Aramor,+4173 13636 1 CE
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RESUMO: A alma é, sem dúvida, um dos problemas que mais interessou a Santo Agostinho; ele a
define como uma substância partícipe da razão adequada ao governo de um corpo. A alma não tem
quantidade corporal, contudo, é uma coisa grande. Este estudo pretende refletir sobre os sete graus de
atividade da alma, os quais o autor apresenta na sua obra De quantitate animae. São eles: a animação,
a sensação, a arte, a virtude, a tranquilidade, o ingresso e a contemplação.
PALAVRAS-CHAVE: Alma. Antropologia. Ascensão. Virtude. Contemplação.
O problema da alma
A alma é, sem dúvida, um dos problemas que mais interessou a Santo
Agostinho2 e, embora seja um dos problemas centrais em toda a sua volumosa
obra, trata-se de um tema que suscita muitíssimas questões e, nem sempre,
com satisfatórias respostas. Quando falamos em alma (grego psyché; latim
animus) ou em espírito (grego pneuma; latim spiritus), queremos significar
uma só realidade, considerada sob dois aspectos: princípio vital e de animação
racional (animus) e substância própria e imaterial (spiritus). As reflexões sobre
1
Doutor em Filosofia e Professor no Departamento e Programa de Pós-Graduação em Filosofia na
Universidade Federal de Pelotas. Foi orientando do Prof. Dr. Gregorio Piaia, no estágio doutoral na
Universitá di Padova (Itália) 2000. Fez estágio pós-doutoral na Universidade do Porto (Portugal) em
2012-2013. Pesquisa na área de filosofia medieval. E-mail: [email protected].
2
Este filósofo e teólogo africano, bispo de Hipona e doutor da Igreja, viveu entre 354 e 430, durante
a dominação romana, em uma colônia sem tradição, na província da Numídia, atual território da
Argélia. Ele foi consagrado como grande pensador da condição humana, por meio da investigação
de temas como conhecimento e amor; memória e presença; sabedoria; Deus e o destino do homem.
Sobre a vida e a imensa obra de Agostinho, em especial como autor das Confissões (397), onde já
aparece o problema da vontade, que quer e não quer, e também como autor da Cidade de Deus,
um verdadeiro colosso para se entender a preocupação ética do africano, aconselhamos o estudo da
seguinte bibliografia: BROWN, Peter. Santo Agostinho, uma biografia. Trad. Vera Ribeiro. 6. ed. Rio
de Janeiro: Record, 2011.
quando afirma: “Tal como é visto por outro ser humano, um ser humano é uma
alma racional, que utiliza um corpo mortal e terreno”9. Às vezes, Agostinho
identifica seu real “si mesmo” com a alma racional – “Eu, eu, a alma”10 –, mas
insiste também em afirmar que o ser humano é “[...] uma alma racional que
tem um corpo”, e que o composto “[...] não constitui duas pessoas, mas um
só ser humano”11. Agostinho não aceita a ideia de que as almas tenham se
encarnado em corpos, como castigo, por algum pecado anterior, rejeitando a
concepção de Orígenes de que o mundo sensível dos corpos foi criado, como
um lugar de castigo, para as almas que haviam pecado antes de sua encarnação
nos corpos. Ridiculariza a ideia de que o tamanho do corpo seja supostamente
proporcional à gravidade do pecado12. Contudo, o nosso autor considera que
entender a união da alma incorpórea com o corpo não é fácil. Numa de suas
epístolas, salienta que é mais fácil crer que o Verbo se uniu com uma alma
humana que crer que uma alma humana está unida a um corpo13. Poderíamos
aqui abordar as questões sobre a incorporeidade, a origem, a mutabilidade, a
posição, a transmigração, o número e o destino da alma, todavia, fugiríamos
de nosso escopo, o qual é nos concentrar nas atividades ou graus de progresso
da alma, conforme nos apresenta determinado capítulo da obra De quantitate
animae, da qual trataremos a seguir.
9
De moribus 1.4.6.
10
Confessiones 10.9.6.
11
Joannis evangellium tractatus. 19.5.15.
12
Contra priscillianistas. 8.9.
13
Epistula 173.3.
14
Evódio foi amigo de Agostinho, conviveu com ele e participou de alguns diálogos, tornando-se bispo
de Uzala, pequena cidade perto de Cartago.
23
De quantitate animae 27.33.
24
De quantitate animae 33.76.
25
De quantitate animae 34.77.78.
26
“Ascendentibus igitur sursum versus, primus actus, docendi causa, dicatur animatio; secundus,
sensus; tertius, ars; quartus, virtus; quintus, tranquillitas; sextus, ingressio; septimus, contemplatio”
(De quantitate animae 35.79).
27
De quantitate animae 33.70.
28
“In primis tamen tibi amputem latissimam quamdam et infinitam exspectationem, ne me de omni
anima dicturum putes, sed tantum de humana, quam solam curare debemus, si nobismetipsis curae sumus.
Haec igitur primo, quod cuivis animadvertere facile est, corpus hoc terrenum atque mortale praesentia sua
vivificat; colligit in unum, atque in uno tenet, diffluere atque contabescere non sinit; alimenta per membra
aequaliter, suis cuique redditis, distribui facit; congruentiam eius modumque conservat, non tantum in
pulchritudine, sed etiam in crescendo atque gignendo” De quantitate animae 33.70.
29
De moribus ecclesiae catolicae 1.4.6
30
De quantitate animae 12,22.
31
“Homo igitur ut homini apparet, anima rationalis est mortali atque terreno utens corpore” De
moribus ecclesiae catolicae 1.27.52.
32
De quantitate animae 3.4.
alma deve ser pensada fora de toda extensão33. Por sua relação com o corpo,
tendemos a considerá-la semelhante a ele, embora não seja, necessariamente,
corpo aquilo que tenha aparência de um corpo, como é o caso, por exemplo,
de nossos sonhos, nos quais vemos uma semelhança completa de nosso corpo,
mas que, na verdade, não é corpo, não tem extensão, pois se trata apenas da
alma, que imagina e retém na memória.
O autor africano entende que a alma, sendo superior à linha, é
necessário que seja inespacial, deve ser motor do corpo em sentido platônico,
motor de todas as partes, não somente enquanto as vivifica, mas também
de todas as suas ações34. A alma confere a vida (animatio), de sorte que esta
simples e primeira animação do corpo é o primeiro grau onde colocamos
nossos pés para ascender até a verdade. A alma anima as vísceras do corpo,
considerando que os órgãos não podem viver sem ela, e, assim, a alma os
vivifica, ainda que não possa conhecê-los com facilidade. Na verdade, a alma
só pode verdadeiramente conhecer a si mesma, porque não há nada mais
presente na alma que ela mesma, embora esse conhecimento seja muitas vezes
diminuído por sua familiaridade com as coisas corpóreas35. Para conhecer-se, a
alma há de buscar algo mais íntimo que o sensível e, diante da intuição de sua
própria presença, sabe que existe e se sabe que existe, vive. Por conseguinte, a
alma sabe certamente que existe, vive e entende36. A alma, pois, vivifica, anima
o corpo e, portanto, o homem é um composto de alma vivificante e corpo,
entretanto, com predomínio da alma, como se fosse um cavaleiro com respeito
à cavalaria37. Há sempre um predomínio da alma, que é o homem interior,
sobre o corpo, que é o homem exterior38.
A alma se encontra em todo o corpo que anima e se acha difundida, não
por difusão local, mas como atividade vivificante, de tal modo que está presente
toda inteira e, simultaneamente, em todas e cada uma das partes do corpo. De
fato, ela está “[...] toda inteira no todo, e toda inteira em cada parte”39. A alma
cresce com o tempo, não no sentido físico quantitativo, simultâneo e paralelo com
o crescimento do corpo; uma vez que, assim como entre as figuras geométricas
33
De quantitate animae 4.5.
34
De quantitate animae 14.23.
35
De trinitate 10.8.11.
36
De trinitate 10.10.13.
37
De moribus ecclesia catholica 1.4.6.
38
De civitate dei 13.24.2.
39
Epistula 166 2.4.
40
De quantitate animae 16.28.
41
De quantitate animae 17.30.
42
De quantitate animae 19.33.
43
De quantitate animae 19.33.
44
A doutrina da imago dei Agostinho retirou da Sagrada Escritura (Gênesis 1,26), segundo a qual
o homem e a mulher foram criados à imagem de Deus, em que essa imagem se refere à alma. Entre
outros escritos, o De trinitate é a maior referência.
45
A doutrina do pecado original é a crença no pecado herdado de Adão, o primeiro homem, que se
propagou por toda a humanidade, gerando consequências negativas tanto no corpo como na alma.
46
“Sed haec etiam homini cum arbustis communia videri queunt: haec enim etiam dicimus vivere, in
suo vero quidque illorum genere custodiri, ali, crescere, gignere videmus atque fatemur” (De quantitate
animae 33.70).
obtido pelos sentidos, os quais não são, todavia, a sua causa principal, porque
o sentir não é do corpo, mas da alma por meio do corpo. Agostinho nos
convida a subir ao segundo grau de elevação da alma e contemplar o quanto
pode esta, por meio dos sentidos. A alma é superior, tem poder sobre o corpo,
porém é, pelos sentidos corpóreos, que exerce a sua a atividade de conhecer.
Sobe mais um grau e observa o poder da alma nos sentidos, nos quais
a vida se mostra mais patente e manifesta [...] A alma se aplica ao tato
e por ele sente e distingue o que é frio, áspero, liso, duro, leve, pesado.
Além disso, discerne pelo paladar, pelo olfato, pela audição e pela visão as
inúmeras diferenças de sabores, de odores, de sons, de formas. Em todas
essas operações aceita e apetece o que for adequado à natureza de seu corpo;
rejeita e evita o que é contrário. Retira-se dos sentidos por certo intervalo
de tempo e, refazendo a atuação deles, como que tirando férias, resolve
consigo atropelada e repetidamente as imagens das coisas que observou por
meio deles. (AGOSTINHO, 2012, p.340)47.
47
“ Ascende itaque alterum gradum, et vide quid possit anima in sensibus, ubi evidentior manifestiorque
vita intellegitur. [...] Intendit se anima in tactum, et eo calida, frigida, aspera, lenia, dura, mollia,
levia, gravia sentit atque discernit. Deinde innumerabiles differentias saporum, odorum, sonorum,
formarum, gustando, olfaciendo, audiendo videndoque diiudicat. Atque in iis omnibus ea quae
secundum naturam sui corporis sunt, adsciscit atque appetit; reiicit fugitque contraria. Removet se ab
his sensibus certo intervallo temporum, et eorum motus quasi per quasdam ferias reparans, imagines
rerum quas per eos hausit, secum catervatim et multipliciter versat” (De quantitate animae 33.71).
48
“[...] nam sensum puto esse, non latere animam quod patitur corpus” (De quantitate animae 23.41).
49
De genesi ad litteram 3.5.7.
50
De genesi ad litteram 3.4.6.
51
De quantitate animae 23.43.
conseguinte, fica óbvio como um princípio primeiro que o inferior não pode
agir sobre o superior. Isso significa que temos aqui um problema na ordem
do conhecimento, em que se entende que as realidades puramente espirituais
dependem de estados orgânicos, a saber, de realidades corporais.
59
”Ergo attollere in tertium gradum, qui iam est homini proprius, et cogita memoriam non consuetudine
inolitarum, sed animadversione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium,
tot artes opificum, agrorum cultus, exstructiones urbium, variorum aedificiorum ac moliminum
multimoda miracula; inventiones tot signorum in litteris, in verbis, in gestu, in cuiuscemodi sono, in
picturis atque figmentis; tot gentium linguas, tot instituta, tot nova, tot instaurata [...] vim ratiocinandi
et excogitandi,[...] modulandi peritiam, dimetiendi subtilitatem, numerandi disciplinam, praeteritorum
ac futurorum ex praesentibus coniecturam. Magna haec et omnino humana. Sed est adhuc ista partim
doctis atque indoctis, partim bonis ac malis animis copia communis” (De quantitate animae 33.73).
que advém dos sentidos externos60. Somente a razão nos permite discernir
todos esses dados61. No De quantitate animae, Agostinho afirma que a razão
julga ao sentido interior, assim como este supera e julga ao sentido exterior. Tal
faculdade é o olho vigilante da alma, de sorte que passar mais além dela seria
sobrepassar ao homem mesmo. A razão é certa olhada ou visão da inteligência
(mentis aspectus) e sua missão é ver.
A razão, enquanto passa de um conhecimento a outro, do conhecido
ao menos conhecido, ou seja, quando não é outra coisa que a investigação
intelectual (rationis inquisitio), se denomina raciocínio e sua missão é
unicamente investigar; quando o apetite da mente, isto é, a razão vê uma
coisa, tem a ciência. Desse modo, uma coisa é a ciência e outra a razão,
assim como está evidente que são duas coisas distintas: a visão e o olhar62.
A razão existe tendo em vista a ciência e não o contrário, por conseguinte, a
ciência é mais excelente do que a razão. É verdade que muitos animais têm os
sentidos melhores que os homens, porém, Deus nos colocou acima de todos
os animais, dando-nos a mente, a razão e a ciência63. A mente (mens) é a
parte mais elevada de nossa alma e a razão (ratio) é a faculdade discursiva feita
para julgar do sentido interior e, através dele, de todos os sensíveis. A ciência
(scientia), que resulta da razão, é um saber a respeito das coisas sensíveis e que,
no De quantitate animae, recebe o nome de ars. O significado desse nome (ars)
nos leva a pensar em regras que servem para fazer uma coisa. A alma, nesse
grau, revela sua capacidade e habilidade para a produção.
A alma, pela razão e pela ciência, tende a desligar-se dos sentidos do
corpo, uma vez que ambas são superiores aos sentidos. A alma, nesse estágio,
começa a saborear o prazer interior. Do contrário, se a alma se inclina aos
sentidos, ela trai a sua própria natureza e torna o homem semelhante aos
animais irracionais.
Kenny (2008, p.245-246) salienta que Agostinho, ordinariamente,
menciona em seus escritos a ideia de “homem interior” e “homem exterior”,
todavia, isso não deve ser confundido com a distinção entre alma e corpo.
Não só o corpo, como também certos aspectos de nossa alma, pertencem ao
homem exterior, considerando que nossos sentidos e nossa memória sensorial
60
De libero arbitrio 2.3.8.
61
De libero arbitrio 2.3.9.
62
De quantitate animae 27.53.
63
De quantitate animae 28.54.
constituem algo que nos assemelha aos animais irracionais. A nossa mente, o
homem interior é a nossa melhor parte, pois aí estão incluídas a memória e a
imaginação, assim como o juízo racional e a especulação intelectual.
66
De quantitate animae 28.55.
67
In epistolae Joannis 7.8.
68
“Suspice igitur atque insili quarto gradui, ex quo bonitas incipit, atque omnis vera laudatio. Hinc
enim anima se non solum suo, si quam universi partem agit, sed ipsi etiam universo corpori audet
praeponere, bonaque eius bona sua non putare, atque potentiae pulchritudinique suae comparata
discernere atque contemnere: et inde quo magis se delectat, eo magis sese abstrahere a sordibus,
totamque emaculare ac mundissimam reddere et comptissimam; roborare se adversus omnia, quae
de proposito ac sententia dimovere moliuntur; societatem humanam magni pendere, nihilque velle
alteri quod sibi nolit accidere; sequi auctoritatem ac praecepta sapientium, et per haec loqui sibi Deum
credere. [...] Tanta est tamen anima, ut etiam hoc possit adiuvante sane iustitia summi et veri Dei, qua
haec universitas sustentatur et regitur; qua etiam factum est, ut non modo sint omnia, sed ita sint,
ut omnino melius esse non possint. Cui sese in opere tam difficili mundationis suae adiuvandam et
perficiendam piissime tutissimeque committit” (De quantitate animae 33.73).
Nesse quarto nível, a atividade da alma é tender para aquele que ela ama,
para alcançá-lo e nele repousar. Enquanto as coisas do mundo a inferiorizam,
a alma tende a elevar-se, transcende a si mesma, ou seja, transcende a todo
o homem e, como não existe nada acima da alma que seja mais excelente, a
não ser Deus, em Deus se deleita e encontra aquele descanso tão desejado. No
entanto, nesse grau em que se encontra a alma, exige-se muito esforço, trata-se
de combater os falsos bens deste mundo, às vezes misturados com o medo da
morte, porque a alma percebe, sempre mais, a diferença entre ela mesma, a vida
manchada pelo pecado e a vida repleta da graça, a qual é a desejada por Deus.
Nesta tão brilhante atuação da alma, é preciso considerar o trabalho e o
grande conflito contra as adversidades e as seduções deste mundo. Nesse
mesmo afã de purificação resta ainda o temor da morte. Não é grande
quando se acredita firmemente que tudo é governado pela inefável
providência e justiça de Deus, e que a ninguém a morte pode acontecer
injustamente, ainda que a possa provocar um criminoso. (AGOSTINHO,
2012, p. 342)69.
69
De quantitate animae 33.73.
não atinge a paz plena. Todavia, sente agora o ardente desejo de entender
aquilo que é o grau mais excelente e verdadeiro. Este é o grande aspecto da
alma que não reconhece nada melhor.
Mas esta ação, ou seja, o desejo de entender o que é verdadeiro e sumo,
é o mais sublime olhar da alma; não há outro mais perfeito, melhor e
mais virtuoso. Portanto, este será o sexto grau, pois uma coisa é purificar
o próprio olhar da alma para que não olhe inútil e temerariamente e
enxergue o mal, outra coisa é preservar e fortalecer sua saúde, e outra
coisa ainda é dirigir o olhar sereno e firme ao que pode ser visto. [...]
Com efeito, conforme creio, é reto o Espírito que possibilita à alma não
se deixar desviar nem errar na procura da verdade. Ele, sem dúvida, não
se renova na verdade, se antes não purificar o coração, ou seja, se antes o
pensamento não se reprimir de toda paixão e sordidez e delas se purificar.
(AGOSTINHO, 2012, p. 344)71.
71
“Sed haec actio, id est, appetitio intellegendi ea quae vere summeque sunt, summus aspectus est
animae, quo perfectiorem, meliorem rectioremque non habet. Sextus ergo erit iste gradus actionis:
aliud est enim mundari oculum ipsum animae, ne frustra et temere aspiciat, et prave videat; aliud
ipsam custodire atque firmare sanitatem; aliud iam serenum atque rectum aspectum in id quod
videndum est, dirigere. [...] Spiritus enim rectus est, credo, quo fit ut anima in veritate quaerenda
deviare atque errare non possit. Qui profecto in ea non instauratur, nisi prius cor mundum fuerit, hoc
est, nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et eliquaverit”
(De quantitate animae 33.75).
e verdade plena. Não é mais o caminho para a verdade, mas é, de fato, a mesma
visão ou contemplação da verdade (ipsa visio atque contemplatio veritatis):
Na visão e contemplação da verdade, que é o sétimo e último grau da
alma, o qual não é certamente grau, mas certa mansão aonde se chega pelos
outros graus, como dizer qual seja a alegria, o gozo do sumo e verdadeiro
bem, de cuja serenidade e eternidade é o sopro? Algumas almas grandes e
incomparáveis falaram dessas coisas o quanto julgaram que deviam falar;
e nós cremos que as viram e as veem. (AGOSTINHO, 2012, p. 344)72.
72
“Iamvero in ipsa visione atque contemplatione veritatis, qui septimus atque ultimus animae gradus
est; neque iam gradus, sed quaedam mansio, quo illis gradibus pervenitur; quae sint gaudia, quae
perfructio summi et veri boni, cuius serenitatis atque aeternitatis afflatus, quid ego dicam? Dixerunt
haec quantum dicenda esse iudicaverunt, magnae quaedam et incomparabiles animae, quas etiam
vidisse ac videre ista credimus” (De quantitate animae 33.76).
73
“Illud plane ego nunc audeo tibi dicere, nos si cursum quem nobis Deus imperat, et quem tenendum
suscepimus, constantissime tenuerimus, perventuros per Virtutem Dei atque Sapientiam ad summam
illam causam, vel summum auctorem, vel summum principium rerum omnium, vel si quo alio
modo res tanta congruentius appellari potest: quo intellecto, vere videbimus quam sint omnia sub
sole vanitas vanitantium. Vanitas enim est fallacia, vanitantes autem vel falsi, vel fallentes, vel utrique
intelleguntur” (De quantitate animae 33.76).
74
“Tanta autem in contemplanda veritate voluptas est, quantacumque ex parte eam quisque
contemplari potest, tanta puritas, tanta sinceritas, tam indubitanda rerum fides, ut neque quidquam
praeterea scisse se aliquando aliquis putet, cum sibi scire videbatur; et quo minus impediatur anima
toti tota inhaerere veritati, mors quae antea metuebatur, id est ab hoc corpore omnimoda fuga et
elapsio, pro summo munere desideretur” (De quantitate animae 33.76).
conclusão
A partir do que foi exposto, percebemos que a ascensão da alma através
dos sete graus, apresentados por Santo Agostinho, revelam a verdade existencial
do espírito humano, ou seja, esta é a natureza da nossa alma, para isso ela foi
criada. A alma humana exerce todas as atividades da vida vegetativa, sensitiva
e racional – e vai além disso, pois tem a potência para evoluir na virtude,
a qual é a ordem do amor, a saber, cabe ao ser humano amar os seres de acordo
com a sua dignidade ontológica. Este é o caminho da realização humana,
porém, esta só é possível, se, além do esforço humano, for tornada eficaz pela
graça divina. Portanto, cabe ao homem buscar elevar-se, subir essa escada da
retidão, que lhe proporcionará a recompensa da contemplação da verdade.
Esta constitui o vislumbre de experimentar a graça de Deus, a experiência
mística, que, embora fugaz, deve ser considerada a mais plena realização da
vida do espírito, durante nossa vida terrestre. Os graus da alma, ao somarem
sete, evidenciam um número significativo, porque simboliza o sétimo dia da
criação, o dia do descanso, a totalidade, a plenitude da perfeição75. Hinrichsen
(2009, p.128) salienta que, itinerante, no seu percurso ascendente, o ser
humano é privilegiado mediador entre as criaturas e seu autor.
Agostinho analisa a alma humana e conclui que, “[...] entre as coisas que
Deus criou, nada está mais próximo a ele do que a alma”76. Por isso, é natural
à alma que somente encontre descanso, quando repousa no sobrenatural
do qual está próxima77. O bispo de Hipona proporciona uma antropologia
filosófica, que nos oferece um conhecimento profundo da natureza humana.
Na medida em que nos voltamos ao homem interior, não fugimos daquilo
mesmo que somos e possibilitamos o caminho para conhecer a totalidade do
que somos. Destarte, a nossa realização, enquanto pessoas humanas, só pode
acontecer quando reconhecermos a nossa realidade, que é exterior: os sentidos;
mas também, interior: a alma. Esta é a “[...] realidade mais excelente, depois
de Deus, e superior aos demais animais, somente Deus lhe é superior”78, por
isso, a alma deve adorar somente a Deus e aos outros, respeitar. Para que
isso aconteça, em nossa vida, se faz mister considerar os dois princípios da
moralidade, tantas vezes expostos por Agostinho, a saber: o uti e o frui, pelos
quais a vontade humana distingue as coisas a serem usadas (uti) daquelas que
75
De civitate dei 11,31.
76
De quantitate animae 34.77.
77
“Inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te” (Confessiones 1.1).
78
De quantitate animae 34.78.
Strefling, Sérgio Ricardo. The seven degrees of activity of the human soul in Saint
Augustine’s “de Quantitate Animae”. Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 3, p. 179-200,
Set./Dez., 2014.
ABSTRACT: The soul is undoubtedly one of the problems that most interested St. Augustine. He
defines it as a substance participating of reason, adequate for the government of a body. The soul
has no corporal quantity, but is nevertheless a great thing. This study aims to reflect on the seven
degrees of activity of the soul, which the author presents in his work De quantitate animae. They are:
animation, sensation, art, virtue, tranquility, ingress and contemplation.
KEYWORDS: Soul. Anthropology. Ascension. Art. Virtue. Contemplation.
Referências
AGOSTINHO, A. Contra os Acadêmicos. A Ordem. A Grandeza da Alma. O Mestre. Trad.
Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2012.
______. Confessiones. Paris: Migne, 1887. (Patrologia Latina, 32)
______. Contra priscillianistas. Paris: Migne, 1886. (Patrologia Latina, 42)
______. De beata vita. Paris: Migne, 1887. (Patrologia Latina, 32)
______. De civitate dei. Paris: Migne, 1900. (Patrologia Latina, 41)
______. De doctrina christiana. Paris: Migne, 1887. ( Patrologia Latina, 34)
______. De genesi ad litteram. Paris: Migne, 1886. (Patrologia Latina, 42)
______. De libero arbitrio. Paris: Migne, 1887. (Patrologia Latina, 32)
______. De moribus ecclesiae catolicae et de moribus manichaeorum. Paris: Migne, 1887.
(Patrologia Latina, 32)
______. De musica. Paris: Migne, 1886. (Patrologia Latina, 42)
______. De ordine. Paris: Migne, 1888. (Patrologia Latina, 35)
79
De doctrina christiana 1.22.20; De beata vita 4.34.35; De ordine 2.2.6; De libero arbitrio 1.16.34.