Ferro em Brasa

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TEXTO

J. SILVA

LIVREMENTE INSPIRADO
NA OBRA DE ANTÔNIO SAMPAIO

AÇÃO
PORTUGAL

ÉPOCA
1930

ELENCO
João o ferrador
Júlio fidalgo
Leonardo avozinho
Bento campônio
Manoel boticário
Camponês cômico
Margarida esposa de João
Judith filha do ferrador
Tia Emília portuguesa
PRIMEIRO ATO
SALA SIMPLES EM CASA DE JOÃO,
O FERRADOR

MARGARIDA Anda, filhinha, que são horas.

JUDITH fora
Já vou, mãezinha.

MARGARIDA Anda, filhinha, que são horas.

JUDITH fora
Já vou, mãezinha.

MARGARIDA Olha que temos tudo por arranjar.

JUDITH A tia Emília vem nos ajudar.

MARGARIDA Ela foi?

JUDITH entrando
Foi! Mas como chegou tarde, ficou para a missa das dez.
O paizinho saiu?

MARGARIDA Saiu. Foi fazer umas compras para o almoço.

JUDITH Ainda mais?

MARGARIDA Tu sabes como é teu pai. Em se tratando de ti, fica maluco.


JUDITH E o avozinho está tardando.

MARGARIDA Vem devagar, que é pra não cansar o jumento.

JUDITH Mãezinha, porque o avozinho prefere morar tão longe a morar


com a gente?

MARGARIDA Ora, filhinha, não conheces os caprichos da velhice. Não se


sente bem em outra parte. Foi lá que nasceu, e onde nasceu
teu pai.

JUDITH E se ele tivesse de vir todos os dias aqui?

MARGARIDA Era mais certo caminhar as duas léguas para cá e para lá, do
que deixar de dormir em casa.

JUDITH Mãezinha, eu vou buscar flores para pôr na jarra. É mais alegre.

MARGARIDA Vai filhinha. Vai.

JUDITH Hoje quero muita alegria nesta casa.

JOÃO aparecendo ao fundo com embrulhos


Isso! Isso! Muita alegria.

JUDITH Olha o paizinho!


corre para abraçá-lo

JOÃO Estás quieta. Olha que esmagas os doces.

JUDITH Doces?

JOÃO Doces, vinho do Porto e alguma coisa mais. Quero que o teu
futuro marido saiba que aqui também se sabe receber gente
fina.

JUDITH Gente fina.


ri
Ha!Ha! Ha!
JOÃO Mais ainda está assim? Então é este o vestido com que vais
aparecer?

MARGARIDA Ainda temos muito que fazer.

JUDITH É verdade, paizinho, eu vou colher fores, vou trazer-te um amor


perfeito e, para a mãezinha, uma violeta. Ha! Ha! Ha!

JOÃO Olha. Eu dispenso o amor-perfeito, prefiro um figo se tiver


maduro.

JUDITH Guloso.
ri. Sai

JOÃO Faz gosto de ver uma criatura assim alegre.

MARGARIDA E tu ainda ficas mais alegre.

JOÃO Se soubesses como me sinto feliz com a sua alegria. Não sei
por que, Margarida, mas acho um encanto tal em nossa filha que,
às vezes, deixo o que estou fazendo só para contemplá-la.

MARGARIDA Desconfio muito que esta alegria seja por pouco tempo. João,
tenho um pressentimento de que este casamento será a
desgraça de nossa filha.

JOÃO Aí vens tu outra vez com a mesma mania.

MARGARIDA Já sei que não me dás razão. Primeiro está a vontade de tua
filha.

JOÃO Mau, mau. Olha que eu hoje não quero me zangar. Que mania.

MARGARIDA Sim. Mania. Mais tarde verás.

JOÃO Embirrastes com o rapaz e pronto. A moça gosta dele. Ele


gosta dela. Que se casem. Se dissessem por aí que era um
vadio, um rapaz de maus costumes, vá lá. Mas um rapaz de
boa família. Fino. E com uma bela carreira... Delicado.

MARGARIDA No começo são todos assim.

JOÃO E depois não és tu quem vai casar com ele.


MARGARIDA Já tardava essa resposta.

JOÃO Irra, que tu és pior do que um jumento! Empacastes aí, e pronto.

MARGARIDA Porque tu, para não contrariar Judith, é capaz das maiores
tolices.

JOÃO Certamente. E como sou seu pai, compete a mim guiar-lhe o


destino. Por isso, eu faço aquilo que muito bem me aprouver.

MARGARIDA Mas não te esqueça de que ela é também minha filha.

JOÃO Ora! Adeus.

MARGARIDA E quero vê-la feliz.

JOÃO Chega! Chega com os diabos!

JUDITH entrando com ores


Mãezinha, acabou a missa. tia Emília não deve tardar.

MARGARIDA Olha lá. Estivestes esperando que brotassem as flores?

JUDITH Demorei muito?

JOÃO Não senhora. Não demorou nada.

MARGARIDA Ninguém te chamou na conversa.

JOÃO canta
Tra... Lá... Lá... Lá... Lá.

JUDITH Estão zangados?

JOÃO Zangados? Quem é que se zanga hoje nesta casa.


JUDITH Isso! Hoje quero muita alegria.

JOÃO Certamente. Mas, Judith, eu estou esperando.


JUDITH O que, paizinho?

JOÃO Ora, o quê? Aquilo! O figo?

JUDITH Ah! Estão verdes.

MARGARIDA Só pensa em gulodices.

JOÃO Anda cá, ó Judith. Atura tu essa matraca, que eu vou levar isto
lá para dentro.
sai levando os embrulhos

MARGARIDA Teu pai hoje está impossível.

JUDITH Ora, mãezinha, é feitio. Quando está alegre gosta de brincar.

MARGARIDA Gosta de mexer-me com os nervos.

EMÍLIA fora
Olá, pode-se entrar?

JUDITH Entra, tia Emília. Entra.

EMÍLIA entrando
Ora, seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo. Onde está
essa gente?

JUDITH Paizinho está lá dentro.

EMÍLIA Ai que gente malandra. Anda daí, tu também vê se te moves.

MARGARIDA Ai, Emília! Já trabalhei muito hoje.

EMÍLIA Coitadinha. Não vais ficar com a espinhela caída.

JOÃO entrando de avental


Olha. Viva a tia Emília! Graças a Deus que chegou.

EMÍLIA O que é isto? Ele agora é o cozinheiro cá da casa?


MARGARIDA Isto de andar a meter o nariz nas panelas é com ele.

JOÃO Está vendo, minha fiha, ela é que está me provocando.

JUDITH Mãezinha!

EMÍLIA Também, o que tens tu com isso? O nariz é dele, e ele pode
enfiar onde quiser.

JOÃO Bravo! Um abraço, tia Emília. Agora falou como um juiz.

MARGARIDA Juiz? Juízo te dava eu se pudesse.

JOÃO Isto acaba mal... Isto acaba mal.

EMÍLIA Daqui a pouco eu dou umas palmadas em cada um para


tomarem juízo.

JUDITH E eu ajudo.

EMÍLIA Vamos lá, a saber, está tudo pronto?

JUDITH O que, tia Emília?

EMÍLIA Ora. Faz-te de novas? O almoço!

JOÃO Almoço não! O jantar.

EMÍLIA Almoço ou jantar dá tudo na mesma. É um jantar almoçarado


ou um almoço ajantarado.

JUDITH Está. Está tudo pronto

EMÍLIA Já sei que Margarida nos vai dar hoje uns bons petiscos.

JOÃO É cada petisco aqui! Também é a única coisa em que minha


mulher me passa a perna. É nos petiscos.
EMÍLIA Qual o quê, homem. Repara bem que ela te passa a perna em
muita coisa mais.

JOÃO Tem razão, tia Emília. A minha mulherzinha vale ouro.


vai para abraçá-la

MARGARIDA Sai daqui.

EMÍLIA Vamos, minha fiha. Vamos cuidar de tudo, que já é tempo.

MARGARIDA De caminho ponham a mesa.

JUDITH Sim, mãezinha.


sai com Emília

JOÃO Teu pai está demorando.

MARGARIDA Ele é mesmo vagaroso. UFA! Como estou cansada.

JOÃO Olha, Margarida, vamos nós a falar como dois amiguinhos.


Eu bem sei que tu não fazes muito gosto com o nosso futuro
genro.

MARGARIDA Nenhum.

JOÃO Sim. Mas bem sabes o quanto nossa lha gosta dele. Contraria-
la seria talvez funesto. Na idade de nossa filha uma paixão é
muito perigosa. Depois seria o maior sacrifício de minha vida,
ter de aborrecê-la. Só a ideia de que a veria triste, tira-me
completamente o desejo de ir contra sua vontade.

MARGARIDA Nem todas as vontades se fazem.

JOÃO Além disso, é um rapaz muito distinto. Não vejo motivo para
esta sua cisma.
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MARGARIDA Pois é isso mesmo. É no demais. Acho-o muito fidalgo para
marido de nossa filha.

JOÃO O fato de o rapaz ser filho de fidalgos não vem ao caso. Porque
minha filha bem que seja filha de um ferrador é muito digna.
Quer saber o que mais? Não falemos mais nisso. Vai
descansar, que daqui a pouco deve vir gente de fora.

MARGARIDA Convidastes alguém?

JOÃO Eu não. Mas o teu pai disse que vinha lá com os seus parceiros
da sueca. Vê lá que não vá faltar comida.

MARGARIDA Qual homem! Tem comida para cem pessoas.

JOÃO Isso! Nada de misérias! E o vinho, já sabes, é o da pipa velha.

JUDITH entra correndo


Paizinho, aí vem o avozinho e o seu Manoel boticário.

JOÃO Então? Vamos recebê-los.


da porta
Ora, viva! Pensei que não viessem hoje. Entrem, entrem...

LEONARDO entrando com Manoel


Ora, seja Deus nesta casa.

MARGARIDA A bênção, meu pai.

LEONARDO Deus te abençoe e te faça uma boa filha.

JOÃO Sentem-se. Esteja à vontade. Até que finalmente resolveram


a vir cá por esta sua casa.

MANOEL Eu tenho andado com a mana um pouco adoentada.


Emília entra
Olha a tia Emília.
que entrou antes
Ai, Jesus... Vossemecê por aqui?
EMÍLIA
risos
Ó gente, bota mais água na panela...
risos
Ó tio Leonardo? Como vai esta força?

LEONARDO Vai-se indo com a graça de Deus.

EMÍLIA
reparando
Olha como ele está janota. Flor ao peito. Bravo!
Virou conquistador?

MANOEL
Pronto. Desmanchou o casamento.

EMÍLIA
dramática
Traidor, que assim quebrastes o nosso juramento.

LEONARDO dramático
Perdão. Perdão para um desgraçado.

EMÍLIA
dramática
Nunca.

LEONARDO tirando a caixa de rapé


Olha, tu queres uma cheirada de rapé?
risos geral

JUDITH
do fundo
Paizinho, aí vem o Júlio.

JOÃO
Vamos recebê-lo.
vão ao fundo

EMÍLIA
Eu vou pôr a comida na mesa.
sai

JOÃO Tenha a bondade, Senhor Júlio. Não faça cerimônias.

JÚLIO Dona Margarida, prazer em cumprimentá-la.


MARGARIDA Judith, não falas ao Senhor Júlio?

JÚLIO a Judith
Ah! Estava se escondendo? Folgo em vê-la alegre e
encantadora.
reparando em volta
Olá, o Senhor Leonardo por aqui? Como vai o bom velhinho?

LEONARDO Como traste velho, meu rapaz.

JÚLIO Qual... O senhor é de construção antiga.

LEONARDO batendo nas pernas


E os alicerces ainda estão sólidos.

JOÃO Então? Muita poeira, hein, Senhor Júlio?

JÚLIO Muita. Os caminhos estão horríveis.

MARGARIDA Sente, Senhor Júlio. Vamos sentar

EMÍLIA entrando
Não. Não sente não. Estão todos com fome, e a comida
está esfriando. Vamos para a mesa.

JOÃO Neste caso vamos. E à mesa conversaremos melhor. Vamos.


saem todos menos Leonardo e Judith

JUDITH Avozinho. Vamos.

LEONARDO Anda cá, minha netinha. Dá-me um beijo.


beija Judith
Eu estava pensando no dia em que me darás um bisnetinho!

JUDITH Oh! Vovozinho.

LEONARDO imitando-a
Oh! Vovozinho! Vovozinho! Ha! Ha! Ha! Vamos lá. Vem cá e
dá mais um beijinho em teu avozinho.

JUDITH beijando-o
Meu rico avozinho!
CORTINA

FIM DO PRIMEIRO ATO


SEGUNDO ATO
GRADE COM PORTÃO
UMA FERRARIA COM TODOS OS APETRECHOS,
TRONCO, FORJA, MESA, ETC.
CAMPONÊS segurando em uma corda
Agora sim. Até parece outra.

JOÃO Vai-te embora, homem, e diz lá a teu amo que se não fosse por
quem é, bem que o animal voltava descalço.

CAMPONÊS Sim, senhor. Mas está tão cedo não precisa de sapatos novos.

JOÃO Está bem, homem. Vai-te embora. Há mais de duas horas que
estás aí a falar.

CAMPONÊS Isto é de família, mestre João. Meu avô morreu a falar. Meu
pai nasceu a falar, e eu acho que já falava antes de nascer.

JOÃO Deus te dê miolo meu rapaz, que é o que te falta. Vai rapaz.
Vai a teu serviço.

CAMPONÊS Ah! É verdade, mestre João. Quanto tempo é preciso para um


animal gastar um par de ferraduras?

JOÃO Conforme. Se for um animal que trabalhe muito pode durar por
uns seis meses. Agora se for uma besta, um burro, como tu, dura menos.

CAMPONÊS E um par para si, mestre João? Quanto dura?

JOÃO Dura o diabo que o carregue.


correndo atrás do camponês que foge e sai

MARGARIDA entra e vai sentar-se à máquina de costura


Não sei por que, mas tudo isto me parece o prenúncio de uma
grande desgraça.

JOÃO triste Aí vens tu outra vez com as tuas cantigas?

MARGARIDA Isto. Chama-lhe cantigas, mas pouco a pouco os meus


receios vão-se confirmando. E só tu és culpado.
JOÃO Valha-me Deus! Mas afinal em que é que eu tenho a culpa?

MARGARIDA Em quê? Pois não viste logo que era fidalgo demais para ser
marido de nossa filha?

JOÃO Qual fidalgo nem meio fidalgo. Já te disse e repito. Júlio é um


rapaz às direitas, lá pelo fato de ter dinheiro, não quer dizer que não tem
vergonha.

MARGARIDA Pois sim. Mas o casamento devia efetuar-se três meses depois
do pedido, já lá vão seis. Agora está por quinze dias.
Mas parece-me que ainda não será esta vez.

JOÃO Ora, adeus! Adiou a primeira, adiou a segunda e, se adiar a


terceira, é porque o rapaz tem lá os seus motivos.

MARGARIDA Mas minha fiha é que não pode ficar assim exposta a falatórios
dos vizinhos. Já falam. Só se escutam comentários que nada honram a nossa casa.

JOÃO E que me importam os vizinhos? É bom que eles vejam, mas é


pelo que lhes vai em casa.

MARGARIDA Será assim. Mas que ele não está procedendo como homem de
bem, não está!

JOÃO Não faças mau juízo antes do tempo.

MARGARIDA Queira Deus que esta tristeza, este abatimento de Judith...


Cada vez mais magra. Dir-se-ia que alguma dor íntima a vai
martirizando.

JOÃO Alguns arrufos que depressa passará, vais ver.

MARGARIDA Arrufos? Não acredite que, por simples questões, nossa filha
chegasse aquele estado. Alguma coisa de mais importante há de haver.
.

JOÃO E tu a dar-lhe. Que coisa queres tu que seja?


MARGARIDA Não sei. Não sei. Mas tudo leva a crer que há nisso um grande
mistério. Não tenhas dúvidas.

JOÃO Mistério? Acaso pensarás tu que minha filha?

MARGARIDA Pelo menos é o que parece.

JOÃO Duvidas da minha... De tua filha?

MARGARIDA Dela não, que é uma pobre inocente. Mas dele que não se
introduziu nesta casa, senão para trazer a desgraça.

JOÃO Está bem. Está bem, cala-te.

MARGARIDA Não me calo! É preciso que eu fale. E que acabes de uma vez
por todas com esta situação. Chegamos a um ponto que eu
tenho até vergonha de sair à rua.

JOÃO avançando com o banquinho


Já te disse que te cales.

EMÍLIA entra e interpõe-se


Ó homem, ao menos hoje que é dia de São João, que diabo!
Vocês levam a vida como cão e gato.

JOÃO É este inferno todo dia.

MARGARIDA Também, só falta agora bater-me.

EMÍLIA Tu também és culpada. Estás sempre contra ele.

MARGARIDA Mas se ele nunca me dá razão!

EMÍLIA É porque tu não a tens. Olha, minha filha, homem é sempre


homem. Eu também já fui assim. Um dia o meu Zé, Deus que
lhe fale n’alma só porque fui contra ele numa loja de louças,
deu-me um tapa olho que me fez ver estrelas.
MARGARIDA Pois sim. Está tudo muito bem. Eu sou a única que não tenho
razão. E que não posso falar.

JOÃO Mas quem é que te impede de falar? O que eu não quero é que
estejas a fazer mau juízo antes do tempo.

EMÍLIA Pois está claro. Mas vamos saber, como está Judith?

MARGARIDA Está melhor.

EMÍLIA Isto é o que se quer. Onde está ela?

MARGARIDA Está lá dentro. Sempre em seu quarto, muito triste. Pobre filha.
O Manoel, o boticário, aconselhou a levá-la daqui.

JOÃO É verdade. A tia Emília bem que podia fazer-nos um favor.


Levá-la daqui para a casa do avô.

EMÍLIA Posso! Eu vou a Braga. Até talvez fique lá esta noite.

JOÃO Pois então vai aprontá-la. O quanto mais cedo forem, melhor.

MARGARIDA observando, baixo a Emília


Então? Tens ouvido falar mais alguma coisa?

JOÃO Mas então tia Emília, é verdade o que se fala por aí a


respeito de minha filha?

EMÍLIA Eu por mim, só ouvi o que te disse ontem.

JOÃO Mas o que é afinal que eu de nada sei!

EMÍLIA Acham que o casamento já foi adiado muitas vezes e...

JOÃO E o que tem isso?

EMÍLIA Dizem até que o noivo quer mais é ter em que passar o tempo.

JOÃO Mas, então, minha filha está sendo difamada?


MARGARIDA Schiu! Cuidado! Ela pode escutar.

JOÃO E quem são estes miseráveis?

EMÍLIA Sabe-se lá! Eles quando querem falar mal de alguém. Dizem
logo que ouviram falar. Mas não vale a pena falar mais nisso.
Deixe-me ir ver a pequena ela já sabe que vai para a casa do
avô?

MARGARIDA Já!

EMÍLIA Ai... Ai... Bem dizia o meu Zé:“este mundo é uma minhoca.
Tanto mexe lá fora como na toca! ”

sai

MARGARIDA Um momento, Emília, eu irei contigo.


sai com Emília

JUDITH depois de um momento entra


Paizinho!

JOÃO Então, filhinha, sente-te melhor? Já não estás sentindo frio?

JUDITH Não, paizinho! Já há dois dias que não sinto frio.

JOÃO Ainda bem! Quer dizer que estás rija e forte como um azougue!

JUDITH Quem dera!


chora

JOÃO Então, minha filha, não chores. Conta-me tudo. O que se passa?
É por causa do

JUDITH Júlio? É!

JOÃO Que? Faltou-te ao respeito?

JUDITH Oh. Não. Sempre me tratou muito bem.

JOÃO E então?
JUDITH Mas há qualquer coisa que se passa que eu adivinho e que
ele não me quer dizer. Talvez não me julgue capaz. E eu o amo
tanto... Tanto que por Deus lhe juro. Prefiro morrer a não me casar com ele.

JOÃO E porque não hás de casar? Não gosta ele tanto de ti? Não vem
todos os dias ver-te, falar-te?

JUDITH Qualquer coisa nos vai acontecer.

JOÃO Gostas tu dele, não é verdade? Então deixa tudo por minha
conta, quanto ao teu Júlio. Vem cá hoje jantar connosco.

JUDITH sorrindo Devéras?

JOÃO Ora graças! Até que enfim sorristes, hein, sua marota. Deixa tudo
por minha conta. Vai aprontar-te, quando não se faz tarde.

JUDITH Quantos dias vou ficar lá?

JOÃO Quantos tu quiseres. Agora és tu quem manda.

JUDITH Meu bom paizinho. Gostas muito de mim?

JOÃO Adoro-te.
beija-a
Como não hei de adorar-te. Se é por ti que eu vivo.
Judith sai

BENTO entrando
Boas tardes, mestre João.

JOÃO Boas tardes, Senhor Bento.

BENTO Então? Como vão as coisas de ontem para cá, João?

JOÃO No mesmo.

BENTO E minha afilhada, não está melhor?


JOÃO Está. Está melhor.

BENTO E a Margarida como está?

JOÃO Está bem. Somente um pouco aborrecida com todas essas


coisas.

BENTO E não é para menos! Deus te livre! Parece até uma praga que
te caiu em casa.

JOÃO E o que se há de fazer?

BENTO O caso é que tu não podes continuar assim. É preciso que


chames este moço, e te expliques com ele. O falatório aumenta e eu
estou vendo o dia em que se dará uma desgraça.

JOÃO Mas isto é uma infâmia sem nome.

BENTO Isso sei eu, mas vá lá a gente convencê-los. Escuta, João.


Sabes o que deves fazer? Manda-me este fidalgo para a
casa do diabo e está tudo acabado.

JOÃO Por que razão hei de assim proceder se ele não deu motivos
para isso?

BENTO Estás bem certo de que não tens motivos?

JOÃO Ora esta! Certíssimo.

BENTO Pois, o que por aí se diz...

JOÃO Mas afinal. O que falam eles?

BENTO intencional
Há quem diga que na tua ausência o tal Senhor Júlio entra aqui e
fica horas e horas a conversar.

JOÃO Com a minha filha?

BENTO Não! É com tua mulher.


JOÃO Com minha... Ha! Ha! Ha! Tem graça! Por minha mulher é que ele
nunca punha os pés.

BENTO Eu sei. Eu sei... Mas até isto eles chegaram a inventar.

JOÃO Velhacos.

BENTO Bem. Eu vou ver a pequena. Cuidado. Não vai agora afligir tua
mulher.

JOÃO Não. Em breve eu taparei a boca destes ordinários.

BENTO O que é preciso é calma. Muita calma. Bem. Eu venho já.


sai

CAMPONÊS um momento de pausa, entra


Mestre João! Mestre João!

JOÃO Que há rapaz? Que há?

CAMPONÊS Tá manco! Tá manco!

JOÃO Que tamanco? Alma do diabo! Que tamanco?

CAMPONÊS O burro, mestre João. O burro tá manco e não pode andar.


Eu creio que eu sei falar.

JOÃO Não pode andar porquê?

CAMPONÊS Porque está capenga, ora esta!

JOÃO Eu pergunto, o que tem o animal?

CAMPONÊS Com certeza é a ferradura que está apertando algum calo. E o


meu amo manda dizer que é para o senhor ir até lá ver o
que tem o burro, senão ele não pode ir a Braga ver as fogueiras.

JOÃO Claro que eu estou aqui às ordens do teu amo. Um burro não
pode vir até aqui, que vá lá o ferrador. Diabos, levem a vida.

CAMPONÊS Ora mestre João, não se zangue. Um burro não pode vir cá,
que vá lá o outro.
JOÃO Vamos lá antes que leves um trompaço pelas ventas que não
gostas da festa.
tira o avental
Vamos. Marcha já na minha frente

MARGARIDA entrando Vais sair?

JOÃO Vou! Mas pouco me demoro. É questão de meia hora mais ou


menos.

MARGARIDA sentando à máquina de costura. Escurece. Música


Deus nos valha.

JÚLIO aparecendo
Ora viva! O quê? Costurar em dia de São João? O que tem?
Sente-se mal?

MARGARIDA Não. Obrigada.

JÚLIO Onde está essa gente?

MARGARIDA Judith vai passar uns dias na casa do avô.

JÚLIO E o mestre João?

MARGARIDA Também saiu, mas não deve demorar-se. Saíram todos.

JÚLIO Então, deixaram-na só?

MARGARIDA Já estou habituada.

JÚLIO Em todo o caso não é bom. Ninguém está livre de ficar doente
repentinamente, ou mesmo ser vítima de algum desastre.

MARGARIDA Vaso ruim não tem perigo.

JÚLIO Não diga isso. É que parece que trabalha demais.


MARGARIDA Que fazer? A vida está cada vez pior. É preciso trabalhar e
trabalhar muito.

JÚLIO Caprichos da sorte. Uma criatura assim deveria ter todo


conforto.

MARGARIDA Conforto? Isso é bom para quem é rico. A esses nada lhes
faltam. Havendo dinheiro há tudo.

JÚLIO Puro engano. A verdadeira felicidade, não há dinheiro que


compre.

MARGARIDA A maior felicidade que se pode desejar é o bem-estar. Há coisa


pior do que a pessoa levar a vida toda a trabalhar sem nunca
ter aquilo que deseja?

JÚLIO Não há nada pior neste mundo do que a gente levar uma
vida inteira à procura de uma alma que nos compreenda, que seja irmã da nossa e
sem nunca encontrar e, se por acaso encontramos, é sempre tão distante que nunca
a alcançamos. Não é isto horrível? Quantas vezes a pessoa que amamos e que
daríamos até a vida para vê-la feliz vive sempre oprimida, suportando uma vida de
horrores, quando pelo seu olhar se vê a dor que lhe vai à alma. Quando pela voz se
nota a luta do próprio coração para se libertar. Não é isto horrível?

MARGARIDA Sim! Sim! Meu Deus! Meu Deus...


João aparece e recua

JÚLIO É o maior castigo. É viver na treva. É viver na morte. Porque


nos iludimos a nós mesmos. Que força extrema nos tornam insensíveis à própria
natureza. Não responde? Entretanto nada mais fácil. Se as almas se compreendem, se
os corações se falam, porque fugir ao decreto do destino? Sejamos francos,
despedacemos as algemas que nos prendem, os grilhões que nos torturam e corramos
em busca da liberdade.

MARGARIDA Sim! Sim!

JÚLIO Da luz...

MARGARIDA Sim!

JÚLIO Do sol.

MARGARIDA Sim!

JÚLIO Do amor!
beijam-se, João espreita e foge
Não chore que me entristece.

MARGARIDA chorando
Que desgraça meu Deus! Que desgraça.

JÚLIO Era fatal. Eu bem quis evitar. Mas o destino... Perdoa-me.

MARGARIDA Por que não fugiu? Por que me arrancou o segredo que eu daria
a minha vida para guardar? Por que despertou em mim este
amor que será a minha desgraça?

JÚLIO Mas... Então é certo? Também me ama?

MARGARIDA Quisera Deus que assim não fosse.

JÚLIO tentando de novo beijá-la Margarida!

MARGARIDA Não! Não! E minha filha? Que vergonha. Oh! Mata-me, mas
poupe a minha filha. Esqueçamos tudo.

JÚLIO Tem razão. Eu sou um miserável. Foi uma loucura. Mas sossegue.
Do que aqui se passou, só nós saberemos.

MARGARIDA E Deus!

JÚLIO O arrependimento vem sempre com o perdão de Deus.

MARGARIDA Oxalá que assim seja.

JÚLIO cumprimentando-a Minha senhora.

MARGARIDA Não volta?

JÚLIO Não sei.


sai. Margarida chora

JUDITH entrando com uma flor


Mãezinha. Venho dizer-te adeus. Toma esta flor. Dê ao Júlio quando ele
chegar. Mas o que foi mãezinha? Chorastes?

MARGARIDA Não. Não foi nada. Mas vamos! Vamos, apronte-se que se faz tarde.
saem. Música
João entra alquebrado, faz cenas, toca a forja, etc. Vai saindo cheio de cólera
quando aparece Judith. João recua

JUDITH Paizinho, já vou! Dá cá um abraço.

JOÃO Adeus, filhinha. Diverte-te bem.

JUDITH Não te esqueças de levar o que me prometeu.

JOÃO O que foi?


JUDITH O Júlio. Que tens, paizinho? Tu choras?

JOÃO Oh! Não é nada. Vai. Vai filhinha, não faça caso. É a alegria de
ver-te quase boa. Adeus. Vai.

JUDITH Que susto me pregastes. Mau! Mau! Mau!

JOÃO Vai direitinho minha filha. Vai.

JUDITH beijando-o Meu paizinho.


sai. João vai à forja e aviva o fogo. Um momento entra Bento

BENTO entrando com Júlio


Olha João. Cá está o Senhor Júlio.

JÚLIO Boa tarde, mestre João.

JOÃO Desculpe-me, Senhor Júlio. Tenho as mãos sujas.

BENTO Já ia para a vila. Mas como eu sabia que precisavas falar-lhe,


não o deixei ir sem vir aqui.
Margarida aparece ao fundo e permanece

JOÃO Ora essa. Então ia para a vila sem passar por aqui?

JÚLIO Não! Eu ia apenas à casa do caseiro antes de passar por aqui.


BENTO Enfim, já que ele está aqui. Fala-lhe do assunto. Até logo.

JOÃO Não quer jantar connosco?

BENTO Não. Que estão à minha espera. Adeus, Margarida. Até logo.
sai

TODOS Até logo.

JÚLIO O que tem a falar-me, mestre João?

JOÃO Depois. Temos tempo. Nada de importância.

MARGARIDA do fundo E nós vamos jantar.

JOÃO Já não é sem tempo. Olha, ó Margarida, traga o jantar para cá.
Jantaremos aqui mesmo.

MARGARIDA Pois sim.


sai

JOÃO Ajude aqui, Senhor Júlio.


mudam a mesa
Sabe de uma novidade? A Judith foi para a casa do avô. Depois do jantar
iremos até lá.

JÚLIO Perfeitamente. Iremos.

MARGARIDA trazendo toalha e pratos


Tomam lá. Vão pondo a mesa.

JOÃO Deixa-me ver. Ajude aqui, Senhor Júlio. Caso contrário, não
comemos hoje. É bom ir-se habituando. Um homem deve saber fazer de tudo.
Eu se algum dia ficar viúvo, até remendar as meias eu já sei.

MARGARIDA Vão colocando por aí.

JOÃO Vá sentando, Senhor Júlio. Traga o vinho, Margarida.

MARGARIDA Sim. E vamos lá que isto frio não tem graça.


JOÃO Então vamos.
sentam-se todos
Serve aqui ao Senhor Júlio.

JÚLIO Pouca coisa.

JOÃO Nada de cerimônias. Mas olha que eu tive uma boa ideia, hein?
Comer aqui fora. É mais alegre.

JÚLIO É verdade.

JOÃO É como diz o Mestre Escola. É mais poético.

JÚLIO E diz muito bem. Nada mais encantador do que jantar à luz
branda do poente.

JOÃO O caso é que nunca vi o Mestre Escola almoçar ou jantar que


não fosse no quintal.

JÚLIO Prova que tem bom gosto.

JOÃO É verdade. Mas, por causa disso, uma vez os ladrões


fizeram-lhe uma limpeza que o deixaram a tinir...

JÚLIO Como foi isso?

JOÃO Não sei. Só sei que enquanto ele lá fora comia, embasbacado
com a tal luz poente, os ladrões saltaram-lhe pela janela, deram com o dinheiro
em uma gaveta e o dinheiro foi passando da gaveta para as algibeiras que foi
um regalo. Ha! Ha! Ha!

JÚLIO E ninguém viu?

JOÃO Só foram descobrir no dia seguinte, quando encontraram o


Mestre Escola amarrado e ainda por cima amordaçado.

JÚLIO Com certeza ouviram rumor e...

JOÃO Com certeza. Mas vamos, Senhor Júlio. Coma, beba.

JÚLIO A mim custa-me a crer, que se amarre um homem com tanta


facilidade.
JOÃO Não há nada mais fácil. Às vezes é até o próprio sujeito que se
amarra.

JÚLIO Bem. Por vontade?


ri
A mim não amarravam eles! Isto é, salvo se fossem uns quatro ou cinco.

JOÃO Qual o quê, um só!

JÚLIO Um só? Ora mestre João, deixa-me rir.


ri
Só se eu fosse aleijado.

JOÃO Aleijado, hein? Então escute. Um dia um campônio, um rústico,


quis vingar-se de um sujeito que, dizendo ser seu amigo, foi desonrar-lhe o lar. Esse
rústico, esse campônio era um homem de brio e tinha forças para partir todos os ossos do
tal sujeito, mas a afronta foi de tal forma vergonhosa que ele jurou vingar-se a seu modo.
Era o seu lar enxovalhado, a sua honra maculada. Era toda a sua vida que ele havia
perdido. Preparou tudo. E esperou que o ladrão de sua honra viesse visitá-lo como de
costume. Porém, nesse dia o cavalheiro nada de chegar.

JÚLIO Naturalmente avisaram-no.

JOÃO Com certeza, mas vá ouvindo. Já estavam à mesa, quando


batem à porta. Era o nosso homem. Vinho? Mais vinho.
bebe
O tal sujeito era também forte. Devia ter por aí um metro e sessenta e cinco de altura. Eu
creio que ele tinha a sua altura!

JÚLIO Eu tenho um metro e setenta...

JOÃO Ponho as minhas dúvidas. Vossemecê não tem mais do que


um metro e sessenta e cinco, se tiver.

JÚLIO Uma apostinha?

JOÃO Nada... Nada. Teimar sempre, apostar nunca, dizia o meu pai.
Mas é muito fácil e tira-se isto logo a limpo. Levante-se e encoste-se aqui. Ponha
os braços para baixo.
amarra-o rapidamente. Rindo
Veja como não é tão difícil amarrar-se um homem? Vamos, saia daí se puder.
JÚLIO Mas assim não é vantagem.

JOÃO Pois foi assim que ele fez. Vê como não é tão difícil amarrar
um homem. E depois, para que ele não gritasse, amordaçou-o assim.
executa
Ah, é verdade, eu ainda não lhe contei como ele soube da história. A vizinhança, que é
sempre a primeira a saber, já rosnava. Quando um amigo, porque graças a Deus
nestas coisas há sempre um amigo, quando um amigo avisou ao campônio do que se
passava. A princípio ele não quis acreditar. Ele não podia acreditar, mas pôs-se de
atalaia, e de uma feita, ao entrar em casa, deu com o tal sujeitinho aos abraços e
beijos com sua mulher no terreiro. Mas ele não se incomodou. Saiu e só voltou em
casa para pôr em prática a sua terrível vingança. Agora vocês avaliem a dor que um
homem de vergonha deve sentir em tais condições e digam-me... Se esse miserável
não era preciso ter dez vidas para pagar a sua baixeza. Depois de tê-lo amarrado e
amordaçado, o campônio foi buscar um ferro em brasa, que já tinha preparado.
pega o ferro
E disse-lhe: “covarde, falso! Então, é assim que dizias ser meu amigo? Depois de ter
me roubado a honra, ainda querias me roubar a felicidade? Veja bem. Veja como eu
retribuo a tua amizade. É assim... É assim... ”

Júlio se debate apavorado e Margarida dá gritos aterradores.


João vira-se para Margarida

E tu, imunda, nojenta... Até parece impossível que Deus te fizesse mãe. Desleal,
vais ter o mesmo fim.

MARGARIDA Socorro! Socorro!


João avança. Entram dois homens e seguram-no

JOÃO espumando de raiva


Desgraçada!

CORTINA

FIM DO SEGUNDO ATO


TERCEIRO ATO

CASA DO AVOZINHO EM BRAGA

CENA EMÍLIA em cena


Entra MARGARIDA

MARGARIDA entrando
Emília... Emília... Santo Deus, que coisa horrível.

EMÍLIA O que foi? O que aconteceu?

MARGARIDA Minha filha? Meu pai? Onde estão?

EMÍLIA Foram para a festa. Saíram há dez minutos.

MARGARIDA Estás só?

EMÍLIA Estou. Meu Deus! Como estás fatigada. Que aconteceu?

MARGARIDA Uma desgraça! Uma horrível desgraça.

EMÍLIA Afinal. O que foi?

MARGARIDA O que pode haver de mais horrível. Parece que ainda estou
vendo. Não me deixes, tenho medo. Muito medo.

EMÍLIA Não te deixarei,filha. Acalma-te. Conta-me tudo.

MARGARIDA Emília. Nunca te disse nada. Muitas vezes censuraste a


minha aspereza para com Júlio. Mas... Eu fiz tudo para afastá-
lo daquela casa, onde dia a dia se aprofundava o abismo da
minha felicidade. Que vergonha, meu Deus... Que vergonha.
chora
EMÍLIA Vamos. Continua.

MARGARIDA Quanto mais eu o repudiava, mais ele se aproximava. Era fatal.


Todos me censuravam. Ninguém me dava razão. Não percebiam.
Não podiam perceber. E assim todos concorreram para a minha
MARGARIDA desgraça.

EMÍLIA Será possível?

EMÍLIA MARGARIDA
MARGARIDA Sim. E quanto mais o afastava, quanto mais o aborrecia, mais
me sentia atraída para ele. Parecia que uma força estranha
me dominava. Queria reagir, reagir e não podia. Queria fugir.
Mas que luta meu Deus, que luta!

EMÍLIA Meu Deus. Meu Deus!

De um lado o meu dever de mãe, do outro o meu coração


MARGARIDA
oprimido, cansado de sofrer. Cheio de uma vida miserável e
sem querer libertar-se. E, assim, vinha lutando há meses
reunindo todas as forças, fazendo o impossível para não
EMÍLIA MARGARIDA EMÍLIA MARGARIDA
sucumbir, para que ele não pudesse, nem de leve sequer,
penetrar no meu pensamento. Não era por mim não. A
desgraça não me assustava. Era por minha lha, minha pobre
lha. Mas o destino é implacável. Hoje depois que vocês saíram
quei só. Ele chegou, e a fatalidade denunciou-lhe a minha dor.
Ele percebeu, não resisti, era fatal! Sem saber como, João
surpreendeu-nos, e...
EMÍLIA
EMÍLIA MARGARIDA
E... Matou-o! Santo Deus!

EMÍLIA
MARGARIDA Gritei. Pedi socorro. Acudiram os vizinhos e seguraram-no. Saí
a correr, louca sem saber o que fazer. Vendo sempre atrás de
mim aquela gura hercúlea, de mãos crispadas, a querer
estrangular-me, é horrível, e assim correndo, caindo aqui e
acolá, sem saber onde pisava, tendo sempre diante dos olhos
aquela cena horrível acompanhada de medonhos fantasmas.
Consegui chegar até aqui. Agora já sabe tudo!

Quanta infelicidade. Santo Deus!

Deus é testemunha do quanto fiz para evitar. Mas estava


escrito.

E agora? Que será de ti?


MARGARIDA Não é isto que deves perguntar. O que será de minha filha?
Deves dizer.

EMÍLIA Pobre menina. Infeliz moço. Se soubesse o que ela me disse


pelo caminho. Tinha-lhe verdadeira afeição. Tudo para ela
era o seu Júlio.

MARGARIDA Minha pobre filha.

EMÍLIA Ainda há pouco quando saiu, deu-me uma flor dizendo-me:


tome tia Emília, dê ao Júlio logo que chegue, quero que ele vá
à festa com uma flor ao peito. Enfim, uma verdadeira paixão.

MARGARIDA Minha pobre filha. E fui eu a causadora de todo o seu infortúnio.


Fui eu que despedacei a sua única esperança... Minha infeliz
filha.

EMÍLIA E quem prendeu João?

MARGARIDA Não sei. Apenas o vi seguro e fugi. Não vi mais nada!

EMÍLIA E agora o que se há de fazer?

MARGARIDA Não sei... Não sei...

EMÍLIA Eu vou num pulo chamar teu pai e Judith. Mesmo porque não
é bom que fiques aqui sozinha. Ninguém sabe o que poderá
suceder. Eu venho já.

MARGARIDA Não te demores. Vem depressa.

EMÍLIA Sossega. Eu venho já. Ainda os devo apanhar na casa do


Mestre Escola.

MARGARIDA Que ninguém saiba, Emília. Pelo menos por enquanto.

EMÍLIA Descansa. Eu farei tudo com prudência. Já venho.


sai

43
MARGARIDA marcação
Tenho medo, Emília, tenho medo!
vai a fugir, vê João que aparece na porta...
Virgem Santa, valei-me! Estou só. Ninguém para me salvar.
tenta correr

JOÃO agarrando-a
Velhaca, falsa, adúltera. Julgavas que me escapava? Arrisquei
a minha própria vida. Mas esta eu daria de bom grado contanto
que te castigasse como mereces. Infame miserável nojenta...
estrangula-a

entram Emília, Judith e Leonardo. Judith dá um grito. João


larga Margarida que está morta. Judith beija Margarida. Pega
ores deixando cair lentamente em seu corpo. Música. Judith
começa a rir até cair em gargalhadas convulsivas. Está louca.
João quer falar-lhe. Ela se afasta apavorada, vai para o avô e
abraça-o, rindo e chorando ao mesmo tempo; os dois ficam
abraçados. Ouve-se música histérica ao longe

CORTINA

FIM DA PEÇA

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