Tese - Daiane Lopes Elias - 2018 - Completa
Tese - Daiane Lopes Elias - 2018 - Completa
Tese - Daiane Lopes Elias - 2018 - Completa
Rio de Janeiro
2018
Daiane Lopes Elias
Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCS/A
CDU 82.085
Autorizo, somente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese,
desde que citada a fonte.
__________________________________ ____________________
Assinatura Data
Daiane Lopes Elias
Rio de Janeiro
2018
DEDICATÓRIA
ELIAS, Daiane Lopes. A guerra das palavras: o discurso político dos republicanos liberais na
queda da monarquia no Brasil (1870-1891). 2018. 201 f. Tese (Doutorado em História) – Ins-
tituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Ja-
neiro, 2018.
ELIAS, Daiane Lopes. Word War: liberal republican political discourse through the fall of
monarchy in Brazil. (1870-1891). 2018. 201 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Fi-
losofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
Once the repertoire of scientific politics was chosen by the republican liberal to con-
test the 1800s Brazilian Monarchy, a discursive conflict was established, which built opposing
images of the government. Thus the Monarchy was seen as a corrupt backwards regime based
on privilege, while the Republic was presented as a form of progressive self-government and
plenary popular sovereignty. Therefore, this work aims to understand how the liberal republi-
cans´ discourse won the political dispute, ensuring they´d achieve protagonism and leading
political positions. Thereby, the writings of the the key exponents of the liberal republican
thought were interpreted within their context and inter-text, for a better understanding of this
discursive battle and its political actors, starting from their speech-acts, in which they use,
adapt and give new meaning to terms that would allow for the appearance of a linguistic con-
text efficiently acting on the regime change in Brazil.
INTRODUÇÃO.............................................................................................................10
1 DAS CRÍTICAS À “CRISE”: O CONTEXTO HISTÓRICO DE
QUESTIONAMENTO DA MONARQUIA ÀS PROPOSTAS REPUBLICANAS
PARA O BRASIL..........................................................................................................24
1.1 A Monarquia e as propostas republicanas em seu contexto......................................24
1.2 O Positivismo de Augusto Comte.................................................................................33
1.3 O Positivismo no Brasil.................................................................................................40
1.4 O Jacobinismo no Brasil...............................................................................................60
2 DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA À VITÓRIA: A CONTRIBUIÇÃO DOS
ESCRITOS POLÍTICOS DE ALBERTO SALES À QUEDA DA MONARQUIA..71
2.1 A construção discursiva republicano-liberal de Alberto Sales..................................71
2.2 O espaço por excelência do debate de ideias: a propaganda e atuação de Alberto
Sales na imprensa..........................................................................................................91
3 DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA À VITÓRIA: A CONTRIBUIÇÃO DOS
ESCRITOS POLÍTICOS DE QUINTINO BOCAIÚVA À QUEDA DA
MONARQUIA.............................................................................................................106
3.1 A construção discursiva republicano-liberal de Quintino Bocaiúva......................106
3.2 O espaço por excelência do debate de ideias: a propaganda e atuação de Quintino
Bocaiúva na imprensa – O Manifesto Republicano de 1870.....................................121
4 DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA À VITÓRIA: A CONTRIBUIÇÃO DOS
ESCRITOS POLÍTICOS DE ASSIS BRASIL À QUEDA DA MONARQUIA....135
4.1 A construção discursiva republicano-liberal de Assis Brasil..................................135
4.2 O espaço por excelência do debate de ideias: a propaganda e atuação de Assis
Brasil na imprensa.......................................................................................................147
5 DO REPUBLICANISMO À REPÚBLICA NO BRASIL: O DISCURSO
POLÍTICO VENCEDOR E A BUSCA PELA MANUTENÇÃO DE UM REAL
POSSÍVEL...................................................................................................................156
5.1 Republicanismo...........................................................................................................156
5.2 Do debate sobre republicanismo ao conceito de república no Brasil......................165
5.3 Entre dois: o ideal e o real do recente regime republicano no Brasil......................172
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................184
REFERÊNCIAS….......................................................................................................190
10
INTRODUÇÃO
1
Apesar da escolha do ano de 1870 como marco histórico inicial da pesquisa, devido ao surgimento do
Manifesto Republicano, a experiência republicana, vista como regime político, e não como conjunto de
valores pautados para o bem comum, já havia sido vislumbrada em outros momentos da história nacional.
Alguns exemplos podem ser identificados nos episódios da Confederação do Equador (1824) e nas revoltas
provinciais: Farroupilha (1835-1845), no Rio Grande o Sul, e Sabinada (1837-1838), na Bahia. Esses
momentos históricos constituem alguns bons exemplos da busca pela implantação de um tipo de república
no Brasil. Assim, sobre as revoltas provinciais ler CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a
elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Segunda edição – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006. Já sobre a Confederação do Equador, ver MELLO, Evaldo Cabral de. A outra
independência. O federalismo de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004. Também sobre o conceito de
república no Brasil (1750-1850) ver STARLING, Heloisa Maria Murgel; LYNCH, Christian Edward Cyril.
“República/Republicanos”. In: FERES JÚNIOR, João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 225-245; ver também “O Mito de Veneza no Brasil” In: MELLO,
Evaldo Cabral. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 156-162. Há
ainda importante obra sobre o ser republicano no Brasil colônia, estudo sobre as ideias de república a partir
das experiênciais nacionais, principalmente nos momentos da história que eclodem as conjurações em
Minas, Rio de Janeiro, Bahia, bem como em outros episódios históricos. Para isso, ver STARLING, Heloisa
Murgel. Ser republicano no Brasil Colônia: A história de uma tradição esquecida. Primeira edição. São
Paulo: Companhia das Letras, 2018.
2
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. “Manifesto Republicano de 1870”. In: Textos Políticos
da História do Brasil: Independência – Império (I). Fortaleza: Biblioteca de cultura série A –
documentário, s/d., p. 533-55.
3
Ver Constituição de 24 de Fevereiro de 1891 em http://www.planalto.gov.br
11
mesmos autores foram interpretados e utilizados pela corrente vitoriosa para realizarem o que
pretendiam. Tendo-se como questões norteadoras para a compreensão desse discurso
republicano-liberal as seguintes interrogações: quais foram os autores lidos pelos expoentes
do grupo estudado, como foram interpretados e para quê fim? O interessante é perceber que a
estratégia vencedora dos republicanos liberais contou com um determinado contexto
linguístico, como, por exemplo, o da política científica, 4 em meados do Oitocentos que, ao ser
adaptado, encontrou sentido na realidade brasileira e assim proporcionou sua vitória em
detrimento de outras propostas de república existentes, como a positivista e a jacobina. O
objetivo do estudo é justamente entender como se buscou ideias para construção de um
discurso que mobilizasse à ação, haja vista os vários “usos de significados” no momento de
disputa entre as linguagens antigas e novas no recorte temporal escolhido neste trabalho.
Assim, entendeu-se que os republicanos liberais, bem como positivistas e jacobinos,
não foram meros copistas de doutrinas estrangeiras, pois as leram a seu modo, não para fazer
uma filiação doutrinária com essas correntes de pensamento, mas, ao contrário, para encontrar
nelas as ferramentas capazes de instrumentalizá-los na ação de deslegitimação das
instituições, práticas e valores imperiais, ou seja, para se colocarem no poder como nova elite
política à frente do país, ao propagarem que teriam os meios próprios de satisfazer as
demandas exigidas nos novos tempos, objetivavam o protagonismo do poder.
Desse modo, a escolha do Manifesto Republicano de 1870 como ponto de partida da
pesquisa se dá justamente porque o texto permite perceber a construção de uma linguagem
combativa que aponta à insatisfação de certos setores da sociedade com a Monarquia,
apresentada como opressora, arcaica e detentora de privilégios, bem como expõe alguns dos
principais pontos defendidos pelos republicanos liberais:
9
É importante destacar que as obras de teoria científica não se situaram temporalmente tão somente no
Oitocentos, mas, de acordo com Tânia Bessone, houve “Registros e comentários a respeito de obras mais
lidas ou muito 'faladas' na primeira década do século XX”, dentre as quais estavam a dos principais autores
utilizados no Oitocentos quando se tratava de teorias científicas tais como: Spencer, Darwin, Comte,
Haeckel, etc. Ver FERREIRA, Tânia Maria T. Bessone da Cruz. Palácios de destinos cruzados: bibliotecas,
homens e livros no Rio de Janeiro (1870-1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 142. Vale
sublinhar ainda que a doutrina positivista, por exemplo, infiltrou-se tanto na sociedade brasileira,
adentrando pelo século XX, que chegou a ser tema de música popular brasileira, intitulada “Positivismo” e
cantada por Noel Rosa, que também tinha parceria na letra com o jornalista Orestes Barbosa. O trecho
seguinte é emblemático: “o amor vem por princípio, a ordem por base, o progresso é que deve vir por fim.
Desprezaste esta lei de Augusto Comte e fostes ser feliz longe de mim”. A referida música nasceu no
famoso Café Nice, como conta MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa: uma biografia. Brasília:
Editora UnB, 1990. p. 246-247.
10
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A República e o Sonho”. In: Varia História. Belo Horizonte:
UFMG, vol. 27, n°45, jan-jun 2011. p. 124.
14
Dessa maneira, a guerra discursiva fez uso dos mais variados recursos e episódios na
tentativa de construir atos de fala eficazes ao combate e, assim, instaurar um clima
desfavorável à permanência do império no Brasil. Com o estudo das enunciações dos
principais representantes republicanos é que se torna inteligível o período de contestação do
Brasil-Império, visto que se permite uma melhor compreensão das particularidades,
motivações e interesses dos contestadores, sobretudo dos liberais, vitoriosos na disputa pelo
poder.
Como observou Maria Tereza Chaves de Mello, em relação à oratória, o grupo de
propagandistas da república “buscava [...] seduzir a platéia, ávida de discursos
grandiloqüentes e predisposta à submissão pela palavra e pela teatralização gesticulatória”. 12
Por isso, a propaganda se tornou uma das maiores e melhores armas para deslegitimar o
status quo imperial. Fora desse modo que os seus discursos se tornaram arma contra o
Império e instrumento de caráter pedagógico na disputa pela organização do país, o que era
facilitado pela formação de base retórica do período compartilhada pelos contestadores.
Assim, explica-se a importância dada à propaganda feita na imprensa, 13 Meetings e/ou Clubes,
que, como forma primordial de intervenção no debate da época, intensificou a disputa no
campo linguístico, sendo capaz de criar uma nova linguagem política republicana que fora
11
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Edur),
2007. p. 11.
12
Ibidem, p. 52.
13
A propaganda era feita sobretudo via imprensa que, nesse momento, fins do Oitocentos, serviu de espaço
possível para a batalha discursiva entre os ideais republicanos contra a monarquia, afinal a imprensa muitas
vezes ao longo da história serviu “como um dos meios de transformação, de incitamento à transformação”.
Ver PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo:
Editora Unesp, 2000. p. 170-171.
15
O autor ressalta também que “o liberalismo foi utilizado pelos vitoriosos como
instrumento de consolidação do poder, desvinculado da preocupação de ampliação das bases
deste poder”.17 Percebe-se assim a permanência, ou mesmo, a construção de mecanismos
capazes de afastar a intervenção dos “cidadãos” na cena política, o que se tem é uma briga de
elites que, para se manterem no poder, afastam a grande parcela da população das decisões
políticas do país.
Um bom exemplo de certas permanências é a Lei eleitoral de 1881 que ao transformar
as eleições indiretas em diretas, eliminando o papel dos votantes, cria também proibições para
o ato do voto. Os praças, por exemplo, com a reforma eleitoral, são privados do seu direito de
votar. Outras exclusões também foram mantidas, pois “embora a República tivesse eliminado
o voto censitário, manteve, por outro lado, todas as outras restrições, inclusive a exclusão dos
analfabetos e das mulheres”.18 O documento que reafirma a postura excludente das elites
políticas em relação ao restante da população, durante o recente regime republicano, é a
Constituição de 1891 que, embora eliminasse a exigência de renda para o exercício do voto,
mantinha o critério da alfabetização. E como a maior parcela da população não sabia ler e
escrever, o exercício de seus direitos políticos ficava comprometido.
A restrição imposta à maioria da população comprova o descompasso existente entre o
discurso “ideal” e a ação do estado republicano liberal, pois “pode-se dizer que a República
conseguiu quase literalmente eliminar o eleitor e, portanto, o direito de participação política
através do voto”.19
É importante ressaltar que a exclusão da participação eleitoral era um movimento de
mão dupla, ou seja, ocorria tanto pela via do Estado, que criava mecanismos excludentes,
quanto pela via do próprio “cidadão” que adotava a postura de autoexclusão. 20 Obviamente,
16
Ver CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 64.
17
Ibidem, p. 65.
18
Ibidem, p. 84.
19
Ibidem, p. 86.
20
Embora existam outros trabalhos que interpretam a atuação popular de forma distinta, como os de Angela
de Castro Gomes, Cláudio H. M. Batalha, Marcelo Badaró Mattos, entre outros, optou-se interpretar essa
atuação pela via da autoexclusão elaborada por José Murilo de Carvalho, já que se entende a opção
interpretativa pela autoexclusão consciente da população como majoritária durante o século XIX, ainda que
tenham existido em relação ao início da formação da classe trabalhadora, tanto pela via de experiências
comuns de escravizados e livres nesse processo, quanto pela formação operária defendidas,
respectivamente, por Marcelo Badaró e Cláudio Batalha, associações com ações coletivas que buscavam
defender os interesses comuns dos associados, essas mesmas associações tinham caráter efêmero, só
17
essa postura escolhida pela maioria da população não era descabida, já que as fraudes
eleitorais se davam em meio à violência generalizada. Fazia-se uso de capangas, capoeiras,
todos eles contratados pela elite política que visava garantir sua manutenção no poder. A
violência era tão generalizada durante o processo eleitoral, que até mesmo médicos eram
contratados nos dias das eleições para atenderem os que saíam feridos de seu “exercício de
cidadania”. Assim, os pilares das eleições eram compostos pela violência e pela fraude. O que
torna todo o processo uma grande farsa, por isso é razoável a atitude de autoexclusão adotada
pela maioria dos “cidadãos inativos” do novo regime político.21
Em relação à Constituição de 24 de fevereiro de 1891, esta confirmou o viés escolhido
pelo grupo republicano liberal que estava à frente do campo político brasileiro. Tornou-se por
excelência o conjunto de leis que definiram os princípios políticos e a estrutura do recente
regime. Para isso, modificações importantes foram feitas em relação à Constituição do
Império de 1824, tendo em vista não apenas dar início à descaracterização de alguns pontos
do regime que a antecedia, mas, sobretudo, a garantir ao grupo republicano vitorioso as
condições para a realização de seus interesses.22
começando a ganhar fôlego nos anos iniciais do século XX, ou seja, no Oitocentos não representavam a
maioria dos trabalhadores, afinal ainda estavam em fase “embrionária”. Como ressalta Cláudio Batalha:
“Assim, de 1917 a 1919 nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, foram criadas mais organizações
operárias do que em qualquer outro período de tempo equivalente”. Ver BATALHA, Cláudio H. M.
“Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva”. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves. (Orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à
Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 172. Ou ainda, como afirma Marcelo
Badaró Mattos, foi a coexistência de trabalhadores livres e escravizados em vários espaços, tanto nas ruas,
quanto nas fábricas, que se propiciaram experiências de associação e de ação coletiva. Foram várias as
associações que tinham sua origem nas antigas Irmandades que existiam desde o período colonial
possibilidades de coexistência e trocas entre os escravos, assim “entre as lutas dos escravos pela liberdade e
as primeiras lutas de trabalhadores assalariados urbanos, na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade
do século XIX, existiam elos significativos e compartilhamento de experiências – de trabalho, de
organização, de ação coletiva – essenciais para uma compreensão mais ampla do processo de formação da
classe trabalhadora”. Ver MATTOS, Marcelo Badaró. “Trabalhadores escravizados e livres na cidade do
Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX”. In: Revista Rio de Janeiro, n°12, Jan-Abril de 2004. p.
246. Assim, também Angela de Castro Gomes afirma que, em relação aos anos iniciais da Primeira
República, “embora esse tenha sido um tempo de organizações de trabalhadores ainda muito frágeis (as
atividades industriais se iniciavam e os operários eram pouco numerosos), elas conseguiram disseminar
uma experiência de reivindicações, consolidando ideias e práticas de luta entre os trabalhadores. Mesmo
que suas conquistas materiais tenham sido pequenas e efêmeras, pode-se dizer que, ao final da Primeira
República, existia uma figura de trabalhador brasileiro que lutava por uma nova ética do trabalho e por
direitos sociais que regulamentassem o mercado de trabalho”. E mais, “é certo que essas lutas foram
fragmentárias, difíceis e conseguiram poucos resultados imediatos, até porque o Estado não dispunha de
instituições para garantir a aplicação das leis”. Ver GOMES, Angela de Castro. In: Cidadania e direitos do
trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. p. 20-21. Sendo assim, adota-se como versão mais
adequada ao contexto oitocentista brasileiro a análise que identifica uma sociedade fragmentada, formada
por grupos díspares que viam no Estado a figura de poder que conduziria à realização de seus interesses
pessoais. Estado esse que também proporcionava as fraudes, violências e negociatas que propiciavam a
autoexclusão popular.
21
Sobre a categoria de “cidadão inativo” ver o capítulo III de CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit.
22
Sobre as Constituições de 1824 e 1891 ver http://www.planalto.gov.br
18
Assim, tendo como inspiração a Constituição dos Estados Unidos, que tinha como
base a descentralização dos poderes, seus principais redatores, dentre eles Prudente de Moraes
e Rui Barbosa, adotaram: o princípio do federalismo, que concedia mais autonomia aos
municípios e às antigas províncias que, a partir daquele momento, passaram a ser chamadas
de estados; a divisão dos poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que eram
independentes entre si, ficando então extinto o Poder Moderador, símbolo do Império; a
separação entre Igreja e Estado; o fim dos títulos nobiliárquicos; a eleição do Presidente e
Vice-Presidente que passariam a ser eleitos individualmente, com mandatos de quatro anos
sem direito a reeleição para o mandato imediatamente seguinte, o voto, embora, continuasse a
ser não-secreto; o Legislativo também era eleito por voto popular; 23 entre outras medidas.
Contudo, a Constituição de 1891 não optou por ampliar os direitos dos cidadãos, pois
continuou a garantir os mesmos direitos civis da Constituição de 1824, que assegurava as
liberdades dos indivíduos contra os possíveis arbítrios do Estado e/ou da Igreja. Também não
foi além do que a Constituição do Império garantia em termos de direitos políticos, já que
adotaram somente a eliminação da exigência de renda, mas, como fora mencionado
anteriormente, mantiveram a de alfabetização em relação ao processo de votação, deixando a
maior parte da população excluída das eleições.
A Carta Constitucional de 1891 não avançara em termos de direitos civis, políticos e
tampouco sociais, este último direito, inclusive, “retirou um dispositivo da anterior que se
referia à obrigação do Estado de promover os socorros públicos, em outra indicação de
enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento dos direitos sociais”.24
Embora a recente constituição republicana se mostrasse liberal, limitava ainda mais
qualquer medida de caráter democratizante, postura que assegurava os interesses do grupo que
disputou e venceu a batalha pelo comando político do país.
Não por acaso,
23
A história do voto no Brasil passou por diferentes momentos, desde voto indireto, censitário e destinado
apenas aos “cidadãos plenos” do Império, deixando parte importante da população excluída desse direito
político, até a mudança, em 1881, com a Lei Saraiva, dos critérios de votação, que embora passasse a ser
direto, não mais sendo feito em várias etapas como no processo anterior, continuava excludente. A Lei
eleitoral de 1881 transformou as eleições indiretas em diretas, eliminando o papel dos votantes, criou ainda
proibições para o ato do voto. Os praças, por exemplo, com a reforma eleitoral, são privados do seu direito
de votar. Outras exclusões também foram mantidas, pois embora a República tivesse eliminado o voto
censitário, permaneceu em contrapartida com outras restrições, inclusive a dos analfabetos e mulheres. O
documento que reafirma a postura excludente das elites políticas em relação ao restante da população é a
Constituição de 1891 que, embora eliminasse a exigência de renda para o exercício do voto, mantinha o
critério da alfabetização, como grande parte da população não sabia ler e escrever, o exercício de seus
direitos políticos seguia comprometido pelo novo regime. Sobre uma breve história do voto no Brasil ver
www.camara.leg.br/camara
24
Ver CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit., p. 45.
19
Desse modo, a busca de ideias à ação dos republicanos liberais foi eficaz, sobretudo,
porque selecionavam temas e abordagens interessantes e menos turbulentas ao grupo, visto a
adoção do liberalismo americano, do federalismo, do oportunismo político, do vocabulário da
política científica, articulados às principais doutrinas em voga no Oitocentos, como, por
exemplo, positivismo, evolucionismo e darwinismo social. Tais aspectos permitiram que se
conseguissem construir um discurso político de ideal republicano capaz de fazer sentido na
sociedade. Não por acaso, ocuparam os principais cargos políticos a partir de 1889.
Assim, constata-se que a realização de um estudo dos discursos políticos, a partir de
uma leitura contextual desses enunciados registrados nos textos dos principais representantes
da república liberal é que possibilita uma melhor compreensão do período em questão. Afinal,
o espaço de experiência gerado pela insatisfação com a Monarquia, propiciou a intensa crítica,
principalmente via batalha discursiva, para que fosse possível, a partir da disputa no campo
linguístico entre os vários significados atribuídos à nova forma de governo, transformar,
efetivamente, o contexto político-social do país.
28
Embora Angela Alonso identifique que o debate politico se intensificou a partir da década de 1870, esse
mesmo debate acerca da necessidade de instauração de uma reforma social no país é tratado por José
Murilo de Carvalho já na década de 1860 que, segundo o historiador, é o período correspondente à
radicalização da discussão política de viés reformista, e não nos anos 70, que representariam um retrocesso
nos pontos contidos na reforma social dos radicais. Sobre a questão do retrocesso no debate político ver
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. (Orgs.). “Radicalismo e
republicanismo”. In: Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009. p. 20-48.
29
Ibidem, p. 41.
21
Para isso, deve-se ter a consciência que os republicanos liberais, bem como as outras
correntes, utilizaram-se de “teorias da reforma social [que] forneceram esquemas conceituais”
para “construír[em] sua[s] crítica[s] às instituições e aos valores do Segundo Reinado numa
linguagem nova, rompendo assim com a própria tradição”.30
A necessidade de uma reforma social, sem convulsionar a sociedade, foi expressa pela
nova linguagem republicana. Assim, o estudo dessa nova linguagem, surgida pelo jogo de
enunciados oriundos da batalha pelo domínio do campo político, é de fundamental
importância para se obter uma melhor compreensão dos agentes em seu contexto, pois
somente através da investigação das ideias escolhidas para a intervenção política em um dado
momento é que se pode conferir sentido aos textos dos contestadores da Monarquia, ou seja,
as escolhas de autores em voga no século XIX e o modo como foram interpretados só poderá
ser compreendido a partir de um estudo que parta do contexto histórico que os constituiu, por
isso é possível afirmar que
Sendo assim, o estudo do discurso político dos republicanos liberais possui como meta
a interpretação por meio do texto, contexto e intertexto, examinando as diferentes estratégias
discursivas usadas para intervir politicamente e se inserirem no campo político. Desse modo,
tem-se como foco não apenas as convenções linguísticas da época, mas, sim, como esses
agentes se utilizaram desses significados convencionais emprestando a eles sentidos
particulares em seus atos de fala quando do jogo de linguagem na disputa pelo poder político
do país. Por isso, dialoga-se com autores que afirmam a possibilidade de interpretação
histórica das “ideias em seus contextos”,32 sobretudo a partir da conscientização “de que para
se entender os textos de teoria política do passado é necessário que se leve a sério os
significados que eles tinham em seu contexto histórico original”, 33 estabelecendo assim a
relação entre o texto e o tempo-espaço onde surgiu, através do estudo do texto com os outros
textos de época, ou seja, em seu contexto. Isso através do estudo da linguagem política, 34
30
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 176.
31
Ibidem, p. 177.
32
JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs.). História dos Conceitos: debates e perspectivas.
Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio/Loyola, 2006, p. 17.
33
Ibidem, p. 19.
34
Ver POCOCK, John G. A. “O conceito de linguagem e o métier d´historien”. In: Linguagens do Ideário
Político. São Paulo: Edusp, 2003. Ver também POCOCK, John G. A. “Quentin Skinner: a história da
política e a política da história”. In: Tempo. Rio de Janeiro: Revista de História da UFF, 2012.
22
35
JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs.). Op. Cit., p. 21.
36
Ibidem, p. 20.
37
É importante ressaltar que embora Quentin Skinner e John G. A. Pocock se dediquem ao estudo da história
das ideias políticas, há diferenças marcantes que individualizam seus trabalhos, como, por exemplo, a ideia
de busca da intencionalidade autoral em determinado contexto – o que o autor estava fazendo ao emitir um
ato de fala num contexto histórico específico, questão que norteia as obras de Quentin Skinner. Essa
centralidade na busca da “intenção autoral” é um dos pontos que o diferencia de John G. A. Pocock. Além
também de sua aproximação maior com a filosofia, enquanto que Pocock estaria mais ligado à história em
si, sem fazer uso de especulações típicas da área da filosofia política. Essas peculiaridades existentes,
brevemente mencionadas nesta nota, entre os dois autores dentro do campo dedicado ao estudo da história
das ideias políticas do qual são partícipes, bem como outras diferenças importantes entre eles são
destacadas no texto: “Quentin Skinner: the history of politics and the politics of history”. In: POCOCK,
John G. A. Political Thought and History: Essays on Theory and Method. Cambridge: Cambridge
University Press, 2009.
23
O próprio título de suas principais obras já fornece indícios para interpretá-los enquanto
agentes de seu tempo.
Desse modo, a presente tese partiu dos escritos políticos da tríade republicana-liberal,
que serviram de fonte para uma interpretação histórica baseada na proposta teórico-
metodológica do entendimento das ideias políticas em seu contexto específico,
compreendendo-os como atos de fala imersos no jogo de palavras próprio da história das
ideias no Brasil de 1870-91.
Busca-se assim entender como o discurso republicano de viés liberal venceu a disputa,
a partir da análise dos escritos políticos desses três expoentes escolhidos. O que permite não
apenas a realização desse trabalho dentro do campo da história das ideias, bem como
possibilita afirmar a existência de um contexto linguístico entre os autores e suas regiões, via
interpretação de textos, contexto e intertextos, que saiu vencedor da disputa política. Trabalho
esse que se justifica por ser mais uma contribuição à área de história das ideias políticas no
Brasil oitocentista.
Assim, nas páginas seguintes será apresentado o contexto no qual os discursos
políticos dos republicanos emergem, bem como serão expostas algumas das diferentes
propostas contrárias ao regime monárquico, como a positivista e jacobina. Posteriormente nos
outros capítulos, serão interpretados os escritos políticos da tríade republicana-liberal,
respectivamente, Alberto Sales (SP), Quintino Bocaiúva (RJ) e Assis Brasil (RS), expondo
seus principais pontos de defesa a favor da corrente que representavam. Para isso, questões
norteadoras estiveram presentes na busca pelo entendimento da construção discursiva própria
do referido trio de republicanos, como, por exemplo, quais foram os autores escolhidos na
elaboração discursiva, de que forma foram interpretados e para quê fim.
Buscou-se compreender as convenções linguísticas que historicamente
contextualizaram suas principais obras ao investigar como o conceito de república liberal se
constituiu sob intenso debate político, juntamente com outros conceitos de democracia e
federalismo. Tendo, por fim, as considerações sobre o estabelecimento do contexto linguístico
entre as diferentes regiões do país, culminando na queda do Império no Brasil e na instalação
da República de viés liberal em 1889, prosseguindo até a tentativa do novo regime de
legitimação e manutenção durante seus anos iniciais, através de ações que o reafirmassem e
que criassem uma nova memória e simbologia para a República.
24
38
Ver CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a
política imperial. Segunda edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Capítulos 1 ao 6.
25
39
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 53.
40
Ibidem, p. 57-58.
26
Projeto não só ideológico, mas também político, este encaminhado pelo IHGB na
sua tarefa de contribuir para a construção da Nação brasileira. Da história, enquanto
palco de experiências passadas, poderiam ser filtrados exemplos e modelos para o
presente e o futuro, e sobre ela deveriam os políticos se debruçar como forma de
melhor desempenharem suas funções. A história é percebida, portanto, enquanto
marcha linear e progressiva que articula futuro, presente e passado.41
Desse modo, pode-se constatar que, com o passar das décadas, o projeto de construção
da Nação elaborado pelo IHGB e baseado em interesses de manter a ordem monárquica, foi
posto em questão, pois à medida em que as críticas se davam e se intensificavam, sobretudo
nas últimas décadas do Oitocentos, o regime monárquico buscava a criação de mecanismos de
resposta aos argumentos desfavoráveis à sua permanência. Vendo-se, a partir desse embate,
uma maior preocupação por parte da elite política monarquista na construção discursiva capaz
de criar uma “tradição” harmonizadora que se baseava no tripé indianismo, liberalismo e
catolicismo, como mencionado anteriormente. Tendo no primeiro deles, o indianismo
romântico, a base para uma escrita da história que possuía como objetivo a manutenção da
ordem dos Bragança. Para tal, a literatura, os títulos de nobreza concedidos e o IHGB foram
mobilizados, utilizados, e constituem bons exemplos da estratégia harmonizadora do Império
às críticas que buscavam instaurar a ideia de “crise do regime”.
Em relação ao liberalismo imperial, este tinha caráter empírico, visto se pautar nas
circunstâncias político-econômicas e não nos valores. Por isso, houve a manutenção do
regime escravista, da própria monarquia e da dominação senhorial, ou seja,
Estabelecia-se assim uma sociedade estratificada que privilegiava sua camada mais
abastada: a de senhores de terras. Assim, restringia-se os considerados cidadãos plenos no
Império, optava-se por mais controle para a manutenção da ordem hierárquica e da distância
necessária imposta às camadas inferiores para evitar um possível levante contra a distribuição
social e as mudanças de poder econômico e de direitos políticos que poucos detinham, o que
blindava política e simbolicamente o regime monárquico. Com isso, a “política era arena de
disputas internas ao estamento senhorial. A liberdade ficava restrita à ‘boa sociedade’
41
Ver GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. In: Revista Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, número 1, 1988. p. 15.
42
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 59-60.
27
43
Ibidem, p. 60.
44
Ibidem, p. 64-65.
45
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do
Império. Rio de Janeiro: Editora FGV: Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Edur),
2007. p. 11.
46
Como destacou Sérgio Buarque de Holanda em relação ao Partido Republicano em 1870: “A única força
política de expressa contestação ao sistema monárquico surgira em 1870. Mas embora o Partido
28
A nação sentia-se até pouco antes em boa companhia, lembrando-se de que quase
toda a Europa, onde se achavam os modelos de sua vida intelectual, era dominada
pelo princípio monárquico. Mas justamente esse argumento começara a perder sua
força desde setembro daquele mesmo ano de 70 com a queda, em França, do
Segundo Império e o advento da Terceira República. Foi mesmo esse acontecimento
que precipitou, entre radicais brasileiros, muitos deles já republicanos de sentimento,
a ideia de se unirem numa organização de âmbito nacional, que não se limitaria a
denunciar este ou aquele partido monárquico, este ou aquele ministério, mas já
pretendia contestar diretamente o regime.47
seu Manifesto, apropriando-se da maioria dos antigos temas que constituíam a proposta de
reforma já apresentada pelos Liberais. A diferença significativa trazida pelo Partido
Republicano estava tão somente no debate de qual forma de regime se deveria adotar no país.
Angela Alonso entende ser a partir da instauração de uma “crise monárquica” que se
tem um espaço maior ao debate, sobretudo devido ao aumento do público leitor, dos
impressos, jornais, associações, clubes, conferências, que promoveram uma maior
participação no debate a fim de ganhar visibilidade no campo político, principalmente em
relação aos grupos sociais que se sentiam desamparados pela política nacional. Assim, a
“Geração de 70”, segundo a autora, fora a geração que intensificou o debate proveniente da
“crise”. Contudo, indo de encontro a perspectiva apresentada por Angela Alonso, opto por
outra interpretação histórica, ou seja, aquela que não identificou a intensificação do debate em
1870, a partir da assimilação de “um bando de ideias novas”, mas, ao contrário, que o diálogo
estreitou-se, sobretudo devido ao ponto que ficara reduzido: qual regime político deveria ser
adotado no país. Autores como George Boehrer50 e José Murilo de Carvalho51 identificam e
defendem a interpretação de empobrecimento do diálogo em virtude da centralidade do debate
em qual regime político se deveria adotar, monarquia ou república.
O problema é que “a ênfase excessiva, se não exclusiva, na Geração de 70 exclui os
pensadores e militantes da década anterior, autênticos representantes do nosso pensamento
político”,52 diminuindo assim a importância que os anos de 1860 tiveram no debate das
reformas. Por isso, se está de acordo que o tema das reformas antecede o que Angela Alonso
identificou como sendo próprio da “Geração de 70”. Esta “geração” na verdade era
constituída por agentes políticos que não faziam parte dos círculos de poder e buscavam uma
maior inserção e protagonismo na política, para isso criaram um ambiente hostil na tentativa
de gerar “uma crise do regime”, haja vista que o clima de insatisfação com a monarquia no
Brasil se acentua com o despontar da Modernidade e suas mudanças estruturais na sociedade,
pois a economia se modificara, o trabalho escravo tinha que ser substituído pelo trabalho livre
e assalariado, a questão da imigração se mostrava uma saída possível na substituição da mão
de obra, tornando-se uma das questões centrais das propostas de reforma, a descentralização
com uma maior autonomia para as províncias também era debatida intensamente, a separação
da Igreja do Estado, entre outros pontos. Esse cenário foi utilizado pelos contestadores da
monarquia para então substituí-la e, a partir disso, assumirem um protagonismo maior na
política nacional.
Questões essas presentes na proposta de reforma dos Liberais há tempos, como
destacou George Boehrer em relação ao Partido Republicano e seu Manifesto de 1870: “Os
brasileiros mal podiam tomar como excepcional algumas das medidas propostas. De fato,
muitas delas já haviam sido apresentadas pelo Partido Liberal”.53
O Partido Liberal surgiu em 1831 e com ele a defesa da abolição, da monarquia
federal, do fim do Poder Moderador, de um Senado eletivo e temporário, da supressão do
Conselho de Estado, das Assembleias Provinciais em duas Câmaras, tendo poderes
legislativos sobre as municipalidades, da livre liberdade de expressão, da separação da Igreja
e do Estado, etc. Enquanto que o Partido Conservador despontou no ano de 1837 e adotou a
oposição às reformas propostas pelos Liberais. Desse impasse em relação às medidas
reformistas surge, em 1862, no cenário político do país a Liga Progressista, constituída tanto
por liberais, quanto por conservadores que eram a favor da efetivação das reformas - os
conservadores moderados. Todavia, o programa defendido pela Liga, por ser mais brando do
que aquele proposto inicialmente pelos liberais, não atendeu as aspirações de reformas dos
mesmos que, em 1866, organizaram o movimento liberal-radical. 54 A radicalização, no intuito
de divulgar suas ideias, fez surgir, em 1868, o Clube Radical que teve na imprensa como
órgão o jornal A Opinião Liberal, bem como o apoio, em 1869, do jornal O Correio Nacional.
Os radicais propunham: abolição da Guarda Nacional, extinção do Poder Moderador,
descentralização, Senado temporário e eletivo, liberdade de ensino, suspensão dos
magistrados pelos tribunais superiores, poder judiciário independente, separação do poder
judiciário da polícia, a eleição dos presidentes de província pelas mesmas, o voto direto e
geral, entre outras medidas.
O desacordo entre os dois partidos monárquicos em relação à realização das reformas,
bem como o modo como se mantinham no poder e as conduziam, fez com que o D. Pedro II
fizesse uso do Poder Moderador, possibilitando-o intervir como uma espécie de “juiz” nas
decisões e disputas partidárias. O monarca tentou realizar assim uma “política de
53
O autor ao analisar o Manifesto Republicano de 1870 ressalta também que “O manifesto, em si, não era
especialmente digno de nota. Distinguia-se dos documentos liberais anteriores apenas pela sua oposição à
instituição monárquica”. Ver BOEHRER, George C. A. Op. Cit., p. 226-227.
54
Sobre a linguagem política radical ver BASILE, Marcello. “Luzes a quem está nas trevas: a linguagem
política radical nos primórdios do Império”. In: Topoi, Rio de Janeiro: URFJ, set. 2001. p. 91-130.
31
conciliação”, alternando no poder os dois partidos para que se tivesse um equilíbrio entre
ambos na cena política do país, algo que não durou muito tempo, pois o conflito pelo poder e
os pontos defendidos pela reforma propiciaram o surgimento de uma terceira força no cenário
político: o Partido Republicano (1870) que repetia a maioria dos pontos contidos nas reformas
dos liberais, trazendo como novidade tão somente a defesa de mudança do regime político ao
país.
Vale lembrar que a Modernidade trouxe consigo mudanças estruturais que deveriam
ser acompanhadas de reformas pela Monarquia. O problema fora justamente conseguir dar o
primeiro passo em relação ao projeto de reforma sem abalar a estrutura do Império. Assim, o
desafio imposto pela Modernidade à Monarquia era que o próprio Império fosse capaz de
realizar as demandas exigidas nos Novos Tempos, ou então, outro regime se candidataria a
efetivá-las.55
A efetivação das reformas foi exigida ao Império através do acirramento de questões
como o debate em torno da abolição, a substituição de mão de obra servil pela assalariada,
proveniente da imigração, a demanda de descentralização, em exigência ao federalismo, um
maior protagonismo político de determinados setores que não se sentiam valorizados pela
Monarquia, entre outros fatores, adensavam o sentimento de mudança e de descontentamento
frente à Coroa.
55
Alguns autores foram fundamentais para uma melhor compreensão das estratégias de ação dos grupos
republicanos, sobretudo aqueles que interpretaram esses grupos como agentes que buscavam um maior
destaque na cena política do país pela via discursiva e, por isso, constataram que não era possível a
separação dos campos intelectual e político no Oitocentos, visto que se utilizaram das convenções
linguísticas em voga, emprestaram a elas novos significados e, assim, justificaram novas práticas, valores e
instituições ao derrubarem a Monarquia. Embora as interpretações históricas sobre a república no Brasil
sejam muitas, visto a importância e a atualidade do tema, escolhe-se destacar alguns autores que, com seus
trabalhos, contribuíram para uma melhor compreensão da guerra discursiva instaurada pelos que se
denominavam alijados do campo político no Brasil oitocentista. A historiografia sobre a instalação da
república brasileira oferece um vasto número de interpretações, como, por exemplo, a versão de que seriam
os próprios monarquistas que, inflexíveis em relação às reformas sociais, acabaram por permitir o
desmoronamento do regime; ou a versão republicana que o novo regime seria uma questão de tempo para
ser implantado, pois seria parte do processo pelo qual passariam os Estados Modernos; também foram
muitas as versões que concentram a atenção em sujeitos históricos, ou em instituições específicas, do
período atribuindo aos mesmos papel central no advento da república brasileira; ou ainda interpretações de
cunho marxista que privilegiam a questão econômica como explicação para a mudança de regime; há
também as interpretações de viés meramente doutrinário que identificam o surgimento de “filosofias no
Brasil” a partir da entrada das correntes estrangeiras em voga, entre outras possíveis. Sobre a escrita da
história republicana ver COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. São
Paulo: Editorial Grijalbo, 1977, capítulos 10-11. Contudo, optou-se pelo diálogo, neste trabalho, com os
autores que contribuíram para a interpretação da república como o desenrolar de um processo de
insatisfação com a Monarquia devido à falta de atuação no campo político de determinados grupos que se
sentiam prejudicados pela pouca, ou nenhuma, entrada política, campo dominado há tempos pelos
conservadores. Também sobre historiografia da República no Brasil ver GOMES, Ângela de Castro;
FERREIRA, Marieta de Moraes. “Primeira República: um balanço historiográfico”. In: Estudos Históricos,
Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, vol. 2, n. 4, 1989, p. 244-280.
32
56
Ver CARVALHO, José Murilo de (Org.). A construção nacional: 1830-1889. Rio de Janeiro: Objetiva,
2012, p. 119.
33
Contudo, com o embate entre o novo e a tradição imperial aumentando com o passar
do tempo, as críticas ao regime se intensificam e o que antes parecia ser uma elite homogênea,
sobretudo pela mesma formação vinda de Coimbra, agora, com os novos setores insatisfeitos
na esfera política se tem, a partir principalmente de 1870, a constatação de que
57
Ver Carvalho, José Murilo de. Op. Cit. p. 116.
58
Ibidem, p. 84.
59
Ibidem, p. 86.
60
Parte deste capítulo destinado a tratar dos temas: positivismo e jacobinismo no Brasil é proveniente dos
estudos iniciados ainda em meu mestrado e por serem fundamentais também nesta tese foram
reapresentados, bem como ampliados e revistos, assim como outras partes da pesquisa.
61
Ver COMTE, Augusto. Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade. São
Paulo: Editora Escala, 2006. 1° edição de Maio de 1822.
34
62
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. A república positivista: Teoria e Ação no Pensamento Político
de Augusto Comte. Curitiba: Juruá, 2003. p. 42.
35
estado evolutivo no qual se devia caminhar para. Contudo, o erro de muitos reis e povos
estava na atitude de ambos de tentar permanecer com os mesmos valores e instituições
vigentes, resistindo assim na facilitação das mudanças necessárias que auxiliariam no desvelar
da marcha geral da civilização. Neste sentido, ao invés de reorganizar, ambos estavam
desorganizando a sociedade que então entrava em um grande estado de anarquia. Algo que
pode ser verificado na passagem abaixo:
aos espíritos que procuram de boa fé remédio para a crise atual e que sentem, em
toda a sua extensão, a necessidade de uma reorganização, mas que não levaram em
consideração a marcha geral da civilização e que, encarando somente o estado
presente das coisas sob um único prisma, não perceberam a tendência da sociedade
para o estabelecimento de um novo sistema, mais perfeito e não menos consistente
que o antigo.63
Como afirma o pensador, era para ele perceptível a necessidade de uma reorganização
social, entretanto, o problema estava em como promovê-la. E isso certamente não podia ser
através da manutenção, ou resgate, de instituições e valores passados que serviam tão somente
para atravancar a marcha evolutiva na qual toda a humanidade estava submetida.
O passado então servia para apontar a direção futura e não para ser retomado como
modelo no presente. A história fornecia o quadro geral da sociedade e mostrava para onde se
deveria seguir. É dessa maneira de pensar o passado que, na obra intitulada Discurso Sobre o
Espírito Positivo, Augusto Comte afirma que:
63
Ver COMTE, Augusto. Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade. São
Paulo: Ed. Escala, 2006. p. 14-15.
64
Ver COMTE, Augusto. Discurso Sobre o Espírito Positivo. São Paulo: Ed. Escala, 2006. p. 110. (1ª edição
1848).
65
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., p. 41-42.
36
Não por acaso as intensas críticas, tanto ao regime monárquico, quanto ao direito
divino dos reis, ambas feitas por Augusto Comte ao longo de suas obras. Segundo o pensador,
o regime monárquico era a permanência de estruturas retrógradas no presente e a necessidade
de superação ia de encontro à vontade do soberano que, respaldado pela justificativa
sobrenatural, garantia sua posição de rei em detrimento do desenvolvimento social. Era
preciso destituir o rei, bem como o regime monárquico e aplicar o republicanismo positivista,
forma de governo defendida por Augusto Comte e identificada como sendo a ideal no estado
positivo, pois “se a monarquia era a forma de governo própria do estado teológico, o
parlamentarismo liberal-democrático caracterizava o estado metafísico. Portanto, o estado
positivo ''pacífico e industrial'' deveria ser republicano e ''tecnocrata''”.68
O republicanismo positivista possui uma
66
Ver COMTE, Augusto. Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade. São
Paulo: Ed. Escala, 2006. p. 16.
67
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., p. 24.
68
Ver TORRES, João Camilo de Oliveira. O Positivismo no Brasil. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1942. p. 60.
69
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., p. 29.
37
visto que “para garantir o progresso, a ditadura monocrática deve, pois, tornar-se republicana,
em todo o Ocidente, segundo o modo e a época peculiares a cada caso”. 70 Este, por sua vez,
concentrava em suas mãos a maior parte dos poderes. Não existia o Legislativo que também
fazia parte dos poderes acumulados pelo ditador, que tinha junto a si apenas um colegiado
com funções meramente administrativas. Ficava-se evidente a preponderância do poder
pessoal, mas não absoluto, segundo o autor, visto que a concentração do Executivo vinha
acompanhada das plenas liberdades públicas que legitimariam o regime, como, por exemplo,
de pensamento, imprensa, crítica, participação e discussão. Eram essas liberdades que
permitiam o controle da república ditatorial positivista, sendo exercidas pela opinião pública.
Contudo, segundo a visão positivista, se essa mesma opinião pública se mostrasse descontente
com as medidas tomadas pelo ditador podia manifestar-se de maneira contrária ao regime pela
via da resistência civil, sob a forma de boicotes, greves, não pagamento de impostos e até
mesmo pela instauração da insurreição. Entretanto, esta última ação só era válida em casos
extremos, nos quais o governante não mais aceitasse estar sob o império da lei, que era
elaborada pela opinião pública, despontando assim em tirania.
O governante sendo um ditador, não era eleito pelo voto, mas através de indicação -
um ditador indicava outro para seu lugar quando chegasse aos 63 anos, tempo máximo
permitido para exercer a função. A escolha do sucessor devia ser feita a partir de uma
criteriosa avaliação de seus possíveis candidatos, devendo contar as aptidões administrativas
para o cargo, a atuação passada na vida pública, a esfera privada, a moral e, sobretudo, o
mérito pessoal. O sucessor que melhor respondesse aos requisitos era então indicado pelo
governante em exercício. Ao assumir o governo, o novo ditador devia ser legitimado pela
manifestação da opinião pública:
É importante ressaltar que Augusto Comte se mostrava contrário ao voto por acreditar
que o eleitor nem sempre estava apto a fazer a “melhor escolha”, assim o sufrágio era um
“meio de escolha, entretanto, incapaz de assegurar-lhe a aptidão administrativa e a probidade
moral, condições de cujo apreço o sufrágio confia ao critério do eleitor, nem sempre
70
Sobre os governantes ver COMTE, Augusto. Apelo aos conservadores. Rio de Janeiro: Apostolado
Positivista do Brasil, 1899. p. 170.
71
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., p. 87.
38
72
Idem.
73
Ibidem, p. 63.
74
Sobre a Vida e Obra de Augusto Comte, principalmente seu encontro, em 1844, com Clotilde de Vaux e o
sentimento que virou idolatria ver COMTE, Augusto. Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultura,
1996.
75
Sobre a fase final das obras de Augusto Comte e a adoção da Religião da Humanidade ver COMTE,
Augusto. “Catecismo Positivista”. In: Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1996.
39
o sentimento de altruísmo era posto à frente. Com isso, caminhava-se para a instauração de
uma teologia e de seus rituais. Tendo como base a religião católica, o pensador instaura,
apesar de ter uma concepção laica, os “santos” - grandes homens da humanidade, as “festas” -
cívicas, os “sacerdotes” - que eram os positivistas ortodoxos, um calendário próprio que
passava a dar destaque aos grandes personagens da humanidade e até mesmo o culto da
Virgem-Mãe que deixava de ser a Virgem católica para ser a alegoria feminina da humanidade
personificada em Clotilde de Vaux.76 No Brasil, o destaque aos grandes homens e a tentativa
de construção de uma nova memória da nação, que fizesse frente àquela construída para
legitimar a monarquia, contou com um panteão composto por nomes de destaque, como, por
exemplo, José Bonifácio, Luís de Camões77 e Benjamin Constant.78 Esses dois últimos foram
biografados por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, respectivamente, a partir da lógica
positivista.
Embora fosse uma concepção religiosa, desprovida de metafísica, de sobrenatural,
valorizando tão somente o terreno, a inversão proposta pelo sentimento frente à razão, fez
com que, por exemplo, seu discípulo Emile Littré o abandonasse justamente por não
concordar com a ideia de uma nova religião, bem como questionasse a sanidade do ex-mestre.
É a partir de então que se tem a divisão entre os positivistas que aceitam a obra de
Augusto Comte em sua totalidade e aqueles que rejeitam a fase final de seus textos, por não
concordarem com a ideia de seguirem uma nova religião; esta “guinada teórica e doutrinária
não será acompanhada por todos os seus discípulos. Ocorre, então, o primeiro de uma série de
cismas que marcarão a trajetória do positivismo”.79 Assim, embora se adote uma divisão, a
posteriori, entre positivistas como: ortodoxos e heterodoxos para classificar aqueles que
aceitam, ou não, a parte final das obras de Augusto Comte, deve-se ressaltar que a
classificação varia e muito, tamanha a pluralidade de vertentes positivistas pelo mundo.
76
Ao se colocar o sentimento à frente da razão, a mulher ganha papel de destaque no positivismo, já que,
segundo Sérgio Buarque de Holanda, “a eficácia salutar dos modelos de sentimento e conduta, fornecidos
antigamente pela nobreza, irão pertencer sobretudo ao “sexo afetivo”. A capacidade de amor e
devotamento, que parece distintivo da mulher, alimentará um sentimento de solidariedade social, que se
encontra à base da nova religião da Humanidade, pois, sem a presença ativa da mulher, o positivismo
estava impedido de tornar possível o abandono da teologia em sua antiga função social”. Ver HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 301.
77
Ver LEMOS, Miguel. Luis de Camões. Rio de Janeiro: A.P.B, 1880.
78
Ver MENDES, Raimundo Teixeira. Benjamin Constant, esboço biográfico. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1937.
79
Ver ALONSO, Angela. “De Positivismo e de Positivistas: Interpretações do Positivismo Brasileiro”. In:
BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: MMFREIRE, nº
42, 2° semestre de 1996. p.110.
40
80
Ver CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 41.
81
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A República e o Sonho”. In: Varia História. Belo Horizonte:
UFMG, vol. 27, nº45, Jan/Jun 2011. p. 127.
82
Ver MENDES, R. Teixeira. A Incorporação do Proletariado na Sociedade Moderna. Igreja e Apostolado
Positivista do Brasil. Rio de Janeiro, n. 77, jul. 1908. p. 6.
41
83
Sobre a construção do monumento a Benjamin Constant ver publicação n° 8 da Igreja e Apostolado
Positivista do Brasil. O monumento a Benjamin Constant. Rio de Janeiro: Templo da Humanidade, 1925.
42
No que diz respeito à dimensão intelectual, a Escola era marcada pela invasão de
filosofias importadas da Europa, uma invasão também verificada nas Academias de
Direito e Medicina e na Politécnica. As correntes mais populares eram o positivismo
e o evolucionismo, com seus respectivos gurus, o francês Auguste Comte, os
britânicos Charles Darwin e Herbert Spencer, e o alemão Ernest Haeckel. A
juventude estudantil militar era dominada por crença fanática no poder da ciência.
Esse cientificismo, partindo das ciências exatas e da biologia, estendia-se à
sociedade, como doutrinavam Comte e Spencer. A sociedade, ou, no caso de Comte,
a Humanidade com H maiúsculo, eram governadas por leis tão rígidas quanto as da
biologia ou da astronomia. Contra tais leis lutavam inutilmente os inimigos do
progresso. “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”,
sentenciara Comte.85
84
Ver TORRES, João Camilo de Oliveira. Op. Cit., p. 18.
85
Ver CARVALHO, José Murilo de. “Euclides da Cunha e o Exército”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro:
Academia Brasileira de Letras, n° 63, 2010. p. 141-142.
43
De fato, a adesão ao positivismo foi grande nos meios militares, mesmo sendo essa
uma doutrina que fazia a defesa do pacifismo. Se no meio militar o positivismo era divulgado
pela Escola Militar, sobretudo através das aulas ministradas por Benjamin Constant, na
sociedade uma das primeiras tentativas de formação de um grupo para divulgação das ideias
de Augusto Comte data de 1876, quando a Sociedade Positivista fundada por Oliveira
Guimarães surge no Rio de Janeiro. E, em 1878, a associação passa a chamar-se Sociedade
Positivista do Rio de Janeiro, tendo como presidente Joaquim Ribeiro de Mendonça. A
finalidade dessa associação era disseminar a doutrina positivista com o objetivo de educar e
moralizar a sociedade, auxiliando-a em sua reorganização. A disseminação da doutrina
positivista era feita, inclusive, através de viagens de propaganda, como destacado em trecho
de relatório do Apostolado Positivista do Brasil, referente ao ano de 1882, intitulado “Voyages
de Propagande”,89 por ocasião da ida de Teixeira Mendes a São Paulo para propagar o
86
Ver TORRES, João Camilo de Oliveira. Op. Cit., p. 127.
87
Ver MENDES, Raimundo Teixeira. Benjamin Constant, esboço biográfico. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1937.
88
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 117.
89
“M. Teixeira Mendes, continuant mon initiative de l’anée dernière, vient de faire un voyage à San Paulo
pour y propager notre religion. Il y a exposé, en sept conférences, l’ensemble du culte, du dogne et du
régime positivistes, devant un public de plus em plus sympathique à nos efforts, grâce à l’action du vaillant
groupe de cette ville. L’influence exercée par M. Mendes a été très grande et il a réussi à détruire, chez les
esprits assimilables, leurs dernières répugnances à l’égard de la nouvelle doctrine”. Ver LEMOS, Miguel.
Rapport pour l’anée 1882. Rio de Janeiro: L’Apostolat Positiviste au Brésil, 1884. p. 43.
44
positivismo em sete conferências ao público que, segundo Miguel Lemos, estava disposto a
ouvi-lo por ser cada vez mais simpático ao pensamento positivista. Tanto Teixeira Mendes,
quanto Miguel Lemos, eram, dentre o grupo positivista nacional, os seus maiores expoentes.
A adesão à doutrina e, posteriormente, seu aprimoramento pode ser sintetizada no
episódio no qual Miguel Lemos e Teixeira Mendes foram expulsos da Escola Politécnica, em
1876, por escreverem um artigo violento contra o diretor, na época, o Visconde do Rio
Branco. A exclusão da Escola fez com que fossem à Europa e pudessem dar continuidade aos
estudos da doutrina. Fora durante a estada de Miguel Lemos em Paris que se dera a maior
aproximação doutrinária do estudante com o positivismo, heterodoxo, de Emile Littré.
Contudo, essa aproximação da adoção de uma perspectiva littreísta do positivismo fora logo
recusada por Miguel Lemos, como pode ser observado na 1ª Circular Anual do Apostolado
Positivista do Brasil:
Havia muito tambem que eu sentia um vazio que o littreismo era impotente para
encher; por vezes estive ao ponto de sucumbir ao desespero, quando contemplava
esse abismo que se mantinha aberto entre a ciência e o sentimento. Em vão
procurava eu o laço que devia prender os diversos aspectos da natureza humana,
coordenando-os em relação a um destino comum. Onde o princípio supremo que
devia assimilar um fito à ciência, um alvo ao sentimento e um fim à atividade? Qual
o critério que havia de libertar-me da tirania de minha razão individual e oferecer
aos homens, grandes e pequenos, instruidos e ignorantes, a base do dever?90
Fora a rejeição por parte de Miguel Lemos da perspectiva littreista de não aceitar a
Religião da Humanidade de Augusto Comte que fez com que o mesmo procurasse estabelecer
um diálogo ainda mais próximo com Pierre Laffitte. A aproximação de Miguel Lemos e Pierre
Laffitte fez com que a obra de Augusto Comte fosse adotada na sua completude. A conversão
da doutrina de base científica à Religião da Humanidade propiciou que Miguel Lemos
também se aproximasse de líderes positivistas que compartilhavam essa mesma perspectiva
religiosa. Fora desse modo que, posteriormente, Miguel Lemos estabeleceu diálogo com o
fundador do positivismo no Chile, Jorge Lagarrigue91 que, assim como ele, também fora do
littreísmo à Religião da Humanidade.
Miguel Lemos após retornar ao Brasil recebeu de Ribeiro de Mendonça a presidência
da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, ficando aquele como presidente honorário da
mesma sociedade. A mudança na presidência da Sociedade teve aprovação de Pierre Laffitte
que concedeu a Miguel Lemos o título de “Diretor do Positivismo no Brasil”. Em 1881,
90
Ver LEMOS, Miguel. 1ª Circular Anual do Apostolado Positivista do Brasil. RJ: A.P.B., 1881. p. 20.
91
Ver LAGARRIGUE, Jorge. A Ditadura Republicana segundo Augusto Comte. Porto Alegre/RS: 1957,
edição comemorativa do centenário da morte de Augusto Comte (1857 - 5 setembro - 1957).
45
Miguel Lemos passou a exercer a direção da Sociedade que se tornou o Apostolado Positivista
do Brasil.
O Apostolado Positivista desde então passou a exercer importante papel na divulgação
das ideias positivistas no Brasil-Império, bem como realizar intensa propaganda contrária ao
regime monárquico. À frente estavam os apóstolos do positivismo, Miguel Lemos e Teixeira
Mendes, que respeitavam de maneira ortodoxa a doutrina comteana. O radicalismo de ambos
fora tão grande que Miguel Lemos se posicionou contrário à candidatura de Ribeiro de
Mendonça, fazendeiro e senhor de escravos, para deputado provincial. Segundo Augusto
Comte, os seguidores do positivismo não podiam ocupar cargos políticos, aceitar a escravidão
e, muito menos, serem donos de escravos. Interpretando a atitude de Ribeiro de Mendonça
como uma “heresia” à Religião da Humanidade, apelou para Pierre Laffitte, em fins de 1882,
apresentando a este um projeto que ressaltava a proibição de ocupar cargos políticos e de
possuir escravos a todos os positivistas. A partir deste episódio se deu o cisma (1883) entre
Lemos e Laffitte, pois este último, embora concordando em tese com o projeto de Lemos,
pedia ao mesmo para ser mais flexível em relação aos princípios do positivismo. Essa
diferença entre radicalismo e tolerância na interpretação da doutrina fez com que “a partir
deste momento os dois líderes, Lemos e Teixeira Mendes, [adotassem] uma política de pureza
doutrinária: apenas aqueles que se submetessem ao seu comando seriam considerados
‘positivistas completos’”.92 Declararam independência do Apostolado em relação à sucursal
de Pierre Laffitte.
Segundo Angela Alonso, a “Questão Laffitte – 1883” fez com que Lemos tivesse seu
propósito bem sucedido, que era transformar sua versão da doutrina como a história oficial, o
“verdadeiro positivismo”, em detrimento das demais perspectivas. Algo que fora reproduzido
por parte da bibliografia dedicada ao tema.
É importante ressaltar que esse radicalismo adotado pelos positivistas ortodoxos
brasileiros fazia parte de uma estratégia de ação para alcançar um determinado objetivo e não
uma postura de um grupo de “fanáticos religiosos”, como muitas das críticas feitas ao grupo
chegaram a afirmar. Como bem notou José Murilo de Carvalho, o radicalismo adotado pelos
líderes da Religião da Humanidade fazia parte de uma estratégia política para intervir na cena
pública do país como uma vanguarda da classe média que buscava visibilidade em uma
sociedade que, regida pela mão de obra escrava e pela “gerontocracia de Estado”, não lhes
dava espaço. Os ortodoxos eram uma nova geração, proveniente, sobretudo, da parcela
técnica e científica da classe média, que buscava para si um espaço de atuação. Espaço esse
92
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 116.
46
93
Ver CARVALHO, José Murilo de. “A ortodoxia positivista no Brasil: um bolchevismo de classe média”. In:
Revista do Brasil, dezembro de 1989. p. 52.
94
Ibidem, p. 54.
95
Por isso também o destaque dado, neste capítulo, ao pensamento positivista, sobretudo no Brasil, haja vista
ser uma das principais teorias que forneceu vocabulário, semântica e simbologia aos republicanos
combatentes da Coroa para usarem, adaptarem e criarem argumentos contra o Império de forma eficaz.
96
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., 106.
47
Além desses pontos, defendiam intensamente o fim da escravidão - até como mais um
tema a ser mobilizado na oposição ao Império - e a instauração de uma república ditatorial.
Esses eram outros dois temas abordados pelo Apostolado, tanto nas Circulares Positivistas,
quanto nas conferências públicas.
Em relação à temática republicana, embora os positivistas defendessem uma república
ditatorial, mantiveram ligações com os demais republicanos, jacobinos e liberais. Miguel
Lemos e os positivistas ortodoxos do Apostolado chegaram a participar de algumas reuniões
do Partido Republicano da Corte, contudo não houve adesão dos mesmos. Não ocorreu
adesão, mas por um período houve a participação nas reuniões gerais do Partido Republicano
da Corte pelo grupo positivista, embora por pouco tempo, visto Miguel Lemos retirar seu
apoio à candidatura de Quintino Bocaiúva, por acreditar que o mesmo era omisso em relação
aos pontos defendidos com veemência pelo Apostolado, sobretudo em relação à imigração
chinesa, ponto que a direção da Igreja não aceitava como válida para substituir o trabalho
escravo.97 O objetivo de Miguel Lemos até o momento da retirada de apoio à candidatura de
Quintino Bocaiúva era se unir ao discurso republicano liberal para intervir politicamente
criando um discurso forte e eficaz a favor da república contra a monarquia. Segundo Antonio
Paim, a partir de explicações enviadas por Miguel Lemos à redação Gazeta da Tarde, pode-se
constatar as intenções políticas do apóstolo ao escrever que:
Tendo o diretor decidido que só poderiam tomar parte das reuniões gerais do partido
republicano aquelas pessoas arroladas nos diversos clubes republicanos da Corte e
Niterói, e não se achando nenhum de nós inscritos nesses núcleos, oficiei ao Sr.
Presidente da comissão diretora do partido, pedindo que se reconhecesse no Centro
Positivista um grupo republicano como outro qualquer, de modo que os seus
membros pudessem comparecer e deliberar nas convocações gerais do partido.
A nossa pretensão baseava-se somente na comunhão de aspirações que nos liga aos
outros republicanos, dizendo eu nesse ofício: “Republicanos como vós, embora com
método e doutrina diferentes, os positivistas esperam ser atendidos neste justo
pedido”. A comissão diretora anuiu prontamente ao que propunhamos.
Se reclamamos o direito de tomar parte nas reuniões republicanas, foi para firmar,
por um lado, essa identidade de aspirações, e, por outro lado, para não perder as
ocasiões oportunas de oferecer à esclarecida e patriótica apreciação dos nossos
correligionários as únicas soluções políticas capazes de operarem a transformação
que todos desejamos, segundo as exigências de renovação científica moderna, que
não se compadece mais com a metafísica revolucionária da escola democrática.
Esperando, Sr, redator, do seu conhecido cavalheirismo, a inserção destas linhas,
tendo a honra de subscrever-me de V.S.ª, etc. - Miguel Lemos.98
97
Sobre os detalhes da retirada do apoio do Apostolado à candidatura de Quintino Bocaiúva ver PAIM,
Antonio. O Apostolado Positivista e a República. Brasília: Editora UnB, 1981. p. 13-17.
98
Ibidem, p. 11-12.
48
pode-se enquadrá-los dentro dos grupos de contestadores da Monarquia. Isso porque tanto os
positivistas ortodoxos do Apostolado, quanto aqueles que estabeleciam ligação com a doutrina
a partir dos institutos de educação que frequentavam quando estudantes se sentiam
duplamente excluídos: do campo político, como também do mundo do trabalho, muitos deles
tentavam ingressar nos cargos ligados ao ensino superior e não conseguiam, já que os
concursos públicos não garantiam a aprovação pelo mérito, mas, sim, pela lógica do
apadrinhamento. Desse modo, constata-se a “dificuldade individual em conquistar empregos e
em trilhar a carreira canônica da política foi fermento de uma manifestação coletiva contra o
status quo imperial, cuja forma magna foi o republicanismo”.99
Por isso, a busca de união em torno de uma mesma temática já demonstra a procura de
apoio à intervenção e, consequentemente, propicia uma situação favorável à mudança
almejada. Certamente, o esquema filosófico comteano emprestou à guerra discursiva do
período de questionamento do Império muitos dos argumentos para justificar as
transformações desejadas, visto que tanto os positivistas quanto os que faziam uso da doutrina
sem necessariamente se declararem como tal, escolheram e leram a seu modo o positivismo,
não para fins meramente intelectuais, mas para uso político. Até porque a separação dos
campos político e intelectual ainda não estava definida no Oitocentos. Assim, “o positivismo,
no Brasil, ou o que fosse possível utilizar do positivismo, vai servir principalmente para
despertar forças eruptivas, ganhando adesão nas classes onde lavra maior descontentamento
com o regime, e que tinham meios de traduzir o descontentamento em atos”.100
Como exemplo, temos os slogans positivistas que foram amplamente utilizados, tanto
nas circulares, quanto nas conferências públicas e na imprensa. Até mesmo aqueles que
entraram em contato com o positivismo tão somente para usá-lo como vocabulário de
contestação, não podendo se autoproclamarem positivistas, utilizavam-se dos mesmos termos
como arma política. Talvez, uma das maiores contribuições do positivismo tenha sido mesmo
a possibilidade de fornecer um vocabulário eficaz à cena política, seu uso excessivo,
juntamente com outras teorias de reformistas em voga no Oitocentos, possibilitou a
construção de uma nova linguagem política republicana capaz de deslegitimar o status quo da
monarquia. A consciência por parte dos opositores do regime, dentre eles os positivistas, da
necessidade de ação política pode ser identificada a partir das escolhas e estratégias que
adotavam, como, por exemplo, o uso de panfletos e não apenas de grandes obras, pois
99
Ver ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002, p. 138.
100
Ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 303.
49
visavam um consumo imediato para acelerar a “reorganização social” que era justificada pela
doutrina; a distribuição gratuita das Circulares Positivistas, que eram textos de propaganda e
que facilitavam consideravelmente o acesso; as conferências públicas sobre os temas mais
importantes do período e os slogans, ou seja, frases curtas, impactantes e de efeito para criar
uma atmosfera propícia às mudanças desejadas também eram bastante utilizadas, entre outras
medidas.
Assim, apenas para citar alguns slogans como: “Ordem e Progresso”; “Viver às
claras”; “Viver para outrem”; além da frase que abria as publicações dos apóstolos, “O Amor
por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”, constituem alguns bons exemplos. Na
própria fachada do Templo da Humanidade, no Rio de Janeiro, sede da Igreja Positivista no
Brasil, há o lema positivista que seria adaptado e incorporado à bandeira nacional, tamanha a
atuação e apropriação do pensamento de Augusto Comte para a constituição da República,
bem como para sua manutenção em símbolos e memória. Abaixo, algumas fotografias da
referida fachada do Templo da Humanidade, bem como de seu interior, com destaque para o
altar-mor com a imagem da musa de Augusto Comte, Clotilde de Vaux, como personificação
da Humanidade.
Teixeira Mendes era considerado por muitos um importante líder, “um homem de uma
cultura geral extraordinária, jovem ardoroso, talvez demasiadamente rigoroso para quem quer
criar um grande grupo, mas de uma inteligência extraordinária e de um poder de sedução
enorme”. 105
Há relatos que seu cortejo fúnebre gerou grande comoção na cidade, tamanho prestígio
e reconhecimento de sua longa trajetória em defesa do pensamento positivista no Brasil, a
quantidade de presentes ao enterro confirma a importância de Teixeira Mendes como
propagador dos ideais da doutrina durante décadas, visto sua atuação como contestador do
regime monárquico e como mantenedor do positivismo até sua morte.
Esse reconhecimento se deu muito também pela incansável atuação e disciplina tanto
de Teixeira Mendes, quanto de Miguel Lemos, na propagação da pauta positivista no país, que
tinha entre outros pontos, a importante temática da abolição da escravidão. Para isso,
buscaram unir forças com os novos liberais monarquistas que eram a favor de mudanças tidas
como necessárias aos novos tempos sem, contudo, alterar a forma do regime político vigente.
Alguns dos maiores companheiros de propaganda em favor do fim da escravidão, juntamente
com os positivistas abolicionistas, foram Joaquim Nabuco e José do Patrocínio.
A escravidão era interpretada pela lógica positivista como sinal de atraso, além de ser
imoral e prejudicial ao pleno desenvolvimento econômico do país, por isso eram contrários à
105
Ibidem, p. 06.
53
indenização aos proprietários e a todo o momento afirmavam a urgência de promover seu fim.
Segundo Angela Alonso, os positivistas interpretavam a escravidão da seguinte forma:
até 15 de novembro último, também uma Família pensava entre nós que a ela
pertencia o monopólio de governar o povo brasileiro; e até 13 de Maio de 1888, os
escravocratas consideravam legítima a sua monstruosa posse, e tratavam de
anarquistas aos que trabalhavam pela liberdade das suas vítimas. No entanto, todas
essas pretensões tiveram de ceder à realidade, porque o homem se agita e a
Humanidade o conduz.109
106
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 213.
107
Ibidem, p. 214.
108
Ver CARVALHO, José Murilo de. “Euclides da Cunha e o Exército”. In: Revista Brasileira. Rio de Janeiro:
Academia Brasileira de Letras, n° 63, 2010. p. 143.
109
Ver MENDES, R. Teixeira. Op. Cit., p.11.
54
para êsses ortodoxos, a utopia da Virgem-Mãe não deve ser apenas o centro da
religião positivista, como é o mistério da Eucaristia no catolicismo: deve, em suma,
substituir o culto da Virgem Maria. O culto, o dogma, o sistema do positivismo vem
se condensar nesta personificação ideal da Humanidade, que é o objeto supremo do
culto positivista.110
110
Ver GRÜBER, Hermann Joseph. “O positivismo ortodoxo no Brasil”. In: Revista Brasileira de Filosofia.
Nº 59, 1965. p. 420.
111
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., p. 106-107.
55
ela, como talvez o próprio morto, não professava, impedida ao mesmo tempo de
prestar as homenagens do culto que adotava!112
115
Ver MENDES, Raimundo Teixeira. Op. Cit.
116
Ver LACERDA NETO, Arthur Virmond de. Op. Cit., p.110.
117
Ver CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. p. 112.
57
com que se optasse por uma aceitação, mesmo que a contragosto, do símbolo nacional.
Assim,
apesar da resistência à divisa positivista, que talvez persista até os dias de hoje, a
bandeira republicana teve maior aceitação do que a mitificação dos heróis do 15 de
novembro e certamente despertou maior respeito do que a figuração feminina da
república. Os cartunistas logo a adotaram nas representações alegóricas do novo
regime. Há mesmo uma charge da Revista Illustrada do dia 16 de novembro de
1889, de Pereira Neto, que constituiu um enigma. Foi a primeira representação da
república em forma de mulher no novo regime.118
118
Ibidem, p. 116.
58
nas cartas escritas aos seus discípulos”, esforçando-se “por interpretar fielmente
os ensinos” do filósofo, “introduzindo as modificações exigidas pela situação
brasileira e pela forma federativa que, à vista do modo porque se havia operado a
transformação republicana, se impunha fatalmente”.
“Renunciando, esclarece Teixeira Mendes, à esperança de fazer adotar desde já a
organização ditatorial sistematizada pelo nosso Mestre, porque ela repugnava aos
preconceitos democráticos da maioria dos chefes de políticos, concentramos os
nossos esforços em fazer aprovar pela Constituinte tudo quanto, ao nosso ver, servisse
para fundar em nossa pátria o regime da mais ampla liberdade, sob qualquer aspecto.
Neste empenho éramos diretamente auxiliados por um certo número de congressistas
que perfilhavam e subscreveram as nossas emendas”.119
uma constituição política não pode ser uma criação arbitrária, ou uma simples
cópia do que já foi adotado por outras nações. Cada país tem sua feição própria,
seus antecedentes históricos e especiais... Uma constituição política é apenas a
regulamentação de um estado preexistente, e o governo que ela instituir deve estar
em relação direta com esse estado social. Não é possível lutar contra a realidade
das coisas: toda a sabedoria humana... consiste em descobrir essa realidade e
subordinar-se a ela a fim de a sistematizar.120
Embora a crítica feita pelos positivistas, a constituição adotada pelo novo regime, em
1891, fora mesmo a liberal, confirmando a vitória desse grupo de republicanos à frente do
novo regime no Brasil. Apenas no Rio Grande do Sul, a partir da liderança política de Júlio
Prates de Castilhos é que se tem a adoção de uma Constituição positivista para a província, de
resto, a nação permaneceu sob a Constituição liberal de 1891. Segundo Arthur Virmond de
Lacerda Neto, Júlio Prates de Castilhos era
Desse modo, apenas no Rio Grande do Sul é onde se adota uma constituição de viés
positivista, tendo como pontos centrais: submissão de todos ao império da lei, garantia do
livre exercício das profissões em todo território nacional, plena liberdade de culto e
associação, a instituição do casamento civil, dos cemitérios civis, livre circulação por todo
território nacional, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, sem, contudo, a permissão
do anonimato, abolição do Estado das loterias, ensino leigo e gratuito, etc.
Os positivistas brasileiros sempre ocuparam posição de destaque na cena política do
país, o Apostolado não era apenas uma instituição religiosa, era também, a partir de seus
principais chefes, o centro de propaganda positivista e de intervenção na vida pública do país.
Com o advento do novo regime, este também teve que lidar e considerar as opiniões dos
apóstolos. O episódio da adoção da bandeira nacional, elaborada pelos positivistas, é um dos
exemplos de interferência positivista no governo.
Se, contudo, não foram os positivistas que se colocaram à frente do poder a partir de
1889, fora o positivismo e sua contribuição para a constituição de uma nova linguagem
republicana que possibilitou a formação de boa parte dos argumentos utilizados por todos os
grupos contestadores para a derrubada da monarquia no Brasil. Desse modo, segundo Sérgio
Buarque de Holanda: “Quase se pode dizer que, em vez de darem ao positivismo sua adesão,
era, ao contrário, o positivismo, que vinha aderir a eles, convertendo-se afinal, para os
grandes projetos que os moviam, na mais prestativa das filosofias”.122
A doutrina positivista teve ampla aceitação no Brasil, 123 constituiu assim modos de
pensar e visões de mundo, mas, certamente, sua melhor contribuição fora mesmo fornecer
argumentos para a intervenção na cena política. A necessidade de mudanças se apresentava
como a ordem do dia e o positivismo veio garantir a contribuição à construção de uma
linguagem eficaz na deslegitimação do status quo imperial e na justificação de novas práticas,
valores e instituições que atendessem as demandas surgidas com os novos tempos. Não houve
no Brasil mera filiação doutrinária ao positivismo, houve uma escolha e leituras singulares da
obra, por parte dos contestadores da ordem vigente que adaptaram a filosofia comteana à
realidade do país que queriam mudar. Assim, deve-se entender a adoção do discurso
positivista como uma apropriação para uso político, como arma na disputa pela implantação
das mudanças que atenderiam aos grupos contestadores. Garantindo-lhes a posição de nova
elite no poder do país. Afinal, a grande ambição dos grupos que criaram a nova linguagem
122
Ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit., p. 305.
123
Sobre a apropriação do Positivismo, de forma distinta, pelas províncias do país ver LINS, Ivan. História do
Positivismo no Brasil. São Paulo: Brasiliana/ Editora Nacional, 1967.
60
republicana fora a inserção nos círculos do poder, dos quais não tinham acesso no Império.
Não por acaso, criaram uma linguagem política contrária a tudo que os antecedia, ou seja, a
todas as bases e justificativas utilizadas pela monarquia para sua manutenção do poder. Desse
modo, o espelho se invertia, tudo quanto era utilizado de justificativa pelo Império, a partir de
seu questionamento, fora lido como empecilho ao avanço do país em sua “marcha histórica”
pelos grupos contestadores. A disputa política criou uma nova linguagem combativa que
deslegitimou a anterior e, assim, processou a criação de duas imagens opostas, as da
monarquia, “decadente”, e da república do “progresso”.
O positivismo foi uma das grandes chaves interpretativas utilizada pelos contestadores
na feitura de outro vocabulário que pregava a substituição do regime. Do pensamento
positivista se fez amplo uso, tanto por positivistas convictos, quanto por políticos de outras
correntes republicanas que buscavam na doutrina de Augusto Comte rico arsenal para
contradizer os pilares de sustentação da Monarquia. De acordo com a grande importância que
adquiriu no cenário nacional do período é que se optou por apresentar e debater sua filosofia e
atuação dentro do contexto histórico de troca de regimes.
a solução liberal ortodoxa não era atraente, pois não controlavam recursos de poder
econômico e social capazes de colocá-las em vantagem num sistema de competição
livre. Eram mais atraídos pelos apelos abstratos em favor da liberdade, da igualdade,
da participação, embora nem sempre fosse claro de que maneira tais apelos
poderiam ser operacionalizados. A própria dificuldade de visualizar sua
operacionalização fazia com que se ficasse no nível das abstrações. A ideia de povo
era abstrata. Muitas das referências eram quase simbólicas. Os radicais da República
falavam em revolução (queriam mesmo que esta viesse no centenário da grande
Revolução de 1789), falavam do povo nas ruas, pediam a morte do príncipe-consorte
da herdeira do trono (era um nobre francês!), cantavam a Marselhesa pelas ruas.
Mas, caso tivesse sido tentada qualquer revolução do tipo pretendido, o povo que em
Paris saiu às ruas para tomar a Bastilha e guilhotinar reis não teria aparecido. As
simpatias das classes perigosas do Rio de Janeiro estavam mais voltadas à
61
Assim, a corrente de viés jacobinista tinha como discurso político a seguinte proposta
de “república ideal”: queriam uma república popular e centralista. Ligava-se a uma visão mais
rousseauniana do pacto social, pois tinha como exemplo a Revolução Francesa,
acontecimento que fornecia o arsenal simbólico necessário para que o seu modelo de
república jacobina participasse da batalha pelo estabelecimento do novo regime. 125 Defendia o
fim da monarquia que julgava ser um regime político atrasado, corrupto e que concedia
privilégios a poucos. Porém, vale ressaltar que, de forma alguma, mostravam-se contrários ao
Estado, visto que era através deste que seus adeptos acreditavam ser possível a manutenção do
bem comum.
Era assim que, buscando inspiração no episódio singular de 1789, bem como na
democracia clássica, construíram um discurso político a favor do estabelecimento de um
governo com participação direta dos cidadãos, ou seja, popular. Governo no qual a liberdade
seria concebida à maneira dos antigos cidadãos da res publica, pois tinham como fim último o
estabelecimento do bem comum, o que permitia o surgimento e a atuação do homem público.
Fato esse que gerava as condições necessárias para o envolvimento popular na vida política, já
que a república se caracterizaria pelo governo da opinião pública.
A corrente republicana jacobina era formada por setores urbanos, como, por exemplo,
pequenos proprietários, profissionais liberais, professores, estudantes e jornalistas que se
encontravam extremamente insatisfeitos com a Monarquia.
Na busca pela criação de um clima propício à implantação da república de forma rápida,
foram adotadas ações de terror. Assim, agitavam as ruas, quebravam jornais, agrediam
portugueses, perseguiam monarquistas, envolviam-se em conspirações, golpes e ainda matavam
inimigos, promovendo um clima de tensão, agravando o mal-estar em relação à Monarquia.
124
Ver CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit., p. 26.
125
Desse modo, o modelo republicano francês propiciou com que a Marselhesa fosse cantada pelos jacobinos
brasileiros em suas manifestações, sendo usada com o intuito de auxiliar no convencimento da causa
revolucionária, além também de suprir a falta de um hino próprio ao grupo político do Brasil. Como bem
notou Michel Vovelle, em relação à adoção da “canção revolucionária”: “elle a été adoptée, reconnue
pourait-on dire, à travers le monde, au point de devenir au XIX° siècle le support de tous les mouvements
révolutionnaires, libéraux et nationaux. La fortune de La Marseillaise en fait, on l'a souvent dit, un de ces
chants qui appartiennent à l'humanité”. A “canção revolucionária”, fora assim adotada para auxiliar na
construção discursiva do grupo jacobino quando da disputa pela implantação de seu ideal de república no
Brasil. Sobre a história dessa canção que virou hino francês ver VOVELLE, Michel. “La Marseillaise. La
guerre ou la paix”, In: NORA, Pierre (directeur). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, vol. I, 1984. p.
85-136.
62
126
Ver JARDIM, Antônio da Silva. Propaganda republicana (1888-1889). Rio de Janeiro, MEC – Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1978. (publicação póstuma)
127
Sobre a ideia de república a ser instaurada no Brasil ver Ibidem, p. 142-176 e 180-194.
63
retórica, como destacou Sérgio Adorno, “essa prática buscava envolver emotivamente os
receptores de mensagens – justamente os acadêmicos”.128 O domínio da retórica e a política,
entendida como prática, fizeram de Silva Jardim um dos grandes contestadores republicanos
do período. Foi também a Faculdade de Direito, com o acesso e compartilhamento de ideias
que formou grande parte dos opositores da Monarquia, pois dividiram o mesmo ambiente
estudantil, uma visão de mundo semelhante e estabeleceram laços, como ocorreu, por
exemplo, entre Silva Jardim, Júlio Castilhos, Assis Brasil e outros republicanos que por lá
passaram.129
Sendo assim, dedicou-se inicialmente à crítica literária, ganhando visibilidade, tanto
acadêmica, quanto no jornalismo de São Paulo. Depois, fora professor e também advogado,
mas, certamente a maior ocupação de Silva Jardim foi a propaganda revolucionária pelas
províncias do país. Desde os tempos de estudante defendia o regime republicano e tinha em
Tiradentes um exemplo de luta pela liberdade. Admiração que rendeu textos sobre o mineiro.
A maioria dos escritos de Silva Jardim foram feitos para disseminar a propaganda
republicana, convencer as massas para a via revolucionária de implantação do novo regime e
atacar, de forma violenta, a monarquia, bem como os Bragança.
Casou-se com Ana Margarida Bueno de Andrada, filha do Conselheiro Martim
Francisco, importante político imperial, com quem teve quatro herdeiros. A partir dessa união
passou a desfrutar de confortável situação. A pedido da família,130 ingressou na Escola Normal
como professor interino da cadeira de Português, além do magistério, atuou como jornalista e
advogado. Chegou a dividir escritório com seu cunhado Martim Francisco Júnior,
abandonando o magistério para dedicar-se à advocacia. Assim, ingressou no magistério,
escreveu em jornais, advogou, antes mesmo de aderir integralmente às atividades políticas
ligadas à causa republicana jacobina (1888).
Em 1881 adotou o Positivismo, o que fez com que abandonasse as atividades
revolucionárias de caráter mais prático. Entretanto, romperia com a ortodoxia positivista
tempos mais tarde, voltando à ação política. Filiou-se ao Clube Republicano em 1887 e a
partir de então passou a pronunciar conferências sobre temas diversos como, por exemplo,
Tiradentes, tomada da Bastilha, república e combate à monarquia e aos Bragança.
128
Sobre o estudo que trata a Faculdade de Direito como também um espaço de aprendizado para a carreira
política, ver ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 170.
129
Sobre o ambiente acadêmico e os encontros entre os futuros republicanos formados na Faculdade de Direito
de São Paulo ver também PRADO, Édina Ferreira. Silva Jardim, o Pedro eremita da República.
Dissertação de Mestrado (PPGH-UERJ), 2002.
130
Como destaca Édina Prado: “As nomeações de professores serviam de moeda política”. Ver PRADO, Édina
Ferreira. Op. Cit., p. 18.
64
De fato, Senhores, a evolução das sociedades humanas, não é o que espíritos sem
patriotismo, ou pouco inteligentes e pouco profundos, inspirados por um egoísmo
cômodo, falsamente em nome da ciência social, têm querido fazer compreender à
massa dos cidadãos que abraça a doutrina republicana, de fé, de desejo de
regeneração; não é uma fatalidade independente em absolutoda ação do homem,
como por exemplo aquela pela qual um corpo lançado no espaço irrevogavelmente
cai para a terra; é certo que tudo está sujeito a leis, e que, objeto da evolução
humana, somos a elas sujeitos, do mesmo modo que a Humanidade; é certo que o
homem se agita e essa grande existência o guia; - mas não é menos certo que para
completar as leis são necessárias vontades, de sorte que o homem é também um
agente da evolução social, o qual pode por sua ação acelerar-lhe ou retardar-lhe a
marcha, e cujo concurso direto, é, pois, necessário para toda a transformação,
mormente para a transformação política, prática, das instituições, e dos atos.
Nem mesmo a evolução humana no seu apogeu de aperfeiçoamento poderá excluir a
Revolução.133
No entanto, mesmo sem contar com muitos aliados à causa que defendia Silva Jardim
não se mostrou enfraquecido, pelo contrário, suas conferências percorreram grande parte das
províncias do país. Segundo Maurício Vinhas de Queiroz, por onde Silva Jardim discursava,
recebia aplausos e adesões, visto suas qualidades de orador, a construção de sua fala partindo
sempre da realidade local, ou seja, dos problemas específicos de cada lugar para a política
nacional, estudando o perfil da plateia e suas aspirações, para assim criar argumentos
suficientemente fortes para mobilizar a ação revolucionária. Atribuía, por exemplo, o atraso e
os problemas sociais à monarquia corrupta dos Bragança. Muitos dos discursos eram
violentos ataques de Silva Jardim, que mencionava a impossibilidade de continuar a governar
D. Pedro II, devido à saúde debilitada. Também criticava a Princesa Isabel por ser seu
“fanatismo uma cegueira, uma superexcitação das crenças, supõe uma certa elevação, uma
certa energia de que julgo fraco e incapaz o sangue da Condessa d'Eu” 135e se mostrava
133
Ver JARDIM, Silva. “Salvação da Pátria”. In: Ver JARDIM, Antônio da Silva. Op. Cit., p. 135.
134
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Op. Cit., p. 23.
135
Ver JARDIM, Antônio da Silva. Propaganda republicana (1888-1889). Rio de Janeiro, MEC – Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1978. p. 59.
66
Fonte: Revista Illustrada (RJ), capa em 22 de junho de 1889, hemeroteca digital - acervo
Biblioteca Nacional.
Em seu discurso intitulado A Pátria em Perigo,137 Silva Jardim faz uma longa
exposição dos perigos da monarquia no Brasil e de seu prolongamento em um Terceiro
Reinado, liderado por um Conde estrangeiro e ambicioso. Dessa maneira, Silva Jardim
argumentava que:
136
Ver DEBES, Célio. Op. Cit., p. 60-65.
137
Ver JARDIM, Antônio da Silva. Op. Cit., p. 49.
67
O tom inflamado dos discursos de Silva Jardim contribuiu para aprofundar o quadro
de insatisfação monárquica e disseminar a ideia da necessidade de instauração de uma
república revolucionária em oposição à monarquia decadente.
Entretanto, seus discursos não eram feitos de forma tranquila, muitos incidentes
envolveram Silva Jardim. Talvez, um dos episódios mais violentos e significativos tenha
ocorrido na Sociedade Francesa de Ginástica, em 30 de dezembro de 1888, quando Silva
Jardim proferia seu discurso até ser atacado pela Guarda Negra, libertos que defendiam a
monarquia, sobretudo, a figura da Princesa Isabel.
O ataque promovido pela Guarda Negra fez com que escrevesse alguns dias depois do
atentado, em 06 de janeiro de 1889, a Carta Política ao País e ao Partido Republicano,
documento no qual identifica o ataque como sendo manipulado por aqueles que querem ir de
encontro às ideias republicanas. Assim, afirma que a “exploração do negro não cessou, eis a
verdade, e quem agora a faz é o ministério, é a Princesa Imperial, é o seu funesto marido e a
dinastia”.139 Também ataca a figura do “líder” da Guarda Negra, José do Patrocínio, sem,
contudo, citar seu nome:
Este homem, de cor, mas até então tolerado por todos os brancos, que jamais lhe
haviam feito questão de raça, muito amado mesmo pela mocidade e pelo público
generoso, em vista de uma suposta dedicação à causa dos escravos, - converteu-se
em órgão da dinastia, principalmente da Princesa D. Isabel, e do ministério, que
apenas presidira ao ato parlamentar da abolição; - e daí começou de sustentá-los,
traidor então à sua raça, que por proletária no Brasil carece claramente, para o seu
desenvolvimento, de um regime republicano, traidor ao partido a que dissera
pertencer, não como renegado confesso, mas como Judas consciente140
138
Ibidem, p. 49-50.
139
Ver JARDIM, Antônio da Silva. Op. Cit., p. 318.
140
Ibidem, p. 312.
68
Desse modo, dava uma resposta ao ataque sofrido, aumentando mais a tensão entre
republicanos e monarquistas, tornava-se um líder que inflamava as multidões para a via
revolucionária. A corrente republicana jacobina tem em Silva Jardim seu principal expoente, por
isso optou-se analisar as estratégias de ação adotadas pelo propagandista na tentativa de
implantação da república popular. Embora sua entrada na cena política tenha ocorrido somente
em 1888, quando comparada às trajetórias dos demais representantes das correntes
republicanas, sua atuação foi nesse pequeno espaço de tempo grandiosa. Mas, assim como os
demais grupos republicanos contestadores distribuídos pelas correntes, seu objetivo primeiro era
ocupar a vanguarda de um movimento político capaz de liderar as massas à proclamação da
república. Também compartilhava o desejo de inserção no campo político como nova elite à
frente do poder no país, ou melhor, como se denominava, queria ser a “vanguarda” desse
movimento revolucionário-popular-republicano. Por isso, também leu a seu modo o
positivismo, não aderindo de forma ortodoxa ao mesmo, utilizou-o apenas para, assim como os
demais grupos, intervir politicamente na tentativa de promover as mudanças que julgava serem
primordiais. Também fez uso da Revolução Francesa na sua fase mais radical para utilizá-la
como exemplo, a partir de uma perspectiva comparada, para agir e liderar as massas no Brasil.
Contudo, quando finalmente se instalou a república pela via militar, grupo que nunca
dedicou muita importância, e assumiram os principais cargos do novo regime os colegas do
Partido Republicano de perfil evolucionista e de orientação liberal, Silva Jardim resolveu sair
do país, ir à Europa e refletir sobre o que acontecera com a república idealizada por ele e que
não se concretizara. Foi então que, em 1891, acabou morrendo em um trágico acidente no
Vesúvio. Como concluiu Édina Prado em relação exílio voluntário de Silva Jardim:
desapontado com seus pares, vencedor vencido, como ele próprio se auto-
denominou, Silva Jardim deixou o cenário político e partiu para a Europa num exílio
voluntário. Porém, sua morte trágica acabaria por trazê-lo de volta à vida pública, ao
menos no plano simbólico. Tornou-se a figura emblemática, o jacobino à moda
brasileira, sempre lembrado nos momentos de efervescência política, tanto para
inspirar revoluções, quanto para coibi-las.141
O grupo republicano jacobino, cujo principal expoente era Silva Jardim, também
contribuiu para a construção da nova linguagem política republicana, afinal adotou parte da
doutrina positivista, fez uso de expressões e slogans do vocabulário positivo e, sobretudo,
interpretou a monarquia como um regime político atrasado e que deveria, por isso mesmo, ser
suplantado pela república popular e centralista. Colaborou também com a construção
discursiva que invertia a lógica política, pois atacava todas as bases de sustentação
141
Ver PRADO, Édina Ferreira. Op. Cit., p. 111.
69
monárquica. A defesa era pela república popular, contra o Império, que atrelado à Igreja,
hierarquizava a sociedade, era também pela ampla liberdade de opinião, culto, associação,
etc., invertendo assim a lógica social.
A nova narrativa republicana fez isso, ou seja, tudo quanto era pertencente ao status
quo imperial era deslegitimado, instaurando em seu lugar o oposto. Silva Jardim contribuiu
para essa nova construção, quando se colocou na cena política e viajou pelas províncias
propagando os ideais republicanos jacobinos. Certamente, um importante agente histórico do
grupo contestador no processo de deslegitimação da tradição imperial. Possuía a consciência
do poder de sedução pela palavra em uma sociedade de forte tradição oral e tinha a
“percepção do poder das imagens”142 construídas no discurso e nos meios existentes à época
para propagá-las o mais possível. Assim, era um ativo combatente da Monarquia, participava
constantemente de conferências, meetings, escrevia nos mais variados jornais, visto ser o
jornalismo um dos principais meios de ação, e mantinha diálogo frequente com os outros
contestadores da tradição imperial. Contudo, não conseguiu garantir o lugar na “vanguarda”
do campo político do país, seu principal objetivo.
Assim, pode-se afirmar que o desejo por poder fora o motor da disputa política dos
grupos republicanos e as propostas de reforma as justificativas para alcançá-lo. Após a
abordagem feita dos positivistas e jacobinos, neste capítulo, o próximo buscará centrar o
estudo no objeto principal da tese: os republicanos liberais. Até o presente momento se
interpretou o contexto histórico que propiciou a criação, por parte dos contestadores, das
críticas necessárias para instaurar um ambiente hostil à permanência da monarquia no Brasil
dando início a disputa política pelos postos de mando do país. Desse modo, escolheu-se
estudar as estratégias de ação dos grupos para se inserirem no campo político através dos
textos de seus principais propagandistas e teóricos republicanos, distribuídos por entre as
correntes: positivista, jacobina e liberal, justamente porque permitiram a constatação de uma
nova linguagem política emergente que foi eficaz na deslegitimação do inimigo
compartilhado: a monarquia brasileira.
O interessante é perceber que embora as estratégias discursivas adotadas por cada
corrente possuíssem peculiaridades, a união consciente de todas no combate à Monarquia foi
eficaz à queda do regime. Fora a elaboração de uma crítica coletiva para intervir no debate
político de contestação do Brasil imperial que garantiu a implantação da república no país.
Entretanto, instalado o novo regime, a disputa política passou a ser de outra ordem,
pois com a queda da Monarquia, as correntes republicanas passaram a travar entre si novas
142
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit., p. 53.
70
disputas para assumirem a frente do campo político. A partir desse momento, a corrente
vitoriosa republicana-liberal será abordada, não apenas em relação aos positivistas e
jacobinos, mas, principalmente, para demonstrar sua atuação como a mais eficaz, unida e
adequada ao cenário nacional. Não por acaso, venceu a disputa pelo protagonismo na
condução do destino político do Brasil.
71
Logo após a breve estada no curso preparatório, afora as leituras por conta própria,
Alberto Sales, em 1875, consegue admissão no exame e vai matricular-se no Rensselaer
Polytechnic Institute, de Troy, Nova York, Estados Unidos.
Esse instituto tinha como princípio, logo do ano de sua fundação, 1824, ir de encontro
à formação tradicional adotada pela maioria das universidades de seu tempo, o que quer dizer
que não se coadunava à perspectiva de ensino pautada nas humanidades e nos estudos
clássicos. Assim, as disciplinas selecionadas para compor o currículo do instituto eram
aquelas ligadas às ciências técnicas e práticas. Embora a composição curricular do instituto
em Troy tivesse sofrido alterações até o ano de ingresso de Alberto Sales, 1875, todas essas
143
Ver RIBEIRO JÚNIOR, João. Alberto Salles: trajetória intelectual e pensamento político. São Paulo:
Editora Convívio, 1983. p. 19.
144
Ver VITA, Luís Washington. Alberto Sales, Ideólogo da República. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965.
p. 24.
73
modificações não mexiam na base central da formação de seus alunos, permanecendo assim a
opção pela ciência tecnológica ou aplicada. Já em relação à postura filosófica do corpo
docente do instituto, Luís W. Vita afirma que “a posição filosófica deles nunca foi bem
articulada. Implicitamente, porém, é provável que a maioria deles seguia a corrente
utilitariana e, talvez, positivista”.145 De acordo com Luís W. Vita, se a formação estudantil se
dava pela escolha das ciências tecnológicas em relação à tradicional formação humanista da
época, é provável a interpretação de que a filosofia comteana exercesse grande influência nos
professores do instituto.146 Afinal, o positivismo se articularia perfeitamente com o tipo de
ensino mais tecnológico e prático do período, visto que a corrente filosófica proveniente do
pensamento de Augusto Comte privilegiava a experiência, a observação da realidade de
maneira prática, posicionando-se contrária a todo conhecimento de viés metafísico, com suas
entidades e seus elementos transcendentes. Essa breve apresentação da trajetória estudantil de
Alberto Sales nos permite entender como se deu a constituição do pensador que anos mais
tarde fará uso dessa formação na elaboração de seu ideal de república liberal para o Brasil.
Fonte: https://www.al.sp.gov.br/acervohistorico/exposicoes/parlamentarespaulistas/egas/elite.htm
145
Ibidem, p. 25.
146
Como destacou Luís W. Vita, é provável que o instituto de Troy também fosse conhecedor da doutrina
comteana, haja vista que a bibliografia sobre a história e o centenário do referido Instituto Politécnico
aponta para o diálogo com outros centros de ensino e institutos europeus do período, dentre eles os
franceses. Nas publicações de seu centenário (1824-1924) há menção a outros institutos internacionais, bem
como a seus diretores. Sobre o Instituto Politécnico em Troy ver RICKETTS, Palmer C. The centennial
celebration of Rensselaer Polytechnic Institute. New York: Published by board of trustees, 1925. Ver
também RICKETTS, Palmer C. History of Rensselaer Polytechnic Institute (1824-1934). New York:
Braunworth & co, inc. 1935. E ainda, ver BAKER, Ray Palmer. A chapter in american education:
Rensselaer Polytechnic Institute (1824-1924). New York: Charles Scribner’s son, 1924.
74
147
Como destacou Sérgio Adorno “a imprensa acadêmica constituiu-se numa espécie de ante-sala de
profissionalização da atividade política. Responsável pela formação publicista do recém-egresso da vida
acadêmica, ela configurou-se locus privilegiado da deflagração de campanhas e de movimentos sociais,
políticos, artísticos e culturais. Antes de tudo, essa imprensa ensinou ao acadêmico como tomar partido,
lutar e apaixonar-se por uma causa, adquirir responsabilidade moral por atos praticados; enfim, esse
jornalismo ensinou algo além do aprendizado de sala de aula: o princípio de que a política se faz em
público e com a utilização desses dois instrumentos que são a palavra escrita e a falada”. Ver ADORNO,
Sérgio. Op. Cit., p. 165.
148
Ver VITA, Luís Washington. Op. Cit., p. 114.
149
Ibidem, p. 26.
75
Em duas partes: uma teórica e outra prática. A primeira estuda as leis gerais que
presidem a organização do Estado ou que regulam a marcha natural e sucessiva dos
acontecimentos políticos; a segunda, ao contrário, ocupa-se tão-sòmente com a
aplicação justa e oportuna dessas mesmas leis ao govêrno das sociedades. A primeira
também se denomina política abstrata e a segunda, política concreta. 152
Mas, obviamente, não eram quaisquer teorias que fazia uso, a escolha estava longe de
ser aleatória. Ao contrário disso, aquelas que permitiam a construção discursiva para gerar a
ação desejada é que eram adotadas. Apenas como forma de demonstrar que a escolha dos
teóricos feita pelos republicanos liberais para se instrumentalizarem era consciente, na busca
de quem liam e então se utilizavam, é que se tem, por exemplo, a não adoção dos escritos de
Karl Marx. O socialismo não fora utilizado pelos contestadores, pois tinham consciência que a
referida teoria não faria sentido no Brasil oitocentista. Algo que Sílvio Romero apontou em
150
Ibidem, p. 25.
151
Ver SALLES, João Alberto. Sciencia política. São Paulo: Teixeira & Irmão, 1891. Edição fac-similar:
Brasília: Senado Federal, 1997. p. 04.
152
Ver SALLES, Alberto. “Catechismo republicano”. In: VITA, Luís W. Alberto Sales, ideólogo da República.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 173.
76
sua obra Doutrina contra doutrina.153 Neste texto, afirma-se a incoerência ao se adotar os
escritos de Karl Marx para o Brasil da segunda metade do XIX, pois seria inviável propor um
sistema socialista ao país que, segundo o próprio autor, ainda possuía estruturas incipientes
para sua instalação. De modo que “esse é o problema do nosso futuro. No presente,
affirmamol-o convictamente, em zona alguma do paiz existem ainda as condições que fazem
brotar o socialismo em suas diversas manifestações”.154
O que significa dizer que embora conhecessem as principais doutrinas da época, os
contestadores do período selecionavam os teóricos que se adequavam aos seus interesses. Não
seria diferente em relação ao trio dos republicanos liberais. Tanto Alberto Sales, quanto
Quintino Bocaiúva e Assis Brasil fizeram uso dos mesmos teóricos da reforma social, contudo
esses teóricos foram escolhidos para possibilitar a criação de um discurso combativo em
relação à monarquia que passou a ser lida como forma de regime decadente, atrasado,
corrupto e de concessão de privilégios, ou seja, inadequada ao mundo moderno. Assim,
entende-se a adoção feita pelo repertório da política científica, que serviu de arma teórica para
justificar a oposição ao Império e instaurar uma outra realidade política para o país. As
inúmeras citações e menções feitas a Spencer, Darwin, Haeckel e Comte, por exemplo, eram
recorrentes nas obras do trio republicano, tanto de forma direta, quanto indireta. Os
empréstimos feitos do vocabulário da política científica eram constitutivos do discurso
contestador, por isso a grande repetição de expressões como “evolução”, “leis científicas”,
“ciência política”, “ordem e progresso”, “passagem do homogêneo para o heterogêneo”,
“organismo social”, “anarquia mental”, “marcha geral da civilização”, “estados da
humanidade”, “evolução mental”, “regime científico de governo”, entre outras tantas.
Em uma das principais obras de Alberto Sales já se tem, na parte inicial de seu texto,
destinada às “Observações Preliminares”, longas citações de Augusto Comte, bem como há
menção a Pierre Laffite e Émile Littré. Os representantes máximos do positivismo estão
presentes inúmeras vezes na escrita e perpassam toda a obra. Alberto Sales os utiliza como
argumentos de autoridade em seu texto, haja vista a adoção por parte dos republicanos liberais
de um ecletismo filosófico que permitia mesclar e adaptar as correntes de pensamentos
ligados à evolução e à ciência no século XIX, de modo a buscar o convencimento de seus
leitores à causa que defendiam. Por isso, durante sua abordagem sobre a diferença entre os
termos desejo e opinião, Alberto Sales faz uso de Augusto Comte para reafirmar a necessidade
153
Ver ROMERO, Sílvio. Doutrina contra doutrina. O evolucionismo e o positivismo na Republica do Brasil.
Rio de Janeiro: Editor - J.B. Nunes, 1894.
154
Ibidem, p. 36.
77
de promover meios teóricos para que a política seja lida como uma “sciencia positiva”, o que
quer dizer, nos moldes pregados pela filosofia positivista para se alcançar determinado fim.
Assim, Alberto Sales cita longamente o teórico do positivismo:
155
Ver SALLES, João Alberto. Sciencia política. São Paulo: Teixeira & Irmão, 1891. Edição fac-similar:
Brasília: Senado Federal, 1997. pp. 15-16.
156
Ibidem, p. 287.
78
promovia uma “involução”, ou seja, não se permitia o progresso social. Sociedade esta na
qual ele próprio, juntamente com grupo dos republicanos que representava, buscavam maior
protagonismo, haja vista a insatisfação ao não estarem à frente dos postos de mando político
do país. Para ir de encontro à condição política elaborou um ato de fala contestador e usou o
positivismo de Augusto Comte, bem como o evolucionismo social de Herbert Spencer, entre
outros autores da reforma social, de forma a construir um ambiente entendido como de “crise
monárquica” que deveria desencadear na república do progresso do qual seria um dos que
estaria à frente. Alberto Sales na busca de soluções para o seu presente constrói uma
interpretação que garanta resoluções para as tensões de sua época, interferindo na realidade e
a modificando pela via da palavra. Entendendo que as palavras são atos, agiu e elaborou
textos de forma a caracterizar a política como uma ciência que, submetida às leis, caminharia
invariavelmente à direção do progresso, para assim garantir que uma nova realidade se
instaurasse no país: a república liberal.
Para isso, a política apresentada como uma ciência deveria buscar as leis fundamentais
que regem o “organismo social”. A ideia de organismo social obtida do evolucionismo de
Herbert Spencer e adotada por Alberto Sales estabelece uma comparação do corpo nacional
integrado ao Estado com o organismo:
Ao adotar a visão própria das teorias científicas do Oitocentos, Alberto Sales afirmou
ser através da observação atenta dos fatos sociais, pensados de forma análoga aos fenômenos
animais, que se descobririam as leis que regem a evolução social, cabendo ao Estado,
157
Ver RIBEIRO JÚNIOR, João. Op. Cit., p. 135.
158
Ver SALLES, Alberto. Política republicana. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger & Filhos, 1882, 2v. p. 21
79
entendido como qualquer outro organismo, atentar-se para sua lei evolutiva e, então, efetuar
medidas para atingir o progresso, livrando-se de estruturas arcaicas.
Assim, a linguagem da política científica era empregada nos discursos e se atrelava,
por exemplo, às novas descobertas da sociologia, ciência que à época oferecia argumentos à
orientação política. A adaptação da “lei da evolução” à realidade brasileira permitiu a criação
de uma nova visão de mundo, cujo Brasil estava submetido aos “estágios civilizatórios” pelos
quais a modernidade caminhava. Eram “três fases perfeitamente distintas; a principio, ela era
instintiva, depois incompleta e finalmente reflexa”. 159 Desse modo, a ideia de “marcha do
progresso” demonstrava ser uma interpretação indispensável às mudanças nas esferas política,
econômica e cultural, pois “as sociedades, em vez de serem estacionárias, ao contrário,
progridem constantemente, não só em relação ao seu comércio e à indústria, como também
nas artes, na ciência, na religião e no govêrno”.160 Sendo assim, dever-se-ia propiciar as
transformações oportunas para permitir ao país seu desvelar no mundo moderno. Para isso,
Alberto Sales apontava à necessidade de observação dos fatos sociais, para que através da
experiência, fosse possível a aplicação de um método científico capaz de fornecer
conhecimento prático e, então, estabelecer as “leis infalíveis” que regem tanto a evolução dos
organismos animais quanto dos sociais. Estabelecia-se a necessidade de observação da
realidade pela experiência, sendo esta o único meio de conhecimento possível. Segundo
ressalta Luís W. Vita
159
Alberto Salles define as “três fases evolutivas do Estado” ligado ao “organismo social” a partir de uma
clara adaptação do positivismo e evolucionismo, segundo ele: “Na sua primeira fase o poder governamental
aparece como fôrça estranha e sobrenatural, que vai buscar a sua origem em um outro poder superior e
divino e que é apenas sentida instintivamente. Na segunda, aparece como uma fôrça natural, que tem a sua
origem na própria sociedade, mas que se torna o património de certos indivíduos ou de certas classes
privilegiadas. Na terceira, finalmente, aparece como uma fôrça eminentemente social, que tira a sua origem
da soberania nacional e que se constitui em uma função limitada dessa mesma soberania. É o próprio
Estado que, na qualidade de instituição política, de sobrenatural que era, passa a adquirir uma natureza
positivamente social, à medida que a evolução humana caminha e que a interpretação dos fenômenos em
geral se torna mais científica e positiva”. Ver SALLES, Alberto. “Catechismo republicano”. In: VITA, Luís
W. Alberto Sales, ideólogo da República. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 176.
160
Ibidem. p. 173-74.
161
Ver VITA, Luís Washington. Op. Cit., p. 52.
80
De forma semelhante, Alberto Sales rejeita origens e fins, tendo como preocupação o
meio pelo qual toda e qualquer experiência ocorre. Da observação dos fatos no momento em
que se dão ao estabelecimento das leis de caráter cientificista é que se permite o desvelar do
progresso e com ele a orientação à ação política devido ao caráter de previsibilidade, ao se
identificar na linha ascendente do progresso em que estágio civilizacional se está. Por isso,
Alberto Sales destaca que:
O processo rigoroso da filiação veio mostrar a mutua dependencia que existe entre
as instituições sociaes, bem como a necessidade de attender-se cuidadosamente á
serie dos antecedentes, na determinação de um phenomeno politico qualquer. O
imprevisto, o acaso e o destino, foram completamente banidos do domínio da
historia e em seu logar foi reconhecida a existência de leis immutaveis e
permanentes, como formulas invariáveis das relações constantes dos phenomenos. A
previsão scientifica, em relação ás reformas politicas e sociaes, tornou-se possível
pela observação exacta do passado e das condições peculiares do presente. 162
Seria então através da observação dos fatos sociais, interpretados de forma análoga aos
fenômenos animais, que se reconheceriam as leis que regem a evolução social, cabendo ao
Estado, entendido como qualquer outro organismo vivo, atentar-se para sua lei evolutiva e
executar ações para permitir o desvelar do progresso. É na ideia do progresso aplicada ao
Estado que se identifica a utilização tanto da teoria de Augusto Comte, quanto a de Herbert
Spencer, visto que a lei evolutiva permitia a passagem aos três estados comteanos. Assim,
segundo Alberto Sales, o Estado em relação à sociedade que o criou deve “regular o seu
desenvolvimento, conservar a ordem e favorecer o progresso”, 163 ou seja, não deve ser um
empecilho ao progresso, ao contrário, ordem e progresso caminhariam unidos sem prejuízos
e/ou interferências. A ordem devia ser alcançada pelo pleno desenvolvimento de suas funções,
sem abuso de poder, regulando para que o equilíbrio e a harmonia social fossem mantidas, já
que
sua função deve consistir tão sòmente em aplicar e desenvolver o princípio jurídico
em toda a sua intensidade e deixar que o comércio, a indústria, as artes, a ciência e
a religião sigam o seu curso natural e espontâneo, sem peias nem tropeços, contanto
que a harmonia social não se perturbe e a atividade de cada um seja inteiramente
livre em suas múltiplas e variadas aplicações.164
162
Ver SALLES, Alberto. Op. Cit., p. 21.
163
Ibidem, p. 147.
164
Ver SALLES, Alberto. “Catechismo republicano”. In: VITA, Luís W. Alberto Sales, ideólogo da República.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, p. 178.
81
progresso no qual o Estado tem por dever facilitar, destaca-se também na passagem
supracitada a defesa do liberalismo, haja vista que o Estado possui apenas a função de
respeitar os princípios jurídicos e não cometer abuso de poder ao interferir em áreas que
devem por excelência gozar de liberdade de ação. Desse modo, o liberalismo adotado por
Alberto Sales entende o conceito e a função do Estado como sendo
uma instituição social e política, cuja missão consiste tão somente em fornecer às
diversas esferas da atividade social as condições ou meios que necessitam para
atingir a plenitude de seu desenvolvimento, e mantê-las ao mesmo tempo na órbita
legítima do Direito, a fim de que uma não venha a quebrar a harmonia e
independência das outras, nem perturbar o curso natural da evolução humana.165
Já em relação ao progresso, como fora mencionado anteriormente, esse era obtido pela
observação dos fatos sociais que apontavam, a partir da lei evolutiva do Estado, quais dos
estados deviam ser suplantados para se caminhar na direção do “estado positivo”, pois “é o
próprio Estado que, na qualidade de instituição política, de sobrenatural que era, passa a
adquirir uma natureza positivamente social, à medida que a evolução humana caminha e que a
interpretação dos fenômenos em geral se torna mais científica e positiva”.166
Desse modo, o Estado evoluiria gradualmente a partir da lei dos três estados
comteanos, como destaca Alberto Sales:
Todos sabem que foi Augusto Comte, o mais original e o mais robusto pensador
d’este seculo. A sua famosa lei dos tres estados é assim formulada por elle proprio: -
“Esta lei consiste em que cada uma das nossas concepções principaes, cada ramo
dos nossos conhecimentos, passa successivamente por tres estados theoricos
differentes: o estado theologico ou fictício; o estado metaphisico ou abstracto e o
estado scientifico ou positivo”. A esta lei obedece o desenvolvimento total da
intelligencia humana, por uma necessidade invariável, em suas diversas espheras de
actividade, como elle mesmo faz notar. No estado theologico predominam as
concepções absolutas e ficticias sòbre a natureza intima dos seres e sobre as causas
primarias e finaes. É a epocha da critica. No estado positivo predominam as leis
naturaes. É a epocha da sciencia. Tanto a religião como a sciencia, na opinião de
Littré, tem por officio pòr a educação e, conseguintemente, a vida moral, em relação
com a concepção do mundo em cada uma das phases da humanidade. A religião,
como um producto dá cultura social que tem as raizes no pensamento e que é o
ponto de partida da evolução necessaria da intelligencia humana, obedece tambem a
um desenvolvimento regular que se manifesta por tres estados successivos:
fetichísmo, polytheismo e monotheísmo. Por outro lado a sciencia tem a sua evolução
perfeitamente determinada pela serie dogmatica constituida pela mathematica,
astronomia, physica, chimica, biologia e sociologia. Por esta lei se verifica, que
assim como o passado pertenceu e tem pertencido à religião, assim tambem o futuro
ha de inevitavelmente pretencer à sciencia. Isto quer dizer simplesmente que o
espirito humano liberta-se cada vez mais da religião, ao mesmo tempo que penetra
cada vez mais nos dominios da sciencia. 167
165
Ver RIBEIRO JÚNIOR, João. Op. Cit., p. 171.
166
Ver SALLES, Alberto. “Catechismo republicano”. Op. Cit., p. 176.
167
Ver SALLES, Alberto. Sciencia Política. Brasília: Senado Federal, 1997, p. 64-65.
82
O entendimento do mundo a partir da marcha civilizacional regida pela lei dos três
estados comteanos era aceita por Alberto Sales e passava a ser a maneira pela qual embasava
um de seus principais argumentos contra a permanência do império no Brasil. O estado
absolutista, lido como estrutura arcaica que se mantêm no tempo, de forma equivocada, até o
seu presente devia ser substituído pela república, para que a marcha do progresso pudesse
enfim se dar plenamente. Em texto intitulado “O Estado e a evolução social”, publicado no
jornal O Federalista, folha do Partido Republicano, em 05 de maio de 1880, Alberto Sales
destacava:
Um dos phenomenos que mais impressionam aquelles que se dão ao estudo da
marcha progressiva da humanidade atravez da historia é certamente o contraste
admiravel que ahi se observa entre as tendencias evolutivas das sociedades e o
espirito de conservação dos Estados. A evolução social não acompanha o Estado, e
nem o Estado acompanha a evolução social. São duas forças antagonicas, quando
deveriam ser pelo contrario perfeitamente harmonicos em seu modo de operar sobre
a marcha da civilização.168
que 'a existência de um código constitucional, tão completo quanto possível, é para
um povo uma condição de ordem e de liberdade, que nada pode atualmente
substituir'.170
A importância dada à Constituição é pautada não apenas por ser ela considerada uma
lei orgânica, garantidora das liberdades individuais e sociais contra os abusos por parte dos
governantes, mas também porque ela permite que se acompanhe a dinâmica social,
possibilitando o pleno desvelar da marcha da civilização, visto que Alberto Sales a entende
como mutável, ao destacar que “a sociedade nunca está estacionária, mas progride sempre e
cada vez mais rapidamente, é necessário que a Constituição se adapte às modificações
operadas nas condições do Estado social”.171
Outro ponto importante propagado por Alberto Sales diz respeito ao federalismo que
passou a ser amplamente defendido, tanto pelo próprio teórico, quanto por outros
propagandistas de seu grupo, sendo praticamente um consenso. Seria através do princípio
federativo aplicado às províncias que se garantiria a autonomia e a liberdade necessárias ao
desenvolvimento das partes no exercício de autogoverno. Embora a ideia de federalismo seja
anterior ao período estudado, essa ganha força e passa a ser apresentada através do tripé:
república-democracia-federalismo, como afirmou José Murilo de Carvalho.172
Desse modo, era através da adoção do federalismo, juntamente com a implantação da
república democrática, que se vinculavam as várias províncias à Federação, contudo sem
serem submetidas totalmente ao poder central, haja vista que o poder centralizador era
entendido como empecilho para uma administração eficaz, como destacou Alberto Sales em
sua obra Política republicana, de 1882: “a centralização politica e administrativa, que conduz
á apoplexia do centro e á paralysia das extremidades, só se explica hoje como uma verdadeira
aberração politica, que outra cousa não poderá produzir sinão o completo aniquilamento de
todas as forças vivas da nação”.173
O tripé existente república-democracia-federalismo também indica a não aceitação por
parte de Alberto Sales do positivismo de Augusto Comte pela via ortodoxa, não por apenas
recusar a religião da Humanidade proposta pelo pensador francês, mas também por não
aceitar um sistema de governo pautado em uma república de viés ditatorial como a
apresentada pelo positivismo. Para Alberto Sales, a república deveria ser democrática e a
170
Ibidem, p. 176-177.
171
Ver SALLES, Alberto. Política republicana. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger & Filhos, 1882, p. 182.
172
Sobre o debate dos três conceitos ver CARVALHO, José Murilo. “República, democracia e federalismo:
Brasil (1870-1891)”. In: CARVALHO, José Murilo de; [et. al.]. (Orgs.). Linguagens e fronteiras do poder.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
173
Ver SALLES, Alberto. Op. Cit., p. 145.
84
apresenta e defende de acordo com a proposta de república liberal pela via da participação
popular, ou seja, do exercício da soberania do povo que através do sistema representativo
garantiria a possibilidade de autogoverno. A adoção do “governo de si” existente nos escritos
de Alberto Sales é proveniente do diálogo com o publicista chileno J. V. Lastárria que
propagava a ideia de “república semecrática”:
Mas o sufrágio, para Alberto Salles, não é somente uma função pública, é
também um direito. É uma função, quando é considerado como uma simples
instituição, adaptada tão somente a um certo e determinado regime político; é
direito, quando considerado como uma condição indispensável ao exercício da
soberania. Tanto em um caso como em outro, porém, ele está diretamente
subordinado ao princípio da soberania popular, única base política do Estado.
Definindo a soberania como 'o direito que tem a sociedade de constituir e
organizar o Estado, para o fim de aplicar e desenvolver o princípio jurídico em toda
a sua intensidade', comenta Alberto Salles que ela só se manifesta por intermédio do
sufrágio. Assim, o voto aparece como uma condição indispensável para o seu
exercício, e, consequentemente, como um direito inalienável, imprescindível,
limitado pelo princípio da justiça às condições que constituem a vida e o
desenvolvimento da sociedade e de seus elementos, e igual e proporcional na
representação de todos os interesses coletivos da sociedade.176
Ainda sobre o diálogo de Alberto Sales com o publicista chileno, destaca João Ribeiro
Júnior: “Assim, acompanha Lastárria ao determinar os caracteres essenciais da constituição
do governo”.177 Esses caracteres eram uma república democrática e federalista, pois
declarando positivamente que uma das condições de uma boa organização do poder
político é a sua descentralização, 'único meio de respeitar a independência de todas
as atividades individuais e sociais, debaixo do regime do direito'.
Descentralizar é, pois, para Alberto Sales, determinar entre as diferentes
unidades sociais, de maneira que a intimidade entre as partes e a autoridade superior,
sem desaparecer, seja contudo de tal ordem que possa permitir a independência e
autonomia dos poderes locais.178
174
Ver LASTÁRRIA, J. V. Apud., VITA, Luís W. Op. Cit., p. 85.
175
Sobre aqueles considerados aptos para o exercício do voto, ver SALLES, Alberto. Op. Cit., p. 235-240.
176
Ver RIBEIRO JÚNIOR, João. Op. Cit., p. 193-194.
177
Ibidem, p. 184.
178
Idem.
85
A federação é uma lei política que só póde ser devidamente applicada por um
processo scientifico da organisação governamental á forma genuinamente
republicana da constituição definitiva do poder politico. Querer, porem, applical-a á
forma monarchica, é evidentemente disvirtual-a, pervertel-a, torcel-a, estragal-a: - é
tentar um absurdo, porque é tentar um impossível.
Si de facto comprehendem os liberaes paulistas o que seja a federação, si querem
com sinceridade servir-se dessa grande lei politica para a reorganisação completa e
radical do nosso systema de governo, sejam então coherentes com a sua própria
consciência, obedeçam cegamente aos dictames da sciencia e emprehendam com
coragem a verdadeira propaganda democratica – rasguem esse farrapo indecente de
federação monarchica e arvorem francamente a bandeira altamente significativa e
nobre da republica federal.179
179
Ver A Provincia de São Paulo (SP), 1885.
180
Ver SALES, João Alberto. A pátria paulista. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, p. 17.
86
tôda agregação social e política começa por uma desintegração, que é a fase
primitiva e inicial de todo o desenvolvimento dos agrupamentos humanos; é
evidente, portanto, que tôda federação começa por uma separação”. Quer dizer para
êle a separação é o caminho para a federação, a exemplo do que ocorre nos Estados
Unidos, ou seja, “a separação não exclui a federação, nem tampouco a integridade
territorial é indispensável para a aplicação do princípio federal, consagrado na
organização republicana.181
181
Ver VITA, Luís Washington. Op. Cit., p. 39.
182
Sobre o conceito de federalismo no Brasil Ver COSER, Ivo. “Federal/Federalismo” In: FERES JÚNIOR,
João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 91-118.
183
Ibidem, p. 40.
87
toda agregação social e política começa por uma desintegração, que é a fase
primitiva e inicial de todo o desenvolvimento dos agrupamentos humanos; é
evidente, portanto, que toda federação começa por uma separação. Pretender, como
querem muitos, que a federação é que deve ser o caminho para a separação, é
entender que a integração deve preceder a desintegração, é pretender um simples
absurdo. E admira mesmo como espíritos mais ou menos lúcidos tenham enunciado
semelhante conceito, que até o bom senso vulgar repele com força.184
Assim, Alberto Sales apresentava e propagava sua proposta republicana para o país.
Redigiu muitas vezes em seus escritos embasado em vários autores da política científica com
suas proposições de reforma social. Contudo, não se atrelou a nenhum deles, mas, ao
contrário, fez uso, consciente, de muitos de forma heterodoxa para que pudesse ser aplicado
às circunstâncias singulares do país. A escolha de Augusto Comte, Herbert Spencer, J. V.
Lastárria, Stuart Mill, Darwin e outros de maneira a elaborar um discurso político combativo
para deslegitimar as práticas, valores e instituições vigentes, possibilitava o ideal de república
liberal, permitindo que se gerasse um ambiente hostil à permanência do Brasil-Império. Não
por acaso, a monarquia cai por terra e a república é implantada sem grandes dificuldades em
1889.
As palavras foram assim utilizadas como arma contra a monarquia, que passou a ser
lida como decadente, frente ao futuro do progresso que, necessariamente, resultaria na
república-democrática-federalista, defendida em suas obras de propaganda, fossem elas mais
densas e longas na forma de livros a serem vendidos ou, muitas das vezes, distribuídos
gratuitamente, bem como em seus textos de jornais, haja vista que ficou à frente de muitos
periódicos,185 mas também através dos vários discursos proferidos nos Meetings e Clubes
Republicanos.
Algumas das indagações centrais que norteiam o estudo como, por exemplo, quais os
autores em voga no Oitocentos que foram, conscientemente, escolhidos para constituírem o
discurso combativo proferido por Alberto Sales contra às instituições vigentes, como esses
mesmos autores foram lidos pelo teórico e propagandista de São Paulo e para quê fim, são
questões que contribuem para que a interpretação histórica do período seja aquela de entender
Alberto Sales não como mero teórico, mas, sim, como agente de seu tempo, cuja intervenção,
pela via discursiva, buscava implantar uma nova realidade que lhe garantisse maior atuação
no campo político e, consequentemente, permitisse ao grupo do qual era expoente não apenas
uma maior visibilidade, mas, sim, a vitória na disputa pela organização política e social do
país.
184
Ver SALES, João Alberto. Op. Cit., p. 108.
185
Apenas para citar a participação de Alberto Sales em alguns jornais: A Provincia de São Paulo (SP), A
República (RJ), O Federalista (SP), Correio Paulistano (SP), A Federação (RS), entre outros.
88
Contestadores como Alberto Sales construíam seus textos com o “explícito intuito de
contradizer a narrativa oficial”.187 A escolha feita pelo vocabulário da política científica
servia-lhes de fonte para a criação de duas imagens mentais opostas entre monarquia e
república.
A monarquia brasileira passou a ser associada ao decadentismo, visto que estaria na
contramão da marcha geral da civilização, pois era um regime de governo com estruturas
artificiais que, apenas por equívoco, permanecera no tempo devido à herança colonial não
superada. Contudo, a modernidade trouxera consigo o progresso e para permitir o seu desvelar
era necessário banir as estruturas artificiais anacrônicas que impediam o seu fluir. A tradição
imperial, seus valores e práticas tinham que dar lugar à república, com suas novas práticas e
valores.188
186
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 240.
187
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit., p. 133.
188
A escolha interpretativa pela versão científica de “decadentismo” feita pelos contestadores é proveniente da
geração portuguesa de 1870. Segundo destaca Ângela Alonso, este era um grupo constituído em sua
maioria pela defesa da postura “anticlerical, anti-romântico, republicano e federalista”, alguns dos mesmos
pontos abordados nas propostas de reformas sociais apresentadas pelos contestadores brasileiros do
Império. Não por acaso a opção feita pela versão portuguesa do decadentismo aparece na construção do
discurso político combativo à Monarquia. Assim, era possível associar o governo vigente à ideia de uma
89
Maria Tereza Chaves de Mello, fosse possível a adoção de uma visão de mundo apresentada
pelos grupos republicanos contestadores do período como aquela que identificava no regime
republicano “uma fatalidade histórica”.192 Afinal, o futuro indicava para sua implantação.
O embate travado entre os representantes e defensores de cada regime de governo
contou com as palavras para serem usadas como armas na disputa pela manutenção ou
transformação do contexto político-social do país. Cada grupo político contestador
desenvolveu um significado próprio para a república que almejava implantar, para isso foram
mobilizados recursos semânticos não apenas para mudar a realidade histórica do Brasil, mas
para que, ao se alterar essa realidade, fosse possível a garantia dos postos de comando aos
líderes dos grupos. A inserção no campo político fora o desejo comum dos contestadores do
Império. Desse modo, ao se estudar a guerra discursiva feita a partir das enunciações dos
principais representantes republicanos é que se compreende o jogo de palavras e as
performances do período de contestação do Brasil-Império, bem como se entende as
particularidades, motivações e interesses de seus opositores.
O alvo comum não era apenas a queda da monarquia, mas também colocar-se no
poder à frente de um novo regime, vencendo a disputa pela organização política e social do
Brasil, visto que o conceito de república, em seu sentido moderno, fora lido de várias formas
por seus principais representantes liberais, positivistas e jacobinos justamente porque cada
grupo almejava colocar um fim ao espaço de experiência política que possuíam para implantar
o horizonte de expectativas do “progresso”, no qual seriam a nova elite. Era a disputa pelo
protagonismo político do país. Se anteriormente a 1889 estabeleciam alianças, colaboravam
para os mesmos jornais, levantavam as mesmas bandeiras em conferências, com a queda da
Monarquia, esses mesmos grupos contestadores cessam com a crítica coletiva comum e
disputam acirradamente entre si a organização política e social do país. Por isso, os grupos
contestadores devem ser interpretados como estrategistas na busca pela deslegitimação da
tradição imperial e pela instauração de um tipo de república que os permitisse a inserção na
cena política do país. Assim, entende-se as alianças políticas aparentemente contraditórias, a
mobilização de elementos doutrinários provenientes de diferentes correntes de pensamento
em voga no Oitocentos, a escolha dos assuntos a debater, bem como a omissão consciente de
alguns outros. Somente entendendo as várias propostas de república como discursos
construídos para intervir politicamente no tenso debate para a queda da Coroa é que se
compreende as ações dos contestadores do Império.
192
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. “A República e o Sonho”. In: Varia História. Belo Horizonte:
UFMG, vol. 27, n°45, jan-jun 2011. p. 124.
91
Desse modo, não é possível tratar os contestadores como homens que buscavam
apenas uma mera filiação doutrinária com as ideias estrangeiras. Estes queriam justificar suas
ações com argumentos tirados de teorias que propiciassem as mudanças que desejavam, por
isso a seleção de quais doutrinas deviam ser mobilizadas seguia o critério político, bem como
a leitura que fizeram dessas doutrinas também servia para intervenção no debate político. Não
foram as ideias que escolheram os homens, ao contrário, foram os contestadores que se
mobilizaram na busca de ideias que servissem para justificar seus novos projetos de Brasil.
Por isso, a opção por teorias de reforma que fornecessem uma interpretação da sociedade que
fizesse sentido no real para alterá-lo de modo a implantar o novo Brasil que propagavam.
Assim, Alberto Sales fora escolhido como um dos principais contestadores do período e
pela província de São Paulo desempenhou com maestria seu papel de crítico do Império, haja
vista que foram inúmeros os textos publicados para combater o regime vigente, por considerar
não ser este mais capaz de atender aos interesses e necessidades dos republicanos liberais.
O debate ocorreu por excelência na imprensa, espaço à época destinado ao embate de
ideias e a formação e adesão de novos adeptos à causa republicana. A guerra das palavras
contou com o espaço promovido pela imprensa para realizar na prática o que vendiam no
discurso: criar um ambiente hostil que propiciasse a implantação da república sem grandes
dificuldades e questionamentos. Por isso, faz-se necessário a partir desse momento
compreender o uso da imprensa por Alberto Sales no modo de convencer à causa republicana-
democrática-federalista.
Dar ênfase ao papel da imprensa como meio para a circulação e debate de ideias é
fundamental para o entendimento de sua utilização como arena de disputa política. A escolha
por parte dos propagandistas republicanos pela imprensa como espaço por excelência de
disseminação do ideal de república a ser implantada foi marcante durante todo o período de
contestação do Império e possibilitou a visibilidade para irem de encontro à Monarquia,
renovando as ideias políticas. Como afirmou Alberto Sales, do mesmo modo que acontecia
com a educação, a imprensa era outro meio possível de formar e informar os cidadãos, de
modo a convencê-los à causa republicana e então motivá-los à ação. Entende assim a
imprensa como órgão formador de opinião pública e também como aquela que detém o poder
fiscalizador de atos do governo, bem como percebe o jornalismo como aquele possuidor de
92
uma função social, qual seja a de criar um espaço de debate para que se constitua,
gradualmente, uma unidade nacional, que, no caso de Alberto Sales, estava garantida pela
adoção do viés republicano por ele defendido.
Em texto intitulado “O jornalismo entre nós”, publicado em A Província de São Paulo,
em 24 de fevereiro de 1885, Alberto Sales disserta sobre a “verdadeira função social” do
jornalismo e faz um ataque à imprensa “metafísica” que não permitia o desvelar do país de
forma positiva. Obviamente, embasado pela filosofia de Augusto Comte, estabelece um debate
com a imprensa defensora do status quo que objetiva a manutenção do regime vigente do qual
se tornou um dos opositores mais constantes. Abaixo, segue passagem que demonstra seu
entendimento acerca do que devia ser o jornalismo e a crítica feita à produção da imprensa:
Bem sabemos que a imprensa nem sempre tem sido convenientemente dirigida, em
relação a seus grandes intuitos civilisadores; ao contrário, por tal fórma tem sido
desvirtuada a sua verdadeira missão social, que a descrença e a desconsideração já
vão se agrupando ao redor dessa nova fórma do poder espiritual.
Facilmente, porém, se descobre na propria evolução historica dessa nova instituição
social a causa que mais concorreu para transformal-a assim, mais em elemento de
perigo e de funestas consequencias, como orgão disciplinar das intelligencias, do
que em instrumento indispensavel ao estabelecimento definitivo da unidade, na vida
moral e intellectual dos povos do occidente.
Em consequencia do grandioso movimento de dissolução, iniciado em principios do
seculo XIV e mais tarde grandemente accelerado pelos influxos de uma metaphysica
essencialmente revolucionaria, duas classes sociaes principalmente, a dos litteratos e
a dos advogados, vieram a constituir-se as unicas preponderantes na direcção e no
governo das sociedades.
A primeira, nascida directamente da turma immensa de metaphysicos, que tanto
cooperaram para a demolição do velho regimen; principalmente em seu aspecto
puramente espiritual, e a segunda, oriunda dos legalistas, que tanto concorreram para
o fortalecimento do governo civil, pela extraordinaria concentração de attribuições,
que conseguiram operar em favor exclusivo da realeza.
Essas duas classes, productos immediatos de uma situação extremamente
revolucionaria, tal preponderancia adquirida com o prolongamento indefinido da
grande crise, que ainda hoje atravessamos, que vieram finalmente apoderar-se, como
presentemente se verifica, se bem que de uma maneira incompleta, de toda direcção
moral e intellectual, no governo das sociedades.
Os parlamentos, que na ordem puramente temporal representaram e ainda hoje
representam um papel importantíssimo, como orgãos indispensaveis da funcção
governamental, foram inteiramente dominados por ellas; e a propria imprensa, que
na ordem moral parecia esboçar uma nova fórma do poder espiritual, não poude
escapar á sua excessiva preponderancia.
É assim que se explica a maneira por que nestes ultimos tempos, sobretudo, tem sido
pervertida a funcção jornalística. Absorvida inteiramente por um bando de litteratos
e de advogados metaphysicos, a imprensa desviou-se totalmente de sua verdadeira
destinação social e cahio neste estado de degradação moral em que hoje se acha,
completamente desprestigiada como orgão de moralisação social e sem força
nenhuma como instrumento disciplinar das intelligencias.193
Assim, nesse primeiro trecho, Alberto Sales critica o uso da imprensa à época,
ressaltando que a mesma não estava sendo utilizada de forma adequada à “função
193
Ver A Provincia de São Paulo (SP), 1885.
93
civilizatória”, por não estar atrelada ao pensamento positivista, o que comprometia o pleno
desenvolvimento social. Já nas primeiras linhas, o autor reafirma sua posição de que a
imprensa deve ser utilizada de modo a civilizar, ou seja, “formar e informar” seus leitores à
maneira de guiá-los à adesão e ação dos ideais que defende e que na imprensa oficial se tem o
oposto. Dava-se desse modo o embate de narrativas, haja vista que se permanecia com a
exposição dos ideais “metafísicos” identificados pelo pensador com o atraso na marcha da
civilização, devido à estagnação do regime político atrelado ao estado monárquico
representado pelos seus defensores na imprensa oficial e na política de então. Assim, continua
Alberto Sales embasado pela filosofia comteana sua crítica à imprensa:
Após intensa crítica ao quadro da imprensa oficial, Alberto Sales expõe sua visão ao
defender a substituição do quadro jornalístico vigente, por outro no qual ele próprio
despontava:
Assim, faz uso da imprensa para ir de encontro aos valores, práticas e instituições de
sua época registrados nos órgãos oficiais deslegitimando-os, ao mesmo tempo que apresenta
uma nova possibilidade de debate jornalístico, no qual ele faz parte. Vários foram os artigos
de Alberto Sales veiculados na imprensa, isso sem contar as obras de cunho mais denso
publicadas em livro e anunciadas constantemente nos jornais do período. Como, por exemplo,
na folha Correio Paulistano, de 25 de maio de 1887, cuja nota anunciava que “nos fins de
Julho deve apparecer um livro do sr. dr. Alberto Salles intitulado – A Patria Paulista”. 196 No
mesmo jornal, em 07 de agosto de 1887, mais uma nota: “A Patria Paulista. Com este titulo
publicou o illustrado dr. Alberto Salles um importante trabalho sobre o mesmo assumpto –
separatista”.197 Ainda no referido periódico, só que anos antes, em 20 de maio 1885, há o
agradecimento por parte do jornal pelo envio da obra de Alberto Sales: “Recebemos e
agradecemos um exemplar do Catecismo Republicano do sr. dr. Alberto Salles, que tem por
fim vulgarisar as doutrinas democraticas”.198 Assim era comum o anúncio dos livros de
Alberto Salles na imprensa, bem como a publicação de trechos de suas obras mais densas por
meio dos jornais à época.
Desse modo, a propagação dos ideais republicano-liberais proferidos por Alberto Sales
encontrava espaço de circulação na imprensa, mas também nos Clubes, Meetings e nos
discursos proferidos dentro do próprio Partido Republicano. Muitos eram os espaços para que
se divulgassem as ideias do grupo no qual Alberto Sales era um dos principais expoentes.
No caso, por exemplo, dos partidos políticos, dentre os quais se destaca o Partido
Republicano de São Paulo, surgido em 1873, tornando-se um dos mais organizados do país
desde então, Alberto Sales afirma que era uma necessidade a existência de partidos políticos,
por serem eles o único recurso capaz de expressar a vontade nacional em um regime
republicano-liberal pautado na liberdade de opiniões de um país “que se pretende governar a
si próprio”.199 Estabelece assim ser apenas através dos partidos que o acordo das consciências
e o equilíbrio das vontades se dariam, garantindo a Ordem e o Progresso nacional baseado
numa “política de conciliação e concórdia”. Algo que apenas o Partido Republicano, segundo
o propagandista, seria capaz de propiciar. Assim, ao compará-lo
195
Idem.
196
Ver Correio Paulistano (SP), 1887.
197
Idem.
198
Ibidem, 1885.
199
Ver RIBEIRO JÚNIOR, João. Op. Cit., p. 196.
95
Na passagem supracitada, observa-se uma vez mais a visão pautada nas teorias típicas
da época, o positivismo e o evolucionismo, para assim, a partir dessas ferramentas teóricas,
lançar luz à ideia de república liberal contra a representação de uma monarquia feita de
200
Ibidem, p. 199-200.
201
Ver A Provincia de São Paulo (SP), 1881.
96
“grandes homens”. Monarquia essa que estaciona o país em um estágio civilizacional que não
permite o desvelar à fase positiva, visto que impede a progressão social.
De acordo com Alberto Sales, os partidos existentes e ligados ao Império eram
prejudiciais à ideia de conciliação, pois não permitiam que fosse instaurada a vontade
nacional, já que eram
Assim, para Alberto Sales, os partidos políticos deviam ter como função a promoção
da conciliação entre os indivíduos para gerar e manter a vontade nacional aliada ao progresso
social.
A ideia de conciliação perpassa a obra de Alberto Sales: a necessidade de construir um
ideal coeso era uma das preocupações dos republicanos liberais que evitavam abordar
assuntos que poderiam convulsionar o grupo, bem como afastar possíveis futuros adeptos. A
postura da conciliação não é apenas propagada no discurso, mas vira ato para criar um
ambiente favorável à derrubada da monarquia e instalação da república. Conciliação entre os
próprios republicanos liberais na construção discursiva e propagação das mesmas ideias e
abordagens, gerando assim uma narrativa forte e capaz de fazer frente na luta pelo poder do
país. E o partido político é, obviamente, mais um meio de intervenção para mudar a realidade
de então, por isso tamanha a importância dada a sua função na campanha republicana liberal,
visto que
202
Ver RIBEIRO JÚNIOR, João. Op. Cit., p. 196.
97
Nesse trecho Alberto Sales apresenta sua visão da importância da existência dos
partidos na sociedade, quais são os princípios que o servem de fundamento e que possibilitam
suas funções e permanência social, mas também como se constituem em centros de
convergência que evitam a “anarquia” e possibilitam o “progresso”. Novamente, a utilização
do embasamento teórico comteano está presente na constituição de seus argumentos textuais.
Contudo, para além do vocabulário da política científica presente, há também, mais uma vez,
a oposição entre os pares monarquia x república, como se pode ver em seguida:
Será isto, porém, o que se observa em relação aos partidos monarchicos? Não têm
elles, ao contrario, produzido entre nós mais males do que bem? Porventura assenta
a sua disciplina na adhesão espontânea das consciencias?
Defeituosamente organisados, elles representam em nossa sociedade um verdadeiro
elemento dissolvente, que não somente difficulta a realisação das reformas, como
tambem perverte totalmente a legitima orientação da actividade política.
É preciso se ter sempre em vista que os partidos têm uma funcção puramente
organica a exercer, e que, uma vez desvirtuada essa funcção, elles se transformam
em uma fonte de males incalculaveis para o paiz.204
Assim, a defesa da existência dos partidos políticos acontecia pela oposição entre a
conduta dos mesmos em cada regime. Alberto Sales defendia a atuação dos partidos como
algo essencial para promover a sociedade que idealizava, contudo, isso só era possível pela
via republicana, já que os partidos monárquicos, postos em oposição aos republicanos, eram
aqueles que propunham a “dissolução” social e não sua “conciliação”. A passagem
supracitada, novamente, evidencia não apenas a propaganda republicana embasada nas teorias
de reforma social tão em voga no século XIX, mas também faz uso de uma construção
pautada pela oposição: se o partido na república estabelece a concórdia, o partido político na
monarquia dissolve e perverte a sociedade. O recurso retórico aos pares de antônimos mais
uma vez é utilizado estrategicamente na elaboração de seu texto.
203
Ver A Provincia de São Paulo (SP), 1884.
204
Idem.
98
Também a educação era uma via para formar, informar e transformar a realidade.
Alberto Sales produziu escritos abordando a importância da educação como elemento de
transformação social, pois segundo o pensador brasileiro, as reformas necessárias a serem
adotadas para permitir o fluir da marcha da humanidade deveriam ser propiciadas a partir do
entendimento e aperfeiçoamento moral e intelectual, já que defende que a tomada de
consciência por parte da sociedade só aconteceria se no campo da educação também se
trabalhasse os ensinamentos das teorias de reforma em voga no Oitocentos. A marcha da
humanidade seria facilitada se nas escolas se ensinasse a verdadeira importância das ciências
sociais da época. Nas passagens abaixo, publicadas no jornal A Província de São Paulo, em
11 de dezembro de 1877, sob o título “O collegio 'Rangel Pestana'”, Alberto Sales defende o
papel transformador da escola em formar cidadãos para melhor agirem nos Novos Tempos:
Triumpha o homem dos obstaculos em sua lucta perenne com a natureza e em cada
vitoria alcançada encontra novo alento para os vindouros combates.
E si as sciencias sociaes, como outros ramos de conhecimentos humanos, não tem
ainda attingido o verdadeiro objecto de suas pesquizas; póde-se comtudo dizer, ao
abrigo da duvida e da incerteza, que o fundamento sobre que repousam é immutavel
e imperessivel como immutavel e imperessivel é a lei do movimento.
Nem de outra fórma se comprehende o elevado alcance da famosa sentença do
philosopho francez: - o mundo marcha.
Mas qual será o termo a que pretende chegar a humanidade? Por ventura obedece
ella em seu caminhar a alguma lei obrigatoria e necessaria; ou pelo contrario marcha
impellida pelo acaso, sollicitada por forças desconhecidas e caprichosas?
Eis o grande problema que o attento observador dos phenomenos sociaes, com o
auxilio da philosophia politica, tenta resolver em face da historia, reconhecendo,
nesse immenso registro dos motivos e actos humanos, o predominio absoluto e
incontestavel da lei da pefectibilidade.205
Com isso, Alberto Sales afirma que a humanidade se encontrava sob o signo da
mudança, entendida por ele como “lei de perfectibilidade” que propicia a marcha do mundo.
No caso brasileiro, em especial, as estruturas arcaicas ainda permaneciam vigentes e eram
representadas pelas práticas, instituições e valores monárquicos. Para ir de encontro ao
arcaico e implantar uma nova realidade republicana, o pensador, ainda no mesmo artigo
supracitado, defende o papel da escola como mais um espaço possível para o avanço do
progresso nacional necessário à transformação social:
205
Ver A Provincia de São Paulo (SP), 1877.
99
Sendo assim, o espaço destinado à instrução servia também como meio de propagação
e ação republicana. Afinal, “a base de todo o systhema politico dos povos deve forçosamente
ser aquella que reconhece como imprescindivel a necessidade da organisação do intellecto
nacional”.207
A partir da experiência educacional promovida por Rangel Pestana em seu colégio
voltada ao ensino feminino e liberal em São Paulo que Alberto Sales apontou a necessidade de
lançar um olhar atento às instituições educacionais do país, para que assim seja possível cada
vez mais a promoção desses espaços como formadores, de fato, do “intelecto nacional”. Ao
mesmo tempo que demostra a importância do papel do ensino inovador, tendo como exemplo
o colégio de Rangel Pestana, critica o Império e a educação por ele promovida até então. A
imprensa passou a ser entendida como um espaço de “renovação das abordagens políticas e
culturais”.208
Muitos dos representantes dos grupos contestadores ocupavam importantes cargos nos
jornais, bem como eram seus colaboradores. Havia, inclusive, o texto de um mesmo
colaborador noticiado em diferentes jornais e regiões. Desse modo, temos, por exemplo, no
periódico A Federação (RS), de 01 de outubro de 1886 o registro: “Os republicanos de
Campinas, S. Paulo, já iniciaram a serie de conferencias prometidas, no club que fundaram
n'aquella cidade, como já demos notícia”. Essas conferências tratavam do “estado actual de
nossa sociedade, dos nossos defeitos de organisação, do nosso pessimo governo; as suas
theorias sobre os deveres e direitos do cidadão em relação com a liberdade e democracia”.209 E
mais, em relação ao discurso proferido na conferência por Alberto Sales:
O seu espirito, fortemente educado nas mais sãs theorias dos mestres modernos,
encaminhado por uma methodologia perfeita no terreno da sciencia politica,
professando os mais adiantados principios e as mais salutares idéas, sabe persuadir a
quem o ouve e faz jús à mais sincera attenção dos que já sabem e dos que desejam
aprender.210
206
Idem.
207
Idem.
208
E mais, para a historiografia, “passou a ser considerada fonte documental (na medida em que enuncia
discursos e expressões de protagonistas) e também agente histórico que intervém nos processos e episódios,
em vez de servir-lhes como simples “reflexo”. Força ativa, não mero registro de acontecimentos, como
sublinhou o historiador francês Daniel Roche. Essa nova concepção implica, portanto, verificar como os
meios de comunicação impressos interagem na complexidade de um contexto”. Ver MOREL, Marco;
BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século
XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 8-9.
209
Ver A Federação (RS), 1886.
210
Idem.
100
mais do que um encontro entre letrados, o que estava em jogo era a consolidação de
alianças que aproximassem essa elite cultural das elites dirigentes e dominantes.
Esses homens de letras buscavam uma integração com outros grupos de poder, que
não eram necessariamente integrantes do campo cultural.214
De fato, os publicistas que escreviam nos jornais buscavam uma intervenção direta no
debate da época para solucionar os problemas de seu tempo e muitas dessas questões estavam
para além do âmbito cultural. No caso dos republicanos liberais aqui destacados, observa-se a
utilização do meio da imprensa como um espaço para o debate de ideias e para a propaganda
com o objetivo não apenas de deslegitimar a Monarquia, mas de se legitimar enquanto novo
grupo político à frente do país.
Vale lembrar também que muitos destes contestadores compartilhavam uma formação
de base retórica, o que lhes permitia ainda o bom uso das técnicas de mobilização de “lugares-
comuns”, visto ser a retórica a arte que objetiva convencer para mover à ação. 215 Os
argumentos retóricos utilizados na construção discursiva, como podem ser observados a partir
de algumas das obras de Alberto Sales, Quintino Bocaiúva e Assis Brasil, pautavam-se,
sobretudo, em repetidos exemplos políticos e históricos, em autoridades ilustres e na criação
de imagens mentais antagônicas entre monarquia e república que permitiam “ver” com
clareza o encadeamento “lógico” construído na tentativa de mover à ação seus leitores. Por
isso, a propaganda se tornou uma das maiores e melhores armas contra o Império. Fora desse
213
Idem.
214
Ver MOREL; BARROS. Op. Cit., p. 38-39.
215
Sobre o ensino de retórica, bem como a utilização da retórica como chave de leitura para acessar os textos
do século XIX entendidos como forma discursiva de pensamento, ou ainda a manutenção pela geração de
70 do discurso ornado para defender a mudança no ensino da retórica à ênfase nas ciências físicas e
naturais. Ver, respectivamente, HÉBRARD, Jean. “Três figuras de jovens leitores: alfabetização e
escolarização do ponto de vista da história cultural”. In: ABREU, Márcia (Org.). Leitura, História e
História da Leitura. Campinas: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil: São Paulo: FAPESP,
1999, p. 33-78; CARVALHO, José Murilo de. “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de
leitura”. In: Topoi, Rio de Janeiro, setembro de 2000, p. 123-152; VERGARA, Moema de Rezende.
“Reflexões acerca da educação em periódicos científico-literários do século XIX no Rio de Janeiro: os
ideais da geração de 1870”. In: Revista Ágora. Vitória: número 8, 2008, p. 1-13.
102
modo que os seus discursos se tornaram arma política e instrumento de caráter pedagógico na
disputa pela organização do país. Assim, explica-se o valor dado à propaganda, 216 que, como
forma primordial de participação no debate da época, intensificou a disputa no campo da
linguagem, sendo capaz de criar uma outra linguagem política republicana que fora eficaz ao
deslegitimar a tradição e ao justificar o “novo”.
Todavia, isso só fora possível porque, dentre todos os grupos que disputaram o poder
político, os republicanos liberais, além de observar a sociedade e escolher o momento
oportuno de agir, construíram um discurso coeso para ir de encontro ao status quo imperial,
haja vista o contexto linguístico criado entre a Corte, São Paulo e Rio Grande do Sul,
respectivamente representados por Quintino Bocaiúva, Alberto Sales e Assis Brasil. Não
houve disputas internas capazes de ramificar, ou mesmo, enfraquecer sua ação, por isso
atingiram uma forte coesão no discurso que os tornou ainda mais eficazes na ação,
possibilitando-os ser a nova elite política. A Constituição de 1891 e a ocupação dos principais
cargos políticos pelos republicanos liberais após 1889 demonstram a vitória dessa corrente.
Naquele momento, é importante lembrar que uma das principais marcas dessa mesma
sociedade era a inexistência do sentimento de comunidade, incapaz de construir a nação, de
criar elos sociais eficazes para sustentar uma gestão política comprometida com o bom
governo. Essa ausência de sentimento de pertencimento coletivo não apenas propiciou a volta
da corrupção217 e das negociatas no recente regime, como também, talvez, seja uma das
principais razões da república liberal se instalar no poder em detrimento dos outros ideais
republicanos - jacobino e positivista. Esses dois últimos, respectivamente, atribuíam à
república, ou um ideal ligado à liberdade dos antigos, com ampla participação popular na
busca da instauração de um regime para o “bem comum”, o que exigia a constituição da
nação, ou então, afirmavam seu oposto, instaurar uma república ditatorial, a partir de um
216
A propaganda era feita, sobretudo, via imprensa que, naquele momento, fins do Oitocentos, foi mais um
espaço possível para a batalha discursiva entre os ideais republicanos contra a monarquia, afinal a imprensa
muitas vezes ao longo da história serviu “como um dos meios de transformação, de incitamento à
transformação”. Ver PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove
entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 170-171.
217
O conceito de corrupção na esfera pública está intimamente ligado ao contexto de crise de legitimidade,
falta de justificação da ordem pública, ou ainda moral política posta à prova. No contexto de transição de
um regime político monárquico deslegitimado para a instauração de um novo, republicano, pautado em
outra lógica de valores e normas que deveriam ser compartilhados e exercitados, constata-se o retorno à
cena pública da corrupção e da negociata. No caso de regimes republicanos, os ideais que constituem o bem
viver devem ser comuns e praticados pela comunidade, que é orientada à ação dentro de um consenso
normativo que visa controlar as paixões individuais em prol do bem comum. Quando há um desequilíbrio
entre o bem coletivo e a pulsão individual, irrompem a corrupção e a negociata, sobretudo porque o
sentimento de pertencimento tão caro aos valores republicanos se torna frágil. Algo que ocorreu, pois a
nação brasileira oitocentista ainda era fragmentada e a República permanecia com seus ideais inconclusos.
No Brasil, o aparelho de Estado se firmou antes mesmo que a própria nação.
103
Estado forte e intervencionista. Pois bem, se não havia sentimento de pertencimento comum,
se a nação não existia, como falar em participação popular. Por outro lado, um regime que
prega a falta de liberdade, por sua vez também não podia ser interessante àqueles que não
fariam parte do círculo de poder político. A república liberal, embora também fosse composta
por uma elite que almejava estar à frente no campo político, tinha embutido em seu discurso a
necessidade dos indivíduos de buscarem a satisfação pessoal, o “público” entendido como o
somatório de interesses particulares facilitava sua aceitação pelos insatisfeitos com a
monarquia. Afinal, abria-se uma brecha à ação, pois todos enquanto indivíduos podiam ser
contemplados.
No entanto, talvez, por ser a sociedade brasileira oitocentista extremamente
fragmentada, o discurso construído pelo grupo republicano liberal tenha sido aquele que
melhor se adequou às suas características, sobretudo porque o coletivo era entendido como o
somatório dos interesses particulares. Os representantes do grupo político republicano liberal
tinham em comum, sobretudo, a opção por ler a república pela chave das filosofias típicas do
Oitocentos, que surgiram como possibilidades de experimentação de um novo tempo pautado
na lógica do progresso, e de usá-las de forma própria na construção discursiva para fazer
sentido na realidade do Brasil. O futuro desconhecido era então repleto de esperança e a
marcha evolucionista218 impulsionava a todos para um horizonte de expectativas no qual a
forma de governo republicana atestava a transformação dessa expectativa no mais recente
espaço de experiência em que se constituía a nova elite política do país. Por isso, o uso
intenso de termos combativos promovendo uma guerra discursiva para instaurar uma imagem
de monarquia opressora e atrasada em oposição a uma república de autogoverno e de
progresso. Como os dois conceitos passaram a ser lidos como oposição um do outro, criaram
não apenas o significado de república liberal, mas ressignificaram o de monarquia
constitucional, visto que a instauração da república só pode se dar com a destruição da
imagem monárquica. Para isso, muitas vezes, utilizaram-se da imprensa. Também naquele
momento histórico, a literatura combativa que usaram “foi eficaz porque encontrou um
terreno já pronto para se transformar”.219
218
A Monarquia foi lida pelos contestadores republicanos como sendo uma estrutura arcaica que permanecera
no tempo por um equívoco na marcha da história. Vários são os exemplos que demonstram a interpretação
adotada à época que a Modernidade estava sob o signo da “marcha civilizacional”, cujo Brasil devia, em
alguma medida, acompanhar. Por isso, segue um pequeno trecho que exemplifica essa interpretação: “Mas
o movimento republicano é bem ou mal? Si a nação brazileira está condennada á immobilidade, é mal. Si
não é assim, si a nação brazileira, actualmente uma das mais atrazadas na orbita dos povos cultos, deve
caminhar, então é um bem, é um dever, é o supremo dever a marcha que começa”. Ver A República (RJ),
10/01/1871, p. 03.
219
Ver PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Op. Cit., p. 171.
104
Vale ressaltar também que embora fossem três as principais correntes republicanas
citadas anteriormente na disputa pela organização política e social do Brasil em fins do
Oitocentos, a formação e a constituição de seus respectivos “ideais de república” foram
fortemente marcados por ideias comuns a todas elas, contudo, ressignificadas a partir de
perspectivas e interesses próprios, em meio ao embate discursivo na tentativa de se
legitimarem no poder e constituírem uma das “repúblicas ideais” como prática comum.
Assim, apesar da supremacia das correntes francesas, jacobina e positivista, em relação à
utilização de símbolos na disputa pela organização do país, foi a corrente norte-americana de
viés liberal que se fez vitoriosa, em 1889. Afinal, como já fora apontado anteriormente, o
discurso liberal pautado na valorização do interesse pessoal se adequou muito bem em uma
sociedade que tinha como uma de suas principais características a inexistência da nação.
Para isso, o esforço adaptativo registrado nos escritos dos republicanos liberais à
época demonstrou a utilização das teorias de reforma social adequadas à realidade do país de
modo a agirem e transformarem a realidade. Assim, temos o exemplo de Alberto Sales,
pensador que ao entrar em contato com as diferentes ideias em voga no Oitocentos de maneira
própria, foi capaz de, a partir delas, fazer um uso próprio das diferentes teses de mobilizá-las
para intervir na realidade brasileira, adaptando-as às circunstâncias do país. O uso de um
vocabulário político próprio serviu como instrumento para “informar” e “formar”
republicanos.
Era a partir das performances feitas das ideias e teorias estrangeiras em voga no
Oitocentos de maneira a intervir na arena política do Brasil que pensadores como Alberto
Sales “configuravam uma visão de mundo em tudo oposta ao conjunto de ideias e teorias que
forjaram o sistema simbólico imperial”,220 pois em seu lugar constituíram o imaginário
republicana, a partir de uma linguagem política nova. A complexidade da teoria proposta por
Alberto Sales é proveniente de seu esforço adaptativo para implantar algo novo e funcional
que garantisse os interesses dos republicanos liberais.
A leitura do positivismo de Comte, feita por Alberto Sales, tinha como principal meta
se deparar com a realidade política e social brasileira a ponto de transformá-la por intermédio
da “educação do espírito”.
Entretanto, Alberto Sales não fora o único representante da corrente republicana liberal
que construiu um discurso político deslegitimador da ordem vigente, a ele, juntaram-se outros
nomes de relevância do período que, também a seu modo, tentaram contribuir na construção
do modelo de república liberal a ser implantado no Brasil, ao também adaptarem e mesclarem
220
Ver MELLO, Maria Tereza Chaves de. Op. Cit., p. 124.
105
ideias das mais diversas, alargando o campo semântico na tentativa de dar conta da disputa no
nível das ideias políticas. São eles: Quintino Bocaiúva, representante da Corte, e Assis Brasil,
pelo Rio Grande do Sul.
106
221
Entre os anos de 1852-53 passa a adotar o nome indígena “Bocaiúva”, inserindo-se na voga nacionalista da
época, cujo significado era proveniente da palmeira brasileira de frutos comestíveis, também conhecida por
bacaúba, macaúba ou macaíba. Chegou a receber críticas do tio que lhe provia o sustento, Pedro Moreno
d’Alagão, que não concordara em substituir o nome de família pela terminologia indígena.
107
Não continuando seus estudos de rotina no Curso Anexo dessa Faculdade, por
motivos pecuniários, regressou à então Corte onde, por muitos anos, exerceu a
profissão de jornalista.222
Assim, pouco tempo depois, abandonou os estudos em São Paulo e retornou ao Rio de
Janeiro, onde continuou a atividade jornalística, no Correio Mercantil e no Diário do Rio de
Janeiro. Passando a escrever, posteriormente, para inúmeras folhas, bem como colaborar com
tantas outras na Corte. Chegou, inclusive, no jornal Diário do Rio de Janeiro, a trabalhar com
Machado de Assis durante o período em que assumira o cargo de redator-chefe do impresso,
ainda nos anos de 1860.
Trilhou um caminho de prestígio, começado por suas peças para o teatro, sendo
reconhecido como um importante intelectual, assim como por suas atuações em jornais e,
posteriormente, com seu ingresso na vida política do país, o fizeram ganhar destaque
nacional.
De fato, as atividades jornalísticas ao longo da vida, juntamente com sua intensa
atuação no Clube Republicano e também no Partido Republicano, a partir de 1870, fizeram
com que Quintino Bocaiúva se tornasse um dos maiores propagandistas da proposta
republicana-liberal na Corte. Vários foram os jornais nos quais trabalhou e/ou colaborou.
Apenas para citar alguns: Diário do Rio de Janeiro, Correio Mercantil, A Honra, O Paraíba,
A República, O Globo, O Cruzeiro, O Paiz, entre outros.
Tanto como teatrólogo, e de forma mais intensa, como jornalista, suas posições
políticas sempre estiveram expostas nas atividades que desempenhara, seja afinado ao Partido
Liberal, em prol das reformas ainda nos anos 60, ou, depois, como republicano, a partir da
década de 70, quando do irromper do Partido como terceira força política a surgir no cenário
do Brasil-Império.
Entendia a atividade jornalística como um espaço importante para a transformação
social, tão carente de reformas que julgava necessárias. Desse modo, foi através da atuação
como jornalista que ganhou destacada visibilidade para disseminar suas ideias à nação
oitocentista, tendo como intuito promover pela palavra o ideal republicano, seja através da
escrita em periódicos, ou nos discursos proferidos nas atividades políticas desempenhadas
pelo Partido Republicano. A qualidade no uso das palavras que Quintino Bocaiúva possuía era
reconhecidamente exposta, inclusive por políticos contemporâneos, como pode ser destacada
na fala do ex-Presidente do Estado do Rio de Janeiro, Manuel Duarte: “senhor de uma pena
222
Ver SILVA, Ciro. Quintino Bocaiúva, o patriarca da república. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1983. p. 07-08.
108
para assim instituir uma nova realidade proveniente de mudanças sociais almejadas há tempos
pela parcela da população que representava dentro da luta de interesses do período.
Fazia um “convite geral a todos aqueles que [quisessem] aproveitar-se de sua coluna a
fim de tratarem pela imprensa daqueles interesses que mais de perto se liguem ao
desenvolvimento e progresso”.227 Ao chamar seus leitores para o debate nos meios
jornalísticos, dava um passo além no entendimento e função dos periódicos, que não eram
meros noticiários de curiosidades, mas, sim, espaços de intenso debate político e de
questionamento da realidade para transformá-la. Os jornais, panfletos, manifestos passavam a
ser utilizados como instrumentos de luta, dotados de caráter pedagógico, tinham como
“missão” promover a mudança social que se acreditava estar em curso pelos redatores
oposicionistas que se viam como os “legatários do espírito ilustrado do século XVIII. Tais
princípios desdobram-se na retomada da função precípua da retórica como elemento de
persuasão e convencimento, tendo em vista a ação política”. 228 Como pode ser percebida, na
passagem retirada do jornal A República (RJ), em 13 de dezembro de 1870:
O governo monárquico deve ser banido deste país, devemos proclamar a república.
227
Ibidem, p. 134.
228
Ver LESSA, Mônica Leite; FONSECA, Silvia Carla Pereira de Brito. (Orgs.) Entre a monarquia e a
república: imprensa, pensamento político, e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008, p.
09.
110
A monarquia é inadmissível num século de luzes, e o Sr. D. Pedro II, sem querer tem
trabalhado pela república, não tem sabido sustentar o trono. Não cremos que elle
possa deixar após si uma boa reputação por mais que se faça apregoar no país e no
estrangeiro. Sua política interna é a da corrupção, como todos os dias se demonstra
nas folhas da oposição, e o provam os factos que todo país conhece.229
229
Ver A República (RJ), 1870.
230
Ibidem, p. 58.
111
Três grandes órgãos que se pudesse manter em todo o país – um ao Norte, outro
nesta capital e outro ao Sul, bem dotados, bem sustentados, bem providos de
escritores capazes, enérgicos e ativos preencheriam muito melhor as necessidades da
propaganda republicana.
Nem pareça esta nossa opinião contraditória com o nosso princípio federal e
descentralizador.
A nossa organização democrática ainda não está feita; a vida e a atividade local
ainda não estão desenvolvidas; a nossa existência, enfim, ainda é anormal e a
política e a ação da propaganda devem portanto desenvolver-se, não como as
funções naturais de um regímen já formado, mas como os movimentos de um
exército em operações seguindo resolutamente um plano de batalha uniforme e
regular.
Nessas condições a disciplina, a coesão, a unidade dos esforços, a uniformidade do
plano estratégico, a justa distribuição das forças em obediência a um princípio de
comando são essenciais e imprescindíveis.
Este estado de coisas, de sua natureza provisória, servirá apenas para assegurar por
meio das concessões e dos sacrifícios recíprocos, a conquista desse Estado futuro,
aonde a vida local criada e dotada de elementos próprios, permitirá o franco
231
Ver A República (RJ), 1873.
232
Por isso, a escolha neste trabalho de propor o estudo dos três representantes da corrente republicana-liberal
de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, haja vista maior frequência e constância durante o
debate político no contexto histórico à época.
112
Fonte: Revista Illustrada (RJ), desenho de Pereira Netto em 1888, hemeroteca digital - acervo
Biblioteca Nacional.
233
Ver A República (RJ), 1873.
113
evolução e não da revolução social, como propunha um de seus principais oponentes, Silva
Jardim, quando do debate entre a escolha de posturas evolucionistas ou revolucionárias.
Quintino Bocaiúva também não concordava com a implantação, pela via revolucionária, de
uma ditadura republicana aos moldes positivistas, indo ao encontro também das ideias mais
radicais, defendia o evolucionismo social para se chegar à implantação de uma república
federativa democrática e liberal para o Brasil.
A postura evolucionista adotada se tornou a linha oficial do próprio Partido
Republicano, sendo inclusive uma maneira mais moderada de aglutinar um número maior de
adeptos do que as linhas mais radicais, que pela via da violência, fazia com que uma parcela
importante da população não aderisse ao movimento por receio do conflito direto proposto
pelos radicais, defensores da revolução social, como Silva Jardim.
Como fora mencionado anteriormente, uma das principais preocupações de Quintino
Bocaiúva era atrair o maior número possível de adeptos à causa republicana, por isso sua
postura evolucionista é destacada no seguinte trecho publicado a 03 de março de 1882, no
jornal O Globo (RJ):
234
Ver O Globo (RJ), 1882.
114
império com o uso da força, pois a mudança de regime deveria ocorrer dentro da legalidade,
sem tumultos e desordens: “venha pois a república, e quanto antes. Venha a república sem
revolução armada, sem derramamento de sangue de irmãos, venha ela do triunfo das ideias
democráticas da grande maioria do país, e da profunda convicção de que a monarquia é
incapaz de salvar o país”.235
Mais uma vez, a revolução das palavras forneceria o arcabouço necessário para que,
com a evolução social, o progresso instaurasse o novo regime, através das reformas político-
sociais proveniente da marcha da história que acreditavam. Por isso, a importância dada ao
caráter constituidor dos espíritos feito pela propaganda republicana, as ideias formavam e
informavam os cidadãos a caminho da res publica, como observado na seguinte passagem de
A República (RJ), em 08 de dezembro de 1870:
É possível afirmar-se que marcha nas vias do progresso moral um país que suporta a
escravidão, a ignorância e o despotismo?
O Brasil sem dúvida tem feito alguns progressos, conta algumas léguas de estradas
de ferro e alguns outros melhoramentos de incontestável utilidade. Isso, porém, é tão
limitado e desacompanhado de outros melhoramentos paralelos que pode-se afirmar,
sem receio de exagerar: entre os povos livres da América o país que menos
progresso tem feito é o Brasil.
Esta proposição não precisa de demonstração para os homens que acompanham com
cuidado a marcha da civilização em todos os países. Precisa, porém, para outros que
não estão no mesmo caso. O estudo do atraso relativo do Brasil, debaixo de todos os
pontos de vista, é tarefa de que nos ocuparemos muitas vezes. Os nossos leitores
terão ocasião de convencer-se quão prejudicial nos tem sido a forma de governo que
nos rege.236
235
Ver A República (RJ), 08 de dezembro de 1870.
236
Idem.
115
atividades com nova mão de obra para evitar “a crise da lavoura”. 237 Visava assim não dividir
o Partido Republicano e obter também o apoio dos grupos sociais mais conservadores.
Mencionava de forma branda o tema e, as poucas ocasiões em que se dedicava a falar do
assunto, colocava-se a favor da indenização aos proprietários, obviamente, para alcançar o
maior número possível de adeptos aos ideais republicanos liberais. Os senhores de escravos
não podiam ser excluídos, por isso o assunto da abolição era muitas vezes evitado ou
suavizado. Sendo assim,
237
Ver SILVA, Eduardo (Org.). In: “A Crise da Lavoura”. Op. Cit., p. 239-262.
238
Ibidem, p. 59.
239
Ibidem, p. 241-242.
116
programa a um partido; mesmo porque, ela resolvida, teria de desaparecer o partido que a
tinha como bandeira”.240 Era assim que mantinha sua estratégia de oportunismo, visto que, ao
não participar claramente do diálogo sobre um dos principais temas que convulsionavam a
sociedade, permitia que as classes mais conservadoras criassem certa “simpatia” pelo ideal de
república que representava. Postura que pode ser lida em O Paiz (RJ), a 06 de abril de 1887,
quando da conferência proferida por Quintino Bocaiúva e publicada no referido jornal:
A causa abolicionista tem caminhado e tem retrogradado na esfera oficial pela ação
de uma só vontade – a qual se tem pronunciado ora pelo direito, ora pelo interesse
ilegítimo.
Reclamando, portanto, contra a vacilação dessa vontade, os abolicionistas têm razão
e os fazendeiros também! Porque efetivamente, senhores, nós não temos que pedir
nesta questão nem deliberação nem atos, se não exclusivamente à coroa.
Pelo seu influxo, houve já uma hora em que a propaganda esteve a ponto de alcançar
uma grande vitória; mas o chefe do Estado, esquecendo o conselho do velho
Lincoln, - de que não se deve mudar de cavalos no meio da torrente – mudou de
agentes e, portanto, de opinião, dando assim motivo a supor se que a Suprema Razão
ainda vacila sobre a solução do grave problema, ou então que obedece a influencia
de correntes contrarias, ora inclinando-se para a direita, ora inclinando-se para a
esquerda.
Aludi há pouco, senhores, a um facto de opressão e tirania exercida sobre os
próprios possuidores de escravos. Careço esclarecê-lo desta tribuna, por que ele é
ainda uma demonstração de quanto na nossa sociedade mal organizada ainda
influem muitos elementos para tornar estéril a ação dos homens resolutos, que lutam
para extirpar as causas da nossa decadência. O próprio orador que procura manter-se
sempre no nível da igualdade com os seus compatriotas, partilhando com eles as
glórias e as derrotas, a si próprio poderá talvez increpar-se por haver perdido muitas
ocasiões de denunciar a consciência pública abusos e violações contrárias aos
interesses elementares da sociedade.
Mas se tal retraimento se observa da parte de muitos, a causa está no próprio
viciamento da opinião que para todos as manifestações do pensamento e para todas
as iniciativas, procura uma razão ilegítima ou imoral que sirva de incentivo para
essas manifestações.
É assim que nenhuma ação, nenhuma iniciativa é recebida pelo espírito público sem
se presumir que a origem dela reside em um interesse pessoal.
Nesta questão ao menos, espera que não lhe será atribuída nenhuma intenção
reprovada.241
A causa abolicionista, senhores, devo dizê-lo, tem também contra si, conspirando
permanentemente contra ela, as próprias instituições de crédito que deveriam ser
nesta emergência o amparo das atividades úteis.
240
Ibidem, p. 67-68.
241
Ver O Paiz (RJ), 1887.
117
E como que por um pacto sinistro, entre elas e os próprios tribunais superiores, há
uma propaganda de resistência organizada para abafar e contrariar os impulsos
generosos dos cidadãos proprietários agrícolas que desejam libertar, ainda que
condicionalmente, os seus escravos.
É assim que bancos poderosos, como o Banco do Brasil e outros credores
hipotecários da lavoura, oprimem e quase que perseguem os fazendeiros que ousam
praticar o ato da libertação ou que intentam praticá-lo.
É o que tem acontecido em Minas Gerais e no Rio de Janeiro: e é por efeito dessa
pressão que muitos fazendeiros são coagidos a levar ao registro da escravidão, os
homens que na qualidade de seus companheiros de trabalho, eles teriam talvez o
desejo de libertar.
Senhores, estamos expiando o crime secular, o crime das gerações que nos
antecederam.242
Desse modo, uma das principais características de Quintino Bocaiúva era se valer de
seu “oportunismo político” para reunir no Partido Republicano os mais variados segmentos da
sociedade. Assim era com os senhores de escravos, bem como com os militares que, na busca
por maior participação no império, mostravam-se insatisfeitos com o nível de atuação que
possuíam. A insatisfação da classe militar rapidamente foi percebida pelo estrategista político
que não se demorou em também tentar conquistar a adesão destes ao Partido, como pode ser
observado na passagem abaixo:
A teoria de que não lhes é lícito nem agradecer obséquios, nem repelir afrontas, sem
licença do governo, é tão degradante que chega a ser abjeta.
Imagine-se que um militar é publicamente ultrajado; que fazer? Segundo a opinião
do governo, deve devorar a afronta em silêncio, guardá-la em si até que obtenha ou
não do seu legítimo superior a faculdade de desafrontar-se.
Isto é simplesmente parvo para deixar de ser torpe.
É visível a conveniência de converterem figuras mecânicas os defensores da pátria.
Separado da vida civil, sem laço algum que o prenda à sociedade, ele perde as
noções do direito e o amor da pátria. A arma que a nação lhe confiou para defender
os seus direitos, que outros não são senão as próprias regalias da liberdade, volta-se
contra esta ao menor aceno do despotismo e o quartel converte-se em Bastilha onde
se encerram e comprimem os destinos de um povo.
Eis por que se pretende decapitar o exército e a marinha. Um cérebro é sempre um
perigo e uma ameaça contra toda a sorte de despotismo.
242
Idem.
243
Ver SILVA, Eduardo (Org.). Op. Cit., p. 71.
118
“vícios e virtudes”, “mérito e privilégio”, “honestidade e corrupção”, entre tantos outros pares
antagônicos.
Para além do vasto uso dos referidos conceitos antitéticos existentes no discurso de
Quintino Bocaiúva, também estão presentes os empréstimos feitos do vocabulário da política
científica e do decadentismo, como já fora visto nas obras de Alberto Sales, apenas para
sublinhar as mesmas expressões que resultam em uma visão de mundo compartilhada e em
um mesmo objetivo retórico, destaca-se algumas presentes, tais como: “ciência política”,
“marcha da civilização”, “leis reguladoras”, “evolução social”, “estados da humanidade”,
entre outras tantas próprias das mesmas leituras de autores reformistas e do modo que foram
lidos para possibilitar a performance discursiva necessária para implantação de uma nova
realidade republicana, na qual ele próprio acreditava obter mais atuação e poder.
Apenas para exemplificar o recurso de construção discursiva baseada na inversão e em
pares de opostos, ressalta-se mais um trecho contido em um de seus textos intitulado A
opinião e a coroa, ainda no ano de 1861, publicado sob o pseudônimo de “Philemon”: “o que
era razão, justiça, direito, religião, humanidade, progresso e futuro afigurou-se-lhe contra-
senso, injustiça, ilegalidade, blasfêmia, crueldade, atraso, aniquilamento e morte!”.246
Conclui-se que o representante da corrente republicana-liberal na Corte também
possuía a leitura de importantes pensadores das reformas sociais, que os leu a seu modo para
elaborar escritos críticos e instaurar uma nova realidade política, na qual fizesse parte da
recente elite política do país. Para isso, também fez empréstimos do vocabulário em voga no
Oitocentos da política científica e compartilhou uma visão de mundo proveniente do
decadentismo.
As imagens contrárias entre monarquia e república, assim como muitos pares de
opostos de um lado e outro visavam construir imagens mentais antagônicas na arena de guerra
das palavras na disputa pelos postos de comando do país.
Embora Quintino Bocaiúva possuísse um viés mais pragmático na ação, não
explorando o debate com longas obras de cunho teórico-doutrinário, também buscou instaurar
de forma semelhante a Alberto Sales (SP) e Assis Brasil (RS) - esses dois últimos com uma
produção mais teórica, o regime republicano e pôr em prática as reformas sociais almejadas
antes mesmo de 1870, sem, com isso, convulsionar a ordem social estabelecida. Desse modo,
faz uso também da estratégia de oportunismo político praticada na França por homens
públicos, como, por exemplo, Léon Gambetta e Jules Ferry.
246
Ibidem, p. 161.
120
247
Sobre as estratégias de ação pautadas no oportunismo político ver também SILVA, Eduardo. (Org.). Op.
Cit.
121
Nada mais eficaz que a elaboração de um texto que sintetizasse, de forma objetiva, os
principais pontos do pensamento republicano-liberal, para assim ser capaz de disseminar
rapidamente o ideal da corrente política que era expoente na Corte. É desse modo que o
Manifesto Republicano de 1870 ganha vida e se torna um importante registro histórico do
discurso político de Quintino Bocaiúva e seu grupo, tendo como principais pontos defendidos
o federalismo, a soberania nacional, a democracia, via voto secreto, a separação da Igreja do
Estado, além das críticas intensas à Monarquia.
248
Ver ALONSO, Angela. Op. Cit., p. 180.
249
Ibidem, p. 180-181.
123
em uma Nação cujo parlamento, eleito pela participação de todos os cidadãos, tenha a
suprema direção e pronuncie a última palavra nos públicos negócios”.250 Assim sendo, afirma
que tudo aquilo que está revestido “de caráter permanente e hereditário no poder, está eivado
do vício da caducidade, e que o elemento monárquico não tem coexistência possível com o
elemento democrático”.251 O representante da nação, aquele escolhido a serviço de todos, deve
ser como funcionário revogável, temporário, eletivo, a exemplo dos estados modernos. A ideia
de “povo” adotada permite que a identificação à causa republicana seja imediata, por buscar
abarcar a todos.
Posteriormente, parte-se para o item da “Exposição dos Motivos” que de início já
destaca a interferência do Estado como algo negativo e arbitrário, pois ressalta que
Neste país, que se presume constitucional, e onde só deveriam ter ação poderes
delegados, responsáveis, acontece, por defeito do sistema, que só há um poder ativo,
onímodo, onipotente, perpétuo, superior à lei e à opinião, e esse é justamente o
poder sagrado, inviolável e irresponsável.254
250
Ver SILVA, Eduardo (Org.). Op. Cit., p. 328
251
Ibidem, p. 329.
252
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. “Manifesto Republicano de 1870”. In: Textos Políticos
da História do Brasil: Independência – Império (I). Fortaleza: Biblioteca de cultura série A –
documentário, 1972, p. 534.
253
A ideia de “democracia plena” é pautada na igualdade, contudo essa igualdade, segundo o teórico do
período, Assis Brasil, “não é, como pensam muitos e como gritam os nossos adversários – o nivelamento de
todos, a negação das faculdades e aptidões de cada um. Isto de igualdade apenas teria o nome; seria o
rebaixamento das aptidões até a nulidade (…) seria (…) quebrar a ordem da natureza. A igualdade é o
reconhecimento do direito que tem cada um de desenvolver-se e aperfeiçoar-se e a atingir a altura que seus
méritos lhe destinam. É também, por conseqüência, a negação fundamental de todos os privilégios, ou
direitos inatos: de casta, de família, etc, etc.” Ver BRASIL, Joaquim Francisco Assis. A República Federal.
Rio de Janeiro: Leuzinger, 1881. p. 38-39.
254
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. Op. Cit., p. 535.
124
documento. Contudo, se formos à definição do Poder Moderador pelo olhar dos monarquistas,
encontraremos a afirmação de que deve ser este um “quarto poder” que servirá como juiz nas
decisões do Estado, caso haja necessidade. No entanto, os republicanos liberais representados
no Manifesto, obviamente, escolhiam apresentá-lo como um poder acima de todos os outros,
desse modo afirmavam veementemente estar a sociedade comprometida pelo arbítrio desse
poder supremo. Assim, “o regime monárquico, vivendo à sombra do Poder Moderador, era
condenado pelo manifesto republicano de 1870 como incompatível com a soberania nacional,
que só poderia ser baseada na vontade popular”.255
No item intitulado “Processo Histórico” do documento, observa-se o destaque dado
para como os republicanos interpretavam “a origem histórica do império”. 256 Partiram da
premissa de que os interesses dinásticos se mantiveram durante todos os processos históricos
pelo qual o país passara. Da colônia ao império, tudo era uma questão de passagem dinástica
que, quando ameaçada, a monarquia portuguesa astuciosamente substituía “a pessoa,
mantendo a mesma autoridade a quem lhe faltava a legitimidade e o direito”. 257 É importante
destacar que o recurso utilizado de fazer uso da história no texto do Manifesto permitia a
criação de uma memória, de um imaginário e de uma identidade que fossem comuns, algo que
possibilitava melhores resultados no convencimento de seus leitores.
Já a passagem seguinte ao processo histórico, contida no Manifesto Republicano,
demonstra que tipo de imagem os republicanos liberais construíam sobre a monarquia
brasileira:
Nos espíritos a independência estava feita pela influência das idéias revolucionárias
do tempo e pela tradição ensangüentada dos primeiros mártires brasileiros. Nos
interesses e nas relações econômicas, na legislação e na administração, estava ela
também feita pela influência dos acontecimentos que forçaram a abertura dos nossos
portos ao comércio dos pavilhões estrangeiros e a desligação dos funcionários aqui
estabelecidos.
A democracia pura que procurava estabelecer-se em toda a plenitude de seus
princípios, em toda a santidade de suas doutrinas, sentiu-se atraiçoada pelo
consórcio falaz da realeza aventureira. Se ela triunfasse, como devera ter acontecido,
resguardando ao mesmo tempo as garantias do presente e as aspirações do futuro,
ficaria quebrada a perpetuidade da herança que o rei de Portugal queria garantir à
sua dinastia.
Entre a sorte do povo e a sorte da família, foram os interesses dinásticos os que
sobrepujaram os interesses do Brasil. O rei de Portugal, arreceando-se da soberania
democrática, qualificando-a de invasora e aventureira, deu-se pressa em lecionar o
filho na teoria da tradição.
255
Ver CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit., p. 11.
256
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. Op. Cit., p. 536.
257
Idem.
125
258
Ibidem, p. 536-537.
259
Ver CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit., p. 45-46.
260
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. Op. Cit., p. 538.
126
264
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. Op. Cit., p. 541.
265
Ibidem, p. 548-549.
128
Muitas vezes tem sido analisado êste documento, nem sempre com benevolência.
Realmente, falta-lhe vibração e originalidade. Estende-se por longos parágrafos
numa digressão fria contra o Império, e que não passa, afinal, de um sumário das
críticas feitas no Parlamento e na imprensa. As questões políticas ou, mais
exatamente, os erros e os vícios da prática do regime representativo, são os seus
supremos motivos. Não tenta descer ao estudo das grandes realidades econômicas e
sociais do Brasil. Evita o angustioso problema da Abolição, seiva ou essência da
266
Ver CARVALHO, José Murilo. “República, democracia e federalismo: Brasil, 1870-1891”. In: Territórios e
fronteiras do poder, Lisboa: seminário organizado pelo Centro de Estudos de História Contemporânea
Portuguesa e pelo Centro de Estudos do Oitocentos-Pronex, março de 2010, p.13.
267
É importante destacar que a oposição entre federalismo e centralismo não era única, pois propostas mais
radicais estavam presentes no debate do período. O separatismo paulista se constitui como um bom
exemplo da radicalização da proposta federativa. O movimento separatista de São Paulo foi estudado por
Cássia C. Adduci. A autora buscou entender o ideário construído pelos adeptos do separatismo paulista em
fins do Oitocentos, sobretudo a partir da imprensa, além de dialogar com os principais ideólogos do período
e com textos de autores do final do século XIX. Assim, ao centralizar seus estudos no movimento
separatista de São Paulo, pode perceber que tal proposta radical revelava a grande tensão da época,
principalmente devido ao número de encargos da província(SP) em relação à União. Os paulistas se
sentiam prejudicados pelo regime centralizador que lhes atribuía altos encargos para depois redistribuí-los
pelas demais regiões do país. O que fez com que a ideia de superioridade de condições e de autonomia
alimentasse o movimento, visto o desiquilíbrio sofrido pela elite paulista que, embora detivesse o poder
econômico, sentia-se prejudicada politicamente. Assim como ocorrera com a proposta federalista, o
movimento separatista de São Paulo buscava maior autonomia política querendo por fim à opressão
centralizadora. Isso resultou que muitos dos separatistas também fossem republicanos, mas, não
necessariamente. Conforme Cássia C. Adduci, não se pode caracterizar o movimento separatista como
republicano, já que haviam atores políticos que defendiam o separatismo de base monarquista. De todo
modo, tal separatismo, entendido como uma radicalização da proposta de federação, partia dos
“descontentamentos de parte das classes dominantes paulistas diante da posição ocupada pela província
frente ao poder central”. Esse descontentamento fora “acumulando-se desde que estes mesmos grupos
passaram a sentir uma contradição entre seu poder econômico e seu poder político, é possível que esta
realidade tenha aberto espaço para o aparecimento de diversas reclamações que, ligadas ao federalismo, aos
poucos, foram assumindo os contornos separatistas”. Ver ADDUCI, Cássia C. “Para um aprofundamento
historiográfico: discutindo o separatismo paulista de 1887”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo:
vol. 19, n° 38, 1999. p. 111.
129
monarquia. Até depois da dolorosa experiência dos Estados Unidos, dir-se-ia que os
republicanos de 70 ainda não julgavam prudente nêle tocar. A Federação permanente
anelo nacional, eis a sua grande tese ou a sua grande doutrina. “Centralização –
Desmembramento; Descentralização – Unidade...”.268
De forma mais amena, Luís W. Vita continua a observar o debate acerca do Manifesto
Republicano através do diálogo com George C. A. Boehrer:
268
Ver BELLO, José Maria. Apud. VITA, Luís Washington. Alberto Sales, ideólogo da República. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1965, p. 76.
269
Ver BOEHRER, George C. A. Apud., Idem.
270
Sobre o diálogo entre os três conceitos ver o texto de CARVALHO, José Murilo. Op.Cit., p. 6.
271
Ver VITA, Luís Washington. Op. Cit., p. 77.
130
Desse modo, a omissão de temas como, por exemplo, o da abolição e dos direitos
civis, se tornava uma constante entre a maioria dos republicanos liberais, sendo o Manifesto
de 1870 um documento exemplar dessa omissão.
Já na “Conclusão” do Manifesto ressaltam a urgência da mudança de regime político,
com a implantação dos princípios gerais expostos no documento. Além de apresentarem a
bandeira do partido republicano federativo. Afirmam que “perante a América passamos por
ser uma democracia monarquizada aonde o instinto e a força do povo não podem preponderar
ante o arbítrio e a onipotência do soberano”.273
Pode-se afirmar que foi também através da elaboração de um discurso próprio
utilizado como arma política que os republicanos, representados pelo Manifesto, dialogavam
272
Ver CARVALHO, José Murilo. Op. Cit., p. 3.
273
Ver BONAVIDES, Paulo; VIEIRA, R. A. Amaral. Op. Cit., p. 554.
131
com as outras visões de “repúblicas ideais”, tendo sido a disputa pela inserção no campo
política, visando o monopólio de organizar o país, o principal motor do embate que ocorreu
em grande parte no campo linguístico. Fora a partir desses vários discursos pautados nos
mesmos objetivos e leituras que, ao dialogarem entre si, criavam significados, ou reafirmavam
a manutenção daqueles já existentes, que se originou a nova linguagem política republicana.
Assim, podemos destacar que o pensamento dos liberais representados pelo Manifesto
Republicano de 1870 foi construído através do embate também ao nível linguístico para
alcançarem legitimidade de organização política e social. Os argumentos retóricos utilizados
na construção discursiva para convencer a adesão à causa republicana eram: a utilização de
homens ilustres como argumento de autoridade, do próprio processo histórico entendido
enquanto indício do equívoco do regime monárquico permanecer vigente no país, criando
uma memória e uma identidade comuns, ou ainda da própria geografia brasileira que “pedia”
a aplicação do princípio federativo, mesmo que posteriormente se transformasse em um
argumento político em prol de maior liberdade para as províncias, entre tantos outros
argumentos que foram mobilizados na tentativa de tornar o conceito de república liberal o
vencedor da disputa pelo poder político do Brasil. Assim, o Manifesto pode ser interpretado
como um texto político curto, justamente porque buscava intervir de maneira rápida na cena
política do país conseguindo o maior número de adeptos. Para isso, foram mobilizados
argumentos que, devidamente conectados uns aos outros, permitiram a criação de duas
imagens contrárias: uma da monarquia decadente, corrupta e opressora versus a de república
da igualdade, do autogoverno e da liberdade. Imagens que passaram a compor o imaginário da
época. Assim, a rápida visualização do que era apresentado de forma clara e objetiva, a
capacidade de esconder os artifícios utilizados na construção do texto e a mobilização dos
lugares-comuns, bem como a utilização de exemplos políticos, fez com que o Manifesto se
tornasse capaz de persuadir e, com isso, conseguir adesões à causa republicana liberal.
De fato, o modelo de república liberal vencera a disputa, pois entre as estratégias
utilizadas pelos grupos contestadores, a dos liberais republicanos merece destaque, sobretudo,
porque fora, dentre todas as propostas de república para o Brasil, aquela que se manteve mais
coesa, apesar das discordâncias típicas do campo político.
Devido à estratégia de manutenção de um discurso republicano-liberal unificador,
adotada pelos principais representantes dessa corrente, é que se escolheu analisar algumas das
obras de maior visibilidade de Alberto Sales, representante em São Paulo, Quintino Bocaiúva,
na Corte e Assis Brasil, no Rio Grande do Sul.
132
Paulo e Rio Grande do Sul, respectivamente representados, por Quintino Bocaiúva, Alberto
Sales e Assis Brasil é confirmado a partir dos mesmos pontos trabalhados em suas obras. Não
houve disputas internas capazes de ramificar, ou sequer, enfraquecer sua ação conjunta para
deslegitimar a Monarquia. De fato, a república não se deu pela via revolucionária popular,
mas, sim, pelas articulações entre militares e republicanos. Entretanto, vale ressaltar que logo
instaurada a nova forma de governo, Quintino Bocaiúva quis que se fizesse uma “Junta
Revolucionária”, na qual todos participariam das decisões do Governo Provisório. Contudo, a
ideia não fora aceita e o Governo Provisório, ao perder seu caráter de Junta, logo se
transformaria em governo de Deodoro, pois este seria o “único responsável pelas
deliberações”, justamente devido ao enfraquecimento dos ministros.
Assim, começavam as crises que fizeram com que Quintino Bocaiúva percebesse que
a república implantada se distanciava cada vez mais da república idealizada por ele. Aos
poucos sua atuação política foi diminuindo, pois afirmou que a república que sonhara estava
no passado, não no presente. Mesmo assim, ressaltou que: “felizmente, se há um consolo, é
este de que a República aí está – encaminhada agora para os ideais inatingidos por que nos
batemos. Quando menos, isto já é uma esperança”. 274 Mas, frustração e crítica não o afastaram
por completo da cena política, como pode ser visto na imagem abaixo:
Figura 12 – O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Bento Ribeiro, posa para foto oficial ao
lado do senador Quintino Bocaiúva (o segundo, da esquerda para a direita, na primeira fila) e
intendentes municipais, na escadaria do Conselho Municipal, em 1911.
274
Ver SILVA, Eduardo (Org.). Op. Cit., p. 93.
134
Quintino Bocaiúva mesmo fazendo críticas ao recente regime que ajudou a proclamar
e diminuindo sua atuação, quando comparada aos dos anos de propaganda, permaneceu
atrelado ao círculo de poder político, como é possível observar em imagem oficial de 1911.
Desilusão e crítica ao sistema republicano não o impediram de estar na cena política, mesmo
que sua atividade não fosse de igual intensidade da época de oposição e combate ao regime
imperial foi ainda ministro, por vezes senador e presidente do Estado do Rio de Janeiro.
135
Era a partir das adaptações feitas das convenções linguísticas à época que tanto
Alberto Sales, quanto Quintino Bocaiúva, tentavam mobilizar, via intensa propaganda
republicana, o maior número possível de adeptos à causa. Assim também procedeu Assis
Brasil. Contudo, neste momento, faz-se necessário dar ênfase aos anos de sua formação, para
melhor compreensão do início de construção de suas ideias políticas.
Joaquim Francisco de Assis Brasil, nascido a 29 de julho de 1857, em São Gabriel,
município rio-grandense foi um dos quatorze filhos de Francisco de Assis Brasil e Joaquina
Teodoro Bemsalinas. Perdera o pai no ano de 1872 e fez os primeiros estudos nas instituições
do Rio Grande do Sul. Assim como Alberto Sales e Quintino Bocaiúva, foi para São Paulo,
em 1878, para dar continuidade aos estudos. Posteriormente, ingressou na Faculdade de
Direito, tendo saído bacharel em 1882. É importante destacar a formação estudantil comum
no ambiente de São Paulo de Alberto Sales, Quintino Bocaiuva e Assis Brasil. Fato que deu
início à formação compartilhada, em grande medida, por uma mesma visão de mundo, através
do contato com ideias, autores e obras de cunho filosófico-político em voga no Oitocentos, já
que “a vida acadêmica proporcionou, por assim dizer, um espaço social institucionalizado,
porém aberto, de participação e de lutas políticas, as quais se expressaram no teatro, na
literatura e, sobretudo, no jornalismo”.275
Essa formação comum em São Paulo também contribuiu para que, a posteriori, a
propaganda política que proferissem tivesse características semelhantes. Exemplo disso foi a
própria construção da campanha republicana, tanto através de seus escritos políticos, quanto
de seus discursos, com argumentos, jogos de palavras e estratégias linguísticas comuns. Desse
modo, o curso anexo à Faculdade de Direito e a própria instituição de ensino superior em si
constituem fator fundamental à formação das ideias políticas compartilhadas, na segunda
metade do século XIX, haja vista que tanto Alberto Sales, quanto Quintino Bocaiúva e Assis
Brasil tiveram passagens importantes no mesmo meio estudantil paulista e, como bem
destacou Sérgio Adorno, a instituição de ensino possuía como característica formar
“aprendizes do poder” e não apenas bacharéis em Direito.
275
Ver ADORNO, Sérgio. Op. Cit., p.158.
136
Assim, uma vez formado bacharel em São Paulo, Assis Brasil retorna ao Rio Grande
do Sul para dar continuidade às atividades políticas ligadas à causa republicana-liberal,
iniciadas ainda nos tempos de estudante. É importante destacar que uma de suas principais
obras teóricas pela defesa e implantação da república foi escrita quando ainda estudava na
província paulista: A República Federal, que tem sua primeira edição em 1881. Também é dos
tempos de estudante o texto sobre a “gloriosa” Revolução Farroupilha (1835-1845) e a
“atmosfera moral” dos fatos políticos que desembocaram na sublevação farrapa. Construção
discursiva que faz uso do importante exemplo histórico de implantação de uma república em
tempos de Monarquia. Episódio nacional utilizado e interpretado por Assis Brasil para compor
sua argumentação de combate ao Império. Como se evidencia, por exemplo, na seguinte
passagem: “ainda mesmo depois que o império das circunstâncias obrigou os rio-grandenses a
proclamarem-se independentes, em todos os atos oficiais do efêmero governo em que havia
referência à separação da província, aparecia mais ou menos explícita a mesma idéia da
federação”.276 O tom crítico imposto na narrativa permite, a partir de um exemplo histórico,
propagar em seu presente a possibilidade de implantação de uma república federal para o
Brasil.277 Vale relembrar que Alberto Sales também dedica uma de suas obras, A Pátria
Paulista, para tratar da província de São Paulo e da necessidade de separação para,
posteriormente, encontrar-se em uma república federal, justificando o princípio federativo
através da lógica positivista de movimento do “homogêneo para o heterogêneo”, mais um
exemplo de empréstimo feito do vocabulário científico adotado pela tríade republicana.
Tanto o escrito político rio-grandense, quanto o paulistano utilizavam o passado para
uma nova construção de personagens, episódios e tradições que pudessem gerar um paralelo
com o presente, e assim, viabilizarem outra história possível, em alternativa da oficial criada
pela monarquia à nação. Elaborava-se uma narrativa republicana própria que ao ganhar vulto
gerava uma linguagem de grupo que buscava legitimar-se através de uma “nova tradição
republicana”, versão paralela e combativa à “antiga tradição imperial”. Novas interpretações e
versões que promovessem o quanto antes a mudança de regime.
Desse modo, ainda estudante de Direito em São Paulo, escrevia textos emblemáticos à
causa republicana. Também chegou a dirigir com Pereira da Costa e Júlio de Castilhos o
276
Ver BRASIL, Joaquim Francisco Assis. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: ERUS, 1981,
p. 74.
277
A referida obra foi uma encomenda feita a Assis Brasil pelos colegas republicanos da Faculdade de Direito
que também pertenciam ao “Club Vinte de Setembro”, associação republicana que queria realizar uma
comemoração ao 47° aniversário da Revolução Farroupilha. O texto de Assis Brasil foi publicado em 1882,
tratava-se de uma edição “incompleta”, tendo sido esperada uma versão definitiva e mais completa que não
fora feita.
137
jornal acadêmico, de curta tiragem (de abril a setembro de 1879), chamado A Evolução (SP),
colaborando em verso e prova, como pode ser lido abaixo em “O pezadello”, a 30 de junho de
1879:
É bello ser assim: temido e soberano;
Não encontrar jamais um só poder no mundo;
Que me quebre a vontade ao grande sceptro ufano!
Mais uma referência direta ao episódio singular da Revolução Francesa (1789) e a fase
de obscurantismo, identificado por Assis Brasil, pelo qual o país atravessava, haja vista que a
educação republicana ainda não tinha sido capaz de trazer as luzes à nação. Vale ressaltar que
enquanto na França acontecia a Revolução Francesa, em 1789, no Brasil se tinha a
Inconfidência Mineira. Posteriormente, a figura emblemática de Tiradentes despontou como
herói aos republicanos que o retomaram como um dos mitos nacionais construído e
apresentado em seus escritos políticos para ir de encontro ao Império, lido como: tirânico,
violento e opressor. A construção e retomada de heróis da nação era usada no convencimento
à causa republicana como mais um elemento discursivo importante retirado da História e
propagado à Nação.
Segundo o pensador, a população brasileira deveria instruir-se não apenas
formalmente, mas também através de uma educação pautada nos valores da república. Por
isso, Assis Brasil é mais um defensor da propaganda republicana de caráter pedagógico para
os cidadãos. Pautada no vocabulário da política científica, cuja crença no progresso, a marcha
da Humanidade e a superação do estado metafísico, no qual se experimentava a tirania, o
atraso e a corrupção, deveriam ser superados pela adoção às ideias republicanas, que
anunciavam o novo regime a ser instaurado, inaugurando assim a fase positiva nacional. Não
por acaso, o jornal acadêmico se chamava A Evolução.280 Aliás, os nomes das obras
produzidas por Assis Brasil já anunciavam de imediato o posicionamento político e
apontavam, em poucas palavras, o tipo de república que defendia.
Temos também como exemplo O Oportunismo e a Revolução (1880), título dado ao
discurso proferido na conferência de abertura do Club Republicano Acadêmico, fundado por
ele mesmo junto aos colegas de faculdade em São Paulo,281 dentre os quais se destaca o
positivista Júlio Castilhos. O referido discurso dá o tom exaltado de crítica à monarquia do
279
Idem.
280
A folha A Evolução era um jornal acadêmico de propaganda republicana, que circulou na cidade de São
Paulo, entre os meses de abril e setembro de 1879, possuía publicação quinzenal e em sua redação atuavam
Assis Brasil, Pereira da Costa e Júlio Castilhos (fundador).
139
então jovem conferencista estudantil Assis Brasil e permite a constatação de sua habilidade
retórica. Os argumentos contidos no discurso permanecem posteriormente e perpassam obras
importantes do pensador, como em A República Federal (1881), e também apontam a
possibilidade de identificação de escolha de uma elaboração narrativa feita a partir da
combinação de argumentos antitéticos para afirmar como deve ser a política (tendo como
exemplo a futura república), versus, do que não deve ser a política (tendo como exemplo a
monarquia vigente). Assim, “passa a refutar, uma a uma, o que identifica serem as alegações
monarquistas correntes, detratoras da República”.282
A estratégia combativa adotada na narrativa era desdizer os argumentos de sustentação
monárquicos, pois ao deslegitimar seus alicerces, criar-se-ia o espaço necessário para a
fundamentação de outros pilares: os da república liberal que propagava. A lógica de opostos
construída, juntamente com a ideia adotada e compartilhada com outros propagandistas de
“oportunismo político”,283 permitia a elaboração de um discurso, em linhas gerais, muito
próximos entre os propagandistas da república liberal. O novo sistema político deveria ser
implantado o quanto antes fosse possível às circunstâncias nacionais, a ideia de evolução era
adotada, contudo se fosse muito tardia à mudança de regime político, a ideia de revolução era
considerada, ambas, evolução e/ou revolução284 eram aceitas. Contudo, a revolução era
entendida como último recurso, sempre agindo em um momento oportuno, pois em “um
281
Vale sublinhar mais uma vez a importância da Faculdade de Direito de São Paulo como um espaço de
constituição do pensamento e, consequentemente, de uma mesma visão de mundo. Essa rede de estudantes
formados a partir de um espaço de compartilhamento e debate de ideias fez com que muito do que viria a
ser o discurso republicano-liberal fosse de lá constituído e disseminado. O lugar de fala de Assis Brasil, ao
proferir seu discurso O Oportunismo e a revolução (1880), era o Club Republicano Acadêmico, em São
Paulo, mas ao graduar-se retorna à província do Rio Grande do Sul e continua por lá a disseminar seus
ideais republicanos. O porvir do contexto linguístico, identificado entre São Paulo, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul, vem muito também dos anos de formação dos principais teóricos e propagandistas da
república de viés liberal em São Paulo.
282
Ver HOLLANDA, Cristina Buarque de (Org.). Joaquim Francisco de Assis Brasil: uma antologia política.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. p. 33.
283
A estratégia do “oportunismo político” não era exclusiva de Quintino Bocaiúva, como visto anteriormente,
Assis Brasil também escolhe pra si a postura de implantar a república no Brasil tão logo as condições
fossem favoráveis a sua proclamação.
284
“Tentamos por todos os meios pacíficos, pelo preço dos maiores sacrifícios, pela mais tenaz abnegação,
enxotar do nosso seio a fera que nos degrada. A república é legítima, a república é oportuna: procuremos
firmá-la, quebrando a vontade dos déspotas pela mais digna de todas as revoluções, pela revolução que não
derrama sangue e não faz cadáveres. Mas se, entretanto, o poder resistir – se a tirania levantar em torno de
si, contra a vontade nacional, uma floresta de baionetas -, devem, porventura, recuar atemorizados e
vencidos os soldados da liberdade? Não! Se a luta for imprescindível, se imprudentemente a ela nos
provocarem, aceitemo-la, lutemos pela justiça, pelo direito, pela liberdade – embora seja necessário
derramar um mar de sangue! Contando que do, seio agitado desse mar sombrio, se levante esplêndida e
serena, lavada de todas as nódoas, limpa de todas as máculas, a veneranda imagem da pátria!”. Esse trecho
do discurso inflamado de Assis Brasil, O Oportunismo e a revolução (1880), demonstra que, embora a
postura de evolução ficasse à frente da ideia de revolução, esta última não era descartada, mas, sim,
entendida como recurso final à derrubada do império e instalação da república liberal. Ver HOLLANDA,
Cristina Buarque de (Org.). Op. Cit., p. 55.
140
ambiente político alheio e mesmo hostil ao princípio da soberania popular, a revolução seria
um movimento legítimo de reação contra a ‘usurpação da liberdade’, o verdadeiro
oportunismo, portanto”.285 Não por acaso, o título de seu discurso seria O oportunismo e a
revolução, nesta obra de propaganda o então estudante Assis Brasil faz uso de recursos
retóricos, a partir do vocabulário da política científica, para deslegitimar a monarquia ao
mesmo tempo que legitima a ideia republicana. Os episódios históricos tão logo são
apresentados, Tiradentes, por exemplo, é retomado como herói republicano, morto pela
tirânica e opressora Coroa, que se dizia ser representante de Deus, divina, mas que não
obedece, por isso mesmo, a soberania da razão, a soberania nacional, a soberania popular, que
ela própria não reconhece e respeita. Porque se assim reconhecesse não existiriam tantos
sofismas e argumentos para sua manutenção no poder de forma perpétua. Porque, segundo
Assis Brasil, se as gerações não são perpétuas ela, a monarquia, também não há de ser.
Posteriormente, explicita o que entende sobre o “oportunismo político” e a sua relação com a
implantação da república no país:
não passemos adiante, entretanto, sem notar que esta doutrina do oportunismo é
nova no Brasil: veio-nos de uma imitação francesa. Vede, cidadãos, a coerência dos
nossos adversários: acusam-nos de imitadores inconscientes dos Estados Unidos, da
própria França; mas não sabem olhar para si, não sabem ver que são eles os
verdadeiros imitadores, que este último obstáculo que levantam à liberdade da pátria
é uma baixa, uma servil imitação.286
Ainda destaca que tudo está sob a marcha progressiva da humanidade, através das leis
rigorosas advindas da ciência, pois
é claro que cada coisa, cada instituição política ou social tem, para concretizar-se,
seu período próprio, sua época exata. Fazer cada coisa ao seu tempo, acompanhar
cientificamente este desdobramento progressivo, nada fazer de encontro as suas
imperiosas exigências – eis no que consiste o legítimo oportunismo.287
285
Ibidem, p. 34.
286
Ibidem, p. 39.
287
Idem.
141
A partir de então, Assis Brasil trava um longo diálogo com os argumentos advindos de
seus opositores monárquicos para justificar que o que é inoportuno ao Brasil é a manutenção
do império no país. Pela lógica dos contrários, subverte as alegações de permanência da
monarquia em prol do estabelecimento da república. Desse modo faz uso dos mesmos
recursos e argumentos utilizados pelo grupo republicano que é partícipe, inicia com a crítica a
centralização monárquica, a crítica aos privilégios e corrupção identificados como
provenientes das famílias de nobres, ressalta o caráter opressor e tirânico da Coroa, sublinha a
necessidade de instrução288 da população para formar e informar os cidadãos contra a
monarquia e, a partir disso, propiciar o surgimento de uma opinião pública no país, também
destaca a necessidade de reformas político-sociais advindas dos autores modernos, chegando
a citar o pensador francês Augusto Comte e o escritor, diplomata e político chileno José
Victorino Lastarria, faz uso de momentos históricos nacionais e internacionais como, por
exemplo, a Revolução Francesa ou ainda da constituição das repúblicas vizinhas hispano-
americanas. Características discursivas essas comuns entre os escritos do trio republicano,
muitas delas, inclusive, provenientes do ambiente estudantil paulista.
A construção narrativa sob a ótica da política científica, com pares de opostos, com a
recuperação dos heróis e momentos nacionais que remetessem às experiências republicanas,
bem como os episódios históricos mundiais e menção aos pensadores ilustres das reformas na
Modernidade são alguns dos importantes recursos retóricos e argumentativos utilizados por
Assis Brasil, ainda em tempos de faculdade, e que permanecem em grande parte em uma das
suas obras de maior contribuição de cunho teórico-político, publicada no ano seguinte ao
discurso O oportunismo e a Revolução, de 1880.
A obra de fôlego, feita também ainda quando da graduação em Direito é um bom
exemplo – A República Federal, de 1881, embora seja um de seus primeiros escritos, teve
papel fundamental na propaganda partidária. Assis Brasil pode ser considerado um dos
principais teóricos da corrente republicana de viés liberal, pois, em sua referida obra, 289 o
288
Em relação à educação no império, Assis Brasil faz duras críticas ao que seria, a seu entender, uma “sangria
monetária” de gastos feita pela monarquia com seus privilégios dinásticos, pois “as famílias de vadios”
gastam o dinheiro que deveria ser usado também para prover a instrução à população que em matéria de
educação era muito atrasada, sobretudo pela falta de investimentos e gastos excessivos com a própria Corte.
Nesse mesmo momento, há no discurso O Oportunismo e a revolução, proferido pelo gaúcho, em São
Paulo, a menção ao importante órgão oficial republicano na Corte – A República (RJ), o que demonstra o
diálogo próximo e constante entre as regiões e os propagandistas que propiciaram a construção de um
contexto linguístico republicano-liberal, como pode ser lido no seguinte trecho: “A todo momento se estão
fechando escolas: mas ninguém sonha em restringir as despesas supérfluas, as despesas de luxo, que faz
principalmente certa família vadia, indispensável na monarquia. Tenho aqui, a este respeito, uns
apontamentos interessantes, extraídos de um inventário da monarquia publicado pelo excelente órgão
republicano, A República, que aparecia na corte”. Ver Ibidem, p. 42.
289
Ver BRASIL, Joaquim Francisco Assis. A República Federal. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1881.
142
Na democracia todos os poderes publicos são delegações do povo, que, para tal fim,
elege funccionarios por tempo determinado, podendo, conforme o systema usado,
cassar-lhes ou não o mandato, antes da conclusão d'esse prazo. O caracter essencial
da república é a ausencia absoluta de privilegios de toda e qualquer especie; por
isso, só ha democracia, na republica; por isso deixo ja de considerar a distincção,
admitida por alguns, entre republica democratica e aristocratica. Toda republica é
democratica, isto é, é o govêrno de todos por todos, sem distincção de classes, de
fortunas ou de qualquer outro genero.290
290
Ibidem, p. 3.
291
Ibidem, p. 5.
143
pelo autor como o “meio do caminho”, “o nível intermediário”, entre a luta do povo pela
liberdade contra a monarquia e seus privilégios.292 Desse modo, afirma Assis Brasil que
292
Sobre a “evolução social”, segundo Assis Brasil , ver Ibidem, p. 16-21.
293
Ibidem, p. 21-22.
144
república poderia “prevenir éstas duas grandes desgraças, que apertam o paiz ‘no círculo de
aço d'um dilemma terrivel: - atrophia, ou a revolução”.294
Ir de encontro à atrofia e à implantação da república via revolução, eram preocupações
que se alinhavam à identificação do momento oportuno para a instalação do regime
republicano, por isso a necessidade de conscientização de todos de que a igualdade e o bem
comum deveriam superar os interesses pessoais e a corrupção associadas à monarquia
constitucional. Idealizava-se um discurso republicano que fosse “a expressão da soberania
popular” que, pelo direito ao sufrágio universal exercido pelo povo, conseguisse instaurar o
ideal de autogoverno. Contudo, é importante ressaltar que, embora o direito do voto fosse
universal, seu exercício não o era. Assis Brasil aborda a forma pela qual se daria o sistema
representativo, mas é em uma de suas obras posteriores que analisa de forma mais densa o
tema. Em 1895, publica a obra Democracia Representativa: do voto e do modo de votar. 295 O
autor trata, entre outras questões, da diferença entre o direito de sufrágio universal e quem
teria o seu pleno exercício, pois “a universalidade é do direito, não de seu exercício”. 296
Assim, não tinham o exercício do voto, por exemplo, loucos, menores, mulheres, analfabetos,
entre outros. Argumentava o autor que era uma questão de “capacidade” que poderia ser
revertida, como, por exemplo, em relação aos menores que logo atingiriam a idade apropriada
para o exercício do voto, ou então, no caso das mulheres, estas não se encontravam
capacitadas para o voto, mas afirmava que logo estariam aptas, pois com a “educação em
vigor” se permitiria a atuação das mesmas no exercício da política, ou ainda em relação aos
analfabetos que “não ha remédio, portanto, senão colher a todos os analphabetos na regra
geral de que são incapazes de escolher conscientemente bons representantes. E, se algum
houver que se sinta prejudicado com a exclusão, o remédio é conhecido: aprenda a ler e a
escrever”.297
Desse modo, Assis Brasil ressalta que
299
Ibidem, p. 82.
300
Ibidem, p. 245-246.
301
Ibidem, p. 300.
146
na marcha do progresso, era necessário, o quanto antes, pertencer a América e ser, de fato,
americano. O que configura um argumento retórico importante no convencimento, já que faz
uso de um relevante exemplo político do período: a situação do Brasil comparada às
repúblicas vizinhas.
O exemplo político de fragmentação dessas mesmas repúblicas vizinhas do Brasil era
utilizado pelos opositores da república liberal de forma contundente, pois afirmavam poder
acontecer aqui o mesmo que com as outras repúblicas da América, caso o país adotasse a nova
forma de governo, andaria a passos largos para a desintegração territorial. Assis Brasil
questionava o argumento e justificava que cada povo possuía características próprias de
“costumes, tradições, índoles” que não permitiam a comparação com o Brasil. Aquilo que
realmente ameaçava a manutenção territorial era o unitarismo monárquico que forçosamente
agregava sob um centro opressor toda variedade contida nas regiões brasileiras. A falta de
autonomia sufocava as regiões que cada vez mais se sentiam desejosas de maior liberdade e
autonomia, não por acaso episódios de viés separatistas aconteceram na história do Brasil
(mais uma vez o recurso à história é utilizado pelo autor). A solução só seria possível através
da autonomia dada às várias regiões para resolverem seus próprios negócios, permanecendo
unidas para o trato de questões que fossem referentes aos interesses comuns.
O federalismo era essencial para que a harmonia fosse mantida e as rivalidades entre
regiões fossem solucionadas. Por isso, defende Assis Brasil que
Esses foram os pontos centrais defendidos nos principais escritos políticos de Alberto
Sales, Quintino Bocaiúva e Assis Brasil, representantes da corrente republicana liberal que
com seus discursos estabeleceram uma unidade capaz de atacar de forma eficaz o regime
302
Ibidem, p. 226-227.
147
deveria ser superado pela “república federal” - título, inclusive, recorrente em algumas das
principais obras produzidas na fase do republicanismo dos anos de 1880, como fora
destacado, dentre as quais a do próprio Assis Brasil.
Contudo, finda sua estada na academia de Direito de São Paulo, período de produção
da obra supracitada, retorna à província gaúcha como bacharel e inicia importante propaganda
partidária sulista, tanto através de suas obras de cunho mais teórico-político, como também
através das falas proferidas, quando deputado na Assembleia Provincial, durante os períodos
que esteve como representante republicano (1885 a 1888). Muitos desses discursos proferidos
por Assis Brasil foram publicados nos jornais ligados ao Partido Republicano. Destaca-se, por
exemplo, o jornal rio-grandense, A Federação, órgão oficial do Partido Republicano na
província e que registrava os embates ocorridos na Assembleia Provincial à época, como pode
ser lido no trecho a seguir, publicado em 08 de dezembro de 1885, entre o então deputado
provincial republicano Assis Brasil e o representante do liberalismo monárquico Silveira
Martins:
Entraram em nobre lucta dois elementos que vem travando acirrado combate desde o
fundo da história: a verdade que se encaminha á preponderancia e a argucia que
tenta envolvel-a no véo da obscuridade.
De um lado erguia-se o destemido paladino do liberalismo monarchico a fazer um
supremo appelo a todo o seu engenho e a todos os seus recursos tribunicios para
tentar vencer pela argucia a verdade, que por outro modo não póde ser obscurecida.
É mister reconhecer que as duas causas não podiam ser melhor defendidas.
Si a palavra do tribuno republicano lampejou luzente e certeira, defendendo a
necessidade da Republica no Brazil, em nome da sciencia, em nome da logica
politica, em nome do conjuncto solidario da complexa situação nacional, não é
menos certo que, si a causa do monarchismo decadente e desorientado póde ter uma
defesa habil e apparentemente valiosa, essa defesa foi hoje produzida pelo sr.
Silvério Martins, que como dissemos, socorreu-se de todos os estratagemas ao seu
alcance.
Do que dizemos já póde o leitor concluir que o discurso do sr. Assis Brasil teve por
objecto a demonstração cabal e irrefragavel da opportunidade e da necessidade de
federação republicana, como a condição suprema da unidade nacional e de garantir
na nossa patria a verdadeira ordem sem a perturbação das funções do nosso
progresso; assim como o do chefe liberal consistiu em sustentar a these contrária,
apresentando a monarchia como perfeitamtente compativel com a felicidade d’este
paiz americano.
Por vezes o orador republicano golpeou fundo o edificio metaphysico.303
Tomou, então, a palavra o sr. Assis Brasil, que, de conformidade com os estylos que
permitem a livre explanação de assumptos políticos em dedates d’essa ordem,
serviu-se do ensejo para fazer a affirmação vigorosa, incisiva, viril e sincera dos
principios cardeas da grande politica de que é digno representante na assembléa.
N’esse empenho, devemos dizel-o o sem parcialidade e sem espirito de
partidarismo, o deputado republicano conduziu-se com uma galhardia e brilhantismo
inexcediveis.304
N’essa situação anomala foi o orador buscar mais uma justificação do libello
republicano contra o império, que tem um systema que não é systema, porque é o
arbitrio, a tyrannia e a violência em acção, privando as provinciais da sua liberdade e
da sua autonomia, coarctando a iniciativa da assembléa provincial, que póde se
tornar de facto uma excrescencia ao talante dos delegados do centro e do poder
imperial omnimodo e sem restrições.
Por isso mesmo, disse o orador, é que o partido republicano, só conhece um systema
legitimo, racional e fecundo: é a federação.
Considerando a idéa federal, que foi, por assim dizer, a espinha dorsal do seu
discurso, o deputado republicano fez sobre o systema federativo uma exposição
succinta, mas nitida, precisa e exacta, para concluir que só a Republica se póde
adaptar á federação e que a monarchia federativa é um systema irrealizavel, porque é
um absurdo scientífico.305
304
Idem.
305
Idem.
150
o regime monárquico não poderia guardar em si margem para a aplicação do federalismo, que
só seria plenamente experimentado quando da instauração da república.
Não por acaso, no livro A República Federal, Assis Brasil abre os debates com o
capítulo destinado às formas de governo, para assim estabelecer a incompatibilidade da
monarquia, mesmo a constitucional, permitir o princípio federalista, tão buscado pelos grupos
insatisfeitos que representavam as localidades que compunham o Império.
É no mesmo ano do discurso supracitado, proferido por Assis Brasil na Assembleia
Provincial, que a folha oficial gaúcha publica a notícia sobre a segunda reedição da obra de
1881 do autor, divulgação que vem acompanhada de texto elogioso ao expoente republicano,
destaca o pensamento da política científica, faz uso do vocabulário pautado em sua lógica e
ainda agradece a província de São Paulo por custear essa nova impressão de texto
considerado fundamental à causa:
a reimpressão de dez mil exemplares que recentemente saiu do prélo, custeada pelos
republicanos paulistas, não significa somente um valioso serviço consagrado á
propagação da idéa.
A sua iniciativa é também um eloquente atestado de generoso espirito de co-
religionarismo d’esses infatigaveis luctadores e da bellissima solidariedade que
reciprocamente nos vincúla, - republicanos paulistas e rio-grandenses.307
307
Idem.
308
Ver PINTO, Paulo Brossard de Sousa (Org.). Idéias políticas de Assis Brasil. Brasília: Senado Federal; Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1989, p. 26.
152
disseminar o ideal de república foram registradas nos vários periódicos, desde os anos de
1870 e 1880,309 visto ser comum a divulgação de sua participação nos Clubes Republicanos
pelo país, de sua candidatura, reimpressão de livros, viagens, discursos proferidos na
assembleia provincial e demais atuações.
O conjunto de escritos políticos ligados ao republicanismo dos anos de 1880 foi
caracterizado como o mais intenso e combativo, na virada de 1889-1890, ainda meses antes
da proclamação, escreveu Assis Brasil um manifesto ao eleitorado do 3º distrito eleitoral, em
agosto de 1889, publicado na folha A Federação (RS):
Desgraçado o brasileiro que, entre a defeza de uma nobre causa, qual a da verdadeira
independencia da sua Patria, e a defeza dos interesses de uma família, que já tanto
nos tem sugado, optar por esta!
Não compareço ás urnas só para vencer, bem que não descreia da victoria. Votando
no candidato republicano, demonstrando a força da opinião que não subscreve a
baixeza do 3º reinado, vós contribuires para encaminhar para a solução pacifica, que
todos desejamos, a grande questão politica, que já hoje é impossível retirar do
terreno da lucta e que ha de ser decidida por bem ou por mal.
Não é a phantasia de um homem que o diz: é a alma da Patria que revoltada o
reclama.
Cruz alta, 6 de agosto de 1889.
J. F. de Assis Brasil310
A veemência e o caráter combativo adotado, tanto de Assis Brasil, quanto dos dois
outros companheiros de propaganda política trabalhados nos capítulos anteriores confirmam a
criação de uma mesma linguagem republicana, experiência compartilhada de forma mais
intensa no contexto histórico do republicanismo dos anos 80. A eficiência em usar, adaptar e
criar novos significados atrelados aos conceitos de república, federalismo e democracia fez
surgir um singular debate que culminou na queda do império, pois
309
Apenas para citar alguns periódicos: A República (RJ) e (SP), O Cruzeiro (RJ), Diário de Notícias (RJ), A
Federação (RS), Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul, entre outros.
310
Ver A Federação (RS), 1889.
311
Ver Diário de Notícias (RJ), 1890.
153
Seguiu na vida política, como diplomata e propagador das ideias republicanas. Abaixo,
por exemplo, está uma imagem de Assis Brasil, em 1906, já nos anos iniciais da República,
quando fora o ministro brasileiro em Buenos Aires e secretário-geral da Terceira Conferência
Pan-Americana, realizado no Rio de Janeiro. A foto é por ocasião de um almoço oferecido ao
político rio-grandense, o que demostra sua permanência ativa na vida pública do novo regime,
bem como seu prestígio e reconhecimento dentre homens de letras e políticos no Rio de
Janeiro e no país.
312
Idem.
313
Ver A Federação (RS), 1889.
314
Ver PINTO, Paulo Brossard de Sousa (Org.). Op. Cit., p. 35.
154
Figura 13 – Almoço oferecido a Assis Brasil (o quarto membro sentado da esquerda à direita),
em 3 de outubro de 1906.
Fonte: Coleção Augusto Malta – acervo Museu da Imagem e do Som (RJ) - Há descrição
colada logo abaixo da imagem, na página do álbum de fotografias ao qual a referida foto
pertence. O álbum fotográfico foi produzido pelo próprio Augusto Malta, à época de sua
atividade como fotógrafo oficial da cidade do Rio de Janeiro. Segue a descrição:
sentissem frustrados a posteriori da Proclamação, com o hiato imposto entre o ideal e o real
do recente regime. De todo modo, uma vez proclamada a república brasileira, o trabalho de
permanente legitimação em detrimento da memória imperial continuou. Se antes o progresso,
a razão, as luzes, a ciência eram certezas apresentadas na guerra das palavras contra o
império, no momento seguinte da proclamação deviam sair do discurso e serem
experimentadas no recente contexto histórico. Nesse momento, o discurso deveria fazer-se na
realidade, na experiência da res publica. O desafio estava posto.
156
5.1 Republicanismo
316
Sobre a historicidade e seus regimes, ver HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e
experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
157
Shakespeare, por exemplo, deixou uma obra monumental e atemporal sobre os desejos
humanos e as várias formas de lidar com os sentimentos na sociedade inglesa dos séculos XVI
e XVII. Cobiça, raiva, ódio, rancor, tristeza, amor, paixão, ganância tudo posto para
identificação de sua plateia. A recepção de sua obra ultrapassa a barreira do tempo-espaço e,
por isso mesmo, até hoje seus textos são cheios de sentido, haja vista as incessantes releituras,
estudos e adaptações atuais. Da mesma forma, Machado de Assis, no Brasil do Oitocentos,
trouxe à consciência que, quando se trata de sentimentos, não há demarcação histórica, isso
tudo porque é próprio do homem sentir e desejar, seja no Renascimento inglês, ou no Brasil
oitocentista, ou na contemporaneidade.
O equilíbrio entre os pares de opostos “pulsões individuais versus coletividade” foi
sempre a grande questão humana, seja na esfera particular do self, seja no público, enquanto
agente do bem comum. Assim sendo, para ir de encontro ao estabelecimento de uma
catástrofe social, há a necessidade de manutenção e criação de espaços partilhados, de valores
comuns que estabeleçam elos sociais, indo na contramão da atomização e do individualismo
extremo, tão marcantes nos tempos atuais, cuja perversa lógica de mercado institucionaliza
um arcabouço ideológico baseado no caráter egóico do ser.
A tarefa é complexa e está sempre inacabada em um eterno fazer-se social. Tornar o
mundo possível ao outro é permitir o mesmo para si, olhar para o outro e se ver na imagem é
excluir preconceitos, é estar aberto. Obviamente, esse exercício de predisposição social
depende da constituição de valores comuns, de uma identidade baseada na ideia de coletivo,
de espaços partilhados para a experiência de um sistema pautado no entendimento de bem
comum.
Entendendo a república e seus valores como tradição, ou seja, como sistema que
permaneceu no ideário brasileiro em diferentes contextos da vida nacional, será travada, a
partir desse momento, uma discussão com alguns dos principais pensadores que se dedicaram
ao tema do republicanismo. A tradição republicana foi lida de forma híbrida na Modernidade,
por isso travar um diálogo com suas diferentes possibilidades ajuda na compreensão de seus
valores e, sobretudo, de sua pluralidade, pois os vários significados a ela atribuídos ao longo
da História atestam a república enquanto conceito que agrega em si experiências e
expectativas, ontem e hoje. Por isso, pensar a república brasileira foi um exercício realizado
de forma extensa, tamanha a relevância e a atualidade da questão. Vários foram aqueles que
contribuíram com interpretações sobre o sistema republicano e suas implicações. Dentre eles,
podemos destacar, por exemplo, Renato Janine Ribeiro que, ao definir a república, atribuiu
dois sentidos ao conceito, pois observou que res publica poderia ser entendida tanto como
158
conjunto de valores originários da virtude romana que prezassem pela ética na esfera política,
como também um regime político que teria o dever de promover a coisa pública.
O desafio posto está em como promover o bem comum em um mundo cuja principal
característica é a preponderância do interesse particular frente ao que é público. Desafio que
sem ser refletido e enfrentado gerará cada vez mais corrupção. A relação entre república e
corrupção na Modernidade é bastante significativa. Diferentemente das repúblicas antigas,
que eram “obcecada[s] por excluí-la: um intenso e incessante trabalho pedagógico buscava
esconjurá-la. Modelos se apresentavam aos cidadãos, para educá-los na primazia da coisa
pública sobre o desejo ou interesse pessoal”.317 A república romana é, por excelência, o
exemplo de trabalho pedagógico na instrução das futuras gerações ao caminho da virtú. Os
exemplos passados eram narrados por Salústio, em A conjuração de Catilina,318 para guiar as
ações no caminho da abnegação, o que garantia o bom funcionamento da res publica.
Contudo, modernamente a dificuldade se impõe no desafio de conseguir canalizar o
interesse individual, existente em um mundo cada vez mais egoísta e atomizado, na promoção
e manutenção da coisa pública. É justamente nessa interrogação de como canalizar o interesse
particular em algo capaz de promover o bem comum que se coloca uma das principais
questões da Modernidade, já que não há como exigir a abnegação em busca da virtude
romana, pois com o advento do capitalismo e o valor dado à satisfação pessoal, “a capacidade
de fazer o bem comum passar à frente dos interesses privados”, 319 torna-se anacrônica. Afinal,
modificam-se os valores republicanos pautados na virtude, bem como a participação política,
visto que agora não há mais espaço para atuação do cidadão em praça pública. O que existe é
a representação através de eleições.
Se foi o capitalismo, com sua lógica de mercado, o sistema capaz de promover a
mudança de valores, impossibilitando o pleno exercício da virtude romana, fez-se necessário,
a partir de então, pensar uma república que, embora ainda conservando o lugar da ética na
política e do comprometimento com a coisa pública, consiga realizar seus fins através de
outros caminhos. Alguns desses caminhos são apontados por Renato Janine Ribeiro, como,
por exemplo, a construção de valores via educação, a criação de instituições que canalizem o
interesse bem compreendido em direções positivas, a realização da observação atenta das
modificações sociais, para assim construir novos meios de promover a sociabilidade e, com
317
Ver RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 174.
318
Ver SALÚSTIO. A conjuração de Catilina. Petrópolis: Vozes, 1990.
319
Ver RIBEIRO, Renato Janine. Op. Cit., p. 168.
159
isso, permitir o estabelecimento de elos capazes de criar espaços comuns, tornando possível a
república.320
A preocupação em converter as pulsões individuais em espaços públicos capazes de
assegurarem o bem comum explica o porquê do retorno de se pensar a política e, sobretudo, a
temática da res publica na contemporaneidade.
Ao revisitar os textos clássicos, Sérgio Cardoso também faz um exercício de reflexão
da república na Modernidade, no intuito de pensar a volta do republicanismo. Sérgio Cardoso
ao estabelecer um diálogo com os textos da Antiguidade Clássica observa que embora
existissem diferenças entre as concepções de república defendidas por Aristóteles e Platão,
ambos buscavam um “governo misto” que fosse harmônico, capaz de gerar um equilíbrio
entre os diferentes componentes da comunidade. Essa busca pela justa medida, pelo equilíbrio
das partes dentro do todo, fez com que se fundasse a tradição do pensamento republicano que,
em um mundo regido pelas leis de mercado, tenta encontrar saídas possíveis para que das
pulsões individuais se crie espaços públicos harmônicos.
No entanto, a necessidade de criar espaços públicos se torna cada vez mais complexa
na Modernidade, visto a dificuldade em transformar as pulsões individuais em interesses
partilhados capazes de criar elos sociais e, consequentemente, espaços comuns. Afinal, o
mundo capitalista é constituído de ambições, com a “celebração da expansão do mercado e da
esfera dos interesses privados, à retração do espaço público e das regulações políticas”. 321
Contudo, é importante lembrar que as pulsões individuais são reguladas e freadas nas
repúblicas pela via constitucional, ou seja, o apego às leis e à sua constante adequação às
circunstâncias históricas que demandam sua reapropriação e atualização às mudanças
temporais garantem
Segundo Sérgio Cardoso, é de acordo com a fundação política da república e suas leis
que se dá a disposição coletiva para a integração de interesses, já que as leis devem expressar
320
É importante ressaltar que o estudo feito por Renato Janine Ribeiro opta pela oposição entre república e
democracia, pois este acredita que, para efeito de análise dos dois regimes, a separação contribui para o
melhor entendimento sobre a política. Ver RIBEIRO, Renato Janine. “Democracia versus República. A
questão do desejo nas lutas sociais”. In: BIGNOTTO, Newton (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. p. 11-25.
321
Ibidem, p. 28.
322
Ver CARDOSO, Sérgio. “Por que República?”. In: CARDOSO, Sérgio (Org.). Retorno ao republicanismo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 61-62.
160
a vontade de todos, assim é que se alcança a constituição do corpo político e a inserção dos
indivíduos sob um conjunto de leis comuns que visam atendê-los como um todo.
De fato, a utilização do conjunto das leis pelos cidadãos permite a transformação dos
diversos interesses em algo coletivo, bem como faz com que os indivíduos ajam de forma
ativa dentro do sistema.323
É ao constatar a complexidade da manutenção de interesses compartilhados em um
mundo que valoriza os desejos individuais que, assim como Renato Janine Ribeiro, Sérgio
Cardoso observa a volta do republicanismo e a importância do tema para se pensar a
contemporaneidade, pois o republicanismo, mesmo em um mundo atomizado, permite o
estabelecimento de “um espaço comum equalizador, definido pela implicação de todos os
cidadãos no sistema das decisões políticas”.324
A universalização dos direitos, a participação política, ou seja, a via republicana que
promove os elos sociais em um mundo cada vez mais pulverizado, também foi a preocupação
de Newton Bignotto ao pensar a república. No entanto, utiliza-se do humanismo cívico como
uma chave de leitura possível para se pensar o cenário político atual. O humanismo cívico,
segundo o autor, é um fenômeno que ocupa, ainda hoje, um lugar importante nas sociedades
contemporâneas, visto que possibilita observar as tentativas de intervenção do homem no
mundo. É pela chave interpretativa do humanismo cívico que o autor propõe a reflexão não
apenas da política contemporânea, mas, sobretudo, do contexto brasileiro.
Contudo, antes de pensar sobre a política atual, ou seja, sobre as ações do homem no
mundo, Newton Bignotto ressalta que, pelo menos, desde Santo Agostinho a contemplação
323
Em relação ao século XIX para o XX, Gladys Sabina Ribeiro, ao analisar os processos da Justiça Federal e
do Supremo Tribunal Federal, bem como a participação política ativa dos cidadãos na busca por direitos na
Primeira República, afirma ter ocorrido uma luta pela cidadania, já que existiam processos abertos pelos
cidadãos na busca pelos direitos que lhes cabiam, sendo um espaço dentro do Estado para ter seus
interesses atendidos, assim, segundo a autora, a “leitura dos processos aponta na direção contrária àquela da
“estadania”, pois as pessoas usaram o Poder Judiciário desde o período imperial para alargarem direitos, e
foram partícipes na configuração do Direito no Brasil”. Ver RIBEIRO, Gladys Sabina. “Cidadania e luta
por direitos na Primeira República: analisando processos da Justiça Federal e do Supremo Tribunal
Federal”. Tempo, v. 26, 2008. p. 109.
Penso que o espaço comum garantido pela Lei permite, sim, que os indivíduos participem de maneira ativa
da política e, assim, criem uma disposição coletiva na busca pelos seus interesses. Contudo, discordo de
Gladys S. Ribeiro em sua análise que abarca o período imperial brasileiro também como sendo um
momento do país em que a luta dos cidadãos pelos seus direitos os transformava em plenos “cidadãos
positivos”. Concordo com José Murilo de Carvalho quando faz uso dos conceitos de “estadania” e de
“cidadão negativa”, pois o longo caminho da cidadania percorrido pelo Brasil-Império teve como ponto de
partida a figura do Estado, ocorrendo de “cima para baixo”, diferenciando-se do que acontecera no Estado
Alemão apenas no que tange a falta de apego às leis e à transgressão das mesmas no Brasil. Embora, alguns
cidadãos tivessem recorrido ao Poder Judiciário para suas reivindicações serem atendidas, isso não faz com
que a população oitocentista brasileira como um todo possa ser vista como constituída de indivíduos
dotados de plena participação na vida do Estado.
324
Ver RIBEIRO, Renato Janine. “Democracia versus República. A questão do desejo nas lutas sociais”. In:
BIGNOTTO, Newton (Org.). Op. Cit., p. 29.
161
era a forma superior de ser no mundo. Estabelecia-se o paradigma cristão, marcado pela
adoção de uma vida contemplativa capaz de refrear a possibilidade de maior intervenção no
mundo.
Somente no Renascimento,325 com a tentativa de estabelecimento de uma vida ativa na
cidade, o paradigma cristão fora questionado. Naquele momento, os humanistas
estabeleceram um diálogo com o passado através do retorno aos textos da Antiguidade
Clássica, permitindo o pensar sobre os meios de intervenção no mundo, sendo capazes de
propor o retorno à vida ativa. Os humanistas reconheceram no espaço da vida pública a
possibilidade de ação no mundo e adotaram para si valores como coragem, prudência, o
exercício da liberdade, bem como recuperaram o valor dos discursos para a vida pública.
Assim, a retórica326 ganhou importância no exercício da vida ativa, sendo mais um meio
possível de dialogar e convencer à ação na cidade, pois
328
Ibidem, p. 49-69.
329
Ver BIGNOTTO, Newton. “Problemas atuais da teoria republicana”. In: CARDOSO, Sérgio (Org.).
Retorno ao republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 22.
163
o republicanismo cívico nos ensina é que a idéia de que o homem cria seu próprio
mundo vai de par com o fato de que o faz, tanto no tocante aos aspectos materiais da
sociedade quanto no tocante à sua dimensão simbólica, e que esse processo está
sujeito sempre a ser interrompido por um fluxo de acontecimentos que não pode ser
previsto pelos atores envolvidos na vida política. Essa dimensão essencial da
contingência presente nos processos históricos serve, no entanto, menos para afirmar
a impossibilidade de se conhecer os destinos do homem e mais para demonstrar o
caráter essencial da ação e da participação. Agir na cidade é, assim, menos uma
escolha de uma forma de organização do corpo político, como querem muitos
autores liberais, e mais a convicção de que não existe corpo político que possa abrir
mão da ação de seus membros.334
330
Ver BIGNOTTO, Newton. Op. Cit., p. 29.
331
Idem.
332
O modo de participação para lidar com os fenômenos políticos e com a corrupção, que eram ligados à
Fortuna, foi trabalhado por Felipe Charbel, na obra em que estuda as figuras de Maquiavel e Guicciardini.
Ver TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini.
Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010.
333
Ver SILVA, Ricardo. “Maquiavel e o conceito de Liberdade em três vertentes do novo republicanismo”. In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais - RBCS. Vol. 25, n° 72, fevereiro/2010. p. 44.
334
Ver BIGNOTTO, Newton. Op. Cit., p. 36-37.
164
Sendo assim, Newton Bignotto reforça a ideia de que o humanismo cívico é uma fonte
preciosa para ajudar a pensar questões centrais de nossa contemporaneidade, como, por
exemplo, a importância da construção de valores que garantam um espaço público harmônico,
ou mesmo, o estabelecimento de um debate crítico com o passado que não só sirva para
auxiliar nas ações no mundo atual, mas também que estabeleça a consciência de um passado
comum, ou seja, compartilhado, e, por isso, capaz de criar uma identidade que sirva como
mais um elo social.
As interpretações dos autores supracitadas estão pautadas em uma análise de república
baseada no diálogo travado com o modelo clássico, ou seja, aquele no qual se defende a
necessidade do bem comum sobrepujar interesses particulares em uma sociedade tão
notadamente desigual como a nossa. Caso contrário, o sentimento de desencanto e a
constatação da corrupção como um mal derivado da desarmonia política não apareceriam de
forma tão contundente em algumas análises. A história republicana brasileira sempre foi
fortemente marcada pelo desequilíbrio entre a pulsão individual frente ao coletivo.
Em relação ao Brasil, o exercício de implantação de uma república inspirada no
modelo clássico, ou mesmo de uma república moderna,335 encontrou bastante dificuldade, pois
o debate era a relação entre privado e público, indivíduo e comunidade.
As questões levantadas e os caminhos apontados parecem cada vez mais desafiadores
e fazem parte do centro das discussões atuais. O equilíbrio entre as esferas pública e privada
permanecem extremamente complexas e difíceis de serem minimamente harmonizadas, haja
vista as constantes denúncias de corrupção e transgressão que assolam a vida nacional e
invadem os meios de comunicação diariamente. Das questões sentidas no presente, busca-se
tornar inteligível, em outro contexto, que atravessava importantes mudanças estruturais, a lida
com as interrogações surgidas nos tidos “novos tempos”, também tomados pela corrupção e
negociatas à época, sobretudo devido ao duelo para se chegar aos cargos de mando na corrida
pelo protagonismo político do país, como apresentado nos capítulos anteriores.
A sociedade brasileira oitocentista foi lida na Modernidade pelos republicanos sob a
ótica do decadentismo, traduzido pelo vocabulário da política científica através, sobretudo, da
335
Muitos foram os autores que contribuíram com interpretações acerca da república brasileira e os possíveis
caminhos a serem traçados para que se pudesse ter uma experiência republicana legítima. Alguns deles
centraram suas análises em aspectos econômicos do país, outros políticos, ou ainda, culturais. Apenas para
citar alguns exemplos de análises feitas a partir da interpretação da república moderna brasileira temos, no
âmbito cultural, obras como as de Eduardo Prado, Aníbal Falcão, Manoel Bonfim, já na esfera econômica,
podemos destacar Serzedelo Correia, Joaquim Murtinho e, no campo político, Raymundo Faoro, Alberto
Torres e Gilberto Amado, constituindo bons exemplos interpretativos das várias formas de se pensar a
república no Brasil.
165
“Teoria dos Três Estágios” comteana e também de outras propostas similares que apontavam à
necessidade de aplicação das reformas sociais. Essas ferramentas teóricas permitiram a
interpretação e construção de um discurso deslegitimador do regime monárquico, ao mesmo
tempo que apresentaram um tipo de república adequada às circunstâncias nacionais, para
assim fazer sentido à sociedade brasileira.
É importante relembrar que uma das características centrais dessa mesma sociedade
era a inexistência da nação, ou seja, a falta de um sentimento de pertencimento comum capaz
de construí-la com elos sociais sólidos e eficazes na sustentação de uma nova gestão política
vinculada à ideia de bom governo. Seria essa, talvez, uma das razões da vitória liberal, em
1889, frente às outras propostas republicanas, jacobina e positivista. As derrotas sofridas pelas
referidas propostas atribuíam à república, respectivamente, ou um ideal ligado à liberdade dos
antigos (participação popular com instauração de um regime comprometido com o “bem
comum”, quadro esse que reivindicava a constituição da nação), ou então, iam na contramão,
implementar uma república ditatorial, através da ação de um Estado forte e intervencionista.
Tanto uma, quanto outra, não se adequavam às circunstâncias nacionais, pois se inexistia o
sentimento de pertencimento comum, como pleitear participação popular, do mesmo modo,
como um regime, que se baseia na premissa da falta de liberdade, poderia ser atrativo àqueles
que não fariam parte do seu círculo de poder.
Assim, a república de viés liberal, embora também fosse constituída por uma parcela
que buscava o protagonismo no campo político, apresentava em seu discurso uma
possibilidade mais ampla dos indivíduos buscarem satisfação pessoal, haja vista que o público
era entendido como sendo a soma de interesses particulares, o que aumentava a adesão à
causa, pois todos, enquanto indivíduos, poderiam ser incorporados, o que tornava a proposta
mais atrativa e adequada às circunstâncias da sociedade fragmentada brasileira do Oitocentos.
Edward Cyrill Lynch336 interpretaram o uso do referido conceito no tempo. Desse modo, o
conceito de República é estudado à medida que novos significados são a ele acrescidos, a
partir de diferentes contextos, o que evidencia a dinâmica da linguagem a partir dos novos
“jogos linguísticos”, provenientes das circunstâncias em que se apresentam e/ou se
modificam. Para isso, ambos os autores percorrem as diferentes significações dadas ao
conceito de república, sobretudo, entre os anos de 1750-1850 no Brasil.
Desse modo, destacam as modificações e permanências próprias da história dos
conceitos políticos no país através de suas circunstâncias e episódios. 337 Inicialmente,
apresentam o primeiro sentido de “bem comum” ligado à república. Posteriormente, afirmam
336
Ver STARLING, Heloisa Maria Murgel; LYNCH, Christian Edward Cyril. “República/Republicanos”. In:
FERES JÚNIOR, João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009, p. 225- 245.
337
Ao fazermos um paralelo com os momentos de tensão e disputa vividos no cenário nacional entre
republicanos e monarquistas em diferentes épocas é que se torna importante destacar também o trabalho de
Heloisa Starling em seu livro sobre o “ser republicano”, embora a referida obra tenha como foco o Brasil
Colônia, o estudo tem como grande contribuição trazer à luz experiências republicanas nacionais
mobilizadas por ideais de república que serviram para lutar por uma maior liberdade nos enfrentamentos
com a Coroa portuguesa. Episódios como as conjurações de Minas, Rio de Janeiro e Bahia, por exemplo,
além também da Revolução de 1817, em Pernambuco, constituem exemplos históricos de como, a partir
dessas experiências nacionais, pode-se entender os usos do conceito de república no Brasil e como o
mesmo fora posto em prática em diferentes tempos e espaços da vida política nacional. Afinal, segundo a
autora, a “América portuguesa não veio abaixo no final do século XVIII, mas quase. Os colonos estavam
cheios de ideias: combinaram princípios, noções e conceitos que revelavam uma nova maneira de explicar e
dar sentido ao mundo que viviam. Não estavam interessados num debate doutrinário: as ideias eram
absorvidas como um conjunto de ferramentas intelectuais e políticas capazes de ser debatidas,
compartilhadas e postas em ação – afinal, elas não são estruturas compactas de pensamento, portadoras de
enunciado espesso, autêntico e bem definido em nenhum dos lados do Atlântico, nem no momento de sua
produção na Europa e nas colônias da América inglesa, nem quando desembarcadas e recriadas nas
capitanias da América portuguesa. Não são tampouco versões empobrecidas, nem formulações
rigorosamente originais, nem importação passiva, imitação ou cópia. Os próximos capítulos contam a
história dessa recepção criativa. E se queremos entender como ela ocorreu, cabe começar localizando os
momentos em que ou os funcionários do rei ou os próprios colonos testaram e deslocaram as fronteiras de
significação de “República”, durante os séculos XVII e XVIII. Houve três momentos especialmente
importantes. O primeiro foi de captura dos usos do termo “República” na cultura política portuguesa
seiscentista e setecentista e sua transmissão às colônias da América – a palavra servia para designar a
gestão administrativa exercida pelas câmaras municipais. O segundo momento acontece a partir do final do
século XVII, por força da associação entre “República” e “sedição” - termo utilizado para definir um
ajuntamento de colonos armados e reunidos por motivação política com a intenção deliberada de perturbar
a ordem pública – e da maneira como essa associação foi utilizada em duas conjunturas específicas: a
sedição de 1710, em Pernambuco, e a sedição de 1720, em Minas. Inéditas e decisivas mudanças de
significação do termo “República” voltaram a acontecer em um terceiro momento, durante a segunda
metade do século XVIII, e provocaram alterações radicais no seu campo semântico. O vocabulário da vida
pública foi ampliado por meio de novas definições para palavras como “pátria”, “América”, “corrupção”,
“liberdade”, “bom governo”, “bem comum”, e ganhou força uma espécie de recombinação, até então
incomum, entre os textos escritos pelos colonos e as práticas e formas de ação política que protagonizaram
em Minas, no Rio de Janeiro e em Salvador. Mais reivindicativos e menos cautelosos, a cada dia, em face
da autoridade régia, esses colonos passaram a reconhecer na linguagem da República um jeito de falar de
liberdade”. Sobre o conceito de república na vida política nacional da colônia ver STARLING, Heloisa
Murgel. Ser republicano no Brasil Colônia: A história de uma tradição esquecida. Primeira edição. São
Paulo: Companhia das Letras, p.17-18.
167
Assim, durante a primeira metade do século XVIII, a república podia significar uma
maneira de os colonos se posicionarem contra a usurpação de direitos e abusos
praticados pelos funcionários ultramarinos. A revolta expressava também uma
reação àquilo que entendiam como um rompimento de acordos tácitos, no contexto
das relações entre a metrópole e sua área colonial, a partir do estabelecimento de
limites e obrigações mútuas. Nesse contexto, o culto ao modelo constitucional
veneziano exercia papel saliente. Graças aos colonos florentinos fixados na região
desde o início da colonização.339
Por exemplo, o uso do “Mito de Veneza”340 serviu para que “a nobreza da terra” se
posicionasse contra os funcionários ultramarinos em episódio da história do Brasil ainda no
século XVIII (Guerra dos Mascates - 1710). Contudo, não apenas a ideia de República
proveniente do paradigma veneziano foi útil para alguns grupos no Brasil, mas também
estavam presentes outras propostas de origem norte-americana e francesas. Mais para o fim
338
Ver STARLING, Heloisa Maria Murgel; LYNCH, Christian Edward Cyril. Op. Cit., p. 226.
339
Ibidem, p. 227.
340
O mito de Veneza era um sistema constituído pelo órgão representativo - o Conselho Grande (que elegia os
ocupantes dos principais cargos da República); pelo Senado (responsável pelas decisões financeiras e
também de política externa) e pelo chefe do Estado – o Doge (que era assessorado pelo seu conselho). Esse
sistema permitia a manutenção do poder pelas famílias locais que já o constituíam, desde 1297. O
paradigma veneziano a partir de então se espalhou por várias locais, sobretudo através das famílias
provenientes da região que se mudavam para outras localidades, algo que ocorrera também no Brasil. Sobre
“O Mito de Veneza no Brasil” ver MELLO, Evaldo Cabral. Op. Cit., p. 156-162.
168
A partir de então, viu-se no Brasil o diálogo mais denso entre conceitos, como, por
exemplo, “monarquia, governo misto, unitarismo e Europa, [que] simetricamente se
associavam república, democracia, federalismo e América”.342
É importante ressaltar que, posteriormente, em fins do século XIX, houve a
consolidação da linguagem política pautada nos três conceitos de república, democracia e
federalismo, constituindo-se em verdadeiro tripé, sendo então indissociáveis à época uns dos
outros.343
É relevante sublinhar que foi na quarta fase do conceito de república que se instala a
inversão de cenário, no qual era necessário, naquele momento, reforçar o poder do governo
central e valorizar o elemento monárquico. Quanto mais se adentrava a década de 1840, mais
se adotava o meio termo e a moderação atingidos com a escolha e manutenção da monarquia
constitucional. Algo que tempos depois fora fortemente questionado, dando lugar às novas
propostas políticas republicanas com seus diferentes significados, dentre os quais se ressalta o
341
Vale ressaltar que essa interpretação do conceito de república e sua experiência no Brasil, através de
demarcações ligadas aos episódios da história nacional, feita pelos dois autores que tratam de sua
transformação ao longo do tempo, não se trata de uma interpretação unívoca. Para Evaldo Cabral de Mello,
por exemplo, o modelo de 1817 não é francês, mas sim, norte-americano. Além disso, outra questão que
vale a pena ser destacada é a denominação adotada de “direita absolutista” e de “esquerda republicana”,
haja vista que os termos, direita e esquerda, são categorias muito “modernas” para se pensar o contexto
brasileiro de 1821, pois embora essas categorias tivessem surgido com o episódio da Revolução Francesa
(1789), ambas são um tanto fora de lugar quando usadas para o Brasil da primeira metade do Oitocentos,
que em nada se assemelhava à França dos tempos da Revolução. Ver STARLING, Heloisa Maria Murgel;
LYNCH, Christian Edward Cyril. “República/Republicanos”. In: FERES JÚNIOR, João. Op. Cit., p. 231.
342
Ibidem, p. 232.
343
CARVALHO, José Murilo de; PEREIRA, Miriam H.; RIBEIRO, Gladys S.; VAZ, Maria João. (Orgs).
Linguagens e fronteiras do poder. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 15-35.
169
de república liberal, vencedor dentre os outros modelos que disputaram o cenário político do
país.
Investigar como foi construído o discurso político dos republicanos liberais quando do
embate pela organização política e social do Brasil, teve como objetivos estabelecer, dentre os
autores em voga no Oitocentos, quais foram escolhidos pelos republicanos liberais para
compor sua argumentação; compreender como esses autores foram lidos pela corrente
vitoriosa e demonstrar como esses mesmos pensadores foram utilizados pelos republicanos
liberais em seus discursos políticos. Afinal, para melhor compreender o desfecho do embate,
fez-se necessário entender quais foram as estratégias discursivas utilizadas para intervir
politicamente, e assim, promover não somente a queda da Monarquia, mas também a
instalação dessa nova elite política no poder.
A meta era a obtenção do protagonismo político, através da ocupação dos postos de
mando do país, e isso seria alcançado pelo triunfo da palavra que, adaptada, articulada e
ressignificada, permitiria a criação de mais uma possibilidade de experiência republicana
dentre as outras propostas concorrentes de acordo com o estabelecimento de um léxico
compartilhado e novo. Para isso, entendeu-se ser o vocabulário da política científica o mais
apropriado para servir de arcabouço à construção de um novo discurso republicano-liberal
que instaurasse a ideia de “crise” e, consequentemente, necessidade de reformas sociais que
levariam ao almejado rearranjo político com a troca de regimes. Da Monarquia lida com as
lentes do decadentismo à República como sistema político própria do desvelar da marcha da
História, em compasso com os novos tempos, foi sendo construído uma narrativa que, ao
ganhar amplitude e compartilhamento, passou a ser linguagem oficial de grupo disseminada,
sobretudo, pelos clubes, meetings e imprensa344 - um dos mais importantes veículos de
produção, debate e propagação das ideias republicanas.
Assim, essa proposta de república liberal para o país é construída pela via do discurso
contestador, que invertia os argumentos constituidores da ordem vigente, ao fazer sentido às
344
Em obra sobre o Brasil e o republicanismo português na transição para o século XX, Isabel Corrêa
interpreta a instalação das repúblicas nos dois países, com embasamento teórico-metodológico da história
dos discursos políticos e de cultura política, a autora observa, através das diferenças entre os dois processos
de proclamação, o uso em comum da imprensa como um dos mais importantes veículos de produção,
debate e disseminação de ideias republicanas. O ideário do novo regime, tanto no Brasil, quanto em
Portugal, utilizou-se do léxico positivista, mesmo que de maneira distinta, também para ir de encontro às
coroas e ressaltar a necessidade de reformas. Assim, a partilha de uma rede discursiva com léxico de caráter
cientificista foi fundamental para as repúblicas, brasileira e, posteriormente, portuguesa, instalarem-se
como novos regimes políticos nos dois países. Sobre o léxico cientificista e os discursos que propiciaram as
proclamações com destaque para as diferenças entre os episódios históricos ver SILVA, Isabel Corrêa da. O
Espelho fraterno: o Brasil e o republicanismo português na transição para o século XX. Lisboa: Editora
Divina Comédia, 2013.
170
algarismos e cálculos às contas públicas para dar ideia de boa ou má administração financeira,
ou ainda a utilização de exemplos de experiências republicanas em outros países e nações.
Eram muitos os recursos retóricos na guerra de palavras da construção discursiva para
a adesão à causa republicana, contudo o interessante é perceber que esta mesma lógica era
compartilhada e experimentada pelos três representantes escolhidos para confirmar o
despontar e a manutenção de um contexto republicano-liberal construído pós-1870, vitorioso
em 1889 e confirmado em texto constitucional de 1891.
346
LESSA, Renato. A invenção da República: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República
brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015. p. 111.
173
“ajustes” e tempo de “acomodação” do regime. Contudo, até mesmo para o mais otimista dos
três, a mudança de tom em relação ao regime chegava, sendo sentido de maneira mais intensa
anos depois, passando a afirmar estar extinto o tempo da “acomodação do regime”,
destacando a necessidade de dotar a república de seus elementos republicanos. De todo modo,
o trio de propagandistas compartilhou a confirmação de não se tratar, na realidade, da
república que idealizaram.
Alberto Sales, por exemplo, ao se utilizar das doutrinas em voga do período, construiu
uma teoria a ser aplicada à realidade do Brasil, baseada no vocabulário da política científica,
visou intervir politicamente e justificar as mudanças pretendidas pela república liberal que
representava. Entretanto, com a proclamação do novo regime em 1889, o sentimento de
frustração se instalou e os ideais construídos pelo contestador nos tempos de propaganda se
tornavam cada vez mais distantes. O hiato entre ideal e real se fez presente ao ideólogo já nos
primeiros anos de República. Implementou-se a nova forma de governo, mas práticas de
corrupção e negociata se mantiveram, características típicas de um Estado com uma nação
inexistente. A fragmentação social fez com que o interesse individual sobrepujasse o coletivo.
Essa característica da sociedade brasileira facilitou a subida dos republicanos liberais aos
postos de comando do novo regime, afinal, adotou-se a lógica do coletivo ser tão somente o
resultado do somatório dos interesses particulares, mas também garantiu que a corrupção e a
negociata se mantivessem, o que gerou o sentimento de frustração de “não se tratar da
república dos sonhos”.
A insatisfação voltava à cena política do país e Alberto Sales não perdera a chance de
tecer acirradas críticas ao recente regime. Em escrito de 1901, Balanço Político: necessidade
de uma reforma constitucional, registra-se a análise negativa do contexto político brasileiro
aos olhos do pensador que, naquele momento, ia de encontro às medidas tomadas pelo então
presidente da república no período, seu irmão, Campos Sales. Eleito em 1898, teve como
características de seu governo a impopularidade, o acerto nas finanças e, sobretudo, a criação
de um sistema político que ia na contramão dos ideais republicanos. Por isso, Alberto Sales
publica o referido texto crítico durante o ano de 1901:
Embora sentido de outra forma o desencanto com a República, Assis Brasil, o mais
otimista da tríade republicana-liberal, também apontou a necessidade de ajustes ao recente
regime, que segundo o pensador, em seus anos iniciais ainda se tratava de sua “acomodação
institucional”. Contudo, tempos depois, torna-se radical ao afirmar que “o tempo de
acomodação e ajuste já havia passado sem sucesso e seria preciso, enfim, dotar a República
de substância republicana”.352 Crítico em relação à desigualdade financeira e educacional
vivida na experiência republicana, bem como a corrupção, negociatas, ao abismo entre o
exercício do voto e os mandatos, o desequilíbrio entre os poderes da república, entre outros
fatores de desajuste, serviram a Assis Brasil para afirmar, de maneira categórica, a
necessidade de mudanças, através da construção de críticas ao regime, pois
Iniciara-se a faina diária nas fraldas do Morro do Castelo, nos terrenos da futura
exposição internacional e nas pontas de areia conquistadas ao mar. Novos braços,
naquele dia, tinham vindo lançar os trilhos da pequena estrada de ferro com a qual se
intensificaria o transporte de barro, tão morosamente feito em caminhões e carroças
puxadas a burro. Turmas recém-admitidas colocavam os dormentes do caminho em
construção, abriam sulcos no asfalto da Rua Santa Luzia, traçavam as curvas,
iniciavam mais adiante, quase em frente à Igreja de Santa Luzia, a montagem da
instalação hidráulica, cujo funcionamento ainda demandaria meses.354
Por mais que o discurso sobre a modernização não fosse unívoco, vozes contrárias não
frearam a ação oficial adotada pelos governantes e o desmonte se deu quase por completo.
Fato é que do Morro do Castelo restou apenas curto trecho da Ladeira da Misericórdia, de
calçamento pé de moleque, uma das primeiras vias públicas da cidade, que resistiu ao
desmanche ao seu redor e também ao tempo, tornando-se patrimônio cultural do Brasil.
Sendo assim, abaixo estão as referidas imagens de transformação da área central da
cidade do Rio de Janeiro, com amplas avenidas, seus jardins e calçamento, alteração
conseguida através da grande mudança urbanística e arquitetônica, promovida pela retirada do
Morro do Castelo, durante longo período de desmonte e obras.
355
Ibidem, p. 225.
179
356
Ver CARVALHO, José Murilo de. Pecado original da república: debates, personagens e eventos para
compreender o Brasil. Rio de Janeiro (RJ): Bazar do Tempo, 2017, p. 81.
180
Era assim que o cenário do Rio de Janeiro durante os anos iniciais da República se
apresentava, a Revolta da Vacina se tornava um exemplo histórico de ação popular, contrária à
política do sanitarista Osvaldo Cruz, ao promover intenso conflito urbano. E, por outro lado,
tinha-se ainda o processo de reforma urbanística e arquitetônica intensificado, principalmente,
durante a gestão do prefeito Pereira Passos, que varria da paisagem urbana os cortiços e
habitações coletivas, dando início ao processo de favelização da cidade e, consequentemente,
de seu crescimento desordenado. A modernização republicana,357 na busca da construção de
seus símbolos de progresso e ordem, foi marcada pelo afastamento dos mais pobres de áreas
tidas como principais, sem projeto de inclusão social para essa parcela importante da
população mais carente.
357
A transição almejada entre uma sociedade tradicional, ligada à memória do império, à moderna, instituída
pela recente república, implicava na tentativa de transformação de crenças, valores e ideais carregando em
si o caráter transitório, dinâmico ocorrido na sociedade brasileira aos novos tempos. Expansão urbana, mão
de obra livre, assalariada, êxodo rural, imigração, industrialização, etc. Modernidade entendida como o
período das mudanças estruturais trazidas com os novos tempos.
181
358
As imagens escolhidas constituem as coleções dos fotógrafos Guilherme Santos (1871-1966) e Augusto
Malta (1864 – 1957) do Museu da Imagem e do Som (RJ), algumas das primeiras coleções a integrar seu
acervo, como destaca Cláudia Mesquita. Ver MESQUITA, Cláudia. Um museu para a Guanabara: Carlos
Lacerda e a criação do Museu da Imagem e do Som (1960-1965). Rio de Janeiro: Folha Seca, 2009. p.111-
112.
Guilherme Santos foi um fotógrafo amador carioca e um dos pioneiros da técnica estereoscópica no Brasil
(fotografia tridimensional produzida a partir de duas imagens quase iguais, tiradas de ângulos um pouco
diferentes e impressas em fina placa de vidro. Ao serem dispostas em aparelho estereoscópico, reproduziam
a sensação de profundidade, bem próxima da visão real). Alguns dos milhares de seus negativos de vidro
também foram revelados e ampliados em suporte de papel. As duas fotografias acima escolhidas do Morro
do Castelo, por Guilherme Santos, fazem parte dessa série. Ele retratou o desmonte do Morro do Castelo,
paisagens, hábitos cariocas, antigos carnavais de rua e os desfiles de corso, registrou também a inauguração
do Cristo Redentor, bem como visitas ilustres, os pavilhões da Exposição Internacional de 1922 e o
cotidiano da cidade como um todo. Da mesma maneira, Augusto Malta, alagoano da cidade de Paulo
Afonso, mudou-se para o Rio de Janeiro e se destacou, tempos depois, por ser um dos maiores cronistas
visuais da cidade, pois “foi a descoberta de uma vocação que o levou a ser nomeado em 27 de julho de
1903 para o cargo de fotógrafo oficial da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Documentando
metodicamente a ampla reforma urbana realizada pelo prefeito Pereira Passos, Malta fotografou a
transformação da ‘cidade colonial portuguesa em moderna metrópole francesa’. Seu grande mérito foi o de
não se limitar aos deveres burocráticos, atuando como cronista visual ao registrar as mais diversas
atividades humanas, comerciais ou industriais”. Ver VASQUEZ, Pedro Afonso. Fotografia escrita: nove
ensaios sobre a produção fotográfica no Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2012. p. 52.
183
359
Embora o cerne da pesquisa seja a compreensão da construção e das similaridades entre as ações e os
escritos políticos dos principais propagandistas da república liberal, na busca por maior protagonismo
político, optou-se não apenas centrar o entendimento sobre suas ideias políticas em seu contexto específico,
mas também compreender diacronicamente os períodos que os antecederam e sucederam como
propagandistas republicanos contra o Império. Da sincronia própria do período compreendido de 1870 a
1891, buscou-se ir um pouco além do recorte temporal central, tanto no que é anterior, quanto posterior,
para melhor se entender o cenário como processo que culminou na crítica, crise forjada pelos contestadores,
queda da Monarquia, implantação da República, busca de sua legitimação e prática. De acordo com a
perspectiva da história dos conceitos de Reinhart Koselleck, para se entender o processo de rupturas e
continuidades próprias da história, deve-se trabalhar tanto sincronicamente, quanto diacronicamente,
abarcando, inclusive, no estudo períodos imediatamente anteriores e posteriores ao marco temporal do
objeto estudado. Por isso, parte do último capítulo tratou os anos iniciais da jovem república brasileira,
abarcando sua busca por estabilidade, legitimidade e modernidade.
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
nacional, publicadas nos jornais de época sobre a atuação dos três. Além do valor e prestígio
atribuídos à figura de cada orador, sabiam também da importância da palavra bem dita e
articulada para um auditório, ou mesmo leitores, previamente conhecidos, no qual
direcionavam seus discursos políticos. O conhecimento prévio dos ouvintes e/ou leitores
orientava à boa construção discursiva e auxiliava à sedução pela palavra e criação de imagens
mentais, visando posterior adesão à causa apresentada. Não à toa, Quintino Bocaiúva, por
exemplo, dirigia-se aos militares tendo por base o discurso da necessidade de uma maior
valorização e participação política dos mesmos. A tentativa de cooptá-los à causa republicana
era evidente.
Outra característica importante era a escolha precisa de quem citar para dotar o texto
de autoridade necessária ao convencimento. O trio republicano possui em comum o
empréstimo do vocabulário da política científica e, obviamente, esse fato traz consigo nomes
de peso dos considerados grandes pensadores do século XIX. As citações a Comte, Spencer,
Darwin, por exemplo, são presentes e recorrentes em suas narrativas. Mas não só isso, para
além das citações de autoridades do período, mesclava-se ainda aos nomes expressões de
época, retiradas das obras desses pensadores. A grande presença dos slogans positivistas é
uma marca e dá a dimensão das técnicas retóricas utilizadas conscientemente pelos
republicanos liberais.
Deve-se destacar também outra característica discursiva importante que era a escolha
de uma linguagem por vezes direta e violenta, sobretudo, nos manifestos, pronunciamentos e
em jornais de época, dando claro tom de ataque à família real, atribuindo-lhe ofensas através
de ironias, sarcasmos, hipérboles e pela inversão dos significados de uma dada palavra de seu
sentido original. Assim, garantiam a agressão verbal e a contínua deslegitimação da imagem
real, com o intuito evidente de minar a permanência do governo imperial em um possível
Terceiro Reinado. A construção de imagens antagônicas dos regimes, pela adoção de
conceitos políticos antitéticos no texto, foi fundamental para a inversão discursiva e para
contradizer a narrativa oficial até então vigente. O recurso aos pares de opostos no meio
político nacional, via batalha discursiva, permitiu, por meio da crítica, a criação e propagação
da ideia de “crise do regime imperial”, estratégia que aprofundou e demarcou o antagonismo
com o choque entre as linguagens, antiga e nova, do período.
Maculava-se a imagem monárquica, simultaneamente, fortalecia-se a ideia de um
Brasil republicano, reforçando a tensão entre tradição x modernidade. O embate se dava na
arena da palavra bem usada e ressignificada para a obtenção de um fim prático: a proclamação
da República e a ocupação pelos republicanos liberais dos postos de mando do país. Para isso,
186
argumentos e recursos de construção das novas significações e seus usos, tendo em mente a
busca pela compreensão de quais eram os sentidos para seus atores políticos.
A escolha dos três republicanos liberais, Alberto Sales (SP), Quintino Bocaiúva (RJ) e
Assis Brasil (RS), deu-se pela identificação de similaridades entres eles e também pela
visibilidade que garantiu uma vasta produção de escritos políticos aos agentes históricos. A
visão de mundo compartilhada e formada a partir dos estudos iniciados ainda no curso anexo
à Faculdade de Direito de São Paulo, no caso específico de Quintino Bocaiúva, bem como o
efetivo ingresso de Alberto Sales e Assis Brasil no próprio curso de Direito da referida
instituição fez com que tivessem, em alguma medida, uma formação comum e,
consequentemente, compartilhassem uma mesma visão de mundo, pautada em ideias, obras e
autores de cunho político-filosófico iguais. Fator que mais tarde permitiu uma propaganda
republicana de mesmo viés, a partir de construções discursivas semelhantes.
A tríade republicana passou a atuar intensamente no cenário político do período,
identificando na monarquia a causa de todos os males sociais, e, a partir disso, inicia-se a
formulação discursiva deslegitimadora dos pilares da tradição monárquica. Proclamavam-se
“excluídos” dos círculos de privilégios dinásticos e também sem grandes oportunidades na
sociedade de então, mas fato é que não se encontravam à margem da sociedade, buscavam,
sim, um maior protagonismo político, através da ascensão aos postos de poder do país. Para
isso, fortaleceram as críticas ao império, com o intuito de criar, conscientemente, a ideia de
“crise” das instituições, forjada pelos contestadores republicanos para ruir a imagem
monárquica nacional. Partiram das críticas à venda da ideia de “crise” do regime imperial,
lido e apresentado como atrasado.
Desse modo, passaram a explicar a permanência da monarquia como estrutura arcaica
que se manteve por um erro na “marcha civilizacional”. Optaram por ler a sociedade brasileira
oitocentista pela chave interpretativa do decadentismo, fizeram então empréstimos do
vocabulário da política científica, para justificar a necessidade de urgência na implementação
das reformas sociais e criaram um discurso com artifícios retóricos, argumentos e contra-
argumentos semelhantes, centralizando a discussão, sobretudo, na escolha de regime político.
Para isso, elegeram dentre os pensadores oitocentistas, aqueles que serviriam como
instrumento para a construção discursiva republicana liberal. Vale destacar que, embora cada
representante republicano escolhido fosse proveniente de uma região do país, partiam de
questões específicas de cada área para então criar um discurso mais amplo e unificador, não se
restringindo tão somente às necessidades locais. Manobra adotada para alterar, de forma
efetiva, a vida política nacional. Assim, leram os mesmos autores, ou seja, aqueles que
188
propiciavam uma mudança prática ao país, os interpretaram de maneira similar, o que quer
dizer instituir o embate entre tradição e o novo, e compartilhavam também o mesmo objetivo,
adquirir maior poder, através da obtenção de um protagonismo na cena política. Construía-se
assim o discurso republicano liberal coeso, a partir do uso dos mesmos autores, com
interpretação similar e para um mesmo fim prático, respondendo dessa forma as questões do
quem, como e o porquê que nortearam a presente tese.
Vale novamente sublinhar também que durante o Oitocentos, os campos político e
intelectual não eram independentes, o que fazia com que todo o arcabouço ideológico servisse
à intervenção na vida cotidiana. Fazia-se uso dos pensadores do século XIX e suas respectivas
doutrinas para agir politicamente e chamar à causa republicana liberal.
Assim fizeram Alberto Sales, Quintino Bocaiúva e Assis Brasil, entendidos como
agentes de seu tempo, imersos no jogo político, através dos usos e performances próprias que
construíam no dia a dia do debate da vida nacional um contexto linguístico vitorioso, pois
agiram e reagiram no interior das linguagens existentes, no contexto específico de transição
do império à república, e então, foram capazes de emprestar significados próprios aos
conceitos políticos à época, sobretudo os de república, federalismo e democracia, 360 e, a partir
disso, transformaram seus discursos em uma linguagem republicana liberal singular e eficaz
na queda da monarquia e implantação da república que disseminavam nos tempos de
propaganda. A criação de um contexto linguístico próprio foi o mote necessário para fincar a
ideia de “crise” do império e abrir caminho à instauração de novas práticas, instituições e
valores ligados à experiência republicana.
Obviamente, a construção discursiva e manutenção de uma linguagem republicana
liberal singular só foram possíveis porque houve um intercâmbio que propiciou a unificação e
coesão para o estabelecimento do contexto linguístico, identificado a partir dos seus textos,
intertextos e contexto, oriundos dos fenômenos da linguagem, das palavras e de seus usos,
percebidos de forma sincrônica e diacrônica. Assim, o referido intercâmbio e construção
linguística se deram a partir da intervenção na vida nacional, com a participação ativa através
da colaboração em jornais, meetings, Clubes, Partido, conferências e obras de cunho teórico-
político, discutidas e apresentadas nos meios acadêmicos, partidário e da imprensa, ou seja,
em seus veículos de produção e disseminação.
A ação do trio republicano só pode ser entendida em meio ao contexto que atuavam,
assim ao compartilharem a mesma visão de mundo, os mesmos usos de autores e leituras é
360
Ver CARVALHO, José Murilo de. [et al.]. “República, democracia e federalismo: Brasil (1870-1891)” In:
CARVALHO, José Murilo de; PEREIRA, Miriam H.; RIBEIRO, Gladys S.; VAZ, Maria João. (Orgs). Op.
Cit.
189
que se torna inteligível a guerra das palavras, durante a virada da monarquia à república. A
participação no jogo político originou a criação de uma linguagem republicana eficaz na
tomada de protagonismo dessa parcela de propagandistas que, ao cair no real, encontrou as
circunstâncias adequadas para vencerem a disputa de poder político, haja vista as
características da sociedade brasileira oitocentista, já destacadas ao longo do texto, como, por
exemplo, a da fragmentação social. Circunstância essa que permitiu ao discurso republicano-
liberal sua acomodação de forma prática e, com isso, garantiu-lhe a vitória frente às demais
propostas republicanas concorrentes do período.
As palavras usadas de maneira própria e acrescidas de novos significados
transformaram-se em conceitos que traziam consigo a experiência e a multiplicidade que
permitia a dinâmica de uma nova constituição de ideias para instaurar uma realidade inédita.
As palavras foram tomadas como armas políticas contra o império e o vencerem. Certamente,
em meio à guerra das palavras se poderia fazer um novo uso da antiga expressão francesa: Às
palavras, cidadãos! Afinal, foi através das metamorfoses discursivas que se venceu a guerra
no campo linguístico e se obteve o protagonismo político ao assumirem os postos de mando
do país.
190
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