Santiago - OCR - o Entre-Lugar Do Discurso Latino Amer.. (00-01) 12

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silviano santiago

UMA
liter a tu r a
NOS TRÓPICOS
Ensaios sobre dependértcia cultural

£ EDITORA PERSPECTIVA
1. O ENTRErLUGAR DO DISCURSO
LATINO-AMERICANO
Para Eugenio e Saüy

O jabutl que só possuia lima casca branca e mole deixou-se


morder pela on^a que o a taca va. Morder tio fundo que
a onga ficou pregada no jabutí e acabou por morrer. Do
cranio da onga o jabuti fez scu escudo.
ANTONIO CALLADO, Quarnp.

Antes de mais nada tarefas negativas. £ preciso se líber*


tar de todo um jogo de noyóes que estío ligadas ao postu­
lado de continuidade. [ . . . ] Como a ncx;áo de influencia,
que dá um suporte — antes mágico que substancial —
aos fatos de transm isslo e de comunicadlo.
M IC H E L FO U CA U LT, Archiologic du Savoir.

Montaigne abre o Cap. XXXI dos Ensaios, capí­


tulo em que nos fala dos canibais do Novo Mundo,

11
com urna referencia precisa á Historia grega. Esta
mesma referéncia servirá também para nos inscrever
no contexto das discussdes sobre o lugar que ocupa
o discurso literário latino-americano no confronto com
o europeu. Escreve Montaigne:
Quand le roy Pyrrhus passa en Italle, aprés qu’il eut
reconneu l’ordonnance de Tarmée que les Romains luy en-
voyoient au devant: “Je ne sgal, dit-il, quels barbares sont
ceux-cl (car les Grecs appeloyent ainsi toutes les nations
estrangleres) v mals la disposltlon de cette armée que je voy
n'est aucunement barbare”.*
A citagáo em Montaigne, metafórica sem dúvida
na medida em que anuncia a organizado interna da-
quele capítulo sobre os antropófagos da América do
Sul, ou mais precisamente do Brasil, — a metáfora
em Montaigne guarda em esséncia a marca do conflito
eterno entre o civilizado e o bárbaro, entre o colonialista
e o colonizado, entre Grécia e Roma, entre Roma e
suas provincias, entre a Europa e o Novo Mundo, etc.
Mas, por outro-Jado, as palavras do rei Pirro, ditadas
por certa sabedoria pragmática, nao chegam a esconder
a surpresa e o deslumbramento diante de urna deseo-
berta extraordinária: os bárbaros nao se comportam
como tal — exclama ele.
No momento do combate, instante decisivo e
revelador, naquele instante em que as duas forjas
contrárias e inimigas devem se perfilar urna diante
da outra, arrancadas brutalmente de sua condigao de
desequilibrio económico, corporificadas sob a forma
de presente e guerra, o rei Pirro descobre que os gregos
subestimavam a arte militar dos estrangeiros, dos bár­
baros, dos romanos. O desequilibrio instaurado pelos
soldados gregos, anterior ao conflito armado e, entre
os superiores, causa de orgulho e p resunto, é antes
de tudo propiciado pela defasagem económica que
govema as relagoes entre as duas nagoes. Mas no
momento mesmo em que se abandona o dominio
restrito do colonialismo económico, compreendemos que
muitas vezes é necessário inverter os valores dos gru­
pos em o p o sito , e talvez questionar o próprio conceito
de superioridade.
Segundo a citagáo extraída dos Ensaios, ali onde
se esperava urna ordonnance de Varmée delineada se-
* Quando o reí Pirro entrou na It&lia, após ter examinado
a íormagfto do exérclto que os Romanos lhe mandavam ao encontró,
dlsse: “Náo sel que bárbaros sáo estes (pols os gregos asslm deno-
mlnavam todas as nagées estrangelras), mas * dlsposlcáo deste
exérclto que vejo nfto é, de modo algum, bárbara" (N. do R.).

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gundo os preconceitos sobre os romanos espalhados
entre os gregos, encontra-se um exército bem organi­
zado e que nada fica a dever ao dos povos civilizados.
Libertamo-nos de um arrancio do campo da quantidade
e do colonialismo, visto que a admiradlo do rei Pirro
revela um compromisso inabalável com o julgamento
de qualidade que ela inaugura. Apesar das diferengas
económicas e sociais, os dois exércitos se apresentam
em equilibrio no campo de batalha. Mesmo se nao se
apresentassem em equilibrio, nunca é demais lembrar
as circunstáncias inusitadas que cercam a morte do
monarca grego. Esse acídente inesperado guarda, pela
sua atualidade, um aviso seguro para as poderosas na-
góes militares de hoje: Pirro, rei de Éfeso, “foi assassi-
nado na tomada de Argos por urna velha senhora que
lhe atirou urna telha na cabera do alto de um telhado”
— como nos informa deliciosamente o Petit Larousse.
Vamos falar do espado em que se articula hoje
a adm irado do rei Pirro e de um provável processo
de inversáo de valores.

I
Mas antes é preciso estabelecer certo número de
distingóes, de modo que se possa ao mesmo tempo
limitar e precisar o nosso tópico. Analisemos, antes,
por razdes de ordem didática, as relagóes entre duas
civilizagóes que sao completamente estranhas urna a
outra e cujos primeiros encontros se situam no nivel
da ignoráncia mutua. Desde o século passado, os etnó­
logos1, no desejo de desmistificar o discurso beneplá­
cito dos historiadores, concordam em assinalar que a
vitória do branco no Novo Mundo se deve menos a
razóes de caráter cultural, do que ao uso arbitrário da
violencia, do que á imposigáo brutal de urna ideología,
como atestaría a recorréncia das palavras “escravo” e
“animal” nos escritos dos portugueses e espanhóis.
Expressóes que configuram muito mais um ponto de
vista dominador do que propriamente urna tradugáo
do desejo de conhecer.
1. . Jacques Derrlda, Rallentando a contrlbulc&o da etnología
do efeito de abalo da metafísica ocldental, comenta: ” . . . a Etno­
logía só teve condlgóes para nascer como cléncla no momento em
que se operou um deseen tram en to : no momento em que a cultura
européla [ . . . ] fol deslocada, expulsa do seu lugar, delxando entfto
de ser considerada como a cultura de referencia”. E acrescenta:
"Este momento nfto é apenas um momento do discurso filosófico
é também um momento político, económico, técnico, etc.”
A Escritura e a Diferenea, S&o Paulo, Perspectiva, 1972, p. 234.

13
Claude Lévi-Strauss nos fala, nesse sentido, de
urna enquete de ordem psicossociológica empreendida
pelos monges da Ordem de Sao Jerónimo. A pergunta
se os indios eram capazes "de viver por eles próprios,
como camponeses de Castilha”, a resposta negativa
pronto se impunha:
A la rigueur, peut-étre, leurs petlts-enfants; encore les
indlgénes sont-ils si proíondément vldeux qu’on peut en
douter; & preuve: lis fuient les Espagnols, reíusent de tra-
valDer sans rémunératton, mals poussent la perverslté jusqu’á
taire cadeau de leurs biens; n'acceptent pas de rejeter leurs
camarades & qul les Espagnols ont coupé les oreilles. [ ...]
11 vaut mieux pour les Indiens devenir des hommes esclaves
que de rester des anlmaux lib res... *2

Em visível contraste, os indios, seguindo ainda as


informacdes prestadas por Lévi-Strauss nos Tristes
Trópicos, os indios de Porto Rico se dedicam á captura
de brancos com o intuito de os matar por imersao. Em
seguida, durante semanas ficam de guarda em torno
dos afogados para saber se eles se submetem ou nao
ás leis de putrefa$ao. Lévi-Strauss concluí nao sem
certa ironía:
. .. les bienes invoquaient les Sciences sociales alors que les
Indiens avaient plutófc coníiance daña les Sciences natu-
relles; et, tandls que les bienes proclamaient que les Indiens
étaient des bétes, les seconds se contentalent de soupgonner
les premiers d’étre des dleux. A ignorance égale, le dernier
procédé étalt certes plus digne dliommes* • (p. 83).
A violéncia é sempre cometida pelos indios por
razdes de ordem religiosa. Diante dos brancos, que
se dizem portadores da palavra de Deus, cada um
profeta ás suas próprias custas, a reagáo do indígena
é de saber até que ponto as palavras dos europeus
traduziam a verdade transparente. Pergunto-me agora
se as experiéncias dos indios de Porto Rico nao se
justificariam pelo zelo religioso dos missionários. Estes,
em sucessivos sermdes, pregavam a imortalidade do2
2. Tristes Trapiques, París. Pión. 1055, p. 82.
# A rigor, taires suas crlanclnhas; ademáis, os Indígenas tém
ríelos t&o profundos que se pode duridar disso; como prora, erltam
os Espanhóls, recusam-se a trabalhar sem remunerarán, mas leram
a perrersldade até o ponto de aceltarem presentes dos bens daqueles;
náo aceltam repellr seus companhelros aos quais os Espanhóls dece*
param as orelhas [ . . . ] Mals rale para os indios re tom arem homens
escravos do que contlnuarem a ser anímala llrre s ...
•• ...o s brancos inrocaram as clénclas socials, ao passo que
os indios m ostraram mals confianza ñas clénclas naturals; enquan-
to que os brancos proclamaram que os Indios eram anímala, estes
llm ltaram -se a supor que os prlmelros íossem deuses. De igual
ignor&ncla, esta últim a atltude era, cortamente, mals digna ds
homens.
verdadeiro Deus, da ressurreigao de Cristo, — em
seguida os indios tornavam-se sequiosos de contemplar
o milagre bíblico, de provar o mistério religioso em
todo seu esplendor de enigma. A prova do poder de
Deus deveria se produzir menos pela assimilagño passi-
va da palavra crista do que pela visáo de um ato
verdadeiramente milagroso.
Nesse sentido, encontramos informagóes preciosas
e extraordinárias na carta escrita ao reí de Portugal
por Pero Vaz de Caminha. Segundo o testemunho do
escrivao-mor, os indios brasileiros estariam natural­
mente inclinados á conversao religiosa3, visto que, de
longe, imitavam os gestos dos cristáos durante o santo
sacrificio da missa. A imitagáo — imitadlo totalmente
epidérmica, reflexo do objeto na superficie do espelho,
ritual privado de palavras, — eis o argumento mais
convincente que o navegador póde enviar ao seu Rei
em favor da inocéncia dos indígenas. Diante dessas
figuras vermelhas que macaqueiam os brancos, caberia
perguntar se eles nao procuravam chegar ao éxtase
espiritual pela duplicagao dos gestos. Nao acredita-
riam que também poderiam encontrar o deus dos
cristáos ao final dos “exercícios espirituais”, assim
como os indios de Porto Rico se ajoelhariam diante
do espanhol afogado que tivesse escapado á putrefacto?
Entre os povos indígenas da América Latina a
palavra européia, pronunciada e depressa apagada, se
perdía na sua imaterialidade de voz, e nunca se petri-
ficava em signo escrito, nunca conseguía instituir em
escritura o nome da divindade. Os indios só queriam
aceitar como moeda de comunicacáo a representado
dos acontecimentos narrados oralmente, enquanto os
conquistadores e missionários insistiam nos beneficios
de urna conversao milagrosa, feita pela assimilagáo
passiva da doutrina transmitida oralmente. Instituir o
nome de Deus equivale a impor o código lingüístico
no qual seu nome circula em evidente transparencia.
Colocar junto nao só a representado religiosa co­
mo a língua européia: tal era o trabalho a que se
dedicava o esforzó dos jesuítas e dos conquistadores
a partir da segunda metade do século XVI no Brasil.
As representacóes teatrais, feitas no interior das tabas
indígenas, comportam a mise-en-scéne de um episódio
do Flos Sanctorum e um diálogo escrito em portugués
3. Consultar o n o n o artigo “A Palavra de Deus”, Barroco,
n.° 3, 1970.

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e em tupi-guaraní, ou de urna maneira mais precisa,
o texto em portugués e sua tradugao em tupi-guarani.
Aliás, sao numerosas as testemunhas que insistem em
assinalar o realismo dessas representagóes. Um padre
jesuíta, Cardim, nos diz que, diante do quadro vivo
do martirio de Sao Sebastiáo, patrono da cidade do
Rio de Janeiro, os espectadores nao podiam esconder
a emogao e as lágrimas. A doutrina religiosa e a
língua européia contaminara o pensamento selvagem,
apresentam no palco o corpo humano perfurado por
flechas, corpo em tudo semelhante a outros corpos que,
pela causa religiosa, encontravam morte paralela. Pou-
co a pouco as representagóes teatrais propóem urna
substituigáo definitiva e inexorável: de agora em diante
na nova térra descoberta o código lingüístico e o
código religioso se encontram intimamente ligados, gra-
gas á intransigencia, á astúcia e á forga dos brancos.
Pela mesma moeda, os indios perdem sua língua e
seu sistema do sagrado e recebem em troca o substituto
europeu.
Evitar o bilingüismo significa evitar o pluralismo
religioso e significa também impor o poder colonialista.
Na álgebra do conquistador, a unidade é a única me­
dida que conta. Um só Deus, um só Rei, urna só
Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a ver­
dadera Língua. Como dizia recentemente Jacques
Derrida: “O signo e o nome da divindade tém o
mesmo tempo e o mesmo lugar de nascimento”4. Urna
pequeña corregió se impóe na última parte da frase,
o suplemento de um prefixo que visa atualizar a afir­
mativa: “ . . . o mesmo tempo e o mesmo lugar de
renascimento”.
Esse renascimento colonialista, — produto repri­
mido de urna outra Renascenga, a que se realizava
concomitantemente na Europa, — á medida que avanga
apropria o espago sócio-cultural do Novo Mundo e o
inscreve, pela converslo, no contexto da civilizagáo
ocidental, atribuindo-lhe ainda o estatuto familiar e
social do primogénito. A América transforma-se em
cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante
ao original, quando sua originalidade n lo se encon­
traría na cópia do modelo original, mas na sua origera,
apagada completamente pelos conquistadores. Pelo
exterminio constante dos tragos origináis, pelo esque-
4. De la Grammatologie, Parla, M lnult, 1967, p. 25. (Trad.
bras.: Gramatologia, S&o Paulo, Perspectiva, 1973.)

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cimento da origem, o fenómeno de duplicado se
estabelece como a única regra válida de civilizado.
É assim que vemos nascer por todos os lados essas
cidades de nome europeu cuja única originalidade é
o fato de trazerem antes do nome de origem o adje­
tivo “novo” ou “nova” : New England, Nueva España,
Nova Friburgo, Nouvelle France, etc. A medida que
o tempo passa esse adjetivo pode guardar — e muitas
vezes guarda — um significado diferente daquele que
Ihe empresta o dicionário: o novo significa bizarra­
mente fora-de-moda, como nesta bela frase de Lé-
vi-Strauss: “Les trapiques sont moins exotiques que
démodés” (p. 96).
O neocolonialismo, a nova máscara que aterro­
riza os países do Terceiro Mundo em pleno sáculo XX,
é o estabelecimento gradual num outro país de valores
rejeitados pela metrópole, é a exportado de objetos
fora de moda na sociedade neocolonialista, transfor­
mada hoje no centro da sociedade de consumo. Hoje,
quando a palavra de ordem é dada pelos tecnocratas,
o desequilibrio é científico, pré-fabricado; a inferiori-
dade é controlada pelas máos que manipulam a gene-
rosidade e o poder, o poder e o preconceito. Consul­
temos de novo Montaigne:
Hs sont sauvages, de mesme que nous appellons sauvages
les fruict que nature, de soy et de son progres ordlnalre, a
produicts: l i oú, & la vértté, ce sont ceux que nous avons
alteres par nostre artífice et detournez de l’ordre commun,
que nous devrlons appeller plutost sauvages. En ceux lá
sont vives et vlgoureuses les vrales et les plus útiles et
naturelles vertus et proprletes, lesquelles nous avons abas-
tardles en ceux-cy et les avons seulement accomodées au
plalslr de nostre goust corrompu*.
O renascimento colonialista engendra por sua vez
urna nova sociedade, a dos mestizos, cuja principal
característica é o fato de que a n o d o de unidade sofre
reviravolta, é contaminada em favor de urna mistura
sutil e complexa entre o elemento europeu e o elemento
autóctone — urna espécie de infiltrado progressiva
efetuada pelo pensamento selvagem, ou seja, abertura
do único caminho possível que poderia levar á descolo­
nizado. Caminho percorrido ao inverso do percorrido
* Bles s&o selvagens, assim como chamamos selvagens os fru­
tos que a natureza, por si só e seu progresso habitual, produziu;
na verdade, Aqueles que alteramos por meto de nosso artificio e
aos quals desviamos da ordem natural, é que deveríamos preferl-
▼elmente chamar selvagens. Nos prlmelros sáo vivas e vigorosas as
verdadelras, mala úteis e naturals virtudes e propiedades, as quals
abastardamos nestes outros e apenas ajustamos ao bei-praser de
nosso gosto corrompido.

17
pelos colonos. Estes, no desejo de exterminar a raga
indígena, recolhiam nos hospitais as roupas infeccio­
nadas das vítimas de varióla para dependurá-las com
outros presentes nos atalhos freqiientados pelas tribos.
No novo e infatigável movimento de oposigáo, de
mancha racial, de sabotagem dos valores culturáis e
sociais impostos pelos conquistadores, urna transfor­
m ad o maior se opera na superficie, mas que afeta
definitivamente a corredo dos dois sistemas principáis
que contribuíram á propagado da cultura ocidental
entre nós: o código lingüístico e o código religioso.
Esses códigos perdem o seu estatuto de pureza e
pouco a pouco se deixam enriquecer por novas aqui-
sigdes, por miúdas metamorfoses, por estranhas corrup-
goes, que transformam a integridade do Livro Santo
e do Dicionário e da Gramática europeus. O elemento
híbrido reina.
A maior contribuido da América Latina para a
cultura ocidental vem da destruigao sistemática dos
conceitos de ünidade e de purezcfi: estes dois conceitos
perdem o contorno exato do seu significado, perdem
seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural,
á medida que o trabalho de contaminagáo dos lati­
no-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz.
A América Latina instituí seu lugar no mapa da civili­
z a d o ocidental gragas ao movimento de desvio da
norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos
feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o
Novo Mundo. Em virtude do fato de que a América
Latina nao pode mais fechar suas portas á invasáo
estrangeira, nao pode tampouco reencontrar sua con-
digáo de “paraíso”, de isolamento e de inocencia, cons-
tata-se com cinismo que, sem essa contribuigao, seu
produto seria mera cópia — silencio —, urna copia
muitas vezes fora de moda, por causa desse retrocesso
imperceptível no tempo, de que fala Lévi-Strauss. Sua
geografía deve ser urna geografía de assimilagao e de
agressividade, de aprendizagem e de reagao, de falsa
obediencia. A passividade reduziria seu papel efetivo
ao desaparecimento por analogía. Guardando seu lu-5
5. Km artigo de significativo títu lo "Sol da Mela-Noite",
Oswald de Andrade percebla por detr&s da Alemanha nazista os
valores de unidade e pureza, e no seu estilo tipleo comentava com
rara fellcldade: "A Alemanha racista, purista e recordlsta precisa
ser educada pelo nosso mulato, pelo chinés, pelo indio mais atrasa­
do do Perú ou do México, pelo africano do 8udfto. E precisa ser
m isturada de urna vez para sempre. Precisa ser desfelta no meltfnp-
pot do futuro. Precisa mulatlzar-se*'. Ponta de Langa, Rio, Civili­
z a d o , 1972, p. 62.

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gar na segunda fila, é no entanto preciso que assinale
sua diferenga, marque sua presenta, urna presenta
muitas vezes de vanguarda. O silencio seria a resposta
desejada pelo imperialismo cultural, ou aínda o eco
sonoro que apenas serve para apertar mais os lagos
do poder conquistador.
Falar, escrever, significa: talar contra, escrever
contra.
II

Se os etnólogos sao os verdadeiros responsáveis


pela desmistificagao do discurso da História, se con-
tribuem de maneira decisiva para a recuperagáo cul­
tural dos povos colonizados, dissipando o véu do
imperialismo cultural, — qual seria pois o papel do
intelectual hoje em face das relagdes entre duas nagóes
que participam de urna mesma cultura, a ocidental, mas
na situagáo em que urna mantém o poder económico
sobre a outra? Se os etnólogos ressuscitaram pelos
seus escritos a riqueza e a beleza do objeto artístico da
cultura desmantelada pelo colonizador, — como o
crítico deve apresentar hoje o complexo sistema de
obras explicado até o presente por um método tradi­
cional e reacionário cuja única originalidade é o estudo
das fontes e das influencias? Qual seria a atitude do
artista de um país em evidente inferioridade económica
com relagao á cultura ocidental, á cultura da metrópole,
e finalmente á cultura do seu próprio país? Poder-se-ia
surpreender a originalidade de urna obra de arte se
se institui como única medida as dividas contraídas pelo
artista junto ao modelo que teve necessidade de im­
portar da metrópole? ou seria mais interessante assi-
nalar os elementos da obra que marcam a sua diferenga?
Essas perguntas nao poderáo ter urna resposta fácil
ou agradável, pelo fato mesmo de que é preciso de
urna vez por todas declarar a falencia de um método
que se enraizou profundamente no sistema universitário:
as pesquisas que conduzem ao estudo das fontes ou
das influéncias. Porque certos professores universitários
falam em nome da objetividade, do conhecimento
enciclopédico e da verdade científica, seu discurso
crítico ocupa um lugar capital entre outros discursos
universitários. Mas é preciso que agora o coloquemos
no seu verdadeiro lugar. Tal tipo de discurso crítico
apenas assinala a indigencia de urna arte já pobre por
causa das condigóes económicas em que pode sobre-
viver, apenas subllnha a falta de imaginagáo de artistas
que sao obrígados, por falta de urna tradigáo autóctone,
a se apropriar de modelos colocados em circulagáo
pela metrópole. Tal discurso crítico ridiculariza a bus­
ca dom-quixotesca dos artistas latino-americanos, quan­
do acentuam por ricochete a beleza, o poder e a
glória das obras criadas no meio da sociedade colo­
nialista ou neocolonialista. Tal discurso reduz a criagao
dos artistas latino-americanos á condigáo de obra para­
sita, urna obra que se nutre de urna outra sem nunca
a lhe acrescentar algo de próprio; urna obra cuja vida
é limitada e precária,' aprisionada que se encontra
pelo brilho e pelo prestigio da fonte, do chefe-de-escola.
A fonte toma-se a estrela intangível e pura que,
sem se deixar contaminar, contamina, brilha para os
artistas dos países da América Latina, quando estes
dependem da sua luz para o seu trabalho de expressao.
Ela ilumina os movimentos das máos, mas ao mesmo
tempo torna os artistas súditos do seu magnetismo su­
perior. O discurso crítico que fala das influéncias
estabelece a estrela como único valor que conta. En­
contrar a escada e contrair a divida que pode m inim izar
a distancia insuportável entre ele, mortal, e a ¡mortal
estrela: tal seria o papel do artista latino-americano,
sua fungáo na sociedade ocidental. É-lhe preciso, além
do mais, dominar esse movimento ascendente de que
fala o crítico e que poderia inscrever seu projeto no
horizonte da cultura ocidental. O lugar do projeto
parasita fica ainda e sempre sujeito ao campo magné­
tico aberto pela estrela principal e cujo movimento de
expansao esmigalha a originalidade do outro projeto e
lhe empresta a priori um significado paralelo e inferior.
O campo magnético organiza o espado da literatura
grabas a essa forga única de atragao que o crítico
escolhe e impóe aos artistas, — este grupo de corpús­
culos anónimos que se nutre da generosidade do che­
fe-de-escola e da memória enciclopédica do crítico.
Seja dito entre parénteses que o discurso crítico
que acabamos de delinear ñas suas generalidades, nao
apresenta em sua esséncia diferenga alguma do discurso
neocolonialista: os dois falam de economías defici-
tárias. Aproveitemos o paréntese e acrescentemos urna
observagáo. Seria necessário algum dia escrever um
estudo psicanalítico sobre o prazer que pode trans­
parecer no rosto de certos professores universitários
quando descobrem urna influencia, como se a verdade
de um texto só pudesse ser assinalada pela divida e

20
pela imitadlo. Curiosa verdade essa que prega o amor
da genealogía. Curiosa profissáo essa cujo olhar se
volta para o passado, em detrimento do presente, cujo
crédito se recolhe pela descoberta de urna divida con­
traída, de urna idéia roubada, de urna imagem ou
palavra pedidas de empréstimo. A voz profética e
caníbal de Paul Valéry nos chama:
Ríen de plus original, rlem de plus soi que de se nourrlr
des autres. Mals 11 faut les dlgérer. Le llon est ía lt de
mouton asslmllé*.
Fechemos o paréntese.
Declarar a falencia de tal método implica a ne-
cessidade de substituí-lo por um outro em que os
elementos esquecidos, negligenciados, abandonados pela
critica policial serio isolados, postos em relevo, em
beneficio de um novo discurso crítico, o qual por
sua vez esquecerá e negligenciará a caga ás fontes e
ás influencias e estabelecerá como único valor crítico a
diferenga. O escritor latino-americano — visto que
é necessário finalmente limitar nosso assunto de dis-
cussáo — langa sobre a literatura o mesmo olhar malé­
volo e audacioso que encontramos em Roland Barthes
na sua recente leitura-escritura de Sarrasine, este conto
de Balzac incinerado por outras geragóes. Em S/Z,
Barthes nos propde como ponto de partida a divisao
dos textos literários em textos legíveis e textos escre-
víveis, levando em consideragao o fato de que a ava-
liagao que se faz de um texto hoje esteja intimamente
ligada a urna “prática e esta prática é a da escritura”.
O texto legível é o que pode ser lido, mas nao escrito,
nao reescrito, é o texto clássico por exceléncia, o que
convida o leitor a permanecer no interior do seu fe-
chamento. Os outros textos, os escrevíveis, apresentam
ao contrário um modelo produtor (e nao representa-
cional) que excita o leitor a abandonar sua posigao
tranqüila de consumidor e a se aventurar como pro­
dutor de textos:
rem ettre chaqué texte, non dans son Indlvlduallté, mals
dans son Jeu **.
— nos diz Barthes. Portanto, a leitura em lugar de
tranquilizar o leitor, de garantir seu lugar de cliente
* Nada h& mals original, nada mals intrínseco a si que se
alim entar dos outros. É preciso, porém, digerí-loa. o lefio é felto de
camelros asslmliados.
M reconstituir cada texto, n&o em sua Indlvldualldade, mas
em seu Jogo.

21
pagante na sociedade burguesa, o desperta, transfor-
ma-o, radicaliza-o e serve finalmente para acelerar o
processo de expressáo da própria experiencia. Em
outros termos, ela o convida á práxis. Citemos de
novo Barthes:
quels testes accepterals-Je d’écrlre (de ré-écríre), de dé-
sirer, d’avancer comme une forcé dans ce monde qul est
le míen?*
Esta interrogagáo, reflexo de urna assimilagáo in­
quieta e insubordinada, antropófaga, é semelhante a
que fazem há muito tempo os escritores de urna cultura
dominada por urna outra: suas leituras se explicam
pela busca de um texto escrevível, texto que pode in-
citá-los ao trabalho, servir-lhes de modelo na organi­
z a d o da sua própria escritura. Tais escritores utilizam
sistemáticamente a digressáo, essa forma mal integrada
do discurso do saber, como assinala Barthes. A obra
segunda é pois estabelecida a partir de um compromisso
feroz com o déjá-dit, para empregar urna expressáo
recentemente cunhada por Michel Foucault em
análise de Bouvard et Pécuchet. Precisaríamos: com o
já-escrito.
O texto segundo se organiza a partir de urna
medita?áo silenciosa e trai$oeira sobre o primeiro texto,
e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o
modelo original ñas suas limita^oes, ñas suas fraquezas,
ñas suas lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo
com as suas inten?5es, segundo sua própria diregao
ideológica, sua visáo do tema apresentado de inicio
pelo original. O escritor trabalha sobre outro texto
e quase nunca exagera o papel que a realidade que
o cerca pode representar na sua obra. Nesse sentido,
as criticas que muitas vezes sao dirigidas á alienagáo
do escritor latino-americano, por exemplo, sao inúteis
e mesmo ridiculas. Se ele só fala da sua própria
experiencia de vida, seu texto passa despercebido dos
seus contemporáneos. É preciso que aprenda primeiro
a falar a língua da metrópole para melhor combaté-la
em seguida. Nosso trabalho crítico se definirá antes
de tudo pela análise do uso que o escritor fez de um
texto ou de urna técnica literária que pertence ao
dominio público, do partido que ele tira, e nossa aná­
lise se completará pela descri$ao da técnica que o
mesmo escritor cria no seu movimento de agressáo•*
•* que textos eu aceitarla, escrever (reescrever), desejar, afir­
m ar como urna forga neste m undo que é o meu?

22
contra o modelo original, fazendo ceder as fundares
que o propunham como objeto único e de reprodujo
impossível. O imaginário, no espado do neocolonia-
lismo, nao pode ser mais o da ignoráncia ou da in-
genuidade, nutrido por urna manipuladlo simplista dos
dados oferecidos pela experiencia ¡mediata do autor,
mas se afirmaría mais e mais como urna escritura sobre
outra escritura. A obra segunda, já que ela em geral
comporta urna crítica da obra anterior, se impóe com
a violencia desmistificadora das planchas anatómicas
que deixam a nu a arquitetura do corpo humano. A
propaganda toma-se eficaz porque o texto fala a lin-
guagem do nosso tempo.
O escritor latino-americano brinca com os signos
de um outro escritor, de urna outra obra. As palavras
do outro tém a particularidade de se apresentarem
como objetos que fascinan) seus olhos, seus dedos, c
a escritura do texto segundo é em parte a história de
urna experiencia sensual com o signo estrangeiro. Sar-
tre descreveu admiravelmente essa sensagio, a aventura
da leitura, quando nos fala das suas experiencias de
menino na biblioteca familiar:
Les souvenlrs touffus et la douce déraison des enfanees
paysannes, en valn les cbercherals-Je en mol. Je n’al Ja­
máis gratté la terre ni quété des nids, je n ’al pas herborlsé
ni lancé des plerres aux olseaux. Mais les Uvres ont été
mes olseaux et mes nlds, mes bétes domestiques, mon étable
et ma campagne... *
Como o signo se apresenta muitas vezes numa
língua estrangeira, o trabalho do escritor em lugar de
ser comparado ao de urna tradugao literal, se propóe
antes como urna espécie de tradugao global, de pastiche,
de paródia, de digressio. O signo estrangeiro se reflete
no espelho do dicíonário e na imaginario criadora do
escritor latino-americano e se dissemina sobre a página
branca com a graga e o dengue do movimento da mió
que traga linhas e curvas. Durante o processo de tra-
dugio, o imaginário do escritor está sempre no palco,
como neste belo exemplo pedido de empréstimo a
Julio Cortázar.
O personagem principal de 62, de nacionalidade
argentina, vé desenliada no espelho do restaurante parí-

* As densas lembrangas e o doce contra-senso das crlancas


camponesas, em v&o os procurarla em mim. Nunca fucel a térra
nem procurel nlnhos, n&o coleclonel plantas nem Joguel pedras
nos passarinhos. No entanto, os llvros foram meus passarlnhos e
meus nlnhos, meus anímala de estlmac&o, meu est&bulo e meu
cam po...

23
siense em que entrou para jantar esta frase mágica: “Je
voudrais un cháteau saignant”. Mas em lugar de repro*
duzir a frase na Iíngua original, ele a traduz ¡mediata­
mente para o espanhol: “Quisiera un castillo san­
griento”. Escrito no espelho e apropriado pelo campo
visual do personagem latino-americano, cháteau sai
do contexto gastronómico e se inscreve no contexto
feudal, colonialista, a casa onde mora o senhor, él
castillo. E o adjetivo, que significava apenas a pre­
ferencia ou o gosto do cliente pelo bife mal passado,
na pena do escritor argentino, sangriento, toma-se a
marca evidente de um ataque, de urna rebeliio, o
desejo de ver o cháteau, o castillo sacrificado, de derru-
bá-lo a fogo e sangue. A tradugáo do significante
avanga um novo significado, — e, além disso, o signo
lingüístico abriga o nome daquele que melhor com-
preendeu o Novo Mundo no sáculo XIX: René de
Chateaubriand. Nao é por coincidéncia que o persona­
gem de Cortázar, antes de entrar no restaurante, tinha
comprado o livro de um outro viajante infatigável,
Michel Butor, livro em que este fala do autor, de
René e de Atala. E a frase do fregués, pronunciada
em toda sua inocencia gastronómica, “je voudrais un
cháteau saignant”, é percebida na superficie do espelho,
do dicionário, por urna imaginagáo posta em trabalho
pela leitura de Butor, pela situagáo do sul-americano em
París, “quisiera un castillo sangriento”.
£ difícil precisar se é a frase que atrai a atendió
do sul-americano, ou se ele a vé porque acaba de
levantar os olhos do livro de Butor. Em todo caso,
urna coisa é certa: as leituras do escritor latino-ame­
ricano nao sao nunca inocentes. Náo poderiam nunca
sé-lo.
Do livro ao espelho, do espelho ao fregués glutáo,
de cháteau á sua tradugáo, de Chateaubriand ao escri­
tor americano, do original á agressáo — nessas trans­
form ares8 realizadas, na auséncia final de movimento,
no desejo tornado coágulo, escritura, — ali se abre
o espago crítico por onde é preciso comegar hoje a
ler os textos románticos do Novo Mundo. Nesse espa-
go, se o significante é o mesmo, o significado circula
urna outra mensagem, urna mensagem invertida. Iso­
lemos, por comodidade, a palavra indio. Em Chateau­
briand e muitos outros románticos europeus, este
significante toma-se a origem de todo um tema lite-
rário que nos fala da evasáo, da viagem, desejo de
fugir dos contornos estratos da pátria européia. Rim-

24
baud, por exemplo, abre scu “Bateau Ivre” por urna
alusáo aos “Peaux rouges criards”, que anuncia no
seu frescor infantil o grito de rebeliáo que se escutará
no final do poema: “Je regrette PEurope aux anciens
parapets”. Aquele mesmo significante, porém, quando
aparece no texto romántico americano toma-se símbolo
político, símbolo do nacionalismo que finalmente eleva
sua voz livre (aparentemente livre, como infelizmente
é muitas vezes o caso), depois das lutas da indepen-
déncia. E se entre os europeus aquele significante
exprime um desejo de expansáo, entre os americanos,
sua tra d u jo marca a vontade de estabelecer os limites
da nova pátria, urna forma de contrario.
Paremos por um instante e analisemos de perto
um conto de Jorge Luis Borges, cujo título é já reve­
lador das nossas intengdes: “Fierre Menard, autor
del Q u i j o t e Pierre Menard, romancista e poeta sim­
bolista, mas também leitor infatigável, devorador de
livros, será a metáfora ideal para bem precisar a s¡-
tuagao e o papel do escritor latino-americano, vivendo
entre a assimila$ao do modelo original, isto é, entre
o amor e o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de
produzir um novo texto que afronte o primeiro e
muitas vezes o negue. Os projetos literários de Pierre
Menard foram de inicio classificados com zelo por
Mme Bachelier: sao os escritos publicados durante
sua vida e lidos com prazer pelos seus admiradores.
Mas Mme Bachelier deixa de incluir na bibliografía
de Menard, nos diz o narrador do conto, o mais absur­
do e o mais ambicioso dos seus projetos, reescrever
o Dom Quixote: “nao quería compor um outro Qui-
xote — o que é fácil, — mas o Q u i x o t e A omissáo
perpetrada por Mme Bachelier vem do fato de que
nao consegue ver a obra invisível de Pierre Menard
— nos declara o narrador do conto, — aquela que é a
“subterránea, a interminavelmente heróica, a sem-
-igual”. Os poucos capítulos que Menard escreve sao
invisíveis porque o modelo e a cópia sao idénticos;
nao há diferen^a alguma de vocabulário, de sintaxe,
de estrutura entre as duas versees, a de Cervantes6
6. Seguimos de perto os enslnamentos de Derrlda com reía-
gáo ao problema da tradUQ&o dentro dos preasupostos gramatoló-
gleos: “Dañe les limites oü elle est posslble, oü du molns elle
PARAIT posslble, la traductlon pratlque la difiérenos entre slgnl-
fié et slgnlflant. Mais si cette dlfférence n'est Jamals puré, la
traductlon ne l’est pas davantage et, k la notlon de traductlon, 11
faudm substltuer uno notlon do TRAKSPORMATION: transfor-
matlon réglée d’une langue par une autre, d*un text par un au«
tre.” Positions, Parts, M lnult, 1972, p. 31.

25
e a outra, a cópia de Menard. A obra invisível é o
paradoxo do texto segundo que desaparece completa­
mente, dando lugar á sua significado mais exterior,
a situagáo cultural, social e política em que se sitúa o
segundo autor.
O texto segundo pode no entanto ser visível, e
é assim que o narrador do conto pode incluir o poema
“Le Cimetiére Marín”, de Paul Valéry, na bibliografía
de Menard, porque na transcrido do poema os decassí-
labos de Valéry se transformam em alexandrinos. A
agressáo contra o modelo, a transgressáo ao modelo
proposto pelo poema de Valéry se sitúa nessas duas
sílabas acrescentadas ao dccassílabo, pequeño suple­
mento sonoro e diferencial que reorganiza o espado
visual e silencioso da estrofe e do poema de Valéry,
modificando também o ritmo interno de cada verso.
A originalidade pois da obra visível de Pierre Menard
reside no pequeño suplemento de violencia que instala
na página branca sua presenta e assinala a ruptura
entre o modelo e sua cópia, e finalmente sitúa o poeta
face á literatura, á obra que Ihe serve de inspirado.
“Le lion est fait de mouton assimilé.”
Segundo Pierre Menard, se Cervantes para cons­
truir seu texto nao tinha “rejeitado a colaborado do
acaso”, ele tinha “contraído o misterioso dever de re­
constituir literalmente sua obra espontánea”. Há em
Menard, como entre os escritores latinos-americanos,
a recusa do “espontáneo”, e a aceitado da escritura
como um dever lúcido e consciente, e talvez já seja
tempo de sugerir como imagem reveladora do trabalho
subterráneo e interminavelmente heróico o título mesmo
da primeira parte da coletánea de contos de Borges:
“o jardim das veredas que se bifurcam”. A literatura,
o jardim; o trabalho do escritor — a escolha consciente
diante de cada bifurcado e nao urna aceitado tran-
qüila do acaso da invendo. O conhecimento é conce­
bido como urna forma de produdo. A assimilado do
livro pela leitura implica já a organizado de urna
práxis da escritura.
O projeto de Pierre Menard recusa portanto a
liberdade total na criado, poder que é tradicional­
mente delegado ao artista, elemento que estabelece a
identidade e a diferenga na cultura neocolonialista
ocidental. A liberdade, em Menard, é controlada pelo
modelo original, assim como a liberdade dos cidadaos
dos países colonizados é vigiada de perto pelas forjas
da metrópole. A presenta de Menard — diferenga,

26
escritura, originalidade — se instala na transgressáo
ao modelo, no movimento imperceptível e sutil de
conversáo, de perversáo, de reviravolta.
A originalidade do projeto de Pierre Menard, sua
parte visível e escrita, é conseqüéncia do fato de que
ele recusa aceitar a co n cep to tradicional da invengao
artística, porque ele próprio nega a liberdade total do
artista. Semelhante a Robert Desnos, ele proclama
como lugar de trabalho as formes prisons. O artista
latino-americano aceita a prisáo como forma de com-
portamento, a transgressáo como forma de expressáo.
Daí, sem dúvida, o absurdo, o tormento, a beleza e
o vigor do seu projeto visível. O invisível torna-se
siléncio no seu texto, a presenta do modelo, enquanto
o visível é a mensagem, é o que ausencia no modelo.
Citemos urna última vez Pierre Menard:
Meu Jogo sollt&rlo é regido por duas leis diametralmente
opostas. A primeira me permite ensatar variantes de tipo
formal ou psicológico; a segunda me obliga a sacrificá-las
ao texto "original”...

O escritor latino-americano é o devorador de li-


vros de que os contos de Borges nos falam com
insisténcia. Le o tempo todo e publica de vez em
quando. O conhecimento nao chega nunca a enferrujar
os delicados e secretos mecanismos da criagáo; pelo
contrário, estimulam seu projeto criador, pois é o
principio organizador da produgáo do texto. Nesse
sentido, a técnica de leitura e de p ro d u jo dos escri­
tores latino-americanos parece com a de Marx, de que
nos falou recentemente Louis Althusser. Nossa leitura
é táo culpada quanto a de Althusser, porque nós
estamos lendo os escritores latino-americanos “en obser-
vant les régles d’une lecture dont ils nous donnent
l’impressionante legón dans leur propre lecture” dos
escritores europeus. Citemos de novo Althusser:
Quand nous Usons Marx, nous sommes d’emblée devant
un íecteur, qul devant nous, et & haute voix, Ut. [ . .. ] il
llt Quesnay, il lit Smith, 11 llt Ricardo, etc. [...1 pour
s’appuyer sur ce quila ont d lt d’exact, et pour critlquer
ce qulls ont d it de faux...*

A literatura latino-americana de hoje nos propóe


um texto e ao mesmo tempo abre o campo teórico
* Quando lemos Marx, pomo-nos im edlatamente dlante de
um leitor, que an te nós e em voz alta lé. [ . . . ] lé Quesnay, lé
Smith, 16 Ricardo etc. [ . . . ] para se apolar sobre o que disseram de
exato e para criticar o que de falso dlsseram. ..

27
onde é preciso se inspirar durante a elaboradlo do
discurso crítico de que ela será o objeto. O campo
teórico contradiz os principios de certa crítica uni-
versitária que só se interessa pela parte invisível do
texto, pelas dividas contraídas pelo escritor, ao mesmo
tempo que ele rejeita o discurso de urna crítica pseudo-
marxista que prega urna prática primária do texto,
observando que sua eficácia seria conseqüéncia de urna
leitura fácil. Estes teóricos esquecem que a eficácia de
urna crítica nao pode ser medida pela preguisa que ela
inspira; pelo contrário, ela deve descondicionar o leitor,
tornar impossível sua vida no interior da sociedade bur­
guesa e de consumo. A leitura fácil dá razáo ás farsas
neocolonialistas que insistem no fato de que o país
se encontra na situagáo de colónia pela preguisa dos
seus habitantes. O escritor latino-americano nos en-
sina que é preciso liberar a imagem de urna América
Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta, colónia
de férias para turismo cultural.
Entre o Sacrificio e o jogo, entre a prisáo e a
transgressáo, entre á submissáo ao código e a agressio,
entre a obediéncia e a rebeliio, entre a assimilasáo
e a expressáo, — ali, nesse lugar aparentemente vazio,
seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se
realiza o ritual antropófago da literatura latino-
- americana.
[marso de 1971]

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