Grande Sertões Veredas
Grande Sertões Veredas
Grande Sertões Veredas
Poderá parecer estranho que uma análise de Grande sertão: veredas parta de um
diálogo, embora mais implícito que explícito, com Teoria do romance, de Georg
Lukács, e as preleções de Hegel sobre a epopéia em sua Estética. Talvez pareça
mais estranho ainda ignorar os teóricos do romance, de Clara Reeve e o bispo
Huet a E.M. Forster, Wolfgang Kayser, R. Scholes e outros inumeráveis, sem
esquecer a moda recente do estruturalismo,* cujos princípios, válidos ou
supostamente válidos, são aplicados indiscriminadamente e com um incrível
desprezo pela História.
Quando Johannes de Alta Silva, ao escrever sua obra, achou necessário encontra-
la pedindo a benevolência e a compreensão do leitor para a incredibilidade dos
episódios que coletara, argumentando que o fizera apenas com intuito de deleitar,
o que, para ele, justificava os elementos de fantasia pura neles contidos, estava
definindo, in nuce e por contraposição, o que viria ser um dos caracteres
fundamentais, talvez mesmo o caráter fundamental, de toda a narrativa de ficção
surgida posteriormente na Europa e, de maneira particular e específica, do grande
romance do real-naturalismo, cujo ponto culminante é atingido nos séc. XVIII e
XIX.
Este caráter essencial, ao qual até hoje não se deu a atenção devida, talvez por
ser considerado algo implícito ou por inexistir um terminus comparationis , é o que
chamo de perspectiva ficcional lógico-racionalista. Esta perspectiva contém em si
dois elementos que sempre informaram a ficção cujos limites diacrônicos foram já
definidos:
B – O distanciamento perante tudo quanto não for verossímil para uma consciência
cuja estrutura é a mencionada em ª
A – A busca da verossimilhança
Pode-se dizer que, em relação ao problema aqui analisado, esta característica não
é mais importante, por ela ser o normal, o mais comum na ficção ocidental cujos
primórdios se identificam com a decadência da épica medieval. Ela é simplesmente
a regra geral na grande ficção romanesca e os truques para salvar as aparências,
por mínima que seja a ameaça de um cético torcer de boca, que leitor de
romances não os conhece? Ou a história é apresentada sem mais nem menos
como vida dada, presenciada ou “ouvida” pelo narrador onisciente, do qual não é
lícito duvidar, já que ele tem o contínuo cuidado de não fugir ao verossímil, ou os
truques se multiplicam: memórias diretas, velhos papéis encontrados no fundo de
uma gaveta de uma cômoda ainda mais velha, o relatório do único sobrevivente
salvo miraculosamente de um naufrágio, de preferência depois de passar alguns
anos em uma ilha inóspita, etc. A gama dos truques, se assim podem ser
chamados tais processos, é ampla e variada. A norma geral, porém, é invariável.
Se a narração é realista, a verossimilhança deve ser mantida até às últimas
conseqüências, em que pese o perigo do resíduo. Sem esquecer que estes truques
foram utilizados algumas vezes com um certo distanciamento que poderia ser
chamado de irônico (é o caso do próprio Cervantes em seu Dom Quixote e de
Thomas em Dr. Faustus ), creio ser possível afirmar que eles estabelecem na
ficção ocidental o que chamo de continuidade racionalista.
Quando Johannes de Alta Silva roga por compreensão e faz com que o leitor,
automaticamente, tome uma posição de diferenciação crítica, talvez seja possível
dizer que, naquele momento, o monge de Haute-Seille estava definindo, por
contraposição implícita, a exata natureza da perspectiva ficcional lógico-racionalista
e dava início ao processo de continuidade racionalista de que já se falou.
Por outra parte, este primeiro afirmar-se per negatione , da perspectiva ficcional
lógico-racionalista é ponto de eclosão daquele que poderia ser qualificado de
gênero menor da ficção ocidental: aquele gênero que se ocupa do inverossímil e
que, por exigência da consciência lógico-racional, que impôs sua perspectiva
também e de maneira óbvia ao campo da ficção, é obrigado a tomar como ponto
de partida o distanciamento.
Na inviabilidade de uma análise exaustiva da questão, o mais fácil talvez seja dizer
que o processo mais simples empregado para alcançar o que chamei de
distanciamento é o próprio distanciamento. Em outros termos, o autor aceita as
regras do jogo imposto pela consciência lógico-racional do leitor e dele próprio e
confessa, explícita ou implicitamente que os fatos narrados são anormais,
incomuns, estranhos ao mundo do dia-a-dia, em suma, inverossímeis. É verdade,
permanece sempre uma pequena margem de dúvida que se baseia sobre a
eventual possibilidade de os fatos apresentados terem ocorrido. Contudo, esta
possibilidade não configura senão o que se poderia chamar de credibilidade
artística do autor, a qual, em última instância, justifica seu trabalho criador.
Uma solução diversa, que se tornou depois clássica, foi encontrada por Ann
Radcliffe. O enredo de The mysteries of Udolfho é aterrador, o que não impede
que tudo, ao final, encontre uma solução e uma explicação naturais. Não é o que
se poderia qualificar de jogo limpo mas o romance policial demonstrou que a
fórmula foi muito bem aceita pelo menos em seu núcleo. Willian Beckford, tão
isolado e perturbador na literatura inglesa como no Brasil Jorge de Lima com
Calunga, utilizou um caminho todo próprio. Os estranhos episódios de Vathek são
narrados, tecnicamente, da mesma forma com que Stendhal escreveu O vermelho
e o negro. Não possuem nem mesmo o sarcasmo de Candide. O que é essencial,
porém, é que a ação se passa no misterioso Oriente, onde, por uma convenção
aceita implicitamente pela consciência lógico-racional européia, tudo é (era)
possível.
Deixemos Der goldene Topf de lado, pois neste conto se sucedem as insinuações
sobre a anormalidade psíquica do protagonista, e detenhamo-nos em Die
Brautwahl. Sem mesmo tocar no discutido tema do princípio serapiônico e da
conseqüente viabilidade ou inviabilidade de isolar os contos de Hoffmann da
moldura em que encontram na edição conjunta o assunto não teria aqui interesse
-, não há dúvida de que Die Brautwahl exemplifica de maneira drástica a
impossibilidade consciência acima mencionada. Depois de um impressionante tour
de force, depois de aplicar uma técnica da qual nenhum ficcionista europeu do
fantástico se aproximou, depois de conseguir colocar lado a lado e de forma que
se poderia chamar realmente de inocente os dois mundos opostos dos
acontecimentos possíveis no dia-a-dia, verossímeis, e o dos inverossímeis,
Hoffmann não resiste. Cede totalmente e ironiza sua própria técnica. Mais ainda,
encerra seu conto insinuando não ser ele senão uma parábola: a da relação entre
o artista e a arte. O fracasso de Hoffmann no último instante pode ser considerado
um símbolo da vitória absoluta da perspectiva ficcional lógico-racional em toda
ficção européia. Hoffmann parece ser realmente o limite e o sintoma. A prova da
inviabilidade da criação de um mundo ficcional que não fosse, direta ou
indiretamente, analógico às estruturas da consciência lógico-racional da civilização
européia que, na ficção, fazem seu primeiro tímido aparecimento do Dolopathos.
Aceito, em princípio, o que foi dito até aqui, apesar da esquematização inevitável,
seria desnecessário ir diante não fosse a existência de outros caminhos pelos quais
inverossímil, o fantástico, conseguiu sempre manter-se à tona, pelo menos
aparentemente, na ficção ocidental.Apenas aparentemente, porque, na verdade,
tais caminhos, que são essencialmente dois, resultam de um distanciamento maior
ou de um duplo distanciamento. No primeiro caso estão, por exemplo, o próprio
Cervantes e Dostoiewski, nos quais fatos inverossímeis ou inegavelmente
fantásticos são explicados através da perturbação psicológica das personagens,
mais exatamente através da anormalidade das mesmas. O doentio é, por
definição, anormal, incomum.
Para o autor da ficção alegórica ou simbólica, por outro lado, não interessa a
descrição do real e, esta a diferença essencial em relação ao autor satírico,
também não a ação sobre o real. Seu objetivo fundamental é a descoberta do
sentido do real ou a atribuição de um sentido ao real. A linha divisória entre a
ficção alegórica e a simbólica é muito tênue às vezes e, não raro, há o
entrelaçamento de ambas. Não estará contudo, longe do meio termo verdadeiro
quem considerar, por exemplo, as obras de Bunyn e Nuno Marques Pereira como
ficção alegórica e as de Melville, Hawthorne, Wilde e Balzac (A pele do onagro)
como ficção simbólica.
• Se, como foi afirmado, a nova narrativa épica latino-americana, ao colocar lado
a lado, de forma inocente, sem distanciamento, o mundo real, verossímil, e o
mundo mítico-sacral, inverossímil, assume elementos integrantes de estruturas
conscienciais diversas daquelas que informaram, até o presente, a ficção ocidental
cujos limites diacrônicos estabelecemos anteriormente, é lógico e necessário então
ignorar todas as categorias críticas criadas em um e para um outro mundo
ficcional. Temos que, em certo sentido, partir da estaca zero.
Antes de tudo, se Grande sertão: veredas foi qualificado como obra que integra a
nova narrativa épica latino-americana é fácil concluir que a pretendida tabula rasa,
que fora proposta como ponto de partida da análise, não é tão radical como à
primeira vista pareceria. Movimentamo-nos dentro dos limites do conceito de
épica, conceito que, na literatura ocidental, pode ser aplicado com propriedade,
segundo creio, baseado em um consenso mais ou menos geral, a três momentos.
Em primeiro lugar à única épica propriamente dita, o epos grego; em segundo a
obras da literatura medieval como Os Nibelungos, Parsifal, El Cid.
Ora, se Grande sertão integra, como quer me parecer, aquele que se poderia
talvez chamar de um terceiro (ou quarto) momento da épica, então é claro que,
apesar de fazermos tabula rasa das categorias críticas aplicadas a um outro
momento da épica, aquele da moderna idade burguesa européia, não eliminados
as categorias críticas aplicadas à épica em geral. E seria possível então partir de
Aristóteles. Mas por que Hegel e por que Lukács?
Hegel, em suas lições de estética, colocou bases e definiu conceitos, apesar de
progressos posteriores, ainda hoje permanecem como dados fundamentais para a
tentativa de determinar a natureza, a função e a forma da épica. De tal maneira
que hoje surpreende ver como os conceitos hegelianos – que também não devem
ter surgido do nada, como é lógico- estão presentes implicitamente em autores
que partem de pressupostos metodológicos tão diversos como Lukács e Emil
Staiger.
Além de tudo isto, foi Hegel quem pela primeira vez, de forma clara e indubitável,
qualificou a ficção romanesca européia – resumidamente, o romance – como
epopéia burguesa, afirmando que o objetivo da mesma é a realidade tornada
prosaica. Depois de Hegel as definições podem ter ganho em clareza mas a
verdade é que, seja na definição do conceito de épica, seja na definição de
romance, ficou-se mais ou menos a marcar passo. Não raro, porém, ocorreu coisa
pior e criou-se confusão. No que diz respeito ao romance, por exemplo, a definição
de Hegel é hoje tão atual como quando foi estabelecida pela primeira vez, com a
diferença, talvez, de ser hoje mais necessária para tentar ordenar o caos e colocar
no seu devido lugar as pretensiosas elucubrações dos que falam da existência ou
inexistência da crise no romance sem mesmo saber o que é na verdade romance e
sem tomar consciência de sua (deles) lamentável e imperdoável miopia histórica.
Se, portanto, a referência a Hegel tem, neste contexto e pelo menos para o leitor
de suas Lições de estética, clara justificação e motivos evidentes, o mesmo não
ocorre com a menção de Teoria do romance, de Georg Lukács. Esta obra,
fortemente abstrata, de não fácil compreensão, escrita em 1914, possui longa e
complicada história cujos detalhes, que não podem ser aqui abordados pelo
próprio autor para a edição alemã de 1962. Quase totalmente inaproveitável hoje
na segunda parte, a não ser como testemunho da trajetória espiritual de um dos
mais fascinantes e completos espíritos europeus deste século, superado pelo
distanciamento no tempo e pela evolução vertiginosa da história européia nos
últimos cinqüenta anos, confusa e falha de unidade por tentar unir pressupostos
ontológicos Kantianos e posições éticas hegelianas, com certa razão renegado pelo
próprio autor, esquecido por quase meio século, mal -aproveitamento
Lukács, nas nem sempre claras intuições da primeira parte, age como um divisor
de águas. Depois ele não será mais possível esquecer - sob pena de não se
entender nada – que o romance europeu é realmente a epopéia de “um mundo
sem deuses”, dessacralizado, onde todos o valores são relativos e onde esta
relativização é, paradoxalmente, a própria plenitude. Um mundo estilhaçado, órfão
de um catalisador ou, melhor, mundo cuja própria unidade é a de não possuí-la.
Este é o sentido da expressão lukacsiana mundo degralado, dentro do qual
caminha um herói também degralado, problemático, isto é, incapaz de recolher os
fios e repor os estilhaços. Cada romance é um mundo próprio, cada herói busca
outros, diversos, valores. Eis por que o romance é o mundo da total relatividade
ou, em termos lukacsianos, da total degradação. Se nos afastarmos um pouco da
terminologia um tanto poetizadora do autor, torna-se claro que, ampliando os
esboços de Hegel, Lukács historiza o mundo das formas eternas e define o
romance como a nova européia,. Esta idade sem deuses, dessacralizada , de
valores relativizados, não é senão o lar da consciência lógico-racional. E o romance
não é senão a forma homóloga desta mesma consciência.
Talvez agora seja fácil compreender por que o pressuposto que informa esta nova
forma é o que chamei de perspectiva ficcional lógico-racionalista e por que tudo o
que nela não se enquadra é visto à distância. As conclusões a tirar são tão lógicas
que nem sempre é fácil compreender a confusão reinante, na Europa e em outros
lugares no debate sobre a chamada crise do romance. No romance do real-
naturalismo o mundo
Sem deuses burguesa encontrou sua forma artística. Esta forma é a vida vivida e
narrada a partir da perspectiva ficcional lógico-racional. Como já foi dito há pouco,
o romance é, portanto, a forma artístico-espiritual homóloga à visão de mundo em
cujo horizonte nasceu e cresceu. Ora, a crise desta visão de mundo, provocava
pelo abalo e/ou desaparecimento das realidades sócio-históricas das quais era a
superestrutura, necessariamente deveria gerar a crise e o desaparecimento da sua
forma artística homóloga. A idade burguesa européia e sua síntese se
desintegraram completamente na primeira metade do séc. XX. Eis por que a
narrativa ainda pode existir na Europa. O romance europeu, desapareceu no
horizonte histórico para jamais retornar.
Hegel e Lukács são importantes como ponto de referência na análise de uma obra
da nova épica latino-americana na medida em que ambos captam as coordenadas
históricas dentro das quais surgiu e desapareceu o romance: a estrutura
consciencial localizada, dessacralizada, do mundo europeu; na medida em que, por
terem desvelado o essencial, esclarecem, por contraposição, a especificidade de
uma obra nascida dentro de outras coordenadas históricas. Por outra parte, só
Hegel e Lukács interessam porque, neste contexto, todos os demais teóricos do
romance, com raras exceções, produziram apenas variações sobre ou ampliações
do mesmo tema, como não poderia deixar de ser. Ora, a nova narrativa épica
latino-americana é, para mim, um outro tema, um terminus comparationis,
inexistente até então, para o romance europeu.
Para encerrar esta introdução, seja dito de imediato, antes de entrar de grande
sertão: veredas: a obra de Guimarães Rosa, para mim, não integra um novo
gênero literário, o que seria exagerado e falso, mas sim uma nova forma de
narrativa épica, talvez num novo momento da épica, possuidor de uma
essencialidade própria e surgido dentro de coordenadas históricas específicas. Por
tudo isto este novo momento representa um corte na narrativa ocidental e, em
conseqüência, deve ser analisado a partir dele próprio, sem forçar relações falsas
com o romance real-naturalista europeu e derivados, com que nada tem a ver.
Para este novo momento da épica aplico a expressão nova narrativa épica latino-
americana, segundo ficou estabelecido na nota 1.
Notas
Entre as obras que poderiam ser consideradas típicas que defini como nova
narrativa épica latino-americana estão O reino deste mundo e O recurso do
método (Alejo Carpentier), cem anos de solidão e O outono do patriarca (Gabriel
Garcia Márquez), Eu, o supremo (Roa Bastos), Bom dia para os defuntos (Manuel
Scorza), Pedro Páramo (Juan Rulfo), Grande sertão: veredas João Guimarães
Rosa), O coronel e o lobisomem (José Cândido de Carvalho), A pedra do reino
(Ariano Suassuna), Os Guaianãs (Benito Barreto), Sargento Getúlio (João Ubaldo
Ribeiro) e O romance da Besta Fubana (Luiz Berto). A relação é incompleta,
certamente, mas suficiente para deixar claras algumas características comuns a
todas elas, características estas discutidas ao longo destes ensaios.
3. “Hic ergo narrationi mee finem imponens lectorem rogo ne incredibilia uel
impossibilia me scripsisse contendt nec me iudicet reprehensibiliem, quase eos
imitatus sim quorum uitia in libri prefatiuncula carpserim, quia non ut uisa ut
audita ad delectationem et utulutatem legentium, si qua foprte ibi sint, a me
scripta sunt; quamquam etiam etsi facta non sint, fieri tamen potuisse credendum.
Ceterum autem cogetur nemo múnus habere meun, neminem hec legere compello.
Verum siquis malicia aut inuidia magis quam iusto zelo sucensus nostra dampnat
nec nostram recipit satisfactionem, dicat et ipse michi quomodo magi Pharaonis
uirgas suas in colubros mutauerint, quomodo produxerint ranas de palidibus,
quomodo aquas Nili uertrint in sanguinem; dicat st ipsi michi quomodo Pythonissa
propheram suscitauerint Samuelem, quodomo etiam, Solis filia, Vlixis in diversa
transformanuerint animália, quod vere factum beatus Augustnus Ysidorusque
Hyspalensis testantur. Et cum negare omnia non possit, nostra quoque ut recipiat
necesse est”.
No texto pode ser perfeitamente captado o alvorecer do racionalismo na ficção
ocidental (como o nota Também de passagem Helmuth Himmel em sua Geshiche
der deutschen Novelle. Brn und Münchemn, Francke Verlag, 1963. p.10) Johanes
de Alta Silva, de forma primitiva e ingênua, mas muito clara apesar disto,
estabelece um distanciamento em relação à sua própria obra, acentuando que
apenas ouvira relatar e não presenciara (non uisa sed audita) os fatos narrados,
Paradoxalmente, contudo, logo em seguida se apóia na autoridade da Bíblia e em
antigas lendas – endossadas pelo beato Austinus e por um certo Isidorus
Hyspalensis! – para defender seus contos. E termina com uma frase lapidar, com a
qual julga arrasar a possível desconfiança racionalista do leitor – e talvez a sua
própria! – e obter uma vitória sem apelação: “E como ele (isto é o, desconfiado,
descrente) não pode negar tais fatos (as histórias da Bíblia e as endossadas pelo
beato Augustinus), necessariamente terá que aceitar os nossos”. O que o ingênuo
monge de Haute-Seille não podia ainda era distinguir entre o não poder gerado
pelo domínio absoluto de uma estrutura cultural fundada sobre bases jurídico-
conscienciais religiosas e o não poder de alguém que se baseasse em uma
argumentação lógico-racional. No primeiro caso, realmente, não era possível. No
segundo começava a ser possível, como mostra o próprio Johannes com seu
racionalismo, tateante ainda e cuja forma posterior parece começar a delinear-se
no horizonte.
8. Não tenho a pretensão de ter lido todos, nem de longe. Apenas os que são, de
forma geral, considerados os mais importantes.
A ESTRUTURA TÉCNICA
O MUNDO INTERIOR
• NO PRESENTE
Mais uma vez, a divisão é exigida por questão de clareza, pois o presente em
Grande sertão: veredas não pode ser compreendido senão em relação ao passado.
E vice-versa. É viável, porém, tentar determinar separadamente suas
características desde que, ao final, se chegue a uma conclusão que englobe ambos
os planos.
• NO PASSADO
É necessário não perder de vista que estamos tentando ver Riobaldo de fora e
apenas no plano do passado, onde foi localizada a existência de um conflito. Será
possível detectar os elementos que o integram?
No episódio das Veredas Mortas – aliás, mais exatamente, Veredas Altas, como
posteriormente tanto Riobaldo como o leitor são informados – ocorre o duelo final.
O Diabo não aparece porque não existe (p. 319) e o mundo mítico-sacral começa a
ruir. A partir de então Hermógenes passa a ser identificado com o próprio Demônio
e deve ser destruído. As recaídas (p. 355-6) e as ameaças que pairam sobre a
encontrada maioridade espiritual de Riobaldo têm seu fim e desfecho na luta final,
de insuperável grandeza artística e de simbolismo inequívoco. Diadorim, um dos
elementos essenciais do destino de Riobaldo (p. 310-409), mata Hermógenes, o
outro elemento do destino, e se revela como mulher. Parece claro : Diadorim,
cumprindo também seu próprio destino – secundário, pois só existe na medida da
relação com o de Riobaldo –, se desvelando como mulher e, ao lado de Riobaldo-
homem, surgindo como último fundamento objetivável da condição humana para
uma consciência que aceita apenas o mundo imanente, destrói Hermógenes,
personificação do mal, isto é, do Demônio. Mas o Demônio não existe depois de
Veredas Altas.' Personificação, portanto, em última instância, dos terrores
primitivos, inerentes a um mundo de estruturas conscienciais mítico-sacrais.
Terrores estes já vencidos por Riobaldo pela primeira vez nas Veredas Altas.
Depois daquele episódio central terminara praticamente a travessia interior de
Riobaldo. Restava apenas levá-la às últimas conseqüências, o que é feito na
batalha final, que permanecerá sem dúvida como uma das criações épicas mais
impressionantes e definitivas da literatura ocidental deste século.
É isto que Lukács qualifica como o problemático e que, bem no fim, não é senão o
contraponto artístico da consciência lógico-racional da idade burguesa européia. A
contradição interna existente no romance, o fundamento sobre o qual o gênero
surge no horizonte histórico, não perturba, 6 claro, em nenhum momento, a
trajetória arrivista de Moll Flanders e não sobe à tona da consciência de seu
criador. Não perturba o caminho ascendente de Julien Sorel mas parece
determinar implicitamente a destruição final. A explosão que Julien Sorel já
prenuncia – resta-lhe ainda, intacto, o teatral! – é a subida à tona da contradição
latente em todo o romance real-naturalista. Esta contradição ficará patente, às
escâncaras, mais tarde, seja na massificação de Leopold Bloom, seja na aceitação
quase contrita da finitude por parte de Hans Castorp, portadores, ambos, da crise
da consciência burguesa e da crise e morte definitivas do romance real-naturalista
europeu propriamente dito.
O fluir do tempo, dentro do qual o herói agia e completava seu caminho, passa, na
crise do gênero, a determinar a consciência do herói, em outros termos, a
problematizar, a colocar em xeque sua ação, enfim, a destruí-lo como portador da
ação épica, a destruí-lo, simplesmente. Não é mais possível escrever “a marquesa
saiu às cinco” (Nathalie Sarraute) porque não há mais uma consciência não
marcada explicitamente pela consciência da finitude. A crise e a morte do romance
europeu representam, ao nível sócio-histórico, a crise e a morte das estruturas nas
quais nasceu. Outros tipos de narrativa existem e poderão surgir mas a epopéia na
finitude desapareceu, pelo menos no espaço histórico-geográfico europeu. No
romance real-naturalista o fluir do tempo é o âmbito do agir e da trajetória das
personagens. Nele, no fluir do tempo, mora uma consciência que sempre é,
positiva ou negativamente, lógico-racional, segundo se viu na introdução. No
alvorecer, no ápice, na decadência e crise definitiva do romance real-naturalista,
fluir e consciência mantêm suas características essenciais, sua idêntica natureza.
Enorme é a distância entre Manon Lescaut e Adrian Leverkuehn, entre Pamela e
Strávoguin, entre Sancho e o anti-herói de La modification, mas quem ousaria
afirmar que uma diferença de natureza separa suas consciências?
que tal venha a significar – ponto básico! – cair na crise de fundamento própria
dos heróis romanescos – e do momento sócio-histórico do qual nascem – do
mundo da burguesia européia em seu declinar.
b) impede, por seu caráter estático, qualquer evolução posterior, evolução cujo
estágio primeiro seria o ingresso em um plano de consciência cética, em crise,
consciência que negaria até a possibilidade de uma Weltanschauung existencial-
imanente e, consequentemente, criaria um fosso intransponível entre os dois
planos, pois para ela, para a consciência cético-racionalista, o passado mítico-
sacral não poderia ser aceito como tendo valor equivalente ao plano lógico-
racional. O doutor, que apóia Riobaldo e no qual este busca amparo
continuamente para sua certeza de que o Diabo não existe (“E as idéias instruídas
do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o
Tal não existe ; Pois é não?”, p. 33), está sem dúvida no plano de uma consciência
cética e racionalista. Riobaldo o nota mas não chega naturalmente a penetrar
neste mundo em cujo limiar se detivera (“O senhor ri certas risadas...”, p. 9).
Isto posto, não mais se torna necessário reafirmar o caráter absurdo das
comparações apressadas de Grande sertão: veredas com obras do real-naturalismo
europeu ou, pior ainda, com obras nascidas da crise da consciência lógico-racional
da idade burguesa européia. A obra de Guimarães Rosa é um mundo novo e deve
ser analisado a partir dele próprio. As interpretações podem e devem ser variadas,
apostas, diversas. Ninguém, para citar Auerbach, tem o monopólio da crítica e da
verdade, apesar dos que assim pensam. Há, porém, uma exigência cujo
desrespeito é imperdoável: o ponto de partida deve sempre ser objetivo, adequado
à realidade artística analisada. E a arte, por mais que não concordem os
defensores do reacionarismo implícito na crítica esteticista e em parte da crítica
estruturalista, não cai do céu, a não ser para os ignorantes. Para os demais ela
está ligada, de uma ou de outra forma, às realidades históricas no seio das quais
nasceu.
O MUNDO EXTERIOR
l. AS TRANSFORMAÇÕES
1. AS PRETENSÕES
Neste ponto, ao analisar as pretensões de Riobaldo, corre-se o sério risco de
desagradar os construtores apressados de um impressionismo laudatório sem base
e os de apaixonados incondicionais do que chamo de “existencialismo lírico” de
Guimarães Rosa – parte importante, como é óbvio, de Grande sertão: veredas.
Seja permitido, contudo, dissecar a obra sem ser acusado de despoetizá-la, pois a
intenção é sempre a maior e melhor compreensão da mesma. Tal acusação
esqueceria o que deve, a todo o momento, ser recordado: o caráter meramente
secundário e circunstancial, em relação à obra artística em si, de qualquer crítica.
Aqui está um tema viável e interessante para uma crítica marxista dogmática que
até agora, o mais das vezes, se limitou simplesmente a atirar contra a pessoa do
escritor Guimarães Rosa a pecha de reacionário. Riobaldo, socialmente, é um
jagunço calculista e arrivista, flor de reacionarismo, que consegue chegar a grande
fazendeiro, colocando-se ao final em uma posição digna do mais puro filisteu:
“Mas o que mormente me fortaleceu foi o repetido saber que eles pelo sincero me
prezavam como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos. eu tivesse
vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da
jagunçagem. Fui indo melhor.” (p. 456) Realmente, ir além é impossível! Riobaldo
surge assim renegando suas origens, satisfeito por ter sido o instrumento de
destruição de seus próprios iguais, de seus companheiros do passado.
Socialmente, o herói de Guimarães Rosa é um inocente útil. Talvez mais útil do
que inocente...!
Levar este tema adiante não é pretensão que possa ser aqui realizada. No âmbito
das análises até aqui desenvolvidas, o fundamental é notar a formação de mais um
campo de contraposição entre passado e presente, contraposição identificada
anteriormente com a estrutura mais profunda da narrativa rosiana.
NOTAS
'Entre as exceções a destacar estão; Walnice Nogueira Galvão (As formas do falso.
São Paulo, Perspectiva, 1972), que, apesar de defender a tese (muito discutível,
em particular na questão do suposto pacto) que faz da ambigüidade o
fundamental em Grande sertão: veredas, chegou a descobertas objetivas que
nenhum crítico mais poderá ignorar; Alan Viggiano (Itinerário de Riobaldo
Tatarana. Belo Horizonte, Comunicação/MEC, 1974), cujo estudo dedicado ao
levantamento da trajetória geográfica dos heróis da obra de João Guimarães Rosa
é, no que a isto tange, de seriedade, objetividade e adequação exemplares;
finalmente, Antonio Candido (O homem das avessos. In: Tese e antítese. São
Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964). Este, sem atingir o nível tão
absolutamente definitivo e insuperável de um estudo como Dialética da
malandragem (Jornalivro, nº. 8, agosto de 1972, sobre Memórias de um sargento
de milícias, entreviu, na última frase do penúltimo parágrafo de seu ensaio
publicado há quase dez anos, aquilo que, para mim, é o elemento fundamental em
Grande sertão : veredas: a luta entre o mito e o logos na consciência de Riobaldo.
2 Esta e todas as citações são feitas de acordo com a 6' ed, da obra, publicada
pela José Olympio, Rio de Janeiro, 1968.
3 tb.
4 Não pode ser esta uma tarefa a ser realizada no âmbito desta breve análise,
porque seus objetivos fundamentais são outros, mas algum dia será necessário
fazer a cronologia rigorosa, progressiva, dos eventos narrados por Riobaldo, Este
trabalho crítico está fazendo falta.
2. O mítico-sacral
– Por que é empregada esta e não outra expressão para caracterizar tal realidade?
SENTIDO E REALIDADE
O termo mítico-sacral foi utilizado no âmbito destas análises para definir uma
determinada estrutura de consciência. O que é uma estrutura de consciência? É
uma forma do homem ver o mundo que o cerca, de interpretar o real, isto é, o
mundo dos seres cuja epifania, cuja revelação atinge e marca sua (do homem)
consciência. Neste contexto, consciência é a capacidade do indivíduo isolado de
ordenar o real dentro das co-ordenadas próprias às estruturas de captação do
mesmo real, estruturas estas que lhe são (ao indivíduo) dadas pela sociedade na
qual nasceu e viveu e conquistadas através das vicissitudes de seu caminho, de
sua experiência existencial. Conseqüentemente – deixando de lado os problemas
da recorrência que se manifesta entre estrutura de consciência e captação do real,
entre indivíduo isolado e grupo social – uma estrutura de consciência mítico-sacral
pode ser definida como a forma mítico-sacral através da qual determinado
indivíduo ou determinado grupo – o indivíduo só existe como parte do grupo –
realiza a captação e a interpretação dos fenômenos cuja epifania presencia. Em
suma, a captação dos seres – até mesmo de seres portadores de outra estrutura
consciencial –, do outro homem e do outro grupo. Ou, finalmente, no caso do
indivíduo isolado, de sua própria realidade física.
Até aqui foi mais ou menos definida a maneira pela qual uma consciência mítico-
sacral capta o mundo e o interpreta. Resta um difícil problema, que será
brevemente mencionado. Por que é que indivíduos ou grupos portadores de uma
consciência de características mítico-sacrais são caracterizados como fenômenos
de ignorância quando localizados num espaço sócio-geográfico-histórico no qual
predomina a estrutura lógico-racional ao passo que quando localizados em espaço
sócio-geográfico-histórico autônomo são considerados um fenômeno antropológico
fundamental para o estudo da evolução dos grupos humanos?
Antes de tudo é necessário observar que esta distinção é feita a partir do plano de
consciência lógico-racional. Esta consciência parece supor como ponto pacífico,
óbvio e provado que, sendo a estrutura mítico-sacral diacronicamente anterior à
estrutura lógico-racional na evolução dos grupos humanos, o fenômeno de uma
consciência mítico-sacral é apenas autêntico e historicamente válido na medida em
que não for uma defasagem interior (gerada pela ignorância do evoluir histórico) a
um meio de estruturas conscienciais lógico-racionais.‘ Há duas possibilidades de
que o fenômeno não seja uma defasagem, algo assim como restos que em
determinado momento se desligaram ou passaram a ser ignorados pelo processo
histórico fundamental. A primeira destas possibilidades é a de grupos humanos,
indígenas por exemplo, que jamais mantiveram contatos sólidos com a civilização
lógico-racional do Ocidente.' A segunda é a de grupos que, por seu progressivo
isolamento, tornado total em determinado momento, perderam por completo ou
quase o contato com a civilização, desligando-se dela, regredindo e constituindo
por fim um fenômeno cultural eclético, é verdade, mas próprio e autêntico.
Os antropólogos têm aqui a palavra. Parece, contudo, que este é o caso de grupos
humanos localizados no hinterland latino-americano e que, agora,
inesperadamente, passaram a integrar novamente o processo histórico
manifestando sua vitalidade em criações artísticas de extremo vigor como o são as
da nova narrativa épica latino-americana.
AS RAZÕES DO TERMO
Depois de ter tentado definir o que se entende por mítico-sacral no âmbito desta
análise de Grande sertão: veredas, deve-se partir agora para a identificação clara
desta realidade. Que é mítico-sacral e qual seu caráter específico na obra de
Guimarães Rosa?
Ao final, com o apoio do doutor, sua certeza terá se firmado: “Amável ...”, etc.
p.460), da não-existência do Demônio. Mais, Riobaldo tem uma necessidade
profunda, obsessiva, de negar o suposto pacto passado e o faz através da negação
da existência de um dos pactantes (o demônio). Contudo – e este é um dado
responsável por grande parte das confusões – o leitor e, muito mais, o crítico não
podem perder de vista, em nenhum momento, que os fatos portadores da
problemática mítico-sacral/dermonológica pessoal de Riobaldo são passado, tanto
no plano temporal como também no plano consciencial. Riobaldo narra, em outros
termos, fala do passado.
Logo em seguida é narrado um episódio que, à primeira vista, não possui qualquer
conexão com o evoluir dos acontecimentos que leva-riam Riobaldo àquele
momento em que soaria seu destino. O jagunço Siduíno, cansado do marasmo, da
inação doentia – nos dois sentidos do termo – em que o bando se encontrava,
propõe atacar uma vila, num “vero tiroteio, para exercício de não se minguar...”
(p. 307). Riobaldo estremece, Se apenas por exercício um bando de jagunços se
sentia no direito de atacar uma pacata vila sertaneja, que escala de valores regia a
vida? Perante estas e “outras doideiras assim” (p. 307) ele sente sua impotência
em “acertar com todas elas, de uma vez” (ib.), quer dizer, de encontrar para a
vida um sentido totalizador que não desmoronasse diante do primeiro fato
inesperado. Desnorteado, começa a repetir o nome do Demônio em seus mais
variados sinônimos. No relatavismo total, somente o mal (“...Só o demo...”, p.
308) pode ter logicidade. Neste momento, quando Riobaldo ameaça desviar-se
para uma crise que não o levaria a seu destino, surge Diadorim, “que quando
ferrava não largava” (ib.), a indicar-lhe o rumo: “O inimigo é o Hermógenes” (ib.).
Riobaldo reencontra o caminho, Diadorim reassume junto a ele seu papel como
parte de seu destino, em oposição a Hermógenes, a outra parte. Em
conseqüência, o episódio que explode com as palavras de Siduíno apenas parece
não ter conexão. Tem, porque, em primeiro lugar, repõe o tema da incompletude
de Riobaldo, de sua condição existencial/psicológica ainda provisória – a partir do
episódio de Siduíno, Riobaldo sabe que terá que ir a Veredas Mortas e desta vez
não fracassará. Em segundo lugar tem sentido porque a insegurança de Riobaldo
permite a retomada da outra linha temática fundamental: a oposição de morte
entre Diadorim e Hermógenes, que será conseqüência e complementação das
Veredas Mortas/Altas e, portanto, da própria travessia de Riobaldo.
A partir deste ponto da narração tudo é tão complicado que temos que avançar
tateando pela selva rosiana. Os tema,s se emaranham ainda mais. Como se viu,
Riobaldo quer reorientar sua existência a fim de conquistar seu alto destino.
Confusamente, compreende que é chegado seu momento. Tenta a primeira vez e
fracassa (p. 305) por parecer não saber exatamente o que pretendia com o pacto
(as origens da problemática demonológica pessoal de Riobaldo são pouco claras.
Voltaremos ao tema mais adiante). Vê que deve encontrar um denominador
comum para ordenar os fenômenos contraditórios que compõem o mundo, a
existência. Diadorim surge então como guia para a realização desta obra e
Hermógenes como o objetivo a destruir. Ou seja, Diadorim como Riobaldo (na
qualidade do que se poderia chamar um alter ego em vias de formar-se, segundo
a expressão de Riobaldo ao narrar ao doutor: “...sabendo deste, o senhor sabe
minha vida...”, p. 242) e Hermógenes como o anti-Riobaldo. Sob o signo de
Diadorim, Hermógenes se transforma inesperadamente (para Riobaldo, no
passado, é inesperada-mente, como se verá nas próximas linhas) no catalisador da
crise e no alvo sobre o qual explodirão as forças vitais, ainda cegas, do
protagonista. Na verdade, mesmo depois de decidida a morte de Hermógenes,
tudo é confuso para Riobaldo/Diadorim: “Mas, entre nós dois, sem ninguém saber,
nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos
fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes.” (p. 308)
Quem era Hermógenes, cuja morte fora acertada? Para Diadorim – e para a
maioria dos leitores, inclusive os críticos apressados – Hermógenes é apenas o
assassino de Joca Ramiro. Para Riobaldo – eis outro dado fundamental para o qual
nenhum crítico chamou devidamente a atenção até agora – Hermógenes Saranhó
Rodrigue Felipes surge, à p. 309, como o supremo ideal existencial. Destemido,
rico (“...possuía gados e fazendas...”, ib.), “nunca perdia nem adoecia; e, o que
queria arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha
para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro” (ib.). Para Riobaldo,
pois, um eleito, acima do bem e do mal. “Os outros, o resto, essas criaturas. Só o
Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Ruim, mas inteirado, legítimo,
para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar
com Joca Ramiro (o grifo é meu, JHD), em tantas alturas. Assim eu discerni,
sorrateiro, muito estudantemente... Nem birra nem agarre eu estava acautelando
(o grifo é meu, JHD). Em tudo reconheci : que o Hermógenes era grande
destacado daquele porte, igual ao pico do serro de Itambé, quando se vê quando
se vem da banda da Mãe-dos-Homens – surgido alto nas nuvens nos horizontes.
Até amigo meu pudesse mesmo ser ; um homem, que havia.” (p. 309).'
Mas Hermógenes era também o pactário, eis a causa de seu agir sobranceiro, pelo
menos era isto que Riobaldo pensava naquela ocasião (absolutamente não mais
depois de Veredas Mortas/Altas e, muito menos, no presente, durante a narração
ao doutor): “E como era a razão deste segredo?” – “Ah, que essas coisas são por
um prazo... Assinou a alma em pagamento.” (ib.) Aos poucos, a confusa
efervescência das forças interiores de Riobaldo começa a definir-se, à sombra de
Diadorim. Avancemos também.
“Eu caminhei para as Veredas Mortas.” (ib.) Aqui começa um dos mais densos
momentos da literatura brasileira e da narrativa ocidental, capaz de exigir,
exclusivo, um livro inteiro. Não tanto pelo que ocorre – em última instância não
ocorre absolutamente nada! – mas pela força patética da narração, por sua
importância fundamental e única para toda a obra e por sua total originalidade. O
episódio de Veredas Mortas/Altas é um tournant qualitativo, radical e único.
Já foi dito que em Grande sertão: veredas não há a sublimação estética' ‘ da
problemática demonológica. O episódio de Veredas Mortas/ Altas é narrado por
Riobaldo no mesmo plano e possui a mesma realidade objetiva, empírica, que o
episódio do julgamento de Zé Bebelo, por exemplo! Não existe o distanciamento. A
possibilidade do pacto faz parte do mundo de Riobaldo/jagunço – quer dizer, no
plano temporal e psicológico do passado – da mesma forma que sua mira certeira.
Existe, sim, a tomada de consciência do evento. Mas em nenhum momento este
evento é visto como algo estranho, anormal. & Bebelo, porém, julgaria Riobaldo
doente. Riobaldo instintivamente compreende a distância que medeia entre seu
mundo e o de Zé Bebelo e evita o choque por julgá-la sem sentido. Riobaldo sabe
que a opinião de Zé Bebelo seria falsa. Falsa porque, para as estruturas
conscienciais mítico-sacrais de Riobaldo, o pacto é um fato normal, possível (an1es
de Veredas Mortas/ Altas, naturalmente).
É nesta situação interior que Riobaldo lança o tríplice e terrífico grito de desafio,
invocando a presença do Demônio (p. 319). Só responde o silêncio. Diante do
doutor, no plano já da consciência lógico-racional, Riobaldo explicará: “O senhor
sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Com o que retorna a
orgulhosa auto-suficiência humana que explodira no passado. No presente da
narração, contudo, ela já é certeza, calma, pois existe é homem humano.
E Riobaldo continua a narração de sua experiência: “E foi aí. Ele não existe, e não
apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado.” (ib.) Agora – seja no
momento da narração, seja no momento imediato à terrífica invocação – a certeza
de Riobaldo sobre a não-existência do Demônio é clara, definitiva, ficando
subentendido que antes da invocação sua alma estava em dúvida. O tema voltará
mais adiante (“E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha sucedido, tão
pois. O pacto nenhum – negócio não feito”, p. 354), sempre como conclusão do
seguinte raciocínio implícito: o Demônio não apareceu, logo, ele não existe. Se ele
não existe, o pacto é impossível (“E eu estava livre limpo de contrato de culpa,
podia carregar nômina; rezo o bendito!”, p. 354).
É por tudo isto que o suposto problema fáustico de Grande sertão: veredas nada
tem a ver com o tema tal como é tratado nas obras de Marlowe, Goethe ou
Thomas Mann, onde o Demônio entra em cena como um artifício aceito e
sublimado esteticamente pela consciência lógico-racional do espectador ou do
leitor. Em Grande sertão: veredas, pelo contrário, a problemática demonológica é o
núcleo real, imediato, da obra, não sendo submetido a sublimação de qualquer
espécie. O drama de Riobaldo é simplesmente o de ter aceito no passado a
possibilidade da existência do Demônio e ter alcançado, depois de Veredas Altas,
um plano consciencial que o obriga a negar aquela possibilidade. Em outras
palavras, o núcleo central da obra de Guimarães Rosa e da travessia de Riobaldo é
o salto qualitativo antes mencionado.
No que diz respeito ao problema fáustico, trata-se evidentemente de um
pseudoproblema nascido de interpretações baseadas em aproximações indevidas
com obras da literatura européia. A consciência de Riobaldo/narrador – o que
significa: no plano temporal do presente – é a negação da possibilidade de
qualquer problemática fáustica. Exata-mente porque a problemática demonológica
é real em Grande sertão: veredas e não existe apenas no plano da sublimação
estética, realizada no âmbito de uma consciência lógico-racional, é que o Demônio
não aparece. Se não ficou ainda claro : Riobaldo é um anti-Fausto. Precisa negar o
Demônio para ser. Não houve pacto. Mais ainda, não pode ter havido, pois a
aceitação da existência do Demônio como ente real por parte de Riobaldo/narrador
seria autodestruir-se através da volta ao passado e do abandono do plano
temporal e psicológico estático do presente, seria negar-se a si próprio como
consciência lógico-racional de narra-dor, ordenadora do passado.
NOTAS
a hindu e a anamita.
9 - Isto mostra mais uma vez a inviabilidade de uma crítica que não veja Diadorim
e Hermógenes como símbolos na trajetória de Riobaldo, A não ser que se parta
para uma crítica – sem dúvida muito mais lógica que o impressionismo laudatório
inconseqüente que anda ainda por aí na crítica brasileira – brutalmente sociológica
e se qualifique Diadorim como a filha de um latifundiário frustrado em seu desejo
patriarcal de ter um filho varão para reger o clã. Diadorim, dentro desta linha de
raciocínio, seria fundamentalmente um indivíduo que utilizaria tanto a habilidade
de tiro como o arrivismo social e econômico de Riobaldo como instrumentos para
consumar a vingança contra os assassinos do pai. E Riobaldo, usado e explorado
por Diadorim, poderia ser considerado o arrivista sempre favorecido pela fortuna,
que, sem o saber, rompe as amarras que o prendiam a seu tutor e explorador e
realiza seu próprio destino, tornando-se o que poderia ter sido o filho que Joca
Ramiro não tivera.
Muito clara em Marlowe (Dr. Faustus), Goethe (Fausto/, Dostoiewski (Os irmãos
Karamázovi e Thomas Mann (Dr. Faustus). Nestas obras o Demônio é a
representação e a encarnação das forças da negação e da desordem que se
encontram no íntimo do ser humano.
Esta afirmação (e a da p. 311) pode ser assim interpretada; “Cri quando não tinha
a consciência que tenho hoje (no momento da narração). Na ignorância ninguém
pode crer realmente em algo. Portanto , na realidade não cri. Apenas hoje existem
as condições para crer ou não crer nas coisas”.
15 Grande sertão: veredas pode também ser visto como a constante busca, por
par-
17 O termo evolução é suficiente para saber que se fala do passado, pois, como
vimos, o plano do presente, de Riobaldo/narrador, é estático.
20 Quanto ao mal inerente à condição humana, ele parece ser, para Riobaldo, algo
de sanável pela experiência do sofrimento (“Que o que gasta, vai gastando o diabo
de dentro da gente”, etc., p. 12) e pela Itaca espiritual representada pela vida
familiar: “E a alegria de amor – compadre meu Quelemém diz. Família.” (ib.) Em
re-sumo, Riobaldo parece afirmar que o viver, a compreensão da existência em
sua totalidade e realidade, incluindo seu caráter transitório, enfim, que a
consciência (existencial) torna o homem tolerante, fazendo-o esquecer suas
origens infernais, suas profundezas diabólicas (“A gente viemos do inferno...”, etc.,
p. 40)
3. O problema de Deus
Talvez seja prático iniciar com a citação, um tanto longa, na qual Riobaldo
organiza, de modo direto e claro, um credo pessoal e seu generis:
“Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher
eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior
transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso
figurar minha idéia nisso. Refiro ao senhor : um outro doutor, doutor rapaz, que
explorava as pedras turmalinas no vale do Asassuaí, discorreu me dizendo que a
vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há.
Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre
um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente
perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas
horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos
grave se descuidar um pouquinho, pois,no fim dá certo. Mas, se não tem Deus,
então, agente não tem licença de coisa nenhuma. Porque existe dor. E a vida do
homem
está presa, encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses,dos meninos sem
pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói
sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem
sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo
mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado de demônio. Deus existe
mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente
sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-
fim que nem não se pode ver.
Mas a gente quer céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente
tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este.
Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução
do senhor...” (p. 48-9)
Desta análise podem ser tiradas algumas conclusões. Deus, para Riobaldo, não é
uma necessitas religiosa ou teológica mas sim existencial. Colocando-se em uma
posição mais ou menos próxima à do autor' do Gênesis, que, confuso perante a
desordem do mundo, reconstrói o passado de tal forma que nele possa ser
enquadrada.a culpa original, explicação da desordem, Riobaldo também se
desarvora perante o caráter contraditório dos fenômenos que integram a
existência humana (p. 112, 169, 236, 237, por exemplo), em particular o mal e a
dor, e organiza uma teodicéia que, em última instância, se transforma em
panacéia. O problema de Deus, portanto, não é discutido em termos
dostoiewskianos ou sartreanos, ou seja, filosófico-teológicos. Nem mesmo em
termos de existência ou não existência na forma de entidade real, pessoal,
discussão que ocorre no caso do problema do Demônio. Deus, para Riobaldo, não
é uma necessitas per se mas apenas um bom achado, um calmante para qualquer
situação de crise. Por outra parte, integra também seu curioso ecletismo religioso
(p. 15-6), utilizado como o provocador de uma catarse destinada a facilitar a
existência. Tal é possível para ele porque, apesar de encontrar-se em um nível de
consciência lógico-racional, não é ainda um cético' como seu oculto interlocutor
(“O senhor ri certas risadas...”, p. 9), do qual sempre inveja a instrução,
reconhecendo a distância que medeia entre os dois.
Uma outra maneira de definir sua concepção – se assim se pode falar – de Deus é
o conceito da gastança, da paciência: “Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe
dizia: o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera
esta gastança. Moço! : Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O
senhor zela faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma
dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola”, etc. (p. 16).
Esta passagem e a do caso da faca que caíra em uma solução ácida, restando ao
final apenas o cabo (p. 21), mostram a forma com que Deus, “traiçoeiro” (ib.), age
“se divertindo, se economizando” (ib.). O raciocínio de Riobaldo parece
permanecer unicamente no plano do existencial, podendo ser compreendido da
seguinte forma: o ponto de partida é “a ruindade nativa do homem”, fator
extremamente importante na visão de mundo de Riobaldo.' Esta condição primeira
– isto é, nasce com o homem – de todo ser humano vai se mudando, se gastando,
à medida que a vida passa, com o correr do tempo e das vivências. Deus está em
tudo (e por isto é traiçoeiro), vem só no fim, Deus é o próprio fluir do mundo e do
homem ou, o que dá no mesmo, é o resultado deste fluir. Talvez – se esta
interpretação das afirmações de Riobaldo for carreta – a melhor maneira de captar
a visão riobaldina de mundo nas passagens citadas é a de definir Deus como a
experiência existencial. E vice-versa. Tendo o homem “a nativa ruindade” (p. 33)
como condição inicial, o gastar-se desta maldade exterioriza-se através do mal
como ação (ver nota 4) dos indivíduos : “Até podendo ser, de alguém algum dia
ouvir e entender assim: quem sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que
Deus só pode às vezes manobrar os homens é mandando por intermédio do dia?
Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade
nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro.¿
(p. 33) É difícil encontrar um denominador comum para definir as dilacerações nas
quais se debate a alma do protagonista. No caso do problema de Deus, contudo,
parece ser possível afirmar que a questão não existe em termos de uma
problemática filosófico-teológica propriamente dita. Riobaldo jamais tenta afirmar
ou negar, neste terreno, em bases lógico-racionais. Mesmo a teodicéia/panacéia
(p. 48-9) não é apresentada em tais bases, devendo ter provocado um natural
torcer de boca (“Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte”, p. 49) no
semblante do cético doutor. A questão permanece em um plano existencial muito
próprio, no qual Deus é identificado com a experiência, com a própria trajetória
existencial do homem, enfim, com a própria condição humana. Há duas passagens
bastante claras, melhor, três. A primeira (p.258) : “Deus é uma plantação – a
gente e as areias.” A segunda (p. 260) :“Que Deus existe, sim, devagarinho,
depressa. Ele existe – mas que só por intermédio da ação das pessoas : de bons e
maus.” Finalmente, uma passagem indireta (p. 308) : “O que Diadorim
reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura”, onde a
palavra 0eus substitui, evidentemente, a palavra vida.
NOTAS
Como curiosidade não deixa de ser interessante citar a definição de Deus que
Aldous Huxley apresenta em Contraponto: “Deus é a resultante total, espiritual e
física de todo pensamento, de toda ação que signifique vida, de toda relação vital
com o mundo” (Edições Abril Cultural, p. 434). Esta definição, parece-me, talvez
possa ser a tradução, em conceitos filosófico-teológicos tradicionais, daquilo que,
em termos existenciais, Riobaldo entende por Deus.
4. O épico
Mas é evidente que o épico existe em Grande sertão: veredas. Existe porque o
nível consciencial do presente se estrutura sobre postulados agnóstico-existenciais,
imanentes, que constituem a ponte entre os dois níveis, permitindo a valoração do
passado como experiência existencial, vital, imanente, positiva e, em
conseqüência, épica. Aqui se situa a originalidade absoluta de Grande sertão:
veredas. Riobaldo, ao superar o nível de consciência mítico-sacral, não passa ao
nível cético-racionalista próprio dos centros urbanizados do Ocidente desde a
segunda metade do séc. XIX (ver a introdução) – do que resultou a crise e,
finalmente, o desaparecimento do romance real-naturalista – mas permanece em
defasagem. Sua consciência atinge o nível lógico-racional no pleno sentido da
palavra mas não chega a sentir a crise de fundamento do pensamento ocidental
(europeu), a crise que destruiu o épico romanesco.
NOTAS
5. Para além-fronteiras
Se a literatura e a crítica literária não são – nem poderiam ser – história, sociologia
ou política, isto não quer dizer que seja permitido ou possível esquecer que ambas
são integrantes do processo histórico do qual surgem e, como tal, dele
inseparáveis. Hoje o sabemos muito bem. No campo da crítica literária, o
esteticismo castrante – tão estrábico quanto o dogmatismo ideológico – continuará
fazendo suas reaparições periódicas, seja pela ignorância ou pela falta de
perspectiva histórica de seus promotores e defensores, seja sob a pressão de
fatores transitórios gerados pelo próprio processo histórico que, na defesa dos
interesses dos grupos dominantes, frequentemente esmaga qualquer tentativa ou
ameaça de tentativa de uma auto-análise e, quanto mais, de uma autocrítica.
Daqueles e deste, non ragionam di lar.
Se o que foi dito é incontestável, menos certo e muito mais difícil é o querer situar
ou desvelar historicamente uma obra ou um conjunto de obras de arte quando
julgamos ainda não dispor de um suficiente distanciamento no tempo para evitar
extrapolações ou julgamentos apressados. No presente tudo faz crer que ainda
não tenhamos todo o distancia-mento histórico necessário para uma apreciação
segura de Grande sertão: veredas e – por extensão – de toda a obra rosiana e de
toda a de seus pares latino-americanos, responsáveis, todos eles, pelo mais
importante surto da narrativa do Ocidente depois daquele que foi o da decadência
do real-naturalismo europeu. Portanto, tudo o que foi insinuado anteriormente ou
será dito a seguir deve ser aceito sob a perspectiva do provisório, perspectiva que,
como julgo, não deve impedir que o digamos.
Tudo leva a crer que a espinha dorsal do processo histórico que atravessa o séc.
XX se estruture em torno de um movimento ascendente/descendente entre dois
pontos. Na parte superior está a decadência da idade européia, com o
desaparecimento da cena histórica dos grandes impérios coloniais da Inglaterra,
França e Alemanha (além de seus imitadores de segunda categoria: Itália, Bélgica,
etc.) e sua substituição – entre 1914 e 1945 – por duas novas potências, Estados
Unidos e União Soviética, as quais, ainda hoje, dispõem de força suficiente' para
dominar a cena do jogo de poder no mundo por mais algumas décadas, não
obstante a desvantagem inerente à posição que ocupam em face da anulação
recíproca de sua potência nuclear, tão aterradora que se torna praticamente inútil.
Na parte inferior deste movimento ascendente/ descendente‘ se encontra o
Terceiro Mundo. Ou, mais especificamente, os grupos nacionais, étnicos e culturais
que até o momento tinham sido marginalizados e, na condição de explorados,
permaneciam como simples objeto da história do planeta dos últimos séculos. Tais
grupos, ameaçados de desaparecimento diante do avanço implacável do novo
colonialismo global representado pelo avanço da civilização racionalista e
tecnicizada ad nauseam da era da computação e pressionados pelo instinto de
sobrevivência, são levados a reagir. Dado que uma reação negativa – quer dizer,
de recusa total, de não aceitação – representaria, no contexto de uma economia
mundial de mercado, regida pela lei do mais forte, e no jogo dos interesses
nacionalistas imperialistas ou subimperialistas, o suicídio livremente escolhido,
estes grupos são obrigados, na medida de suas possibilidades, a optar pela única
saída existente. um movimento dialético de recusa de seu estágio anterior e de
aceitação mais ou menos rápida do processo. A situação é dramática particular-
mente quando a defasagem não é apenas sócio-econômica – o que é até certo
ponto secundário – mas antes de tudo cultural. Existem grupos que, em face das
condições extremamente desfavoráveis em que se encontram,‘ seja por sua
reduzida importância numérica, seja por se encontrarem em tal grau de
defasagem cultural que se lhes torne impossível o participar do movimento
dialético de recusa/aceitação, não dispõem das condições de reagir e que, por isto
mesmo, estão condenados a desaparecer definitivamente e para sempre da face
do planeta e da face da História dentro de algumas décadas. Os demais, porém –
e o Vietname é um exemplo –, os que dispuserem de condições para participar da
História como sujeitos, destruirão – e já começam a destruir – os esquemas de
poder até agora vigentes no planeta e, por suas contribuições artísticas e culturais
de características completamente novas, inaugurarão a idade pós-européia e
planetária.
NOTAS
relativo.
Kadhafi, o jovem coronel e presidente da Líbia (31 anos), é sem dúvida hoje um
dos líderes mais típicos do Terceiro Mundo, exatamente por seu caráter
carismático e contraditório. Ao mesmo tempo em que põe abaixo a tradição
diplomática ocidental ao confessar publicamente seu apoio econômico e político às
guerrilhas na Irlanda, aos golpes de Estado (frustrados) no Marrocos e na Jordânia
e ao fazer discursos que devem eriçar os cabelos dos tortuosos diplomatas
europeus, Kadhafi moderniza e inova de forma violenta no setor econômico – a
exploração do petróleo – e sócio-jurídico, introduzindo as leis ocidentais na
legislação matrimonial e destruindo, em conseqüência, séculos da tradição árabe-
muçulmana. Pode tal comportamento não ser qualificado de contraditório? E, por
outra parte, não é tal comportamento inevitável? Há outra saída? Frase final de
Cem anos de solidão, de García Márquez.
Alguns críticos, levados não se sabe por que razões, pretenderam descobrir uma
problemática homossexual em Grande sertão: veredas. A afirmação é, no mínimo,
ridícula. Contudo, serve como exemplo típico da leviandade e da facilidade festiva
que campeia pela crítica brasileira ou no meio daqueles que dela pensam fazer
parte. Apenas alguém que não leu ou, então, que tresleu a obra de João
Guimarães Rosa pode falar da existência de uma problemática homossexual em
Riobaldo. Existe , isto sim, um pseudoproblema, originado do fato de uma mulher,
travestida de cangaceiro, ter despertado a cobiça sexual em um companheiro de
luta. Até quem lê pela primeira vez a obra desconfia da identidade de Diadorim.
Mas isto nem vem ao caso. Aceitemos que o leitor descubra apenas na parte final
do relato de Riobaldo – a batalha – quem era na realidade Diadorim. E daí? Existe
uma problemática homossexual latente em Riobaldo? Ridículo! Até pelo contrário,
pois com muito mais razão se pode afirmar que o problema de Riobaldo 6 o de
uma sensibilidade masculina exacerbada a tal ponto que já no primeiro encontro
com Diadorim/menino (p. 80) e, posteriormente, ao conviver com
Diadorim/cangaceiro intui, ao contrário dos demais, que Diadorim não é homem.
Não interessa – pois é este o pseudoproblema! – que seu consciente não capte as
razões de sua inclinação por Diadorim e, enganado pelas aparências, se rebele
contra tal tendência, pois assim reage em virtude da repulsa que possui pelo
comércio carnal homossexual. Seu faro de macho e sua sensibilidade mais
profunda estavam corretos., como fica provado ao final.
*Pretendia eliminar esta “observação final” nesta 2' edição. Mas, ainda recente-
mente, alguns voltaram à carga, insistindo na questão. Diante disto, só resta uma
explicação: não é em Riobaldo que existe um problema homossexual e sim nos
críticos que tal pretendem ver em Grande sertão: veredas. Gostos e tendências
pessoais não se discutem, mas a insistência em tal assunto, além de ridícula, é
uma espantosa traição ao texto.