BLANCHOT A Besta de Lascaux
BLANCHOT A Besta de Lascaux
BLANCHOT A Besta de Lascaux
Maurice Blanchot
Gostaria muito de lembrar que este texto foi, pela primeira vez, editado em livro por G. L. M. em 1958. Hoje, a
reedição gostaria, não de abolir, mas de restituir por uma lembrança fugaz, como uma dupla homenagem à
amizade, a de René Char, a de Guy Levis Mano, aquilo que nos vem da poesia, como de uma eternidade sempre
passageira. M.B.
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A BESTA INOMINÁVEL
René Char
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Em Fedro, Platão evoca, para condená-la, uma estranha linguagem: eis que alguém
fala e, no entanto, ninguém fala; é, pois, uma palavra[i], mas ela não pensa aquilo que
ela diz, e diz sempre a mesma coisa, incapaz de escolher seus interlocutores, incapaz
de responder se eles a interrogam, e de socorrer a si mesma se a atacam: destino que
a expõe a rolar por todos os lados, ao acaso, e que expõe a verdade a devir semente
de acaso; confiar a essa palavra o verdadeiro é realmente confiá-lo à morte. Sócrates
propõe, pois, que, dessa palavra, se[ii] se afaste o máximo possível, como que de uma
perigosa doença, e que se se atenha à verdadeira linguagem, que é a linguagem falada,
onde a palavra está segura de achar na presença daquele que a exprime uma garantia
viva.
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preocupado com a verdade? O humanismo já tardio de Sócrates se acha aqui a igual
distância de dois mundos que ele não desconhece, que ele recusa por uma escolha
vigorosa. De um lado, o saber impessoal do livro que não pede para ser garantido pelo
pensamento de um só, pensamento que não é jamais verdadeiro, pois ele não pode se
fazer verdade senão no mundo de todos e pelo advento mesmo desse mundo. Um tal
saber está ligado ao desenvolvimento da técnica sob todas as formas e faz da palavra,
da escrita, uma técnica.
Mas Sócrates, que rejeita o saber impessoal do livro, não rejeita menos – ainda
que com mais reverência - uma outra linguagem impessoal, a palavra pura que dá
entendimento ao sagrado. Nós não somos mais, diz Sócrates, daqueles que se
contentavam em escutar a voz do carvalho ou a de uma pedra. « Vós outros, os
modernos, quereis saber quem é aquele que fala e de que região ele é[iii]. » De modo
que tudo aquilo que é dito contra a escrita serviria, também, muito bem para
desacreditar a palavra recitada do hino lá onde o recitante - que ele seja o poeta ou o
eco do poeta-, não é mais que o órgão irresponsável de uma linguagem que o
ultrapassa infinitamente.
Diante da estranheza da obra escrita, seu mal-estar é finalmente aquele que ele
prova diante da obra de arte, cuja essência insólita lhe inspira desconfiança, quando
não desprezo: « Aquilo que há sem dúvida de terrível na escrita, é, Fedro, a sua
semelhança com a pintura: os rebentos desta não se apresentam como seres vivos,
mas não se calam majestosamente quando se os interroga? » Aquilo que o perturba
portanto, aquilo que lhe parece « terrível », é, na escrita como na pintura, o silêncio,
silêncio majestoso, mutismo em si mesmo inumano e que faz passar na arte o
estremecimento das forças sagradas, essas forças que, pelo horror e pelo terror,
abrem o homem a regiões estrangeiras.
Nada mais impressionante que essa surpresa diante do silêncio da arte, esse
mal-estar do amador de palavras, do homem fiel à honestidade da palavra viva: o que
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é isso que tem a imutabilidade das coisas eternas e que, no entanto, não é senão
aparência, que diz coisas verdadeiras, mas por trás do qual não há senão o vazio, a
impossibilidade de falar, de tal maneira que aqui o verdadeiro não tem nada que o
sustenha, aparece sem fundamento, é o escândalo daquilo que parece verdadeiro, não
é senão imagem e, pela imagem e o semblante, atrai a verdade para a profundeza
onde não há nem verdade, nem sentido, nem mesmo erro? Eis porque Platão e
Sócrates, na mesma passagem, se apressam em fazer da escrita, bem como da arte,
um divertimento em que o sério não está comprometido, que se reservará às horas de
recreação, semelhante a esses jardins em miniaturas formados artificialmente em
corbelhas para o ornamento das festas e chamados jardins de Adonis. O discurso
escrito, o « volume », não será, portanto, senão um « jardim em letras de escrita »,
capaz, no máximo, de comemorar as obras ou os eventos do saber, sem ter nenhuma
parte com o trabalho de sua descoberta. E se vê aqui Sócrates aproximar de novo a
escrita do sagrado ao aproximá-la da celebração que interrompe a atividade laboriosa
do homem votado ao verdadeiro para introduzi-lo no tempo em que deuses e homens
se encontram: o tempo da festa. Só que a antiga selvageria profética do carvalho não é
mais que um amável jardim em miniatura, do mesmo modo que a festa não é mais que
um divertimento.
Às vezes se pergunta por que René Char, poeta ligado a nosso destino, se sente
intimamente próximo do nome de Heráclito, de quem ele mesmo evocou a figura
vitoriosa, « a visão de águia solar », « gênio orgulhoso, estável e ansioso[iv] », mas o
qual evocam, portam diante de nós, por uma chamada mais imediata, tantas de suas
obras, fulgores de poema onde o poema parece reduzido ao gume do puro fulgor, ao
corte de uma decisão.
Se se julgasse útil retomar em poucos traços a força do poema tal como ele se
clareia na obra de René Char, poder-se-ia contentar-se em dizer que ele é essa palavra
futura, impessoal e sempre por vir em que, na decisão de uma linguagem que começa,
é-nos, entretanto, intimamente falado daquilo que se joga no destino que nos é o mais
próximo e o mais imediato. É, por excelência, o canto do pressentimento, da promessa
e do despertar – não que ele cante aquilo que será amanhã, nem que nele um porvir,
feliz ou infeliz, nos seja precisamente revelado -, mas ele liga firmemente, no espaço
que o pressentimento retém, a palavra ao impulso e, pelo impulso da palavra, ele
retém firmemente o advento de um horizonte mais amplo, a afirmação de um dia
primeiro. O porvir é raro, e cada dia que vem não é um dia que começa. Mais raro
ainda é a palavra que, em seu silêncio, é reserva de uma palavra por vir e nos volta,
nem que seja para o mais perto de nosso fim, em direção à força do começo. Em cada
uma das obras de René Char, nós ouvimos a poesia pronunciar o juramento que, na
ansiedade e na incerteza, a une ao porvir dela mesma, a obriga a não falar senão a
partir desse porvir para dar, de antemão, a essa vinda a firmeza e a promessa de sua
palavra.
Mas são aqui somente marcas. Aquilo que seria necessário precisar ainda:
poema no qual o poema está como que por vir, no qual é erguida a promessa, a
decisão de um começo, ele toma daí essa palavra às vezes breve, que se poderia dizer
retida, se ela não fosse a prodigalidade preservada, plenitude e generosidade da fonte.
« Senhor Tempo ! Loucas Ervas! Caminhantes potentes! » Palavra que não se repete,
que não usa de si mesma, que não diz as coisas já presentes, que não é o vai-e-vem
incansável do diálogo de Sócrates, mas, como a palavra do Senhor de Delfos, ela é a
voz que ainda não disse nada, que se desperta e que desperta: voz às vezes áspera e
exigente, que vem de longe e que chama para o longe.
Daí ainda que, na firmeza que a ergue e a mantém numa constante insurreição,
ela ligue o poema ao maior risco, o confie a esse risco, e essa confiança no
«considerável perigo», pela qual nossa própria situação se clareia, designa bem a
poesia para a aventura que ela deve essencialmente ser, quando se expõe, sem
garantia e sem certezas, à liberdade daquilo que não está ainda que por vir.
Palavra densa, fechada sobre sua própria ansiedade, que nos interpela e nos
empurra para frente, de modo que ela parece, às vezes, unir poesia e moral e nos dizer
aquilo que é esperado de nós, mas é porque ela é, para si mesma, essa injunção que é
a forma de todo começo. Toda palavra que começa, ainda que seja o movimento mais
doce e mais secreto, é, porque ela nos adianta infinitamente, aquela voz que abala e
que exige mais: tal como o mais delicado nascer do dia no qual se declara toda a
violência de uma primeira claridade, e tal como a palavra oracular que não dita nada,
que não obriga a nada, que não fala mesmo, mas faz com esse silêncio o dedo
imperiosamente fixado em direção ao desconhecido.
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Quando o desconhecido nos interpela, a palavra toma emprestada do oráculo a
sua voz onde não fala nada de atual, mas que força aquele que a escuta a se arrancar a
seu presente para dele vir a si mesmo como àquilo que não existe ainda, essa palavra é
frequentemente intolerante, de uma violência altiva que, em seu rigor e por sua
sentença indiscutível, nos tira de nós mesmos, ignorando-nos. Profetas e visionários
falam com uma soberania tanto mais abrupta quanto aquilo que fala neles os ignora:
essa ignorância que os torna tímidos torna-os autoritários e dá a suas vozes mais
dureza que fulgor.
De onde vem isso? É que ela diz o começo, mas pela longa, paciente, silenciosa
aproximação da origem e na vida profunda do todo, dando acolhida ao todo. A
natureza é potente sobre essa obra, e a natureza não é somente as sólidas coisas
terrenas, o sol, as águas, a sabedoria dos homens duráveis, não é mesmo todas as
coisas, nem a plenitude universal, nem o infinito do cosmos, mas aquilo que é já antes
de « tudo », o imediato e o muito longínquo, aquilo que é mais real que todas as coisas
reais e que se esquece em cada coisa, o laço que não se pode ligar e pelo qual tudo, o
todo se liga. A natureza é, na obra de René Char, essa prova da origem, e é nessa prova
em que ela é exposta ao jorrar de uma liberdade sem medida e à profundidade da
ausência de tempo que a poesia conhece o despertar e, devindo palavra que começa,
devém a palavra do começo, aquela que é o juramento do porvir. Eis porque ela não é
a antecipação que, de uma maneira provocante, se lançaria profeticamente no tempo
e fixaria, ligaria o futuro; ela não é muito menos palavra de vidente, à maneira «
desregrada » de Rimbaud, mas é « previdente », como aquilo que reserva e
salvaguarda, aquilo que assegura e aclimata a vida profunda e a livre comunicação do
todo, palavra na qual a origem se faz começo.. « Os grandes previdentes precedem um
clima, às vezes o fixam, mas não adiantam fatos. Eles podem, no máximo, deduzindo-
os desse clima, rabiscar os contornos de seus fantasmas e, se eles tiverem escrúpulo,
por antecipação, tirar-lhes o brilho. Aquilo que terá lugar banha, ao mesmo título,
aquilo que passou numa espécie de imersão. » « Mas quem restabelecerá em torno de
nós essa imensidade, essa densidade, realmente feitas para nós, e que, de todas as
partes, não divinamente, nos banhavam? » (À une Sérénite crispée).
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Se a palavra do poema, na obra de René Char, evoca a palavra do pensamento
em Heráclito, tal como ela nos foi transmitida, nós o devemos, parece, a essa relação
[rapport] com a origem, relação em um e no outro, não tão confiante nem estável,
mas dilacerada e tempestuosa. Xenófanes, sem dúvida mais jovem que Heráclito, mas
como ele daqueles que, com uma ternura um pouco zombeteira, Platão chamava de «
os Velhos », era um desses aedos errantes, que iam de país em país e viviam de seus
cantos; só que aquilo que cantava em seu canto, era já o pensamento, uma palavra
que recusava as lendas dos deuses, as interrogava asperamente e se interrogava a si
mesma, de modo que aqueles que o escutavam assistiam a esse evento muito
estranho: o nascimento da filosofia no poema.
Na obra de René Char, tal como nos fragmentos de Heráclito, é a essa eterna
gênese que nós assistimos de momento em momento, a esse duro combate junto do
anterior, lá onde a transparência do pensamento se faz dia através da imagem obscura
que a retém, onde a mesma palavra, sofrendo uma dupla violência, parece se clarear
pelo silêncio nu do pensamento, parece se adensar, preencher-se da profundidade
falante, incessante, murmúrio onde nada se deixa ouvir. Voz do carvalho, linguagem
rigorosa e fechada do aforismo, é assim que nos fala, na indistinção de uma palavra
primeira, « mãe fantasticamente disfarçada, a Sabedoria com os olhos cheios de
lágrimas » que, olhando o friso de Lascaux, René Char identificou sob a figura da
«Besta inominável[viii]». Estranha sabedoria, muitíssimo antiga para Sócrates e
muitíssimo nova também e da qual, entretanto, apesar do mal-estar que o fazia se
distanciar dela, deve-se crer que ele não está excluído, ele que não aceitava como
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penhor à palavra senão a presença de um homem vivo e que, no entanto, veio a
morrer por isso, a fim de manter palavra.
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Nota do tradutor[i] : Blanchot emprega “palavra” [parole] no sentido de discurso, de fala, como na
expressão “a palavra de Deus” [a fala que viria de Deus].[ii] Blanchot usa o pronome pessoal l’on de
modo impessoal, que teria como equivalente em português o pronome se em suas funções de
indeterminador e apassivador do sujeito gramatical. Por isso, para diferenciar o se pronome impessoal
do caso reto do “se” pronome pessoal oblíquo usaremos o “se” pronome impessoal do caso reto em
itálico.[iii] A partir da tradução francesa de Léon Robin, edição de la Pléiade.[iv] Avant-propos à Héraclite
d’Éphèse, traduction nouvelle d’Yves Battistine, éditions « Cahiers d’Art ».[v] À une Sérénité crispée,
Gallimard, 1951.[vi] Lettera amorosa, Gallimard, 1953.[vii] Essa «imensidade » da « imersão », que é o
espaço mesmo do canto no qual vive o todo, Partage formel a clareia assim: « Em poesia, é somente a
partir da comunicação e da livre disposição da totalidade das coisas entre si através de nós, que nós nos
encontramos empenhados e definidos, do mesmo modo que obtemos nossa forma original e nossas
propriedades probatórias. »[viii] La Paroi et la Prairie, G. L. M., 1952.[vii].)