Miliandre Cinema Novo
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RESUMO
Nos anos 80, em particular, pesquisadores e críticos analisaram o
“manifesto do CPC” como síntese da produção artística e intelectual
dos primeiros anos da década de 60. Na contramão dessa tendência,
procurou-se neste artigo evidenciar a pluralidade do debate sobre o
engajamento da arte e como isso interferiu na produção artística do
período. Para compor essa relação, tomam-se como parâmetro os
conflitos e divergências entre os cineastas e críticos do Cinema Novo
e Carlos Estevam Martins.
Palavras-chave: Cinema Novo, Centro Popular de Cultura, arte, cultura,
engajamento.
ABSTRACT
In years 80, in special, researches and critics they analyzed the “CPC
manifesto” as a synthesis of the artistic and intellectual production of
the first years of 60s. Agains this trend, this article seeks to emphasize
the plurality of the debate on the engagement of the art and this inter
how with the artistic production of the period. In order to establish this
relation, the conflicts and divergences between moviemakers and critics
of the Cinema Novo and Carlos Estevam Martins is taken as a parameter.
Key-words: Cinema Novo, Centro Popular de Cultura, art, culture,
engagement.
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 133-159, 2003. Editora UFPR
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uma arte popular revolucionária”, de Carlos Estevam Martins,4 que foi redi-
gido com a intenção de organizar o pensamento disperso de uma centena de
artistas, estudantes e intelectuais participadores – direta ou indiretamente –
do CPC, acabou por gerar uma série de dissidências e controvérsias que iam
desde a contestação das categorias “arte do povo”, “arte popular” e “arte
popular revolucionária” elaboradas por Carlos Estevam Martins até a refu-
tação da idéia de que o artista do CPC deveria – senão por natureza, pelo
menos por espírito – ser parte integrante do povo.5
A partir daí, as oposições e dissidências foram se acentuando cada
vez mais. O estudo em particular de cada cineasta, compositor ou ator que
participou das atividades do CPC, revela-nos como o debate em torno da arte
e das políticas culturais foi diverso e variado.6 Aliás, o maior mérito do
“manifesto do CPC”, como o artigo é popularmente conhecido,7 talvez seja
este: o de promover, com maior intensidade, a sua própria contestação e, a
partir disso, colaborar para o surgimento de novas concepções e idéias
sobre o engajamento artístico.
Uma dessas dissidências se situa entre os cineastas que produzi-
ram, sob o patrocínio do CPC, os episódios do filme Cinco Vezes Favela.8
Contrários às coordenadas do “manifesto do CPC”, esses cineastas – entre
os quais Carlos Diegues – aproximaram-se do núcleo do Cinema Novo que
4 Este artigo foi publicado pela primeira vez num encarte da revista Movimento, da UNE, em
maio de 1962. Cf. ESTEVAM, C. Por uma arte popular revolucionária. Movimento, Rio de Janeiro, n. 2, maio
1962. Encarte.
5 Ibid.
6 Um dos objetivos da dissertação de mestrado apresentada recentemente ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Paraná foi mostrar como Carlos Lyra se posicionou
frente aos debates sobre o engajamento da arte e como isso influenciou a composição de sua obra. Cf.
SOUZA, M. G. de. Do Arena ao CPC: o debate em torno da arte engajada no Brasil (1959-1964). Curitiba,
2002. Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná.
7 Apresentado normalmente como síntese do pensamento do CPC, este artigo foi reproduzido,
com o título “Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura redigido em março de 1962”, no
periódico Arte em Revista e no livro Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, de Heloísa
Buarque de Hollanda. As alterações das duas transcrições, em especial a modificação do título, revela-nos
que o estatuto de manifesto atribuído ao artigo é antes uma construção da historiografia dos anos 70 e 80,
sobretudo. Ver: MARTINS, C. E. Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura redigido em
março de 1962. In: HOLLANDA, H. B. de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/
1970. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 121-144.
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8 Realizados com o apoio da primeira verba adquirida pelo CPC do governo federal em 1961
(Cr$ 3.000.000), os episódios do longa-metragem “Cinco vezes favela” são: Um favelado, de Marcos
Faria; Zé da Cachorra, de Miguel Borges; Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade; Escola de
samba, alegria de viver, de Carlos Diegues; e A pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman. Cf. RELATÓ-
RIO do Centro Popular de Cultura. In: BARCELOS, J. CPC da UNE: uma história de paixão e consciência.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 441-456.
9 O conceito de “nacional-popular” empregado pelos protagonistas no fim dos anos 50 e
início dos anos 60 não era inspirado diretamente na concepção desenvolvida por Antonio Gramsci. Porém,
com algumas ressalvas, as idéias sobre a nacionalização e popularização das linguagens artísticas se apro-
ximaram, em alguns momentos, das teses do marxista italiano sobre o “nacional-popular”. Ver: GRAMSCI,
A. Literatura e vida nacional. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968.
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10 Apud RAMOS, F. Os novos rumos do cinema brasileiro (1955-1970). In: RAMOS, F. (Org.).
História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987. p. 346.
11 ROCHA, G. Miséria em paisagem de sol. Movimento, Rio de Janeiro, n. 3, p. 9-13, jun. 1962.
p. 13.
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19 Para acompanhar o debate promovido pelo Jornal O Metropolitano entre Glauber Rocha,
Carlos Diegues e Carlos Estevam Martins, ver: ROCHA, G. Cinema Novo, face morta e crítica. O Metropo-
litano, Rio de Janeiro, 26 set. 1962; DIEGUES, C. Cultura popular e Cinema Novo. O Metropolitano, Rio
de Janeiro, 3 out. 1962; MARTINS, C. E. Artigo vulgar sobre aristocratas. O Metropolitano, Rio de Janeiro,
3 out. 1962.
20 “O Pagador de Promessas” foi premiado como Melhor Filme Longa-Metragem da Palma de
Ouro do Festival Internacional de Cinema de Cannes, na França – 1962 – , como Melhor Filme do Festival
Internacional de São Francisco, nos Estados Unidos – 1962 – e Diploma de Mérito do Festival Internaci-
onal de Cinema de Edimburgo, na Alemanha – 1963.
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21 FARIA, O. de. Pôrto das Caixas e o Cinema Nôvo. Cadernos Brasileiros, ano 5, n. 2, p. 77-
83, mar./abr. 1963. p. 78-79.
22 CINEMA Novo..., op. cit., p. 5.
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se êle está com uma classe ou se está com outra. Se êle está com
a burguesia ou com a classe operária. No nosso caso mais
particular, se êle não (sic) com o imperialismo e seus aliados da
burguesia. Ou se está com a classe operária e seu avanço para o
poder. O problema de comunicação, por exemplo. Para mim
não se trata apenas de quem não a tem. Usar o cinema visando
eficácia de levar ao poder a classe pela qual lutamos. Êste é o
problema.25
23 Ibid., p. 8.
24 Id., p. 8.
25 Id., p. 8.
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144 SOUZA, M. G. Cinema novo: a cultura popular revisitada
28 Ibid., p. 346.
29 Segundo Marilena Chauí, “‘Quem é o Povo no Brasil?’, de Nelson Werneck Sodré, será
contraditado por ‘Quem são os inimigos do Povo?’, de Theotônio dos Santos, e por ‘Quem pode fazer a
revolução no Brasil?’, de Bolívar Costa – este diria que o primeiro participa de uma concepção equivocada
sobre o processo político brasileiro, prejudicial às massas, enquanto Theotônio talvez o colocasse entre
os “inimigos do povo no seio do povo”, isto é, como intelectual que “trai” o povo porque aceita determi-
nadas alianças de classes prejudiciais à revolução.” Cf. CHAUI, M. Seminários. São Paulo: Brasiliense,
1983. p. 73-74.
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mais referenciadas no âmbito de atuação do CPC, o que não quer dizer que
era seguida ou colocada efetivamente em prática. Segundo Marcos Konder
Reis, “quanto ao povo a que se propõe levar a cultura, trata-se daquele
definido pelo Sr. Nelson Werneck Sodré”.30
Sua popularização se deve a dois motivos: 1) a intensa participação
do seu autor nos meios intelectualizados e 2) o fácil acesso, pelo menos
entre a classe média, às edições de bolso da Editora Civilização Brasileira.
Ainda que a iniciativa da publicar inúmeros títulos numa coleção como os
Cadernos do Povo Brasileiro31 deva ser creditada à Editora Civilização Bra-
sileira, sob a direção do editor Ênio Silveira e do diretor do ISEB Álvaro Vieira
Pinto, foi marcante, nesse período em particular, a presença dos intelectuais,
estudantes e artistas ligados ao Partido Comunista Brasileiro – PCB, ao CPC e
ao ISEB, entre outros, como produtores, divulgadores e receptores dessa
coleção.32
O formato de bolso e o lema33 dessa coleção expressavam os obje-
tivos do editor Ênio Silveira: “informar a fundo e com objetividade, sôbre os
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146 SOUZA, M. G. Cinema novo: a cultura popular revisitada
34 Ibid., p. 35.
35 Id., p. 35.
36 Ibid., p. 33-35.
37 SODRÉ, N. W. Quem é o povo no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
(Coleção Cadernos do Povo Brasileiro). p. 14 e 22.
38 Ibid., p. 37.
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39 Ibid., p. 36-37.
40 Publicado ainda na década de 50, outro documento importante para evidenciar o engajamento
dos estudantes ao “movimento nacionalista brasileiro” é o artigo: ESBOÇO de programa do movimento
nacionalista brasileiro. Movimento, Rio de Janeiro, n. 20 e 21, jul. 1957.
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dos parâmetros a serem seguidos por aquele que desejasse expressar o seu
engajamento e o de sua obra. O conjunto de artigos do autor avalia a impor-
tância da obra de arte conforme o grau de comprometimento com a revolu-
ção, com o socialismo e com a luta de classes no interior da sociedade
brasileira. Apesar de considerar sempre a qualidade estética, e nesse ponto
difere do “manifesto do CPC”, o crítico adotou como estratégia de análise a
observação criteriosa das reais intenções do cineasta e do conteúdo de seu
filme. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que Arraial do Cabo, O Pagador
de Promessas e Os cafajestes apresentaram uma requintada qualidade esté-
tica, estes falharam – para Maurice Capovilla – no modo como apresentaram
seus temas. E é justamente nesse aspecto que o autor justifica a precária
qualidade estética em contrapartida à intenção ideológica do único filme
produzido pelo CPC:
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150 SOUZA, M. G. Cinema novo: a cultura popular revisitada
45 Ibid, p. 183.
46 CAPOVILLA, M. O culto do herói messiânico. Brasiliense, São Paulo, n. 42, p. 136-138,
jul./ago. 1962. p. 137.
47 Ibid., p. 137.
48 Segundo Gianfrancesco Guarnieri, em artigo de época, “qualquer tentativa de ‘neutralismo’,
de constituição de uma ‘terceira-fôrça’ será vã, não representando na prática nenhuma alternativa nova, mas
sim a forma mais abjeta de reacionarismo, pôsto que pusilâmine.” Cf. GUARNIERI, G. O teatro como expres-
são da realidade nacional. Brasiliense, São Paulo, n. 25, p. 121-126, set./out. 1959. p. 124.
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55 Sobre os núcleos do Cinema Novo no país, Maurice Capovilla considerou que, “‘Cinema
Nôvo’ (...) é um ‘slogan’, e como tal tem mais validade promocional do que real (...). O mais certo seria
estudar os três núcleos isoladamente.” In: CAPOVILLA, Cinema Novo, op. cit., p. 185-186.
56 Integrava o departamento de cinema do CPC os seguintes nomes: Leon Hirszman, Carlos
Diegues, Marcos Faria, Miguel Borges, Teresa Aragão e Arnaldo Jabor.
57 CAPOVILLA, Cinema Novo, op. cit., p. 185.
58 CAPOVILLA, M. Um cinema entre a burguesia e o proletariado. Brasiliense, São Paulo, n.
43, p. 191-195, set./out. 1962. p. 193.
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64 Ibid., p. 194-195.
65 CONTIER, A. D. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os
anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 13-52, 1998. p. 31.
66 Analisar as políticas culturais do CPC como uma forma de educação estética voltada para
formar extratos da classe média significa abdicar de uma tese cara à historiografia oficial que se dedicou,
sobretudo na década de 80, a analisar a produção artística e intelectual do CPC: a de que não alcançaram
o seu objetivo, que era, única e exclusivamente, alcançar as massas.
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Referências
História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 133-159, 2003. Editora UFPR
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