Serpente - Rex Stout
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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
TÍTULO
REX STOUT
SERPENTE
(Fer-de-Lance - 1934)
* * *
ÍNDICE
Capa
Título
Índice
O Autor
Série
Resumo
Capítulos
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Quatorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
* * *
O AUTOR
O detetive Nero Wolfe surgiu pela primeira vez no romance Fer-de-Lance (Picada
Mortal), inicialmente publicado em fascículos no jornal The Saturday Evening Post,
sendo posteriormente editado em livro em 1934. Este livro, The League of the
Frightened Men (A Confraria do Medo), publicado em 1935, foi adaptado pelo cinema
em 1937. Neste ano Stout criou a personagem Dol Bonner, uma detetive particular, que
viria a protagonizar diversos outros livros de Rex Stout.
Escreveu mais de 70 romances policiais, 46 dos quais com Nero Wolfe, detetive
excêntrico e obeso, gourmet e grande apreciador de cerveja, cujo companheiro, o
intrépido Archie Goodwin, o ajuda na resolução dos crimes. Após a morte de Stout, em
Danbury, Connecticut, no dia 27 de outubro de 1975, o escritor Robert Goldsborough
continuou as aventuras de Nero Wolfe, a partir do final dos anos 80.
Uma associação de fãs de Stout e de Wolfe, designada The Wolfe Pack, organiza
eventos para os leitores incluindo discussões bimensais sobre os livros e um congresso
e banquete anual em Nova Iorque. Publica também a revista semestral Gazette.
* * *
LIVROS DA SÉRIE DETETIVE NERO WOLFE
1. 1934: Fer-de-Lance
2. 1935: The League of Frightened Men
3. 1936: The Rubber Band
4. 1937: The Red Box
5. 1938: Too Many Cooks
6. 1939: Some Buried Caesar
7. 1940: Over My Dead Body
8. 1940: Where There's a Will
9. 1942: Black Orchids
10. 1944: Not Quite Dead Enough
11. 1946: The Silent Speaker
12. 1947: Too Many Women
13. 1948: And Be a Villain (British title More Deaths Than One)
14. 1949: Trouble in Triplicate
15. 1949: The Second Confession
16. 1950: Three Doors to Death
17. 1950: In the Best Families (British title Even in the Best Families)
18. 1951: Curtains for Three
19. 1951: Murder by the Book
20. 1952: Triple Jeopardy
21. 1952: Prisoner's Base (British title Out Goes She)
22. 1953: The Golden Spiders
23. 1954: Three Men Out
24. 1954: The Black Mountain
25. 1955: Before Midnight
26. 1956: Three Witnesses
27. 1956: Might as Well Be Dead
28. 1957: Three for the Chair
29. 1957: If Death Ever Slept
30. 1958: And Four to Go
31. 1958: Champagne for One
32. 1959: Plot It Yourself (British title Murder in Style)
33. 1960: Three at Wolfe's Door
34. 1960: Too Many Clients
35. 1961: The Final Deduction
36. 1962: Homicide Trinity
37. 1962: Gambit
38. 1963: The Mother Hunt
39. 1964: Trio for Blunt Instruments
40. 1964: A Right to Die
41. 1965: The Doorbell Rang
42. 1966: Death of a Doxy
43. 1968: The Father Hunt
44. 1969: Death of a Dude
45. 1973: Please Pass the Guilt
46. 1975: A Family Affair
47. 1985: Death Times Three (posthumous)
* * *
RESUMO
Wolfe, um senhor obeso que gosta de três coisas na vida: comer muito bem,
cultivar orquídeas e solucionar crimes. Odeia sair de casa, o que só faz em situações
muito especiais (por exemplo, levar suas orquídeas para competir em alguma exposição
rural). Com Archie Goodwin, seu assistente, Nero Wolfe compõe uma versão
originalíssima da dupla Sherlock Holmes/Watson. Neste livro, o leitor logo vê por que
essa parceria se tornou uma das mais célebres de toda a história do romance policial.
* * *
Um
Wolfe ergueu a cabeça. Menciono o pormenor porque tinha uma cabeça tão grande
que o fato de levantá-la parecia uma tarefa cansativa. Provavelmente era maior do que
parecia, pois o resto dele tinha dimensões tão avantajadas que qualquer cabeça que não
fosse a sua passaria totalmente despercebida.
Sorri e me sentei numa cadeira para tentar descobrir o que Wolfe fazia com uns
pedaços de papel que recortara em pequenos discos e movia em diferentes posições
sobre o tampo da mesa. Fritz começou a trazer as cervejas num tabuleiro, seis de cada
vez. Após a terceira viagem, tornei a sorrir quando vi Wolfe olhar as garrafas em cima
da mesa e em seguida as costas de Fritz, que desapareciam através da porta. Chegaram
mais dois tabuleiros cheios, após o que ele suspendeu o desfile.
— Aqui está uma surpresa agradável, Archie. Confesso que nunca esperei. É,
evidentemente, a vantagem de ser pessimista. Com efeito, um pessimista só tem
surpresas agradáveis, e o otimista desagradáveis. Até agora, nada disto pode se
considerar uma porcaria. Como vê, Fritz anotou o preço no rótulo e comecei pelas mais
baratas. Não, agora esta.
Foi naquele momento que ouvi o leve zumbido na cozinha, indicativo de que havia
alguém à porta da rua, som que pôs a engrenagem em movimento. Em todo o caso, na
altura parecia não se tratar de nada de interessante, apenas Durkin solicitando um favor.
Durkin era útil até à raiz dos cabelos. Quando considero como se revelava em muitos
aspectos, me custa a crer que conseguisse seguir alguém. Bem sei que os terriers são
estúpidos, mas a vigilância a uma pessoa envolve algo mais do que não a perder de
vista, e Fred Durkin era perito na matéria. Numa ocasião em que lhe perguntei como o
conseguia, explicou: “Limito-me a abordar o indivíduo em causa e lhe perguntar para
onde vai. Assim, se o perco, sei onde devo procurá-lo.”.
— Olá, Fred. Devo-lhe alguma coisa? Durkin se aproximou da mesa com o chapéu
na mão e abanou a cabeça.
— Como está, Mister Wolfe? Oxalá devesse. Se alguém me devesse alguma coisa,
me agarrava a ele como a sela ao cavalo.
— Sente-se. Quer provar umas cervejas?
— Não, obrigado. Fred se manteve de pé. — Venho pedir um favor.
Certa ocasião, confidenciei a Saul Panzer que era o mesmo que estar com ele numa
sala às escuras, cujo conteúdo me descrevia, e quando a luz se acendia ,a explicação se
apresentava plausível porque via tudo na minha frente como ele mencionara.
— Maria Maffei, Mister Wolfe informou Durkin. Ela lhe dirigiu um sorriso,
exibindo dentes pequenos e brancos, e se virou para Wolfe.
— Maria Maffei ecoou, com pronúncia muito diferente.
— Mistress Maffei?
— Não, senhor. Meneou a cabeça com veemência. — Não sou casada.
— Mas está em apuros?
— Sim, senhor. Mister Durkin pensa que terá a gentileza...
— Explique de que se trata.
— Sim, senhor. É o meu irmão Carlo. Partiu.
— Para onde?
— Não sei. É por isso que estou preocupada. Há dois dias que não o vejo.
— Onde que...? Não. Isto não são fenômenos, mas apenas fatos. Wolfe se voltou
para mim. — Prepare-se, Archie.
Era governanta num elegante apartamento de Park Avenue, onde morava. O irmão,
Carlo, dois anos mais velho, morava numa pensão na Sullivan Street. Era técnico de
metais (excelente, segundo ela) e ganhara bom dinheiro durante anos ao serviço da
Ourivesaria Rathbun & Cross, mas em virtude de abusar da bebida e faltar com
frequência ao trabalho, fora dos primeiros a serem despedidos quando surgira a crise
econômica mundial. Durante algum tempo, conseguira executar tarefas isoladas aqui e
ali, até que esgotara as parcas economias e, ao longo do inverno e primavera últimos
fora sustentado pela irmã. Em meados de abril, totalmente desencorajado, decidira
regressar a Itália, e ela concordara em fornecer os fundos necessários, chegando a lhe
adiantar o dinheiro para a passagem de navio. No entanto, uma semana depois, ele
anunciara subitamente que a viagem fora adiada. Não explicara porquê, mas declarara
que não precisaria de mais ajuda monetária e em breve poderia lhe pagar o dinheiro
emprestado, acabando provavelmente por continuar nos Estados Unidos.
— Não pode se recusar. Mister Durkin diz que luta com dificuldades monetárias.
Ainda me resta um pequeno pecúlio que me permitirá pagar as despesas e talvez um
pouco mais. E o senhor é amigo de Mister Durkin e eu amiga da mulher dele, a minha
amiga Fanny.
— Não sou amigo de ninguém, retrucou ele. — Quanto pode pagar? Maria hesitou.
— Quanto tem?
— Bem... Mais de mil dólares.
— De quanto está disposta a separar-se?
— De... De tudo, se for necessário. Se encontrar o meu irmão inteiro e vivo. Se
não o descobrir com vida e me mostrar e indicar quem o matou, também pagarei uma
quantia avultada. Mas primeiro teria de pagar o funeral.
— Vejo que é uma pessoa prática, Maria Maffei. E, além disso, possivelmente,
uma mulher de honra. Tem razão, existe algo em mim que pode lhe ser útil, o gênio, mas
não forneceu o estimulante para despertá-lo, e me parece problemático que acorde para
procurar o seu irmão. De qualquer modo, a rotina está em primeiro lugar, e as despesas
dela resultantes serão pequenas. Voltou-se para mim. — Vá à pensão de Carlo Maffei,
acompanhado da irmã, que contribuirá com a autoridade para agir. Interrogue a
empregada que o ouviu falar ao telefone e outras pessoas susceptíveis de fornecerem
elementos úteis. Examina o quarto e, se descobrir alguma pista, ligue para cá e pergunta
pelo Saul Panzer, a qualquer hora depois das cinco. No regresso, traz os artigos que
julgar pouco importantes.
* * *
Dois
Era uma pensão como qualquer outra. Por razões que nunca me preocupei em
aprofundar, são todas iguais, quer se trate de um estabelecimento dispendioso na área
das Fifthies, um prédio vulgar a oeste de Central Park cheio de artistas jovens e
honestas ou uma espelunca italiana como a de Sullivan Street. Com, evidentemente, uma
diferença nos pormenores, como o cheiro a alho.
No canto perto da janela da direita, havia uma mesa vulgar, tosca mesmo, com o
tampo cheio de riscos e um torno, uma mó de esmeril e um disco para polir, cujo fio
elétrico tinha comprimento suficiente para chegar ao abajur, além de mais várias
ferramentas do gênero num saco de viagem. Entretinha-me a inspecionar a mó para
tentar determinar se fora utilizada recentemente, quando Maria Maffei reapareceu com a
empregada.
Era uma moça que nada devia à formosura, de uns vinte anos, com tez semelhante a
massa de vidraceiro seca e estalada, e apresentava uma expressão como se tivesse
sofrido um susto no berço de que nunca se recompusera. Disse-lhe como me chamava e
que me inteirara através de Miss Maffei de que ouvira o irmão desta falar ao telefone
antes de sair, segunda-feira à noite. Depois de vê-la assentir com um movimento de
cabeça, voltei-me para a mulher.
Fiquei algo atrapalhado. A verdade era que eu concordava com Durkin que se
tratava de mera perda de tempo. Por conseguinte, expliquei a Maria Maffei que
prescindia perfeitamente da sua presença e que podia se retirar, pois Wolfe trataria de a
informar, se surgisse alguma novidade. Por fim, dirigiu um olhar fugaz à jovem, me
mostrou os dentes mais uma vez e se retirou. Coloquei duas cadeiras frente a frente,
indiquei a Anna Fiore que se sentasse numa, ocupei a outra e puxei do bloco-de-notas.
— Não tem nada a recear lhe assegurei. — O pior que pode acontecer é fazer um
favor a Miss Maffei e ao irmão, e ela lhe dar algum dinheiro como recompensa.
Simpatiza com Miss Maffei?
— Sim, é atenciosa.
— E quanto a Mister Maffei?
— Sim, claro, toda a gente gosta dele. Exceto quando bebe, pois nessa altura uma
moça deve evitá-lo.
— Como aconteceu de ouvir a conversa ao telefone, segunda-feira à noite?
Esperava o telefonema?
— Como podia eu esperá-lo?
— Não sei. Foi você que atendeu?
— Não, Mistress Ricci. Disse-me que era para Mister Maffei e fui chamá-lo lá em
cima. Depois, fiquei arrumando a mesa da sala de jantar, com a porta aberta, e pude
ouvi-lo falar.
— Distinguiu as palavras?
— Com certeza. Denunciou uma ponta de desdém. — Ouvimos sempre tudo o que
as pessoas dizem ao telefone. Mistress Ricci ouviu tão bem como eu.
— Que disse ele?
— Começou por dizer “Alô?”. A seguir, disse: “Fala Carlos Maffei, diga o que
pretende.” E depois: “Isso é comigo, lhe explico quando nos virmos.” E depois:
“Porque não aqui, no meu quarto?” E depois: “Não, não tenho medo. Quem deve ter
medo não sou eu.” Mistress Ricci afirma que foi: “Quem tem medo não sou eu”, mas
não se lembra bem. Depois ele disse: “Claro que quero o dinheiro, e muito mais.” E
depois: “Está bem, às sete e meia na esquina de.” Depois: “Cale-se você.” Depois:
“Pronto, às sete e meia, conheço esse carro.” Calou-se e perguntei:
— Com quem ele estava falando? Supus que responderia que não sabia, pois
Maria Maffei declarara que o ignorava, mas disse com prontidão: Com o homem que
tinha telefonado antes.
— Antes? Quando?
— Várias vezes. Em maio. Um dia, em duas ocasiões. Mistress Ricci diz que
foram nove até segunda-feira.
— Você lhe ouviu a voz alguma vez?
— Não, senhor. Quem atende o telefone é sempre ela.
— E mencionar o nome do homem?
— Também não. Quando Mistress Ricci se encheu de curiosidade, perguntou-o,
mas ele se limitou a responder: “Não interessa. Basta dizer que venha ao telefone.”
Insisti durante duas horas e recolhi numerosos fatos, embora nenhum que se
revestisse de significado para mim. Em dado momento, supus que tocara num ponto
sensível, merecedor de aprofundamento, quando me inteirei de que Carlo Maffei andava
com duas mulheres, com as quais aparecia em público, uma das quais casada, mas ao
compreender que isso não tinha a mínima ligação com o telefonema pu-lo de parte. Ele
mencionara a intenção de partir para a Itália, mas não fornecera pormenores.
Conservara o assunto hermeticamente fechado no seu íntimo. Não recebia visitas, à
parte a irmã e um amigo dos dias mais prósperos, com quem fora jantar ocasionalmente.
A sondagem de duas horas não me proporcionou o menor clarão prometedor, mas havia
algo no telefonema que me impedia de renunciar. Por fim, disse à jovem:
— Aguarde aqui um momento, Anna, enquanto vou lá em baixo falar com Mistress
Ricci.
— Não posso prometer nada, pois quando o meu patrão começa a fazer perguntas,
os dias e as noites carecem de significado para ele. No entanto, lhe garanto que voltará
sã e salva, o mais depressa possível.
Subi ao quarto para recolher Anna e algumas das coisas da cômoda, e quando
transpus a porta da rua verifiquei com alívio que o conversível não perdera nenhum
para-choque, muito menos a roda sobresselente. Enveredei em direção ao centro da
cidade sem exagerar a velocidade, para não chegar à Thirty-Fifth Street demasiado
cedo, pois Wolfe se encontrava sempre na estufa com as suas plantas das quatro às seis,
e não constituía uma ideia inspirada incomodá-lo durante essas duas horas, a menos que
não se pudesse evitar. Anna se mostrou excitada com o conversível, conservando os pés
para trás, apoiados ao banco, e as mãos unidas com firmeza no regaço. A atitude me
impressionou e experimentei uma ponta de simpatia por ela, de tal modo que disse que
talvez lhe desse um dólar se revelasse ao meu patrão algo que ele considerasse
interessante.
Passavam dois ou três minutos das seis quando freei à entrada do velho edifício de
arenito avermelhado, a menos de um quarteirão do Rio Hudson, onde vivera nos
últimos vinte anos e eu lhe fizera companhia ao longo da terça parte desse período.
Anna não regressou à pensão às nove daquela noite. Já tinham dado as onze quando
Wolfe me mandou à redação do Times para trazer o jornal, e a meia-noite há muito que
ficara para trás no momento em que finalmente atingimos o ponto que ela reconheceu.
Entretanto, Mrs. Ricci telefonara três vezes e, quando cheguei à Sullivan Street com a
jovem, pouco antes da uma da madrugada, a dona da pensão aguardava à entrada,
possivelmente com uma faca enfiada na meia. Todavia, não proferiu uma única palavra,
se limitando a me dirigir um olhar irado. No entanto, eu dera o dólar a Anna, porque
acontecera algo de interessante.
Iniciou o interrogatório imediatamente. Era uma cena admirável. Cinco anos antes,
eu não a teria apreciado. E era admirável por ser absolutamente eficiente. Se houvesse
alguma coisa na jovem, um vislumbre de conhecimento, um fragmento de sensação ou
reação aparentemente esquecido, susceptível de nos orientar ou proporcionar um
indício, resultaria impossível mantê-la oculta. Crivou-a de perguntas ao longo de cinco
horas. Interrogou-a sobre a voz de Carlo Maffei, hábitos, modo de vestir, refeições,
temperamento, maneiras à mesa, relações com a irmã, com Mrs. Ricci, com a própria
Anna, com alguém que esta tivesse visto na companhia dele. Fez-lhe perguntas acerca
de Mrs. Ricci, dos hóspedes de pensão nos últimos dois anos, dos vizinhos, dos
comerciantes que iam levar coisas. E fazia-o com desprendimento e ar quase indolente,
se empenhando em não cansá-la, atitude muito diferente da que assumira na ocasião em
que o vira enfrentar Lon Graves, que quase enlouqueceu, numa tarde.
— Devia ter lhe dito que trouxesse a edição da cidade, advertiu quando entrei.
— Foi a que comprei.
— Ótimo. Virou-se para a jovem. — Se não se importa, Miss Fiore, convinha que
acompanhasse os nossos preparativos. Dê a volta na cadeira dela, Archie, junto da
mesinha para a sua cerveja. Agora, os jornais. Não, não os rasgue. É preferível que
estejam intatos, como ela os viu da primeira vez. Retire as segundas seções, que servem
para Miss Fiore recolher o lixo.
Abri uma primeira seção na mesa diante dele, que se endireitou na cadeira para
examiná-la. Era como ver um hipopótamo no parque zoológico se erguer para engolir
comida. Retirei todas as segundas seções, amontoei-as numa cadeira e a seguir peguei
numa primeira página e inspecionei-a. A um relance preliminar, parecia destituída de
todo e qualquer interesse: havia mineiros em greve na Pensilvânia, a Administração de
Recuperação Nacional estava salvando o país em três campos diferentes, dois rapazes
tinham atravessado o Atlântico numa embarcação de dez metros, o presidente de uma
universidade sucumbira a um ataque cardíaco quando jogava golfe, um gangster fora
capturado num apartamento de Brooklyn graças ao emprego de gás lacrimogêneo, um
negro tinha sido linchado no Alabama e alguém descobrira uma tela valiosa algures na
Europa.
Dirigi uma olhada fugaz a Wolfe, que parecia devorar toda a página. A única coisa
que me parecia merecedora de certo interesse era a tela, que fora encontrada na Suíça e
se supunha roubada da Itália. Mas quando ele finalmente extraiu a tesoura de uma
gaveta foi a notícia sobre o gangster que recortou. Em seguida, pousou o jornal e pediu
outro. Entreguei-lhe e desta vez sorri ao verificar que escolhia a informação sobre a
tela. No momento em que pediu o terceiro, senti a curiosidade espicaçada e, ao vê-lo
mover a tesoura em torno da reportagem acerca da morte do presidente universitário,
arregalei os olhos. Notando a minha reação, disse, sem erguer os olhos:
— Reze para que seja isto, Archie. Se tal acontecer, teremos uma Angraecum
Sesquipedale pelo Natal.
Eu podia escrever o nome corretamente, porque me encarregava de registrar as
suas despesas com orquídeas, assim como com tudo o resto, mas seria tão incapaz de
pronunciá-lo como de imaginar qualquer relação entre o presidente universitário e
Carlo Maffei.
A última notícia que ele recortara se encontrava no topo do pequeno monte, mas
puxei-a de imediato, pois a que se referia à tela se achava num largo espaço retangular
à direita da página. Quando a mostrei a Anna, Wolfe lhe recomendou:
— Repare bem, Miss Fiore. Era assim que a notícia estava recortada, segunda-
feira de manhã?
— Não, senhor, ela respondeu, após uma mera olhadela fugaz. Era da parte de
cima da página. — Eu explico...
— Sim, senhor.
— É essa a notícia?
— Pelo menos, o recorte era assim. Wolfe se conservou calado por um momento,
até que o ouvi respirar e me ordena-:
— Volte-a, Archie. Pousei a mão no braço da cadeira dela e fi-la rodar. Ele
olhou-a e perguntou: — Tem certeza de que o jornal foi recortado dessa maneira?
— Absoluta.
— Viu o pedaço que ele recortou? No quarto, talvez no cesto dos papéis ou na sua
mão?
— Não cheguei a vê-lo. E não podia estar no cesto dos papéis, porque é coisa que
não existe nos quartos.
— Muito bem. Oxalá todas as razões fossem tão válidas como essa. Pode se
retirar, Miss Fiore. Foi muito atenciosa. Atenciosa, paciente e indulgente e, ao contrário
da maioria das pessoas que evito, permanecendo em casa, limita a língua às suas
funções apropriadas. Mas se importa de responder a mais uma pergunta? Solicito-lhe
como um favor.
Anna não tentou se levantar até que me aproximei e lhe toquei no ombro. Pousou
então as mãos nos braços da cadeira e se pôs de pé. Wolfe conseguira impressioná-la,
porém ela não parecia assustada, apenas abatida. Fui apanhar o seu casaco no espaldar
de uma cadeira e ajudei-a a vesti-lo. Quando se encaminhava para a porta, me virei
para dizer algo a Wolfe, e quase não acreditei no que vi. Erguia-se da cadeira para se
pôr de pé! Ainda me recordava da ocasião em que se negara a ter semelhante trabalho
para se despedir de uma mulher cuja fortuna fora avaliada em vinte milhões de dólares,
casada com um duque inglês. Não obstante, revelei o que me levara a voltar para trás:
* * *
Três
Não existia nada de invulgar no quarto, se tratava de um bom aposento para viver,
à exceção do enorme alarme na parede debaixo da cama, mas não se via. Achava-se
ligado a um circuito, por meio do qual vibrava com intensidade quando Wolfe ligava
um interruptor no seu quarto, o que fazia todas as noites, se alguém entrasse no corredor
a um metro e meio da sua porta, tentasse abrir alguma das janelas ou pretendesse forçar
a entrada da estufa. Ele me explicou uma ocasião, embora o pormenor carecesse de
importância especial, que não o animava qualquer sentimento de covardia, pois
detestava, pura e simplesmente, com intensidade que alguém lhe tocasse ou ser
obrigado a efetuar movimentos rápidos, e quando ponderei o volume que necessitava de
deslocar acreditei na sinceridade das suas palavras. Por qualquer razão indefinida,
questões como a covardia nunca me interessaram em relação a Wolfe, conquanto, em
regra, se tenho motivos para suspeitar de que um homem é “amarelo”, prefiro que coma
noutra mesa.
Era o que se chamava um artigo e peras, com uma coluna inteira na primeira
página, mais uma e meia numa das interiores e, noutro artigo, um longo obituário, com
comentários de muita gente proeminente. A história em si não continha nada de especial
e, espremida, revelava que mais um homem entregara a alma ao Criador. Eu lia o jornal
diariamente e aquele datava apenas de dois dias atrás, mas não me recordava de ter
reparado naquilo. Barstow, de 58 anos, presidente da Universidade Holland, jogava
golfe, domingo à tarde, no campo do Green Meadow Club, perto de Pleasantville,
cinquenta quilômetros ao norte de Nova Iorque, com o filho Lawrence e dois amigos,
chamados E. D. Kimball e Manuel Kimball. Quando tentava o quarto buraco,
cambaleara subitamente e caíra de bruços, para rolar no chão por uns segundos, até se
imobilizar definitivamente. Caddy se precipitara para ele e lhe segurara o braço, mas
quando os outros acudiram Barstow já expirara. Entre a pequena multidão, composta
por pessoas que surgiram do edifício do clube e outros jogadores, se encontrava um
médico, velho amigo do extinto, o qual, com o filho de Barstow, transferiu o corpo para
o carro deste último, a fim de o levar para a residência, a dez quilômetros de distância.
O médico indicou um colapso cardíaco como causa da morte.
Eram quase dez horas quando desci do quarto, na manhã seguinte, pois preciso de
dormir oito horas sempre que posso e, de qualquer modo, Wolfe não apareceria antes
das onze. Levantava-se às oito, independentemente da hora a que se deitasse, tomava o
café-da-manhã no quarto com dois jornais e permanecia na estufa das nove às onze. Às
vezes, eu ouvia o velho Horstmann, que cuidava das plantas, berrar com ele, quando me
vestia ou tomava banho. Wolfe parecia exercer nele o mesmo efeito que um árbitro em
John J. McGraw. Isto não significa que o velho lhe guardasse rancor.
Acabou por aceitar a cadeira e voltei a me concentra- nos registos das plantas.
Uma ou duas vezes, considerei a possibilidade de tentar sondá-lo, só para me divertir,
mas a expressão do seu rosto bastou para me dissuadir: era demasiado jovem e honesto
para perder tempo com ele. Ao longo dos dezenove minutos, se conservou sentado
como se estivesse na igreja, sem pronunciar uma única palavra. Quando Wolfe
apareceu, se levantou com prontidão. Enquanto percorria a distância que o separava da
mesa, me deu bom-dia, me mandou abrir mais uma janela e dirigiu uma leve olhada ao
desconhecido. Ao sentar, viu o cartão-de-visita, que eu pousara no tampo de vidro,
lançou uma olhadela à correspondência, levantando os envelopes com dedos ágeis,
como os de um caixeiro de banco ao manipular cheques ou dinheiro, e por fim se voltou
para o detetive.
Coloquei uma cadeira atrás dos joelhos de O'Grady, que a ocupou num movimento
lento.
— Está recebendo uma lição grátis, mas valiosa, prosseguiu Wolfe. — É jovem,
pelo que a pode aproveitar. Desde que entrei nesta sala, só tem cometido erros. Fez
uma afirmação contrária aos fatos, o que foi uma estupidez. Portou-se sem cortesia, o
que representou uma atitude ofensiva. Confundiu conjectura com conhecimento, o que
constitui uma manifestação de ignorância. Quer que lhe explique como devia ter
procedido? Os meus motivos são inteiramente amistosos.
— Não pretendo acusá-lo pelos seus motivos, grunhiu O'Grady, pestanejando.
— Ótimo. E claro que não podia adivinhar a inadvertência de implicar que me
desloquei ao quarto de Carlo Maffei. Como não se acha familiarizado com os meus
hábitos, ignorava que não empreenderia essa tarefa, ainda que a recompensa fosse uma
Cattleya Dowiana áurea. E de modo algum por causa de simples jornais e, segundo a
sua terminologia, coisas. Por outro lado, Archie Goodwin, e o indicador descreveu um
semicírculo até ficar apontado para mim, — Não é tão exigente, pelo que se incumbiu
de a executar. Devia ter procedido do seguinte modo, Mister O'Grady. Em primeiro
lugar, responder quando lhe dei bom-dia. Em segundo, apresentar a sua pretensão com
cortesia, clareza e abundância de pormenores. Em terceiro, embora isto seja menos
essencial, me revelar, por uma questão de deferência profissional, que o corpo do
assassinado Carlo Maffei tinha sido encontrado e identificado e o recurso a esses
jornais se tornava necessário para tentar descobrir o criminoso. Não concorda que seria
uma atitude mais agradável?
— Como diabo?... Começou o detetive, de olhos arregalados de assombro. — Não
vi nada e o nome não podia figurar nas notícias, porque eu próprio só o soube há duas
horas. É um adivinho extraordinário, Mister Wolfe.
— Obrigado. Também não vi nada nos jornais, mas, como a comunicação de
Maria Maffei sobre o desaparecimento do irmão não suscitou à polícia um esforço
generoso de dedução, me pareceu provável que nada de inferior a um homicídio a poria
em ação ao ponto de descobrir que Archie visitara o quarto e trouxera os jornais. Pode
me revelar onde foi encontrado o corpo?
— Descubra pelos vespertinos. O'Grady se levantou. — É impagável. Mister
Wolfe. Passemos aos jornais.
— Com certeza. Wolfe não se moveu. — Mas lhe apresento um ponto para que o
pondere. Apenas peço três minutos do seu tempo e informação que será de domínio
público dentro de poucas horas. Quem sabe se, hoje, amanhã ou dentro de um ano, em
ligação com este ou outro caso, não me chegará ao conhecimento algum pequeno fato
susceptível de antecipar a data da sua promoção, glória ou aumento de vencimento. Ora,
repito, comete um erro se ignora as exigências da deferência profissional. O corpo foi
talvez encontrado no condado de Westchester?
— Essa agora! Se não me tivesse elucidado sobre a sua reputação, nem fosse tão
evidente que precisaria de um caminhão para se deslocar ao local, concluiria que foi o
senhor o autor do crime. Sim, encontraram-no no condado de Westchester. Num
pequeno bosque a trinta metros de uma estrada secundária e a cinco quilômetros de
Scarsdale, ontem, às oito da noite. Dois garotos que andavam apanhando ninhos nas
proximidades.
— Abatido a tiro?
— Apunhalado. O médico diz que a lâmina deve ter permanecido cravada por
algum tempo, uma hora ou talvez mais, mas não estava no local nem foi encontrada. As
etiquetas da roupa são de um estabelecimento na Grand Street, e isso e as marcas da
lavandaria me foram entregues às sete horas desta manhã. Às nove, descobrira o nome
da vítima e, desde então, revistei o quarto e interroguei a dona da pensão e a
empregada.
— Excelente. Verdadeiramente excepcional.
— A jovem... O homem tornou a franzir o sobrolho. — Ou sabe alguma coisa ou
dentro da sua cabeça há tanto espaço livre que nem se lembra do que comeu no café-da-
manhã. O senhor, que a trouxe aqui, o que pensou ao ver que não se recordava de uma
única palavra do telefonema que ouviu, juntamente com a dona da pensão?
— Miss Anna Fiore não está perfeitamente equipada, Mister O'Grady. Achou,
pois, a sua memória deficiente?
— Deficiente? Já nem se lembrava do primeiro nome de Maffei!
— Sim, é pena. Wolfe impeliu a cadeira para trás, pousando as mãos na borda do
tampo da mesa e exercendo pressão, e compreendi que pretendia se levantar . Passemos
aos jornais. Os outros artigos se resumem a uma lata de tabaco vazia e quatro
instantâneos. Vou lhe pedir um favor. Importa-se que Mister Goodwin o acompanhe ao
corredor? Trata-se de uma idiossincrasia pessoal. Tenho extrema relutância em abrir o
cofre na presença de outras pessoas. Sem ofensa, claro. Procederia do mesmo modo,
talvez com um pouco mais de veemência, se o senhor fosse o meu banqueiro.
O meu longo convívio com ele tinha me habituado a quase todas as suas atitudes,
mas desta vez necessitei de me esforçar para manter a impassibilidade. Cheguei a abrir
a boca para comunicar que se encontrava tudo numa gaveta da sua mesa, onde o
colocara na véspera ante os seus olhos, e o olhar de advertência que me dirigiu foi a
única coisa que me conteve. O detetive hesitou, porém Wolfe insistiu:
— Decerto não supõe que procuro uma oportunidade para ocultar alguma coisa,
porque nessa eventualidade não poderia fazer nada para evitá-lo. As suspeitas desta
natureza entre profissionais são fúteis.
O detetive se retirou. Quando ouvi a porta da rua se fechar, me dirigi à sala e, pela
janela, o vi se afastar. Em seguida, regressei ao escritório, me aproximei da mesa de
Wolfe, atrás da qual voltara a se sentar, sorri e observei:
Levou a mão a um dos bolsos do casaco e extraiu um pedaço de papel com cerca
de cinco centímetros de comprimento e um e meio de largura, que me estendeu. Era um
dos recortes encontrados na gaveta da cômoda de Maffei, e custava a crer que Wolfe
conhecesse a sua existência, pois apenas lhes dirigira uma olhadela superficial na
véspera. Não obstante, tivera o trabalho de mandar sair O'Grady para conservá-lo.
TÉCNICO DE METAIS. Deve ser perito em design e mecanismos, disposto a regressar à Europa
para residência permanente. Pode obter comissões lucrativas. Times 1467.
Li-o duas vezes, mas não fiquei mais elucidado do que após a primeira leitura na
tarde anterior, no quarto de Maffei.
— Se pretende sugerir que ele tencionava viajar, posso voltar à pensão e arrancar
os autocolantes de bagagem do armário de Anna declarei. — De resto, ainda que isto se
revista de algum significado, quando o tinha lido antes? Não me diga que consegue ler
textos sem os ver. Duvido que... Interrompi-me. Com certeza que era o que eu só agora
admitia, e esbocei um sorriso. — Examinou tudo, quando fui levar a jovem, após o
interrogatório.
A um gesto de Wolfe, fui ajudá-lo. Transferimos o volume para o chão, após o que
o recém-chegado ajoelhou e começou a desatar a corda, mas levava tanto tempo que me
impacientei e puxei do canivete. No entanto, o murmúrio de Wolfe me conteve o
ímpeto.
Por fim, a corda foi retirada e ajudei o rapaz a remover o papel e a tampa, após o
que me endireitei e arregalei os olhos. Virei-me para Wolfe e tornei a concentrar a
atenção no monte no chão. Tratava-se apenas de tacos de golfe, mas devia haver uma
centena, suficientes, quanto a mim, para matar um milhão de cobras, pois nunca me
tinham parecido úteis para outra coisa.
— O exercício lhe fará bem, observei a Wolfe. Sem se mover da cadeira, indicou
que os colocássemos em cima da mesa, e eu e o rapaz pegamos em vários.
— Outra vez, mais devagar, por favor. O rapaz realizou o pedido. — Ainda mais
lentamente, se possível. Mister Townsend.
Desta vez, ele executou o movimento ao retardador, uma caricatura, com altivez,
porém Wolfe observava-o com total concentração.
* * *
Quatro
Soltou uma gargalhada. Formal, porque no instante imediato o rosto assumira uma
expressão solene e profissional.
— Talvez. Mas embora o trabalho não aperte esta tarde, continuo à espera da
mensagem.
— Trata-se do seguinte. Domingo à tarde, há quatro dias, portanto, Peter Oliver
Barstow, presidente da Universidade Holland, morreu subitamente quando jogava golfe
no campo do Green Meadow Club, para os lados de Pleasantville. Está ao corrente
disso?
— Sem dúvida. Foi uma perda para a comunidade, para todo o país, realmente.
— O funeral se realizou na terça-feira e ele foi sepultado no cemitério de
Agawalk. Nero está disposto a apostar consigo (preferia fazê-lo com Mister Anderson,
mas diz que o senhor também serve) em como, se mandar exumar o corpo e efetuar a
autópsia, aparecerão provas de envenenamento. Aposta dez mil dólares e entregará um
cheque visado dessa quantia a qualquer pessoa idónea que lhe for indicada. Limitei-me
a sorrir, enquanto ele me fitava de olhos arregalados.
— Nero Wolfe enlouqueceu acabou por dizer.
— De modo algum. Não aposte nisso. Mas ainda não terminei de descrever a
aposta. Segundo ele, em algum lugar na região ventral de Barstow, provavelmente logo
abaixo do estômago, com uma profundidade de cinco a sete centímetros, encontrarão
uma agulha curta, aguçada e fina, possivelmente de aço ou mesmo de madeira muito
rija, apontada para cima, num ângulo aproximado de quarenta e cinco graus, se não tiver
sido deflectida por um osso.
— Nunca ouvi maior conjunto de bobagens. Calculo que todo esse arrazoado tem
um objetivo em vista, se você também não for louco.
— Com certeza que tem. Introduzi a mão no bolso, a fim de puxar do cheque que
Wolfe me entregara. — Poucas pessoas arriscariam dez mil dólares num palpite
maluco, e posso lhe garantir que Nero Wolfe não pertence a esse número. Peter Oliver
Barstow foi assassinado e tem essa agulha cravada no corpo. Digo-o eu, Nero Wolfe e
este cheque. É um testemunho coletivo de peso, Mister Derwin.
— Podemos andar para frente, agora que se certificou de que são dólares
autênticos. Ignorou as minhas palavras e continuou a olhar o cheque, com uma
expressão de perplexidade. Por fim, perguntou, em inflexão irritada:
— Conferiram-lhe de fato poderes para apostar esta quantia na afirmação que fez?
— Exato. O cheque está endossado e foi visado. Posso, pois, endossá-lo
igualmente. Se desejar telefonar a Wolfe, o número é Bryant nove dois oito dois oito.
Para evitar algum mal-entendido, sugiro que a sua estenógrafa bata à máquina um
memorando dos pormenores para nós assinarmos. Devo esclarecer que ele não tenciona
divulgar pormenores ou discutir o assunto. Trata-se de uma aposta e nada mais.
— Aposta, o diabo! Você não espera aposta alguma. Quem julga que apostará
consigo, o condado de Westchester?
— Contava com Mister Anderson. Mas à falta dele qualquer pessoa serve,
repliquei, com um sorriso. — Alguém que possua dez mil dólares. Wolfe não se mostra
exigente a esse respeito. Pode ser um chefe da polícia, o editor de um jornal ou até um
democrata proeminente com uma forte noção do dever cívico.
— Não me diga!
— Digo, sim senhor. As minhas instruções consistem em envidar todos os esforços
para que a aposta seja coberta antes de anoitecer.
— Aposta? Levantou-se e impeliu a cadeira para trás com o pé. — Diga antes um
blefe!
— Parece-lhe? Então, tente cobri-lo. Era óbvio que decidira alguma coisa, pois se
encaminhou para a porta, onde se virou para mim.
— Importa-se de aguardar dez minutos? Suponho que não se oporá, visto que tenho
o seu cheque no bolso.
— Não, menina, é uma chamada pessoal. Só serve Mister Anderson. Aguardei que
desligasse, e aproximei-me da secretária.
— Pode me dizer onde se encontra Mister Derwin? Mostrou-se interessada em
mim, pois me olhou com curiosidade, e acabou por fornecer uma resposta em linguagem
clara:
— Está ao telefone, no gabinete de Mister Anderson.
— Suponho que não me mentiria, só para não perder a prática?
— Não preciso de praticar, obrigada.
— Muito bem. Se não vê inconveniente, vou experimentar uma destas cadeiras.
Não gosto de ficar sozinho lá dentro.
Obedeci. Uma vez dentro, contive uma gargalhada ao ver a encenação que haviam
preparado em minha honra. Ben Cook ocupava uma cadeira colocada ao lado da que se
achava atrás da mesa destinada, sem dúvida, a Derwin, com outra para mim, em que
incidia a luz de frente.
O advogado assumiu uma expressão severa. Como se a sua atitude ainda não fosse
suficientemente caricata, sacudiu um dedo na minha direção.
— Estive muito ocupado na última meia hora e posso agora lhe revelar o que se
seguirá. Vai nos dizer o que sabe, enquanto esperamos por Wolfe. Que razões têm
para?... Tive de interrompê-lo, mas não pude evitar. Foi involuntário.
— Esperam Wolfe? Aqui?
— Sim, aqui. Se ele entendeu o que lhe convém, e me esforcei por torná-lo bem
claro pelo telefone.
— Escute, Mister Derwin. Necessitei de me esforçar de novo para dominar a
hilaridade. — Está num dia de azar. Nunca teve apostas tão ruins em toda a sua vida. É
tão provável que Wolfe compareça à sua presença como que eu lhe revele a identidade
de quem matou Barstow.
— Acha? Interveio Ben Cook. — Você vai falar. E pelos cotovelos.
— É possível, mas não lhes direi quem matou Barstow, porque não faço a menor
ideia. Se quiserem me interrogar sobre a rede de estradas da região, por exemplo...
— Pare com isso. O ar severo de Derwin se acentuou. — Fez uma acusação
surpreendente de uma forma a todos os títulos sensacional. Não pretenderei que tenho
muitas perguntas preparadas para lhe fazer, porque não disponho de nada em que as
basear. Ocorre-me apenas uma e exijo uma resposta imediata e completa. Por que razão
e objetivo o seu patrão o enviou aqui, hoje? Suspirei e assumi um ar solene.
— Já lhe expliquei. Para fazer uma aposta.
— Proceda como se possuísse um pouco de sensatez. Escusa de pensar que se safa
com uma explicação dessa natureza.
— Não tente se armar em esperto voltou a interpor Ben Cook. — Nem imagina
como costumamos tratar os espertalhões.
Creio que me seria possível prolongar a sessão por toda a noite, mas o tempo se
escoava e eles começavam a me irritar.
— Escutem, meus senhores. É natural que estejam irritados, mas contra isso nada
posso fazer. Se os mandar para o diabo e sair por aquela porta, o que farão? Eu sei que
a delegacia de polícia é perto daqui, mas não vou para aqueles lados. Devo lhes
confidenciar que parecem dois principiantes. Confesso que estou surpreendido consigo,
Mister Derwin. Nero Wolfe lhe oferece a oportunidade de participar num caso
importante, e a primeira coisa que faz é divulgar tudo a Ben Cook, para me lançar às
feras. Não sejam idiotas, pois não podem me tocar. Wolfe adoraria lhes mover um
processo por detenção sem motivos, além de que nunca visito as delegacias de polícia a
menos que me mostrem o respectivo mandado, e pensem no ridículo em que incorreriam
depois de contar a minha história aos repórteres e apresentar a prova do assassínio de
Barstow. Por sinal, principio a me irritar e estou quase exigindo a devolução do cheque
e cair fora. Assentemos o seguinte: não revelarei absolutamente nada. Portanto, escolha,
Mister Derwin: ou me devolve o cheque ou fala com sensatez.
— Decidiu, pois, vir ao campo mostrar aos caipiras como se age na cidade, hem?
Disse Ben Cook. — Fique ciente de uma coisa, rapaz. Tenho tamanho suficiente para
arrastá-lo até à delegacia sem um motivo mais forte que o mero capricho.
— Pode se dar ao luxo de armar em mau, retorqui. — Derwin lhe passou para as
mãos um foguete que ele deveria lançar sozinho. Virei-me para o advogado. — Para
quem telefonou em Nova Iorque?
— Ao promotor público.
— Falou com ele? Descruzou os braços, se empertigou na cadeira e me olhou com
uma expressão de desespero.
— Falei com Morley.
— Dick Morley? O que lhe ele disse?
— Que, se Nero Wolfe apostava dez mil dólares no que quer que fosse, gostaria
que eu propusesse mais mil, desde que ele me oferecesse as probabilidades de dez para
um.
— Apesar disso, me trouxe para aqui, em vez de pegar numa pá e correr para o
cemitério de Agawalk? Redargui, demasiado indignado para sorrir. — Repito que não
revelarei nada e Wolfe tampouco, mas se alguma vez teve uma oportunidade de jogar
pela certa é esse o momento, Derwin.
Exalou um suspiro e aclarou a voz, mas uma vez não foi suficiente e teve de efetuar
segunda tentativa.
— Vou ser franco consigo, Goodwin. Isto fica entre nós, Ben, mas se trata de um
fato. Já pensou no que implicaria a exumação e autópsia do corpo de Peter Oliver
Barstow?
— Qualquer pretexto serviria, observei.
— Talvez eu não seja bom a inventar pretextos. Em todo o caso, conheço a
família. Não posso tomar essa decisão. Tentei contatar com Anderson em Lake Placid,
mas não consegui. No entanto, espero falar com ele antes das sete da noite, o mais
tardar. Pode se meter no trem da noite e estar aqui pela manhã. Depois, que decida.
— Nesse caso, hoje não se pode resolver nada, comentei.
— Nem pensar. Eu, pelo menos, não quero assumir a responsabilidade de nada do
gênero.
— Está bem. Levantei-me. Vou telefonar a Wolfe para saber se quer esperar tanto
tempo. Agora já pode me devolver o cheque.
* * *
Cinco
Um programa que Wolfe raramente perdia era o dos Joy Boys. Nunca cheguei a
compreender porquê. Sentava-se com os dedos entrelaçados sobre o rotundo abdômen,
olhos semicerrados e lábios comprimidos, como se a boca contivesse algo que cuspiria
a qualquer instante. Frequentemente, eu ia dar uma volta nessas ocasiões, mas se o
jantar era um pouco mais cedo, no período do programa em causa, não podia me
esquivar. Também tenho os meus artistas favoritos, porém os Joys Boys me pareciam
banais.
Uma vez no escritório, após a refeição, não necessitei de muito tempo para
apresentar o relatório da minha digressão. Custava-me me desculpar a Wolfe, porque se
mostrava invariavelmente simpático, partindo sempre do princípio de que eu fizera todo
o possível e não havia nada para criticar além da hostilidade do ambiente, segundo as
suas palavras. Não emitiu comentários e tampouco se mostrou interessado na descrição
ou nas desculpas. Tentei espicaçá-lo, procurando, por exemplo, averiguar se lhe
ocorrera a possibilidade de eu conseguir convencer um promotor público e aceitar uma
aposta de dez mil dólares apenas com base nas minhas explicações, mas se limitou a
continuar reservado e amável. Quando lhe perguntei se pensava que eu podia ter tomado
alguma iniciativa susceptível de induzir Derwin a mandar exumar o corpo naquela
tarde, replicou que lhe parecia improvável.
As rãs não voam. Sentava-se à mesa e examinava com uma lupa o rostelo de uma
Cymbidium Alexanderi que Horstmann trouxera para baixo por apresentar indícios de
querer murchar.
— O céu estava encoberto quando entrei. Vai chover em cima de todas as suas
pistas?
— Um dia, Archie, quando decidir que não merece a pena continuar a lhe tolerar,
terá de casar com uma mulher de capacidade mental muito modesta, a fim de dispor de
um auditório apropriado para o seu deplorável sarcasmo articulou, sem erguer os olhos
da lupa. Quando mencionei a chuva, tinha em mente as suas conveniências e conforto.
Ocorreu-me a possibilidade de enviá-lo à pensão da Sullivan Street, mas pode ficar
perfeitamente para amanhã.
Custava a crer, a menos que uma pessoa estivesse bem familiarizada com ele,
como era o meu caso. Sabia que falava sério e considerava que sair de casa em
qualquer altura representava uma aventura desagradável, porém fazê-lo debaixo de
chuva atingia as raias da loucura.
— Sabe perfeitamente que irei, chova ou faça sol. Mas aí vai uma das perguntas
que mencionei. Porque será que Anna Fiore se fechou em copas perante O'Grady?
Porque ele não se desfez em mel e mesuras como eu?
— É provável. Excelente conjectura, Archie. Sobretudo porque mandei Panzer lá e
ela se limitou a confessar o nome, com relutância, e se recusou acompanhá-lo. Por
conseguinte, o seu mel e respectivas mesuras se tornam necessários. Se não houver
inconveniente, diga que apareça às onze da manhã. A sua presença não se reveste de
importância especial, mas semelhante obstinação merece um assédio.
— Vou buscá-la já.
— Não. Sério. Amanhã. Sente-se. Prefiro tê-lo aqui, ocioso e inútil, enquanto
inspeciono, receio que infrutiferamente, esta fútil flor. Fútil e estéril, segundo tudo
parece indicar. Como referi noutra oportunidade, a sua proximidade é sempre
refrescante, porque me recorda constantemente como seria enervante ter presente
alguém... Uma esposa, por exemplo... Que não poderia mandar sair sempre que me
conviesse.
— Muito bem. Não pude evitar um sorriso. — Pode continuar com isso.
— No momento, não. Detesto chuva.
— Nesse caso, me esclareça umas dúvidas. Como soube que Carlo Maffei tinha
sido assassinado? E que Barstow foi envenenado? E que tem uma agulha no corpo? Sei,
evidentemente, como foi parar lá, pois o empregado da Corliss Holmes nos explicou,
mas como conseguiu chegar tão longe?
— Será necessário lhe recordar mais uma vez a reação que obteria se perguntasse
a Velasquez a razão pela qual a mão de Esopo repousava dentro da túnica, em vez de
pender ao lado do corpo? Terei de demonstrar de novo que, conquanto seja permissível
solicitar ao cientista que explique como chegou a determinada descoberta, um pedido
similar ao artista carece de sensatez, porque, à semelhança da cotovia ou da águia, não
deixa pegadas no rumo percorrido? Necessitarei de lembrar novamente que sou um
artista?
— Não, senhor. Contento-me com que explique como descobriu que Barstow foi
envenenado. Tornou a pegar na lupa, enquanto eu aguardava e acendia um cigarro.
Terminara de fumá-lo e tencionava ir à sala buscar um livro ou uma revista, quando
principiou a falar.
— Carlo Maffei desapareceu. Uma ocorrência assaz vulgar, espancado e
provavelmente roubado, até ao telefonema e ao anúncio. A chamada em si carece de
interesse, mas é a ameaça (Não sou eu que devo ter medo, ou algo do gênero) que tem
significado. O anúncio acrescenta uma especificação. Até então, ele foi isto e aquilo,
mas agora se converte também num homem que pode ter feito algo de intrincado e
difícil que funcionaria. O termo mecanismo tornava o anúncio atraente, embora também
oferecesse sugestões estupendas a uma mente curiosa. De repente, por mera casualidade
como a criação da vida foi acidental, Maffei se torna noutra coisa: um homem que
recortou a notícia da morte de Barstow na manhã do seu desaparecimento. Por
conseguinte, convém lê-la segunda vez para descobrir o aspecto relacionado
intimamente com ele. Um obscuro imigrante italiano com a profissão de técnico de
metais, por um lado, e um famoso e abastado presidente de uma universidade, por outro.
Precisa haver uma ligação, e a incongruência dos elementos torná-la-ia mais clara, se
talvez fosse visível. Temos o artigo: encontremos a ligação, se existe, com a análise de
cada palavra. No entanto, pouco esforço é exigido, pois tudo se revela virtualmente
aparente. No momento, e por algum tempo imediatamente anterior ao colapso, Barstow
tinha nas mãos e utilizava, não um, mas toda uma variedade de instrumentos que, se não
constituíam mecanismos complexos e difíceis, se adaptavam admiravelmente à situação.
Tratava-se de uma imagem perfeitamente composta. Mas conquanto não necessitasse de
qualquer justificação (na verdade, nada além de contemplação) como obra de arte, para
se aplicar numa utilização prática exigiria um pequeno, digamos, fixador. Nessa
conformidade, me limitei a perguntar a Miss Fiore se vira um taco de golfe no quarto de
Maffei. O resultado foi gratificante.
— Está bem concedi. Mas suponha que ela dissesse que não?
— Como salientei noutras ocasiões, nem mesmo para me divertir fornecerei
resposta a perguntas hipotéticas.
— Foi uma saída airosa. Responder equivale a admitir a validade do seu
raciocínio, mas já me habituei a não esperar nada de melhor de você. Como quer que
saiba o que faria, se é que faria alguma coisa? Provavelmente, lhe dava boa-noite e
mandava-a à sua vida. Encontraria o verniz para a minha tela noutro lugar.
— Talvez sim, talvez não. Posso perguntar como conseguiria comer se tivesse
nascido com a cabeça virada para trás?
— Não morreria de fome assegurei, com um sorriso. — Mas como descobriu que
Maffei tinha sido assassinado?
— Só cheguei a essa conclusão quando da visita de O'Grady. Ouviu o que lhe
disse. A polícia tinha revistado o quarto do italiano, o que apenas se explicaria se
cometesse algum delito ou fosse assassinado. A primeira alternativa parecia
improvável, à luz dos outros fatos.
— Seja. Mas reservei a melhor para o fim. Quem matou Barstow?
— Ah... Murmurou suavemente. — Isso é outra imagem e, segundo espero,
dispendiosa. Dispendiosa para o comprador e lucrativa para o artista. Por outro lado,
uma das suas personagens constituiria um tema compensador. Prosseguindo a minha
vaga metáfora, não montaremos o cavalete até estarmos seguros da comissão. Em todo o
caso, rigorosamente isto não corresponde à verdade exata. Analisaremos um ponto do
cenário, amanhã, se conseguir trazer Miss Fiore.
— Deixe-me ir buscá-la agora. Passam poucos minutos das nove.
— Não vê como chove? Fica para amanhã.
Reconheci que não merecia a pena insistir, pelo que, depois de me aborrecer o
suficiente, com a leitura superficial de duas revistas, vesti o impermeável e decidi
passar uma ou duas horas num cinema. Não confessaria a ninguém, mas fazia-o a mim
próprio, que não me sentia tranquilo. Acorrera-me o mesmo tipo de experiência
algumas vezes no passado, o que não contribuíra para sossegar. Embora tivesse certeza
absoluta de que Wolfe nunca nos deixaria mergulhar num poço sem a existência de uma
escada pela qual poderíamos sair, em certas ocasiões me assolavam dúvidas. Jamais
esquecerei aquela vez em que mandou prender o presidente de um banco ou, melhor,
quem o mandou prender fui eu sem qualquer prova à parte o fato de a caneta em cima da
sua mesa estar sem tinta. Nunca senti um alívio tão profundo como quando o fulano fez
saltar os miolos, uma hora mais tarde. Mas era inútil tentar espicaçar Wolfe, e eu já
muito raramente tentava. Se me aventurava a procurar explicar que podia laborar em
erro com extrema facilidade, se contentava com replicar: “Reconhece um fato quando o
vê, mas não possui a menor sensibilidade para os fenômenos.”. Depois de procurar o
vocábulo “fenômeno” no dicionário, não vislumbrei que ele fosse mais dotado que eu
em semelhante aspecto, mas resultava inútil argumentar com o irredutível Nero Wolfe.
Por conseguinte, me sentia preocupado mais uma vez. E como queria refletir
calmamente, peguei no impermeável e me meti num cinema, onde podia me sentar no
escuro, com algo para distrair a vista e a mente em plena liberdade. Não era difícil
vislumbrar como Wolfe abarcara a situação. Alguém que pretendia matar Barstow,
chamemos de X, publicara um anúncio no jornal pedindo um artesão para lhe executar
algo, empenhado em que fosse uma pessoa desejosa de abandonar o país, para, na
eventualidade de se tornar curiosa mais tarde, não o poder molestar. Maffei respondeu
e recebeu a incumbência: preparar um taco de golfe de tal modo que, quando a “face”
contatasse com a bola, ativasse um dispositivo que dispararia uma agulha pela pega, na
outra extremidade. Provavelmente, X apresentou a incumbência como uma espécie de
prova que antecederia a comissão na Europa, mas deu tanto dinheiro ao italiano que
este decidiu não partir. O fato originou uma discussão num clube de golfe, todavia X
utilizou o taco para o fim em vista, introduzindo-o no saco de Barstow. A seguir, Maffei
leu a notícia da morte deste último no Times e traçou a conclusão óbvia, o que não
surpreendia, dadas as características invulgares da incumbência que recebera. X lhe
telefonou e o italiano se encontrou com ele, para lhe transmitir as suspeitas e tentar
extorquir dinheiro. Desta vez, X não perdeu tempo em busca de outro artesão para
construir um dispositivo engenhoso e se contentou em recorrer a uma faca, que deixou
cravada nas costas de Maffei para evitar que o estofo do carro, ficassem manchados de
sangue.
— Bom dia disse. — Quero suco de laranja e uma xícara de chocolate. Exibiu um
sorriso distante como só ele sabia conjurar. Embora entendesse todas as tiradas
jocosas, nunca tentava retribuí-las.
— Bom dia. Está lá em baixo um cavalheiro que quer falar com Mister Wolfe.
— Como se chama? Perguntei, me levantando.
— Anderson, segundo disse. Não mostrou qualquer cartão-de-visita.
— O quê? Afastei os pés para fora da cama. Ena, ena! Não se trata de um
cavalheiro, Fritz, mas de um nouveau riche. Mister Wolfe está esperançado em torná-lo
menos riche, brevemente. Diz-lhe... Deixa, vou já para baixo.
Passei água fria pelo rosto, enfiei roupa suficiente para uma emergência, utilizei o
pente para estabelecer um pouco de ordem no cabelo e desci. Anderson não se levantou
da cadeira quando entrei no escritório. Estava tão bronzeado que se cruzasse com ele na
rua precisaria olhar duas vezes para reconhecê-lo. Deixava transparecer falta de sono e
contrariedade abundante, e notei que o seu cabelo não se achava menos desgrenhado
que o meu.
— Que há?
— Desligue o interruptor, que vou entrar. Soou um pequeno estalido e a seguir a
ordem:
— Entre.
Uma pessoa não acreditaria que existia no mundo uma coisa como Wolfe na cama,
se não se certificasse com os seus próprios olhos. Eu me certificara numerosas vezes,
mas ainda não me cansara de admirar a cena. Em cima, havia uma colcha de seda preta
de que ele nunca prescindia, Verão ou inverno. Da elevação no meio descia um
precipício para todos os lados, pelo que quem lhe queria ver o rosto tinha de se colocar
mesmo em frente e em seguida se debruçar para espreitar sob a espécie de dossel que
se projetava da cabeceira da cama. Também era de seda preta e se prolongava trinta
centímetros para além do queixo, para ficar suspenso, muito baixo, nos três lados. No
interior, a enorme cabeça repousava na almofada branca como uma imagem num
templo. A mão emergiu de baixo da colcha para puxar um cordão à sua direita, e o
dossel se dobrou para trás. Pestanejou e lhe anunciei que Fletcher M. Anderson o
aguardava no escritório.
— Harry? Archie Goodwin. Tenho uma novidade para si, mas conserve-a tão
guardada que nem saiba onde a meteu. O promotor público de White Plains, Anderson,
vai solicitar, esta manhã, uma ordem do tribunal para realizar a exumação e autópsia de
Peter Oliver Barstow. É natural que pretenda manter o assunto secreto, mas pensei que
você gostaria de ajudá-lo a conseguir o seu objetivo. Um dia, na altura oportuna, terei o
maior prazer em revelar o que lhe despertou a curiosidade...
Mrs. Ricci não pareceu encantada ao me ver, mas compreendi o seu estado de
espírito. O detetive O'Grady decerto reclamara por ter me deixado levar objetos do
quarto de Maffei, embora não lhe assistisse o direito de fazer isso. Sorri quando a vi
comprimir os lábios, na expectativa das perguntas que eu viera lhe fazer. Não é
agradável ter um homem assassinado em casa, conquanto se trate apenas de um
hóspede. Por conseguinte, manifestei pesar pela sua situação antes de anunciar que
desejava falar com Anna Fiore.
— Está ocupada.
— Acredito, mas isto é importante. O meu patrão quer falar com ela. Não a reterá
mais de uma hora, aproximadamente. Aqui tem dois dólares...
— Não! Será que não podemos ficar descansadas em nossa própria casa? Porque
não deixam a pobre mulher, sem a enlouquecer com perguntas? Com que direito?...
Era óbvio que me escolhera para alvo da indignação que a dominava. Como
reconheci que não precisava contar com a mínima colaboração da parte dela, pois nem
sequer queria me escutar, me afastei para o vestíbulo. A porta da sala de jantar estava
aberta, o que me permitiu verificar que não havia ninguém lá. Depois de entrar sub-
repticiamente, ouvi passos e, espreitando pela frincha entre a porta e a ombreira, vi
Mrs. Ricci subir a escada. Apurei os ouvidos e concluí que ia em direção ao segundo
andar. Mantive-me no esconderijo e aguardei, até que a sorte me bafejou. Tinham-se
escoado uns dez minutos, quando soaram passos nos degraus e avistei Anna. No
momento em que a chamei em voz baixa, ela parou e olhou em volta.
Pousei-lhe a mão no braço e conduzi-a para a porta da rua, mas não me convinha
parecer apressado lá fora, pois o policial poderia suspeitar de algo e intervir. Assim,
abri a porta com naturalidade e disse:
Deixei transcorrer apenas alguns segundos antes de voltar ao conversível, onde ela
acabava de se instalar. Contornei-o para me sentar ao volante, liguei o motor, acenei ao
policial e rumamos pela Sullivan Street abaixo em segunda, com o motor rugindo, para
impedir que eventuais gritos de janelas dos andares superiores pudessem alcançar os
ouvidos de Anna. Esta, na verdade, apresentava um aspecto não muito diferente de um
espantalho, com um vestido quase imundo, mas não me envergonhava de tê-la a meu
lado, enquanto contornava a Washington Square e enfiava pela Fifth Avenue.
— Onde vamos, Mister Archie? Perguntou, de súbito.
— Vê como o seu vestido passa despercebido neste banco baixo? Só fica de fora o
rosto, que não tem nada de reprovável. Que diz a uma volta pelo Central Park. Está uma
manhã linda.
— Sim, gostaria muito. Eu não disse nada e ela tampouco ao longo de cerca de dez
quarteirões, até que repetiu: — Sim, gostaria muito.
Mrs. Ricci já telefonara duas vezes, e Fritz exibia uma expressão estranha quando
me informou.Resolvi o problema imediatamente ligando para lá e falando duramente
sobre o tema de obstrução à justiça. Não sei se captou alguma das minhas palavras
enquanto se entregava a ardente gritaria, mas a minha ideia pareceu funcionar. Não
voltámos a ouvir um único pio dela antes do meio-dia, quando parti para acompanhar
Anna à pensão.
Wolfe entrou quando eu falava com Mrs. Ricci e vi-o se deter para dar bom-dia à
jovem, a caminho da mesa. Costumava se mostrar delicado com as mulheres.
Acalentava uma espécie de noção pervertida acerca delas que eu não entendia bem, mas
nunca o vira manifestar menos cordialidade na sua presença. Na realidade, se tornava
difícil compreender como um corpanzil daqueles podia revelar delicadeza, mas não
subsistiam dúvidas a esse respeito. Nem mesmo quando “crucificava” uma, como na
ocasião em que esclarecera o caso do Clube Diplomático através de um interrogatório
implacável de Nyura Pronn. Foi a melhor exibição de espremer uma esponja até a secar
a que jamais assisti.
Ele começou com suavidade o assédio a Anna Fiore. Depois de lançar uma
olhadela à correspondência, se voltou e olhou-a durante cerca de um minuto, antes de
dizer:
Novo silêncio. Pressenti que alguma coisa estava errada. Wolfe não fizera a última
pergunta como se se revestisse de significado especial. Eu conhecia bem as cambiantes
da sua voz e compreendi que não se achava interessado; pelo menos, na pergunta em si.
Qualquer coisa o impelira para um rumo distinto. De repente, disparou outra em tom
muito diferente:
— Quando decidiu responder “Sim, senhor” a tudo o que lhe perguntasse? Nada de
resposta, porém ele prosseguiu em inflexão incisiva: — Gostaria que compreendesse o
seguinte. A minha última pergunta não tinha absolutamente nada a ver com um taco de
golfe ou com Carlo Maffei. Portanto, se decidiu responder somente com “Sim, senhor”
a tudo o que lhe perguntar acerca dele, não haverá problema. Assiste-lhe o direito
absoluto de proceder assim, porque foi o que decidiu. No entanto, se a interrogar sobre
outras coisas, não deve manter essa atitude, por não se tratar do que decidiu. Nesta
última eventualidade, deve se exprimir como qualquer outra pessoa na mesma situação.
Sendo assim, quando resolveu dizer apenas “Sim, senhor”, foi por causa de algo que
Carlo Maffei fez?
Anna olhava-o sem pestanejar. Era evidente que não desconfiava dele, nem
pretendia entrar em controvérsia, pois se limitava a tentar compreendê-lo. Encararam-
se em silêncio durante cerca de um minuto, até que ela disse:
— Não, senhor.
— Ah, ótimo! Não foi por causa de nada que ele fez. Por conseguinte, não lhe dizia
respeito, pelo que me pode revelar tudo o que lhe perguntar nesse sentido. Espero que
compreenda isto. Se você decidiu não me dizer nada sobre Carlo Maffei, não insistirei.
Mas quanto ao outro aspecto... Vejamos: decidiu dizer “Sim, senhor” a Mister O'Grady,
o homem que a interrogou, ontem de manhã?
— Sim, senhor.
— Porquê? Ela enrugou a fronte, mas, respondeu:
— Porque aconteceu uma coisa.
— Muito bem. Que foi? Vendo-a abanar a cabeça, Wolfe persistiu: — Então, Miss
Fiore! Não existe motivo algum para não revelar. A jovem volveu os olhos para mim e
tornou a se virar para ele.
— Revelarei a Mister Archie declarou, passado um momento.
— De acordo.
— Recebi uma carta me disse. Wolfe me dirigiu uma olhada de inteligência, que
interpretei devidamente.
— Ontem?
— Sim, de manhã.
— De quem?
— Não sei. Não estava assinada. Tinha sido escrita à máquina e no envelope só
dizia Anna e o endereço, sem o resto do nome. Foi-me entregue por Mistress Ricci, que
costuma ir buscar o correio na caixa, mas não a quis abrir diante dela, porque nunca
tinha recebido nenhuma. Desci ao cubículo onde durmo e a li então.
— Que dizia? Olhou-me por uns instantes, sem responder, e, de repente, sorriu de
um modo que quase me embaraçou.
— Vou lhe mostrar o que continha, Mister Archie. Levantou a saia acima do
joelho, introduziu a mão na meia e retirou-a com algo. Arregalei os olhos ao vê-la
desenrolar cinco notas de vinte dólares, que em seguida me mostrou.
— Era isto que continha?
— Exato. Cem dólares.
— Estou vendo. Mas também havia uma mensagem escrita à máquina.
— Sim. Dizia que, se não falasse a ninguém em Mister Maffei ou no que fazia,
podia ficar com o dinheiro. Do contrário, devia queimá-lo. Queimei de fato a carta, mas
não o dinheiro. Resolvi guardá-lo.
— Queimou a carta?
— Sim.
— E o envelope?
— Também.
— E acha que nunca falará a ninguém em Mister Maffei ou no taco de golfe?
— Nunca. Olhei-a com estranheza. O queixo de Wolfe pousava no peito mas
também fixava os olhos nela.
— Que história mais fantástica! Bradei, me levantando.
— Peça-lhe desculpas, Archie!
— Mas francamente...
— Peça. Voltei-me para Anna e murmurei:
— Peço desculpas, mas cada vez que penso na gasolina que queimei passeando
pelo parque... E tornei a me sentar.
— Reparou, por acaso, no carimbo do envelope, Miss Fiore? Perguntou Wolfe.
Aquela marca que costumam aplicar no canto superior direito e indica a área de origem.
— Não, senhor.
— Claro. A propósito: o dinheiro não pertencia ao homem que o enviou. Retirou-o
do bolso de Carlo Maffei.
— Tenciono ficar com ele.
— E faz muito bem. Decerto não ignora que se a polícia se inteirasse o confiscaria
sem hesitar. Mas não se alarme, porque a sua confiança em Mister Archie se justifica
plenamente. Virou-se para mim. — A gentileza e graça são atributos sempre admiráveis
e por vezes úteis. Leva Miss Fiore de volta a pensão.
— Mas porque não?... Comecei a protestar.
— Convencê-la a queimar esse dinheiro e substituí-lo por dólares provenientes do
seu fundo de custeio? Não. Ela recusaria, mas, de qualquer modo, eu não permitiria a
destruição de notas de banco, independentemente da sua proveniência. O extermínio de
dinheiro constitui o único sacrilégio autêntico que devemos abominar. Talvez não tenha
notado que os cem dólares representam para Miss Fiore: a recompensa inimaginável de
um ato desesperado e heroico. Agora que voltou a guardá-los na sua cripta, leve-a à
pensão. Começou a efetuar a complexa operação destinada a abandonar a cadeira. —
Bom dia, Miss Fiore. Dirigi-lhe um cumprimento raro: acreditei que se exprimia com
sinceridade. — Passe muito bem.
— Obrigada, Mister Archie. Também queria ser atenciosa! Aprendera com Wolfe,
sem dúvida.
— Não tem nada que agradecer repliquei. — Despeçamo-nos sem rancor.
* * *
Seis
Uma ocasião, engoliu meio cabrito em dois dias, com as diferentes partes
cozinhadas de vinte maneiras distintas. Nesses períodos, eu costumava andar com a
língua de fora por ter de percorrer a cidade, da Battery ao Bronx Park, à procura de
uma determinada erva ou poção de que eles precisavam para o prato que preparariam a
seguir.
A única vez que desisti foi na altura em que Wolfe me mandou ao cais de
Brooklyn, onde acabava de encostar um cargueiro vindo da China, a fim de pedir ao
comandante que me cedesse algumas sementes de soja. No entanto, ele devia transportar
um carregamento de ópio clandestino e algo o levou a suspeitar da minha atitude a
bordo, pois incumbiu uma dezena de escanzelados selvagens de me pendurar coisas
desagradáveis em torno do couro cabeludo. Pedi a demissão do cargo na tarde seguinte,
efetuando o telefonema do hospital, mas no dia imediato Wolfe se apresentou
pessoalmente e me levou para casa. Fiquei tão surpreso e comovido por ter abandonado
excepcionalmente a residência que retirei o pedido de demissão. A recaída terminou na
mesma ocasião.
Não obstante, após aquela refeição, me senti um pouco melhor e voltei à Rua 35,
para comunicar a Wolfe o que Anderson dissera nessa manhã, acrescentando que
surgiria algum evento importante antes da próxima lua nova. Ele se mantinha sentado
junto da mesa do meu café-da-manhã, concentrado em Fritz, que movia algo numa
caçarola. Após um momento, olhou para mim como se tentasse recordar de onde me
vira antes e articulou:
Subi ao último andar para prevenir Horstmann de que teria de cuidar dos “bebês”
sozinho naquela tarde e provavelmente durante toda a semana. Decerto ficaria
consternado. Era sempre divertido ver como se fingia contrariado quando Wolfe estava
presente, mas se acontecia algum contratempo que o impedia de comparecer às nove ou
às quatro, se preocupava de tal modo que parecia perseguido por uma legião de
demônios. Por conseguinte, fui lá acima preocupá-lo. Isto ocorreu às duas horas da
tarde de sexta-feira, e o primeiro olhar lúcido que recebi de Wolfe se verificou às onze
da manhã de segunda, sessenta e nove horas depois. Nesse lapso de tempo, aconteceram
algumas pequenas coisas. Primeiro foi o telefonema de Harry Foster, por volta das
quatro da tarde de sexta-feira, que, de resto, eu já esperava. Informou que o corpo de
Barstow fora exumado e autopsiado, mas não se seguira qualquer comunicado à
Imprensa. A reportagem já não se achava em suas mãos, pois alguns colegas haviam se
inteirado. O segundo telefonema ocorreu pouco depois das seis. Desta vez, era
Anderson. Sorri quando ouvi a voz, consultei o relógio, e imaginei-o roendo as unhas
de impaciência, à espera de que fossem seis horas. Anunciou que desejava falar com
Wolfe.
— Lamento, mas está ocupado. Esclareceu que queria que ele se deslocasse a
White Plains. Como soltei uma gargalhada como única resposta, cortou a ligação
bruscamente. Após breves momentos de reflexão, telefonei para Henry H. Barber e
obtive todas as informações pertinentes sobre cúmplices e detenção de testemunhas. Em
seguida, me dirigi à cozinha e mencionei os dois telefonemas a Wolfe.
— Esse Anderson é uma praga, advertiu, sacudindo uma colher entre os dedos. —
Desinfeta o telefone. Não o proibi de lhe mencionar o nome?
— Tem razão, desculpe. Sabe o que penso? Um lunático é sempre um lunático,
mesmo quando se trata de nós próprios. Quero falar com Fritz.
Mas ele deixara de me escutar. Expliquei a Fritz que, para o jantar, me contentaria
com sanduíches, que levaria para o escritório, e, se a campainha soasse, não deveria ir
à porta, até nova ordem, pois eu próprio me encarregaria disso. Em circunstância
alguma devia abrir. Embora eu admitisse que podia se tratar de precauções
injustificadas, não queria correr o risco de ver aparecer um intruso quando Wolfe
atravessava uma das suas hediondas fases. Congratulava-me por não me incumbir de
qualquer missão e acalentava a esperança de que não viesse a fazê-lo, porque recusaria
executá-la. Não aconteceu nada de notável naquela noite.
Sorri e acompanhei-o com a vista, até que desapareceu na esquina mais próxima.
Nunca o vira nem ouvira falar dele, mas Westchester não era um terreno
particularmente familiar para mim. No cartão-de-visita figurava o nome de H. R.
Corbett. Regressei à sala e me sentei, para fumar cigarros em série.
Após o almoço, por volta das quatro, ouvi um jornaleiro berrar uma edição
especial. Fui à porta para o chamar e comprei um exemplar. Li com interesse o artigo
da primeira página, intitulado:
BARSTOW ENVENENADO
ENCONTRADO DARDO NO CORPO
Se alguma vez senti uma pontada nas costas, foi então. Wolfe e eu não éramos
mencionados, naturalmente. Aliás, eu não esperava outra coisa, mas só de pensar nas
vantagens materiais que podíamos ter obtido via tudo turvo. Amaldiçoei-me por não ter
enfrentado Derwin da melhor maneira, assim como Anderson. E não maldizia menos
Wolfe pela sua inoportuna recaída. Afinal não se tratava de um dardo, mas de uma
agulha curta de aço, como Wolfe afirmara, encontrada um pouco abaixo do estômago.
Entrei na cozinha, pousei o jornal na mesa diante dele, sem uma palavra, e voltei a sair.
No entanto, se apressou a me chamar:
— Archie! Vá buscar o carro. Tenho aqui uma lista para você. Fingi que não
ouvia. Mais tarde, Fritz se incumbiu da fastidiosa tarefa.
À noite, fui ao cinema, depois de recomendar a Fritz que não abrisse a porta a
ninguém. No fundo, não receava qualquer ofensiva, já que Anderson conduzia as coisas
da maneira que decerto se lhe parecia mais favorável. Era muito possível que, graças a
descobertas que efetuara, começasse a dispor as peças do quebra-cabeça no tabuleiro.
Se o fazia da forma mais correta, era outra história. Confesso que me teria embebedado
naquela noite se não fosse domingo. Quando regressei a casa, Wolfe já recolhera ao
quarto, mas Fritz ainda estava na cozinha lavando a louça. Fritei uma fatia de presunto
para um sanduíche e enchi um copo de leite, porque comera pouco ao jantar. Reparei
que o Times que deixara de manhã para Wolfe continuava no mesmo lugar. Quase
apostaria, sem receio de perder, que nem um olhar se dignara lhe dirigir.
— Mister Wolfe está lá em cima com Horstmann? Perguntei a Fritz, que tomava
café na cozinha.
— E quem poderia ser? Era uma das suas tiradas preferidas e empregava-a em
todas as oportunidades que apareciam. Em seguida, sorriu, satisfeito de me ver excitado
e contente. Agora, vou buscar uma perna de carneiro e lhe esfregar um dente de alho.
— Esfrega veneno de rato, resmunguei, e voltei para o quarto, a fim de me vestir.
A recaída chegara ao fim! Não havia dúvida de que me sentia excitado. Escanhoei-
me com particular meticulosidade e assobiei na banheira. Com Wolfe regressado ao
estado normal, tudo podia acontecer. Quando tornei a entrar na cozinha, me aguardavam
um prato de figos e uma volumosa omelete, com o jornal apoiado à cafeteira. Principiei
pelos cabeçalhos e pelos figos ao mesmo tempo, mas de repente parei de mastigar e
devorei os parágrafos, engolindo apressadamente o que tinha na boca para que não
ocorressem misturas indesejáveis. Era bem claro, e o jornal expunha-o como um fato.
Voltei as páginas, movendo os olhos para cima, para baixo e para os lados. Figurava na
oitava, perto do fundo, sob a forma de um pequeno anúncio num retângulo:
Pagarei cinquenta mil dólares de recompensa a quem fornecer informações de que resulte a descoberta
e merecido castigo do assassino de meu marido, Peter Oliver Barstow
ELLEN BARSTOW
O lápis se imobilizou numa das parcelas e se conservou rígido entre os seus dedos
por uns segundos, sem que ele erguesse os olhos para mim. Por fim, colocou a fatura
debaixo de um peso-de-papéis e levantou a cabeça.
— Mostre isso.
Apresentei-lhe em primeiro lugar o anúncio e depois o artigo, que leu com atenção
e olhou apenas de relance, respectivamente.
* * *
Sete
— É desnecessário e possivelmente penoso para si, Miss Barstow. Sei que é filha
de Peter Oliver Barstow. Apenas precisará revelar o motivo da sua visita.
— Sim. Hesitou. É natural que saiba, Mister Wolfe. Parece-me um pouco difícil...
Talvez conviesse um preâmbulo. Tentou sorrir, sem grande êxito. — Vou lhe pedir um
favor, embora desconheça se é muito grande.
— Poderei elucidá-la nesse aspecto.
— Com certeza. Antes de mais, devo lhe perguntar se sabe que a minha mãe
publicou um anúncio nos jornais de hoje.
— Li-o há pouco.
— Pois bem, eu... Ou seja, a família, pede que o ignore. Wolfe encheu os pulmões
de ar e afundou o queixo no peito.
— É um pedido extraordinário, Miss Barstow. Devo me mostrar igualmente
extraordinário acatando-o, ou tenho direito a uma explicação?
— Há razões de peso, sem dúvida. Ela tornou a hesitar. — Não se trata de um
segredo de família. Sabe-se que minha mãe, de certo modo e em diversas ocasiões, se
revelou irresponsável. Os olhos assumiram uma expressão grave. — Não imagina que
exista algo de hediondo nisso ou que se relaciona com dinheiro. Ele existe em
quantidade avultada e o meu irmão e eu não somos propriamente sovinas. Tampouco
deve imaginar que ela é uma pessoa incapacitada... Pelo menos, no sentido legal. No
entanto, ao longo de vários anos, houve ocasiões em que necessitou da nossa atenção e
afeto, e esta... Esta coisa horrível surgiu no meio de uma dessas crises. Não é uma
mulher normalmente vingativa, mas o anúncio... O meu irmão lhe chama de uma
exigência de sangue. Os nossos amigos íntimos compreenderão, naturalmente, mas há
que contar com o mundo, e o do meu pai era enorme, pelo que não gostaríamos que nos
vissem recorrer aos sabujos... Soltou uma exclamação abafada e se calou, para desviar
os olhos para mim e voltar a fixá-los em Wolfe.
— Sim, Miss Barstow, está me chamando de sabujo, mas não me considero
ofendido. Continue, por favor.
— Desculpe. Sou uma pateta sem o mínimo tato. Tinha sido preferível que o
doutor Bradford viesse.
— Ele encarava a possibilidade?
— Sim. Ou melhor, achava que se devia pôr em prática.
— E o seu irmão?
— Bem... Também. Ele deplora-o profundamente... Refiro-me ao anúncio. Não
aprovou inteiramente a minha vinda. Julgava-a... Infrutífera.
— Baseado na teoria de que é difícil enxotar um sabujo. Talvez entenda de cães.
Terminou, Miss Barstow? Ou seja, tem mais alguma razão a apresentar?
— Decerto concorda que as que expus são suficientes.
— Nesse caso, se entendi bem, deseja que não se desenvolva o menor esforço
para descobrir e condenar a pessoa que assassinou seu pai?
— Não. Arregalou os olhos. — Eu não disse isso.
— O favor que me pede não consiste em que me abstenha desse esforço?
Comprimiu os lábios e por fim entreabriu-os o suficiente para murmurar:
— Compreendo. Está pondo a questão da pior maneira possível.
— De modo algum. Com clareza e não da pior maneira. Compreensivelmente, a
sua mente está confusa e a minha lúcida. A sua posição, como a expôs até agora, não
pode se considerar de modo algum inteligente. Pode me fazer um pedido qualquer de
entre vários, mas não todos ao mesmo tempo, porquanto são mutuamente exclusivos.
Pode, por exemplo, me dizer que, embora deseje que descubra a identidade do
assassino, não devo esperar ser remunerado ao nível especificado por sua mãe no
anúncio. Consiste nisto o seu pedido?
— Não. Sabe perfeitamente que não.
— Ou pensa me dizer que posso procurar o assassino se quiser e receber a
recompensa, se tirar partido da obrigação legal, mas a família desaprova a oferta com
base em razões de natureza moral. É isso?
— É. Os lábios dela tremeram um pouco, todavia dominou-os com prontidão. De
repente, se pôs de pé e bradou: — Não! Estou arrependida de ter vindo. O professor
Gottlieb se equivocou. O senhor pode ser inteligente, mas... Bom dia, Mister Wolfe.
— Bom dia, Miss Barstow. Wolfe se mostrava impávido. As tais considerações
de ordem física me conservam colado à cadeira.
Ela começou a se dirigir para a porta, mas, a meio caminho, hesitou, permaneceu
imóvel por um momento e se virou para trás. É mesmo um sabujo. Um coração
empedernido.
— É muito provável admitiu ele, apontando para a cadeira que ela acabava de
abandonar. — Sente-se. A sua missão é muito importante para comprometê-la com uma
mera atitude de ressentimento. O autodomínio constitui uma qualidade admirável. Ora
bem, Miss Barstow, podemos fazer uma de duas coisas: rejeito, redonda, embora
amavelmente, o seu pedido inicial como o apresentou e separamo-nos com
cordialidade, ou responde a algumas perguntas e decidiremos então o melhor caminho a
seguir. Qual prefere?
Deixou transparecer certa perplexidade, mas não nos voltou as costas. Regressou à
cadeira e contemplou Wolfe com alguma desconfiança.
— Respondi a muitas perguntas nos últimos dias.
— Não duvido. Imagino mesmo o seu teor e estupidez. Não lhe farei perder tempo
nem lhe insultarei a inteligência. Como se inteirou de que eu sabia alguma coisa sobre o
assunto?
— Como? Parecia surpresa. Mas o senhor é responsável de tudo, por assim dizer.
Foi quem descobriu o crime. Ninguém o ignora. Veio nos jornais... Não de Nova
Iorque, mas de White Plains. Não pude conter um sorriso. Com que então, Derwin
telefonaria a Ben Cook para me conduzir à delegacia, hem?
— Pediu a Mister Anderson o mesmo favor? Perguntou Wolfe.
— Não.
— Porquê?
— Bem... Não julguei necessário. Não me parecia... Não sei como me exprimir.
— Recorra à sua sensatez, Miss Barstow. Foi porque achou improvável que ele
fizesse alguma descoberta digna desse nome? Ela fazia esforços visíveis para se
dominar. As mãos fortes, com dedos vigorosos se cerravam em pequenos punhos no
regaço.
— Não!
— Muito bem. Mas o que a levou a considerar provável, ou, pelo menos possível,
que a minha descoberta seria mais pertinente?
— Não supus... Começou, mas se interrompeu com brusquidão.
— Acalme-se. É uma pergunta clara e simples. Julgou-me mais competente que
Mister Anderson para o fim em vista? Foi porque fiz a descoberta originária de tudo?
— Foi.
— Porque descobri que seu pai tinha sido assassinado por meio de uma agulha
envenenada disparada da pega de um taco de golfe?
— Eu... Não sei. Confesso que não sei, Mister Wolfe.
— Coragem. Isto não se vai prolongar muito. A pergunta seguinte deriva
unicamente da curiosidade. O que lhe inspirou a estranha ideia de que eu era uma
pessoa tão rara que reagiria favoravelmente ao pedido pateta que tencionava me fazer?
— Não sabia. Não me animava realmente essa ideia. Mas estava disposta a
realizar a tentativa e tinha ouvido um professor da universidade, o psicólogo Gottlieb,
mencionar o seu nome, Mister Wolfe. Escreveu um livro intitulado A ARTE DA
DETECÇÃO MODERNA DO CRIME...
— Sim. Uma obra que todo o criminoso inteligente devia oferecer a todos os
detetives que conhece.
— A opinião que emite a seu respeito é muito encomiástica. Quando telefonei ao
professor, me disse que não considerava o senhor susceptível de análise, porque
possuía uma intuição diabólica e era um artista sensível, além de pessoa idónea. Em
face disso, decidi procurá-lo, Mister Wolfe. Peço-lhe... Suplico-lhe...
Receei que ela se desfizesse em lágrimas a todo o momento, espetáculo a que não
desejava assistir. No entanto, Wolfe fê-la reagir com brusquidão.
— Pronto, Miss Barstow. Não preciso saber mais nada. Agora, vou lhe pedir um
favor. Permite que Mister Goodwin a acompanhe lá acima para lhe mostrar as minhas
plantas? Calou-se por um breve instante, enquanto ela arregalava os olhos. — Não há
qualquer subterfúgio envolvido. Desejo apenas estar só com o diabo (cerca de meia
hora) e fazer um telefonema. Quando voltar para baixo, terei uma proposta para lhe
apresentar. Virou-se para mim. — Fritz irá chamá-los.
Ela se levantou e me acompanhou sem uma palavra. A ideia me pareceu excelente,
pois se mostrava abalada e desconfiada. Em vez de convidá-la a subir a escada,
conduzi-a ao elevador de Wolfe. Quando saímos da cabine no andar de cima, pousou a
mão no meu braço para me deter.
— Porque ele me mandou para aqui, Mister Goodwin?
— Não adianta, Miss Barstow. Meneei a cabeça com veemência. — Mesmo que
soubesse não lhe diria, e como não faço a menor ideia aproveite a oportunidade para
admirar as flores. Quando abri a porta da passagem, Horstmann surgiu da sala de
envasamento de plantas. — Podemos dar uma olhadela?
Assentiu com um gesto e se afastou. Apesar das minhas numerosas visitas à estufa,
nunca o fazia sem uma ponta de assombro, como em cada ocasião que se assiste à
execução de um número arriscado no circo, apesar de não ser novidade. Wolfe utilizava
prateleiras de cimento e suportes de ferro, com um sistema de rega inventado por
Horstmann, para manter o grau de humidade apropriado. Havia três dependências
principais: uma para as Cattleyas Laelias e exemplares híbridos, outra para as
Odontoglossums, Oncidiums e Miltonia, a sala tropical, o refúgio, chamemos assim, de
Horstmann, e um pequeno compartimento ao canto para a propagação. Os vasos
disponíveis, areia, esfagno, humo, barro, osmundina, carvão e suportes sobresselentes
eram conservados num cubículo junto do elevador.
Como estávamos em junho, as persianas se achavam descidas, e os fragmentos de
sombra e sol produziam desenhos caprichosos em toda a parte: nas largas folhas, nas
flores, nas estreitas passagens e na infinidade de vasos. Eu preferia aquele aspecto,
porque me parecia mais alegre. Podia se considerar uma autêntica lição assistir ao
modo como as flores conquistavam Sarah Barstow. É claro que quando entrou na estufa
tinha vontade tanto contemplar as orquídeas como a mim ignorar os termos do anúncio
da mãe, pelo que, ao longo das primeiras filas de Cattleyas, tentou se mostrar
suficientemente atenciosa para deixar transparecer que se deparava a algo merecedor
de interesse especial. A primeira coisa que na realidade a arrancou da mal dissimulada
indiferença foi um pequeno grupo apenas cerca de vinte de Laeliocattleya Lustre. Fiquei
satisfeito, porque se tratava de um dos meus conjuntos favoritos. Surpreendente
murmurou.
— Nunca tinha visto nada de parecido. A combinação de cores... Incrível.
— Sim, trata-se de um cruzamento especial. A natureza não as produz assim.
Passou a revelar interesse crescente. No setor seguinte, havia Brassocattlaelias
Truffautianas, de que cortei duas para lhe oferecer. Forneci alguns pormenores sobre
hibridização e plantas semeadas em vez de transplantadas, mas creio que não me
prestou muita atenção. Na sala imediata, tive uma decepção. Declarou preferir as
Odontoglossums às Cattleyas e híbridas! Mas, enfim, gostos não se discutem. Como se
isso não bastasse, mesmo depois de percorrermos a sala tropical, manifestou
preferência por uma planta pequena para a qual eu nunca olhara duas vezes: a Miltonia
Blueanaeximina, se referindo à sua delicadeza e configuração. Aquiesci com uma leve
inclinação de cabeça e comecei a perder o interesse, além de que me perguntava qual
seria a intenção de Wolfe.
Finalmente, Fritz fez a sua aparição. Avançou pela passagem principal direito a
nós, parou à distância que considerou conveniente e anunciou que Wolfe estava à nossa
espera. Sorri e dominei o impulso de lhe aplicar uma cotovelada nas costelas ao passar
por ele, mas calculei que nunca me perdoaria.
Wolfe continuava na cadeira atrás da mesa e não havia qualquer indício de que a
tivesse abandonado. Acenou para as duas desocupadas mais próximas e aguardou que
nos sentássemos para perguntar:
— Gostou das flores?
— São maravilhosas. Notei que ela o olhava de uma maneira diferente. — Exalam
uma beleza extraordinária.
— Sim, ao princípio. Mas um convívio mais prolongado dissipa essa ilusão e
familiariza com a sua escassez de carácter. O efeito que produziram em si constitui
apenas o seu blefe. A beleza extraordinária é algo que não existe. Em todo o caso,
serviram para entretê-la neste intervalo. E, evidentemente, deseja saber em que
empreguei o tempo. Primeiro, telefonei ao meu banco e pedi que elaborassem
imediatamente um relatório sobre a situação financeira de Ellen Barstow, sua mãe, com
pormenores do testamento de Peter Oliver Barstow, seu pai. A seguir, liguei para o
doutor Bradford e tentei persuadi-lo a me visitar esta tarde ou à noite, mas explicou que
já tinha um compromisso. Depois, aguardei pacientemente. Há cinco minutos, o banco
me transmitiu o relatório pelo telefone e incumbi o Fritz de chamá-los. Foram estas as
minhas atividades.
Ela começava de novo a ficar tensa. Os lábios se comprimiam e tudo indicava que
não tencionava abri-los.
— Prometi lhe apresentar uma proposta, continuou Wolfe. — Ei-la. Apanhe o
bloco-de-notas, Archie.
Envidarei os melhores esforços para descobrir o assassino de Peter Oliver Barstow. Exporei o resultado
das minhas investigações, Sarah Barstow, a si, e, se não tiver nada a objetar, também o revelarei às
autoridades públicas competentes e, na altura apropriada, espero receber um cheque no valor que a sua mãe
ofereceu de recompensa. No entanto, se as minhas diligências conduzirem à conclusão de que o criminoso é
na verdade a pessoa que supõe e procura proteger da justiça, não haverá outras revelações. Apenas Mister
Goodwin e eu ficaremos a saber.
— Um momento! Isto é um discurso, pelo que lhe rogo que o escute até ao fim.
Mais dois pontos.
Deve compreender que posso apresentar a proposta com conhecimento de causa. Não sou um
funcionário público, nem membro do foro judicial, além de que não prestei juramento que me vincule à Lei. A
perigosa posição de cúmplice por encobrimento não me impressiona. Por conseguinte, se os seus temores se
confirmarem e eu me abstiver de proceder a revelações, em que pé ficaremos quanto à recompensa?
Reconheço que sou excessivamente sentimental e romântico para considerar parte integrante da proposta o
fato de que, em semelhantes circunstâncias, ela será paga. O termo “chantagem” me é desagradável.
Todavia, apesar de me achar afetado pelo romance e sentimento, não haverá o amor-próprio para me tolher
os movimentos, e, se decidir apresentar uma oferta, será aceita.
— Leia tudo em voz alta, desde o princípio, Archie, para se ter certeza de que foi
compreendido. No entanto, a voz de Sarah Barstow se antecipou:
— Mas isso é... É absurdo!
— Não se revolte, por favor. Wolfe admoestou-a com o indicador sacudido na sua
direção. — Nega que se apresentou com esse pretexto disparatado para encobrir
alguém? Francamente, Miss Barstow! Mantenhamos a conversa num nível de
inteligência decente. Leia, Archie. Obedeci e no final ele disse: — Aconselho-a a
aceitar a sugestão. Prosseguirei as investigações, de qualquer modo, e, se o resultado
for o que receia, será de sua conveniência dispor da proteção que ofereço. Diga-se que
a oferta é puramente interesseira. Com este acordo, espero poder contar com o seu
empenho e colaboração, pois terá toda a vantagem, independentemente do resultado, em
ver o final do assunto com a maior rapidez possível, enquanto sem eles esperarei a
maior obstrução. Não sou altruísta, nem bon enfant, mas apenas um homem desejoso de
embolsar algum dinheiro. Referiu-se à existência de beleza extraordinária, lá em cima.
Não concordo, mas há despesas extraordinárias. Faz alguma ideia de quanto custa
cultivar orquídeas como aquelas?
Sarah Barstow se limitou a olhá-lo em silêncio.
— Não haverá a menor intervenção de assinaturas. Tratar-se-á daquilo a que os
humoristas chamam um acordo de cavalheiros. O primeiro passo para o seu
cumprimento dá-lo-á Mister Goodwin, que amanhã de manhã se dirigirá à sua
residência, Miss Barstow, para falar consigo, seu irmão e mãe e quem quer que...
— Não! Explodiu ela. Mas absteve-se de continuar e tornou a comprimir os
lábios.
— Lamento, mas é essencial. Mister Goodwin é um homem discreto, possuidor de
coragem incomensurável. Garanto-lhe que não há outro caminho. Vamos combinar o
seguinte. Wolfe pousou as mãos na borda da mesa, impeliu a cadeira para trás,
transferiu-as para os braços da cadeira e se pôs de pé. — Volte para casa ou se
entregue às atividades de natureza pessoal que possam figurar na sua agenda. As
pessoas costumam experimentar dificuldades em raciocinar na minha presença, porque
não deixo muito espaço livre. Sei que sofre, as emoções a atormentam com o seu
clamor insustentável, mas deve libertar a mente para que funcione normalmente. Vá à
sua vida. Compre um chapéu ou um vestido, compareça a um encontro, cuide de sua
mãe ou faça o que programou em qualquer outro campo. Telefone-me logo, entre as seis
e as sete, para comunicar a que horas Mister Goodwin poderá se apresentar em sua
casa de manhã ou anunciar que não deve ir e nos tornámos inimigos.
— Bem... Sarah Barstow se levantou. — Não sei se... Meu Deus... Não sei...
— Por favor! Não é a sua mente que está falando, mas a espuma de sentimentos
recalcados, sem o menor significado. Não quero ser seu inimigo. Encontrava-se diante
dele e olhava-o sem pestanejar, o queixo levantado para o poder fixar melhor.
— Acredito no senhor. Acredito realmente que não quer.
— Decerto que não. Bom dia, Miss Barstow.
— Bom dia, Mister Wolfe.
Acompanhei-a à porta, esperançado em que me brindasse igualmente com um
“bom dia”, mas não o fez. Na verdade, não disse nada. Quando saiu, avistei o seu carro
encostado ao passeio, um cupê azul-escuro. No regresso ao escritório, Wolfe voltava a
ocupar a cadeira e me postei do outro lado da mesa para lhe perguntar:
— Que sabe de tudo isto?
— No momento, sei que tenho apetite, Archie replicou, enquanto as faces
ondulavam. — É agradável voltar a ter vontade de comer. Há semanas que não sabia o
que era isso. Fiquei naturalmente indignado, e não o ocultei.
— Como pode falar assim, depois de sexta, sábado e domingo de?...
— Mas não havia apetite. Apenas a sua busca desesperada. Agora, tenho mesmo
fome. Almoçaremos dentro de vinte minutos. Entretanto, descobri que existe uma pessoa
ligada a um clube de golfe chamada profissional. Descubra quem exerce essas funções
no Green Meadow Club, verifique se temos algum cliente grato que nos apresente pelo
telefone e convide o profissional a jantar conosco, esta noite. Creio que sobrou ganso
de sábado em quantidade suficiente. A seguir ao almoço, visitará o escritório do doutor
Nathaniel Bradford e fará escala na biblioteca, a fim de me trazer uns livros de que
preciso.
— Muito bem assenti. Quem lhe parece que Miss Barstow...?
— Agora não, Archie. Prefiro ficar aqui sossegado, a contas com a fome. Depois
do almoço.
* * *
Oito
A casa se situava na parte inferior de uma depressão entre duas colinas, uns doze
quilômetros a nordeste de Pleasantville, construída de pedra, bem espaçosa, sem
dúvida com mais de vinte aposentos e numerosos anexos. Depois de percorrer uns
trezentos metros entre árvores e arbustos, o caminho contornava a orla de um vasto
relvado e penetrava no abrigo de um teto, com dois degraus de acesso a um terraço
lajeado. Aquilo era na realidade a área lateral da residência, pois a frente ficava a
seguir à esquina, sobranceira ao relvado. Havia jardins na entrada, assim como do
outro lado deste último, com rochas e um lago. Enquanto contemplava a atraente
paisagem, eu refletia que, para aquela gente, cinquenta notas das grandes não eram
nada. Decidira vestir o terno azul-escuro, com camisa azul-clara e gravata bege, tudo
encimado pelo chapéu de feltro que mandara limpar a seguir ao Decoration Day, pois
sempre me parecera de boa política considerar o ambiente que me propunha visitar e
trajar adequadamente.
Sarah Barstow me esperava às dez horas, e cheguei pontualmente. Arrumei o carro
num espaço de pedriscos no outro lado da entrada e apertei o botão da porta do terraço,
a qual se encontrava aberta, porém uma espécie de biombo me impedia de ver grande
coisa lá dentro. Não tardaram a soar passos e parte do biombo foi desviada, para dar
passagem a um fulano alto e magro, de terno preto.
— Muito boa tarde articulou com delicadeza. — Mister Goodwin?
— Miss Barstow me espera, declarei, com uma inclinação de cabeça.
— Eu sei. Queira me acompanhar. Ela solicita que se reúna com ela no jardim.
Segui-o através do terraço e ao longo de uma passagem até ao outro lado da casa,
depois por uma área arborizada, antes de desembocarmos num largo espaço florido.
Sarah Barstow se sentava num banco de jardim, à sombra.
— Já a vi, informei.
O meu guia se deteve, fez um gesto de entendimento, rodou nos calcanhares e
voltou para trás. Ela estava com mau aspecto, pior do que na véspera. Provavelmente,
dormira pouco ou passara mesmo a noite em claro. Esquecendo-se ou ignorando as
instruções de Wolfe sobre o pormenor, telefonara antes das seis. Fora eu que atendera,
e a sua voz deixava transparecer forte tensão, se limitando a dizer que me esperaria às
dez da manhã, após o que desligara. Agora, me convidou a sentar a seu lado no banco.
Wolfe não me transmitira indicações especiais. Esclarecera que preferia conceder
plena liberdade à minha imaginação e desenvoltura e me recordara que a nossa
principal vantagem residia no fato de ninguém fazer a menor ideia do muito ou pouco
que sabíamos e, em virtude do nosso início, éramos suspeitos de omnisciência. E, na
sequência de um bocejo que conteria perfeitamente uma bola de tênis, concluíra:
“Regressa com essa vantagem intacta.”.
— Não existem orquídeas aqui, mas as flores não escasseiam, observei a Sarah
Barstow.
— Na verdade, sim, admitiu. — Pedi ao Small que o trouxesse para este recanto, a
fim de não sermos interrompidos. Espero que não se importe.
— De modo algum. É um local muito agradável. Lamento ter de importuná-la, mas
não existe outra maneira de apurar os fatos. Wolfe diz que pressente os fenômenos e eu
recolho os fatos. Depois de procurar o vocábulo “fenômeno” no dicionário, cheguei à
conclusão de que isso carecia de significado especial, mas repito-o pelo que possa
valer. Puxei do bloco-de-notas. — Comece por me dizer coisas. A família, que idade
tem, com quem tenciona casar, etc.
Conservou as mãos pousadas no regaço, enquanto me explicava. Embora parte do
que ouvi já o tivesse lido nos jornais ou extraído do Who's Who, não a interrompi.
Restavam apenas a mãe, o irmão, e ela própria. Lawrence, de vinte e sete anos, dois
anos mais velho do que ela, se formara na Universidade Holland aos vinte e um anos e
se dedicara a desperdiçar os cinco seguintes, e, segundo depreendi das entrelinhas, uma
elevada percentagem do tempo e paciência do pai. Um ano atrás, descobrira
subitamente um talento para o design de mecanismos, ocupação a que se dedicava
atualmente, em particular na sua aplicação aos aviões. O pai e a mãe haviam revelado
devoção mútua ao longo de trinta anos. Sarah não se recordava do início das crises da
mãe, ocorrido na sua infância, porém a família nunca as considerara nada de
vergonhoso ou merecedor de encobrimento e unicamente um infortúnio de um ente
amado merecedor de carinho e compreensão particulares. O Dr. Bradford e dois
especialistas descreviam a situação em termos neurológicos destituídos de significado
para Sarah, que sempre os considerara mortos e frios, ao passo que a mãe estava viva e
quente.
A propriedade em Westchester constituía o velho solar da família Barstow,
todavia eles permaneciam lá menos de três meses por ano, uma vez que havia
necessidade de viver na universidade de setembro a junho. Chegavam todos os verões
para passarem dez ou onze semanas, com o pessoal doméstico, e na partida, no outono,
fechavam o local. Conheciam muita gente na região circundante, embora o círculo de
relações do pai fosse naturalmente mais vasto e não apenas em Westchester, com
numerosos amigos que viviam a distâncias fáceis de transpor de carro. Ela indicou os
nomes de alguns, que anotei. Também incluí no bloco-de-notas os do pessoal e
elementos a seu respeito. Entretinha-me a fazê-lo, quando se levantou bruscamente do
banco à sombra e preferiu a área banhada pelo sol, na passagem. Soou o ruído de um
avião, tão próximo que nos obrigou a falar mais alto. De repente, descobri que ela
erguia a cabeça e acenava com um lenço.
Saí de baixo das árvores e olhei o avião. Encontrava-se mesmo sobre nós, a pouca
altitude, e descortinei dois braços estendidos, um de cada lado da fuselagem, que
pareciam retribuir o gesto de Sarah. O aparelho mergulhou um pouco, até que descreveu
um amplo arco, e não tardou a desaparecer atrás do arvoredo. Ela regressou ao banco e
imitei-a.
— Era o meu irmão. É a primeira vez que voa desde que o pai...
— Deve ser muito intrépido, e não haja dúvida de que tem braços compridos.
— Ele nunca voa sozinho. Os braços que viu são de Manuel Kimball, dono do
avião.
— Ah, um dos componentes do grupo do golfe!
— Exato.
Resolvi retornar à recolha de fatos. Passei ao tópico do golfe. Ela dissera que
Peter Oliver Barstow não era um entusiasta. Raramente jogava na universidade e nunca
mais de uma vez por semana, apenas esporadicamente duas, durante o verão.
Frequentava quase sempre o Green Meadow Club, de que era sócio, onde possuía um
armário em que guardava os apetrechos. Jogava de um modo muito satisfatório, dada a
escassa assiduidade da prática, obtendo a média de noventa e cinco a cem. Em regra,
jogava com amigos da sua idade, porém em certas ocasiões com os filhos. A esposa
nunca pegara num taco. O quarteto do domingo fatal E. D. Kimball e o filho, Manuel, e
Barstow e o filho, Lawrence jamais o havia feito junto, segundo Sarah supunha.
Tratara-se provavelmente de um acidente. O irmão não referira se fora combinado
previamente, mas ela sabia que ele por vezes jogava com Manuel. Duvidava de que o
quarteto tivesse sido combinado com antecedência, porque representara a primeira
aparição do pai no Green Meadow daquele verão. Os Barstow haviam chegado a
Westchester três semanas mais cedo do que o habitual, em virtude do estado da mãe, e o
pai contava regressar à universidade nessa noite. Ao dizer isto, Sarah se interrompeu, e
ergui os olhos do bloco-de-notas. Torcia os dedos e fixava o olhar na sua frente, num
ponto vago. Por fim, proferiu a meia voz:
— Agora, nunca mais voltará lá. Todas as coisas que desejava fazer... Tudo o que
teria feito... Deixei transcorrer um momento, para ver se acrescentava algo, e perguntei:
— O seu pai costumava deixar o saco de golfe no Green Meadow todo o ano?
— Não. Voltou a se lembrar da minha presença. — De modo algum, porque às
vezes utilizava os tacos na universidade.
— Só tinha esse saco?
— Só! Declarou com estranha veemência.
— Nesse caso, trouxe-o consigo? Chegaram sábado ao meio-dia. Vieram de carro
e a bagagem seguiu numa furgoneta. Em qual dos dois transportes veio?
Era fácil notar que acabava de tocar num ponto sensível. O pescoço dela exibiu
músculos e os braços exerceram leve pressão nos lados do corpo, a tensão reaparecia.
No entanto, fingi que não me apercebia de nada e aguardei, com o lápis suspenso sobre
o papel.
— Não sei, acabou por dizer. — Palavra que não me recordo. Provavelmente, na
furgoneta. — Se o seu pai não era um verdadeiro entusiasta do golfe, decerto não se
preocupou em levar o saco no carro.
— Suponho que sabe que não aparece...
— O saco de golfe não aparece?
— Não. Os investigadores de White Plains e Pleasantville procuraram-no em toda
a parte: nesta casa, no clube e até no campo onde jogaram. “Sim, minha menina”, refleti.
“E você está muito contente por não o encontrarem!”.
— Quer dizer que ninguém se lembra de tê-lo visto?
— Bem... Hesitou. Creio que o caddy de meu pai o levou para o carro e o colocou
ao lado do banco do motorista, quando eles... Quando o Larry e o doutor Bradford
trouxeram o meu pai para casa. No entanto, estes não se recordam de vê-lo.
— É curioso. Embora eu não viesse para recolher opiniões mas apenas fatos, não
lhe parece estranho, Miss Barstow?
— De modo algum. É natural que não reparassem num saco de golfe num momento
daqueles.
— Mas quando chegaram aqui, alguém o terá retirado do carro. Um criado, o
motorista...
— Ninguém se lembra de nada.
— Posso falar com eles?
— Com certeza, aquiesceu, com uma ponta de relutância.
Eu não sabia que espécie de carreira projetava seguir, mas tive vontade de
preveni-la de que não optasse pela do palco. Seguiu-se um breve silêncio, antes de
passar à pergunta imediata:
— Que espécie de taco driver utilizava o seu pai: com tubo de aço ou de madeira?
— De madeira. Não gostava do aço.
— De face lisa ou embutida?
— Lisa, creio. Não me recordo bem. O do Larry é de face embutida e o meu
também.
— Parece se recordar bem do seu irmão.
— Pois é. Olhou-me com uma expressão glacial. — Penso que não se trata de um
interrogatório inquisitorial, Mister Goodwin?
— Queira desculpar. Exibi um sorriso. — Estou um pouco decepcionado. Posso
mesmo dizer irritado. Não há nada no condado de Westchester que me agradasse mais
examinar do que esse taco de golfe, em particular o driver.
— Lamento.
— Não, não lamenta. O fato levanta numerosas interrogações. Quem retirou o saco
do carro? Se foi um criado, qual, e até que ponto se pode considerar leal e
incorruptível? Cinco dias mais tarde, quando se tornou conhecido que um dos tacos
executara o assassínio para que tinha sido concebido, quem se apoderou do saco e o
ocultou ou destruiu, com todo o recheio? Você, Miss Barstow, o seu irmão, o doutor
Bradford? Pode ver as dúvidas que se me levantam. E onde o ocultaram e como foi
destruído? Não é fácil fazer desaparecer uma coisa tão grande. Levantara-se, enquanto
eu falava, e assumira uma atitude formal, quase arrogante.
— Basta! Decidiu em voz bem dominada. — Não faz parte de nosso acordo ter de
ouvir insinuações imbecis.
— Apoiado. Pus-me igualmente de pé. — Tem toda a razão, mas não era minha
intenção ofendê-la. E agora, se pudesse trocar breves palavras com sua mãe...
— Não, não pode.
— Isso faz parte do acordo. O senhor acaba de denunciá-lo. Aventurei novo
sorriso.
— É o acordo que a põe a coberto de consequências desagradáveis de eu tomar
liberdades com ele. Não as tomarei com sua mãe. Posso carecer de diplomacia, mas sei
quando devo conservar as luvas calçadas. Olhou-me, visivelmente indecisa, e
perguntou:
— Cinco minutos chegam?
— Não sei. Em todo o caso, abreviarei a entrevista na medida do possível.
Deu meia volta e enveredou pela passagem que conduzia à casa, comigo no seu
encalço. Pelo caminho, vi diversas pedras às quais tive vontade de aplicar pontapés. O
saco do golfe desaparecido se revestia de prioridade especial. É claro que eu não
acalentara a esperança de ter a satisfação de mostrar o malfadado taco driver a Wolfe
naquela noite, pois Anderson decerto o confiscaria. Na verdade, lhe concedia o crédito
de considerá-lo capaz de chegar à conclusão apropriada, depois de lhe terem sido
preparados todos os ingredientes a utilizar para o efeito, além de que eu contara com o
pedido de Sarah Barstow para convencê-lo a me crivar de perguntas. Porém, agora, o
raio do saco desaparecera! O responsável por isso não só me provocava uma
indignação surda como revelava estupidez considerável. Se fosse apenas o driver, se
compreenderia, mas porquê o saco com todo o conteúdo?
O interior da casa era admirável, daqueles que quase só se veem no cinema.
Embora houvessem muitas janelas, a claridade não abundava, pois penetrava difusa, ao
passo que as tapeçarias e o mobiliário pareciam imaculados, discretos e dispendiosos.
Havia flores com certa profusão, que conferiam ao ambiente uma sensação de frescura,
uma vez que lá fora a temperatura começava a subir. Sarah Barstow me conduziu,
através de um vestíbulo espaçoso e uma sala enorme, a um longo corredor de acesso a
um solário, cujas persianas se achavam quase todas descidas até ao chão, pelo que a
quantidade de raios solares que entrava não era nada que merecesse menção especial.
Havia algumas plantas e muitas cadeiras e sofás de verga. Uma mulher se sentava a uma
mesinha entretida com um quebra-cabeça e Sarah Barstow a ela se dirigiu:
— Este senhor é Archie Goodwin, mãe. — Eu disse-lhe que ele viria.
Em seguida, se virou para mim e indicou uma cadeira. Sentei-me, enquanto Mrs.
Barstow largava as peças do quebra-cabeça que tinha entre os dedos e erguia os olhos
para mim. Era uma mulher ainda atraente. A filha me revelara que tinha cinquenta e seis
anos, mas aparentava mais de sessenta. Os olhos eram cinzentos, encovados e bem
separados, o cabelo quase branco e, conquanto o rosto de feições delicadas deixasse
transparecer serenidade, fiquei com a impressão de que se devia a uma poderosa força
de vontade. Olhava-me sem dizer nada e acabei por pressentir que eu é que não me
mostrava nada sereno. Entretanto, Sarah Barstow se instalara numa cadeira a certa
distância de nós, e me preparava para quebrar o silêncio, quando Mrs. Barstow
declarou subitamente:
— Estou a par do seu objetivo, Mister Goodwin.
— O objetivo não é realmente meu, mas do meu patrão, Nero Wolfe repliquei. —
Encarregou-me de lhe agradecer por ter concordado em me receber.
— Ele e o seu representante são bem-vindos a esta casa. Os olhos encovados não
se desviavam um segundo do meu rosto. — Na verdade, me sinto grata por que alguém,
mesmo um desconhecido que nunca tenha visto, reconhecer a minha autoridade dentro
destas quatro paredes.
— Mãe!
— Não se melindre, querida. Eu sei, e não interessa se este senhor sabe ou não,
que a minha autoridade não foi usurpada. Não foi você que me obrigou a abandonar o
cargo, ou sequer o seu
pai. Segundo Than, foi Deus. Provavelmente as mãos dele estavam ociosas e
Satanás forneceu o logro.
— Por favor, mãe. Sarah Barstow se levantou e se aproximou. — Se tiver alguma
pergunta a fazer, Mister Goodwin...
— Tenho duas informei. — Posso lhe fazer duas perguntas, Mistress Barstow?
— Com certeza. É esse o seu objetivo.
— Ótimo. A primeira é fácil de fazer, mas talvez difícil de responder. Ou seja,
talvez exija reflexão e boa memória. De entre todas as pessoas envolvidas, a senhora
deve ser a que se encontra em melhor posição para fornecer a resposta. Quem desejava
ou podia desejar matar Peter Oliver Barstow? Quem lhe guardava rancor, recente ou
mesmo de longa data? Que inimigos tinha? Quem o odiava?
— Isso não é uma pergunta. São quatro.
— Bem, talvez possa condensá-las numa.
— Não é necessário. A serenidade continuava sob o domínio perfeito da força de
vontade. — Têm todas as mesmas respostas. Eu. Arregalei os olhos, enquanto a filha se
acercava dela e lhe pousava a mão no ombro.
— Prometeu, mãe!...
— Calma, Sarah. Mrs. Barstow ergueu a mão e deu uma palmada de ternura na da
filha. — Não permitiu que os outros homens me procurassem, pelo que estou grata. Mas
se Mister Goodwin me faz perguntas, precisará obter respostas. Lembra-se do que o seu
pai costumava dizer? “Nunca arme uma emboscada para a verdade.”. A jovem decidiu
recorrer ao meu bom senso.
— Por favor, Mister Goodwin!...
— Deixe de bobagens. Os olhos cinzentos brilhavam. — Possuo a minha própria
segurança, filha, tão sólida como qualquer uma que me proporcionasse. Respondi à sua
primeira pergunta, Mister Goodwin. Qual é a segunda?
— Não nos precipitemos, Mistress Barstow. Compreendi que, se fingisse que
Sarah não estava presente, a mãe procuraria me satisfazer a curiosidade. — A primeira
ainda não se esgotou. Talvez houvesse outras pessoas nessas condições, além da
senhora.
— Outras interessadas em matar o meu marido? Pela primeira vez, a força de
vontade afrouxou o suficiente para deixar a sugestão de um sorriso assomar aos lábios.
— Não. É impossível. O meu marido era um homem bondoso, justo, compassivo e
estimado. Sei o que desejaria que eu fizesse, Mister Goodwin: evocar todos os anos
passados, os felizes e os outros, e desencantar uma ameaça sinistra qualquer. Asseguro-
lhe que não existe nada do gênero. Não há nenhum homem vivo que ele tivesse
prejudicado e se tornasse num inimigo. Nem mulher, se diga de passagem. Nunca me
enganou. A minha resposta à sua pergunta foi direta e sincera e constituiu um alívio para
mim, mas como o senhor é tão jovem, pouco mais do que um rapaz, provavelmente
ficou chocado, como aconteceu à minha filha. Explicaria, se pudesse. Não quero induzi-
lo em erro, nem magoar Sarah. Quando Deus me obrigou a prescindir da minha
autoridade, não ficou por aí. Se talvez o compreende, também entende a minha resposta.
— Está bem, Mistress Barstow. Passemos à segunda pergunta. Porque ofereceu
uma recompensa?
— Não! Sarah se colocou entre nós. — Não! Basta disso...
— Sarah! A voz da mãe era áspera, para em seguida se suavizar um pouco. — Vou
responder, querida. Compete-me fazê-lo. A jovem se postou ao lado dela, lhe rodeou os
ombros com o braço e pousou a cabeça nos cabelos grisalhos. A força de vontade
tornara a dominar a situação quando Mrs. Barstow prosseguiu: — Falemos, pois, da
recompensa, Mister Goodwin. Não sou louca, apenas fantástica. Lamento agora tê-la
oferecido, porque reconheço a sua sordidez. Foi num momento fantástico que concebi a
ideia de uma vingança singular. Ninguém teria assassinado o meu marido, pela simples
razão de que ninguém desejaria fazê-lo. Estou convencida de que a sua morte não
parecia desejável a pessoa alguma, salvo a mim própria e apenas durante tormentos que
Deus não deveria impor nem mesmo aos mais pecaminosos. Ocorreu-me a
possibilidade de haver em algum lugar um homem suficientemente esperto para levar
Deus à presença da justiça. Duvido que seja o senhor, Mister Goodwin. Não conheço o
seu patrão. Confesso-me arrependida de ter oferecido a recompensa, mas será paga a
quem a merecer.
— Obrigado, Mistress Barstow. Quem é Than?
— Perdão?
— Than. Referiu-se há pouco que Than lhe disse que Deus a obrigara a renunciar à
sua autoridade.
— Ah, tem razão! O doutor Nathaniel Bradford.
— Obrigado repeti, guardando o bloco-de-notas e levantando-me. — Mister
Wolfe me pediu que lhe agradecesse ter-me recebido.
— Diga-lhe que estou sempre ao seu dispor.
Voltei-me e saí, calculando que Miss Barstow ficaria aliviada.
* * *
Nove
Afinal, não foi apenas o irmão dela que conheci no almoço, pois Manuel Kimball
também compareceu. Congratulei-me com o fato, porque, com o que soubera naquela
manhã, tornava os componentes do quarteto do golfe mais importantes do que até ali. Na
tarde anterior, após cerca de duas horas de telefonemas, eu conseguira finalmente
descobrir o profissional do Green Meadow Club, que aceitara o convite de Wolfe para
jantar. Nunca tivera qualquer contato direto com Barstow e só o conhecia de vista,
porém Wolfe lhe arrancou numerosos elementos sobre a topografia geral do clube e do
campo de golfe. Quando se despediu, por volta da meia-noite, o profissional em causa
levava nas entranhas pouco menos que o conteúdo total de uma garrafa do melhor vinho
do Porto da casa e o meu patrão se encontrava tão elucidado a respeito das atividades
de um estabelecimento como o Green Meadow como se fosse um profissional na
matéria.
Entre outros pormenores, soube de que os sócios guardavam os sacos dos tacos
nos respectivos armários, alguns não os fechavam à chave e, mesmo trancados, um
indivíduo engenhoso e determinado poderia obter uma duplicata da chave sem grande
dificuldade. É claro que munido dela, se tornaria fácil aguardar o momento oportuno
para abrir o armário, retirar o driver do saco e substituí-lo por outro devidamente
preparado. Por conseguinte, os companheiros de Barstow no quarteto constituído
naquele domingo se revestiam de tanta importância como qualquer dos outros sócios,
visitantes ou pessoal com acesso aos armários. Agora, porém, esse aspecto da situação
se alterara, porque o saco de Barstow não dera entrada no armário desde setembro
passado, uma vez que ele o trouxera da universidade. Assim, isso alterava o panorama
e tornava os componentes do quarteto um pouco mais interessantes que muita outra
gente.
O local onde almoçamos sem dúvida não era a sala de jantar, porque não possuía
dimensões para tal, mas dispunha de uma mesa, cadeiras e janelas, através das quais
não se podia enxergar grande coisa, em virtude dos densos arbustos no exterior. O
serviço era assegurado pelo fulano alto e magro de terno preto também conhecido por
Small, mordomo, como um conviva de ocasião como eu descobriu, e, conquanto a
ementa me parecesse um pouco sobre o leve, não se podia considerar nada de que o
próprio Fritz se envergonhasse. Havia algo contido em conchas de dimensões médias
indiscutivelmente delicioso. A mesa era pequena e eu me sentava diante de Sarah
Barstow, com o irmão à minha direita e Manuel Kimball à esquerda.
Lawrence Barstow não se parecia absolutamente nada com a irmã, mas descortinei
traços da mãe. De constituição admirável, denotava a segurança própria dos que levam
o seu tipo de vida. Tinha feições agradáveis e regulares, sem nada que despertasse
particularmente a atenção. Eu vira centenas de pessoas como ele em restaurantes de
Wall Street e nas Forties, à hora do almoço. Tinha o hábito de semicerrar as pálpebras
quando fitava uma pessoa, mas depreendi que se devia à intensidade do vento que
suportava nas suas digressões de avião. Os olhos eram cinzentos, como os da mãe, mas
careciam da disciplina a que os dela se achavam sujeitos.
Apesar de tudo isto, eu estava interessado em Manuel Kimball. Quanto mais não
fosse porque fizera parte do quarteto do golfe, tinha aspecto de estrangeiro, um nome
que constituía uma combinação curiosa e me irritava os nervos.
Uma das coisas que me surpreendiam nele era a voz. Ao vê-lo pela primeira vez,
esperara que soasse como a de um tenor, porém o efeito que produzia se assemelhava
mais ao de um murmúrio de touro. Era grave e retumbante, todavia mantinha-a baixa e
assaz agradável. Larry Barstow se afastou com ele, para indicar a alguém que o levasse
para casa. A irmã e eu aguardamos que reaparecesse e seguimos para o jardim, em
direção ao banco em que estivera ao chegar. Larry se sentou na orla do relvado e Sarah
e eu no banco.
Expliquei que insistira na presença dela porque estabelecera o acordo com Nero
Wolfe e desejava que se certificasse de que não se dizia ou fazia nada fora do
combinado. Pretendia formular determinadas perguntas a Lawrence Barstow e, se
houvesse alguma dúvida quanto ao fato de me assistir o direito a conhecer as respostas,
só ela poderia decidir.
Olhava, não para mim mas para a irmã, com o lábio inferior proeminente, um
pouco parecido com uma criança prestes a chorar e, ao mesmo tempo, como um homem
disposto a mandar o mundo para o diabo.
— Está bem, mana acabou por dizer. Não deixava transparecer sinais de pretender
me pedir desculpas, mas isso podia ficar para melhor altura.
Aguardaram que duas ou três outras partidas se iniciassem para começar a sua.
Manuel jogara em primeiro lugar, seguido de Larry, Barstow e por último Kimball.
Larry não se recordava de ver o pai extrair o driver do saco ou recebê-lo do caddy.
Enquanto aguardavam, se entretivera conversando com Manuel e, durante os momentos
imediatamente anteriores à utilização daquele taco pelo pai, ele próprio também o
fizera com o seu. Não obstante, se lembrava de vê-lo atingir a bola, graças a uma
circunstância invulgar. Na parte final da jogada, o taco sofrera uma espécie de
estremecimento e, quando a bola partira com um desvio enorme, Barstow soltara uma
exclamação, com uma expressão de perplexidade, antes de levar as mãos ao abdômen.
Larry nunca o vira abandonar tão súbita e completamente a sua dignidade em público.
Os companheiros lhe perguntaram o que tinha e ele principiou a desabotoar a camisa, se
referindo vagamente a uma vespa. Larry ficara impressionado com a agitação do pai e
se apressara a observar a área do corpo atingida. Recordava-se de notar uma minúscula
picada, quase invisível, enquanto o pai recuperava a presença de espírito e declarava
que não era nada de importância. Depois, Barstow repetira a jogada com o driver e a
partida prosseguira.
O resto aparecera em pormenor, várias vezes, nos jornais. Meia hora mais tarde,
no espaço que antecedia o quarto buraco, Barstow caíra desamparado, para se
contorcer, como que sob a ação de convulsões. Ainda vivia no momento em que o seu
caddy lhe segurara no braço, mas expirara quando os outros acudiram, juntamente com
vários jogadores das cercanias que haviam presenciado a cena, entre os quais o Dr.
Nathaniel Bradford, velho amigo da família Barstow. Manuel Kimball fora buscar o
sedã, em cujo banco de trás depositaram o corpo. O médico pousara a cabeça do amigo
nos joelhos e Larry se sentara ao volante.
Reiterou que não se recordava de nada relacionado com o saco dos tacos.
Absolutamente nada. Apenas conhecia a versão do caddy, de que fora colocado no
sedã, apoiado no banco da frente, mas não se lembrava de vê-lo enquanto dirigia ou em
qualquer outro momento. Cobrira os dez quilômetros com lentidão e prudência e, mais
tarde, em casa, descobrira sangue no lábio inferior, que mordera inconscientemente.
Mentia melhor que a irmã, e, se não me achasse precavido pela atitude comprometedora
dela, talvez me deixasse iludir pela maneira como ele desbobinava o seu rosário. Fiz-
lhe várias perguntas para tentar apanhá-lo em falso, sem o menor resultado.
A seguir, abordei a parte referente aos Kimball, mas a sua versão coincidia
inteiramente com a de Sarah. Não havia intimidade especial entre as duas famílias,
sendo a única ligação, as relações dele mesmo com Manuel, cuja base residia na
conveniência deste último como proprietário e piloto de um avião. Na verdade, Larry
tencionava comprar um, logo que obtivesse o brevê. Posto isto, formulei a pergunta que
desencadeara o fogo-de-artifício com Mrs. Barstow, antes do almoço. Interroguei os
dois irmãos, mas não se registou a mínima reação. Declararam que não conheciam
ninguém que guardasse rancor ao pai e consideravam a existência de alguém nessas
condições uma autêntica impossibilidade. Ao longo da sua notável carreira chegara à
presidência da Universidade Holland aos quarenta e oito anos, tivera de enfrentar
oposição numerosas vezes, mas conseguira sempre derretê-la, por assim dizer, em vez
de esmagá-la.
Tornou-se óbvio pela expressão dele que, embora talvez nunca me enviasse um
cartão de boas-festas no Natal, eu tinha muitas mais possibilidades de recebê-lo do que
Corbett, a quem comunicou:
— Mister Goodwin veio a convite de minha irmã, para trocar impressões conosco,
e é natural que tenha de voltar. Deseja investigar o assunto? O detetive emitiu um
grunhido de contrariedade e me dirigiu um olhar incendiário.
— Talvez não se importe de me acompanhar a White Plains.
— Nem pensar. Abanei a cabeça com veemência. — Não gosto do ambiente. É
tudo tão morto que nem se pode fazer uma aposta. Comecei a me afastar. — Até mais
ver, Corbett. Não lhe auguro má sorte, porque mesmo com ela boa não terá uma
sepultura digna de menção.
* * *
Dez
Nos fundos da casa, havia um prado imenso, para onde me enviou, ao longo de um
caminho estreito de saibro, o homem nutrido de uniforme de mordomo que emergiu da
entrada do edifício ao ver me aproximar no carro. Não havia vedações de pedra no
prado, cuja relva parecia aparada recentemente e proporcionava um excelente
aeródromo particular. Na periferia, mais ou menos a meio do seu comprimento, se
erguia uma construção baixa de cimento, com telhado plano, onde o caminho terminava.
Observei uma extensa e larga pista em frente e dois carros estacionados ao lado.
— Miss Barstow me contou que a sua mãe faleceu há muito tempo, declarei, com
uma inclinação de cabeça.
Reclinei-me no sofá com a uísque na mão e escutei sem interrupção. Não puxei do
bloco-de-notas, porque já dispunha da versão para comparar e detectar eventuais
discrepâncias. O meu interlocutor se revelou meticuloso e claro. No final, pouco
restava para perguntar, conquanto houvesse um ou dois pontos que não me satisfaziam
por completo, em particular o que diferia do de Larry. Manuel afirmava que, depois de
supor que uma vespa o picara, Barstow largara o driver e o caddy recolhera-o,
enquanto o irmão de Sarah dissera que o pai conservara o taco numa das mãos e
desabotoara a camisa com a outra, para averiguar o que na realidade lhe acontecera.
Apesar de assegurar que tinha a certeza do que dizia, Manuel declarou que não
insistiria se o amigo fizesse uma descrição diferente. De qualquer modo, não me
pareceu particularmente importante, pois o taco fora guardado no saco e, em todos os
outros aspectos, as duas versões coincidiam.
Encorajado pela sua iniciativa de mandar vir mais uísque, resolvi alargar um
pouco o âmbito da conversa, ao que pareceu não se opor. Inteirei-me, assim, de que o
pai era negociante de cereais e se deslocava todos os dias ao escritório em Nova
Iorque, na Pearl Street, enquanto ele considerava a ideia de abrir uma fábrica de
aviões. Acrescentou que possuía o brevê de piloto qualificado e estagiara um ano na
fábrica Fackler, em Buffalo. O pai se comprometera a fornecer o capital necessário,
embora duvidasse do êxito do empreendimento e manifestasse ceticismo absoluto
quanto ao futuro da aviação. Manuel reconhecia a promessa do talento de Larry
Barstow como projetista de estruturas e acalentava a esperança de convencê-lo a
participar monetariamente no projeto.
Meia hora mais tarde, quando percorria as curvas da Bronx River Parkway, ainda
me entretinha refletindo sobre Manuel Kimball. Como não existia a menor ligação entre
ele, Barstow, o taco driver ou qualquer outra coisa, devia ser pelo único motivo de que
me irritava os nervos. Apesar disso, Wolfe afirmava que eu não tinha a mínima
sensibilidade para os fenômenos! A próxima vez que saísse com isso, lhe recordaria o
meu misterioso pressentimento acerca do homem. Desde que, evidentemente, se
provasse que ele assassinara Barstow, possibilidade que, devia admitir, no momento
não me parecia muito provável.
Quando cheguei em casa, cerca das oito e meia, Wolfe já acabara de jantar. Eu
telefonara de um drugstore no Grand Concourse e Fritz conservava um linguado “à la
belle meunière”, com o seu melhor molho de queijo, no forno, acompanhado de uma
excelente salada e leite frio. Depois de um almoço mais para o fraco na residência dos
Barstow e atendendo ao adiantado da hora, limpei tudo com prontidão. Ele aproveitou a
oportunidade para dizer que considerava excelente me ver de novo ocupado.
— Obrigado. Essas malfadadas moscas tentavam me fazer esquecer que uma das
Dendrobium apresenta dois rebentos.
— Não me diga!
— Aquela que fica em parte ao sol. As outras foram mudadas de lugar.
— Um ponto a favor do Horstmann.
— Exato. Quem matou Barstow?
— Conceda-me um pouco de tempo, repliquei, com um sorriso. — O nome não me
é estranho. Vou me lembrar de quem se trata, dentro de um momento.
— Devia ter tomado nota de tudo... Não, acenda somente a sua luminária... Assim
é melhor. Comeu o suficiente? Então, pode começar.
O relatório constituía um meio termo. Não me orgulhava dele, mas tampouco me
envergonhava. Wolfe raramente me interrompeu, se conservando na posição que
adotava sempre que eu tinha uma longa história para lhe contar: reclinado no espaldar,
queixo afundado no peito, cotovelos pousados nos braços da cadeira com os dedos
entrelaçados sobre o abdômen e olhos semicerrados cravados no meu rosto. Mais ou
menos quando estava na metade, fez sinal para que me calasse, chamou Fritz para que
trouxesse cervejas e, por fim, com duas garrafas e um copo ao seu alcance, retomou a
posição inicial. Prossegui então até ao fim, o que aconteceu à meia-noite. Nessa altura,
suspirou e aproveitei para ir à cozinha buscar um copo de leite. Quando regressei, vi
que beliscava a orelha e assumira uma expressão sonhadora.
* * *
Onze
A caminho da saída do edifício, tive vontade de procurar Derwin para lhe pedir o
número do telefone de Ben Cook ou outro gracejo do gênero, mas tinha coisas mais
importantes em que pensar. Quando voltei ao Green Meadow Club era quase meio-dia
e, entretanto, decidira que a vida careceria de todo e qualquer atrativo até que me fosse
concedido o prazer de conhecer o Dr. Bradford.
— Devia estar excitado, na altura, observei. — Não terá feito confusão? Talvez o
tenha levado para outro carro.
— Impossível, porque o de Mister Barstow era o único.
— Ou guardou o saco de outro jogador.
— Não, senhor. Não sou estúpido a esse ponto. A experiência de um caddy lhe
permite se certificar de que não falta nenhum taco, olhando as cabeças. Depois de
apoiar o saco no banco da frente, fiz isso e me lembro de ver todas as cabeças novas.
— Cabeças novas?
— Sim, eram todas novas.
— Porquê? Barstow tinha-as mandado substituir?
— Não, senhor. Eram tacos novos. Estavam no saco que a esposa tinha lhe
presenteado.
— O quê! Fiz uma pausa, pois não queria impressioná-lo. — Como sabe que foi a
mulher que o presenteou?
— Ele próprio me disse.
— A que propósito?
— Quando o procurei, me apertou a mão e se mostrou contente por me ver, o que
não admira porque era um dos meus bebês...
— Espera aí, Mike. Que história é essa dos seus bebês?
— É o nome que lhes damos, explicou, com um sorriso. — Quando um jogador
prefere determinado caddy e não quer outro, é o nosso bebê.
— Muito bem. Continue.
— Mostrou-se contente de me ver, e quando peguei o saco notei que os tacos eram
todos Henderson, novinhos em folha, e ele disse que se alegrava por me ver admirar o
presente que a esposa tinha lhe dado no aniversário.
Replicou que não fazia a menor ideia. Sondei-o durante mais alguns minutos, mas a
fonte parecia ter secado por completo. De resto, o período do almoço terminara e os
jogadores da parte da tarde principiavam a chegar, ao mesmo tempo que Mike desviava
os olhos para os bancos dos caddies e perdia o interesse em mim. Preparei-me para me
levantar e anunciar o fim do piquenique, contudo ele se antecipou. Pôs-se de pé num
salto, daqueles que só as pernas dos adolescentes permitem, e disse apressadamente:
Recolhi os papéis e cascas de banana e entrei no clube, onde havia muito mais
gente do que quando eu chegara, pelo que acabei por ter de mandar chamar o
administrador porque não conseguia encontrá-lo. Apesar de ocupado, me dispensou o
tempo para indicar onde se situava a biblioteca. Esquadrinhei as prateleiras e não
demorei a descobrir o pesado volume intitulado WHO'S WHO IN AMERICA , que abri na
página que já lera no escritório de Wolfe:
BARSTOW, Peter Oliver, escritor, educador, físico; n. Chatham, 111., 9 de abril de 1875...
Tornei a colocar o livro no seu lugar, me dirigi ao átrio, onde vira algumas
cabinas telefônicas, disquei o número da residência dos Barstow e perguntei a Sarah se
me podia conceder uns minutos, pessoalmente. A propriedade ficava a alguns
quilômetros fora do meu percurso de regresso a Nova Iorque, mas me interessava
aproveitar a oportunidade para esclarecer um pormenor. Quando atravessava o terraço
em direção ao local onde deixara o conversível, cruzei com Manuel Kimball. Embora
estivesse com outras pessoas, me acenou com a cabeça em saudação, que retribuí, e
calculei o que dizia aos companheiros, pois estes se voltaram para trás e me olharam
com curiosidade.
— Não lhe tomarei muito tempo, garanti. — Na verdade, nem voltaria a incomodá-
la tão cedo se não surgisse um fato que me despertou curiosidade. O aniversário de seu
pai era em nove de abril?
— Sua mãe lhe presenteou com um saco de tacos de golfe, este ano? Acrescentei.
— Ah!... Exclamou, e pousou a mão no espaldar de uma cadeira.
— Acalme-se. Creio que sabe que Nero Wolfe não lhe mentiria e, como trabalho
para ele, pode aceitar que o digo. Haveria a possibilidade de fazermos perguntas
ardilosas a seu respeito, mas não a iludiríamos. Se pensar que o driver com que seu pai
se matou pertencia ao saco de tacos oferecido por sua mãe, labora em erro. Dispomos
de motivos para acreditar que tal não podia ter acontecido.
— Talvez lhe comunique uma novidade ou talvez não, prossegui, — Mas vim
procurá-la assim que descobri. Se lhe for útil, utilize-a à sua vontade e, de caminho,
pode retribuir o gesto. Não me repugnava receber um pouco de colaboração. Era o
presente de aniversário que a preocupava? Conseguiu finalmente que a língua voltasse a
funcionar, mas não foi além de:
— Não acredito que me mentisse. Seria muito cruel.
— Inteiramente de acordo. Mas mesmo que mentisse, estou ao corrente do
presente, pelo que pode responder à minha simples pergunta sem elevar a temperatura.
Era isso que a preocupava?
— Era murmurou. Isso... E... Sim, era isso.
— E o que mais?
— Nada. Minha mãe...
— Sim. Inclinei a cabeça. — Ela tinha ideias fantásticas acerca do seu pai durante
as crises, e uma delas levou-a a lhe dar o saco de tacos no aniversário. Que mais?
— Nada. Retirou a mão do espaldar da cadeira, mas tornou a pousá-la. — Acho
que... Vou me sentar.
Tentou sorrir e lhe admirei a coragem, pois era óbvio que as preocupações e a
mágoa continuavam presentes. Qualquer pessoa com um átomo de decência no
organismo teria se despedido, para que ficasse só com a boa nova que lhe transmitira,
mas o dever profissional estava acima de tudo e não me parecia certo perder o ensejo
de aproveitar a sua amargura para explorar um ponto vital.
— Não quer se valer da oportunidade para me dizer quem levou o saco dos tacos
do carro e onde se encontra neste momento? Sobretudo, agora que sabemos que o driver
não é o que se encontrava nele quando sua mãe o ofereceu a seu pai?
— Foi Small que o retirou do carro informou, sem hesitar. O meu coração sofreu
um sobressalto, como quando via os lábios de Wolfe se franzirem para fora. Ela ia
revelar tudo! Sem lhe dar tempo para refletir, inquiri:
— Para onde o levou?
— Para cima, ao quarto de meu pai.
— Quem o tirou de lá?
— Eu. Sábado à noite, após a visita de Mister Anderson. Os seus homens
revistaram a casa no domingo.
— Onde o escondeu?
— Segui de carro até Tarrytown, entrei no ferryboat e lancei-o ao rio. Tinha-o
enchido de pedras.
— Ainda bem que não a seguiram. Examinou o driver, sem dúvida. Quebrou-o?
— Não, estava com pressa.
— Não o examinou? Quer dizer que nem sequer o tirou do saco para uma
olhadela?
— Não.
— Tenho uma opinião mais elevada a seu respeito, declarei, arregalando os olhos
de incredulidade. — Não a considero pateta a esse ponto. Pretende me iludir?
— Não. Palavra de honra que não, Mister Goodwin.
— Fez realmente tudo isso sem sequer observar o driver? A expressão de
incredulidade se mantinha. — Entretanto, que faziam seu irmão e Bradford, jogavam
bilhar?
— Não tiveram a mínima intervenção nisso.
— Mas Bradford garante que sua mãe se recomporá, agora que seu pai morreu.
— É a opinião dele... Interrompeu-se, e reconheci que a alusão à mãe constituíra
um erro da minha parte, pois voltara a ficar acabrunhada. Após uma longa pausa, me
olhou e vi lágrimas pela primeira vez. — Queria que retribuísse a sua franqueza, Mister
Goodwin. Aí tem a minha contribuição.
Algo nela, talvez as lágrimas, fazia-a parecer uma criança que desenvolvia
esforços desesperados para se mostrar corajosa. Estendi a mão para lhe afagar o ombro
e murmurei:
— É uma boa moça, Miss Barstow. Não lhe tomarei mais tempo. Segui para o
vestíbulo, peguei no chapéu e saí.
Vendo que eram apenas três horas, reconheci a inutilidade de ficar ali à espera e
regressei ao conversível, em busca de uma ideia para passar o tempo. Não tardou a
surgir uma, e assaz atraente. Entrei num restaurante da Park Avenue para consultar a
lista telefônica, voltei para o carro, liguei o motor, rumei à Fifth Avenue e prossegui em
direção ao centro da cidade. Uma vez na Forty-first Street, virei para leste. Como de
costume, não havia espaço para estacionar, pelo que tive de continuar quase até à Third
Avenue para descobrir uma nesga suficientemente larga para estacionar o conversível.
Retrocedi a pé ao longo de quase dois quarteirões e descobri que o número que
procurava correspondia a um dos novos edifícios de escritórios com um quilômetro de
altura. A placa à entrada indicava que o alvo do meu interesse se situava no vigésimo
andar. O elevador disparou para cima e localizei a porta que procurava ao fundo do
corredor: “Arquivos Médicos Metropolitanos”. Havia um jovem, e não uma jovem,
atrás da mesa na antecâmara, o que me pareceu curioso, para variar.
— Desejava lhe pedir um favor, se não estiver muito ocupado. Têm algum registo
dos encontros de associações médicas em Nova Iorque, em cinco de junho último?
— Deus sabe que o trabalho não diminui, replicou, com um sorriso. — Sim, temos
o que pretende. Só um momento. Cinco de junho? Dirigiu-se a um maço de revistas
numa prateleira e retirou a do topo. — Devem figurar na nossa última edição. Começou
a folheá-la, suspendeu a operação aproximadamente a meio e leu. — Não, não vem
nada na data que indica... Ah, aqui está! Os encontros mais importantes costumam
aparecer no fim. No dia cinco de junho, a Sociedade de Neurologia de Nova Iorque
realizou um congresso no Hotel Knickerbocker.
Esclareceu que Elliot era o editor da Record, a revista que consultara. Perguntei se
podia falar com ele, e o rapaz voltou a se ausentar. A porta se abriu mais uma vez,
transcorrido um momento, para dar passagem a um indivíduo alto e rubicundo, em
mangas de camisa.
Dr. Bradford:
Nos últimos dias, estava convencido de que era um assassino, mas compreendo agora que não passa de
um velho tonto. E o mesmo se aplica a Mistress Barstow e respectivos
filhos. Basta que me conceda três minutos para lhe explicar como o descobri.
Archie Goodwin, enviado por Nero Wolfe.
— O Sol não se porá mais tarde se lhe entregar este bilhete. Palavra de honra que
tenho pressa. Seja humana. Deixei uma irmã de colo sozinha em casa. Não leia, porque
introduzi dois ou três palavrões para incutir veemência ao texto.
Exibiu uma expressão de repulsa, mas aceitou o papel e desapareceu com ele
através da porta utilizada pelos pacientes. Passou um momento, assomou e proferiu o
meu nome. Entrei sem deixar o chapéu na recepção, porque houvera tempo suficiente
para telefonar à polícia. Uma simples olhadela ao Dr. Bradford bastou para me
convencer de que desperdiçara uma porção de suspeitas agradáveis que podiam ter sido
evitadas se o tivesse visto antes em algum lugar, Era alto, de atitude grave e correta, o
típico cavalheiro idoso distinto, e usava suíças! Talvez tivesse havido um período
histórico em que era possível um fulano com suíças abundantes como aquelas puxar de
uma faca e mergulhá-la nas costas de alguém, mas fora há muito tempo. Hoje em dia,
não havia possibilidade. As suas eram grisalhas, como o cabelo. Para dizer a verdade,
por inatacável que o seu álibi para o dia cinco de junho se apresentasse após a minha
visita à Forty-First Street, ansiara por descortinar um ponto frágil nele até que o vira na
minha frente. Aproximei-me da mesa atrás da qual se sentava e aguardei. No entanto,
deixou a recepcionista se retirar e fechar a porta, antes de dizer:
Dei meia volta para sair. Embora não me movesse apressadamente, ainda cheguei
a pousar a mão no puxador da porta.
— Mister Goodwin... Virei-me para trás sem retirar a mão do puxador. — Aceito
o convite de Mister Wolfe. Lá estarei, às sete.
— Muito bem. Indicarei o endereço à recepcionista. E saí.
* * *
Doze
No escritório, após o jantar, ele disse a Bradford que desejava lhe fazer algumas
perguntas, mas começaria por expor a situação. Assim, revelou tudo: Maffei, o recorte
do jornal, a pergunta a Anna Fiore sobre o taco de golfe no quarto da pensão, a aposta
apresentada a Anderson e a carta recebida por Anna com os cem dólares. Depois de
descrever tudo com a máxima clareza, disse:
— Até aqui, não lhe solicitei qualquer promessa, mas agora sugiro que guarde
segredo de tudo o que ouviu. Formulo o pedido no meu próprio interesse. Pretendo
ganhar cinquenta mil dólares.
Foi uma noite maçante, pela parte que me tocava. Nos últimos dez minutos, travei
luta renhida com o sono e não ouvi a maior parte do que se dizia à minha volta. Parecia-
me que Wolfe teria de desenvolver um sentimento por um novo tipo de fenômeno:
homicídio por uma entidade abstrata. Seria a única maneira de a agulha ter penetrado no
corpo de Barstow, pois ninguém a desejava lá. Foi uma noite maçante, mas acabei por
descortinar motivo para sorrir. Bradford se levantou para sair e se aproximou da
cadeira de Wolfe para as despedidas, mas vi-o hesitar.
— Tenho uma pequena dúvida. Devo lhe pedir desculpas. No consultório, esta
tarde, disse um comentário indevido acerca do seu colaborador, algo relacionado com
arrancar escândalos de sepulturas.
— Não compreendo, replicou Wolfe. — O que tinha o seu comentário a ver
comigo? É claro que a única saída airosa para Bradford consistia em transpor a porta.
* * *
De manhã, quando rolava mais uma vez na autoestrada, não me entretinha a cantar
ao Sol. Agradava-me sempre fazer alguma coisa, mas corria escasso perigo de explodir
de satisfação se suspeitava de que a minha atividade seria totalmente estéril. Não
precisava que me dissessem que Nero Wolfe era um indivíduo brilhante, mas sabia que
aquela reunião de caddies constituía uma mera diligência para descargo de consciência,
por assim dizer, pelo que acalentava esperanças de êxito extremamente reduzidas.
Localizei dois dos caddies sem dificuldade, mas precisei de mais de uma hora
para encontrar os restantes. Frequentavam estabelecimentos de ensino diferentes e,
conquanto um deles não me obrigasse a insistir para se deslocar a Nova Iorque, o outro
se mostrou relutante. Primeiro, tentei os métodos suaves, mas, em face da sua
inutilidade, apelei para o seu dever cívico de contribuir para que se fizesse justiça. Por
último, com os quatro acomodados no conversível, me sentei ao volante e enveredei de
novo pela autoestrada, prestando especial atenção ao velocímetro, a fim de evitar nova
confrontação com um agente da Lei.
Chegamos às quinze para as onze e levei os rapazes à cozinha para que engolissem
uns sanduíches, uma vez que só almoçaríamos à uma. Lembrei-me de levá-los à estufa,
para que admirassem as orquídeas e ficassem devidamente impressionados, mas não
havia tempo. Depois de tomar nota dos nomes e endereços, reparei que um, o pálido
que fora caddy de Manuel Kimball, tinha a cara lambuzada e escoltei-o à banheiro, para
que ficasse apresentável. Quando Wolfe fez a sua aparição, começava a me sentir uma
espécie de chefe dos escoteiros. Mandei-os sentar numa fila diante dele, que surgiu com
um ramo de Cymbidiums na mão. Após colocá-lo num jarrão em cima da mesa, se
acomodou na cadeira e moveu os dedos sobre a correspondência. Dera bom-dia aos
rapazes quando entrara e agora os contemplava com curiosidade, um a um, com o que
conseguiu embaraçá-los.
— Ótimo. Nesse caso, não lhes insultarei a inteligência com uma exposição.
Continuemos com a nossa história. Vamos discutir a morte de Peter Oliver Barstow e,
mais particularmente, os eventos desenrolados no primeiro tee que a antecederam. À
uma hora, almoçaremos, para em seguida regressarmos aqui e reatar a sessão.
Conversaremos durante toda a tarde, muitas horas, e é natural que se sintam cansados,
mas não com fome. Quem tiver sono poderá dormir um pouco. Exponho o programa
com todos os pormenores para que se compenetrem do empreendimento elaborado e
difícil que se nos depara. Mister Goodwin ouviu dois dos seus estereótipos e suponho
que os outros dois são praticamente idênticos. Chama-se estereótipo a uma coisa fixa
que não contém qualquer possibilidade de se alterar. Não espero que alterem as
versões que forneceram do que aconteceu no primeiro tee. Limito-me a pedir que
esqueçam os seus argumentos e discussões, as descrições que fizeram perante as
famílias e amigos, todas as imagens que as palavras lhes imprimiram no cérebro, e
regressem ao local em causa. Isto é vitalmente importante. Eu não hesitaria em me
deslocar lá para conversarmos, mas as interrupções comprometeriam o esforço
envolvido. Deste modo, nos socorreremos da imaginação para efetuarmos a
transferência. Encontramo-nos, pois, no primeiro tee. É domingo à tarde. Larry Barstow
escolheu dois de vocês e os outros acompanham os Kimball, para transportar os sacos
de tacos. Acham-se em terreno tão familiar como as salas e quartos de suas casas.
Dedicam-se a atividades a que estão tão acostumados que as executam quase
automaticamente. As correias dos sacos lhe pendem dos ombros. Você, Michael Allen,
ao avistar Mister Barstow, o seu bebê da época passada, a certa distância do tee
praticando com um mashie, não necessita que lhe digam o que deve fazer. Vai se
encontrar ele, pega no saco, lhe entrega um taco... Interrompeu-se ao ver o rapaz abanar
a cabeça. — Não? Então que faz?
— Começo a procurar as bolas.
— Ah, as que ele utilizou com o mashie?
— Sim, senhor.
— Muito bem. Enquanto Michael procurava as bolas, você o que fazia, William
Riley?
— Mascava chiclete.
— Exclusivamente? Concentravam-se nisso todos os seus esforços?
— Bem, segurava o saco do Kimball mais velho.
Quando ouvi Wolfe começar a falar, receei que o seu extenso arrazoado
aborrecesse os rapazes a tal ponto que não demorariam a mergulhar numa apatia
impenetrável, mas ocorreu o efeito precisamente inverso. Sem o revelar abertamente,
lhes infundira a convicção de que contava com eles para o ajudarem a provar a
estupidez dos cem psicólogos, e nem o discurso mais compacto os dissuadiria de
semelhante objetivo. Ele continuou, centímetro a centímetro, ora concentrado num, ora
noutro, por vezes com todos falando ao mesmo tempo. Deixou-os mergulhar numa longa
discussão sobre os méritos relativos das várias marcas de tacos, enquanto escutava de
olhos semicerrados, fingindo que apreciava o debate. Interrogou-os durante meia hora
acerca das identidades e características dos outros caddies e jogadores de golfe,
integrados nas partidas imediatamente anteriores à de Barstow e os três companheiros,
no tee em causa. Por entre todas as irrelevâncias que descortinava, eu conseguia
detectar a verdadeira intenção de Wolfe: não perdia de vista por um único instante cada
taco dos diferentes sacos.
Para o almoço, Fritz nos serviu dois enormes empadões de galinha e quatro
melancias. Eu realizei à distribuição das doses, como sempre que tínhamos convidados,
e, movendo a faca e garfo com notável rapidez, consegui terminar a minha pouco depois
dos outros. No caso das melancias, a tarefa foi mais simples. Dei metade a cada rapaz,
assim como para mim e Wolfe, e a restante ficou para Fritz. Calculei que não a tocaria,
por supor que seria necessária mais tarde.
A seguir, se concentrou nos outros dois caddies, que todavia não tinham visto o
mínimo pormenor do episódio do empréstimo do driver a Barstow. O magro disse que
fixava um ponto à distância, para onde Manuel Kimball atirara a bola com o seu drive,
e o colega não se recordava de absolutamente nada. Wolfe se virou de novo para Mike
Atarracado. Este não podia afirmar que o driver de Barstow se encontrava no saco,
quando procurava a bola, mas não se lembrava de lhe entregar, nem de ele o devolver
para tornar a guardar. Durante este vaivém de palavras, William Riley punha à prova
toda a sua educação para se manter calado, até que Wolfe finalmente se dirigiu a ele:
É claro que isso, para ele, equivalia a cerveja. Levantei-me, reuni os rapazes e
pilotei-os até à cozinha, onde vi que, conforme previra, a quarta melancia permanecia
intacta. Cortei-a em quatro pedaços, que distribuí. Fritz, que atendera à chamada de
Wolfe, dispunha um copo e duas cervejas num tabuleiro, mas quando se afastou pelo
corredor observei que seguia para a escada e não para o escritório. Consultei o relógio:
15.58. O malandro conseguira manter o horário! Deixei os caddies as voltas com a
melancia, corri em direção ao vestíbulo e alcancei-o a caminho do elevador.
* * *
Treze
Fiz escala pelo Green Meadow Club, depois de largar o último caddy, pois ficava
perto. Tencionava investigar o pormenor do armário, mas ao chegar lá me faltou
coragem. Poderia comprometer tudo se constasse que manifestávamos o mínimo
interesse pelos armários, por ser do conhecimento geral que o saco de tacos de Barstow
não estivera guardado no dele. Por conseguinte, me limitei a trocar algumas palavras
com o chefe dos caddies e cumprimentar o administrador. É possível que me animasse
o desejo secreto de dar mais uma olhadela em Manuel Kimball, mas não o descortinei
em parte alguma.
Antes de irmos para a cama, Wolfe recapitulou o meu programa para o dia
seguinte. A primeira alínea não me atraía particularmente, mas reconheci que ele tinha
razão. Os caddies acabariam por falar e as palavras chegariam aos ouvidos de
Anderson, pelo que não perderíamos nada em precedê-las. Eu podia efetuar essa
missão de misericórdia e me apresentar no escritório de Kimball pouco após a sua
chegada à Grand Central.
— Mister E. D. Kimball não deve demorar, comecei. — Sei que estará muito
atarefado após oito dias de ausência, mas antes que mergulhe no trabalho preciso que
me conceda dez minutos, por causa de um assunto pessoal urgente. Sou detetive
particular e aqui tem o meu cartão-de-visita. Ele nunca ouviu falar de mim, mas sou
enviado por Nero Wolfe. Pode tratar disso?
— Que pretende? Explique o que pretende.
— Repito que se trata de um assunto pessoal e muito urgente volvi, meneando a
cabeça. — Vai ter de se contentar com confiar na minha jovem e honesta cara. Se
suspeitar de que minto, ligue para a Metropolitan Trust Company, na Thirty-fourth
Street. Obterá a informação de que ganho uns cobres nas horas vagas, vigiando
carrinhos de bebê, enquanto as mamãs entram nas lojas.
— Não sei... O queixo quadrangular mudou de posição para que se formasse um
sorriso. — Mister Kimball tem uma dezena de encontros marcados, o primeiro dos
quais às dez e meia. Na minha qualidade de secretário, estou mais ao corrente dos seus
compromissos do que ele próprio. Aconselho-o a me dizer.
— Lamento, mas o assunto é só com ele.
— Está bem, verei o que posso fazer. Aguarde lá fora... Não, pode ficar aqui. Quer
se entreter com o jornal?
Num gabinete espaçoso duas portas adiante no corredor, com janelas panorâmicas
em dois lados, muito mobiliário antiquado e um registrador automático de cotações da
Bolsa em atividade a um canto, havia um homem atrás de uma espaçosa mesa. Tinha o
rosto impecavelmente escanhoado, cabelo na sua maioria grisalho e, embora não se
pudesse considerar gordo, era na verdade dos pesados. Parecia preocupado, mas
divertido, como se alguém acabasse de lhe contar uma anedota e lhe doessem os dentes.
Perguntei-me se seria a preocupação ou o divertimento que provinha do que o
secretário lhe comunicara a meu respeito, porém acabei por descobrir que não se
tratava de nada disso, pois era a sua atitude natural.
— Histórias.
— Engana-se, retorqui com firmeza. — De qualquer modo, história ou não, foi o
seu driver que Barstow utilizou no primeiro tee. Recorda-se disso?
— Com certeza. Não pensei mais no assunto, mas agora que mencionou me lembro
perfeitamente da cena. Foi na verdade como o senhor...
— Mister Kimball! O secretário se empenhava em secretariar. — Talvez fosse
conveniente que refletisse...
— Conveniente porquê? Não, eu sabia que os aborrecimentos surgiriam. Sabia
mesmo muito bem. Com certeza que Barstow utilizou o meu driver. Porque não posso
admitir? Eu mal o conhecia. Insisto em que isso da agulha envenenada são histórias,
mas não impede que constitua um aborrecimento.
— Será pior que um aborrecimento, lhe garanti-. — Repare. A polícia ainda não
sabe que Barstow se serviu do seu drive e o promotor público tampouco. Não sugiro
que lhes oculte alguma coisa, pois acabarão de qualquer modo por descobri-lo. No
entanto, acreditam piamente na intervenção da agulha envenenada. Sabem, sem margem
para dúvidas, que Barstow foi morto por uma agulha proveniente do driver de que se
serviu no primeiro tee, e quando averiguarem que o taco em causa lhe pertencia, Mister
Kimball, que fará? Não o deterão por homicídio apenas com base nesse pormenor, mas
é natural que o mandem procurar no dicionário um termo melhor do que
“aborrecimento”. Aconselho-o a avistar-se com Nero Wolfe. Leve o seu advogado, se
quiser, mas não perca tempo.
— Valha-me Deus....
— Também acho, concordei. Voltou-se para o secretário.
— Como sabe, os advogados não me merecem o mínimo respeito.
— Decerto que não, senhor.
— Que situação esta! Levantou-se. — Como mencionei diversas vezes no passado,
há só uma coisa neste mundo em que sou bom. Os negócios. Sou um bom negociante, o
que surpreende, se considerarmos a minha brandura típica. Não sei resolver os aspectos
mais pessoais da minha vida. Começou a se mover em vaivém, atrás da mesa. — Sim,
me dá a impressão de que se trata de algo mais do que um mero aborrecimento. Que
faria no meu lugar? Cravei o olhar no secretário, que hesitou.
— Se tencionar ir falar com esse Nero Wolfe, posso acompanhá-lo. Eu levaria um
advogado.
— Que entrevistas há na agenda para hoje?
— As habituais, mas nenhuma importante. A primeira é às onze e meia, com o
homem da Promotoria de Westchester, que já me referi.
— Pode ficar para outra altura. Invente qualquer desculpa. Que indica o
registrador automático?
— O movimento se mantém firme, na abertura. O algodão baixou um pouco.
— Onde está o tal Nero Wolfe? Kimball se concentrou de novo em mim. — Vá
buscá-lo.
— Impossível. Ele está... Interrompi-me ao recordar que, uma ocasião, Wolfe
descobrira que eu dissera a alguém que se achava doente, e não queria que a cena
resultante se repetisse. — É um gênio excêntrico. Encontra-se perto daqui, na Thirty-
fifth Street. Tenho o carro lá em baixo e posso lhe dar uma carona. Até hoje, só conheci
um gênio. Um vaqueiro argentino, um gaúcho. — Está bem. Aguarde na antecâmara,
“Pois é”, refleti. “Um bom negociante como você deve confiar em toda a gente...”.
Eu deixara o conversível a cerca de meio quarteirão dali e, depois de conduzi-lo pelas
artérias menos concorridas àquela hora, eram onze e quinze quando chegamos no prédio
de arenito avermelhado. Introduzi Kimball na sala, lhe pedi que aguardasse um
momento, regressei à entrada para me certificar de que a porta ficava devidamente
trancada e entrei na cozinha. Fritz confeccionava tortas de cerejas, uma das quais
acabava de sair do forno, e aproveitei a oportunidade para prová-la, o que quase me
valeu uma queimadura na língua.
— E. D. Kimball está lá fora na sala, anunciei. — Quer que o chame para ajudar?
Contemplou as chapinhas e ergueu os olhos para mim, com uma expressão desolada.
— Não pode esperar um pouco?
— Com certeza. Pode ficar para a próxima semana.
— Que droga! Exalou um profundo suspiro. — Bem, mande-o entrar.
— Com essa tralha espalhada na sua frente? Enfim, nada nos deve surpreender
num excêntrico.
— Tem toda a razão, Mister Kimball, dizia Wolfe. — O tempo de um homem é seu
apenas por tolerância. Há muitas maneiras pelas quais o podem arrebatar: inundações
calamitosas, fome, guerra, casamento... Para não falar da morte, sem dúvida a mais
satisfatória de todas, porque encerra a questão definitivamente.
— Valha-me Deus! Kimball deixava transparecer perturbação. — Não vejo
porque a considera satisfatória.
— Esteve na iminência de descobrir, fez domingo oito dias. Wolfe sacudiu o dedo
na sua direção. — O senhor é um homem muito ocupado e acaba de regressar ao
escritório após uma semana de ausência. Por que razão, nessas circunstâncias,
conseguiu tempo para me procurar?
— É o que pretendo que me explique, redarguiu Kimball, olhando-o com
intensidade.
— Ótimo. Veio porque se sente confuso, condição indesejável num homem em
perigo extremo, como é o seu caso. Não lhe vislumbro a menor indicação de alarme ou
medo, apenas confusão. O fato é a todos os títulos surpreendente para quem, como eu,
está ao corrente do que Mister Goodwin lhe revelou. Ele informou-o de que, em quatro
de junho, há doze dias, Peter Oliver Barstow foi morto por mera inadvertência, a
mesma que lhe salvou a vida, Mister Kimball. Acolheu a revelação com incredulidade.
Porquê?
— Porque não faz sentido declarou, com impaciência. — É uma autêntica
insensatez.
— Antes, lhe chamou de histórias. Porquê?
— Porque o termo corresponde à situação. Não vim para entrar em controvérsia
por causa disso. Se a polícia enfrenta dificuldades ao tentar explicar algo que não
compreende e pretende inventar uma fábula qualquer para justificar a sua posição, não
me oponho, porque toda a gente tem o direito de exercer a sua atividade profissional da
maneira que julga mais conveniente, mas não deve contar com a minha colaboração ou a
mínima participação, e até agradeço que me ignore pura e simplesmente. Sou um homem
muito ocupado, como disse, com coisas mais importantes para fazer. Labora em erro,
Mister Wolfe. Não o procurei por me sentir confuso e ainda menos para lhe conceder o
ensejo de tentar me assustar. Fiz porque parece que a polícia procura me envolver numa
história de fadas susceptível de me proporcionar aborrecimentos e uma publicidade que
dispenso perfeitamente, e o seu enviado me convenceu de que o senhor me ensinaria a
evitá-los. Se achar isso possível, faça-o, que pagarei o que considerar razoável. Do
contrário, diga-o e buscarei outra fonte que me aconselhe.
— Bem... Wolfe se reclinou no espaldar da cadeira e observou o interlocutor por
entre as pálpebras semicerradas. Por fim, abanou a cabeça e comunicou: — Receio não
me ser possível lhe indicar a forma de se esquivar a aborrecimentos. Quando muito,
posso lhe explicar a de evitar a morte. E mesmo isso é incerto.
— Nunca me passou pela cabeça evitar a morte.
— Não tente divagar. Refiro-me, como decerto calcula, à morte desagradável e
iminente. Vou pôr as cartas na mesa. Se não lhe dou imediatamente bom-dia e o deixo
seguir o seu caminho, não é devido à minha certeza absoluta de que desafia a morte
como um insensato. Abstenho-me de contribuir para determinadas obras de assistência
cristãs, porque penso que ninguém deve ser salvo pela coerção. Neste caso, porém, me
norteio pelos meus interesses pessoais. Mistress Barstow ofereceu uma recompensa de
cinquenta mil dólares pela descoberta e prisão do assassino do marido. Ora, tenciono
descobri-lo, para o que necessito apenas de averiguar quem tentou matá-lo no dia
quatro de junho, Mister Kimball. Se me ajudar, será conveniente para ambos. Se não,
existe a possibilidade de somente graças a um deslize ou infortúnio na segunda tentativa
coroada de êxito me ser possível obrigá-lo a prestar contas pela primeira abortada.
Como decerto compreenderá, para mim tanto faz.
Kimball abanou a cabeça, mas não se levantou. Ao invés, parecia procurar uma
posição mais confortável na cadeira. Continuava a não denunciar o menor sinal de
alarme, se contentando com exteriorizar simples interesse.
— Exprime-se com admirável loquacidade, Mister Wolfe. Não acho que me possa
ser útil, pois parece gostar tanto de histórias de fadas como a polícia, apesar do que,
repito, o considero um bem-falante.
— Obrigado. Aprecia os bem-falantes?
— Aprecio tudo o que é bom, no diálogo, nos negócios, nas maneiras e no estilo
de vida. Não me refiro a um nível elevado, mas satisfatório, agradável. Tenho tentado
levar uma vida desse tipo e me agrada pensar que todos se esforçam com tal objetivo
em vista. Sei que alguns não conseguem, mas suponho que desenvolvem esforços.
Entretive-me a ponderar o assunto, há pouco, no carro, ao lado do seu enviado. Não
pretenderei que a história que ele contou me deixou impávido, porque mentiria. Quando
lhe disse que tudo não passava de histórias, me exprimi com sinceridade, e mantenho a
opinião. Não obstante, meditei maduramente. Admitindo que alguém pretendeu me
matar, quem foi?
— Quem? Inquiriu Wolfe, vendo que o outro se calara.
— Ninguém. A resposta estava carregada de ênfase.
“Se este fulano aparecer duro como Barstow, tão impecável que nem um mosquito
lhe tocaria, mudarei de profissão”, pensei.
— Conheci um homem que matou dois outros apenas porque perdera uma aposta
com eles, informou Wolfe.
— Ainda bem que não negociava com cereais. Kimball deu uma gargalhada. — Se
o seu modo de reagir se instalasse na minha atividade, eu teria sido assassinado não
uma, mas um milhão de vezes. Sou um bom negociante, única coisa de que me orgulho
neste mundo. Adoro o trigo. O senhor, em contrapartida, adora as histórias de fadas e
um bom homicídio, mas ninguém tem nada com isso. Sou um bom negociante, repito. Sei
onde se encontram as maiores reservas de cereais e as flutuações que as suas cotações
sofrem ao longo das diferentes épocas do ano.
— Provavelmente, possui alguns silos bem abastecidos.
— Nem um único. Os meus interesses se concentram no mercado de valores.
Envolvi-me em numerosas operações arriscadas, mas sempre dentro dos métodos mais
ou menos transparentes, em obediência às regras. Era nisso que pensava quando vinha
no carro com o seu enviado. Não conheço todos os pormenores do caso Barstow;
apenas o que li nos jornais. Se bem entendi, não encontraram o driver, mas não acredito
na sua existência. No entanto, mesmo que aparecesse e eu tenha emprestado o meu a
Barstow no primeiro tee, me custaria crer que o haviam preparado para mim. Tenho
respeitado as regras e feito sempre jogo limpo nos negócios e na vida particular.
— Há muitos tipos de danos. Reais, imaginários, materiais, espirituais, fatais...
— Nunca prejudiquei ninguém.
— Não me diga... A essência da santidade consiste na expiação. Quem eu não terei
prejudicado? Não compreendo por que razão a sua presença me estimula à confissão,
mas é o caso. Esqueça o assassínio de Barstow, uma vez que, para si, não passa de
histórias. Esqueça a polícia, pois descobriremos uma maneira de impedi-la de
incomodá-lo. Agrada-me conversar consigo e poderemos continuar, a menos que algum
assunto premente o impeça. Não desejo afastá-lo de algo de urgente.
— Não afasta. Kimball parecia satisfeito. — Quando surge um caso urgente, me
apresso a resolvê-lo. O meu escritório manteve tudo em andamento sem mim durante
uma semana, pelo que mais uma hora não alterará nada.
— Aceita uma cerveja?
— Não, obrigado. Não consumo bebidas alcoólicas.
— Muito bem. Wolfe apertou o botão. — É uma pessoa extraordinária. Aprendeu
a abstinência e, ao mesmo tempo, é um bom homem de negócios e filósofo... Um copo,
Fritz. Mas falávamos de danos, prejuízos, e eu sentia inclinação para a confissão. Quem
não terei prejudicado? Trata-se de uma interrogação retórica, claro, pois não me
considero um bom homem e padeço de uma consciência romântica. Mesmo assim,
ponderados todos os fatores envolvidos, me seria difícil compreender porque ainda
vivo. Há menos de um ano, um homem sentado nessa cadeira prometeu me matar na
primeira oportunidade. Eu tinha lhe retirado de baixo dos pés os fundamentos da sua
existência por motivos puramente mercenários. Há uma mulher residente a duas dezenas
de quarteirões daqui, notavelmente inteligente, cujo apetite e estado de espírito
melhorariam de forma incomensurável com a leitura da notícia da minha morte. Poderia
continuar a citar exemplos quase até ao infinito. Existem, porém, outros mais difíceis de
confessar e de compreender... Ah, obrigado, Fritz. Apanhou o abridor na gaveta, abriu a
garrafa e guardou a chapinha, após o que encheu o copo e levou-o aos lábios.
— É claro que um homem tem de assumir os riscos da sua profissão, observou
Kimball.
— É o filósofo que fala. É fácil reconhecer que é uma pessoa culta e educada.
Assim, talvez compreenda a obscura psicologia que impele (pelo menos a mim) a
persistir numa ação merecedora de condenação absoluta. Há uma mulher sob este teto,
que mora no último andar, incapaz de me desejar a morte, unicamente porque o seu
coração está encerrado ao veneno apenas pela ternura própria deste último. Eu torturo-a
todos os dias, todas as horas. Tenho plena consciência disso e o fato me amargura, mas
persisto. Abarcará a obscuridade da psicologia e a profundidade da amargura, Mister
Kimball, se lhe revelar que a mulher em causa é a minha mãe.
Eu anotava tudo o que ele dizia e quase ergui os olhos de admiração. Exprimia-se
com tanta convicção e escassa emoção na voz, mas a sugestão de que o sentimento
subjacente era tão esmagador, que só uma poderosa força de vontade o impedia de
aflorar. Por um segundo, quase conseguiu que me compadecesse da mãe dele, embora
fosse eu quem, desenvolvendo esforços para equilibrar a conta bancária todos os
meses, escrevia a quantia que lhe era enviada para um lar de Budapeste.
— Constitui mais uma prova disso. E Nova Iorque representa em si uma fonte de
educação para um garoto dessa idade, se possui coragem e determinação.
— É provável. Só que não vim para Nova Iorque. Segui para o Texas. Um ano
mais tarde, me mudei para Galveston e daí para o Brasil e Argentina.
— Palavra? De fato, possuía coragem e adquiriu uma educação cosmopolita.
— Bem, percorri muito território. Permaneci vinte anos na América do Sul, a
maior parte do tempo na Argentina. Quando regressei aos Estados Unidos quase tive de
voltar a frequentar a escola para reaprender inglês. Vivi... Enfim, conheci muitas
situações singulares. Assisti a numerosas manifestações de brutalidade e participei de
algumas, sem, todavia, me desviar um único instante das regras. No regresso ao país,
vendia carne, mas mudei gradualmente para os cereais. Foi aí que encontrei a mim
mesmo. Os cereais entusiasmam um homem sem receio de obedecer aos seus palpites e
conduzi-los com a firmeza com que um gaúcho monta um cavalo.
— Também foi gaúcho?
— Não. Sempre fui negociante. A inclinação nasceu comigo. Pergunto-me se
acreditará nisto. Não é que me envergonhe. Às vezes, sentado no meu gabinete, com
uma dúzia de mercados à espera para verem como vou reagir, me recordo do fato e me
orgulho dele. Durante dois anos, fui vendedor ambulante.
— Não me diga!
— É verdade. Cinco mil quilômetros por época na sela. Ainda se nota quando
caminho.
— Um verdadeiro nômade, Mister Kimball. Wolfe olhava-o com admiração. —
Suponho que não era casado?
— Não, com efeito. Contraí matrimônio mais tarde, em Buenos Aires. Tinha então
escritório na Avenida de Mayo...
Vi Kimball baixar os olhos. Por vezes, era difícil sustentar o olhar perscrutador de
Wolfe, porém um homem de negócios como aquele devia estar habituado a enfrentar
adversários duros. De súbito, se levantou e articulou:
— Não sente. Eu não extraí semelhante vantagem da sua confissão, Mister Wolfe.
— Ainda está em tempo de fazê-lo. Concedo-lhe todas as vantagens. Porque não
sermos francos? Não existe em mim o menor perigo para os inocentes. Wolfe olhou o
relógio. — O almoço será servido dentro de cinco minutos. Aceite o meu convite para
me fazer companhia. Não pretenderei ser seu amigo, mas não lhe guardo rancor nem aos
seus. Trinta anos atrás, conheceu um amargo desapontamento e atuou com energia.
Perdeu a coragem, entretanto? Vejamos o que se pode fazer. Almoce comigo.
Quando voltei para dentro, Wolfe não se encontrava no escritório, pelo que segui
para a sala de jantar, onde o vi se colocar devidamente diante da cadeira, com Fritz
preparado para impeli-la com cuidado. Depois de se instalar, me sentei igualmente.
Não me recordava de vê-lo discutir assuntos profissionais à mesa, mas calculava que
nesse dia abriria uma exceção. Equivoquei-me. Contudo, violou um hábito. De um
modo geral, gostava de conversar enquanto comia, abordando os temas mais variados.
Ora, nessa ocasião, não pronunciou uma única palavra. Nem sequer se lembrou de
felicitar Fritz pelas iguarias que confeccionara. Quando este último serviu o café, lhe
pisquei o olho e ele inclinou levemente a cabeça e exibiu um sorriso solene, como quem
diz que compreende a situação e não guarda rancor.
Quem me viu pousar no terreno de pastagem com o meu avião, segunda-feira à noite, cinco de junho, é
favor entrar em contato. Trata-se de uma aposta, cujo montante dividirei.
— Muito bem, aprovei. — Ótimo. Mas pode ter sido num campo de golfe.
— Também é muito público. Deixe ficar o terreno de pastagem... Não, não utilize
o telefone. Passe na redação do Times e de todos os outros jornais, matutinos e
vespertinos. Manuel Kimball é suficientemente engenhoso para se revelar
incomodativo, e poderia lhe ocorrer adquirir as respostas. Providencie, pois, para que
nos venham parar às mãos.
— Entendido. Pus-me de pé. — Vou já.
— Um momento, White Plains é antes de Armonk?
— É.
— Nesse caso, procure Anderson e revele tudo, exceto Cario Maffei e a
Argentina. Envolva a informação numa aura de favor especial. Comunica-lhe
igualmente que E. D. Kimball corre perigo iminente e constante, pelo que precisa de
proteção. É claro que o velho negará o fato e a proteção será fútil, mas quando alguém
decide se intrometer nos assuntos de pessoas violentas, como nós fazemos, assume
determinadas obrigações que não pode descurar. Embora compreendesse que não se
podia evitar, argumentei:
— Tenho tanta vontade de fornecer uma informação a Anderson como gratificar
um fiscal.
— É muito provável que em breve estejamos em condições de lhe enviar uma
fatura replicou Wolfe.
* * *
Quatorze
Nunca cheguei a me inteirar do que os fulanos de White Plains tinham feito durante
os seis dias transcorridos desde a autópsia. Naquela tarde de sexta-feira, Anderson me
revelou que Corbett passara dois dias na Universidade Holland. Provavelmente,
circulara o rumor de que havia lá um estudante que Barstow obrigara a ficar de castigo
uma hora depois de todos saírem, ou outra fantasia similar. De qualquer modo,
verifiquei que não tinham apurado nada de importante. Por muito que custasse a crer, o
promotor não sabia sequer que Barstow utilizara um saco de tacos de golfe novo
oferecido pela esposa como presente de aniversário, até que o elucidei. Naquela visita
obtive apenas um elemento novo: um analista de Nova Iorque afirmara que o sangue da
vítima continha indícios de veneno de serpente. Fora essa informação que levara
Anderson e Derwin a se desinteressarem dos tacos de golfe e se debruçarem sobre
serpentes venenosas, e, embora me repugne admiti-lo, o pormenor também me provocou
certa perplexidade.
Não conseguiu evitar alguns comentários cáusticos prévios, que suportei com a
paciência e estoicismo indispensáveis. Quando compreendeu que não obtinha o menor
efeito, chamou de fato um estenógrafo e desbobinei o meu rosário. Falei do presente de
aniversário, ao paradeiro do saco de tacos de Barstow e quem o colocara lá e ao
empréstimo do driver de Kimball no primeiro tee. Sugeri que investigassem todo o
possível acerca do saco deste último, onde o guardava e quem tinha acesso ao local,
embora soubesse que alguém que se aproximasse por essa via não chegaria a parte
alguma, porquanto Manuel decerto desfrutara de numerosas oportunidades. A seguir,
transmiti a mensagem de Wolfe sobre a proteção a Kimball, empregando a veemência
apropriada. Salientei que Wolfe pensava que, se a responsabilidade da segurança de um
cidadão cuja vida corria perigo estava comprometida, constituía um peso que as
autoridades deviam assumir, pelo que ele se desvinculava desse aspecto do assunto. No
final, Anderson me fez várias perguntas, a algumas das quais respondi, enquanto
deixava outras passar em claro. Insistiu por longos minutos, até que me viu exibir um
largo sorriso.
Passava das seis da tarde quando cheguei a Armonk, mas o Sol ainda se
encontrava muito acima do horizonte e avistei dois aviões pousados na pista e outro que
aterrava naquele momento. Havia letreiros por todos os lados VOE POR $5 E
EXPERIMENTE O CÉU, além de outros incentivos pintados nas paredes dos hangares de
madeira. Não se podia considerar um aeródromo impressionante em termos de
equipamento, porém o campo em si era espaçoso, bem cuidado e plano como uma
panqueca. Estacionei o carro na berma da estrada e transpus a cancela junto de um dos
hangares. Não havia ninguém nas imediações, à parte o piloto e dois passageiros que
abandonavam o aparelho que acabara de aterrissar. Avancei ao longo das outras portas
e no terceiro hangar descobri dois fulanos que se entretinham a atirar moedas para uma
ranhura. Quando ouviram passos, se endireitaram, se voltaram para a entrada e inclinei
a cabeça.
Fui me sentar no conversível para decidir o que faria a seguir. O mecânico não se
exprimira como se se esforçasse por justificar o dinheiro que alguém lhe pagara para
guardar silêncio. Limitara-se a dizer o que acontecera ou, melhor, o que não acontecera.
Armonk podia ser riscado da lista. Assim como Poughkeepsie, porque, embora Manuel
pudesse ter coberto a distância em vinte minutos no seu avião, não disporia de tempo
para regressar ao local em que deixara o carro e se encontrar com Carlo Maffei, onde
tivessem combinado. Era quase certo que se avistara com o italiano perto de uma
estação do metrô da periferia de Nova Iorque, às sete e meia. Com efeito, nunca
conseguiria comparecer se viesse de Poughkeepsie. Refleti que Danbury constituía uma
vaga possibilidade, pelo que segui para lá.
Archie:
Se não conseguiu nada, de manhã investiga o anúncio pedindo um técnico de metais, e, se o seu encanto
natural bastar para impressionar Anna Fiore, manda-a comparecer aqui às onze da manhã.
N. W.
Nunca gosto de comer a altas horas da noite, a menos que me pareça inevitável,
mas entrei na cozinha para me munir de um copo de leite e contemplar com amargura os
restos do jantar, como o eterno enamorado que visita a campa onde repousam as
ossadas da sua amada. Em seguida, subi ao quarto e me deitei.
Mistress Ricci não se mostrou disposta a me deixar entrar. Foi ela mesma quem
abriu a porta e enrugou a fronte mal me viu. Exibi um sorriso e expliquei que pretendia
levar Anna Fiore para dar uma volta no carro, me comportando como um cavalheiro
perante todas as suas objeções, até que começou a impelir a porta com tanta força que o
meu pé quase resvalou para fora. A partir daí, assumi uma atitude enérgica.
— Preste atenção, por favor. Anna está em maus lençóis. Não conosco, mas com a
polícia. Com os tiras. Revelou-nos uma coisa que lhe pode provocar sérios dissabores
se eles descobrirem. Por enquanto, não sabem de nada, nem nós queremos que saibam,
mas suspeitam de algo. O meu patrão pretende alertá-la. Quer que a prendam? Vá lá.
Deixe-se de esquisitices.
— Tudo isso são mentiras retorquiu, com um olhar incendiário.
— Pergunte-lhe. Vá chamá-la.
— Aguarde aí.
— Com certeza.
— Telefonei a Miss Maffei. Diz que você merece confiança, mas não me
convenceu. Se envolver a Anna em confusões, o meu marido mata-o. É órfã de pai e
mãe e consideramo-la uma boa pequena, apesar de ter macaquinhos na cabeça.
— Não se preocupe. Voltei-me para a jovem, com um sorriso. — Quer dar uma
volta no carro? Assentiu com uma inclinação de cabeça e acompanhei-a ao conversível.
Se alguma vez resolver matar alguém, tenho certeza de que será uma mulher.
Conheci muitos homens casmurros, conhecedores de algo que me interessava saber e se
fechavam em copas, apesar do que se conservavam sempre humanos. Infundiam-me a
sensação de que, se lhes atingisse o ponto fraco, obteria o que pretendia. Por outro
lado, conheci mulheres totalmente herméticas, em quaisquer circunstâncias, mesmo que
compreendessem que uma revelação não as afetaria minimamente.
Conservei-me sentado observando Anna Fiore durante uma hora, naquela manhã,
enquanto Wolfe punha em prática todos os ardis que conhecia, e se ela se safou inteira
foi apenas porque me recordei de que nunca se deve matar a galinha dos ovos de ouro,
mesmo que se negue a pôr. É claro que eu não sabia se tinha algum ovo de ouro nas suas
entranhas e Wolfe tampouco, mas não conhecíamos outra galinha com semelhantes
possibilidades potenciais.
Chegamos na Thirty-fifth Street antes das onze, e Wolfe não demorou a descer da
estufa. Iniciou o interrogatório com suavidade, como se apenas pretendesse lhe contar
uma história para mantê-la a par da situação. Comunicou que quem lhe enviara os cem
dólares matara Carlo Maffei, se tratava de um indivíduo perverso e perigoso,
conhecedor do fato de que ela estava ao corrente de algo que não desejava divulgado e
poderia, portanto, tentar matá-la, Miss Maffei era uma mulher simpática, Carlo Maffei
também e não merecia a morte e o autor do crime devia ser descoberto e condenado.
Com os olhos fixos na expressão da jovem, pressenti o que nos aguardava.
Abanou a cabeça, e com que expressão o fez! Talvez não dispusesse de uma mente
muito esclarecida, mas não subsistiam dúvidas de que lhe não faltava determinação.
Wolfe optou por uma táctica diferente. Começou a tentar ludibriá-la. Fez-lhe
perguntas sobre os pais, a sua vida anterior, as atividades e hábitos dos Ricci, as suas
opiniões acerca disto e daquilo. Ela pareceu aliviada e ia respondendo
satisfatoriamente, em particular quando ele aludiu à pensão. Mas na primeira vez que
procurou lhe armar uma cilada, ao perguntar algo a respeito da limpeza ao quarto de
Carlo Maffei, conservou a boca fechada como uma ostra. Wolfe experimentou recorrer
a rodeios, mas o resultado não mudou. Anna assumia uma atitude digna de admiração, e
eu tê-la-ia comprado se descortinasse algum destino a lhe dar. Estúpida ou não, possuía
um mecanismo interno perfeitamente afinado que se imobilizava sempre que o nome de
Carlo Maffei vinha à baila. Não obstante, Wolfe persistia sem vacilar e cheguei a
acalentar a esperança de que terminasse por conseguir levar água ao seu moinho.
De súbito, a porta abriu-se e Fritz entrou com a habitual lentidão ditada pelo
respeito. Fechou-a atrás de si e, quando Wolfe inclinou a cabeça, se adiantou e
apresentou um cartão-de-visita numa salva de prata. Ele pegou-o, olhou, e vi as narinas
se dilatarem ligeiramente.
Manuel Kimball
* * *
Quinze
— Mande entrar o cavalheiro e leve-o para a sala, Fritz. Levanta os estores para
que haja luz suficiente e deixa a porta do corredor aberta, para permitir a renovação do
ar. Fritz saiu e Wolfe se voltou para Anna. — Muito obrigado, Miss Fiore disse em voz
ainda mais baixa do que usualmente. Foi deveras paciente e se manteve dentro das
regras dos direitos que lhe assistem. Importa-se que Mister Goodwin não a leve à
pensão? Tem uma tarefa urgente a executar. De qualquer modo, Fritz é um motorista
excelente. Archie, acompanhe-a à cozinha e combine isso com ele. Depois, podes
escoltá-la até à entrada.
— Compreendo. Vamos, Anna.
— Não pode ser Mister Goodwin?... Começou ela.
— Fica para outra ocasião. Venha.
Conduzi-a à cozinha e expliquei a Fritz o prazer que o aguardava. Penso que nunca
tive pena da jovem até ao momento em que vi que ele não corava ao lhe anunciar que
devia levá-la à pensão. Era uma perspectiva terrível. Protelei, porém, a compaixão
para mais tarde, enquanto Fritz se desembaraçava do avental e enfiava o paletó e o
chapéu. Entretanto, fingi que me acudira uma ideia e decidia pô-la em prática.
— Vamos fazer uma experiência, Anna. Há pouco, falou em casar, o que me levou
a pensar no gênero de homem que preferiria. Quando passarmos pela porta da sala, olhe
para dentro e depois me diga se a pessoa que se encontra lá corresponde ao seu gosto.
De acordo?
— Sei perfeitamente o gênero...
— Acredito. Não quero que ele lhe ouça a voz, para não notar a nossa curiosidade.
Está pronto, Fritz?
— Desculpe tê-lo feito esperar. Estávamos com uma jovem cliente convencida de
que podemos lhe restituir o marido assobiando, mas não é assim tão fácil. Siga-me, por
favor.
— Muito boa tarde, Mister Kimball. Perdoe não me pôr de pé, mas se trata apenas
de excesso de peso e não de falta de maneiras. Queira sentar.
— Toma cerveja?
— Obrigado, agradeceu, com uma inclinação de cabeça.
Os músculos das faces de Manuel não tinham sofrido a mínima alteração, tal como
não se notava qualquer diferença no seu tom, quando, sem desviar os olhos de Wolfe,
replicou:
— Se estiver ao corrente de tudo isso, o que me custa a crer, não é material para
transmitir ao promotor público?
— Sem dúvida. Deseja que o faça?
— Com certeza. Se o possui, bem entendido.
— Ótimo. Wolfe agitou um dedo na direção do interlocutor. — Faça-me um favor,
Mister Kimball. Quando regressar, passe pelo gabinete de Mister Anderson, lhe
comunique a informação que possuo e sugira que a mande buscar. E agora, se me dá
licença, já estou atrasado para o almoço. Antes, porém, me permita um cumprimento
pessoal. Se outra pessoa se achasse no seu lugar, eu tentaria retê-la, na esperança de
que me revelasse algo de útil. Agora, todavia, considero que uma das minhas habituais
refeições será mais proveitosa.
— Devo preveni-lo de que seguirei daqui diretamente para o meu advogado,
anunciou Manuel, se levantando. Não tardará a receber notícias dele.
— É a sua atitude mais conveniente. Óbvia, mas decerto a mais conveniente. Seu
pai estranharia se não a tomasse.
— O tipo terá vindo para averiguar se deve matar o pai durante o fim-de-semana?
Suspirou, descerrou as pálpebras e meneou a cabeça.
— São horas do almoço, Archie.
— Só está pronto daqui a dez minutos, pelo menos. O Fritz voltou perto da uma.
— As anchovas e o aipo servirão para nos entretermos. Seguimos, pois, para a
sala de jantar.
Tinha certeza que ele estava exagerando, visto que já eram três e meia e, dentro de
trinta minutos, se recolheria à estufa. No entanto, em face do estado de espírito que lhe
notava, peguei no chapéu e me encaminhei para a saída. Entrei num cinema para refletir,
e quanto mais pensava mais desconfortável me sentia. A visita de Manuel Kimball, com
o seu desafio, pois era disso que se tratava, quase alcançara o objetivo, pela parte que
me dizia respeito. Embora consciente de que ainda não estávamos totalmente em
condições de dizer a Mrs. Barstow a quem devia endereçar o cheque, só agora notava
de como estava vazio o nosso saco. Descobríramos algumas coisas de modo que nos
satisfaziam, mas dispúnhamos de tantas provas de que se praticara um homicídio como
no momento em que iniciáramos as investigações. Para não falar da identidade do
assassino. Todavia, isso não era tudo: o pior consistia em que não tínhamos a menor
ideia da diligência que devíamos fazer a seguir. Admitindo que se tratava de Manuel
Kimball, como provaríamos a culpa dele? Por meio de driver. Nesse capítulo,
escusávamos de acalentar esperanças. Não me custava vê-lo a sobrevoar o rio e largar
nele o malfadado taco, com um pedaço de chumbo firmemente preso. Subsistiam mais
ou menos as mesmas possibilidades de determinarmos a origem do veneno. Ele
planejara o crime durante anos ou, pelo menos, meses. Talvez até se fizesse
acompanhar do veneno quando viera da Argentina com o pai. E se o induzíssemos a
falar ao telefone com Mrs. Ricci, para que ela identificasse a voz? Qualquer júri
emitiria o veredicto com base nisso sem abandonar a sala do tribunal. Permaneci no
cinema mais de três horas sem ver nada do que se passava na tela e ainda contraí uma
dor de cabeça pelo trabalho.
Nunca soube o que Wolfe tinha em mente naquela tarde de sábado e domingo
subsequente. Limitar-se-ia a dar com a cabeça nas paredes, como eu? Aguardaria que
Manuel agisse? Mas a única ação que este poderia empreender consistia em matar o
pai, e o que lucraríamos com isso? Anderson nos colocaria à margem dos
acontecimentos sem apelo nem agravo, e conquanto Wolfe e eu decerto não julgássemos
necessário trajar de luto por E. D. Kimball, assistiríamos com profundo desgosto à
perda da possibilidade de arrecadarmos os cinquenta mil dólares. No que se referia a
este último, eu ponderava que fora virtualmente assassinado a 4 de junho e devia se
sentir grato pelas duas semanas de graça. No entanto, Wolfe não estava à espera disso,
e eu tinha certeza em virtude do que disse acerca de Manuel, domingo à tarde, altura em
que emergiu da hibernação e falou um pouco, embora não muito. Mostrava-se apenas
filosófico.
Chovia, como aconteceu durante todo o dia. Escrevi algumas cartas, li dois jornais
e passei duas horas na estufa e conversando com Horstmann e contemplando as plantas,
mas, qualquer que fosse a minha atividade, estava mal-humorado. O raio da chuva não
parava um único instante. Isto não quer dizer que me incomodasse, se tivesse alguma
coisa para fazer, pois não me preocupo com os elementos meteorológicos quando estou
ocupado, porém a deambulação pela casa na penumbra, com a precipitação constante lá
fora, não contribuía para melhorar a minha disposição. Por conseguinte, me congratulei
quando, por volta das cinco e meia, aconteceu algo que me irritou.
— É Durkin, Mister Wolfe. Correu tudo bem. Ela foi à missa, de manhã, e saiu há
pouco para entrar numa panificação, onde comprou um sorvete. Agora, regressou
definitivamente, espero.
— Obrigado, Fred. É melhor ficar aí até às dez. Saul comparecerá às sete da
manhã e você volta a entrar de serviço às duas da tarde.
— Muito bem. Alguma outra coisa?
— Não, nada mais.
Sentia-me algo melhor. Havia ocasiões em que a convicção granítica de Wolfe nas
suas qualidades me irritava, porém noutras era altamente benéfica, como acontecia
naquele momento. Depois de emborcar leite e biscoitos em quantidade que considerei
suficiente, fui num cinema e desta vez não perdi uma única cena. Quando voltei para
casa, continuava chovendo.
— Mistress T. A. Carter?
— A própria, confirmou a mulher, que era magra e aparentemente ativa, com falta
de um dente na frente.
— Venho por causa da sua resposta ao anúncio que publiquei no jornal de sábado.
A respeito da aterrissagem com o meu avião. A sua informação é muito completa. Viu-
me mesmo aterrissar?
— Sim, senhor. Inclinou a cabeça com veemência.
— Mas não li o anúncio. Minnie Vawter é que me falou dele, se lembrou de
também ter visto o avião e foi buscar o jornal de sábado para me mostrar.
— Custa-me a crer que conseguisse me ver daqui.
— Vi muito bem. Repare. Levou-me para a outra extremidade de um quintal em
que havia um grupo de arbustos. Que diz desta vista? O meu marido afirma que vale um
milhão de dólares. Vê o reservatório, que parece um lago? Acrescentou, apontando. —
O aparelho aterrissou naquele campo a seguir. Estranhei e até julguei que tinha sofrido
uma avaria. Houve algum problema?
— Não, nada de especial, afirmei. — Graças à abundância de pormenores da sua
carta, quase não preciso perguntar mais nada. Viu-me aterrissar às seis e dez da tarde,
saltar do avião e atravessar o prado, em direção à estrada. Depois, entrou em casa para
tratar do jantar e não voltou a me ver. Ao anoitecer, o avião continuava no mesmo lugar.
A senhora se deitou às nove e meia, e de manhã ele já não se encontrava lá.
— Exato. Pareceu-me conveniente mencionar todos os pormenores, porque...
— Fez muito bem. Calculo que costuma ser minuciosa em tudo, Mistress Carter. A
sua descrição do avião é melhor que a que eu próprio faria. E deve ter uma vista
apuradíssima, para distinguir tudo tão bem a esta distância. A propósito, sabe quem
vive naquela casa lá em baixo, a branca?
— Com certeza. Miss Wellman, uma artista de Nova Iorque. Foi Art Barrett, o
homem que trabalha para ela, que o levou a Hawthorne.
— Tem razão. Bem, estou muito grato, Mistress Carter. As suas informações vão
me ajudar a ganhar a aposta.
Decidi lhe dar uma nota de cinco. Decerto necessitava dela, a avaliar pelo aspecto
do que a rodeava, além de que contribuíra decisivamente para agravar a situação de
Manuel Kimball. Ignoro em que medida Wolfe estava seguro da sua culpa até então,
mas protelara o assédio a Anna Fiore para depois arrumar a questão de cinco de junho.
Eu é que não estava absolutamente nada seguro. Nunca me fiara tanto nos meus palpites
como ele nos seus, até que recolhia fatos suficientemente sólidos para servirem de
apoio. Por conseguinte, imaginava que a contribuição de Mrs. Carter fora barata por
cinco dólares. Manuel Kimball estava irremediavelmente comprometido, pela parte que
nos dizia respeito, embora os elementos que possuíamos ainda fossem insuficientes
para convencer um júri.
Não existia qualquer ponto frágil nesta teoria, salvo uma possível exceção:
proporcionava a Cario Maffei uma capacidade de raciocínio extraordinária ao supor
que a leitura da notícia da morte de Barstow bastara para elucidá-lo de toda a verdade.
Não obstante, resolvi ignorar o fato, pois se tornava impossível determinar o que
acontecera antes para lhe despertar suspeitas, além de que o mecanismo que lhe fora
encomendado era de uma natureza que justificava uma certa desconfiança quanto à sua
utilização. Decidi não procurar Art Barrett. Não podia me apresentar como sendo o
aviador, porquanto conduzira Manuel a Hawthorne e não me revelaria nada que
justificasse o trabalho de arquitetar um pretexto plausível para abordá-lo. No momento,
dispunha dos elementos suficientes. Haveria muito tempo para visitá-lo mais tarde, se a
sua corroboração se tornasse imprescindível. E o mesmo se aplicava às duas outras
respostas ao anúncio. Agora, ansiava por regressar à Thirty-fifth Street, ao me recordar
de que Wolfe prometera utilizar um abridor-de-latas em Anna Fiore se eu conseguisse
arrancar Manuel Kimball das nuvens na noite de cinco de junho.
— Miss Barstow? É Nero Wolfe. Boa tarde. Tomei a liberdade de telefonar para
perguntar se as orquídeas chegaram em condições... Não?... Então, deve ter havido
engano. Não me enviou um bilhete, esta manhã, pedindo algumas orquídeas?... Não
enviou bilhete algum?... Não, não tem importância. Trata-se de alguma confusão que
tratarei de esclarecer.
— Já me ouviu dizer, mais de uma vez, que sou um ator. Na verdade, tenho um
fraco pelas atitudes dramáticas, e constituiria uma insensatez não as assumir quando
surge uma boa oportunidade. Há morte nesta sala. Devo ter olhado involuntariamente
em volta, porque acrescentou: — Não me refiro a um cadáver, mas à morte que está à
espera. À minha espera ou de todos nós, não sei. O certo é que se encontra presente.
Quando estava na estufa, esta manhã, o Fritz apareceu com um bilhete... Este. Enfiou a
mão no bolso e retirou-a com um pedaço de papel, que me estendeu.
Ouvi Fritz abrir a torneira da água da cozinha, todavia Wolfe se mantinha imóvel e
eu não dispunha de força suficiente para arrancá-lo da cadeira. Por último, abanou a
cabeça e agitou o indicador na minha direção.
— Pare com isso! Não toque em nada. Não há bomba nenhuma. Costuma fazer
tique-taque ou crepitar e tenho muito bom ouvido para que esses sons insólitos neste
ambiente me passassem despercebidos. De resto, Mister Kimball não teve tempo para
fabricar uma eficiente desde a sua visita, e não utilizaria qualquer outra. Não se trata de
uma bomba. Há drama na atmosfera, sem dúvida, mas não trepidação. Refleti e senti.
Considere o seguinte. Quando esteve aqui, ele apenas me viu efetuar um movimento
digno desse nome: abrir a gaveta da mesa e colocar a mão. Se o fato não lhe sugere
nada, estou certo de que não se passou o mesmo com ele. Veremos.
Precipitei-me para frente, julgando que tencionava abrir a gaveta, mas me obrigou
a retroceder, com um gesto. Preparava-se unicamente para abandonar a cadeira.
— Vá buscar a minha bengala vermelha... Não fique aí parado, homem! Faça o que
eu pedi!
Corri ao vestíbulo, peguei a bengala do suporte e regressei com prontidão, no
momento em que Wolfe começava a contornar a mesa, com as mãos espalmadas
pousadas no tampo. Quando se encontrou do lado oposto à cadeira, puxou para si o
tabuleiro, ainda com o copo e cervejas.
— Vamos fazer do seguinte modo, mas primeiro fecha a porta do corredor. Fez
uma pausa, enquanto eu obedecia. — Obrigado. Pega na bengala pela outra ponta.
Estende-a sobre a mesa e encosta-a no puxador da gaveta. Exerce pressão e ela se
abrirá. Mas atenção. Vá com lentidão e se prepare para recolher a bengala rapidamente,
se precisar empregá-la com qualquer outro objetivo. Comece.
Wolfe, que segurava uma garrafa de cerveja pelo gargalo em cada mão, tentou
alvejar a coisa que acabava de surgir da gaveta, mas falhou. Entretanto, a coisa
continuava a sair com rapidez, e a cabeça quase alcançava o lado da mesa onde nos
encontrávamos, enquanto a cauda se mantinha dentro. Consegui finalmente desprender a
bengala e me pus a visar a esguia e sinuosa criatura, mas ela se esquivava e o tampo da
mesa se achava sulcado de cerveja e pedaços de garrafa quebrada. Preparava-me para
saltar para trás e segurar Wolfe, com o intuito de arrastá-lo comigo, quando utilizou a
segunda garrafa e acertou em cheio na hedionda cabeça, que esmagou como uma
bolacha. O alongado corpo castanho continuou a se contorcer, mas estava terminado. A
segunda garrafa também quebrara e ficáramos cobertos de cerveja. Wolfe retrocedeu
com lentidão e puxou do lenço para limpar o rosto, enquanto eu conservava a bengala
na mão.
* * *
Dezesseis
de novo:
T ENTEI
— Ferr-di-lense?
— Já está um pouco melhor, mas ainda não captou a pronúncia apropriada. Não é
um linguista nato, Archie. O seu defeito provavelmente não é mecânico. Para pronunciar
o idioma francês da forma apropriada, deve haver no seu íntimo uma profunda antipatia,
ou mesmo rancor, por alguns dos mais sagrados preconceitos anglo-saxônicos.
Consegue lhe desenrascar sem esse rancor, embora eu não compreenda como. Sim, fer-
de-lance. Bothrops atrox. Trata-se de uma das víboras mais temidas.
— Exato confirmou, num murmúrio. — Pertence à família dos crótalos, uma das
poucas cobras que atacam sem provocação nem aviso prévio. Na semana passada,
examinei a gravura de uma num dos livros que trouxe a meu pedido. Abunda naquele
continente.
— Foram encontrados vestígios de veneno em Barstow.
— Era uma coisa previsível, quando a análise se revelou difícil. A agulha deve ter
sido bem embebida. Estas considerações resultarão úteis se Anna Fiore nos desapontar
e necessitarmos de recorrer ao cerco. Descobriremos um número apreciável de coisas
com paciência suficiente e... Bem, abandono de reserva. Haverá, em algum lugar na
propriedade dos Kimball, uma cova onde Manuel conservasse ratos para a sua fer-de-
lance? Seria ele próprio a extrair o veneno provocando a mordedura numa banana?
— Pouco provável. Terá sido algum amigo argentino que enviou? Mais
admissível. O rapaz, moreno e bem-parecido, segundo o Fritz, que trouxe o suposto
bilhete de Sarah Barstow, e é obviamente perito na manipulação de víboras, será talvez
arrumador num cinema da Sixteenth Street? Ou o tripulante de um navio sul-americano
que acostou ao porto de Nova Iorque, providencialmente, ontem? Perguntas de
respostas difíceis, mas acessíveis, se tivermos de optar pelo cerco. É provável que
Manuel Kimball preparou a viagem da fer-de-lance com certa antecedência, como uma
segunda corda para o seu arco, pensando que, se o dispositivo concebido pelo homem
falhasse, proporcionaria uma oportunidade a um mecanismo da natureza. Depois,
quando a recebeu, havia uma necessidade mais premente: a vingança protelada pela
segurança. E agora, pelo menos até este momento, não tem uma coisa nem a outra.
— Talvez, mas esteve prestes a alcançar uma e pode obter a outra a todo o
instante.
— Errado, Archie, indesculpavelmente errado, retorquiu, agitando o dedo. — A
vingança continuará a aguardar. Manuel Kimball não é uma criatura impulsiva. Se as
circunstâncias o tornarem subitamente desesperado, atuará com desespero, mas sempre
sem obedecer a um impulso. No entanto, Maria Maffei deve chegar dentro de meia hora
e precisa conhecer a situação antes disso. Pega no bloco-de-notas.
Sentei-me à mesa e ele ditou durante vinte minutos, sem interrupção. Transcorridos
os primeiros momentos, coloquei um sorriso que perdurou até ao fim. O plano era
admirável, sem pontos fracos, e abarcava todos os pormenores. Até entrava em linha de
conta com a recusa ou incapacidade de Maria Maffei para convencer Anna. Nessa
eventualidade, a ação não diferiria muito, mas as personagens variavam um pouco.
Quem se ocuparia da jovem seria eu. Wolfe telefonara a Burke Williamson para que
nos preparasse o cenário, e Saul Panzer deveria passar pelo seu escritório às seis, a fim
de receber o sedã e instruções. Quando terminou de ditar, me parecia tudo tão claro que
havia poucas perguntas a fazer. Não obstante, fiz essas poucas e revi o que escrevera,
enquanto ele se reclinava na cadeira, cheio de cerveja, fingindo que não se sentia
encantado consigo próprio.
Maria Maffei foi pontual. Eu aguardava-a em bicos dos pés e cheguei à porta antes
que Fritz conseguisse sair da cozinha. Trajava de preto e, se cruzasse com ela na rua,
duvido que a reconhecesse, tal o abatimento que aparentava. Achava-me tão
entusiasmado com o plano de Wolfe que tinha um sorriso expressamente preparado para
a receber, mas dominei-o a tempo. Maria Maffei não o acolheria com agrado.
Envelhecera dez anos e o clarão de vivacidade no olhar desaparecera. Conduzi-a ao
escritório, lhe indiquei a cadeira diante de Wolfe e fui me sentar atrás da minha mesa.
Depois de saudá-lo mais ou menos secamente, disse:
Não levei Maria Maffei à estufa para ver as orquídeas, naquele dia, pois eram
quase cinco horas da tarde quando acabei de lhe transmitir indicações e tinha outra
ocupação mais urgente. Ela me escutou com atenção, mas necessitei de esclarecer
numerosos pormenores e considerei conveniente repisar alguns, para haver a certeza de
que não se excitaria e comprometeria tudo. Por fim, ficou decidido que efetuaria uma
visita preliminar a Anna para preparar o terreno, pelo que a acompanhei à rua, chamei
um táxi e despachei-a para Sullivan Street. A seguir, me concentrei nos meus próprios
pormenores. Tinha de aprontar a faca, as máscaras e as armas de fogo, além de contatar
com a garagem para alugar um carro, pois não podíamos correr o risco de Anna
reconhecer o conversível, e se prevenir de Bill Gore e Orrie Cather. Tinham sido
sugeridos por mim, e Wolfe concordara. Entretanto, ele recomendara a Durkin que se
apresentasse às sete da noite.
Consegui tratar de tudo, mas sem ficar com tempo livre. Às seis e meia, engoli um
jantar rápido na cozinha, enquanto Wolfe se encontrava no escritório com Saul Panzer.
Ao sair, este último assomou à porta da cozinha para me brindar com uma careta, como
se a sua expressão natural não bastasse para assustar uma pessoa numa rua escura.
— Aproveite, Arch. Pode muito bem ser a sua última refeição. Esta noite, as
coisas vão aquecer.
Como tinha a boca cheia, me limitei a lhe agradecer o cuidado com uma expressão
irreproduzível. Bill Gore e Durkin foram pontuais, e o atraso de Orrie podia se
considerar insignificante. Descrevi a situação e ensaiei este último várias vezes, porque
uma percentagem elevada do êxito dependia dele. Havia mais de dois anos que não
trabalhávamos juntos e pareceu-me regressar aos bons velhos tempos ao vê-lo
comprimir os lábios finos e olhar em volta à procura de um lugar para cuspir o suco do
tabaco que mascava. Wolfe ainda estava às voltas com o seu jantar quando saímos,
pouco antes das oito. A garagem fornecera um sedã Buick preto e, apesar de possuir
quatro rodas e um motor, não era a mesma coisa que o conversível. Orrie se instalou à
frente comigo e Bill Gore e Durkin atrás. Eu dizia para os meus botões que era pena se
tratar apenas de uma operação simulada, porque com aquelas três aves conseguiria
interceptar tudo, desde um ônibus vindo de Nava Jersey a um caminhão carregado de
bebida clandestina. Orrie pensava como eu, pois observou que devia ter pendurado um
letreiro no radiador, com os dizeres “Ladrões Especiais”. Exibi um sorriso, mas apenas
com os lábios. Sabia que precisava correr tudo exatamente como planejáramos e me
competia velar para que tal acontecesse. Além disso, o que Wolfe dissera acerca de
Anna Fiore correspondia à realidade: a sua visão mental era limitada, mas, apesar dos
seus limites, poderia detectar coisas que escapariam a uma visão mais ampla.
Saímos da cidade pela parte oeste e enveredámos pela Sawmill River Road. A
propriedade dos Williamson se situava a leste de Tarrytown, numa estrada secundária,
e eu conhecia o caminho tão bem como a Thirty-fifth Street, em virtude das minhas
deslocações ao local, quatro anos atrás. Contava chegar lá por volta das nove e meia,
porém o tráfego nos retardou um pouco a marcha. Assim, se passaram vários minutos
daquela hora e eu já acendera os faróis quando entramos no caminho de acesso onde,
uma ocasião, levantara Mrs. Williamson desmaiada e a levara para junto do lago, a fim
de lhe jogar água no rosto. Por último, parei à entrada da casa, deixei os outros três no
carro e fui tocar a campainha. Tanzer, o mordomo, se recordava de mim e me estendeu
a mão. Expliquei que não entraria, pois apenas queria trocar umas palavras com o
patrão. Burke Williamson apareceu quase imediatamente, me apertou também a mão e
se declarou chateado por não nos termos visto na sexta-feira anterior.
— Estou um pouco atrasado, esclareci. — Vim apenas para ter a certeza de que se
encontra tudo a postos.
— Está tudo em ordem, como se combinou. Soltou uma gargalhada. — Ninguém
perturbará as suas sinistras maquinações. Ardemos todos de curiosidade, como deve
calcular. Não há possibilidade de nos ocultarmos atrás dos arbustos, para assistir?
— Ficariam melhor aqui dentro, assegurei-lhe. — Não voltaremos a nos ver, pois
terei de realizar uma rápida retirada. Creio que Wolfe telefonará amanhã para
agradecer.
— Não é necessário. Nunca farei o suficiente para que ele me agradeça.
— Todos para fora, já! Ordenou Orrie. — Rápido, se não querem que meta uma
bala em cada um! Anna desceu e ficou junto do estribo e Bill Gore entrou, a fim de
puxar Maria Maffei, que continuava a gritar.
— Biquinho calado, grunhiu Orrie. Voltando-se para mim, indicou: — Ao menor
pio do condutor, fure-o.
— Já tenho a bolsa dela, anunciou Bill Gore. — É pesada.
— De qual?
— Desta.
— Bem, guarde-a e não deixe a fulana berrar. Orrie se virou para Durkin. —
Segura esta, enquanto a ilumino.
— É ela mesmo. Apanhei-a, minha menina. Com que então, andou por aí a
matraquear que Carlo Maffei guardava recortes de jornais, falava ao telefone com
desconhecidos e outras coisas que devia esquecer, hem? Não voltará a fazê-lo. A faca
que serviu para calá-lo definitivamente também servirá para você. Dê-lhe
cumprimentos meus, quando o vir.
— Isso não! Prometeu! Pare! Orrie recolheu a mão que segurava a faca e tornou a
apontar a lanterna a Anna.
— Está bem concordou, com simulada relutância. — Onde está a sua bolsa?
Depois conversamos. Cadê os cem dólares que lhe enviei? Não sabe?... Agarrem-na,
enquanto a revisto.
Começou pelas meias, porém ela se debatia como uma gata selvagem. De súbito,
conseguiu se soltar de Durkin e deu um grito que se devia ter ouvido em White Plains.
Orrie lhe segurou a manga e rasgou-a. Durkin voltou a dominá-la e, quando viu que não
conseguiria se libertar, se dedicou a uma série de frenéticos pontapés. Ele conseguiu
finalmente subjugá-la com um braço em torno dos dela, todavia Orrie não foi capaz de
colocar a mão na meia e teve de rasgá-la. Compreendi que a retirada teria de ser
rápida, do contrário precisaríamos amarrá-la, pelo que mandei Saul encostar o carro à
beira do caminho, para eu poder passar com o meu. Por fim, Durkin se aproximou com
Anna Fiore, que continuava aos pontapés e tentava mordê-lo, e atirou-a para dentro do
sedã, enquanto Orrie os seguia de perto e grunhia:
— Ficou com o meu dinheiro, hem? Não quis queimar, não é? Na próxima, não
dará mais com a língua nos dentes.
Corri para o Buick, liguei o motor e aguardei que os outros subissem. Quando nos
pusemos em marcha, Maria Maffei se dirigia a nós aos gritos, mas não ouvi a voz de
Anna. Transpus as curvas apertadas do caminho o mais rapidamente possível e, uma
vez na estrada, pisei o acelerador. Bill Gore, no banco de trás, ria a ponto de quase
sufocar. Quando chegamos à Sawmill River Road, virei para o sul e diminuí um pouco
a velocidade. Orrie, a meu lado, se conservava silencioso e lhe perguntei:
— O dinheiro?
— Tenho-o aqui. As suas palavras não se caracterizavam pela delicadeza. —
Ficarei com ele até descobrir se Nero Wolfe tem o pessoal no seguro contra acidentes.
— Porquê? Ela lhe atingiu?
— Mordeu-me duas vezes. A fulana tinha tanto amor aos cem dólares como eu ao
meu olho direito. Se me prevenisse de que iria enfrentar desarmado uma pantera,
preferiria não faltar ao encontro que cancelei. Bill Gore recomeçou a rir.
Quanto a mim, a operação fora muito bem encenada e melhor executada. Wolfe não
exigia mais do que isso. O meu único receio consistia em que Anna sofresse um susto
que a reduzisse à apatia absoluta, mas agora não parecia existir esse perigo. Por outro
lado, me congratulava por Wolfe ter se lembrado de recorrer a Maria Maffei, pois não
me agradaria regressar à cidade levando Anna com a meia vazia. A única dúvida agora
residia em saber o que ela tinha e quando o receberia. O programa de Wolfe
prosseguiria até ao fim como ele o concebera e, em caso afirmativo, que espécie de
clímax nos proporcionaria a jovem? De qualquer modo, o meu movimento imediato
seria regressar ao escritório sem demora, pelo que não perdi tempo a largar os meus
passageiros nos respectivos lugares. Deixei Bill Gore na Nineteenth Street e Durkin e
Orrie na estação do metrô da Times Square. Uma vez que não convinha estacionar o
Buick à entrada de casa, fui entregá-lo à garagem e regressei a pé.
— Foi pontual.
— E sem um beliscão, embora Orrie Cather não possa dizer o mesmo. Ela
mordeu-o. E ao Durkin também. Parecia uma autêntica gata assanhada. A peça foi
representada de modo satisfatório. Eles não devem demorar. Vou lá acima me vestir
para o ato seguinte. Posso tomar um copo de leite?
— Ótimo se limitou a dizer, e voltou a se concentrar no catálogo.
Wolfe se sentava atrás da sua mesa, Maria Maffei diante dele e Anna junto da
parede. O aspecto desta última era na verdade pitoresco, com uma manga quase
arrancada, uma perna desnuda, rosto sujo e cabelo revolto.
Os olhos dela se moviam de Wolfe para mim e vice-versa, mas me parecia que já
não deixavam transparecer desconfiança. Estava apenas desesperada, acabrunhada pela
perda que sofrera.
Baixou os olhos para a perna desnuda e a mão deslizou lentamente por baixo da
bainha da saia, para pousar onde as notas de vinte dólares se achavam anteriormente.
Maria Maffei fez menção de dizer algo, porém Wolfe impediu-a com um gesto. A jovem
ainda fixava os olhos na perna, quando articulou:
— Esta toga que me deu é ótima, observei. Wolfe me olhou, suspirou e voltou a
semicerrar as pálpebras.
Anna falou sem reservas, para responder com clareza às perguntas de Wolfe, que
escutou todos os pormenores e me mandou anotá-los. Ela chegara a ver o driver.
Durante algum tempo, Carlo Maffei proibira-a de entrar no quarto, quando trabalhava, e
conservara o armário fechado à chave, mas, uma ocasião, na sua ausência, a porta do
móvel cedera às tentativas dela, para não revelar à sua curiosidade nada de mais
interessante do que um taco de golfe em vias de acabamento. Quando regressara, ele
descobrira que não se achava na posição em que o deixara e advertira-a de que se o
mencionasse a alguém lhe cortaria a língua. A isto se resumia o que Anna sabia sobre o
assunto. O envelope lhe fora entregue no dia 5 de junho, data do desaparecimento de
Maffei. Cerca das sete horas da tarde, logo após ter atendido uma ligação telefônica,
ele chamara-a ao quarto e lhe confiara. Explicara que pediria pela manhã, mas se não
regressasse ela deveria entregá-lo à irmã. Quando Anna fez esta revelação, Maria
Maffei entrou em atividade. Ergueu-se da cadeira num salto e avançou para a jovem.
Tentei interpor-me, mas a voz de Wolfe vibrou como um chicote:
— Volte para a sua cadeira, Miss Maffei! Sente-se, ouviu? Obrigado. O seu irmão
já estava morto. Reserve a fúria para melhor oportunidade. Suponho que, depois de
puxar os cabelos de Miss Fiore, perguntaria porque não lhe entregou o envelope. O
motivo é óbvio e talvez lhe possa poupar o embaraço de responder. Não sei se o seu
irmão lhe disse para não ver o conteúdo, mas a verdade é que ela o fez e encontrou a
nota de dez dólares achada em seu poder. Voltou-se para Anna. — Antes de ele lhe
entregar o envelope, qual foi a quantia mais elevada que possuiu?
— Não sei, proferiu a interpelada.
— Alguma vez tivera uma nota de dez dólares? Perguntei.
— Não, Mister Archie.
— E de cinco? Abanou a cabeça.
— Mistress Ricci me paga um dólar por semana.
— E compra a sua própria roupa e calçado?
— Com certeza. Ergui as mãos, num gesto desesperado, e Wolfe retomou a
palavra.
— Miss Maffei, você ou eu poderíamos igualmente ser tentados por um reino, com
a diferença de que os seus limites não seriam tão moderados. Ela provavelmente
resistiu e, no dia seguinte, talvez vencesse e lhe entregasse o envelope intato, mas o
correio daquela manhã lhe levou outro, e dessa vez não se tratava apenas de um reino,
mas de um mundo glorioso. Assim, ela perdeu, ou talvez seria uma vitória, pois não o
podemos determinar. E agora, Miss Maffei, faça o que indico: leve Miss Fiore consigo
para casa e mantenha-a lá. O motorista aguarda à entrada. Pode dizer ao seu patrão que
uma sobrinha veio visitá-la. Dê a explicação que quiser, mas conserve-a em segurança
até o perigo passar. Em circunstância alguma a deve deixar sair. Ouviu, Miss Fiore?
— Farei o que Mister Archie disser.
— Ótimo. Acompanhe-as e explica as condições, Archie. É só por um ou dois
dias.
Archie,
Obtenha de Sarah Barstow a explicação por ter mutilado papel-moeda dos Estados Unidos.
N. W.
Fui para a cama, mas antes, por uma questão de respeito pelo espírito inventivo de
Manuel Kimball, fui ao corredor do último andar, em busca de um clarão na frincha
inferior da porta de Wolfe. Não o vendo, perguntei:
De manhã, chuviscava, mas não fiquei contrariado com isso. Tomei o café-da-
manhã sem pressa e recomendei a Fritz que mantivesse a porta trancada durante a minha
ausência, após o que, de impermeável e gorro de borracha, segui para a garagem,
assobiando. Uma das coisas que me alegraram foi uma notícia no jornal da manhã,
segundo a qual as autoridades de White Plains estavam na iminência de comunicar que
a morte de Peter Oliver Barstow resultara da picada acidental de uma serpente e os
outros pormenores da tragédia não relacionados com essa teoria podiam se atribuir a
mera coincidência. Teria resultado divertido telefonar a Harry Foster, do Gazette, e lhe
explicar que poderia cravar alfinetes na cadeira de Anderson, mas não quis correr o
risco porque não conhecia os planos de Wolfe nesse sentido. Outra fonte de satisfação
consistia na abundância de provas que Anna Fiore levava consigo, dissimuladas na
roupa interior. Ao pensar que já deviam se encontrar lá no primeiro dia que eu visitara
a pensão da Sullivan Street com Maria Maffei e nem me apercebera do cheiro, tinha
vontade de me desancar a pontapé. Em todo o caso, talvez fosse preferível assim. Se o
envelope tivesse sido entregue a Maria Maffei, era imprevisível determinar o que
aconteceria.
Rumo ao sul sob o chuvisco, mais uma vez, eu refletia que a nota de dez dólares se
adaptava perfeitamente ao panorama geral. Os três outros artigos contidos no envelope
de Carlo Maffei constituíam provas satisfatórias, porém aquilo era algo que só poderia
se encontrar em poder de Manuel Kimball, e fora parar às mãos de Carlo Maffei.
“Como?”, me perguntei. Bem, Manuel guardava-a na carteira como recordação. Os seus
pagamentos a Carlo Maffei, um ou mais, pela construção do driver, foram feitos em
lugares suficientemente mal iluminados para neutralizar a curiosidade de observadores
ocasionais e, na escuridão, a recordação fora incluída no pagamento. Provavelmente,
Manuel notara mais tarde o lapso cometido e exigira a sua devolução, ao que Maffei
talvez alegasse que a gastara sem se dar conta. O fato decerto despertara as suspeitas
deste último e explicava o reconhecimento do significado da morte, e modo como
ocorrera, de Peter Oliver Barstow, porquanto este nome e os de mais dois Barstow
figuravam na nota de dez dólares que ele conservava. Sim, Manuel Kimball viveria o
tempo suficiente para se arrepender de ter vencido a partida de tênis.
Passava um pouco das onze da manhã quando cheguei, mas não pude estacionar o
carro diante da entrada como habitualmente faço, porque o espaço estava ocupado por
uma longa limusine preta. Depois de desligar o motor, me conservei imóvel por um
momento olhando o veículo e, em particular, a matrícula oficial junto da placa. Permiti-
me um largo sorriso, saltei e, só para me divertir, espreitei pela janela da frente da
limusine.
Inclinou a cabeça e disse que o guardasse no cofre. Abri a pesada porta de aço
com lentidão, enquanto localizava a gaveta em que estava guardado o resto do espólio
entregue por Anna. Por fim, me voltei, pousei os olhos no visitante e me mostrei
surpreso.
— A sua sugestão carece de uma base razoável, comentou, por fim. — Suponho
que não deu para ladrão na sua própria residência?
— Asseguro-lhe que não, volveu Wolfe. — Embora possua o temperamento
indispensável, careço da constituição física imprescindível. Não abarca a situação?
Então, me deixe elucidá-lo. Remonta, de certo modo, há quatro anos atrás, à inépcia que
revelou no caso Goldsmith. Deplorei o fato na altura e decidi que recordaria isso na
oportunidade apropriada. Há duas semanas, me chegou ao conhecimento informação
que proporcionava o ensejo de lhe fazer um favor. E desejava lhe fazer, mas, com o
caso Goldsmith presente na minha memória e, sem dúvida, na sua, me pareceu mais
provável que, por uma questão de susceptibilidade, o recusaria. Por conseguinte,
propus a venda dessa informação por uma quantia aceitável, sob a forma de uma aposta,
embora a sua contraproposta envolvesse um valor monetário tão ridículo que nem me
dou ao trabalho de comentar.
— Propus uma quantia substancial.
— Por favor, Mister Anderson! Não se entregue a afirmações absurdas. Reclinou-
se na cadeira e entrelaçou os dedos sobre o abdômen. — Mister Goodwin e eu
descobrimos a identidade do assassino e obtivemos provas da sua culpa. Não provas
plausíveis, mas aceitáveis por qualquer júri. Chegamos assim ao tempo presente. O
criminoso não constitui, evidentemente, propriedade minha, pois pertence à soberania
do estado de Nova Iorque. Nem a própria informação que reuni é minha, e se não a
comunicar às autoridades me sujeito a penalidades. Posso, no entanto, escolher o meu
método. Agora Mister Anderson, me entregará o seu cheque pessoal de dez mil dólares,
nesta tarde. Mister Goodwin irá visá-lo no seu banco e amanhã o conduzirá ao
assassino, a quem apontará, fornecendo as provas da sua culpa, tudo com a máxima
modéstia. Ou então, trataremos de organizar a parada em direção ao seu gabinete que já
descrevi: o prisioneiro, os repórteres e as provas, com ausência absoluta de modéstia.
A escolha é sua. Talvez lhe custe a crer, mas a alternativa que preferir carece de
interesse para mim, pois embora o seu cheque me proporcionasse um profundo prazer,
sempre tive particular inclinação para as paradas.
— Quem me garante que as suas provas merecem o mínimo crédito? Acabou por
perguntar.
— A minha palavra. Vale tanto como o meu julgamento. Empenho ambos.
— Não subsiste a menor dúvida possível?
— Tudo é possível. Mas não existe espaço para dúvidas nas mentes dos jurados.
Franziu os lábios, com uma expressão meditativa. Fritz reapareceu com a cerveja e
Wolfe abriu uma e encheu um copo.
— Dez mil dólares são uma quantia impensável anunciou o promotor. Cinco mil.
— Pretende regatear? Simplesmente ridículo. Concentremo-nos, pois, na parada.
Wolfe pegou no copo e esvaziou-o.
— Forneça-me as provas e identifique o assassino, e receberá o cheque no
momento em que lhe der voz de prisão. Wolfe limpou a espuma dos lábios e suspirou.
— Ao menos um de nós tem de confiar no outro. Não me obrigue a enumerar as
razões da preferência que mencionei.
Anderson começou a argumentar. Não subsistiam dúvidas de que era duro de roer
e, conquanto não dispusesse de razões ou persuasões, as palavras não escasseavam.
Quando parou para recuperar o alento, Wolfe se limitou a abanar a cabeça. O promotor
voltou à carga, mas obteve o mesmo resultado. Enquanto anotava tudo, eu reconhecia
intimamente que o homem, embora lutasse com poucas munições, revelava uma
persistência digna de realce. Por fim, preencheu o cheque do talão que puxou do bolso,
apoiando-o no joelho. Escreveu como um contabilista meticuloso, lenta e
cuidadosamente, após o que fez à respectiva anotação no canhoto. Verifiquei, com
alívio, que se tratava de um banco de Nova Iorque, o que me poupava uma deslocação a
White Plains antes das três da tarde.
Meneou a cabeça levemente, para não perturbar o repouso, e não insisti. De resto,
me invadia a curiosidade, mas não preocupação, pois a sua expressão indicava que
compreendia ao que me referia. Estive ocupado durante toda a tarde. Comecei por
visitar um estúdio na Sixth Avenue, para que tirassem as fotocópias, me certificando de
que compreendiam bem que, se os originais se perdessem ou danificassem, as mais
elementares regras da prudência aconselharia que utilizassem a escada de incêndio
como meio de fuga mais rápido quando me vissem reaparecer. Em seguida, voltei ao
escritório para passar à máquina as declarações de Anna Fiore, o que me consumiu não
pouco tempo. Ao entrar mais uma vez no conversível, vi que parara de chover e
começavam a aparecer aberturas no céu, embora o pavimento se mantivesse molhado.
Tinha telefonado com antecedência ao apartamento onde Maria Maffei trabalhava, pelo
que ela me aguardava quando cheguei. Quase não a reconheci. Envolta num vestido
formal de governanta, apresentava um aspecto elegante, e as suas maneiras eram tão
próprias da Park Avenue como as do porteiro do Pierre. Quase senti relutância em lhe
entregar a bolsa, por me parecer um gesto banal num ambiente tão requintado. Não
obstante, aceitou-a com prontidão. Em seguida, me conduziu a uma saleta, onde se
encontrava Anna Fiore, sentada olhando pela janela. Li as declarações e ela assinou,
assim como Maria Maffei e eu, na qualidade de testemunhas. A jovem não disse
praticamente nada com a língua, mas os olhos me fulminavam com uma pergunta desde
o instante em que entrara. Quando me levantei para sair, lhe respondi. Com uma
palmada amigável no ombro, afirmei:
— Vou ao cinema, para não ficar toda a noite no escritório vendo-o bocejar.
— Boa ideia, replicou com naturalidade. — Uma pessoa não deve abandonar a sua
faceta cultural.
— O quê?! Explodi. — Não se importa que me vá me enfiar numa sala de
espetáculos enquanto Manuel Kimball é capaz de estar fazendo as malas para se
refugiar na sua terra natal? Depois, vai querer que eu viaje até à Argentina, alugue um
cavalo e percorra as pampas à procura dele! Julga que, para capturar um assassino,
basta permanecer sentado no seu malfadado escritório e pôr o cérebro genial para
funcionar?
— Também há necessidade de um par de olhos, outro de pernas e às vezes uma ou
duas armas de fogo.
— Apesar disso, aprova a minha ida ao cinema, enquanto... Ergueu a palma da
mão para estancar a torrente. Fritz acabava de conseguir puxar a cadeira para trás e
Wolfe se erguia com todo o seu montanhoso arcabouço.
— Poupe-me, por favor. Simbolizamos o expoente típico da violência perante a
placidez do colibri. Foi você que sugeriu o cinema e não eu. Mesmo que Manuel
Kimball fosse um homem que tremesse perante as sombras, não há sombra alguma para
apoquentá-lo. Que razão o levaria a realizar uma viagem à terra natal ou qualquer outra
parte? Não existe nada de menos provável neste momento. Para que veja o filme mais
descansado, posso lhe garantir que se encontra em casa, e não planeja qualquer
deslocamento mais ou menos demorado como o que imaginou. Ainda não faz duas horas
que falei com ele pelo telefone... A campainha, Fritz. Vá ver quem é, por favor. Manuel
receberá outro telefonema meu às oito da manhã, e lhe asseguro que estará à espera.
— Oxalá que sim resmunguei, sem me sentir satisfeito. — Uma coisa é certa,
confiar muito nesta altura das operações pode ser perigoso. Talvez não fosse má ideia
vigiar a residência dele até que Anderson disponha dos elementos necessários para
engavetá-lo.
— Não, Archie. Abanou a cabeça com veemência. — Compreendo o seu receio:
que surja o momento em que se deve pôr de parte a sutileza e desferir o coup de grâce.
Compreendo-o e rejeito-o vigorosamente... Mas estão chegando visitas. Importa-se de
passar pelo escritório por uns momentos antes de seguir para a sua distração?
Bill Gore exibiu um sorriso sarcástico. Dirigi a Wolfe o olhar mais venenoso que
me foi possível e segui para o vestíbulo, a fim de pegar o chapéu.
* * *
Dezoito
Finalmente, levantei da cama, fiz a barba e me vesti sem pressa e saí do quarto.
Fritz se encontrava na cozinha, na habitual azáfama, aparentemente satisfeito. Dirigi-lhe
uma observação irritante qualquer, mas reconheci em seguida que não devia concentrar
a ira nele e tratei de recompensá-lo comendo mais um ovo do que era meu costume e
lendo em voz alta uma reportagem do jornal sobre um morcego-vampiro fêmea que
tivera um filhote no parque zoológico. Fritz vinha da parte da Suíça em que se fala
francês e recebia um jornal naquele idioma todas as manhãs, mas já notara que as
notícias palpitantes não abundavam nele. Eu ficava surpreso sempre que lia uma
palavra referente a algo recente, como, por exemplo, “Barstow”, que figurara nos
cabeçalhos durante uma semana.
Preparava-me para iniciar a segunda xícara de café com leite, quando o telefone
tocou. Dirigi-me ao escritório e levantei o auscultador, mas Wolfe já atendera do
quarto. Escutei e me inteirei de que era Orrie Cather, para comunicar que acabavam de
chegar e estava tudo preparado. Nada mais.
A porta se achava aberta e ele estava levantado e vestido, mas sem o paletó. As
mangas da camisa amarela, vestia sempre duas por dia, sempre amarelo-canário,
lembravam flutuadores enormes, enquanto se conservava diante do espelho e aplicava a
escova ao cabelo. Quando entrei, me piscou o olho e creio que fiquei boquiaberto. Em
seguida, pousou a escova e se virou para mim.
A autoestrada não se apresentava muito concorrida àquela hora tão matutina, mas
eu não me aventurava a pisar muito o acelerador. Wolfe garantira ao promotor que a
operação se desenrolaria com a maior discrição possível, além de que não me sentia
com a disposição apropriada para dialogar com a polícia da estrada, pois os nervos
continuavam quase à flor da pele. A reação se repetia sempre que me achava na
iminência de contribuir para a prisão de alguém: me faltava o ar, respirava mais
rapidamente e tudo em que tocava; o volante, por exemplo, parecia palpitar, como se
circulasse sangue no interior.
— Então? inquiriu.
— Quando quiser repliquei, com um sorriso. — Olá, Corbett. Também vem?
— Levo dois homens, informou Anderson. — Você conhece a natureza da
operação. Bastam? Assenti com uma inclinação de cabeça e esclareci:
— Creio que só necessitaremos deles para nos segurarem o chapéu. Bem, vamos.
O desconhecido abriu a porta e saímos.
Anderson subiu para o meu lado, no conversível, enquanto os outros dois nos
seguiam num carro oficial, mas verifiquei que não se tratava da limusine do promotor.
Quando percorríamos a Main Street, todos os sinaleiros saudaram o meu passageiro, e
eu sorri ao pensar como ficariam abismados se soubessem quanto Anderson pagava por
aquela corrida de táxi. Acelerei logo que chegamos na autoestrada e subimos e
descemos as colinas tão rapidamente que o meu companheiro me olhou com
perplexidade. Como ele ignorava se a velocidade fazia parte do programa, persisti, só
diminuindo nos locais em que havia um cruzamento e quando precisava me certificar de
que o outro veículo continuava no nosso encalço. Cobri em vinte minutos a distância do
gabinete da Promotoria até à entrada do caminho de acesso à residência dos Kimball,
quando o meu relógio indicava 10.45.
Parei o conversível à entrada da casa, saltei para o chão e corri para tocar a
campainha. No momento imediato, a porta foi aberta pelo mordomo nutrido.
Apontou para cima e ergui os olhos. Avistei o avião dele a uma altitude
relativamente elevada, mas consegui ver o vermelho e azul da fuselagem. Parecia
produzir barulho excessivo e no instante seguinte compreendi porquê, quando
descortinei outro aparelho proveniente do oeste, mais alto que o de Manuel e,
sobretudo, mais veloz, que contribuía para a intensidade do ruído. Ambos descreviam
círculos, escuros e admiráveis, ao sol.
— Pare, Curry!
Este se deteve e aguardei os acontecimentos, ao mesmo tempo em que Corbett se
levantava com uma expressão furibunda. Porém, o promotor tornou a falar:
Por um instante, imaginei que queria dizer que eu tinha perdido o driver, e julguei
que enlouquecera. Mas quando me endireitei e vi para onde olhava, ergui a cabeça e
avistei o avião de Manuel Kimball diretamente por cima de nós, a uns trezentos metros,
que rodopiava e descrevia curvas caprichosas, como se o piloto tivesse perdido o
domínio dos comandos, em vias de despencar. O espetáculo me deixou boquiaberto e
petrificado, até que o mecânico vociferou:
— É melhor afastarem os carros, pois ainda pode haver uma explosão, tornou a
advertir o mecânico.
— Quando eu afastar o meu, não o pararei tão cedo, repliquei. — Chegou o grande
momento, Mister Anderson. Deve se recordar que Nero Wolfe prometeu que eu atuaria
com modéstia. Retirei os documentos do bolso e entreguei. — Aqui tem as provas. E o
seu prisioneiro é esse que tem o rosto inteiro.
Cheguei a White Plains em vinte minutos. O conversível nunca se portara tão bem.
Telefonei para Wolfe do mesmo drugstore de onde, duas semanas atrás, lhe comunicara
que Anderson se encontrava nas Adirondacks e eu só podia falar com Derwin. Atendeu
quase imediatamente e lhe relatei os acontecimentos, em poucas mas elucidativas
palavras.
— Ótimo, proferiu em voz átona. — Espero que não tenha se melindrado, Archie.
Julguei conveniente não sobrecarregar o seu espírito com os pormenores
insignificantes. Fritz está providenciando para que o seu paladar fique inteiramente
satisfeito. Outra coisa: onde se situa White Plains? No caminho, pode passar por
Scarsdale? Glekner telefonou há pouco para comunicar que conseguiu hibridizar uma
Dendrobium Melpomene com uma Findlayanum e me ofereceu uma planta semeada.
* * *
Dezenove
Ele entrou no escritório às onze, se sentou à mesa e chamou Fritz para a primeira
dose de cerveja do dia. Entretanto, eu preparara a relação das despesas do caso
Barstow para que a conferisse e mostrei-a quando acabou de dar uma olhadela na
correspondência. Pegou num lápis e fez o exame com lentidão. Eu aguardava
pacientemente e, quando notei que se detinha na antepenúltima alínea, engoli em seco.
Por fim, ergueu os olhos e disse:
— O ruim é que, como de costume, submergiu tão profundamente nos fatos que não
nota aquilo que os circunda. Agarra-se a eles como uma sanguessuga a uma teta.
Considere a situação. Manuel tinha tentado matar o pai. Em virtude de uma casualidade
fora do seu domínio, quem morreu foi o inocente Barstow. Encontrava-se em meu poder
provas da culpa de Manuel. Como as devia utilizar? Se pudesse me permitir o luxo de
uma atitude filosófica, ignoraria, mas semelhante posição se achava além dos meus
meios, uma vez que se tratava de um negócio. Arvorar-me em substituto do destino?
Com certeza. Fazemo-lo constantemente. Só o conseguiria evitar através da inação
absoluta. Vi-me forçado a agir. Se o deixasse procurar Manuel, sem qualquer
advertência prévia, e entregá-lo vivo à vingança do povo do estado de Nova Iorque, ele
sentaria na cadeira de homicídio judicial amargurado e vencido, o coração vazio da
única satisfação que a vida lhe oferecera, e o pai, igualmente amargurado e não menos
vencido, percorreria os anos que lhe restassem neste mundo sem mais nada para
negociar. Se eu provocasse essa situação, seria o único responsável perante mim
próprio, perspectiva que de modo algum me agradava. Não obstante, precisava agir,
como disse. Fiz isso e incorri numa responsabilidade enormemente desagradável. Você
abarcará todo o complexo fenômeno afirmando cruamente que matei E. D. Kimball.
Pois bem, Archie, assumo a responsabilidade dos meus atos, mas me recuso a aceitar o
peso da simplicidade. Esse, você terá de suportar.
— Talvez admiti, com um sorriso. — Não quero dizer que o suporte, mas que
talvez concorde com o que acaba de dizer. No entanto, embora não refute totalmente a
simplicidade que me atribui, não vai ao ponto de não me ter ocorrido uma ideia também
simples, quando regressava do banco, esta manhã.
— Sim? Grunhiu, levando o copo aos lábios.
— Sim. Ocorreu-me que, se Manuel Kimball tivesse sido preso e levado a
julgamento, o senhor precisaria pôr o chapéu, calçar as luvas, sair de casa, subir num
automóvel, se dirigir a White Plains e aguardar, mais ou menos impacientemente, numa
sala de audiências, até que o chamassem a depor. Ao passo que assim, levando em
conta o que são os processos naturais e as suas sensações para os fenômenos, pôde se
conservar aí sentado e manter as responsabilidades dominadas.
— Com efeito, repetiu num murmúrio.
Fim