conforme sintetizamos na figura seguinte:
193
Para que haja esse reconhecimento, é necessário que
exercitemos, segundo Bakhtin (2003 [1979]), nosso excedente de visão.
É por meio do excedente de visão que compreendemos o outro e,
de certa forma, a nós mesmos. Vejamos, com maior reflexão, este
conceito a seguir.
194
Exercer esse excedente de visão no papel social docente é suma importância
para que saibamos compreender a vida do aluno com suas dificuldades,
limitações, necessidades; mas também enxergar seus conhecimentos já
consolidados, suas alegrias, seus interesses, suas vontades. Ao colocar-se
nesse lugar do aluno, ao estabelecer-se essa proximidade, ao adentrar-se nesse
lugar que ele ocupa, o professor acabará enxergando / compreendendo /
conhecendo esse aluno até mais do que ele (aluno) próprio se conheça.
195
como explica Bakhtin, corresponde ao agir do ser humano no
mundo concreto, o qual retrata suas maneiras de conceber o mundo
por meio da linguagem.
Bakhtin (2012 [1919-1921]) entende que existem dois mundos
dos quais participamos: o mundo da cultura e o mundo da vida. O
mundo da cultura corresponde ao lugar onde objetivamos nossos
conhecimentos teórico/científicos, expomos nossas verdades,
revelamos nossas ideologias, nossas vontades, nossos sonhos. O
mundo da vida, por sua vez, diz respeito à nossa singularidade, ao
nosso eu único, irrepetível, que somente nós conhecemos
exatamente tal como ele é. Segundo o autor, esses mundos muitas
vezes entram em confronto, se tornam incomunicáveis devido aos
embates que travamos entre o papel social que ocupamos e a
singularidade que marca a nossa existência.
Na relação com o ato docente, podemos dizer que o mundo da
cultura e o mundo da vida participam ativamente, uma vez que o fato
de sermos professores, de assumirmos esse papel social de docente,
não exclui ou afasta de nossos atos o que somos individualmente, isto
é, aquilo que faz parte do mundo da vida. Assim, é possível dizer que
ser professor(a) significa manter equilíbrio entre os dois mundos,
conforme ilustramos na figura que segue.
196
Figura 2 – O ato responsável docente
[...] é preciso que o professor crie uma ponte que leve o aluno do conceito
cotidiano para o conceito teórico. É necessário que o professor intelectual –
197
mediador, herdeiro, crítico e intérprete da cultura – assuma seu papel de sujeito
e estabeleça os elos entre os saberes e interpretações que explicam o mundo e o
contexto no qual os alunos estão imersos. A existência dessa ponte – travessia do
mundo da cultura ao mundo da vida – nos permite analisar, então, a construção
do conhecimento e a prática docente à luz da teoria bakhtiniana do ato
(CATARINO, BARBOSA-LIMA, QUEIROZ, 2015, p. 838).
198
ensino, é importante que o aluno alcance, para além de seu mundo
subjetivo (cotidiano, prático, empírico), o mundo da cultura, do
conhecimento científico/teórico, ampliando, assim, seu universo
intelectual. Porém, para que isso ocorra, os atos, tanto do professor
como do aluno, devem ser responsáveis: do professor, devido ao
papel social que ocupa de mediador do conhecimento; do aluno,
pelo papel social que assume ao ir para escola em busca de maior
aprendizagem.
Nesse caso, indagamos: que relação pode ser estabelecida
entre o excedente de visão e o ato responsável?
A resposta para esse questionamento exige que exercitemos o
ato de exceder nossa visão até o outro, isto é, de ocupar o lugar que
o outro ocupa para compreendê-lo melhor e, ao voltar para o lugar
social que ocupamos – ser professor(a) – certamente voltamos
transformados pelo que vimos e sentimos no/pelo outro.
Essa experiência faz com que nos sintamos ainda mais
responsáveis pelo outro (aluno) a partir do papel social que
exercemos. Afinal, se ocupamos o papel social docente e se o outro,
neste momento de sua história de vida, situa-se no papel social de
nosso aluno, então somos responsáveis por ele porque somente nós
poderemos fazer o que ele espera que façamos. Em outras palavras:
não adianta lamentarmos sobre o que o colega do ano letivo
anterior não fez; não adianta nos defendermos citando que o aluno
ainda não sabe fazer; nada adianta apontarmos para o que deveria
ser feito. O que resolve sim, nesse caso, é agir naquele contexto de
ensino, ser responsável pelo papel que assumimos junto com os
alunos e a comunidade, exercitar o compromisso social de conduzir
a aprendizagem.
Como diz Faraco (2011):
[...] por ser único, por ninguém ocupar ou poder ocupar o lugar que ocupo,
não tenho álibi para a existência – diz Bakhtin em Para uma filosofia (2012
[1919-1921], p. 96). Ou seja, eu não posso não agir, eu não posso não ser
participante da vida real. Na vida, sou insubstituível e isso me obriga a
realizar minha singularidade peculiar: tudo o que pode ser feito por mim
não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca (FARACO, 2011, p. 25).
199
Como são sábias essas palavras! E o quanto elas nos ajudam a
compreender o nosso papel social docente. Naquele espaço da sala
de aula, naquele momento histórico, na interação com nossos
alunos, somos a única pessoa responsável por eles. Ninguém
poderá nos substituir ou fazer por nós o que somente nós podemos
fazer. É importante entendermos, recorrendo novamente a Faraco
(2011, p. 24), que “Na vida, cada um de nós ocupa um lugar único,
isto é, um lugar irredutível ao ocupado por qualquer outra pessoa”.
Portanto, em vez de lamentarmos pelo que não foi feito, ou
ficarmos apontando para o que o aluno não sabe fazer, é importante
nos concentrar naquilo que podemos fazer por ele, dentro das
condições (econômicas, políticas e sociais) que temos.
Conforme diz Bakhtin (2012 [1919-1921]):
Em outras palavras:
200
palavras de Catarino, Barbosa-Lima e Queiroz (2015, p. 840), “Cada
sujeito ocupa um lugar irrepetível e insubstituível no mundo” e,
por isso, na perspectiva de Bakhtin, o sujeito deve ser responsável
por seus atos e ter obrigação ética com relação ao outro.
Com base neste princípio, concretiza-se a alteridade do sujeito
docente, conforme ilustra a figura seguinte:
201
concretizar de forma mais harmoniosa. Fica mais fácil exercitar o
excedente de visão e compreender o lugar que o outro (aluno) ocupa na
escola, na vida do professor e na sociedade. Por outro lado, o agir do
outro-para-mim se concretiza com maior proximidade.
Em síntese, Catarino, Barbosa-Lima e Queiroz (2015, p. 841)
entendem que, quando tomamos consciência de como a alteridade
nos constitui como docentes e constitui o nosso aluno, “[...] deixa
de ser um simples conceito teórico, instala-se no processo contínuo
de tornar-se professor, gerando tensões, crises, indagações”. São
essas crises e indagações que criam a verdadeira dinâmica do ser e
do agir no mundo, assumindo-se como um sujeito que, ao ensinar,
transforma-se e transforma o outro, sempre em direção a novas
demandas sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
202
Quando recorremos ao conceito de alteridade para refletir sobre
suas implicações nas relações que se estabelecem entre professor e
alunos, chegamos ao entendimento de que esse conceito se vivifica
quando o sujeito toma consciência de si, de seu papel social no
mundo, e da importância do outro. Disso resulta que:
a) O sujeito só adquire consciência de si mesmo no contato
com outros sujeitos, uma vez que é dialógico por natureza;
b) O princípio da alteridade do sujeito relaciona-se,
diretamente, com a constituição de sua identidade;
c) O sujeito se define na relação eu-para-mim, eu-para-o-outro e
se funde na compreensão do outro-para-mim;
d) Todas as decisões que tomamos como sujeitos docentes têm
consequências tanto na relação do eu-para-mim quanto na relação
do eu-para-o-outro;
Na concretização da alteridade e da identidade do sujeito está
o excedente de visão que possibilita ao sujeito sair de si e ocupar o
lugar do outro para voltar a si transformado. Esse exercício de
colocar-se no lugar outro possibilita que:
a) O sujeito exercite sua sensibilidade para não só
compreender o outro, mas também respeitar o mundo dele, seus
posicionamentos, suas verdades, suas ideologias;
b) O professor conheça melhor seu aluno, colocando-se no
lugar que ele ocupa, aproximando-se mais de seus conhecimentos,
de suas necessidades, e volte para o papel de docente transformado
pelo que viu no outro;
c) A sala de aula se torne um lugar de diálogo, de interação, e
ensinar torne-se um ato responsável.
Ao tratar do ato responsável, pudemos entendê-lo como o agir
responsável de quem assume um papel social neste mundo.
Independente de qual seja, somos responsáveis pelo ato que coube
a nós desenvolver. Nesse sentido, quando relacionamos com a
prática docente, entendemos que:
a) Somos responsáveis pelo que ensinamos aos nossos alunos
e pela sua aprendizagem;
203
b) Ninguém fará por nós o que é de nossa responsabilidade e
que cabe somente a nós fazer;
c) Como sujeitos únicos, individuais (embora sociais),
ninguém poderá nos substituir;
d) Cabe a nós, docentes, a tarefa de lidar com o mundo da
cultura, tornando os conhecimentos científicos/teóricos
acessíveis/compreensíveis ao aluno, estabelecendo uma ponte com
o mundo da vida.
E assim, como sujeitos docentes, cabe o desafio de exercitar
conscientemente nosso papel social, promovendo nosso excedente
de visão para que a empatia com o outro (aluno) seja fortalecida, na
certeza de que, nesse encontro da/na sala aula, somos todos
constituídos e transformados. Nesse caso, que seja para uma vida
melhor.
REFERÊNCIAS
204
PIRES, V. L. Dialogismo e alteridade ou a teoria da enunciação em
Bakhtin. Revista Organon, v. 16, n. 32-33, p. 35-48, 2002.
PIRES, V. L.; SOBRAL, A. Implicações do estatuto ontológico do sujeito
na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov.
Bakhtiniana, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 205-219, jan./jun. 2013.
SOBRAL, A. O ato “responsível”, ou ato ético, em Bakhtin, e a
centralidade do agente. Signum, Londrina, n. 11, v. 1, p. 219-235,
jul. 2009.
VOLOSHINOV, V. N.; BAKHTIN, M. M. Discurso na vida e discurso
na arte (Sobre poética sociológica). Tradução para o português feita
por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tisza, para uso didático, feita
a partir da tradução inglesa de I. R. Titanic (Discourse in life and
discourse in art – concerning sociological poetics), publicada em V. N.
Voloshinov, Freudism, New York. Academic Press, 1976 [1926].
205
206
DE LEITOR A MEDIADOR:
EXPERIÊNCIAS DA FORMAÇÃO DOCENTE
INTRODUÇÃO
207
especialmente da prática de leitura, como também são
apresentadas as Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação no Ensino (TDIC), uma vez que contribuem para o
trabalho desenvolvido. Por fim, são relatadas as experiências
didático-pedagógicas desenvolvidas, bem como são expostos os
resultados alcançados.
208
para servir de referência nacional para a formulação de currículos
de todos os sistemas educacionais brasileiros direcionados à
Educação Básica. Esse documento, cujo objetivo é definir o
conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que
todos os alunos precisam desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica, estabelece, como competências
específicas de linguagens para o Ensino Fundamental e Médio,
ações voltadas a: “compreender a língua como fenômeno cultural,
histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de
uso [...], apropriar-se da linguagem escrita, reconhecendo-a como
forma de interação nos diferentes campos de atuação da vida social
[...] e ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos
[...]” (BRASIL, 2018, p. 83). O objetivo é favorecer a formação de
sujeitos conscientes de sua realidade e aptos a exercer sua
cidadania, uma vez que essas atividades contribuem efetivamente
para a ampliação dos letramentos, possibilitando a participação
significativa e crítica nas diversas práticas sociais de leitura,
oralidade e escrita.
Neste estudo, dada sua extensão, focalizamos o trabalho com
leitura efetuado no curso de Letras em tela. Este trabalho aborda o
processo de leitura dos acadêmicos iniciantes (que se percebem
como recém-saídos do Ensino Médio e, ao mesmo tempo, como
futuros docentes mediadores de leitura), até os acadêmicos
concluintes (que vivenciam no estágio a prática do fazer docente).
Isso se dá por acreditarmos que nossa tarefa, como professores de
língua portuguesa, é fundamentar nossa prática a partir de
interações sociais mediadas por práticas discursivas, sendo o texto-
enunciado o objeto de ensino da língua, em que as atividades
propostas devam estar contextualizadas e inter-relacionadas com
todas as práticas de linguagem.
Entender a natureza do texto-enunciado, ou seja, saber de
onde ele vem, com qual intenção foi produzido, qual o objetivo do
autor, para quem produziu, em qual veículo está circulando, quais
foram as escolhas lexicais, etc. possibilitará ao leitor/interlocutor
recuperar a natureza do gênero e isso irá auxiliá-lo na construção
209
do sentido mais amplo para, assim, tornar-se um leitor cada vez
mais crítico. Não considerar a natureza discursiva do enunciado –
fatalmente uma leitura apenas formal, sem vida,
descontextualizada, sem historicidade – é um trabalho abstrato,
com uma língua morta, totalmente adverso à concepção de língua
viva, a qual surge e se modifica pela interação social dos falantes.
Na sequência, considerando o contexto educacional atual,
abordamos sobre as tecnologias digitais de informação e
comunicação (doravante TDIC) e suas contribuições para o ensino.
210
Para o sujeito poder participar e interagir nessa nova estrutura social, precisa
de uma nova alfabetização e um novo letramento, ou seja, precisa aprender
essa linguagem digital para que então possa ler e escrever nas plataformas
virtuais e compreender a natureza conectada da contemporaneidade, com
ética, de forma democrática e colaborativa, ou seja, o sujeito precisa ser
multiletrado.
211
contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez
mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas
formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e
de interagir. A web possibilita novas ferramentas de edição de
textos, o que os tornam acessíveis a qualquer um para a produção
e circulação. Não só é possível acessar conteúdos variados em
diferentes mídias, como também produzir e publicar fotos, vídeos
diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas,
revistas e livros digitais etc.
Para que a escola participe efetivamente desse processo, torna-
se necessário que ocorra a formação de professores para que
tenham condições de integrar, de forma crítica, as TDIC à prática
educativa. Nessa perspectiva, o trabalho desenvolvido com os
acadêmicos licenciandos buscou contribuir para que eles se
apropriassem dessa cultura digital para que, futuramente,
utilizem-na em sua própria aprendizagem, bem como na prática
pedagógica, refletindo sobre por que e para que usar a tecnologia
no ensino.
212
KOCH; ELIAS, 2008; OLIVEIRA; ANTUNES, 2013; pesquisas
Retratos da Leitura no Brasil, entre outras).
Por meio de leituras dirigidas, exercícios de escrita (resumo e
resenha) e questionamentos, os acadêmicos constroem o sentido
dos textos a que são expostos e, por meio das estratégias
apresentadas por Solé (1998), são levados a refletir sobre a própria
leitura e sobre a mediação leitora que cabe ao docente. Conforme
são desenvolvidas as leituras teóricas, especialmente de Menegassi
e Angelo (2022), são apresentadas as concepções de leitura e seus
reflexos nas práticas escolares. Culminando na atividade prática
como componente curricular (APCC), tem-se a realização de
pesquisa bibliográfica e documental, na qual os acadêmicos
selecionam livro didático empregado na rede pública, escolhem um
dos capítulos do livro e executam a análise do trabalho de leitura
efetuado, observando os textos divulgados, as atividades propostas
e o encaminhamento do livro didático a partir das discussões
teóricas realizadas ao longo da disciplina.
No quadro a seguir, é possível visualizar os aspectos
trabalhados:
213
PROJETO PIBID: O PRIMEIRO CONTATO COM A ESCOLA
214
Após leituras e discussões sobre o ensino de leitura, numa
perspectiva dialógica, especificamente das estratégias de
compreensão leitora (SOLÉ, 1998; MENEGASSI, 2010), da defesa de
que o texto não é pretexto (LAJOLO, 1988) e do desenvolvimento
da mediação docente no trabalho de leitura (OLIVEIRA;
ANTUNES, 2013); do acompanhamento virtual das aulas (via Meet
durante ensino remoto e híbrido) e da participação da equipe do
Pibid em dois cursos de formação docente voltados ao uso de
tecnologias para o ensino de língua 2 , os pibidianos vivenciaram
uma experiência escolar na qual a docente (supervisora da escola
alvo) selecionou a obra “A bolsa amarela” (BOJUNGA, 2006) como
leitura fruição.
Frente a esta realidade escolar, os acadêmicos refletiram sobre
o ensino de leitura, descreveram o protocolo de leitura
desenvolvido e apresentaram propostas de atividades
desenvolvidas por meio de TDIC. As situações vivenciadas
envolveram tanto o processo de construção conjunta por meio do
diálogo entre docente e discentes, quanto a participação guiada
pela docente (via intertextualidade e questionamentos), para
fomentar a futura leitura silenciosa, individual e construtiva. Neste
sentido, a contribuição do Pibid se concretizou na preparação de
estratégias via plataformas virtuais, como Storyjumper3 (Disponível
em: https://www.storyjumper.com/book/read/112734682/A-
BOLSA-AMARELA#) e Make Beliefs Comix 4 (Disponível em:
https://makebeliefscomix.com/), para incentivar a leitura
emancipatória.
formato digital.
215
Figura 1 – Leitura e ilustração da obra “A bolsa amarela”
5O meme é um dos gêneros que surgiram na era digital com intuito de viralizar,
de evocar o humor, crítica, sátira sobre determinados assuntos ou eventos da
sociedade. Em contexto pedagógico, o meme tem um potencial enorme tanto nas
aulas de leitura (construção de sentidos) como nas de produção de texto, uma vez
que veicula uma mensagem concisa, aliando o verbal e o não verbal.
216
que fomentaria a construção da ilustração na página subsequente.
Em formato de livro e com atrativos visuais, como movimento e
som de página sendo virada durante a execução da leitura, a equipe
acreditou na potencialidade da plataforma e da estratégia sugerida.
Infelizmente esta sugestão não pode ser utilizada por completo
devido a problemas tecnológicos (laboratório de informática
desatualizado, poucos computadores utilizáveis, problemas de
conexão, entre outros). Na época, o aplicativo só tinha acesso de
produção por meio de computadores, sendo possível apenas ler a
obra no aplicativo via celular, que era a opção tecnológica viável,
graças aos aparelhos que os alunos portavam. Ou seja, a opção pelo
Storyjumper apenas facilitou o acesso à obra. Mas, a título de sugestão
didática, foi aqui relatada para que outros docentes possam
implementá-la, conforme suas realidades escolares.
217
provocativa e emancipadora, a equipe selecionou um gênero
discursivo bem aceito pelos alunos do Ensino Fundamental II e, ao
propor a releitura da obra de Bojunga, alcançou êxito.
Neste período, as aulas ocorriam de forma híbrida, mas a
equipe Pibid ainda não tinha autorização para frequentar
presencialmente a escola alvo. Desta forma, a professora regente
inseriu os alunos e os pibidianos numa Meet e projetou em sala a
participação on-line da equipe Pibid. Uma das pibidianas ficou
responsável por explicar a plataforma e mostrar como usar os
recursos visuais (balões, personagens, cenários, entre outros) aos
educandos. Outra pibidiana, via chat, auxiliava respondendo
dúvidas que lá eram colocadas.
Estes resultados alcançados (de experiência de prática docente
remota, de interação entre pibidianas e discentes com supervisão
da docente e de aplicação da teoria à realidade escolar) foram
enriquecedores para a formação destes acadêmicos de 1° e 2° ano
de Letras, bem como foram positivos para a formação continuada
das docentes supervisoras da escola alvo.
218
Um dos conteúdos trabalhados nas disciplinas mencionadas
refere-se à prática de leitura, em que trabalhamos com as
concepções de leitura, com análise das questões de leitura nos
livros didáticos vigentes e com a elaboração de perguntas de leitura
com base nos gêneros discursivos. Para o desenvolvimento desta
prática, elegemos como escopo teórico as formulações de Geraldi
(1991; 2002), Menegassi (2010), Menegassi e Angelo (2022) e Costa-
Hübes (2011; 2015). Para tanto, são desenvolvidas leituras dirigidas
e discussões em sala de aula. Na sequência, abordamos as
diferentes concepções de leitura que coexistem nas salas de aula e
nos materiais didáticos, observando as concepções de linguagem
que amparam cada foco de leitura.
O percurso teórico é importante e necessário, uma vez que se tem
uma perspectiva do sujeito leitor que se pretende formar, bem como
visualizam-se as concepções de língua e de ensino que possibilitam as
diferentes formações de leitor e os complexos contextos escolares em
que se dão. Nesse sentido, pactuamos com Menegassi e Angelo (2022),
ao afirmarem que de acordo com os pressupostos teóricos e
metodológicos “que amparam cada um dos diferentes conceitos de
leitura envolvem uma visão distinta do que consiste o ato, o processo
e a atividade de leitura, além de orientar e justificar determinadas
propostas didáticas em torno da compreensão da leitura e da
formação e do desenvolvimento do leitor na escola brasileira”
(ANGELO; MENEGASSI, 2022, p. 20-21). Desta forma, pretendemos
que os acadêmicos licenciandos possam refletir sobre sua atuação
como futuros docentes de língua portuguesa.
Na sequência das atividades, solicitamos que elaborem
questões de leitura. Para essa atividade, valemo-nos de um quadro
proposto por Costa-Hübes (2015) em que a autora organiza os
enfoques de leitura e as atividades a serem produzidas, conforme
quadro a seguir:
219
Quadro 2 – Roteiro para elaboração das atividades de leitura
ENFOQUES
PERSPECTIVAS DE LEITURA ATIVIDADES
DA LEITURA
1) Recuperar o contexto de produção
Foco Discursivo
2) Finalidade do texto e do gênero
1) Questões de antecipação (foco no
leitor)
2) Questões de confirmação (foco no
Foco na leitor)
interação autor- 3) Questões de localização de informação
texto-leitor (foco no texto)
4) Questões de inferenciação
5) Questões de generalização (Foco no
leitor)
1) Percepções de relação de
intertextualidade
Foco Discursivo
2) Percepções de interdiscursividade
3) Percepções de outras linguagens
Linguístico- Questões que explorem as marcas
Discursivo linguísticas do texto
Fonte: Elaborado por Costa-Hübes (2015)
220
a produção discursiva, dando espaços para a intertextualidade, a
interdiscursividade e a percepção de outras linguagens.
As questões com foco na interação buscam contribuir na
construção de sentidos, que se instituem no encontro a distância
entre leitor e autor por meio do texto, tendo como elemento
essencial as questões de nível inferencial. De acordo com Marcuschi
(2008, p. 249), “as inferências na compreensão de texto são
processos cognitivos nos quais os falantes ou ouvintes, partindo da
informação textual e considerando o respectivo contexto,
constroem uma nova representação semântica”. São as questões
mais complexas, pois exigem do leitor a produzir um dado que não
está disponível na superfície do texto, mas que permite a produção
à medida que são acionados os conhecimentos do leitor, do
contexto, mais as informações explícitas no texto. Entretanto, nesse
foco interativo há questões de antecipação à leitura, confirmação
das hipóteses, questões de ordem explícita e de generalização.
Compreendemos que a leitura deve ser um processo de
interação e dialógico, em que o autor e leitor se encontram no texto.
Nessa perspectiva, a leitura não pode se restringir à materialidade
do texto; é necessário explorar o extralinguístico, para os
componentes discursivos que são importantes também no processo
de construção de sentidos no ato de ler. Desta forma, propor que os
acadêmicos licenciandos exercitem a elaboração de questões de
leitura, favorece para que compreendam o percurso que o
educando deve fazer para construir sentidos ao que está sendo lido,
observando os elementos da materialidade textual, mas também os
aspectos extraverbais, ambos fundamentais para que o processo do
desenvolvimento das capacidades leitoras do educando se
desenvolva de forma plena.
O texto utilizado para que os acadêmicos produzissem as
questões de leitura, de acordo com o Quadro 2, foi de Stanislaw
Ponte Preta (1986), intitulado Conto de mistério. Esse texto foi
publicado da obra do próprio autor “Dois amigos e um chato”, da
Editora Moderna, em 1986.
221
O exercício de produção das questões de leitura suscitou a
revisitação dos conceitos teóricos trabalhados, mediações
constantes da nossa parte como docentes. Os resultados na
elaboração das questões foram profícuos, conforme
exemplificamos com as questões elaboradas por alguns acadêmicos.
Fizemos o recorte para exemplificação das questões elaboradas no
enfoque discursivo.
222
Figura 4 – Questões elaboradas no enfoque discursivo – Exemplo 2
223
enunciado. Acreditamos que ao exercitarem a elaboração de
perguntas de leitura, os acadêmicos consigam compreender os
percursos que os estudantes precisam fazer para construir sentidos
para o texto que está sendo trabalhado em sala de aula, ou seja, a
materialidade linguística por si só não é suficiente. Assim, o
educando/futuro docente precisa compreender o extraverbal, bem
como adentrar os não ditos no texto, atento ao que está implícito
para, desta forma, no exercício de mediar a leitura, possa formular
questões orientadoras e instigantes aos seus futuros alunos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
224
serviço do ensino de língua), nossa explanação sirva como registro
e divulgação.
REFERÊNCIAS
225
LAJOLO, M. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, R. (org.).
Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 9. ed. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1988.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MENEGASSI, R. J. Leitura e ensino. 2. ed. Maringá: Eduem, 2010.
OLIVEIRA, T.; ANTUNES, R. Negligência na mediação do
professor no trabalho de leitura. In: BORTONI-RICARDO, S. M.;
MACHADO, V. R. (org.). Os doze trabalhos de Hércules: do oral para
o escrito. São Paulo: Parábola, 2013.
PONTE PRETA, S. Conto de mistério. In: PONTE PRETA, S. Dois
amigos e um chato. 25. ed. São Paulo: Moderna, 1986. p. 65-66.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
UNIOESTE. Tecnologias digitais e aplicativos para aulas de línguas - módulo
I. [Curso de Extensão nº 61871/2021]. Cascavel: PROEX, 2021.
UNIOESTE. Tecnologias digitais e aplicativos para aulas de línguas - módulo
II. [Curso de Extensão nº 61870/2021]. Cascavel: PROEX, 2021.
226
ENTONAÇÃO VALORATIVA EM ATIVIDADES
COM TIRINHA DE QUADRINHOS
DO QUESTIONAMENTO INICIAL
227
constitui como leitura interior no indivíduo (BAKHTIN, 2016
[1979]; VOLÓCHINOV, 2013), a permitir que o significado seja
construído, assim como a produção de sentidos. Para melhor
entendimento, toma-se o pequeno diálogo a seguir como exemplo:
228
Figura 1 – Enunciado multissemiótico no quadrinho de Magali
229
o que acontece nesse caso. Além disso, a expressão facial de Magali
é muito definida também, a permitir compreender que seu ato de
regar tem um objetivo certo, que é colher frutas, uma metáfora
gestual. Nesse aspecto, Volóchinov (2019 [1926], p. 126) comenta que
“A metáfora entonacional tem um parentesco estreito com a metáfora
gestual [...]; nesse caso, entendemos o gesto de modo amplo, o que
inclui a expressão facial, tomada como a gesticulação do rosto”, a
demonstrar que a entonação valorativa também é observada na
expressão facial da personagem, que leva à produção de sentido de
que Magali rega a planta com o objetivo de que cresça e lhe dê frutos.
Dessa forma, a entonação valorativa é um elemento necessário à
constituição do discurso e da produção de sentidos aos enunciados,
que deve ser ensinada e trabalhada em situação de ensino.
A partir desses aspectos, ao se considerar a sala de aula e o
ensino de língua, surgem questionamentos sobre como a entonação
valorativa se expressa em textos multissemióticos igual a tirinha de
quadrinhos, em como trabalhar por descrição, compreensão,
análise e reflexão com esse elemento no ensino de leitura e
produção textual escrita. É certo que a entonação já é considerada
no trabalho com gêneros discursivos na situação de ensino, mais
especificamente nas salas de aula das escolas, entretanto, o que
diferencia o trato com a entonação valorativa é justamente o valor
social presente na temática apresentada no discurso, que é
discutido a partir da produção de sentidos exarada por esse
elemento do dialogismo, como bem expõem Costa-Hübes e
Menegassi (2021). Essas são dúvidas expressas que permitem o
questionamento principal deste texto: “Como a entonação
valorativa contribui em atividades de leitura e produção textual em
situação de ensino?” Para responder à questão, escolheu-se a
tirinha de quadrinhos a seguir como proposta analítica e reflexiva.
230
Figura 2 – Tirinha de quadrinhos como proposta analítica e reflexiva
231
fechados, boca aberta para falar algo, mão direita estendida a
presentear algo, mão esquerda sobre o peito – que sinalizam a
“memória semântica-social depositada na palavra” (DAHLET,
1997, p. 264), a apresentar a expressão de amor de Quinzinho a
Magali, em atos socialmente comuns de revelação do sentimento.
Justamente essa memória é de conhecimento do leitor, pois o
sentido do enunciado no primeiro quadrinho foi produzido no
processo de leitura, na compreensão do texto, só então é possível
se pensar em entonação valorativa, em que o dito e o não dito se
ligam (VOLOCHÍNOV, 2013). Além dessas marcas, Quinzinho
também está ajoelhado, em posição de humildade de oferecimento,
isto é, numa posição de alguém que oferece algo a outrem superior,
no caso, o seu amor à princesa Magali. Para tanto, sua perna direita
está elevada, assim com seu braço e sua mão, a ter a perna esquerda
dobrada, como também está o braço direito. Todas essas expressões
corporais formam os gestos, os elementos cinésicos, que tem a ver
com atitudes corporais, gestos, trocas de olhares, mímicas faciais
(MELO; CAVALCANTE, 2007), ou àquilo que a Base Nacional
Comum Curricular denomina como paralinguístico na habilidade
EF15L912: “Atribuir significado a aspectos não linguísticos
(paralinguísticos) observados na fala, como direção do olhar, riso,
gestos, movimentos da cabeça (de concordância ou discordância),
expressão corporal, tom de voz.” (BRASIL, 2017, p. 93);
2º) no segundo quadrinho, Quinzinho expressa atitude rápida,
ao dar a volta sobre o corpo, apresentada pelas marcas notacionais
de movimento atrás do seu corpo em formato de dois semicírculos.
Também é marca valorativa o olhar para cima que o personagem
apresenta, a dirigir-se à Magali, apontando o dedo da mão
esquerda para frente, com o braço ereto na direção, como a indicar
para o lugar em que buscará a escada. Nesse conjunto de sentidos,
as pernas do personagem se movimentam a fazer a rotatória no
corpo, a ter a perna esquerda à frente e a direita para trás, em
situação de movimento corporal rápido.
232
B) Nas marcas de espaço
233
- Buscarei uma escada para alcançá-la em sua torre, assim
manifestar melhor meu amor a você!;
iii) balão com o sorvete:
- Quinzinho, então, aproveita e traz um sorvete de morango
para mim!.
234
DA ENTONAÇÃO VALORATIVA EXPRESSA NOS BALÕES
DE FALA
235
Quadro 2 – Possibilidades de expressão linguística sobre a representação do balão (2)
236
Cada uma dessas possíveis falas está carregada de tom
valorativo, de expressão valorativa que se manifesta pela
entonação, na mente do leitor, a criar uma imagem mental
(VOLOCHÍNOV, 2013), uma imagem acústica, uma voz interior no
indivíduo (BAKHTIN, 2016 [1979]). A interação que o leitor tem
com o quadrinho e com as possíveis falas permite a construção de
uma entonação expressiva, valorativa, que permite ao leitor a
produção de um discurso interior, a partir da imagem mental
acústica criada. Sobre isso, Dahlet (1997, p. 264) comenta que “o
sentido de voz em Bakhtin é mais de ordem metafórica, porque não
se trata concretamente de emissão vocal sonora, mas de memória
semântico-social depositada na palavra.”. Justamente essa emissão
vocal sonora, que se realiza na mente do leitor, é a entonação que
permite a produção de sentido. Não que a voz esteja na cabeça, mas,
pela leitura da fala do personagem, pelos conhecimentos já
armazenados, pela memória semântico-social, isto é, de
significados sociais angariados nas mais diferentes interações
discursivas já participadas, o leitor consegue produzir a entonação,
a modulação de voz que se manifesta em seu discurso interior, a
imagem mental da voz acústica. Nesse aspecto, a entonação é
“Lugar de memória acústica e social, pois tanto o autor quanto
leitor estão totalmente impregnados de entonações, desde a mais
tenra infância, e sua entonação depositada no texto constitui-se da
sedimentação dessas diversas entonações ao mesmo tempo que
reflete o grupo social ao qual pertencem.” (DAHLET, 1997, p. 265).
O leitor e o produtor do texto são seres sociais por natureza, que
vivem em interações discursivas constantes, portanto, com
memórias acústicas, semânticas e sociais.
Bezerra e Menegassi (2022, p. 195), ao citarem Dahlet (1997),
comentam que, “Para assumir esse papel social, o leitor precisa
adentrar no universo vocal/acústico de sua manifestação
pragmática”, isto é, precisa adentrar ao enunciado, junto com os
elementos axiológicos do discurso – o extraverbal, a avaliação
social e a entonação (BAKHTIN, 2010 [1986]), para produzir o
sentido definido pela materialidade linguística, pelo elemento da
237
entonação valorativa, já que a voz do sujeito é ouvida no texto, a
partir da entonação.
238
10) Qual é o significado da cor de fundo no
primeiro quadrinho, em relação às posições
e ações das personagens?
Fonte: elaborado pelo autor; figura de Sousa ([19--?])
239
Quadro 6 – Atividades propostas ao terceiro quadrinho
C) TERCEIRO QUADRINHO ATIVIDADES
20) O que representa o local em que Magali
está?
21) O que significa Magali nesse local da
cena?
22) O que representa o gesto da mão
esquerda de Magali?
23) O que significa o balão de fala de Magali?
24) Qual é o sentido do balão de fala de
Magali?
25) Qual valor é possível identificar no balão
de fala de Magali?
Fonte: elaborado pelo autor; figura de Sousa ([19--?])
240
produção textual escrita. Os registros de pesquisa foram coletados
por meio dos Projetos de Pesquisas “Linguagem em interação:
ensino, letramento e diversidade” (Processo 1410/2021, COPEP
48128521.1.0000.0104) e “Escrita, revisão e reescrita na formação
docente – Fase 2” (Processo 2796/2021, COPEP: 54133216.
6.0000.0104), desenvolvidos junto à Universidade Estadual de
Maringá, com aprovações junto ao Comitê Permanente de Ética em
Pesquisa em Seres Humanos-COPEP-UEM.
Para tanto, foram explorados conhecimentos sobre o emprego
de verbos de elocução nas narrativas, com discussões sobre os
valores que expressam em determinados contextos. Para isso,
foram analisadas as possibilidades de entonações dos balões da
tirinha, com cuidado especial ao último, foco do trabalho da
produção escrita junto aos docentes participantes.
Cada professor foi convidado a produzir a situação final
escrita para a cena do último quadrinho, a representar o diálogo
que poderia existir a partir dali entre Magali e Quinzinho, mesmo
que este não esteja lá representado.
O trabalho se efetivou em três momentos de produção:
1º) exposição escrita da ideia apresentada na cena do
quadrinho, com introdução de verbos de elocução a representar
possível fala de personagem, sem a preocupação de apresentar a
fala em discurso direto;
2º) produção do texto a inserir a fala de personagem no corpo
do parágrafo, com utilização de verbo de elocução, dois-pontos e
fala entre aspas, a manifestar o discurso direto de forma inicial;
3º) produção da cena escrita com os elementos da narrativa –
tempo, espaço, personagens, ações – fala de personagem em
discurso direto, a conter: verbo de elocução, deslocamento da fala
em parágrafo próprio, emprego de travessão e a fala da
personagem.
Os exemplos estão dispostos, com destaque dos verbos de
elocução em grifo:
241
Quadro 8 – Situações finais produzidas pelos professores
I.
Na tarde quente no castelo Magali vai até a janela e esbraveja para trazer um
delicioso sorvete de morango.
Na tarde quente no castelo Magali vai até a janela e esbraveja: “Por favor, me
traga um sorvete de morango!”
242
Nos três exemplos, o leitor consegue, pelas marcas linguísticas
definidas nos textos, compreender os possíveis sentidos expressos
pelos personagens, com as entonações características. Nesse
aspecto, “[...] as palavras dispostas em um texto fazem parte das
escolhas do autor que, ao selecioná-las, carregam-nas de tons
valorativos que expressam sua avaliação sobre o tema”
(VOLOCHÍNOV, 2013). As escolhas linguísticas dos verbos de
elocução demonstram quais os valores pretendidos pelos autores
das narrativas, uma vez que a matéria linguística empregada é fator
premente para a compreensão da abordagem valorativa, pois “o
colorido polêmico do discurso manifesta-se em outros traços
puramente linguísticos: na entonação e na construção sintática.”
(BAKHTIN, 2008 [1963], p. 224).
No exemplo I, o emprego do verbo esbravejar leva o leitor a
ter a entonação expressiva de que a fala da personagem carrega em
si o tom de alguém que está bravo, o que leva à produção de efeito
de sentido de que Magali não apenas pede um sorvete, mas ordena
em tom irritado.
243
atencioso, virar-se para trás, até mesmo com um sorriso, e
responder à Magali com aceitação da exigência, mesmo que tivesse
sido em tom bravo.
Por outro lado, no exemplo II, o produtor emprega escolhas
verbais valorativas em que a entonação produz sentido definido
pelo próprio material linguístico, juntamente com adjetivo
específico, a salientar o juízo de valor exposto:
244
No pedido da personagem, há também marca de expressão de
educação formal “por favor”, a demonstrar que é uma exigência,
mas não é uma imposição grosseira.
Na resposta de Quinzinho, há marca de entonação valorativa
muito bem definida, ao responder à ordem gritada por Magali a
partir do verbo exclamar, a expor o valor do sentimento amoroso
que está mostrando desde o primeiro quadrinho:
245
os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos
outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau
vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem
consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,
reelaboramos e reacentuamos (BAKHTIN, 2016 [1979], p. 54).
246
- Magali, você é muito folgada, mas Responder Replicação, objeção,
pelo nosso amor, vou levar sim. posição
Quinzinho pegou uma escada,
colocou na janela e deu o sorvete a
Magali.
Magali então agradeceu: Agradecimento,
- Muito obrigada! Agradecer aceitação, resignação
III.
Naquela tarde de verão, Magali
debruçada sobre a janela da torre
gritou:
- Quinzinho, por favor, traga-me Gritar Ordem, pedido,
um sorvete bem cremoso! imposição, educação
Então Quinzinho que já ia
apressado buscar a escada para
subir na torre, exclamou:
- Claro, minha princesa! Faço tudo Exclamar Resposta, submissão,
por você. aceite
Fonte: elaborado pelo autor
247
produção de variados sentidos, a partir de descrições e análises
pertinentes;
b) as marcas notacionais de espaço permitem a definição do
lugar e do ambiente em que a cena acontece, para compreensão dos
papéis sociais dos personagens, um indicador considerável para a
produção de sentidos;
c) as marcas nos balões de fala das personagens produzem
sentidos diversos ao leitor, a permitir, inclusive, a construção
sintática de frases correspondentes às imagens apresentadas em
cada balão;
d) as marcas das cores de fundo dos quadrinhos, no caso da
tirinha colorida, consideram as possibilidades de marcas de tempo,
assim como de sentimentos expressos pelos personagens;
e) os balões de fala dos personagens demonstram significados
a partir de imagens, que permitem a produção de sentidos variados,
como também a produção de materialidades linguísticas diversas -
as frases das falas, a expor as nuances do produtor de texto,
consequentemente do leitor, sobre a memória acústica e social
possível de acionamento na fala produzida;
f) a produção de atividades de leitura a partir do trabalho de
exploração de a) a e), em que se contemplem a descrição, a
compreensão, a inferência, a interpretação e a valoração que há nas
cenas da tirinha, a ampliar a consciência socioideológica do leitor
sobre a narrativa;
g) a produção de atividades de escrita para determinado
quadrinho, no caso, a cena final, que permite continuação de ações.
Nessa produção, o diálogo entre os personagens se faz presente, a
permitir o estudo do verbo de elocução, do verbo dicendi, a
construir frases em que sejam contempladas as escolhas verbais
valorativas próprias a exprimir os sentidos pretendidos pelo
produtor de texto.
Assim, a resposta à questão inicial permite entender que a
entonação valorativa contribui em atividades de leitura e produção
textual em situação de ensino para a formação e o desenvolvimento
do leitor e do produtor de textos de maneira a ampliar sua
248
consciência socioideológica no trato com o gênero discursivo eleito,
a deixar as interações discursivas mais consistentes, por
consequência, à participação de um indivíduo mais consciente na
sociedade.
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palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de
Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34,
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251
252
GÊNEROS DISCURSIVOS E AS PRÁTICAS
SOCIAIS DE LINGUAGEM:
UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA PARA O
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
PALAVRAS INICIAIS
253
À vista dessas indagações, o objetivo deste capítulo é refletir
sobre o trabalho com a oralidade em um evento de oratória, de um
Colégio da rede particular de ensino de Cascavel – Paraná,
apresentando uma proposta pedagógica que possa, quiçá, contribuir
para o desenvolvimento dessa prática de ensino na sala de aula.
Assim sendo, para o embasamento das nossas ações, partimos
das reflexões sobre gêneros do discurso, práticas de linguagem e o
ensino de língua portuguesa, seguidas da apresentação da
proposta pedagógica, considerações finais e referências.
GÊNEROS DO DISCURSO
254
gêneros do discurso, criados socialmente, uma vez que as atividades
humanas se estabelecem em diversos campos de atuação, porque “em
cada práxis existe todo um repertório de gêneros discursivos que se
diferencia e cresce à medida que se desenvolve e se complexifica a
própria esfera” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 262).
Socialmente circula uma grande quantidade de gêneros do
discurso (orais e escritos) e, portanto, há uma grande
heterogeneidade, justamente para atender as necessidades
interacionais no processo de comunicação discursiva. De acordo
com os postulados bakhtinianos, "o emprego da língua efetua-se
em forma de enunciados (orais ou escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humana" (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 261). Assim, toda vez que se
produz um enunciado, ocorre o uso da língua, a qual se torna viva,
dinâmica, fruto do processo de interação social dos falantes.
Machado (2014) corrobora com esse entendimento afirmando que
“‘enunciado’ e ‘discurso’ pressupõem a dinâmica dialógica da troca
entre sujeitos discursivos no processo de comunicação, seja um
diálogo cotidiano, seja um gênero secundário” (MACHADO, 2014,
p. 157), estabelecendo um vínculo estreito entre discurso e
enunciado, que, para Bakhtin, vai além de somente analisar as
estruturas linguísticas, mas envolve pensar o discurso no contexto
enunciativo da comunicação.
Machado (2007) afirma que “Bakhtin concebe o enunciado
como a unidade elementar de organização de formas linguísticas
que se encarregam da produção do discurso-língua numa
circunstância específica da interação verbo-social” (MACHADO,
2007, p. 200). O enunciado se realiza entre os sujeitos discursivos,
uma vez que mobilizam significados nesse processo comunicativo.
Reportamo-nos novamente a Machado (2007), quando afirma que
todo enunciado “é articulação de discursos-língua que se
manifestam nas enunciações concretas cujas formas são
determinadas pelos gêneros discursivos” (MACHADO, 2007, p.
2002), ou seja, as relações dialógicas só existem nos enunciados
concretos produzidos nas interações sócio-históricas entre os sujeitos.
255
Segundo Bakhtin, a "língua passa a integrar a vida através de
enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de
enunciados concretos que a vida entra na língua" (BAKHTIN, 2003
[1979], p. 265). Dessa forma, todo enunciado é vivo e revela
discursos historicamente situados. Nesse processo de comunicação
discursiva humana, cada falante vale-se dos diferentes gêneros que
circulam socialmente para organizar o seu discurso e estabelecer o
processo comunicativo. De acordo com Bakhtin (2003 [1979]), "[...]
a concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre
um determinado gênero do discurso, guia-nos no processo do
nosso discurso" (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 286), ou seja, o gênero
a ser escolhido dependerá do que se pretende exprimir/dizer, é o
projeto de dizer, é a intenção do sujeito que determinará o gênero
discursivo a ser usado e não apenas "orações" e/ou "frases" e sim o
enunciado inteiro.
Cada sujeito convive em e transita por diferentes campos de
atividade humana e então se apropria, vale-se de diferentes
gêneros discursivos. Sob esse viés teórico-metodológico, o gênero
discursivo, que molda os textos (tanto orais, como escritos) que
circulam socialmente, é compreendido como a materialidade do
discurso, situado sócio-ideologicamente a serviço da interação dos
falantes, nos diversos campos de atuação humana. Orientado por
Bakhtin (2003 [1979]), Sobral (2009) observa ainda que “todo
enunciado implica a alternância entre sujeitos falantes: num dado
momento, todo enunciado chega ao fim, e dá então lugar à
compreensão responsiva do leitor” (SOBRAL, 2009, p. 92). Assim,
todo enunciado decorre de um projeto enunciativo do falante e
busca uma resposta ativa do seu interlocutor.
Os gêneros do discurso refletem as finalidades e condições de
produção das inúmeras esferas sociais. Os enunciados são
determinados por essas circunstâncias que influenciam na
constituição de seus elementos constitutivos. Nesse sentido, cada
campo de atividade humana possui seus enunciados específicos,
criados por necessidades de comunicação discursiva entre os sujeitos.
Contudo, Bakhtin (2003 [1979]) explicita que, de acordo com a
256
necessidade de interação, os enunciados, moldados nos gêneros,
possuem elementos constitutivos que os tornam “relativamente
estáveis”, os quais não podem ser concebidos de forma dissociada.
Assim, ao estudar e entender o enunciado deve ser levada em conta a
sua natureza, de forma geral e das particularidades dos diversos tipos
de enunciados, isto é, dos diversos gêneros do discurso.
Todo gênero discursivo tem, pois, seu conteúdo temático,
estrutura composicional e estilo, “que se fundem
indissoluvelmente no todo do enunciado”, os quais são marcados
pelas esferas sociais a que pertencem (BAKHTIN, 2003 [1979]).
Ainda de acordo com Bakhtin, quanto mais dominamos os
inúmeros gêneros discursivos que circulam nas diversas esferas de
atuação humana, com mais propriedade se estabelecerá a
comunicação discursiva entre os falantes. Costa-Hübes (2014)
corrobora afirmando que “o gênero é um instrumento socialmente
elaborado que organiza a atividade sócio-linguageira” e que
“distinguimos, logo no início de uma troca verbal, o gênero
utilizado, seu tema, sua estrutura composicional e, assim, a
comunicação verbal se concretiza” (COSTA-HÜBES, 2014, p. 15).
A concretização material dos gêneros em textos se dá mediante
o discurso, ou seja, sua concretização só ocorre a partir do momento
em que se escolhe a forma composicional, o estilo e tema, os quais
são mobilizados e determinados pelo que se tem a dizer (projeto
enunciativo), bem como o endereçamento (o interlocutor) do
enunciado (SOBRAL, 2009). Nos reportamos a Brait e Melo (2014)
ao afirmarem, pautadas nos estudos do Círculo de Bakhtin, que, de
acordo com o destinatário do enunciado, é possível “compreender
a composição e o estilo dos enunciados, apontando, tanto quanto
os traços de autoria, para o que há de extraverbal na constituição
do verbal” (BRAIT; MELO, 2014, p. 72). São as marcas enunciativas
discursivas presentes no enunciado, nem sempre verbais, mas que
permitem conceber as marcas da enunciação do sujeito, seu lugar
histórico, social, sua posição discursiva.
À vista disso, ensinar a língua passa pelo trabalho em sala de
aula com práticas de leitura e escrita que circulam socialmente,
257
evidenciando assim os gêneros discursivos. Segundo Koch e Elias,
"O ensino dos gêneros seria, pois, uma forma concreta de dar
atuação aos educadores e, por decorrência, aos seus educandos"
(KOCH; ELIAS, 2010, p. 61). Isso significa que é a intervenção ativa
do professor e um trabalho com a língua viva, nas diferentes
práticas de linguagem (leitura, produção de textos, oralidade e
análise linguística) que garantirá o domínio da comunicação
discursiva. Trabalhar com a língua como forma de interação social
entre os sujeitos é possibilitar, no processo de ensino e
aprendizagem, uma constante reflexão sobre sua própria fala e/ou
escrita e sobre outras situações com as quais interage no seu dia a
dia. Na próxima seção discutimos sobre as práticas de linguagem e
o ensino da língua portuguesa.
258
ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação
significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/
constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens”
(BRASIL, 2017, p. 64-65). Se o objetivo principal do ensino de língua
portuguesa é o desenvolvimento de sujeitos ativos e participativos
socialmente, o trabalho em sala de aula deve ser o de proporcionar
ao educando atividades em que reflita sobre a linguagem em
contextos de uso, considerando a oralidade com o
desenvolvimento de competências discursivas em diferentes
gêneros orais; a leitura como processo de construção de sentidos
que decorrem da interação ativa entre autor, texto e leitor, com
variados gêneros do discurso; a análise linguística com a reflexão
sobre as escolhas linguísticas e os efeitos de sentido que geram nos
diferentes textos; e a produção de texto como forma de interação
com interlocutores reais.
A oralidade é a prática social de uso da língua falada,
manifestada nos variados gêneros do discurso constituídos “na
realidade sonora, podendo ser mais informal ou mais formal, a
depender do contexto de uso” (BAUMGÄRTNER, 2015, p. 45). O
educando utiliza a língua falada desde seus primeiros anos de vida
nos seus processos de interações sociais, entretanto, os usos se dão
com mais frequência em contextos informais. Nesse sentido, cabe
ao professor de língua portuguesa promover o acesso a gêneros
orais de uso mais formal, que o educando ainda não conhece,
visando um uso mais elaborado da língua, para que desenvolva a
sua competência linguística oral.
A prática de linguagem da leitura é também uma prática de
letramento. Compreendemos que o ato de ler ultrapassa a
decodificação mecânica de um texto. Dell’Isola (1996) afirma que o
sujeito social pratica a leitura no momento em que “decifra,
compreende, interpreta, avalia o signo” (DELL’ISOLA, 1996, p. 70).
O leitor estabelece a leitura de palavras, mas também de cores,
formas, gestos, etc., interagindo com as diversas formas de
linguagem. Nosso compromisso como professores de língua
portuguesa para a formação de leitores que constroem sentidos no
259
processo de leitura passa pelo trabalho com diferentes gêneros do
discurso em sala de aula, promovendo atividades em que o aluno
além de encontrar as informações explícitas, entre nas entrelinhas
do texto, estabelecendo inferências, localize o tema, argumentos,
levante hipóteses, promova antecipações ao texto. Entretanto, é
importante que para além do nível textual, o professor organize
atividades para que o aluno compreenda os elementos discursivos
e ideológicos que constituem os elementos contextuais/
extralinguísticos.
A produção de textos constitui-se na base do ensino e
aprendizagem da língua no Ensino Fundamental, ao
considerarmos que, socialmente, está presente nos diversos
campos de atuação. Dessa forma, compreendemos que a
multiplicidade de textos produzidos na sociedade deve estar
presente em sala de aula, possibilitando ao aluno momentos em
que se torne participante em situações de produção com sentido e
função social. Ao tratarmos da produção de texto, pautamo-nos na
interação verbal como a substância verdadeira da língua
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1988 [1929]; BAKHTIN, 2003 [1979]).
Nesse sentido, ensinar a escrita é um processo contínuo em que são
apresentadas aos alunos necessidades reais de escrever. Isso
porque estamos a todo momento interagindo com o outro,
buscando uma resposta ao nosso texto, que compreendemos na
perspectiva dialógica da linguagem como enunciados. Essa busca
constante é inerente ao processo de interação.
Este processo interativo envolve o encontro, a parceria entre
os sujeitos; o locutor ao proferir um enunciado, tanto oral como
escrito, espera uma compreensão ativa por parte do ouvinte, o
interlocutor. É nessa perspectiva que entendemos a produção de
texto na escola, ou seja, numa perspectiva em que o aluno tenha
sempre em vista um interlocutor com quem possa dialogar. Na
sequência, relatamos uma atividade desenvolvida com alunos da
Educação Básica, com o objetivo de desenvolver as capacidades
leitoras, de escrita e a oralidade.
260
UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA DE TRABALHO COM OS
GÊNEROS DISCURSIVOS
Não nasci marcado para ser um professor assim (como sou). Vim me
tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na
observação atenta a outras práticas, na leitura persistente e crítica. Ninguém
nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que
tomamos parte (FREIRE, 2001, p. 40).
261
Fundamental II e Ensino Médio, bem como as categorias que os
interessados, das 19 turmas, poderiam concorrer, as quais
apresentamos na sequência:
CATEGORIA TEMÁTICA
262
Após a realização dos registros de leitura em forma de resumo,
a fim de que trouxessem informações relevantes para
argumentarem em seus textos, demos início à apresentação do
gênero dissertativo-argumentativo, que ocorreu em duas aula
expositivas e dialogadas, iniciando a leitura de um texto do gênero,
para, em seguida o reconhecimento de suas características
composicionais, possibilitando a reflexão sobre a função social
desse tipo de texto, frisando as cinco competências inerentes a
escrita desse texto, sendo elas:
263
Feita a seleção, contamos com 30 participantes, assim,
passamos à etapa dos ensaios, que ocorreram semanalmente até a
data da final do concurso. Essa prática ocorreu sempre em um
auditório, em que os alunos recebiam dicas de como utilizar o
microfone, como se comportar no palco, como interpretar o texto
visando a persuasão do corpo de jurados, como enfrentar o
nervosismo, etc. Após essa fase, realizamos a final do evento,
conforme o cronograma apresentado no Quadro 1, no anfiteatro da
instituição, com um corpo de seis jurados, das áreas de Letras,
Direito, Jornalismo e Fonoaudiologia, sendo áreas com relação
estrita com a comunicação e escrita, os quais avaliaram os seguintes
critérios nas apresentações dos alunos: postura, controle emocional,
eloquência, dicção, organização textual e desenvolvimento
adequado do tema, bem como o uso adequado da linguagem.
Na plateia, havia pais e alguns membros da comunidade, amigos
dos alunos, equipe diretiva e corpo docente da instituição,
contabilizando, aproximadamente, 500 pessoas. O evento 2 contou
com premiação aos três primeiros lugares de cada categoria e
medalhas a todos os participantes, além do sorteio de diversos brindes.
A atividade fomentou o amplo desenvolvimento dos alunos
em diversos aspectos, sejam linguísticos, como socioemocionais,
bem como o espírito de parceria e coletividade. Durante os ensaios
e as apresentações finais os candidatos trocavam dicas e torciam
um pelo outro, compreendendo que a maior premiação
corresponderia a todo aprendizado construído ao longo do
processo, conforme os depoimentos coletados pelo grupo de
WhatsApp que seguem abaixo:
264
Foi muito legal participar da oratória. Sempre é bom enfrentar os desafios que
a vida proporciona, é uma experiência muito especial e importante para a nossa
vida. Obrigado pela oportunidade (Aluno do Ensino Médio).
Participar da oratória foi mágico, foi o dia onde a magia da leitura se exibiu de
diversos tipos, argumentos e finalizações. Fico extremamente feliz e contente
por esta oportunidade (Aluno do 9º ano).
Para mim, a experiência de participar da oratória é incrível. Um longo processo
que preparamos para que tudo seja perfeito. Ficamos ansiosos à espera do dia
que apresentaremos nosso texto. É emocionante e inesquecível! Nos ajuda a
buscarmos sempre a nossa melhor versão. Agradeço por essa oportunidade de
poder estar aprendendo cada vez mais e tentando melhorar a cada dia! (Aluna
do 9º ano).
Participar da oratória é uma experiência única, muito boa e cheia de emoções,
o melhor de tudo é que você se diverte com seus amigos, apesar de ser uma
competição, não competimos por prêmio, competimos por diversão! (Aluna do
8º ano).
Participar da oratória foi algo diferente, foi algo fora do meu costume, não
estava acostumada a subir em um palco e a ler um texto para pessoas que não
conhecia, mas com toda certeza foi algo mágico, que só algumas pessoas
preferiram aceitar esse desafio que requer muita coragem (Aluna do 8º ano).
Foi uma experiência incrível e indescritível, apresentar um texto que você
desenvolveu sozinha requer muita coragem e foi muito especial compartilhar
isso com meus colegas e amigos! (Aluna do 9º ano).
Participar da oratória para mim foi algo novo, sem sombra de dúvidas uma
experiência única que requer conhecimento e muito esforço, poder participar
desse evento com tantas pessoas foi incrível e inesquecível, obrigada professor
(Aluna do 8º ano).
Participar da Oratória foi muito emocionante, principalmente, por ter sido
minha primeira vez, ir aos ensaios e treinar o texto que eu mesma elaborei. Foi
uma experiência única para todos, pois todos nós fomos aplaudidos e
parabenizados no final (Aluna do 7º ano).
Participar da oratória foi algo único e com certeza será algo inesquecível, foi
minha primeira experiência com oratória, mas sem sombra de dúvidas não
poderia ter sido melhor, estar lá naquele palco apresentando algo seu na frente
de muitas pessoas gera um medo, mas com o tempo passa e começa a surgir
um sentimento de euforia. Participar deste evento foi maravilhoso e
principalmente inesquecível. Muito obrigada! (Aluna do 6º ano).
Fonte: organizado pelos autores
A partir dos depoimentos, pudemos perceber que
proporcionar momentos de aprendizagem por meio de práticas
sociais de uso da linguagem que sejam relevantes, oportuniza o
265
envolvimento dos alunos de forma significativa, tornando-os
capazes de superarem seus desafios e barreiras de utilização da
língua portuguesa em contextos formais de uso.
As reverberações dessa prática ecoaram na plateia e em
depoimentos enviados pelos pais apresentados no Quadro 4.
266
fazendo aos poucos, na prática social de que tomamos parte”
(FREIRE, 2001, p. 40) e foi a partir dessa prática de linguagem,
promovida pelo concurso de oratória, que os alunos puderam
experimentar outras oportunidades de utilização da língua em
contextos reais de utilização.
PALAVRAS FINAIS
267
acreditamos que é possível adequar as atividades pedagógicas de
forma a trabalhar as práticas de linguagem com função social real,
adequando às possibilidades de cada docente e instituição, de
forma que o estudante possa agir socialmente, participar das
manifestações linguísticas em uso, considerando os fatores como as
convenções sociais, as intencionalidades e os elementos contextuais
responsáveis pela significação dessa linguagem. Assim, quanto
mais o estudante compreender o caráter dialógico e interacional da
linguagem, com atividades que ampliem seu acesso aos bens
culturais, às diferentes práticas sociais de uso da linguagem, maior
é a capacidade desse estudante de agir no mundo letrado.
REFERÊNCIAS
268
COSTA-HÜBES, T. C. Os gêneros discursivos como instrumentos
para o ensino de Língua Portuguesa: perscrutando o método
sociológico bakhtiniano como ancoragem para um
encaminhamento didático-pedagógico. In: NASCIMENTO, E. L.;
ROJO, R. Gêneros de texto/discurso: e os desafios da
contemporaneidade. Campinas: Pontes Editores, 2014. p. 13-34.
DELL’ISOLA, R. L. P. A interação sujeito-linguagem em leitura. In:
MAGALHÃES, I (org.) As múltiplas faces da linguagem. Brasília: UnB,
1996. p. 69-75.
FREIRE, P. Política e educação: ensaios. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. 5. ed. São Paulo: Ática, 2011
[1984].
KOCH, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e Escrever: estratégias de produção
textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.
MACHADO, I. Gêneros Discursivos. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin:
conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 151-166.
MACHADO, I. Os gêneros e a ciência dialógica do texto. In: BRAIT,
B. (org,). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 2007. p. 193-230.
MENEGASSI, R. J. Ordenação e sequenciação de perguntas na aula
de leitura. In: YAEGASHI, S. F. R. et al. (org.). Psicopedagogia:
reflexões sobre práticas educacionais em espaços escolares e não-
escolares. Curitiba: CRV, 2016. p. 41-60.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do
Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado das Letras, 2009.
269
270
LEITURA VISUAL DE TIRINHAS: AMPLIANDO OS
CAMINHOS DA LEITURA EM SALA DE AULA
INTRODUÇÃO
1
Mestra em Letras (UNIOESTE-PR). Professora da Educação Básica no município
de Santa Helena-PR e pesquisadora nas áreas de fonética e fonologia, que auxiliou
o professor Alex Meneghete Vaz na estruturação das atividades de leitura de
gêneros verbo-visuais, na turma do 4º ano – Ensino Fundamental; por esse motivo,
tornou-se também autora deste capítulo.
2 Vale ressaltar que, aos olhos de Bakhtin (2003), os discursos possuem
271
um processo de interação na vida real” (CORDEIRO, 2022, p. 148)
– é um ato recíproco entre os sujeitos, de acordo com Volóchinov
(2018 [1929]). Isso significa que, ao fazermos uso da linguagem,
partilhamos momentos de interação entre sujeitos sociais,
históricos e culturais – uma tríade distinta, contudo complementar
e indissociável.
Por conta dessa necessidade de dividir tais experiências, estou
aqui para, justamente, mostrar como os estudos do Círculo de
Bakhtin me auxiliaram nas minhas práticas em sala de aula. Nesse
contexto, estou falando especificamente da prática de leitura visual
de gêneros em quadrinho, sendo o gênero tirinha/tira trabalhado
com discentes do 4º Ano do Ensino Fundamental – Anos Iniciais –
de uma escola municipal de Assis Chateaubriand-PR.
Antes de iniciar a partilha dessa experiência pedagógica,
gostaria de mencionar dois momentos que foram importantes para
que eu pudesse alcançar o mínimo de conhecimento com vistas a
trabalhar com a leitura em sala de aula como uma atividade
realmente voltada para a interação entre os sujeitos. Pretendi
diminuir o enfoque na leitura como simples exercício de
decodificação das palavras, e transformar tal prática em um
exercício concreto de interação.
A primeira vez que tive contato com a prática de leitura pelo
viés bakhtiniano, além, é claro, dos estudos que já havia realizado
de algumas obras do Círculo, foi em uma aula do Prof. Dr. Renilson
José Menegassi (UEM)3. Neste primeiro momento, aprendi o quão
a leitura pode transpor a materialização linguística, tornando-a
uma atividade voltada para a comunicação, ou seja, a leitura como
uma prática de linguagem integral, contextual e com valores
enunciativos e discursivos.
A segunda vez ocorreu dois anos depois, em 2022, no Curso
de Formação Continuada: A Concepção Dialógica de Linguagem e
272
suas Reverberações no Ensino de LP, também idealizada e gerida
pela professora antes mencionada. E foi durante este curso que tive
a oportunidade de compreender diversos conceitos-chave da
concepção do Círculo de Bakhtin, como dialogismo e discurso,
ideologia, signo social e ideológico etc. e a Concepção Dialógica de
Linguagem voltada para as práticas orais, leitura/escuta, análise
linguística/semiótica e de produção textual.
Ambos os momentos foram importantes para que eu
conseguisse trilhar caminhos pedagógicos que dessem a mim,
como professor da Educação Básica, e aos alunos uma forma de
trabalhar com os textos em sala de aula sem pretextos gramaticais
ou metalinguísticos de quaisquer naturezas que fossem. Para a
minha surpresa e felicidade, obviamente, tive resultados que
superaram as expectativas e os objetivos. Por isso, darei, a partir de
agora, dois depoimentos sobre a leitura em sala de aula sob o viés
bakhtiniano. Passemos para as declarações.
273
Figura 1 – Exemplar de tirinha da Turma da Mônica
274
sempre iniciavam as leituras de tirinhas pelo texto escrito, sem
mencionar em nenhum momento as imagens. Isso se deve, na
maioria das vezes, pelo fato de os professores não possuírem bases
teórico-metodológicas 6 que abarquem o todo enunciativo-
discursivo, escrita/oralidade e imagem/figura/gestos etc.
A primeira aluna começou, mesmo que timidamente, a
descrever as ações do personagem Cebolinha na tirinha, mas sem
muitos detalhes. Já a segunda, declaradamente leitora assídua das
historinhas da Turma, elaborou uma descrição um pouco mais
aprimorada, detalhando os acontecimentos, como o passeio de
Cebolinha por um parque e a percepção do menino ao passar pela
árvore e identificar que Mingau, o gato de estimação da
personagem Magali, estava com medo.
Como parte dessa proposta de leitura, resolvi, então, após as
tentativas das alunas, refletir com a turma que sobre a existência de
gêneros discursivos visuais, os quais são produzidos por meio de
imagens, e que podem ser lidos dentro de um determinado
contexto, sendo, portanto, interpretável. Para reafirmar tal ideário,
Brait (2013) relata que as concepções do Círculo de Bakhtin tornam
os estudos da linguagem mais amplos, fazendo com que as mais
diversas semioses (produção de signos significativos) se combinem
para compor a significação.
Em seguida, realizei uma leitura da forma mais detalhada
possível para que eles compreendessem uma forma viável de ler a
referida tirinha. As feições dos alunos eram as mais variadas, desse
modo percebi que nenhum deles havia tido contato com leituras
verbo-visuais até aquele exato momento.
275
Assim, pedi novamente para que levantassem as mãos aqueles
que gostariam de refazer a leitura visual da tirinha. Nesse momento,
vários alunos se empolgaram e fizeram suas tentativas, umas com
mais e outras com menos detalhes, porém todas as leituras visuais
possíveis.
Essa primeira prática de leitura visual de um gênero em
quadrinhos nos mostrou o quanto é essencial trazer tais recursos
para sala de aula. Os alunos compreenderam, em especial, que
texto não é somente um aglomerado de letras formando sílabas que,
consequentemente, formam palavras, períodos, parágrafos, mas
que tudo que faz sentido, dentro de determinado contexto de
interação/comunicação discursiva, pode e deve ser considerado um
texto.
Passados alguns meses, evidentemente sempre relembrando
os alunos sobre as questões relacionadas aos gêneros verbo-visuais
– os quais são compostos por outros recursos linguísticos além do
texto escrito, como imagens, figuras, cores, marcas notacionais7 etc.
– mais especificamente no dia 17 de agosto de 2022, realizei outra
leitura de um gênero em quadrinho, como mostra a Figura 2.
276
Na aula em que eu trouxe a tirinha acima, tive a ideia de
entregar-lhes uma imagem em preto e branco. O objetivo principal
era o de deixar a imaginação dos alunos “voarem alto”, porque,
além da leitura visual da tirinha, os alunos precisariam colorir a
imagem segundo a imaginação de cada um. Foi uma aquarela de
cores. A maioria dos discentes coloriu as personagens sem aquela
padronização das tirinhas, justamente pelo incentivo que dei no
momento da pintura.
Para relembrarmos a leitura de textos visuais, pedi para que os
alunos lessem a tirinha da forma como imaginavam a narrativa.
Percebi, durante a leitura, que houve maior riqueza de detalhes
quando comparada à leitura da primeira tirinha, que realizamos no
dia 29 de abril. Por exemplo, segue uma das leituras que obtivemos
nessa aula:
8 Vale mencionar que todas as falas aqui parafraseadas foram anotadas em meu
diário de classe e só não foram transcritas ipsis litteris por conta de algumas
incoerências nas falas das alunas, o que ocorreu justamente porque estavam em
um processo de aprendizagem.
277
eu a deixasse, junto a outras colegas de turma, dramatizar a tirinha
para os demais coleguinhas. Prontamente, permiti a teatralização.
As alunas colocaram uma carteira em frente ao quadro, uma
delas pegou um livro e se sentou ao lado da carteira enquanto a outra
se escondia para simular a ação de assustá-la. Já uma terceira aluna
ficou responsável pela leitura da tirinha para que as outras pudessem
simular a narrativa. Tal atitude fez com que os demais alunos se
animassem em realizar outras dramatizações. A diversão em sala de
aula estava garantida, pois percebi a animação advinda de toda a
turma. Afinal, que criança não gosta de uma aula
(in)disciplinarizada9?
Esses dois relatos sobre a aplicação da concepção de leitura sob o
viés bakhtiniano, em que o leitor toma sua posição ativa diante do
enunciado concreto e avalia todos os possíveis elementos linguísticos e
não linguísticos para formar a significação do texto, não têm como
intuito perpassar por teorias do Círculo de Bakhtin, mas sim promover
um diálogo informal, sem perdermos a cientificidade dos estudos
relacionados a práticas didático-pedagógicas na Educação Básica.
Para relatarmos os efeitos obtidos no desenvolvimento
acadêmico dos estudantes a partir das aulas pautadas pelos estudos
bakhtinianos, concordamos com Angelo e Menegassi (2022), os quais
revelam que, a partir da Linguística Geral, surgiram as demais
vertentes dos estudos linguísticos e, no caso da leitura, chega-se
278
atualidade como característica principal do conceito de leitura difundido nas
escolas brasileiras (ANGELO; MENEGASSI, 2022, p. 13-14).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
279
REFERÊNCIAS
280
REFLEXOS E REFRAÇÕES SOBRE OS PROCESSOS
DE ELABORAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DE UM
PROJETO DE LEITURA E ESCRITA COM A
TEMÁTICA “VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER”
INTRODUÇÃO
281
linguística e escrita), mas de discorrermos reflexivamente acerca de
uma experiência, sob a perspectiva Dialógica da linguagem, a
partir do trabalho com o gênero miniconto, cuja temática foi
“Violência contra a mulher”. Dessa forma, esperamos que este
diálogo o(a) incite, cada vez mais, a tecer novos elos do saber em
sua trajetória pessoal, acadêmica e profissional.
Além disso, almejamos que - ao longo desta nossa interação -
ao refletir e refratar saberes, dúvidas, incertezas, anseios, você se
sinta encorajado a permanecer aqui, pois acreditamos que juntos,
vamos conseguir tirar algumas “pedras do meio do caminho” e
Fazer da “aula de Português” um encontro de interação, de
ampliação dos horizontes social, cultural e de (re)constituição de
nossas identidades. Por isso, destacamos que este diálogo adquire
um caráter de “incompletude”, à medida que almeja a sua
participação como um interlocutor ativo, que lê para compreender,
mas também para acrescentar, discordar, ressignificar, refutar, de
forma consciente, crítica, reflexiva e transformadora.
Primeiramente, apresentamos o contexto em que nosso Projeto
de leitura e escrita foi sendo construído, bem como os nossos
objetivos. Depois, discorremos brevemente, relatando e refletindo,
sobre os cinco módulos intitulados: 1) Oralidade em interface com
outras linguagens; 2) Leitura do enunciado como processo
dialógico; 3) Conteúdo temático; 4) Entre escrita e reescrita, o broto
da contrapalavra e 5) Divulgação.
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
O mapa logo abaixo ilustra bem essa nossa jornada para além
do quadro branco:
282
Figura 1 – Mapa do percurso realizado
1 Ministrada pela professora Dra. Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues
2 Coordenado pela professora Dra. Márcia Cristina Greco Ohuschi.
283
do miniconto: projeto de leitura e escrita com foco na valoração para
a construção de sujeitos éticos, reflexivos e críticos”.
Além disso, a proposta pedagógica, voltada para alunos do 8º
ano do Ensino Fundamental - anos finais, foi elaborada por três
professoras do ensino básico, discentes 3 do Programa de Pós-
Graduação já citado. A implementação se deu em duas escolas das
redes públicas estaduais, do Amapá e Pará. Contudo, ressaltamos que
para esta interação, vamos nos dedicar ao relato da implementação na
escola do Pará, situada no município de Ananindeua. Havia, na turma
em que foi implementada a proposta, 36 alunos, os quais, em virtude
de preservação de suas identidades, foram orientados a colocar nas
atividades o nome de mulheres que admirassem. Daí surgiram: Dilma,
Jojo Todinho, Maju Coutinho, Alice Fleury, Fafá de Belém, Kylie
Jenner, Maisa Andrade, entre outras.
Para a elaboração do projeto de leitura e escrita nesse viés
dialógico, inicialmente pensamos em um tema de relevância social
com o intuito de trabalharmos valores humanos por meio da
linguagem. Explicamos, então,que a escolha do tema se deu em
razão das intensas, graves e repugnantes denúncias (e
silenciamentos) acerca da violência contra a mulher que
dispararam no contexto de pandemia, face a outras realidades
escancaradas nesse período: a mulher como arrimo de família, a
perda de trabalho e a responsabilização pela criação/educação dos
filhos. Nesse sentido, para levarmos os alunos às reflexões sobre os
valores erigidos entorno da ideia que se tem de mulher,
considerando a realidade de violência, partimos do gênero
discursivo miniconto. Destacamos que tal gênero já estava previsto
no nosso plano anual de ensino.
Ademais, esclarecemos que nosso projeto teve duração total
de 25 horas- aula de 45 minutos e foi dividido em cinco módulos
em contexto de aprendizagem no formato presencial regular. Na
3Gercilene Vale dos Santos, Lorena Brito de Castro e Michelly Dayane Soares
Nogueira, respectivamente, doutoranda e mestrandas do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFPA.
284
implementação, utilizamos ferramentas tecnológicas como
televisão, computador, projetor, celulares, aplicativos de gravação
de áudio e vídeo, bem como cadernos, apostilas com atividades e
fichas de autoavaliação.
Não estamos querendo dizer que foi uma tarefa fácil, pois é
importante destacarmos que o projeto, entendido como um
enunciado concreto, não estava pronto em nossas cabeças e, assim
como toda escrita requer reescrita, elaboramos e reelaboramos o
projeto várias vezes, o que nos fez refletir na prática sobre a
importância de escrever, revisar e reescrever um texto. Dessa forma,
resgatamos o que deu certo em outras ocasiões e acrescentamos
novas propostas e estratégias, para preenchermos algumas lacunas
das incertezas que surgiram não somente na construção do projeto,
mas ao longo de nossa trajetória profissional.
A seguir, delineamos os módulos do projeto e convidamo-lo a
refletir conosco sobre a implementação dessas etapas.
MÓDULOS DE ATIVIDADES
285
cenários sociais a partir de perguntas orais e leitura de enunciados
da esfera jornalística.
Na primeira etapa - Checando conhecimentos prévios - deste
módulo, com o objetivo de aproximarmos nossos alunos do tema
trabalhado, foram feitas perguntas mais gerais sobre a leitura de
textos jornalísticos e interesses em determinadas temáticas atuais,
como violência em geral e a violência contra a mulher, a partir de
perguntas, como:
286
Figura 2 – Manchete 2
287
Figura 3 – Vídeo 180
288
Figura 4 – Resultado da atividade
289
Segundo Módulo - Leitura do enunciado como um processo
dialógico
290
a constituição temática, pois, nessa fase, precisávamos entender se
os alunos demonstrariam compreensão do silenciamento das vozes
sociais diante da opressão masculina sobre o gênero feminino no
ambiente doméstico, como:
291
Terceiro Módulo - Conteúdo temático do miniconto
292
Figura 5 – Material da aluna Alice Fleury (pseudônimo)
293
Figura 6 – Arte da aluna Camila Pitanga (pseudônimo)
294
As mediações foram realizadas por meio de diálogos com os
alunos e buscaram levá-los a refletir sobre as escolhas das marcas
linguístico-enunciativas e seus efeitos no texto. Nas questões de
interpretação, bloco 3, os alunos já demonstravam mais autonomia
no que se refere às terminologias: entonação, valor social, juízo
social, mas ainda havia a necessidade, algumas vezes, de
confirmação com a professora.
Quanto ao último bloco, sobre a estrutura composicional do
gênero, apresentamos aos alunos outros minicontos4 com a mesma
temática, visando enfatizar a importância da escolha do léxico e
explicando que, com o uso de poucas palavras, os autores utilizam
recursos que visam à rapidez da leitura, sem comprometer a
constituição dos enunciados. Nessa etapa, os alunos
desenvolveram as atividades de forma mais tranquila, denotando
mais habilidade e autonomia.
Vejamos mais um registro de atividade desse módulo.
Material da aluna Dilma (pseudônimo):
295
Figura 7 – Material da aluna Dilma (pseudônimo)
296
Quarto Módulo - Entre escrita e reescrita, o broto da
contrapalavra
297
A ideia, é claro, era fazer uma produção de texto na escola e
não somente para a escola (GERALDI, 2013) ou, como é ainda mais
recorrente nas aulas, para a professora, única interlocutora do texto,
que tem a função de corrigir e devolver ao aluno. Estabelecemos,
então, uma situação de comunicação real, em que as condições de
produção não estivessem dissociadas do propósito da escrita.
Explicamos que os alunos escreveriam textos para participarem de
um concurso de minicontos e ainda que haveria a divulgação de
todas as produções, a serem transformadas por eles em pequenos
vídeos, em um canal da plataforma Youtube. A partir daí, você já
deve imaginar: os alunos, bastante competitivos, se empolgaram
muito e todos tinham o que dizer, ou melhor, escrever.
Com tantas ideias à deriva, você deve concluir que o
planejamento do texto não foi uma tarefa fácil e menos ainda a
escrita inicial dele. Notamos que, apesar do envolvimento do grupo,
como enfatizamos, as primeiras ideias ficaram muito próximas de
relatos pessoais ou pareciam meras cópias da obra de Marina
Colasanti – texto base trabalhado. Contudo, compreendemos essa
fase turbulenta como parte de um processo de aprendizagem –
novos dizeres sendo (re)construídos. Assim, para minimizar tais
problemas, trabalhamos, então, as características do texto literário,
ficcionalidade, literariedade e explicamos brevemente aos alunos
sobre o estreito limite entre o plágio e a intertextualidade.
Primeiros versos debruçados sobre o papel, havia chegada a
hora da organização das peças do quebra-cabeça, momento em que
o aluno deveria se dedicar a aprimorar sua palavra, conforme seu
projeto, e começar a se constituir como aluno-autor. Nessa etapa,
foi indispensável o nosso diálogo com eles – ao contribuirmos
dialogicamente para que o projeto de dizer de cada um viesse à
tona - e também entre os colegas de sala, que, muitas vezes, agiram
responsivamente: um lia ao outro seu texto e as dicas vinham em
seguida. Diante da linguagem direta e objetiva apresentada nos
primeiros rascunhos, constatamos a necessidade de explicar sobre
a metáfora criativa e como essa forma de dizer poderia relacionar-
se à construção dos efeitos de sentido a serem produzidos.
298
Com relação ao gênero miniconto, relembrada a função social,
esse foi o momento de pensar na forma de dizer, colocando em
prática as características do gênero já estudadas nos módulos
anteriores. Alguns entenderam mais rápido, outros tiveram mais
dificuldades, todavia houve uma troca de conhecimento que
favoreceu o processo.
Veja, na produção a seguir, o rascunho sendo construído. E a
escrita evidenciada como um trabalho:
299
Foi o momento, então, de iniciarmos a correção dialógica. No
entanto, apesar de compreendermos a importância desse momento
e a necessidade de comentários mais pontuais e feitos de forma
escrita sobre o texto dos alunos, nossas mediações foram realizadas
de forma oral, em virtude da proximidade do término do ano letivo.
É a tal da expectativa versus realidade, problema constante no nosso
fazer. Mas conseguimos! Observamos (e sentimos!) que, de fato,
nossas orientações, mesmo que feitas de forma oral por meio de
questionamentos, levaram os alunos a refletirem sobre as escolhas
que julgavam mais apropriadas ao projeto de escrita.
Dá para perceber que, dessa forma, a proposta de leitura e
escrita adotada busca ultrapassar os limites reducionistas de “certo”
ou “errado”, ou meramente classificatórios por meio de notas.
Buscamos promover conhecimentos e habilidades em leitura e
escrita para a formação de cidadãos conscientes sobre os valores
humanos, mobilizados por meio de marcas linguístico-
enunciativas, que podem permear os textos do gênero miniconto.
Textos prontos, chegamos à fase em que a reescrita dá lugar à
multimodalidade com a editoração dos minicontos em vídeo a
partir de aplicativo de celular. Nesse momento, ficou evidente a
habilidade de alguns alunos em relação ao domínio da edição de
vídeos (passamos a ser aprendizes deles). Consideramos que se o
objetivo era ativar conhecimentos decorrentes de habilidades
multimodais para dar visibilidade ao projeto de dizer, alguns
alunos foram além e transformaram os minicontos em mídias
digitais com som, áudio, imagem com muita propriedade e
criatividade, agregando ainda mais valoração ao dito.
Com relação à repetição da expressão “alguns alunos”, não nos
leve a mal, pois não foi por descuido ou por falta de repertório; usamo-
la para destacar que, nesta etapa, somente os poucos alunos que
tinham celular com acesso à internet fizeram a criação dos vídeos, pois
a grande maioria não tinha nem o aparelho e nem o acesso à rede, fato
revelador de que a exclusão digital é mais um grande empecilho para
o desenvolvimento da educação dos nossos jovens.
300
Quinto Módulo - Divulgação
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
301
Assim, concluímos que o projeto preencheu uma necessidade
no campo social de enfrentamento da violência contra a mulher;
promoveu o desenvolvimento de práticas significativas de leitura
e de escrita no contexto tão desafiador de retorno às aulas
presenciais com o desenvolvimento positivo da consciência
reflexiva, crítica, ética e valorada dos sujeitos, e favoreceu a reflexão
docente sobre as necessidades inerentes aos processos de ensinar e
aprender, entre elas: autonomia, pesquisa, resiliência, resistência.
Certamente você deve se lembrar da aluna que revelou lá no
início da implementação do projeto sua repulsa ao feminismo. Pois
é, o texto dela foi o vencedor do concurso! E, a partir de toda a
participação da aluna nas atividades e da análise do miniconto
produzido por ela, pudemos verificar a mudança de seu
posicionamento axiológico e valorações sociais a partir de
diferentes materializações linguístico-enunciativas de seu texto,
dados que revelam o papel transgressor e libertário da aula de
língua portuguesa pautada na concepção dialógica de linguagem.
Aproveitando a deixa, vamos dar uma olhada no texto
vencedor? Material da aluna Kylie Jenner (pseudônimo):
302
da reflexão da nossa implementação, é possível que tenha
compreendido, assim como nós, que elaborar e implementar um
projeto de leitura e escrita sob a perspectiva dialógica é sinônimo
de pesquisa, processo e trabalho, elementos que nos tornam
protagonistas do nosso fazer docente. Para o aluno, por sua vez, a
disciplina língua portuguesa adquire um caráter mais real,
significativo, pois deixa de lado o estudo de normas, para trabalhar
com o texto, lendo-o e escrevendo-o como enunciado concreto, cujo
elemento extraverbal é indispensável para a construção dos
sentidos. Assim, esperamos que pelo conteúdo e relevância social
do projeto, bem como pelo êxito na implementação da proposta,
possamos vislumbrar cenas dos próximos capítulos, que podem ser
dirigidas por você. Que tal testar?
REFERÊNCIAS
303
MENEGASSI, R. J.; CAVALCANTI, R. S. M. Conceitos axiológicos
do dialogismo em propaganda impressa. In: FUZA, A. F. F.;
OHUSCHI, M. C. G.; MENEGASSI, R. J. (org.). Interação e escrita no
ensino da língua. Campinas: Pontes Editores, 2020. p. 99-118.
MOTA, L. Taxa de violência contra a mulher cresce em até 97% na pandemia.
SBT News, [S. l.], 07 mar. 2021. Disponível em: https://www.
sbtnews.com.br/noticia/brasil/162706-taxa-de-violencia-contra-a-
mulher-cresce-em-ate-97-na-pandemia. Acesso em: 16 out. 2021.
OHUSCHI, M. C. G. Ressignificação de saberes na formação continuada:
a responsividade docente no estudo das marcas linguístico-
enunciativas dos gêneros notícia e reportagem. 2013. 294 f. Tese
(Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual
de Londrina, Londrina, 2013.
POLATO, A. M.; BELOTI, A.; MENEGASSI, R. J. Práticas
epilinguísticas axiológicas na reescrita: caracterização teórico-
metodológica. Revista Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 9, p.
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2000. Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/folha-
2/miniaturas-literarias-277374.html. Acesso em: 23 nov. 2022.
SOBRAL, A.; GIACOMELLI, K. Observações didáticas sobre a
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VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2018 [1929]. p. 91-102.
VOLÓCHINOV, V. N. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios,
artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019 [1926].
304
APÊNDICES
305
9) Agora observe as formas nominais no gerúndio: “apanhando” e
“sangrando”.
a) O que elas revelam quanto às ações do marido?
b) O que a opção por essas palavras sugere sobre o posicionamento da autora
do texto? Podemos dizer que essas palavras assumem uma entonação social
(uma forma da sociedade pensar esse problema)?
10) Leia estre outro fragmento:
“Porém, igualmente, se surpreenderam na noite em que, mais bêbado que de
costume, o marido, depois de surrá-la, jogou-a pela janela, e D. Eulália
rompeu em asas o voo de sua trajetória.”
a) Observe este trecho, “Porém, igualmente, se surpreenderam[...]”. O termo
“porém” sugere, no enunciado, o sentido de oposição, conformidade ou
alternância?
b) A que se refere o termo “igualmente”? O termo “igualmente” sugere uma
ideia de equivalência, modo ou igualdade? Por quê?
c) Você acha mesmo que os vizinhos e parentes ficaram surpresos com o que
aconteceu com D. Eulália? Justifique. (inferencial)
d) A opção pela expressão “se surpreenderam” é usada para demarcar uma
entonação social (valor social) positiva ou negativa? Por quê?
e) Observe a opção da autora pelas formas verbais: “surrá-la”, “jogou-a”,
“rompeu”. Que valor social e ético a opção por essas formas linguísticas aciona
no texto?
11) No fragmento “mais bêbado que de costume”, que juízo social é acionado
acerca do marido?
12) Observe que no texto todo a pontuação que se percebe é o uso do ponto
final e da vírgula. Releia os dois primeiros parágrafos:
É uma santa. Diziam os vizinhos. E D. Eulália apanhando.
É um anjo. Diziam os parentes. E D. Eulália sangrando.
a) O tom da leitura sugere uma entonação enfática ou pausada?
b) O que o tom sugerido pela leitura revela acerca dos acontecimentos sociais
mencionados no texto?
13) Agora releia a 2ª parte do texto e marque a alternativa que indica o que o
emprego das vírgulas sugere na leitura desse trecho?
“Porém igualmente se surpreenderam na noite em que, mais bêbado que de
costume, o marido, depois de surrá-la, jogou-a pela janela, e D. Eulália
rompeu em asas o voo de sua trajetória.”
a) pausas na leitura.
b) uma gradação, ou seja, o próprio ritmo da violência.
c) as explicações sociais para caracterizar a violência.
d) a demarcação do vocativo.
Etapa 3 – Questões de interpretação:
306
a) O conto faz uma denúncia de cenas cotidianas ao retratar o posicionamento
social sobre a violência de gênero. Analise o posicionamento de vizinho,
parentes, do agressor e da vítima e explique como o posicionamento de cada
uma valida a prática do feminicídio.
b) O conto é narrado a partir de um posicionamento social sobre o tema.
Comente: de quem é esse posicionamento? A que serve esse posicionamento?
c) A partir das reflexões tecidas acercada da temática, de que forma você
posicionará diante de eventos em que se reforce a violência de gênero?
Comente.
307
308
ENCAMINHAMENTOS DIDÁTICOS PARA
LEITURA E ANÁLISE LINGUÍSTICA/SEMIÓTICA
DE ENUNCIADOS NO GÊNERO TIRA
INTRODUÇÃO
309
Além disso, essas habilidades de leitura precisam englobar
textos produzidos no âmbito das Tecnologias Digitais da
Informação e Comunicação (TDIC) - na área de Linguagens e suas
Tecnologias, considerando que os sujeitos se deparam
cotidianamente com enunciados que abrangem múltiplas formas
de linguagem. Dessa forma, ressalta-se a necessidade do
desenvolvimento de um trabalho com os multiletramentos (ROJO,
2013), destacando a igual relevância de todas as modalidades de
linguagem na construção de sentidos e valorações nos enunciados.
Assim, neste capítulo, selecionamos um enunciado do gênero
tira para trazer encaminhamentos didáticos que ajudem os/as
professores/as a construir um trabalho dialógico com as práticas de
leitura e análise linguística, sabendo que elas se imbricam no
momento da interação com o texto na sala de aula e que ambas
podem contribuir para a compreensão crítica e reflexiva dos
enunciados que são ideologicamente valorados por nascerem no
bojo das relações sociais.
A tira selecionada tematiza o papel das mulheres na sociedade
por meio das lutas advindas do movimento Feminista. O autor,
Alexandre Beck, que possui uma página na rede social Facebook
com mais de 1.030.428 seguidores, veicula tiras acerca de diversos
temas, com destaque para problemas sociais, tecendo críticas e
procurando levar seu leitor/interlocutor à reflexão sobre situações
vivenciadas no dia a dia.
Desse modo, com a proposição didática realizada neste
capítulo1, tem-se como objetivo geral: desenvolver atividades de leitura
e análise linguística/semiótica de uma tira sob a ótica da concepção
dialógica da linguagem. E como específicos: a) promover reflexões a
respeito da multimodalidade e dos multiletramentos; b) abordar o
gênero tira explicitando seus elementos constitutivos e funções
310
sociais nas esferas/campos de atividade humana em que circula; c)
produzir atividades de leitura e análise linguística/semiótica de
uma tira do Armandinho direcionadas para o 8º e/ou 9º anos do
Ensino Fundamental na disciplina de LP.
Buscamos, dessa forma, desenvolver uma proposta dialógica
de leitura e análise linguística/semiótica, considerando as
dimensões extraverbal e a multimodalidade constitutivas do
gênero tira, com vistas a estabelecer um diálogo direto com os/as
professores/as de LP.
A fim de iniciar esse diálogo, este capítulo encontra-se
organizado em três seções: i) reflexões teóricas a respeito da teoria
dos multiletramentos estabelecendo um diálogo com a teoria do
Círculo de Bakhtin; ii) discussões sobre os aspectos constitutivos do
gênero tira e do autor; iii) proposições didáticas para o uso da tira
selecionada com glossário de termos teóricos para o/a professor/a.
311
Nesse viés, a grande circulação de textos nas esferas midiáticas
trouxe a necessidade de a escola lidar com tais textos. Por esse
motivo, é preciso implementar trabalhos na escola e fora dela para
os multiletramentos, de maneira que o estudante compreenda o
que está lendo2. A leitura dessas múltiplas linguagens, necessita ser
propiciada pelo professor, de modo que o aluno entenda e produza
sentidos a partir do que lhe é posto pelo autor, o que possibilita o
seu envolvimento efetivo em práticas discursivas.
Em relação à compreensão de multimodalidade ou
multissemiose, conforme Rojo e Barbosa (2015), os textos
multimodais misturam diversas modalidades de linguagem.
312
coprodutores de dizeres que buscam atender aos mais diversos
propósitos discursivos.
313
âmbito jornalístico, porém, posteriormente, adaptado para outros
suportes. Ramos (2017), estudioso desse gênero, esclarece que:
“Terem sido publicadas por décadas nas páginas dos jornais ajudou
muito a popularizá-las, bem como seus vários personagens. Neste
século, chegaram com boa repercussão à internet. Na área de ensino,
tornaram-se presença quase obrigatória” (RAMOS, 2017, p. 7).
* Vinheta é outra forma de se referir aos quadros da tira. Isso porque, apesar de
tradicionalmente quadradas, as vinhetas podem vir em diversos formatos, inclusive sem
contorno algum (como é o caso da tira escolhida para a proposição didática). Desse modo,
parece mais adequado utilizar a nomenclatura “vinheta”, que engloba a parte da tira, sem
restringi-la ao formato quadrado.
314
adultos: “É um discurso que tende a associar essa forma de
linguagem a conteúdos menos densos e que tende a causar
estranheza quando ocorre o contrário” (RAMOS, 2017, p. 52).
Com vista a tais possibilidades de sentido, optamos, como o
autor, por usar a nomenclatura “tira”, inclusive pelo fato de que
nosso objeto de estudo comprova que o conteúdo dos enunciados
não precisa ser leve, infantil, ou tratado de forma cômica para que
se defina neste gênero.
No que tange ao formato da tira selecionada, que faz parte das
“Tiras do Armandinho”, em conformidade ao que Ramos (2017)
postula, Alexandre Beck produz tiras tradicionais, por vezes tiras
duplas ou triplas. Uma marca estilística do autor é deixar a segunda
vinheta sem contorno, assim, temos esse formato como
regularidade em suas produções. Além disso, Beck dispensa balões
e apêndices (parte inferior do balão que o liga a determinado
personagem) e utiliza geralmente apenas traços para indicar a fala
dos personagens, ou nenhum traço.
Ramos (2017) afirma que, do ponto de vista do conteúdo,
podemos considerar como mais comuns as tiras cômicas, as quais
têm como objetivo principal o humor, o que é tradicional de uso do
gênero; e as tiras livres, menos comuns, abordam diferentes temas,
desde poesias, até reflexões e críticas sociais. Com relação às “Tiras
do Armandinho”, o autor produz também tiras cômicas, entretanto,
apesar de utilizar um formato mais próximo do tradicional, rompe
na forma de tratamento dos conteúdos, dado que majoritariamente
faz tiras de conteúdo livre, em que traz reflexões sérias sobre
assuntos caros à sociedade contemporânea. Assim, o autor tem
popularizado as tiras de conteúdo livre que, em geral, têm menos
circulação na sociedade, e as coloca em evidência, ressignificando
o que se entende por tira e sua função social.
Desse modo, em face à teoria do Círculo de Bakhtin,
entendemos que Alexandre Beck promove uma refração do gênero,
ao colocar nele novos acentos valorativos de crítica social, de
reflexão e de desnaturalização de ideias pré-estabelecidas na
sociedade. Nas tiras do autor, acontece um embate de vozes sociais,
315
posicionamentos discursivos, que não buscam provocar
meramente o riso, mas também a reflexão sobre uma
heterogeneidade de vozes e discursos que são levados a se
deslocarem para um entrelugar em relação aos discursos já
naturalizados pela sociedade e aos contradiscursos que levam à
percepção das camadas sociais e suas contradições.
Portanto, as “Tiras do Armandinho” se apresentam como um
campo frutífero para o debate de ideias e a (auto) crítica de
posicionamentos. Parece, então, lugar privilegiado para promover
análises no contexto escolar que busquem, além no ensino de LP,
não só destacar aspectos linguísticos/semióticos como também
desvendar os discursos e as valorações construídas no projeto de
dizer do autor, como o ensino pautado pela concepção dialógica
que aqui propomos.
316
No enunciado escolhido para estudo, Armandinho não se faz
presente, por ser uma escolha estilística do autor. Essa escolha se
dá para propiciar mais espaço/visibilidade às mulheres, porque o
projeto de dizer que permeia o enunciado é voltado para o tema
Feminismo. Assim, mesmo que o personagem não esteja presente
no enunciado selecionado, mantemos a nomenclatura “Tiras do
Armandinho”, já que essa é forma como as tiras do autor são
popularmente conhecidas, visto que o próprio autor assim intitula
sua produção.
A escolha do enunciado desse autor se deu em face de sua
grande circulação nas mídias e em jornais, ou seja, os enunciados
de Alexandre Beck são bastante lidos. Além disso, o autor tem um
estilo discursivo crítico e reflexivo e, muitas vezes, se utiliza de
ironias e subentendidos para fazer suas críticas, demandando do
leitor diversos conhecimentos extralinguísticos, como os fatos que
ocorrem em seu contexto imediato de produção.
317
Esse tema foi selecionado em razão de que, ao longo da história, o
tratamento dispensado às mulheres tem sido o de um gênero
inferior, sem espaço nos diversos ambientes da sociedade e,
principalmente, sem direito à voz, à opinião, inclusive sobre seu
próprio corpo, objetivos, ocupações.
Assim, há uma grande difusão de discursos a esse respeito na
sociedade atual, que se torna arena para diversas posições
ideológicas, por vezes contraditórias, para as quais se necessita de
um leitor crítico e reflexivo que coloque em análise os contextos
enunciativos, as posições sociais dos falantes e os acentos
valorativos dependentes do contexto extraverbal. Diante disso,
parece basilar o tratamento desse tema na escola, visto que é nela
que formamos os sujeitos para que aprendam a refletir sobre as
diversas facetas da sociedade, se posicionando criticamente sobre
diversos temas, inclusive aqueles que dizem respeito aos direitos
humanos e ao bem estar da sociedade como um todo.
318
tempo e os recursos disponíveis, o nível escolar dos alunos, as
necessidades deles, o enfoque a ser dado pelo professor, entre
outros aspectos. Apontamos para que o/a professor/a se sinta livre
para “brincar” com as possibilidades didáticas aqui elencadas.
* Esses momentos têm relação com a ordem metodológica para o estudo da linguagem
proposto por Volóchinov (2017 [1929]). Mais amplamente abordado por Fenilli (2020).
319
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GLOSSÁRIO
327
Campo de atividade humana/esfera social: É a instância em que
ocorre a produção, circulação e recepção dos textos/enunciados, os
quais são organizados em gêneros de discurso. Essa instância
regula o surgimento de novos gêneros de acordo com as práticas
sociais. Exemplos de esferas: jornalística, midiática, científica,
religiosa, escolar etc. Cada uma tem seu modo particular de
orientação da realidade, ou seja, cada uma compreende e valora a
realidade de maneira particular.
328
Enunciado: acontece na interação; é a ordem do sentido e unidade
real de comunicação, composto por três aspectos: 1) a
referencialidade, pois referencia o mundo; 2) a expressividade,
tendo em vista que expressa avaliações/valorações e; 3) a
endereçabilidade, visto que é endereçado para alguém. É um elo na
cadeia de discursos verbais: responde a algo e orienta-se para uma
resposta. É composto por dois polos: a) do sistema da linguagem
(aquilo que pode ser repetido e reproduzido); b) inerente à situação
social (aquilo que é individual, único, singular e irrepetível).
329
Relações dialógicas: podem ser compreendidas como posições
axiológicas de sujeitos em seus atos concretos da vida, irredutíveis
às relações lógico-semânticas, não se restringem ao diálogo face a
face, mas a todas as comunicações, na medida em que as palavras
de um sujeito são sempre perpassadas por palavras do outro; a
alternância dos sujeitos falantes, a conclusibilidade e a
expressividade (do autor) são características que permitem aos
enunciados estarem permeados de relações dialógicas.
330
REFERÊNCIAS
331
REFERÊNCIAS DO GLOSSÁRIO
PALAVRAS INICIAIS
333
oralidade, leitura, análise linguística e produção textual de paródia,
com uma turma do 9º ano do ensino fundamental, em uma escola
pública de Macapá-AP. Entendemos que uma proposta
direcionada a esse fim não pode estagnar num estudo da língua
pautado, unicamente, nos seus aspectos linguístico-gramaticais de
caráter normativo. É preciso ir além.
Pautadas na perspectiva dialógica de linguagem, elaboramos
uma proposta didático-pedagógica de leitura, oralidade, análise
linguística e produção textual, a partir do poema O bicho, de
Manuel Bandeira (1948), ancorada no viés dialógico da linguagem.
Sabemos que o ensino e a aprendizagem da linguagem sob essa
perspectiva é um trabalho desafiador, dadas as dimensões que ela
abrange, assim como se traduz em uma ruptura com a forma
tradicional de ensino centrada ou na gramática estruturalista,
focada no signo linguístico, ou no gênero textual, voltada ao texto
e suas características. Interessou-nos com essa proposta
experimentar uma rota que se encaixa no discurso da
reconfiguração de ensino e aprendizagem de língua, em que as
práticas de linguagem são tomadas como complementares uma das
outras. Nesse percurso, a Sequência de Análise Linguística (SAL)
proposta por Mendes-Polato, Ohuschi e Menegassi (2020) ofereceu-
nos base para o desenvolvimento da nossa.
Intencionávamos, ao planejar a nossa sequência, atuar
eticamente aos anseios sociais e em resposta às demandas de
aprendizagem a considerar como auditório imediato os sujeitos
aprendentes, os alunos do 9º ano do ensino fundamental, de uma
escola pública, de Macapá/AP. Nesse percurso de elaboração e
implementação da SAL, consideramos que atividades dessa
envergadura ainda não são, propriamente, regulares na educação e
que se insurgem no nosso tempo em resposta aos avanços nos
estudos linguísticos na perspectiva dialógica. Logo, um trabalho
dessa natureza, ao passo que rompe com o já dito, também se abre
aos elos posteriores, cujos horizontes, ainda não experienciados,
trazem desafios ao professorado, tanto na sua elaboração quanto em
sua implementação. Ao considerarmos nossa atividade desse ângulo,
334
entendemos que uma possível contribuição nossa ao ensino e
aprendizagem da língua portuguesa seria refletir sobre o processo
de ensino e aprendizagem na perspectiva dialógica da linguagem, a
partir de uma atividade de análise linguística.
Para isso, demonstramos como se teceu a mediação docente
em atividades de análise linguística na perspectiva dialógica em
resposta à demanda de aprendizagem do alunado, com o intuito de
ampliação responsiva e ética da consciência social dos alunos sobre
o tema “fome”. Consoante a isso, descrevemos os modos como se
construíram os movimentos de mediação docente e suas
ressonâncias no processo de aprendizagem discente e como a
responsividade do aluno vai balizar a responsividade docente. Em
vista disso, relatamos, brevemente, como se deu a abordagem do
tema e os encaminhamentos da proposta consoante às práticas de
oralidade e leitura e nos detemos, em seguida, à primeira etapa de
atividades de análise linguística com questões epilinguísticas.
Optamos por trazer luz sobre esse tipo de atividade em
virtude de essa ser uma prática de linguagem pouco explorada em
seus aspectos dialógicos, mas que é crucial para a formação de
sujeitos críticos e reflexivos. Por essa razão, analisamos as questões
por blocos, definidos conforme os temas das questões-enunciados
e, consecutivamente, tecemos reflexões sobre os enunciados das
perguntas, sobre as respostas de duas duplas de alunos,
identificados como D1 e D2, e sobre como se deu a mediação
docente. Nesse movimento analítico, trazemos a lume as
estratégias docentes ativadas no processo, assim como lançamos
mão de um olhar sobre a produtividade dos enunciados e seus
efeitos nos sujeitos-alunos.
335
sujeitos demarcados histórico, social, cultural e ideologicamente
enunciam e produzem sentidos e valores, que se fundem ao todo
social. Nessa perspectiva, a linguagem e a língua são organismos
por meio dos quais operamos posicionamentos e agimos
socialmente. Assim, à medida que interagimos, nossa consciência
vai se formando e desenvolvendo a partir do nosso entorno social,
das vozes que conosco dialogam e das influências que demarcam
as condições imediatas e longitudinais da enunciação
(VOLÓCHINOV, 2021 [1929]).
Consoante a isso, a formação e o desenvolvimento de
consciências mais críticas e reflexivas estabelecem-se na relação
com o outro. Reconhecer a relação eu – outro como princípio
dialógico implica estabelecer o entendimento da alteridade como
lugar de constituição dos sujeitos. Nesse sentido, dialogar requer
um posicionamento responsível e responsável com o outro, implica
um agir consciente dos nossos atos. Para tanto, a língua é
ferramenta de ação que os sujeitos mobilizam em seus atos de
linguagem e agem sobre os outros. Nesse ínterim, é importante que
o sujeito possa ampliar sua consciência de modo a posicionar-se
reflexiva e/ou criticamente diante das questões sociais que o cercam
(VOLÓCHINOV, 2021 [1929]).
Volóchinov (2021 [1929]) salienta que ao enunciar, o falante
não está preocupado com a forma linguística, mas por sua vez é
impelido aos sentidos que esse ou aquele recurso linguístico emana
em dado enunciado concreto. Assim, é o sinal e seu efeito investido
em dada realização que interessa aos estudos da linguagem. Para
isso, é necessário pressupor que os sentidos mudam conforme os
sujeitos, os valores trazidos por eles para o momento do ato
comunicativo e como essa situação imediata refrata/interfere na
constituição dos sentidos. Logo, não é o significado dicionário da
palavra que interessa, mas o sentido revestido de realidade e
atualidade, no ato comunicativo, o que só acontece no bojo de um
enunciado concreto. Desse modo, à perspectiva dialógica interessa
a capacidade de mutação, de adaptação do signo linguístico à
ideologia que provém de sua atuação no ato de interação, que é
336
sempre representativo de um momento histórico, de um lugar
social e de um contexto ideológico.
Interagir, nesse contexto, significa enunciar, dirigir a palavra
tendo como referência o outro, representante (ou não) de outro
contexto ideológico, instaurado em determinado auditório social
que determina a realização do enunciado, as escolhas linguísticas,
seu tom. Nesse sentido, o interlocutor do material discursivo age
com e pela palavra, que se torna ponte entre o eu e o outro e tanto
serve a um quanto ao outro. Assim, a palavra dialógica ganha
contornos demarcados pelas condições contextuais do discurso que
balizam a constituição do enunciado. Esse, por sua vez, constitui
uma unidade discursiva que se ata aos fios discursivos dos elos
anteriores e dos elos posteriores, de forma que se consolida como
uma forma estabilizada de sentido, atendendo aos enformes
interativos e da comunicação social em que está circunscrito. Dessa
forma, cada espécie de comunicação social “[...] organiza, constrói
e finaliza, a seu modo, a forma gramatical e estilística do enunciado,
sua estrutura típica, que chamaremos adiante de gênero”
(VOLÓCHINOV, 2019 [1926], p. 269, destaques do autor).
Nessa perspectiva, empreender estudos que considerem a
língua enquanto fenômeno humano, materializado por meio de
gêneros discursivos, subtende a consciência de que o enunciado
não se materializa em palavras ou frases soltas, aleatórias, mas
constituem um todo apreciativo que se realiza no corpus da
interação entre dois sujeitos instituídos socialmente –
falante/escritor e ouvinte/leitor – e o personagem – o conteúdo da
comunicação, em outras palavras as três pessoas discursivas. Como
tal, pressupõe a compreensão e a resposta que se realizam de forma
dialógica, em réplicas que deixam entrever as vozes de nossa
consciência repletas de opiniões, avaliações refratadas de nosso
lugar social (VOLÓCHINOV, 2019 [1926])
Nesses termos, o enunciado consolida-se como uma unidade
comunicativa que se ata aos fios discursivos já ditos e que ainda
serão ditos e exaram as experiências, vivências históricas e culturais
que se atualizam na interação por meio de nossas escolhas
337
discursivas, linguísticas e enunciativas. Em suma, a vibração de
nossa voz não é senão uma escolha singular de representação de
nosso grupo social. Por essa razão, o ensino e aprendizagem de
língua que se pressupõe em nosso contexto atual é aquele que
fomenta reflexões com e a partir da língua acerca das participações
dos sujeitos sociais enquanto detentores de direitos instituídos
históricos e socialmente, assegurados em lei e que precisam
desenvolver suas consciências para se posicionarem reflexiva,
crítica e eticamente, tendo como parâmetro o bem-estar do outro.
Nesse quadro, a língua como abstração que ainda resiste em
muitas salas de aula e a tomada dos gêneros discursivos apenas
pelas características composicionais não preenchem as lacunas que
almejamos para uma sociedade mais consciente de seu papel
humano e social. Precisamos enveredar por um ensino e
aprendizagem de língua em que o centro do processo seja o homem,
na escola representada pelos alunos e alunas.
Assim, responde coerentemente a esse pressuposto e perspectiva,
o trabalho que valorize o diálogo e a reflexão sobre os aspectos
linguísticos arranjados no interior de enunciados concretos. Para isso,
consideramos que a análise linguística na perspectiva dialógica
responde positivamente a esse ideal. Volóchinov (2021 [1929]) explica
que a forma linguística em si não é o alvo central da atenção do
usuário da língua, mas seu sentido. O autor postula que reconhecer a
forma linguística por si só é redutor, pois o que interessa é a
compreensão de seu papel na enunciação: o que significa; quais
sentidos emanam as formas linguísticas.
Por essa razão, o estudo da língua que se pretenda dialógico,
precisa voltar-se à orientação contextual. Para o linguista, se
pretendemos o desenvolvimento da consciência linguística dos
sujeitos, precisamos lidar com as unidades reais do fluxo
discursivo, os gêneros discursivos, e a partir deles ou no interior
deles empreender estudos das formas que compõem essas
unidades, sem dissociá-los da sua corrente histórica e social
(VOLÓCHINOV, 2019 [1926]).
338
Isso tem direta relação com a perspectiva de que a formação
da consciência socioideológica é formada do exterior – entorno
social – para o interior – por meio do processo reflexivo – e
retornada ao exterior por meio da linguagem. Nesse processo, as
escolhas estilísticas que os sujeitos fazem nos seus enunciados
discursivos compreendem o estilo, o qual é marcado por um
envolvimento emocional e corporal do indivíduo com o conteúdo
e com o sentido projetado por ele no enunciado. A relação
emocional do sujeito para com o seu dizer mobiliza, logicamente,
um arsenal de recursos lexicais, gramaticais e composicionais que
são arranjados no enunciado, de modo a refratar um valor, que
toma forma no plano da expressão (BAKHTIN, 2016 [1979]). Em
razão disso, é coerente que os recursos linguísticos ativados no ato
discursivo sejam peça de reflexão no contexto de um ensino e
aprendizagem da língua que se pretenda prospectivo de novas
nuances valorativas.
O reconhecimento de que a língua carrega consigo um
conjunto de ideologias dos grupos nos quais os sujeitos estão
inseridos, direciona, necessariamente, à importância de favorecer
aos sujeitos, modos de se apropriarem da língua em seus aspectos
linguísticos, discursivos e enunciativos, nos planos verbais e
extraverbais. Assim, pensar a língua como mecanismo de ruptura
a pensamentos e atitudes que negligenciam o outro, em sua
individualidade ou coletividade, implica considerar os recursos
linguísticos como signos ideológicos, passíveis de reflexão e ação.
Implica, também, considerar o sujeito como parte constituinte dos
processos mobilizados pelo ato de linguagem e que as
abordagens/ensinos das formas linguísticas dissecadas do corpóreo
social não são suficientes para alcançar tal objetivo.
Entendemos que o desenvolvimento da responsividade ética
passa pelo conhecimento da língua, o que, no contexto escolar,
requer do sujeito professor aptidão e conhecimentos teórico-
práticos que balizem a sua autonomia para a configuração de
propostas que atendam demandas sociais e de aprendizagem.
Essas demandas, na perspectiva dialógica da linguagem,
339
encabeçam a abordagem da análise linguística como prática de
linguagem que favorece a reflexão acerca dos sentidos e efeitos de
sentidos produzidos por marcas linguísticas no texto-enunciado.
A análise linguística no Brasil é proposta e delineada por
Geraldi (2004) a se desdobrar sobre a concretude textual, em
atividades de produção textual, por meio de estudo sociológico de
aspectos da língua, identificados como problemas nos textos de
alunos. Mais tarde, Franchi (1992) alude à necessidade de se
considerar o uso de recursos linguísticos a partir de práticas sociais
responsáveis e compartilhadas. Geraldi (2013), por sua vez,
estabelece que a análise linguística ocorre no interior de atividades
de interação, seja pela leitura ou pela produção de textos. O autor
considera como base da análise linguística, o fato de que com e por
meio dela, podemos refletir sobre as ações de linguagem, a partir
de atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas. Os
estudos avançados sobre a linguagem em perspectiva dialógica
apontam os novos rumos de entendimento da linguagem, de modo
que as reflexões provocadas por esses movimentos levam a análise
linguística para a perspectiva dialógica, de modo a considerar nas
proposições sobre essa prática de linguagem, aspectos relacionados
também às axiologias sociais (POLATO; MENEGASSI, 2021;
OHUSCHI; MENEGASSI, 2021; PEREIRA; COSTA-HÜBES, 2021;
RODRIGUES, 2021).
Pereira e Costa-Hübes (2021) explicam que o trabalho voltado
à análise linguística na perspectiva dialógica é considerado, nos
estudos do Círculo de Bakhtin, como materialidade linguística
concreta, realizada no interior de um enunciado concreto, em que
a língua é vivificada e cujos aspectos linguísticos estão intimamente
relacionados ao conteúdo temático e à estrutura composicional.
Nesse sentido, a análise linguística não pode ser descolada do
enunciado, mas compreendida como parte imanente do sentido e
valor global do enunciado. No contexto de ensino e aprendizagem,
trabalhar com essa dimensão de língua é um desafio. Mendes-
Polato, Ohuschi e Menegassi (2020) explicam que o trabalho com
essa prática de linguagem ainda enfrenta dificuldades em sua
340
implementação. Porém, se pretendemos uma sociedade com
sujeitos mais éticos, mais críticos e atuantes são necessários
esforços no sentido de suplantar os obstáculos existentes.
A partir dos desdobramentos sobre as axiologias sociais, os
estudos sobre a análise linguística em perspectiva dialógica
compreendem nessas atividades, aspectos que ampliam suas
abordagens. As atividades linguísticas voltam-se às próprias ações
e oportunizam interações com os enunciados concretos em práticas
de linguagem como a leitura ou a produção textual,
circunstanciadas a gêneros discursivos (GERALDI, 2013;
MENDES-POLATO, OHUSCHI, MENEGASSI, 2020). As
atividades epilinguísticas buscam direcionar as reflexões tanto
sobre o aspecto verbal quanto extraverbal, a considerar os juízos de
valor, as apreciações, as vozes sociais, o cronotopo, as
configurações textuais engajadas num plano global de projeto de
dizer (MENDES-POLATO, OHUSCHI, MENEGASSI, 2020). As
atividades metalinguísticas tanto corroboram a análise de
categorias gramaticais vigentes no Brasil, como expandem suas
percepções para apreciações interpretativas e valorativas
(MENDES-POLATO, OHUSCHI, MENEGASSI, 2020).
Atuar ao encontro dessas expectativas requer do sujeito
professor o desenvolvimento da consciência de que a língua não pode
ser tratada de forma estanque, o que esbarra, necessariamente, na
responsabilidade ética de entender o evento-aula como um processo
que demanda também, das instituições educacionais, um
envolvimento responsável com o ensinar e o aprender a linguagem.
Isso implica a importância de formação continuada que vislumbre a
reflexão sobre a língua como uma necessidade social e educacional do
sujeito. Diante disso, passemos a refletir na seção seguinte, sobre a
mediação docente como ato responsivo e responsável.
341
MEDIAÇÃO DOCENTE: NOSSO ATO É SEMPRE UMA
RESPOSTA AO ALUNO
Excerto 1:
Atividades pré-leitura
1) O que você imagina quando lê/ouve a palavra “bicho”?
2) Vocês conhecem o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira?
3) Como você imagina um bicho comendo quando está com fome?
4) O que eles pensavam sobre a fome no mundo?
342
(MENDES-POLATO; OHUSCHI; MENEGASSI, 2020) como a
antecipação de que o bicho poderia ser um animal, uma criatura;
somente uma aluna respondeu conhecer o poema, mas sem
aprofundamento; à pergunta 3, os alunos responderam inferindo
que o bicho estava desesperado, outros responderam por meio de
expressões corporais na tentativa de imitar os gestos de um bicho.
Por último, eles demonstraram preocupação, relatando não terem
passado por essa situação extrema de fome. Após esse momento,
nós compartilhamos um breve resumo biográfico do autor Manuel
Bandeira oralmente e um norteamento dos problemas sociais que
assolaram a década de 1940, quando a obra foi publicada. Em
seguida, os alunos foram convidados a ler o poema O bicho (Excerto
2), escrito na lousa, primeiramente de forma silenciosa para que
pudessem reconhecer o texto:
Excerto 2:
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
343
valores suscitados com a entonação. Com isso, tentamos mostrar
aos alunos um tom de horror do autor social diante da cena,
demarcando no quadro magnético algumas palavras e/ou
expressões para que eles lessem com a expressividade coerente a
esse tom. A partir disso, debatemos o tema, relacionando o poema
com as questões sociais inerentes à vida deles, levando-os, também,
a observarem os movimentos linguístico-enunciativos, seus
sentidos e valores. Em suma, realizamos uma análise linguística
epilinguística, a priori, oralmente, levando os alunos a perceberem
a composição formal do texto. Após a exploração oral, fomos para
as questões de leitura, a explorar o par pergunta/resposta, de forma
escrita, sobre o contexto de produção, de modo a atingir o contexto
histórico mais amplo e o contexto imediato da recepção do texto.
Nesse momento, também, exploramos a função social do texto,
nesse contexto. Nisso, percebemos a necessidade de fazer a
diferença entre objetivo, finalidade social e intenção discursiva,
conforme excerto 3.
Excerto 3:
Contexto de produção.
1. Releia o texto e desenvolva as questões a seguir com base no contexto de
produção do poema.
a) Qual o papel social do autor do poema?
b) Que tipos de atitudes se espera de Manuel Bandeira enquanto autor desse
texto?
c) Que perfil social se espera do público-alvo do poema?
d) Observe a data de publicação do texto. Que eventos marcaram essa época
– a década de 1940? Pesquise e justifique a influência desse contexto histórico
na abordagem do tema pelo poeta.
e) O objetivo de um texto se refere à relação autor-leitor. Nesse caso, que
objetivo o poeta teria para com o leitor?
f) Outro elemento muito importante da função social de um texto é a
finalidade social, que diz respeito à reação-resposta do leitor ao tema
abordado pelo poeta no texto. Nesse caso, qual seria a finalidade social do
poema?
g) Outro elemento da função social de um texto é a intenção discursiva, a
qual buscar responder às necessidades da sociedade quanto ao tema. É
aquilo que o poeta pretende que a sociedade desenvolva a partir do texto.
344
Nesse caso, qual seria a intenção do autor ao abordar o tema, da forma como
escreveu o texto? O que ele pretendia com isso?
Excerto 4:
2. Manuel Bandeira costumava retirar a poesia de seus versos de cenários
cotidianos.
a) Que cena/imagem é retratada pelo poeta no seu poema?
b) Com esse registro, para que cena social o poeta chama a atenção?
c) Esse tema tem relação com as necessidades sociais? Por quê?
345
Excerto 5:
1. Considere que o poema foi escrito no contexto sócio-histórico de 1940,
época de grande miséria no Brasil e no mundo, marcado pela eclosão da 2ª
guerra mundial. Passado tanto tempo, como você vê a abordagem desse
poema hoje? O tema ainda é pertinente? Por quê?
2. Considere que você também viu a mesma cena retratada no poema pelo
poeta e você decidiu postar sua indignação nas redes sociais (facebook) como
forma de denúncia/protesto. Que argumentos você usaria? Escreva um
comentário crítico-argumentativo evidenciando sua compreensão e opinião
enquanto cidadão a respeito do tema.
Excerto 6:
1. O poema é pertinente atualmente devido à desigualdade social que ocorre
no nosso país e no mundo inteiro. Enquanto alguns se beneficiam de seus
pertences por conta da sua classe social considerada boa, outros sofrem
morando nas ruas, desempregados e necessitados. Além do governo tirar as
únicas oportunidades que eles tinham por conta do egoísmo e da ganância.
Excerto 7:
2. A desigualdade social é uma das coisas que mais me deixa assustada.
Situações como pessoas tendo que pegar comida de resíduos para ter o que
comer e conseguir sobreviver até o dia de amanhã é o ápice da injustiça, algo
totalmente desumano.
Saber que o governo e a maioria das pessoas estão dando pouca/nenhuma
importância em relação a isso é algo extremamente triste e o cúmulo do
absurdo. Muitos não sobrevivem por ausência de comida, higiene pessoal e
cuidados básicos com a saúde, vivem nas ruas e não conseguem fazer algo
para mudar a situação por estarem incapacitados; as vozes delas não são
ouvidas na nossa sociedade.
Já passou da hora de darmos um passo à frente e mudarmos isso. Não
devemos deixar que a nossa sociedade seja consumida pela desigualdade e
346
pelo preconceito. Temos que abrir os nossos olhos e dar mais visibilidade a
eles e ajudá-los. Não podemos permitir que situações como essa se repitam
mais do que já ocorrem no dia a dia de todos.
RECORTES OBJETIVOS DE
ETAPA DO
GRAMATICAIS APRENDIZAGEM
ENUNCIADO
Objetivo: refletir
sobre a constituição
ideológica da cena
Análise Aspectos enunciativa a partir
Primeira
linguística morfológicos e da análise
estrofe
1 sintáticos morfológica,
sintática, social e
valorativa da
linguagem verbal.
347
Objetivo: refletir
sobre a constituição
ideológica e
Análise Aspectos valorativa da ação da
Segunda
linguística morfossintáticos personagem social, a
estrofe
2 do verbo partir da análise do
verbo e da
composição do
enunciado.
Objetivo: refletir
sobre a constituição
ideológica e
Aspectos
Análise valorativa do
Terceira e morfológicos e
linguística advérbio e dos
quarta estrofes sintáticos do
3 substantivos; do
enunciado
paralelismo sintático
e da voz social do
autor social.
Fonte: Autoras (2022).
348
O Bicho, de Manuel Bandeira (1942). Para isso, trazemos respostas
de duas duplas de alunos: D1, já identificada e de outra dupla,
denominada como D2.
Excerto 8:
Releia os versos:
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
d) Observe a expressão “um bicho”. Que ideia o artigo “um” indica no texto?
Respostas:
D1: Uma criatura medonha, bizarra.
D2: Generalizar.
349
que o extraverbal dá completude a sua resposta. À questão “b”, as
respostas se diferenciaram. Enquanto D1 contemplou o papel do
sujeito social, D2 reconheceu a voz do eu-lírico, situando-se no
nível do texto e não do discurso. Isso ocorre porque é um
conhecimento que se perpetua na tradição escolar, especialmente
na esfera da literatura.
As respostas à questão “c” se mostram coerentes nas duas
duplas de alunos, porém é na D1 que vemos um olhar mais
analítico, pois D1 demarca tanto o verbo quanto o advérbio “vi
ontem”. A resposta de D2 se justifica pela orientação do enunciado
da questão “que palavra nos versos...”. Nesse processo, a resposta
dos alunos nos fez refletir sobre a tecitura do enunciado, pois
constatamos a necessidade de uma análise prévia e cuidadosa do
enunciado-base, ao propor uma questão. Com isso, percebemos
que o professor está passível desses desencontros entre teoria e
prática porque é a partir das contrapalavras dos alunos que ele
pode ir se vendo e refletindo, à medida em que se permite o
movimento de autoavaliação.
A questão “d” foi respondida pelas duplas de forma diferente.
Enquanto a resposta de D1 centrou-se na compreensão da palavra
“bicho”, D2 respondeu centrando a compreensão no artigo “um”. Isso
revela que a resposta de D1 foi evidência de que os alunos não
reconheciam ainda o que era artigo. A essa percepção, direcionamos a
explicação a partir da lousa, retomando a categoria de artigos e suas
funções tanto na gramática quanto no texto. Em seguida, levamo-nos
a refletir sobre a escolha discursiva e seus efeitos de sentido no texto,
bem como sobre o efeito de valor no enunciado, a partir da
contraposição “vi ontem o bicho”, “vi ontem um bicho”.
Ressaltamos que o estudo desse recurso linguístico não estava
previsto no planejamento da turma. A resposta da dupla de alunos
foi a refração de uma necessidade de aprendizagem, abrindo uma
“janela” para atuarmos eticamente frente a essa necessidade. Nossa
atitude docente foi agir de forma responsiva a essa lacuna, levando
a turma a reconhecer a categoria gramatical, a perceber as suas
350
funções e a relacionar esse recurso linguístico à análise reflexiva de
seus efeitos de sentidos no enunciado.
Observamos que a mediação dialógica docente vai se
constituindo à medida que a resposta do aluno apresenta
demandas de aprendizagem e o professor atua fazendo um link a
partir dessa necessidade apresentada com os conhecimentos
linguísticos inerentes, no caso em tela, o conhecimento da classe
gramatical dos artigos. A partir dessa informação, ampliaram-se as
reflexões acerca dos sentidos discursivos e dialógicos que esse
recurso linguístico apresenta no enunciado.
Como vemos, a interação dialógica responsiva tanto discente
quanto docente permite a ambos irem “tecendo telhados”, como
poetiza Oswald de Andrade. Essa postura docente favorece,
acreditamos, uma aprendizagem mais significativa porque
promove um engajamento do aluno no contexto de aprendizagem
num movimento de vai-e-vem: o aluno realiza a tarefa, apresenta a
demanda de aprendizagem, o professor avalia, age em resposta a
essa demanda, acionando uma tríade – reconhecer, entender e
refletir, a partir do enunciado, conforme ilustramos a seguir:
Enunciado
Aluno
reconhece, Aluno
entende e apresenta a
reflete sobre o demanda de
recurso aprendizagem
linguístico
Professor age
Professor
em função da
avalia
demanda
351
Logo, a continuidade e o engajamento da atividade por parte
do aluno fluem produtivamente, ao passo que esse aluno vai,
paralelamente, desenvolvendo sua consciência de linguagem
enquanto tecido ideologizado e voz discursiva que carrega um
valor social.
Excerto 9:
e) Que expressão do texto indica o lugar dos acontecimentos?
Respostas:
D1: Na imundície do pátio.
D2: Do pátio.
h) Analise os termos: “na imundície” e “do pátio”. Qual deles tem sentido
abstrato e qual deles têm sentido concreto?
Respostas:
D1: “Na imundície”: sentido abstrato/ “no pátio”: sentido concreto.
D2: “Na imundície”: sentido abstrato/ “no pátio”: sentido concreto.
352
apontando e explanando de forma interativa as escolhas
linguísticas e discursivas do autor, levando os alunos a perceberem
os efeitos e os seus valores verbais e extraverbais no texto.
Na questão “h”, em específico, os alunos solicitaram
explicação sobre o que seria o sentido abstrato e o sentido concreto.
A essa demanda foi necessário abrir a “janela” novamente e fazer o
link com a classe gramatical “substantivos abstratos e concretos”.
Para isso, anotamos na lousa a classificação dos substantivos e nos
detivemos na classe dos substantivos abstratos e concretos.
Mediamos, primeiramente, o reconhecimento da função desses
recursos linguísticos; consecutivamente, ampliamos as reflexões
sobre os usos desses termos no enunciado em estudo, e, em seguida,
relacionamo-nos aos seus aspectos valorativos. Após essa
mediação, o aluno retornou à atividade para realizá-la em sua
individualidade.
Excerto 10:
i) Que sentido o autor social pretendeu ao colocar a expressão “na imundície”
antes do indicador de lugar “do pátio”?
Respostas:
D1: Retratar que o lugar onde o personagem estava era extremamente sujo.
D2: Mostra que foi algo feito por alguém.
j) Com a expressão “na imundície” que valor o autor social deixa entrever?
Respostas:
D1: Ao miserável, contextualizando o quão necessitado o personagem está.
D2: Mostra que é algo abstrato.
353
talvez tenha interferido na compreensão do enunciado. Isso sugere
que há uma necessidade de atentarmos para o modo de como se
conduzir os questionamentos, os quais precisam ser
parametrizados pelo ponto de vista discente, aliado à mediação.
A questão “j” voltou-se para a percepção do valor agregado à
expressão “na imundície”, relacionado a sua posição sintática no
trecho em destaque na atividade. A resposta de D1 foi satisfatória.
A dupla conseguiu acionar o valor agregado à expressão: miséria,
expandindo com uma explicação, o que demonstra que a
consciência socioideológica e ética desenvolve-se coerente aos
direitos humanos, pois ao entender o estrado social que interfere
na condição social do sujeito, os alunos deixaram entrever essa
consciência da interferência do contexto social na condição humana.
D2 não atendeu assertivamente ao enunciado; inferimos que a
dupla não entendeu o sentido da palavra valor. Esse tipo de
questão tem rendido reflexões acerca da mediação dos conceitos
axiológicos da linguagem porque mediar a compreensão do
conceito de valor não é tão simples. O aluno precisa entender o que
é o valor social e para isso precisamos explicar o que é um
julgamento social, o que foi feito por meio de exemplo, em
interação com os alunos a partir de questionamentos que os
levavam a se perceberem a partir do cotidiano. Ainda assim,
notamos que é necessário dar mais concretude linguística para que
os alunos possam valorar enunciados conscientes e perceber essas
valorações.
Uma estratégia que utilizamos foi fazer a brincadeira “Santo
Antônio”2, a qual consiste em trabalhar ludicamente os antônimos,
pois percebemos que a linguagem empregada para empreender
uma avaliação é concretizada a partir de adjetivos e de antônimos.
Para tanto, dizíamos uma série de adjetivos com efeitos contrários,
recebeu esse nome porque foi a forma de compreensão do filho de uma das
pesquisadoras-autoras. À época, a criança tinha três anos de idade e confundia a
palavra antônimos com Santo Antônio.
354
de oposição, por exemplo: bonito/feio, alto/baixo, feliz/triste,
rico/pobre, positivo/negativo, legal/chato. A partir disso,
conduzíamos essas possibilidades avaliativas para o enunciado;
nos detínhamos na avaliação apreciativa do enunciado como um
todo e nos valores sociais que as palavras refratavam nele para
refratar a avaliação social do autor sobre o tema tratado.
Excerto 11:
k) Que efeito de sentido o verbo "catar" sugere no texto?
Respostas:
D1: O verbo deixa explícito a dificuldade que o personagem sofre para achar
comida.
D2: Que a personagem não tinha escolha.
Excerto 12:
l) Se o autor social tivesse colocado a palavra "escolhendo" ou "selecionando"
no lugar de "catando", o efeito seria o mesmo? Por quê?
Respostas:
355
D1: Não, pois o personagem não possui o direito de escolher o que irá comer.
D2: Não, pois a personagem não tinha escolha e se usasse essas palavras
daria o sentido que a personagem tinha escolha.
Excerto 13:
m) Que sentido tem a palavra "detrito" no texto? Que outra palavra poderia
ter o mesmo efeito no texto?
Respostas:
D1: Lugares onde há coisas que foram deixadas para trás pelos humanos.
"resíduos" ou "lixos".
D2: Restos.
356
personalizada, fazendo com que pudéssemos preencher os “vãos”
de seu raciocínio até tecerem discursivamente o seu dizer. Nesse
movimento, nosso papel foi direcionar o olhar do aluno a aspectos
específicos do texto e fazê-los relacionar ao extraverbal mais
próximo da sua vida.
Excerto 14:
n) Ao usar a palavra "detrito", o autor social deixa transparecer sua avaliação
social da situação. Que avaliação seria essa: positiva ou negativa? Por quê?
Respostas:
D1: Negativo, ao escolher essa palavra o autor do poema demonstra sua
indignação com a situação.
D2: Negativa, pois o autor fala de um ser que procura por comida entre
restos.
357
internalizem essas palavras e possam agir de forma mais consciente
e autônoma em suas respostas, consequentemente.
A partir do exposto, consideramos que as atividades de análise
linguística ainda são muito desafiadoras e impõem uma
necessidade constante de pesquisa e de conhecimento das normas
gramaticais vigentes no Brasil. Impõem ainda, a necessidade de
mediar esses conhecimentos dentro de uma abordagem dialógica
da linguagem. Não podemos desconsiderar que o contexto pós-
pandemia requer um olhar de sensibilidade para o aluno em suas
necessidades de aprendizagem. Por essa razão, a mediação docente
precisa ser uma resposta a essas necessidades discentes; para tanto,
nós, professores, precisamos nos lançar em um processo de
autoconhecimento e autoaprendizagem e nos compreender como
seres incompletos, a fim de que sejamos impulsionados à busca
contínua por conhecimentos.
358
eram comuns no cotidiano da sala de aula. Dada essa realidade, o
nosso ato docente foi de atuar eticamente em resposta às demandas
discentes, de forma que o percurso da aprendizagem foi sendo
tecido e retecido conforme o nosso auditório imediato. Precisamos
adotar uma postura dialógica, buscando e criando estratégias
diversificadas e diferenciadas que atendessem a essa epistemologia,
tendo em vista o desenvolvimento satisfatório da consciência social
dos alunos acerca do tema selecionado.
Pudemos notar que com nossas mediações, os alunos iam se
engajando nas atividades por meio das nossas atitudes dialógicas.
É importante frisar que as atividades de análise linguística
impulsionaram o desenvolvimento reflexivo, mas sempre tendo
como ancoragem a nossa mediação. Essa mediação ora era focada
na turma como um todo, ora era personalizada. Notamos que em
questões direcionadas à reflexão de sentidos e seus efeitos, os
alunos se sentiam mais à vontade para responder sozinhos;
enquanto em questões que requeriam o conhecimento prévio de
conceitos gramaticais normativos, os alunos solicitavam uma
mediação mais de perto, requerendo explicações dessa ordem, o
que fazíamos apresentando o conceito gramatical, relacionando ao
enunciado e expandindo as reflexões a partir do linguístico para os
aspectos discursivos e valorativos.
Nesse movimento dialógico, observamos que a avaliação
também precisa ocorrer nesse processo de forma dialógica porque
o objetivo é direcionar o aluno a refletir sobre a sua resposta, de
modo a aprimorá-la e, assim, a consciência socioideológica vai se
consolidando. Outra observação nossa recai sobre o currículo
escolar, pois ocorre uma desconstrução da sua rigidez, à medida
em que a demanda discente suscita flexibilização das abordagens
tradicionais de ensino e aprendizagem. Isso implica um preparo do
professor e a consciência da escola em todos os seus âmbitos de que
o ensino e aprendizagem não pode ser mais verticalizado, de cima
para baixo. Isso se justifica porque as unidades do conhecimento
vão surgindo no processo, conforme às necessidades discentes. A
mediação docente, nesse ínterim, precisa ser responsiva e
359
responsável porque na relação dialógica o outro é sempre
constituído pelo eu, o que implica, necessariamente, em uma
atitude ética da docência. Além dessa observação, notamos que
essas unidades de conhecimento também foram determinadas pelo
enunciado-base em estudo, o que não fugiu de um plano
pedagógico prévio das professoras.
Percebemos ainda que os alunos foram refletindo,
processando os sentidos, os seus efeitos e valores relacionados ao
enunciado, às vozes sociais e a partir disso, a consciência
socioideológica acerca do tema foi se formando, se desenvolvendo
e/ou ampliando. Consequentemente, a mediação dialógica docente
também foi se constituindo porque fomos percebendo como
direcionar melhor as questões, sendo a voz do aluno nosso
parâmetro. As atividades e as respostas dos alunos nos permitiram
refletir sobre nossos “erros” e “acertos”, nos levando a um processo
de autoavaliação e, por conseguinte, a uma reformulação constante
de nossa prática. A constituição dialógica da discência e da
docência ocorre no processo, sendo um fio atado nas duas pontas –
na voz do aluno e na voz do professor, de modo que nosso ato
responsivo e responsável prescindiu de um olhar aos já ditos e aos
que ainda serão ditos para que, de fato, nos tornemos – alunos e
professores – sujeitos conscientes de nossos papéis sociais.
REFERÊNCIAS
360
MENDES-POLATO, A. D.; OHUSCHI, M. C. G.; MENEGASSI, R. J.
Análise Linguística em Charge: Sequência de Atividades
Dialógicas. Línguas & Letras, Cascavel, v. 21, n. 49, jun. 2020.
Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/linguase
letras/article/view/24631. Acesso em: 27 jan. 2021.
OHUSCHI, M. C. G.; MENEGASSI, R. J. Proposta teórico-
metodológica de análise linguística em perspectiva dialógica ao
trabalho com o pronome. In: PEREIRA, R. A.; COSTA-HÜBES, T.
C. (org.). Prática de análise linguística nas aulas de Língua Portuguesa.
São Carlos: Pedro & João Editores, 2021, p. 419-452.
PEREIRA, R. A.; COSTA-HÜBES, T. C. Sobre a análise da língua:
considerações em Bakhtin e Volochínov. In: PEREIRA, R. A.; COSTA-
HÜBES, T. C. (org.). Prática de análise linguística nas aulas de Língua
Portuguesa. São Carlos: Pedro & João Editores, 2021. p. 109-131.
POLATO, A. D. M.; MENEGASSI, R. J. epistemologia teórica do
nascimento da prática de análise linguística: décadas de 80 e 90. In:
PEREIRA, R. A.; COSTA-HÜBES, T. C. (org.). Prática de análise
linguística nas aulas de Língua Portuguesa. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2021. p. 21-72.
RODRIGUES, R. H. A prática de análise linguística: emergência,
reenunciações, abrangência e produtividade do conceito. In:
PEREIRA, R. A.; COSTA-HÜBES, T. C. (org.). Prática de análise
linguística nas aulas de Língua Portuguesa. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2021. p. 157-181.
VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São
Paulo: Editora 34, 2021 [1929]. p. 227-240.
VOLÓCHINOV, V. N. Palavra na vida e palavra na poesia. Ensaios,
artigos, resenha e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019 [1926]. p. 109-146.
361
362
VIVÊNCIAS PEDAGÓGICAS COM CANÇÕES
INTRODUÇÃO
363
uma concepção dialógica da linguagem: que os estudantes leiam,
compreendam, reflitam sobre os aspectos linguísticos em questão e
produzam com autoria, sempre em situações de usos sociais da
língua, com o intuito de formarmos sujeitos mais críticos e
transformadores do mundo.
Assim, compõe-se como pergunta motivadora deste trabalho:
Como o gênero canção pode fazer parte das aulas de Língua
Portuguesa do Ensino Fundamental? E, como objetivo, propor
ações e sequências de atividades para tal trabalho. Para tanto,
valemo-nos de conceitos da lexicultura (BARBOSA, 2009),
dialogismo, gêneros discursivos e interação social (BAKHTIN, 1997
[1979]) e sobre o gênero canção (TATIT, 1996; TINHORÃO, 1998;
ANDRADE, BALTAR, CASTRO, 2021).
Abordaremos nas seções seguintes o referencial teórico que
embasou o processo, os relatos de experiência com o ensino de
canções com turmas do Ensino Fundamental I e as considerações
sobre o processo vivenciado e sobre os procedimentos e atividades
propostas.
364
[...] as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não
só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção
operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional
(BAKHTIN, 1997 [1979], p. 280).
365
ouve/lê) que o texto acontece (BAKHTIN, 1997 [1979]). E a relação
entre língua e cultura no ensino e na aprendizagem de línguas
contribui para a compreensão do contexto de uso da língua e das
situações interacionais nos diferentes gêneros, e, no caso deste
trabalho, no gênero secundário (complexo) canção, da esfera
artístico-literária.
366
Neste sentido, o léxico é o nível de descrição linguística mais
diretamente ligado à realidade extralinguística, convergindo com a
proposta deste trabalho no ensino da língua portuguesa, a partir do
gênero artístico-literário canção.
367
interseção entre o cotidiano e o artístico, entre o popular e o clássico.
Assim, podemos dizer que a música oferecida pela indústria cultural
costuma promover canções e, por meio delas, analisar a parcela da
sociedade que as consome, uma vez que a música popular é o reflexo
vivo das tendências, das preocupações e do estado de espírito das
pessoas em um determinado momento da vida e da história. O que
ocorre em "Criança não trabalha, criança dá trabalho" e "Afinar as
rezas" é a abordagem implícita dos temas sociais como o trabalho
infantil e as questões ambientais de sustentabilidade e biodiversidade.
368
Quebra-cabeça, boneca, peteca, botão
pega-pega, papel papelão
369
Assim, foi lido, em sala de aula, o Art. 5º do Estatuto da Criança
e do Adolescente “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por
ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” As crianças
perguntaram: “O que é estatuto, negligência e discriminação?” A
partir das significações, abordou-se mais a fundo a questão do
trabalho infantil no Brasil e no mundo. Muitas falaram que já viram
crianças vendendo alguma coisa no semáforo e que já viram crianças
sozinhas andando nas ruas. Elas se preocuparam com as crianças de
rua e, numa roda de conversa, verbalizaram se essas outras crianças
não tinham família, onde moravam, onde estudavam e outras muitas
questões foram debatidas com as crianças, conforme a conversa
progredia. Houve um silêncio entre uma resposta e outra. Silêncio
questionador e reflexivo.
A canção Criança não trabalha não se destina a apresentar
palavras novas ao público infantil, visto que as mesmas são
conhecidas “Lápis, caderno, chiclete, peão, sol, bicicleta, skate,
calção”, e sim, a dar identidade ao mundo infantil, por meio de
palavras do seu cotidiano. Por isso, há uma ponte entre a criança
que não trabalha e a criança que dá trabalho. O conteúdo lexical da
canção, de forma lúdica, apresenta o mundo da criança que não
trabalha e que deve ser criança, quando, por exemplo, faz alusão ao
alimento: “1, 2 feijão com arroz, 3, 4 feijão no prato”.
As canções apresentam uma temática e um propósito e em
Criança não trabalha, criança dá trabalho como a infância é vivida é
a preocupação maior e traz a polêmica de que existem diferentes
infâncias com diferentes realidades e diferentes acessos ao direito
à saúde, à educação, ao esporte, à cultura, à convivência familiar e
comunitária.
Durante as exposições à letra e à música Criança não trabalha,
feitas no 2º ano do Ensino Fundamental I, observou-se que as
crianças queriam, prontamente, decorar as palavras da sequência
para cantarem junto com os músicos, acompanhando o vídeo. Tal
fato deve-se à amplitude das rimas e aliterações do texto feitas para
370
essa faixa etária: 6 (seis) e 7(sete) anos. Este é um trabalho que
corporifica-se em outras atividades para além da compreensão
leitora e amplia o conhecimento de mundo. Foi, também, possível
trabalhar famílias lexicais e famílias silábicas com foco na
apropriação do Sistema de Escrita Alfabética.
Veio do mar
A risada do pirata
Que veio dos naufragados
Pra morar na solidão
Veio do mar
Um gringo enlouquecido
Dizem ter morrido
De amor por conceição
Veio do mar
1Um pouco sobre a banda Dazaranha: este nome é uma alusão à comunidade do
Canto das Aranhas, na Praia do Moçambique, no Leste da Ilha de Florianópolis.
A giria "Das Aranhas" — Sujeito proveniente do Canto das Aranhas — sugere uma
pessoa considerada "casca grossa", que sobrevive às adversidades
"proporcionadas" pelo local. Dazaranha (também conhecida somente por Daza) é
uma banda brasileira de reggae rock—nativa de Florianópolis, Santa Catarina. É
formada por cinco membros oficiais e mais dois contratados que produzem letras
e arranjos os quais remetem à cultura popular florianopolitana e que se utilizam
usualmente do som do violino e da percussão.
371
Deu na ilha do campeche
Deixou inscrições rupestres
Pra história me levar
Veio do mar
A risada do pirata
Que veio dos naufragados
Pra morar na solidão
Veio do mar
Um gringo enlouquecido
Dizem ter morrido
De amor por conceição
Veio do mar
Deu na ilha do campeche
Deixou inscrições rupestres
Pra história me levar
372
Uma das justificativas para esta proposta foi a observação da
ausência de comportamento escolar pós-pandemia, a ansiedade
demasiada no retorno às aulas presenciais e a necessidade de
conciliar estas emoções com os conceitos a serem trabalhados em
um quinto ano do Ensino Fundamental.
Como primeira atividade, foi planejado proporcionar aos
estudantes a ausculta apenas de sons de violino para “acalmar os
pensamentos”, na tentativa de escutarem apenas o som
proveniente do instrumento musical e após, em silêncio, escutarem
suas respirações. Depois, conforme a proposta de trabalho,
conversando sobre o instrumento, os estudantes podem tentar
adivinhar o nome do instrumento e dizer o que sentiram ao ouvi-
lo. Cantar traz alegria e antes do início das aulas diárias com o
professor de música e/ou com o professor regente, para
sensibilização, poderia ser apresentado ausculta de sons de
instrumentos musicais diferentes.
Assim, conversando com os estudantes, o professor pode fazer
um diagnóstico inicial sobre o conhecimento da geografia local e
suas características e perguntar quais locais conhecem da cidade,
além de mostrar os locais no mapa da cidade e perguntar se gostam
de música e quais grupos locais conhecem. Neste momento, o
professor pergunta se conhecem o grupo Dazaranha e o que
conhecem dele, se já ouviram as músicas deste grupo e quais
conhecem. Que estilo de música costumam cantar, quais
instrumentos musicais usam para fazer o fundo musical.
Após, o professor propõe a escuta atenta da canção “Afinar a
rezas”. O professor pergunta sobre o que os estudantes sabem
sobre rezas na cultura mané, quem são as rezadeiras e como
trabalham. Pergunta, também, se sabem o que significa afinar as
rezas e sobre o que acham que a música irá tratar. Neste momento,
os estudantes ouvem a música com atenção. O professor questiona
se a ideia que faziam sobre o tema da canção se confirma ou não.
Depois a ouvem novamente e o professor solicita para anotarem o
nome dos lugares que ouviram; pergunta se conhecem os locais e
pede para apontarem no mapa da cidade os locais que ouviram.
373
O professor explora também a compreensão leitora, o que está
explícito e implícito, sobre o sentido figurado das palavras e
expressões e conversa sobre as características de cada um dos locais
citados na música: história local, características físicas, ambientais,
sobre a alimentação, população local e se o que observaram é igual
para toda a Ilha de Santa Catarina - dentro de um mesmo universo,
muitas são as “ilhas”.
Um trabalho interdisciplinar, abrindo portas para a
transdisciplinaridade, com certeza, inicia-se aqui. Com questões
sobre a história e cultura da Ilha e as histórias místicas, questões
ambientais, de sustentabilidade, de saúde e bem estar, questões
sobre ocupação do espaço por metro quadrado, mobilidade urbana,
etc. Além disso, cantar traz o aspecto lúdico e de movimento para
a sala de aula, aflorando emoções, apesar do foco estar no trabalho
com o léxico. Aqui, uma explosão de ideias pode surgir na conversa
com os estudantes como, por exemplo, listar os nomes relacionados
à comida típica e relacioná-las às outras regiões do Brasil e até
países, pelo número expressivo de estudantes em Santa Catarina
oriundos de outros locais; pesquisar a história dos bairros e a
semiose dos nomes; buscar expressões idiomáticas locais,
assistindo aos vídeos Dezarranjo ilhéu (oportunidade ímpar e
riquíssima tanto quanto às expressões quanto ao sotaque ilhéu/dos
barriga verdes/mané - jeito que os nativos são chamados: mané ou
manezinho é o jeito mais carinhoso e como, com muito orgulho, os
florianopolitanos se autodenominam) e relacionar as expressões e
seus significados.
Há a possibilidade de ampliação, explorando expressões
características de outras regiões do Brasil. A música possibilita o
trabalho com rimas, versos, poemas, haicais, narrativas cantadas
etc. Em relação à análise linguística, esta pode ser explorada a partir
das produções e no que o professor deseja focar com seus
estudantes sobre a reflexão dos aspectos linguísticos e dificuldades
encontradas.
Sobre a autoria, planejou-se produção de textos apenas com
nomes (substantivos ou adjetivos) ou ações (verbos). Também pode
374
ser produzido haicais e textos com nomes - dos 49 bairros e das 42
praias da ilha, comidas ou expressões idiomáticas locais. Os
trabalhos, por fim, podem ser expostos em uma mostra cultural e
literária, em livro ou revista impressa ou em e-book.
CONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIAS
375
ANDRADE, T. M.; BALTAR, M. A. R.; CASTRO, L. M. de.
Reflexões sobre o espaço da canção nos documentos
parametrizadores nacionais para o Ensino Fundamental. Estudos
Semióticos, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 306-325, 2021.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir
do francês por Maria Emsantina Galvão Gomes Pereira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997 [1979].
BARBOSA, M. L. A. O conceito de lexicultura e suas implicações
para o ensino-aprendizagem de português língua estrangeira.
Filologia e Linguística Portuguesa, São Paulo, n. 10-11, 2008-2009.
CRIANÇA não trabalha. Letra de Rosa Celeste e Composição de
Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho, Paulo Rubens de Moraes
Tatit. São Paulo: Palavra Cantada, 2020[1998]. DVD, son., color.
TATIT, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. São
Paulo: Edusp, 1996.
TINHORÃO, J. R. História social da música popular brasileira. São
Paulo: Editora 34, 1998.
376
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
377
edição”, organizado pela Prof.ª Dra. Márcia Sipavicius Seide, da
Unioeste campus Marechal Cândido Rondon.
378
Fernando Arthur Gregol
Atualmente é doutorando no Programa de Pós-
graduação em Linguística (PPGLin) da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
sob a orientação e supervisão do Prof. Dr.
Rodrigo Acosta Pereira. Também atua na
Secretaria do Estado da Educação e do Esporte,
do estado do Paraná (SEED-PR) como professor
de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental e Médio. É
graduado em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE) e tem mestrado em Letras pela mesma
instituição, sob a orientação e supervisão da Profa. Dra. Terezinha
da Conceição Costa-Hübes. Foi professor de Língua Inglesa,
Língua Portuguesa e Língua Italiana no Programa de Ensino de
Línguas (PEL) da UNIOESTE, do período de 2017 a 2021. Atuou
como professor de Língua Inglesa no Centro de Ensino de Línguas
de Toledo (CELTO), vinculado à UNIOESTE, no ano letivo de 2021
e 2022. É membro do Grupo de Estudos em Linguagem e
Dialogismo (GELID), vinculado ao Núcleo de Estudos em
Linguística Aplicada (NELA) da UFSC. Desenvolve ainda a
pesquisa de doutorado em torno da concepção dialógica da
linguagem e integra o grupo “Estudo dialógico-sociológico de
práticas discursivas em contextos escolares e não escolares”.
379
Portuguesa (UFPA); Tecnologias em Educação (PUC/Rio);
Mestrado em Letras (PROFLETRAS/UFPA). Discente do Curso de
Doutorado em Estudos Linguísticos (PPGL/UFPA). Integrante do
Projeto de Pesquisa “O ensino da Língua Portuguesa por meio da
concepção dialógica e valorativa da língua(gem)”,
(UFPA/Castanhal).
380
Linguagem, linha de pesquisa Linguagem: Práticas Linguísticas,
Culturais, campus de Cascavel-PR, bolsista da CAPES (2019/2020).
Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Tecnologia
Educacional Digital - ELPTED na Universidade Estadual de
Londrina - UEL (2021/2022). Graduada em Letras Português/Inglês
na Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR, campus de
Campo Mourão-PR (2015/2018). Desenvolve pesquisas na área da
Linguística Aplicada, com ênfase nos escritos do Círculo de
Bakhtin. Aborda as temáticas: formação continuada de professores,
gênero do discurso, multiletramentos, prática discursiva de escrita,
dentre outras.
381
Leliane Regina Ortega
Professora da Educação Básica da rede pública
do Estado do Paraná desde 2009. Atuou como
docente na Educação Infantil, nos anos iniciais
do Ensino Fundamental e na Educação de
Jovens e Adultos na rede municipal. Graduação
em Letras (UNIPAR), Especialização em
Produção de texto (UNIPAR), Especialização
em Educação do campo (UTFPR). Mestrado Profissional em Letras
– Profletras (UNIOESTE). Doutorado em Letras (UNIOESTE).
Desenvolve pesquisas sobre Formação continuada de professores e
ensino da Língua Portuguesa, sustentadas pela Concepção
Dialógica da Linguagem.
382
Madalena Benazzi Meotti
Atualmente é professora colaboradora do
Colegiado de Letras da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de
Marechal Cândido Rondon. Foi professora da
Educação Básica de 1989 a 2021. Graduação em
Letras (UNIOESTE), Especialização em Língua
e Literatura (UNIOESTE), Mestrado e
Doutorado em Letras (UNIOESTE) e pós-doutoranda em Letras
(UNIOESTE). Desenvolve pesquisas em letramentos e
multiletramentos. Membro da Comissão Científica de
Alfabetização e Letramento da ABRALIN. Membro do Grupo de
Pesquisa O LILA - Laboratório Integrado de Letramentos
Acadêmico-científicos.
383
Michelly Dayane Soares Nogueira
Atualmente é Professora de Língua Portuguesa
e Redação, da Rede Particular de Ensino, de
Belém-PA. Foi professora de Letramento, do
Programa Mais Educação (SEDUC/PA) entre
2014 e 2015. Graduação em Letras - Língua
Portuguesa (Faculdade Integrada Ipiranga),
Especialização em Estudos de Língua
Portuguesa e Literatura em sala de aula (UFPA), e Especialização
em Estudos das Relações Étnico-Raciais no Ensino Fundamental
(UFPA), Cursa Mestrado em Letras - Estudos Linguísticos, pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL/UFPA). Desenvolve
pesquisas sobre Oralidade, Leitura, Escrita e Gêneros Discursivos,
para o ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, sustentadas
pela Concepção Dialógica da Linguagem. É membro do Grupo de
Pesquisa Dialogismo e ensino de línguas (UFPA-CNPq) e do Projeto
de Pesquisa As práticas de linguagem a partir da concepção dialógica de
língua(gem) e sua abordagem sociológica, valorativa e ideológica (UFPA).
Mirian Schröder
Docente efetiva da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (UNIOESTE) vinculada ao
Colegiado do Curso de Letras-
Português/Alemão/Espanhol/Inglês, campus de
Marechal Cândido Rondon. Graduação em
Letras (UNIOESTE), Especialização em Língua
Portuguesa e Literatura (UNIOESTE), Mestrado
em Estudos da Linguagem (UEL) e Doutorado em Letras (UFPR).
Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística
Aplicada, suas pesquisas envolvem os temas: a escrita acadêmica e os
gêneros discursivos na sala de aula. Membro do Grupo de Pesquisa
“Linguagem, cultura e ensino”.
384
Missilene Silva Barreto
Atualmente é professora formadora do Centro
de Formação dos Profissionais da Educação
Básica do Estado do Pará/CEFOR/SEDUC/PA.
Foi professora da Educação Básica, Ensino
Fundamental – anos finais – e Ensino Médio, na
rede estadual de ensino do Pará, de 2009 a 2016.
Graduação em Letras (UFPA); Especialização
em Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa (UFPA);
Mestrado em Letras (PROFLETRAS/UFPA). Discente do Curso de
Doutorado em Estudos Linguísticos (PPGL/UFPA). Integrante do
Projeto de Pesquisa Práticas decoloniais na formação de
professores: patrimônios, afetos, diálogos e autorias
(IEMCI/UFPA). É pesquisadora colaboradora do Grupo de Estudos
e Pesquisa Alfabetização, Letramentos, Práticas e Linguagens
Docentes na Amazônia (UFPA/CNPq).
Neil Franco
Atualmente é professor do Departamento de
Teorias Linguísticas e Literárias, do Programa
de Pós-graduação em Letras e do Programa de
Mestrado Profissional em Letras, na
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Foi
professor da Educação Básica entre 1995 e 2002.
Graduação em Letras (UEM). Mestrado em
Linguística Aplicada (UEM). Doutorado em Estudos da
Linguagem (UEL). Desenvolve pesquisa nos seguintes temas:
gêneros discursivos/textuais, ensino de línguas, análise do discurso,
com base na perspectiva dialógica da linguagem. É integrante do
GED – Grupo de Estudos Discursivos (Unesp/CNPq) e do GEPOMI
– Grupo de Estudos Político-Midiáticos (UEM/CNPq).
385
Renilson José Menegassi
Professor do Programa de Pós-Graduação em
Letras e do Departamento de Teorias
Linguísticas e Literárias da Universidade
Estadual de Maringá (UEM). Mestre em
Linguística pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), doutor em Letras pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP-Assis), com estágio de Pós-Doutorado em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Desenvolve pesquisas sobre leitura e produção
textual escrita no ensino e aprendizagem de línguas e na formação
docente inicial e continuada. É líder do Grupo de Pesquisa
“Interação e Escrita” (CNPq).
386
Rosemary de Oliveira Schoffen
Turkiewicz
É professora efetiva de Língua Portuguesa na
Educação Básica da Rede Estadual de Ensino
do Paraná. Atualmente, compõe a Equipe
Pedagógica do Núcleo Regional de Educação
de Goioerê-PR. Mestre em Letras e Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Letras pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.
Desenvolve pesquisa voltada à Formação Continuada Colaborativa
junto a professores do Ensino Fundamental, com enfoque no ensino
da Língua Portuguesa, em especial à Prática de Análise
Linguística/Semiótica de base dialógica sustentada pelos
pressupostos advindos dos escritos do Círculo de Bakhtin.
Sueli Gedoz
Professora do curso de Letras Português/
Inglês/Espanhol/Italiano da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE),
campus de Cascavel-PR e docente da Educação
Básica, Ensino Fundamental e Médio, pela
Secretaria de Estado da Educação e Esporte
(SEED/PR). Atua como Professora na Educação
Básica desde 1996 e no Ensino Superior desde 2011. É Doutora e
Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras - UNIOESTE. Possui Especialização nas áreas de Língua
e Literatura - UNIVALE (2003), Linguística, Literatura e Cultura -
UNIOESTE (2005) e Gestão Escolar - UNIPAN (2008). É graduada
em Letras-Português/Inglês pela Universidade Estadual do Oeste
do Paraná - UNIOESTE (2001). Atua como membro do Grupo de
Pesquisa “Linguagem, cultura e ensino” - UNIOESTE. Desenvolve
trabalhos na área de análise linguística, produção e reescrita textual,
gêneros discursivos, alfabetização e letramento, formação
continuada de professores da educação básica.
387
Tatiana Fasolo Bilhar de Souza
É Professora dos Cursos de Comunicação do
Centro Universitário da Fundação Assis
Gurgacz (FAG), em Cascavel-PR, e professora
temporária das disciplinas de Língua
Portuguesa e Língua Inglesa no Instituto
Federal do Paraná, campus Cascavel. Possui
graduação em Jornalismo (FAG) e Letras
(UNIOESTE), Especialização em Docência do Ensino Superior
(FAG), em Ensino de Língua Portuguesa e Língua Estrangeira
(UNINTER) e Mestrado em Letras (UNIOESTE). É doutoranda em
Letras, área de concentração em linguagem e sociedade, pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Desenvolve pesquisas sobre os gêneros da esfera jornalística, a
formação inicial de professores e o ensino da Língua Portuguesa,
sustentadas pela Concepção Dialógica da Linguagem.
388