Ferro em Brasa
Ferro em Brasa
Ferro em Brasa
J. SILVA
LIVREMENTE INSPIRADO
NA OBRA DE ANTÔNIO SAMPAIO
AÇÃO
PORTUGAL
ÉPOCA
1930
ELENCO
João o ferrador
Júlio fidalgo
Leonardo avozinho
Bento campônio
Manoel boticário
Camponês cômico
Margarida esposa de João
Judith filha do ferrador
Tia Emília portuguesa
PRIMEIRO ATO
SALA SIMPLES EM CASA DE JOÃO,
O FERRADOR
JUDITH fora
Já vou, mãezinha.
JUDITH fora
Já vou, mãezinha.
JUDITH entrando
Foi! Mas como chegou tarde, ficou para a missa das dez.
O paizinho saiu?
MARGARIDA Era mais certo caminhar as duas léguas para cá e para lá, do
que deixar de dormir em casa.
JUDITH Mãezinha, eu vou buscar flores para pôr na jarra. É mais alegre.
JUDITH Doces?
JOÃO Doces, vinho do Porto e alguma coisa mais. Quero que o teu
futuro marido saiba que aqui também se sabe receber gente
fina.
JUDITH Guloso.
ri. Sai
JOÃO Se soubesses como me sinto feliz com a sua alegria. Não sei
por que, Margarida, mas acho um encanto tal em nossa filha que,
às vezes, deixo o que estou fazendo só para contemplá-la.
MARGARIDA Desconfio muito que esta alegria seja por pouco tempo. João,
tenho um pressentimento de que este casamento será a
desgraça de nossa filha.
MARGARIDA Já sei que não me dás razão. Primeiro está a vontade de tua
filha.
JOÃO Mau, mau. Olha que eu hoje não quero me zangar. Que mania.
MARGARIDA Porque tu, para não contrariar Judith, é capaz das maiores
tolices.
JOÃO canta
Tra... Lá... Lá... Lá... Lá.
JOÃO Anda cá, ó Judith. Atura tu essa matraca, que eu vou levar isto
lá para dentro.
sai levando os embrulhos
EMÍLIA fora
Olá, pode-se entrar?
EMÍLIA entrando
Ora, seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo. Onde está
essa gente?
JUDITH Mãezinha!
EMÍLIA Também, o que tens tu com isso? O nariz é dele, e ele pode
enfiar onde quiser.
JUDITH E eu ajudo.
EMÍLIA Já sei que Margarida nos vai dar hoje uns bons petiscos.
MARGARIDA Nenhum.
JOÃO Sim. Mas bem sabes o quanto nossa lha gosta dele. Contraria-
la seria talvez funesto. Na idade de nossa filha uma paixão é
muito perigosa. Depois seria o maior sacrifício de minha vida,
ter de aborrecê-la. Só a ideia de que a veria triste, tira-me
completamente o desejo de ir contra sua vontade.
JOÃO Além disso, é um rapaz muito distinto. Não vejo motivo para
esta sua cisma.
16
MARGARIDA Pois é isso mesmo. É no demais. Acho-o muito fidalgo para
marido de nossa filha.
JOÃO O fato de o rapaz ser filho de fidalgos não vem ao caso. Porque
minha filha bem que seja filha de um ferrador é muito digna.
Quer saber o que mais? Não falemos mais nisso. Vai
descansar, que daqui a pouco deve vir gente de fora.
JOÃO Eu não. Mas o teu pai disse que vinha lá com os seus parceiros
da sueca. Vê lá que não vá faltar comida.
EMÍLIA
reparando
Olha como ele está janota. Flor ao peito. Bravo!
Virou conquistador?
MANOEL
Pronto. Desmanchou o casamento.
EMÍLIA
dramática
Traidor, que assim quebrastes o nosso juramento.
LEONARDO dramático
Perdão. Perdão para um desgraçado.
EMÍLIA
dramática
Nunca.
JUDITH
do fundo
Paizinho, aí vem o Júlio.
JOÃO
Vamos recebê-lo.
vão ao fundo
EMÍLIA
Eu vou pôr a comida na mesa.
sai
JÚLIO a Judith
Ah! Estava se escondendo? Folgo em vê-la alegre e
encantadora.
reparando em volta
Olá, o Senhor Leonardo por aqui? Como vai o bom velhinho?
EMÍLIA entrando
Não. Não sente não. Estão todos com fome, e a comida
está esfriando. Vamos para a mesa.
LEONARDO imitando-a
Oh! Vovozinho! Vovozinho! Ha! Ha! Ha! Vamos lá. Vem cá e
dá mais um beijinho em teu avozinho.
JUDITH beijando-o
Meu rico avozinho!
CORTINA
JOÃO Vai-te embora, homem, e diz lá a teu amo que se não fosse por
quem é, bem que o animal voltava descalço.
CAMPONÊS Sim, senhor. Mas está tão cedo não precisa de sapatos novos.
JOÃO Está bem, homem. Vai-te embora. Há mais de duas horas que
estás aí a falar.
CAMPONÊS Isto é de família, mestre João. Meu avô morreu a falar. Meu
pai nasceu a falar, e eu acho que já falava antes de nascer.
JOÃO Deus te dê miolo meu rapaz, que é o que te falta. Vai rapaz.
Vai a teu serviço.
JOÃO Conforme. Se for um animal que trabalhe muito pode durar por
uns seis meses. Agora se for uma besta, um burro, como tu, dura menos.
MARGARIDA Em quê? Pois não viste logo que era fidalgo demais para ser
marido de nossa filha?
MARGARIDA Pois sim. Mas o casamento devia efetuar-se três meses depois
do pedido, já lá vão seis. Agora está por quinze dias.
Mas parece-me que ainda não será esta vez.
MARGARIDA Mas minha fiha é que não pode ficar assim exposta a falatórios
dos vizinhos. Já falam. Só se escutam comentários que nada honram a nossa casa.
MARGARIDA Será assim. Mas que ele não está procedendo como homem de
bem, não está!
MARGARIDA Arrufos? Não acredite que, por simples questões, nossa filha
chegasse aquele estado. Alguma coisa de mais importante há de haver.
.
MARGARIDA Dela não, que é uma pobre inocente. Mas dele que não se
introduziu nesta casa, senão para trazer a desgraça.
MARGARIDA Não me calo! É preciso que eu fale. E que acabes de uma vez
por todas com esta situação. Chegamos a um ponto que eu
tenho até vergonha de sair à rua.
JOÃO Mas quem é que te impede de falar? O que eu não quero é que
estejas a fazer mau juízo antes do tempo.
EMÍLIA Pois está claro. Mas vamos saber, como está Judith?
MARGARIDA Está lá dentro. Sempre em seu quarto, muito triste. Pobre filha.
O Manoel, o boticário, aconselhou a levá-la daqui.
JOÃO Pois então vai aprontá-la. O quanto mais cedo forem, melhor.
EMÍLIA Dizem até que o noivo quer mais é ter em que passar o tempo.
EMÍLIA Sabe-se lá! Eles quando querem falar mal de alguém. Dizem
logo que ouviram falar. Mas não vale a pena falar mais nisso.
Deixe-me ir ver a pequena ela já sabe que vai para a casa do
avô?
MARGARIDA Já!
EMÍLIA Ai... Ai... Bem dizia o meu Zé:“este mundo é uma minhoca.
Tanto mexe lá fora como na toca! ”
sai
JOÃO Ainda bem! Quer dizer que estás rija e forte como um azougue!
JOÃO Então, minha filha, não chores. Conta-me tudo. O que se passa?
É por causa do
JUDITH Júlio? É!
JOÃO E então?
JUDITH Mas há qualquer coisa que se passa que eu adivinho e que
ele não me quer dizer. Talvez não me julgue capaz. E eu o amo
tanto... Tanto que por Deus lhe juro. Prefiro morrer a não me casar com ele.
JOÃO E porque não hás de casar? Não gosta ele tanto de ti? Não vem
todos os dias ver-te, falar-te?
JOÃO Gostas tu dele, não é verdade? Então deixa tudo por minha
conta, quanto ao teu Júlio. Vem cá hoje jantar connosco.
JOÃO Ora graças! Até que enfim sorristes, hein, sua marota. Deixa tudo
por minha conta. Vai aprontar-te, quando não se faz tarde.
JOÃO Adoro-te.
beija-a
Como não hei de adorar-te. Se é por ti que eu vivo.
Judith sai
BENTO entrando
Boas tardes, mestre João.
JOÃO No mesmo.
BENTO E não é para menos! Deus te livre! Parece até uma praga que
te caiu em casa.
JOÃO Por que razão hei de assim proceder se ele não deu motivos
para isso?
BENTO intencional
Há quem diga que na tua ausência o tal Senhor Júlio entra aqui e
fica horas e horas a conversar.
JOÃO Velhacos.
BENTO Bem. Eu vou ver a pequena. Cuidado. Não vai agora afligir tua
mulher.
JOÃO Claro que eu estou aqui às ordens do teu amo. Um burro não
pode vir até aqui, que vá lá o ferrador. Diabos, levem a vida.
CAMPONÊS Ora mestre João, não se zangue. Um burro não pode vir cá,
que vá lá o outro.
JOÃO Vamos lá antes que leves um trompaço pelas ventas que não
gostas da festa.
tira o avental
Vamos. Marcha já na minha frente
JÚLIO aparecendo
Ora viva! O quê? Costurar em dia de São João? O que tem?
Sente-se mal?
JÚLIO Em todo o caso não é bom. Ninguém está livre de ficar doente
repentinamente, ou mesmo ser vítima de algum desastre.
MARGARIDA Conforto? Isso é bom para quem é rico. A esses nada lhes
faltam. Havendo dinheiro há tudo.
JÚLIO Não há nada pior neste mundo do que a gente levar uma
vida inteira à procura de uma alma que nos compreenda, que seja irmã da nossa e
sem nunca encontrar e, se por acaso encontramos, é sempre tão distante que nunca
a alcançamos. Não é isto horrível? Quantas vezes a pessoa que amamos e que
daríamos até a vida para vê-la feliz vive sempre oprimida, suportando uma vida de
horrores, quando pelo seu olhar se vê a dor que lhe vai à alma. Quando pela voz se
nota a luta do próprio coração para se libertar. Não é isto horrível?
JÚLIO Da luz...
MARGARIDA Sim!
JÚLIO Do sol.
MARGARIDA Sim!
JÚLIO Do amor!
beijam-se, João espreita e foge
Não chore que me entristece.
MARGARIDA chorando
Que desgraça meu Deus! Que desgraça.
MARGARIDA Por que não fugiu? Por que me arrancou o segredo que eu daria
a minha vida para guardar? Por que despertou em mim este
amor que será a minha desgraça?
MARGARIDA Não! Não! E minha filha? Que vergonha. Oh! Mata-me, mas
poupe a minha filha. Esqueçamos tudo.
JÚLIO Tem razão. Eu sou um miserável. Foi uma loucura. Mas sossegue.
Do que aqui se passou, só nós saberemos.
MARGARIDA E Deus!
MARGARIDA Não. Não foi nada. Mas vamos! Vamos, apronte-se que se faz tarde.
saem. Música
João entra alquebrado, faz cenas, toca a forja, etc. Vai saindo cheio de cólera
quando aparece Judith. João recua
JOÃO Oh! Não é nada. Vai. Vai filhinha, não faça caso. É a alegria de
ver-te quase boa. Adeus. Vai.
JOÃO Ora essa. Então ia para a vila sem passar por aqui?
BENTO Não. Que estão à minha espera. Adeus, Margarida. Até logo.
sai
JOÃO Já não é sem tempo. Olha, ó Margarida, traga o jantar para cá.
Jantaremos aqui mesmo.
JOÃO Deixa-me ver. Ajude aqui, Senhor Júlio. Caso contrário, não
comemos hoje. É bom ir-se habituando. Um homem deve saber fazer de tudo.
Eu se algum dia ficar viúvo, até remendar as meias eu já sei.
JOÃO Nada de cerimônias. Mas olha que eu tive uma boa ideia, hein?
Comer aqui fora. É mais alegre.
JÚLIO É verdade.
JÚLIO E diz muito bem. Nada mais encantador do que jantar à luz
branda do poente.
JOÃO Não sei. Só sei que enquanto ele lá fora comia, embasbacado
com a tal luz poente, os ladrões saltaram-lhe pela janela, deram com o dinheiro
em uma gaveta e o dinheiro foi passando da gaveta para as algibeiras que foi
um regalo. Ha! Ha! Ha!
JOÃO Nada... Nada. Teimar sempre, apostar nunca, dizia o meu pai.
Mas é muito fácil e tira-se isto logo a limpo. Levante-se e encoste-se aqui. Ponha
os braços para baixo.
amarra-o rapidamente. Rindo
Veja como não é tão difícil amarrar-se um homem? Vamos, saia daí se puder.
JÚLIO Mas assim não é vantagem.
JOÃO Pois foi assim que ele fez. Vê como não é tão difícil amarrar
um homem. E depois, para que ele não gritasse, amordaçou-o assim.
executa
Ah, é verdade, eu ainda não lhe contei como ele soube da história. A vizinhança, que é
sempre a primeira a saber, já rosnava. Quando um amigo, porque graças a Deus
nestas coisas há sempre um amigo, quando um amigo avisou ao campônio do que se
passava. A princípio ele não quis acreditar. Ele não podia acreditar, mas pôs-se de
atalaia, e de uma feita, ao entrar em casa, deu com o tal sujeitinho aos abraços e
beijos com sua mulher no terreiro. Mas ele não se incomodou. Saiu e só voltou em
casa para pôr em prática a sua terrível vingança. Agora vocês avaliem a dor que um
homem de vergonha deve sentir em tais condições e digam-me... Se esse miserável
não era preciso ter dez vidas para pagar a sua baixeza. Depois de tê-lo amarrado e
amordaçado, o campônio foi buscar um ferro em brasa, que já tinha preparado.
pega o ferro
E disse-lhe: “covarde, falso! Então, é assim que dizias ser meu amigo? Depois de ter
me roubado a honra, ainda querias me roubar a felicidade? Veja bem. Veja como eu
retribuo a tua amizade. É assim... É assim... ”
E tu, imunda, nojenta... Até parece impossível que Deus te fizesse mãe. Desleal,
vais ter o mesmo fim.
CORTINA
MARGARIDA entrando
Emília... Emília... Santo Deus, que coisa horrível.
MARGARIDA O que pode haver de mais horrível. Parece que ainda estou
vendo. Não me deixes, tenho medo. Muito medo.
EMÍLIA MARGARIDA
MARGARIDA Sim. E quanto mais o afastava, quanto mais o aborrecia, mais
me sentia atraída para ele. Parecia que uma força estranha
me dominava. Queria reagir, reagir e não podia. Queria fugir.
Mas que luta meu Deus, que luta!
EMÍLIA
MARGARIDA Gritei. Pedi socorro. Acudiram os vizinhos e seguraram-no. Saí
a correr, louca sem saber o que fazer. Vendo sempre atrás de
mim aquela gura hercúlea, de mãos crispadas, a querer
estrangular-me, é horrível, e assim correndo, caindo aqui e
acolá, sem saber onde pisava, tendo sempre diante dos olhos
aquela cena horrível acompanhada de medonhos fantasmas.
Consegui chegar até aqui. Agora já sabe tudo!
EMÍLIA Eu vou num pulo chamar teu pai e Judith. Mesmo porque não
é bom que fiques aqui sozinha. Ninguém sabe o que poderá
suceder. Eu venho já.
43
MARGARIDA marcação
Tenho medo, Emília, tenho medo!
vai a fugir, vê João que aparece na porta...
Virgem Santa, valei-me! Estou só. Ninguém para me salvar.
tenta correr
JOÃO agarrando-a
Velhaca, falsa, adúltera. Julgavas que me escapava? Arrisquei
a minha própria vida. Mas esta eu daria de bom grado contanto
que te castigasse como mereces. Infame miserável nojenta...
estrangula-a
CORTINA
FIM DA PEÇA