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ANDES-SN n Ano XXXIII - julho de 2023

UNIVERSIDADE

ISSN 1517 - 1779


e SOCIEDADE 72
Ano XXXIII - Nº 72 - julho de 2023

A crise ecológica
e socioambiental:
territórios, política
UNIVERSIDADE e SOCIEDADE #72 e meio ambiente
Fotos:
Eline Luz/
ANDES-SN
UNIVERSIDADE
e SOCIEDADE 72
Ano XXXIII - Nº 72 - julho de 2023

Revista publicada pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES-SN

Brasília Semestral

ANDES-SN n julho de 2023 1


A crise ecológica e socioambiental: territórios, política e meio ambiente

10 Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


à ecologização do capital: potencialidades crítio-analíticas
Julio Cesar Pereira Monerat

24 Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios:


Estado plurinacional, bem viver e direitos da natureza
Marcos Bernardino de Carvalho

40 Insustentabilidade e flexibilização ambiental no território brasileiro


Andrea Bezerra Crispim

52 Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura:


saque de recursos naturais e cumplicidade contra povos originários
Gilberto de Souza Marques, Egydio Schwade, Indira Rocha Marques,
Fernado Araújo Alves e Rodolfo Costa Machado

66 Luta pela terra no sul e sudeste do Pará:


uma leitura histórica socioambiental da Ditadura Empresarial-Militar
Carol Matias Brasileiro

78 Análise de conflitos ambientais em torno de


empreendimentos petroleiros: legados para a luta ambiental
Matheus Thomaz da Silva e Giuliana Franco Leal

90 Terra e resistência: o MST e o projeto de agroecologia nas escolas do campo


Fábio José de Queiroz, Eduardo Chagas e Nericilda Bezerra da Rocha

100 Mineração extrativista, educação pública e resistências classistas


na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais
Kathiuça Bertollo

2 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


sumário
Reportagem

118 Mobilização pelo reajuste salarial


Fotografias: Larissa Lana/Adufop, Pedro Mesidor/Fenasps,
André Luis/ExLibris, Blenda Cavalcante/ASCOM-ADUSC e
Eline Luz/ANDES-SN

Resenhas

130 Uma ecologia decolonial para sair do porão da modernidade


Marcos Bernardino de Carvalho

134 Populismo de esquerda e a construção de uma nova hegemonia


David Moreno Montenegro

Debates

138 Percepção de estudantes do 9º ano da Escola Municipal Papa João Paulo I,


Serra Preta, BA, sobre o efeito estufa e sua relação com a biodiversidade
Jaqueline Santana do Nascimento de Souza, Elenir Souza Santos e
Vanderlei da Conceição Veloso-Junior

148 Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes


e horizontes emancipatórios
Daniel Lemos Jeziorny e Alessandro Donadio Miebach

162 Inteligência artificial, descarbonização e sindicatos


Vamberto Ferreira Miranda Filho

180 As condições de trabalho e a luta sindical


do setor de mármore e granito do sul do Espírito Santo
Luanna da Silva Figueira

194 As greves conjuntas dos docentes das Instituições Estaduais


de Ensino Superior do Paraná no período Beto Richa (PSDB):
considerações do ano de 2015
Peterson Alexandre Marino e Silvana Souza Netto Mandalozzo

210 O desfinanciamento da ciência e a autonomia universitária


Daniella Borges Ribeiro

ANDES-SN n julho de 2023 3


UNIVERSIDADE
e SOCIEDADE
n Publicação semestral do ANDES-SN: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.
n Os artigos assinados são de total responsabilidade de seus autores.
n Todo o material escrito pode ser reproduzido para atividades sem fins lucrativos, mediante citação da fonte.

CONTRIBUIÇÕES PARA PUBLICAÇÃO NA PRÓXIMA EDIÇÃO, ver página 221

Conselho Editorial
Antonio Gonçalves Filho, Antônio Ponciano Bezerra, Carlos Eduardo Malhado Baldijão, Ciro Teixeira
Correia, Décio Garcia Munhoz, Eblin Joseph Farage, Luiz Henrique Schuch, Luiz Carlos Gonçalves Lucas,
Luiz Pinguelli Rosa, Maria Cristina de Moraes, Maria José Feres Ribeiro, Marina Barbosa Pinto, Marinalva
Silva Oliveira, Newton Lima Neto, Paulo Marcos Borges Rizzo, Roberto Leher e Sadi Dal Rosso

Encarregatura de Imprensa e Divulgação desta Edição Francieli Rebelatto

Editoria Executiva deste Número


Elizabeth Carla Vasconcelos Barbosa, Jennifer Susan Webb Santos, Luiz Henrique dos Santos Blume
e Neila Nunes de Souza

Pareceristas Ad Hoc
Alisson Silva da Costa, Augusto Charan Alves Barbosa Gonçalves, Cláudio Amorim dos Santos, Cristino
Cesário Rocha, Deodato Ferreira da Costa, Eliana C. P. T. Albuquerque, Erasmo Baltazar Valadão, Fabíola
Calazans, Fernando Santos Sousa, Flavia Alessandra de Souza, Heleni Duarte Dantas de Ávila, Jeanes
Martins Larchert, Jorge Manoel Adão, Josanne Francisca Morais Bezerra, José Eurico Ramos de Souza,
Lenilda Damasceno Perpetuo, Lila Cristina Xavier Luz, Luis Flávio Reis Godinho, Marleide Barbosa de
Sousa Rios, Meire Cristina Costa Ruggeri, Nathália Barros Ramos, Nirce Barbosa Castro Ferreira, Maria
da Penha Feitosa, Perci Coelho de Souza, Reinouds Lima Silva, Renato de Carvalho Lopes, Rosana Soares,
Salvador Dal Pozzo Trevizan, Sandra Regina de Oliveira, Sócrates Jacobo Moquete Guzmán, Solange
Cardoso, Sueli Mamede Lobo Ferreira, Walace Roza Pinel e Wanderson Fabio de Melo

Revisão Metodológica e Produção Editorial Iara Yamamoto

Direção de Arte Espaço Donas Marcianas Arte e Comunicação – Gabi Caspary

Ilustrações, Capa e Diagramação Flavio Flock

Revisão Gramatical Gizane Silva

Tiragem 1000 exemplares

Impressão Gráfica Ipiranga

Expedição
ANDES-SN - ESCRITÓRIO REGIONAL SÃO PAULO
Rua Amália de Noronha, 308 - Pinheiros - CEP 05410-010 - São Paulo - SP
Tel.: (11) 3061-0940 / 99726-6706
E-mail: andessp@andes.org.br www.andes.org.br

Universidade e Sociedade / Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino


Superior - Ano I, nº 1 (fev. 1991)
Brasília: Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.
Semestral ISSN 1517 - 1779

72
2023 - Ano XXXIII Nº 71
1. Ensino Superior - Periódicos. 2. Política da Educação - Periódicos. 3. Ensino Público - Periódicos.
I. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior CDU 378 (05)

ENSINO PÚBLICO E GRATUITO: direito de todos, dever do Estado.


Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES-SN
Setor Comercial Sul (SCS), Quadra 2, Edifício Cedro II, 5º andar, Bloco C
CEP 70302-914 - Brasília - DF - Tel.: (61) 3962-8400
E-mail: secretaria@andes.org.br

4 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Editorial
A Revista Universidade e Sociedade apresen-
ta o número 72 com o tema central A crise
ecológica e socioambiental: territórios, polí-
tica e meio ambiente. A Revista US é um dos instru-
mentos de luta do ANDES-SN há 32 anos.
pauta. Mas nos deteremos a uma das lutas que dia-
logam diretamente com a temática deste número: o
marco temporal. A Câmara dos Deputados aprovou,
no dia 30 de maio de 2023, o Projeto de Lei (PL)
490/07, que fixa, em lei, o marco temporal para de-
marcação de terras indígenas. A proposta teve 283
O ANDES-SN, em meio aos embates e disputas votos favoráveis e 155 contrários e será enviada para
políticas na defesa dos/as docentes, trabalhadores e a apreciação do Senado.
trabalhadoras deste país, encontra-se em uma con-
juntura que se apresenta difícil diante das forças e O PL 490 foi aprovado na forma de um substi-
possibilidades de avanço nas lutas – com a ressalva tutivo do relator, deputado Arthur Oliveira Maia
de que talvez nunca tivemos na história uma conjun- (União-BA), e altera o estatuto jurídico das terras in-
tura que pudesse ser tida como fácil para a classe tra- dígenas ao introduzir o requisito do marco temporal
balhadora. Reafirmamos o nosso sindicato como um de ocupação para os processos de demarcação. Ele
instrumento autônomo de governos e com capacida- prevê que só devam ser demarcadas as terras ocupa-
de de lutar em unidade com as demais organizações das pelos povos indígenas até a data da promulgação
dos/as trabalhadores/as, barrar retrocessos e fazer da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
avançar nossas bandeiras históricas.
Segundo o texto, para serem consideradas terras
Neste momento em que preparamos a edição para ocupadas tradicionalmente, deverá ser comprovado
o seu lançamento no 66º CONAD, sediado em Cam- objetivamente que os territórios, na data de promul-
pina Grande, na Paraíba, dos dias 14 a 16 de julho, gação da Constituição, eram, ao mesmo tempo, habi-
vale nomear as jornadas de luta pela campanha sa- tados em caráter permanente, usados para atividades
larial e contra o arcabouço fiscal por um orçamen- produtivas e necessárias à preservação dos recursos
to justo, solidário e social como temas candentes da ambientais e à reprodução física e cultural.

ANDES-SN n julho de 2023 5


“A Constituição garante aos povos indígenas direi- e algodão, entre outras commodities, são impactos
tos originários sobre as terras que tradicionalmente do marco temporal.
ocupam, sendo a tradicionalidade um elemento cul-
tural da forma de ocupação do território, e não um Assim, nesta edição da US, os artigos distribu-
elemento temporal. Fixar um marco temporal que ídos na Seção Temática totalizam oito textos, dos
condicione a demarcação de terras indígenas pelo quais cinco trazem como objeto ou fazem menção
Estado brasileiro viola frontalmente o caráter ori- aos povos originários/indígenas. Procurando situar o
ginário dos direitos territoriais indígenas” (excerto leitor e a leitora, em síntese, serão discutidos: a crise
retirado da nota do MPF). Nossa luta é para que o do capital e crise ambiental à ecologização do capi-
projeto não seja aprovado no Senado, pois consolida- tal, o estado plurinacional, o bem viver e os direitos
ria inúmeras violências sofridas pelos povos indíge- da natureza, o avanço da flexibilização ambiental no
nas, como as remoções forçadas de seus territórios, Brasil, as violações de direitos humanos contra po-
os confinamentos em pequenos espaços territoriais e vos originários da Amazônia, os aspectos ambientais
os apagamentos identitários históricos. e sociais no processo de luta de classes estabelecido
no sul e sudeste do Pará no período da Ditadura Em-
Não ao marco temporal!, a cartilha sobre o julga- presarial-Militar, os conflitos ambientais em torno de
mento decisivo para o futuro dos povos indígenas do empreendimentos petroleiros, o MST, o projeto de
Brasil e o enfrentamento da crise climática, publica- agroecologia nas escolas do campo e o contexto da
da com dados do IPAM, da APIB, da MapBiomas e luta de classes na região do quadrilátero ferrífero de
da base de dados de terras indígenas da Funai/2023, Minas Gerais.
apresenta que cientistas do mundo todo seguem
demonstrando como as terras ocupadas tradicio- A Sessão de Debates traz seis artigos que abordam
nalmente pelos povos originários são as áreas com desde a biodiversidade, os territórios recalcitrantes
maior biodiversidade e vegetação mais preservadas. com vista à transformação social, a inteligência arti-
Ou seja, demarcar as terras indígenas e mantê-las ficial, descarbonização e sindicatos, as condições de
protegidas de invasores ilegais, de garimpeiros, de trabalho e a luta sindical e as greves nas IEEs do Pa-
madeireiros e do avanço do agronegócio é garantir raná até o desfinanciamento da ciência e sua relação
que o estoque de carbono nessa área seja mantido com a autonomia universitária. Além de duas obras
e os direitos dos povos indígenas respeitados. Pro- apresentadas como resenhas: a primeira, Uma ecolo-
va disso é 29% do território ao redor das TIs estar gia decolonial para sair do porão da modernidade e
desmatado, enquanto que, dentro das mesmas, só há a segunda, Populismo de esquerda e a construção de
2% de desmatamento. O mapeamento mostra que a uma nova hegemonia.
maior parte das áreas desmatadas estão destinadas a
pastagens para a criação de gado (para exportação de São esses os oito artigos da Seção Temática: o pri-
carne e de couro) e para a produção de soja, mas tam- meiro, intitulado Paralelos entre crise do capital e crise
bém destaca que plantações de cana, arroz, eucalipto ambiental à ecologização do capital: potencialidades
crítico-analíticas, de autoria de Julio Cesar Pereira

72
Monerat, discute a conceituação da ecologização do
capital entendida como forma capitalista de enfren-
tamento da crise ambiental decorrente da dinâmica
imanentemente expansiva do capital. O autor apre-
senta que, por relacionar-se apenas indiretamente ao
valor e, mais efetivamente, à renda, a ecologização

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do capital pode tão somente atuar como tendência Schwade, Indira Rocha Marques, Fernado Araújo Al-

Editorial
contra-arrestante da crise capitalista, não derrogan- ves e Rodolfo Costa Machado, trata das violações de
do a tendência de crise que é imanente a esse modo direitos humanos cometidas pelo grupo empresarial
de produção. Por ser determinada pela valorização e Paranapanema contra povos originários da Amazô-
não pelo ambiente (pelo capital e não pela natureza), a nia e também analisa crimes cometidos por outras
ecologização do capital não suprime o caráter ambien- empresas privadas e órgãos do governo durante a
talmente destrutivo do modo de produção capitalista. Ditadura Empresarial-Militar. As violações tinham
como pano de fundo a apropriação dos territórios
O segundo artigo trata do estado plurinacional, e das riquezas existentes, configurando processos
em seu processo de construção e implantação. Além de acumulação por espoliação, parte importante da
de revelar compreensão da dinâmica geopolítica dinâmica de acumulação ampliada de capital. A pes-
que levou ao atual sistema-mundo, não só indica os quisa objetiva dar fundamento a processos de repara-
meios alternativos de combatê-lo, como evidencia ção, contribuindo para que a Ditadura não se repita
sintonia com algumas das questões mais críticas da nunca mais.
atualidade, sobejamente a questão socioambiental,
tema deste número. É a proposta de Marcos Bernar- A exemplo do texto anterior e na esteira do que re-
dino de Carvalho, com Crise socioambiental e hori- presentaram a Ditadura e esse período da história, o
zontes biocivilizatórios: estado plurinacional, bem vi- quinto artigo, Luta pela terra no sul e sudeste do Pará:
ver e direitos da natureza, que tem em seu centro de uma leitura histórica socioambiental da Ditadura Em-
discussão o estado plurinacional e seus fundamen- presarial-Militar, de autoria de Carol Matias Brasilei-
tos – bien vivir e “direitos da natureza” –, difundidos ro, se propõe a articular aspectos ambientais e sociais
pelos povos originários e comunidades tradicionais, no processo de luta de classes estabelecido no sul e
em resistência à colonialidade, que, segundo o autor, sudeste do Pará no período da Ditadura Empresarial-
oferecem-se como horizonte promissor para a cons- -Militar (1964-1985), com foco nas relações de tra-
trução de um projeto biocivilizatório alternativo ao balho rural. A investigação dá ênfase em como se da-
padrão global de espoliação que o Estado Nacional vam as relações de trabalho rural na região durante a
Moderno viabilizou. Ditadura, pelas abordagens demográfica (migração e
ocupação), jurídica (Estatuto da Terra) e sociológica
O terceiro, de Andrea Bezerra Crispim, intitulado (conflitos entre modos de produção distintos e expe-
Insustentabilidade e flexibilização ambiental no ter- riências de resistência camponesa).
ritório brasileiro, discute o avanço da flexibilização
ambiental no Brasil e sua relação com o aumento dos O sexto texto desta seção, Análise de conflitos am-
problemas ambientais ocorridos durante a gestão bientais em torno de empreendimentos petroleiros: le-
bolsonarista (2019-2022). A autora apresenta a ne- gados para a luta ambiental, de Matheus Thomaz da
cessidade de estabelecer um processo de reestrutura- Silva e Giuliana Franco Leal, tem como foco as dispu-
ção da plataforma ambiental brasileira, fortalecendo tas de poder que envolvem questionamentos ambien-
as políticas de preservação e fiscalização dos compo- tais a atividades extrativas de petróleo. A proposta é
nentes ambientais do território brasileiro. identificar conflitos socioambientais entre a Petrobras
e outros sujeitos coletivos, em um município estraté-
O quarto artigo apresentado aos/às leitores/as, Es- gico da Bacia de Campos, nos anos 1980 e 1990, pen-
tado e empresa na Amazônia durante a Ditadura: sa- sar em como esses conflitos se inserem no contexto
que de recursos naturais e cumplicidade contra povos do extrativismo brasileiro e, por fim, compreender os
originários, de Gilberto de Souza Marques, Egydio legados desses conflitos para as lutas ambientais.

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O sétimo artigo, Terra e resistência: o MST e o pro- tu de Baixo) e pelas seculares lutas e resistências da
jeto de agroecologia nas escolas do campo, trata das in- classe trabalhadora, organizadas por diferentes su-
ter-relações entre o Movimento dos Trabalhadores e jeitos coletivos, especialmente movimentos sociais,
Trabalhadoras Rurais Sem-Terra (MST), seu progra- entidades sindicais e frentes amplas de atuação.
ma, suas ações de resistência e as questões inerentes
à educação e ao meio ambiente, traduzidas nas no- Passemos à Seção de Debates, onde os/as autores/
ções de escola do campo e agroecologia. Os autores as brindam os/as leitores/as com seis artigos. O pri-
Fábio José de Queiroz, Eduardo Chagas e Nericilda meiro artigo, com o título Percepção de estudantes do
Bezerra da Rocha apresentam que o MST, a partir de 9º ano da Escola Municipal Papa João Paulo I, Serra
1984, torna-se amplamente reconhecido por sua luta Preta, BA, sobre o efeito estufa e sua relação com a bio-
pela mudança da estrutura agrária do país, partindo diversidade, de autoria de Jaqueline Santana do Nas-
da bandeira da reforma agrária. E que, ao longo do cimento de Souza, Elenir Souza Santos e Vanderlei
tempo, o movimento mostrou-se um agente ativo da Conceição Veloso-Junior, se propôs a identificar a
em defesa da educação pública que, com o passar percepção dos alunos do 9º ano da Escola Municipal
dos anos, ganhou materialidade nas escolas do cam- Papa João Paulo I sobre o efeito estufa e sua relação
po e, nesse ponto, fez uma definição metodológica com a biodiversidade. Dentre as medidas que devem
e teórico-prática pela agroecologia, assumindo vívi- ser adotadas para reduzir a emissão de gases do efeito
do o compromisso pela preservação ambiental dos estufa, os estudantes destacaram a economia de ener-
territórios e pela produção de alimentos saudáveis, gia elétrica, o uso de transporte público como meio
temas com os quais o artigo apresenta um relaciona- de locomoção, a redução na produção de lixo e a di-
mento imediato. minuição no consumo de carne.

Para encerrar a Sessão Temática, mais um arti- O segundo artigo, Devir, desenvolvimento, territó-
go evidencia as contradições próprias do modo de rios recalcitrantes e horizontes emancipatórios, de Da-
produção capitalista que estruturam e conformam niel Lemos Jeziorny e Alessandro Donadio Miebach,
a esfera da produção e da reprodução social. De au- tem como foco de análise o espaço latino-americano
toria de Kathiuça Bertollo, Mineração extrativista, e sua peculiar associação aos circuitos globais de re-
educação pública e resistências classistas na região do produção do capital. O texto lança mão de um con-
quadrilátero ferrífero de Minas Gerais reflete acer- junto de conceitos que visam inicialmente abrir o
ca da mineração extrativista, da educação pública e campo de possibilidades para agências e escolhas dos
das resistências classistas naquela região (território atores sociais. Parte-se da ideia de territórios recalci-
marcado pelo maior crime socioambiental do país: o trantes como lócus de alternativas que possibilitam a
rompimento/crime da barragem de Fundão em Ma- emergência de um “devir” apto a construir possibili-
riana-MG), pela presença de instituições de ensino dades de transformação social.
públicas (como a UFOP, o IFMG campus Ouro Preto
e as escolas municipais de Bento Rodrigues e Paraca- O terceiro artigo desta sessão é Inteligência ar-
tificial, descarbonização e sindicatos, de autoria de

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Vamberto Ferreira Miranda Filho. Ele apresenta que
o crescente uso de inteligência artificial e as políticas
de descarbonização são duas das principais transfor-
mações atuais no mundo do trabalho. Na Alemanha
e no Brasil, essa “dupla transformação” tem desafiado
o movimento sindical. O objetivo desse estudo foi

8 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


comparar iniciativas sindicais relacionadas a essas Por fim, o sexto e último artigo desta seção, O des-

Editorial
transformações nos dois países. Na Alemanha, os financiamento da ciência e a autonomia universitária,
resultados da pesquisa apresentam indícios da mo- da autora Daniella Borges Ribeiro, discute as impli-
bilização de poder institucional, de organização e cações do desfinanciamento da ciência no Brasil para
social; no Brasil, houve indícios da mobilização do o preceito constitucional da autonomia universitária.
poder de organização e social nas poucas iniciativas A diminuição de recursos públicos para o desenvol-
sindicais encontradas. vimento da ciência no Brasil demonstra muito mais
que uma crise fiscal durante o colapso sanitário de
O quarto artigo, As condições de trabalho e a luta 2020; ela revela uma problemática que já estava em
sindical do setor de mármore e granito do sul do Es- curso. Nesse cenário, aprofunda-se a disputa pelos
pírito Santo, de Luanna da Silva Figueira, descreve recursos do fundo público, retirando investimen-
as condições de trabalho no ambiente do setor de tos financeiros essenciais para a condução de polí-
rochas, fomentando a importância e a necessidade ticas como a de ciência, tecnologia e inovação. Tal
das lutas sociais operadas pelo sindicato de categoria fato aprofunda a mercadorização do conhecimento
para a valorização do trabalhador e de seus direitos científico e fomenta a ideia das universidades como
justrabalhistas. No texto, as precárias condições de campo profícuo para a valorização do capital, o que
trabalho do setor de mármore e granito do sul do ES ameaça princípios como o da autonomia universitá-
perpassam um meio ambiente que causa malefícios ria, do ensino laico, público, de qualidade e gratuito.
na ordem do acidente típico de trabalho. O acidente
de labor não apenas afeta socialmente os/as trabalha- Esta edição da US também contempla uma repor-
dores/as do setor, mas também estabelece relações tagem fotográfica focada nas lutas atinentes à “Cam-
diretas com toda a cultura da região. panha Salarial 2023”, que apresenta registros das lutas
marcadas, com fotos do ANDES-SN no movimento
O quinto artigo, As greves conjuntas dos docentes e na luta, nos mais diversos espaços, confirmadas, in-
das Instituições Estaduais de Ensino Superior do Pa- clusive, pelas Seções Sindicais que disponibilizaram
raná no período Beto Richa (PSDB): considerações do os registros fotográficos. Temos uma linha do tem-
ano de 2015, de autoria de Peterson Alexandre Ma- po, com o título Mobilização pelo reajuste salarial,
rino e Silvana Souza Netto Mandalozzo, propõe-se a onde são demonstradas as lutas ocorridas nos anos
apresentar os desafios conjunturais do sindicalismo de 2022 e 2023.
docente das universidades estaduais paranaenses
no contexto dos governos Beto Richa (PSDB). Para Assim, convidamos para a leitura prazerosa desta
tanto, o debate foi direcionado para as duas greves edição da Revista US, organizada com muito carinho
de servidores estaduais ocorridas em 2015 – ano e em sintonia com a conjuntura, a iniciar pela capa,
marcado pela grave tensão entre esses servidores e o que dialoga não apenas com a temática, mas, sobre-
governo estadual, a exemplo da fatídica violência po- tudo, com o momento político atual e com a luta pela
licial ocorrida no dia 29 de abril. Como resultado, foi terra dos povos originários.
possível realizar o desvelamento dos principais ele-
mentos que exigiram a mobilização desses sindica- A Cartilha do Marco Temporal, a partir dos in-
tos no ano: o descumprimento da reposição salarial dígenas, denuncia que esse marco temporal “é uma
anual prevista em lei e a reforma previdenciária dos máquina de moer história... Ele acaba com a história,
servidores estaduais. A greve mostrou-se como uma muda toda a história”.
importante ferramenta de resposta desses servidores,
mas não foi a única.

ANDES-SN n julho de 2023 9


A crise ecológica e socioambiental

Paralelos entre
crise do capital e
crise ambiental
à ecologização do capital:
potencialidades crítico-analíticas
Julio Cesar Pereira Monerat
Professor do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IFSEMG) - Campus Muriaé
E-mail: julio.monerat@gmail.com

Resumo: O artigo realiza a conceituação da ecologização do capital entendida como forma


capitalista de enfrentamento da crise ambiental decorrente da dinâmica imanentemente ex-
pansiva do capital. Após um breve aprofundamento sobre a crise ambiental e sua relação com
o caráter necessariamente expansivo do capital relacionado ao valor, ao mais-valor e ao preço
de produção, o texto avança por uma descrição sucinta da dinâmica das crises capitalistas a
partir de um referencial marxiano. Em seguida, a investigação aprofunda-se sobre a relação
capital-natureza, especialmente tendo por referência autores vinculados à tradição marxista.
Nessa seção, conclui-se que a natureza não possui uma condição de obstáculo ou vantagem
abstratamente definida, mas sim marcada historicamente em um dado contexto sociotécnico,
mas que, em decorrência do movimento expansivo do capital, conduz ao crescimento dos
obstáculos ambientais à valorização – a crise ambiental. A ecologização do capital seria a
resposta capitalista a tal situação, materializada por meio da adoção combinada de formas
destrutivas ou sustentáveis de relação com a natureza, determinadas tão somente pela po-
tencialidade de cada uma em franquear a superação dos obstáculos ambientais à valorização.
Por relacionar-se apenas indiretamente ao valor e, mais efetivamente à renda, a ecologização
do capital pode, tão somente, atuar como tendência contra-arrestante da crise capitalista, não
derrogando a tendência de crise que é imanente a esse modo de produção. Por ser determi-
nada pela valorização e não pelo ambiente (pelo capital e não pela natureza), a ecologização
do capital não suprime o caráter ambientalmente destrutivo do modo de produção capitalista.

Palavras-chave: Crise Ambiental. Crise Capitalista. Ecologização do Capital. Marx. Ecologia.

10 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução: crise ambiental seriam um obstáculo intransponível à continuidade
e ecologização do capital da dinâmica de valorização. Afinal, apostar na mor-
te ambiental do capital seria menosprezar a capa-
A demonstração da crise ambiental como uma di- cidade plástico-adaptativa do capital em converter
nâmica determinada pelo capital deve iniciar-se pela limites em barreiras a serem por ele superadas, tal
demonstração do caráter necessariamente expansivo como se aprofundará na sequência. Se é correta a
do capital enquanto valor que se valoriza. Desconsi- preocupação a respeito de até quando o planeta pro-
derar esse fundamento é restringir-se a tatear a su- fundamente degradado permitiria a continuidade
perfície da insustentabilidade ambiental que aparece da vida humana, em contrapartida, a conversão dos
como decorrência dos mais diversos fatores – desde problemas ambientais em fronteiras de expansão ca-
elementos culturais, como a visão de natureza da tra- pitalista – o que inclui o chamado capitalismo verde
dição judaico-cristã, até a concepção moderna baco- e todas as suas manifestações, indo da bioeconomia
niana de torturar a natureza até que ela revele seus aos créditos de carbono, para sermos sucintos – é a
segredos (FOLADORI, 2001) –, enquanto que, em reprodução, em termos ambientais, da dinâmica da
seu movimento essencial, a crise ambiental decorre crise capitalista propriamente dita, ainda que com
efetivamente do movimento do capital. determinações distintas. Em outros termos, tal como
Apresentar a crise ambiental como uma decor- nas crises cíclicas que estabelecem obstáculos à va-
rência do movimento do capital, entretanto, não nos lorização e na conversão de tais obstáculos em bar-
conduz à conclusão de que os problemas ambientais reiras a serem superadas pelo capital em um ciclo

ANDES-SN n julho de 2023 11


A crise ecológica e socioambiental de aprofundamento das contradições no momento Sendo mais exatos na descrição dessa dinâmi-
seguinte, também na crise ambiental o capital busca ca, tem-se que o mencionado aprofundamento de
transformar os obstáculos ambientais à valorização parcelas crescentes da natureza na lógica mercantil
em barreiras a serem superadas sob determinação da continua a efetivar-se em determinados espaços, ao
valorização. Contudo, as crises de valorização e a cri- mesmo tempo em que formas ditas sustentáveis são
se ambiental possuem estatutos distintos. implementadas em outros espaços. Ambas efetivam-
Enquanto a crise de valorização tem um caráter -se em espaços e tempos distintos, porém combina-
cíclico, que se desenrola em um quadro tendencial dos, de forma destrutiva ou sustentável – sendo que
de queda da taxa de lucro como seu fundamento úl- sustentável é aqui compreendido de forma bastante
timo, a crise ambiental não se desenrola em uma di- reducionista. O que determinará a “escolha” por um
nâmica cíclica, mas sim cumulativa, apontando, mais ou outro caminho – destruição ou sustentabilidade
que uma tendência, para o caráter necessariamente – pelo capital será tão somente as potencialidades de
expansivo do capital que se desdobra em incorpora- valorização que cada um desses caminhos representa.
ção crescente da natureza à dinâmica do valor. Tal Como demonstração dessa dinâmica contradi-
incorporação crescente da natureza efetiva-se tanto toriamente combinada, tem-se, no espaço agrário
em entradas crescentes de parcelas da natureza no brasileiro, a articulação da expansão do agronegócio
processo de valorização quanto em saídas também latifundiário, monocultor e agrotóxico-dependente
crescentes de rejeitos e dejetos no ambiente natural. com o estabelecimento de empreendimentos do en-
Mas, sem derrogar esse caráter cumulativo e, conse- tão chamado capitalismo verde no campo: implan-
quentemente, destrutivo, a crise ambiental é enfren- tação de sistemas agroflorestais por empresas do
tada pelo capital por formas que designamos ecologi- capital agrário, produção de orgânicos em larga es-
zação do capital. cala e até mesmo formas de inserção subordinada da
agricultura familiar de base agroecológica no circui-
to mercantil de forma aprofundada. A determinação
Enquanto a crise de valorização tem um caráter cíclico, que última sobre qual forma produtiva a ser adotada, no
se desenrola em um quadro tendencial de queda da taxa entanto, continua a ser determinada pelo conteúdo
de lucro como seu fundamento último, a crise ambiental da valorização, isto é, em qual delas o fundamento
não se desenrola em uma dinâmica cíclica, mas sim cumu- último da capital – valor que se valoriza – tem mais
lativa, apontando, mais que uma tendência, para o caráter potencialidades de efetivar-se.
necessariamente expansivo do capital que se desdobra em Tendo-se clara essa dinâmica combinadamente
incorporação crescente da natureza à dinâmica do valor. contraditória de relação do capital com a natureza
no contexto da crise ambiental é que julgamos perti-
nente designá-la como ecologização do capital, posto
Por ecologização do capital estamos designando que há efetivamente uma crescente inserção da natu-
a dinâmica contraditória e combinada por meio da reza nos circuitos mercantis – o que renova e apro-
qual o capital busca transformar obstáculos ambien- funda dinâmicas já corriqueiras da referida relação
tais em barreiras a serem por ele superadas – supe- capital-natureza e, simultaneamente, desenvolve no-
ração enquanto supressão e aprofundamento. Nessa vas formas para tal inserção por meio da abertura de
dinâmica contraditória e combinada de superação da fronteiras expansivas, representadas em seu conjun-
crise ambiental, o capital adotará combinadamente to pelo capitalismo verde: bioeconomia, reciclagem,
processos que renovam a expansão destrutiva junta- produção orgânica e eficiência energética, dentre
mente a outros que assumem potencialidades susten- outras.
táveis – ainda que de uma sustentabilidade fragmen- Nesse caso, o das formas de esverdeamento da
tada a determinados espaços e tempos – sempre sob produção, tem-se efetivada de maneira mais explícita
a determinação do valor: superação dos obstáculos a conversão de obstáculos ambientais à valorização
ambientais ao valor. em barreiras que o capital vai continuamente supe-

12 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


rando – suprimindo e aprofundado as contradições da valorização. Destruição e ecologização são, por-

Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


aí vigentes – o que nos leva a indagar se a ecologização tanto, faces contraditórias de uma dinâmica determi-
do capital teria a potencialidade de aturar de forma nada pelo valor e, conforme pretendemos investigar,
contra-arrestante à crise do capital. Nessa colocação, com potencialidades contra-arrestantes à tendência
a ecologização do capital comporia o quadro das de queda da taxa de lucro, base das crises do capi-
contratendências à crise do valor já identificadas por tal. Destruição e ecologização articulam-se no mo-
Marx (2017, p. 1): 1. aumento do grau de explora- vimento de superação dos obstáculos à valorização,
ção do trabalho; 2. compressão do salário abaixo do movimento no qual tais obstáculos são contradito-
seu valor; 3. barateamento dos elementos do capital riamente suprimidos e recolocados em determina-
constante; 4. superpopulação relativa; 5. comércio ções mais aprofundadas.
exterior; e 6. aumento do capital acionário. E, a esse Nesse sentido, capitalismo verde, economia circu-
quadro de contratendências, investigaremos a possi- lar, bioeconomia, desenvolvimento sustentável, agro-
bilidade de inclusão de uma sétima: a ecologização ecologia, bem viver e justiça ambiental, dentre outros,
do capital. são termos que, por mais que tenham diferenças entre
Por certo que não há condições para aprofundar- si, são efetivamente formas de manifestação da ecolo-
mos neste espaço na análise da queda tendencial da gização do capital. A crítica que não apreende que a
taxa de lucro elaborada por Marx (2017), mas tão so- ecologização em curso – por mais que assuma formas
mente apontar que, na dinâmica das crises capitalis- variadas (inclusive aparentemente críticas) – é a eco-
tas, atuam a referida tendência e as contratendências, logização do capital revela-se incapaz de apreender a
cujas articulações concretas devem ser compreendi- plasticidade mutante do capital combinada à sua pro-
das na processualidade em que o capital supera os cessualidade destrutiva e, portanto, mostra-se inapta a
obstáculos que lhe são postos por seu próprio mo- desdobrar-se em práxis que aponte para a indissocia-
vimento expansivo, isso porque defendemos que tal bilidade da crítica ecológica e da crítica ao valor.
processualidade da crise capitalista pode contribuir É sob essa determinação que os fundamentos úl-
para a compreensão da crise ambiental e da articula- timos da ecologização do capital devem ser buscados
ção entre ambas. na sociabilidade que a coloca em movimento. Para
Superar aqui tem um sentido específico, que con- isso, a crítica à ecologização do capital tem na obra
juga simultaneamente suprimir e recolocar, ou seja, o madura de Marx (2013; 2017) seu referencial basi-
capital supera os obstáculos à valorização suprimin- lar por ser aquela na qual a sociabilidade do capital
do-os e, ao mesmo tempo, recolocando-os em níveis é desvelada em seus fundamentos elementares. Marx
mais aprofundados. Essa apreensão da crise, quando possibilita-nos desvelar a lógica expansiva do valor
considerada em face dos limites naturais, leva-nos a como fundamento da ultrapassagem dos limites –
inferir que não a crise ambiental propriamente dita, não apenas aqueles ambientais – pelo capital. Marx
mas sim o enfrentamento dela pelo capital deva ser permite-nos compreender que é o valor que determi-
compreendido em sua processualidade tendencial e na tanto a ocorrência de obstáculos à sua continua-
profundamente contraditória. Dito mais claramente: da valorização quanto às formas de suas superações.
o capital solapa necessariamente as condições natu- Destruição e ecologização estão, portanto, submeti-
rais de vida humana no planeta ao expandir-se – e das às determinações do valor e, por isso, a crítica à
essa é uma dinâmica direcionalmente identificável, ecologização deve apreendê-la como tal.
como se demostrará adiante. Mas a forma como o ca- Certamente, as consequências ambientais do ca-
pital caminha nessa direção é que precisa ser identifi- pitalismo não são o foco central da crítica de Marx,
cada em seu caráter combinado e contraditório. mas isso não significa dizer que a crítica ambiental
Ora o capital simplesmente destrói o ambiente, esteja ausente da obra marxiana. Mesmo que não seja
ora ele incorpora processos ambientalmente susten- denominada como tal, está lá. Partindo da interpre-
táveis; enfim, contraditoriamente, o capital combina tação da obra marxiana por Foster (2011), o ecosso-
tais dinâmicas. E tudo isso determinado pela fluidez cialista Ian Angus (2020, s/p) identifica que

ANDES-SN n julho de 2023 13


A crise ecológica e socioambiental Marx analisou a grande crise ambiental de sua ao capital. O capitalismo pode continuar e
época – o declive da fertilidade dos solos na terminar com nada, terminar destruindo o
Inglaterra e na Europa – e identificou sua fonte mundo. Mas isso não é um limite. [...] O sonho
como uma ruptura causada pelo capitalismo, o do capital é a infinitude. O planeta, entretanto,
que ele denominou de “metabolismo universal é limitado. Mas isso não significa que o capital
da natureza”. Assim como Foster mostrou, esse não continuará a destruí-lo. Ele o fará, a menos
conceito de ruptura da “fenda metabólica” que seja impedido. Não acredito que existam
nos oferece um marco indispensável para a limites, e então tudo se desmorona. Há limites, e
compreensão das atuais crises ecológicas. as coisas tornam-se cada vez piores.

Essa importante consideração sobre a análise eco- Nessa linha, mais exatamente, o foco analítico
lógica na obra de Marx, entretanto, precisa ser fun- aqui proposto é aquele colocado concretamente pelo
damentada na crítica às determinações que tornam a movimento do capital em relação à crise ambiental,
ruptura metabólica uma consequência do movimen- ou seja, a relação entre crise ambiental e o valor ou
to do capital, bem como das formas que o capitalis- como o capital atua na crise ambiental de modo a
mo busca contornar tal ruptura, o que se manifesta conformar os obstáculos em fronteiras expansivas
na ecologização do capital. Portanto, a crítica que para a valorização. Esse foco na relação entre crise
apresentaremos, tendo por referencial parte da obra ambiental e valor não nos leva a desconsiderar a di-
madura de Marx, é uma crítica aos fundamentos úl- nâmica ambientalmente destrutiva que caracteriza
timos da ecologização do capital. todo esse movimento – “O capitalismo está destruin-
Nesse sentido de formulação da crítica à ecologi- do o planeta. Mas isso não implica que haja um limite
zação do capital, devemos relacioná-la, ainda, à deter- natural ao capital”, na citação logo acima. O que se
minação para que o capital precise ecologizar-se para pretende, portanto, é identificar como o capital busca
continuar a ser capital. Ou seja, é preciso identificar superar os obstáculos ambientais ao valor – a crise
que essa determinação decorre da crise ambiental, ambiental – por meio de sua ecologização. O que não
colocada como obstáculo (e como oportunidade, na nos leva a desconsiderar que a ecologização do ca-
linguagem mainstream) à valorização do capital. Para pital não derroga definitivamente a destruição am-
uma compreensão aprofundada da crise ambiental, é biental e que apenas a superação dessa forma social
prudente que consideremos brevemente a dinâmica permitirá a efetivação de relações coevolutivas entre
das crises na sociedade capitalista, o que será feito na sociedade e natureza.
seção seguinte. Referenciados em Marx (2017), ve-
rificamos que as crises capitalistas são imanentes ao
metabolismo da forma social e configuram-se como
Valor, mais-valor e preço de
uma tendência.
produção: expansão e
Antes de avançarmos em uma breve análise das
crise do capital
crises capitalistas, cabe uma pequena observação so-
Ao analisar os fundamentos mais elementares do
bre a dinâmica exapansiva-destrutiva do capital. É
modo de produção capitalista a partir da compre-
preciso ter claro que a superação da crise ambiental
ensão da mercadoria como unidade contraditória
vincula-se, necessariamente, à superação dos obs-
de valor de uso e valor, Marx (2013) revela o cará-
táculos à valorização, mesmo que isso implique em
ter necessariamente expansivo do capital. Tratando,
aprofundamento das dinâmicas destrutivas – o que
desde o início, da sociedade capitalista como aquela
nos leva a concluir que um meio ambiente ampla-
na qual toda riqueza aparece sob a forma mercan-
mente devastado pode advir da continuidade dessas
til, Marx destaca (Livro I de O Capital) que a troca
dinâmicas e, ainda assim, o capital continuar a valo-
torna social a totalidade dos trabalhos privados por
rizar-se. Como afirma Postone (2018, p. 20):
meio do valor – cuja substância é o trabalho abstrato
O capitalismo está destruindo o planeta. Mas e cuja medida é dada pelo tempo de trabalho social-
isso não implica que haja um limite natural mente necessário.

14 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


O valor, diferentemente do valor de uso, que pode relação entre trabalho assalariado e capital –,

Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


ser qualitativamente diferenciado, só é passível de ser uma sociedade direcionalmente dinâmica, na
qual se buscam níveis de produtividade cada vez
quantitativamente comensurado em uma relação de
maiores (postone, 2014, p. 333-334).
troca. Ou seja, se no intercâmbio de meros valores de
uso são confrontadas qualidades distintas que podem Essa dinâmica expansiva avança e fica mais clara
atender também a distintas necessidades, na troca quando, sem deixar a análise abstrata realizada por
são comensuradas quantidades de algo que é igual a Marx nos capítulos iniciais de O Capital, investiga-se
si mesmo em essência, isto é, trabalho abstrato, valor. a relação que o capital estabelece com a força de tra-
Sendo assim, não há sentido em trocar quantidades balho historicamente tornada mercadoria. Ela con-
iguais de algo que é essencialmente e qualitativamen- cretiza a lógica expansiva de duas formas: a primeira
te igual, ou seja, valor. Essa troca tem, portanto, uma é que a força de trabalho é a única mercadoria que, ao
determinação lógica – identificada desde o primeiro ter seu valor de uso efetivado no processo produtivo,
capítulo da obra máxima marxiana –, que aponta ne- é capaz de criar um valor a mais, que, previamente e
cessariamente para a expansão: trocar um quantum sem sua efetiva participação, não existiria. Em segun-
de valor só faz sentido se da troca resultar um valor a do lugar, porque a elevação da produtividade da for-
mais. É por objetivar esse valor a mais, um valor que ça de trabalho franqueia ao capitalista que a contrata
se valoriza, que o capital revela-se necessariamente a ampliação de sua própria participação na riqueza
expansivo. Está aí a determinação da lógica imanen- social, agora na condição de mais-valor – que se des-
te expansiva do capital, cuja compreensão deve ser dobra, em momentos mais adiante na obra marxia-
aprofundada e historicizada, já que logicamente de- na, no mais-valor extraordinário. E a complexidade/
monstrada, como se fará a seguir.
Antes, porém, ainda que em termos bastante abs-
tratos, a exposição marxiana deixa claro que, no con-
O valor, diferentemente do valor de uso que pode ser
texto de uma produção anarquicamente crescente,
qualitativamente diferenciado, só é passível de ser
a elevação da produtividade é um imperativo para quantitativamente comensurado em uma relação de
que o produtor/capitalista privado possa garantir ou troca. Ou seja, se no intercâmbio de meros valores de
ampliar sua participação na riqueza social. Contra- uso são confrontadas qualidades distintas que podem
ditoriamente, o mesmo movimento de elevação da atender também a distintas necessidades, na troca são
produtividade que possibilita a ampliação da partici- comensuradas quantidades de algo que é igual a si
pação do produtor/capitalista na riqueza social será mesmo em essência, isto é, trabalho abstrato, valor.
determinante, na sua sequência, para o nivelamento
dessa participação com os demais produtores, reno-
vando a necessidade de retomada continuada da ele- concreticidade dessa dinâmica expansiva evidencia-
vação da produtividade. Em termos mais exatos: -se ainda mais quando, considerando-se a totalidade
do movimento do capital – o que implica em incluir
A peculiaridade dessa dinâmica – e isso é o
crucial – é o seu treadmill effect. O incremento a análise desenvolvida no Livro III de O Capital –, a
da produtividade aumenta a quantidade de lógica expansiva revela-se na transformação dos va-
valor produzido por unidade de tempo – até lores em preço de produção (MARX, 2017).
essa produtividade se tornar generalizada; nesse Nesse último contexto, o da transformação de va-
ponto, a magnitude do valor produzido nesse
lores em preços de produção descrito no Livro III, a
período de tempo, por causa da sua determinação
temporal abstrata e geral, volta ao nível anterior. elevação da produtividade assume a forma de busca
Isso resulta em uma nova determinação da pelo lucro extraordinário, aprofundando ainda mais
hora de trabalho social em um novo nível de as dinâmicas que ampliam a participação privada na
produtividade. [...] Esse treadmill effect implica,
riqueza social e seu posterior nivelamento – o tread-
mesmo no nível lógico abstrato do problema
magnitude do valor – em outras palavras, antes mill effect. Em todos esses momentos, que vão cada
da introdução da categoria do mais-valor e da vez mais do abstrato ao concreto na análise marxia-

ANDES-SN n julho de 2023 15


A crise ecológica e socioambiental na, produzir mais em menos tempo é determinante por generalizar-se, o que implica necessariamente
para a ação de cada capital privado, posto que é jus- em uma redução geral da proporção de trabalho vivo
tamente essa a maneira de ampliar sua participação incorporado na totalidade das mercadorias produzi-
na riqueza social, que tem a forma valor. Em síntese, das. Tal dinâmica é compensada por uma ampliação
essa dinâmica é identificada desde sua consideração permanente na quantidade de mercadorias colocadas
lógica na relação de troca até sua manifestação mais no mercado – o que dá mais concreticidade à dinâmi-
explícita na transformação dos valores em preços de ca expansiva, inclusive pela incorporação crescente
produção. Mas, fundamentalmente, tendo por base de parcelas da natureza ao processo produtivo. Mas
a historicidade da universalização das relações ca- importa reforçar que toda essa expansão da quan-
pitalistas por meio das quais a força de trabalho foi tidade de mercadorias produzidas no contexto do
convertida em mercadoria. Nessa totalidade, a con- aumento da produtividade materializa uma redução
corrência capitalista revela-se tão somente como proporcional do valor que, por seu turno, é refletida
a disputa a respeito de qual capital privado estará em uma queda tendencial da taxa de lucro.
mais apto a realizar em maior escala o mais-valor so- Marx demonstra o caráter tendencial da mencio-
cialmente produzido e confrontado no mercado por nada taxa de lucro tendo em vista o caráter contra-
meio do mecanismo dos preços. ditório do movimento do capital que, determinado
Esse movimento sumariamente descrito, entretan- pela concorrência entre os diversos capitais, acaba
to, não aparece dessa forma ao conjunto da socieda- por eliminar progressiva e proporcionalmente do
de – capitalistas e trabalhadores –, isto é, como uma processo produtivo aquele elemento que produz o
disputa pela apropriação do mais-valor social. Pelo valor novo: a força de trabalho. É esse movimento
contrário, a concorrência capitalista aparece como abstrato em relação ao mais-valor que se concretiza
uma concorrência em torno do lucro, daí que seja a na tendência de queda da taxa de lucro. Em outros
taxa média de lucro a determinante para o movimen- termos, a formulação elementar dessa lei tendencial
to dos diferentes capitais de ramos menos lucrativos relaciona-se ao também tendencial aumento da com-
para outros mais lucrativos. Mas esse movimento dos posição orgânica do capital – sinteticamente a pro-
capitais privados não anula ou, muito pelo contrário, porção entre capital constante (notadamente meios
determina que a busca imanente pelo aumento da de produção e matérias-primas) e capital variável (a
produtividade venha a reduzir progressivamente a força de trabalho vivo).
proporcionalidade na qual o trabalho vivo produtor Mas a efetivação da lei tendencial da taxa de lucro
de valor comparece no processo de produção mer- efetiva-se concretamente conjugada a fatores tam-
cantil. Em outros termos, produzir mais em menos bém tendenciais que obstaculizam a realização da
tempo implica em redução do valor novo criado em tendência, ou seja, que “as mesmas causas que engen-
cada unidade de mercadoria (POSTONE, 2014). dram a tendência à queda da taxa de lucro moderam
Esse movimento é vantajoso para o capital priva- também a efetivação dessa tendência” (MARX, 2017,
do que o implementa, principalmente aquele que o p. 275). Na expressão marxiana:
faz pioneiramente, posto que, na determinação dos
preços de produção, a redução do valor por ele in- A contradição, expressa de maneira bem
genérica, consiste no fato de que o modo de
crementada não repercute imediatamente no preço,
produção capitalista implica uma tendência ao
o que lhe permite realizar um lucro extraordinário. O desenvolvimento absoluto das forças produtivas,
que a imediaticidade desse movimento não revela é abstraindo do valor – e do mais-valor nele
que, por detrás das consciências dos capitalistas, está incorporado – e também das relações sociais no
interior das quais se dá a produção capitalista;
operando uma redução do valor das mercadorias, ten-
por outro lado, esse modo de produção tem
do em vista a menor incorporação de trabalho vivo como objetivo a conservação do valor de capital
por unidade mercantil. Ainda que operando abaixo existente e sua valorização na máxima medida
da superfície aparente, esse movimento acaba, pela possível (isto é, o incremento cada vez mais
força da concorrência entre os mais diversos capitais, acelerado desse valor). Seu caráter específico

16 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


orienta-se para o valor de capital existente necessidade interna desse modo de produção,

Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


como meio para a maior valorização possível de sua necessidade de um mercado cada vez
desse valor. Os métodos pelos quais ela atinge mais ampliado.
esse objetivo incluem: o decréscimo da taxa
de lucro, a desvalorização do capital existente E Marx conclui que a atuação das tendências con-
e o desenvolvimento das forças produtivas
tra-arrestantes “não derroga a lei, porém enfraquece
do trabalho à custa das forças produtivas já
produzidas (MARX, 2017, p. 289). seus efeitos”. E ele reforça: “é assim que a lei atua ape-
nas como tendência, cujos efeitos só se manifestam
Portanto, a análise da crise implica no entendi- claramente sob determinadas circunstâncias e no
mento da lógica contraditória que preside o movi- decorrer de longos períodos” (Marx, 2017, p. 277).
mento do capital que tendencialmente leva à queda Essas observações são importantes para que não se
da taxa de lucro, mas que, contraditoriamente, carre- caia num relativismo que coloque em um mesmo pa-
ga em si os elementos que tendem a contrabalançar tamar a tendência e as contratendências. Afinal, não
a direcionalidade desse movimento. É nesse sentido teria sentido identificar a lei caso as contratendências
que a lei da queda tendencial da taxa de lucro deve a anulassem de maneira absoluta. Com isso, Marx,
ser compreendida. Marx (2017, p. 271-277) indica sem assumir qualquer postura de previdente do fu-
as seguintes tendências contra-arrestantes, que apre- turo, denega qualquer relativismo e reforça que as
sentamos sinteticamente: crescentes dificuldades postas pelo movimento con-
traditório do capital revelam a própria historicidade
Aumento da exploração da força de trabalho: [...]
desse modo de produção.
O grau de exploração do trabalho (a apropriação
do mais-trabalho e do mais-valor) aumenta
especialmente por meio do prolongamento
da jornada de trabalho e da intensificação do
Crise ambiental: limites
trabalho. [...] Barateamento dos elementos do ambientais à valorização
capital constante: [...] o mesmo desenvolvimento e ecologização do capital
que incrementa a massa do capital constante
em relação ao capital variável diminui, em
O presente tópico procura aprofundar o foco
consequência da força produtiva aumentada
do trabalho, o valor de seus elementos e,
analítico já anunciado: os obstáculos ambientais à
assim, impede que o valor do capital constante, valorização e a ecologização do capital como forma
embora aumentando permanentemente, o de superação desses obstáculos sob a determinação
faça na mesma proporção que seu volume do valor – o que não derroga o caráter ambiental-
material, isto é, que o volume material dos
mente expansivo-destrutivo do capital. Com isso,
meios de produção postos em movimento pela
mesma quantidade de força de trabalho. [...] estamos apontando: por um lado, que o movimento
Superpopulação relativa: [...] a superpopulação do capital cria obstáculos ambientais que ameaçam
relativa é [...], por um lado, a causa de que em sua valorização; e, por outro, a capacidade do capi-
muitos ramos da produção seja mantida a
tal em superar os limites colocados por sua própria
subordinação mais ou menos incompleta do
trabalho ao capital e de que esta dure mais que lógica contraditória com a natureza no que tange à
o tempo que, à primeira vista, corresponde ao produção continuada de valor, ou seja, tendência e
estágio geral do desenvolvimento; isso resulta contratendência atuantes na processualidade da crise
do barateamento e da grande quantidade dos
ambiental sob determinação da valorização. E, como
assalariados disponíveis ou liberados, além da
maior resistência que alguns ramos de produção,
aprofundamento dessa dinâmica, desdobramos que
segundo sua natureza, opõem à transformação as alternativas postas pelo capital para a superação
do trabalho manual em trabalho mecanizado. da crise ambiental teriam a possibilidade de reper-
[...] Comércio exterior: [...] do mesmo modo, a cutir como tendências contra-arrestantes à crise do
expansão do comércio exterior, que na infância
próprio capital.
do modo de produção capitalista constituía a
base deste último, converteu-se, no curso de seu Consideração essa que deve ter seu caráter con-
progresso, em seu próprio produto, por meio da traditório, desigual e combinado enfatizado. Ou seja,

ANDES-SN n julho de 2023 17


A crise ecológica e socioambiental o capital, ao buscar alternativas para a superação da fundamento da produção capitalista: a valorização.
crise ambiental, o faz de maneira que, contraditoria- O que não quer dizer, pelo contrário, que o contexto
mente, combina soluções ambientalmente sustentá- sociotécnico – no caso, aquele do capitalismo – te-
veis com a continuidade de dinâmicas destrutivas. ria a capacidade de manipular de modo absoluto as
Medidas como a ecoeficiência e agriculturas susten- condições naturais. A ênfase aqui será na compre-
táveis, por exemplo, são combinadas ao processo de ensão das condições naturais – e na sua conceitua-
valorização em diferentes escalas e localidades: agri- ção como vantagem ou obstáculo –, tendo por refe-
cultura de precisão, agroecologia e uso intensivo de rência a determinação expansiva do valor, mas sem
agrotóxicos convivem sob as determinações do valor. desconsiderar a historicidade na qual ela opera. Por
A novidade é que, enquanto a produção ambiental- exemplo, uma vantagem natural que, em um primei-
mente destrutiva já estava constituída como produ- ro momento, favorece o capitalismo, pode revelar-se
ção capitalista, a produção sustentável representa uma um obstáculo em um prazo mais dilatado: “o exem-
nova fronteira para a expansão do capital, o que, a plo mais simples é o de uma abundância natural ou
nosso ver, tem a potencialidade de constituí-la como maior fecundidade favorecer a acumulação do capi-
tendência contra-arrestante à crise do capital em geral. tal, até o momento em que esta mesma abundância
Enfim, todo um movimento determinado pelo valor satura o mercado consumidor e sobrevém a fase de
e não pelo ambiente. contração na acumulação do capital” (Montibel-
Isso porque, ao descrever essa capacidade de supe- ler-Filho, 2001, p. 198).
rar limites, mas também de colocá-los em níveis con- Reforçando o caráter desigual e combinado da
dinâmica capitalista na sua relação com a natureza,
temos que, “se olharmos para o desenvolvimento de-
Há uma clara vinculação entre a dinâmica expansiva do sigual combinado ao longo do tempo, em um local,
capital na agricultura e a ruptura metabólica. É que a ex- as condições naturais que impedem o desenvolvi-
pansão tem como consequência a expulsão da população mento econômico de uma região em um determina-
rural em direção às cidades, o que, em longo prazo, leva
do momento podem ‘salvar’ recursos naturais naque-
ao aprofundamento da falha metabólica. O avanço capi-
la região para posterior descoberta e/ou utilização”
talista no campo radicaliza, portanto, aquela separação
(Rudy, 1994, p. 103).
entre campo e cidade que está na base da ruptura que
Tais situações podem ser exemplificadas pela ex-
impede o retorno dos nutrientes ao solo.
ploração de petróleo em locais que anteriormente
eram restringidos devido aos elevados custos de pro-
traditoriamente mais profundos, Marx anota que “a dução. Esses locais são preteridos por aqueles cujos
produção capitalista tende constantemente a superar custos de produção são mais baixos e, assim, acabam
esses limites que lhe são imanentes, porém, consegue sendo mantidos inexplorados. Tal situação pode al-
isso apenas em virtude de meios que voltam a ele- terar-se por meio do barateamento dos custos pro-
var diante dela esses mesmos limites, em escala ainda dutivos decorrentes do desenvolvimento tecnológico
mais formidável. O verdadeiro obstáculo à produção ou mesmo devido ao esgotamento daqueles locais de
capitalista é o próprio capital” (MARX, 2017, p. 289; exploração mais fácil, ainda que os custos de produ-
grifos nossos). Essa dinâmica se repete, conforme ção mantenham-se elevados. É que, nessa situação,
nosso entendimento, com relação à crise ambiental. o preço do petróleo também se eleva de tal maneira
Para aprofundar essa compreensão, entretanto, que passa a permitir a exploração lucrativa mesmo
precisaremos investigar as alternativas postas pelo ca- que os custos não baixem. Nesse caso, um obstáculo
pital à crise ambiental sob a determinação do valor. inicial converteu-se em uma vantagem com o passar
A análise a seguir reforça que as condições naturais do tempo.
devam ser identificadas historicamente – num con- Caracterizando mais precisamente os fundamen-
texto sociotécnico temporal e espacialmente locali- tos contraditórios da relação capital-natureza, é pre-
zado – como limites ou potencialidades a partir do ciso verificá-la a partir tanto do capital quanto da na-

18 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


tureza. Analisada a partir do capital, seu fundamento e a consolidação do modo de produção capitalista,

Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


é a produção de valor, sendo, por isso, uma relação ocorre uma crescente ruptura ou falha (rift) nesse
na qual o capital é o sujeito que objetiva justamente metabolismo socioambiental, sendo a separação an-
garantir que esse fundamento se realize. Para o capi- tagonista entre cidade e campo a mais evidente con-
tal, seria uma enorme vantagem se ele pudesse impor firmação dessa ruptura. O argumento básico para a
unilateralmente sua diretiva de valorização sobre a discussão sobre a falha metabólica encontra-se no
natureza, o que efetivamente não ocorre por deter- Livro I de O Capital:
minações da própria natureza – que se destaque, a
título de exemplo, a continuada obsessão do capital Com a predominância sempre crescente da
população urbana, amontoada em grandes
em adequar, ou melhor, forçar os ritmos naturais aos
centros pela produção capitalista, esta, por
ritmos da valorização – e também em decorrência um lado, acumula a força motriz histórica
das condições sociotécnicas do momento histórico. da sociedade e, por outro lado, desvirtua o
Assim, concentrando-nos no segundo elemento da metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o
retorno ao solo daqueles elementos que lhe são
relação, a natureza, verificamos que, no limite, ela
constitutivos e foram consumidos pelo homem
não se submete inteira e absolutamente às determi- sob forma de alimentos e vestimentas, retorno
nações do capital, posto que a história natural ante- que é a eterna condição natural da permanente
cede e certamente sucederá a história humana. Como do solo (MARX, 2013, p. 573).
afirmava Lukács (2013): “por meio do trabalho efeti-
va-se um progressivo afastamento das barreiras na- Há uma clara vinculação entre a dinâmica ex-
turais, cujas vinculações com os seres humanos são, pansiva do capital na agricultura e a ruptura meta-
porém, inelimináveis”. bólica. É que a expansão tem como consequência a
Nos elementos estudados a seguir, nossa análi- expulsão da população rural em direção às cidades,
se estará, portanto, concentrada não na condição o que, em longo prazo, leva ao aprofundamento da
de limite do recurso ou condição natural, mas sim falha metabólica. O avanço capitalista no campo
na forma que tais elementos naturais se inserem na radicaliza, portanto, aquela separação entre campo
dinâmica do valor. Assim, eles podem ser captados e cidade que está na base da ruptura que impede o
a partir da condição que assumem para o capital, retorno dos nutrientes ao solo. Prova dessa ruptura é
ora como obstáculo, ora como potencialidade para a escalada crescente de quimificação da agricultura,
a valorização. Essa compreensão busca apreender a que, no decorrer do século XX e chegando aos dias
dinâmica contraditória do capital em seu movimento atuais, marca claramente a dependência da agricul-
efetivo, além de apreender as tendências e contraten- tura ao petróleo e seus derivados – dependência essa
dências ali atuantes. que ainda não era perceptível para Marx naquele mo-
Iniciemos verificando as contradições da relação mento histórico como é hoje –, bem como sua cres-
capital-natureza, articulando-as à lógica expansiva cente artificialização.
do capital e às tendências aí operantes a partir da Nessa direção, deve-se destacar que a produção de
compreensão dessa relação como metabolismo en- fertilizantes artificiais é extremamente dependente
tre humanidade e natureza. Na obra A ecologia de da exploração mineral e do petróleo – fazendo, inclu-
Marx, Foster (2011) destaca do pensador alemão o sive, seus preços vincularem-se a esse recurso natu-
conceito de metabolismo (Stoffwechesel) para definir ral. Essa dependência, no caso do petróleo, é capaz de
o processo de trabalho como a relação entre o ho- revelar, além da dinâmica de custos a ela relacionada,
mem e a natureza. Segundo Marx, citado por Foster, outro elemento que deve ser contabilizado: o ba-
esse metabolismo é “um processo entre o homem e lanço energético negativo. Isto é, a falha metabólica
a natureza, um processo pelo qual o homem, através assume novos e mais acentuados contornos quando
de suas próprias ações, medeia, regula e controla o consideramos que a produção agrícola artificializada
metabolismo entre ele mesmo e a natureza” (MARX consome mais energia do que produz efetivamen-
apud FOSTER, 2011, p. 201). Porém, com o advento te – o fundamento do balanço energético negativo.

ANDES-SN n julho de 2023 19


A crise ecológica e socioambiental Nesse contexto, a natureza vai assumindo uma forma esses limites naturais só são compreensíveis quando
crescente de obstáculo à medida em que o avanço das identificados como decorrentes de relações sociais
forças produtivas implica em uma ruptura da relação específicas, relações capitalistas. A maior dramatici-
campo-cidade, natureza-sociedade. dade deve ser assim compreendida: a incorporação
Esse quadro de condições ambientais para a valo- continuada e crescente de porções da natureza na di-
rização de expansão do capital fica mais detalhado – nâmica produtiva do capital acaba tornando propor-
enquanto vantagens ou obstáculos – quando relacio- cionalmente cada vez mais importante o monopólio
nado à segunda contradição do capital (O’CONNOR, dessas porções naturais. Ou seja, diante da redução
2002), mais especificamente àquela nas quais as con- das fronteiras de expansão capitalista, o monopólio
dições ambientais-agrícolas anteriormente vantajo- do solo revela a dimensão predominantemente social
sas podem, num prazo mais extenso, converter-se em – mais exatamente vinculada à valorização – dos cha-
desvantagens. Nesse caso, a fertilidade natural pode mados limites naturais.
ser inicialmente utilizada de maneira vantajosa, po- Sendo assim, esse é um obstáculo ambiental so-
rém, de tal forma que ocasionasse sua degradação – o cialmente determinado que o capital precisa supe-
que se configuraria em uma situação de externaliza- rar para continuar valorizando-se. Para compreen-
ção dos custos – e, quando a degradação venha a atin- dermos a alternativa que o capital desenvolve para
gir um ponto tal no futuro que implique em maiores superar esse obstáculo, devemos relacioná-la à dis-
custos ao capital, este se dirija a novas áreas. Nem cussão sobre a eficiência energética, sobre a qual
sempre essa expansão para novas áreas é possível, apresentamos brevíssimo esboço a seguir. Para isso,
consideremos as conotações de eficiência energética:
entálpica, entrópica e econômica. As duas primeiras
A expansão do capital agrário impacta na elevação da ren-
conotações referem-se à primeira e à segunda leis da
da fundiária, isto é, no aumento dos custos da terra para o
termodinâmica, respectivamente, sendo um cálcu-
capital, o que, por sua vez, obriga o capitalista a tornar seu
lo de grandezas da física, isto é, do mundo natural.
uso mais eficiente para que aquela elevação dos custos
A terceira, a eficiência econômica, resulta da razão
possa ser compensada ou minimizada
entre insumos e produtos, sendo a mais amplamente
utilizada. A lógica da eficiência econômica consiste
tendo em vista o monopólio de porções crescentes em “rebaixar o custo de insumos para a obtenção
do planeta, o que, nesse caso, acarreta a necessidade de um dado serviço energético ou aumentar o nível
de o capital realizar maior investimento para recu- de serviço energético a partir de um nível constan-
perar a fertilidade perdida do solo. Enfim, a externa- te de insumos energéticos” (SÁ BARRETO, 2018, p.
lização dos custos torna-se impossível e o capital se 64-65). Ou seja, longe de uma preocupação com as
depara com os componentes ambientais daquilo que eficiências entálpica ou entrópica, nas quais prevalece
O’Connor (2002) define como segunda contradição uma preocupação ambiental, revela-se que o capital
(que tem também uma dimensão social), que toma a concentra sua preocupação e suas medidas efetivas
forma de um limite natural à expansão do capital que nos custos econômicos da energia e, portanto, na efi-
foi, contudo, gerado pela própria dinâmica do capital. ciência econômica (SÁ BARRETO, 2018).
Aqui misturam-se elementos naturais e sociais, mas Esse caráter acentuadamente econômico (e, por-
com clara prevalência dos sociais, mais exatamente tanto, relacionado ao valor) da eficiência energética
aqueles relacionados ao movimento do capital. pode ser estendido a outras propostas do programa
Mas essencialmente ambas as situações – apro- ecológico calcado na chamada ecoeficiência, onde os
fundamento da falha metabólica e incorporação de custos ambientais que não podem mais ser externali-
novas áreas no contexto da segunda contradição – zados passam a constar da contabilidade capitalista:
articulam-se e revelam a lógica expansiva espacial do custos ambientais convertidos em custos econômi-
capital que acaba por conduzi-lo em direção a limites cos. Concentremo-nos, entretanto, na relação entre a
naturais cada vez mais dramáticos. Mas, como dito, lógica econômica que preside a eficiência energética

20 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


e os limites à expansão capitalista a novas áreas rurais Considerações finais

Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


e, portanto, à renda fundiária.
A expansão do capital agrário impacta na elevação Para nossas considerações finais devemos partir
da renda fundiária, isto é, no aumento dos custos da desse breve sobrevoo das formas de ecologização do
terra para o capital, o que, por sua vez, obriga o capi- capital, que são fundamentalmente aprofundamen-
talista a tornar seu uso mais eficiente para que aquela tos das dinâmicas de mercadorização da natureza.
elevação dos custos possa ser compensada ou mini- Esse elemento refere-se à consideração marxiana
mizada. Daí que o capital adote medidas que per- sobre o papel da natureza no processo de valoriza-
mitam uma utilização mais racional da terra, o que ção. Ao mencionar que “o trabalho é o pai da riqueza
inclui um conjunto de tecnologias que podem ser material, como diz William Petty, e a terra é a mãe”
agrupadas, por exemplo, nas práticas de agricultura (MARX, 2013, p. 121), Marx não desconhece que é o
de precisão, de biotecnologia genômica e de automação trabalho o criador do novo valor que se materializa
do campo, dentre outras. Com isso, também no uso na forma de riqueza social da sociedade capitalista: a
da terra, a alternativa capitalista para a superação de mercadoria. Sendo assim, a natureza não produz va-
um dado obstáculo assume uma condição coerente lores novos, mas tão somente formas de renda.
com o programa da ecoeficiência em seu fundamen- No que tange às formas de ecologização aqui su-
to: a eficiência econômica é o objetivo determinante, mariadas, e que servem de referência para outras
isto é, sua dinâmica é determinada pela valorização. formas de ecologização, temos que todas elas se res-
Como o foco da atenção capitalista são os elementos tringem justamente a modalidades de inserção da
econômicos e não aqueles ambientais, as dinâmicas natureza nos processos produtivos, sintetizadas no
ambientalmente destrutivas continuam a operar. Mas seu uso mais ou menos eficiente, na sua condição de
esse é o ponto menos importante para o capital. Des- vantagem ou obstáculo, mas fundamentalmente na
de que contribuam para a superação dos obstáculos crescente mercadorização da natureza. Sendo assim,
ambientais ao valor, tais medidas comporão aquilo temos que a natureza se configura como vantagem
que designamos como ecologização do capital. ou obstáculo, como limite ou barreira a ser superada
no contexto da dinâmica da valorização, mas de for-
ma subordinada ao valor – como não poderia deixar
de sê-lo. É sob a determinação dessa condição que a
ecologização do capital atuará na crise relacionada à
queda tendencial da taxa de lucro: como contraten-
dência relativa a formas de renda, a ecologização do
capital não derroga o limite fundamental da crise do
capital, a crescente eliminação proporcional da força
de trabalho viva dos processos de valorização.
Essa limitação, contudo, precisa ser compreendida
em sua efetividade. Primeiramente, é preciso desta-
car que a renda – cuja referência na obra marxiana é
a renda fundiária estudada do Livro III – não decorre
da própria terra, mas que o monopólio da terra per-
mite ao proprietário da terra “apropriar[-se] de sua
cota crescente do mais-produto e do mais-valor, cota
que aumenta sem sua intervenção” (MARX, 2017, p.
699). Mais exatamente, é parcela do lucro do capita-
lista agrário que se transforma em renda nas mãos do
proprietário fundiário.
Para exemplificar a relação entre renda e lucro,

ANDES-SN n julho de 2023 21


A crise ecológica e socioambiental Marx se utiliza de uma comparação entre uma pro- apontamos que essa relação capital-natureza deva
dução que faz uso das vantagens proporcionadas por ser considerada concretamente, tendo em vista que,
uma queda d’água como força motriz frente a outra dependendo da maneira como o capital se relaciona
que se utiliza da energia a vapor para a mesma fun- com a natureza, ela pode tanto favorecer aos proces-
ção. A queda d’água possibilitará ao capitalista que a sos de acumulação quanto obstaculizá-los.
utiliza a obtenção de um lucro extraordinário frente Ainda que a solução capitalista para a crise am-
a seu concorrente: “o lucro extra dos produtores que biental caracterizada como mercadorização dos li-
empregam como força motriz as quedas d’água na- mites ambientais represente uma oportunidade de
turais se comporta, de início, como qualquer lucro expansão – para usar um termo afeito aos círculos
extra”, isto é, “esse lucro extra é também igual à di- capitalistas –, há que se considerar, entretanto, a
ferença entre o preço de produção individual desses forma como a natureza necessariamente se insere
produtores favorecidos e o preço de produção social no processo de valorização, isto é, a natureza não
geral, regulador do mercado, de toda essa esfera da gera valor novo, restringindo-se a transferir valor à
produção” (MARX, 2017, p. 705). O valor da mer- mercadoria, o que revela que a crise ambiental é um
cadoria produzida com auxílio da força de trabalho importante elemento da crise do valor e justifica sua
é menor porque “sua força produtiva maior se mos- apreensão dentro da totalidade do movimento ex-
tra no fato de que, para produzir a mesma massa de pansivo do capital. Desvincular a apreensão da crise
ambiental da crise do valor acarreta a não compreen-
são do movimento real e articulado de ambas – crise
Ainda que a solução capitalista para a crise ambiental ca- ambiental como decorrência da lógica expansiva do
racterizada como mercadorização dos limites ambientais valor e soluções capitalistas para a crise ambiental
represente uma oportunidade de expansão – para usar um
como elementos contratendenciais à crise do valor.
termo afeito aos círculos capitalistas –, há que se conside-
Porém, o mais importante é que, sendo a renda de-
rar, entretanto, a forma como a natureza necessariamente
corrente do valor, a crise do valor não pode ser efe-
se insere no processo de valorização, isto é, a natureza não
tivamente resolvida por meio da fuga para a renda,
gera valor novo, restringindo-se a transferir valor à merca-
doria, o que revela que a crise ambiental é um importante reforçando a tendência geral de crise do valor – o que
elemento da crise do valor e justifica sua apreensão dentro reforça a processualidade contraditória de superação
da totalidade do movimento expansivo do capital. das crises pelo capital: supressão e recolocação dos
obstáculos e contradições. Falando mais diretamen-
te da ecologização do capital, temos sinteticamente
mercadorias, ela necessita de uma quantidade menor a seguinte situação: 1) a natureza não possui uma
de capital constante, uma quantidade menor de tra- condição de obstáculo ou vantagem abstratamente
balho objetivado que as outras; além disso, ela requer definida; 2) tal condição é definida historicamente
uma quantidade menor de trabalho vivo (MARX, em um dado contexto sociotécnico que é mutável;
2017, p. 705). Esse lucro extraordinário advém não 3) ainda assim, o movimento expansivo do capital
de um investimento produtivo, mas tão somente do acaba por conduzir ao crescimento dos obstáculos
aproveitamento da vantagem proporcionada por um ambientais à valorização, o que constitui a crise am-
recurso natural. biental; 4) a ecologização do capital seria a respos-
Relacionando essas considerações como a exposi- ta capitalista a tal situação, o que se materializa por
ção aqui realizada, identificamos que os limites não meio da adoção combinada de formas destrutivas ou
são simplesmente limites naturais ao capital, mas sustentáveis de relação com a natureza, cuja preva-
fundamentalmente limites que, mesmo na condição lência combinada – sustentabilidade ou destrutivida-
de elementos naturais, são limites decorrentes da di- de – decorre tão somente da potencialidade de cada
nâmica expansiva do capital, isto é, são limites à valo- uma em franquear a superação dos obstáculos am-
rização. Os limites naturais ao capital exprimem par- bientais à valorização; 5) por relacionar-se apenas in-
te da lógica contraditória do próprio capital. Também diretamente ao valor e, mais efetivamente vinculada

22 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


à renda, a ecologização do capital pode tão somente Assim, de forma análoga à constatação marxiana

Paralelos entre crise do capital e crise ambiental


atuar como tendência contra-arrestante da crise ca- de que o valor de uso é suporte do valor, a ecolo-
pitalista, não derrogando a tendência de crise que é gização seria tão somente um suporte ao valor. Por
imanente a esse modo de produção; e 6) por ser de- certo que a incorporação da natureza em escala con-
terminada pela valorização e não pelo ambiente (pelo tinuamente ampliada ao capital reforça os desdobra-
capital e não pela natureza), a ecologização do capital mentos ambientais dessa incorporação no horizonte
não suprime o caráter ambientalmente destrutivo do das possibilidades destrutivas do capitalismo, mas,
modo de produção capitalista. justamente por ser tendencial, não nos é permitido
Em outras palavras, o capital, mesmo demons- concluir nem quando nem se necessariamente essa
trando enorme capacidade adaptativa quanto aos dinâmica ambientalmente destrutiva levará à der-
limites ambientais, permanece atrelado à tendência rocada do capital. O que, não custa reforçar, deve
de tencioná-los em suas máximas potencialidades, o ainda ser articulado ao caráter do desenvolvimento
que é uma condição imanente da lógica da valoriza- capitalista, que tem sido capaz, ainda, de combinar
ção, porque, como já verificamos, essa lógica é de- tendências contraditórias: destruição em um lugar e
terminada pela dinâmica do valor, sendo secundárias sustentabilidade em outro, mas todas subordinadas
suas consequências ambientais. à valorização.

ANGUS, Ian. O apartheid ambiental é a norma no Antropoceno. Portal Ecodebate, 18/05/2020.


Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2020/05/18/o-apartheid-ambiental-e-a-norma-no-
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__________ . O Capital: Crítica da economia política, Livro III - O processo global da produção
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MONTIBELLER-FILHO, Gilberto. O mito do desenvolvimento sustentável: meio ambiente e custos
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RUDY, Alan. The Dialectics of Capital and Nature. In: Capitalism Nature Socialism 5(2): 95-106; Junho
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SÁ BARRETO, Eduardo. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio

referências
de Janeiro: Consequência, 2018.

ANDES-SN n julho de 2023 23


Crise socioambiental e
A crise ecológica e socioambiental

horizontes biocivilizatórios:
Estado plurinacional, bem viver e
direitos da natureza
Marcos Bernardino de Carvalho
Professor na Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: mbcarcalho@usp.br

Resumo: O Estado plurinacional e seus fundamentos – bien vivir e “direitos da natureza” –


difundidos pelos povos originários e comunidades tradicionais, em resistência à colonialida-
de, oferecem-se como horizonte promissor para a construção de um projeto (bio)civilizatório
alternativo ao padrão global de espoliação que o Estado Nacional Moderno viabilizou. O
Estado plurinacional, em seu processo de construção e implantação, além de revelar com-
preensão da dinâmica geopolítica que levou ao atual sistema-mundo, não só indica os meios
alternativos de combatê-lo, mas evidencia sintonia com algumas das questões mais críticas
da atualidade, sobejamente a questão socioambiental, tema deste número da Universidade
e Sociedade. Com este artigo, pretende-se contribuir para aprofundar algumas das princi-
pais dimensões que envolvem essas questões, oferecendo argumentos que demonstram a
força dessas propostas gestadas na América Latina, considerando as condições de alguns
países que já as institucionalizaram e explicitando o enorme potencial que apresentam, para
facear a principal crise de nosso tempo: a crise socioambiental, em suas variadas formas
de manifestação.

Palavras-chave: Crise Socioambiental. Estado Plurinacional. Direitos da Natureza. Bem Viver.

Introdução povos originários da América, divulgar e debater


suas principais reivindicações e perspectivas (des-
No 41º Congresso do ANDES-SN ocorrido em Rio tacadamente o “bem viver”, a “plurinacionalidade” e
Branco, Acre, entre os dias 6 e 10 de fevereiro deste os “direitos da natureza”), exortar pela ampliação da
ano, apresentamos (um conjunto de sindicalizados representação dos indígenas nas universidades brasi-
da ADUSP) um texto de apoio (TA) – “Movimento
1 leiras e seguir organizando seminários e eventos que
docente, crise socioambiental e horizontes biocivili- tratem e divulguem o tema, assim como continuar
zatórios” – com o intuito de fundamentar as cinco apoiando, ativa e financeiramente, os Acampamentos
propostas do seu Texto de Resolução (TR), visando Terra Livre (já em sua 19ª edição) e divulgando (nas
que o sindicato nacional docente deliberasse, em sua plataformas, sites e nas seções sindicais do ANDES)
máxima instância de decisões, aderir às causas dos as manifestações por eles produzidas, como o Docu-

24 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


mento Final do Acampamento Terra Livre 2022 e “Os Com algumas modificações e/ou propostas de su-
Pontos para uma Plataforma Indígena de Reconstru- pressões de itens, as sugestões foram bem recebidas,
ção do Brasil” .
2
ao menos pelos grupos que as apreciaram.
Em função da dinâmica do Congresso, dos quinze Três desses grupos acolheram uma das propostas
grupos mistos previstos para desenvolver as discus- do TR, relacionada àquelas reivindicações destaca-
sões e deliberar o que deveria ou não ir a plenário (se- das, sugerindo que o “ANDES-SN acumule sobre
gundo o Art. 21 do Regimento do Congresso, essa é perspectivas de Bien Vivir, Plurinacionalidade e Di-
uma prerrogativa das propostas aprovadas por maio- reitos da Natureza, com indicativo de realização de
ria simples ou que tenham obtido no mínimo 30% dos painel na próxima reunião do GT PAUA”. Um outro
votos em pelo menos um dos grupos), apenas quatro item da resolução, aprovado igualmente pela maioria
grupos conseguiram debater o TR apresentado. dos grupos que a discutiram, já apareceu no relatório

ANDES-SN n julho de 2023 25


A crise ecológica e socioambiental consolidado3 com uma proposta de compatibilização geral deste novo número da Revista Universidade e
e, entre as modificações sugeridas, “Que o ANDES- Sociedade 72 – A crise ecológica e socioambiental:
-SN lute pela ampliação da representação dos povos territórios, política e meio ambiente –, é de, sobre-
originários nas universidades brasileiras, Institutos tudo, contribuir com esse “acúmulo”, retomando e
Federais e CEFET, bem como nos eventos promovi- aprofundando alguns dos argumentos apresentados
dos e nas entidades que representam suas trabalha- na ocasião do 41º Congresso pelo texto de apoio e
doras e seus trabalhadores”. pelas propostas de resolução indicadas.
Da mesma forma, obteve aprovação a continuida-
de de apoio ao Acampamento Terra Livre, em associa-
ção com a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Que o ANDES-SN acumule
Brasil), bem como a divulgação de seus documentos. sobre perspectivas de Bien Vivir,
Essas propostas, no entanto, embora tenham ad- Plurinacionalidade e
quirido o direito regimental de serem apreciadas e Direitos da Natureza
deliberadas pelo plenário, por falta de tempo e pelo
desenvolvimento das discussões, não chegaram a A proposta de acumular denota necessidade de
entrar na pauta das deliberações. Sendo assim, con- reunir argumentos e reflexões que proporcionem
forme reza o Estatuto do Sindicato, foram remetidas amadurecimento para, enfim, tomar uma decisão
para o CONAD (Conselho do ANDES-SN), e, jun- com relação às bandeiras e perspectivas que já há
to com os demais TRs não discutidos e deliberados algum tempo vêm sendo abraçadas não só pelos
no 41º Congresso, serão objeto de apreciação no 66º povos originários de diversos lugares do planeta, es-
CONAD, que ocorrerá em Campina Grande-PB, em pecialmente em países do chamado sul global, mas
meados deste ano de 20234. também por outros agrupamentos derivados de mo-
No momento em que este artigo vier a público, vimentos diversos, tais como aqueles já protagoniza-
tanto o CONAD como uma nova versão do ATL já dos por comunidades tradicionais e quilombolas no
terão sido realizados ou estarão em curso de reali- Brasil, por exemplo.
zação, já que o lançamento deste número da Revista As conotações de excesso ou de armazenamento
Universidade e Sociedade está previsto para aconte- em grande quantidade, normalmente associadas à
cer no próprio 66º CONAD. Sendo assim, tanto as ideia de acúmulo, nesse caso, também fazem sentido,
deliberações relacionadas ao tema do TR apresenta- desde que reconheçamos que, pelo menos no âmbito
do como uma nova versão de Documento Final (do dos movimentos, das comunidades e dos povos men-
ATL 2023) serão implementadas e divulgadas ou es- cionados, já há uma larga tradição, seja de existência
tarão em processo de apreciação. ou de (re)existência/resistência (durante os períodos
Queremos crer que dificilmente o CONAD não das invasões e ocupações coloniais dos últimos mais
abrigará ao menos as necessidades indicadas por al- de cinco séculos), que os convenceu ou os dotou de
guns daqueles poucos grupos que tiveram a chance maturidade suficiente para continuarem defendendo
de apreciar as propostas. Dentre essas, como já in- e perseguindo os horizontes, e que tais perspectivas
formado, a indicação de que “o ANDES-SN acumule traduzem, transformando aquilo que representa o co-
sobre perspectivas de Bien Vivir, Plurinacionalidade tidiano de suas condições existenciais e comunitárias
e Direitos da Natureza”, ou que siga lutando pela “am- em “palavras de ordem”, que passaram a ser oferecidas
pliação da representação dos povos originários nas ao movimento social mais amplo como condição, in-
universidades brasileiras”, ou que divulgue os docu- clusive, da manutenção e reprodução das integridades
mentos finais do Acampamento Terra Livre e “Os e vidas de todas e todos, humanos e não humanos.
Pontos para uma Plataforma Indígena de Reconstru- No mencionado Documento Final do ATL 2022,
ção do Brasil”. por exemplo, as representações de mais de duas cen-
O intuito deste artigo, independente das delibera- tenas de povos indígenas que lá estiveram reunidos
ções que vierem a ser tomadas, e aproveitando o tema não vacilaram em proclamar, no âmbito de luta, “por

26 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


um projeto civilizatório de país e de mundo”, a ne- nova constituição segue em curso. E os defensores

Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios


cessidade de “reafirmamos que nossa união é funda- das ideias e das razões ali contidas, particularmente
mental para avançarmos, juntos, rumo ao nosso pro- os representantes dos “povos e nações esquecidos e
jeto de país plurinacional, de paz, justiça e harmonia não escutados”, seguem debatendo e expondo os ar-
com nossa Mãe Natureza”5. gumentos e as necessidades de suas inclusões na vida
Alguns dos posicionamentos contidos nesse do- da nação chilena, oferecendo-se como exemplo e re-
cumento nada mais fizeram do que repercutir as ferência para outros e outras que igualmente tenham
declarações já produzidas pelas diversas Cumbres suas dinâmicas e alteridades subjugadas pelos limites
Continentales de los Pueblos y Nacionalidades Indí- e restrições dos estados-nações e os privilégios con-
genas de Abya Yala, especialmente em uma dessas, a cedidos à nacionalidade que os subjugou.
de 2007, ocorrida na Guatemala, na qual produziu- Esses povos e nações, no Chile, no Brasil ou em
-se a Declaração de Iximche, cidade onde a Cumbre outros países, têm abraçado o mesmo projeto civili-
teve lugar, que anunciava a constituição de uma “Co- zatório. Nos dizeres do mencionado Manifesto ATL
ordenação Continental das Nacionalidades e Povos 2022, este é um projeto “baseado nos princípios de
Indígenas de Abya Yala”, exortando por “consolidar respeito à democracia, aos direitos humanos, à jus-
os processos iniciados para fortalecer a refundação tiça e ao cuidado com o meio ambiente e com a Mãe
dos Estados – nação e a construção dos Estados plu-
rinacionais e sociedades interculturais, através das A proposta de acumular denota necessidade de reunir ar-
Assembleias Constituintes, com representação direta gumentos e reflexões que proporcionem amadurecimento
dos povos e nacionalidades indígenas”6. para, enfim, tomar uma decisão com relação às bandeiras e
Um pouco depois dessa Cumbre, em 2008 e 2009, perspectivas que já há algum tempo vêm sendo abraçadas
dois países latino-americanos, Equador e Bolívia, não só pelos povos originários de diversos lugares do pla-
promulgaram novas constituições que os definiram neta, especialmente em países do chamado sul global, mas
como Estados plurinacionais, apoiados nos horizon- também por outros agrupamentos derivados de movimentos
tes do “bem viver” e dos “direitos da natureza”. E, em diversos, tais como aqueles já protagonizados por comuni-
2021, Elisa Loncón, professora e liderança Mapuche, dades tradicionais e quilombolas no Brasil, por exemplo.
em seu discurso de posse na presidência da Conven-
ção Constitucional do Chile, defendeu a refundação Natureza”. E chamando a atenção para a imensa di-
de seu país, em novas bases – plurinacionais e inter- versidade de povos aqui existente (e ignorada), afir-
culturais – para ampliar a democracia, a participação ma que esse também deva ser “um projeto que res-
“em um Chile que cuida da Mãe Terra, que limpa as peite a diversidade étnica e cultural do país do qual
águas e livre de toda dominação”, igualmente exor- fazemos parte, com mais de 305 povos diferentes e
tando por um processo em “que possam nos ver des- 284 línguas indígenas, sem racismo, preconceitos e
de o último rincão de nosso território e nos escutar discriminações de nenhum tipo”8.
em nossas línguas originárias, que ficaram posterga- Ainda em 2022, o líder e pensador indígena Ailton
das durante tudo o que foi o Estado-nação chileno”7. Krenak, em uma de suas últimas publicações (o livro
A constituinte chilena, como sabemos, produziu Futuro Ancestral, resultado de uma coletânea de pu-
uma nova constituição, que incorporou boa parte blicações recentes organizada por Rita Carelli), rea-
dos desejos manifestados nesse discurso inaugural, firmava tais projetos e perspectivas, ao mesmo tempo
com a previsão de transformar o Chile em um es- em que, de certa maneira, até nos oferecia pistas para
tado plurinacional, além de estabelecer paridade de o entendimento de alguns reveses sofridos na conse-
gênero em todos os poderes e criar um sistema pú- cução desses projetos, como o ocorrido no Chile, ou
blico de saúde, entre outras medidas arrojadas. Mas o que se verifica naqueles outros que, embora tenham
essas foram rejeitadas pela maioria da população, adotado e institucionalizado tais horizontes, ainda es-
em plebiscito ocorrido em 4 de setembro de 2022. tão longe de os terem incorporado na vida cotidiana e
No entanto, um novo processo para a elaboração de na dinâmica do dia a dia de suas sociedades:

ANDES-SN n julho de 2023 27


A crise ecológica e socioambiental Seria essencial refundarmos nosso país e truição e às ameaças que sofriam à época de sua cria-
concebermos, por aqui também, a ideia de um ção, nos anos 1980. Essa aliança, criada no Acre, teve
Estado plurinacional, porque esse nosso velho
grande papel na defesa do importante manancial de
Estado colonial tem um DNA de pirata, de
bandeirante: existe para comer os outros. Eu sociobiodiversidade amazônico, talvez o principal
fico admirado que a maior parte das lideranças do planeta, e é reconhecida como uma espécie de di-
políticas, não só do Brasil, mas de grande parte visor de águas na luta socioambiental brasileira por
do planeta, são tão alienadas que não se tocam
evidenciar o caráter político e sociocultural dessa
que, se não nos abrirmos a essa matriz cultural
ampla, vamos apenas aprofundar o desastre em luta, demonstrando as reciprocidades e interdepen-
que estamos metidos – inclusive do ponto de dências existentes entre biodiversidade e sociodiver-
vista ambiental (KRENAK, 2022, p. 88). sidade, ampliando a noção de preservação ambiental,
da ecologia e da própria luta ambiental, assim como
A crítica à alienação das ‘lideranças’, que não se os caminhos para a superação das crises que as agres-
atentam para a necessidade de se abrirem para “essa sões à floresta e ao ambiente produzem, tanto local
matriz cultural mais ampla” e o risco que isso pro- como regional ou globalmente.
duzirá em termos de aprofundamento do “desastre O assassinato de seu idealizador, Chico Mendes,
em que estamos metidos”, indica, ao menos em parte, meses após ter recebido o Prêmio Global 500 em re-
onde reside a razão dos reveses que projetos clara- conhecimento à importância de sua luta, é a prova de
mente antenados com as soluções das crises que esta- que ele e a aliança que ajudou a construir e a liderar
mos atravessando na atualidade possam sofrer. produziram incômodos certeiros, enquanto chama-
E, assim como o próprio Krenak nos adverte: “os vam a atenção para a gravidade daquilo que já se es-
povos originários têm outras contribuições ao deba- tava anunciando.
te, tanto sobre a pólis quanto sobre as ideias de natu- O InformAndes, distribuído por ocasião do 41º
reza, ecologia e cultura” (ibid.), seria muito aconse- Congresso, dando-nos as boas-vindas ao Acre, cor-
lhável prestar mais atenção naquilo que algumas de retamente o caracterizava como “estado de lutas e
alianças de povos da floresta”.
Essa ocasião, de uma reunião tão significativa
Não se está falando de uma floresta qualquer, mas sim como o Congresso do ANDES-SN (que reuniu mais
do principal manancial de sociobiodiversidade do planeta,
de 600 docentes, representando dezenas de associa-
compartilhado por centenas de povos indígenas, comuni-
ções e universidades do país, incluindo as tendências
dades tradicionais, quilombolas e ao menos nove países,
políticas e os coletivos dos quais muitas e muitos
todos plurinacionais, mesmo que apenas dois deles já te-
dos ali presentes participam), seria uma boa opor-
nham reconhecido isso institucionalmente.
tunidade de integrar o ANDES-SN ao espírito dessa
aliança, trazendo para o centro de nossas discussões
suas principais lideranças, especialistas em “adiar o o apoio e a solidariedade ativa ao conteúdo político
fim do mundo” ou em impedir “a queda do céu”9, têm e ao potencial transformador do ambientalismo que
a nos dizer, pois isso resulta do acúmulo de experiên- ela anunciava décadas atrás, sinalizando a compreen-
cias dos povos que representam e que sobreviveram são da gravidade e da centralidade dessa discussão e
aos últimos séculos de saque, escravização, desterro e de seu enfrentamento, que só se acentuaram com o
exploração, junto com todas as outras dimensões de passar dos anos. Alguns dos argumentos que refor-
existência, não humana, que os acompanharam nessa çam a importância de atendermos ao chamado dessa
(sobre)vivência. aliança, das condições que a animam e da correção
O mencionado Krenak foi também uma das lide- das bandeiras que a conduzem serão aqui retoma-
ranças da Aliança dos Povos da Floresta, articulação dos, visando dar consequência à bela saudação feita
idealizada por Chico Mendes, que promoveu o en- pela presidenta do ANDES-SN na sessão inaugural
contro entre o Conselho Nacional dos Seringueiros do Congresso de Rio Branco e que se iniciou com a
e a União das Nações Indígenas para resistir à des- famosa frase do próprio Chico Mendes (em itálico):

28 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


“No começo, pensei que estivesse lutando para múltiplos fatores que convergem para caracterizar a

Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios


salvar seringueiras, depois pensei que estava crise atual, que, dependendo da ênfase que se queira
lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora,
dar, pode ser social, econômica, ambiental, sanitária,
percebo que estou lutando pela humanidade”.
Estamos nas terras de Chico Mendes, na cognitiva, étnica, religiosa, financeira, hídrica, climá-
Amazônia acreana, nesse lugar de enormes tica, geopolítica e institucional, entre outras.
contradições, conflitos e desigualdades, mas E, ao destacar a amplitude civilizatória, busca-se,
também marcado por grandes lutas e resistência.
ao mesmo tempo, chamar a atenção, além do que
Temos que enfatizar a importância desse
congresso em um contexto de aprofundamento está em jogo (civilização/humanidade/floresta-natu-
dos ataques a florestas e, em especial, aos reza), para o tamanho do problema que teremos que
povos originários. É impossível começar esse resolver e afastar a tentação de continuar adotando
congresso sem lembrar o genocídio do povo fórmulas simplificadas para a sua superação, particu-
Yanomami. Essa investida de destruição dos
larmente aquelas que elegem apenas um ou dois dos
povos originários, das suas terras e da sua cultura
provocou o sumiço de comunidades inteiras. A vetores que compõem a convergência crítica da atu-
resistência desses povos é um exemplo de luta10. alidade – o econômico ou o tecnológico, por exem-
plo –, que costumam atrair os incautos, de agora e de
antes, que ou se apegam a uma crença nos poderes
O tamanho da crise, quase mágicos da tecnologia para solucionar proble-
merece igual atenção mas sociais e econômicos ou restringem ao âmbito

A famosa frase de Chico Mendes e sua abordagem


multiescalar – seringueira-floresta-humanidade –
Inúmeros são os pensadores e pensadoras que aqui se
evocadas na mencionada saudação já nos dão uma poderia evocar para amparar o caráter civilizacional dessa
dimensão do que está em jogo e do caminho a per- percepção e o tamanho da tarefa que temos pela frente, a
correr. Não se está falando de uma floresta qualquer, começar pelos já mencionados – Elisa Loncon, Krenak e Chi-
mas sim do principal manancial de sociobiodiver- co Mendes –, que, mesmo reconhecendo o papel que o sis-
sidade do planeta, compartilhado por centenas de tema econômico hegemônico e vigente na atualidade tem
povos indígenas, comunidades tradicionais, quilom- na agudização de nossos problemas, não deixam de alertar
bolas e ao menos nove países, todos plurinacionais, para o reducionismo das falsas soluções ou para a extensão
mesmo que apenas dois deles já tenham reconhecido e alcance da crise, como também o fizeram o equatoriano
isso institucionalmente. Alberto Acosta e a mexicana Ana Ester Ceceña, por exemplo.
Essa multiescalaridade remete-nos à percepção e à
compreensão, em boa parte proporcionadas pela fu-
são de perspectivas que alianças como as dos povos apenas de um ordenamento socioeconômico aqueles
da floresta significam, dos tempos críticos em que problemas que o transcendem e se ampliam para as
estamos envolvidos, dos riscos que estamos corren- dimensões das culturas e das civilizações, como as
do e dos percursos necessários ao seu enfretamento diversas opressões que as atravessam, especialmente
e superação. aquelas ligadas à misoginia, ao gênero, às raças, às
A “equação” multiescalar – da seringueira à hu- etnias e aos direitos da natureza.
manidade – proposta por Chico Mendes é a mesma, Inúmeros são os pensadores e pensadoras que
cada vez mais enunciada por aquele conjunto de pen- aqui se poderia evocar para amparar o caráter civili-
sadores e pensadoras da atualidade que, ao chamar- zacional dessa percepção e o tamanho da tarefa que
-nos atenção para a gravidade da crise que vivemos, temos pela frente, a começar pelos já mencionados –
costumam conferir centralidade à dimensão socio- Elisa Loncon, Krenak e Chico Mendes –, que, mesmo
ambiental e à amplitude civilizatória da mesma. reconhecendo o papel que o sistema econômico he-
Ao eleger a dimensão socioambiental como a cen- gemônico e vigente na atualidade tem na agudização
tral, a referência é a síntese que ela representa dos de nossos problemas, não deixam de alertar para o

ANDES-SN n julho de 2023 29


A crise ecológica e socioambiental reducionismo das falsas soluções ou para a extensão Ana Ester Ceceña, por sua vez, contextualiza a
e alcance da crise, como também o fizeram o equa- crise civilizatória afirmando que esta, inegavelmente,
toriano Alberto Acosta e a mexicana Ana Ester Ce- acontece sob a hegemonia de um padrão global de
ceña, por exemplo. O primeiro, corajosamente, em acumulação e espoliação, mesmo que sua solução e
seu conhecido texto O Bem Viver (Uma oportunidade enfretamento transcendam os cânones classicamen-
para imaginar outros mundos), ao defender essa pers- te considerados para isso. Por um lado, caracteriza
pectiva que o título de sua obra indica, suas raízes a amplitude da crise promovida pelo sistema hege-
comunitárias, não capitalistas, avessas aos princípios mônico – “o capitalismo se encontra em uma crise
legados pela cosmovisão da civilização ocidental, civilizatória, econômica, política...” (CECEÑA, 2010,
atribui-lhe a capacidade de romper “igualmente com p. 73); por outro, é o seu alcance e o caráter socioam-
as lógicas antropocêntricas do capitalismo enquanto biental ou ecológico que são destacados por Ceceña
civilização dominante e com os diversos socialismos – essa “crisis civilizatória ha puesto en jaque la vida
reais que existiram até agora – que deverão ser re- del planeta y no ofrece oportunidades ni para los se-
pensados a partir de posturas sociobiocêntricas e que res humanos, ni para la naturaleza” –, com destaque
não serão atualizados simplesmente mudando seus para a premência dessa caracterização: “Estamos en
sobrenomes” (ACOSTA, 2016, p. 72). Acosta indica, un momento de urgencia, al borde de una catástrofe
claramente, a amplitude da tarefa que nos desafia, ecológica y de catástrofes sociales de diferente dimen-
considerando a dimensão da crise, opondo cosmo- sión” (ibid., p. 77). Mas, nem por isso, a pensadora
visões e desvelando as lógicas comuns e antropocên- mexicana sugere algum tipo de conformismo ou de
tricas que têm movido tanto o establishment como simplificação que deixasse de considerar o conjunto e
quem, até pouco tempo atrás, identificava-se como a transcendência dos fatores que estão em jogo. Para
seu principal contraponto: “É óbvio que uma cosmo- ela, apesar da localização das responsabilidades que
visão dessemelhante à ocidental, que surge de raízes o sistema capitalista tem na produção da urgência e
comunitárias e não capitalistas, existentes não apenas das catástrofes anunciadas, centrar as perspectivas
no mundo andino e amazônico, provoca conflitos e emancipatórias apenas na mudança ou melhoria das
rupturas. Rompe igualmente com as lógicas antropo-
cêntricas do capitalismo e dos diversos socialismos
que existiram até agora” (ibid., p. 89 e 90).

30 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


“relações capitalistas” revela incompreensão, além de que, globalmente, tomavam de assalto e dividiam

Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios


ser excludente, pois, segundo a autora, “hay muchos praticamente ao meio o planeta: territórios que per-
movimientos y pueblos que dicen que eso no es sufi- tenciam aos chamados bloco soviético e aliados ou
ciente, eso no los incluye”. E arremata afirmando: ao bloco ocidental.
Alguns desses ecologistas pioneiros sugeriam a al-
Si no se plantea el problema del racismo, de la ternativa ecossocialista para facear o modelo civiliza-
perspectiva etnica o cultural, de la diferencia
tório hegemonizado pelo capitalismo e que havia con-
societal, de la diferencia de percepciones del
mundo, de esas visiones cosmogonicas del mundo taminado o chamado “socialismo real” então existente.
tan diferentes a la vision que el capitalismo y la O conhecido texto de Manuel Castells – O “ver-
cultura occidental trajo a estas tierras, no estamos dejar” do ser –, integrante de sua clássica obra, a tri-
siendo nosotros mismos en las luchas, no nos
logia Era da Informação, nos relata parte da história
estamos emancipando de aquello que nos oprime,
no estamos partiendo de nuestra propia realidad
dessa vertente do movimento ambientalista que o
(ibid., p. 81-82). politizou, adotando a perspectiva da “justiça ambien-
tal”, propondo uma revisão “drástica na forma como
Nessa mesma coletânea – Sumak Kawsay/Buen vi- pensamos as relações entre economia, sociedade e
vir y cambios civilizatorios –, de onde foram extraídas natureza” (CASTELLS, 2006, p. 142) e acusando a
as menções de Ceceña, organizada pela socióloga e responsabilidade também do ordenamento geopolí-
feminista equatoriana Irene León, igualmente o soci-
ólogo venezuelano Edgardo Lander, em um capítulo
de título significativo – Crisis Civilizatoria: el tiempo Figuras como o norueguês Arne Næss, o pai da controver-
se agota –, arremata: “El patrón. civilizatorio que ha tida “ecologia profunda”, com sua proposta de reconhe-
intentado universalizarse durante estos ultimos 500
cimento e equilíbrio dos valores ontológicos de todos os
seres, humanos e não humanos, e o austríaco radicado na
anos esta acercandose a hacer que la vida en el planeta
França André Gorz (que assinava como Michel Bosquet,
Tierra ya no sea posible. Cuando hablamos de cambio
particularmente em seus escritos ambientalistas), as-
climatico o de las condiciones del agua, de la destruc-
sociado também à “ecologia política”, ou simplesmente
cion de la biodiversidad, no nos encontramos apenas
“ecopolítica”, poderiam, cada um a seu modo e segundo
ante una crisis ambiental sino ante una profunda crisis suas perspectivas, ser considerados artífices destacados
civilizatoria” (LANDER, 2010, p. 27). desses movimentos (eco)utópicos.

Ecopolítica revisitada ou tico adotado, que viabilizou os modelos vigentes, pe-


o ambientalismo politizado las catástrofes ambientais produzidas: “Estado-nação
e ampliado dos latinos tende a exercer o poder sobre um determinado ter-
ritório e, desse modo, rompe a unidade da espécie
As contradições e incompatibilidades menciona- humana, bem como a inter-relação entre os terri-
das já foram apontadas por alguns dos pioneiros da tórios, comprometendo a visão de um ecossistema
chamada ecopolítica ou ecologia política, vertente do global compartilhado” (ibid., p. 159). Ainda segundo
movimento ambientalista que se ofereceu como al- Castells, a amplitude dessas vertentes e movimentos
ternativa, por volta dos anos 1960 e 1970, à polariza- revela-se porque “estabelecem um elo de ligação en-
ção entre os totalitarismos então existentes e típicos tre ação ambiental e revolução cultural, ampliando
da “guerra fria”, que opunha os chamados blocos oci- ainda mais o escopo de um movimento ambienta-
dental e soviético, ambos fundados no produtivismo lista abrangente e visando à construção da ecotopia”
urbano-industrial, na exploração dos recursos hu- (ibid., p. 149).
manos e não humanos que lhes serviam e, portan- Figuras como o norueguês Arne Næss, o pai da
to, igualmente predadores dos ambientes terrestres, controvertida “ecologia profunda”, com sua propos-

ANDES-SN n julho de 2023 31


A crise ecológica e socioambiental ta de reconhecimento e equilíbrio dos valores onto- As incompatibilidades apontadas por Gorz contra
lógicos de todos os seres, humanos e não humanos, esse modelo civilizatório não deixavam de indicar,
e o austríaco radicado na França André Gorz (que por contraste, as compatibilidades com as ideias de
assinava como Michel Bosquet, particularmente em um socialismo libertário, autogestionário, pautado
seus escritos ambientalistas), associado também à nos interesses plurais das comunidades, em seus va-
“ecologia política”, ou simplesmente “ecopolítica”, po- ticínios para uma sociedade pós-capitalista, fundada
deriam, cada um a seu modo e segundo suas pers- na escolha ecologista.
pectivas, ser considerados artífices destacados desses Tais possibilidades, decorrentes da centralidade
movimentos (eco)utópicos a que se refere Castells. conferida por Gorz ao ecologismo em sua “críti-
Especialmente Gorz/Bosquet, cuja radicalidade su- ca radical de nossa civilização e de nossa socieda-
gerida para conduzir a causa ambiental ou ecológica de” (ibid., p. 6), cuja especificidade, embora o torne
é por todos reconhecida, não deixava qualquer dú- “uma dimensão indispensável da luta anticapitalista”
vida quanto às perspectivas de seu “ecossocialismo”. (ibid., p. 9), considerando a materialidade do projeto
“A escolha ecologista é claramente incompatível com a civilizacional ora em curso, ao mesmo tempo, com
racionalidade do capitalismo”, afirmava Gorz em seu suas inspirações libertárias, comunitárias, plurais e
Ecologia e Liberdade (GORZ, 1977, p. 7). Mas “é tam- avessas aos reducionismos economicistas e aos tota-
bém totalmente incompatível com o socialismo auto- litarismos, transcendem essa luta e, portanto, aproxi-
ritário” (ibid.), arrematava. Para ele, a “visão de uma mam muitas das teses e princípios da ecologia políti-
sociedade pós-capitalista é a única compatível com a ca, em seus fundamentos ecossocialistas, de algumas
gestão e a atribuição racionais dos recursos globais, das principais propostas e perspectivas que estão se
com a revolução econômica, que supõe a ‘revolucio- gestando e se consolidando em alguns países latino-
narização’ das relações entre o homem e a natureza, -americanos, principalmente pela ação e mobilização
reclamada pelos ecologistas” (BOSQUET, 1973, p. 32). dos movimentos sociais vinculados aos povos origi-
nários, comunidades tradicionais e quilombolas, em
suas variadas manifestações por todo o continente.
Assim, bem viver, direitos da natureza e o reconhecimento Um dos principais representantes ainda vivos
da diversidade de povos e nações originários são dimensões dentre os fundadores dessa corrente, o francês Serge
inseparáveis que, inclusive e como já se adiantou, foram Latouche, considerado o principal divulgador do de-
consagrados institucionalmente por alguns países latino- crescimentismo (Georgescu-Roegen/Gorz), adepto
-americanos, principalmente por aqueles em que os movi- da vertente ecossocialista inaugurada por Gorz, em
mentos sociais exerceram pressão nesse sentido, a partir passagem pelo Brasil para ministrar conferência em
do momento em que perceberam a importância das reconfi- simpósio internacional ocorrido há pouco mais de
gurações políticas dos Estados para que estes assumissem dez anos na Universidade Federal de Mato Grosso
efetivamente o seu caráter de representação coletiva, parti- UFMT, declarou:
cularmente nessa condição de emergências civilizatórias e
socioambientais com que lidamos na contemporaneidade. Eu definiria o decrescimento como o projeto
ecossocialista, a saber, com a dupla dimensão
ecológica e socialista. Antes de mais nada,
Coerente com as noções de “decrescimento”, por o decrescimento é um slogan, slogan
provocador... Se quisermos ser rigorosos,
ele introduzida11, mas inspirada, como ele mesmo
poderíamos falar não de decrescimento, mas
afirmou, em Georgecu-Roegen, que sugeriu ser o de a-crescimento, com o prefixo grego “a”, de
“crescimento zero insuficiente” (GORZ, 1977, p. 3), privação, como o que colocamos em “ateísmo”.
decretou: “O capitalismo de crescimento está morto. Aliás, é disso que se trata: se trata de sair da
religião do crescimento, de nos tornarmos ateus
O socialismo de crescimento, que se assemelha a ele
da economia e agnósticos do progresso. Então,
como um irmão, reflete a imagem distorcida não do o Brasil deveria mudar sua divisa “Ordem e
nosso futuro, mas do nosso passado” (ibid., p. 1). Progresso” para “Ordem e Buen vivir”12.

32 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Esse vínculo, já estabelecido há mais de dez anos, tema que o implantou e com ele se realizou – depen-

Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios


entre as perspectivas que aqui se gestam e aquelas de também da superação da colonialidade que por
de décadas atrás propostas por alguns desses pensa- aqui permaneceu, em termos de arranjos políticos,
dores europeus críticos mereceu o reconhecimento econômicos e sociais, ao manter intactas certas estru-
recente do martinicano Malcom Ferdinand, que, em turas de dominação, política e culturalmente herda-
sua importante obra Uma ecologia decolonial (pensar das, que subjugam corpos, mentalidades e seres, hu-
a partir do mundo caribenho), afirmou que “Atual- manos e não humanos, não admitindo, nem mesmo
mente, Serge Latouche é um dos únicos a colocar a como pensamento alternativo, qualquer coisa que
exigência decolonial no centro das questões ecológi- não se mantenha nos estritos limites das referências
cas” (FERDINAND, 2022, p. 29). eurocentradas. E isso, entre outras atitudes, segundo o
Ao mencionar a perspectiva do buen vivir para já mencionado Acosta, em um esforço de estabelecer
alterar o lema positivista estampado na bandeira do as relações entre as referências dos ecologistas decres-
Brasil, mesmo que em tom de blague, o pensador cimentistas e as perspectivas do Bem Viver, impõe o
francês reverencia uma das formulações mais anti- abandono dos conceitos de progresso, “em sua deri-
gas da resistência indígena contra a colonialidade vação produtivista, e de desenvolvimento, enquanto
do poder que por essas terras se estabeleceu e que direção única, sobretudo com sua visão mecanicista
aqui permaneceu, mesmo após superado o período de crescimento econômico” (op. cit., p. 98).
colonial. Quem nos informa disso é o peruano Ani- Na síntese de Anibal Quijano, bem viver e supera-
bal Quijano, um dos mais importantes pensadores ção da colonialidade são dimensões e projetos recur-
latino-americanos, recentemente falecido (em 2018). sivos e concomitantes:
Interessante constatar que, apesar da antiguidade mi-
lenar de muitas expressões de povos originários que Bien Vivir, para ser una realización histórica
efectiva, no puede ser sino un complejo de
poderiam ser traduzidas para “bien (ou buen) vivir”,
prácticas sociales orientadas a la producción y a
essa formulação teria sido cunhada no início do sé- la reproducción democráticas de una sociedade
culo XVII, mais precisamente em 1615 (cf. QUIJA- democrática, un otro modo de existencia social,
NO, 2014, p. 847), para contrapor-se à consolidação con su propio y específico horizonte histórico
de sentido, radicalmente alternativos a la
do processo de ocupação colonial que estava em cur-
Colonialidad Global del Poder y a la Colonialidad/
so e, em grande parte, consolidava-se pela extensão Modernidad/Eurocentrada. Este patrón de poder
das fronteiras dos estados nacionais europeus, recém es hoy aún mundialmente hegemónico, pero
criados, aos territórios que ocupavam, impondo na- también en su momento de más profunda y raigal
cionalidades, culturas e modos de vida, subjugando a crisis desde su constitución hace poco más de
quinientos años. En estas condiciones, Bien Vivir,
tudo e a todos, humanos e não humanos, cujas terri-
hoy, sólo puede tener sentido como una existencia
torialidades (e fronteiras) em nada coincidiam com social alternativa, como una Des/Colonialidad
aquelas que lhes estavam sendo impostas. del Poder (QUIJANO, 2014, p. 847-848).
Por um lado, um sistema de opressão e subjuga-
ção sendo viabilizado pela expansão das fronteiras de Outro aspecto é que tais dimensões tampouco se
ocupação dos estados coloniais europeus; por outro, realizam ou se separam dos “direitos da natureza”, pois,
enunciavam-se os horizontes alternativos da resistên- sem esse reconhecimento, não se transitará do antro-
cia indígena e das comunidades originárias, que, ig- pocentrismo que nos foi legado e imposto pela coloni-
norados durante o período de colonização, emergem zação e sua permanência como “colonialidade” para o
agora como lastro e fundamento para as novas pers- sociobiocentrismo, requisitado pelos imperativos dos
pectivas que os movimentos sociais estão adotando tempos críticos atuais. Segundo Acosta, “a transição
na América Latina, e que alguns países já estabelece- de uma concepção antropocêntrica para uma socio-
ram, inclusive institucionalmente, sobretudo quando biocêntrica é o maior desafio da humanidade, se é que
perceberam que a superação do período colonial – e não queremos colocar em risco a existência do próprio
do seu significado em termos de estruturação do sis- ser humano sobre a Terra” (op. cit., p. 129).

ANDES-SN n julho de 2023 33


A crise ecológica e socioambiental Essa transição implica, entre outras coisas, em li- pioneira de que a natureza é um sujeito de direitos
bertar a natureza da condição de objeto ou de pro- constitui resposta de vanguarda à atual crise civiliza-
priedade dos seres humanos, não só a reconhecendo tória”, pois isso, além de exigir a superação do antro-
como portador e “sujeito de direitos”, como atribuin- pocentrismo em direção ao biocentrismo, indica um
do o mesmo valor ontológico para todos os seres, caminho e um horizonte que não se percorre, nem
humanos e não humanos, realizando aquilo que o se atinge, sem o amparo e sustentação da diversida-
ecologista uruguaio Eduardo Gudynas (2019) deno- de e da pluralidade, permanentemente reconhecidas,
minou de “giro biocêntrico”, incorporado nas visões e defendidas e adotadas pelo conjunto da sociedade.
cosmogonias de povos originários, para os quais, se- Como não há biodiversidade sem a diversidade so-
gundo nos relata a equatoriana e liderança indígena cial que proporcione essa existência plural (e vice-
Nina Pacari “todos los seres de la naturaleza están in- -versa), portanto, não há natureza sem que se con-
vestidos de energía que es el samai y, en consecuencia, sagre os direitos das dinâmicas e das alteridades que
son seres que tienen vida: una piedra, un río (agua), garantam as condições de existência de seus elemen-
la montaña, el sol, las plantas, en fin, todos los seres tos constituintes.
tienen vida y ellos también disfrutan de una familia, Assim, bem viver, direitos da natureza e o reconhe-
de alegrías y tristezas, al igual que el ser humano” (PA- cimento da diversidade de povos e nações originários
CARI, 2009, p. 32-33). são dimensões inseparáveis que, inclusive e como já
se adiantou, foram consagrados institucionalmente
por alguns países latino-americanos, principalmente
A dimensão socioambiental por aqueles em que os movimentos sociais exerce-
do Estado plurinacional ram pressão nesse sentido, a partir do momento em
que perceberam a importância das reconfigurações
O Equador, pioneiramente, foi o país que, ao lado políticas dos Estados para que estes assumissem efe-
dos direitos humanos, consagrou em seu texto cons- tivamente o seu caráter de representação coletiva,
titucional os direitos da natureza, entendido como particularmente nessa condição de emergências ci-
condição para defesa e construção do bem viver. Se- vilizatórias e socioambientais com que lidamos na
gundo Acosta (op. cit., p. 135), “Adotar a definição contemporaneidade.
As constituições do Equador, da Bolívia e mesmo
a proposta constitucional chilena, mencionada na
parte inicial deste artigo, instituindo ou propondo
Estados plurinacionais, revelam essa compreensão
da interdependência entre as dimensões menciona-
das. Ampliam para toda a sociedade a necessidade
de manutenção e vigilância permanente da condição
plural como um projeto político e coletivo para cons-
truir outras relações de poder que proporcionem e
garantam o respeito à diversidade e à pluralidade, re-
quisitos básicos para os que tomam a sério a defesa
da vida, humana ou não, bem como dos ambientes
em perigo, em decorrência da crise socioambiental
produzida pela ordem antropocêntrica e monocultu-
ral há séculos estabelecida.
Mesmo naqueles países onde a plurinacionalidade
não foi instituída, a pressão dos movimentos sociais
já produziu conquistas importantes nesse sentido. É o
caso da sentença expedida pela Corte Constitucional

34 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


da Colômbia, que, interpelada por um conjunto de eles apoiados nas perspectivas de solidariedade, da

Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios


associações e entidades comunitárias que moveram pluralidade existencial e da ampliação de direitos das
ação contra o governo federal em defesa dos direitos nações, das comunidades e das espécies, humanas ou
do Rio Atrato – um dos principais daquele país e for- não, assim como suas e seus integrantes, sem subju-
temente relacionado às condições de vida e existência gação ou hierarquias ontológicas dentre quaisquer
de várias comunidades colombianas, especialmente identidades. As leis e as institucionalidades conquis-
afrodescendentes –, declara: “el río Atrato es sujeto tadas, nesse sentido, embora importantes, como re-
de derechos que implican su protección, conservación, sultam de correlações de forças episódicas, não esgo-
mantenimiento y en el caso concreto, restauración” tam uma luta que é permanente e, mesmo não tendo
(Sentencia T-622, 2016, p. 140)13. Essa Corte, inspi- o poder de alterar a realidade imediata, amparam e
rada na própria Constituição Colombiana (deno- legitimam as reivindicações alcançadas, dando-lhes
minada de “Constitución Ecológica”) e também nas caráter coletivo e difusão ampliada. “A realidade não
jurisprudências de outros textos constitucionais, com muda com uma Constituição, por mais vanguardista
destaque para Equador e Bolívia, evoca para essa sua que seja”, adverte-nos o ex-presidente da constituinte
conclusão fundamentos pautados no enfoque jurídi- equatoriana, o já mencionado Alberto Acosta, acres-
co dos “direitos bioculturais”, cuja premissa reconhe- centando que definir um estado como plurinacional,
ce a unidade e interdependência entre natureza e es-
pécie humana, assim esclarecida na própria sentença:

[...] la protección de los ríos, los bosques, las


As constituições do Equador, da Bolívia e mesmo a propos-
fuentes de alimento y la biodiversidad (medio ta constitucional chilena (...), instituindo ou propondo Es-
ambiente sano) tiene una relación directa e tados plurinacionais, revelam essa compreensão da inter-
interdependiente con la garantía de los derechos dependência entre as dimensões mencionadas. Ampliam
a la vida y la salud, (así como la cultura y el para toda a sociedade a necessidade de manutenção e
territorio), dentro de lo que se ha denominado
vigilância permanente da condição plural como um projeto
derechos bioculturales. Precisamente, los
elementos centrales de este enfoque establecen
político e coletivo para construir outras relações de poder
una vinculación intrínseca entre naturaleza y que proporcionem e garantam o respeito à diversidade e à
cultura, y la diversidad de la especie humana pluralidade, requisitos básicos para os que tomam a sério
como parte de la naturaleza y manifestación de a defesa da vida, humana ou não, bem como dos ambien-
múltiples formas de vida. Desde esta perspectiva, tes em perigo, em decorrência da crise socioambiental
la conservación de la biodiversidad conlleva produzida pela ordem antropocêntrica e monocultural há
necesariamente a la preservación y protección de
séculos estabelecida.
los modos de vida y culturas que interactúan con
ella (ibid., p. 133).

Dos textos das constituições já promulgadas do como o fizeram as constituições do Equador e da Bo-
Equador e da Bolívia, ou da proposta da Convenção lívia, não assegura que equatorianos e bolivianos vi-
Constitucional chilena, passando pela sentença da vam em um Estado plurinacional (op. cit., p. 153). Da
Corte colombiana, ou pelas declarações dos Acam- mesma forma, realidades plurinacionais não deixam
pamentos Terra Livre do Brasil, mobilizado pela de apresentar essas características apenas porque
revogação do Marco Temporal, ou das Cumbres de não há o reconhecimento institucional dessas reali-
Pueblos Origiários de Abya Yala, dentre vários outros dades. De um jeito ou de outro, o debate se instala,
movimentos e ações que ainda se poderiam mencio- de forma mais ou menos amparada coletivamente. E,
nar, revela-se, como traço comum, não só a compre- dessa forma, as discussões e reflexões em torno do
ensão da gravidade do momento, que põe em risco enfrentamento da crise socioambiental produzida
a sobrevivência da vida e das paisagens terrestres, ampliam-se em alternativas e referências.
mas acusam-se responsabilidades, sugerindo alguns As dimensões da política, do poder, da cultura e
horizontes que poderiam reverter esse quadro, todos das mentalidades, dessa maneira, evidenciam-se em

ANDES-SN n julho de 2023 35


A crise ecológica e socioambiental um patamar de responsabilidades nada secundárias lugares, alocando-os segundo as conveniências de-
em relação àquelas que costumam ser atribuídas ape- cretadas pelos estados-nação e o sistema de acumu-
nas às relações econômicas e às sociedades por elas lação que viabilizavam.
estruturadas. E isso já significa apartar-se do pensa- O bem viver, o Estado plurinacional e os direitos
mento monocultural, eurocêntrico e colonizador que da natureza compõem, nesse sentido, perspectiva di-
se pautou na pilhagem e na degradação, produzindo versa dessa que ainda tem prevalecido. Em oposição
o mal-estar, o mal viver, a competição. O chamado ao império da monocultura, da pilhagem e da subju-
Estado Nacional Moderno, estabelecido pela Paz da gação nacional, da imposição de fronteiras, da opres-
Westphália e que pôs fim à Guerra dos 30 anos, em são de seres, sugerem a solidariedade, a diversidade
meados do século XVII, consagrou-se como a uni- e o respeito aos limites e às dinâmicas existentes e
dade geopolítica de organização do mundo a partir praticados por todas e todos, viventes ou não, huma-
daí, viabilizando o sistema de espoliação que dele se nos ou não.
assomou nos quatro cantos da Terra. Suas fronteiras Os adeptos e responsáveis maiores pela elaboração
sufocaram nações, impuseram dinâmicas e estabe- e defesa dessas perspectivas, embora representem 5%
leceram nacionalidades onde isso não há. Escravi- da população mundial, “são gestores vitais do meio
zaram e dizimaram indígenas em todas as partes do ambiente”. Segundo a ONU e o seu organismo espe-
mundo. Desterraram milhões de seres de todos os cializado em agricultura e alimentação (FAO), ocu-
pam cerca de 28% da superfície terrestre que abrigam
80% da biodiversidade do planeta14. Ou seja, se de
fato a crise é grave e é socioambiental, convém prestar
Dos textos das constituições já promulgadas do Equador
atenção no que dizem aqueles que comprovadamente
e da Bolívia, ou da proposta da Convenção Constitucio-
têm se mostrado os mais eficazes em enfrentar essa
nal chilena, passando pela sentença da Corte colombiana,
crítica situação, com formulações que, além do mais,
ou pelas declarações dos Acampamentos Terra Livre do
fundamentam-se na garantia da pluralidade existen-
Brasil, mobilizado pela revogação do Marco Temporal, ou
das Cumbres de Pueblos Origiários de Abya Yala, dentre cial e nos direitos generalizados de humanos e não
vários outros movimentos e ações que ainda se poderiam humanos, com propostas produzidas e abraçadas por
mencionar, revela-se, como traço comum, não só a com- todas aquelas e aqueles que, segundo o mencionado
preensão da gravidade do momento, que põe em risco autor de Uma Ecologia Decolonial, foram confinados
a sobrevivência da vida e das paisagens terrestres, mas no “porão da modernidade” e hoje nos oferecem a
acusam-se responsabilidades, sugerindo alguns horizon- possibilidade de um “mundo entre humanos com os
tes que poderiam reverter esse quadro, não humanos no convés da justiça” (FERDINAND,
2022, p. 267).

36 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Tais perspectivas e as dimensões solidárias e plu- cas, a ignorância da África e o solipsismo da Europa”

Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios


rais que representam convertem-se em imperativo (FERDINAND, 2022, p. 270). Desse sistema, euro-
social e ecológico para superarmos aquilo que Don- peu e predatório, que se assenhorou do mundo, só
na Haraway e o próprio Malcom Ferdinand, entre nos livraremos quando revertermos essas ausências e
outros, e em oposição à pretensão de “universalidade ignorâncias produzidas, com todas as consequências
[abstrata] do antropoceno”, preferiram denominar de sofrimento e destruição que provocaram, e tam-
de plantationoceno, que, segundo a antropóloga e fe- bém quando nos libertarmos das referências apenas
minista norte-americana “prossegue com crescente europeias, mesmo as que dizem combatê-las, mas
ferocidade na produção global de carne industriali- louvando nacionalidades e estatismos nacionais e va-
zada, no agronegócio da monocultura e nas imensas cilando na adesão à pluralidade e às cosmovisões dos
substituições de florestas multiespecíficas, que sus- de baixo, do Sul, dos porões...
tentam tanto os humanos quanto os não humanos, Pedimos licença, então, para concluir este texto
por culturas que produzem, por exemplo, óleo de com algumas das referências utilizadas que Malcom
palma” (HARAWAY, 2016, p. 144). Ferdinand, por Ferdinand expôs na conclusão do seu:
sua vez, radicaliza essa condição, explicitando-a com
Ao lado da urgência ambiental de uma limitação
sua proposta de escrita de um “negroceno”, pois, se- do aquecimento global e do fim das destruições
gundo ele, se com o “conceito de antropoceno, [seus dos ecossistemas da Terra, coloco urgências
formuladores] prometem uma narrativa da Terra que iguais: de uma redistribuição mundial das
riquezas e de uma justiça social; da tarefa
apague a história colonial” e, segundo Ferdinand, “se
decolonial de reconhecer um lugar digno no
interessa apenas pelas casas-grandes dos senhores, mundo para os povos originários, para o ex-
por seus engenhos e moinhos, escrever o negroceno colonizados e para as pessoas racializadas; e
pressupõe também desenterrar os vestígios daqueles de uma igual consideração social e política
a quem o mundo foi recusado” (FERDINAND, 2022, das mulheres, particularmente das mulheres
racializadas das ex-colônias europeias
p. 28 e 82).
(FERDINAND, 2022, p. 267).
No epílogo de sua obra, após cuidada reflexão
sobre o mundo produzido e pilhado pelo intenso Sim, arremata Ferdinand: “a ecologia é, acima de
tráfego de navios negreiros e a “carga humana” que tudo, uma questão de justiça. A crise ecológica é uma
transportavam, “uma categoria de seres explorados crise de justiça” (op. cit. p. 267).
confinados na noite do porão e aos quais o mundo E isso, a justiça, podemos começar a exercer pres-
é recusado”, o ambientalista martinicano afirma que tando mais atenção e considerando as propostas que
“por esses mesmos trajetos, o navio negreiro criou a nos fazem os originários e demais oprimidos dos
ilusão da ausência dos povos originários das Améri- dois lados do Atlântico Sul.

ANDES-SN n julho de 2023 37


A crise ecológica e socioambiental

9. Mencionamos parte dos títulos, por si só


muito significativos e expressivos, de obras desses
reconhecidos intelectuais e lideranças indígenas e as
indicamos enfaticamente pela relevância dos aportes
que trazem aos interessados naquilo que aqui se
discute. Krenak, A. Ideias para adiar o fim do mundo.
1. V. Caderno de Textos do 41º Congresso. Assinavam São Paulo: Cia das Letras, 2019. Kopenawa, D. e Albert,
o TA/TR os seguintes sindicalizados da ADUSP B. A queda do céu. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
(Associação de Docentes da Universidade de São
Paulo): Marcos Bernardino de Carvalho, Gislene 10. Trecho do discurso de abertura do 41º Congresso
Aparecida dos Santos, Marcelo Zaiat, Ângela Maria do ANDES-SN, proferido por sua presidenta, Rivânia
Machado de Lima Hutchison, Manoel Fernandes de L. Moura de Assis, disponível em: https://www.andes.
Sousa Neto, Diamantino Alves Correia Pereira, Celso org.br/conteudos/noticia/comeca-o-41o-congresso-
Eduardo Lins de Oliveira, Ana Paula Fracalanza, Ester do-aNDES-sN-em-rio-branco-aC1.
Gammardella Rizzi e Tercio Loureiro Redondo.
11. A expressão aparece pela primeira vez em um
2. Ambos podem ser consultados na íntegra em: artigo em que Gorz assinou como Michel Bosquet, em
https://apiboficial.org/2022/04/14/atl-2022-povos- Nouvel Observateur nº 397 du 19 juin 1972: “L’équilibre
indigenas-unidos-movimento-e-luta-fortalecidos/. global, dont la non-croissance – voire la décroissance
– de la production matérielle est une condition, cet
3. Relatório consolidado é o documento enviado équilibre est-il compatible avec la survie du système”.
aos delegados e às delegadas para acompanhar as Fonte: http://dictionnaire.sensagent.leparisien.fr/.
deliberações das resoluções e propostas que passaram
pelo crivo dos grupos de discussões. 12. Trechos da palestra “Natureza: problemáticas
econômicas e antropológicas”, ministrada por Serge
4. Informações mais completas sobre as deliberações Latouche, da Universidade de Paris XI. A palestra
do 41º Congresso e das matérias que foram remetidas ocorreu entre os dias 10 e 12 de novembro de 2011, no
para o 66º CONAD podem ser obtidas em: https:// Simpósio Internacional Merleau-Ponty, Universidade
www.andes.org.br/sites/relatorios. Federal do Mato Grosso. Vídeo disponível em: https://
youtu.be/zmD7EJvx-BM.
5. Excertos do Documento Final do Acampamento
Terra Livre 2022 (v. nota 2). 13. Íntegra da sentença disponível em: https://
redjusticiaambientalcolombia.files.wordpress.
6. Declaração de Iximche, de 10 de abril de 2007, com/2017/05/sentencia-t-622-de-2016-rio-atrato.
disponível em https://cimi.org.br/2007/04/25906/. pdf ou https://www.corteconstitucional.gov.co/
relatoria/2016/t-622-16.htm.
7. A integra desse discurso pode ser conhecida em:
https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/611130- 14. Dados disponíveis em: https://news.un.org/pt/
chile-discurso-completo-de-elisa-loncon-mulher- story/2019/08/1683741.
mapuche-presidente-da-convencao-constitucional.

8. Trechos também extraídos do Documento Final do


Acampamento Terra Livre 2022 (v. nota 2).

38 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Crise socioambiental e horizontes biocivilizatórios
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo:
Editora Elefante, 2016.
BOSQUET, Michel e MANSHOLT, Sicco. et alii. Ecologia, caso de vida ou de morte. Lisboa:
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CASTELLS, Manuel. O “verdejar’ do ser: o movimento ambientalista. In: CASTELLS, M.
O Poder da Identidade/A Era da Informação, vol. 2, 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
CECEÑA, Ana Esther. Pensar la vida y el futuro de otra manera. In: LEÓN, Irene. (Coord).
Sumak Kawsay/Buen vivir y cambios civilizatórios. Quito: Fedaeps, 2010.
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho. São
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www.academia.edu/42680749/Andre_GORZ_Ecologia_e_Liberdade_1977. Paris: Galilée, 1977.
GUDYNAS, Eduardo. Direitos da Natureza: ética biocênctrica e políticas ambientais. São
Paulo: Elefante, 2019.
HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo
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KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
LANDER, Edgardo. Crisis civilizatoria: el tiempo se agota. In: LEÓN, Irene. (Coord). Sumak
Kawsay/Buen vivir y cambios civilizatorios. Quito: Fedaeps, 2010.
PACARI, Nina. Naturaleza y territorio desde la mirada de los pueblos indígenas. In: ACOSTA,
Alberto y MARTÍNEZ, Esperanza (org.). Derechos de la Naturaleza. El futuro es ahora.
Quito: Abya Yala, 2009.
QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la
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ANDES-SN n julho de 2023 39


A crise ecológica e socioambiental

Insustentabilidade e
flexibilização ambiental
no território brasileiro
Andrea Bezerra Crispim
Professora da Rede de Ensino Básico do Estado do Ceará (SEDUC)
E-mail: crispimab@gmail.com

Resumo: A questão ambiental tem sido discutida nos últimos anos em decorrência da
ausência de planejamento, gestão e fiscalização ambiental, comprometendo a capacidade de
suporte dos elementos naturais no território brasileiro. Este artigo objetiva analisar o avanço
da flexibilização ambiental no Brasil e sua relação com o aumento dos problemas ambientais
ocorridos durante a gestão bolsonarista (2019-2022). O aporte metodológico foi desenvolvido
em cima de levantamentos bibliográficos, sistematização e análise de dados técnicos cole-
tados em sites de pesquisas das mais diversas instituições ambientais. Diante das discus-
sões realizadas, percebe-se a necessidade de estabelecer um processo de reestruturação da
plataforma ambiental brasileira, fortalecendo as políticas de preservação e fiscalização dos
componentes ambientais do território brasileiro.

Palavras-chave: Degradação Ambiental. Política Ambiental. Questão Ambiental.

Introdução reestruturação e flexibilização da legislação ambien-


tal em detrimento do uso exacerbado dos compo-
A questão ambiental tem sido uma das temáticas nentes ambientais, sobretudo mediante a desconsi-
mais debatidas na contemporaneidade, sendo esta deração das potencialidades e limitações naturais de
decorrente do aumento dos problemas ambientais cada componente.
identificados nos mais diversos territórios. Proble- Apontando na perspectiva do planejamento am-
mas esses vistos agora sob uma perspectiva global, biental, conforme destaca Fernandes e Paula (2020),
como as mudanças climáticas e o aumento do pro- há décadas a sociedade assiste ao aumento de ativida-
cesso de desertificação nas regiões semiáridas. des socioeconômicas de grande impacto, o que vem
O aumento dessas práticas políticas, agora poten- contribuindo para a intensificação da perda de biodi-
cializadas por uma plataforma neoliberal, tem como versidade da natureza, como a expansão das frontei-
uma de suas principais características o processo de ras agrícolas (fortemente associada à degradação de

40 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


biomas como o cerrado e a Amazônia, fortalecendo a crise ambiental por todo o mundo, principalmen-
a existência de grandes latifúndios no território bra- te nos países subdesenvolvidos, tinha na ausência de
sileiro). A intensidade dessas mudanças ambientais, políticas ambientais desses países a porta de entrada
discutida de forma mais enfática por Paulani (2006), ao grande capital, revelando uma lógica de apropria-
é pautada agora em uma escala global, sendo fortale- ção capitalista dos elementos naturais.
cida com o aumento das práticas capitalistas (proces- As discussões abordadas revelam um quadro de
so de acumulação do capital e das forças produtivas), problemas ambientais que suscitam a urgência em es-
atenuando a disparidade socioeconômica e a crise tabelecer metas ao crescimento econômico, levando
ambiental. Soma-se a essas questões a desestrutura- em consideração a “utilização dos recursos naturais
ção de políticas ambientais nesses países com o di- de forma a não comprometer as futuras gerações”. Tal
recionamento de uma agenda ambiental guiada por discurso, construído a partir de conferências já bas-
uma plataforma neoliberal. tante conhecidas na atualidade – cita-se como desta-
Essa lógica de planejamento ambiental articulada que a Conferência das Nações Unidas sobre o Desen-
ao sistema econômico capitalista, em que o proces- volvimento e Meio Ambiente Humano, em 1972 –,
so de acumulação do capital e das forças produtivas levantou pautas que visam combater a problemática
atenuou a disparidade socioeconômica, aumentando ambiental, trazendo ao campo das ideias debates e te-

ANDES-SN n julho de 2023 41


A crise ecológica e socioambiental mas como a degradação ambiental e sua relação com desigualdades sociais – já que partimos do pressupos-
a intensificação dos problemas sociais. to de que a apropriação da natureza gera, sobretudo,
Questões debatidas – como o aumento da polui- o enriquecimento de um pequeno grupo privilegiado
ção atmosférica, degradação dos elementos naturais, –, a desterritorialização de grupos tradicionais (como
avanço dos processos de desertificação nos ambien- comunidades quilombolas e indígenas) e o avanço da
tes semiáridos e mudanças climáticas – foram to- crise hídrica e climática, dentre outras questões a se-
mando corpo nos muitos encontros em que a pauta rem pontuadas no presente ensaio. Para Paiva (2015),
ambiental esteve presente. Esses debates despertaram todas essas questões estão submetidas a processos sis-
a necessidade de criação de uma pauta ambiental que temáticos de reprodução ampliada do capital.
tentasse articular políticas ambientais e a ideia de um A preocupação com a crise ambiental, parafrase-
crescimento econômico, seguindo o viés de práticas ando Little (2003), passa a ser discutida em acordos
sustentáveis e que abrangesse toda a população, prin- e conferências, na tentativa de afirmar a importância
cipalmente as que se encontram em situações de alta das políticas ambientais no processo de minimização
vulnerabilidade social. dos problemas ambientais até então vivenciados.
A crise ambiental, mesmo discutida em nível No contexto brasileiro, Pádua (2010, apud Ribei-
mundial, não põe em xeque as estruturas capitalistas ro, 2012) tem destacado a ineficiência de algumas
que passaram a levar parcela significativa da popula- dessas políticas frente às conjunturas que norteiam
ção a consumir exacerbadamente mercadorias e mais as tomadas de decisões do Estado frente às políticas
mercadorias, conforme discute Mészáros (2009). Ao ambientais. De acordo com o autor, os problemas
contrário, criou-se um discurso de sustentabilidade ambientais identificados ao longo dos territórios es-
ambiental que, de acordo com Loureiro (2012), o boçam um quadro frágil e problemático em que as
termo sustentabilidade tem passado por apropria- atividades socioeconômicas e decisões do Estado têm
ções pelos mais diversos agentes sociais, utilizado de sido a mola propulsora para o aumento da degrada-
acordo com seus objetivos e estratégias, mas sendo ção ambiental e da desigualdade social, mediante as
trabalhado sob um contexto de apropriação de de- injustiças ambientais presentes nos territórios.
gradação ambiental. A crise ambiental destaca-se, portanto, através do
Trazendo para a realidade, a definição de susten- avanço da degradação ambiental em vários setores
tabilidade ambiental passa a ser utilizada mediante paisagísticos, tendo como norte o processo de flexi-
discursos vagos, trabalhados por diversos chefes de bilização e mudanças de leis ambientais estratégicas
Estado, que fogem à tentativa de estabelecer políticas no âmbito de uma plataforma coerente que conside-
que traduzam a real necessidade de planejar metas de re a sustentabilidade e uso racional dos elementos
crescimento econômico, levando em consideração a naturais. No âmbito brasileiro, o aumento dos pro-
preservação dos recursos naturais. O reducionismo blemas ambientais ganhou maior ênfase durante a
em torno das pautas ambientais traz, por vezes, um gestão bolsonarista, com destaque para as políticas
processo de naturalização dos problemas ambientais de sucateamento de órgãos ambientais estratégicos,
em que, conforme pontua Loureiro (2012), os pro- bem como o aumento do processo de flexibilização
cessos econômicos passam a ser trabalhados em uma de leis ambientais.
tentativa de naturalização onde o “crescimento é vis- O presente artigo propõe realizar uma análise
to como inexorável em condições de aprimoramento sobre a questão ambiental no território brasileiro le-
do modo de produção capitalista”. vantando a problemática da degradação ambiental e
A lógica de desenvolvimento sustentável sob um sua relação com os fatores político-econômicos ocor-
viés capitalista, que, por trás, tem defendido inte- ridos durante a gestão do governo Bolsonaro1, entre
resses econômicos e políticos, tem fortalecido, den- os anos de 2019 e 2022, destacando-se como o perí-
tre outros fatores, uma série sucessiva de problemas odo de maior avanço dos processos de degradação
socioeconômicos e ambientais, como o aumento das ambiental no Brasil.

42 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Procedimentos metodológicos Os mapas, por sua vez, foram elaborados tendo

Insustentabilidade e flexibilização ambiental


como referência de coordenadas geodésicas o Sis-
Revisão de literatura para a
tema de Referência Geocêntrico para as Américas
fundamentação teórica
(SIRGAS 2000) e desenvolvidos através do pro-

A pesquisa foi desenvolvida tendo como norte a grama de software livre Quantum GIS 3.4. A base

utilização de procedimentos metodológicos, par- cartográfica, em formato SHP, foi disponibilizada

te crucial no desenvolvimento de toda pesquisa. O no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-

levantamento bibliográfico foi realizado através de tística (IBGE).

livros impressos e digitais, teses, dissertações, rela-


tórios técnicos e artigos pesquisados em plataformas
científicas, como a Scientific Eletronic Library Online A pauta ambiental brasileira:
(SCIELO), que debatem temas relacionados à política o aumento da degradação ambiental
ambiental e legislação ambiental, com destaque para na gestão bolsonarista
o aumento do processo de degradação e impactos
ambientais no período histórico entre 2019 e 2022, Na segunda metade do século XX, mais precisa-

anos de gestão bolsonarista. mente na década de 1970, a questão ambiental passa

No âmbito da legislação ambiental, a discussão a ganhar destaque mundialmente devido aos inúme-

jurídica foi fundamentada nas bases normativas do ros problemas ambientais, agora intensificados pela

Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), lógica de acumulação capitalista.

do Conselho Estadual do Meio Ambiente (COEMA) No contexto do território brasileiro, as políticas

e do Conselho Municipal do Meio Ambiente (CO- ambientais tiveram como norte o processo de rede-

MAM) e de leis no âmbito federal, a exemplo de lei- mocratização brasileira com a promulgação da Cons-

turas feitas sobre os artigos descritos na Política Na- tituição Federal de 1988, incluindo-se um capítulo

cional de Meio Ambiente (PNMA), na Constituição específico que tornou obrigatório levar em conside-

da República Federativa do Brasil de 1988, que trata ração a base jurídica ambiental brasileira no que con-

do direito à proteção ambiental em seu artigo 225, e cerne à permissão para realizar atividades econômicas

no Código Florestal Brasileiro, de 2012. sobre os elementos naturais. Conforme Luís e Cunha
(2012), até meados da década de 1980, o Estado ha-
via ditado a política ambiental de forma centralizada.
Coleta, sistematização, Todo o processo de sistematização e formulação da
análise de dados secundários e plataforma política ambiental brasileira foi fortalecida
elaboração de mapas temáticos com a promulgação da Constituição Brasileira, mais
especificamente no capítulo VI, artigo 225:
O processo de organização e análise de informa-
ções geográficas teve seu início mediante coleta de Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
dados secundários em sites governamentais do go-
do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
verno federal, como o portal Terra Brasilis, plata- impondo-se ao Poder Público e à coletividade
forma web desenvolvida pelo Instituto Nacional de o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
Pesquisas Espaciais (INPE). A plataforma disponibi- presentes e futuras gerações.
liza informações geográficas através de dados alfanu-
méricos, gráficos e mapas interativos, com informa- Um dos pontos tratados na presente Constituição
ções de dados ambientais do território brasileiro em e que reforça a necessidade de pensar plataformas
diversas escalas geográficas. Os dados coletados no políticas que visem à proteção e conservação dos
presente artigo foram organizados, analisados e sis- componentes geoambientais está no fortalecimento
tematizados em gráficos e mapas. em assegurar a efetividade da preservação e restau-

ANDES-SN n julho de 2023 43


A crise ecológica e socioambiental ração dos sistemas geoecológicos do território brasi- VIII - recuperação de áreas degradadas;
leiro, conforme destacado nos três primeiros incisos IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação; e
X - educação ambiental a todos os níveis de
do parágrafo § 1:
ensino, inclusive a educação da comunidade,
objetivando capacitá-la para participação ativa
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, na defesa do meio ambiente.
incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das A situação ambiental brasileira, mesmo com a
espécies e ecossistemas; presença da PNMA, tem sido de uma plataforma
II - preservar a diversidade e a integridade do de não implementação dos instrumentos jurídicos
patrimônio genético do País e fiscalizar as
ambientais, o que, para Soares (2020), reafirma a
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação
de material genético; e lógica de um projeto de intervenção socioeconômi-
III - definir, em todas as unidades da Federação, ca no país, desconsiderando a legislação ambiental
espaços territoriais e seus componentes e tendo, como consequência, a intensificação da
a serem especialmente protegidos, sendo a perda de biodiversidade dos componentes naturais
alteração e a supressão permitidas somente
do Brasil.
através de lei, vedada qualquer utilização que
comprometa a integridade dos atributos
que justifiquem sua proteção.
Injustiça e desigualdade ambiental
Nesse processo de fortalecimento da base jurídi-
no governo Bolsonaro: o projeto político
ca ambiental brasileira, a Política Nacional do Meio
da degradação ambiental
Ambiente (PNMA), promulgada pela Lei n° 6938, de
Há uma intensa prevalência da lógica econômica
31 de agosto de 1981, trouxe um conjunto de instru-
sobre os recursos naturais, impactando não somente
mentos ambientais que visa fortalecer o processo de
as condições de sustentabilidade dos geoambientes,
regulamentação e fiscalização frente aos diversos ti-
mas ocasionando mudanças significativas na vida
pos de intervenção no território.
das populações mais vulneráveis.
A PNMA passa a trazer uma política ambiental
Essa lógica de estabelecimento do lucro acima da
macro no contexto brasileiro, que tem como principal
vida e da natureza nos leva a afirmar que a crise am-
objetivo a melhoria e a recuperação da qualidade am-
biental contemporânea é, também, uma crise social.
biental, atendendo a alguns princípios norteadores:
Uma crise ecológico-civilizatória que, de acordo com
I - ação governamental na manutenção do Aráoz (2017), faz-se necessário refletir sobre o mode-
equilíbrio ecológico, considerando o meio lo de sociedade baseado nas relações de desigualdade.
ambiente como um patrimônio público a ser O aumento da desigualdade ambiental, como des-
necessariamente assegurado e protegido, tendo
tacado por Acserald, Bezerra e Mello (2009), pode se
em vista o uso coletivo;
II - racionalização do uso do solo, do subsolo, da manifestar de várias formas, dentre elas, da proteção
água e do ar; desigual dos recursos ambientais. Os autores salien-
III - planejamento e fiscalização do uso dos tam que o processo de implementação de políticas
recursos ambientais;
ambientais passa a ser realizada de forma desigual
IV - proteção dos ecossistemas, com a
preservação de áreas representativas; quando a efetivação desta passa a ser estabelecida
V - controle e zoneamento das atividades por uma política de mercado, gerando problemas
potencial ou efetivamente poluidoras; ambientais desproporcionais em que os mais pobres,
VI - incentivos ao estudo e à pesquisa de as pessoas mais vulneráveis inseridas nos territórios,
tecnologias orientadas para o uso racional e a
passam a sofrer maior parte dos danos ambientais.
proteção dos recursos ambientais;
VII - acompanhamento do estado da qualidade No que condiz ao processo de desmonte das po-
ambiental; líticas ambientais brasileiras, entre 2019 e 2022, a

44 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Figura 1 ilustra bem o que os autores relatam no Todos esses processos negativos e defendidos

Insustentabilidade e flexibilização ambiental


livro O que é a Injustiça Ambiental, ao debater de pela gestão bolsonarista passaram a corroborar a
forma coerente a relação entre flexibilização das diminuição de políticas de gestão ambiental que
políticas ambientais e aumento da degradação e das deveriam ser colocadas como pautas prioritárias,
desigualdades sociais dos povos tradicionais. No minimizando políticas importantes como as de fis-
âmbito brasileiro, essa lógica de flexibilização trou- calização ambiental, bem como as verbas previstas
xe problemas ambientais latentes, como o aumento às políticas ambientais, acabando por contribuir
do processo de degradação em ambientes de grande com o que já vem sendo discutido em diversos en-
biodiversidade, como a região amazônica, que so- saios: não existe sustentabilidade ambiental dentro
freu um aumento degradacional expressivo nos úl- de plataformas neoliberais.
timos quatro anos. A degradação ambiental surge, portanto, não de
As informações abaixo mostram um retrato de um limite imposto pelas próprias potencialidades na-
como o processo de desestruturação das instituições turais da área, mas pela política de desestruturação e
públicas no governo bolsonarista intensificaram o legitimação do Estado, com o avanço de problemas
aumento da devastação ambiental no país. ambientais em áreas necessitadas de políticas de pre-
A desestruturação das instituições públicas desta- servação e conservação ambiental. Um exemplo do
cadas na Figura 1 é parte de uma geopolítica ambiental avanço da destituição de nossas florestas encontra-se
pautada na lógica de devastação ambiental brasileira. ilustrada na Figura 2.

Figura 1 - Relação entre flexibilização das leis ambientais e aumento


dos problemas ambientais e injustiça ambiental

Problemas relacionados às pautas ambientais


Falta de diplomacia
com instituições
internacionais
Flexibilização
Desmonte das instituições ambientais

Desestruturação Diminuição de verbas Redução de cargos


do IBAMA previstas às de chefia no ICMBIO
políticas ambientais

Diminuição do processo de Diminuição da execução


fiscalização ambiental de políticas ambientais

Aumento recorde Perda da


Aumento da degradação
no processo de biodiversidade
Consequências

das unidades de
desmatamento dos sistemas
conservação
na Amazônia ambientais

Aumento do Intensificação
Aumento do
conflito de das injustiças
agronegócio
terras no país ambientais

Fonte: Autora, 2021.

ANDES-SN n julho de 2023 45


A crise ecológica e socioambiental
Figura 2 - Taxa de desmatamento da Amazônia Legal

Área desmatada por km2


12,9 7,4 7 6,41 4,5 5,8 5 6,2 7,8 6,9 7,5 10,1 10,8 13

2021 2020 2019 2018 2017 2016 2015 2014 2013 2012 2011 2010 2009 2008

Fonte: Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), 2021.

O aumento da taxa de desmatamento na Amazô- áreas desmatadas em 2020. Somado a isso, diversas
nia Legal, nos últimos quatro anos, ocorre median- comunidades indígenas sofrem constantemente com
te uma série de ataques ao meio ambiente. Sendo a a prática ilegal de retirada de madeiras e processos
maior desde o ano de 2008, o gráfico traz um au- de invasões.
mento intenso da degradação ambiental, que se in- As informações corroboram a discussão realizada
tensifica de forma bastante expressiva em 2021, che- por Acserald, Bezerra e Mello (2009), em que os pro-
gando a 13 mil km² de área desmatada. Um aumento cessos sociais e políticos passam a ser estabelecidos
de 2.200 km², se comparado com o ano de 2020. nos territórios através de múltiplos processos priva-
Os retrocessos ambientais não param nesses da- dos de intervenção, relacionados à megaprojetos de
dos. De acordo com informações disponibilizadas âmbito desenvolvimentista, que acabam por atingir
pelo PRODES (2021), houve um avanço significativo comunidades tradicionais que vivem de atividades
do desmatamento em áreas indígenas na região ama- não capitalistas de apropriação da natureza, como
zônica, com um incremento parcial de 379,3 km² de pesca, artesanato e extrativismo.
Historicamente, atividades de grande magnitude
vêm sendo exercidas de forma insustentável e agres-
siva nos ambientes. A Figura 3 retrata o avanço das
atividades agropecuárias na região amazônica, com
um recorte espaço-temporal de 35 anos.
De acordo com o MapBioma (2020), entre os anos
de 1985 e 2019, as áreas florestais na região amazôni-
ca tiveram uma diminuição de 8,67%, enquanto que,
nas atividades agropecuárias, ocorreu um aumento
de 9,1%.

46 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Insustentabilidade e flexibilização ambiental
Figura 3 - Avanço de atividades agropecuárias na região amazônica

Agropecuária Agropecuária
(ha): 20,87% (ha): 25,73%

Ano: 1985 Ano: 2000

Área floresta Área floresta


(ha): 70,20% (ha): 60,41%
Ano: 2010 Ano: 2019

Agropecuária
(ha): 28,39% Agropecuária
(ha): 29,97%

Área floresta
(ha): 62,94%
Área floresta
(ha): 61,53%
Amazônia Legal

Fonte: Dados extraídos do MapBioma (2020). Elaboração: autora, 2021.

Conflitos ambientais e a luta por uma em torno dessa prerrogativa, infelizmente, possuem
plataforma política de conservação enorme distância no que condiz do escrito à prática.
dos recursos naturais no Brasil Não é uma discussão fácil, apesar de necessária.
O jogo estabelecido entre os mais diversos agentes
A crise ambiental, de acordo com Souza (2019), sociais utiliza-se de termos como “desenvolvimento
é fruto das relações capitalistas, sendo estas intensi- sustentável”, passando a estabelecer a lógica destrutiva
ficadas diretamente pelo capital privado através de do ambiente que vem ocorrendo ao longo dos anos. É
grandes empresas privadas e legitimadas pelo Estado, necessário enfatizar que esse processo não é recente.
desconstruindo o discurso de que conflitos ambien- De acordo com Marques (2015), a relação entre
tais surgem mediante processos naturais. crescimento econômico e degradação ambiental tem
Conforme estabelece o autor, essas relações agri- sido uma constante ao longo dos anos no Brasil. Em
dem os sistemas ambientais e as identidades socio- seu livro Capitalismo e Colapso Ambiental, o autor
espaciais ao flexibilizar leis ambientais e intensificar descreve como o território brasileiro tem sido um
a forma de uso e ocupação da terra. Muitos dos im- forte exemplo de retrocesso no âmbito de planeja-
pactos negativos ocorridos nos mais demasiados am- mento ambiental. Mostrando dados relacionados ao
bientes, independentemente da localização geográfi- ano de 2013, revela como a economia brasileira au-
ca no território, deveriam seguir normas ambientais mentou em 5,5% a intensidade de uso dos combustí-
específicas e, sobretudo, levar em consideração o que veis fósseis, sendo este o pior desempenho do mundo
estabelece a Constituição Federal de 1988. dentre os países avaliados pela edição de 2014 da Low
É válido destacar o artigo 225, que versa sobre o Carbon Economy Index (MARQUES, 2015).
direito da população a ter acesso a um meio ambiente Além disso, de acordo com o autor, a dependência
ecologicamente equilibrado, dando ao poder público relacionada ao agronegócio fez com que ocorresse
e ao coletivo o dever de preservar e conservar a base um aumento gradativo da degradação ambiental no
ecossistêmica. As relações sociais que se estabelecem Brasil. Tal questão pontua-se em problemas significa-

ANDES-SN n julho de 2023 47


A crise ecológica e socioambiental tivos nesses territórios: diminuição da capacidade de e Mello (2009). Os autores destacam os instrumentos
resiliência dos geoambientes, destituição da cober- ambientais que, em muitos casos, passam a ser mais
tura vegetal nativa, aumento de processos erosivos e rigidamente aplicados para atividades de pequeno
poluição dos recursos hídricos, além do aumento das porte, como agricultura, pesca e extrativismo, do que
desigualdades sociais, já que parte significativa des- quando se trata de agronegócio e de grandes corpo-
ses efeitos ambientais atinge as populações mais vul- rações industriais.
neráveis, agravando o quadro de injustiça ambiental A exemplo de não utilização de instrumentos
no país. ambientais cita-se a Lei de Crimes Ambientais
Outro fator, já destacado no presente texto, tem (Lei nº 9605, de 12 de fevereiro de 1998), que esta-
sido o constante avanço das pautas neoliberais no belece sanções penais e administrativas decorren-
campo ambiental, pegando como principal artifício a tes de atividades que ocasionem danos negativos
diminuição da ação do Estado no processo do plane- ao meio ambiente. Tal lei considera crime realizar
jamento ambiental, relegando a último plano ques- atividades de extração mineral sem autorização de
tões prioritárias, como o aumento efetivo do proces- órgão competente.
so de fiscalização de atividades socioeconômicas em Outro ponto em discussão tem sido a tentativa em
conjuntos paisagísticos que estão, ou deveriam estar, realizar mudanças no Código Florestal (Lei nº 12651,
sob proteção jurídica. de 25 de maio de 2012) através da Medida Provisó-
ria 867/2018, que estabelece o não cumprimento de
recomposição de Áreas de Preservação Ambiental
A agenda política da insustentabilidade (APPs) pelos ruralistas. Essa tentativa de desregu-
e desigualdade ambiental no Brasil lamentar leis tem passado a comprometer de forma
negativa a capacidade de resiliência dos componen-
A divulgação do histórico de impactos ambientais tes geoambientais. Neste mesmo caminho, ao mesmo
ocorridos ao longo dos anos tem mostrado que a ló- tempo em que ocorre tal desmonte da política am-
gica de utilização dos recursos naturais baseada nos biental brasileira, a utilização e o avanço dos agrotó-
pressupostos capitalistas tem corroborado o avanço xicos no Brasil batem novo recorde.
da degradação e dos conflitos ambientais no Brasil. No ano de 2020, de acordo com Tooge (2020), o
O projeto político de extrema direita vigente no governo liberou, no Diário Oficial, 405 registros de
Brasil não leva em conta, por exemplo, os inúmeros tipos de agrotóxicos no Brasil, o que ocasiona impac-
instrumentos ambientais que podem e devem ser uti- tos significativos nas condições de sustentabilidade
lizados no âmbito da gestão e planejamento ambien- dos sistemas ambientais e na qualidade de vida de
tal. Por vezes, o que está a acontecer é o emprego do parcela significativa da população. Essa decisão do
discurso “estamos fazendo o que deve ser feito para governo federal tem levado em consideração apenas
proteger o meio ambiente”, mas, na prática, o que é o jogo de relações políticas da bancada ruralista e das
utilizado é uma política de desestruturação das insti- grandes empresas que dominam a cadeia a produção
tuições públicas. de agrotóxicos.
Confirmando o descaso do governo bolsonarista, Nesse jogo geopolítico, coloca-se em xeque a obri-
a pesquisa realizada pela organização internacional gatoriedade a considerar os instrumentos jurídicos
Human Rights Watch (HRW) e divulgada por Carva- no âmbito do planejamento ambiental, sendo neces-
lho (2020) aponta que 800 multas aplicadas pelo Ins- sário não somente pensar, mas estabelecer e executar
tituto de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis políticas de controle ambiental, com o objetivo de
(IBAMA) estão paralisadas desde outubro de 2019, diminuir os impactos negativos ocasionados pelas
enquanto o avanço da degradação ambiental no país atividades socioeconômicas.
ocorre de maneira gradativa. A ausência da aplicabi- A Figura 4 traz a base da legislação ambiental bra-
lidade de legislações ambientais nessas situações pai- sileira, onde são elencados os principais instrumen-
ra sobre a discussão realizada por Acserald, Bezerra tos jurídicos, assim como a necessidade de estabele-

48 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Insustentabilidade e flexibilização ambiental
cer diretrizes ambientais que sigam a obrigatoriedade de tecnologia, voltados para a melhoria da
do papel das instituições, seja nas esferas federal, es- qualidade ambiental;
VI - a criação de reservas e estações ecológicas,
tadual ou municipal (CRISPIM, 2020), com ênfase
áreas de proteção ambiental e as de relevante
em um planejamento sustentável e integrado com interesse ecológico, pelo Poder Público Federal,
outras políticas, a exemplo da Política Nacional de Estadual e Municipal;
Meio Ambiente (PNMA), já citada anteriormente. VII - o sistema nacional de informações sobre o
meio ambiente; e
A figura ilustra o fluxograma com alguns incisos
VIII - o Cadastro Técnico Federal de Atividades
inseridos no artigo 9° da PNMA e que, caso estivessem e instrumentos de defesa ambiental.
sendo executados à luz do que deveria ser, levaria em
consideração a importância da conservação dos recur- De acordo com os registros, infelizmente, a po-
sos naturais e atendimento ao que se destaca no artigo lítica ambiental tem se dado de forma contrária ao
9° da PNMA, no que condiz aos seus instrumentos. que colocam as legislações específicas. Enquanto a
PNMA aponta a ampla necessidade de realizar pro-
Artigo 9° - São instrumentos da Política cessos de licenciamento ambiental como forma de
Nacional do Meio Ambiente:
minimizar futuros problemas ambientais no territó-
I - o estabelecimento de padrões de qualidade
ambiental; rio brasileiro, a gestão federal adota uma política que
II - o zoneamento ambiental; desestrutura a esfera pública. Como exemplos dessa
III - a avaliação de impactos ambientais; desestruturação podemos citar a demissão de gesto-
IV - o licenciamento e a revisão de atividades
res de instituições como o IBAMA e a aprovação de
efetiva ou potencialmente poluidoras;
V - os incentivos à produção e instalação projetos como o Projeto de Lei 191/2020, que regula-
de equipamento e a criação ou absorção riza as atividades de mineração em áreas indígenas.

Figura 4 - Base jurídica referente à legislação ambiental brasileira

Constituição federal (1988)

Política nacional de
meio ambiente
(Lei nº 6938/81)

Zoneamento Avaliação de
Licenciamento Resoluções do
SISNAMA impactos
ambiental ambiental CONAMA ambientais

Fonte: Informações tiradas da Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA). Elaboração: autora, 2021.

ANDES-SN n julho de 2023 49


A crise ecológica e socioambiental

Breves considerações: da e fora do contexto global de degradação dos recur-


a racionalidade ambiental sos naturais, sendo necessário considerar a estrutura
e os desafios para uma social que estabelece as relações entre as atividades
plataforma de conservação dos socioeconômicas e a intensidade dessas atividades
componentes naturais no Brasil sobre os elementos naturais. De acordo com Schons
(2012), essa não tem sido uma tarefa fácil, mas ne-
A reestruturação das políticas ambientais no Bra- cessária, visto que a questão ambiental perpassa pela
sil traz um processo político que visa, sobretudo, à relação sociedade e natureza e que é, sobretudo, esta-
utilização dos elementos naturais sem precedentes. belecida pelas relações sociais de produção.
Uma política que opera tendo como um de seus prin- Mediante discussões realizadas, o presente artigo
cipais objetivos a diminuição da ação do Estado no tece considerações, destacando a necessidade de es-
processo de regulamentação e fiscalização frente às tabelecer uma plataforma ambiental baseada em po-
atividades de grande impacto ambiental. líticas ambientais que reestruturem os órgãos suca-
O discurso ambiental e de desenvolvimento sus- teados, propondo a revogação de projetos de lei que
tentável no Brasil, de acordo com Leff (2010), firma- visem regularizar atividades de grande impacto em
-se consistentemente em interesses de conflitos de áreas frágeis; realizar diálogos com as comunidades
uso, partindo, principalmente, do processo de apro- quilombolas e indígenas acerca da forma de utiliza-
priação dos componentes por parte de quem detém o ção de atividades econômicas que sejam compatíveis
capital. Conforme o autor, para a realização e imple- com a potencialidade ambiental de seus territórios; e
mentação de políticas ambientais, é necessário conhe- elaborar pareceres ambientais técnicos e participati-
cer os efeitos dos processos econômicos sobre a natu- vos, assim como aprovar leis ambientais que fortale-
reza e avaliar as condições ideológicas e políticas e a çam a proteção e a preservação ambiental dos com-
forma como as instituições trabalham o planejamento ponentes ambientais.
e o gerenciamento no que diz respeito à preservação
e conservação dos recursos naturais de um território.
A forma de ocupação do território brasileiro, inten-
sificada nos últimos anos, tem limitado cada vez mais a
participação de sociedade civil. O aumento da proble-
mática ambiental não passa a ser apenas consequência
da flexibilização de leis e do sucateamento dos órgãos
públicos, mas também da ausência de participação
popular nas tomadas de decisão, trazendo à tona uma
gestão ambiental que não considera o processo histó-
rico de comunidades quilombolas e indígenas, parte
essencial do que consideramos ser o meio ambiente.
Pensar formas de ocupação dos territórios é desa-
fiar a plataforma ambiental que vem sendo defendida 1. 38º presidente do Brasil, de 1º de janeiro de 2019 a
1º de janeiro de 2023.
e implementada nos últimos anos. A questão ambien-
tal brasileira não pode ser analisada de maneira isola-

50 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Insustentabilidade e flexibilização ambiental
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referências
Acesso em: 15 fev. 2021.

ANDES-SN n julho de 2023 51


A crise ecológica e socioambiental

Estado e empresa na Amazônia


durante a Ditadura: saque de
recursos naturais e cumplicidade
contra povos originários1
Gilberto de Souza Marques
Professor na Universidade Federal do Pará (UFPA)
E-mail: gilsm@ufpa.br

Egydio Schwade
Casa da Cultura do Urubuí - AM
E-mail: egydio.schwade@gmail.com

Indira Rocha Marques


Professora na Universidade Federal do Pará (UFPA)
E-mail: indiramarquesgeo@gmail.com

Fernando Alves de Araújo


Professor na Universidade Federal do Pará (UFPA)
E-mail: mcsfernando@gmail.com

Rodolfo Costa Machado


E-mail: rod.cmachado@gmail.com

Resumo: Além de um breve relato da investigação sobre as violações de direitos humanos


cometidas pelo grupo empresarial Paranapanema contra povos originários da Amazônia, tam-
bém analisamos crimes cometidos por outras empresas privadas e órgãos do governo durante
a Ditadura Empresarial-Militar. As violações tinham como pano de fundo a apropriação dos
territórios e das riquezas existentes, configurando processos de acumulação por espoliação,
parte importante da dinâmica de acumulação ampliada de capital. A partir das comprovações
sobre a responsabilidade das empresas, a pesquisa objetiva dar fundamento a processos de
reparação, contribuindo para que a Ditadura não se repita nunca mais.

Palavras-chave: Ditadura. Violação de Direitos Humanos. Responsabilização. Acumulação por Espoliação.

52 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução
de de Empresas por Violações de Direitos durante a
Este artigo é parte das reflexões realizadas por Ditadura), em colaboração com o Ministério Público
uma equipe de pesquisa que investiga as violações de Federal (MPF). O objetivo é chegar a comprovações
direitos humanos cometidos pelo grupo empresarial da reponsabilidade dessas empresas nas violações e
Paranapanema durante a Ditadura Empresarial-Mi- exigir reparações.
litar iniciada em 1964. A pesquisa se associa a outras O ponto de partida dessa história foi o trabalho
12 equipes que investigam outras empresas que tam- de ex-sindicalistas da Volkswagen que investigaram
bém foram ativas colaboracionistas com o regime de a transnacional de origem alemã e comprovaram as
exceção, com tortura e assassinatos, por exemplo. Por violações cometidas por ela contra seus trabalhado-
isso, são responsáveis diretas por crimes. res e suas trabalhadoras. Disso resultou um Termo
As pesquisadas estão coordenadas pelo Centro de de Ajuste de Conduta (TAC), assinado pela empre-
Antropologia e Arquivologia Forense da Universi- sa junto ao MPF, ao Ministério Público do Trabalho
dade Federal de São Paulo (projeto Responsabilida- (MPT) e ao Ministério Público do Estado de São

ANDES-SN n julho de 2023 53


A crise ecológica e socioambiental Paulo (MPSP). A Volkswagen pagou uma multa (no- (2007). Mais que isso: na medida em que o funda-
minada como “doação”) e fez um reconhecimento mental é a acumulação, tudo pode ser tentado para
público de sua colaboração com a Ditadura. Como tal. Por isso, o capital pode tanto fazer desaparecer
resultado tem-se o estímulo às esquipes que condu- como recriar relações que aparentemente corres-
zem novas investigações sobre outras empresas pondem a modos de produção passados. É o caso
Para além da noção de acumulação por espolia- do trabalho em condições análogas à escravidão, tão
ção e outras categorias que sistematizaremos a seguir, comum na Amazônia. Podem até parecer relações
nessa temática específica de crimes cometidos duran- arcaicas de um passado distante do capitalismo, mas,
te a Ditadura, dialogamos com o conceito de justiça quando recriadas pelo capital, contêm novo sentido e
de transição para compreender melhor a adoção de conteúdo: a acumulação ampliada de capital. A ren-
mecanismos de reparação histórica das vítimas de tabilidade capitalista, nesses casos, decorre não da
violações sistemáticas dos direitos humanos. Entre inovação técnica, mas da sobre-exploração do tra-
outros materiais, citamos o relatório “Cumplicidade balhador. É como se processos de acumulação pri-
Empresarial e Responsabilidade Legal”, elaborado pela mitiva (ou originária) de capital continuassem a se
Comissão Internacional de Juristas e reproduzido no reproduzir na “modernidade” burguesa atual. O pe-
livro organizado por Ernesto Bohoslavsky e Horacio cuarista Maurício Pompeu Fraga foi flagrado usando
Verbitsky. Posteriormente, a discussão avançou no trabalhadores em condição análoga à escravidão. Seu
sentido da utilização da categoria “responsabilidade” nome foi incluído na lista suja do trabalho escravo
para as análises da atuação empresarial em violações do Ministério do Trabalho. Isso não impediu que ele
aos direitos humanos em substituição à “cumplicida- permanecesse vendendo seu gado para grandes redes
de”, uma vez que explicita o papel ativo do empresaria- frigoríficas. O trabalho, nessas condições, reduzia seu
do na repressão aos trabalhadores e às trabalhadoras. custo de produção, sem necessariamente investir em
capital constante (máquinas e tecnologia), e ele po-
dia colocar sua produção nas grandes cadeias mun-
Acumulação por espoliação: diais de proteína animal, tendo garantido o lucro tal
Estado a serviço do capital qual os concorrentes que investem em tecnologia.
A produtividade-rentabilidade do seu capital, nesse
No processo de acumulação ampliada de capi- caso, não decorre da inovação tecnológica, mas do
tal, onde o capital percorre seu ciclo D-M-D, se tem inverso: da recriação (ou manutenção) de relações
uma produção crescente de mercadorias e, por isso, de sobre-exploração.
uma apropriação cada vez maior da natureza. Em Desse modo, atividades agropecuárias com baixo
paralelo, a concorrência intercapitalista faz com que investimento em tecnologia conseguem reduzir seu
se aumente a composição orgânica de capital (c/v), custo de produção sobre-explorando trabalhadores
substituindo trabalhadores e trabalhadoras por má- e se apropriando de terra alheia, o que aumenta o
quinas (MARX, 1988). Esses processos são mediados desmatamento. Foi o que aconteceu a partir de 2013,
pela relação fundante do capitalismo: a relação capital acompanhando a crise político-econômica brasileira.
versus trabalho. O salário é o preço pago pela merca- Isso evidencia seu caráter predatório-especulativo:
doria força de trabalho, a única mercadoria que resta cresce em momentos de instabilidade ou de possibi-
ao proletariado, que são os “modernos” trabalhadores lidade de transição política. Grileiros, e toda a sua vo-
assalariados, depois que perderam a propriedade de racidade, abocanham terras públicas e de populações
seus meios de produção (MARX e ENGELS, 1987). tradicionais e territórios indígenas. Usurpam a terra,
Mas diferente do que possa parecer, o capital não derrubam ou queimam a floresta, vendem a madeira
representa uma via de mão única no sentido de sem- e forjam uma documentação, falsa ou supostamente
pre “modernizar” as relações sociais de produção. Ele legal (quando dão entrada em um pedido de regula-
caminha em meio a contradições e a um desenvol- rização, ainda que tenham conhecimento que seu ato
vimento desigual e combinado, como expôs Trotsky é criminoso). Com isso, vendem as “propriedades”

54 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


para pecuaristas (que as regularizam sob o argumen- outra palavra que não seja saque (MARQUES, 2019).

Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura


to de tê-las adquirido de boa-fé, mesmo sabendo que Ainda que os dados até aqui apresentados sejam
são ilegais). O gado dos “novos proprietários”, dessa de anos atuais, esses processos de saque de recursos
forma, pode entrar no circuito dos grandes frigorífi- naturais na Amazônia não são recentes. Eles acom-
cos (MARQUES, 2021; MARQUES, 2019). panham a chegada dos europeus nesse território que
Especulação fundiária é a antessala da expansão passou a ser chamado de Brasil. Isso inclui até mesmo,
bovina, que, por sua vez, contribui para a acumula- e de forma gritante, o período da Ditadura Empresa-
ção ampliada do capital vinculado às redes nacional rial-Militar, iniciada com o golpe de Estado de 1964.
e transnacional de processamento e comercialização
de proteína animal. Segundo o IBGE (Pesquisa Pecu-
ária Municipal), Amazônia Legal brasileira é a região Uma ditadura pouco nacionalista
com maior rebanho bovino do Brasil, com 96.713.916
cabeças em 2021 (43,06% do total nacional, afora bu- Muitos saudosistas e cúmplices ativos da Ditadu-
balinos e equinos). Assim, nesse ano, havia 3,34 bois ra instalada no Brasil reverenciam aqueles governos
para cada pessoa na região. como se fossem a melhor expressão do nacionalis-
Por essa e outras dinâmicas, a atual problemática mo brasileiro, da defesa da pátria. Para isso, exaltam
ambiental está diretamente vinculada à reprodução até mesmo a tortura e os torturadores. É o caso do
ampliada de capital. Ela é acompanhada da entropia ex-presidente Bolsonaro, que faz homenagens, por
social (ALTVATER, 1995): uma acelerada apropria- exemplo, ao coronel Brilhante Ustra, torturador dos
ção da natureza que amplia as contradições e degra- mais conhecidos.
dação da sociedade. A busca crescente pelo lucro faz Mas até que ponto a Ditadura foi nacionalista? No
com que o ritmo de apropriação da natureza se inten- caso da Amazônia, ela foi nada nacionalista. Foi en-
sifique muito em relação ao tempo que ela necessita treguista! E, para tal, passou por cima da população
para se recompor. Os dois ritmos tornam-se incom- local, em particular de povos originários. Vejamos
patíveis. Uma incompatibilidade, antes de tudo, bur- alguns exemplos.
guesa. A companhia Vale levou 23 anos para extrair Quando o golpe de Estado se consolidou, em
seu primeiro 1 bilhão de toneladas de ferro da provín- 1964, o primeiro presidente imposto, marechal Cas-
cia mineral de Carajás (sudeste do Pará). Somente em tello Branco, por meio de seu ministro do planeja-
2020, um único ano, ela extraiu de lá 192,3 milhões de mento Roberto Campos, convidou um dos maiores
toneladas do minério, destinado à exportação e que empresários estadunidenses da época, Daniel Keith
é isento de cobrança de ICMS (rebaixando o preço Ludwig, para vir investir no Brasil, que se tornara
do minério). Em ritmo crescente, em apenas cinco “um país seguro”. Ludwig comprou a Jari Ltda, do
anos, se extrai 1 bilhão de toneladas de ferro. O que prefeito de Almeirim-PA, empresa que havia grilado
se achava que levaria quatro séculos para se esgotar, 225.967,6 hectares de terra. O norte-americano con-
deve acontecer em, aproximadamente, meio século2. tinuou a grilagem reclamando como seus 3.700.000
Assim, constatamos o que David Harvey (2004), hectares no vale do rio Jari, entre o Pará e o Ama-
partindo de Marx (1988), nominou como acumu- pá. Lá implantou a Jari Florestal e Agropecuária
lação por espoliação e o que a Teoria Marxista da Ltda, mais propriamente conhecida como Projeto
Dependência definiu como dependência (MARINI, Jari. Nessa área ele tinha poder absoluto, incluindo
2005), que é a condição em que uma nação se alimen- uma polícia da empresa. Ninguém entrava sem au-
ta de parte do valor produzido por outra nação/re- torização nem podia construir casas sobre as terras
gião. Por meio de uma troca desigual, ocorre transfe- (em tese, da empresa). Por isso, só restava a margem
rência de valor da Amazônia para economias centrais. do rio e a população que para lá migrava construiu
A economia central se dinamiza e a região “periféri- uma das maiores favelas de palafitas da América
ca” vê aumentar suas contradições sociais e a própria Latina, o Beiradão, atual município de Laranjal do
dependência. Não conseguimos sintetizar isso com Jari-AP. Com apoio do BNDES, Ludwig tomou um

ANDES-SN n julho de 2023 55


A crise ecológica e socioambiental empréstimo de US$ 200 milhões para, entre outros conseguiu evitar que a ideia avançasse. Imaginem o
fins, derrubar a floresta e plantar pínus (um tipo de crime socioambiental que seria cometido caso a pro-
pinheiro) para produzir celulose. A fábrica e a usi- posta se efetivasse.
na de energia elétrica foram construídas no Japão e Também logo após golpe, o governo contratou
transportadas montadas até Jari, saindo do Pacífico as forças aéreas dos EUA para fazer o mapeamento
e cruzando os oceanos Índico e Atlântico. O proje- aerofotogramétrico do território brasileiro. Entre ou-
to encontrou muita dificuldade de rentabilidade e o tros resultados, isso objetivava estimar a ocorrência
estadunidense não estava conseguindo pagar as par- mineral. Na prática, informações privilegiadas foram
celas do empréstimo. Negociou, então, com os mili- colocadas à disposição de empresas estrangeiras,
tares a nacionalização do projeto. O governo assumiu principalmente estadunidenses. Como num pas-
parte da dívida, fez injeção de recursos do BNDES e se de mágica, diversas descobertas minerais foram
entregou o empreendimento para um grupo de em- sendo anunciadas. Entre elas, manganês em Marabá
presários brasileiros. À frente dele estava Augusto (em 1966, pela Union Carbide/EUA, e também em
Trajano de Azevedo Antunes, proprietário da mine- 1966, pela United Steel/EUA), ferro em Carajás (em
radora Icomi, que, desde 1957, exportava manganês 1967, pela United Steel/EUA), bauxita no rio Trom-
para os EUA. Formalmente, 49% do capital da Icomi betas (em 1967, pela Alcan/EUA), bauxita em Para-
pertencia à Bethlehem Steel, principal siderúrgica gominas (em 1971, pela Rio Tinto Zinco/Inglaterra-
estadunidense do pós-Segunda Guerra (MARQUES, -Austrália, e em 1972, pela CVRD/Brasil), caulim no
2009). Antunes, além de atuar como testa de ferro rio Jari (nos anos 1970, pelo grupo Ludwig), caulim
da norte-americana, havia sido um dos empresários no rio Capim-PA (em 1972-3, pela CPRM/Brasil),
articuladores do golpe de 1964 (DREIFUSS, 1981). cassiterita (nos anos 1970 no Amazonas, pelo grupo
Recebia agora sua recompensa. Paranapanema/Brasil, mas que teria capital japonês,
segundo informação verbal de Egydio Schwade) e
cassiterita no Mato Grosso e Rondônia (nos anos
1960-1970, pela Brascan/Canadá e pela Britsh Petro-
Mas diferente do que possa parecer, o capital não re- leum/Inglaterra).
presenta uma via de mão única no sentido de sempre
O caso do ferro foi o mais escandaloso, por conta
“modernizar” as relações sociais de produção. Ele ca-
da expressividade da província mineral descoberta
minha em meio a contradições e a um desenvolvimento
(ferro, cobre, ouro e dezenas de outros minérios).
desigual e combinado.
A maior reserva de ferro a céu aberto do planeta teria
sido encontrada acidentalmente, em um ato de sor-
te. Uma equipe a serviço da US Steel teria pousado
Outro projeto nada nacionalista foi a proposta numa clareira na serra da Arqueada, no primeiro dia
de formação dos grandes lagos amazônicos, elabo- de pesquisa (repetimos: primeiro dia), e ela era exa-
rada pelo Hudson Institute, dos EUA. Diversos rios tamente a mina. O próprio geólogo Breno dos Santos
seriam barrados, entre os quais o rio Amazonas. Os relatou isso:
vários imensos lagos estariam conectados e abertos
Há casos extremos [de sorte], como a descoberta
para a navegação internacional e suas margens fica-
do próprio minério de ferro de Carajás, que
riam entregues para a produção agropecuária, pro- ocorreu com o simples reconhecimento
vavelmente incluindo capital estrangeiro. A proposta geológico de uma clareira natural utilizada para
foi vista com entusiasmo por parte do governo, mas o pouso técnico de reabastecimento, durante o
traslado do helicóptero, e no primeiro dia de
encontrou oposição em setores nacionalistas, até
trabalho de um programa de prospecção de
mesmo em nacionalistas que apoiavam os militares. manganês (SANTOS, 1981, p. 23-24). Carajás
Destaca-se, entre outros, Arthur Cezar Ferreira Reis foi a última descoberta romântica da história da
(1960), que, junto a parcelas do Congresso Nacional, geologia (SANTOS apud VALE, 2017)

56 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Após a “descoberta”, a Vale (então estatal CVRD - A Paranapanema contra povos

Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura


Companhia Vale do Rio Doce) se associou à US Steel originários da Amazônia
para explorar Carajás, mas a norte-americana não
tinha interesse em colocar a mina em operação ime- A Paranapanema foi fundada em 1961 para atuar
diata por conta de outros projetos já em andamento na construção civil pesada e, quatro anos depois, en-
em outros lugares. A empresa brasileira teve que in- tra na mineração. Ela se aproveitou de sua vinculação
denizar a US Steel para poder assumir a extração da com os governos da Ditadura para receber favores do
província de Carajás. Estado, encomendas de obras públicas e se apropriar
A bauxita de Trombetas também merece men- de territórios para a extração mineral. Seu sócio-
ção. No início dos anos 1970, aumentavam as pre- -proprietário mais destacado foi Octávio Lacombe. A
ocupações com a poluição e cresciam movimentos empresa conseguiu que acionistas diretos ou indiretos
ambientalistas nos países centrais. Também ocorreu assumissem cargos importantes no Executivo federal.
o “choque do petróleo”, elevando os preços dos com- Foi o caso, por exemplo, de Eliezer Batista, presidente
bustíveis mundo afora. O Japão produzia muito alu- da estatal Vale do Rio Doce (1979-1986), e de Dias Lei-
mínio, mas não tinha nem a matéria-prima (bauxita) te, presidente da Vale (1967-1968) e ministro de Minas
nem fontes de energia elétrica que fossem alternati- e Energia (1969-1974). Ao mesmo tempo, colocou
vas aos combustíveis fósseis. Estimava-se que o con- vários militares de alta patente em cargos de direção.
sumo de energia elétrica era responsável por até 40%
dos custos da produção de alumínio. O país presen-
ciou uma forte expansão dos custos industriais des-
Logo após golpe, o governo contratou as forças aéreas
sa cadeia de produção. Por conta desses elementos, dos EUA para fazer o mapeamento aerofotogramétrico do
resolve transferir para a periferia essas etapas mais território brasileiro. Entre outros resultados, isso objetivava
custosas (econômica e ambiental). O governo brasi- estimar a ocorrência mineral. Na prática, informações
leiro aceita a proposta japonesa e monta as plantas privilegiadas foram colocadas à disposição de empresas
de produção de alumínio em Barcarena-PA. Para tal, estrangeiras, principalmente estadunidenses. Como num
constrói a Usina Hidrelétrica Tucuruí (com um terrí- passe de mágica, diversas descobertas minerais foram
vel dano socioambiental) para fornecer energia sub- sendo anunciadas.
sidiada de modo a tornar barato o preço do alumínio
que enviava ao Japão, atendendo aos interesses das
empresas japonesas. Até onde existe nacionalismo Em 1969, a Paranapanema adquire terras de gri-
brasileiro nesse ato? leiros no Mato Grosso, Rondônia e sul do Amazonas,
Por fim, a Superintendência de Desenvolvimento que continham reservas de cassiterita, minério usado
da Amazônia (Sudam) dispunha de recursos decor- na siderurgia e de onde se extrai o estanho. Consegue
rentes de incentivos fiscais. Eles eram usados para fi- até mesmo que o governo crie a Província Estanífe-
nanciar empreendimentos privados a fundo perdido, ra de Rondônia (englobando áreas dos três estados),
ou seja, que não precisavam devolver o dinheiro re- impedindo a lavra por garimpeiros (SANTOS, 2021).
cebido do governo. Inúmeras transnacionais, não ne- No sul do Amazonas, se aproveita da construção
cessariamente da agropecuária, receberam dinheiro da BR 230/Transamazônica (no trecho em que fora
da Sudam e terras gratuitas do governo: Coca-Cola, contratada como empreiteira) e constrói uma estra-
Brumasa (associação entre holandeses e a Icomi), da particular para ligar a rodovia federal à sua mina
Volkswagen, Pirelli, Goodyear, Alcan etc. Quanto de cassiterita. Constrói também uma pista de pouso
maior a parcela de terra, maior o volume de dinhei- particular e estruturas para a extração mineral. Nes-
ro que se poderia requerer da Sudam. Os militares sas obras, passou por cima de cemitérios, destruiu
entregavam dinheiro público, rios, floresta e outros traços culturais do povo Kagwahiva (em particular
recursos naturais em troca de degradação socioam- dos Kagwahiva-Tenharim) e utilizou trabalho de in-
biental e conflitos agrários. dígenas em condições análogas à escravidão.

ANDES-SN n julho de 2023 57


A crise ecológica e socioambiental Em relatório, do analista em antropologia do controlou áreas e rios até de fronteira internacional,
MPF, Walter Coutinho, constante do Procedimento decidindo quem poderia ou não transitar por lá. De
nº 113.000.000828/2013-87-MPF, um indígena Te- forma ilegal, tomava para si atribuições exclusivas
nharim chamado Felipe afirma que, depois de terem das forças armadas governamentais. Também violou
trabalhado nas obras da empreitada e terem contra- direitos trabalhistas, pois pagava o que achava que
ído doenças, deveria aos indígenas contratados, o que, em geral,
era inferior ao salário mínimo da época. Tukano e
Perguntaram a Pedro Camargo, um dos chefes Baniwa foram alguns povos que sofreram as viola-
da Paranapanema que coordenava os trabalhos
ções do grupo empresarial e de outras companhias,
da turma de índios Tenharim: “O que nós vamos
ganhar?” Ele respondeu que iria levá-los até caso da GoldAmazon (MARQUES et al, 2022).
Porto Velho, em Rondônia, mas acabou, ao final, Em 1967, o governo inicia a construção da
trazendo apenas ‘”uma caixa cheia de bonecas BR-174, ligando Manaus a Boa Vista. A estrada
para crianças”. Então, os Tenharim que tinham
cortava o território do povo Waimiri-Atroari (auto-
participado da construção da Transamazônica
“começaram a plantar roça novamente” nominado Kiña/Kinja). Vítimas de inúmeros mas-
(COUTINHO, 1987, fls. 70). sacres ao longo de sua história, os indígenas resis-
tiram à obra. Em 1969, o Exército (6º Batalhão de
Em longa extensão territorial que chega até à Co- Engenharia de Construção) assume a empreitada.
lômbia, no alto rio Negro, por meio de suas subsidi- Os Waimiri-Atroari foram reprimidos pelas forças
árias e de uma empresa paramilitar (Sacopã), a Para- do Estado, recorrendo a armas pesadas, helicópteros
napanema controlou garimpos de extração de ouro, e até napalm – o agente químico que os EUA usaram
reprimiu ribeirinhos e garimpeiros tradicionais e contra os vietnamitas.

Maloca dos
Waimiri-Atroari
incendiada Fonte: Casa da Cultura do Urubuí.

58 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


O fundador do Conselho Indigenista Missionário, ção de cassiterita que a rodovia tornaria possível. A

Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura


Egydio Schwade, morou junto aos Waimiri-Atroari chamada mina do Pitinga fica próxima da fronteira
e colheu seus depoimentos. Registrado no relatório com Roraima. Sem a rodovia federal, a extração não
final da Comissão Nacional da Verdade (CNV, Lei nº seria possível. Outra estrada federal (a Perimetral
12.528/2011), vinculada à Casa Civil da Presidência Norte, no trecho roraimense) também foi usada pela
da República, ele sintetiza um dos ataques: Paranapanema para se apropriar do território indí-
gena. Ela era a empreiteira responsável pela obra e, a
Kramna Mudî era uma aldeia Kiña que se
partir dela, terras Waimiri-Atroari foram invadidas,
localizava na margem oeste da BR-174, no baixo
rio Alalaú [...]. No segundo semestre de 1974, fazendo levantamento de ocorrência de minérios
Kramna Mudî acolhia o povo Kiña para sua (MARQUES et al, 2022)
festa tradicional. Já tinham chegado os visitantes A mina em território Waimiri-Atroari foi trans-
do Camanaú e do Baixo Alalaú. O pessoal das
ferida da estatal CPRM (Companhia de Pesquisa
aldeias do norte ainda estava a caminho. A festa
já estava começando, com muita gente reunida.
de Recursos Minerais) para a Paranapanema, em
Pelo meio-dia, um ronco de avião ou helicóptero 1977. Em 1981, o presidente João Figueiredo publica
se aproximou. O pessoal saiu da maloca para o decreto nº 86.630, anulando a criação da reserva
ver. A criançada estava toda no pátio para ver. indígena Waimiri-Atroari e retirando 526,8 hectares
O avião derramou um pó. Todos, menos um,
do território indígena, que seriam repassados para
foram atingidos e morreram [...]. Os alunos da
aldeia Yawará forneceram uma relação de 33 a Paranapanema. No ano seguinte, por meio da Mi-
parentes mortos nesse massacre (SCHWADE neração Taboca, ela inicia a instalação do empreen-
apud CEDVMJA, 2012, p. 15). dimento que foi o principal responsável por tornar
a empresa um dos maiores grupos econômicos do
A jornalista Memélia Moreira, em depoimento à
Brasil no decorrer dos anos 1980 (SANTOS, 2021;
Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” de
CEDVMJA, 2014).
São Paulo, também constatou a presença de napalm:

[...] quando a gente pegou um igapozinho para


chegar até a aldeia, que aí o rio estreita, eu vi que Atividades agropecuárias com baixo investimento em
tinha uma coisa não natural boiando, era assim, tecnologia conseguem reduzir seu custo de produção
um... Não era bem um tubo, mas parecia, porque
sobre-explorando trabalhadores e se apropriando de terra
era metade, que era de napalm. E eu vi a marca,
alheia, o que aumenta o desmatamento.
eu não sabia o que era napalm, eu conhecia a
marca de um dos fabricantes de napalm, era
Tordon. Eu vi que tinha Tordon, aí eu digo,
espera aí, napalm... Aí eu digo, encosta mais
Para conseguir a concessão da mina no Pitinga e
naquilo ali, vai mais devagar, tira o motor, eu
quero pegar aquele caco ali, era um caco. Peguei
a autorização de lavra, a Paranapanema usou de di-
e botei na minha mochila e vim-me embora, versas irregularidades: informações governamentais
não troquei uma palavra sobre o que eu achei, privilegiadas, corrupção, violência e fraudes carto-
porque em 1974 a gente já sabia que eles tinham gráfica e etnográfica.
usado napalm no Vale do Ribeira, na Guerrilha
Em conjunto com o Projeto Radam e a empresa
do Araguaia, e nos Nhambiquaras (MOREIRA:
2014, fls. 32). Aerofoto Cruzeiro (que produzia as cartas topográ-
ficas para o Radam), a Paranapanema afirma que o
Para além de ligar Manaus a Boa Vista, a BR-174 rio de referência do limite leste da delimitação legal
era fundamental para viabilizar a UHE Balbina, do território indígena não era o alto rio Uatumã, e
construída pela Eletronorte sobre o território Waimi- sim o rio Pitinga. O alto Uatumã ficaria mais a oeste.
ri-Atroari, com terrível dano socioambiental. Imenso Portanto, o limite deveria ser revisto, reduzindo a re-
lago se formou sobre a floresta e várias aldeias desa- serva. A diferença entre os dois rios era exatamente
pareceram. Mais do que Balbina (que fica em uma a área que a empresa requeria para extrair cassiterita
área mais próxima do início da estrada), era a extra- (MARQUES et al, 2022).

ANDES-SN n julho de 2023 59


A crise ecológica e socioambiental

Mapa fraude cartográfica Fonte: Marques et al, 2023.

Afora isso, a Paranapanema também alegou que a mente, procura apagar a existência de um povo em
área em questão não contava com a presença de in- seu território.
dígenas. Acontece que documentos e mapas da Funai João Figueiredo, tão somente, cumpriu os interes-
registram a presença de indígenas na área. Em 1968, ses da empresa, repassando a ela a porção territorial
antes de ser morto, o padre Giovani Calleri, em so- que queria saquear. Isso evidencia a conexão empre-
brevoo, fotografou nove malocas Waimiri-Atroari sa-Estado na Ditadura, que submetia até mesmo os
naquela região: na cachoeira Criminosa (rio Alalau) órgãos que deveriam proteger os indígenas, caso da
e proximidades. Podemos nominar isso como uma Funai. Quando tensionada, a Funai ficava ao lado da
fraude “etnográfica”, na medida em que, artificial- empresa, configurando o que Baines (1991) chamou
de indigenismo empresarial.
A violência cometida pela Sacopã/Mineração Ta-
boca, na região do Pitinga, foi relatada pelos Waimi-
ri-Atroari através de desenho e algumas palavras. Os
Tikirya, que seriam parentes próximos dos Waimiri-
-Atroari, teriam desaparecido: “Taboka ikame Ti-
kirya ytohpa. Apiyamyake? Apiyamyake?” (Taboca
chegou, Tikiria sumiu. Por quê? Por quê?).

Desenho Waimiri-Atroari relatando a


entrada da Mineração Taboca

Fonte: Acervo pessoal de Egydio Schwade/


Casa de Cultura do Urubuí.

60 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Trabalhadores e trabalhadoras não indígenas do Outros povos vitimados pela

Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura


grupo Paranapanema também foram vitimados pela associação empresa-Ditadura
empresa. Foi o que aconteceu com empregados/as da
Mineração Taboca no Pitinga. Assédio moral, tortura A lista de etnias amazônicas que foram vítimas
e outros tipos de violência física e psicológica foram dos crimes do Estado e/ou de empresas durante a Di-
métodos de disciplinamento de sua força de trabalho. tadura é enorme, incluindo, entre outras, Krenhaka-
rore (na rodovia Cuiabá-Santarém), Cinta-Larga e
No meu ponto de vista, a guarda patrimonial
Suruí (RO/MT), Avá-Canoeiro (rios Araguaia e To-
era muito rígida e tinha muita autonomia para
se impor aos trabalhadores. Tinha até cela cantins, então estado de Goiás), Kanê ou Beiços-de-
na guarita, para prender os trabalhadores, e, -Pau (rio Arinos-MT), Parakanã e Arara (PA), Kaxi-
às vezes, levavam os coitados para um canil, nawa e Madiha (AC) e Juma e Yanomami (AM/RR),
com cães pastores-alemães dentro. Eu mesmo
além daquelas já citadas até aqui. Oliveira (2008)
fiz o piso do canil. Soubemos de um caso em
que os guardas chegaram a tirar a unha de um afirma que a ocupação do norte mato-grossense pro-
cidadão. Ele precisava falar algo e, como não vocou o etnocídio das nações Kayabi, Tapayuna, Pa-
falou, arrancaram as unhas dele. Não tenho nará, Xavante, Carajás e Tapirapé, entre tantas outras.
ideia do que ele fez de errado para receber esta
Vale destacar a luta dos Txukaramei, a partir de 1971,
punição, mas não justifica eles tomarem tal
contra a construção-prolongamento da BR-080, que
atitude. Em 1986, presenciei um guarda-chefe
dando pernada na boca de outro guarda. Falei cortava o Parque Nacional do Xingu (MT). Em 1979,
para o guarda-chefe deixar o rapaz em paz, mas, a área em expansão foi desativada.
mesmo assim, eles pegaram e bateram no cabra. No Mato Grosso, empresas agropecuárias, em ge-
Nós reagimos e tiramos o pobre coitado das
ral usando dinheiro governamental, se apropriaram,
mãos dos outros guardas (EDMAR FONSECA
apud SILVAN, 2014, p. 117). por meio da violência, de terras dos Bororó, Karajá,
Xavante e Tapirapé. Souza (2015) identificou algumas:
Em 1990, trabalhadores e trabalhadoras do Pitin- Tapiraguai S/A, Bodoquena S/A e Xavantina S/A.
ga criaram um sindicato local para representá-los. Os Cinta Larga habitavam o noroeste do Mato
A diretoria da Taboca os levou até Manaus para ne- Grosso e o sudeste de Rondônia. Desde a década
gociar a pauta de reinvindicações com o superinten- 1950, conflitos com seringalistas, colonizadoras e
dente da mineradora. Chegando lá, foram informa- mineradoras se intensificaram. Acredita-se que 5 mil
dos de que a empresa não reconhecia o sindicato e Cinta Larga tenham sido mortos. Vejamos um caso,
que os diretores estavam demitidos e impedidos de que antecede um pouco o golpe de 1964, mas que ex-
retornar ao Pitinga. Os familiares que haviam fica- pressa o que viria com a Ditadura.
do na mina sofreram ameaça de despejo imediato,
caso os sindicalistas mantivessem as denúncias. O
restante da diretoria, que ficara no Pitinga, foi obri-
gada a assinar a carta de demissão sob a pressão da
guarda patrimonial (empresa Sequimina, que subs-
tituíra a Sacopã), que usou de espingardas, cacetetes
e cães bravos.

Guardas patrimoniais revistando e


retirando sindicalistas do Pitinga

Fonte: Jornal O Povo, 29/05/1990.

ANDES-SN n julho de 2023 61


A crise ecológica e socioambiental Envenenamento por alimentos misturados tório final, ela concluiu que 8.350 indígenas foram
com arsênico; aviões que atiravam brinquedos mortos entre 1964 e 1985 vítimas de massacres, usur-
contaminados com vírus da gripe, sarampo e
pação de territórios, remoção autoritária, tortura,
varíola; e assassinatos em emboscadas, nas quais
suas aldeias eram dinamitadas, ou por pistoleiros. maus-tratos e doenças infectocontagiosas: mais de
Muitas dessas violações de direitos humanos 14 índios Arara (PA), 72 Araweté (PA), 85 Xavante
sofridas pelo povo Cinta Larga foram cometidas de Marãiwatsédé (MT), 118 Parakanã (PA), 176 Pa-
com a conivência do governo federal, por meio do
nará (MT), 192 Xetá (PR), 354 Yanomami (AM/RR),
SPI, e depois da Funai, o que permitiu a atuação de
seringalistas, empresas de mineração, madeireiros 1.180 Tapayuna, 2.650 WaimiriAtroari (AM/RR) e
e garimpeiros na busca de ouro, cassiterita e 3.500 Cinta-Larga (RO) (MARQUES, 2019).
diamante no território dos Cinta Larga, omitindo- Os governos civis que sucederam a Ditadura Em-
se a tomar providências diante dos diversos presarial-Militar ainda mantiveram políticas muito
massacres que ocorreram na área indígena. As
equivocadas, para não dizer perversas. O Conselho
violações também foram consequência da atuação
direta do governo do estado do Mato Grosso, de Segurança Nacional criou, em 1985, na Nova
que fez concessões de terras para empresas de República, o Programa Calha Norte (PCN). Con-
colonização e para construção de hidrelétrica em trolado pelos militares, atuava na faixa da fronteira
áreas habitadas pelo povo Cinta Larga. A mais
amazônica da porção norte do rio Amazonas. Pos-
dramática das violações cometidas contra os
Cinta Larga ficou conhecida como Massacre do teriormente, a área de abrangência foi ampliada para
Paralelo 11. Em outubro de 1963, foi organizada toda a fronteira da região. O PCN cometeu violência
uma expedição, planejada por Francisco Amorim contra a população local, particularmente indígenas.
de Brito, encarregado da empresa Arruda,
Os Yanomami foram um dos alvos dos militares,
Junqueira e Cia. Ltda., a fim de verificar a existência
de minerais preciosos na região do rio Juruena. pois, junto a outras etnias, transitavam livremente
A expedição era comandada por Francisco Luís na fronteira do Brasil com Venezuela, Peru, Guiana
de Souza, pistoleiro mais conhecido como Chico e Colômbia. Eles representariam uma “ameaça” à se-
Luís. O massacre teve início quando um grupo gurança nacional, podendo ser tentados a criar um
Cinta Larga estava construindo sua maloca e
Estado independente3.
Ataíde Pereira dos Santos, pistoleiro profissional,
atirou em um indígena. Em seguida, Chico Luís Muitas etnias ocuparam as regiões dos rios Ara-
metralhou os índios que tentavam fugir. Os guaia-Tocantins e Xingu. Todas sofreram com a ocu-
pistoleiros ainda encontraram uma mulher e uma pação do colonizador. No início do século XVIII, os
criança Cinta Larga vivas. Chico Luís atirou na
Kayapó do Araguaia-Tocantins enfrentaram garim-
cabeça da criança, amarrou a mulher pelas pernas
de cabeça para baixo e, com um facão, cortou-a peiros na corrida do ouro de Goiás e Mato Grosso.
do púbis em direção à cabeça, quase partindo a Posteriormente, lutaram contra tropeiros que pro-
mulher ao meio (BRASIL/CNV, 2014, p. 237-238). curavam pastos naturais. No período da borracha,
foram os seringueiros que penetraram as terras
Para a construção da UHE de Tucuruí, os Pa- indígenas. O contato pacífico ou conflituoso com
rakanã foram transferidos para áreas diferentes por os brancos levou à redução dos Kayapó, inclusive
quatro ocasiões. O contato com os “brancos” duran- por conta das doenças transmitidas. Mesmo assim,
te a construção da Transamazônica significou um outras etnias que se deixaram dominar sofreram
desastre para esse povo: gripe e poliomielite foram ainda mais.
algumas das doenças que os abateram. Segundo Sou-
za (2015), em 1971, foi constatado que dois funcio- Durante as décadas de 40 e 50 [século XX], mais
nários da Funai haviam contaminado com sífilis 35 da metade dos índios contatados morreram.
índias da aldeia Parakanã do Lontra. Evidências cumulativas mostravam que,
comparados àqueles que foram “pacificados”,
A Comissão Nacional da Verdade investigou as
foram os grupos Kayapó mais hostis que
violações de direitos humanos durante da Ditadura. sobreviveram em maior número e com melhor
Ainda que incluindo apenas 10 etnias em seu rela- saúde (SCHMINK e WOOD, 2012, p. 339).

62 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Nos anos 1970, apesar das diferenças internas, a Considerações finais: conhecer a

Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura


interação e a organização entre os Kaiapó cresceram, história para que a Ditadura não
fato que incluía a presença em escolas comuns (com volte nunca mais
brancos e mestiços) e o contato com outras etnias e
entidades. “Até meados dos anos 70, os Kayapó ha- Conta a história que a liderança indígena Ajuri-
viam se tornado um dos grupos indígenas mais bem caba resistiu à colonização portuguesa no rio Negro
organizados” (SCHMINK e WOOD, 2012, p. 341). (século XVIII). Liderança do povo Manaó, ele co-
Recorriam à radiocomunicação e patrulhavam a área mandou outros povos contra a escravização e a vio-
do que seria sua reserva (Gorotire), em São Félix do lência do colonizador, impondo muitas derrotas aos
Xingu-PA. Em uma das ações contra o desmatamen- europeus. Mas a força bélica portuguesa foi reforçada
to, um grupo Kayapó matou 20 trabalhadores de uma a mando da metrópole. Ajuricaba foi preso. Acorren-
fazenda, incluindo mulheres e crianças. Isso aumen- tado, quando começava a ser transportado para Be-
tou a tensão e o sentimento anti-indígena na região. lém, ele conseguiu se jogar no rio, morrendo afogado
No final dos anos 1970, a descoberta de ouro nas (SOUZA, 2006). Mesmo acorrentado, ele preferiu
terras Kayapó trouxe mais tensão ainda, agora impul- morrer livre a viver prisioneiro.
sionadas pela invasão de garimpeiros. Contraditoria- Na atualidade, a apropriação dos territórios das
mente, a tensão deu mais visibilidade à causa indí- populações tradicionais responde ao interesse maior
gena, contribuindo para a efetivação legal das terras do capital: o lucro e, como desdobramento, a repro-
dos Kayapó. dução ampliada de capital. Fazem isso violando direi-
Desagregação social foi uma das consequências tos diversos e saqueando os recursos naturais, confi-
das políticas impostas aos povos originários brasilei- gurando a acumulação por espoliação e dependência.
ros no século XX. Etnias foram dizimadas, desterri- Universidades, pesquisadores, ativistas, entidades
torializadas, desagregadas ou mesmo forçadas a vive- representativas de movimentos sociais e dos povos
rem subordinadas a outras etnias adversárias. Era o originários ainda têm muito a fazer para evidenciar
que acontecia quando remanescentes, em pequenos os crimes cometidos por empresas durante a Ditadu-
grupos, de um povo eram obrigados a se deslocar ra Empresarial-Militar.
para aldeias de maior número, mas que, em alguns A investigação conduzida pela equipe autora deste
casos, mantinham animosidade (MARQUES, 2019). artigo tem como um dos objetivos tirar da invisibili-
Infelizmente, muitos brasileiros ainda continuam dade (ou apagamento) povos muito agredidos, mas
a ver os indígenas como selvagens. Acabamos, de al- que também têm uma história de muita resistência.
guma forma, assumindo e reproduzindo a visão do Objetiva-se, ademais, a responsabilização das em-
colonizador, do conquistador, de modo que procu- presas violadoras de direitos humanos e a reparação
ramos constantemente não sermos comparados aos histórica e financeira. Ainda que saibamos que ne-
indígenas, e sim ao europeu. nhuma quantia monetária pague as mortes cometi-
das (e outros crimes mais), a riqueza extraída desses
A colonialidade do pensamento e das práticas
territórios teve como contrapartida a disseminação
sobreviveu ao fim do colonialismo e, por
meio dela, continuamos a fazer um enorme da miséria e diversas formas de enfermidades, inclu-
esforço para sermos de “primeiro mundo”, para sive psicológicas. Nesses termos, o pagamento finan-
mostrarmos que não somos índio, tendo mais ceiro é parte das reparações. Mas reparação maior é
vergonha de nos parecermos como os povos
a visibilização do caso, a criminalização dos respon-
originários do que vergonha do etnocídio
que contra eles praticamos (HAESBAERT e sáveis (empresas, acionistas principais, executivos e
PORTO-GONÇALVES, 2010, p. 22). governantes) e o conhecimento pela sociedade bra-

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A crise ecológica e socioambiental sileira de um passado tão tenebroso, construído pela
parceria entre militares e empresários. Talvez assim
diminua a parcela daqueles que ainda se mostram
saudosistas com a Ditadura iniciada em 1964 – e que 1. Este artigo é resultado de uma pesquisa em
nunca mais deve se repetir. andamento e que conta com a participação de diversos/
as outros/as pesquisadores/as, que consideramos
Esse período não deve ser visto com saudosismo.
coautores/as deste texto: Stephen Grant Baines (UnB),
Os governos de então não foram nem isentos de cor- Adriana Gomes Santos (UFRR), Vitor Wagner Neto
rupção nem nacionalistas – ao contrário. Impulsiona- de Oliveira (UFMS), Maria Celma Borges (UFMS),
Tiago Maiká Schwade (UFAM), Anna Thereza Corrêa
ram processos de saque às nossas riquezas, impondo
Trindade (UFPA), Alex Rodrigues Machado (UFMS),
violações terríveis aos povos originários e outras po- Hygor Mesquita Faria (UFJF), André de Oliveira
pulações. Igualmente abominável é reverenciar quem Moraes e Gedson Thiago do Nascimento Borges
(UFPA).
cometeu tortura. O protótipo de ditador, Jair Bolso-
naro, reproduz e mantém viva a tortura cada vez que 2. A extração mineral na Amazônia gera lucros
reverencia um torturador. Por isso, ele é torturador e extraordinários decorrentes da ocorrência da renda
fundiária das minas, mais especificamente da renda
deve ser responsabilizado e criminalizado por isso.
diferencial I e renda diferencial II, expostas por Marx
O que ele e aqueles que buscam impor um pro- (1988). A facilidade de extração do mineral, seu
jeto fascista no Brasil não contavam é que tão gran- maior teor (quando comparado ao minério de outras
regiões) e as obras infraestruturais (em muitos casos
de quanto o ataque seria a resistência, exatamente
realizadas pelo Estado) contribuem para essa elevação
aquela que, mesmo em meio a tantas mortes, faz dos ganhos.
com que os povos originários continuem de pé. Em
3. Romero Jucá Filho, na condição de presidente da
Anapu-PA, lote 96, agricultores e agricultoras que ti-
Funai durante a Constituinte de 1988, criticou aquilo
veram suas casas queimadas por grileiros reconstru- que considerava direitos fundiários exagerados aos
íram-nas, porque, segundo eles, podem até queimar indígenas. A Funai, por meio de seu presidente, se
opunha aos interesses daqueles que originariamente
suas casas, mas não seus sonhos. Uma das lideran-
eram os senhores desse território nominado de Brasil
ças, Natalha Theófilo, afirma que “nosso medo de pelo colonizador.
morrer não é maior que nossa vontade de viver”. Lá,
em 2022, em pleno governo Bolsonaro, o Incra foi
obrigado a editar a portaria de criação do Assenta-
mento Irmã Dorothy Stang, uma imensa vitória para
os trabalhadores e igualmente imensa derrota para
os fascistas.

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Estado e empresa na Amazônia durante a Ditadura
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Luta pela terra no sul e
A crise ecológica e socioambiental

sudeste do Pará:
uma leitura histórica socioambiental
da Ditadura Empresarial-Militar1
Carol Matias Brasileiro
Doutoranda em Direito pelo PPGD da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
E-mail: carolmbrasileiro@gmail.com

Resumo: O presente artigo tem por objetivo articular aspectos ambientais e sociais no
processo de luta de classes estabelecido no sul e sudeste do Pará no período da Ditadu-
ra Empresarial-Militar (1964-1985), com foco nas relações de trabalho rural. Tomando por
amparo o método materialista histórico-dialético e se assentando em revisão bibliográfica
interdisciplinar, compreende-se as determinantes históricas que fizeram da região recordista
em massacres no campo na Nova República. Para tanto, apresenta-se as bases teóricas para
uma história socioambiental brasileira, enfatizando que a luta de classes e seus matizes
ecológicos conduzem a história. Promove-se análise do conceito de acumulação originária
permanente aplicado ao contexto rural brasileiro, pelo qual o violento processo de expansão
das fronteiras capitalistas atropela o modo de vida campesino pela despossessão. Assim,
investiga-se como se davam as relações de trabalho rural na região durante a Ditadura, pelas
abordagens demográfica (migração e ocupação), jurídica (Estatuto da Terra) e sociológica
(conflitos entre modos de produção distintos e experiências de resistência camponesa).

Palavras-chave: Luta de Classes. História Socioambiental. Acumulação Originária Permanente.


Sul e Sudeste do Pará. Conflitos no Campo.

Introdução expansão das fronteiras de acumulação em direção


à floresta amazônica e contra os povos tradicionais e
Desde o processo de redemocratização formal do camponeses da região (MICHELOTI, 2019). Ocorre
país, dado em 1985, as mesorregiões do sul e sudeste que esse processo expansivo e repressivo de ocupação
do Pará registraram 25 dos 57 massacres no campo e concentração de terras, e que hoje resulta em situ-
ocorridos no Brasil, de acordo com dados da Comis- ação socioambiental alarmante, guarda seu principal
são Pastoral da Terra, que alcançam cifras até o ano de período de solidificação estrutural no decorrer da Di-
2021 (CPT, 2021) . A intensidade no uso da violência
2
tadura Empresarial-Militar, sendo, depois, intensifica-
física pelo agromineronegócio nos conflitos pela ter- do por um modelo rentista-agroindustrial com forte
ra é a manifestação última do capital na busca pela presença do capital internacional (AFONSO, 2016).

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O trabalho se baseia no método materialista histó- ele, a formação desse bloco histórico foi responsável
rico e dialético e opera fundamentalmente a partir de pela inauguração de políticas neoliberais no decor-
revisão bibliográfica acerca do tema, investindo em rer da Ditadura, conforme as ambições capitalistas
perspectiva multidisciplinar, que envolve aspectos industriais, ao contrário do que afirma a literatura
históricos, sociológicos, jurídicos, políticos, geográ- hegemônica, que data tais políticas a partir da dé-
ficos e ambientais. cada de 1990.
Quanto ao recorte temporal do estudo, com lapso Nesse sentido, o trabalho tem por objetivo arti-
entre os anos de 1964 e 1985, partindo também de cular aspectos ambientais e sociais no processo de
abordagem materialista histórica do contexto brasi- luta de classes estabelecido no sul e sudeste do Pará
leiro, Gustavo Seferian (2021) caracteriza o golpe de no período da Ditadura Empresarial-Militar (1964-
1º de abril de 1964 como de natureza empresarial- 1985), com foco nas relações de trabalho rural, o que
-militar, o que se justifica pela indissociabilidade serviu de esteio aos diversos episódios de massacres
entre fins e meios do modelo político adotado até no campo no período posterior.
1985. Tomando como referência a luta de classes no Para tanto, o texto se organizará, após esta intro-
período pré-golpe, o autor sinaliza como os milita- dução, da seguinte forma: i) apresentaremos as bases
res estiveram alinhados ao empresariado nacional e reflexivas para uma história socioambiental no con-
imperialista em seus interesses contrarrevolucioná- texto brasileiro, enfatizando que a luta de classes e
rios, o que também abordaremos mais adiante. Para seus matizes ecológicos são o fio condutor da histó-

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A crise ecológica e socioambiental ria; ii) promoveremos uma análise teórica do concei- inteira” ou na “destruição das duas classes em conflito”.
to de acumulação originária permanente aplicado ao Na sociedade capitalista, este conflito direto é pro-
contexto rural brasileiro, pelo qual o violento proces- tagonizado pela burguesia e o proletariado – com-
so de expansão das fronteiras capitalistas atropela o posta, desde marcos objetivos, pelo componente
modo de vida campesino por meio da despossessão; social sujeito ao assalariamento –, muito embora os
iii) para então revisarmos como se davam as relações interesses da burguesia também se antagonizem com
de trabalho no sul e sudeste do Pará durante a Di- outras parcelas da população, bem como com classes
tadura Empresarial-Militar, desde os movimentos trabalhadoras diversas. É o caso último do campesi-
migratórios e ocupação na região transamazônica, nato, que, em suas diversas frações – inclusive, em
passando pelos modos de lida com a terra no Polígo- parte, sujeitas à proletarização –, encontra na sanha
no dos Castanhais, a expansão do agronegócio e da expansiva do capital de mercadorização de tudo um
mineração, os primeiros episódios de massacres na elemento estrutural que interdita a perpetuação de
Amazônia pelas práticas da pistolagem, a organização modos de vida diversos, pautados na lida direta posta
da Guerrilha do Araguaia, até os modos de resistência pela posse da terra.
das Ligas Camponesas e do Movimento dos Trabalha- A compreensão que dimana da obra dos funda-
dores Rurais Sem Terra (MST) na região; iv) isso para dores do materialismo histórico e dialético, de que
que possamos tecer algumas considerações finais. a história se expressa na luta de classes, merece, a
partir de anseios políticos específicos, preocupações
particulares daqueles e daquelas que se alinham com
essa matriz teórica e prática, sobretudo ante o reco-
Perceber a história a partir do referencial dos vencidos e
vencidas nos encaminha a uma compreensão holística e nhecimento das necessárias relações de poder mani-
dialeticamente conectada com a proposta benjaminiana. festas em toda sociedade de classes.
Se os vencedores de agora são herdeiros dos de outrora, De acordo com Walter Benjamin (1994, p. 223-
nada nos impede – e muito pelo contrário, muito há que 225), em suas Teses sobre o Conceito de História, esse
nos leve – de nos assumir enquanto tributários dos venci- compromisso político posto aos que assumem o ma-
dos e vencidas de todos os tempos. terialismo se coloca no papel de “escovar a história a
contrapelo”. Ou seja, coloca-se na busca de apreender
a história em direção contrária à narrativa triunfa-
lista dos vencedores da ocasião, legatários dos que já
História socioambiental venceram um dia. Para o autor, a postura política do
e luta de classes materialista histórico deve se comprometer com os
vencidos e vencidas da história e, para tanto, portar-
Pretendemos, como incursão inicial, articular -se de modo contrário à tempestade do linear pro-
dois campos de formulação aparentemente díspares, gresso, contraface da barbárie, que homogeniza e
invariavelmente trabalhados de forma escandida, universaliza o curso dos acontecimentos.
mas que, como demonstraremos, guardam uma im- Perceber a história a partir do referencial dos ven-
bricação necessária, sobretudo como temos em conta cidos e vencidas nos encaminha a uma compreensão
a compreensão da realidade capitalista: a história so- holística e dialeticamente conectada com a proposta
cioambiental e a luta de classes. benjaminiana. Se os vencedores de agora são herdei-
Para Marx e Engels (2010, p. 40), no Manifesto ros dos de outrora, nada nos impede – e muito pelo
Comunista, a luta de classes se expressa nos conflitos contrário, muito há que nos leve – de nos assumir
econômicos, políticos e ideológicos entre classes cujos enquanto tributários dos vencidos e vencidas de to-
interesses são antagônicos e inconciliáveis, um emba- dos os tempos.
te entre oprimidos e opressores, que, em suas diversas Essa compreensão nos move a colocar na ordem
conformações – ora evidentes, ora escamoteados –, re- do dia e prestar tributo a toda forma de vida que su-
sultou na “transformação revolucionária da sociedade cumbiu às ganas afirmativas coloniais e imperialistas,

68 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


que, nos diversos desenhos do desenvolvimento do relacionamento entre naturezas humana e não huma-

Luta pela terra no sul e sudeste do Pará


modo de produção capitalista, sobretudo em nossa na são disputados pela burguesia e pelo proletariado,
situação dependente e periférica latino-americana, bem como pelas demais classes sociais que compõem
fizeram sucumbir modos de vida, corpos humanos e a sociedade capitalista. Por isso, a concepção de his-
riquezas naturais. tória comprometida com a tradição dos oprimidos e
Desse modo, seja pela tônica de apropriação, seja oprimidas, bem como com a relação entre economia
pelos horizontes de acumulação, concentração e des- humana e economia da natureza, deve ser uma histó-
truição de riquezas naturais e do trabalho (MARX, ria ambiental, ou socioambiental, como preferirmos
2012), o processo da luta de classes e a afirmação ca- nos referir. Segundo James O’Connor (1997),
pitalista, em geral, vitima tanto aqueles e aquelas que
trabalham no cerne desta ordem, como também ou- A história ambiental é o estudo de como a
agência humana molda e modifica a “natureza”
tras formas de vida – humanas e não humanas – que
e constrói ambientes e configurações espaciais,
acabam sendo sacrificadas sob as rodas do mercado. de como ambientes naturais e culturais
Em caminho convergente a essa perspectiva está permitem ou restringem a atividade material
a abordagem trazida por Razmig Keucheyan (2018) humana e, inversamente, de como a atividade
humana permite e restringe o desenvolvimento
de que a natureza é um campo de batalha, ou seja,
e a “economia da natureza” (O’CONNOR,
um espaço onde a luta de classes se trava, e por ela 1997, p. 9)3.
é diretamente impactada. O autor afirma que, se o
capital é uma relação social, esta relação integra a na- No caso brasileiro, para Paulo Henrique Martinez
tureza à sua lógica. Logo, a natureza – humana (força (2005), a história ambiental aponta para os sentidos
de trabalho) e não humana (terra e matérias-primas) da devastação. Segundo o autor, na divisão interna-
– é o objeto de exploração capitalista por excelência. cional do trabalho, durante o sistema colonial portu-
Nesse sentido, de uma análise da luta de classes que guês, nos coube o papel de pilhagem sobre o mundo
não aparte natureza e sociedade, ao contrário do que natural em atividades extrativas e agropecuárias que
a ideologia burguesa pretende, decorre o fato de que se valiam da escravização da força de trabalho negra
a exploração da natureza não humana seja propor- e eram direcionadas ao processo de acumulação pri-
cional a das classes trabalhadoras (KEUCHEYAN, mitiva de capitais na Europa. Esse papel, que ainda
2018, p. 19-84). nos cabe, após a independência da administração co-
Em suas profundas formulações sobre as injusti- lonial portuguesa, passou a ser exercido sob outras
ças ambientais, Keucheyan trata fundamentalmente formas de interferência interna, principalmente pelo
do racismo ambiental na abordagem sobre a espacia- imperialismo inglês e, depois, estadunidense.
lização tanto dos conflitos socioambientais quanto Não nos parece assim descabidas as percepções
das diferenças raciais em suas imbricações de classe. de que o processo de afirmação do capital – donde
Ele demonstra as formas de produção assimétrica do a realidade brasileira sob o neofascismo é exemplo
espaço: enquanto os brancos e europeus têm acesso gritante – caminha pari passu sob todas as condições
privilegiado às propriedades naturais básicas (água e de vida das classes trabalhadoras, afrontando direi-
fontes energéticas) e às comodidades naturais (lazer, tos sociais, o meio ambiente e os tímidos saldos de-
qualidade de vida e excessos), os negros e latinos es- mocráticos conquistados na última quadra histórica
tão mais expostos em seus territórios pauperizados como parte de um movimento articulado e comum
aos riscos ambientais provocados pelo desenvol- de reordenação capitalista (SEFERIAN, 2020).
vimento capitalista – problemas com saneamento, Essa processualidade, marcada fortemente pela
lixo, intoxicações, insalubridade no trabalho, gen- tônica de apropriação sem peias, se engendra pelo
trificação dos espaços e desastres ambientais (KEU- processo de acumulação originária permanente. So-
CHEYAN, 2018, p. 19-84). bre sua caracterização, bem como seus impactos na
Assim, as desigualdades de classe inerentes ao sis- luta de classes no campo nos países periféricos, trata-
tema capitalista são também ecológicas. Os modos de remos na próxima seção.

ANDES-SN n julho de 2023 69


A crise ecológica e socioambiental Acumulação originária permanente as mulheres, retirando-lhes suas funções no espaço
e a despossessão do campesinato público comunal, despojando-as de seus saberes e de
sua autonomia sobre seus próprios corpos, levando-
Conhecida como processo de transição do feu- -as a cumprir quase que exclusivamente o papel re-
dalismo para o capitalismo na experiência clássica produtivo da força de trabalho, processo este violen-
inglesa, a “assim chamada acumulação primitiva” tamente imposto e que contou com forte resistência
foi trabalhada por Karl Marx (2013, p. 339) no cap. daquelas mulheres. Nesse ínterim, Federici reclama
24 do livro I de O Capital, quando da sua crítica aos que o uso da violência é algo permanente na histó-
pensadores da economia política clássica acerca da ria capitalista, essencial à acumulação e à expansão
explanação das origens sócio-históricas do capital. do capital, não se limitando ao momento primitivo
Esses assumiam, qual ao “pecado original” teológi- transicional entre diferentes modos de produção,
co, o irromper da acumulação capitalista, quando, destacando a contínua violência contra as mulheres.
em verdade, Marx demonstrará tratar-se de processo A formulação de Federici, que em muito nos ins-
bastante diverso disso. trumenta ante a necessária apreensão do processo
Para que o modo de produção capitalista se de- com base na perspectiva de gênero, não guarda ine-
senrole, segundo Marx (2013, p. 340), é preciso que ditismo no que tange à crítica marxiana. Do mesmo
a sociedade conte, de um lado, com uma massa de modo, Rosa Luxemburgo desafia as leituras que hege-
despossuídos, trabalhadores duplamente livres – li- monicamente foram feitas da obra marxiana, próprias
vres dos meios de produção e livres para venderem das vulgadas dominantes nas II e III Internacionais,
sua força de trabalho –, e, de outro, com um grupo de quanto a uma concepção paralisada de acumulação
possuidores de dinheiro, meios de produção e meios primitiva, situando-a de forma datada enquanto pro-
de subsistência, disposto a comprar força de trabalho cesso universal, fatos esses que foram ainda em vida
para gerar mais-valor. O processo da acumulação pri- objeto de severas críticas por Marx (2013).
mitiva pode ser sintetizado como o da formação des- Para a revolucionária polonesa, a acumulação
sas duas parcelas da população, dessas duas classes. originária prossegue inclusive nos dias de hoje e,
Nisso, “a expropriação da base fundiária do pro- nas sociedades colonizadas, se traduz por uma per-
dutor rural, do camponês, forma a base de todo o manente luta entre a afirmação das fronteiras do ca-
processo” (MARX, 2013, p. 343). Seguindo o exem- pital e pela sobrevivência de modos de vida que se
plo da Inglaterra, a usurpação das terras, por meio antepõe à violência extraeconômica constitutiva da
da violência e de sucessivos golpes legais, teve o pa- lógica de apropriação generalizada. A violência é,
pel de criar uma massa de desalentados, em extrema pois, uma constante do sistema capitalista para fins
vulnerabilidade e insegurança, posto que interdita- expansivos frente a economias não-capitalistas, onde
dos quanto ao exercício de seus modos de vida, ao o colonialismo e o imperialismo colocam-se como
passo em que foram criadas as bases materiais para manifestações várias de um mesmo ímpeto. Contra
a maturação da propriedade fundiária e a tendencial a visão liberal de que o mercado passaria a funcionar
concentração de terra como um de seus derivativos. de modo pacífico após certo estágio de desenvolvi-
Também sobre o processo de acumulação primiti- mento do capitalismo, a autora defende que
va na experiência europeia, Silvia Federici (2017), em
assimilação crítica da perspectiva marxiana, lança Como as organizações sociais primitivas dos
nativos constituem os baluartes na defesa dessas
enfoques para a compreensão desse processo, partin-
sociedades, bem como as bases materiais de sua
do da importância da caça às bruxas, da despossessão subsistência, o capital serviu-se, de preferência,
e exploração dos corpos femininos para a formação do método da destruição e da aniquilação
do patriarcado capitalista. sistemáticas e planejadas dessas organizações
sociais não-capitalistas, com as quais entra
Daí que para além dos fenômenos descritos por
em choque por força da expansão por ele
Marx, Federici inclui a afirmação de contornos parti- pretendida [...]. Cada nova expansão colonial
culares da divisão sexual do trabalho, que domestica se faz acompanhar, naturalmente, de uma

70 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


guerra encarniçada dessas, do capital contra vida que ali se instalavam, a depredação da natureza

Luta pela terra no sul e sudeste do Pará


as relações econômico-sociais, assim como não humana e o silenciamento daqueles que resistem
pela desapropriação violenta de seus meios de
e lutam pelo acesso à terra (MICHELOTTI, 2019), o
produção e pelo roubo de sua força de trabalho
(LUXEMBURGO, 1985, p. 32-33). que coincide com os modos de atuação do capital im-
perialista nas realidades periféricas interpretados por
Assim, pela chave de leitura de Rosa Luxembur- Luxemburgo. Trata-se de antigo papel da economia
go, temos que o processo de acumulação originária brasileira, que se atualiza pela expansão e reestrutu-
é permanente na história do capitalismo, não estando ração do agronegócio fomentado pelo capital estran-
limitado ao período que lhe antecede. Ademais, tem- geiro em direção à floresta amazônica, com a criação
-se que “o capital não conhece outra solução que não de novas áreas produtivas, e pela intensificação da
a violência” (LUXEMBURGO, 1985, p. 37), expressão mineração local.
que marca a acumulação originária e que é a ferra- A solução do capital para se expandir é sempre a vio-
menta utilizada a cada momento em que se expandem lência. Na seção seguinte, tomando em profundidade o
as fronteiras do capital, em especial diante de organi- tema aberto no parágrafo supra, analisaremos como se
zações sociais não-capitalistas e para a superação de transformaram as relações de trabalho e de lida com a
suas crises cíclicas. A expropriação de terras de cam- terra durante a Ditadura Empresarial-Militar.
poneses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos ama-
zônicos por meio da violência é inquestionavelmente
uma manifestação da expansão do capital – hoje sob Luta pela terra no sul e
a batuta imperialista –, como aborda Luxemburgo. sudeste do Pará durante
Desse modo, na experiência brasileira, os sentidos a Ditadura Empresarial-Militar
da colonização (PRADO JÚNIOR, 1961), para além
de possibilitar a acumulação primitiva de capitais na A Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985) (SE-
Europa, são os de constituir a periferia de um siste- FERIAN, 2021) representa um marco de recrudesci-
ma capitalista global. Ao buscar o fio condutor entre mento das forças burguesas e oligárquicas brasileiras
passado e presente e refutando modelos etapistas de em sua expressão mais repressiva e conservadora.
se compreender a história, Caio Prado Júnior trata da As oligarquias rurais, que tiveram seu poder político
transição entre sistemas colonial e capitalista no Brasil decaído durante o desenvolvimento industrial cres-
como um feito menos disruptivo do que aquele apre- cente desde a década de 1930, ressurgem como uma
sentado por Marx no exemplo clássico inglês. A colo- das principais frações das classes dominantes que
nização brasileira se destaca pelo seu espírito expan- sustentaram o golpe e conduziram a repressão dita-
sionista comercial, sendo uma dentre as “colônias de torial. No período anterior, tais oligarquias viram-se
exploração” e, pelo sistema escravista, definidor da es- impactadas pela ebulição popular no campo – com a
trutura racista da sociedade (PRADO JÚNIOR, 1961). presença forte das Ligas Camponesas – e na cidade
Ou seja, o capitalismo no Brasil ainda apresenta – em que a marcante posição do Partido Comunista
fortes traços típicos do sistema colonial. A realida- Brasileiro, em que pese seus desacertos estratégicos,
de contemporânea das regiões sul e sudeste do Pará era evidente –, que levou João Goulart a propor suas
remonta esse processo que, por meio da violência, reformas de base (PIETRO, 2017, p. 3-4).
reafirma a posição colonial do Brasil perante a divi- Segundo Gustavo Prieto (2017, p. 4), associadas
são internacional do trabalho, enquanto fornecedor com as elites militares, as oligarquias rurais, por sua
de commodities pela intensa exploração da força de capilaridade nos interiores do país, tiveram o impor-
trabalho e da natureza, ainda que por meio de novos tante papel de impulsionar o rearranjo ideológico
instrumentos flexíveis e ultrafinanceirizados, típicos ditatorial, pregando uma “ideologia capitalista da
desses tempos. propriedade privada”, o “conservadorismo político”,
Para Fernando Michelotti, a produção de commo- o “antirreformismo social” e o “anticomunismo”; em
dities tem por pressuposto a destruição dos modos de resumo, uma “liberdade de ser desigual”.

ANDES-SN n julho de 2023 71


A crise ecológica e socioambiental Criadas em meados da década de 1940 no Nor- tras manobras para a instituição de laranjas na frag-
deste, as Ligas Camponesas proliferaram-se por todo mentação – meramente formal – dos latifúndios. O
o Brasil e resistiram bravamente contra a expropria- Estatuto da Terra foi, assim, um instrumento para o
ção de terras e o assalariamento, bem como pela re- aumento da concentração de terras no Brasil, respos-
forma agrária, protagonizando as lutas no decorrer ta imediata da Ditadura aos avanços dos projetos de
da Ditadura, e antes dela, mesmo que a duras penas. reforma agrária que lhe antecederam.
Foi um movimento que se balizou radicalmente por Além disso, o governo ditatorial despendia esfor-
questões estratégicas voltadas à condição campesina ços para executar o projeto de colonização da Ama-
no Brasil, em sua pluralidade de identidades sociais zônia Legal. De um lado, tal se deu pela promoção
e políticas (BASTOS, 1984), e que, muito embora pela ditadura Médici do ideário de uma “terra sem
assentando-se em bases populares, guardou como homens na Amazônia para homens sem terra do
principal liderança o advogado e deputado Francisco Nordeste” como forma de atrair a força de trabalho
Julião. Não é de se espantar que dentre as primeiras para a região, com a ilusão de que teriam acesso à
medidas da violenta repressão ditatorial estiveram a terra. De outro, instituiu-se um modelo de grilagem
contenção e a criminalização de movimentos sociais, de terras como forma de apropriação fraudulenta e
como as Ligas Camponesas, que vinham avançan- a abertura indiscriminada de transferência de terras
do em sua articulação para um projeto de reforma devolutas para o capital estrangeiro, coordenado pelo
agrária radical, colocando-as como páreas do novo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
projeto de sociedade. No curso do regime ditatorial, (INCRA), recém-criado com esse propósito (PRIE-
as principais lideranças das Ligas foram assassinadas, TO, 2017, p. 10-11).
exiladas, presas e desaparecidas, o que, pouco a pou- Com a construção da rodovia Transamazônica,
co, levou ao fim do movimento. que ligava o sul e sudeste do Pará ao Nordeste, foi es-
Após o golpe, pôs-se em prática um plano de mo- timulada a chegada de trabalhadores e trabalhadoras
dernização capitalista e de desenvolvimento alinha- advindos à região de Marabá e nos entornos do Rio
do aos EUA, com a abertura de mercado e o combate Araguaia (PEREIRA, 2013, p. 40). Segundo Patrícia
ao modelo cubano que ameaçava se proliferar por Sposito Mechi, sobre as mudanças demográficas nes-
toda a América Latina. Logo em 1964, tratou-se de se contexto,
interromper o projeto de reforma agrária em curso,
A população da região se formou, portanto,
substituindo-o pelo Estatuto da Terra, que desviou a
através da migração de trabalhadores que
luta contra o latifúndio por meio do apaziguamen- se deslocaram, expulsos pelo avanço do
to jurídico das relações com a defesa da propriedade latifúndio, pelas modificações introduzidas pelo
privada da terra. capitalismo no campo, buscando novas terras
para continuar a exercer as formas tradicionais
De acordo com Prieto (2017, p. 7), pelas orienta-
de agricultura com as quais estão habituados
ções estadunidenses, alguma resposta ao “perigo de (MECHI, 2011, p. 3).
novas revoluções” haveria de ser dada. Assim, Cas-
tello Branco se referia ao Estatuto como uma op- Os posseiros, que há muito desenvolviam agri-
ção “democrática” de reforma agrária, quando, na cultura familiar, pesca, caça e atividades extrativistas
realidade, ele impediu sua realização. O Estatuto da como modos de subsistência e sem possuírem o tí-
Terra classificou as propriedades rurais como mini- tulo de propriedade da terra na região, passaram a
fúndios, latifúndios e empresas rurais, sendo que os ser expulsos por grileiros, fazendeiros e minerado-
minifúndios eram considerados antiprodutivos e de- res na década de 1970, conforme aponta Airton dos
veriam ser remembrados. Já os latifúndios deveriam Reis Pereira (2013). Também sofreram esse processo
ser transformados em empresas rurais, com gran- violento de expulsão os migrantes que chegavam do
des incentivos fiscais e disponibilização abundante Nordeste e de outras partes do Brasil e que ocupavam
de crédito por parte do governo, isso para além da terras improdutivas e sem dono. Estava instaurado o
condescendência quanto à operação de fraudes e ou- conflito entre dois regimes de lida com a terra, que

72 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


perfazem afirmações de interesses de classe em luta dades Eclesiais de Base e da CPT (MICHELOTTI,

Luta pela terra no sul e sudeste do Pará


diametralmente distintos: “a posse, direito gerado 2019, p. 114-117).
pelo trabalho” e “a propriedade privada, direito gera- Na mediação dos interesses assassinos dos gran-
do pela compra, pelo documento” (PEREIRA, 2013, des proprietários de terra e dos investidores inter-
p. 33). Esta última se valia da fraude e da corrupção, nacionais e do Centro-Sul do Brasil, quando não
em aversão radical às perspectivas de um direito de agenciados diretamente pelo aparelho estatal, quase
existência (BENSAÏD, 1989, 2007). sempre se encontra um terceiro, o executor pistolei-
No entanto, a expulsão dos posseiros não se deu ro, matador profissional, que evidencia as camadas
sem a resistência dos trabalhadores da região. Na ex- de eclipsamento postas pelo capital na prática de seus
tensão do Baixo Araguaia, a conflituosidade classista atos de violência na formação de milícias rurais (PE-
latente foi impulsionada por novas determinações, REIRA, 2013, p. 127-128). Por meio da clássica práti-
donde a principal foi o impulso conduzido pela luta ca de pistolagem, iniciaram-se eventos de extermínio
armada e pela instituição da guerrilha. De acordo com de modos de vida não-capitalistas ainda nesse pe-
José Batista Gonçalves Afonso (2016), a Guerrilha do ríodo, o que Alfredo de Almeida (1997) caracteriza
Araguaia, formada por militantes que se demoveram como “rito de passagem para o genocídio”, na conver-
de suas vidas no espaço urbano ligados ao Partido são da terra de instrumento do direito de existência
Comunista Brasileiro, bem como por camponeses da em mercadoria4.
região que se convenceram desse processo político, Como resultado preliminar de levantamento rea-
contribuiu para organizar as lutas pelo acesso à terra lizado a partir dos arquivos do Centro de Documen-
e foi duramente reprimida pelos militares. Tanto or- tação Dom Tomás Balduíno (CEDOC - CPT) sobre
ganizou os trabalhadores que, mesmo após a derrota massacres ocorridos na Nova República nos poucos
da guerrilha, com o acolhimento das lideranças ca- processos criminais de massacres que chegaram a
tólicas ligadas ao cristianismo da libertação (LÖWY, condenações, os pistoleiros atuavam lado a lado com
1998), a defesa da terra foi intensa, com o registro de agentes oficiais do Estado – policiais militares e civis
inúmeros conflitos na região durante toda a década (COSTA et al, 2021). No entanto, nesses mesmos pro-
de 1970 (AFONSO, 2016, p. 40-42).
Uma área, contudo, manteve-se inalterada até
o início da década de 1980: o Polígono dos Casta-
nhais. Segundo Fernando Michelotti (2019), este
compreende o território pertencente aos municípios
de Marabá, São João do Araguaia, São Domingos do
Araguaia e Bom Jesus do Tocantins – todos no su-
deste do Pará –, que abrigava posseiros em regime
comum, mediado pela administração pública, e que
mais tardiamente passou por processos de afora-
mento a agentes privados. Ao contrário das regiões
fronteiriças à Floresta Amazônica, que sofriam com
o desmatamento para a criação de pastagens, no Po-
lígono, os castanhais coexistiam com a floresta. Nos
primeiros anos de 1980, com a chegada dos posseiros
expulsos de outras localidades, as oligarquias locais
e o capital internacional latifundiários passaram a
pressionar pela expulsão também dos trabalhadores
da castanha. O campesinato regional, no entanto,
resistia, por meio do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, de associações e cooperativas, das Comuni-

ANDES-SN n julho de 2023 73


A crise ecológica e socioambiental cessos, em poucos constaram a presença dos mandan- po aberto contra os latifundiários e os aparelhos do
tes, oligarcas latifundiários da região dentre os réus5. Estado” (AFONSO, 2016, p. 18).
Ao tratar do Massacre de Colmeia, datado de A Ditadura Empresarial-Militar representa um
1986, quando da transição entre os regimes ditato- período de expansão do capital sobre a floresta e
rial e democrático liberal, Carla Benitez Martins et al sobre culturas não-capitalistas compartilhadas por
(2022) destacam a associação entre forças estatais e indígenas, ribeirinhos, quilombolas e camponeses
interesses burgueses pela terra: na Amazônia. Com a repressão sobre as Ligas Cam-
ponesas e a perseguição de lideranças sindicalistas, a
O uso da força e do constrangimento, de
substituição do projeto de reforma agrária assumido
maneira mais ou menos implícita, é sancionado
pelo poder estatal, seja pela própria participação por João Goulart pelo Estatuto da Terra, a grilagem e
policial nos massacres, seja pela permanente a transferência de terras da Amazônia para o grande
impunidade, ou até mesmo pela ausência capital nacional e internacional e a atração de traba-
de políticas públicas que evitem os conflitos
lhadores migrantes para a região, o governo ditatorial
e protejam as vítimas (MARTINS et al,
2022, p. 105).
instituiu relações violentas que dinamizaram a luta
de classes no sul e sudeste do Pará. O resultado não
Ainda como parte do mesmo projeto de devasta- poderia ser outro senão a depredação da natureza
ção, em 1980, a Ditadura Empresarial-Militar lançou pelo agromineronegócio e os diversos massacres que
o Programa Grande Carajás como estímulo à mine- se iniciaram nos anos 1960 e que ainda vitimam os
ração paralelamente às atividades madeireiras e pe- sem-terra locais.
cuárias no sul e sudeste do Pará. Recorreu o governo
federal a um pacote de obras de infraestrutura que
foram construídas no local – hidrelétricas, ferrovias, Considerações finais
rodovias e siderúrgicas – como mais uma forma de
agradar o capital internacional. Segundo Batista, é Pudemos perceber que, para manter sua lógica
nesse cenário que se descobre a mina de Serra Pe- expansiva e alargar suas fronteiras, o capital tem no
lada, que leva a mais um episódio de intensa migra- processo de acumulação originária uma constante.
ção de milhares de garimpeiros de todo o Brasil na Por meio da permanente usurpação de terras, o ca-
busca pelo ouro e na esperança de superar a pobreza pital segue criando uma massa de despossuídos sem
(AFONSO, 2016, p. 45-47). acesso aos meios produtivos e livres para venderem
A mineração irregular em Serra Pelada é um epi- sua força de trabalho, sob os quais possam explorar e
sódio na história brasileira de enorme degradação aumentar suas taxas de mais-valor.
laboral, em que os trabalhadores estiveram expostos Na experiência brasileira localizada no sul e su-
a condições altamente insalubres e perigosas, cujo deste do Pará durante a Ditadura Empresarial-
resultado foi a alteração permanente nos modos de -Militar, encontra-se expressão histórica da luta de
vida locais e o surgimento de diversos problemas so- classes com contornos da devastação ambiental e da
cioambientais de saúde e segurança públicas e polui- dependência econômica típica da nossa realidade pe-
ção das águas. riférica. Capitaneado pelas oligarquias rurais, o gol-
Já no fim da Ditadura, territorializa-se na região pe militar interrompeu o projeto de reforma agrária
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em vias de ser implementado pelo governo Goulart e
(MST), que adota táticas de militância agrária muito aumentou a concentração de terras por meio do Es-
diferentes daquelas que até então as Ligas Campone- tatuto da Terra.
sas elegiam. A tática do “atrás do toco”, marcada pela A propaganda para a colonização da Amazônia
discrição das ocupações, utilizada pelos posseiros Legal ludibriou milhares de trabalhadores que migra-
relacionados com as Ligas, aos poucos foi substitu- ram em busca de acesso à terra e, chegando lá, encon-
ída pela estratégia do MST: “a ocupação dos imóveis traram repressão e conflito com as classes proprietá-
através de acampamento e o enfrentamento em cam- rias já existentes ou em formação. Ao passo em que

74 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


o agronegócio e a mineração degradavam a floresta e resulta no recorde regional de massacres no campo

Luta pela terra no sul e sudeste do Pará


grilavam terras, os posseiros locais eram expulsos de no período posterior.
suas comunidades tradicionais, onde garantiam sua Desse modo, pela perspectiva histórica socioam-
subsistência por meio da agricultura familiar e da biental, privilegiando-se a tradição dos oprimidos, o
extração da castanha. Da mesma forma, como visto, objeto estudado demonstra como o sistema capita-
indígenas, quilombolas e ribeirinhos foram vítimas lista submete trabalhadores e natureza não humana
da violência ditatorial capitalista na região. A soli- a um mesmo compasso de exploração. Cabe a nós
dificação estrutural desse território durante a Dita- escovar a história a contrapelo e fortalecer as alterna-
dura guarda nos usos da violência pelo capital uma tivas coletivas de resistência na busca pelo real estado
de suas principais marcas na luta de classes, o que de exceção – outro, que não este.

notas
1. O presente artigo é fruto das discussões resultantes
da disciplina “Temas em Direito do Trabalho:
3. Tradução livre de “environmental history is the
study of how human agency shapes and modifies
‘nature’ and constructs built environments and
spatial configurations, and how natural and cultural
environments both enable and constrain human
material activity, and, conversely, how human activity
both enables and constrains cultural development
Trabalho, Cidade e Campo - Tópicos para uma and ‘nature’s economy’”.
história socioambiental do Direito do Trabalho
Brasileiro”, vinculada ao Programa de Pós-graduação 4. Como resultado preliminar da pesquisa “Massacres
em Direito da UFMG, e da pesquisa “Massacres no no Campo na Nova República: crime e impunidade,
Campo na Nova República: crime e impunidade, 1985-2018”, destaca-se a transformação da antiga
1985-2018”, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa pistolagem, típica da Ditadura, em milícias rurais,
Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) em parceria normalmente revestidas de aspecto de legalidade pela
com a Comissão Pastoral da Terra, que a autora contratação de empresas de segurança privada.
impulsiona. Agrademos as contribuições do professor
Gustavo Seferian, que ministrou a disciplina e também 5. Embora os dados do CEDOC - CPT trabalhados no
compõe o projeto de pesquisa, pelo constante diálogo projeto de pesquisa “Massacres no Campo na Nova
e pelas provocações que resultaram neste trabalho. República: crime e impunidade, 1985-2018” digam
respeito ao período pós-redemocratização, pontuamos
2. A Comissão Pastoral da Terra conceitua como que foram muitos os massacres perpetrados no
“massacre” todos os casos de conflitos no campo em decorrer da Ditadura Empresarial-Militar e que foram
que um número igual ou maior que três pessoas foram excluídos de seus direitos de Justiça de Transição na
mortas na mesma ocasião. Em nome da memória Lei 9.140/1995 (Lei dos Desaparecidos Políticos do
das vítimas, registram-se os massacres – todos eles Brasil). Pela reparação da memória camponesa, em
ocorridos nas mesorregiões do sul e do sudeste do 2014, a Confederação Nacional dos Trabalhadores
Pará entre 1985 e 2021: Baião (24/03/2019); Baião da Agricultura (CONTAG) apresentou à Comissão
(22/03/2019); Pau D’Arco (2017); Conceição do Nacional da Verdade o documento “Camponeses
Araguaia (2015); Baião (2006); São Félix do Xingu Mortos e Desaparecidos: Excluídos da Justiça de
(2003); Xinguara/Rio Maria (2002); Marabá (2001); Transição”, com uma lista de 1.196 casos estudados
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Carajás (17/04/1996); São João do Araguaia (1995); no período de 1961 a 1988. CONTAG. Camponeses
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ANDES-SN n julho de 2023 75


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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72
Luta pela terra no sul e sudeste do Pará
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Ciências Sociais, v. 12, p. 220-248, 2020.
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referências ANDES-SN n julho de 2023 77


A crise ecológica e socioambiental

Análise de conflitos
ambientais em torno
de empreendimentos
petroleiros:
legados para a luta ambiental
Matheus Thomaz da Silva
Professor na Universidade Federal Fluminense (UFF)
E-mail: mattseso@gmail.com

Giuliana Franco Leal


Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
E-mail: giulianafrancoleal@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo tem como foco as disputas de poder que envolvem questionamentos
ambientais a atividades extrativas de petróleo. Propõe-se: identificar conflitos socioambien-
tais entre a Petrobras e outros sujeitos coletivos, em um município estratégico da Bacia de
Campos, nos anos 1980 e 1990; pensar em como esses conflitos se inserem no contexto do
extrativismo brasileiro; e, por fim, compreender os legados desses conflitos para as lutas
ambientais. Entende-se que, a partir dos casos estudados, podem ser feitas reflexões mais
gerais sobre lutas ambientais, fundamentais em tempos de crise ecológica. A pesquisa, de
caráter qualitativo, coleta dados por meio de pesquisa documental e entrevistas com ambien-
talistas e as analisa pela perspectiva da Economia Política e da Ecologia Política. Identificam-
-se três conflitos, nos quais o modelo extrativista não é questionado, mas sim situações com
riscos e impactos ambientais especialmente nocivos. As correlações de força e os desfechos
variam, a favor dos empreendimentos ou contra eles, em cada um dos conflitos. Como lega-
dos para a luta ambiental, destacam-se a identificação de alguns elementos que a favorecem,
como o estabelecimento de alianças e a publicização dos conflitos, e o fortalecimento da
pauta ambiental na região.

Palavras-chave: Conflitos Socioambientais. Petrobras. Movimentos Ambientais. Neoxtrativismo.

78 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução exemplo, o vazamento de óleo atinge também popu-
lações urbanas que usufruem da praia para turismo,
Extrair petróleo é uma das atividades que está no lazer e atividades comerciais; além disso, o neoextra-
centro de um modelo político-econômico historica- tivismo atinge a sociedade de modo mais amplo com
mente dominante no Brasil, assim como em outros a reprimarização e, portanto, fragilização da econo-
países latino-americanos. Trata-se de um modelo mia dos países exportadores de recursos naturais.
centrado no extrativismo de recursos naturais volta- Por isso, assumimos o pressuposto de Svampa
dos primordialmente para a exportação. De acordo (2016, p. 143) de que “a análise dos conflitos socio-
com Svampa (2016), tem sido reservado historica- ambientais é uma janela privilegiada para abarcar
mente aos países da América Latina o papel de ex- duas questões tão imbricadas, tão complexas e in-
portar a natureza: ao longo de sua história, pratica- timamente associadas, como são na atualidade o
-se largamente a extração de recursos naturais não desenvolvimento e o meio ambiente”. Na definição
renováveis como opção política e civilizatória. Como dos rumos que as atividades econômicas tomam, e
consequência, temos um vertiginoso aumento de mais amplamente dos modelos de desenvolvimento
conflitos socioambientais, especialmente por parte em que se inserem, os conflitos travados são funda-
de movimentos indígenas e camponeses (SVAM- mentais. Comunidades tradicionais são importantes
PA, 2016). Mas essas atividades, como a extração de nesses conflitos, assim como, em muitos casos, am-
petróleo, atingem outros setores da sociedade. Por bientalistas urbanos.

ANDES-SN n julho de 2023 79


A crise ecológica e socioambiental No caso destes últimos, é possível que os conflitos o olhar sobre um município que desde a década de
não envolvam diretamente recursos para sua sobrevi- 1970 vem baseando grande parte de sua economia na
vência imediata, mas outros interesses e valores, em extração de petróleo: o município de Macaé, localiza-
condições assimétricas de poder em relação aos seto- do no litoral norte do estado do Rio de Janeiro. Nos
res capitalistas que promovem os grandes empreen- anos seguintes à instalação da Petrobras nessa cida-
dimentos e ao Estado. Nessas situações, está se falan- de, houve vários conflitos ambientais, que colocaram
do de conflitos ambientais, como definidos a seguir em questão os caminhos que as atividades econômi-
e usados nesta pesquisa: “Entendemos por conflitos cas tomariam na região e que jogaram luz sobre as
ambientais aqueles ligados ao acesso, à conservação disputas de poder nas tomadas de decisões sobre os
e ao controle dos recursos naturais, que supõem, por temas econômicos e ambientais e seus cruzamentos.
parte dos autores confrontados, interesses e valores O conflito ambiental é uma expressão da luta de
divergentes em torno dos mesmos, em um contexto classes, o ponto de unidade entre a luta local e a luta
de assimetria de poder” (SVAMPA, 2016, p. 143). global. Assim, mesmo que as pautas sejam o recorte
Nesta conceituação, Svampa (2016) aproxima-se do lugar, as movimentações e mobilizações para se
da conceituação de Zhouri e Laschefski (s/d), para conquistar essas pautas reverberam nos antagonis-
quem “[...] os conflitos ambientais surgem das distin- mos da luta de classes, pois há níveis distintos de to-
talidades que se articulam de forma complexa dentro
dessa totalidade maior que é a unidade entre huma-
O conflito ambiental é uma expressão da luta de classes, nidade e natureza.
o ponto de unidade entre a luta local e a luta global. No contexto da luta de classes, o que se deve des-
Assim, mesmo que as pautas sejam o recorte do lugar, as tacar são as noções de classes diretamente da fonte
movimentações e mobilizações para se conquistar essas
original marxiana. Este conceito está presente em to-
pautas reverberam nos antagonismos da luta de classes,
das as fases de produção teórica de Marx, de forma
pois há níveis distintos de totalidades que se articulam
que consolida uma ideia de que a sociedade moderna
de forma complexa dentro dessa totalidade maior que é a
se equilibra entre antagonismos, primeiramente de-
unidade entre humanidade e natureza.
marcado como conceitos, trabalho e capital, depois
materializados em segmentos sociais, proletariado e
tas práticas de apropriação técnica, social e cultural burguesia. O fato reside em uma relação social an-
do mundo material e [...] a base cognitiva para os dis- tagônica e dialética, em que os conceitos e as clas-
cursos e ações dos sujeitos neles envolvidos configu- ses se negam, a existência delas está condicionada
ra-se de acordo com suas visões sobre a utilização dos uma à outra. Dessa forma, originalmente em termos
espaços”. Ambos os entendimentos, assim como o de econômicos, destaca-se a contradição entre capital e
Acselrad (2004), exposto mais abaixo no item sobre o trabalho como a contradição/conflito entre as forças
contexto dos conflitos, podem ou não dizer respeito a produtivas e as relações de produção.
questões que envolvem políticas públicas e legislações No entanto, é no Manifesto Comunista que Marx
ambientais. Todas essas definições incluem a dimen- e Engels melhor apresentam formulações específicas
são social dentro dos temas ambientais e permitem a respeito das classes sociais. Para essa mediação so-
abordar as questões relativas aos conflitos investigan- bre classes sociais e o Manifesto Comunista, tem-se
do ângulos e motivações tão diversos que somente como elemento o artigo de Florestan Fernandes Nós e
cada pesquisa, em cada caso, pode desvendar. o Marxismo. Segundo o autor, a perspectiva apresen-
Consideramos importante pensar não só os con- tada no Manifesto é a que permite melhor explicação
flitos mais recentes, mas também aqueles que se de- sobre a formação e o desenvolvimento de um estrato
senvolveram em décadas anteriores, a fim de com- social como classe em si.
preender sua evolução e criar a oportunidade de Para Fernandes (2009), dois aspectos são premis-
aprender com o passado. Com esse foco, lançamos sas para a análise de classe: o primeiro, a forma do

80 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


desenvolvimento capitalista; e o segundo, o estágio Percurso metodológico

Conflitos ambientais em torno de empreendimentos petroleiros


relativo da própria classe do trabalho. Para o autor, o
que fora assinalado por Marx no Manifesto não era Para a pesquisa, de tipo qualitativo, foi escolhida
a intensidade dos antagonismos sociais próprios do uma cidade em cuja economia a atividade petrolífera
modo de produção capitalista, mas as tendências que é central (Macaé, RJ). Dentro dela, foram selecionados
os antagonismos assumem, “o que quer dizer: é pre- conflitos envolvendo empreendimentos da Petrobras
ciso buscar nos fatos concretos essas tendências, que e pelo menos um movimento ambientalista. Os três
retratam o que ocorre graças ao desenvolvimento da conflitos aqui apresentados vieram à tona em uma
produção capitalista e, também, inversamente, graças pesquisa sobre movimentos ambientalistas na cidade
à insuficiência de seu desenvolvimento” (FERNAN- de Macaé. A partir desta pesquisa, percebeu-se o pa-
DES, 2009, p. 14). pel central de um movimento ambientalista urbano,
Nesse sentido, os sujeitos dos conflitos destaca- que esteve no centro de vários conflitos, geralmente
dos neste trabalho, ao formarem e formalizarem suas em parceria com outros sujeitos. A pesquisa deu des-
lutas no antagonismo das consequências que o de- taque a este movimento, selecionando conflitos que
senvolvimento capitalista produz, já sinalizam sua envolviam a Petrobras e ele, pela importância de am-
tendência na dinâmica das relações sociais de classe bos para o município. Os três conflitos identificados
da sociedade. aconteceram nos anos 1980 e 1990, as duas décadas
Para discutir as relações entre os rumos das ativi- seguintes à instalação da Petrobras no município.
dades extrativas de petróleo e a conservação ambien- Três caminhos compuseram a pesquisa: pesquisa
tal, em um cenário de disputas de poder, propõe-se hemerográfica, entrevistas e pesquisa documental.
neste artigo: (1) identificar conflitos estabelecidos Na pesquisa hemerográfica, foram lidas todas as ma-
em torno de empreendimentos de atividades ligadas térias sobre o tema ambiental do principal jornal do
à extração do petróleo, com ênfase aos conflitos que município (O Debate) publicadas entre as décadas de
envolvem movimentos ambientalistas urbanos, nas 1980 e 2000. Entre elas, foram selecionadas aquelas
duas primeiras décadas que seguiram a instalação da que diziam respeito a conflitos em torno de empre-
Petrobras no município de Macaé, RJ; (2) pensar em endimentos da indústria do petróleo, mas também
como esses conflitos se inserem no contexto do ex- a outras relações, não necessariamente conflituosas,
trativismo brasileiro; e (3) compreender os legados entre a Petrobras e os demais atores envolvidos na-
desses conflitos para as lutas ambientais. queles conflitos.
Faremos uma contextualização e uma problema- Em segundo lugar, foram feitas entrevistas semies-
tização da economia do petróleo no município estu- truturadas com ambientalistas locais, começando
dado, entendidas como parte de um movimento com com um fundador do movimento ambientalista en-
abrangência mais larga que se impõe às sociedades volvido nos conflitos aqui descritos, que, em seguida,
latino-americanas. Daremos ênfase aos embates em indicou outras pessoas com o mesmo perfil, que, por
decisões dos rumos das atividades petroleiras locais, sua vez, indicaram os demais entrevistados. As oito
em que há lutas contra empreendimentos da indús- entrevistas ocorreram em 2021 e 2022 e versaram so-
tria do petróleo. Traremos, então, resultados de uma bre a atuação dos ambientalistas e as contribuições
pesquisa empírica sobre os conflitos travados em dos movimentos dos quais fizeram parte. Elas foram
Macaé, RJ, entre a indústria do petróleo e outros su- transcritas. As mesmas questões e informações pro-
jeitos coletivos, enfatizando um movimento ambien- curadas na pesquisa hemerográfica foram buscadas
talista que participou de lutas em torno do tema e nesta e na seguinte fase da pesquisa, em que foram
frequentemente as protagonizou. Por fim, promove- coletados e lidos os seguintes documentos: panfletos,
remos uma discussão sobre respostas a cada objetivo chamadas de reuniões e de manifestações e livros-
da pesquisa. Antes de tudo, mostraremos o caminho -atas das reuniões da Associação Macaense de Defe-
metodológico que a pesquisa trilhou. sa Ambiental (AMDA), entre 1987 e 2003, cobrindo

ANDES-SN n julho de 2023 81


A crise ecológica e socioambiental todo o tempo de existência daquele movimento, cen- ameaças a populações que têm trabalhos intrinseca-
tral nos conflitos aqui estudados. mente ligados ao ambiente, caso dos pescadores ar-
Neste artigo, usamos de modo complementar os tesanais. Suas atividades são ameaçadas pela grande
dados obtidos das diferentes fontes mencionadas circulação de embarcações, seja pelos riscos à circu-
para identificar os motivos centrais dos conflitos, lação de barcos pequenos, pelas modificações na fau-
os grupos sociais envolvidos, os modos de atuação na que elas causam ou pelos riscos de vazamento de
desses grupos e os desfechos dos conflitos. A inter- petróleo (LEAL; MARTINS; VIEIRA, 2019). Os pes-
pretação desses resultados é feita à luz das correntes cadores tornam-se, assim, os sujeitos mais prováveis
teórico-metodológicas Ecologia Política e Economia de se envolverem em conflitos ao modo da definição
Política: ao interpretar os resultados obtidos na pes- de Acselrad, em que existe ameaça às condições de
quisa, damos ênfase à expressão da luta de classes nas existência de um grupo social. Para esse autor, são
lutas ambientais, com um olhar atento às relações conflitos ambientais:
de poder em torno dos usos e significações do meio
aqueles envolvendo grupos sociais com modos
ambiente, sob uma perspectiva que visa à mediação
diferenciados de apropriação, uso e significação
entre as situações concretas em foco e a totalidade do território, tendo origem quando pelo menos
das relações sociais. um dos grupos tem a continuidade das formas
sociais do meio que desenvolvem ameaçada
por impactos indesejáveis [...] decorrentes
Riscos ambientais, dos quais a possibilidade de do exercício das práticas de outros grupos
(ACSELRAD, 2004, p. 26).
vazamento de petróleo é um grande destaque, também
afetam atividades como o turismo e o lazer e ameaçam
A categoria de pescadores artesanais mostra-se
a qualidade de vida dos moradores locais. Dentre esses
ameaçada de extinção por uma série de motivos, que
moradores, boa parte é formada por uma classe média
também envolvem o desinteresse de novas gerações
que mescla antigos moradores com imigrantes, dada a
alta taxa de imigração em Macaé, o que explica o drástico de darem continuidade às atividades de seus pais e
aumento populacional. avós, preferindo tentar empregos relacionados à in-
dústria do petróleo, como mostraram várias pesqui-
sas com pescadores da região de Macaé feitas nos
O contexto dos conflitos: anos 2010 (LEAL, 2013; SANTA ANA, 2014).
Macaé, petróleo e ambiente Riscos ambientais, dos quais a possibilidade de va-
zamento de petróleo é um grande destaque, também
A cidade de Macaé é interessante como local para afetam atividades como o turismo e o lazer e amea-
estudos sobre extrativismo e território, por ter vivido çam a qualidade de vida dos moradores locais. Dentre
uma grande transformação com a chegada das ativi- esses moradores, boa parte é formada por uma classe
dades de extração do petróleo. Em 1970, quatro anos média que mescla antigos moradores com imigran-
antes da chegada da Petrobras, o município tinha por tes, dada a alta taxa de imigração em Macaé, o que
volta de 40 mil habitantes, cerca de 40% de sua po- explica o drástico aumento populacional. É a partir
pulação era rural e as principais atividades econômi- dessa classe média que se forma, na cidade, parte dos
cas eram a pesca e a agricultura. Em duas décadas, movimentos que chamamos aqui de ambientalistas,
a população aumentou para 90 mil habitantes e, em com uma gama de pautas mais ampla sobre ambiente
mais duas décadas, chegou a 200 mil, tornando-se e sociedade, incluindo conservação/preservação am-
98% urbana (IBGE, 2010). As atividades envolvendo biental, construção de um plano diretor para a cidade
o petróleo tornaram-se o centro da economia do mu- e produção e consumo agroecológicos, entre outros
nicípio (RIBEIRO; SANZER, 2019). (SILVA, 2022).
Não é possível uma mudança desse porte sem alte- O extrativismo de petróleo é uma pauta central
rações equivalentes nos modos de vida da população para movimentos ambientalistas inseridos no con-
local. De um lado, a atividade petroleira representa texto que descrevemos. O extrativismo é um modelo

82 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


predatório de desenvolvimento, com consequências 6.938, de 1981, que se iniciou algum estímulo es-

Conflitos ambientais em torno de empreendimentos petroleiros


graves em várias dimensões: homogeneização da eco- tatal à conservação ambiental. Assim, durante a
nomia, com decorrente fragilização econômica fren- década de 1980, criaram-se instituições de Estado
te a crises e enclaves de exportação; extrema explora- para a política ambiental, a exemplo do Conselho
ção da natureza; e exclusão das coletividades que não Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) e do Ins-
se encaixam naquele modelo, tais como quilombolas, tituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA). Na
pescadores artesanais e trabalhadores compreendi- década seguinte, foram publicadas regulamentações
dos como não qualificados (SVAMPA, 2016). do licenciamento ambiental, por resolução do CO-
Em uma cidade pequena, a instalação de uma em- NAMA de 1997. Só então empreendimentos com
presa do porte da Petrobras – seguida de todas as ou- potencial de deterioração ambiental passaram a ser
tras empresas que se instalam nas proximidades para obrigados a realizar Estudos de Impacto Ambiental
prestar serviços, a ampla migração de pessoas interes- (EIA) e, a partir daí, elaborar Relatórios de Impacto
sadas nos postos de trabalho gerados e toda a circula- Ambiental como condicionantes para o licencia-
ção econômica associada ao crescimento econômico e mento (ALCANTARA, 2017).
ao emprego de royalties – traz questões fundamentais. Em relação a Macaé, foram essas as condições
No período histórico que antecede a instalação da encontradas pela Petrobrás para instalar-se na cida-
indústria do petróleo na região, o Brasil avançou sob de e realizar suas primeiras grandes obras: o porto
uma perspectiva desenvolvimentista. Nesse contexto, e a base de Imbetiba. Essa conjuntura tornava ain-
há um processo de preparação do desenvolvimento da mais relevante o surgimento de um movimento
para o norte-fluminense com outras grandes obras social ambiental na cidade. O processo de desen-
de infraestrutura que são planejadas e executadas na volvimento que se expandia no país não encontra-
região, com grande impacto ambiental. Dois casos va freios e contrapesos locais para colocar limites à
importantes são: primeiro, a intervenção do Departa- destruição ambiental.
mento Nacional de Obras e Saneamento na foz do Rio Em 1989, foi elaborado pela Fundação Estadu-
Macaé, promovendo retificação do rio; e, segundo, a al de Engenharia de Meio Ambiente (FEEMA), sob
construção de trechos da rodovia Amaral Peixoto, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Rio de
que corta toda a região costeira do estado do Rio de Janeiro, um perfil ambiental de Macaé. Esse docu-
Janeiro e que atravessou uma grande lagoa de Macaé, mento chamou a atenção para problemas ambientais,
propiciando seu aterramento parcial (SILVA, 2022). como ocupação irregular de locais com ecossistemas
Naquele momento, a legislação ambiental era in- vulneráveis, aterros de corpos de água, atividades
cipiente, mesmo em âmbito internacional. Segundo econômicas erosivas do solo e lançamento de esgo-
Alcantara (2017), nos Estados Unidos só foi criada a to sanitário sem tratamento em lagoas, entre outros
primeira legislação sobre a necessidade de avaliação (FEEMA, 1989).
de impacto ambiental em 1969 e, somente no final Até aqui, destacamos as mudanças nas relações da
dos anos 1970, os bancos Internacional para Recons- sociedade com os demais componentes do ambiente,
trução e Desenvolvimento (BIRD) e Interamericano a partir do funcionamento da economia da região.
de desenvolvimento (BID) passaram a considerar as Tudo isso está ligado ao modelo de desenvolvimento
avaliações de impactos ambientais e as medidas com- que se tem em uma sociedade e que diferentes gru-
pensatórias para conceder empréstimos a grandes pos sociais pretendem – ou não – ter.
projetos. De acordo com o autor, até os anos 1970, A noção hegemônica de desenvolvimento está
o ordenamento jurídico brasileiro era pouco voltado associada à busca de produtividade máxima voltada
para a conservação ambiental, não existindo condi- para a acumulação permanente de riquezas, em ní-
cionantes ambientais para os grandes empreendi- vel individual e das sociedades nacionais (SANTOS,
mentos, como os mencionados neste parágrafo. 2015). É esta a noção de desenvolvimento que per-
Foi apenas a partir da instituição da Política meia a modernidade, fazendo-se presente seja em
Nacional de Meio Ambiente (PNMA), pela Lei n° governos nacionais, estaduais e municipais, seja em

ANDES-SN n julho de 2023 83


A crise ecológica e socioambiental projetos de organizações multilaterais, como a Orga- ecologismo, são termos usados por diferentes autores
nização das Nações Unidas (ONU). para se referir às ações sociais coletivas com temática
A busca do desenvolvimento foi reeditada em no- ambiental. Segundo Alier (1998), o ecologismo seria
vos moldes desde a publicação do relatório Limites uma pauta que ganharia cada vez mais centralidade a
do Conhecimento (1972), que expressava o alerta da partir dos anos 1970.
impossibilidade dos recursos naturais estarem dispo- No Brasil, essa década foi parte de um período de
níveis para um crescimento infinito. Teceu-se então autoritarismo político, dentro de uma ditadura civil-
a ideia de desenvolvimento sustentável, famosa por -militar que se estendeu de 1964 a 1984. Foi nesse
conceituá-lo como “aquele que atende às necessida- contexto que a Petrobras se instalou em Macaé, em
des do presente sem comprometer a possibilidade de 1974. No período da redemocratização, a partir de
gerações futuras atenderem às suas próprias necessi- 1985, deram-se os conflitos analisados neste artigo.
dades” (ONU, 1992, p. 46).
Os conflitos em torno de
empreendimentos extrativistas
Mesmo para quem acredita na possibilidade de um
desenvolvimento sustentável, há inúmeros caminhos Os conflitos escolhidos para a pesquisa aconte-
divergentes para sua realização e suas formas, o ceram em até duas décadas depois da instalação da
que também abre espaço para conflitos ambientais, Petrobras. Destacaram-se três conflitos centrados em
envolvendo desde comunidades tradicionais até novos enfrentamentos de alguns sujeitos coletivos com a in-
ambientalismos. Ambientalismo, assim como ecologismo, dústria do petróleo no município de Macaé: em 1987,
são termos usados por diferentes autores para se referir a respeito da instalação de um polo petroquímico;
às ações sociais coletivas com temática ambiental. em 1989, contra a instalação do equipamento mono-
boia; e, em 1992, no enfrentamento à construção de
uma estação de tratamento de efluentes.
Críticas variadas podem ser feitas à busca do de- A instalação do polo petroquímico foi proposta
senvolvimento sustentável, tais como as destacadas três anos após a chegada da Petrobras a Macaé, no
por Lang (2016): o mal-estar expresso em transtor- primeiro trimestre de 1987. O projeto foi anuncia-
nos como ansiedade e depressão, potencializados do pelo jornal da cidade, contando com apoio ini-
pelo modo de vida dos países desenvolvidos; a disso- cial da prefeitura, da Associação Comercial e do Ro-
ciação entre produção de riquezas (expressa no pro- tary Club. Contra esse projeto, formou-se um novo
duto interno bruto) e as medidas de bem-estar da po- movimento ambientalista na cidade: a Associação
pulação, a partir de um certo patamar financeiro não Macaense de Defesa Ambiental (AMDA), fundada
muito alto; os limites ecológicos que impedem que em 1987. Esta associação foi formada basicamen-
todos os países atinjam os níveis de desenvolvimento te por pessoas de classe média, profissionais de di-
gozados pelas nações mais ricas; e a inserção da ideia versas áreas de conhecimento. Primeiro, formou-se
de desenvolvimento sustentável em uma racionalida- um movimento de defesa ambiental, que, um pouco
de associada à exploração capitalista e à opressão pa- depois, constituiu-se como uma organização ao go-
triarcal e colonial/racial, facilmente perceptível nos vernamental (ONG), mas, independentemente de
países dependentes de exportação de recursos natu- seus estatutos jurídicos, sempre atuou como um mo-
rais, como o petróleo bruto. vimento de ação social coletiva voltado para pautas
Mesmo para quem acredita na possibilidade de ambientais. A AMDA foi o eixo em torno do qual se
um desenvolvimento sustentável, há inúmeros cami- aglutinaram as vozes dissonantes em relação ao pro-
nhos divergentes para sua realização e suas formas, o jeto do polo petroquímico. Um dos ex-diretores da
que também abre espaço para conflitos ambientais, associação entrevistados conta que constituir uma
envolvendo desde comunidades tradicionais até no- pessoa jurídica, na forma de uma organização não
vos ambientalismos. Ambientalismo, assim como governamental, foi uma forma de expressar ideias de

84 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


um grupo de pessoas que, ao tomar aquela posição, a pauta ambiental como elemento central nos rumos

Conflitos ambientais em torno de empreendimentos petroleiros


se viam confrontadas em sua vida pessoal e, por isso, da economia local, com um trabalho de organização
usavam o coletivo para lutar de modo mais protegido. e mobilização.
As ações coletivas baseavam-se em diálogos públi- Dois anos depois, veio um novo conflito em torno
cos, a começar pela organização de um debate, “Polos da instalação de uma monoboia, que “é uma espécie
Petroquímicos no Brasil”, organizado pela AMDA e de âncora, um recipiente oco de onze metros de di-
realizado em uma faculdade local. Nesse debate, hou- âmetro e mais ou menos nove metros de altura, que
ve destaque à fala do engenheiro convidado Cícero possui uma espécie de cabeça giratória de onde saem
Blay, que abordou centralmente os seguintes pontos: os mangotes que irão atracar nos navios” (AMDA,
a) crítica à noção de desenvolvimento e progresso a 1989, p. 19). O equipamento, projetado para navios
qualquer custo, subordinados a interesses externos e petroleiros que transportariam até 300 mil toneladas
criadores de relações de dependência; b) tese de que de petróleo, facilitaria o transporte de óleo por meio
os polos petroquímicos são estratégias de baratea- de oleodutos. A monoboia ficaria perto ao conjunto
mento dos custos da produção sem grandes preocu- de ilhas próximas à costa macaense, o arquipélago de
pações com ambiente, qualidade de vida e tratamen- Santana. Fazia parte do projeto uma estação dessa-
to dos poluentes altamente venenosos emitidos; c) linizadora de óleo, com uma oficina de reparos no
ênfase à tecnologia sucateada do projeto de criação arquipélago, articulada ao porto da cidade. O projeto
do polo, a qual foi rejeitada desde os anos 1970 em tinha o propósito de melhorar a logística de trans-
países altamente industrializados; e d) problema do porte de óleo para a refinaria. Porém, aqueles que se
acirramento das desigualdades sociais locais ao final colocaram contra a instalação chamavam atenção
das obras iniciais, quando a maior parte da força de para o risco ampliado de acidentes de derramamento
trabalho atraída pelo empreendimento deixa de ser de óleo, com ameaça aos ecossistemas locais e às ati-
absorvida (SEMANA DO MEIO AMBIENTE, 1987). vidades de trabalho dos pescadores artesanais.
Três meses depois, a AMDA entregou ao então se- Em oposição à Petrobras, que propunha o proje-
cretário estadual de meio ambiente um relatório com to, aliaram-se a AMDA, a colônia de pescadores do
parecer contrário à instalação do polo petroquímico, município e a associação de moradores do bairro
com argumentos técnicos a respeito da degradação próximo ao porto, como relata o livro-ata. Mais tar-
ambiental. Um novo debate chamado pela AMDA de, aderiram formalmente ao “Xô, Monoboia” outras
aconteceu em outubro, na Câmara de Vereadores de entidades na luta, como o Instituto de Meio Ambien-
Macaé, lotada de cidadãos – alguns deputados esta- te e Recursos Renováveis, o Sindicato Estadual dos
duais e um vereador de Cubatão, cidade usada como Pescadores e o Sindicato de Armadores de Pesca.
exemplo dos malefícios causados por polos petroquí- Prefeituras de outros municípios, por fim, se soma-
micos (CÍCERO, 1989). ram ao movimento contrário à monoboia, com des-
No ano seguinte, o prefeito de Macaé mudou de taque para o prefeito de Campos, Anthony Garoti-
opinião: passou a rejeitar o polo no município, su- nho, consolidando uma frente (AMDA, 1989).
gerindo publicamente que ele fosse instalado em ou-
tra cidade. O projeto não aconteceu. Não podemos
atribuir isso à AMDA a partir dos dados que temos.
Contudo, afirmamos que o desfecho foi favorável ao
movimento, que viu acontecer o cancelamento pelo
qual lutava e foi vitorioso em trazer a debate público

ANDES-SN n julho de 2023 85


A crise ecológica e socioambiental

O enfrentamento articulado em torno do slogan fosse barrada. A Área de Proteção Ambiental foi cria-
“Xô, Monoboia” começou, assim como no conflito de da por lei e fica compreendida dentro do perímetro
dois anos antes, com a chamada a um debate público, de um círculo cujo centro é a ilha de Santana, abran-
organizado pela AMDA em parceria com a Colônia gendo, no período de sua criação, um raio de 16 km
de Pescadores. Tendo lugar na sede da cooperativa de de extensão (MACAÉ, 1989).
pescadores de Macaé, o debate público, realizado em No segundo semestre de 1992, a grande questão
3 de março de 1989, teve a presença da Associação deu-se em torno da construção da Estação de Trata-
de Engenheiros da Petrobrás (AEPET) – respon- mento de Efluentes (ETE), que a Petrobrás planejou
sável pela palestra sobre características, funções e construir em Cabiúnas. O objetivo da obra seria se-
impactos da monoboia – além de várias associações parar e tratar a água emulsionada ao óleo na Bacia
de moradores do munícipio, partidos políticos (PV, de Campos. Naquele momento, estavam realizando
PT, PDT e PTR), o Sindipetro-NF (Sindicato dos as reuniões preparatórias para a audiência pública
Petroleiros Norte-Fluminense), a Câmara de Vere- para a discussão do Relatório de Impacto Ambiental
adores e a Prefeitura Municipal. Após esse ponto de (RIMA) da obra.
partida do debate, houve cobrança de explicações A AMDA foi novamente central no conflito, ao ser
da Petrobrás sobre o empreendimento e denúncia a primeira organização a colocar-se publicamente em
em comissão da Câmara de Vereadores sobre seus posição contrária à instalação da ETE, motivada pelo
impactos negativos. O tema voltaria a ser debatido fato de os efluentes a serem descartados no mar terem
entre a Petrobras e a AMDA em uma mesa redonda, concentrações de elementos poluentes, tais como fe-
em julho do mesmo ano. Por fim, com a formação de nóis, acima dos padrões vigentes à época. Além dis-
uma frente ampla contra o monoboia, o conflito foi so, a estação de tratamento estaria muito próxima a
judicializado. Como parte do enfretamento, o grupo uma das nascentes que compõem a microbacia da la-
de trabalho formado por representantes da AMDA goa de Jurubatiba. Dessa forma, o emissário poderia
e outros interessados no assunto traçou e fortaleceu ameaçar a área da vegetação do ecossistema local, a
a ideia de transformação do Arquipélago de Santana restinga, entre as lagoas de Jurubatiba e Carapebus.
em área de proteção ambiental, à qual teve adesão A degradação assim causada teria impacto na pesca
da prefeitura. em Macaé.
Uma comissão foi criada na Câmara de Vereadores Segundo o livro-ata (AMDA, 1989), junto com
para tratar das denúncias feitas à instalação da obra. outras coletividades, a AMDA participou de reuniões
Em meio às polêmicas, o Relatório de Impacto Am- preparatórias e da audiência pública para a discussão
biental (RIMA) da Petrobras não foi devolvido pela do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) da obra,
FEEMA e não teve aprovação por ausência de infor- fazendo questionamentos ao mesmo. A AMDA, ou-
mações básicas sobre a biologia marinha da região e tras ONGs, lideranças comunitárias e a Secretaria de
seu potencial pesqueiro, sem menção ao Arquipélago Meio Ambiente assinaram e entregaram à FEEMA
de Santana (AMDA, 1989 p. 21-22). Assim, não foi um documento que solicitava que se interrompesse
concedida licença prévia para o começo da obra, ini- o licenciamento da ETE Cabiúnas até que fossem
ciada de maneira irregular e, então, paralisada. sanadas as questões levantadas. As discussões foram
Nesse processo, o avanço na criação de uma área a público novamente, em matérias do jornal O De-
de proteção ambiental no conjunto de ilhas por onde bate. Em um momento de aproximação da AMDA
o equipamento passaria, o Arquipélago de Santana, com o Greenpeace, apareceu, inclusive, em uma
foi importante para que a instalação da monoboia reportagem a ameaça de um dos membros da dire-

86 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Considerações finais

Conflitos ambientais em torno de empreendimentos petroleiros


Nesta pesquisa foram identificados três conflitos
toria da AMDA de propor à ONG internacional a em torno da instalação de novos empreendimentos
concessão à Petrobrás do prêmio “Maquiagem Ver- da indústria petroleira no município de Macaé, nas
de”, por ser a empresa que mais polui e que mais gasta duas décadas que se seguiram à instalação a Petro-
com publicidade para enganar a população. Mesmo bras no município – os anos 1980 e 1990. Em um
assim, com pequenas mudanças no RIMA, o em- contexto de redemocratização do país, esses conflitos
preendimento obteve licença para operar, em 1994 puderam ocorrer em espaços públicos de discussão
(MELLO et al, 2004). em que meios democráticos, como o diálogo e a ne-
Nas entrevistas com as antigas lideranças sobre o gociação, puderam ser praticados.
posicionamento da AMDA em relação aos conflitos De um lado dos conflitos, estava a empresa petro-
aqui assinalados, foi repetido reiteradamente que o leira, de capital misto (estatal e privado) – portan-
movimento não tem uma posição de oposição à Pe- to, a classe capitalista –, por vezes com aliados nas
trobras como um todo; pelo contrário, reconhece sua prefeituras regionais; de outro, membros da classe
importância. O que há é uma disputa sobre como a trabalhadora, de diferentes categorias. Entre estes,
Petrobras se posiciona, de modo degradante, ao am- destacaram-se como protagonistas ambientalistas
biente e à sociedade, ou não. Dessa forma, extrair pe- que são profissionais de classe média, com preocupa-
tróleo não é, em si, algo a que aqueles ambientalistas ções gerais com a conservação, que se organizaram
se opõem. Sua luta é contra os aspectos destrutivos coletivamente durante esses conflitos, e pescadores
do modelo extrativista. Não se trata de uma luta ra- artesanais que lutavam contra prejuízos diretos em
dical, que questiona princípios capitalistas ou mesmo suas possibilidades de trabalho, muito ligadas às con-
os pilares do extrativismo. Mas é uma luta que tem dições ambientais.
grande importância, localmente, para a incorporação O eixo de todos esses conflitos eram os empreen-
do meio ambiente e da qualidade de vida da popula- dimentos especialmente danosos ao ambiente. Em
ção nas decisões políticas e econômicas de uma loca- nenhum momento a luta se dirigiu contra a atividade
lidade onde a atividade extrativista é central. extrativista em geral ou mesmo contra a presença da
O próprio livro-ata da entidade, ao tratar do con- Petrobras na região. O que se questionavam eram os
flito sobre a monoboia, deixa claro que as lutas en- excessos do modelo extrativista, na figura de novas
caminhadas pela AMDA não são contrárias à Petro- atividades e empreendimentos mais agressivos ao
brás, mas a alguns de seus encaminhamentos: ambiente que ameaçassem os ecossistemas, a quali-
dade de vida dos moradores e as condições de traba-
a importância da Petrobras para o país e sua
lho de grupos mais diretamente dependentes da re-
ineficiência em ajustar seus interesses aos dos
municípios, uma vez que tem comprometido lação com a natureza, como é o caso dos pescadores.
a pesca desde sua instalação em Macaé. O As lutas assim travadas fortaleceram e deram des-
presidente da AMDA disse que não é um taque à pauta ambiental na região, pouco mais de
confronto com a empresa, mas sim com a
uma década depois da questão ambiental vir crescen-
política que vem empreendendo em nosso
município (AMDA, 1992, p. 22). do nos debates públicos globalmente. Elas também
mostraram que é possível ter vitórias, ainda que pon-
Percebe-se, por tudo isso, que não existe uma tuais, nas disputas de poder contra empreendimen-
posição desses ambientalistas contra a Petrobras a tos ambientalmente degradantes, com alianças entre
priori, mas conflitos tratados caso a caso em relação frações de classes diversas de trabalhadores, publi-
a algumas de suas formas de agir e à noção de de- cização dos conflitos e ênfase à negociação, com es-
senvolvimento que era parâmetro para as tomadas de paço também para judicialização dos conflitos como
decisões da estatal. ferramenta de luta.

ANDES-SN n julho de 2023 87


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ANDES-SN n julho de 2023 89


Terra e resistência:
A crise ecológica e socioambiental

o MST e o projeto de
agroecologia nas
escolas do campo
Fábio José de Queiroz
Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA)
E-mail: fabioqueirozurca@gmail.com

Eduardo Chagas
Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)
E-mail: ef.chagas@uol.com.br

Nericilda Bezerra da Rocha


Doutoranda da Universidade Federal do Ceará (UFC)
E-mail: nericilda@hotmail.com

Resumo: Este artigo trata das inter-relações entre o Movimento dos Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais Sem-Terra (MST), seu programa, suas ações de resistência e as
questões inerentes à educação e ao meio-ambiente, traduzidas nas noções de escola do
campo e agroecologia. Fundado em 1984, o MST tornou-se amplamente reconhecido
por sua luta pela mudança da estrutura agrária do país, partindo da bandeira da reforma
agrária, mas, ao longo do tempo, o movimento mostrou-se um agente ativo em defesa
da educação pública, que, com o passar dos anos, ganhou materialidade nas escolas do
campo. Nesse ponto, fez uma definição metodológica e teórico-prática pela
agroecologia, assumindo vívido compromisso pela preservação ambiental dos territórios
e produção de alimentos saudáveis, temas com os quais este artigo apresenta um
relacionamento imediato.

Palavras-chave: MST. Escolas do Campo. Agroecologia.

90 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução Nesse sentido, este artigo corresponde a um es-
forço de mapear e analisar o programa com o qual
A história do Movimento dos Trabalhadores e o MST adentrou o século XXI, objetivamente assen-
Trabalhadoras Sem-Terra (MST) confunde-se com tado na luta pela terra, pelo direito a uma educação
a luta pela terra no Brasil da virada do século XX do/no campo e pela necessidade da adoção da agro-
para o XXI. Fundado em 1984, quando a Ditadura ecologia como mecanismo irrenunciável a serviço da
Militar se preparava para sair pelas portas dos fun- proteção da terra e de uma agricultura saudável.
dos, o movimento, passados quase 40 anos de sua
gênese histórica, exibe uma inequívoca vitalidade
social e ideológica. Sociedade e natureza
Diretamente relevante para nós é que, ao longo de no contexto da luta pela terra
seu percurso, o MST nunca deixou de se inovar como
movimento social. Em sua continuidade através dos O modo de produção capitalista na agricultura e a
anos, tornou-se mais complexo pedagogicamente forma fundiária que lhe corresponde, conforme des-
e, por fim, redesenhou as suas relações com o meio creve Marx (2017) no livro III de O Capital, são ca-
ambiente. Sob esses aspectos, na virada do século, o tegorias históricas e, portanto, à maneira Goethiana,
MST, partindo das experiências pedagógicas dos as- merecem perecer. O MST, entendendo a historicida-
sentamentos, avançou para a constituição das escolas de desse sistema socioeconômico que transforma a
do campo, ligadas à ideia de uma educação do e no terra em mera mercadoria e a dilapida impiedosa-
campo. Mas, para tornar-se um exemplo típico de es- mente, nasce questionando não apenas sua estrutu-
cola, o modelo proposto pelo movimento associou- ra fundiária, mas a própria lógica de sua dinâmica
-se ao projeto da agroecologia. agrícola. Nessa perspectiva, o MST é encarado pelos

ANDES-SN n julho de 2023 91


A crise ecológica e socioambiental capitalistas e latifundiários como um movimento que lucros crescentes. Desnecessário dizer que o empre-
entende a historicidade do capitalismo, inclusive na go de uma retórica modernizante é apenas a cortina
agricultura, e a necessidade de superá-lo, notada- de fumaça para desviar a questão do seu verdadeiro
mente em suas práticas predatórias. fulcro, qual seja: a imagem dantesca do lucro inenar-
No Brasil, estima-se que 1% dos grandes pro- rável às expensas da dilaceração do meio ambiente.
prietários de terra monopoliza 43% dos territórios O discurso focado na tecnologia remete-nos,
agriculturáveis do país. Esse fato coaduna com a apenas, à tentativa permanente do capital de aniqui-
definição de Marx de que “A propriedade fundiária lar o pequeno produtor e o trabalhador rural, bem
baseia-se no monopólio de certas pessoas sobre por- como solapar a natureza e vender todo esse descala-
ções definidas do globo terrestre como esferas exclu- bro como uma expressão do avanço e do progresso.
sivas de sua vontade privada, com exclusão de todas Marx, no livro I de O Capital, se pronunciou quase
as outras” (MARX, 2017, p. 676). que profeticamente a esse respeito:
É nesse sentido que o MST surge: jorrando es-
peranças por todos os poros, uma vez que sua luta E todo progresso da agricultura capitalista é um
progresso na arte de saquear não só o trabalhador,
conflita com o monopólio de certas pessoas sobre
mas também o solo, pois cada progresso
a terra e enfrenta a vontade privada ligada ao po- alcançado no aumento da fertilidade do solo por
der dos detentores de latifúndios. Deve-se destacar certo período é, ao mesmo tempo, um progresso
também, nesse contexto, o ódio que ele provoca no no esgotamento das fontes duradouras dessa
fertilidade (MARX, 2013, p. 573).
grande capital, posto que este se apoderou da terra
no Brasil e, nos últimos tempos, vislumbra na estra-
Porém, Marx vai mais longe em sua crítica ao ca-
tégia do movimento uma ameaça à sua reprodução.
pital e às suas incursões cada vez mais constantes na
A luta, embora contínua, tem se demonstrado muito
agricultura, engendrando destruição tanto ao traba-
desigual, até porque os velhos fazendeiros e o Estado
lhador quanto à terra. Desse modo, ele declara que:
somam-se aos esforços do capital com vistas a adotar
“Por isso, a produção capitalista só desenvolve a téc-
uma atitude, tática e estratégica, radicalmente infle-
nica e a combinação do processo de produção social
xível contra os sem-terra e a sua organização social e
na medida em que solapa os mananciais de toda a ri-
política. É instrutivo recordar, quanto a essa questão,
queza: a terra e o trabalhador” (MARX, 2013, p. 574).
o grande número de trabalhadoras e trabalhadores
Nos últimos 20 anos, sobretudo, o uso de organis-
sem-terra que, via de regra, tomba no âmbito do em-
mos geneticamente modificados (OGMS) aumentou
bate contra as forças do latifúndio.
negativamente o impacto das novas tecnologias so-
bre o meio ambiente e a saúde humana, e a agricul-
No Brasil, estima-se que 1% dos grandes proprietários tura, instrumento indispensável à nutrição humana,
de terra monopoliza 43% dos territórios agriculturáveis vem, de repente, sendo impulsionada no sentido de
do país. fazer valer mais os interesses comerciais do que o
bem-estar da humanidade. Nesse devir, uma ameaça
cresce e empareda as populações tradicionais – indí-
O problema extrapola os conflitos em torno da genas, quilombolas etc. – e a agricultura familiar, ao
bandeira de democratização do usufruto da terra. tempo em que sinaliza para o envenenamento e uma
Passa igualmente pelas disputas, à volta do fundo pú- maior concentração da terra. Ademais, quanto mais
blico. Com efeito, ele transcende essas searas e alcan- cresce a produção agrícola, mais a fome se manifesta.
ça situações complexas, como a forma em que a terra Nesse cenário, onde tudo o que é sólido se des-
é trabalhada. As grandes empresas agrícolas usam e mancha no ar, como diriam Marx e Engels, é pre-
abusam dos processos de envenenamento da terra. ciso “reafirmar o princípio da qualidade de vida, o
A substância ideológica do capital, neste caso como que significa vida digna para todas as pessoas, com
em outros, põe-se a serviço do agronegócio e de seus direito à saúde, educação, lazer e, inclusive, ao aces-

92 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


so a uma alimentação sadia (SAUER, 2010, p. 168). É verdade que podemos tentar passar por cima

O MST e o projeto de agroecologia nas escolas do campo


É por esse motivo que o MST, ao lado da luta pela disso e nos circunscrever ao problema da reforma
terra, acresceu ao seu programa a proposta de uma agrária, tarefa com o qual a organização dos sem-
nova estratégia agrícola, centrada inelutavelmente na -terra se identifica de modo mais direto e urgente. O
agroecologia, e desenvolveu essa proposição, desti- que faz época na História do Brasil é precisamente a
nada a salvar o meio ambiente e assegurar vida digna concentração de terra, de um lado, e a expropriação
às pessoas, por dentro do projeto de uma educação desse direito quando nos remetemos à desmedida
do/no campo. Nesse espírito, nascem as escolas do massa de deserdados do campo. De fato,
campo, hoje uma marca do movimento.
A grande propriedade privada de corte
Nunca será demasiado sublinhar que a luta pela
fundiário, a modernização da agricultura sob a
terra segue com centralidade no programa e na estra- égide do capital e, por dentro disso, a lógica do
tégia do MST, mas, ao lado dela, inscrevem-se com desenvolvimento capitalista a afrontar longas
força as noções de educação do campo como prática extensões de terra e a produzir migrações
pedagógica e a agroecologia como princípio dessa desenfreadas, em grandes linhas, tornaram a
reforma agrária uma necessidade histórica e
pedagogia. De sorte que a experiência do MST, sobre-
uma tarefa por se realizar em regiões como a
maneira nos últimos 20 anos, testemunha vivamente América Latina, sobretudo, o Brasil (QUEIROZ
a afirmação da tríade terra-educação-agroecologia. et al, 2022, p. 207).

No entanto, presentemente, temos que tratar de


O programa do MST: um lugar outras questões que, articuladas à luta pela democra-
para a escola do/no campo tização do acesso à terra, nas circunstâncias inerentes
à análise, adquirem corporeidade individualizada. É
Queiroz et al (2023, p. 29-30) escreveram que: o caso, por exemplo, da educação do campo. A esse
respeito, Queiroz et al (2022, p. 208) são categóricos:
[...] uma das características mais interessantes
da sociedade brasileira pós-regime militar O que nos chama atenção no estado atual
autocrático manifesta-se na centralidade das pesquisas que abordam o problema
da questão agrária cuja luta extrema se fundiário e, dentro dele, o tema das necessárias
traduziu no aparecimento de organizações e transformações agrícolas e agrárias é como, por
de movimentos diametralmente opostos, a exemplo, a luta pela terra no Brasil nos últimos
exemplo do Movimento dos Trabalhadores e tempos tem se articulado fortemente às pautas
das Trabalhadoras Sem-terra (MST) e da União voltadas para educação. Trata-se da chamada
Democrática Ruralista (UDR). No caso do MST, educação do campo.
ao lado da luta pela reforma agrária, levantou-se
um programa popular no qual às questões do
Nessa perspectiva, o movimento passa a questio-
acesso democrático a terra juntaram-se propostas
que trouxeram para o primeiro plano temas como
nar não apenas a estrutura fundiária fortemente con-
a agroecologia e a educação do campo. centrada, mas, igualmente, as lacunas na educação
tradicional, quando não a ausência pura e simples da
Nessa síntese fica nítido não só o lugar do MST oferta de um ensino público condizente voltado às
na questão agrária brasileira, mas a inserção das ca- massas camponesas.
tegorias de educação do campo e da agroecologia na Durante muito tempo, no Brasil, a noção de uma
plataforma programática do movimento. escola pública voltada para “o homem do campo” es-
A antítese direta do latifúndio no Brasil tem sido teve associada à noção de escola rural, que, grosso
o MST. A ideia de que o movimento se restringe aos modo, estava vinculada mais às necessidades e dinâ-
conflitos em torno da questão agrária mais direta não micas da vida urbana do que propriamente à realida-
se sustenta, haja vista que a estratégia dessa organiza- de do campo. De feito, muitas dessas escolas, a sua
ção responde a problemas históricos e conjunturais maioria, estavam localizadas em núcleos urbanos e
da sociedade brasileira. não em lócus rurais.

ANDES-SN n julho de 2023 93


A crise ecológica e socioambiental Com o sistema antigo de escolas rurais, oferecia- lidando com uma proposta programática significati-
-se um ensino que parecia carregar consigo uma or- vamente ampla, em que o movimento dirige-se a toda
dem de coisas universalmente válida, seja quanto aos a sociedade, levantando os seus pleitos sem qualquer
métodos, seja quanto ao conteúdo. Nas circunstân- demonstração de estreiteza ou superficialidade.
cias históricas desse modelo escolar, o conhecimento Em termos práticos, desde o início da luta do MST,
das comunidades tradicionais, em regra, era menos- em meados dos anos 1980, os acampamentos traziam
prezado e a instrução era feita à luz de um formalis- consigo forte simbologia e, ao mesmo tempo, uma
mo tacanho e alheio às práticas e à concretude do forma de resistência, com diversos desdobramentos.
fazer campesino. No imaginário das pessoas ligadas aos conflitos agrá-
Ao longo de grande parte do século XX, esse mo- rios, a consigna “ocupar, resistir, produzir” tornou-
delo e seu modo de raciocínio marcaram a paisagem -se imensamente popular. Posto isso, “A conquista da
brasileira como uma garantia de que a sociedade e o escola nos primeiros acampamentos é uma luta in-
Estado brasileiro estavam efetivamente conectados à corporada à pauta de reivindicações do Movimento”
vida rural e aos seus múltiplos processos de totali- (BARBOSA, 2020, p. 294).
zação histórica. Essa maneira de tratar o problema Como resultado de fortes determinações obje-
começou a fazer água no último quarto do século tivas, a ideia-chave de uma educação camponesa
passado, calhando com a rica experiência de lutas e aflorou quase sob as pegadas iniciais do movimento.
conquistas do MST. Depois de um longo processo de Não por acaso, Barbosa (2020, p. 295) assevera que
confrontação, que colocou em lados opostos o mo- “A reflexão em torno do direito à educação no MST
vem desde sua gênese, quanto à reparação históri-
ca de um direito fundamental e assim se iniciou a
construção de uma Pedagogia do Movimento, uma
Com o sistema antigo de escolas rurais, oferecia-se um
Pedagogia da Terra”.
ensino que parecia carregar consigo uma ordem de coi-
Evidentemente, a proposta de uma escola do/no
sas universalmente válida, seja quanto aos métodos, seja
campo não apareceu no laboratório da história como
quanto ao conteúdo. Nas circunstâncias históricas desse
um projeto pronto e acabado. No início, era uma re-
modelo escolar, o conhecimento das comunidades tradi-
cionais, em regra, era menosprezado e a instrução era fei- flexão e uma proposta genérica estampada em uma
ta à luz de um formalismo tacanho e alheio às práticas e à frase: “Nas lutas pela terra, a educação é uma neces-
concretude do fazer campesino. sidade” (BARBOSA, 2020, p. 295). As linhas básicas
de uma proposta nessa direção foram sendo constru-
ídas pouco a pouco por meio de vários eventos orga-
nizados pelo movimento para refletir o problema e
vimento dos trabalhadores e das trabalhadoras sem- produzir soluções. Até chegar à ideia de uma escola
-terra e a ordem do capital e o Estado brasileiro, a territorializada e ligada à luta pela reforma agrária,
reivindicação de um novo tipo de escola, voltado aos de fato, muitas noites foram atravessadas e, finalmen-
povos do campo, adquiriu foro de cidadania. Nascida te, o rascunho adquiriu a forma de arte-final.
do conflito de uma nova territorialização do capital e É exatamente daí que surge o que Francisco Flávio
da resistência camponesa, a escola do campo teste- Barbosa descreve como
munha que, para os camponeses, a história não se re-
sume a um beco sem saída e a luta enfoca não apenas Uma escola que valorize o saber do povo, que
uma dimensão, mas múltiplas dimensões, incluindo respeite a realidade dos educandos e que seja
a educação e as práticas agrícolas. diferente em seu planejamento, currículo,
avaliação, tempos educativos, formação de
Para Barbosa (2020, p. 294), “A história da luta por
educadores e participação da comunidade em
educação no MST está associada à luta por terra, tra- todas as fases do processo educativo (BARBOSA,
balho e justiça social”. Consequentemente, estamos 2020, p. 300).

94 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


A partir dessa descrição, torna-se possível avaliar sam 10 unidades espalhadas pelo espaço local, tra-

O MST e o projeto de agroecologia nas escolas do campo


o lugar e o caráter da escola do campo que, na maior zendo, em sua tessitura, as lutas e o modo de vida
parte dos casos, é uma realidade que perpassa ini- das comunidades camponesas. Dadas tais caracte-
cialmente as primeiras duas décadas do século XXI. rísticas, talvez seja necessário concordar com Ianni
Nas palavras de Queiroz et al (2022, p. 212), trata-se (2016, p. 66), quando ele afirma que “a luta pela terra
de uma escola “em tudo e por tudo diferente do velho é sempre e, ao mesmo tempo, uma luta pela preser-
projeto das escolas rurais tradicionalistas, em alguns vação, conquista e reconquista de um modo de ser e
casos, fincadas na cidade e, em geral, desvinculadas de trabalho”. À luz dessa passagem, não há como não
dos territórios camponeses e de suas tradições, práti- concordar com Queiroz et al (2022, p. 213), quando
cas, saberes e necessidades”. assinalam que
É possível, com efeito, identificar que a última dé-
cada do século XX correspondeu ao amadurecimen- [...] essa proposição peculiar de escola recupera
as formas camponesas de trabalho e luta, o seu
to de uma reflexão centrada na noção de uma escola
modo de vida, as suas tradições, as suas místicas,
camponesa. Também seria inconcebível, nas condi- a sua história, ainda que articulando cada uma
ções históricas da luta de classes no campo brasileiro, dessas questões a uma teoria pedagógica com
supor que entre a reflexão e o advento das primeiras um olhar voltado para o conjunto.
escolas não se estabelecesse algum tempo de matura-
ção. Por isso, as experiências iniciais de constituição
das escolas do campo, em geral, coincidem com a do- O lugar da agroecologia no
bra do século. programa do MST e seus nexos
O que é extremamente pertinente é notar as con- com a escola do campo
tradições que emergem junto a essas experiências
de que tratamos. Há uma tendência a tomar esses O MST é um dos mais importantes movimentos
processos como unívocos quando, em última análi- sociais da América Latina, e quer nos parecer que
se, eles trazem em si o selo do contraditório, afinal, quanto a esse ponto não há dúvidas. Depois disso,
governos estaduais, na aurora do século XXI, tomam precisamos recordar que esse movimento, em sua prá-
como sua a tarefa de institucionalização da proposta tica cotidiana, tem se notabilizado por uma política
do movimento. Ao estudar o caso do Ceará, nota-se permanente de combate à fome. Além disso, confor-
uma política em disputa na qual não faltam impasses, me vimos no item anterior, ele também se destaca no
embaraços e contradições. campo da educação. Mas um aspecto que não pode ser
Independentemente dessa consideração, que traz minimizado é a sua estratégia com vistas à preservação
consigo inestimável importância, as escolas do cam- ambiental, tema que ganhou orientação específica e
po constituem uma realidade no Ceará e já ultrapas- influência pronunciada no programa da organização.

ANDES-SN n julho de 2023 95


A crise ecológica e socioambiental O princípio básico dessa política de preservação esse metabolismo há pouco designado, induzem aos
ambiental passa, necessariamente, pela agroecologia, processos mais irrefreáveis de degradação ambiental.
que, segundo Caldart (2020, p. 270), é o alicerce “da Aqui, não se trata de opormos obstáculos à ciência
agricultura camponesa do século XXI”. No caso das e à tecnologia, mas de destacar como o capitalismo
escolas do campo, cuja experiência é uma realidade lança mão dessas ferramentas para incrementar seus
que comparte seu modelo pedagógico com a agenda ganhos, malgrado o alto preço que se paga no que
geral da educação pública nos estados, a agricultura concerne ao desvirtuamento do metabolismo entre
agroecológica é construída fundamentalmente pelos os seres humanos e a natureza. Não se trata, portanto,
camponeses, haja vista a importância adquirida pela de negar a ciência, mas de fazer com que as conquis-
agricultura familiar camponesa, fenômeno nacional tas científicas e tecnológicas sejam trabalhadas com
que se manifesta vivamente no território cearense. a natureza e os seres humanos, não contra ela e eles.
Não surpreende, portanto, que as restrições fun- É no interior desse contexto que começa a se ma-
damentais ao modelo de destrutividade do agrone- nifestar a proposta agroecológica esgrimida pelo
gócio encontram expressão na agroecologia, que, em MST. Segundo Queiroz et al (2022, p. 208):
última hipótese, “É a base científica de construção da
Pertencentes a uma longa tradição crítica, as
propostas de um projeto agroecológico e de
uma economia camponesa fundada no exercício
O MST é uma organização que se apresenta como im- de solidariedade social andam lado a lado nas
pulsora de uma alternativa camponesa agroecológica, proposições programáticas e estratégicas que
algo, digamos, incompatível com a lógica da proprie- mobilizam o MST. Aqui, os temas são enlaçados:
dade fundiária sob o manto de chumbo do modo de crítica à estrutura fundiária concentrada e ao
produção capitalista. agronegócio, necessidade de reforma agrária,
mas, igualmente, de uma educação popular-
camponesa e de um modelo agrícola fundado na
agroecologia. Trata-se, em última análise, de um
agricultura camponesa capaz de confrontar o agro- combate pertinente às agruras de uma lavoura
negócio (CALDART, 2020, p. 278). O MST, por meio arcaica, que precisa urgentemente ser vencida.
de seu modelo agroecológico, contesta o envenena-
mento da terra e, por conseguinte, a lógica predatória Dessa forma, os autores, em lugar de glorificar a
do capital que, em larga medida, Marx já prenunciara suposta modernidade capitalista, associa a imagem
no livro I de O Capital ao falar dos Estados Unidos. do modo de produção capitalista na agricultura a
Segundo ele, “Quanto mais um país, como os Estados uma ideia de atraso: a de lavoura arcaica. Em que
Unidos da América Norte, tem na grande indústria consistiria esse atraso ou estaríamos diante de um
o ponto de partida de seu desenvolvimento, tanto contrassenso histórico? A questão toda pode ser for-
mais rápido se mostra esse processo de destruição” mulada da seguinte maneira: ao associar avanço com
(MARX, 2013, p. 573). preservação ambiental e condições de vida dignas
O que era uma tendência geral dos países mais para as amplas massas, e ao identificarem que isso
fortemente industrializados do século XIX, hoje se não se daria sob a forma da propriedade fundiária no
ampliou de tal forma que, mesmo em estados frágeis capitalismo, os autores entendem que, em lugar de
industrialmente, o uso das últimas e funestas desco- modernização, o que se tem é um modo de produção
bertas de destruição da natureza tornou-se algo cor- antiquado coberto de um floral modernizante.
riqueiro. Em consonância com esse fato, o capitalis- Diante da lógica arrogante dos ideólogos capitalis-
mo, para usar as palavras de Marx (2013), desvirtua tas, Florestan Fernandes chamou nossa atenção para
o metabolismo entre o homem e a terra. Assim, a ma- as contradições desse capitalismo pretensamente
quinaria e as últimas descobertas tecnológicas não só moderno aplicado às economias dependentes, con-
anulam as possibilidades de sobrevivência de milhões cluindo que essas estruturas econômicas, em última
de pequenos produtores rurais, mas, desvirtuando instância, são reféns de uma modernização contro-

96 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


lada de fora (FERNANDES, 1995). Desse modo, “À Dessa forma,

O MST e o projeto de agroecologia nas escolas do campo


sombra dessa modernização controlada de fora, for-
jaram-se múltiplas políticas, que, mais recentemente, A luta do MST tem por base organizar os
traduziram-se na mal denominada ‘revolução verde’, camponeses expropriados da terra, por meio
da ocupação dos latifúndios improdutivos,
bem como nos ‘pacotes tecnológicos’ (máquinas,
com o objetivo de conquistar a reforma
equipamentos e crédito), conforme nos alerta Barbo- agrária e realizar transformações profundas na
sa (2020)” (QUEIROZ et al, 2022, p. 209). estrutura da sociedade. Observando o processo
A questão que se coloca agora é a seguinte: o MST de modernização conservadora do capital na
agricultura, cujo efeito se dá na adoção do
é uma organização que se apresenta como impulsora
pacote tecnológico da chamada revolução
de uma alternativa camponesa agroecológica, algo, verde, a luta do MST se amplia em direção
digamos, incompatível com a lógica da proprieda- ao combate ao agronegócio e sua destruição
de fundiária sob o manto de chumbo do modo de do modo de vida e da cultura camponesa
produção capitalista, em que esse “cria a forma cor- (BARBOSA, 2020, p. 305).

respondente a si mesmo mediante a subordinação


da agricultura ao capital” (MARX, 2017, p. 687). Ao Como podemos ver, o MST opõe ao regime do la-
terra-capital, de feito, o MST deve ser tratado como tifúndio improdutivo a conquista da reforma agrária,
um genuíno pária social, que, seguramente, precisa mas, ao mesmo tempo, contesta vividamente seu for-
ser ideologicamente minado e socialmente contido. mato moderno-conservador, expresso em uma pala-
Do mesmo modo que o MST integrou ao seu pro- vra controversa: agronegócio. Essa contestação não
jeto de reforma agrária uma alternativa pedagógica se faz só negativamente, mas também por meio de
organizada, ou o que Barbosa (2020, p. 299) intitu- uma alternativa concreta: o modelo de matriz agroe-
lou “de espaços educativos de resistência” – as esco- cológica. Entre a luta pela terra e esse modelo, tradu-
las do campo –, ele articulou a esse tipo específico zido em um conjunto de práticas alternativas, nasceu
de instituição escolar a abordagem agroecológica. a escola do campo, uma pedagogia da terra que, de-

ANDES-SN n julho de 2023 97


A crise ecológica e socioambiental certo, demonstra o lugar da educação, da ciência e Considerações finais
dos demais saberes não somente como oponência ao
velho, mas, também, como anúncio do novo. É sabido que, nos primórdios do MST, o questiona-
É precisamente em virtude dessa lógica eivada de mento da natureza monopolista do latifúndio, de um
amplitude e criticidade que o movimento tem produ- lado, e a bandeira da reforma agrária, de outro, eram
zido uma massa crítica que cimenta a estruturação de considerados quase que suficientes para dimensionar
toda uma teoria que ressalta o sentido mais fecundo programaticamente o movimento. Os processos que
da agroecologia. Seguindo essa linha de raciocínio, produziram gradualmente uma mudança nesse pon-
Caldart (2020, p. 276-277) afirma que: to de vista não devem ser entendidos como um raio
no céu azul, mas como algo que sempre estivera ali,
Uma primeira razão para se aproximar da
ainda que não forçosamente com a mesma espessura
agroecologia é a vocação humanista das escolas
do campo: tudo que tem importância para e amplitude que hoje se conhece.
defesa e valorização da vida, em suas diferentes Suponhamos que as alterações na economia, nas
dimensões e na sua diversidade, é de interesse ciências, na natureza e na sociedade, globalmente,
da escola. A agroecologia estuda a vida e
e, em particular, nas relações de classe – que se de-
fundamenta a opção por uma agricultura a favor
da vida. ram tanto localmente como em escala internacio-
nal (principalmente) –, obrigaram os movimentos
Partindo desse pressuposto inicial, Caldart (2020) sociais a repensar as suas táticas e estratégias, bem
acrescenta outras razões as quais ela considera como como as suas tarefas. Isso se dá especialmente com
algo essencial para justificar por que se ocupar da o MST, que, talvez por essa capacidade de se redi-
agroecologia, destacando as motivações de natureza mensionar, mostre-se com toda potência, mesmo em
ética, de ordem política, educativa e epistemológica/ circunstâncias difíceis, o que anima aos explorados e
pedagógica. Isso demonstra não apenas a comple- irrita os poderosos.
xidade das questões envolvidas na alternativa agro- Logo, se considerarmos a trajetória do MST, des-
ecológica, mas como ela oferece um caminho que de 1984 até os dias que correm, certamente have-
confronta o modelo do agronegócio, violento e en- remos de captar o seu complexo desenvolvimento,
venenador, vislumbrando uma nova geografia para nascido da luta pela terra, e, portanto, do combate
a agricultura, que, de fato, desde que as divisões de contra a estrutura agrária injusta, e amadurecendo
classe se afirmaram socialmente, apenas se perpetua sua pauta, ressaltando temas como a educação do
mediante a exploração das massas. campo e, quase como desdobramento, jamais inde-
Em geral, é preciso assinalar que essa era a cons- pendentemente, o considerável lugar ocupado pela
tatação que Marx esgrimia no livro III de O Capital, alternativa agroecológica.
ao afirmar que: A esse respeito, é especialmente interessante en-
fatizar que a luta pela terra, pela educação pública
Nesse sentido, o monopólio da propriedade e por modelos que respeitem o meio ambiente, na
da terra é uma premissa histórica e continua ambiência selvagem do capitalismo, nem sempre
a ser a base constante do modo de produção
é ofensiva; inversamente, grande parte das vezes
capitalista, assim como de todos os modos de
produção anteriores que, de um modo ou de constitui um dos tantos momentos de resistência
outro, fundam-se na exploração das massas da classe trabalhadora. Nesse sentido, na medida
(MARX, 2017, p. 677). em que nos aproximamos dos 40 anos de fundação
do MST, não há como negar que nele flameja uma
A coincidência entre luta pela terra, educação do centelha de quase inesgotável resistência, para nossa
campo e agroecologia com a estratégia de luta por uma fortuna e para o azar do grande capital e de seus
nova sociedade, sem a exploração das massas, em úl- funestos ideólogos.
tima hipótese, responde à necessidade de superar essa
velha, teimosa e continuada premissa histórica.

98 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


O MST e o projeto de agroecologia nas escolas do campo
BARBOSA, Francisco Flávio Pereira. Educação do campo e agroecologia: uma experiência
pedagógica em construção. In: GONÇALVES, Adelaide; BRITO, Liana; VICENTE, Lourdes
(Orgs.). Resistência camponesa: histórias de teimosia e esperança. Fortaleza: UECE, 2020.
CALDART, Roseli Salete. Escolas do campo e agroecologia: uma agenda de trabalho com
a vida e pela vida. In: GONÇALVES, Adelaide; BRITO, Liana; VICENTE, Lourdes (Orgs.).
Resistência camponesa: histórias de teimosia e esperança. Fortaleza: UECE, 2020.
FERNANDES, Florestan. Em busca do socialismo: últimos escritos & outros textos. São
Paulo: Xamã, 1995.
IANNI, Octavio. A utopia camponesa. In: STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no
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Curitiba: CRV, 2020.
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QUEIROZ, Fábio José de; RODRIGUES, Jéssica; GONÇALVES, Camila. Da lavoura arcaica
à agroecologia: questão fundiária, reforma agrária e escola do campo no Ceará, In: Educação
do campo no Ceará - Uma forma de resistência à barbárie na perspectiva histórico-crítica /
Orgs.: Frederico Jorge Ferreira Costa; Karla Raphaele Costa Ferreira; Maria Aires de Lima.
Curitiba: Editora CRV, 2022.
QUEIROZ, Fábio José de; RODRIGUES, Jéssica; LIMA, Renata. A questão agrária no
livro didático de história: uma abordagem crítica da coleção “História - Das cavernas ao
terceiro milênio”, In: Economia do conhecimento e contemporaneidade em pesquisa /
Organizadores: Daniel Luciano Gevehr, Diogo da Silva Cardoso. Guarujá-SP: Científica
Digital, 2023.
SAUER, Sérgio. Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro, São Paulo: Expressão
Popular, 2010.

referências ANDES-SN n julho de 2023 99


A crise ecológica e socioambiental

Mineração extrativista,
educação pública e
resistências classistas
na região do quadrilátero
ferrífero de Minas Gerais
Kathiuça Bertollo
Docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
E-mail: kathiuca.bertollo@ufop.edu.br

Fotos:
Kathiuça Bertollo/ADUFOP

Resumo: Este artigo reflete acerca da mineração extrativista, da educação pública e das
resistências classistas na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais, território mar-
cado pelo maior crime socioambiental do país (o rompimento/crime da barragem de Fundão
em Mariana-MG), pela presença de instituições de ensino públicas (tais como a UFOP, o
IFMG campus Ouro Preto e as escolas municipais de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo)
e pelas seculares lutas e resistências da classe trabalhadora organizada em diferentes
sujeitos coletivos, especialmente via movimentos sociais, entidades sindicais e frentes
amplas de atuação. Explicita as contradições próprias do modo de produção capitalista que
estruturam e conformam a esfera da produção e da reprodução social e, dessa forma, o
contexto da luta de classes na região, sendo a questão ambiental um âmbito central desse
antagonismo classista.

Palavras-chave: Mineração Extrativista. Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais. Educação Pública.


Resistências Classistas.

100 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução Minas Gerais ocupa lugar destacado na história
mundial, seja pelo passado colonial, diáspora e es-
O que dirá o mar? cravização do povo negro para o trabalho nas minas,
seja na contemporaneidade pelos rompimentos/cri-
Tudo escorreu pro mar
Tudo escorreu pro mar
minosos1 da barragem de Fundão em Mariana, no
Tudo escorreu pro mar Mariana dia 5 de novembro de 2015, e da barragem B1 em
Tudo escorreu pro mar Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019. Separa-
O que dirá o mar dos por séculos, o que assemelha esses distintos mo-
Ao ver tantas vidas marcadas?
mentos históricos é o contexto de descarte da vida
Ao relembrar o mar
De lama tão desalmada humana, destruição ambiental e saqueio, situações
O que dirá o rio pro mar? essas que estruturam o modo de produção capitalista
O Rio Doce amargo a vagar em nível global às custas desse território conformado
Que carregou pra dentro um mar
pela dependência e dominação externa.
De lama tão desalmada
O mar dirá num sopro A partir desses amplos determinantes econômi-
Que ecoará no vento cos, políticos, sociais e culturais, nas linhas que se-
Que a injustiça dos homens guem serão apresentadas reflexões a partir da reali-
Terá contada o seu tempo
dade cotidiana da mineração extrativista na região
A justiça terá vida
E fará nesta terra o seu templo
do quadrilátero ferrífero de MG, onde tudo se agrava
Eu vou dizer pro mar após os rompimentos criminosos das barragens de
Que este meu tormento... rejeitos em Mariana e Brumadinho. A disputas pelos
É tormento que findará bens naturais comuns, destruição ambiental, adoeci-
Pois eu trago a força e não o lamento
mentos, opressões e perseguições, especialmente às
Nada me engana ô mar
Ouça das montanhas o penar mulheres lutadoras sociais, são questões que confor-
Desde Mariana vou gritar mam a vida social na região sob os marcos do capital;
Vou chamar o mundo no caso em tela, das mineradoras.
Pois não há dinheiro imundo
Também são apresentadas reflexões que abarcam
Que enterra fundo este meu cantar
o contexto da educação pública na região, onde são
(Dimir Viana) evidenciados alguns dilemas e paradoxos presentes

ANDES-SN n julho de 2023 101


A crise ecológica e socioambiental e estruturantes do cotidiano escolar, da educação cultura e tradições de cerca 450 famílias, deixando
técnica-profissionalizante e do ensino superior. E, um rastro de mais de 600 quilômetros de contami-
por fim, é evidenciado, mesmo que brevemente, o nações e devastação da fauna e da flora, uma vez que
contexto das resistências populares, que se configura os rejeitos atravessaram o estado de Minas Gerais,
a partir de um caráter classista, amplo e fortemente ultrapassaram seu limite geográfico e adentraram no
unificado em torno do enfrentamento às minerado- oceano, no estado do Espírito Santo, desencadeando
ras, à destruição ambiental, às violências e violações um conjunto de modificações e destruições naquela
de direitos e às mortes que causam, ou seja, ao atual região litorânea.
modelo de mineração. Importa evidenciar que áreas urbanas e rurais, co-
munidades tradicionais, ribeirinhos, quilombolas e
indígenas foram diretamente atingidos pelos rejeitos
Mineração extrativista e questão tóxicos, o que modificou material, subjetiva e espiri-
ambiental: um cenário de violências, tualmente suas existências.
destruição e mortes
Antes do rompimento da barragem, cerca de
126 famílias indígenas da tribo Krenak viviam
A atividade da mineração extrativista acontece e
espalhadas em sete vilarejos às margens do Rio
se estrutura secularmente na América Latina e no Doce. Eles sobreviviam da pesca e da caça de
Brasil. Em Minas Gerais, do “ciclo do ouro” ao atual animais e se abasteciam da água do rio para
“ciclo do minério de ferro”, a região do quadrilátero beber e irrigar plantações. Agora, eles recorrem
à carne de aves, boi ou porcos, compradas em
ferrífero2 é secularmente saqueada e marcada pela
supermercados próximos. [...] Não temos casa,
superexploração da força de trabalho. Essa singular dinheiro ou qualquer meio para pagar pelo que
região do país, que se destaca pelo casario barroco/ fizeram com o rio, com a gente. O rio era um
colonial, pela culinária, pelas tradições culturais e forte médium, onde praticávamos nossa cultura.
religiosas, figura as páginas contemporâneas da his- [...] Os anciões executavam rituais sagrados nas
ilhas do Watu. Assim como o Rio Doce morreu,
tória pela perpetuação da violência, destruição am-
nossa cultura está morrendo (OPINIÃO &
biental e mortes no contexto econômico produtivo NOTÍCIA, 2017 apud BERTOLLO, 2017).
da mineração extrativista.
Os dias 5 de novembro de 2015 e 25 de janeiro O rompimento/crime da barragem B1, de pro-
de 2019 marcam a história, não somente de Ma- priedade da Vale S.A., em Brumadinho, despejou
riana e Brumadinho, mas a história mundial, uma cerca de 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos
vez que esses rompimentos criminosos explicitam a tóxicos, destruiu imediatamente a comunidade de
perpetuação da subordinação econômica e política Córrego do Feijão, assassinou cerca de 300 traba-
aos centros do capitalismo. São máximas expressões lhadores/as que estavam no complexo produtivo no
da superexploração da força de trabalho, do saqueio momento (sendo considerado o maior acidente de
dos bens naturais comuns e da destruição ambiental trabalho do país), contaminou a bacia do Rio Para-
no território. opeba, causou danos irreparáveis a agricultores fa-
O rompimento/crime da barragem de Fundão, miliares e comunidades tradicionais, dentre outros.
de propriedade das mineradoras Samarco Minera- Em suma, novamente, a mineração extrativista e sua
ção, Vale S.A. e BHP Billiton, em Mariana, despejou operacionalização a partir da lógica da dependência,
43,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia superexploração da força de trabalho, lucros exorbi-
hidrográfica do Rio Doce, destruiu imediatamente tantes aos acionistas e destruição ambiental marcam
a comunidade de Bento Rodrigues, localizada a cer- violentamente Minas Gerais.
ca de cinco quilômetros da barragem que se rom- Ambos os rompimentos criminosos são expressões
peu. Também destruiu a comunidade de Paracatu fenomênicas do antagonismo classista, da transferên-
de Baixo, distante da barragem uns 60 quilômetros, cia de valor às economias centrais, da subserviência
apagando de forma abrupta os modos de vida, a do Estado e governos ao capital e seus expoentes, da

102 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


ANDES-SN
n
julho de 2023
103
Mineração extrativista - MG
A crise ecológica e socioambiental cooptação de âmbitos da gestão pública e lideranças e Dos 25 estados com registros, os que mais
da falácia do progresso e desenvolvimento econômi- concentraram localidades em conflito foram
Minas Gerais (45,8%), Pará (14,9%) e Bahia
co por meio da mineração extrativista. Além disso,
(9,8%). Em número de pessoas atingidas por
expressam um contexto econômico produtivo que se estado, Minas Gerais aparece concentrando 75%
funda na violência extremada. Conforme dados do do número total de pessoas atingidas, seguido de
Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, Alagoas (6,6%), Pará (4,8%) e Roraima (4,3%).
[...] Dos 853 municípios de Minas Gerais, foram
no ano de 2020, ocorreram no país 851 ocorrências
mapeados conflitos em 121 (14,1%), sendo
em 749 localidades em conflito. Desse total, Minas Brumadinho o que mais concentrou casos,
Gerais desponta como o estado com mais ocorrên- com 27 situações de conflito, totalizando 40
cias: 381 conflitos na mineração, que envolvem áreas ocorrências, majoritariamente por conta do
quilombolas, indígenas, unidades de conservação, processo de reparação do desastre da barragem
da Vale, em 2019. Os conflitos em relação a
assentamentos etc. (OBSERVATÓRIO DOS CON-
“Terra” e “Água” foram os que mais se destacaram,
FLITOS NA MINERAÇÃO NO BRASIL, 2023). Em com 384 e 319 ocorrências, respectivamente.
suma, o relatório evidencia que Foram mapeadas 144 empresas envolvidas em
conflitos em 564 localidades. A Vale S.A. é a
empresa que mais concentra conflitos (38,9%),
congregando a Vale S.A. (110 conflitos) e sua
subsidiária Samarco/Vale/BHP (109 conflitos).
As extrações ilegais de minérios, em particular
os garimpos, provocaram 149 ocorrências em
130 localidades em 19 estados, com destaque
para o Pará (42,2%), Mato Grosso (12,7%) e
Minas Gerais (8,0%). Além disso, os indígenas
foram os grupos mais violados por essa atividade
em 31 localidades (23,8%), com 49 ocorrências
(32,8%). [...] As categorias que mais foram
atingidas pela mineração foram: “pequenos
proprietários rurais” (14,8%), “trabalhadores”
(12,2%), “ribeirinhos” (10%) e “indígenas”
(9,7%). Foram mapeadas 121 reações diretas às
violações, concentradas em Minas Gerais (55),
Pará (25) e Bahia (16). Em Brumadinho houve,
em média, mais de um protesto por mês (14).
Pequenos proprietários rurais (26 ocorrências)
e indígenas (21 ocorrências) foram as categorias
que mais reagiram com ações de resistência.
Ao menos 112.718 indígenas estavam
envolvidos em conflitos, sendo 58,7% deles com
garimpeiros. Os quilombolas sofreram violações
em 43 conflitos e 47 ocorrências, englobando ao
menos 20.800 pessoas. Conflitos em área urbana
contabilizaram 74 localidades (10,2% de todos
os conflitos), totalizando 93 ocorrências e ao
menos 104.143 pessoas envolvidas (COMITÊ
NACIONAL EM DEFESA DOS TERRITÓRIOS
FRENTE À MINERAÇÃO, 2023).

Esses determinantes amplos e gerais também ex-


plicitam a realidade cotidiana da região do quadri-
látero ferrífero de MG. Direcionando a reflexão mais

104 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Mineração extrativista - MG
proximamente a esse território, destacamos que a que transportam essa commodity, são etapas produti-
região vivencia embates e disputas violentas entre as vas que pressupõem o uso da água, e esse uso ocorre
comunidades e populações atingidas com as minera- de forma irracional, desconsiderando sua finitude,
doras, empresas prestadoras de serviços e a Funda- uma vez que a região também se caracteriza por certa
ção Renova, entidade criada para reparar os danos e “abundância” desse bem natural comum.
reconstruir os distritos destruídos pelo rompimento
A Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas está
criminoso da barragem de Fundão, mas que, passa-
localizada na região central de Minas Gerais,
dos mais de sete anos de sua atuação, conforma-se orientada no sentido sudeste para noroeste.
em uma megaestrutura financeira, material e de re- Suas nascentes estão localizadas nos limites da
cursos humanos morosa, ineficiente e subordinada Área de Proteção Ambiental da Cachoeira das
Andorinhas, município de Ouro Preto. O Rio das
aos interesses das mineradoras em detrimento dos
Velhas é o maior afluente em extensão da bacia do
direitos elementares dos/as atingidos/as3. Assim, evi- Rio São Francisco, com 761 km, e, na localidade
denciamos algumas situações que desencadeiam os de Barra do Guaicuy, em Várzea da Palma (MG),
embates e que conformam a luta de classes na região deságua no Rio São Francisco. Sua área de 29.173
km² (FEAM,1998) abrange 51 municípios, que
e que, de modo ampliado, contribuem para os pro-
concentram uma população total de 4.885.442
cessos de acumulação do capital: habitantes (IBGE, 2000) que contribui com
Disputa pela água: Sabe-se que a água é um bem 62% do PIB do estado de Minas Gerais. O Rio
natural comum imprescindível para nossa existência das Velhas é essencial para o abastecimento de
água da região metropolitana de Belo Horizonte
humano-genérica. Do mesmo modo, é utilizada de
e dos demais municípios que integram a Bacia
maneira estrutural nos complexos produtivos e nos
(PROJETO MANUELZÃO, 2023).
mecanismos de escoamento do minério de ferro na
região. A separação do minério do solo e de demais Na região do quadrilátero ferrífero/aquífero, a
materiais e substâncias, passando pelo armazena- disputa pela água entre as mineradoras e as comu-
mento dos rejeitos nas barragens até os minerodutos nidades também ocorre quando da ampliação dos

ANDES-SN n julho de 2023 105


A crise ecológica e socioambiental complexos produtivos e/ou nos processos de desca- gem B1 contaminaram e mataram o Rio Doce e o Rio
racterização e descomissionamento das barragens, Paraopeba, situação que impôs severos agravantes à
uma vez que são desconsideradas as nascentes e rios. população que dependia de suas águas, especialmen-
A contaminação do lençol freático e a água turva nas te os ribeirinhos, agricultores familiares, pescadores
torneiras das residências é uma constante, bem como artesanais e comerciantes do ramo do turismo.
a falta de abastecimento de água potável por sema- Poluição do ar, do solo, da água, contaminações e
nas, especialmente em bairros e regiões considerados adoecimentos: É notório que a contaminação do ar,
periféricos. Práticas de lazer e de contato com a natu- solo e água desencadeia adoecimento físico e mental
reza, como frequentar cachoeiras, também são invia- nas populações, uma vez que a mineração
bilizadas devido à seca e à contaminação dos cursos
da água. Nesse contexto, instâncias de controle social contamina el agua ya que, para separar los metales
de la roca, emplea elementos y metales pesados
e de fiscalização são desconsideradas e, por vezes,
como arsénico, azufre, cianuro, mercurio y
utilizadas de forma manipulada, para respaldar tais uranio, entre otros, los cuales contaminan las
práticas e ações das mineradoras. fuentes acuíferas y son altamente tóxicos. [...]
En relación con el suelo, éste se deteriora por
los derrames y vertidos de materiales tóxicos
y la sedimentación de polvo contaminado, de
A contaminação do lençol freático e a água turva nas tor- manera que, cuando no se remueve totalmente,
neiras das residências é uma constante, bem como a falta el suelo pierde sus funciones básicas. [...] De
de abastecimento de água potável por semanas, especial- igual forma, la megaminería también es factor
mente em bairros e regiões considerados periféricos. Prá- de polución para el aire al emitir material
particulado, metales pesados, vapores, gases
ticas de lazer e de contato com a natureza, como frequen-
y altos niveles de ruido. [...] Por si fuera poco,
tar cachoeiras, também são inviabilizadas devido à seca e se producen gases retenedores de calor en la
à contaminação dos cursos da água. atmósfera, por lo que la minería “a cielo abierto”
contribuye sustancialmente al cambio climático
(ESPINOZA, 2018, p. 42).

Além disso, impõem-se os processos de privatiza-


ção e, consequentemente, de lucratividade em torno Considerando a forma como a atividade produti-

do tratamento e distribuição da água na região. Em va da mineração extrativista se estrutura na região e

Ouro Preto ocorreu, nos anos recentes, a entrega ao a proporção dos danos e impactos ambientais decor-

capital internacional do serviço, até então público- rentes dos rompimentos criminosos, pode-se afirmar

-municipal, de tratamento e distribuição de água. que toda a população local é atingida.

Desde então, à população ouropretana são relegadas


La megaminería también perjudica gravemente
cobranças abusivas4, disponibilização de água suja e a las sociedades locales. Por principio de cuentas,
contaminada, recorrentes adoecimentos e casos de la salud de los habitantes se ve seriamente
violência e repressão policial no contexto da insta- afectada, pues enfermedades respiratorias,
lação dos hidrômetros, entre outras situações. Em gastrointestinales, dermatológicas, endocrinas,
cardiovasculares y neurológicas suelen
Mariana também aconteceram movimentações no
presentarse por los elementos que las minas
sentido de privatizar o serviço que atualmente per- dispersan en el medio ambiente (ESPINOZA,
manece público-municipal. No entanto, a população 2018, p. 42).
organizada conseguiu impedir o prosseguimento de
tal proposta, utilizando, inclusive, o exemplo de pre- A modificação da paisagem natural a partir da
carização e ineficiência dos serviços, taxas abusivas e abertura de estradas e do trânsito intenso de veículos
alta lucratividade aos acionistas que a privatização da pesados e a morte de nascentes, da fauna e da flora
água no município vizinho causou. conformam um contexto de estranhamento das co-
É fundamental, ainda, reiterar que os rompimen- munidades às localidades que suas famílias vivem
tos criminosos da barragem de Fundão e da barra- por gerações, e isso desencadeia processos de adoe-

106 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


cimento mental. A poeira que adentra as residências nantemente por negros/as, o que reafirma que os/

Mineração extrativista - MG
e causa adoecimento respiratório, de pele e alérgico as descendentes dos/as escravizados/as permanece-
é uma constante na vida da população que vive nas ram no território e o moldaram tal qual é hoje sob os
imediações das minas, barragens e complexos produ- marcos da superexploração de sua força de trabalho.
tivos. Além disso, o adoecimento causado por metais Wanderley (2015) afirma, a partir de dados do IBGE,
pesados tornou-se uma realidade pós rompimentos/ que, na época do rompimento/crime da barragem
crimes, pois tudo o que os rejeitos tóxicos alcançaram de Fundão, a proporção de pretos/as e pardos/as
foi contaminado e, nesse sentido, a contaminação de nas duas comunidades destruídas pelos rejeitos era
crianças, adolescentes e idosos traz imensos desafios de 84,3% em Bento Rodrigues e na comunidade de
à proteção e recuperação corporal e subjetiva dessas Paracatu de Baixo era de 80%. Já o percentual total
faixas etárias, em condição sensível e especial, da da população preta e parda no município de Mariana
existência biológica. era de 67,3%. Tais dados comprovam que a destrui-
Importa evidenciar que um estudo realizado pela ção ambiental está imbricada na superexploração da
Faculdade de Medicina da UFMG, em articulação força de trabalho da população negra e no racismo,
com a Cáritas MG, que é a assessoria técnica dos/as que permanece secularmente como um estruturante
atingidos/as, após dois anos do rompimento/crime da do capitalismo.
barragem de Fundão, explicitou um cenário em que

os indivíduos atingidos se encontram em A poeira que adentra as residências e causa adoecimento


situação de vulnerabilidade, sobretudo quanto à respiratório, de pele e alérgico é uma constante na vida da
sua saúde mental. O estado de vulnerabilidade
população que vive nas imediações das minas, barragens
da população estudada nos convoca a pensarmos
em medidas multidisciplinares focadas na
e complexos produtivos.
melhora de sua qualidade de vida e bem-estar,
não apenas no tratamento de doenças, mas na
prevenção de agravos e de seu surgimento nos
Outro âmbito estruturante do capitalismo é o con-
estratos mais jovens da população atingida.
Nesse sentido, devemos pensar não em medidas junto de opressões, violências e mortes impostas às
universais de tratamento, mas em intervenções mulheres. Neste caso, especificamente às mulheres
dirigidas para as diferentes faixas etárias. atingidas, lutadoras sociais, lideranças comunitá-
Nos adultos, observamos alta prevalência de rias e defensoras dos direitos humanos e ambientais.
transtornos psiquiátricos associados ao estresse
Os assassinatos da hondurenha Berta Cáceres5 e da
e a percepção de um acesso satisfatório à
assistência em saúde. [...] Quando abordamos brasileira Nicinha6, dentre tantas outras mulheres
os adolescentes, um grupo especialmente latino-americanas que dedicam suas vidas às lutas
vulnerável, capaz de perpetuar consequências e resistências populares, demonstram o quão brutal
negativas desse desastre por muito tempo,
e violento é o contexto da luta de classes em nosso
encontramos uma prevalência alta de rastreio
positivo para transtornos mentais (NEVES et al, continente, sobre nosso povo, sobre nós mulheres.
2018, p. 72). As tentativas de silenciamento e apagamento das
bandeiras de lutas das mulheres atingidas pela mi-
Pode-se afirmar que, passados mais de sete anos neração extrativista ocorrem em diferentes espaços e
do rompimento/crime, a situação em muito se agra- âmbitos. Calúnias, ameaças, intimidações, processos
vou a partir de dolorosas e expressivas modificações judiciais, desencadeamento de adoecimento físico e
dos núcleos familiares, especialmente por falecimen- mental, ataques às suas residências, não respostas às
tos, suicídios, adoecimentos e separações conjugais. suas pautas legítimas e urgentes e desconsideração
Além disso, predominam o racismo, a violência de às suas capacidades teórica e político-interventiva,
gênero e a perseguição às lideranças comunitárias. dentre outras manifestações misóginas. No entanto,
A atualmente denominada região do quadrilátero e por isso, as mulheres são as protagonistas das lutas
ferrífero de Minas Gerais é conformada predomi- e resistências populares no território.

ANDES-SN n julho de 2023 107


A crise ecológica e socioambiental A partir de toda modificação imposta às mineração em diferentes municípios (BERTOLLO,
suas vidas, em que se tornaram de uma hora 2021). Após os rompimentos criminosos ocorridos
para outra atingidas diretas do maior crime
em Mariana e em Brumadinho, pode-se dizer que
socioambiental do país, as mulheres inseriram-
se cada vez mais na dinâmica das lutas sociais uma preocupação ampla e generalizada se disse-
na região e nos espaços institucionais e políticos minou nas comunidades próximas às estruturas ou
de enfrentamento à mineração extrativista, “no caminho dos rejeitos”. Nesse contexto, merecem
às mineradoras causadoras do rompimento/
destaque duas situações que impõem um conjunto
crime e à própria Fundação criada para fins
de reparação, considerando sua questionável de inseguranças, incertezas e inúmeras violências e
atuação. E, nos territórios que estão sob a violações de direitos.
iminência de novos rompimentos criminosos No município de Barão de Cocais, distante cerca
de barragens de rejeitos, as mulheres inspiram- de 49 km da comunidade de Bento Rodrigues, des-
se nessas posições e potencializam e articulam
truída imediatamente com o rompimento da barra-
suas lutas a fim de denunciar a condição a
que suas comunidades estão submetidas, gem de Fundão, a mineradora Vale S.A. construiu
bem como de reivindicar procedimentos um muro de cerca de 35 metros de altura, a fim de
técnicos por parte das mineradoras para a não “evitar maiores danos” em caso de rompimento da
repetição de crimes da mineração nessa região
barragem Sul Superior da mina de Gongo Soco.
dolorosamente marcada a “sangue e lama”
(BERTOLLO, 2023, p. 303). Concomitante à construção dessa megaestrutura,
famílias de quatro comunidades foram retiradas do
Importa, ainda, evidenciar que as mulheres são território e alocadas em hotéis no centro da cidade,
requisitadas nas atividades laborais nos complexos situação que mudou de forma abrupta e drástica suas
produtivos da mineração extrativista, ambiente ocu- existências e modos de vida. “A estrutura não se rom-
pado predominantemente por homens e que impõe peu, mas as pessoas seguem sem acesso a suas casas,
às mulheres situações de assédio, perseguições e de- hortas, trabalho e renda” (PROJETO MANUELZÃO,
missões. Nesse sentindo, ganha relevância a atuação 2021). É relevante mencionar, ainda, que a remoção
político-sindical das trabalhadoras e das entidades das famílias ocorreu cerca de 15 dias após o rompi-
sindicais deste ramos de atuação. mento/crime de Brumadinho, momento em que as
Barragens, iminência de novos rompimentos/cri- famílias removidas estavam em fragilidade emocio-
mes, expropriação territorial e não reconhecimento nal e mais vulneráveis ao medo e angústias por re-
das comunidades e modos de vida tradicionais: Onde sidirem no entorno de uma barragem de rejeitos em
há barragens de rejeitos da mineração há a iminência risco de romper e em processo de descaracterização,
de rompimentos/crimes. Por mais que as estruturas o que evidencia que o modos operandi das minerado-
estejam atestadas como seguras, os rompimentos da ras, além de não considerar o aspecto material, uma
barragem de Fundão e da barragem B1 comprovam vez que “tudo precisou ser deixado pra trás”, também
que laudos podem ser emitidos desconsiderando desrespeita qualquer âmbito da subjetividade das
a real situação das estruturas, gravidade dos danos populações atingidas, direta ou indiretamente, pelos
ambientais e mortes/assassinatos causados por esse seus empreendimentos.
tipo de crime socioambiental. Ao que se refere às Outra situação a ser evidenciada ocorre no dis-
estruturas de armazenamento dos rejeitos da mine- trito de Antônio Pereira, pertencente ao município
ração, existem diferentes tipos de barragens, sendo de Ouro Preto, também localizado muito próximo
que as a montante são consideradas menos seguras a Bento Rodrigues (cerca de 15 quilômetros). Nesse
em relação às barragens a jusante. No entanto, devido distrito tricentenário, com imensa riqueza cultural e
ao custo de alteamento, as mineradoras optam pelas natural está instalada a barragem do Doutor, de pro-
estruturas a montante, mesmo que sejam menos se- priedade da Vale S.A., que, desde março de 2020, está
guras e sensíveis à vibração. em processo de descaracterização, o que acarreta à
Destacamos que Minas Gerais possui um histórico comunidade remoções forçadas ou morosidade nas
de rompimentos/crimes de barragens de rejeitos da remoções das famílias que residem nas “zonas de

108 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


ANDES-SN
n
julho de 2023
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Mineração extrativista - MG
A crise ecológica e socioambiental alto risco de morte”, como denominam as popula- A educação pública e as resistências
ções atingidas, em detrimento à denominação utili- classistas a partir do contexto da
zada pelas mineradoras: “zonas de autossalvamento mineração extrativista: elementos
(ZAZ)”7. Nesse contexto, inúmeros são os casos de sobre a região do quadrilátero
violências perpetradas, dentre as quais: perseguição ferrífero de Minas Gerais
às lideranças locais, especialmente às mulheres; con-
taminação do solo, água e ar; descaso com a retoma- A região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais
da dos modos de vida das famílias removidas, umas possui, em seus municípios, diferentes instituições de
vez que há famílias residindo em hotel no centro da ensino públicas, que abarcam os diferentes níveis de
cidade de Mariana há mais de um ano; e repressão escolaridade. Ela comporta, também, a existência e
policial às manifestações pacíficas realizadas pela co- atuação de inúmeros sujeitos coletivos, especialmen-
munidade, aos movimentos sociais e entidades sindi- te movimentos sociais, entidades sindicais e frentes
cais ao garimpo tradicional, prática secular realizada amplas. A mineração extrativista é uma atividade
no território e que conforma o modo de vida e sub- econômico-produtiva que organiza e concentra for-
sistência de famílias há gerações, dentre outras. temente os interesses antagônicos classistas na re-
A partir dessas exemplificações, destacamos que gião, que se expressam pelos diferentes âmbitos da
inúmeros outras comunidades são submetidas à vida social, adentrando fortemente na esfera da edu-
“rota da lama”8 e à destruição de suas culturas, paisa- cação e moldando as resistências populares.
gens, meio ambiente e vida nos territórios de Minas A educação está envolta em permanente disputa,
Gerais onde a mineração extrativista acontece. seja para manter-se enquanto política social pública

110 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


e assumir um caráter universal de acesso enquanto deou um contexto novo e desafiador aos/às docentes.

Mineração extrativista - MG
direito social ou enquanto mercadoria, altamente Melhor dizendo, um contexto adoecedor, como de-
rentável e acessível somente àqueles que podem pagar monstrado no relevante estudo realizado por Hunzi-
pelo acesso, ou seja, elitizada e inacessível à classe tra- cker (2019). A autora ressalta que
balhadora em geral. Nesse sentido, ganham relevân-
cia as instituições de ensino públicas, dentre as quais havia um “silêncio pedagógico”, que não eram
discutidos os danos socioambientais provocados
destacamos a Universidade Federal de Ouro Preto
pela mineração antes do RBF. Situação propícia
(UFOP), o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) para as mineradoras que adentravam o ambiente
campus Ouro Preto e, além dessas, as escolas das co- escolar para inserir discursos que remetem
munidades destruídas pelo rompimento criminoso a uma imagem de empresas ambientalmente
responsáveis. Os cursos de capacitação que eram
da barragem de Fundão: a Escola Municipal de Bento
ofertados pelas mineradoras aos professores
Rodrigues e a Escola Municipal de Paracatu de Baixo. da escola de Bento Rodrigues não dialogavam
Acerca do contexto escolar, importa evidenciar com o contexto, não discutiam os problemas
que ambas as instituições foram atingidas e destru- ambientais locais. [...] A maioria dos professores
ídas. Até o momento, passados mais de sete anos, entrevistados representava a mineração como
atividade necessária para a economia do
permanecem em sedes provisórias no centro de Ma-
município de Mariana, todavia, depois do
riana, e esse processo abrupto de o local de trabalho RBF, os professores são impelidos a alterar
ter sido atingido/destruído, de mudança geográfica seus conhecimentos e práticas educativas,
do local de trabalho, de contato cotidiano com crian- tornaram-se mais críticos sobre as práticas de
extrativismo mineral, passaram a discutir essa
ças e adolescentes diretamente atingidos/as desenca-
temática em suas aulas e, até mesmo, alguns
docentes chegaram a produzir materiais junto
com seus alunos para refletir sobre os danos
socioambientais do RBF, tanto em âmbito local,
em Bento Rodrigues, como ao longo da Bacia do
Rio Doce (HUNZICKER, 2019, p. 139).

Percebe-se que a disputa ideológica se impõe


no ambiente escolar. Da mesma forma, adentra as
instituições de ensino técnico profissionalizante e
superior, tais quais o IFMG campus Ouro Preto. A
instituição oferta diferentes cursos, em que desta-
camos: técnico em mineração, técnico em metalur-
gia, técnico em segurança do trabalho e técnico em
meio ambiente, formações essas que são diretamente
requisitadas no contexto laboral da mineração ex-
trativista. Compreende-se que é ofertado um nível
de escolaridade e de formação profissional mínimo,
que permite que os indivíduos possam vender sua
força de trabalho na atividade econômico-produtiva
que predomina no território. Esse é o horizonte la-
boral de grande parte da juventude, dos filhos e fi-
lhas da classe trabalhadora da região, o que acaba
por limitar outras possibilidades empregatícias e de
formação acadêmico-profissional para além desse
contexto e por conformar uma vinculação geracional-
familiar à atividade.

ANDES-SN n julho de 2023 111


A crise ecológica e socioambiental Ao que se refere ao ensino superior, evidenciamos cesso de ampliação ocorreu fortemente via Progra-
a existência e atuação da UFOP como uma questão ma de Apoio a Planos de Reestruturação e Expan-
emblemática. Primeiramente, por nascer enquanto são das Universidades Federais (Reuni) nas décadas
universidade pública, no ano de 1969, a partir da mais recentes.
junção das tradicionais e centenárias Escola de Far- Nesse sentido, são inúmeros os desafios enfren-
mácia e Escola de Minas. “No ano de 1876, o cientis- tados, dentre os quais destacamos certa insegurança
ta Claude Henri Gorceix fundou a Escola de Minas, em relação à permanência nos espaços físicos atual-
primeira instituição brasileira dedicada ao ensino de mente utilizados, uma vez que, por exemplo, parte
mineração, metalurgia e geologia. Sediada no antigo do local de instalação do ICHS em Mariana é de pro-
Palácio dos Governadores, no centro de Ouro Pre- priedade da Igreja Católica, que, em anos recentes,
to, foi transferida, em 1995, para o campus Morro do chegou a solicitar a devolução do espaço9. Após mo-
Cruzeiro” (UFOP, 2023). bilização da comunidade acadêmica, instâncias de
Remetendo para a atualidade, destacamos que a gestão da UFOP e público-municipais, a situação foi
instituição ampliou-se ao longo das décadas poste- resolvida mediante reajuste no preço do aluguel da
riores ao seu surgimento. Atualmente, possui cam- estrutura física utilizada10. Parte da estrutura utiliza-
pus nos municípios de Ouro Preto (campus Morro da pelo ICSA e ICEA era de antigas escolas munici-
do Cruzeiro, com inúmeros institutos, escolas e pais, sendo que, no mesmo terreno, novas edificações
CEAD, sede da reitoria localizada nas proximidades foram construídas via processo de expansão e finan-
do Centro de Convenções da instituição, museus e ciamento do governo federal da época. No entanto,
repúblicas no centro histórico da cidade), em Ma- evidenciamos que muitas edificações ainda perma-
riana (com os Institutos ICSA e ICHS) e em João necem inacabadas, o que explicita a falta de espaços
Monlevade (com o Instituto ICEA). A multicampia físicos para as atividades acadêmicas acontecerem de
é uma realidade estruturante da UFOP, e esse pro- forma adequada.

112 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Em meio aos dilemas para a existência e atuação Outra questão recente, que transcorre no âmbito

Mineração extrativista - MG
da universidade pública na região, destacamos um político-governamental do Estado brasileiro e que
paradoxo: a parceria público-privado. No espaço do requer nossa atenção, é a criação da Frente Parla-
campus Morro do Cruzeiro ocorreu a implantação mentar da Mineração Sustentável, instalada no
e está em funcionamento um Instituto Tecnológi- Congresso Nacional no último mês de março. Sob
co da mineradora Vale S.A.11, em que as formações a justificativa de necessidade de modernizar a legis-
ofertadas, especialmente em nível da pós-graduação, lação do setor, o deputado que ocupa a presidência
acontecem em parceria com a UFOP a partir do qua- dessa frente afirma:
dro docente da instituição. É um acúmulo histórico
de lutas sociais em defesa da educação pública, que Nós temos que cobrar do governo federal, dos
municípios que recebem a Cfem (Compensação
inclui a reivindicação de a universidade se aproximar
Financeira pela Exploração Mineral). Todo
da realidade local e território em que está inserida.
mundo vai ter que colocar a mão no bolso pra
No caso da UFOP, o território é marcado expressi- gente criar um fundo de sustentabilidade; à
vamente pela atividade econômico-produtiva da mi- medida em que iniciar uma atividade minerária,
neração extrativista; no entanto, também é possível o já começar as pesquisas pelas universidades e
pelos institutos de pesquisa (Agência Câmara de
questionamento em torno do significado de parcerias
Notícias, 2023).
como essa com uma mineradora de altíssima lucra-
tividade anual e que é causadora de crimes socioam-
Percebe-se, portanto, certa naturalização na vin-
bientais nos territórios onde atua, tal qual ocorreu
culação das instituições de ensino com as minerado-
em Mariana e em Brumadinho.
ras a fim de garantir seus interesses, que perpassam
Além disso, através das Fundações de Apoio, as
a questão da ampliação das áreas mineradas e flexi-
instituições de ensino superior públicas vinculam-se
bilização das normativas de preservação ambiental
e direcionam seu aparato docente, laboratorial, ma-
e comunitárias.
terial e de conhecimento científico para os financia-
dores de suas pesquisas e projetos, e isso não significa
Por trás da ideia de modernização do Código de
dizer que esteja atendendo às demandas das comu- Mineração, o intuito é fragilizar a fiscalização de
nidades locais e cumprindo sua função social; pelo áreas protegidas, dispensar o licenciamento em
contrário, majoritariamente, as pesquisas das áreas alguns casos e facilitar projetos de exploração e
pesquisa mineral no país. As mudanças também
humanas e sociais aplicadas são desconsideradas
visam facilitar a captação de recursos por
no quesito financiamento e prioridade de execução
mineradores no mercado financeiro (COMITÊ
com condições adequadas de equipe e insumos, o NACIONAL EM DEFESA DOS TERRITÓRIOS
que acaba por dificultar que as legítimas demandas FRENTE À MINERAÇÃO, 2021).
da sociedade, a partir do viés da classe trabalhado-
ra, sejam atendidas e enfrentadas pelo conhecimento Direcionando a reflexão para o lócus em evidên-
produzido nos espaços público-científicos. É rele- cia neste texto, podemos afirmar que as resistências
vante, ainda, mencionar que esse contexto acaba por classistas tornam a região do quadrilátero ferrífero
influenciar sobre os locais de estágio acadêmico dos/ reconhecida pela multiplicidade de sujeitos coletivos
as discentes e, por vezes de forma direta, a oferta dos em atuação a partir de diferentes bandeiras de lutas,
serviços e políticas socais públicas, uma vez que o dentre as quais destacamos: direito à educação, direi-
poder institucional e de tomada de decisão se arti- to à moradia, potencialização da cultura e preserva-
cula e se concentra nos interesses de quem financia e, ção dos modos de vida tradicionais, enfrentamento à
consequentemente, controla o que é realizado, tanto exploração da força de trabalho e por direitos traba-
no âmbito educacional como no da saúde, habitação, lhistas, preservação ambiental, questão étnico-racial
assistência social etc., o que impõe a necessidade de e combate às opressões de gênero, dentre outras. São
organização e luta coletiva. associações de bairros, ONGs, movimentos sociais,

ANDES-SN n julho de 2023 113


entidades sindicais, frentes amplas, coletivos etc. que, Considerações finais
A crise ecológica e socioambiental
cotidianamente, expressam os dilemas, violências e
violações que são perpetuadas no território a fim de Procuramos demonstrar que a atividade da mi-
enfrentar as causas que os geram e construir novas neração extrativista na região do quadrilátero fer-
possibilidades de existência com mais justiça social. rífero de Minas Gerais se entrelaça com o âmbito
Nesse sentido, o enfrentamento ao poderio, aos da educação pública e das resistências classistas.
desmandos das mineradoras e às violências e viola- Predominantemente, essa imbricação se dá pelo po-
ções que desencadeiam a partir do processo produ- derio das mineradoras sobre os diferentes âmbitos
tivo, das retiradas forçadas das famílias de seus lares, da vida social nesse território marcado pelo maior
da contaminação ambiental, dos adoecimentos, das crime socioambiental e maior acidente de trabalho
perseguições às lideranças comunitárias, dos rompi- do país.
mentos criminosos de barragens etc. é a pauta cen- Ao falar de mineração extrativista na atualidade,
tral, que unifica fortemente as lutas sociais e sindicais imediatamente, é possível relacionar essa atividade
na região. Destacadamente, o Movimento pela Sobe- econômico-produtiva com a superexploração da for-
rania Popular na Mineração (MAM), o Movimento ça de trabalho, destruição ambiental, apagamento da
dos Atingidos por Barragens (MAB), o Sindicato Me- cultura e modos de vida tradicionais e perseguição às
tabase Inconfidentes (SMI), a Frente Mineira de Luta lideranças locais, dentre outras violências e violações
das Atingidas e Atingidos pela Mineração (FLAMA) de direitos. Pode-se dizer que, nos territórios em que
possuem atuação forte e consistente na região e, em há mineração extrativista, todos/as são atingidos/as,
articulação com as associações comunitárias, comitês direta ou indiretamente, pelos danos e agravos que
populares, movimento sociais e estudantil e demais
entidades sindicais, constroem uma atuação comba-
tiva, de denúncias e de reivindicação de direitos no
contexto da mineração extrativista através de acom-
panhamento e apoio direto aos/às trabalhadores/as
no setor e às comunidades e populações atingidas
direta e indiretamente.
Ressaltamos que o período pandêmico que atra-
vessamos desde 2020 trouxe inúmeros desafios para
a organização coletiva social e sindical. De modo
gradativo, as lutas nas ruas e os encontros presenciais
foram retomados, e isso permite que as manifestações
presenciais e audiências públicas voltem a ocorrer, no
sentido de cobrar das mineradoras, do poder público
e do âmbito jurídico acerca das questões que perpas-
sam essa atividade preponderante e dominante na
região e, por isso, causadora de diversos agravos am-
bientais e sociais. Também a retomada de projetos de
ensino, pesquisa e extensão junto às comunidades e
territórios atingidos (que foram limitados de ocorrer
no período mais agravado da pandemia) permite a
aproximação das instituições de ensino superior com
a realidade, cada vez mais agravada e, portanto, mais
carente de intervenções qualificadas e socialmente re-
ferenciadas, que somente a universidade pública pode
ofertar quando assume a perspectiva emancipatória.

114 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


geram. Grande parcela da população tem sua história Parciais, pois a reivindicação permanece por “um

Mineração extrativista - MG
de vida apagada abruptamente, tornando-se “unica- novo modelo de mineração” não mais pautado na
mente atingidos/as”. destruição e exaurimento ambiental dos territórios,
Em contraponto, são inúmeras as ofensivas das acidentes de trabalhos e mortes, sob o controle dos
mineradoras e seus expoentes no intuito de ocultar trabalhadores e não de grupos de acionistas, em
essa árdua realidade cotidiana. Caso da Frente Par- grande parte, do capital internacional. Ou seja, a
lamentar da Mineração Sustentável, instalada re- perspectiva de superação do modo de produção e
centemente no Congresso Nacional, e das históricas da sociabilidade capitalista é uma tarefa histórica
parcerias público-privadas entre as mineradoras e em aberto.
instituições públicas de ensino, dentre outras. Isso Os desafios são inúmeros e exigentes. A luta coti-
impõe desafios expressivos às lutas e resistências po- diana contra as violências e violações das minerado-
pulares classistas. ras desencadeia e acelera processos de adoecimento
Nesse sentido, a região se destaca pela multipli- físico e mental devido à gravidade dos ataques que as
cidade de sujeitos coletivos e bandeiras de lutas que lideranças, comunidades e territórios sofrem. No en-
se unificam em torno da pauta de enfrentamento tanto, em meio a essas agravadas ofensivas, também
às mineradoras e ao contexto de destruição – vio- se fortalecem e se ampliam o reconhecimento e a so-
lências e mortes que causam dentro dos complexos lidariedade classista, que portam em si e na organiza-
produtivos e nos entornos das minas e barragens de ção coletiva da classe trabalhadora em seu conjunto o
rejeitos. Nesse contexto, conquistas importantes, vislumbre e a estratégia de superação dessas relações
porém com certo caráter parcial, são alcançadas. sociais, que precisam e podem ser modificadas.

ANDES-SN n julho de 2023 115


A crise ecológica e socioambiental

familiar, diz estudo. Disponível em: Ouro Preto: tarifa


da Saneouro compromete até 40% da renda familiar,
diz estudo (galile.com.br).

5. Para mais informações, consultar: Mulher, latina,


1. Assume-se o alinhamento político com os/as indígena e líder. Berta, a cinco anos de sua semente -
atingidos/as que denominam e compreendem o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
rompimento enquanto um crime, que, passados mais
de 7 e 4 anos, seus causadores (as mineradoras) não 6. Para mais informações, consultar: Nicinha: a vida,
foram devidamente responsabilizados; pelo contrário, a luta e o crime - MAB - Movimento dos Atingidos
permanecem impunes e perpetuando violências na por Barragens.
região através do seu modos operandi, que permanece
o mesmo. 7. “As Zonas de Autossalvamento  (ZAS) são
regiões imediatamente a jusante da barragem, em
2. O quadrilátero ferrífero é uma região do estado que se considera não haver tempo suficiente para
de Minas Gerais que compreende 34 municípios: uma adequada intervenção dos serviços e agentes
Barão de Cocais, Belo Horizonte, Belo Vale, Betim, de proteção civil em caso de acidente, como o
Brumadinho, Caeté, Catas Altas, Congonhas, rompimento de barragens”. Disponível em: Zonas de
Conselheiro Lafaiete, Ibirité, Igarapé, Itabira, Itabirito, Autossalvamento e Zona de Segurança Secundária –
Itatiaiaçu, Itaúna, Jeceaba, João Monlevade, Mariana, Brasil Ferroviário (brasilferroviario.com.br).
Mário Campos, Mateus Leme, Moeda, Nova Lima,
Ouro Branco, Ouro Preto, Raposos, Rio Acima, Rio 8. Evidenciamos a importante ferramenta “Mapa da
Manso, Rio Piracicaba, Sabará, Santa Bárbara, Santa lama”, que explicita a situação das áreas que podem
Luzia, São Gonçalo do Rio Abaixo, São Joaquim de ser soterradas por rompimentos/crimes de barragens
Bicas e Sarzedo (UNIVERSIDADE FEDERAL DE de mineração: Mapa da lama: confira se sua casa seria
OURO PRETO, 2021). soterrada pelo rompimento de uma barragem de
mineração (reporterbrasil.org.br).
3. Para mais informações, consultar: Injustiça na
bacia do Rio Doce: 5 anos de não reparação aos 9. Para mais informações, consultar: Igreja expulsa
atingidos; leia a nota do MAB, Falta de transparência universidade de câmpus em cidade histórica mineira
da Fundação Renova na divulgação de seus relatórios - Gerais - Estado de Minas.
- Jornal A Sirene, O rompimento da Barragem de
Fundão em Mariana-MG após 3 anos: considerações 10. Para manter cursos em Mariana, Ufop terá que
sobre um “crime que se renova” | Lutas Sociais pagar aluguel à arquidiocese da cidade | Minas Gerais
(pucsp.br). | G1 (globo.com).

4. Para mais informações, consultar: Ouro Preto: 11. Para mais informações, consultar: Instituto
tarifa da Saneouro compromete até 40% da renda Tecnológico Vale | Quem somos (itv.org).

AGÊNCIA CÂMARA NOTÍCIAS. Frente Parlamentar da Mineração Sustentável é instalada no


Congresso Nacional. Disponível em: Frente Parlamentar da Mineração Sustentável é instalada no
Congresso Nacional - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acesso em:
26 abr. 2023.
BERTOLLO, K. Mineração e superexploração da força de trabalho: análise a partir da realidade de
Mariana-MG. 2017. Tese (doutorado) - Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.

116 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Mineração extrativista - MG
_____. (2021). A mineração extrativista em Minas Gerais: “ai, antes fosse mais leve a carga”. Revista
Katálysis. v. 24, n. 3 (2021): Terra, Território e América Latina. Disponível em: A mineração extrativista
em Minas Gerais: “Ai, antes fosse mais leve a carga” | Revista Katálysis (ufsc.br). Acesso em: 24 abr. 2023.
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ANDES-SN n julho de 2023 117


Reportagem

19 2022
MAIO

Debate e panfletagem no dia


de luta pelo reajuste salarial,
no Instituto de Ciências Exatas e
Biológicas (ICEB), em Ouro Preto
Foto: Larissa Lana/Adufop

07 2022
JUNHO

Assembleia Descentralizada,
em Mariana, que teve como
um dos pontos de discussão
o reajuste salarial
Foto: Larissa Lana/Adufop

118 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Mobilização pelo
reajuste salarial
D
urante o ano de 2022, o ANDES-SN atuou junto às demais entidades do SPF, no
FONASEFE e FONACATE pela campanha salarial unificada dos SPF por reajuste
emergencial de 19,99%, correspondente ao índice de inflação do IPCA de 2018
a 2021, e também pela revogação da EC 95 (“teto de gastos”) e pela retirada da PEC 32
("reforma administrativa").

Fizemos a primeira reunião do setor das IFES no formato virtual no dia 12 de janeiro
e, no dia 18, protocolamos nossa pauta junto ao governo federal. Tivemos reuniões
virtuais e, a partir de abril, já presenciais. Foram realizadas várias jornadas de
mobilização, com paralisações e atos em Brasília e nos estados, rodadas de
assembleias e plenárias unificadas dos SPF para pautar a construção da greve
unificada. O SINDOIF-RS deflagrou greve no dia 23 de maio, e a ADUFPA, no dia 6 de
junho, com duração até 27 e 29 de junho, respectivamente. Destacamos a Jornada
Nacional de Lutas, Mobilizações, Paralisações e Greve, de 25 a 29 de abril, em que
as seções sindicais realizaram várias atividades nos campi, retomando a nossa
mobilização nas ruas e nos campus.

25 2022
AGOSTO

Assembleia Unificada realizada pelas entidades


representativas da UFOP, com participação de
representantes da reitoria; a pauta foi o contexto e
situação da UFOP diante dos cortes orçamentários,
e a ADUFOP expôs, também, a luta pelo reajuste
salarial dos/as servidores/as públicos/as
Foto: Larissa Lana/Adufop

ANDES-SN n julho de 2023 119


Reportagem

12 2023
JANEIRO

Reunião de apresentação do
gestor de Pessoas e Relações
de Trabalho, Sérgio Mendonça
(Ministério da Gestão e Inovação
em Serviços Públicos)
Foto: Pedro Mesidor/Fenasps

No ano de 2023, tivemos a retomada das negociações com o governo federal,


através da Mesa Nacional de Negociação, com o Ministério de Gestão e
Inovação representando o governo federal. O ANDES-SN participou de todas
as reuniões preparatórias à negociação, desde a formação das equipes de
transição até a retomada da mesa de negociação, em 12 de fevereiro de
2023. Após três reuniões da mesa de negociação, o conjunto dos SPF obteve
a reposição salarial de 9%, acrescida de um aumento de R$ 200,00 no auxílio
alimentação. Estamos cobrando do governo a abertura da mesa setorial de
negociação, quando colocaremos em pauta as questões da carreira docente.

O ANDES-SN e as demais entidades do FONASEFE realizaram um ato público


contra o novo "arcabouço fiscal", aprovado na Câmara dos Deputados, pois
retoma os princípios da EC 95, do "teto de gastos".

120 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Campanha Salarial
28 2023
FEVEREIRO

2ª rodada da Mesa
Nacional de Negociação
Permanente (Ministério da
Gestão e da Inovação em
Serviços Públicos),
em Brasília
Fotos: André Luis/ExLibris

ANDES-SN n julho de 2023 121


Reportagem

10 2023
MARÇO

3ª rodada de reunião
da Mesa Nacional de
Negociação Permanente
(Ministério da Gestão e
da Inovação em Serviços
Públicos), em Brasília
Fotos: André Luis/ExLibris

24 2023
MARÇO

122 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Campanha Salarial
24 2023
MARÇO

24 2023
MARÇO

Cerimônia de Homologação do reajuste de 9% para


o Funcionalismo do Executivo Federal (Ministério da
Gestão e da Inovação em Serviços Públicos)
Fotos: André Luis/ExLibris

ANDES-SN n julho de 2023 123


Reportagem

12 2023
ABRIL

O ano de 2023 começou com várias mobilizações dos/as


Em paralisação, docentes docentes das universidades estaduais e municipais pela
das universidades estadu- recomposição salarial das perdas do último período. Os
ais baianas ocupam, em movimentos docentes das IEES de São Paulo, Bahia, Ceará,
ato, as ruas de Salvador
Foto: Blenda Cavalcante/ Goiás e Amapá estiveram em campanha salarial. Docentes
ASCOM-ADUSC das sete universidades estaduais do Paraná deflagraram
greve em maio. Na Bahia, as quatro seções sindicais
ADUSC, ADUSB, ADUFS e ADUNEB paralisaram as
atividades por duas vezes, com ato público em Salvador, no
dia 12 de maio. As imagens são desse movimento paredista.

12 2023
ABRIL

Professores/as e estudantes
participam de ato em defesa
das universidades estaduais
baianas, em Salvador
Foto: Blenda Cavalcante/
ASCOM-ADUSC

124 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Campanha Salarial
Panfletagem e café da
manhã na entrada da UESC
para informar sobre a para-
lisação docente, em Ilhéus
Foto: Blenda Cavalcante/
ASCOM-ADUSC
12 2023
ABRI L

12 2023
ABRIL

Ato unificado das


universidades estaduais
baianas, em Salvador
Foto: Blenda Cavalcante/
ASCOM-ADUSC

12 2023
AB R IL

Docentes das universidades


estaduais baianas reivin-
dicam diálogo e reajuste
salarial, em ato em Salvador
Foto: Blenda Cavalcante/
ASCOM-ADUSC

ANDES-SN n julho de 2023 125


Reportagem

12 2023
AB R IL

12 2023
ABRI L
Professores/as da UESC
participam de ato,
em Salvador
Foto: Blenda Cavalcante/
ASCOM-ADUSC

Marcelo Lins e Nane


Albuquerque, presidente e
vice-presidente da ADUSC,
respectivamente, em ato
das universidades estaduais
baianas, em Salvador
Foto: Blenda Cavalcante/
ASCOM-ADUSC

126 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Campanha Salarial
17 2023
MAIO

17 2023
MAIO

Ato de Lançamento da
Campanha Salarial 2024,
Anexo II da Câmara dos
Deputados, em Brasília
Fotos: Eline Luz/ANDES-SN

ANDES-SN n julho de 2023 127


Reportagem

17 2023
MAIO

Ato de Lançamento da Campanha


Salarial 2024, Anexo II da Câmara
dos Deputados, em Brasília
Fotos: Eline Luz/ANDES-SN
17 2023
MAIO

128 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Campanha Salarial
17 2023
MAIO

Ato de Lançamento da
Campanha Salarial 2024,
Anexo II da Câmara dos
Deputados, em Brasília
Foto: Eline Luz/ANDES-SN

ANDES-SN n julho de 2023 129


Resenha

Título: Uma ecologia decolonial -


Pensar a partir do mundo caribenho
Autor: Ferdinand Malcom
Editora: Ubu Editora,
São Paulo, 2022. 320 p.

Uma ecologia
decolonial
para sair do porão
da modernidade
Marcos Bernardino de Carvalho
Professor na Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: mbcarvalho@usp.br

130 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Uma ecologia decolonial
Resenhar com brevidade Uma ecologia decolonial que, assim como o racismo, também a pilhagem e a
é um desafio. A riqueza de conceitos, análises, refle- destruição socioambiental são estruturais ao padrão
xões e ressignificações de muitas concepções que va- capitalista de produção implantado no mundo nos
gam por aí, maltratadas e banalizadas, especialmente últimos cinco séculos.
as derivadas de ecologia, ambiente, antropoceno e Mas isso não se deu sem que se produzissem
abordagens (de)coloniais, no contexto da recompo- resistências, protagonizadas pelos escravizados, es-
sição histórica do horror do tráfico negreiro, em seu pecialmente com o “aquilombamento” e a “marro-
papel estruturante do que chamamos modernidade, nagem”, tratados ao longo da obra e retomados no
compõem esse desafio. E é com ele que nos depara- posfácio, escrito pelo antropólogo Guilherme M.
mos ao sermos absorvidos – literalmente – pelo livro Fagundes, que igualmente manifesta ter sido sur-
de Malcom Ferdinand . 1
preendido pelo livro, particularmente pelas “resse-
“Este é um livro que eu gostaria de ter lido anos mantizações” que ele propõe. Dentre estas, destaca
atrás, especialmente quando tentava compreender Fagundes, a de que o aquilombamento traduz uma
as interrelacionalidades de gênero, raça e classe” (op. resistência ecológica que se oferece como matriz e
cit., p. 9). Dessa forma, Angela Davis, que prefacia o horizonte de possibilidades para superação do que
livro de Ferdinand, introduz a obra e nos provoca à foi estruturado como pilhagem, escravização e co-
sua leitura. lonização de humanos e não humanos, dos seres e
Lembrando de sua visita à Martinica, terra natal dos ambientes, onde “ocorre o encontro de povos de
do autor, ocorrida em dezembro de 2019, a ativista origem africana com as populações indígenas” (op.
e filósofa norte-americana registra: “Ainda sinto o cit., p. 314).
choque que tomei enquanto me perguntava por que Entre o prefácio de Angela Davis e o posfácio de
eu não tinha conhecimento dessa calamitosa inter- Fagundes, transcorrem os 17 capítulos, um prólogo e
secção entre o capitalismo racial e as agressões siste- um epílogo que compõem a obra e dos quais é possí-
máticas ao meio ambiente” (ibid). vel extrair, além dessas ideias e proposições dos tex-
Racismo, colonialismo e escravidão são os pilares tos que a emolduram, muito mais. Todos eles tribu-
que produziram a estrutura de um mundo funda- tários da construção do argumento central do autor,
mentado na destruição ambiental, afirma a filóso- em sua exposição da missão, importância e urgência
fa. Ou seja, com o livro de Ferdinand, aprendemos de uma ecologia decolonial.

ANDES-SN n julho de 2023 131


Resenha

Fruto de uma tese de doutorado defendida na porão e o Negroceno”. Négre partiu de Nantes em di-
Universidade Paris-Diderot, o autor brinda-nos, no reção ao Golfo da Guiné em 1790 e, segundo a des-
entanto, com um texto cativante, repleto de trágicas crição de Ferdinand, deixou no cais os tumultos po-
aventuras, que lembram aquelas narradas, por exem- líticos da Revolução, recém ocorrida, e também seus
plo, por um Joseph Conrad (mencionado por Ferdi- princípios: “A declaração dos direitos do homem e do
nand), em seu Coração das trevas , que, a despeito
2
cidadão não resiste aos ventos úmidos e salgados do
das polêmicas que o envolvem, notabilizou-se pelas Atlântico. Nos arredores de Ubani, ao sul da Nigé-
lamentações exclamadas por um de seus personagens ria, 263 vozes são confinadas no porão da Revolução
chave, em sua síntese do que foi a colonização euro- Francesa” (op.cit., p. 69). O horror!
peia na África: “O horror! O horror!”. Aliás, se os Dessa forma, e sempre nos porões dessas diversas
capítulos do livro de Ferdinand fossem introduzidos embarcações – Justiça, Encontro, Esperança... – deu-
ou terminassem com esse mesmo lamento – “O hor- -se a inclusão forçada, escravizada, daqueles corpos
ror! O horror!” –, isso não produziria estranhamento. pilhados de seus territórios e comunidades de ori-
Cada capítulo e o epílogo são precedidos por no- gem, para serem despejados na estruturação do siste-
mes de navios negreiros, por seus trajetos históricos ma que, não à toa, foi por muitos caracterizado como
e seus conteúdos. Os nomes dos navios revelam boa “economia de pilhagem” (Raubwirtschaft, como as-
parte do cinismo e perversidade do padrão que esta- sim o denominaram vários filósofos e economistas
va por se estabelecer no mundo: Conquistador, Jus- alemães do século XIX).
tiça, Baleia, Encontro, Tempestade, Fuga, Esperança, Os capítulos, os nomes dos navios que os prece-
Negro e Gaia, dentre outros, são os nomes dessas em- dem, suas conotações nada simbólicas para as merca-
barcações. Em todas elas, a “principal mercadoria” – dorias vivas depositadas em seus porões e as descri-
corpos negros – despejava-se no porão. E, assim, a ções que desse conjunto o autor faz são os pontos de
modernidade singrava os mares. O horror! O horror! partida para as reflexões desenvolvidas e vão tecendo
São 18 os navios que foram pinçados pelo autor da o argumento que justifica a proposição de uma ecolo-
base de dados <slavevoyages.org>, dentre os 36 mil gia decolonial, cuja missão – “Manter juntos anties-
registros lá catalogados, e um total de 12,5 milhões de cravismo, anticolonialismo e ambientalismo, desfa-
corpos transportados, dos quais 10 milhões chegaram zer-se da sombra do porão do Antropoceno” (op. cit.,
ao destino que lhes foi imposto. O horror! O horror! p. 150) – aponta para os horizontes (bio)civilizatórios
Um deles é o Nègre, que introduz o capítulo 3, “O que o aquilombamento – “Uma das resistências mais

132 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Uma ecologia decolonial
potentes” – e a “ecologia política quilombola” signifi-
cam. Apenas a leitura dessas introduções aos capítu-
los já comporiam e justificariam a empreitada a que
se propôs Ferdinand. Mas os interesses que essas in-
troduções despertam, assim como os desafios concei-
tuais, as desestabilizações e as solidariedades que nos
instigam com os que permanecem confinados nos
“porões”, certamente estimularão quem se propuser
a conhecer a obra a não só navegar por cada uma de
suas páginas, mas a compreender e a aderir às ur-
gências e tarefas reveladas pela ecologia de Malcom
Ferdinand, por ele mesmo assim resumidas, tanto no
prólogo como no epílogo de seu livro:

A ecologia decolonial articula a confrontação


das questões ecológicas contemporâneas com
a emancipação da fratura colonial, com a saída
do porão do navio negreiro. A urgência de uma
luta contra o aquecimento global e a poluição da
Terra insere-se na urgência das lutas políticas,
epistêmicas, científicas, jurídicas e filosóficas,
visando desfazer as estruturas coloniais do
viver-junto e das maneiras de habitar a Terra que
mantêm as dominações de pessoas racializadas,
particularmente das mulheres, no porão da
modernidade (op. cit., p. 34 - prólogo). 1. Malcom Ferdinand é caribenho, nascido na
Martinica, em 1985. Graduado em engenharia
Ao lado da urgência ambiental de uma limitação ambiental (University College London - UCL)
do aquecimento global e do fim das destruições e doutor em filosofia política e ciência política
dos ecossistemas da Terra, coloco urgências (Université Paris VII). Atualmente é pesquisador
iguais: de uma redistribuição mundial das do Centre National de la Recherche Scicentifique
riquezas e de uma justiça social; da tarefa (CNRS).
decolonial de reconhecer um lugar digno no
mundo para os povos originários, para o ex- 2. “Heart of darkness”, publicado originalmente,
em texto completo, em 1902. Há várias traduções
colonizados e para as pessoas racializadas; e
para o português, incluindo uma edição bilíngue
de uma igual consideração social e política
disponibilizada gratuitamente em https://
das mulheres, particularmente das mulheres literaturalivre.sescsp.org.br/ebook/coracao-das-
racializadas das ex-colônias europeias (op. cit. p. trevas. CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São
267 - epílogo). Paulo: Mojo. org. e Sesc, 2019.

ANDES-SN n julho de 2023 133


Resenha

Título: Por un populismo de izquierda


Autora: Chantal Mouffe
Editora: Siglo XXI Editores,
Argentina, Buenos Aires, 2019. 117 p.

Populismo de esquerda
e a construção de uma
nova hegemonia
David Moreno Montenegro
Professor de Sociologia do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)
E-mail: davidmoreno@ifce.edu.br

Resumo: Publicado pela editora Verso, em Londres, e depois pela Editora Siglo XXI, na Argentina,
em 2018-2019, a obra Por un populismo de izquierda, da cientista política belga Chantal Mouffe, traz
importantes reflexões sobre os processos políticos em curso nas sociedades ocidentais. Com os olhos
voltados para a experiência europeia, diante do cenário de aprofundamento da crise capitalista e da
emergência de movimentos e formas de organização de contestação ao establishment, Mouffe propõe
uma instigante reflexão sobre as possibilidades de construção de uma nova hegemonia, surgida das
fraturas do neoliberalismo e a partir do desenvolvimento do que denomina estratégia populista de es-
querda. Compreender o arsenal conceitual mobilizado pela autora, a força de seu argumento e alguns
limites é o objetivo desta resenha.

134 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Populismo de esquerda
De saída, uma advertência: no pensamento de para sua leitura do mundo contemporâneo.
Mouffe, populismo não se confunde com uma ide- O regime político atual, preponderante no Oci-
ologia que possui conteúdo programático definido, dente, tem recebido várias denominações: demo-
ou mesmo um regime político. Trata-se, com efeito, cracia representativa, democracia constitucional,
de um modo de fazer política, que, a depender da democracia liberal etc. Porém, a autora destaca que é
conjuntura histórica, pode assumir diversas formas possível identificar, em sua base, uma tensão profun-
ideológicas e marcos institucionais, precipitados em da entre duas tradições distintas: por um lado, o libe-
uma sociedade mergulhada num momento populista. ralismo político, que reivindica o Estado de Direito, a
Nesse sentido, cabe a pergunta: O que marca contex- divisão entre os poderes e a liberdade individual. Por
tos mais propensos para o desenvolvimento de estra- outro, a tradição democrática, que traz como ideias
tégias políticas populistas? De acordo com Mouffe, o centrais a igualdade e a soberania popular. Essa re-
momento populista pode ser identificado com o au- lação entre a lógica liberal e a lógica democrática na
mento das pressões por transformações sociais, po- conformação das democracias liberais, no limite de
líticas e econômicas, com base em demandas sociais dimensões inconciliáveis, é o que Mouffe denomina
insatisfeitas, capazes de desestabilizar a hegemonia de “paradoxo democrático”. Nesse contexto, o neoli-
dominante. Em tempos assim, abre-se espaço para a beralismo opera como elemento de desestabilização,
contestação da legitimidade do bloco histórico que na medida em que possui uma forma específica de
exerce sua hegemonia, com risco de desarticulação articular o liberalismo político com o capital finan-
de suas frações organizativas. Desse modo, tem-se a ceiro. A hegemonia neoliberal, nas últimas décadas,
possibilidade do surgimento de um novo sujeito de vem promovendo o aniquilamento da possibilidade
ação coletiva – o povo – capaz de contestar, desarti- de relação/tensão entre os princípios liberais e va-
cular e superar uma determinada ordem social consi- lores democráticos, o que permitia o embate entre
derada injusta. Feitas essas considerações, passemos projetos distintos de sociedade, mesmo diante da

ANDES-SN n julho de 2023 135


Resenha

impossibilidade de síntese. Com a destruição dos va- vertiginoso das desigualdades sociais e econômicas.
lores democráticos (igualdade e soberania popular), Por isso, a abertura de brechas para a expressão po-
esgotam-se as possibilidades de os cidadãos exerce- lítica de movimentos populistas reivindicatórios tor-
rem seus direitos, uma vez que a democracia é redu- na-se mais constante. Quando inclinados ao campo
zida à mera defesa do livre mercado. da direita, tendem a defender a reconstrução da “so-
Dessa forma, os espaços institucionais, possíveis berania nacional”. Entretanto, reclamam o país para
de serem ocupados pelos cidadãos na tentativa de os “verdadeiros nacionais”, defendendo igualdade
influenciar os rumos da sociedade (parlamento e para uma categoria de “povo”, que acaba por excluir
instituições do Estado), têm seu poder de decisão imensos contingentes, geralmente grupos de pesso-
reduzido drasticamente. As eleições não oferecem, as que são entendidas como “ameaça” à “verdadeira
assim, a possibilidade concreta de decidir sobre al- identidade nacional”, quase sempre imigrantes, ne-
ternativas reais de projetos políticos, passando a polí- gros e LGBTQIA+.
tica a ser efetivamente uma forma de “administração Nesse sentido, para Mouffe, a construção de uma
da ordem estabelecida”, sendo a soberania popular resposta no campo da esquerda possui o desafio de
decretada obsoleta. Isso é o que Mouffe denomina gerar um movimento de aglutinação da diversidade
pós-política. Por outro lado, as mudanças nas formas de lutas sociais. A orientação política deve ser recu-
de gestão da política, com o abandono da soberania perar, aprofundar e ampliar a democracia, construin-
popular, vêm acompanhadas de uma nova forma de do uma estratégia capaz de envolver as demandas
regulação do capitalismo profundamente financei- sociais e que represente a “vontade coletiva”. Para
rizado. Transformações nas regulações do trabalho isso, é fundamental criar fronteira política que opo-
com flexibilização e precarização de imensos contin- nha o “povo” aos donos do poder, responsáveis pelas
gentes de trabalhadores, privatizações, políticas de diversas formas de opressão – os representantes das
austeridade fiscal, desindustrialização e incremento “oligarquias”. A construção de uma nova fronteira
de maior tecnologia com extinção de atividades labo- política seria necessária para erguer outra ordem
rais são exemplos de transformações do capitalismo hegemônica, com amparo no consenso popular, re-
contemporâneo, que têm gerado pauperização e pre- orientando a energia disruptiva das populações es-
carização em diversas sociedades, com maior efeito poliadas, suas insatisfações e frustrações em uma
no sul global. direção de contestação das forças representantes do
O que impera, agora, segundo a autora, é a visão consenso neoliberal em crise. Para tanto, esse con-
individualista, que celebra a sociedade de mercado e senso deve ser buscado de forma ativa, através da
o empreendedorismo individual. Assim, a pós-políti- ação efetiva não somente no plano econômico, mas
ca, aliada ao fenômeno da oligarquização (e a destrui- também no político e ideológico, para fundar uma
ção do ideal de igualdade), define o atual cenário de “democracia radical e plural” em uma nova ordem
contestação antissistêmica, de deterioração das bases hegemônica, com procedimentos democráticos mais
de sustentação da democracia liberal, com aumento enraizados nas demandas populares.

136 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Populismo de esquerda
Contudo, para a radicalização da democracia, al- completaram seus processos de construções nacio-
guns aspectos devem ser observados. Primeiro, não nais, inscritos nas periferias do capitalismo e mergu-
se pode esquecer de que não há lutas inerentemen- lhados em uma lógica de dependência estrutural de
te “emancipadoras” ou “essencialistas” que estejam suas economias.
livres de tomar sentidos opostos, a depender das No limite, caberia questionar o próprio desen-
condições históricas, sociais, econômicas etc. Segun- volvimento conceitual da autora ao considerar o
do, é importante reafirmar que a noção de “povo” liberalismo econômico e seu duplo, o liberalismo
não pode ser tomada como um dado sociológico a político, como instâncias que resguardariam seguro
priori, uma construção empírica preexistente. Pelo distanciamento e aparente independência. A autora
contrário, o enfoque não essencialista da estratégia chega ao ponto de reivindicar as bases institucionais
populista de esquerda deve considerar que o “povo” deste último para serem aprofundadas radicalmen-
é uma construção política e discursiva, necessitando, te por uma proposta crítica ao neoliberalismo, na
assim, de uma articulação performativa. Construir chave de um populismo de esquerda. Essa questão
um povo, dessa maneira, implica expressar a vonta- pode assumir contornos mais complexos quando
de coletiva mediante uma cadeia de equivalência que consideramos países em que escravismo e colonia-
abrigue a multiplicidade de demandas sem resultar lismo – com seus legados mais sensíveis no racismo,
no apagamento e supressão das diferenças – que, de patriarcalismo e desigualdades sociais – são estrutu-
outro modo, cairia no erro de culminar na criação de rais. Além disso, a proposta de Chantal Mouffe pa-
uma falsa identidade monolítica. rece subestimar, a partir de receio primário de sua
Por fim, há uma dimensão que a autora destaca análise incorrer em um determinismo econômico, a
como fundamental: a questão dos afetos. É central força estrutural do capitalismo, que deriva da conso-
para a estratégia populista de esquerda compreender lidação e sacralização da propriedade privada sua so-
que os processos de reconhecimento social passam lidez material e ideológica. Não abordar essa questão
pela construção de discursos e afetos que, articula- estrutural pode gerar o equívoco de conferir à esfera
dos, produzem formas específicas de identificação. da política certa aura autorreferencial, limitando as
Essas identificações, por sua vez, são cruciais para possibilidades de construção de novos horizontes.
toda e qualquer estratégia de natureza política, pois Para além desses sumários pontos destacados, os
são os motores da ação. Aqui, anoto alguns elemen- tempos que atravessamos exigem a leitura, a análise
tos para debate com a perspectiva da autora, quando e o debate dessa obra.
considerado o necessário trabalho de construção de
alternativas à política de exclusão e espoliação das
maiorias sociais, no capitalismo contemporâneo. Ini-
cialmente, caberia problematizar qual o alcance da
proposta de uma estratégia populista de esquerda, nos
marcos da democracia liberal, em países que sequer

ANDES-SN n julho de 2023 137


Debates

Percepção de estudantes
do 9º ano da Escola Municipal Papa
João Paulo I, Serra Preta, BA, sobre o efeito
estufa e sua relação com a biodiversidade
Jaqueline Santana do Nascimento de Souza
Especialista em Ensino de Ciências na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
E-mail: ja.quelinnecc@hotmail.com

Elenir Souza Santos


Professora Associada na Universidade Federal da Bahia (IMS-CAT-UFBA)
E-mail: elenirsantos9@hotmail.com

Vanderlei da Conceição Veloso-Junior


Professor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
E-mail: vanderlei.veloso@ufrb.edu.br

Resumo: O presente estudo objetivou identificar a percepção dos alunos do 9º ano da Escola
Municipal Papa João Paulo I sobre o efeito estufa e sua relação com a biodiversidade. Foi
realizada uma pesquisa bibliográfica, seguida de aplicação de um questionário estruturado.
Os respondentes apontaram a queima de combustíveis fósseis e a produção industrial como
principais agentes causadores de emissões de gases do efeito estufa, oriundos de atividades
humanas. Durante as aulas de Ciências, foi observado que alunos do 9° ano realizavam mui-
tos questionamentos referentes aos problemas ambientais. Dentre as medidas que devem
ser adotadas para reduzir a emissão de gases do efeito estufa, os estudantes destacaram a
economia de energia elétrica, o uso de transporte público como meio de locomoção, redução
da produção de lixo e diminuição do consumo de carne. Entretanto, no que se refere às cau-
sas e às consequências do efeito estufa artificial, houve equívocos por parte dos responden-
tes, o que exige aprofundamento dos conteúdos.

Palavras-chave: Espécies. Biodiversidade. Meio Ambiente.

138 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução

O planeta Terra é habitado por espécies diferentes como diversidade biológica “a variabilidade de or-
de seres vivos, e eles possuem suas peculiaridades – ganismos vivos de todas as origens, compreendendo,
como habitats, alimentação e a necessidade de uma dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e
temperatura ideal para a manutenção do metabolis- outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecoló-
mo – que permitem sua sobrevivência. Essa varieda- gicos de que fazem parte”. Para manter essa diversi-
de de espécies é consequência do alinhamento entre dade, não poderíamos ter apenas temperaturas altas
as variações de temperatura e do ciclo hidrológico no ou baixas em todos os continentes, pois isso acarreta-
planeta, entre outros fatores. Além disso, a diversi- ria a extinção de várias espécies.
dade de espécies contribui para a melhoria da qua- A ocorrência da temperatura na Terra em condi-
lidade do ar e do solo e também é importante para a ções adequadas para a existência e manutenção da
interação com os seres humanos, em atividades ao ar vida, como a conhecemos, se dá naturalmente em
livre e em momentos de lazer, por exemplo. função dos gases do efeito estufa, que são responsá-
Dessa forma, para preservar a vida na Terra de ma- veis por reter parte do calor oriundo do Sol na at-
neira equilibrada, dando lugar à diversidade biológi- mosfera. Os principais gases e substâncias relacio-
ca, é preciso cuidar do meio ambiente. De acordo com nadas ao efeito estufa são: metano (CH4), dióxido de
o Ministério do Meio Ambiente (2000), entende-se carbono (CO2), óxido nitroso (N2O), vapor d’água

ANDES-SN n julho de 2023 139


Debates (H2O) e clorofluorcarbonetos (CFCs). Assim, se esses dos combustíveis fósseis, desmatamentos, queimadas
gases e substâncias estiverem em excesso na atmosfe- etc.) e selecionar e argumentar sobre propostas para
ra, a concentração de calor será maior, e é o que está a reversão ou controle desse quadro (BRASIL, 2018,
ocorrendo desde a Revolução Industrial (iniciada no p. 347).
século XVIII). Nota-se, portanto, a relevância desse trabalho,
A emissão de gases do efeito estufa decorrentes de uma vez que os estudantes do 9° ano já tiveram con-
ações antrópicas – como desmatamento, queima de tato com o tema de forma acadêmica. Ou seja, além
combustíveis fósseis, atividades industriais, descarte das informações veiculadas através dos meios de co-
inadequado de resíduos sólidos e atividades agrícolas municação, eles também já tiveram acesso às instru-
– tem tornado o ar atmosférico com maiores propor- ções pertinentes ao conteúdo, conforme reza a habi-
ções de gases geradores do efeito estufa artificial. De lidade prevista na BNCC.
acordo com Henry W. Art (1988, apud SANTOS e Nesse contexto, a presente pesquisa busca respon-
MASSABNI, p. 2, 2012), o efeito estufa: der à seguinte questão: Qual a percepção dos alunos
do 9º ano em relação ao efeito estufa, no que diz res-
é o aquecimento da atmosfera terrestre,
peito à sua importância para a biodiversidade e aos
ligeiramente análogo ao produzido pela
passagem de luz através do vidro de uma estufa, impactos negativos provenientes do aumento dos ga-
que não permite a troca de calor. A radiação do ses do efeito estufa na atmosfera?
Sol entra facilmente na atmosfera como ondas,
aquecendo a superfície da Terra, fazendo com
que ela emita radiação infravermelha. Gases Referencial teórico
como o dióxido de carbono (CO2) absorvem
tal radiação, impedindo que sua energia deixe
o planeta. A atmosfera é composta por gases que envolvem
a Terra e, dentre esses gases, estão os de efeito estu-
O efeito estufa vem sendo tema de telejornais, fa (GEE). Eles exercem uma importante função: ab-
conferências e publicações em revistas, artigos e jor- sorvem parte da radiação solar, impedindo que ela
nais. No entanto, as informações que alguns veículos retorne ao espaço, principalmente a radiação infra-
de comunicação passam, muitas vezes, confundem o vermelha, e a esse processo dá-se o nome de efeito
receptor da mensagem, pois, por vezes, referem-se ao estufa. De acordo com Gewandsznajder (2018, p. 41),
efeito estufa como sinônimo de aquecimento global, “O efeito estufa é um fenômeno natural que contribui
entre outros problemas ambientais. Em 2009, foi pro- para manter a temperatura média da superfície da
posto que os professores de Geografia trabalhassem Terra em torno de 15° C. Sem ele, essa temperatura
as mudanças climáticas nas turmas de 8° e 9° anos seria de 18° C abaixo de zero”.
do Ensino Fundamental (antigas 7ª e 8ª séries) utili- Os GEE são essenciais para os seres vivos, no en-
zando como material de apoio o caderno intitulado tanto, seu excesso na atmosfera pode ocasionar al-
“Desafios das Mudanças Climáticas”. Além do cader- guns problemas ambientais. O gás carbônico (CO2),
no, os professores recebiam um DVD contendo três por exemplo, é utilizado no processo de fotossíntese,
filmes, um deles com o título “Que fenômeno é esse”, faz parte de toda matéria orgânica e está presente nos
que abordava o conceito do efeito estufa, relacionan- mares e no solo. Porém, o consumo de gás carbônico
do-o, ainda, à intensificação dos gases e à ocorrência (CO2) pelos seres fotossintetizantes não tem ocorri-
de mudanças climáticas. do na mesma proporção do aumento de sua emissão,
De acordo com a Base Nacional Comum Curri- ou seja, a quantidade desse gás na atmosfera torna-se
cular (BNCC), os alunos, no decorrer do 7° ano, de- maior que a habitual, desencadeando, assim, sua po-
vem descrever o mecanismo natural do efeito estufa, tencialidade em reter calor, aquecendo mais o plane-
seu papel fundamental para o desenvolvimento da ta Terra (FELDMANN, 2012).
vida na Terra, discutir as ações humanas responsá- Desde que se iniciou a observação contínua da
veis pelo aumento do efeito estufa artificial (queima atmosfera até o começo da Revolução Industrial,

140 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


a concentração de dióxido de carbono mantinha- gerações atuais e futuras conseguirem reduzir suas

O efeito estufa e sua relação com a biodiversidade


-se estável. Atualmente essas concentrações estão emissões de GEE na atmosfera, esse acréscimo das
aproximadamente 35% acima dos níveis anteriores águas poderá ocorrer de forma mais lenta (IPCC,
ao período que antecede o da Revolução Industrial. 2018, p. 10).
O gás metano, por exemplo, encontra-se em níveis Com o aquecimento da Terra, as geleiras vão se
duas vezes e meia maiores se comparado ao período derretendo, trazendo mais problemas ambientais,
pré-industrial. Já o óxido nítrico está com nível 20% pois os habitats de algumas espécies vão sendo re-
mais alto (SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, s/d). duzidos ou extintos, a exemplo dos pinguins. Além
disso, as águas provenientes das geleiras são direcio-
[...] Os gases responsáveis pelo aquecimento nadas ao oceano, o que contribui para o aumento do
excessivo, como o dióxido de carbono (CO2), são
nível do mar.
produzidos pela queima de combustíveis fósseis.
O metano (CH4) é gerado, sobretudo, pela O oceano ajuda a reduzir o aquecimento da su-
decomposição da matéria orgânica em aterros perfície terrestre. Isso porque ele retém parte do
sanitários e plantações alagadas (principalmente calor, mas essa ação benéfica pode trazer prejuízos
de arroz). O óxido nitroso (N2O) advém do
para o ecossistema marinho, uma vez que as águas
processo digestivo do gado. Ao alterar o uso da
terra, por meio do desmatamento e de algumas
ficam mais aquecidas. Segundo Rodrigues e Coper-
atividades agrícolas, o homem também lança tino (2021), o aumento da temperatura na água do
no ar, por apodrecimento ou queima, o CO2 mar intensifica sua acidez, pois ele absorve 25% do
que estava acumulado nas plantas e no solo gás carbônico excedente da atmosfera. Esses fatores
(FRANÇA, IZIQUE, TONELLO, 2009, p. 7).
impactam negativamente na existência de espécies
marinhas, como algas, gramas marinhas e animais
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças
que produzem conchas e corais.
do Clima (IPCC) publicou, em 2018, um relatório
especial, intitulado “Sumário para formuladores
de políticas”, no qual o IPCC relata os impactos do
aquecimento global e a emissão de GEE. O Painel in- O oceano ajuda a reduzir o aquecimento da superfície
dica que a projeção para o final do século XXI é de terrestre. Isso porque ele retém parte do calor, mas essa
elevação média global do nível do mar, próxima a 0,1 ação benéfica pode trazer prejuízos para o ecossistema
metro (IPCC, 2018, p. 10). marinho, uma vez que as águas ficam mais aquecidas.
Mudanças na temperatura do mar, assim como o
aumento de seu nível, são consequências do aqueci-
mento global. Este, por sua vez, é fruto da intensifi- De acordo com o relatório especial divulgado pelo
cação dos GEE na atmosfera. Com essas mudanças, a IPCC (2018), o aquecimento global de 1,5° C causa
vida marítima também tende a ser modificada. impactos menores na biodiversidade e ecossistemas
– considerando, inclusive, a perda e extinção de es-
Variação de temperatura, chuva e outras
pécies – que o aquecimento global 2° C: “Das 105.000
condições ambientais; alterações na disposição
de alimentos: tudo isso altera os processos que espécies estudadas, projeta-se que 6% de insetos, 8%
antes existiam na natureza. Tome-se o exemplo de plantas e 4% de vertebrados percam metade de sua
das tartarugas marinhas. A ascensão do nível amplitude geográfica” (IPCC, 2018, p. 11).
do mar vai reduzir os locais de reprodução e as
A ocorrência de secas prolongadas em determi-
praias onde elas descansam após nadar enormes
distâncias (FRANÇA, IZIQUE, TONELLO, nadas regiões e chuvas em excesso em outras são
2009, p. 7). fatores que também podem contribuir para a extin-
ção de algumas espécies de plantas e animais ou es-
A elevação no nível do mar tende a continuar de- timular a migração para outras regiões onde o clima
pois de 2100, e o ritmo dessa elevação vai depen- seja favorável para a sua sobrevivência (MIRANDA;
der das ações dos seres humanos, sendo que, se as BARROS, 2020).

ANDES-SN n julho de 2023 141


Debates Essas mudanças climáticas têm alertado a socie- acordo se comprometeram a realizar ações que per-
dade sobre a importância de mudanças em seus hábi- mitissem alcançar essas metas. Cabe ressaltar que o
tos, começando por ações pequenas, como a escolha percentual de redução previsto no documento não
de produtos produzidos com energia limpa, a opção é comum: por exemplo, o percentual dos países que
por deixar o carro na garagem e a escolha por viajar compõem a União Europeia é diferente do percentual
em transportes coletivos. Essas ações podem gerar dos Estados Unidos e dos países em desenvolvimento
pouco impacto se realizadas individualmente, mas, (WWF, 2008).
associadas a atitudes dos governantes, agregando Como o protocolo de Kyoto não alcançou as me-
avanço tecnológico a cuidados com o meio ambiente, tas pretendidas, no ano de 2015, durante a Confe-
os reflexos positivos serão notados, mesmo que em rência das Partes (COP 21), realizada em Paris, 195
longo prazo (ORTIZ, 2018). países assinaram um acordo, que ficou conhecido
O tema mudanças climáticas vem sendo discu- como “Acordo de Paris”, “comprometendo-se a tomar
tido por autoridades governamentais e não gover- medidas para conter o aquecimento global. A meta
namentais em conferências que permitem delinear estabelecida foi a de que o aumento não ultrapasse
as futuras ações para reduzir a emissão de GEE na 2º C – com esforços para limitá-lo a 1,5º C – em re-
atmosfera. Em 1992, aconteceu no Rio de Janei- lação aos níveis medidos antes da industrialização”
ro a Conferência das Nações Unidas para o Meio (GEWANDSZNAJDER, 2018).
Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como Além das ações firmadas pelos governantes, a po-
ECO-92. O intuito da conferência foi determinar pulação também pode contribuir com a permanência
medidas de controle das emissões de GEE e propor de várias espécies em seu habitat natural e, para isso,
modelos de desenvolvimento econômico que esti- é preciso adotar algumas ações simples. De acordo
vessem em consonância com a proteção da biodi- com a Organização Não Governamental (ONG)
versidade e o uso sustentável dos recursos naturais World Wide Fund For Nature (WWF), as pessoas
(BARRETO, 2009). podem realizar quatro atitudes simples para com-
Em 1997, na 3ª Conferência das Nações Unidas bater o aquecimento global: produzir menos lixo, se
sobre Mudanças Climáticas, que aconteceu no Ja- locomover utilizando transporte público, consumir
pão, na cidade de Kyoto, foi fechado um acordo en- produtos locais e moderar o uso do ar-condicionado.
tre as nações – o chamado protocolo de Kyoto. Esse São mudanças nos hábitos diários, que os seres hu-
documento previa metas para a redução de emissão manos podem adotar para ajudar milhares de seres
de GEE na atmosfera. Os países que assinaram esse vivos, inclusive nossa própria espécie (WWF, 2017).

142 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Metodologia dos que pertencem ao ensino regular. O questionário

O efeito estufa e sua relação com a biodiversidade


foi aplicado de maneira virtual, através do aplicativo
A pesquisa se fundamenta no questionamento que WhatsApp e do bloco de atividades (junção de ativi-
busca conhecer a percepção dos alunos sobre o efeito dades referentes a todas as disciplinas cursadas pelos
estufa, no que diz respeito à sua relação com a bio- estudantes durante aquele ano letivo). Esses blocos
diversidade. Para efetivar esta pesquisa, foi realizada eram entregues nas residências dos alunos sema-
uma busca em sites, artigos e livros referentes ao tema, nalmente através de monitores ou de funcionários
com intuito de conhecê-lo mais especificamente, evi- da escola, na própria unidade. Durante o ano letivo
denciando, assim, o caráter exploratório da pesquisa. 2021, nas escolas municipais de Serra Preta, as aulas
Além disso, no caso desta pesquisa, a natureza é de aconteceram de forma remota devido à pandemia
cunho quantitativo, uma vez que relata em números causada pelo novo coronavírus. O questionário foi
os resultados obtidos através da aplicação do questio- aplicado entre os dias 18 e 30 de outubro, no entan-
nário por meio de gráficos e quadros. Também é ne- to, poucos alunos realizaram a devolutiva dentro do
cessário mencionar o caráter explicativo da pesquisa, prazo estabelecido.
que, segundo Gil (2002), é uma forma de explicar a O município de Serra Preta está situado no ter-
ocorrência dos fenômenos. Neste caso, busca-se co- ritório da Bacia do Jacuípe, a aproximadamente 170
nhecer a percepção dos alunos sobre o efeito estufa. km de distância de Salvador, e possui 536.488 km²
Para a aquisição das informações específicas da de área territorial. De acordo com dados obtidos no
pesquisa, optou-se pela aplicação de um questioná-
rio que consiste na investigação capaz de alcançar
informações de natureza quantitativa e qualitativa e O tema mudanças climáticas vem sendo discutido por
gerar uma melhor compreensão do problema, inter- autoridades governamentais e não governamentais em
calando objetividade com subjetividade (RICHAR- conferências que permitem delinear as futuras ações
DSON et al, 2008). Dessa forma, foi elaborado um para reduzir a emissão de GEE na atmosfera. Em 1992,
questionário com duas questões subjetivas e nove aconteceu no Rio de Janeiro a Conferência das Nações
questões objetivas. Os respondentes foram 14 alunos Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhe-
do 9º ano, matriculados no ano vigente na Escola cida como ECO-92.
Municipal Papa João Paulo I, localizada no muni-
cípio de Serra Preta, BA. Previamente à realização
do trabalho e seguindo preceitos éticos, os partici- site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
pantes foram informados sobre todos os aspectos da ca (IBGE), a população estimada de Serra Preta, em
pesquisa e, concordando em participar, assinaram o 2020, era de 14.699 habitantes, contando com IDHM
Termo de Assentimento Livre Esclarecido (TALE), 0,566 (IBGE, 2020). O Produto Interno Produto (Va-
enquanto os pais e/ou responsáveis assinaram o Ter- lor Adicionado) conta com maior participação da
mo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). prestação de serviço, seguido da indústria, e, por fim,
O questionário foi aplicado na Escola Municipal a agropecuária.
Papa João Paulo I, situada na Rua Agripino Mace- Serra Preta possui quatro distritos, entre eles o
do, no distrito de Bravo, município de Serra Preta, distrito do Bravo, onde há quatro unidades escola-
no estado da Bahia. Até 2013, essa unidade escolar res públicas, sendo três municipais e uma estadual.
pertencia ao estado, sendo municipalizada em 2014. Duas unidades escolares municipais com clientela
A escola funciona nos períodos diurno e noturno do Ensino Fundamental Anos Finais e uma unidade
e tem 311 alunos matriculados no Ensino Funda- que recebe alunos pertencentes à Educação Infantil e
mental. A pesquisa foi realizada nas duas turmas do ao Ensino Fundamental Anos Iniciais. O colégio que
9º ano, que, juntas, contam com 37 alunos matricula- oferece o Ensino Médio pertence ao estado.

ANDES-SN n julho de 2023 143


Debates
Resultados e discussão identificar que ocorre a retenção de calor por parte
da atmosfera, e que esse processo é sinalizado por
A pesquisa foi realizada através de questioná- eles como conceito de efeito estufa.
rio aplicado nas turmas 9º ano A e 9° ano B, sendo O questionamento 2 (Quadro 1) evidencia que a
que, dos 37 alunos matriculados nessas turmas, 14 maioria dos respondentes já estudou o efeito estufa
responderam ao questionário; os demais alunos não no Ensino Fundamental Anos Finais (FII), uma vez
deram devolutiva. Do total de respondentes, 86% que apenas 14% afirmaram que não tiveram contato
são do sexo feminino e 14% são do sexo masculino. com o assunto durante as aulas ministradas no FII.
Observa-se, ainda, que 64% deles residem na zona Dos doze alunos que sinalizaram ter participado das
urbana e têm idade entre 14 e 17 anos. aulas nas quais houve explanação sobre o efeito es-
A Figura 1 revela que a maioria dos respondentes tufa, 25% não recordam o ano em que foi abordada
já ouviram falar sobre o efeito estufa, o que mostra a temática, 17% declararam que viram durante o 9°
que é um tema bem disseminado, seja através do es- ano, 25% deles disseram que estudaram no 6° e 7°
paço acadêmico ou dos meios de comunicação. Con- ano, 9% dos estudantes responderam que estudaram
siderando os que já conheciam o tema, 75% disseram apenas no 6°, apenas no 7° houve 8% respondentes e
que ouviram falar sobre o efeito estufa durante as 8% dos respondentes também informaram que estu-
aulas, referenciando, assim, a importância dessa te- daram o assunto em todos os anos.
mática no currículo escolar. Todos os respondentes afirmaram que o efeito es-
A capacidade da atmosfera terrestre de armazenar tufa é benéfico para a sociedade, evidenciando assim,
o calor e a absorção das radiações emitidas pelo Sol que, mesmo não tendo contato com o assunto, como
são apontados pelos respondentes como melhores afirmaram dois respondentes, eles reconhecem a im-
descrições para o efeito estufa (Quadro 1). Verifica- portância do efeito estufa para a existência da vida
-se, portanto, que os alunos pesquisados conseguem na Terra.
Esses dados divergem dos encontrados em pes-
quisa realizada por Souza et al (2016), na qual entre-
Figura 1 - Percentual de respostas dos
alunos do 9º ano do Ensino Fundamental vistaram alunos do Ensino Fundamental Anos Finais
da Escola Municipal Papa João Paulo I e do Ensino Médio. Os resultados permitiram inferir
acerca da indagação “Você já ouviu falar
que os alunos entrevistados têm uma concepção ne-
sobre o efeito estufa?”
gativa sobre o efeito estufa, não identificando que tal
fenômeno é benéfico para o planeta Terra.
No que diz respeito ao efeito estufa artificial, 93%
14% têm consciência de que sua ocorrência interfere na
22%
variabilidade de espécies. Observa-se, portanto, que,
embora alguns respondentes tenham afirmado que
não têm conhecimento acadêmico acerca do conteú-
do, esses alunos, em um dado momento, já tiveram in-
64%
formações que permitiram inferir que, se a atmosfera
for aquecida mais do que o normal, algumas espécies
poderão sofrer interferências em sua forma de viver.
Aproximadamente 93% dos respondentes asseve-
Sim, já ouvi várias coisas sobre o assunto raram que ações humanas contribuem para a ocor-
Sim, poucas vezes ouvi sobre esse tema rência do efeito estufa artificial. Os mesmos relata-
Não, nunca ouvi falar ram, ainda, algumas atitudes dos seres humanos que
cooperam para esse fato, como a realização de quei-
madas, o desmatamento, a poluição causada pelas
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
indústrias e a preferência pelo uso de carros particu-

144 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


O efeito estufa e sua relação com a biodiversidade
Quadro 1 - Resultados obtidos com as questões de caráter dicotômico

Questionamentos Quantidade de respondentes

SIM NÃO

2 - Você já estudou sobre esse assunto durante o Ensino Fundamental Anos Finais? 12 02

4 - O efeito estufa é benéfico para a sociedade? 14 00

7 - De acordo com o Ministério do Meio ambiente, entende-se como diversidade 13 01


biológica “a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo,
dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros aquáticos e os
complexos ecológicos de que fazem parte”. Você acha que a ocorrência do efeito
Fonte:
estufa artificial pode afetar a biodiversidade?
Dados da pesquisa, 2021.

lares em detrimento de transportes coletivos. No re- Em pesquisa realizada por outros autores, tendo
lato, um dos respondentes afirmou que as ações hu- como entrevistados crianças na faixa etária entre 7 e
manas estão desestabilizando o efeito estufa natural. 9 anos, foi possível inferir que os professores devem
A Figura 2 demonstra que a maioria dos respon- estar atentos às concepções dos alunos, proporcio-
dentes reconhecem o gás carbônico (CO2) e o me- nando discussões que envolvam a explanação de dis-
tano (CH4) como exemplos de GEE, embora alguns tinções entre efeito estufa e destruição da camada de
ainda acreditem que o gás oxigênio (O2) e o hidrogê- ozônio, pois os alunos confundem os termos (SAN-
nio (H2) façam parte dos GEE. TOS; MASSABNI, 2012).

Quando perguntados sobre que atividades hu-


manas são responsáveis pelo aumento da emissão Figura 2 - Percentual de respostas dos
alunos do 9º ano do Ensino Fundamental
de GEE na atmosfera, os respondentes apontaram da Escola Municipal Papa João Paulo I
a queima de combustíveis fósseis e a produção in- acerca da indagação “São exemplos de
gases do efeito estufa?”
dustrial como principais agentes causadores dessas
emissões. Sendo que cerca de 21% assinalaram o
aquecimento global como uma causa das emissões,
quando, na verdade, é consequência. Fato esse que 14%
14%
reafirma a ideia de que os alunos ainda confundem
os termos e fazem distorções entre eles.
No que se refere às consequências oriundas do
aumento dos GEE, os respondentes apontaram o
buraco na camada de ozônio como principal conse- 72%
quência, seguido por temperaturas mais elevadas no
mar, derretimento de geleiras e, consequentemente,
maior volume de água nos oceanos. A redução das
espécies de seres vivos aparece em terceiro lugar, com Oxigênio (O2) e Dióxido de Carbono (CO2)
Dióxido de Carbono (CO2) e Metano (CH4)
11% dos votos. Ainda na mesma questão, um dos res-
Metano (CH4) e Hidrogênio (H2)
pondentes sinalizou o declínio do nível do mar como
consequência dos GEE, o que denota pouco conheci-
Fonte: Dados da pesquisa, 2021.
mento em relação à temática.

ANDES-SN n julho de 2023 145


Debates No tocante às medidas a serem tomadas para re- global, fato que gerou a motivação em realizar a pes-
duzir a emissão de GEE na atmosfera, as respostas quisa sobre o tema.
que surgiram com maior frequência foram: Assim, observamos que havia uma confusão con-
• “Economizar energia elétrica”; ceitual entre os termos citados, além de uma dificul-
• “Andar em transporte público”; dade de estabelecer relação de causa e efeito entre o
• “Produzir menos lixo”; efeito estufa, principalmente o artificial, e suas con-
• “Consumir carnes bovina e suína em menor sequências para a biodiversidade. Mesmo afirmando
quantidade”; que havia conhecimento sobre o efeito estufa, fica
• “Realizar mais reciclagem”; notório que os respondentes ainda cometem equívo-
• “Reduzir as queimadas”; e cos quanto à causa e à consequência do efeito estu-
• “Investir em educação ambiental”. fa artificial. Além disso, os alunos, em sua maioria,
não conseguem apontar a redução de espécies como
Portanto, os respondentes, em sua maioria, conse- consequência do efeito estufa artificial, embora reco-
guem elencar quais as medidas que os seres humanos nheçam a importância do efeito estufa natural para a
precisam tomar para que a redução da emissão dos biodiversidade.
GEE aconteça. O estabelecimento de uma relação entre a biodi-
versidade e o aumento dos gases do efeito estufa ain-
da não está consolidado pelos alunos, uma vez que
Considerações finais não conseguem apontar com precisão os impactos
que essa alta dos gases do efeito estufa pode causar à
Este trabalho buscou identificar a percepção dos vida dos seres vivo. Sugere-se, portanto, que o tema
alunos do 9º ano da Escola Municipal Papa João Pau- seja trabalhado com uma perspectiva investigativa
lo I no que diz respeito ao efeito estufa, verificando, que permita ao estudante conhecer mais sobre o efei-
ainda, se os alunos conseguiam perceber a relação to estufa, a fim de não haver confusão com outros
entre este e a biodiversidade. Durante as aulas de Ci- termos referentes aos problemas ambientais, além de
ências, foi percebido que alguns alunos confundiam permitir a percepção acentuada da relação existente
efeito estufa com camada de ozônio e aquecimento entre efeito estufa e biodiversidade.

BARRETO, Pedro. História Rio-92. Desafios do Desenvolvimento. Brasília: Ipea, 2009.


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146 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


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ANDES-SN n julho de 2023 147


Debates

Devir, desenvolvimento,
territórios recalcitrantes
e horizontes emancipatórios
Daniel Lemos Jeziorny
Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
E-mail: daniel.lemos@ufrgs.br

Alessandro Donadio Miebach


Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
E-mail: aledonadio@gmail.com

Resumo: O presente artigo tem por objetivo efetuar o mapeamento das possibilidades e
escolhas possíveis a partir de um marco marxiano que articule reflexões fundadas nas noções
de “humanidade na natureza/natureza na humanidade” (MOORE, 2015) e “acumulação por
despossessão” (HARVEY, 2005). O foco de análise é o espaço latino-americano e sua peculiar
associação aos circuitos globais de reprodução do capital. Para tanto, lança-se mão de um
conjunto de conceitos que visam inicialmente abrir o campo de possibilidades para agências
e escolhas dos atores sociais. Parte-se da ideia de territórios recalcitrantes como lócus de
alternativas que possibilitam a emergência de um “devir” apto a construir possibilidades de
transformação social.

Palavras-chave: América Latina. Ecologia Política. Espaço. Território. Desenvolvimento.

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Introdução histórica que se atravessa, visto que se situa entre as
condições naturais de produção (a natureza) e o capi-
As primeiras décadas do século XXI caracterizam- tal, que as reorganiza em função de sua lógica. Desse
-se por explicitar a acentuação das contradições das modo, para além de produtivas, as forças capitalistas
sociedades capitalistas. A polarização social e eco- de transformação do ambiente natural são também –
nômica e os tensionamentos dos conflitos políticos de forma e medida nada desprezíveis – destrutivas. O
cristalizam-se simultaneamente na conjuntura re- objetivo é efetuar o mapeamento das possibilidades e
cente de guerra e disputa geopolítica e na maturação escolhas possíveis a partir de um marco interpretati-
do processo de degradação das condições ambientais vo marxista que articule – ainda que tangencialmen-
que se expressam na sucessão de eventos climáticos te – reflexões fundadas nas noções de “humanidade
extremos. Existem indicações plausíveis de que se na natureza/natureza na humanidade” (MOORE,
vive uma era de bifurcações potenciais na qual as 2015) e “acumulação por despossessão” (HARVEY,
formações socioeconômicas têm a possibilidade de 2005). O foco de análise é o espaço latino-americano
optar entre inflexões de percurso e novas trajetórias. e sua peculiar associação aos circuitos globais de re-
Fundamentada no materialismo histórico, a pers- produção do capital. Para tanto, lança-se mão de um
pectiva proposta neste texto vincula-se à contribui- conjunto de conceitos que visam inicialmente abrir o
ção de James O’Connor (1988) quanto àquilo que campo de possibilidades para agências e escolhas dos
chama segunda contradição fundamental do capita- atores sociais. Parte-se da ideia de territórios recalci-
lismo. Isto é, além da contradição instalada entre o trantes como lócus de alternativas que possibilitam a
capital e o trabalho, o modo de produção capitalista emergência de um “devir” apto a construir possibili-
apresenta outra, talvez não menos decisiva na quadra dades de transformação social. Estruturados os con-

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Debates ceitos e suas interrelações estabelecidas, são apresen- cena o seu processo de evolução enquanto espécie,
tados alguns exemplos. O construto teórico é então a natureza é uma trama de vida, na qual as condi-
aplicado à realidade e às contradições da formação ções naturais de produção e a própria humanidade
socioeconômica da América Latina em perspectiva determinam-se e influenciam-se mutuamente. A
histórica, com vistas à identificação do campo de humanidade se encontra tão “dentro” da natureza
possibilidades da região frente à conjuntura de bifur- quanto esta daquela. É disso que trata Moore (2015),
cação presente. Quais os marcos latino-americanos quando se refere à história. Para ele, a história não é
para algum tipo de rearranjo reformista? Quais as a da humanidade na natureza, tampouco da nature-
possibilidades de superação das iniquidades sociais za na humanidade, mas daquilo que chama “dupla
da região? Quais os elementos presentes que são internalidade”: humanidade na natureza/natureza
passíveis de ser mobilizados em favor de uma trans- na humanidade. Daí sua ideia de que o capitalismo
formação social progressista? São discutidos alguns é uma forma social de se organizar os fluxos natu-
elementos que podem contribuir para a busca de res- rais, que não são unicamente de matéria e energia.
postas a tais perguntas. A rigor, toda forma de se reorganizar a natureza em
O trabalho está organizado, além desta introdu- função da reprodução material da humanidade é um
ção, em mais quatro seções. Na Seção 2 discute-se o determinado modo de produção, ou seja, uma forma
conceito de territórios recalcitrantes e algumas deri- histórica de organização dos fluxos de matéria, ener-
vações. A Seção 3 discute a ideia de devir como espa- gia e poder.
ço de possibilidades que acolhe os conceitos anterior- Vale notar que a atual forma histórica hegemônica
mente explorados. A Seção 4 articula as discussões de reorganização dos fluxos naturais tem no Estado
anteriores à experiência latino-americana, buscando uma engrenagem central. Por se tratar do aparato
identificar o campo de possibilidades de transforma- mediante o qual se busca concertar territorialmente
ção colocado pelo atual contexto de transformação as escalas do fluxo de poder (HARVEY, 2005), cabe
do capitalismo. A Seção 5 conclui o artigo. ao Estado controlar e disponibilizar ao capital recor-
tes da biosfera (PARENTI, 2022). Além de garantir a
face passiva da distribuição/apropriação da riqueza
Territórios recalcitrantes: pontos social produzida, ou seja, a forma da propriedade dos
luminosos à saída do labirinto meios de produção (CHAUÍ, 2007), o Estado capi-
talista ainda regulamenta o conflito inerente à rela-
Objetivamente, o devir diz respeito a uma espécie ção capital-trabalho, intervém contra crises e provê
de encadeamento histórico das diferentes formas de a infraestrutura necessária à acumulação capitalista
concretização das diversas frações da humanidade (MOLLO e FONSECA, 2013).
nos distintos recortes do espaço terrestre. Trata-se, Além disso, a par da geograficidade, todo modo de
portanto, de um processo repleto de geografia; a ur- produção possui historicidade, que diz respeito não
didura das formas concretas, espacialmente localiza- apenas às suas particularidades, ou seja, àquilo que
das, pelas quais a humanidade encharca seus tempos o define em contraste com as demais formas sociais
no [tempo do] espaço terrestre, transformando-o em de organização dos fluxos, mas também à sua traje-
função de suas necessidades, desejos e – até mesmo – tória concreta de complexificação ou transformação
caprichos. Acontece que essa transformação humana e, nesta, sua permanência na mudança, ou seja, sua
do ambiente natural (a sua reconstrução social) não capacidade de manter-se enquanto objeto estrutu-
corre ao ter na natureza um mero palco da necessida- rado – sem perder sua lógica sistêmica – apesar das
de. A natureza não é simplesmente remodelada pela mudanças intercorridas em sua própria estrutura ao
ação humana. Ou melhor, embora ela o seja, de fato, longo do tempo.
transformada pelos seres humanos, o seu papel nessa Nesse sentido, o espaço ganha uma nova dimen-
transformação não é meramente passivo. são, uma verdadeira quinta dimensão, formada pela
Em vez de palco inerte, no qual a humanidade en- espessura e profundidade do acontecer. E isso graças

150 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


ao número, diversidade e qualidade dos objetos, isto pitalista em uma tentativa de superar as crises que

Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes e horizontes emancipatórios


é, fixos, de que é formado, combinados ao número emergem de seu próprio desenrolar. Harvey chama
cada vez maior de ações, ou seja, fluxos, que o atra- esse processo de “ajuste espaço-temporal”, um reor-
vessam, por vezes o ressignificam, mas, seja como for, denamento que não pode prescindir da ação estatal
lhe atribuem um conteúdo social, propriamente hu- e que também pode ser interpretado como “constru-
mano. Essa quinta dimensão espacial é o tempo co- ção capitalista do espaço”.
tidiano, compartilhado; o tempo convivido dos fixos Contudo, contrariamente ao discurso homogenei-
e dos fluxos. Trata-se, portanto, de um tempo plural zante e que pretende constituir uma espécie de terri-
(SANTOS, 2008, p. 17), pois são tempos dentro do torialidade hegemonizante, em muitos casos, o espa-
tempo. O tempo da humanidade, constituído pelos ço não é vazio; nele coexistem e resistem formas de
tempos de diferentes civilizações. Os tempos de di- vida humana que teimam em funcionar com uma ló-
ferentes civilizações, constituído por tempos de di- gica distinta da valorização do valor. Trata-se de ter-
ferentes sociedades e, apenas nestas, pelo tempo de ritórios recalcitrantes, densidades socioeconômicas
indivíduos possivelmente diferentes, constituídos – com capacidades para oferecer alternativas diferen-
enquanto seres humanos – no interior e por meio de tes da que interpreta o espaço como uma realidade
um dado padrão de sociabilidade. Assim, o que não plana – plena e passivamente linearizável, a simples
convém perder-se de vista é que o tempo constitutivo espera de serem oportunamente involucradas pelo
da humanidade transita inserido em um outro tem- movimento da acumulação. Assim, apesar de algu-
po: o da natureza, que lhe serve de substrato e con- mas teorias defenderem a ideia de ordem global ho-
dição inalienável de existência. É como se a humani- mogênea, no mundo real ainda existem – e resistem
dade encenasse o seu processo de evolução enquanto – particularidades. São os territórios ou, como afirma
espécie em uma espiral temporal, certamente com- Milton Santos (2008), os espaços construídos, vivi-
posta por continuidades, mas também por rupturas e dos, compartilhados, que aparecem como substratos
saltos, revoluções em crescendo de abrangência, em que resistem às mudanças, ao guardar o vigor de sua
uma diversidade de tempos históricos que se combi- herança material e cultural; força resistente do que
nam e inserem uns nos outros, por vezes com atritos, fora criado a partir de outra temporalidade, ou seja, a
rompimentos abruptos e violências. partir de outra lógica que não a da acumulação.
Aquilo que Harvey (2005) chama “acumulação
por despossessão”, por exemplo, pode ser apreendi-
do como uma manifestação da fricção – em muitos
A rigor, toda forma de se reorganizar a natureza em função
casos da violência – que emerge do conflito entre a
da reprodução material da humanidade é um determinado
temporalidade do capital em antagonismo com a dos
modo de produção, ou seja, uma forma histórica de orga-
povos que teimam em funcionar com temporalidade
nização dos fluxos de matéria, energia e poder.
própria, a partir de outra lógica. Uma contradição
que se avilta em momentos de crise do modo de pro-
dução capitalista e que, portanto, requer explicação
teórica nos marcos das tendências de movimento O que Milton Santos (2008, p. 17) afirma é que “a
do próprio capitalismo. Ora, se as crises capitalistas base da ação reativa à ação globalizante [do capital]
emergem no movimento de tendências declinantes é o espaço compartilhado no cotidiano”. Portanto,
das taxas de lucro e se, de acordo com Marx (2013), são os contextos (REIS, 2007), as construções sociais
uma das formas de contrarrestar essa queda é a bus- espacialmente localizadas, historicamente definidas,
ca por novas fontes de matéria prima e/ou meios de ou seja, os territórios, que oferecem reações às forças
reduzir o valor dos elementos do capital constante, heterônomas, homogeneizadoras, típicas dos fluxos
avançar sobre bens comuns de territórios indígenas, que caracterizam os movimentos de mundialização
quilombolas e campesinos, dentre outros, não é se- do capital (CHESNAIS, 1996, 2016), mas que muitos
não uma via pavimentada pelo desenvolvimento ca- preferem se referir através de uma metáfora (REIS,

ANDES-SN n julho de 2023 151


Debates 2007): a globalização. Pois, num lugar ou alhures, A dialética devir e desenvolvimento
neste ou naquele território, existem densidades cons- em mirada objetiva
truídas com a história, “cimentos que se renovam” e
buscam reafirmar-se enquanto objetos estruturados O devir é um conceito. Remete a dimensões, tan-
com direito de autodeterminação, mas, mais do que to no tempo quanto no espaço, e à reconstrução re-
isso, formações sociais estruturantes, pois constituin- flexiva do movimento histórico da humanidade. No
tes de versões de humanidade diferentes, com lógi- plano concreto, esse movimento se dá através da su-
cas divergentes da que se arroga superior e propõe cessão temporal das diferentes formas de reorgani-
hegemonia, ao passo que degrada cada vez mais as zação da natureza em função de objetivos humanos.
“coordenadas do Sistema Terra” (MARQUES, 2018), Portanto, uma variação na realidade construída pelos
do qual todos dependem. seres humanos para si mesmos. Assim, materialmen-
Portanto, é sobretudo em contextos de emergên- te constituída, a história humana se move pela su-
cia climática, como o da atual quadra histórica, que cessão temporal entre distintos modos de produção,
importamos territórios recalcitrantes de povos indí- mas sempre através de diferentes formações sociais,
genas, quilombolas, ribeirinhos e campesinos, entre que, com o tempo, articulam-se numa teia cada vez
outros. Estes atribuem texturas à reorganização dos mais abrangente de relações sociais e de poder. For-
fluxos naturais, que não são apenas diferentes daque- mas históricas pelas quais os seres humanos intera-
la que, fruto da episteme da modernidade e vetores gem socialmente em função de sua reprodução ma-
do Capitaloceno (MOORE, 2015), desorganizam pre- terial. Nesses termos, o desenvolvimento não é senão
ocupantemente o Sistema Terra. Pelo contrário, eles o processo de complexificação de cada uma dessas
constituem uma tessitura simbiótica com esse siste- formas históricas. E a transição entre uma forma e
ma. Os territórios recalcitrantes podem, por exem- outra, ou seja, entre modos de produção, toma lugar
plo, apresentar-se como pontos luminosos a indicar sempre que determinado modo de produção tenha se
a saída do labirinto do aquecimento global, na me- complexificado tanto desde seu início que já apresen-
dida em são síntese(s) sucessiva(s) de tempo(s) em ta características distintas o suficiente para se tornar
determinados espaços, nas quais o tempo complexo o marco inicial de um modelo civilizacional distinto,
da natureza e da formação social não estão em ritmos ou seja, assente em outra forma de relação social de
dissonantes (GODOI e JEZIORNY, 2017), visto que produção e poder.
o tempo da formação social está em harmonia com o Para Chauí (2007), o devir expressa “uma suces-
ritmo do tempo do ecossistema que serve de substra- são temporal dos modos de produção ou movimento
to material e condição inalienável de sua existência. pelo qual os pressupostos de um novo modo de pro-

152 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


dução são condições sociais que foram postas pelo com base na busca de ganhos cada vez maiores de

Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes e horizontes emancipatórios


modo de produção anterior e serão pressupostas produtividade. Conforme demonstrado por Marx
pelo novo modo de produção”. Não menos impor- (2013), a maquinaria e a grande indústria emergem
tante no curso da história, o desenvolvimento é tam- como resultado da lógica expansiva e acelerante do
bém processo espaço-temporal. Entretanto, processo capital transposta ao processo que medeia, controla
que intercorre em um dado modo de produção, cujo e regula a relação metabólica humanidade/natureza.
objetivo é o de reformular suas premissas (que lhes No entanto, vale ressaltar que, ainda que as má-
foram legadas) com vistas a convertê-las em carac- quinas não produzam valor algum, elas são capazes
terísticas próprias. Trata-se de um contínuo de sín- de acelerar processos produtivos e a rotação do ca-
teses, complexificações sistêmicas que visam superar pital e de contribuir para a geração e apropriação de
as contradições emergentes de determinada forma mais-valor, não apenas relativo, mas sobretudo ex-
histórica de concatenar relações sociais de produ- traordinário, o que ajuda a compreender a dinâmica
ção e forças produtivas. Assim, o desenvolvimento frenética do avanço tecnológico capitalista. Acontece
complementa o devir ao se constituir em expressão que, se máquinas que produzem outras máquinas,
da trajetória de determinado modo de produção na que produzem mercadorias em períodos cada vez
história. O desenvolvimento é o movimento interno mais curtos, dão a tônica do desenvolvimento capi-
de um modo de produção para repor seu pressupos- talista, isso intercorre a partir de um processo em
to, transformando-o em algo posto; refere-se, por- que a classe trabalhadora se encontra (embora talvez
tanto, a uma forma histórica particular, ou melhor, não se reconheça) alienada da base material capaz
é a história particular de um modo de produção. Daí de servir de condições objetivas ao pleno desenvol-
o movimento. Por seu turno, a lógica é dialética, de vimento de suas potencialidades. Se, na manufatura,
forma tal que: o trabalhador era adaptado ao processo de produção,
esse também era adaptado ao trabalhador. Contudo,
uma forma histórica está desenvolvida quando a partir da produção mecanizada, esse princípio sub-
se tornou capaz de transformar num momento
jetivo da produção perde preponderância; o processo
interior a si aquilo que, no início, lhe era exterior,
todo é considerado objetivamente e, por si mesmo,
proveniente de uma forma histórica anterior,
ou seja, quando realiza uma reflexão, de tal avaliado em suas fases constitutivas. Com o tempo,
maneira que a exterioridade é negada como e a necessidade de aceleração que lhe atribui o ca-
exterioridade para ser posta como interioridade pitalismo, o problema de executar e combinar cada
na nova formação social (CHAUÍ, 2007, p. 153). processo parcial passa a ser solucionado a partir da
aplicação técnica da ciência. Vale observar, portanto,
O crescimento acelerado é uma dessas exteriori- que tanto a tecnociência quanto o tecnopoder que
dades que o capitalismo absorvera como um aspecto lhe acompanha emergem em função dos paradigmas
posto, enquanto contradição que não encontrou no colocados pela acumulação de capital, mola mestra
modo de produção feudal uma síntese e, portanto, do modelo de civilização moderna.
acabou por se tornar um fator determinante ao seu O processo de modernização da agricultura, por
desarranjo. Não é que não houvesse crescimento eco- exemplo, com seu pacote tecnológico da Revolução
nômico no feudalismo, mas, sim, que em determi- Verde, consubstanciado a partir de sementes gene-
nado momento este tornou-se inferior ao ritmo do ticamente modificadas, maquinários (tratores, co-
crescimento populacional. De acordo com Maurice lheitadeiras…) e insumos químicos, sobretudo ferti-
Dobb (1987), esta fora justamente uma das princi- lizantes e agrotóxicos, dentre outros aspectos, busca
pais, senão a principal, causas da desarticulação da acelerar os processos biológicos para aumentar a ve-
economia natural (feudal) e, portanto, do surgimen- locidade de rotação dos capitais aplicados nas ativi-
to de um modo de produção que possui o crescimen- dades agropecuárias. Assim, diferente de um avanço
to acelerado como pressuposto de funcionamento: o tecnológico, por assim dizer, holístico, guiado pela
capitalismo, que reorganizou o processo de trabalho harmonia sociedade/natureza em sua dupla inter-

ANDES-SN n julho de 2023 153


Debates nalidade, trata-se do resultado concreto de um co- economicus”) defendida encarniçadamente pela eco-
nhecimento científico sobejamente departamentado nomia vulgar e seus asseclas políticos e ideológicos
e construído a partir de uma determinada ontologia, (LEFF, 2006).
na qual a natureza é interpretada não como teia de Necessário reconhecer, portanto, que, quando
vida da qual a humanidade depende, mas como algo em determinada formação social, os atores decidem
a ter seu funcionamento apreendido a partir do apro- e aplicam uma determinada tecnologia de apropria-
veitamento de suas partes (mortas), posteriormente ção espacial (como a da Revolução Verde), a rigor,
aproveitadas como “recursos naturais” em processos eles executam um projeto sobre o espaço em função
produtivos que são, antes de tudo, de valorização do de alguma concepção de controle, isto é, de alguma
valor. Nessa linha, em que o crescimento predatório concepção mental de mundo ou cosmovisão. Dessa
persiste incólume e – até mesmo reverenciado tal forma, tanto utilizam quanto reproduzem um tipo es-
qual “santo no altar” –, os indispensáveis serviços pecífico de sistema de conhecimento ou ciência, que,
ecossistêmicos prestados pelos diferentes ecossis- como afirma Harvey (2013), é apropriado (desenvol-
temas enquanto territórios vivos são simplesmente vido) de acordo com as necessidades físicas e sociais
desconsiderados, visto que o próprio ecossistema do modo de produção em questão e, mais do isso,
perde sua natureza sistêmica ao ter suas partes am- podem, inclusive, se converter em uma força material.
putadas para serem aproveitadas como inertes, passi-
vos, “recursos naturais”. As concepções mentais do mundo podem se
tornar uma "força material" em duplo sentido:
são "objetivadas" nos objetos materiais e
materializadas nos processos reais da produção.
No capitalismo, as necessidades – técnicas – colocadas Por isso, a atividade da produção incorpora certo
ao sistema de conhecimento derivam da acumulação de conhecimento de mundo – o conhecimento
capital. Afinal, se nesse modo de produção o processo que é também um produto social. Cada modo
de produção desenvolve um tipo específico
produtivo é também processo de valorização de capital, a
de ciência, um “sistema de conhecimento”
acumulação capitalista se torna a mola mestra da dinâmi- apropriado para as suas necessidades físicas e
ca sociorreprodutiva e, em última instância, o que define sociais distintas (HARVEY, 2013, p. 161).
os problemas (paradigmas) a serem resolvidos.
No capitalismo, as necessidades – técnicas – colo-
cadas ao sistema de conhecimento derivam da acu-
O conhecimento produzido sob essa lógica, em mulação de capital. Afinal, se, nesse modo de pro-
vez de constituir um conjunto de teorias e formas de dução, o processo produtivo é também processo de
organização do pensamento para o entendimento do valorização de capital, a acumulação capitalista se
mundo – e, neste, obviamente a natureza enquan- torna a mola mestra da dinâmica sociorreprodutiva
to teia da vida e condição inalienável de existência e, em última instância, o que define os problemas
humana –, passou a ser uma ordem conceitual or- (paradigmas) a serem resolvidos. Logo, também o
questrada em um conjunto de artefatos que intervêm sentido do avanço tecnológico e, com efeito, do pró-
e transformam o real a partir de uma postura que prio desenvolvimento, entendido enquanto desen-
“tecnologizou” e “economicizou” o mundo. De modo rolar histórico de uma específica forma de aprovei-
que a crise ambiental se apresenta, antes de tudo, tamento da força social de trabalho à reorganização
como a de um modelo de racionalidade; uma forma dos fluxos naturais. Daí que se uma boa inovação é
de se interpretar a natureza calcada na convicção de uma inovação boa à valorização de capital; o conhe-
que o ser humano é, de fato, capaz de dominá-la, de cimento relevante passa a ser aquele que pode ser
modificá-la a seu bel-prazer. Logo, o estado de emer- utilizado nesse processo, o que faz com que o próprio
gência climática que experimentamos hoje deriva da sistema de conhecimento ou ciência projete em seu
episteme da modernidade, enraíza-se na “racionali- desenvolvimento a natureza da relação social que es-
dade econômica instrumental” (à feição do “homo trutura essa mecânica.

154 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Assim, parece lógico que o conhecimento que vise não é senão o modo de produção capitalista. A rigor,

Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes e horizontes emancipatórios


contestar essa episteme não pode emergir do desen- uma forma específica de se concretizar o metabolis-
volvimento (através) das ciências normais, positi- mo social, ou seja, a relação metabólica humanida-
vistas, mas do seu questionamento, haja vista que a de/natureza. Conforme apontado anteriormente, o
ciência normal, grosso modo, fornece subsídios cien- desenvolvimento é a complexificação dessa específi-
tíficos à racionalidade dominante – vetor da crise ca forma de se organizar a força social de trabalho,
ambiental. O “saber ambiental” há de se configurar, processo que controla, medeia e regula nossa relação
então, no tecido discursivo da mudança global, na metabólica com a natureza.
disputa de sentidos, para subsidiar uma nova forma Embora o trabalho seja também uma categoria
de interpretar o mundo (LEFF, 2006). transistórica – pois é justamente o processo consti-
Por conseguinte, importa reconhecer que “o do- tuinte da condição de humanidade em qualquer épo-
mínio do capital não se baseia simplesmente em seu ca, a compreensão e possível superação da emergên-
monopólio dos meios de produção, mas em seu mo- cia climática que atravessamos atualmente, por ser
nopólio da tecnologia e do conhecimento” (SAITO, específica do tempo histórico que compartilhamos
2021, p. 163). Afinal, uma teoria, ou sistema de co- –, requer a construção de teorias apropriadas a este
nhecimento, é também uma forma de consciência tempo. Requer, portanto, a análise do processo de
que orienta a ação. Uma forma de consciência que, trabalho em suas especificidades propriamente capi-
mesmo invertida, possui objetividade, pois, “por talistas. Ponto central, em torno do qual se constitui
mais absurdas que sejam as concepções dos agentes a crítica da Economia Política.
que emergem de sua prática cotidiana, é por meio de- Entretanto, em seus trabalhos de maior maturida-
las que eles tornam o mundo inteligível para si mes- de, Marx teria percebido a inviabilidade de se teori-
mos e são capazes de assumir as atitudes e compor- zar o funcionamento de uma determinada formação
tamentos adequados àquelas relações” (DUAYER, social a partir de categorias transistóricas. A rigor, ao
2001). Como afirma Moore, “dizer que os humanos descrever o capitalismo (seu objeto de investigação)
são uma parte da natureza é destacar a especificidade em conformidade com uma contradição historica-
da humanidade dentro da teia da vida – suas formas mente específica, Marx rejeita – mesmo que implicita-
específicas de sociabilidade, suas capacidades de me- mente – a concepção de uma suposta lógica imanente
mória coletiva e produção simbólica e muito mais”. da história humana, bem como a dialética transistóri-
ca, afastando-a do reino da filosofia da história para
reposicioná-la na estrutura de uma teoria social histo-
A América Latina e a aceleração ricamente específica. Nesse giro, “de passagem de um
da dinâmica capitalista ponto de partida transistórico para outro historica-
mente específico, sugere que não apenas as categorias,
Para Dussel (2018), explicar a história de um povo mas também a própria forma da teoria, são historica-
é impossível sem uma história universal. Nesse senti- mente específicas” (POSTONE, 2014, p. 165).
do, constata-se que é a história universal que produz Acrescentaríamos que ademais de historicamente
o contexto ou o cenário no qual a história de deter- específicas, as teorias são também, geograficamente
minado agrupamento humano adquire um sentido, localizadas, ou melhor, perspectivas construídas a
uma lógica, e articula alguma forma de coerência partir de determinadas realidades espaço-temporais.
interna, ademais de proporcionalidade. Apreender o Afinal, de acordo com Milton Santos, “o mundo é
movimento das economias latino-americanas, por- aquilo que se vê de onde se está”. E é justamente nesse
tanto, requer interpretá-las enquanto constituintes sentido que nos parece oportuno observar as teorias
de uma totalidade em movimento. Nos dois primei- decoloniais, que ganham corpo como esforços inter-
ros apartados deste texto, procuramos pavimentar a pretativos para se pensar – de onde se está, de fato
via que conduz ao entendimento de que a totalidade – a América Latina no tempo da modernidade que
que nos toca apreender a dinâmica de movimento lhe atravessa e lhe funda enquanto tal, “desde que as

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Debates botas espanholas pisaram por primeira vez as areias [a]inda hoje se considera a conquista e
brancas das Bahamas”, como colocado por Galeano colonização um ato civilizatório da humanidade;
a geopolítica mundial se explica em termos
(1983), em As veias abertas da América Latina.
da superioridade científico-tecnológica da
Porto-Gonçalves (2013, p. 23) mostra que tanto supremacia moral e cultural. Segue a concepção
Wallerstein (2004) como Quijano (2002) designa- da modernidade como um fenômeno
ram “sistema-mundo ao padrão de poder que passou intraeuropeu, bem como o industrialismo
e o capitalismo. São processos autogeridos,
a governar o mundo a partir de 1492, com a desco-
cultivados na racionalidade avançada de
berta [sic] da América Latina”. Para aquele autor, o povos laboriosos. A descomunal fagocitose da
“descobrimento” é o ponto de surgimento de uma economia do capital segue sendo vista como
geografia e de uma história verdadeiramente mun- desenvolvimento e, apesar da violência cometida
diais e constitui-se, assim, a concepção de “mundo em seu nome, é o objetivo principal de todos
os governos e de todas as políticas: incentivar
moderno”. Destaca ainda Porto-Gonçalves que, não
investimentos; assegurar o crescimento
por acaso, no binômio, o destaque fica para o termo econômico como condição para superar a
“moderno”, afinal, carregar ênfase na modernidade pobreza; e procurar o desenvolvimento, em
implica em assumir um “papel protagônico exclusi- particular, o desenvolvimento mineiro – pois,
como se sabe, sem mineração não há progresso.
vo à Europa”, ao passo que busca obliterar o fato de
É a verdade do olhar colonial transformada
que o “mundo” participa ativamente desse processo. em ciência, política de Estado, senso comum.
Na perspectiva do autor, “não fosse a colonização da Nesses horizontes epistêmicos, não é possível
América, a Europa não teria reunido forças para se sair da lógica colonial, ou sequer percebê-la
como tal; muito menos avistar alternativas
impor ao mundo como seu verdadeiro centro hege-
(ARAÓZ, 2020, p. 87).
mônico”. (ibid., p. 24). A combinação dessa ideia com
o raciocínio de Chauí (2007) acima exposto permite
Reconheçamos com o autor da citação acima que,
o entendimento de que o capitalismo, como modo
tragicamente, as chagas abertas na pele da terra para
de produção próprio da modernidade, não apenas
jamais se fecharem não são senão o que ficará como
se articula como sistema mundial desde seus albores,
recordações, presentes do amanhã das promessas
mas também é alavancado pelas riquezas naturais da
desenvolvimentistas de hoje. Para além de um fenô-
América Latina que ele acelera o devir.
meno econômico ou político, o desenvolvimento é
quase um ato religioso. A religião moderna em si: da
modernidade-colonialidade. O progresso é o credo
Quando olhamos retrospectivamente, através dos diver- que professa. Uma vez consagrado esse lugar estra-
sos dados que comprovam a emergência do aquecimento
tégico de enunciação, desde a tripla oficialidade da
global e a crescente desigualdade material que lhe acom-
ciência, do Estado e do mercado, as visões dominan-
panha, não restam dúvidas de que o metabolismo social
tes se convertem na única realidade possível, o único
do capitalismo consome predatoriamente as fontes vitais
caminho, universal, destino manifesto. Aqueles que
da qual depende. Portanto, o desenvolvimento sustentável
nos moldes do capitalismo não é apenas um oximoro; o clamam por “alternativas” não são mais do que pro-
desenvolvimento capitalista é autofágico. fanadores da Ordem, tacanhamente ofuscados por
parvas ideologias que afastam do caminho da Razão
e da ciência (ARAÓZ, 2020).
Em Mineração, genealogia do desastre: o extra- Contudo, reconheçamos também, agora com as
tivismo na América como origem da modernidade, ideias de Marx e com o auxílio das reflexões de José
Aráoz (2020) vai adiante nessa questão ao afirmar Aricó (2012), que é a constituição do capitalismo no
a incidência do reino mineral no mais profundo da mundo que torna possível a emergência da história
estruturação da subjetividade política moderna, em universal, sobretudo através da formação do mer-
cujo sujeito moderno nasce num influxo de excitação cado mundial. Mas que é justamente a partir desse
provocado pelo ouro. E não deixa de concluir que momento histórico que se pode construir um campo

156 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


do conhecimento que recupere a unidade do univer- Ao se referir às forças sociais que partem de uma

Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes e horizontes emancipatórios


so humano. A história universal não é, portanto, um condição subalterna e de opressão muitas vezes vio-
elemento neutro, tampouco mera ciência de registro lenta, Escobar (ibid.) afirma que estas “adquirem
das ciências intercorridas; é o ponto de partida atra- uma relevância incomum para a reconstituição dos
vés do qual uma determinada versão de humanidade mundos em face às graves crises ecológicas e sociais
reconstitui o sucedido no mundo. que enfrentamos, mais do que o conhecimento de
Quando olhamos retrospectivamente, através dos especialistas, instituições e academia” (ibid., tradu-
diversos dados que comprovam a emergência do ção nossa). Seguindo esse argumento, ao criticar os
aquecimento global e a crescente desigualdade ma- efeitos destrutivos do crescimento econômico sobre
terial que lhe acompanha, não restam dúvidas de que os ecossistemas da América Latina, Milanez (2017)
o metabolismo social do capitalismo consome pre- reivindica a adoção de uma abordagem renovada
datoriamente as fontes vitais da qual depende. Por- em relação à natureza através de uma perspectiva
tanto, o desenvolvimento sustentável nos moldes do capaz de efetuar uma crítica apta a romper com as
capitalismo não é apenas um oximoro; o desenvolvi- concepções eurocêntricas. Para o autor, essa aborda-
mento capitalista é autofágico. É essa a especificidade gem deve fundamentar-se em uma perspectiva que,
histórica que deve ser teorizada, urgentemente. No essencialmente latino-americana, sustente vínculos
entanto, não esqueçamos que – como afirma Moore com os conhecimentos e saberes radicados em terri-
– a crítica do dualismo Natureza/Sociedade precisa tórios que insistem em operar em uma lógica distinta
ser metodológica. E, nos parece, mais do que isso: ela da meramente sujeita aos imperativos da reprodução
precisa ser uma teoria da práxis, uma teoria da con- do capital.
cepção da prática. Justamente o que abre o terreno Os conflitos que perpassam esses territórios re-
para a centralidade do pensamento crítico revolu- calcitrantes não são apenas contendas abertas pelo
cionário, mas também para a arena política. Afinal, desenvolvimento capitalista, que visa apagar tem-
como lembra Eagleton (2003), são os interesses polí- poralidades constituintes de distintas e pertinentes
ticos que governam os culturais e, com isso, definem formas de vida. São também pontos luminosos, que
uma determinada versão de humanidade. Isso, na indicam o caminho de saída do labirinto que se erige
medida em que cultura é um conceito que deriva da a partir da desorganização das coordenadas do Siste-
relação humana com a natureza, pois, na origem, diz ma Terra e se manifesta no recrudescimento da crise
respeito à forma pela qual a cultivamos e a transfor- ecológica que daí emerge. Além de outros grupos
mamos em função de nossas necessidades. oprimidos pela ação homogeneizadora, muitas vezes
Nessa linha, é premente recuperar as contribuições abrupta e violenta do capital, a experiência de co-
de autoras e autores associados à Ecologia Política, munidades em resistência, forjadas no crisol da luta
em especial aquelas associadas ao pensamento crí- pela vida e pelos seus modos de vida – a exemplo de
tico latino-americano. A motivação reside, segundo quilombolas, ribeirinhos, camponeses e diversas et-
Escobar (2017), em uma investigação das conjuntu-
ras regional e planetária e da forma como estas se re-
fletem nos debates teórico-políticos, o que mostra in-
dícios de que o pensamento crítico latino-americano Os conflitos que perpassam esses territórios recalcitrantes
produz – pela sua atual efervescência – profundas e não são apenas contendas abertas pelo desenvolvimento
significativas contestações. Nestas, é o conhecimento capitalista, que visa apagar temporalidades constituintes
dos povos envolvidos nesse processo, sobretudo das de distintas e pertinentes formas de vida. São também
comunidades recalcitrantes e de tantos movimentos pontos luminosos, que indicam o caminho de saída do
sociais de natureza crítica ao sistema capitalista, que
labirinto que se erige a partir da desorganização das co-
ordenadas do Sistema Terra e se manifesta no recrudesci-
toma a frente da reflexão que visa à elaboração de tra-
mento da crise ecológica que daí emerge.
jetórias de mudança em direção a sociabilidades em
um contexto pós-extrativista e pós-capitalista.

ANDES-SN n julho de 2023 157


Debates nias indígenas –, constrói significativas possibilida-
des de mudança estrutural, indispensáveis sentidos
alternativos à construção de horizontes verdadeira-
mente emancipatórios.
São emblemáticas, nesse sentido, as ideias de qui-
lombo, enquanto “instrumento ideológico contra
formas de opressão” (NASCIMENTO, 1985), bem
como de quilombismo1, enquanto ideia-força que dá
sentido à ação recalcitrante de corpos negros histo-
ricamente oprimidos em mitos de democracia racial
(NASCIMENTO, 1980). Ao mesmo tempo, tais ideias
induzem ao aquilombamento, ou seja, à construção
de um corpo político capaz de instituir mobilizações
coletivas em ações contra-hegemônicas. O aquilom- Reflexões finais
bamento implica em insurgência cada vez mais ativa
contra a opressão racial e se constitui como um con- A partir de substanciais indicativos de aceleração
junto de expressões no âmbito da luta pela superação das tendências entrópicas do modelo de civilização
das desigualdades raciais estruturantes do capitalis- e de reprodução material vigente, o presente artigo
mo, portanto, importante forma de enfrentamento à propôs um conjunto de questões. A concepção de
necropolítica (MBEMBE, 2017) que visa ao reforço O’Connor acerca da contradição do capitalismo em
de uma necroeconomia cada vez mais autofágica. Esse seu reordenamento da natureza se constitui como
processo sinaliza possibilidades de crítica e, ao mes- uma incoerência central para o encaminhamento de
mo tempo, de contestação do ordenamento vigente. um novo modo de produção, ou trata-se de uma den-
Outra significativa dimensão de resistência e de tre outras a ser incorporada pelo arranjo civilizacional
enfrentamento das opressões do status quo advém vigente orientando pela acumulação do capital, a ope-
das lutas no campo da educação indígena. Neste rar como mais um componente em seu processo de
espaço, reverberam a recalcitrância de cosmovisões desenvolvimento? Como se configuram as formações
que, pela sua própria natureza e riqueza de impe- socioeconômicas latino-americanas enquanto atores
rativos, contestam a ontologia moderna de um só na atual etapa de complexificação do capitalismo?
mundo possível. Dimensão cada vez mais indispen- A articulação conceitual entre o que assumimos
sável reforçar-se, à medida em que se trata de uma como territórios recalcitrantes com o par dialéti-
concepção de educação direcionada à contestação co devir/desenvolvimento, se não produz resposta
da normatividade, recebida por séculos, de apro- definitiva para várias questões, torna mais explícita
fundamento de um eurocentrismo que, racista em a existência de distintas vias de trânsito, seja para
essência, busca promover o epistemicídio dos sabe- arranjos efetivamente mais progressistas ou para a
res ancestrais, logo, o apagamento de suas formas de acentuação da tendência à entropia, que representa
pensar/sentir; enfim, existir. Esse processo abre es- possibilidade efetiva de regressão da existência hu-
paço para a recuperação dos saberes dos povos origi- mana neste planeta. A exploração de tais concepções
nários e, simultaneamente, estabelece a possibilidade articuladas à experiência latino-americana indica
da constituição dos indígenas como sujeitos políti- que existem efetivamente dois sentidos no horizonte.
cos aptos a contestarem a ordem vigente (KAYAPÓ, Por um lado, é possível que a atual senda de degra-
2019; NASCIMENTO, 2006). Os recentes enfrenta- dação dos ecossistemas se aprofunde ainda mais e
mentos protagonizados pelas comunidades indíge- abra espaço para que o capital busque a reconstru-
nas ao redor das disputas sobre o marco temporal ção do mundo nos seus próprios termos, como mos-
dão testemunho desse processo. tram as novas estratégias de acumulação primitiva

158 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Devir, desenvolvimento, territórios recalcitrantes e horizontes emancipatórios
(financeirização do espaço agrário, transgenia, bio-
tecnologia...). Por outro, que as disputas emergentes
impliquem no adensamento de forças sociais contes-
tatórias, aptas à construção de necessárias subjetivi-
dades ao aproveitamento efetivo das atuais condições
objetivas à mudança verdadeiramente estrutural, que
parece se impor como inarredável tarefa histórica,
ante a crise ecológica que se aprofunda. Sentido no
qual é indispensável o resgate e o aproveitamento de 1. Seguindo Abdias do Nascimento (1980), é da
necessidade de assegurar a própria existência
saberes e conhecimentos situados em mapeamentos
do negro como ser humano que resultam os
cognitivos distintos dos fundamentados na lógica da quilombos. Portanto, quilombos são genuínos
modernidade. Formas de pensar/sentir/existir pró- territórios recalcitrantes, constituídos a partir de
uma necessidade: a exigência vital de africanos e
prias dos diversos territórios recalcitrantes, que não
africanas escravizados resgatarem sua dignidade, ao
são senão pontos luminosos a indicar o caminho de organizar no espaço brasileiro construções sociais
saída do labirinto no qual se encontra a humanidade livres e fraternas. A multiplicação dos quilombos
no tempo-espaço os transformou em um genuíno
em sua relação metabólica com a natureza.
espaço sociopolítico – ademais de econômico –
Seja qual for o sentido, a relevância da trajetória a de resistência à violência sistêmica, ou seja, do
ser trilhada pela América Latina tende a ser decisiva. capitalismo, contra pessoas negras. Violência que
se manifesta na exploração, na humilhação e na
É possível que a região aprofunde seu padrão his-
opressão. Historicamente, o quilombismo estrutura-
tórico de inserção no capitalismo como espaço que se através de formas associativas que podem estar
fornece boa parte de suas energias vitais enquanto localizadas no seio de florestas de difícil acesso,
mas também a partir de “quilombos legalizados/
meros “recursos” para acelerar ainda mais a dinâmica
tolerados”. Lócus de resistência física e cultural, essa
que nos coloca de frente à crise ecológica, ou seja, a trama de territórios recalcitrantes inclui também
acumulação de capital. Entretanto, abrem-se também terreiros, escolas de samba, gafieiras e afoxés, dentre
outras organizações toleradas pela elite dominante.
no continente latino-americano horizontes emanci-
Quilombismo, portanto, pode ser entendido como
patórios, nos quais seus “territórios recalcitrantes” práxis afro-brasileira de resistência e autoafirmação
despontam como pontos luminosos a indicar o cami- política, que se manifesta em um complexo de
situações e significações.
nho do necessário reenlace da humanidade com seu
substrato material e condição inalienável de existên-
cia. Fica a questão de qual caminho tomar: o indicado
pelos pontos luminosos ou aquele no qual se acelere
ainda mais um metabolismo social autofágico.

ANDES-SN n julho de 2023 159


Debates

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ANDES-SN n julho de 2023 161


Debates

Inteligência artificial,
descarbonização e sindicatos
Vamberto Ferreira Miranda Filho
Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
E-mail: elgeboh@yahoo.com.br

Resumo: O crescente uso de inteligência artificial e as políticas de descarbonização são


duas das principais transformações atuais no mundo do trabalho. Na Alemanha e no Brasil,
essa “dupla transformação” tem desafiado o movimento sindical. O objetivo deste estudo
foi comparar iniciativas sindicais relacionadas a essas transformações nos dois países. O
método de investigação desenvolvido constituiu-se de um mapeamento não exaustivo de
exemplos de iniciativas sindicais sobre o tema em ambos os países e os Recursos de Poder
associados. Na Alemanha, os resultados da pesquisa apresentam indícios da mobilização
de poder institucional, de organização e social. No Brasil, houve indícios da mobilização do
poder de organização e social nas poucas iniciativas sindicais encontradas. Concluiu-se que
os desafios da chamada “dupla transformação” podem ser, também, uma oportunidade para
os sindicatos brasileiros mobilizarem seus Recursos de Poder.

Palavras-chave: Inteligência Artificial. Indústria 4.0. Plataformas Digitais. Descarbonização.


Política Sindical.

Introdução transformação” (BENDEL; HAIPETER, 2023), ou


seja, um processo global de desenvolvimentos desi-
Dois fenômenos contemporâneos têm desafiado guais e combinados (BOEWE; SCHULTEN, 2023).
o movimento sindical: o uso de inteligência artificial Portanto, o uso de IA e a descarbonização não ocor-
(IA) e as políticas de descarbonização. IA refere-se rem de forma linear em países do “Norte” e do “Sul
a sistemas que usam “aprendizagem automática”, Global” (VERDOLINI, 2023).
em grandes volumes de dados, para fazer previsões Nesse cenário, a IA é vista como um potencial
e determinar ações (HASSEL; ÖZKIZILTAN, 2023), para apoiar e acelerar uma transição energética
particularmente na esfera do trabalho. Já a descar- (WEF, 2021). No entanto, existem várias preocupa-
bonização refere-se à mudança das fontes de energia ções com relação a esse processo. Estudos apontam
utilizadas em diversas atividades econômicas – de que a IA/digitalização, ao mesmo tempo em que pro-
carbono intensivo para carbono zero (MANDELLI, porciona a criação de atividades profissionais de alta
2022). Uma possibilidade de se tratar esses proces- qualificação, também tem promovido a proliferação
sos de forma articulada é através da noção de “dupla de atividades de baixa qualificação e precárias (ABÍ-

162 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


LIO, 2020; COSTA; SOEIRO; MIRANDA FILHO, objetivo de pesquisa: comparar iniciativas desen-
2022). Do mesmo modo, a descarbonização promo- volvidas pelo movimento sindical na Alemanha e
ve produtos e processos de produção com baixo teor no Brasil em relação ao uso de IA/digitalização no
de CO2, mas também há risco de desemprego, bem mundo do trabalho e a “economia de carbono zero”,
como deslocalizações de empregos para regiões com visando pensar possíveis desafios para os sindicatos
menos requisitos de proteção ambiental (BENDEL; brasileiros. A comparação com a Alemanha deve-se
HAIPETER, 2023). ao movimento de vanguarda que vem representando
Diante disso, a questão de partida para esta inves- no processo de digitalização de suas fábricas (ARAU-
tigação foi a seguinte: como os sindicatos em países JO, 2020), particularmente no setor automobilístico.
com posições distintas na divisão internacional do O estudo justifica-se, portanto, pela necessidade de
trabalho – consequentemente, com diferentes siste- conhecimento sobre as políticas sindicais relaciona-
mas de relações laborais – têm desenvolvido iniciati- das à questão em perspectiva comparada.
vas para lidar com os riscos e oportunidades dessas Do ponto de vista metodológico, realizou-se um
transformações? Essa pergunta desdobrou-se em um “mapeamento não exaustivo” de exemplos de iniciati-

ANDES-SN n julho de 2023 163


Debates vas sindicais sobre o tema. Nesse sentido, trabalhou- tona alguns elementos da realidade de um país da
-se fundamentalmente com documentação (comu- (semi)periferia do capitalismo e da ação sindical em
nicados, projetos, relatórios, declaração, código de relação à estas transformações. Terceiro: neste estudo
conduta etc.), bem como com resultados de pesquisas traz-se para o debate a contribuição da Abordagem
empíricas. Quando possível, seguiu-se uma sequên- dos Recursos de Poder (DÖRRE, 2008; SCHMALZ;
cia cronológica na exposição das iniciativas, as quais DÖRRE, 2014) como um instrumental teórico-ana-
remetem ao período entre 2015 e 2023. Na Alema- lítico para a investigação das iniciativas sindicais em
nha, os exemplos selecionados foram iniciativas de- relação aos impactos da “dupla transformação”.
senvolvidas pelo IG Metall, maior sindicato deste O texto está organizado da seguinte forma: a Se-
país (HOFMANN; BENNER, 2019), enquanto que, ção 1 apresenta o enquadramento teórico utilizado
no Brasil, optou-se por não focar em um único sindi- na investigação, ou seja, a ARP e seus conceitos fun-
cato, devido à dificuldade de identificar uma organi- damentais, bem como uma síntese de suas caracte-
zação sindical que desenvolvesse iniciativas voltadas rísticas, objetivos e indicadores. A Seção 2 divide-se
para as diversas tendências da “dupla transformação”. em três momentos: inicialmente faz-se uma discus-
Com relação ao enquadramento teórico-analítico, são sobre o conceito de IA, suas áreas de utilização,
utilizou-se a Abordagem dos Recursos de Poder - bem como as iniciativas sindicais relacionadas ao
ARP (DÖRRE, 2008), em função das vantagens que tema; depois, discute-se alguns aspectos do modelo
esta oferece para as investigações sobre o movimento “Indústria 4.0”, seus efeitos no mundo do trabalho e
sindical (como será discutido na Seção 1). Argumen- exemplos de políticas sindicais para o tema; por fim,
ta-se neste estudo comparativo que, ao permitir aferir trata-se das plataformas digitais, suas características,
simultaneamente as forças e as fraquezas do movi- categorias, bem como experiências sindicais voltadas
mento sindical, uma análise da mobilização de Re- para o tema. A Seção 3 discute a noção de descarbo-
cursos de Poder é fundamental para um mapeamento nização, seus impactos no mundo do trabalho e tam-
do modo como se enfrentam os desafios da “dupla bém iniciativas dos/as trabalhadores/as organizados/
transformação”. Contudo, deve-se ter em conta, tam- as voltadas para a questão. A Seção 4 conclui, refle-
bém, os objetivos históricos do trabalho organizado. tindo sobre alguns desafios para os sindicatos brasi-
O estudo busca contribuir de três maneiras com leiros nesse cenário de “dupla transformação”.
as investigações em curso sobre as transformações
recentes no mundo do trabalho. Primeiro: no Brasil,
as pesquisas de que se tem conhecimento têm sido 1. Poderes sindicais
centradas nos impactos das tecnologias digitais nas
relações de trabalho (e.g., ABÍLIO, 2020; ANTUNES, Esta seção visa apresentar brevemente os prin-
2020; BRAGA; SILVA, 2022; FILGUEIRAS; ANTU- cipais conceitos da ARP (e.g., DÖRRE, 2008). Esta
NES, 2020). Nesse sentido, o estudo pode contribuir abordagem é utilizada aqui como um recurso heurís-
com essas investigações ao introduzir o debate sobre tico para examinar o impacto da “dupla transforma-
as interligações entre tecnologias digitais (ou IA) e ção” nas relações capital-trabalho. A opção pela ARP
o desenvolvimento de uma “indústria neutra para o justifica-se pela possibilidade de uso desta ferramen-
clima”. Segundo: as investigações sobre aspectos des- ta na análise da política sindical nas sociedade capita-
sa “dupla transformação” em perspectiva comparada listas tanto no chamado “Norte” (VANDAELE, 2020)
têm sido centradas em países do chamado “Norte quanto no “Sul Global” (e.g., ARAUJO, 2020; KREIN;
Global” (e.g., DOELLGAST; WAGNER; O’BRADY, DIAS, 2018). Além disso, a ARP tem sido utilizada
2023; MOLINA et al, 2023; PULIGNANO; HAUPT- para estudar fenômenos contemporâneos, como o
MEIER; FRANS, 2023). Dessa maneira, este estudo uso de IA/digitalização (e.g., BASUALDO et al, 2021;
pode contribuir com o debate em curso ao trazer à SCHÄFERS; SCHROTH, 2020) e a crise ecológica

164 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


(e.g., DÖRRE, 2020). Por fim – e não menos impor- ral e em poder de organização (BRINKMANN et al,

Inteligência artificial, descarbonização e sindicatos


tante–, a ARP também tem sido utilizada pelos sindi- 2008). Por basear-se nas duas fontes de poder pre-
catos para o seu trabalho diário (SCHMALZ; THIEL, cedentes (estrutural e de organização), é considera-
2017). Contudo, a ARP não está imune a críticas (e.g., do como uma forma secundária de poder (BRINK-
GALLAS, 2018). MANN; NACHTWEY, 2010). O poder institucional
A ARP diferencia quatro fontes de poder de in- se faz presente nos sistemas nacionais de relações de
fluência do trabalho: poder estrutural, poder de or- trabalho (LEHNDORFF; DRIBBUSCH; SCHUL-
ganização, poder institucional e poder social (Qua- TEN, 2017). Por isso, esta fonte de poder tanto con-
dro 1). O “poder estrutural” é o poder que resulta cede amplos direitos aos sindicatos quanto coloca
simplesmente da localização dos/as trabalhadores/ limites à sua capacidade de ação. Um indicador am-
as dentro do sistema econômico (WRIGHT, 2000). plamente aceite do poder institucional é a cobertura
É compreendido também como um recurso de poder da negociação coletiva (LEHNDORFF; DRIBBUS-
primário, pois está à disposição dos/as trabalhado- CH; SCHULTEN, 2017).
res/as mesmo na ausência de uma representação co- Finalmente, o “poder social” é a margem de ação
letiva de interesses (SCHMALZ; DÖRRE, 2014). Esta resultante de vínculos de cooperação viáveis com mo-
fonte de poder pode ser usada como uma capacidade vimentos sociais e populares, bem como o apoio da
de perturbar a valorização do capital por sua natu- sociedade às demandas sindicais (SCHMALZ; DÖR-
reza disruptiva (SCHMALZ; LUDWIG; WEBSTER, RE, 2014). Nessa perspectiva, o exercício do poder
2018) e pode manifestar-se de duas formas: tanto social relaciona-se com a capacidade de impor “he-
na produção quanto no mercado. A taxa de desem- gemonia” (GRAMSCI, 2016) na sociedade. Esta fonte
prego é utilizada como um indicador fundamental de poder pode emergir basicamente de duas outras
dessa fonte de poder (LEHNDORFF; DRIBBUSCH; fontes: o poder de cooperação e o poder de discurso/
SCHULTEN, 2017). comunicativo. A primeira significa formar redes com
O “poder de organização” ou associativo resulta
da formação de organizações coletivas de trabalha-
dores/as (WRIGHT, 2000). Desse modo, ao contrá-
O “poder social” é a margem de ação resultante de vín-
culos de cooperação viáveis com movimentos sociais e
rio do poder estrutural, requer um longo processo
populares, bem como o apoio da sociedade às deman-
de organização e a emergência de atores coletivos
das sindicais.
(BRINKMANN et al, 2008; SCHMALZ; DÖRRE,
2014). Duas questões merecem destaque na mobi-
lização do poder de organização do trabalho: os ní- outros atores sociais e ser capaz de ativá-las para mo-
veis de atuação desses atores e os fatores que podem bilizações e campanhas (FREGE; HEERY; TURNER,
ser utilizados para avaliar o poder de organização. 2004; SCHMALZ; DÖRRE, 2014). A segunda se ex-
Contudo, o poder de organização baseia-se não ape- pressa na capacidade de intervir com sucesso em de-
nas na força numérica dos sindicatos, mas também bates públicos ou em conflitos (GERST; PICKSHAUS;
na capacidade de estes mobilizarem com sucesso WAGNER, 2011). Em que pesem as dificuldades de
os seus membros (LEHNDORFF; DRIBBUSCH; se aferir quantitativamente o poder social dos sin-
SCHULTEN, 2017). Além disso, uma “representa- dicatos, a percepção cidadã pode ser utilizada como
tividade substantiva” demanda a integração com as um indicador deste recurso de poder (LEHNDORFF;
estruturas de diálogo social e com o sistema jurídico DRIBBUSCH; SCHULTEN, 2017). Contudo, essas
(COSTA; REGO, 2021), o que remete à articulação quatro fontes de poder se influenciam reciprocamen-
com o poder institucional. te e se desenvolvem em contextos socioeconômicos
O “poder institucional” surge como resultado de específicos. A seguir, discute-se o primeiro vetor da
negociações e conflitos baseados em poder estrutu- “dupla transformação”, ou seja, a IA.

ANDES-SN n julho de 2023 165


Debates
Quadro 1 - Fontes de poder do trabalho

Fontes CaracterísticaS Objetivos Níveis Exemplos Indicadores

Produção Bloqueios e
Localização Perturbar a (circulação e perturbações Taxas de
Poder
no sistema valorização reprodução) desemprego
estrutural
econômico do capital Mudar de etc.
Mercado emprego

Produção, Comissões,
Formação de Compensar a Taxas de
Poder de mercado, sindicatos,
organizações falta de poder sindicalização
organização sist. político e partidos e
coletivas estrutural etc.
transnacional FSGs

Estatutos,
Utilizar as Produção, Cobertura de
Regulamentações autonomia de
Poder instituições mercado, negociação
no mercado negociação,
institucional para os seus sist. político e coletiva
de trabalho jurisdição e
próprios fins transnacional etc.
normas da OIT

Apoios,
Reforçar o poder Produção, protestos Capacidade de
Poder social Relações de sist. político e
de organização e redes mobilização,
(cooperação cooperação transnacional
e criar percepção da
e discurso) e apoio Escandalização
pressão pública população etc.
--- de injustiças

Fonte: Elaboração própria, com base na literatura citada.

2. Inteligência artificial analisados para detectar desvios dos processos pa-


drão (e.g., manutenção preditiva); c) análise de dados
A IA é um dos temas centrais atualmente discuti- pessoais (people analytics) – sistemas de software su-
dos na Alemanha (e.g., HANNOVER MESSE, 2023) postamente capazes de automatizar os processos de
e no Brasil (e.g., MRE, 2023). A IA pode referir-se recrutamento (e.g., analisar um vídeo em termos de
a sistemas que usam “aprendizagem automática” fala, expressões faciais e gestos para selecionar candi-
(machine learning), treinada em grandes volumes de datos/as a serem convidados/as para uma entrevista
dados para fazer previsões e determinar ações (HAS- face a face); e d) veículos autônomos e robôs – má-
SEL; ÖZKIZILTAN, 2023). O termo IA surgiu em quinas a funcionar sem orientação humana, com
uma série de conferências ocorridas no Dartmouth dados de sensores analisados para evitar colisões ou
College (EUA), em 1956, “[...] nas quais vários cien- mover o veículo ou o braço do robô com maior preci-
tistas reuniram-se para tentar ensinar as máquinas são (KRZYWDZINSKI; GERST; BUTOLLO, 2022).
a resolverem problemas que, à época, apenas os hu- Contudo, deve-se ter em conta que a aplicação dessas
manos conseguiam resolver” (MOREIRA; DRAY, tecnologias no mundo do trabalho ocorre de forma
2022, p. 70). “desigual e combinada”.
As áreas de utilização da IA no mundo do traba- O uso de IA no mundo do trabalho ainda se en-
lho podem abranger: a) sistemas de assistência digital contra em seus estágios iniciais. Nesse sentido, opor-
– orientam os/as trabalhadores/as nos processos de tunidades e riscos podem se apresentar para os/as
montagem (e.g., óculos de dados, smartwatches e lu- trabalhadores/as. A IA representa uma oportunidade
vas inteligentes); b) monitoramento e controle de sis- para fortalecer a colaboração humano-robô e apoiar
temas em rede na fabricação – dados de sensores são as tarefas atualmente centradas no ser humano no

166 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


“chão de fábrica” (PERES et al, 2020). Entretanto, o sindicato em nível de produção/empresa. De manei-

Inteligência artificial, descarbonização e sindicatos


uso de AI também tem gerado uma série de riscos ra geral, os sindicatos alemães têm assumido que o
para os/as trabalhadores/as. A utilização de IA pode uso de IA no mundo do trabalho pode ser regulado
contribuir para a perda de postos de trabalho através e seus riscos limitados. Contudo, os sindicatos têm
da automação (DOELLGAST; WAGNER; O’BRADY, defendido que os/as trabalhadores/as precisam en-
2023). Além disso, os sistemas de aprendizagem au- volver-se mais nas discussões relacionadas ao uso de
tomática podem, ainda, contribuir para a supervisão IA (KRZYWDZINSKI; GERST; BUTOLLO, 2022).
sistemática e permanente dos/as trabalhadores/as; as No Brasil, existem sindicatos preocupados em de-
decisões ou recomendações feitas por esses sistemas bater a questão do uso de IA no mundo do trabalho
atualmente são inexplicáveis; os sistemas de apren- (e.g., SINDASP, 2023), mobilizando, portanto, seu
dizagem automática podem antecipar dados pessoais “poder social de discurso”. No entanto, não foram
confidenciais dos/as trabalhadores/as; e as regras de percebidos, ainda, estudos empíricos sobre a política
acesso aos dados industriais podem levar a monopó- sindical relacionada ao tema. A IA é um dos princi-
lios digitais etc. (INDUSTRIALL, 2019). Em sínte- pais suportes do modelo Indústria 4.0, por isso, na
se, esses riscos podem ser classificados em “diretos” sequência, dedica-se atenção à questão.
(e.g., aumento das assimetrias de informação a favor
de empregadores/as) e “indiretos” (e.g., aumento da
automação e da “fissuração” do trabalho) (HASSEL; 2.1 Indústria 4.0
ÖZKIZILTAN, 2023). A seguir, destacam-se algumas
iniciativas sindicais em relação ao tema da IA, bem A crescente digitalização e automação da produ-
como poderes mobilizados. ção industrial é conhecida como “Indústria 4.0”. Esse
modelo teria desencadeado uma ruptura tecnológi-
ca tão radical que leva autores liberais a interpretá-
IA e sindicatos -la como “Quarta Revolução Industrial” (SCHWAB,
2016). A noção da “Indústria 4.0” se espalhou pelo
Com relação às iniciativas sindicais, o IG Metall mundo sobretudo a partir da reunião do Fórum Eco-
tem desenvolvido algumas ações junto aos conselhos nómico Mundial realizada em Davos-Klosters, no
de empresa relacionadas ao tema da IA. Duas ações ano de 2016, cujo tema foi “Dominar a Quarta Revo-
se destacam. Primeiro, tem-se o exemplo do “atlas lução Industrial” (WEF, 2016). Entretanto, o termo
da transformação”, no qual elaborou-se inventários “Indústria 4.0” foi utilizado pela primeira vez na feira
sobre a transformação em empresas de diferentes ra- de comércio industrial Hannover Messe, no ano de
mos industriais, visando desenvolver recomendações 2011. Esse conceito foi criado por três engenheiros
de ação para uma configuração social e justa desta alemães, nomeadamente: Henning Kagermann (físi-
transformação (IG METALL, 2019a). Segundo, o sin- co e um dos fundadores da SAP, uma empresa alemã
dicato tem desenvolvido iniciativas como a criação de de software), Wolfgang Wahlster (investigador da
ferramentas, tais como a “bússola de digitalização”, a área de Inteligência Artificial) e Wolf-Dieter Lukas
qual permite que os conselhos de empresa analisem (físico e funcionário do Bundesministerium für Bil-
a estratégia de digitalização de uma empresa e ava- dung und Forschung) (PFEIFFER, 2017). A noção de
liem as suas consequências para os/as trabalhadores/ Indústria 4.0 tem como referência as três revoluções
as (IG METALL, 2019b). Outra ferramenta desse gê- industriais que a precederam. A primeira revolução
nero é o “mapa digital da empresa”, um método para industrial ocorreu entre 1760 e 1820 e introduziu a
obter uma visão geral do status da digitalização da energia a vapor e a mecanização. A segunda revolu-
empresa e os efeitos nas condições de trabalho (IG ção industrial foi a produção em massa, a partir de
METALL et al, 2021). Tais iniciativas podem ser evi- 1870 (mais conhecida através das linhas de monta-
dências da capacidade de mobilização, sobretudo do gem de Henry Ford, em 1913). Finalmente, a tercei-
“poder de organização” e do “poder institucional” do ra revolução industrial introduziu computadores e

ANDES-SN n julho de 2023 167


Debates automação na fabricação, a partir de 1950 (ROSER, Indústria 4.0 e sindicatos
2015) - Figura 1. Nessa perspectiva, a tecnologia cen-
tral aplicada na Indústria 4.0 é uma rede digital posta Atualmente, tanto sindicatos alemães quanto bra-
em uso no contexto industrial nos chamados Siste- sileiros têm desenvolvido iniciativas em relação à In-
mas de Produção Ciber-Físicos (BUTOLLO, 2016). dústria 4.0. No caso alemão, destacam-se duas inicia-
tivas com a participação do IG Metall. A primeira é o
projeto “Trabalho 2020”, iniciado em 2016. O projeto
Figura 1 - Esquema para a Indústria 4.0 foi uma ação conjunta de quatro sindicatos (IG Me-
tall, IG BCE, NGG e IG BAU), destinada à indústria
de exportação da Alemanha. O foco principal do tra-
balho foi fornecer orientação ao conselho de empresa
através de uma equipe de representantes sindicais e
consultores. Em resumo, a iniciativa foi compreen-
dida como um meio de fortalecer mutuamente am-
bas as facetas da representação de trabalhadores/as
(HAIPETER, 2020), embora não tenha havido trans-
formações organizacionais. A segunda iniciativa
sindical é o projeto “Trabalho e Inovação”. Ao consi-
Fonte: Roser (2015). derar a Lei de Constituição das Empresas, o referido
projeto surgiu das hipóteses de que a transformação
digital entraria na indústria alemã em contextos e em
Os efeitos do modelo Indústria 4.0 no mundo do velocidades muito diferentes e de de que os órgãos
trabalho são bastante controversos. Por um lado, fa- do conselho de empresas e representantes sindicais
la-se em uma revolução na organização das cadeias precisariam de apoio especial (SCHÄFERS; SCHRO-
de valor, permitindo “fábricas inteligentes”, onde os TH, 2020). Ambas as iniciativas parecem evidenciar
sistemas físicos e virtuais de fabricação cooperam de a mobilização do “poder institucional” e de “organi-
forma global e flexível (SCHWAB, 2016). Por outro, zação” no nível da produção/empresa. Contudo, os/
várias críticas têm sido dirigidas a esse modelo. Uma as trabalhadores/as e sindicatos também enfrentam
avaliação inicial das políticas relacionadas à Indústria dificuldades para exercer poder de influência, tendo
4.0 na Alemanha, com foco nos aspetos trabalhistas em vista que projetos como esses ocorrem em um de-
e sociais, evidenciou que a digitalização levava a uma terminado contexto econômico.
permeabilidade da estrutura individual da empresa Com relação ao Brasil, destaca-se a iniciativa de-
e a uma reestruturação das cadeias de valor, cujas senvolvida pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC
consequências para o mundo do trabalho ainda são (SMABC). O sindicato reagiu quando elementos da
difíceis de prever (BUTOLLO; ENGEL, 2015). O mo- Indústria 4.0 foram introduzidos, desenvolvendo es-
delo Indústria 4.0 conduziria, ainda, a lutas trabalhis- tratégias para assegurar uma “transição justa”. Nesse
tas defensivas, com os/as trabalhadores/as a lutarem sentido, algumas ações foram realizadas, como uma
contra uma redução das normas laborais, a perda de série de cursos e ciclos de palestras promovidas, en-
postos de trabalho e o declínio dos salários (BASU- tre 2017 e 2019, com temas relacionados à Indústria
ALDO et al, 2021). Além disso, com a Indústria 4.0, 4.0 (ARAUJO, 2020). Nesse processo, o recurso ao
tem-se uma nova fase de hegemonia informacional- “poder de organização” parece ter sido fundamental
-digital sob o comando do capital financeiro (AN- diante da iminência da implementação do modelo In-
TUNES, 2020). Na sequência, trata-se de algumas dústria 4.0. A próxima seção trata de outro modelo de
iniciativas sindicais em relação ao tema da Indústria negócios que emergiu no contexto de desenvolvimen-
4.0, bem como recursos de poder mobilizados. to das tecnologias digitais: as plataformas de trabalho.

168 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


2.2 Plataformização/uberização balhadores/as, a uberização acentua a dinâmica de

Inteligência artificial, descarbonização e sindicatos


financeirização das empresas e radicaliza a lógica
O uso de IA como uma característica do trabalho de externalização e de precarização das relações de
via plataformas digitais (HASSEL; ÖZKIZILTAN, emprego (COSTA; SOEIRO; MIRANDA FILHO,
2023), atividades de baixa qualificação e precárias 2022). A definição de uberização envolve ainda qua-
(VERDOLINI, 2023). Esse fenômeno tem sido de- tro características: 1) a redução do trabalhador a um
nominado por alguns autores como “plataformiza- trabalhador just-in-time; 2) as empresas designam
ção” do trabalho (e.g., HUWS; SPENCER; COATES, sua atividade principal como mediadoras; 3) de um
2019). No entanto, no debate científico em língua contingente predefinido, passou-se a lidar com a
portuguesa, tem sido utilizado como sinônimo o figura da multidão de trabalhadores/as disponíveis
termo “uberização” (BOAVIDA; MONIZ, 2022). A (crowdsourcing); e 4) o deslizamento da identidade
uberização é uma tendência com potencial de ge- profissional do trabalho para a de trabalho amador/
neralização nas relações de trabalho que abrange informalização (ABÍLIO, 2020). Grosso modo, as
diferentes setores da economia, tipos de ocupação, plataformas digitais de trabalho podem ser agrupa-
níveis de qualificação e rendimento (ABÍLIO, 2020). das em duas categorias, nomeadamente: cloudwork e
Através de um processo de “emprecarização” de tra- gigwork (Figura 2).

Figura 2 - Categorias de plataformas digitais de trabalho

Mercados freelance
e.g., Upwork
Tarefas p/
indivíduos
Plataformas Microtarefa
baseadas na web (crowdwork)
(cloudwork) e.g., AMT
Tarefas p/
multidão
Concursos criativos
(crowdwork)
e.g., 99designs
Plataformas
digitais
de trabalho
comerciais Alojamento
e.g., Airbnb

Tarefas p/ Transporte e Entregas


indivíduos e.g., Uber e UberEats
Plataformas
baseadas na localização
(gigwork) Serviços domésticos
e.g., TaskRabbit
Tarefas p/
multidão

Microtarefas locais
e.g., AppJobber

Fonte: Adaptado de Schmidt (2017).

ANDES-SN n julho de 2023 169


Debates Plataformização/uberização e sindicatos em plataformas”. O documento contém uma série de
propostas: conformidade com a legislação nacional e
Desde 2012, o tema do trabalho via plataformas os princípios internacionais, esclarecimento do status
faz parte da agenda do IG Metall. Suas iniciativas de emprego, direito de organização, salários, proteção
dirigem-se basicamente para o cloudwork. Aqui são social, resolução de disputas, transparência etc. (IG
destacadas cinco dessas iniciativas. Primeiro, em METALL et al, 2016). Essa iniciativa pode ser toma-
2015, o IG Metall, em cooperação com outros sin- da tanto como um exemplo de mobilização de “poder
dicatos, criou o website “Fair Crowd Work” (http:// social de cooperação” (redes) quanto de “poder de
faircrowd.work/de/), uma iniciativa de mobilização discurso” (propostas para os problemas emergentes).
do “poder social de cooperação e discurso”. O website Quarto, a “Declaração de Frankfurt” foi uma ini-
coleta informações sobre o trabalho via plataformas ciativa que gerou tentativas de construção de “poder
e as avalia da perspectiva de seus/suas trabalhadores/ institucional”. Por um lado, o Código de Conduta
as. Semelhante aos “fóruns on-line” (JOHNSTON; (CODE OF CONDUCT, 2017), uma iniciativa de
LAND-KAZLAUSKAS, 2018). introdução de plataformas digitais de trabalho no
domínio das relações laborais, com representação e
negociação coletivas (VANDAELE, 2018), onde as
questões que surgem através dos processos de quei-
Tendências apontam que os carros de passageiros elé-
tricos a bateria ainda representam um segmento com- xas evidenciam possíveis áreas para regulamentação
parativamente pequeno da frota global de carros de pas- futura (JOHNSTON et al, 2020). Por outro, o prove-
seio (cerca de 4,2% em 2021), mas o ritmo na produção dor de justiça/ouvidoria (IG METALL, 2018), um ór-
cresce exponencialmente desde 2012. A maioria dos gão de mediação de conflitos entre trabalhadores/as
cenários não duvida mais que os acionamentos elétricos e plataformas. Portanto, uma experiência que pode
a bateria substituirão os motores de combustão fóssil servir de base para regular o crowdworking em outros
como o conceito de acionamento mais difundido em mé- países (GEGENHUBER et al, 2022).
dio e longo prazo. Por fim, a criação da plataforma FairTube (https://
fairtube.info/) e a fundação da associação FairTube
(BARTH et al, 2020) evidenciam não só a mobiliza-
Segundo, em 2015, aprovou-se uma alteração no ção do “poder social”, tanto de cooperação (colabo-
estatuto do sindicato para que os/as trabalhadores/ ração com o YouTubers Union) quanto de discurso
as independentes pudessem tornar-se membros do (publicações, uso de redes digitais...), mas também
Sindicato (IG METALL, 2015). Com isso, desde a mobilização do “poder de organização” (novas fi-
2016, os/as trabalhadores/as de plataformas digitais liações) do sindicato. De modo geral, no entanto,
que vivem na Alemanha também podem tornar-se percebe-se um limitado poder de perturbação des-
membros do IG Metall. Isso lhes deu, por exem- ses criadores/as de conteúdo vis-à-vis a plataforma
plo, acesso a serviços jurídicos e aconselhamento YouTube, mesmo em uma ação coletiva (NIEBLER;
específico (IG METALL, 2017). O acompanha- KERN, 2020).
mento jurídico do sindicato foi fundamental para No Brasil, a investigação sobre as iniciativas sin-
que um/a trabalhador/a fosse reconhecido/a como dicais em relação ao trabalho via plataformas digi-
empregado/a de uma plataforma digital (BUNDE- tais é um tema ainda a ser explorado. Por exemplo,
SARBEITSGERICHT, 2020). Essa possibilidade de analisou-se a relação entre trabalhadores/as, as pla-
integração de trabalhadores/as de plataformas na taformas digitais e as possibilidades de regulação
estrutura sindical pode indicar a ampliação do seu dessa atividade (FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020);
“poder de organização”. analisou-se também a relação entre o crescimento
Terceiro, o IG Metall, juntamente com uma rede do trabalho via plataformas digitais, as formas tra-
de entidades internacionais, publicou, em 2016, a dicionais de ser trabalhador, bem como as mudanças
“Declaração de Frankfurt sobre o trabalho baseado nas rotinas de trabalho no setor de entrega durante a

170 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


pandemia da Covid-19 (BRAGA; SILVA, 2022). Po- O setor de transportes é responsável por cerca

Inteligência artificial, descarbonização e sindicatos


rém, registros de estudos específicos sobre iniciativas de 1/4 de todas as emissões de CO2 provenientes da
sindicais em relação a essa modalidade de trabalho queima de combustíveis fósseis globalmente (IEA,
não foram percebidos. Sabe-se, no entanto, que a 2023). Por isso, a “eletromobilidade”, continuação
maioria das plataformas não possui uma política do- da automobilidade (individual) com acionamento
cumentada que reconheça a voz do/a trabalhador/a elétrico, é considerada uma estratégia central para
e da organização dos/as trabalhadores/as: os direitos mitigar a mudança climática e uma chave para a
dos/as trabalhadores/as em relação à liberdade de descarbonização no setor de transportes (BOEWE;
associação são, muitas vezes, limitados. Além disso, SCHULTEN, 2023; PULIGNANO; HAUPTMEIER;
vários/as trabalhadores/as relatam terem sido pena- FRANS, 2023).
lizados/as por participarem de greves (FAIRWORK A perspectiva de um gigantesco aumento da de-
BRASIL, 2021). Com isso, o “poder de organização” e manda por carros elétricos deu início a uma agita-
o “poder social de discurso” parecem emergir nas ex- ção na própria estrutura industrial. Novas empresas
periências relatadas. Na sequência, discute-se a des- ganharam reconhecimento global em poucos anos
carbonização, outro aspecto da dupla transformação, (e.g., Tesla, Inc.). Partes das indústrias baseadas em
bem como as iniciativas sindicais.
motores de combustão interna, como a fabricação
de transmissões, tiveram que reduzir radicalmente
suas capacidades. Novas tecnologias-chave, como a
3. Descarbonização produção de baterias de tração, ocupam lugares im-
portantes na reorganização das cadeias de valor e das
A descarbonização pode referir-se à mudança das
redes globais de produção. Os componentes eletrô-
fontes de energia utilizadas em diversas atividades
nicos, que até recentemente tinham um caráter bas-
econômicas de carbono intensivo para baixo ou zero
tante complementar, estão se tornando componentes
carbono (MANDELLI, 2022). Além disso, esse é um
centrais do veículo com o avanço da digitalização e
processo eminentemente político, implementado por
da conectividade com a internet. As matérias-pri-
empresas com a utilização de instrumentos como
mas para a produção de baterias e semicondutores
certificados de emissão, preços, subsídios para tec-
são necessárias em uma extensão sem precedentes
nologias verdes etc. (BENDEL; HAIPETER, 2023).
(BOEWE; SCHULTEN, 2023).
Nesse sentido, considera-se a política industrial da
Tendências apontam que os carros de passagei-
China (evitar a poluição nas megacidades), o acordo
ros elétricos a bateria ainda representam um seg-
de proteção climática da ONU e diretivas da União
mento comparativamente pequeno da frota global
Europeia como os principais impulsionadores de
de carros de passeio (cerca de 4,2% em 2021), mas
descarbonização (BOEWE; SCHULTEN, 2023).
Da mesma forma que a introdução de IA no mun- o ritmo na produção cresce exponencialmente des-

do do trabalho, a descarbonização pode representar de 2012. A maioria dos cenários não duvida mais

oportunidades em termos de criação de emprego, que os acionamentos elétricos a bateria substituirão

mas também riscos sociais e de emprego. Riscos so- os motores de combustão fóssil como o conceito
ciais referem-se à previsão de que as famílias de baixa de acionamento mais difundido em médio e longo
renda, embora menos responsáveis pelas emissões prazo. No entanto, os veículos movidos a motores
baseadas no consumo, sejam desproporcionalmen- de combustão interna ainda existirão por muito
te afetadas pelos aumentos dos preços da energia tempo em algumas regiões do mundo (BOEWE;
decorrentes das políticas climáticas (MANDELLI, SCHULTEN, 2023). Nesse cenário, os sindicatos
2022). A descarbonização representa, ainda, riscos metalúrgicos são um setor industrial chave para
significativos para o emprego, com reestruturações perceber como essas organizações têm reagido a
industriais em setores intensivos em emissões (BEN- essa transformação. Por isso, na sequência, trata-se
DEL; HAIPETER, 2023). de algumas iniciativas sindicais.

ANDES-SN n julho de 2023 171


Debates
Descarbonização e sindicatos Conclusão

O IG Metall tem desenvolvido algumas iniciati- Este estudo constituiu-se em uma primeira ten-
vas relacionadas ao tema de descarbonização. Aqui tativa de realizar um mapeamento de algumas ini-
destacam-se três exemplos. Primeiro, o sindicato tem ciativas sindicais relacionadas à chamada “dupla
realizado ações de mobilização do “poder social de transformação” (IA e descarbonização). O estudo
cooperação”, com o movimento Fridays for Future. comparou duas realidades distintas do ponto de vista
Nessa coalizão, há um entendimento mútuo sobre a do desenvolvimento capitalista: Alemanha e Brasil.
necessidade de evitar a iminente catástrofe climática Para tanto, utilizou-se da ARP como instrumental
(IG METALL, 2019c). Segundo, diante da perspecti- teórico-analítico.
va de que dezenas de milhares de empregos irão desa- Os resultados da investigação evidenciaram a
parecer na indústria metalúrgica nos próximos anos, existência de iniciativas sindicais em relação à “du-
o sindicato tem desenvolvido pesquisas sobre o tema pla transformação”, tanto na Alemanha quanto no
(IG METALL, 2020), um indicador da mobilização Brasil. Ainda que em um estágio embrionário, essas
de “recursos de infraestrutura” do “poder de organi- iniciativas podem ser tomadas como exemplos de
zação” do sindicato. Por fim, o sindicato também tem tentativas de os sindicatos mobilizarem recursos de
mobilizado “poder institucional” e de “discurso” para poder para enfrentar os desafios da “dupla transfor-
defender a tese da necessária “transformação ecológi- mação”. Particularmente, na Alemanha há indícios
ca” (IG METALL, 2023). A preocupação do IG Metall da mobilização de “poder institucional”, em função
deve ser compreendida, também, pelo aspecto de que das características de seu sistema de relações labo-
a importância da indústria automotiva para o em- rais. Além disso, também há indícios de mobilização
prego não é tão grande em nenhum país capitalista de “poder de organização e de “cooperação”. Já nos
quanto na Alemanha (BOEWE; SCHULTEN, 2023). escassos exemplos brasileiros encontrados, pode-se
No Brasil, parece haver ainda uma escassez de falar de indícios destes poderes, enquanto aquele pa-
estudos empíricos sobre iniciativas sindicais em re- rece praticamente inexistente.
lação à descarbonização. Entretanto, há uma intensa Com base nas quatro fontes de poder citadas, é
produção e veiculação de informações (“poder de possível, ainda, pensar alguns desafios que se colo-
discurso”) pelo SMABC (e.g., SMABC, 2023). Além cam para o movimento sindical brasileiro nesse ce-
disso, esse sindicato tem expressando a sua capacida- nário de transformações:
de de mobilização de “poder de cooperação” através 1. O debate sobre a “dupla transformação” pode
da participação na organização de fóruns voltados ser uma oportunidade para os sindicatos discutirem
para a questão ambiental (e.g., SMABC, 2019), den- aspectos relacionados ao “poder estrutural” ou eco-
tre outras atividades. nômico dos/as trabalhadores/as. Nesse sentido, a dis-

172 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


tribuição dos dividendos do uso de IA/Indústria 4.0 como “reforma trabalhista” (KREIN; DE OLIVEIRA;

Inteligência artificial, descarbonização e sindicatos


é uma questão central nessa discussão (BUTOLLO, FILGUEIRAS, 2019). Essa legislação teve como con-
2017). Ao mesmo tempo, também é necessário dis- sequência queda dos rendimentos, níveis altos de de-
cutir a questão da redução da jornada de trabalho semprego, aumento da informalidade etc. Além disso,
com manutenção da remuneração integral, tema significou um ataque ao direito de negociação coletiva
com crescente apoio dos/as trabalhadores/as brasi- (KONCHINSKI, 2022), um dos principais indicado-
leiros/as (CUT, 2022). res do “poder institucional” dos sindicatos. Portanto,
2. O cenário de digitalização e descarbonização “revogar já” essa lei é fundamental para fazer avançar
da economia deve ser, ainda, um momento para a os interesses coletivos dos/as trabalhadores/as.
reconstrução do “poder de organização” dos sindi- 4. Os desafios da “dupla transformação” também
catos. Um exemplo emblemático vem da indústria podem ser uma oportunidade para os sindicatos for-
automobilística, onde novos atores globais, como a talecerem as redes (mobilização de “poder social de
Tesla e a Geely, emergem em universos paralelos sem cooperação e discurso”) com movimentos ambien-
sindicatos, impondo novas “tendências no local de tais – seja em nível local, nacional ou internacional.
trabalho” que repercutem nos setores dos fabricantes A participação do movimento sindical em manifes-
de automóveis tradicionais com algum nível de sindi- tações de natureza socioecológica, como as “greves
calização (BOEWE; SCHULTEN, 2023). Além disso, globais pelo clima”/“coalizão pelo clima”, é possibi-
a “plataformização/uberização” (e suas consequên- lidade não só de denunciar a responsabilidade do
cia sindicais) já é uma tendência identificada até em agronegócio pelo desmatamento da Floresta Amazô-
áreas como a educação pública (e.g., SILVA, 2019). nica, a invasão de terras indígenas, etc., mas também
Portanto, essas tendências terão que ser enfrentadas o “novo colonialismo ecológico” (BOEWE; SCHUL-
pelos sindicatos brasileiros. TEN, 2023) – e.g., o “golpe do lítio”, na Bolívia, em
3. O debate sobre a “dupla transformação” no 2019 (WEBER, 2020).
Brasil também pode ser uma oportunidade para o Contudo, as consequências negativas da “trans-
movimento sindical discutir direitos trabalhistas su- formação digital” e da “descarbonização” só poderão
primidos. Por exemplo, aqueles decorrentes de con- ser enfrentadas de forma mais contundente por um
trarreformas neoliberais, como a promulgação da movimento sindical com independência de classe,
Lei 13.467/2017 (BRASIL, 2017), também conhecida progressista e revolucionário!

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ANDES-SN n julho de 2023 179


Debates

As condições de trabalho
e a luta sindical
do setor de mármore e granito
do sul do Espírito Santo
Luanna da Silva Figueira
Doutoranda em Sociologia e Direito pela
Universidade Federal Fluminense (UFF)
E-mail: luanna_figueira@hotmail.com

Resumo: As precárias condições de trabalho do setor de mármore e granito do sul do ES


perpassam um meio ambiente que causa malefícios na ordem do acidente típico de trabalho.
O acidente de labor, que afeta socialmente não apenas os trabalhadores do setor, mas que
também estabelece relações diretas com toda a cultura da região – seja pelo contexto, pela
estrutura socioeconômica ou como a própria família do trabalhador sofre o acidente típico de
trabalho. Cabe relatar que o objeto do artigo é descrever as condições de trabalho no ambiente
do setor de rochas, fomentando a importância e a necessidade das lutas sociais operadas pelo
sindicato de categoria para a valorização do trabalhador e dos seus direitos justrabalhistas.

Palavras-chave: Meio Ambiente do Trabalho. Condições de Trabalho. Lutas Sindicais.

Introdução mento social iniciado no ano de 1990, a Caminhada


dos Mártires do Mármore, em combate aos aciden-
Este artigo terá enfoque em analisar a relação so- tes típicos de trabalho ocorridos em detrimento das
cioambiental do setor de mármore e granito do sul más condições de trabalho e da falta de resistência
do ES, em conjunto com as suas precárias condições presente no ambiente até o momento. Essa mobili-
de trabalho, no que tangem à saúde e à segurança la- zação deu origem à luta da classe trabalhadora por
boral, ofertadas à classe trabalhadora. Não obstante, seus direitos laborais e foi, também, o estopim para a
analisará as consequências imputadas aos obreiros instituição do Sindicato dos Trabalhadores do Már-
desse tripé, entre elas os acidentes fatais e mutilado- more e Granito do Espírito Santo (Sindimármore).
res ou, até mesmo, as mazelas de origem sociocultu- Reconhecendo e descrevendo essa história, o presen-
ral, como quando as famílias dos trabalhadores são te excerto também tem por objetivo fomentar a esti-
afetadas direta ou indiretamente. ma e a fundamentalidade das lutas sociais operadas
A discussão tem como cenário principal o movi- pelo sindicato da categoria visando à valorização do

180 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


obreiro e à garantia dos seus direitos justrabalhistas. Portanto, cabe questionar o real motivo para a
A pesquisa parte do parâmetro que o meio am- indústria extrativista mineral ser a causadora das
biente de trabalho está compreendido no rol de maiores taxas de mortalidade dentre toda a indústria
atribuições do artigo 200, VIII, da Constituição Fe- brasileira (PELLEGRINELLI, 2013), haja vista que
deral, evidenciando sua autonomia conceitual e seu esse é um setor que empregou cerca de cinquenta mil
reconhecimento dogmático (BRASIL, 2016). A im- pessoas diretamente nos últimos doze anos (ABIRO-
portância reconhecida na legislação sobre o ambien- CHAS, 2022). Sendo assim, assumir e combater a
te laboral se justifica pela intrínseca relação entre a inculpação, aos trabalhadores, do risco diário de aci-
natureza, o trabalho e o ser humano (CAVALLIER, dentes e morte é preciso para que haja verticalização
2002). Relação essa que foi intensificada pela cons- na discussão, colocando, por conseguinte, o obreiro
trução do liberalismo – que, posteriormente, deu como o ponto central do ambiente laboral, e não o
origem ao neoliberalismo – ocorrida através da Re- trabalho prestado, como tem ocorrido no setor de
volução Industrial. rochas do sul do ES (MARANHÃO, 2018, p. 121).

ANDES-SN n julho de 2023 181


Debates
O meio ambiente laboral: CHAS, 2022). Além disso, sabe-se que o referido se-
extração de pedras, trabalho e vida tor apresenta altos índices de acidentes de trabalho –
e os mais graves, quase sempre fatais, que acontecem
A vastidão jurídica evidencia que incide, no meio na produção, ocorrem durante a movimentação, seja
ambiente, uma incrível capacidade de retratar diver- de chapas nas empresas ou de blocos nas estradas.
sos contextos da realidade social natural e humana. De fato, o setor mencionado é de enorme comple-
Sendo assim, utiliza-se da ideia de Michel Prieur xidade. Contudo, embora uma pedreira ou uma em-
(2011), que reputa o meio ambiente como uma ver- presa tenha a mesma função de extração de blocos ou
dadeira “noção camaleão”. de beneficiamento de rochas, dificilmente é igual à
Neste momento introdutório, o que importa é o outra; dependerá de fatores como a própria organiza-
fato de que a Constituição Federal alargou o campo ção em termos de processo de trabalho, da inserção
de reflexão do meio ambiente, fortalecendo o reco- do trabalhador, dos maquinários utilizados, se são
nhecimento de componentes estritamente humanos extraídas bancadas de forma horizontal ou vertical e
no que tange ao sociocultural, fornecendo ensejo para do seu próprio planejamento sobre a aplicabilidade
reações humanas sociais que vão além dos agentes fí- das normas de saúde e segurança laboral.
sicos, químicos e biológicos. A lei estendeu o raio de Nesse ínterim, é sabido que as atividades no setor
alcance ambiental de forma a atingir condicionantes de rochas do sul capixaba dividem-se basicamen-
socioculturais – inclusive aqueles diretamente rela- te em extração de blocos (trabalho em pedreiras),
cionados ao espaço social no qual estão inseridos os transformação desses em chapas de mármore (tra-
trabalhadores no caso de acidentes trabalhistas típi- balho em serrarias) e beneficiamento – que produz
cos. Em outras palavras, os familiares deles são os que bancadas de pias, ladrilhos e produtos industrializa-
sofrem os acidentes (MARANHÃO, 2018). dos. Há, ainda, o transporte de blocos, de chapas e de
produtos e as moageiras, que utilizam as pedras refu-
Com efeito, é mesmo revelador perceber o gadas da extração para a produção do pó de calcário
interessante paralelismo histórico entre as (PACHECO; BARROS; SILVA, 2012).
questões social e ambiental. Nota-se que a ânsia
Aos trabalhadores, imputa o risco de acidentes e
pelo lucro, ínsita ao capitalismo, intensificou-
se sobremaneira com o deflagrar da Revolução
de mortes que transita entre máquinas e pedras na
Industrial, ocorrida a partir do século XVIII, indústria de rochas ornamentais analisado em todos
trazendo consigo um sério agravamento esses setores de produção. Nesse sentido, considera-
das lesividades ambientais. A migração em -se um convívio de grandes inquietações, fazen-
massa para as cidades, formando uma imensa
do com que a luta pela saúde, pela vida e por um
concentração de pessoas disponíveis como
mão de obra, suscitou aglomerados de pessoas ambiente laboral seja diária (PACHECO; BARROS;
humanos em condições sanitárias precárias, SILVA, 2012).
com afetações diretas dos rios (MARANHÃO, Diante da construção essencial de um meio am-
2018, p. 61).
biente do trabalho salubre no setor, veja-se que é
relativamente comum encontrar conceitos do local
Dessa feita, de forma ampla, no Brasil, de todos
de labor construídos em torno do ambiente físico
os setores industriais, a mineração é um dos mais
onde os serviços são prestados. Nota-se que, para o
perigosos. A indústria extrativista mineral é respon-
autor Silva (2013, p. 23), o meio ambiente do traba-
sável pelas maiores taxas de mortalidade dentre toda
lho é “[...] o local em que se desenrola boa parte da
a indústria brasileira: é responsável, hoje, por 30%
vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está por
dessas, seguida pelo setor da construção civil, que
si só em íntima dependência da qualidade daquele
apresenta 17% (PELLEGRINELLI, 2013).
ambiente [...]”.
Dentro da mineração, estima-se que o setor de ro-
Na mesma linha de raciocínio, para Luiz Alber-
chas ornamentais tenha gerado, pelo menos, 50.000
to David Araujo e Vidal Nunes, o ambiente laboral é
empregos diretos nos últimos 12 anos (ABIRO-
“[...] o espaço-meio de desenvolvimento da ativida-

182 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


de laboral, como o local hígido, sem periculosidade, dável, equilibrado e seguro, questões que afetam a

As condições de trabalho e a luta sindical - sul do ES


com harmonia, para o desenvolvimento da produção proteção ecológica do labor.
e respeito à dignidade da pessoa humana [...]” (MA- Por suposto, uma mesma questão será respon-
RANHÃO, 2018). dida de diferentes maneiras em contextos políticos,
Há de se reconhecer que o local físico de prestação culturais e institucionais distintos, gerando diversos
de serviços é um alicerce primordial para o conceito padrões de proteção social (MATTEI, 2019). O meio
da realidade labor-ambiental. Por sua vez, o ambien- ambiente no setor de mármore e granito no sul do
te laboral opera além de um espaço, mas também de estado do ES assiste ao processo de mercantilização
um “[...] conjunto de condições, leis, influências e in- dos serviços sociais, da educação, da saúde e da pre-
terações de ordem física, química, biológica e social vidência. Esses são cada dia mais vistos como mer-
que afetam o trabalhador no exercício na sua ativida- cadorias e subordinados à lógica e à dinâmica de ex-
de laboral [...]” (MARANHÃO, 2018, p. 116). pansão do mercado.
Diante desse contexto, o gênero profissional da Conforme Antunes (2020), ao longo dos anos,
atividade mineradora de rochas torna-se cada vez com a produção em massa, a ampliação do controle
mais fragilizado, pois os recursos do meio ambiente da jornada e a intensificação do trabalho – questões
laboral são escassos e operam por meio de um con-
junto de fatores que deixam de ser estáticos e passam
a ser encarados como um sistema genuinamente so- No setor de mármore e granito, há predominância de um
cial. Ou seja, a questão ambiental no local de traba- ambiente laboral de alto risco para os trabalhadores dian-
lho não passa a ser visualizada com ênfase no aspecto te de alguns perigos, sendo eles: a inalação de partículas
humano (MARANHÃO, 2018). de silicose; grande contato direto com ruídos e vibrações;
Assim, o ambiente de trabalho pode ser julgado turnos noturnos e/ou rotativos da jornada; derrocada de
como um exemplo de emergência da questão social,
solos; exposição à radiação ultravioleta; desconforto tér-
mico – frio e calor intensos; cronodisrrupção; manusea-
visto que atinge diretamente a saúde do trabalhador.
mento de cargas excessivas; queda de alturas – seja de
Nesse caso, requer estratégias de políticas públicas
objetos ou do próprio trabalhador; uso de máquinas sem a
que possam responder e assegurar condições de re-
devida instrução; entalhamento e esmagamento por cha-
criação de uma melhor coesão social para todos.
pas de rochas; descargas elétricas; entre outras situações
A pedra angular do conceito de meio ambien- de acidentes típicos.
te em questão deve ser o trabalhador, não apenas o
trabalho prestado. “Isso só reforça nossa convicção
de que o desafio atual está em erigir um conceito de proporcionadas pela expansão do taylorismo e do
labor-ambiente que, efetivamente, gire em torno do fordismo –, os acidentes de trabalho e adoecimentos
trabalhador e não do trabalho” (MARANHÃO, 2018, com nexo passaram a fazer parte do cotidiano laboral.
p. 121). Isso é, trata-se de um conjunto alicerçado No setor de mármore e granito, há predominância
nas interações ambientais do local do trabalho e da de um ambiente laboral de alto risco para os traba-
própria dignidade humana do trabalhador, essencial- lhadores diante de alguns perigos, sendo eles: a ina-
mente humanista, conforme aponta o Ministro José lação de partículas de silicose; grande contato direto
Delgado, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao com ruídos e vibrações; turnos noturnos e/ou rotati-
afirmar que “[...] meio ambiente do trabalho é o con- vos da jornada; derrocada de solos; exposição à ra-
junto de condições existentes no local de trabalho, diação ultravioleta; desconforto térmico – frio e calor
relativo à qualidade de vida do trabalhador” (BRA- intensos; cronodisrrupção; manuseamento de cargas
SIL, 2007, p. 252). excessivas; queda de alturas – seja de objetos ou do
Por corolário, o meio ambiente do trabalho sadio próprio trabalhador; uso de máquinas sem a devida
faz um contexto coerente com a luta pelos direitos instrução; entalhamento e esmagamento por chapas
sociais trabalhistas, a qual também se insere na pers- de rochas; descargas elétricas; entre outras situações
pectiva de assegurar ao trabalhador um espaço sau- de acidentes típicos.

ANDES-SN n julho de 2023 183


Debates Dessa forma, o ambiente de trabalho envolvendo tos relacionados aos acidentes de labor – esses que
a extração e o beneficiamento de rochas é considera- equivalem ao fenômeno dos acidentes chamados de
do uma das atividades empresariais mais perigosas, típicos (PRAUN, 2016).
visto que acidentes mortais ocorrem com frequência O risco de acidente diz respeito a uma espécie
e são o dobro dos existentes no setor da construção de entidade onipresente nos ambientes de trabalho,
civil. Isso se justifica pelo ambiente laboral com alta uma vez que todos os operários precisam enfrentá-lo
periculosidade, insalubridade e uso de máquinas no dia a dia laboral, independentemente do grau de
de grande porte, bem como pela presença de gran- perigo de cada atividade exercida. Ocorre, pois, que,
de quantidade de poeira de silicose – que acaba por através da enorme multiplicidade deste no ofício do
diminuir a visão dos trabalhadores. Ademais, boa setor mineral, as possibilidades negativas do respec-
parte dos acidentes da área está associada às tarefas tivo ambiente ultrapassam outras ocupações laborais.
de manutenção, utilização de veículos e máquinas Isto é, “cada acidente só ocorre porque a montante
no próprio ambiente, quedas de alturas significati- existe um qualquer conjunto de riscos laborais que
vas e esmagamentos por pedras/rocha (MOULIN; se transformou em acidente. As percepções de riscos
MINAYO-GOMEZ, 2008). laborais traduzem a visão dos trabalhadores sobre os
riscos aos quais se encontram expostos no decurso
da sua atividade laboral” (AREOSA, 2012, p. 2).
O risco de acidente diz respeito a uma espécie de enti-
O entendimento desses riscos por cada trabalha-
dade onipresente nos ambientes de trabalho, uma vez
dor é um processo que ocorre de maneira distinta,
que todos os operários precisam enfrentá-lo no dia a dia
visto que, historicamente, cada pessoa tem o seu
laboral, independentemente do grau de perigo de cada
atividade exercida. Ocorre, pois, que, através da enorme próprio tempo, contexto e espaço. Na perspectiva de
multiplicidade deste no ofício do setor mineral, as possi- Palma-Oliveira et al (2005), a percepção de perigos é
bilidades negativas do respectivo ambiente ultrapassam fortemente condicionada pela identidade social dos
outras ocupações laborais. operários que sofrem com o ambiente laboral mine-
ral degradante da região sul do ES.

A atividade, embora importante, traz um comple- Para além disso, existem outros fatores de risco
xo de problemas sociais à região ao promover agra- “reais” que podem influenciar substancialmente
vos à própria saúde dos trabalhadores e acidentes as percepções de riscos nos locais de trabalho:
fatais em face dos riscos de trabalho proporcionados fatores individuais (condição física e psíquica
do trabalhador: fadiga, doença, stress, consumo
pelo meio ambiente laboral.
de álcool ou drogas etc.); riscos percepcionados
pelos sentidos humanos (riscos visíveis); riscos
não percepcionados pelos sentidos humanos
As condições de trabalho e (riscos invisíveis); ambiente ocupacional
(ruído, iluminação, qualidade do ar etc.); e
percepções de riscos no setor fatores organizacionais (mobbing, trabalho
de rochas do sul do ES monótono e cadenciado, trabalho noturno etc.).
Quando a percepção de riscos de determinados
Uma das técnicas mundiais empresariais empre- trabalhadores se apresenta enviesada,
decorrendo da sua falta de competências para
gadas corresponde à ideia de que, ao aumentar o
efetuar uma avaliação “correta e objetiva” dos
tempo de trabalho do empregado e sua produção, riscos, ou seja, aquilo que nós definimos como
consequentemente, os ganhos financeiros da empre- iliteracia para a avaliação de certos riscos, esta
sa serão ampliados também. Porém, nessa esteira, condição pode originar decisões inadequadas,
observa-se que quanto maior é a jornada emprega- a prática de comportamentos arriscados e ações
inapropriadas durante as jornadas de trabalho.
da, mais difíceis demonstram ser as condições de
A reduzida percepção de riscos no trabalho
trabalho apresentadas ao trabalhador. Nesse sentido, constitui-se como uma antecâmara para os
indicam situações hostis à saúde dele e números al- acidentes de trabalho (AREOSA, 2012, p. 58-59).

184 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Desse modo, é nítido que uma percepção dos ris- lhores entendimentos de perigos e maiores índices

As condições de trabalho e a luta sindical - sul do ES


cos laborais se revela de importante aspecto para o de uso dos EPIs. Em contrapartida, os funcionários
cuidado do ambiente de trabalho no setor mineral mais velhos e mais experientes podem sentir me-
e para a contenção dos acidentes típicos. Outro fa- nos necessidade no que diz respeito à utilização dos
tor relevante que influencia na saúde e na segurança equipamentos de proteção individual (AREOSA;
do trabalhador da área é o contato de forma regular DWYER, 2010). “Assim, integrar as diferentes per-
com as situações de risco. Em outras apalavras, com cepções de riscos dos trabalhadores nas análises de
a exposição continuada a esses riscos, ele tende a não riscos é um passo fundamental para o sucesso de um
notar mais o perigo como antes, diante dessa natura- programa de gestão de riscos organizacionais e, por
lização (LIMA, 2005). consequência, para a prevenção de acidentes” (ARE-
Acidente de trabalho é radicalização da expressão OSA, 2012, p. 9).
que aponta para uma total deterioração das condi- Dessa forma, integrar as diferentes visões de ris-
ções de labor sob o aspecto de uma gestão de flexibi- cos dos trabalhadores nas análises do cotidiano mi-
lidades. Todos os riscos sofridos pelos trabalhadores neral é um passo fundamental para o sucesso de um
se desenvolvem diante das margens de organização programa de prevenção de acidentes, que, de acordo
do contexto do seu ofício, que oscila fora do discurso com Mattos e Másculo (2011, p. 37-38), divide-se
de valorização, do controle físico e mental extrema- em vários:
dos (PRAUN, 2016).
É nesse ambiente que é possível notar uma alta
Conforme um estudo feito por Cordeiro (LIMA, 1999),
prevalência de agravos à saúde física dos trabalha-
quanto menor for a percepção do risco, maior será a pro-
dores do setor de rochas, os quais operam diante de
babilidade de o empregado sofrer um acidente de tra-
relações de poder, em que “[...] comparecerem como
balho. Isto é, o autor desenvolveu a hipótese de que o
seres assujeitados pela organização do trabalho, [...]
operário com níveis de assimilação mais baixos ou que
sendo compelidos a irem além de seu limite subjetivo opere em ambientes laborais insalubres e penosos, como
sistematicamente [...]” (MAENO; PAPARELLI, 2013, o setor mineral, apresenta certa naturalização dos perigos
p. 146). Essa consideração faz com que, além de to- diários proporcionados pelo labor.
dos os riscos já mencionados, os trabalhadores e os
familiares se fragilizem emocionalmente.
Conforme um estudo feito por Cordeiro (LIMA, - Riscos mecânicos: são aqueles provocados pelos
1999), quanto menor for a percepção do risco, maior agentes que demandam o contato físico direto
com a vítima para manifestar sua nocividade.
será a probabilidade de o empregado sofrer um aci-
Além dos materiais cortantes, são exemplos
dente de trabalho. Isto é, o autor desenvolveu a hi- de agentes geradores de riscos mecânicos os
pótese de que o operário com níveis de assimilação materiais aquecidos, os perfurocortantes, os que
mais baixos ou que opere em ambientes laborais in- estão em movimento, os energizados, dentre
outros. [...] - Riscos físicos: são ocasionados
salubres e penosos, como o setor mineral, apresenta
por agentes que têm capacidade de modificar
certa naturalização dos perigos diários proporciona- as características físicas do ambiente, que, no
dos pelo labor. momento seguinte, causará agressões em quem
Contudo, os acidentes podem servir como for- estiver nele imerso. Por exemplo, a existência de
um tear numa tecelagem insere no ambiente um
ça motriz para a alteração das percepções de riscos
risco do tipo estudado, já que tal máquina produz
(LIMA, 1999, p. 68), visto ser sempre a materia-
ruídos, isto é, ondas sonoras que alterarão a
lização de determinado perigo o que dá origem ao pressão acústica que incide sobre os ouvidos dos
acidente, tornando-o, assim, mais visível a todos operários. Os exemplos são: ruídos (que podem
(LIMA, 1999). gerar danos ao aparelho auditivo, como a surdez,
além de outras complicações), iluminação, calor,
No mesmo sentido, verifica-se que as percepções
vibrações e radiações. [...] - Riscos químicos:
de riscos dos trabalhadores menos experientes no provocados por agentes que modificam a
posto de trabalho tendem a corresponder aos me- composição química do meio ambiente. Por

ANDES-SN n julho de 2023 185


Debates exemplo, a utilização de tintas a base de chumbo do ritmo de trabalho. Entre os principais
introduz no processo de trabalho um risco do efeitos sobre as pessoas estão as doenças de
tipo aqui enfocado, já que a simples inalação fundo nervoso e mental.
dessa substância pode ocasionar doenças
como saturnismo. [...] - Riscos biológicos:
Diante dos riscos do cotidiano no setor de rochas
são aqueles introduzidos nos processos de
trabalho pela utilização de seres vivos (em geral, ornamentais, o terceiro fator em busca de um traba-
micro-organismos) como parte integrante do lho seguro é a utilização dos Equipamentos de Prote-
processo produtivo, tais como vírus, bacilos, ção Individuais (EPIs). Buscando cumprir as normas
bactérias etc., potencialmente nocivos ao ser de segurança e medicina do trabalho, as empresas
humano. Esse tipo de risco pode ser decorrente,
devem ficar atentas a essa questão, conforme expõe
também, de deficiências na higienização do
ambiente de trabalho. Tal problema pode a Norma Regulamentadora nº 6 (NR-06) – que está
viabilizar, por exemplo, a presença de animais de acordo com a classificação estabelecida pela Por-
transmissores de doenças (ratos, mosquitos taria da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT)
etc.) ou de animais peçonhentos nos locais de
n° 787, de 29 de novembro de 2018 (MINISTÉRIO
trabalho [...] - Riscos ergonômicos: são aqueles
introduzidos no processo de trabalho por DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA, 2020) –, ins-
agentes (máquinas, métodos etc.) inadequados truindo seus empregados quanto às precauções de
às limitações de seus usuários. Por exemplo, a acidentes e doenças ocupacionais. Sob pena de res-
realização da atividade de levantamento manual
ponsabilidade, as organizações também precisam
de cargas com o método das “costas curvadas”
pode vir a provocar problemas lombares [...]. fiscalizar o uso dos equipamentos de proteção indi-
- Riscos sociais: aqueles causados pela forma de vidual. Esses são acessórios destinados a proteger a
organização do trabalho adotada na empresa, integridade física do trabalhador ou atenuar os riscos
que podem provocar comportamentos sociais que corre. Evitam lesões ou minimizam a sua gravi-
(dentro e/ou fora do ambiente de trabalho)
dade em casos de acidentes do trabalho, bem como
incompatíveis com a preservação da saúde.
Exemplos de riscos sociais são: divisão os impactos ocasionados pelos processos gerados,
excessiva do trabalho, jornada e intensificação conforme argumenta o autor Baptistini:

186 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Os impactos do processo de trabalho na saúde A romaria dos mártires:

As condições de trabalho e a luta sindical - sul do ES


dos trabalhadores se dão a partir das condições
específicas de trabalho – que se constituem
a organização sindical do setor
nos aspectos físicos, químicos e biológicos do
ambiente de trabalho (temperatura, vibrações, No ano de 1990, mais precisamente no dia 29 de
radiações, poeira e ruídos, dentre outros) – e das abril, começaram a ser fomentadas, na região sul do
formas de organização do trabalho – que dizem
estado do ES, por meio de uma parte da sociedade, a
respeito à divisão técnica e social do trabalho,
como, por exemplo, a hierarquia interna dos preocupação e a necessidade com as questões sociais
trabalhadores, o controle por parte da empresa e a vida dos trabalhadores do setor de rochas.
do ritmo e das pausas de trabalho (BAPTISTINI, No ramo do mármore e granito na região anali-
2009, p. 29).
sada do Espírito Santo, as lutas por direitos sociais
e dignidade têm uma figura forte e precisa: a Irmã
Dessa feita, as empresas do setor de rochas preci-
Madalena, uma freira salesiana da diocese de Cacho-
sam observar o meio ambiente laboral e ficar atentas
eiro de Itapemirim, defensora das questões sociais e
às instalações de depósito, armazenagem e manuseio
preocupada com os acidentes de trabalho no setor
de produtos inflamáveis, bem como à eliminação de
em questão. Ela foi a pioneira na organização da ca-
poeira nas pedreiras, a proteção contra incêndio e a
minhada ocorrida no ano mencionado anteriormen-
higiene nos locais de trabalho, entre outras medidas,
te, como uma forma de protesto contra os acidentes
observando sempre a valoração e a criação de um
típicos na área, que começaram nos anos 90 (OLI-
ambiente sem riscos para os trabalhadores. Afinal,
VEIRA, 2005).
nas palavras de Maranhão:

[...] a percepção de um meio ambiente


equilibrado há de ser vivenciada não apenas
no mergulhar em rios límpidos e no gozar de
As empresas do setor de rochas precisam observar o
uma boa satisfação estética. Também há de meio ambiente laboral e ficar atentas às instalações de
englobar, seguramente, o simples ato de voltar depósito, armazenagem e manuseio de produtos infla-
para casa íntegro e sadio, mesmo depois de máveis, bem como à eliminação de poeira nas pedrei-
um dia exaustivo de trabalho (MARANHÃO, ras, a proteção contra incêndio e a higiene nos locais
2018, p. 257).
de trabalho, entre outras medidas, observando sempre
a valoração e a criação de um ambiente sem riscos para
Assim, a existência de condições inadequadas no os trabalhadores.
ambiente laboral diminui a produtividade, isto é, os
acidentes de trabalho típicos são mais onerosos e po-
dem apresentar consequências graves, tanto diretas
quanto indiretas, para as vidas dos operários e das Em 1990, os acidentes típicos de trabalho do setor
suas famílias (MORAES, 2008, p. 40). Ocorre, po- ainda eram tímidos e não conhecidos pela socieda-
rém, que os EPIs são importantes e obrigatórios, mas de. A produção econômica da área apresentava mais
a saúde e a segurança do trabalho no setor mineral força do que mazelas. Porém, com um olhar humano
não se resumem apenas em equipamentos individu- e atento, a Irmã Madalena iniciou uma movimen-
ais de proteção; perpassam pela valorização do tra- tação social em torno das operações industriais e
balho humano. dos acidentes típicos da região, destacando as que-
Diante disso, adentra-se em um fator essencial das devido à falta de uso de cintos de segurança e
para um ambiente mineral seguro: o processo de va- de proteção de telas, expondo a sua aflição com os
lorização do trabalhador mediante a restruturação e trabalhadores, que se desintegraram em explosões
a utilização da força de trabalho dos operários do se- de dinamite nas pedreiras por manusearem bombas
tor de mármore e granito, que perpassa pela ocorrên- sem antes terem recebido um treinamento adequado
cia de uma organização sindical forte e combatente. (OLIVEIRA, 2005).

ANDES-SN n julho de 2023 187


Debates Em suas falas, voltadas à sociedade capixaba, a No dia seguinte, em toda a região de extração
Irmã Madalena ainda destacou vários casos de trau- de mármore e granito, inclusive nos distritos de
Itaoca, Alto Moledo e Gironda, que pertencem
matismo craniano e esmagamentos por deslizamento
ao município de Cachoeiro de Itapemirim, não se
de blocos sobre trabalhadores. Falou até a respeito falava em outra coisa senão sobre a Caminhada
de afogamentos provocados por quedas em poços. dos Mártires, que foi o grito simbólico daqueles
Indignada, ela afirmou que conhecia o setor de ex- que derramaram seu sangue sobre as pedras
(OLIVEIRA, 2005, p. 31).
tração rochosa há anos e não via qualquer mudança.
“O que temos visto são familiares enterrando pais e
Porém, a caminhada idealizada pela Irmã Madale-
filhos, e o sistema de extração prossegue, do mesmo
na foi além das suas próprias expectativas, fomentan-
jeito, aumentando a produção e proporcionalmente o
do nos trabalhadores do setor a vontade de lutar em
número de acidentes” (OLIVEIRA, 2005, p. 15).
prol de seus direitos sociais laborais. Foi assim que
surgiu a ideia de se formar uma organização para a
A caminhada idealizada pela Irmã Madalena foi além das defesa dos trabalhadores do mármore e granito. Esse
suas próprias expectativas, fomentando nos trabalhadores fato deve ser creditado ao clamor da Caminhada dos
do setor a vontade de lutar em prol de seus direitos sociais Mártires, puxado pelas sofridas comunidades minei-
laborais. Foi assim que surgiu a ideia de se formar uma ras da região de Alto Gironda em conjunto com a
organização para a defesa dos trabalhadores do mármore Igreja Católica.
e granito. Esse fato deve ser creditado ao clamor da Cami- Como regra, em sua jornada laboral, os trabalhado-
nhada dos Mártires, puxado pelas sofridas comunidades res tendem a minimizar os riscos que correm compa-
mineiras da região de Alto Gironda em conjunto com a rando-os a outras realidades (RUNDMO, 2000, p. 52).
Igreja Católica.
Assim, em face da caminhada realizada, fomentou-se
a percepção dos riscos inerentes ao labor dos trabalha-
Com esse olhar atento da irmã Madalena e com dores da categoria de minério do sul do ES.
o intuito de mobilizar toda a sociedade capixaba – Dessa maneira, a ideia de pertencimento coletivo,
que, em 1990, desconhecia os fatos expostos –, no advindo da história de gratidão estabelecida na rela-
dia 1º de maio de 1990, data em que se comemora o ção entre empregado e patrão, deu abertura para um
Dia do Trabalho, ocorreu o movimento batizado de conhecimento ampliado dos trabalhadores sobre os
Caminhada dos Mártires do Mármore, na localidade efeitos dos riscos à própria saúde, aos quais se sub-
de Alto Gironda, interior do sul do Espírito Santo, metem diariamente no setor mineral, criando uma
pertencente à cidade de Cachoeiro de Itapemirim valoração social em busca de mecanismos de defesa,
(OLIVEIRA, 2005). conforme aponta o autor João Areosa:
O movimento contou com uma multidão que
O conhecimento dos trabalhadores sobre os
caminhava proferindo palavras em favor de um tra-
efeitos e consequências de determinado risco
balho seguro e sem mortes. Muitas viúvas e diversos tanto pode ser refinado e aprofundado como
órfãos participaram da caminhada, sendo que mui- difuso e impreciso. Todavia, a partir do momento
tos desses também já estavam trabalhando na mesma em que os riscos são percebidos, identificados e
atividade, responsável por ter ceifado a vida de seus reconhecidos como potencialmente nocivos,
passam a ser objeto de valoração social,
pais e irmãos – ou seja, operando em uma atividade
investidos de um sentido próprio, que tanto
laboral que demonstra ser perpétua entre gerações. pode ser alvo de elevadas preocupações como
Os gritos por um trabalho com segurança e a de simples desinteresse (AREOSA, 2012, p. 68).
ideia da Irmã Madalena de mobilizar a atenção para
os acidentes que estavam ocorrendo no setor pro- Todas as percepções de riscos inerentes aos traba-
vocaram efeitos na sociedade capixaba, conforme os lhadores estão profundamente interligadas com os
comentários locais após o movimento do dia 1º de processos de socialização. Assim, dependem de va-
maio de 1990. lores culturais e grupais para o seu desenvolvimento

188 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


(LIMA, 2005). Mediante a concepção criada de for- Em 1986, no distrito de Itaoca, o trabalhador

As condições de trabalho e a luta sindical - sul do ES


ma coletiva por meio da Caminhada dos Mártires, os Ibrahim, indicado em assembleia para
representar trabalhadores na negociação entre
operários do mármore e granito começaram a obser-
a Federação dos Trabalhadores de Indústria e
var o setor de forma desestruturada no que tange às a Federação das Indústrias do Espírito Santo
ideias de reciprocidade e gratidão. Isso deu lugar ao (FINDES), não suportando assistir à negação de
desejo por um labor com maior segurança. todas as reivindicações dos trabalhadores, retira-
se da negociação, após fazer discurso veemente
Dessa maneira, o Sindicato dos Trabalhadores do
contra a má vontade patronal. Depois de duas
Mármore e Granito do Espírito Santo (Sindimár- rodadas de negociações e todas as cláusulas
more) foi fundado em 25 de agosto de 1990 e teve reivindicadas negadas, houve assembleia geral
tanto o seu registro quanto o seu reconhecimento dos trabalhadores, que insistiram em ouvir a
institucional firmados em março de 1991. Apresen- opinião de Ibrahim. Este, diante da intransigência
patronal, em face a uma situação salarial difícil,
tava dois ideais: lutar por direitos laborais e comba-
um trabalho penoso, sem nenhuma perspectiva
ter a estrutura acidental na categoria (SINDIMÁR- de melhorias, não via outra saída senão
MORE, 2022). cruzarem os braços. Os trabalhadores aderiram
No ano seguinte, o sindicato filiou-se à Federa- à greve e esta se fortaleceu. A população sai às
ruas em manifestação de apoio e solidariedade.
ção Nacional dos Trabalhadores da Construção e
As reações não tardaram: logo nas primeiras
da Madeira (FNTICM). Hoje também é filiado à horas da greve, um encarregado joga seu carro
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e à Con-
federação Nacional dos Trabalhadores do Setor
Mineral (CNTSM), ofertando cobertura em todo o
território capixaba.
Ocorre, pois, que houve uma grande luta para a
efetiva criação do sindicato dos trabalhadores do se-
tor. De acordo com Oliveira (2005), animados pela
manifestação de 1º de maio, os trabalhadores, os reli-
giosos e o advogado José Irineu convocaram uma as-
sembleia para a constituição do sindicato. No entan-
to, os trabalhadores da categoria encontraram uma
dupla dificuldade para a sua fundação: a reação dos
empregadores e o temor, visto que os patrões amea-
çaram demitir todos os que participassem do movi-
mento que se fortalecia. Vale registrar que os operá-
rios do setor ainda guardavam a experiência ocorrida
no ano de 1986, em Itaoca Pedra, clara na memória.

ANDES-SN n julho de 2023 189


Debates em cima de Ibrahim. No segundo dia, ele recebe produzidos socialmente, bem como de fatores políti-
uma ameaça de morte, caso o movimento co-ideológicos dos sujeitos (AREOSA, 2014).
continuasse. No terceiro dia, com a presença
Nessa dinâmica de interação social nas relações de
da polícia militar no pequeno distrito, os
trabalhadores e a população se assustam. No trabalho, o sindicato da categoria produziu e repro-
quarto dia, o movimento perde a força. Nesse duziu os limites das percepções dos riscos laborais no
ínterim, a Federação das Indústrias já havia setor de rochas ornamentais do sul do ES, desenvol-
ajuizado dissídio coletivo, e nenhuma das
vendo o entendimento de um meio ambiente seguro
reivindicações dos trabalhadores foi aceita.
Os trabalhadores foram derrotados na luta, e e com seus direitos garantidos para a coletividade e o
Ibrahim sofre as consequências pessoalmente, grupo laboral.
com uma morte civil. Perde o emprego e é É nesse contexto que faz sentido afirmar: as per-
culpabilizado em pessoa pelo fracasso do cepções de riscos laborais são socialmente constru-
movimento grevista – ele passa a ser o “exemplo”
ídas e são indissociáveis de valorações objetivas ou
dado pelos patrões aos que se aventurassem
novamente em reivindicações e afins. Foi subjetivas. Envolvem um “[...] mesmo objeto de uma
socialmente isolado, perseguido e humilhado, deliberada transmissão e reprodução social [...]”
passou a trabalhar com pedras marruadas, (GRANJO, 2004, p. 131).
e sua vida material foi se deteriorando cada
A despeito das dificuldades iniciais, de acordo
vez mais. Esse era para os trabalhadores do
setor o exemplo que gerava pavor de sequer se com Oliveira (2005), a luta sindical na área ganhou
aproximar ou conversar com alguém disposto a força. Em 1995, ocorreu uma greve com a liderança
fundar um sindicato (OLIVEIRA, 2005, p. 25). em questão para reivindicar equiparação salarial aos
trabalhadores do setor do norte do estado, visto que
eles haviam conseguido um bom acordo. A greve to-
Criando forças para lutar por um ambiente seguro e por mou “corpo” e chamou a atenção da imprensa, que
direitos, a categoria profissional dos trabalhadores do deu visibilidade às condições de trabalho da região
mármore e granito do sul do ES consolidou o seu próprio e ao grande número de acidentes ali ocorridos (OLI-
portfólio de riscos laborais, percebendo com mais clareza VEIRA, 2005).
e compreendendo os riscos inerentes ao ambiente. Em conjunto com a visibilidade midiática, o setor
também passou a contar com a ajuda da Fundação
Centro Nacional de Segurança, Higiene e Medicina
Assim, ao longo do tempo, os acidentes fatais do Trabalho (Fundacentro), que promoveu, em 1995,
e mutiladores, desses que “[...] esmagam um ho- uma pesquisa sobre as condições, os riscos e a pe-
mem, arranca a cabeça e que fica como uma folha de nosidade do trabalho nas pedreiras do sul do estado,
papel [...]”, começaram a ter certa visibilidade social. vinculando e produzindo um vídeo. Para o material,
Em primeiro lugar, nos lamentos de dor das viúvas, vários trabalhadores acidentados do setor foram en-
dos órfãos e dos pais que perderam seus filhos nessa trevistados, com o objetivo de demonstrar e provar as
atividade e, mais fortemente, a partir da constituição condições perigosas no ambiente laboral e seu fator
do sindicato dos trabalhadores, em 1991, como nas sub-humano (OLIVEIRA, 2005).
suas reivindicações por melhores condições de tra- Criando forças para lutar por um ambiente segu-
balho (OLIVEIRA, 2005, p. 14). ro e por direitos, a categoria profissional dos traba-
Qualquer forma de percepção de riscos laborais é lhadores do mármore e granito do sul do ES con-
um processo de interpretação de uma dada realidade solidou o seu próprio portfólio de riscos laborais,
ocupacional do ambiente de trabalho e é atravessado percebendo com mais clareza e compreendendo os
por questões socioculturais organizacionais. Dessa riscos inerentes ao ambiente. Cooper (1997) afirma
maneira, o entendimento dos riscos dentro do traba- que cada grupo profissional trabalha em diferentes
lho é construído a partir dos que existem nos locais “mundos de risco”, mesmo em atividades similares,
de serviço e são vividos pelos próprios trabalhadores, visto que o autor concebe essa ideia como algo cul-
os quais sofrem influências de discursos e práticas turalmente determinado.

190 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Conclusão de trabalho saudável e combativo quanto às condi-

As condições de trabalho e a luta sindical - sul do ES


ções de trabalho contrárias à saúde e à segurança
A par dos debates conceituais levantados por este dos trabalhadores.
estudo, fato é que, ao analisar o setor de rochas or- O trabalho, em sua função documental, abordou
namentais do sul do ES, partindo do exame das di- os efeitos arrogados aos trabalhadores do setor de
fíceis condições laborais – com enfoque na saúde e mármore e granito do sul do Espírito Santo, pontu-
segurança do trabalho – é possível notar que existe, ando os riscos diários de acidentes mutiladores ou
em grande parte dos casos, a exclusão de trabalha- fatais, como também os problemas socioculturais
dores do meio ambiente laboral seguro e com saúde, gerados, principalmente, às famílias desses obreiros.
o que reflete diretamente em questões sociais que Inobstante, a pesquisa relatou a mobilização da refe-
margeiam este obreiro. Destaca-se que se trata de um rida classe trabalhadora, em parceria com personali-
problema que ainda demanda resposta por parte do dades e entidades, que culminou na Caminhada dos
governo e da sociedade, ou seja, a emergência de uma Mártires do Mármore e, sequentemente, na institui-
questão social implica seu enquadramento por meio ção do Sindimármore (Sindicato dos Trabalhadores
de políticas e instituições específicas – as chamadas do Mármore e Granito do Espírito Santo). Dessa
políticas sociais. maneira, ao criar um referencial teórico histórico,
Nessa perspectiva, procurando por respostas que alcançou-se o objetivou de demonstrar o real valor
incluem o cuidado de si e o risco que correm, os tra- do sindicato e da luta sindical para a conquista e ga-
balhadores do setor consolidaram uma força sindical rantia dos direitos dessa classe laboral.
para que pudessem planejar a vida no futuro – pro- Sob essa perspectiva, foi possível indagar a causa
veniente do trabalho para a construção do sindicato que levaram as empresas de extração de rochas a al-
dos trabalhadores, diante da emergência da saúde e cançarem as maiores taxas de mortalidade, se com-
do direito à vida como questões defendidas em forma paradas com as demais empresas da indústria brasi-
de luta laboral. leira. Concluindo que ainda falta ao setor de rochas
Dessa maneira, ao longo do tempo, também mo- ornamentais do sul do ES deixar de colocar o traba-
dificaram toda uma cultura regional, em que a fala lho prestado como ponto nevrálgico e entender que o
sobre acidentes e agravos à saúde relacionados ao centro deve ser o trabalhador, portanto, cabe, a partir
trabalho no setor era tabu. Esse processo marcou a desta fomentação epistemológica, combater os riscos
transição do colono rural para a condição de traba- diários imputados aos trabalhadores fazendo valer
lhador cidadão mais ciente de seus direitos. É a re- seus direitos juslaborais e propiciando um ambiente
sistência do sindicato em prol de um socioambiente de trabalho seguro e com saúde.

ANDES-SN n julho de 2023 191


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ANDES-SN n julho de 2023 193


Debates
Debates

As greves conjuntas dos docentes


das Instituições Estaduais de Ensino
Superior do Paraná no período Beto Richa
(PSDB): considerações do ano de 2015
Peterson Alexandre Marino
Professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
E-mail: petersonmarino@hotmail.com

Silvana Souza Netto Mandalozzo


Professora na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
E-mail: smandalozzo@uol.com.br

Resumo: A presente discussão tem por objetivo apresentar os desafios conjunturais do sin-
dicalismo docente das universidades estaduais paranaenses no contexto dos governos Beto
Richa (PSDB). Para tanto, o debate foi direcionado para as duas greves de servidores estadu-
ais ocorridas em 2015 – ano marcado pela grave tensão entre esses servidores e o governo
estadual, a exemplo da fatídica violência policial ocorrida no dia 29 de abril. Como instru-
mentos metodológicos foram elegidas pesquisas documental e de campo. Para essa incursão
empírica no campo, o principal instrumento de coleta de dados foi a pesquisa documental por
meio do acesso às publicações realizadas pelas seções sindicais na internet – sobretudo nos
sites oficiais e, de forma complementar, na rede social de maior engajamento desses sindi-
catos: o Facebook. Complementando essa incursão no campo, foi feito o uso da história oral
por meio de entrevistas qualitativas a docentes que vivenciaram o sindicalismo docente nas
Instituições Estaduais de Ensino Superior do Paraná (IEES/PR) naquele ano. Como resultado
foi possível realizar o desvelamento dos principais elementos que exigiram a mobilização
desses sindicatos no ano, a saber: o descumprimento da reposição salarial anual prevista
em lei e a reforma previdenciária dos servidores estaduais. A greve se mostrou como uma
importante ferramenta de resposta desses servidores, mas não foi a única.

Palavras-chave: Sindicalismo Docente do Ensino Superior. IEES/PR. Beto Richa. Greve.

194 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução universidades mediante um sistema próprio centra-
lizado em Curitiba; a instituição de uma Comissão
O período que contempla as duas gestões do ex- de Política Salarial (CPS) que passaria a decidir sobre
-governador Beto Richa, PSDB, no Paraná (2011- quaisquer atos que implicassem o aumento de des-
2018), ficou marcado pela relação conturbada entre o pesas – algumas determinações da referida comissão
Poder Executivo e sindicalismo dos servidores esta- não apenas afrontaram questões relativas ao traba-
duais. O ano de 2015 representa o auge dessa tensão, lho/carreira docente, mas também diziam respeito
à medida em que, no referido ano, foram registrados ao funcionamento e à autonomia das universidades
eventos emblemáticos que agravaram essa relação. paranaenses num todo; e o desrespeito do governa-
Podem ser citados: a elaboração de um pacote de dor à lei de reajuste anual dos salários dos servidores
medidas de ajuste fiscal com ações de austeridade – (“data-base”).
medidas estas que tramitaram em regime de urgência No geral daquele contexto, como analisa Reis
e sem nenhum tipo de debate/diálogo com a socie- (2018), ficou claro que o funcionalismo público foi
dade paranaense; o envio de um Projeto de Lei que eleito pelo governo Beto Richa como o culpado pela
tratava de mudanças no sistema previdenciário dos crise financeira do estado. Dessa visão em diante, o
servidores; a alteração no Plano de Cargos, Carreiras discurso pautado na necessidade de ajuste fiscal e na
e Vencimentos do Quadro de Funcionários da Rede contenção de despesas com os servidores tornou-se
Estadual de Educação Básica; a publicação dos De- hegemônico na gestão Richa, sendo base de muitas
cretos nºs 25 e 30, de janeiro de 2015, que limitaram das ações do governo.
ainda mais as contratações de pessoal e a manuten- Disso posto, nossa análise aqui centra-se nos ele-
ção das universidades estaduais; a insistência do Po- mentos que caracterizaram a reação dos servidores
der Executivo em controlar a folha de pagamento das estaduais através de sua forma mais histórica de or-

ANDES-SN n julho de 2023 195


Debates
Debates ganização: os sindicatos. Em especial, o foco aqui se ção de 39 universidades federais. O resultado dessa
dará sobre as duas greves dos servidores estaduais no greve consistiu em um reajuste de 5,5% para agosto de
ano de 2015, dando particular atenção aos sindicatos 2016 e de 5% para janeiro de 2017 (ANDES-SN, 2022).
docentes das universidades estaduais do Paraná que O primeiro período da greve dos servidores pú-
participaram ativamente do movimento grevista da- blicos estaduais do Paraná em 2015 iniciou-se em 9
quele ano. de fevereiro e tinha como pauta principal a retirada
Essas reflexões surgem como resultado de uma do Projeto de Lei que tratava do ParanaPrevidência1.
pesquisa que versou sobre o sindicalismo docen- Naquele momento, o movimento articulado entre se-
te das IEES paranaenses nas gestões do governador ções sindicais e demais sindicatos (sob a organização
Beto Richa (2011-2018). Basicamente, foram aces- do Fórum das Entidades Sindicais - FES2) alcançou
sados documentos governamentais e sindicais que sucesso, à medida em que o PL foi retirado de pauta
ajudaram a melhor descrever o período. Houve ain- da ALEP e, ainda, uma carta-compromisso foi assi-
da a utilização da pesquisa qualitativa, que deu voz nada por representantes do governo em março, indi-
a docentes das IEES/PR que participaram das greves cando o fim daquela tentativa de alteração no sistema
aqui analisadas. de aposentadoria dos servidores.
Embora o foco seja o sindicalismo docente das A greve de fevereiro ocorreu quase que em paralelo
universidades, não é possível desprezar as importan- ao aumento salarial e à ampliação da hora-atividade
tes relações desses sindicatos com as demais organi- dos professores da rede estadual, fato explorado pela
zações de servidores públicos do estado; e o ano de Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED),
2015 foi paradigmático. Esse fato demonstrou-se um em uma tentativa de rebaixar as motivações grevistas
fenômeno importante, porém complexo e cheio de desse sindicato (APP-Sindicato) naquela época.
contradições, as quais não receberam o devido apro- Sobre a educação básica, a greve continha um sig-
fundamento aqui por não ser o objeto de estudo. nificativo rol de exigências da categoria que, além do
ParanaPrevidência, incluía questões como: pagamento
do terço de férias e de rescisões de professores tempo-
A greve de fevereiro ocorreu quase que em paralelo ao
rários; promoções e progressões; concursos; licenças; e
aumento salarial e à ampliação da hora-atividade dos
melhoria nas condições gerais de trabalho, a exemplo
professores da rede estadual, fato explorado pela Secre-
taria de Estado da Educação do Paraná (SEED), em uma das recorrentes situações de salas de aulas superlotadas.
tentativa de rebaixar as motivações grevistas desse sin- Especificamente sobre a realidade das Instituições
dicato (APP - Sindicato) naquela época. Estaduais de Ensino Superior (IEES) e dos sindicatos
docentes3, entre 10 e 12 de fevereiro, foram anuncia-
das as greves que incluíram tanto docentes quanto os
Considerações sobre a participação demais servidores das universidades. UEPG e UNI-
dos docentes das IEES/PR nas greves CENTRO entraram na greve em 10 de fevereiro. O
dos servidores estaduais em 2015 SINDIPROL/ADUEL e professores da UENP entra-
ram em greve no dia 12. A ADUNIOESTE realizou
Reforçando a extensa agenda de lutas sindicais assembleia em 11 de fevereiro e estabeleceu o dia 14
ocorrida no estado do Paraná em 2015, servidores como a data para o início da greve. A greve na UEM
públicos realizaram um importante movimento gre- teve início em 11 de fevereiro.
vista naquele ano, dividido em dois períodos: o pri- Havia ainda pautas adicionais que, no caso das
meiro em fevereiro e uma segunda etapa da greve, IEES/PR, tinham relação com a necessidade de paga-
iniciada em 24 de abril. mento pelo governo do terço de férias de dezembro
No âmbito das Instituições Federais de Ensino Su- do ano anterior e a nomeação de servidores já apro-
perior (IFES), só para fins de contextualização, o ano vados em concurso. Também eram tratadas pelas se-
de 2015 também foi marcado por um longo período ções sindicais naquele contexto as questões relativas
de greve, com duração de 139 dias e com a participa- à tentativa de o governo instituir o sistema META4

196 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


na folha de processamento das universidades (em es- Grossa (UEPG) que o governador não enviará

As greves conjuntas dos docentes


pecial, havia a busca pelos sindicatos pela retirada da os recursos para o pagamento do terço de férias
na folha de pagamento de dezembro. Uma
UENP e UNESPAR desse sistema)4. Contextualizan-
portaria do Conselho de Gestão Administrativa
do o cenário, seguem as deliberações da Assembleia e Fiscal do Estado do Paraná, emitida em
Docente do SINDIPROL/ADUEL, ocorrida em 5 de novembro, deixava de fora desse corte as
março de 2015: universidades estaduais. No entanto, o governo
resolveu aplicar essa medida ilegal às IEES. Na
1. Continuidade da greve por tempo reunião que os sindicatos docentes tiveram com
indeterminado. 2. Retirada definitiva de qualquer João Carlos Gomes, secretário da Secretaria de
projeto que altere a PARANAPREVIDÊNCIA. Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI),
3. Abertura de negociações entre o governo em 27 de novembro, este havia garantido para
e o movimento grevista (docentes, técnico- os docentes das IEES tanto o pagamento do 13º
administrativos e estudantes); as propostas quanto o 1/3 (SINDUEPG, 2014).
devem ser assinadas e publicizadas pelo
governador e apresentadas aos representantes
do movimento de greve. 4. Imediata retirada É importante salientar que o período que contemplou as
da UENP e UNESPAR do META4 e revogação gestões Richa teve, entre suas marcas, um contexto de
dos decretos que ameaçam colocar as outras significativos problemas financeiros ampliados pelo fraco
universidades sob gestão direta do governo.
desempenho da economia em âmbito nacional. Os paco-
5. Revogação do decreto que cria o GT sobre
tes de medidas propostos pelo Poder Executivo foram ela-
autonomia. 6. Pagamento imediato do terço
constitucional de férias. 7. Repasse imediato borados justamente sob o argumento de enfrentamento
dos valores devidos às universidades. 8. a esse cenário de crise fiscal. Para os servidores, no en-
Implementação do incentivo por titulação já tanto, isso não justificaria o descumprimento da lei anual
acordado como governo. 9. Nomeação imediata de reajuste salarial e demais medidas que penalizaram,
dos docentes aprovados em concursos públicos. especialmente, eles próprios.
(SINDIPROL/ADUEL, 2015a).

A seção sindical da ADUNICENTRO, já em 3 de O governo Richa argumentava uma insuficiên-


dezembro de 2014, realizou uma assembleia docente cia de caixa e a dificuldade recorrente do primeiro
na qual ficou aprovada a convocação de uma nova mandato no que se refere ao controle dos gastos com
assembleia, em fevereiro de 2015, para pôr em pauta pessoal. Dessa questão derivaria a superação do limi-
a ratificação de uma greve logo no início do ano leti- te prudencial (que estabelece um limite de despesas
vo. Uma das principais demandas naquele momento com pessoal), conforme a Lei de Responsabilidade
(fim de 2014) tinha relação com o não pagamento do Fiscal (LC n° 101/2000). É importante salientar que o
terço de férias aos docentes e demais funcionários da período que contemplou as gestões Richa teve, entre
UNICENTRO. Sobre isso, a seção sindical chegou a suas marcas, um contexto de significativos proble-
entrar com uma ação na Justiça pelo cumprimento mas financeiros ampliados pelo fraco desempenho
da lei visando ao pagamento do direito (ADUNI- da economia em âmbito nacional. Os pacotes de me-
CENTRO, 2015). didas propostos pelo Poder Executivo foram elabo-
Docentes do SINDUEPG, em 18 de dezembro de rados justamente sob o argumento de enfrentamento
2014, também já se manifestavam acerca da questão a esse cenário de crise fiscal. Para os servidores, no
por meio de redes sociais. A mesma postagem indi- entanto, isso não justificaria o descumprimento da lei
cou que a assessoria jurídica da Secretaria Regional do anual de reajuste salarial e demais medidas que pena-
ANDES-SN ingressou na Justiça do Paraná com uma lizaram, especialmente, eles próprios.
ação coletiva para garantir o direito dos docentes. Sobretudo com a saída da APP-Sindicato da greve,
em 9 de março de 2015, iniciaram-se esforços em tor-
A Seção Sindical dos Docentes da Universidade
no do cumprimento dos compromissos assumidos
Estadual de Ponta Grossa (SINDUEPG) foi
informada hoje pela Pró-Reitoria de Graduação pela gestão Richa no que concerne aos professores da
(PRORH) da Universidade Estadual de Ponta rede básica e demais servidores (como no caso do PL,

ANDES-SN n julho de 2023 197


Debates
Debates que buscava alterar o ParanaPrevidência). O próprio Foi a primeira vez que todas as universidades
sindicato citado indicou um período de “estado de paralisaram suas atividades. As universidades
entraram em greve para preservar direitos
greve”5, em que, ao primeiro sinal de descumprimen-
sociais, como a reforma da previdência, o fim
to da carta de compromisso assinada pelo governo, do quinquênio e anuênios, além da tentativa
seriam convocadas novas assembleias para a reinsta- de implementação do Meta 4 em todas as
lação do movimento grevista. universidades estaduais, e a limitação de
financiamento público das universidades, entre
No âmbito do sindicalismo docente da IEES, uma
outras medidas que faziam parte do pacote de
reunião com o líder do governo na ALEP e com o maldades do governo do estado, enviado para
secretário da SETI6, em 10 de março, apontou o com- ALEP no início de fevereiro. A nossa greve
promisso do governo estadual de, em um prazo má- conseguiu reunir as sete universidades, fato
ximo de 60 dias: realizar o pagamento do terço de inédito. A paralisação foi de praticamente 100%
em todas as IEES (SINDUEPG, 2015c).
férias atrasadas, relativas a 2014; ampliar a discus-
são em torno da retirada da UENP e UNESPAR do
A segunda etapa da greve dos servidores estaduais
Sistema META4; revogar o Decreto nº 546/2015,
iniciou-se no fim de abril de 2015, após o descum-
que instituía um grupo de trabalho para a criação
primento do governo estadual dos compromissos fir-
de uma proposta de projeto para a Autonomia das
mados alguns meses antes9. O principal se referia ao
Universidades7; rever a aplicação do Decreto nº
retorno da agenda de mudanças no fundo previden-
446/2015 aos docentes universitários; alterar o adi-
ciário dos servidores. A truculência policial do “29
de Abril” ampliou ainda mais as insatisfações do con-
junto dos servidores. Nas seções sindicais das IEES/
A segunda etapa da greve dos servidores estaduais ini-
PR, a greve foi retomada de forma conjunta, em 22 de
ciou-se no fim de abril de 2015, após o descumprimento
abril10. A publicação feita pela ADUNIOESTE, em 18
do governo estadual dos compromissos firmados alguns
de abril de 2015, demonstrou ainda a agenda de luta
meses antes. O principal se referia ao retorno da agenda
construída para aqueles dias:
de mudanças no fundo previdenciário dos servidores. A
truculência policial do “29 de Abril” ampliou ainda mais as
RETOMADA DA GREVE: DIA 22 DE ABRIL
insatisfações do conjunto dos servidores.
As Seções Sindicais do ANDES-Paraná (UEM,
UEPG, Unioeste, Unicentro e Unespar),
reunidas em Curitiba no dia 18 de abril,
cional de titulação docente8; e planejar nomeações informam que a data para a retomada da greve
é 22 de abril (quarta-feira), pautada na rejeição
e realizações de novos concursos para a contrata-
do PL 252/2015, que trata de modificações na
ção de docentes e demais servidores das IEES (SIN- ParanaPrevidência. Desde já, comunicamos a
DUEPG, 2015b e 2015c). agenda de luta para a próxima semana:
Devido aos compromissos firmados pelo governo - 22/04 (quarta-feira) - Início da greve.
Participação na Audiência Pública na
estadual entre 12 e 18 de março, as seções sindicais
Assembleia Legislativa sobre o PL 252/2015.
e SINDIPROL/ADUEL realizaram assembleias que Caravana das universidades para Curitiba, com
decidiram pela suspensão da greve. Na maioria dos o objetivo de acompanhar e participar da luta
casos, foi deliberado pela permanência em “estado pela rejeição do PL 252/2015.
- 23/04 (quinta-feira) - Indicativo de data para
de greve”. Os sindicatos mistos das IEES/PR já ha-
reunião com a Frente Parlamentar de Defesa das
viam acompanhado o FES e suspendido suas greves Universidades Estaduais em Curitiba. Indicativo
dias antes. de data para reunião com a OAB-Seção do
Numa avaliação feita pelo Comando de Greve Paraná para discutir Ação Judicial que garanta
Docente das IEES/PR, em 13 de março de 2015, um o direito à realização de Auditoria do Sistema
Previdenciário, desde o IPE, com foco no aporte
dos pontos a se destacar dessa primeira greve de
do Estado. Indicativo de data para audiência com
2015 foi a total adesão das sete universidades esta- o líder do governo, deputado Romanelli, para
duais paranaenses: tratar da reivindicação do movimento grevista.

198 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


- 24/04 (sexta-feira) - Ato político na entidade lembrou que o seminário deveria

As greves conjuntas dos docentes


Assembleia Legislativa, pela rejeição do PL acontecer somente para as entidades do Fórum”.
252/2015. Reunião das Seções Sindicais para Desconcertados com a deselegância política
planejamento das atividades da semana seguinte e social, não tivemos mais, depois daquilo,
(ADUNIOESTE, 2015a). tempo para contratar o atuarista. Também não
tivemos acesso aos dados para o cálculo, uma
vez que o acordo estabeleceu o acesso a tais
A questão do ParanaPrevidência já vinha sendo dados para o atuarista do Fórum. [...] Apesar
ponto de pauta entre as seções sindicais desde que de nossas manifestações, o governo Beto Richa
o governo estadual evidenciou o interesse em tor- seguiu refinando o PL a partir de discussões
no dessa reestruturação. Em 27 de março de 2015, com o FES, desconsiderando a representação
dos docentes universitários. Finalmente, no
em um seminário realizado em Cascavel, que con-
dia 9 de abril, conseguimos agendar audiência
tou com a participação das cinco seções sindicais do com o deputado Romanelli para tratar desses
ANDES-SN no estado11, foi elaborado o documento problemas. A reunião aconteceu no dia 13
“O retorno da Reforma da ParanaPrevidência: É pre- de abril (segunda-feira) e durou 1 hora e 15
minutos. Expressamos todas as nossas posições,
ciso lutar!”. No documento foram feitas ponderações
argumentamos sobre nossa exclusão do debate
e propostas sobre o anteprojeto divulgado pelo go- e requeremos do deputado que considerasse
verno estadual, a fim de que fossem discutidas nas as- os quatro pontos relacionados acima e que nos
sembleias docentes e de demais servidores públicos. convocasse para as reuniões relativas ao PL, uma
vez que o FES não nos representa. O deputado
A retomada da greve, por conta do PL da Previ-
concordou em acolher as proposições para
dência, expôs, ainda, as dificuldades na articulação discussão e de imediato nos repassou numerosa
sindical existente entre os servidores do Paraná. documentação sobre os debates do PL. Ocorre
Em publicação feita em 16 de abril, a seção sindical que, no dia 15 de abril, dois dias depois, fomos
surpreendidos com o pronunciamento do
ADUNIOESTE12 esclareceu os pontos de inseguran-
deputado sobre o PL, afirmando haver apenas
ça do referido PL e denunciou a postura do FES na “duas pequenas divergências” entre o governo e o
negociação com o governo: FES: (i) quem indicará o presidente do conselho
paritário; e (ii) qual será a data retroativa a
Ao final da reunião, o deputado Romanelli constar no PL. Significa que todos os pontos
anotou nossas posições e se comprometeu a manifestados pelas seções sindicais docentes
enviar o PL aos sindicatos, tão logo ele estive foram desconsiderados. Mais que isso, o FES
pronto. Disse ainda que pretendia votar o PL está sendo usado como álibi para a aprovação do
até o dia 31 de março. Novamente intervimos PL, como garantia de que não há divergências,
para requerer a dilação do prazo por pelo de modo que os deputados contrários possam
menos 10 dias. Os demais sindicatos apoiaram aprovar o PL (ADUNIOESTE, 2015a).
nossa manifestação e o deputado disse que iria
verificar esta possibilidade. Por fim, acertamos A definitiva derrota dos servidores estaduais
em público que os sindicatos de docentes
no fim de abril, com a aprovação da Lei Estadual
receberiam toda documentação pertinente ao
tema e às convocações para discussão do PL a nº 18.469/2015, que reestrutura o plano de custeio e
partir do Fórum de Entidades Sindicais dos financiamento do ParanaPrevidência, fez com que,
Servidores (FES). Ato contínuo, fruto deste a partir de então, os esforços sindicais fossem redi-
acordo, uma representante do FES nos convidou recionados. A chegada de maio (re)acendia o debate
para participar do Seminário planejado para
sobre a data-base, outro histórico/recorrente ponto
o dia 24 de março, onde o técnico atuarista
apresentaria o resultado dos cálculos sobre a de pauta do movimento sindical dos servidores pú-
transferência de 33 mil servidores do Fundo blicos do estado do Paraná. Dados dos sindicatos
Financeiro para o Fundo Previdenciário. contabilizavam a necessidade de reposição inflacio-
Com este acerto, não precisaríamos contratar
nária do período 2014/2015 em 8,17%.
outro atuarista para fazer os mesmos cálculos.
Para nossa surpresa, a representante do FES As negociações a respeito dessa reposição esten-
nos telefonou para nos desconvidar para deram-se por maio13 e junho e, em 9 de junho de
o seminário, sob a alegação de que “outra 2015, o sindicato dos professores da rede básica de

ANDES-SN n julho de 2023 199


Debates
Debates ensino (que compunham a maior frente de resistên- sindicais do ANDES-SN e o FES do estado do Pa-
cia sindical dos servidores no estado), decidiu aceitar raná17, conforme a fala de um professor ex-dirigente
a proposta do governo estadual de reposição de ape- sindical que participou ativamente desse contexto de
nas 3,45% referente a 2014 (de maio a dezembro), a greve, em 2015:
ser paga em outubro de 2015.
Havia, ainda, conforme a Lei Estadual nº Às vezes, quando o FES agendava com o
governo algum tipo de negociação/conversa,
18.493/2015, a instituição de um novo calendário de
eles não chamavam o sindicato dos docentes
pagamento dos reajustes: o valor referente de janeiro das universidades que não faziam parte do
a dezembro de 2015 seria pago no dia 1º de janeiro FES, e nós descobríamos que essas reuniões
de 2016, e o valor referente de janeiro a dezembro de iam acontecer. Nós íamos, entrávamos e, por
vezes, éramos hostilizados – eu mesmo já
2016 seria pago em janeiro de 201714.
vivenciei situações assim. [...] Quando havia
Além da recomposição salarial, o Sindicato dos situações de negociação que a gente sabia que
Trabalhadores em Educação Pública do Paraná podia participar, a gente [ANDES-SN] ia e
(APP-Sindicato) exigiu o compromisso do governo mostrava que nem sempre concordávamos com
estadual de não descontar os dias de falta durante o algumas negociações que estavam sendo feitas
pela direção da APP-Sindicato: por exemplo,
período de greve. No total, foram 46 dias de greve,
a reposição de 8,17%, que exigíamos que fosse
com a participação dos professores da rede pública em parcela única. Já a APP-Sindicato teria
estadual de ensino básico15. negociado [sozinha] que seria parcelado. Então,
Os professores e servidores do ensino superior, quando a gente manteve a greve (eles saíram),
por conta da reposição. Aí nós vimos que havia
por sua vez, mantiveram a paralisação por serem
tido todo um trabalho de bastidores para eles
contrários à proposta do governo estadual. Persistia aprovarem aquilo que a APP já tinha negociado.
na pauta desses sindicatos a exigência pelo paga- Então, em alguns momentos, a gente se viu em
mento integral e legítimo do índice (8,17%), tendo polos opostos (EX-DIRIGENTE SINDICAL
SINDUEPG).
por base o IPCA16. Docentes das IEES/PR recla-
mavam da falta de diálogo do governo e o modo
Ainda sobre a greve de 2015, surgiu o seguinte relato:
que Richa terceirizava sua administração ao então
secretário da Fazenda Mauro Ricardo Costa – que,
Uma outra situação foi a que vários servidores,
até o início de junho, mesmo após graves crises na- no contexto de 2015 ainda, agendaram uma
quele ano, jamais havia sentado com representantes reunião para pensar estratégias e nós ficamos
dos servidores. horas esperando os dirigentes da APP. Quando
eles chegaram, já tinham decidido o que fazer,
Outros pontos secundários da pauta grevista nas
mas eles disseram que só podiam contar uma
IEES tiveram relação com as históricas questões da parte do que seria feito para não “vazar” essa
verba de custeio e da defasagem de servidores – ques- informação da estratégia de luta. Aí nós falamos:
tões que, naquele contexto, foram agravadas pelos “Mas aqui só tem dirigente sindical. Se vocês
Decretos nºs 25 e 30, de janeiro de 2015, que limi- não podem compartilhar as estratégias, então
cada um vai ter que pensar”. Então eu vivi isso.
taram ainda mais as contratações de pessoal e a ma-
Teve diretor de seção sindical que levantou da
nutenção das universidades estaduais. As respectivas mesa e foi embora. Ou seja, os representantes
assembleias docentes, que ratificaram a continuidade da APP estavam numa sala paralela, decidiram
da greve, ocorreram em 9 de junho. tudo e depois vieram apenas nos dizer uma
parte da estratégia na manifestação contra o
Havia, ainda, no interior do sindicalismo docente
saque do ParanaPrevidência. Isso nos gerou
das IEES, a forte crítica em torno da forma de condu- um desconforto, e ali a gente viu que era quase
ção das negociações entre o movimento grevista dos que como cada um por si. Nesse caso, nós
servidores e o governo estadual, sendo muitas vezes o [movimento docente das IEES] resolvemos nos
juntar a outros grupos, como o pessoal da saúde,
ANDES-SN preterido das mesas de negociações. Do
e nos organizarmos de outra maneira, deixando
contexto da greve de 2015, por exemplo, instituiu-se a APP de lado (EX-DIRIGENTE SINDICAL
um clima de recorrente animosidade entre as seções SINDUEPG).

200 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


É paradigmático dessa questão de divisão no in- TERMO DE COMPROMISSO

As greves conjuntas dos docentes


terior do movimento dos servidores estaduais que, Considerando a mediação apresentada pela
SETI, pela liderança do governo e pela Casa
nesse mesmo contexto de greve, em 2015, foram ve-
Civil, com vistas à proposta de composição para
rificados casos em que, sobre o mesmo assunto, eram pôr fim à greve nas Universidades Estaduais
agendadas duas reuniões separadas dos servidores (IEES), o estado do Paraná se dispõe a:
com a SETI e a ALEP: uma com o conjunto dos ser- 1 – Como nos anos de 2012, 2013 e 2014, está
garantido o pagamento da 4ª parcela do reajuste
vidores e outra específica com o ANDES-SN18. Esse
salarial - 7,14% (Lei nº 17.280/2012), no mês de
fato foi denunciado em tom crítico pelo SINDIPROL/ outubro de 2015;
ADUEL, único dos sindicatos docentes das IEES que, 2 – Os docentes e agentes universitários de
à época, mantinha relação formal com o FES. todas as IEES, com processos em trâmite
(substituição), serão nomeados até o mês de
Durante as conversações prevaleceu, porém, julho;
a falta de unidade do movimento, tão 3 – Início imediato dos trabalhos da comissão
prejudicial num momento de enfrentamento de análise da retirada da UENP e UNESPAR do
com o governo, gerando duas reuniões com META4 (Resolução SETI, 47/2015);
o secretário e os deputados, ao invés de uma 4 – O custeio – Fonte 100 das IEES – será liberado
reunião conjunta com todos os sindicatos, dentro de uma programação entre a SETI, SEFA
o que seria mais apropriado. O Sindiprol/ e reitorias, garantindo o funcionamento das
Aduel participou das duas reuniões, pois atividades acadêmicas e administrativas em
continua defendendo a unidade do movimento cada instituição;
(SINDIPROL/ADUEL, 2015b).

Essa questão também foi lembrada em uma das Além da recomposição salarial, o Sindicato dos Traba-
entrevistas realizadas: lhadores em Educação Pública do Paraná (APP-Sindicato)
exigiu o compromisso do governo estadual de não des-
E a gente não conseguia fazer essa unidade, isso
contar os dias de falta durante o período de greve. No
foi muito ruim. E a gente não conseguia levar a
nossa luta, era difícil de levar a nossa luta. Era
total, foram 46 dias de greve, com a participação dos
difícil levar a nossa luta porque as reuniões, professores da rede pública estadual de ensino básico.
muitas vezes, eram separadas. Então vamos
tratar da questão dos docentes? Vamos marcar
uma reunião para tratar da questão dos docentes
5 – Em havendo a volta, até o dia 23 de junho,
só com sindicatos mistos, depois vamos marcar
à normalidade das atividades acadêmicas e
uma reunião de docentes só com as ADs, mas o
administrativas, retirar, em até 120 dias, as ações
assunto era o mesmo. Foi realmente muito ruim
das greves ajuizadas contra os sindicatos mistos
essa disputa toda que houve naquele momento
e dos docentes que representam os servidores
e, dos dois lados, não havia entendimento... Não
públicos das IEES, assim como cobrança de
queriam ceder (EX-DIRIGENTE SINDICAL
qualquer multa pecuniária dela decorrente,
SINDIPROL/ADUEL).
com a qual anuirá a entidade sindical, sendo
que cada parte arcará com os custos de
Em reunião exclusiva, na manhã de 16 de junho seus advogados;
de 2015, os sindicatos dos docentes do ANDES-SN 6 – Fica garantido que, mediante a apresentação
foram convidados pela SETI e pelo líder do gover- de novo calendário acadêmico pelos Conselhos
Superiores das IEES, até 3 dias após a volta
no na ALEP para discutir os rumos da greve. Nesse
das atividades acadêmicas e administrativas,
encontro, o governo apresentou um termo de com- consolidando a reposição de aulas e dos dias
promisso, o qual indicaria sete pontos para pôr fim à letivos, não haverá descontos por faltas; e
greve nas IEES. 7 – Fica estabelecida uma Mesa de Negociação
Permanente entre os sindicatos que representam
Segue o documento na íntegra, o qual foi assinado
as categorias nas IEES, a SETI e a Liderança do
pela SETI (prof. João Carlos Gomes), pela liderança Governo na Assembleia Legislativa, para tratar
do governo na ALEP (deputado Luiz Cláudio Roma- de assuntos atinentes ao Sistema Estadual de
nelli) e pela Casa Civil (Alexandre Teixeira)19: Ensino Superior.

ANDES-SN n julho de 2023 201


Debates
Debates No dia 17, as seções sindicais assinaram uma para o enfraquecimento do movimento, a extensão
nota20, amplamente publicada em diferentes canais da greve (que, na maioria das IEES, completava já
na internet, intitulada “Sobre o Termo de Compro- quase os 60 dias) e a saída do Fórum das Entidades
misso do Governo Estadual”, na qual são tecidas Sindicais (FES).
críticas ao documento e à forma de condução desse Em 23 de junho, os professores da UEL decidiram,
processo pelo governo Richa: em assembleia, a suspensão da greve. Ao todo, foram
57 dias de paralisação, segundo a publicação feita em
Esclarecemos que o citado documento não teve
seu site oficial nesse mesmo dia:
o apoio ou acordo de nenhum dos sindicatos
do ANDES-SN. Esclarecemos também que os Apesar da suspensão da greve, o movimento
pontos listados no documento foram requentados continua. Os professores estão mobilizados
de discussões e reuniões realizadas desde 2012, e podem retomar a paralisação a qualquer
direitos garantidos por lei e pelas Constituições momento em função das suas pautas específicas,
Federal e Estadual, tais como o Custeio das como a nomeação de docentes e servidores
Universidades e o pagamento da última parcela concursados e o repasse de recursos de
de 7,14% devida aos docentes. O fato de o custeio para a manutenção das universidades
governo reproduzir tais pontos em novo Termo (SINDIPROL/ADUEL, 2015b).
de Compromisso nos deixa temerosos sobre
sua intenção em cumprir a lei que os garante.
O SINDUEPG, que havia entrado na greve em 22
Reiteramos que o motivo da atual greve docente
é o reajuste de 8,17%, pago em parcela única, de abril, definiu, em assembleia realizada em 25 de
retroativa a maio de 2015. Acreditamos que o junho, a suspensão da greve e a manutenção do esta-
governo saiba disso, embora tenha divulgado do de greve. Docentes da UNIOESTE, UEM e UNI-
um termo de compromisso prometendo coisas CENTRO já haviam optado pela mesma decisão nas
já acertadas e assinadas em passado recente.
respectivas assembleias do dia anterior.
Por isso, consideramos descabido o fato de o
governo propor o encerramento da greve sem Em uma nota conjunta, assinada pelo Comando
atender aos 8,17%. Por fim, ao indicar o dia 23 Estadual de Greve das seções sindicais do ANDES-SN,
de junho como derradeira data para pacificar em 23 de junho de 2015, os sindicatos refletiram sobre
os conflitos judiciais impetrados contra nós e
os dias de paralisação. Abaixo segue um trecho da nota
abdicar do corte de nossos salários, o secretário
João Carlos Gomes repete, em excesso, o ato de intitulada “O que perdemos e o que ganhamos”:
força e de ameaça contra os professores de todas
Por fim, queremos submeter todos estes pontos
as IEES em greve. Não aceitaremos isto. Fomos
à reflexão dos docentes. De modo especial,
convidados à reunião e comparecemos de boa-
avaliamos que não fomos derrotados. Em
fé. Esperamos que ela não seja transformada em
relação aos pontos em litígio com o governo,
peça judicial ou em ferramenta de chantagem
derrotamos o decreto da “autonomia financeira”,
para nos criminalizar, como noutras vezes tentou
garantimos o pagamento do terço de férias e
o secretário João Carlos Gomes. Continuamos
evitamos a fusão do Fundo Financeiro com o
dispostos ao diálogo e ao entendimento sobre
Fundo Previdenciário, fato que disponibilizaria
o índice de 8,17%, pago em parcela única,
imediatamente, e de uma só vez, os R$ 8 bilhões
retroativo a maio de 2015, para que o diálogo
para Beto Richa. De outro lado, perdemos a
vença a intolerância e o desrespeito. Não nos
disputa sobre o Fundo Previdenciário (cuja
obriguem à rendição moral. Somos professores,
solvência despencou de 57 anos para 29 anos)
não somos seus subalternos (SESDUEM, 2015;
e sobre a reposição de 8,17%. Mesmo que
SINDUNESPAR, 2015a e UEPG, 2015).
a contabilidade fosse inteiramente adversa,
saímos moralmente ilesos e mais conscientes
Por fim, mesmo com os esforços de servidores e dos enfrentamentos que travaremos. Nunca,
seções sindicais docentes das IEES, a aprovação da em nossa história, tivemos tantos professores
Lei Estadual nº 18.493, em 25 de junho de 2015, foi reunidos nas assembleias, envolvidos nas
atividades de mobilização e dispostos a
um duro golpe nas pretensões grevistas desses ser-
participar das passeatas nas universidades
vidores, pois tornou-se um indicativo de que as ne- e em Curitiba. Nunca houve uma greve que
gociações haviam encerrado21. Contribuíam, ainda, abrangesse as sete universidades estaduais.

202 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Temos hoje, uma capacidade política e Da complexa relação entre seções sindicais e o

As greves conjuntas dos docentes


intelectual bastante adequada para resistir ao FES, o ano de 2015 contribuiu para que essa articula-
projeto de “autonomia financeira” do governo e
ção fosse reduzida temporariamente. Por um perío-
para conquistar reivindicações, como o aumento
do ATT (Adicional por Titulação) e a classe de do de tempo, apenas o SINDIPROL/ADUEL perma-
titular. Sublinhamos também que o governo neceu formalmente inserido nesse fórum. Para um
foi obrigado, pela força de nosso movimento, a ex-dirigente desse sindicato, o FES é um importante
garantir publicamente que pagará em outubro a
espaço estratégico de luta conjunta dos servidores, o
última parcela do reajuste de 7,14%, conquistado
na greve de 2012. Este é nosso principal espólio. que torna importante a participação das seções sindi-
Além disso, derrubamos alguns mitos: “Não cais do ANDES-SN nele.
é possível fazer greve sem a APP-Sindicato”,
“Quando a Justiça determinar a volta ao As lutas específicas da carreira, de outras
trabalho, a greve acabará” e “Se apresentarem questões na universidade, nós temos que nos
emenda de 8,17%, o governo retirará o projeto”. organizar para nos unir e levar essa luta. Mas, em
Enfrentamos todos esses medos e não fomos questões gerais, como a data-base, por exemplo,
derrotados porque lutamos quando foi preciso só se garante por uma organização, uma luta
lutar. Porque nunca aceitamos os 3,45% muito ampla, têm que ser levadas dentro do FES.
impostos pelo governo. Lutamos contra a [...] Nós queríamos que todos os sindicatos de
tirania de um governante com pretensões de nos docentes estivessem no FES, para que a gente
saquear, nos intimidar e nos silenciar. Lutamos tivesse peso lá dentro. Porque, a rigor, quem
porque é preciso imperiosamente resistir. E, faz a luta, a greve na necessidade, é a APP e as
quando retornarem à carga com o projeto de universidades, então nós precisávamos de todos
“autonomia”, saberão de nossa determinação. os sindicatos de docentes, de todos os sindicatos
Encerraremos esta greve e voltaremos ao de agentes universitários dentro do FES para
trabalho, mas retornaremos diferentes. Entre poder ter influência lá. Essa é uma obviedade,
nós há mais tolerância e unidade para tratar as porque, na hora de eu ouvir, na hora de negociar,
divergências porque tivemos clareza dos nossos o governo vai lá e negocia com o FES (EX-
princípios e coerência nas estratégias de luta. DIRIGENTE SINDICAL SINDIPROL/ADUEL).
Entre nós há mais coragem e solidariedade.
Entre nós não há humilhados ou derrotados. Embora também compreenda ser uma relação ne-
Não esqueceremos!!! (SINDUNESPAR, 2015b). cessária, especialmente nas pautas que dizem respei-
to a todos os servidores, um dos entrevistados exter-
nou seu atual pessimismo na relação entre o fórum e
as seções sindicais do ANDES-SN.

ANDES-SN n julho de 2023 203


Debates
Debates Com o FES, acho que a relação nunca foi boa. obviamente não estando livres da complexa e am-
Teve essas aproximações, a chamada “unidade bígua relação que disso possa ocorrer. A articulação
da luta”, por pautas específicas, mas eu acho que
política, por vezes, se prova dificultosa, até mesmo
o FES é também bastante fechado ao ANDES.
Porque eles têm a concepção de organizar os entre as próprias seções sindicais do ANDES-SN22.
sindicatos mistos, eles têm uma outra dinâmica No entanto, dando mostras de uma postura colabo-
política, que era diferente da dinâmica que a gente rativa e organizada, foi possível verificar, na greve
usava no ANDES naquela época do Beto Richa, e
de 2015, o estabelecimento e a organização de um
eles sempre foram muito refratários, e ainda hoje
são. A participação das ADs [seções sindicais] comando estadual de greve das seções sindicais, o
no FES é uma coisa, algumas ADs querem, mas que exemplifica, apesar das dificuldades, o nível de
parece que o próprio FES não aceita participação articulação que se estabeleceu entre os sindicatos
das ADs lá. Então, existe o diálogo, mas ainda docentes das IEES/PR.
é um diálogo rugoso, incipiente. Por exemplo:
Pode-se ressaltar, ainda, que, em 25 de maio, foi
agora, estavam tentando organizar protesto no
estado pela data-base e, de uma hora para outra, realizado em Curitiba (no Teatro Escola da FAP/
o FES cancelou os atos, e a universidade, com UNESPAR), o “1º Encontro para a Reestruturação do
seus limites que tem para organizar atos, acabou Comitê em Defesa do Ensino Público do Paraná”. O
que teve que suspender seus atos também
antigo comitê havia sido desativado em 2003. Parti-
(EX-DIRIGENTE SINDICAL SINDUNESPAR).
ciparam desse encontro representações do FES, AN-
DES, movimento estudantil e integrantes da comuni-
Nos momentos de greve, como em 2015, a dificuldade dade acadêmica das IEES/PR. Um segundo encontro
geográfica exigiu que cidades como Curitiba, Londrina e ficou agendado para o dia 29 de maio.
Maringá fossem os espaços estratégicos de encontros Nos momentos de greve, como em 2015, a dificul-
presenciais entre as lideranças dos sindicatos docentes dade geográfica exigiu que cidades como Curitiba,
– questão que não diminuía os esforços despendidos, Londrina e Maringá fossem os espaços estratégicos
especialmente pelas IEES localizadas nas regiões mais de encontros presenciais entre as lideranças dos sin-
distantes desses centros. dicatos docentes – questão que não diminuía os es-
forços despendidos, especialmente pelas IEES locali-
zadas nas regiões mais distantes desses centros.
Considerações finais Ainda sobre 2015, por meio do acesso e análise
documental dos materiais disponibilizados nos prin-
Dos vários pontos a destacar, as greves aqui re- cipais meios de comunicação/divulgação sindical
tratadas demonstraram a força de organização e (internet: rede social Facebook e página oficial), foi
articulação do sindicalismo docente das IEES/PR possível inferir que o movimento grevista das IEES
no período que englobou a gestão do governador não se limitou à paralisação das atividades docentes.
Beto Richa. Dos diferentes elementos que surgiram Dentro dessa mobilização, foram verificadas e mere-
nesses anos (alguns históricos e com prevalência cem destaques aqui: a criação de agendas locais nas
de demanda até os dias atuais), seja com relação IEES que foram compostas por aulas públicas, ma-
ao funcionalismo estadual num todo, seja especí- nifestações culturais, passeatas e panfletagens, entre
fico às demandas da universidade e da carreira do- outros; entrevistas de dirigentes sindicais aos veícu-
centes, pôde-se verificar, em diferentes situações, los de comunicação; viagens e passeatas de docentes
a atuação da representação sindical dos docentes, em Curitiba; e assembleias.
evidenciando a importância do seu papel político Foram verificados ainda, no contexto das gre-
na conjuntura paranaense. ves de 2015: encontros de dirigentes sindicais das
É inegável que a atuação política e de mobiliza- IEES com representações do governo, em especial
ção é ampliada nos momentos de greve. No caso de o secretário da SETI (professor João Gomes) e o lí-
2015, foram verificadas significativas ações articu- der do governo na ALEP (deputado estadual Luiz
ladas entre os sindicatos de servidores no estado, Claudio Romanelli); e encontros com deputados

204 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


estaduais integrantes da oposição parlamentar na tor público, como as ocorridas nas IEES/PR em 2015.

As greves conjuntas dos docentes


ALEP. Essa agenda de encontros demonstra o inte- Uma dessas particularidades diz respeito à longevi-
resse do movimento grevista no diálogo para o fim dade. As greves no setor público, se comparadas às do
das paralisações. setor privado, são mais extensas. Isso, para Granzotto
Em 30 de outubro do referido ano, os professores (2010, p. 153), ocorre “tanto devido à estabilidade no
das IEES tiveram 7,14% de reajuste nos salários. Essa emprego, como ao fato de que a resolução do conflito
foi a última parcela de equiparação salarial garantida é mais lenta, pois o governo deixa que o movimento
pela Lei Estadual nº 17.280/2012. O mesmo mês tam- se desgaste com o tempo”. É, ainda, uma caracterís-
bém registou o pagamento dos 3,45% equivalentes ao tica desse setor improdutivo da economia, uma vez
IPCA, acumulados entre maio e dezembro de 2014. que, na área produtiva, há uma preocupação maior:
De modo geral, especialmente na ocasião das gre- que a greve seja solucionada o mais rápido possível,
ves de 2015, o contexto ampliou as diferenças entre em virtude dos prejuízos, sobretudo financeiros, que
os sindicatos do ANDES-SN e o fórum que congrega ela acarreta.
os sindicatos dos servidores estaduais. De fato, as re- Disso deriva-se que os movimentos grevistas na
lações entre sindicatos docentes das IEES e os demais esfera pública são caracterizados pela não negocia-
sindicatos dos servidores do estado são complexas, ção, morosidade no desfecho dos acordos e violên-
pois envolvem diversos elementos históricos com ra- cia nos conflitos. Essas são marcas que permanecem,
ízes em acentuadas diferenças de concepção política mesmo após a conquista da liberdade sindical e do
e sindical. Assim, no entendimento aqui defendido, direito relativo de greve na Constituição Federal de
essa questão merece aprofundamento em um estudo 1988 (NORONHA, 1990 apud NOGUEIRA, 2005).
específico que considere esse tema como central. Isso posto, salienta-se a importância de que as
Pondera-se que, sob qualquer circunstância, não greves docentes das IEES/PR, para além da articu-
há como discutir o tema sindicalismo sem conside- lação entre as classes docentes e demais estratos da
rar a conjuntura macro na qual esses sindicatos de educação (básica, profissional e superior), sejam
trabalhadores estão inseridos. Em termos de sindi- associadas com as demais organizações de trabalha-
calismo docente das universidades públicas, é sem- dores. De fato, o ANDES-SN possui uma histórica
pre necessário pontuar o amplo debate econômico e tendência à esquerda, ligando-se aos interesses do
político que busca reconfigurar as funções do Estado conjunto dos demais trabalhadores e participando de
na provisão das políticas sociais; fato que é central no importantes momentos históricos da classe trabalha-
cotidiano de luta dos que defendem a ampliação ou a dora – a exemplo do processo político que culminou
mera manutenção do ensino superior público. Dife- com a fundação da Central Única dos Trabalhado-
rentes conjunturas, sobretudo desde os anos 1990 e res (CUT). A bandeira a favor da educação pública e
chegando aos dias atuais, particularizam-se em torno gratuita pode ser considerada apenas uma das mui-
de como esses elementos liberalizantes da economia tas frentes em que esse sindicato atuou, o que leva a
influenciam diretamente a dinâmica de estruturação compreender melhor a maneira como essas relações
ou desestruturação da educação pública; e não são de proximidade entre movimento docente do ensino
poucas as obras dedicadas a problematizar a relação superior e os demais movimentos sociais e sindicais
entre esses temas no contexto da educação superior no país foram construídas e a necessidade de elas se-
brasileira. No contexto recente do ensino superior pú- rem continuadamente fortalecidas.
blico do Paraná, as gestões Richa representaram uma
conjuntura desafiadora, que exigiu uma série de posi-
cionamentos dos coletivos que defendem a existência
dessa universidade pública, gratuita e de qualidade.
Por fim, sem pretensão de esgotar o assunto, cabe
refletir à guisa de conclusão acerca dos elementos
que pautam as particularidades de uma greve no se-

ANDES-SN n julho de 2023 205


notas
Debates
Debates

1. Foi através do Projeto de Lei n° 252/2015 que


o governador Beto Richa (PSDB) unilateralmente 5. O “estado de greve” objetiva criar um ambiente
promoveu uma mudança no custeio na previdência político para manter/ampliar a mobilização da
dos servidores estaduais (ParanaPrevidência); na categoria. Não há amparo na Constituição Federal de
ocasião, esse fato gerou uma série de mobilizações 1988 nem na Lei Federal nº 7.783/1989 (que dispõe
dos sindicatos dos servidores estaduais, sendo que, sobre o exercício da greve).
em resposta a essas mobilizações, derivou uma ação
desproporcional e violenta da polícia militar do 6. Sobre as referências políticas e técnicas do
estado do Paraná, em 29 de abril de 2015, contra governador Beto Richa em suas duas gestões (período
servidores (dentre esses, professores das IEES/PR): o 2011-2018), ver Marino (2022).
denominado “Massacre do Centro Cívico”.
7. Sobre o referido decreto, o SINDUEPG assim
2. O Fórum das Entidades Sindicais é uma entidade se posicionou em postagem feita no contexto da
política que congrega o conjunto organizado dos greve, em 27 de fevereiro de 2015: “a autonomia que
servidores públicos do estado do Paraná. A relação queremos deve ser resultado de um amplo debate,
histórica desse Fórum com os sindicatos do ANDES construído democraticamente pela comunidade
no estado é também marcada por tensões, como o universitária, que garanta a participação paritária
próprio ano de 2015 demonstrará. dos segmentos. Sendo assim, somos contra qualquer
decreto governamental que visa determinar de
3. Sindicatos docentes que foram objeto deste estudo: forma autoritária, de cima para baixo, a construção
Sindicato dos Professores do Ensino Superior Público (pseudo)democrática de um projeto que determinará
Estadual de Londrina e Região (SINDIPROL/ nosso futuro como instituição pública, gratuita e
ADUEL); Sindicato dos Docentes da Universidade socialmente referenciada” (SINDUEPG, 2015a, n/p).
Estadual do Oeste do Paraná (ADUNIOESTE);
Seção Sindical dos Docentes da Universidade 8. Efetivamente, o adicional de titulação docente
Estadual de Ponta Grossa (SINDUEPG); Sindicato só foi alterado em julho de 2022 (Lei Estadual nº
dos Docentes da Universidade Estadual do Centro 21.118/2022).
Oeste (ADUNICENTRO); Seção Sindical dos
Docentes da Universidade Estadual de Maringá 9. Para fins de contextualização, a APP-Sindicato
(SESDUEM); e, por fim, Seção Sindical dos aprovou a retomada da greve em assembleia realizada
Docentes da Universidade Estadual do Paraná em 25 de abril.
(SINDUNESPAR). Cabe esclarecer que, no contexto
de 2015, nem todos esses sindicatos de professores 10. A UEL realizou, em 24 de abril, uma assembleia
das IEES/PR eram filiados ao ANDES-SN. Caso unificada com a participação de professores,
do SINDIPROL-ADUEL, que permaneceu entre os funcionários técnico-administrativos e estudantes.
anos de 2009 a 2018 não sendo uma seção sindical. Nela ficou decidida uma paralisação para o dia 27,
Para mais detalhes, ver Marino (2022). dia em que o PL do ParanaPrevidência seria discutido
na ALEP. Professores da UNESPAR (Apucarana) e da
4. O Sistema Meta4 configura-se como um software UENP fizeram também suas assembleias, em 24 e 28 de
utilizado para a gestão de folhas de pagamento dos abril, respectivamente. Nesse momento, SINDIPROL/
servidores estaduais. Argumenta-se que sua utilização ADUEL apontou fortemente a possibilidade de
configurou-se em uma afronta direta à autonomia retorno da greve por tempo indeterminado.
financeira das IEES, à medida em que a adesão ao
Sistema META4 implicou a transferência para o 11. Curiosamente, nesse momento, os documentos
Executivo das decisões sobre promoções, progressões, demonstraram a ausência de participação do
licenças, liberações para pós-graduação, solicitação SINDIPROL/ADUEL – por não ser filiado ao

notas
de TIDE (dedicação exclusiva), férias e horas extras, ANDES-SN.
entre outros elementos da gestão de pessoal que
impliquem movimentação financeira. Sem o META4,
o papel dessa gestão compete às Pró-Reitorias de
Recursos Humanos de cada IEES.

206 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


notas

As greves conjuntas dos docentes


12. Que se permita aqui a menção ao professor
doutor Luiz Fernando Reis (ADUNIOESTE), que com um discurso político, chegou a abrir mão de seus
tem se dedicado há anos à pesquisa e publicação vencimentos no mês de janeiro de 2015 (tendo por
de dados/informações a respeito das contas base o Despacho nº 13.486.285-8/15, da Casa Civil,
do governo relacionadas, sobretudo ao ensino disponível na Edição nº 9.381 do Diário Oficial do
superior paranaense. Paraná), mas que foi pago retroativamente no mês
seguinte (DIONÍSIO, 2015).
13. Em 14 de maio, o governo, unilateralmente,
chegou a noticiar que as negociações estariam 17. Por anos, as seções sindicais do ANDES-SN
encerradas. Como encaminhamentos, um PL seria no Paraná não participaram formalmente do
enviado com a definição do índice de reajuste de 5% conjunto de sindicatos que integram o Fórum das
(a ser pago em duas parcelas). As medidas autoritárias Entidades Sindicais dos Servidores Estaduais (FES).
do governo também indicavam o desconto das faltas Recentemente, esse movimento de articulação tem
dos professores grevistas e a abertura de processo sido retomado.
contra diretores de escolas que estimularam a greve
– vê-se aqui, entre outros aspectos, a dura retaliação 18. Ao menos em duas ocasiões, situações como essa
do governo aos sindicatos dos professores da rede foram identificadas: em março e em junho de 2015.
pública (APP-Sindicato).
19. O jornalista Alexandre Teixeira respondia, na
14. Esse compromisso de pagamento foi quebrado ocasião, pelo cargo de diretor-geral da Casa Civil.
por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias, de
2017, que suspendeu a reposição salarial por tempo 20. Nesse documento, novamente, não foi verificada a
indeterminado. Ver Marino (2022). assinatura do SINDIPROL/ADUEL.

15. Exemplificando ainda mais os mecanismos de 21. Em 22 de junho, na votação decisiva do PL nº


pressão, desta vez exercida pelo Judiciário, em 2 de 421/2015, foram 29 votos a favor, 19 contra e 5
junho, o Tribunal de Justiça do Paraná, em decisão abstenções. Destacam-se os movimentos de intensa
proferida no Ag. Reg. 1348213-8/01, de relatoria articulação política provocados pelos docentes das
do desembargador Luiz Mateus de Lima, havia seções sindicais (e SINDIPROL/ADUEL) junto aos
condenado a APP-Sindicato à cessação da greve, sob deputados, a fim de que se chegasse a esse número de
a multa diária de R$ 40 mil. 19 votos contrários. De início, houve a dificuldade até
para se conseguir o número mínimo de assinaturas
16. O mesmo percentual de reajuste das tabelas para a apreciação do requerimento de recurso
de vencimentos que, em julho do mesmo ano, foi (protocolado sob o n° 3.290/2015), que (re)trazia a
aprovado pela ALEP (Lei Estadual nº 18.517/2015) aos proposta dos 8,17% para discussão. A ata completa da
servidores do Poder Judiciário. Cabe lembrar, ainda, sessão plenária de 22/6/2015 encontra-se disponível
que, no Paraná, em início de 2015, os vencimentos para na Edição n° 891 do Diário Oficial da Assembleia.
os cargos de governador, vice-governador, secretários
de estado e membros da Assembleia Legislativa 22. Reforçando que, no contexto de 2015, ainda não
foram reajustados, tendo por base a Lei Estadual nº havia sido instituído o Comando Sindical Docente.
15.433/2007, que vinculava essas remunerações à esfera A organização das seções sindicais e de SINDIPROL/
federal (no caso do governador, é feita a vinculação ao ADUEL ocorria por um chamado “Fórum dos
salário do ministro presidente do Supremo Tribunal Sindicatos Docentes do Paraná”.
Federal – vice e secretariado seguem um percentual
em cima da remuneração do governador). O salário
de Richa foi reajustado em torno de 15%: passou de R$

notas
29,4 mil para R$ 33,7 mil. O reajuste aos membros da
ALEP, por sua vez, obedeceu a um percentual (75%)
do que percebem os deputados federais. Em 2015,
o reajuste aos deputados estaduais do Paraná foi de
26,3% (AUDI, 2015). No caso do Executivo, Richa,

ANDES-SN n julho de 2023 207


Debates
Debates

ADUNICENTRO. Docentes da UNICENTRO, em assembleia, discutirão greve em


fevereiro e o não início do período letivo. Guarapuava, 29 jan. 2015. Disponível em:
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ADUNIOESTE. Carta aberta da ADUNIOESTE sobre a Reforma da Previdência dos
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AUDI, Amanda. Deputados do PR aumentam salários em 26%. Gazeta do Povo. Curitiba, 28
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DIONÍSIO, Bibiana. Beto Richa e secretários do Paraná receberão dois salários em
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em-fevereiro.html. Acesso em: 17 set. 2022.
GRANZOTO, Tânia Maria. O movimento sindical na academia: o caso das
universidades estaduais paulistas. 2010. Tese (Programas de Pós-Graduação em Educação) -
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.
MARINO, Peterson Alexandre. O Sindicalismo Docente nas Universidades Estaduais do
Paraná: Uma Análise do Período 2011-2018. 2022. Tese (Doutorado em Ciências Sociais
Aplicadas) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2022.
NOGUEIRA, Arnaldo José França Mazzei. A Liberdade Desfigurada: a trajetória do
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208 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


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SINDUEPG. Greve docente conquista avanço na pauta de reivindicações. Ponta Grossa,
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SINDUEPG. Avaliação do Comando de Greve Docente acerca do movimento das IEES
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SINDUNEPAR. Sobre o Termo de Compromisso do Governo Estadual. Paranavaí,
18 jun. 2015a. Disponível em: https://sindunespar.org.br/noticias/sobre-otermo-de-
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Paranavaí, 23 jun. 2015b. Disponível em: https://sindunespar.org.br/todos/
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UEPG. SINDUEPG: sobre o termo de compromisso do governo estadual.
Assessoria de Imprensa, Ponta Grossa, 18 jun. 2015. Disponível em:
https://portal.uepg.br/noticias.php?id=7684. Acesso em: 16 set. 2022.

ANDES-SN n julho de 2023 209


Debates

O desfinanciamento
da ciência
e a autonomia universitária
Daniella Borges Ribeiro
Professora na Universidade Federal de Viçosa (UFV)
E-mail: dborgesribeiro@yahoo.com.br

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir as implicações do desfinanciamento da ciência no


Brasil para o preceito constitucional da autonomia universitária. Trata-se de um estudo ex-
ploratório, bibliográfico e de abordagem qualitativa. A diminuição de recursos públicos para
o desenvolvimento da ciência no Brasil demonstra muito mais que uma crise fiscal durante o
colapso sanitário de 2020; ela revela uma problemática que já estava em curso. Neste cená-
rio, aprofunda-se a disputa pelos recursos do fundo público retirando investimentos financei-
ros essenciais para a condução de políticas como a de ciência, tecnologia e inovação. Tal fato
aprofunda a mercadorização do conhecimento científico e fomenta a ideia das universidades
como campo profícuo para a valorização do capital, o que ameaça princípios como o da auto-
nomia universitária, do ensino laico, público, de qualidade e gratuito.

Palavras-chave: Ciência. Universidade. Autonomia Universitária.

210 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Introdução para desmistificar informações sobre fatos que
necessariamente exigem informações científicas
Este artigo tem como objetivo discutir as implica- ou técnicas e comprometem a compreensão
ções do desfinanciamento da ciência no Brasil para dos cidadãos, as chamadas fakenews. Assim, os
conhecimentos produzidos pelas soft sciences
o preceito constitucional da autonomia universitária.
ou hard science precisaram ser difundidos
Trata-se de uma pesquisa financiada pela Fundação para conter os dados de falsas informações.
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais Pontos que exigiram do CNPq a ampliação de
(FAPEMIG). Configura-se como um estudo explora- ações no que se refere à divulgação científica e
ao apoio aos demais veículos de comunicação
tório, bibliográfico e de abordagem qualitativa.
científica. Por fim, a transformação cotidiana
Neste trabalho, parte-se da concepção de que da humanidade ocorrida por tecnologias
produção de conhecimentos científicos, por meio derivadas do conhecimento científico, tais
da pesquisa, é um elemento indispensável às uni- como telecomunicações com o 5G, transporte
com os carros elétricos, engenharias de
versidades. Como aponta o Relatório de Gestão do
inteligência artificial e computadores quânticos
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e e biotecnologia com as novas terapias gênicas,
Tecnológico (CNPq) de 2022, incumbem ao país grandes desafios ao seu
desenvolvimento e estratégias para redução das
foi notória a necessidade da ciência no contexto desigualdades sociais, cabendo reconhecer a
do cotidiano das pessoas no ano de 2022, quer seja necessidade do investimento em conhecimento
para reduzir as mortes de brasileiros e brasileiras científico nacional para transpor os desafios
acometidos com a pandemia e as endemias, ou futuros (BRASIL, 2022, p. 22).

ANDES-SN n julho de 2023 211


Debates Uma vez reconhecida a importância da ciência foi atendida pela universidade, além da ampliação
para o desenvolvimento do país, importa-nos de- dos recursos financeiros com a criação do Conselho
monstrar como os investimentos do governo federal Nacional de Pesquisas² e da Campanha Nacional de
diminuíram nos últimos anos, contrariando, inclu- Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior³, na
sive, os relatórios institucionais que reconhecem a década de 1950.
necessidade de um robusto investimento em ciên- Esse assunto remonta à clássica função atribuída
cia, tecnologia e inovação. Além disso, pretende-se à universidade, que seria não somente a ministração
discutir possíveis impactos do desfinanciamento da do ensino, mas também a produção de conhecimen-
ciência no Brasil para a materialização do preceito tos por meio da pesquisa científica. É bem verdade
constitucional da autonomia universitária. que nem todas as universidades4 surgiram sob esse
Este artigo está dividido em três partes. Na pri- prisma, como é o caso da instituição de Berlim, uni-
meira, introduzimos o debate sobre a pesquisa cien- versidade mais clássica nesse sentido.
tífica como um dos elementos fundamentais das uni- Consideramos que as concepções alemãs e fran-
versidades. Em seguida, demonstramos alguns dados cesas de universidade influenciaram todo o mundo,
sobre a diminuição dos investimentos públicos em tendo significativo peso na estruturação do ensino
ciência e, por fim, articulamos a compreensão acerca superior no Brasil. Essa forma de ensino (no caso
do desfinanciamento e da autonomia universitária. francês) apresentou uma particularidade, principal-
mente após a abolição das universidades por meio da
Convenção do dia 15 de setembro de 1793, conduzi-
A pesquisa científica como um da por Napoleão Bonaparte. Segundo Paula (2009),
dos elementos fundamentais da as universidades não eram desejadas pelos revolucio-
universidade nários franceses em decorrência do espírito “corpo-
rativo quase medieval nelas existente e da ênfase à
Podemos introduzir o assunto abordando uma crí- cultura clássica, que impedia a entrada das ciências
tica publicada em 1926 por Fernando de Azevedo, no experimentais e do enciclopedismo”. Resumindo, elas
jornal “O Estado de São Paulo”, sobre o ensino supe- eram vistas “como um aparelho ideológico do Antigo
rior implantado no Brasil. Uma das análises realizadas Regime” (PAULA, 2009, p. 72).
pelo jornalista indicava a inexistência de instituições Somente por volta de 1896 foram reorganizadas
dedicadas à “alta cultura” e que realizassem a pesquisa algumas escolas isoladas na França, que, inicialmen-
“livre e desinteressada” (CUNHA, 2007, p. 199). te, se constituíram em faculdades autárquicas. Poste-
A primeira universidade no Brasil foi criada em riormente, com o nome de universidades, formaram
1920, sob o nome de Universidade do Rio de Janeiro uma federação de unidades independentes. Desse
(URJ)¹. Segundo Fávero (s/d), a pesquisa era uma ati- conjunto, ficaram separadas a Escola Politécnica, a
vidade quase inexistente nessa universidade. Tal his- Escola Normal Superior, o Colégio de França, o Insti-
tórico não apresenta grande mudança até os anos de tuto e o Museu de História Natural, o Museu do Ho-
1950, uma vez que as condições para fazer pesquisas mem e o Centre National de la Recherche Scientifique
nas universidades ainda eram precárias. Essa situa- (CNRS). Dessa diferenciação entre as instituições,
ção sofreu significativa alteração quando a reivindi- emergiu uma hierarquia entre as unidades voltadas
cação por tempo integral e pela dedicação exclusiva para a pesquisa científica: as que se dedicavam à for-

212 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


mação das elites intelectuais e as universidades “res- sileiras não é rara, mas enfrenta novos obstáculos e

O desfinanciamento da ciência
ponsáveis por um ensino mais massificado” (PAULA, limitações. No momento corrente, quando o capi-
2009, p. 73), sendo a pesquisa concentrada fora delas. tal busca acelerada reprodução, a universidade está
Nesse cenário, observa-se nas instituições de ensino sendo vista como um campo fundamental para a
superior francesas da época um divórcio entre o en- comercialização e a produção de conhecimentos de
sino e a pesquisa. aplicabilidade imediata e funcional ao capital. Nesse
Na Alemanha a situação foi inversa. O fechamento contexto, por um lado, aprofunda-se a comercializa-
de algumas universidades (como Colônia, Mayence e ção de pesquisas e, por outro, cada vez mais observa-
Trier), como consequência das guerras e da ocupa- -se a diminuição de recursos públicos para o desen-
ção francesa na margem esquerda do Reno, fez com volvimento da ciência.
que a Prússia perdesse toda a sua base intelectual, o
que tornou a criação de uma nova instituição univer-
sitária uma necessidade (TRINDADE, 1999). O desfinanciamento da ciência
Desse interesse foi criada, em 1810, a Universida- no Brasil
de de Berlim, tendo em seu fundador, Guilhermo de
Humboldt, os ideais necessários para se constituir Nesses últimos anos muitas foram as notícias
como uma instituição que concebia a indissociabili- informando sobre a redução dos investimentos pú-
dade entre o ensino e a pesquisa. Além disso, tinha blicos em ciência. Para fins de informação, algumas
destaque na universidade a importância de a Facul- dessas notícias serão reproduzidas a seguir.
dade de Filosofia, Ciências e Letras ser um órgão Segundo dados levantados por Dellagostin (2021),
articulador, por excelência, dos diversos campos do em 2014, 41,9% dos discentes matriculados no dou-
saber. Humboldt afirmava que o trabalho científico torado tinham bolsa CAPES. Esse percentual se man-
deveria ser “livre de quaisquer tipos de injunções e teve em 2015 e, a partir de 2016, caiu drasticamen-
pressões, tais como do Estado, da Igreja e de outras te, registrando, em 2020, o percentual de 36,2% dos
demandas externas ao campo acadêmico universitá- doutorandos com bolsa CAPES.
rio” (PAULA, 2003, p. 55). Segundo a concepção ale-
mã, a universidade “deveria ser autônoma, embora
Uma vez reconhecida a importância da ciência para
sua existência dependa economicamente do Estado”
o desenvolvimento do país, importa-nos demonstrar
(PAULA, 2003, p. 55).
como os investimentos do governo federal diminuíram
Nesse influxo, a Universidade de Berlim emergiu
nos últimos anos, contrariando, inclusive, os relatórios
como um “centro da luta pela hegemonia intelectu- institucionais que reconhecem a necessidade de um
al e moral na Alemanha” (TRINDADE, 1999, p. 17). robusto investimento em ciência, tecnologia e inovação.
Para Trindade (1999), esse movimento iniciado em
Berlim produziu “a recuperação progressiva das uni-
versidades alemãs entre 1810 e 1820, dentro de uma Em relação à distribuição das bolsas CAPES para
concepção [...] que se estrutura pela indivisibilidade o mestrado, Odir Dellagostin (2021, p. 8) afirma que
do saber e do ensino e pesquisa, contra a ideia das
escolas profissionais napoleônicas” (TRINDADE, de 2000 a 2007, o percentual oscilou entre
19,2% e 23,5%. De 2008 a 2014, o percentual de
1999, p. 18).
alunos com bolsa CAPES praticamente dobrou,
Foi essa concepção ideal inaugurada pela Universi- alcançando 42,1% dos alunos matriculados.
dade de Berlim que levou alguns estudiosos a critica- Em números absolutos, o ano de 2015 foi o ano
rem as emergentes universidades no Brasil, onde a pes- em que a CAPES concedeu o maior número de
quisa, até por volta de 1934, era rara (MINTO, 2008). bolsas de mestrado, alcançando 49.353. De lá
para cá, o número de bolsas sofreu uma redução,
Se naqueles tempos a crítica referia-se à raridade
enquanto o número de matrículas continuou
das pesquisas, atualmente podemos afirmar que a aumentando, reduzindo o percentual de alunos
produção de conhecimentos nas universidades bra- de mestrado com bolsa CAPES para 34%.

ANDES-SN n julho de 2023 213


Debates Essa tendência de diminuição de recursos para buscar empregos que, embora com salários
bolsas de pesquisa (com ênfase no período poste- modestos, geralmente são superiores aos
valores das bolsas. [...] Estamos sob a ameaça
rior a 2016) também foi verificada no CNPq. A re-
de um grande apagão de intelligentsia pela
dução brusca de recursos resultou no não alcance impossibilidade de formação de novos talentos.
das metas estipuladas pelo CNPq. Segundo os rela- Por exemplo: os estudantes que conseguem
tórios de gestão da agência, as metas definidas para se sustentar com a bolsa de doutorado, ao se
titularem, encontram outra situação dramática.
distribuição das modalidades das bolsas não foram
A escassez de oportunidades na área acadêmica,
satisfatoriamente alcançadas, com maior prejuízo o baixo valor da bolsa de pós-doutorado e a
nos anos de maior corte orçamentário (2020 e 2021) crise no financiamento da pesquisa forçam esses
(BRASIL, 2021). pesquisadores a buscar formas de subempregos
ou, mais grave que isso, oportunidades em
outros países.

Depreende-se do exposto, e das várias notícias e artigos De acordo com um estudo realizado pela econo-
científicos disponíveis sobre o tema, que o corte de inves- mista Fernanda De Negri, a ciência e tecnologia re-
timentos em ciência e tecnologia foi anterior à eclosão
cebeu o maior investimento financeiro em 2013 (R$
da crise sanitária do contexto da pandemia da Covid-19.
27,3 bilhões), mas, desde 2015, as verbas federais
Ou seja, já estava em curso no Brasil um processo de
vêm reduzindo os investimentos significativamente
desfinanciamento de políticas públicas essenciais para a
(IPEA, 2021). Depreende-se do exposto, e das várias
melhoria de vida da população.
notícias e artigos científicos disponíveis sobre o tema,
que o corte de investimentos em ciência e tecnologia
foi anterior à eclosão da crise sanitária do contex-
É possível verificar não apenas a diminuição da
to da pandemia da Covid-19. Ou seja, já estava em
quantidade de bolsas, mas também a defasagem dos
curso no Brasil um processo de desfinanciamento de
seus valores até o mês de fevereiro de 2023, quando o
políticas públicas essenciais para a melhoria de vida
governo federal anunciou o reajuste. De acordo com
da população. Como o próprio Relatório de Gestão
Davidovich et al (2022, s/p),
do CNPq de 2021 afirma, “o cenário de gastos do go-
nas últimas três décadas, o valor das bolsas verno federal como um todo passou a sofrer fortes
nunca atingiu um nível tão baixo! Em 1995, restrições a partir de 2015, principalmente em fun-
por exemplo, uma bolsa de doutorado era de
ção da Emenda Constitucional nº 95/2016” (BRASIL,
R$ 1.073, o que correspondia a dez salários-
mínimos à época e possibilitava a aquisição de 2021, p. 39,40), o que demonstra que essa política de
12 cestas básicas. Sem reajuste até 2003, o poder “ajuste fiscal” já estava em curso antes da pandemia
aquisitivo e a relação com o salário-mínimo da Covid-19.
caíram pela metade. De 2003 a 2013 houve Tal situação foi agravada na pandemia, momento
quatro reajustes, elevando o valor nominal a R$
em que o governo optou por fortalecer a política de
2.200, o que equivalia a quatro salários-mínimos
e seis cestas básicas. Não há nenhum reajuste austeridade fiscal. Prova disso foi que o Estado bra-
desde março de 2013! [...] As consequências sileiro continuou cortando recursos, sendo que “as
da defasagem no valor das bolsas afetam não perdas com cortes orçamentários em fomento à pes-
somente os bolsistas, mas a ciência brasileira,
quisa científica e tecnológica nos últimos sete anos
tornando insustentável seu desenvolvimento. A
pós-graduação vem perdendo sua capacidade de chegam a R$ 83 bilhões, até 2021” (Agência Câmara
atrair bons alunos. Os estudantes têm preferido de Notícias, 2022, p. 1).

214 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


Algumas implicações do uma das características mais importantes da

O desfinanciamento da ciência
evolução institucional das universidades (e
desfinanciamento da ciência estabelecimentos conexos) na época moderna é
para a autonomia universitária o controle cada vez mais estrito exercido sobre
elas pelos poderes políticos. As universidades
Consideramos que este debate articula também mais antigas e mais importantes, como Paris,
com o debate sobre o princípio da autonomia uni- conservaram um mínimo de autonomia, pelo
menos no que se refere à gestão cotidiana.
versitária, em especial, da autonomia científica. Se
Porém, todos os soberanos, mesmo nos
a produção de conhecimentos é, muitas vezes, dire- pequenos principados alemães, impuseram à
cionada pelos anseios capitalistas, faz sentido a nossa atividade universitária quadros regulamentares
preocupação sobre o grau de autonomia presente na estritos. [...] A interferência do Estado nas
universidades foi facilitada pelo fato de este
universidade para o exercício de decisões autônomas
tomar cada vez mais para si os salários dos
sobre o que, por que, para que e para quem pesquisar. regentes e a construção dos prédios, algumas
A disputa pela autonomia e os diferentes significa- vezes suntuosos. Mas, fora os grandes colégios
dos dados a essa palavra aparecem como uma questão ingleses ou algumas universidades bem-dotadas
de terras ou de rendas, como a de Salamanca,
fundamental desde o surgimento das universidades.
eram de fato raras as instituições que dispunham
Charle e Verger (1996) apontam dois traços comuns de recursos próprios suficientes (CHARLE;
ao conjunto das primeiras instituições universitárias. VERGER, 1996, p. 45).
O primeiro é a dependência em relação ao movimento
associativo, que era forte no início do século XIII. De Assim, na Idade Média, as universidades tentaram
acordo com os autores, “em toda parte, mestres e/ou conquistar a sua autonomia perante a Igreja, uma vez
estudantes reuniram-se para constituir uma ‘universi- que a instituição universitária estruturava-se sob o
dade’ juramentada”. Eles também se organizaram para seu controle. Já a partir do século XV, com a emer-
“regulamentar o exercício autônomo da atividade, que gência dos estados nacionais, a submissão da univer-
era a própria razão de ser de sua associação, a saber, o sidade ao Estado levou à reivindicação por autono-
estudo e o ensino” (CHARLE; VERGER, 1996, p. 19). mia frente ao poder estatal (PAULA, 2012).
Como segundo traço, os estudiosos citam que as No caso brasileiro, as discussões que envolvem o
“universidades saíram deliberadamente do estreito conceito de autonomia universitária antecedem até
quadro diocesano que era o das escolas anteriores” mesmo a criação das primeiras universidades (RA-
(CHARLE; VERGER, 1996, p. 19). Embora reconhe- NIERI, 2013), sendo esse preceito incorporado pela
cidas como instituições eclesiásticas, elas passaram Constituição Federal de 1988. Ocorre que a concep-
cada vez mais para o controle das cidades e dos es- ção de autonomia tem sido fonte de disputas cons-
tados que necessitavam formar quadros de funcioná- tantes, fomentando divergências em seu entendi-
rios e construir uma ideologia conveniente ao nasci- mento, o que impacta diretamente nas possibilidades
mento e fortalecimento do Estado Moderno. Dessa de sua materialização.
união de interesses, a universidade passou a ser cada Ao discutir o preceito de autonomia, Ranieri (2013)
vez mais controlada pelo poder político, sendo exem- esclarece que esta palavra tem origem grega, compos-
plo desse controle a intervenção na nomeação de ta pelos radicais auto (que significa próprio, peculiar)
professores e seleção de estudantes (CHARLE; VER- e nomia (que significa lei, regra), o que designa a ideia
GER, 1996). Nesse sentido, os autores apontam que de direção própria. De acordo com a autora:

ANDES-SN n julho de 2023 215


Debates Retomando os conceitos expedidos, temos entendida nessa perspectiva, a autonomia
que, autonomia, de maneira genérica, exprime didático-científica da universidade implica
a ideia de “direção própria”, dentro de limites liberdade de: a) estabelecer seus objetivos,
preestabelecidos [...] Hoje, no direito público, organizando o ensino, a pesquisa e a extensão
a autonomia pode ser conceituada como poder sem quaisquer restrições doutrinárias ou
funcional derivado, circunscrito ao peculiar políticas; b) definir linhas de pesquisa; c) criar,
interesse da entidade que o detém e limitado organizar e extinguir cursos; d) elaborar o
pelo ordenamento que lhe deu causa, sem o qual calendário escolar; e) fixar critérios e normas
ou fora do qual não existiria. Não é, portanto, de seleção, admissão e promoção; e f) outorgar
soberania, mas poder derivado; e, quando graus, diplomas, certificados e outros títulos
atribuído a uma instituição pública, não implica acadêmicos. Na mesma linha, do ponto de vista
liberdade absoluta, uma vez que a autonomia administrativo, as universidades têm plena
é restrita ao peculiar interesse da entidade liberdade de: a) organizar-se internamente,
(RANIERI, 2013, p. 37). estabelecendo suas instâncias decisórias
na forma que lhes aprouver; b) elaborar e
reformular seus estatutos; e c) estabelecer
Dessa explicação depreende-se que a universi-
seu quadro de pessoal em articulação com o
dade tem o direito de regular a si própria, mas sem Ministério ou Secretaria a que esteja vinculada.
ultrapassar os limites constitucionais. Ranieri (2013) A terceira dimensão refere-se à autonomia de
adota uma distinção interessante entre autonomia e gestão financeira e patrimonial, que, no caso
das instituições públicas, significa: a) outorgar
soberania, sendo este um conceito que designa o po-
competência à universidade para propor e
executar o seu orçamento; b) receber os recursos
que o poder público é obrigado a repassar-lhe
Depreende-se que a diminuição de recursos para o desen- para pagamento de pessoal e despesas de capital
volvimento da ciência limita a autonomia das universida- e outros custeios; c) gerir seu patrimônio, receber
des, que passam a captar recursos no setor privado. Nesse doações e subvenções; e d) realizar operações de
aspecto, merece destaque também a mercadorização do crédito ou de financiamento com a aprovação
do poder público competente (FÁVERO, 1997,
ensino e dos resultados da pesquisa. Assim, os resultados
p. 11, grifos nossos).
científicos que poderiam beneficiar a todos passam a pri-
vilegiar uma pequena parcela da população.
A partir do exposto, indicamos que a autonomia
universitária, como pontuam Ranieri (2013) e Fáve-
der político de uma nação ou de um Estado, capaz de ro (1997), enfrenta dificuldades para se materializar
regular interna e externamente as suas ações, como nas universidades brasileiras. Em sua reflexão, Fáve-
uma personalidade internacional. Segundo Cury ro (1997) assinala que “se por um lado nunca houve
(1991), é por isso que o artigo 207 da Constituição no país a autonomia universitária em sentido pleno
de 1988 não engloba no conjunto dos elementos que [...], por outro observa-se que existe, de forma cada
compõe a autonomia universitária a autonomia polí- vez mais consciente, uma luta pela construção efetiva
tica, pois a universidade não é uma nação, nem um dessa autonomia” (FÁVERO, 1997, p. 11).
Estado. Os elementos da autonomia universitária, Assim, os debates sobre o conceito de autonomia
conforme a Constituição de 1988, são autonomia universitária estão longe de consensos. Contudo, ob-
didático-científica, administrativa e de gestão finan- servando as contradições e o movimento do real, e ao
ceira e patrimonial (BRASIL, 1988). levarmos em consideração a luta de classes e a corre-
De forma sucinta, podemos afirmar que “a au- lação de forças nas sociedades capitalistas, podemos
tonomia universitária, tal como dispõe o art. 207, é considerar que a autonomia é sempre relativa (RA-
um modo de ser institucional e exige liberdade para NIERI, 2013), ou seja, a universidade pode ter maior
a universidade se autodeterminar” (FÁVERO, 1997, ou menor grau de autonomia a depender das correla-
p. 11). Para a autora, ções de forças entre os diferentes interesses apresen-

216 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


tados pelas distintas classes sociais. Além disso, no que, em último grau, também define o financiamen-

O desfinanciamento da ciência
cenário contemporâneo, reivindica-se a autonomia to. Sobre a autonomia administrativa, o autor argu-
não só em relação ao Estado e à Igreja, mas também menta que esta “já nasceu condenada”, pois a decisão
em relação ao mercado. última na escolha do reitor, por exemplo, cabe ao go-
Minto (2008), ao estudar a política de educação vernador, que referenda a escolha mediante lista trí-
para o ensino superior das universidades estaduais plice. Por último, menciona que a autonomia de ges-
paulistas (USP, UNESP e UNICAMP), ressalta que as tão financeira e patrimonial não significa autonomia
“reformas” ocorridas a partir dos anos de 1990 im- financeira. Ao contrário, cabe ao Estado o repasse de
pediram uma maior concretização do princípio da recursos financeiros e a sua gestão à universidade. O
autonomia universitária nessas instituições de ensi- autor lembra que “possuir autonomia para gerir é di-
no. Para reafirmar sua posição, o autor alega que, no ferente de ter acesso a todos os recursos necessários a
âmbito da autonomia didático-científica, é possível uma efetiva autonomia” (MINTO, 2008, p. 86).
apontar o modo de financiamento e a avaliação das A partir dessa análise, observamos como o con-
pesquisas como formas de ferir o preceito da autono- ceito de autonomia também foi apropriado pelas cor-
mia, uma vez que os recursos fornecidos pelas agên- rentes conservadoras, que disseminam a ideia de que
cias de fomento à pesquisa são alocados em menor esse preceito constitucional significa a autonomia
medida nas ciências humanas. Além disso, destacou que a universidade possui para captar recursos finan-
que a avaliação dos cursos é feita por critérios de ceiros no mercado. Ou seja, trata-se de uma concep-
produtividade com ênfase em dados quantitativos, o ção que respalda as contrarreformas desenvolvidas
no sentido da desresponsabilização do Estado no
provimento do direito à educação (CHAUÍ, 2001).
Depreende-se que a diminuição de recursos para
o desenvolvimento da ciência limita a autonomia das
universidades, que passam a captar recursos no setor
privado. Nesse aspecto, merece destaque também a
mercadorização do ensino e dos resultados da pes-
quisa. Assim, os resultados científicos que poderiam
beneficiar a todos passam a privilegiar uma pequena
parcela da população.

Considerações finais

A diminuição de recursos públicos para o desen-


volvimento da ciência no Brasil demonstra muito
mais do que uma crise fiscal durante o colapso sani-
tário de 2020. Ela revela uma crise que já estava em
curso. Nesse cenário, aprofunda-se a disputa pelos

ANDES-SN n julho de 2023 217


Debates recursos do fundo público, retirando investimentos
financeiros essenciais para a condução de políticas
como a de ciência, tecnologia e inovação. Tal fato
aprofunda a mercadorização do conhecimento cien-
tífico e fomenta a ideia das universidades como cam-
po profícuo para a valorização do capital, algo que
ameaça princípios como o da autonomia universitá-
ria, do ensino laico, público, de qualidade e gratuito.
Observa-se que a política do Estado brasileiro tem
exercido uma pressão cada vez maior sobre as uni-
versidades para que estas funcionem como os setores
empresariais. Os programas de pós-graduação, ao se
inserirem nessa lógica, tornam-se competitivos no
fito de recursos. Assim, podemos afirmar que o go-
verno brasileiro, com o apoio dos organismos inter-
nacionais, direcionou a produção de conhecimentos
para uma forma essencialmente utilitária, buscando
não apenas o retorno econômico, mas também a sus-
tentação da universidade mediante recursos privados.
De acordo com o Relatório de Gestão do CNPq
(2022, p. 22),

o Brasil, 13ª economia do mundo, ocupa a 54ª


posição no índice global de inovação e a 59ª
posição no índice de competitividade global,
possuindo somente 900 pesquisadores por
milhão de habitantes, número insuficiente, 1. Ela foi designada Universidade do Brasil (UB)
comparado aos países da OCDE, que têm a pela Lei nº 452/37 e, em 1965, recebeu o nome de
média de 4 mil; Israel e Coreia do Sul possuem Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
cerca de 8 mil. Portanto, seria necessário um (FÁVERO, s/d).
maior crescimento do Brasil nesse sentido para
alcançar os mesmos níveis de desenvolvimento 2. Atualmente Conselho Nacional de Desenvolvimento
desses citados. Essa necessidade incumbe ao Científico e Tecnológico (CNPq).
CNPq a missão de aumentar seus investimentos
3. Atualmente Coordenação de Aperfeiçoamento de
no ambiente de pesquisa, dentro da estratégia
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
nacional, e aumentar a recuperação nos valores
defasados das bolsas de pesquisas, que são 4. Segundo Charle e Verger (1996, p. 7-8), “se
instrumentos necessários para a ampliação aceitarmos atribuir à palavra universidade o sentido
da geração de conhecimento e aplicação em relativamente preciso de ‘comunidades (mais ou
território nacional. menos) autônomas de mestres e alunos reunidos
para assegurar o ensino de um determinado número
de disciplinas em um nível superior’, parece claro
Nesse sentido, cabe-nos, para os próximos anos, a
que tal instituição é uma criação específica da
defesa de recursos públicos para a ciência e a distri- civilização ocidental, nascida na Itália, na França e
buição de seus resultados para toda a população bra- na Inglaterra, no início do século XIII”. Como não
há uma data precisa para informar o surgimento
sileira. É preciso aumentar o número de pesquisado-
dessas instituições, Trindade (1999) afirma que
res/as, a quantidade de bolsas, os recursos para apoio elas nasceram no século XII. Controvérsias à parte,
a pesquisas, entre outros, de forma a fazer frente aos apontamos como instituições que mais se destacaram
as universidades de Bolonha (1190), Paris (1215) e
grandes problemas que assolam o país.
Oxford (1249) (PAULA, 2009).

218 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


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1988. 2 ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2013.
TRINDADE, Hélgio. Universidade, ciência e Estado. In: ______. Universidade em ruínas: na
república dos professores. Petrópolis: Vozes, Rio Grande do Sul: CIPEDES, 1999. p. 9-23.

220 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


UNIVERSIDADE E SOCIEDADE está aberta à colabo- em Word, fonte Times New Roman, tamanho 12, em

Objetivos e Normas da Revista Universidade e Sociedade


ração de docentes e profissionais interessados(as) espaço 1,5, sem campos de cabeçalhos ou rodapés,
na área e que desejam compartilhar seus estudos e com margens fixadas em 1,5 cm em todos os lados;
pesquisas com os(as) demais. Os textos serão anali- as resenhas devem conter no máximo 2 páginas, um
sados na modalidade double blind review. breve título e a referência completa da obra rese-
nhada - título, autor(es), edição, local, editora, ano
Objetivos da publicação e número de páginas;
1.2 - O título deve ser curto, seguido do nome, titula-
· Constituir-se em fórum de debates de questões que ção principal do(a) autor(a), bem como da instituição
dizem respeito à educação superior brasileira, tais a que está vinculado(a) e de seu e-mail para contato;
como: estrutura da universidade, sistemas de ensi- 1.3 - Após o título e a identificação do(a) autor(a),
no, relação entre universidade e sociedade, política deve ser apresentado um resumo de, aproximada-
universitária, política educacional, condições de tra- mente, 10 linhas (máximo 1.000 caracteres), indican-
balho etc.; do os aspectos mais significativos contidos no texto,
· Oferecer espaço para apresentação de propostas bem como o destaque de palavras-chave;
e sua implementação, visando à instituição plena da 1.4 - As referências bibliográficas e digitais devem
educação pública e gratuita como direito do cidadão ser apresentadas, segundo as normas da ABNT
e condição básica para a realização de uma socie- (NBR 6023 de nov. de 2018), no fim do texto. Deverão
dade humana e democrática; constar apenas as obras, sítios e demais fontes men-
· Divulgar trabalhos, pesquisas e comunicações de cionadas no texto. As citações, em língua portugue-
caráter acadêmico que abordem ou reflitam ques- sa, também devem seguir as normas da ABNT (NBR
tões de educação pública e gratuita de ensino e 10520 de ago. de 2002);
aprendizagem, cultura, artes, ciência e tecnologia; 1.5 - As notas, se houver, devem ser apresentadas,
· Divulgar as lutas, os esforços de organização e as no final do texto, numeradas em algarismos arábi-
realizações do ANDES-SN; cos. Evitar notas extensas e numerosas;
· Permitir a troca de experiências, o espaço de refle-
xão e a discussão crítica, favorecendo a integração 2 - Os conceitos e afirmações contidos no texto, bem
dos docentes; como a respectiva revisão vernacular, são de res-
· Oferecer espaço para a apresentação de experiên- ponsabilidade do(a) autor(a);
cias de organização sindical de outros países, espe-
cialmente da América Latina, visando à integração e 3 - O(a) autor(a) deverá apresentar seu minicurrícu-
à conjugação de esforços em prol de uma educação lo (cerca de 10 linhas), no final do texto, e informar
libertadora. endereço completo com CEP, telefones e endereço
eletrônico (e-mail), para contatos dos editores;
Instruções gerais para o envio de textos
4 - O prazo final de envio dos textos antecede, em
Os artigos e resenhas deverão ser escritos de acor- aproximadamente três meses, as datas de lança-
do com as normas do novo Acordo Ortográfico da mento do respectivo número da Revista, que sempre
Língua Portuguesa, conforme o Decreto 6.583, de 29 ocorre durante o Congresso ou o CONAD, em cada
de setembro de 2008. ano. A Secretaria Nacional do ANDES-SN envia, por
Os artigos e resenhas enviados à Universidade e So- circular, as datas do período em que serão aceitas
ciedade serão submetidos à Editoria Executiva e aos as contribuições, bem como o tema escolhido para a
conselheiros ad hoc. Universidade e Sociedade reser- edição daquele número;
va-se o direito de proceder a modificações de forma e
sugerir mudanças para adequar os artigos e resenhas 5 - Todos os arquivos de textos deverão ser enca-
às dimensões da revista e ao seu padrão editorial. minhados como anexos de e-mail, utilizando-se o
endereço eletrônico: andessp@andes.org.br;
1 - Os textos devem ser inéditos, observadas as se-
guintes condições: 6 - Artigos e resenhas publicadas dão direito ao re-
cebimento de um exemplar.
1.1 - Os artigos devem ter uma extensão máxima de
15 páginas (cerca de 40 mil caracteres), digitados

ANDES-SN n julho de 2023 221


EXECUTIVA NACIONAL REGIONAL NORDESTE I

PRESIDENTA 1ª VICE-PRESIDENTA
Diretoria do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior -

Rivânia Lucia Moura de Assis (UERN) Sambara Paula Francelino Ribeiro (UECE)
1º VICE-PRESIDENTE 2º VICE-PRESIDENTE
Milton Pinheiro (UNEB) Cláudio Anselmo de Souza Mendonça (UFMA)
2ª VICE-PRESIDENTA 1º SECRETÁRIO
Zuleide Fernandes de Queiroz (URCA) Gisvaldo Oliveira da Silva (UESPI)
SECRETÁRIA GERAL 1º TESOUREIRO
Maria Regina de Avila Moreira (UFSC) Luiz Eduardo Neves dos Santos (UFMA)
2ª SECRETÁRIA 2º TESOUREIRO
Francieli Rebelatto (UNILA) Carlos Diego Rodrigues (UFC)
3º SECRETÁRIO
Luiz Henrique dos Santos Blume (UESC) REGIONAL NORDESTE II
1º TESOUREIRO
Amauri Fragoso de Medeiros (UFCG) 1ª VICE-PRESIDENTA
Cristine Hirsch (UFPB)
3ª TESOUREIRA
Jennifer Susan Webb Santos (UFPA) 2º VICE-PRESIDENTE
Alexsandro Donato Carvalho (UERN)

REGIONAL NORTE I 1º SECRETÁRIO


Nelson Aleixo da Silva Júnior (UEPB)
2º VICE-PRESIDENTE 2ª SECRETÁRIA
José Sávio da Costa Maia (UFAC) Jusciane da Costa e Silva (UFERSA)
1ª SECRETÁRIA 1º TESOUREIRO
Marilsa Miranda de Souza (UNIR) Marco Antonio Fidalgo Amorim (UFPE)
1ª TESOUREIRA 2º TESOUREIRO
Ana Lucia Silva Gomes (UFAM) Cauê Guion de Almeida (ADUFERPE)

REGIONAL NORTE II REGIONAL NORDESTE III

1ª VICE-PRESIDENTA 1º VICE-PRESIDENTE
Joselene Ferreira Mota (UFPA) Marcos Antonio Tavares Soares (UESB)
2º VICE-PRESIDENTE 1ª SECRETÁRIA
Rigler da Costa Aragão (UNIFESSPA) Zózina Maria Rocha de Almeida (UNEB)
1ª SECRETÁRIA 2ª SECRETÁRIA
Zaira Vakeska Dantas da Fonseca (UEPA) Reinalda Souza Oliveira (UEFS)
2ª SECRETÁRIA 2º TESOUREIRO
Sueli Pinheiro da Silva (UEPA) Carlos Vitório de Oliveira (UESC)
ANDES-SN - Gestão 2020-2022

1ª TESOUREIRA
Andréa Cristina Cunha Matos (UFPA)
2ª TESOUREIRA
Dulcideia da Conceição (UFRA)

222 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


REGIONAL PLANALTO REGIONAL SÃO PAULO

1ª VICE-PRESIDENTA 1º VICE-PRESIDENTE
Neila Nunes de Souza (UFT) Osvaldo Luis Angel Coggiola (USP)
2º VICE-PRESIDENTE 2ª VICE-PRESIDENTA
Luis Augusto Vieira (UFG) Ana Paula Santigo do Nascimento (UNIFESP)
1º SECRETÁRIO 1ª SECRETÁRIA
Fernando César Paulino Pereira (UFG-Catalão) Michele Schultz Ramos (USP)
2º SECRETÁRIO 2º SECRETÁRIO
Paulo Henrique Costa Mattos (UNIRG) Eduardo Pinto e Silva (UFSCAR)
2ª TESOUREIRA 1º TESOUREIRO
Helga Maria Martins de Paula (UFG-Jataí/UFJ) César Augusto Minto (USP)
2ª TESOUREIRA
REGIONAL PANTANAL Débora Burini (UFSCAR)

1ª VICE-PRESIDENTA
Raquel de Brito Sousa (UFMT) REGIONAL SUL

2ª VICE-PRESIDENTA 1º VICE-PRESIDENTE
Adma Cristhina Salles de Oliveira (UEMS) Edmilson Aparecido da Silva (UEM)
2º SECRETÁRIO 1º SECRETÁRIO
Cláudio Freire de Souza (UFGD) Fernando Correa Prado (UNILA)
1º TESOUREIRO 1º TESOUREIRO
Breno Ricardo Guimarães Santos (UFMT) Altemir José Borges (UTFPR)
2º TESOUREIRO 2º TESOUREIRO
Luís Antônio Shigueharu Ohira (UNEMAT) Gilberto Grassi Calil (UNIOESTE)

REGIONAL LESTE
REGIONAL RIO GRANDE DO SUL
1º VICE-PRESIDENTE
1º VICE-PRESIDENTE
Mario Mariano Ruiz Cardoso (UFVJM)
Carlos Alberto da Fonseca Pires (SEDUFSM)
1º SECRETÁRIO
2ª VICE-PRESIDENTA
Gustavo Seferian Scheffer Machado (UFMG)
Manuela Finokiet (IFRS)
1º TESOUREIRO
1º SECRETÁRIO
Ricardo Roberto Behr (UFES)
Cesar André Luiz Beras (UNIPAMPA)
2ª TESOUREIRA
2ª SECRETÁRIA
Clarissa Rodrigues (UFOP)
Sueli Maria Goulart Silva (UFRGS)
2ª TESOUREIRA
REGIONAL RIO DE JANEIRO Flávia Carvalho Chagas (UFPEL)

1ª VICE-PRESIDENTA
Elizabeth Carla Vasconcelos Barbosa (UFF)
2ª VICE-PRESIDENTA
Rosineide Cristina de Freitas (UERJ)
2º SECRETÁRIO
Markos Klemz Guerrero (UFRJ)
1ª TESOUREIRA
Sonia Lucio Rodrigues de Lima (UFF)

ANDES-SN n julho de 2023 223


Endereços da Sede Nacional e dos Escritórios Regionais SEDE NACIONAL
Setor Comercial Sul (SCS), Quadra 2, Edifício Cedro II, 5º andar, Bloco C - Brasília - DF - CEP 70302-914
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224 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #72


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UNIVERSIDADE e SOCIEDADE #72

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