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Os sete graus de atividade da alma humana

Artigos / Articles

OS SETE GRAUS DE ATIVIDADE DA


ALMA HUMANA NO DE QUANTITATE
ANIMAE DE SANTO AGOSTINHO

Sérgio Ricardo Strefling1

RESUMO: A alma é, sem dúvida, um dos problemas que mais interessou a Santo Agostinho; ele a
define como uma substância partícipe da razão adequada ao governo de um corpo. A alma não tem
quantidade corporal, contudo, é uma coisa grande. Este estudo pretende refletir sobre os sete graus de
atividade da alma, os quais o autor apresenta na sua obra De quantitate animae. São eles: a animação,
a sensação, a arte, a virtude, a tranquilidade, o ingresso e a contemplação.
PALAVRAS-CHAVE: Alma. Antropologia. Ascensão. Virtude. Contemplação.

O problema da alma
A alma é, sem dúvida, um dos problemas que mais interessou a Santo
Agostinho2 e, embora seja um dos problemas centrais em toda a sua volumosa
obra, trata-se de um tema que suscita muitíssimas questões e, nem sempre,
com satisfatórias respostas. Quando falamos em alma (grego psyché; latim
animus) ou em espírito (grego pneuma; latim spiritus), queremos significar
uma só realidade, considerada sob dois aspectos: princípio vital e de animação
racional (animus) e substância própria e imaterial (spiritus). As reflexões sobre

1
Doutor em Filosofia e Professor no Departamento e Programa de Pós-Graduação em Filosofia na
Universidade Federal de Pelotas. Foi orientando do Prof. Dr. Gregorio Piaia, no estágio doutoral na
Universitá di Padova (Itália) 2000. Fez estágio pós-doutoral na Universidade do Porto (Portugal) em
2012-2013. Pesquisa na área de filosofia medieval. E-mail: [email protected].
2
Este filósofo e teólogo africano, bispo de Hipona e doutor da Igreja, viveu entre 354 e 430, durante
a dominação romana, em uma colônia sem tradição, na província da Numídia, atual território da
Argélia. Ele foi consagrado como grande pensador da condição humana, por meio da investigação
de temas como conhecimento e amor; memória e presença; sabedoria; Deus e o destino do homem.
Sobre a vida e a imensa obra de Agostinho, em especial como autor das Confissões (397), onde já
aparece o problema da vontade, que quer e não quer, e também como autor da Cidade de Deus,
um verdadeiro colosso para se entender a preocupação ética do africano, aconselhamos o estudo da
seguinte bibliografia: BROWN, Peter. Santo Agostinho, uma biografia. Trad. Vera Ribeiro. 6. ed. Rio
de Janeiro: Record, 2011.

Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 3, p. 179-200, Set./Dez., 2014 https://doi.org/10.1590/S0101-31732014000300014 179


Strefling, S. R.

a alma remontam ao pensamento grego, propriamente a Platão3. Agostinho


é antes de tudo um teólogo, mas não deixa de também ser filósofo, quando
desenvolve um longo debate para compreender aquilo que ele considera o mais
próprio da realidade humana. Desde os tempos dos diálogos de Cassicíaco4,
a alma humana foi um foco central do interesse de Agostinho. Em sua obra
Soliloquia, afirma: “[...] quero conhecer unicamente a Deus e a alma”5.
Segundo o filósofo africano, todo ser vivo corpóreo tem uma alma
(anima). No caso dos vegetais, a alma é simplesmente o que dá vida ao corpo,
permitindo que este seja alimentado, cresça e se reproduza. Nos animais, a
alma não é somente a fonte dessas atividades que se encontram nos vegetais,
mas é também a fonte da sensação e do apetite. Nos seres humanos, a alma
racional é a fonte do pensar e do querer, além de todas as demais atividades
que os homens têm, em comum, com os vegetais e os animais. O bispo de
Hipona utiliza o termo anima, para referir-se tanto à alma racional quanto à
mente humana.
Entre os muitos escritos em que Agostinho trata da alma, destacamos,
conforme Teske6, alguns títulos, que estavam centrados nos seguintes temas: na
felicidade da alma (De beata vita), na capacidade, para alcançar conhecimento
e sabedoria (Contra Academicos), na sua imortalidade (De immortalitate
animae), em sua liberdade (De libero arbitrio) e em sua adoração a Deus (De
vera religione).
Segundo Agostinho, a alma, juntamente com o corpo, é um entre os
dois constituintes que formam um ser humano7. O filósofo africano parte da
ideia platônica de que a alma humana é uma “[...] substância que participa de
uma razão adaptada ao governo de um corpo”8. Na obra De moribus ecclesiae
catolicae, Agostinho sugere que o ser humano real pode ser alguma outra coisa,
3
Para o idealismo platônico, a alma ou o pensamento (nous) é ideia (forma inteligível), emanada de
uma essência primeira (arquétipo). Platão defende a imortalidade e a imaterialidade da alma (Fédon e
Timeu), sem referência à animação do corpo, porque considera esse corpo como acidental à alma, ou
cárcere do espírito.
4
Lugar retirado nas campinas próximo à cidade de Milão, onde Agostinho permaneceu durante um
tempo, rezando e estudando após sua conversão ao cristianismo. Nesse lugar, retirou-se com alguns
amigos e, a partir dos seus significativos diálogos com os companheiros, escreveu alguns tratados
filosóficos.
5
Soliloquia 1.2.7.
6
TESKE, 2001, p.25.
7
De beata vita 2,7; Trinitate 15.11.
8
De quantitate animae 13,22.

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quando afirma: “Tal como é visto por outro ser humano, um ser humano é uma
alma racional, que utiliza um corpo mortal e terreno”9. Às vezes, Agostinho
identifica seu real “si mesmo” com a alma racional – “Eu, eu, a alma”10 –, mas
insiste também em afirmar que o ser humano é “[...] uma alma racional que
tem um corpo”, e que o composto “[...] não constitui duas pessoas, mas um
só ser humano”11. Agostinho não aceita a ideia de que as almas tenham se
encarnado em corpos, como castigo, por algum pecado anterior, rejeitando a
concepção de Orígenes de que o mundo sensível dos corpos foi criado, como
um lugar de castigo, para as almas que haviam pecado antes de sua encarnação
nos corpos. Ridiculariza a ideia de que o tamanho do corpo seja supostamente
proporcional à gravidade do pecado12. Contudo, o nosso autor considera que
entender a união da alma incorpórea com o corpo não é fácil. Numa de suas
epístolas, salienta que é mais fácil crer que o Verbo se uniu com uma alma
humana que crer que uma alma humana está unida a um corpo13. Poderíamos
aqui abordar as questões sobre a incorporeidade, a origem, a mutabilidade, a
posição, a transmigração, o número e o destino da alma, todavia, fugiríamos
de nosso escopo, o qual é nos concentrar nas atividades ou graus de progresso
da alma, conforme nos apresenta determinado capítulo da obra De quantitate
animae, da qual trataremos a seguir.

O diálogo de quantitate animae


O De quantitate animae foi escrito em Roma, após o batismo de
Agostinho, provavelmente no ano 388. As correspondências entre os anos
de 414 e 415 com Evódio14 indicam que o diálogo se baseia em conversas
ocorridas entre Agostinho e seu amigo Evódio. Tratando da potencialidade
da alma, o autor traz destaque especial ao conhecimento sensível, como ao
inteligível em si, respondendo às indagações feitas e que deram origem ao
livro. O diálogo começa com seis questões, colocadas por Evódio, a saber: a
origem da alma, sua qualidade, sua magnitude, a razão para sua união com o

9
De moribus 1.4.6.
10
Confessiones 10.9.6.
11
Joannis evangellium tractatus. 19.5.15.
12
Contra priscillianistas. 8.9.
13
Epistula 173.3.
14
Evódio foi amigo de Agostinho, conviveu com ele e participou de alguns diálogos, tornando-se bispo
de Uzala, pequena cidade perto de Cartago.

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corpo, o resultado dessa união, e o resultado de sua separação do corpo15. As


duas primeiras questões são tratadas, brevemente, nos parágrafos iniciais, e as
três últimas, unicamente, no parágrafo final. Destarte, a maior parte da obra é
dedicada à questão sobre a magnitude da alma16, que é, justamente, a questão
que intitula o diálogo, pois a finalidade do mesmo, como atesta Agostinho,
consiste em mostrar que a alma “[...] não tem quantidade corporal, mas que é,
contudo, uma coisa grande17.
Segundo Teske (2001, p. 54), a Evódio, que sustentava parecer que
a alma não é nada, se não tem dimensões corporais, uma opinião parecida
com a própria opinião de Agostinho, antes de ter contato com os livros dos
platônicos18, o filósofo africano procura mostrar que a alma não é algo que,
simplesmente, não é nada, mas é, inclusive, mais valiosa por carecer de tais
propriedades19. Baseando-se no conhecimento que a alma tem das formas
geométricas, Agostinho argumenta que a alma tem que ser não-corpórea,
definindo-a com uma linguagem extremamente platônica, como “[...] certa
substância que é partícipe da razão adequada para governar o corpo”20. Quando
Evódio pergunta por que a alma não trouxe consigo alguma arte ao corpo,
Agostinho afirma que, em sua própria opinião, a alma trouxe consigo todas as
artes, e aquilo que nós chamamos aprender é, simplesmente, um recordar21.
O fato de que a alma tenha sensações através de todo o corpo conduz a uma
definição da sensação a qual lembra a de Plotino: “[...] uma mudança corporal
que, por si mesma, não escapa da consciência da alma”22. Em relação à mente,
15
De quantitate animae 1.1.
16
De quantitate animae 3.4-36.80. “La ‘grandezza’ dell’anima è, secondo Agostino, di ordine diverso da
quella corpórea. L’anima è essenzialmente animus, cioè ragione e pensiero, autocoscienza, e ciò la mette
su um piano assolutamente diverso da quello dei corpi e delle grandezze fisiche, che non conoscono
se stesse, ma sono conosciute dall’anima. Ciò riguarda in primo luogo la sensazione, e dunque anche
gli animali: come insegna Plotino, la stessa sensazione è possibile perché v’è,nel senziente, una facoltà
attiva ed indipendente dal sentito. A maggior ragione riguarda però la conoscenza scientifica, la quale
trascende di gran lunga il dato sesibile – come è evidente nelle scienze geometriche e matematiche,
nonché nele arti e in tutte le discipline liberali. La ‘grandezza’ dell’anima appare poi ad Agostino nel
campo morale e mistico, come capacità di trascendere il mondo dei corpi attraverso le affermazioni di
valori e nello slancio verso l’assoluto. È l’assenza di questa dimensione che ha impedito ai materialisti,
antichi e moderni, di comprendere la realtà dell’anima” (VANNINI, 1989, p.73).
17
Retractationes 1.7.1.
18
Confessiones 7.1.1.
19
De quantitate animae 3.4.
20
De quantitate animae 13.22.
21
De quantitate animae 20.34.
22
De quantitate animae 25.48.

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o filósofo africano define a razão como “olhar da mente”, e o raciocínio é a


investigação da mente, ou seja, “[...] o movimento do olhar da mente, para o
que é preciso olhar”23.
Ao tratar dos graus de ascensão da alma, Agostinho apresenta as ações
em que a alma se purifica moralmente, preparando-se para olhar a verdade e,
por último, contemplá-la. Teske (2001, p.54) enfatiza que, em conexão com o
último nível ou grau da alma, Agostinho menciona, pela primeira vez nos seus
escritos, a ressurreição do corpo24. O filósofo africano sustenta que, embora a
alma não seja o que Deus é, não existe nada que se aproxime mais a Deus do
que a alma humana: na verdade, a alma é igual a um anjo25.
Nosso estudo se concentrará no capítulo 33 da obra De quantitate
animae, onde o bispo de Hipona apresenta sete níveis ou graus da magnitude
da alma, que manifestam suas atividades. Indicaremos as expressões latinas
que, nomeadas por Agostinho, resumem a atividade da alma em cada um
dos sete graus. “Assim, indo de baixo para cima, o primeiro grau, por uma
técnica pedagógica, é a animação (animatio); o segundo, a sensação (sensus);
o terceiro, a arte (ars); o quarto, a virtude (virtus); o quinto, a tranqüilidade
(tranquillitas); o sexto, o ingresso (ingressio); o sétimo, a contemplação
(contemplatio)” (AGOSTINHO, 2012, p. 348)26.

Primeiro grau: a alma anima o corpo (animatio)


Ao iniciar o capítulo 33 do De quantitate animae, o autor avisa que
tratará apenas da alma humana e nos lembra que esta é a única de que
devemos cuidar, assim como devemos cuidar de nós mesmos. A primeira ação
da alma é atuar com o corpo, tendo em vista o primeiro grau, em que se
entende a alma como princípio vivificante do corpo, ao qual confere unidade,
harmonia e proporção27. A alma anima o corpo. Não se pode pensar em corpo
vivificado ou propriamente em animação ou vida, sem admitir um elemento
ou dimensão que a tradição chama de alma (anima):

23
De quantitate animae 27.33.
24
De quantitate animae 33.76.
25
De quantitate animae 34.77.78.
26
“Ascendentibus igitur sursum versus, primus actus, docendi causa, dicatur animatio; secundus,
sensus; tertius, ars; quartus, virtus; quintus, tranquillitas; sextus, ingressio; septimus, contemplatio”
(De quantitate animae 35.79).
27
De quantitate animae 33.70.

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Contudo, permite-me que te cerceie a grandíssima e infinita esperança, para


não pensares que falarei de todas as almas, mas falarei apenas da humana,
a única de que devemos cuidar, se cuidarmos de nós mesmos. Por isso,
primeiramente, o que qualquer pessoa pode compreender: a alma humana
dá vida a este corpo terreno e mortal com sua presença, dá-lhe unidade e o
conserva na unidade, não lhe permite desagregar-se e diluir-se, faz com que
o alimento se distribua de modo uniforme a todos os membros, fornece
a cada um o que é seu, preserva sua harmonia e proporção, não somente
quanto à beleza, mas também quanto ao crescimento e à procriação.
(AGOSTINHO, 2012, p. 339)28.

Antes de investigar sobre o que é a alma, precisamos perguntar:


o que é o homem? O homem é um composto de alma e corpo, mas, de
imediato, Agostinho se questiona sobre qual de ambas as substâncias constitui
primordialmente o homem total. A sua resposta é em favor da alma que guia o
corpo, como o cavalheiro dirige a sua cavalaria29. E assim define a alma como
uma substância racional feita para dirigir um corpo30; como também uma
substância racional que se serve de um corpo mortal e terreno31.
Quando Agostinho questiona se a alma é quantidade, ele não se refere
à sua latitude ou longitude, mas à sua potência, e a sua resposta é uma sutil
descrição da ascensão da alma até a contemplação, porém, através de cada
um dos graus, encontramos o conteúdo essencial e todo o seu pensamento.
Nesse sentido, deve-se dizer que a alma se opõe ao corpo, enquanto todo
corpo é algo extenso, largo ou alto32. Todo o corpo, por ter longitude, latitude
e profundidade, é extenso, porém, isso não pertence à alma; todavia, não
significa que a alma, por carecer de extensão, não seja uma coisa: assim como
não se pode pensar na justiça como algo largo ou alto, da mesma forma, a

28
“In primis tamen tibi amputem latissimam quamdam et infinitam exspectationem, ne me de omni
anima dicturum putes, sed tantum de humana, quam solam curare debemus, si nobismetipsis curae sumus.
Haec igitur primo, quod cuivis animadvertere facile est, corpus hoc terrenum atque mortale praesentia sua
vivificat; colligit in unum, atque in uno tenet, diffluere atque contabescere non sinit; alimenta per membra
aequaliter, suis cuique redditis, distribui facit; congruentiam eius modumque conservat, non tantum in
pulchritudine, sed etiam in crescendo atque gignendo” De quantitate animae 33.70.
29
De moribus ecclesiae catolicae 1.4.6
30
De quantitate animae 12,22.
31
“Homo igitur ut homini apparet, anima rationalis est mortali atque terreno utens corpore” De
moribus ecclesiae catolicae 1.27.52.
32
De quantitate animae 3.4.

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alma deve ser pensada fora de toda extensão33. Por sua relação com o corpo,
tendemos a considerá-la semelhante a ele, embora não seja, necessariamente,
corpo aquilo que tenha aparência de um corpo, como é o caso, por exemplo,
de nossos sonhos, nos quais vemos uma semelhança completa de nosso corpo,
mas que, na verdade, não é corpo, não tem extensão, pois se trata apenas da
alma, que imagina e retém na memória.
O autor africano entende que a alma, sendo superior à linha, é
necessário que seja inespacial, deve ser motor do corpo em sentido platônico,
motor de todas as partes, não somente enquanto as vivifica, mas também
de todas as suas ações34. A alma confere a vida (animatio), de sorte que esta
simples e primeira animação do corpo é o primeiro grau onde colocamos
nossos pés para ascender até a verdade. A alma anima as vísceras do corpo,
considerando que os órgãos não podem viver sem ela, e, assim, a alma os
vivifica, ainda que não possa conhecê-los com facilidade. Na verdade, a alma
só pode verdadeiramente conhecer a si mesma, porque não há nada mais
presente na alma que ela mesma, embora esse conhecimento seja muitas vezes
diminuído por sua familiaridade com as coisas corpóreas35. Para conhecer-se, a
alma há de buscar algo mais íntimo que o sensível e, diante da intuição de sua
própria presença, sabe que existe e se sabe que existe, vive. Por conseguinte, a
alma sabe certamente que existe, vive e entende36. A alma, pois, vivifica, anima
o corpo e, portanto, o homem é um composto de alma vivificante e corpo,
entretanto, com predomínio da alma, como se fosse um cavaleiro com respeito
à cavalaria37. Há sempre um predomínio da alma, que é o homem interior,
sobre o corpo, que é o homem exterior38.
A alma se encontra em todo o corpo que anima e se acha difundida, não
por difusão local, mas como atividade vivificante, de tal modo que está presente
toda inteira e, simultaneamente, em todas e cada uma das partes do corpo. De
fato, ela está “[...] toda inteira no todo, e toda inteira em cada parte”39. A alma
cresce com o tempo, não no sentido físico quantitativo, simultâneo e paralelo com
o crescimento do corpo; uma vez que, assim como entre as figuras geométricas
33
De quantitate animae 4.5.
34
De quantitate animae 14.23.
35
De trinitate 10.8.11.
36
De trinitate 10.10.13.
37
De moribus ecclesia catholica 1.4.6.
38
De civitate dei 13.24.2.
39
Epistula 166 2.4.

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era o círculo a mais perfeita, a virtude é um resultado do progresso da alma, é


certa harmonia que supera as demais afeições da alma. Logo, a alma progride,
não como o corpo, mas por esta harmonia que a faz melhor40. Evidentemente,
a alma não progride em extensão, de forma que, como o ponto é mais perfeito
e, contudo, não tem extensão, da mesma forma a alma progride em relação à
sua potência41, progride enquanto possui uma maior força para obrar42. A alma,
da mesma maneira como pode tender ao necessário, também pode tender ao
supérfluo e ainda retroceder, deleitando-se nos sentidos e, embora pareça que
está crescendo, não faz mais que consumir-se43.
O que se referiu à alma, nesse primeiro grau pode, ser entendido como
coisas comuns aos homens e as plantas, visto que vemos e sabemos que as
espécies vegetais conservam suas estruturas, também se alimentam e reproduzem
a sua espécie. O ser humano, antes de tudo, realiza aquilo que é próprio da sua
espécie, ou melhor, da sua natureza; ele é imagem de Deus (imago dei)44, mas
é a natureza decaída pelo pecado original45. A função vegetativa, assim como a
função sensitiva, a qual passaremos a estudar no próximo grau, são atividades
da alma comuns a outros tipos de alma, como a animação dos demais animais
e o movimento das plantas. “Mas todas estas funções podem ser consideradas
comuns ao homem a às plantas; pois dizíamos que elas também vivem, visto que
vemos e reconhecemos que cada uma na sua espécie se preserva, se alimenta,
cresce e se reproduz” (AGOSTINHO, 2012, p.339)46.

Segundo grau: a alma sente por meio dos sentidos (sensus)


A sensação é uma atividade exercida pela alma, através do corpo. O
conhecimento sensitivo das cores, dos odores, dos sons, dos sabores e do tato é

40
De quantitate animae 16.28.
41
De quantitate animae 17.30.
42
De quantitate animae 19.33.
43
De quantitate animae 19.33.
44
A doutrina da imago dei Agostinho retirou da Sagrada Escritura (Gênesis 1,26), segundo a qual
o homem e a mulher foram criados à imagem de Deus, em que essa imagem se refere à alma. Entre
outros escritos, o De trinitate é a maior referência.
45
A doutrina do pecado original é a crença no pecado herdado de Adão, o primeiro homem, que se
propagou por toda a humanidade, gerando consequências negativas tanto no corpo como na alma.
46
“Sed haec etiam homini cum arbustis communia videri queunt: haec enim etiam dicimus vivere, in
suo vero quidque illorum genere custodiri, ali, crescere, gignere videmus atque fatemur” (De quantitate
animae 33.70).

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obtido pelos sentidos, os quais não são, todavia, a sua causa principal, porque
o sentir não é do corpo, mas da alma por meio do corpo. Agostinho nos
convida a subir ao segundo grau de elevação da alma e contemplar o quanto
pode esta, por meio dos sentidos. A alma é superior, tem poder sobre o corpo,
porém é, pelos sentidos corpóreos, que exerce a sua a atividade de conhecer.
Sobe mais um grau e observa o poder da alma nos sentidos, nos quais
a vida se mostra mais patente e manifesta [...] A alma se aplica ao tato
e por ele sente e distingue o que é frio, áspero, liso, duro, leve, pesado.
Além disso, discerne pelo paladar, pelo olfato, pela audição e pela visão as
inúmeras diferenças de sabores, de odores, de sons, de formas. Em todas
essas operações aceita e apetece o que for adequado à natureza de seu corpo;
rejeita e evita o que é contrário. Retira-se dos sentidos por certo intervalo
de tempo e, refazendo a atuação deles, como que tirando férias, resolve
consigo atropelada e repetidamente as imagens das coisas que observou por
meio deles. (AGOSTINHO, 2012, p.340)47.

Nessa atividade da alma, ainda estamos no mesmo nível dos animais,


e este se reduz ao estudo da sensação. Da simples comprovação da existência
dos sentidos exteriores, passamos a investigar sobre o que é a sensação em si
mesma. Primeiramente, Agostinho define a sensação como “[...] a percepção
pela alma do que sofre o corpo” (AGOSTINHO, 2012, p.305)48. Porém, o
fato mesmo de sentir a sensação não é próprio do corpo, mas da alma. É a
alma quem sente49, mas ela somente opera por meio dos sentidos50. O bispo
de Hipona lembra que, ao olharmos algo, vemos o que avistamos, no entanto,
não estamos no que vemos, vemos ali onde não estamos, pois, se assim não
fosse, veríamos a nós mesmos. Portanto, é necessário que tenhamos a sensação
daquele lugar onde não estamos51. A alma é quem, primordialmente, sente.

47
“ Ascende itaque alterum gradum, et vide quid possit anima in sensibus, ubi evidentior manifestiorque
vita intellegitur. [...] Intendit se anima in tactum, et eo calida, frigida, aspera, lenia, dura, mollia,
levia, gravia sentit atque discernit. Deinde innumerabiles differentias saporum, odorum, sonorum,
formarum, gustando, olfaciendo, audiendo videndoque diiudicat. Atque in iis omnibus ea quae
secundum naturam sui corporis sunt, adsciscit atque appetit; reiicit fugitque contraria. Removet se ab
his sensibus certo intervallo temporum, et eorum motus quasi per quasdam ferias reparans, imagines
rerum quas per eos hausit, secum catervatim et multipliciter versat” (De quantitate animae 33.71).
48
“[...] nam sensum puto esse, non latere animam quod patitur corpus” (De quantitate animae 23.41).
49
De genesi ad litteram 3.5.7.
50
De genesi ad litteram 3.4.6.
51
De quantitate animae 23.43.

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Strefling, S. R.

O autor africano não se contenta com essa primeira definição de


sensação e faz-nos notar que não é a mesma coisa o sentir e o conhecer, porque
podemos sentir a fumaça e por esta conhecer o fogo que ainda não vemos.
Nesse sentido, o fumo produz sensação, já que faz sofrer os olhos, e o fogo
produz um conhecimento que não é sensação, porque não impressiona ao
corpo52. Além disso, a alma recebe muitas outras modificações do corpo, como
quando este envelhece, impressões que não obtém por algum sentido53.
Faz-se mister melhorar a definição anterior, porque não é possível
a sensação, se a paixão do corpo não chega à alma54. A definição anterior
compreende algo em sua extensão que não é sensação; poderia dizer-se que a
paixão do corpo é conhecida em si mesma pela alma55; mas ainda essa definição
não é satisfatória, uma vez que, se é verdade que toda paixão do corpo conhecida
pela alma é sensação, não toda a sensação é conhecida, mais exatamente, a
sensação é um ato de atenção da alma sobre uma modificação do corpo56; mas
é, de certo modo, paixão, enquanto também é ação que exerce sobre si mesma.
Agostinho, em um sermão, afirma que os sentidos são como janelas do templo
da alma e nada mais que isso57. A sensação é, primordialmente, ação da alma.
Por outro lado, nós podemos distinguir claramente o objeto de cada sentido
em particular e o objeto comum de todos eles; isso pertence propriamente a
certa faculdade denominada sentido interno (interiorem sensum), em oposição
ao sentido exterior, o qual recebe tudo aquilo que é transmitido pelos cinco
sentidos exteriores e discerne o útil do nocivo58.
De acordo com Gilson (1943, p.124), os sensíveis contêm em si
a causa da sensação, entretanto, não a sentem em nenhum grau; de modo
inverso, a sensação pertencerá totalmente à alma, sem que, de modo algum,
o corpo sinta. Essa distinção radical levantou um problema cuja discussão
irá reter longamente a atenção de Agostinho e cuja solução exercerá uma
influência profunda sobre a história do pensamento ocidental. No universo
hierarquizado do autor africano, todos os seres, necessariamente, são superiores
ou inferiores uns aos outros, unicamente pelo fato de serem diferentes, por
52
De quantitate animae 24.45.
53
De quantitate animae 24,46.
54
De quantitate animae 24.46.
55
De quantitate animae 25,48.
56
De musica 6.5.9.
57
Sermo 65.4.5.
58
De libero arbitrio 2.3.8.

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conseguinte, fica óbvio como um princípio primeiro que o inferior não pode
agir sobre o superior. Isso significa que temos aqui um problema na ordem
do conhecimento, em que se entende que as realidades puramente espirituais
dependem de estados orgânicos, a saber, de realidades corporais.

Terceiro grau: a alma raciocina e produz (ars)


A capacidade de a alma produzir e fazer ciência corresponde ao terceiro
grau, onde adentramos no domínio próprio da pessoa humana, no mundo das
coisas adquiridas pela observação e conservadas pela memória. As artes liberais
devem ser um exercício da alma (exercitatio animae), pelo qual muitas pessoas
escolhidas alcançam a visão de Deus. O processo de passar do corpóreo ao
incorpóreo foi esboçado no De ordine, mas é somente na obra De musica que
Agostinho trata integralmente esse tema. Todavia, aqui vamos nos deter no
que ressalta o bispo de Hipona, na obra de que estamos a tratar.
Ergue-te, agora, ao terceiro grau, o qual é próprio do ser humano, e pensa
na memória das inumeráveis coisas, das inveteradas pelo hábito, mas
gravadas e retidas pela reflexão e pelos sinais, em tantas obras de artistas,
no cultivo dos campos, na construção de cidades, nas variadas maravilhas
de inúmeros edifícios e monumentos, na descoberta de tantos sinais nas
letras [...] em tantas coisas novas, em tantas restauradas [...] no poder do
raciocínio e da investigação [...] na perícia da arte musical, na precisão das
medidas, na ciência dos cálculos, na interpretação do passado e do futuro
pelo presente. São grandes essas realidades e exclusivamente humanas. Mas
ainda são comuns a doutos e rudes, a bons e maus. (AGOSTINHO,
2012, p. 341)59.

Os dois primeiros graus (animatio e sensus) são comuns ao homem e aos


animais, mas só o homem possui o terceiro (ars). Sabemos que existe o sentido
interior, graças a outra faculdade mais alta que é a razão, a qual transmite tudo

59
”Ergo attollere in tertium gradum, qui iam est homini proprius, et cogita memoriam non consuetudine
inolitarum, sed animadversione atque signis commendatarum ac retentarum rerum innumerabilium,
tot artes opificum, agrorum cultus, exstructiones urbium, variorum aedificiorum ac moliminum
multimoda miracula; inventiones tot signorum in litteris, in verbis, in gestu, in cuiuscemodi sono, in
picturis atque figmentis; tot gentium linguas, tot instituta, tot nova, tot instaurata [...] vim ratiocinandi
et excogitandi,[...] modulandi peritiam, dimetiendi subtilitatem, numerandi disciplinam, praeteritorum
ac futurorum ex praesentibus coniecturam. Magna haec et omnino humana. Sed est adhuc ista partim
doctis atque indoctis, partim bonis ac malis animis copia communis” (De quantitate animae 33.73).

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que advém dos sentidos externos60. Somente a razão nos permite discernir
todos esses dados61. No De quantitate animae, Agostinho afirma que a razão
julga ao sentido interior, assim como este supera e julga ao sentido exterior. Tal
faculdade é o olho vigilante da alma, de sorte que passar mais além dela seria
sobrepassar ao homem mesmo. A razão é certa olhada ou visão da inteligência
(mentis aspectus) e sua missão é ver.
A razão, enquanto passa de um conhecimento a outro, do conhecido
ao menos conhecido, ou seja, quando não é outra coisa que a investigação
intelectual (rationis inquisitio), se denomina raciocínio e sua missão é
unicamente investigar; quando o apetite da mente, isto é, a razão vê uma
coisa, tem a ciência. Desse modo, uma coisa é a ciência e outra a razão,
assim como está evidente que são duas coisas distintas: a visão e o olhar62.
A razão existe tendo em vista a ciência e não o contrário, por conseguinte, a
ciência é mais excelente do que a razão. É verdade que muitos animais têm os
sentidos melhores que os homens, porém, Deus nos colocou acima de todos
os animais, dando-nos a mente, a razão e a ciência63. A mente (mens) é a
parte mais elevada de nossa alma e a razão (ratio) é a faculdade discursiva feita
para julgar do sentido interior e, através dele, de todos os sensíveis. A ciência
(scientia), que resulta da razão, é um saber a respeito das coisas sensíveis e que,
no De quantitate animae, recebe o nome de ars. O significado desse nome (ars)
nos leva a pensar em regras que servem para fazer uma coisa. A alma, nesse
grau, revela sua capacidade e habilidade para a produção.
A alma, pela razão e pela ciência, tende a desligar-se dos sentidos do
corpo, uma vez que ambas são superiores aos sentidos. A alma, nesse estágio,
começa a saborear o prazer interior. Do contrário, se a alma se inclina aos
sentidos, ela trai a sua própria natureza e torna o homem semelhante aos
animais irracionais.
Kenny (2008, p.245-246) salienta que Agostinho, ordinariamente,
menciona em seus escritos a ideia de “homem interior” e “homem exterior”,
todavia, isso não deve ser confundido com a distinção entre alma e corpo.
Não só o corpo, como também certos aspectos de nossa alma, pertencem ao
homem exterior, considerando que nossos sentidos e nossa memória sensorial

60
De libero arbitrio 2.3.8.
61
De libero arbitrio 2.3.9.
62
De quantitate animae 27.53.
63
De quantitate animae 28.54.

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Os sete graus de atividade da alma humana Artigos / Articles

constituem algo que nos assemelha aos animais irracionais. A nossa mente, o
homem interior é a nossa melhor parte, pois aí estão incluídas a memória e a
imaginação, assim como o juízo racional e a especulação intelectual.

Quarto grau: a alma purifica-se e se aperfeiçoa (virtus)


Este quarto grau de atividade da alma caracteriza aquilo que é próprio
do homem, ou seja, o ser humano capaz de ser virtuoso, isto é, possui a
capacidade para elevar-se, de acordo com a sua natureza. Evidentemente,
devemos entender isso a partir da antropologia agostiniana, a saber, o homem
é imagem de Deus (imago dei). Portanto, a sua realização só pode acontecer
na medida em que a alma se esforce para ser a imagem que é, e não, outra
coisa. A virtude é o meio pelo qual a ordem se estabelece nas ações humanas,
dirigindo-as para a sua meta final apropriada. Isso se realiza, na opinião de
Agostinho, mediante o uso disciplinado da razão.
A razão perfeita do homem, que é denominada virtude, se utiliza antes de
tudo a si mesma, para entender a Deus, a fim de poder desfrutar d’Aquele
por quem foi criada. Para Agostinho, a virtude é a essência mesma da vida
cristã, e proporciona uma clara visão do fim que pretende alcançar e dos
meios para alcançá-lo. Deus é amor e criou no amor; a alma cristã regressa a
Deus por meio da virtude, porque a virtude é a “ordem do amor”64. Sendo
assim, é pois necessário para que a alma busque aperfeiçoar-se, que ela se
eleve e não se incline para os sentidos, que saiba usá-los, sem entregar-se a
eles. A alma deve voltar-se sobre si mesma, recolher-se dentro de si e elevar-
se, morrer para o exterior, mas renascer para Deus, isto significa destruir o
homem velho e converter-se ao novo, tudo isto não é outra coisa, senão um
de nós, restituir-se, regenerar-se e voltar-se para Deus65.

No De quantitate animae, nosso autor salienta que, para nos convertemos,


que significa vestir-nos do homem novo, morrermos ao exterior e renascermos
para Deus, é absolutamente necessário reintegrar em nós a imagem divina,
quer dizer, transformar-nos em sua imagem, tesouro que Ele mesmo nos
deu, para que guardássemos, quando nos deu o ser. Por consequência, nada
devemos amar tanto como essa imagem, que não seja Deus mesmo. Esse
trabalho é difícil e cheio de interrupções, de modo que a alma não pode por
seus próprios meios realizá-lo, se não for ajudada por Aquele a quem quer dar-
64
“Virtus ordo amoris” (De civitate dei 15.22).
65
De quantitate animae 28.55.

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se66. Na medida em que a alma dá esse passo, buscando elevar-se, começa a


ter mérito, a vontade humana toma impulso dirigido pelo amor e então ama o
que deve amar. Não existe virtude sem o amor que possibilita o cumprimento
das leis divinas. O amor não tem medidas. Se amamos, podemos fazer o que
queremos, pois não haveremos de querer senão aquilo que Deus quer (ama et
quod vis fac)67. A alma, nesse estado, começa a antepor-se a seu corpo, regido
por ela, e ao universo mesmo, começando a considerar os bens do universo
como não seus e aprendendo a contemplar a própria beleza da imagem que é
ela mesma. Observemos Agostinho:
Portanto, passa e salta para o quarto grau, no qual começam a bondade
e todo louvor verdadeiro. Eis por que a alma se atreve a se antepor não
somente a seu corpo, se ele considera se uma parte do universo, mas
também ao próprio universo, a não considerar os bens do universo como
seus, a discernir e desprezá-los ao compará-los ao seu poder e à sua beleza.
Daí que, quanto mais se compraz em seus bens, mais se distancia das
imundícies e se purifica toda e se torna cada vez mais pura e ataviada;
fortifica-se contra todas as adversidades que intentam demovê-la de seu
alvo e de seus projetos; mostra grande apreço pela sociedade humana
e nada quer que aconteça ao outro do que não quer para si; obedece à
autoridade e aos preceitos dos sábios e acredita que Deus lhe fala por
meio deles.[...] Contudo a alma é tão grande que pode levar avante essas
medidas com a ajuda da justiça do sumo e verdadeiro Deus, com a qual
ele conserva e governa este mundo. Com a mesma justiça faz também
com que não somente existam as coisas, mas existam de tal modo que não
pode haver nada melhor. A ele a alma se entrega com piedade e confiança
para ser ajudada e aperfeiçoada nessa tão difícil tarefa de sua purificação.
(AGOSTINHO, 2012, p. 341-342)68.

66
De quantitate animae 28.55.
67
In epistolae Joannis 7.8.
68
“Suspice igitur atque insili quarto gradui, ex quo bonitas incipit, atque omnis vera laudatio. Hinc
enim anima se non solum suo, si quam universi partem agit, sed ipsi etiam universo corpori audet
praeponere, bonaque eius bona sua non putare, atque potentiae pulchritudinique suae comparata
discernere atque contemnere: et inde quo magis se delectat, eo magis sese abstrahere a sordibus,
totamque emaculare ac mundissimam reddere et comptissimam; roborare se adversus omnia, quae
de proposito ac sententia dimovere moliuntur; societatem humanam magni pendere, nihilque velle
alteri quod sibi nolit accidere; sequi auctoritatem ac praecepta sapientium, et per haec loqui sibi Deum
credere. [...] Tanta est tamen anima, ut etiam hoc possit adiuvante sane iustitia summi et veri Dei, qua
haec universitas sustentatur et regitur; qua etiam factum est, ut non modo sint omnia, sed ita sint,
ut omnino melius esse non possint. Cui sese in opere tam difficili mundationis suae adiuvandam et
perficiendam piissime tutissimeque committit” (De quantitate animae 33.73).

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Nesse quarto nível, a atividade da alma é tender para aquele que ela ama,
para alcançá-lo e nele repousar. Enquanto as coisas do mundo a inferiorizam,
a alma tende a elevar-se, transcende a si mesma, ou seja, transcende a todo
o homem e, como não existe nada acima da alma que seja mais excelente, a
não ser Deus, em Deus se deleita e encontra aquele descanso tão desejado. No
entanto, nesse grau em que se encontra a alma, exige-se muito esforço, trata-se
de combater os falsos bens deste mundo, às vezes misturados com o medo da
morte, porque a alma percebe, sempre mais, a diferença entre ela mesma, a vida
manchada pelo pecado e a vida repleta da graça, a qual é a desejada por Deus.
Nesta tão brilhante atuação da alma, é preciso considerar o trabalho e o
grande conflito contra as adversidades e as seduções deste mundo. Nesse
mesmo afã de purificação resta ainda o temor da morte. Não é grande
quando se acredita firmemente que tudo é governado pela inefável
providência e justiça de Deus, e que a ninguém a morte pode acontecer
injustamente, ainda que a possa provocar um criminoso. (AGOSTINHO,
2012, p. 342)69.

Gilson (1943, p.243) enfatiza que é somente no quarto grau que


começa o verdadeiro bem e, consequentemente, também o mérito verdadeiro.
Aqui, por uma decisão que introduz a alma na sabedoria, faz-se com que a
mesma se distancie do baixo, para se voltar para o alto. O homem realiza a
conversão de sua alma para Deus, onde se submete à sabedoria, ordenando
o pensamento para seu fim e, dessa forma, confere às suas ações o caráter de
moralidade. Quando se coloca em seu lugar, o pensamento sabe como dispor
todas as coisas no lugar que lhe pertence e de que maneira se comportar com
relação a elas. O primeiro efeito desse desenvolvimento inicial é que, a partir
de então, submetido à ação reguladora das ideias, o pensamento julga tudo,
segundo a vontade divina.

Quinto grau: a alma adquire tranquilidade (tranquillitas)


O quinto grau é aquele em que, tendo o homem realizado a conversão
decisiva da alma para Deus, não lhe resta mais do que se manter no estado de
pureza, ao qual chegou e que lhe garante a tranquilidade. A alma adquire uma
determinada paz, torna-se transparente como o cristal e pronta para prosseguir
seu voo até a verdade plena, a beatitude. As obras que no grau anterior lhe

69
De quantitate animae 33.73.

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conferiram essa paz relativa, pela purificação, fizeram compreender melhor a


sua verdadeira grandeza.
Segundo Agostinho, livre a alma de toda mancha, alegra-se em si
mesma e nada teme por si, nem tão pouco se angustia por alguma coisa. Antes,
procurava a pureza, agora a tem; antes, desenvolvia uma ação para purificar-
se, agora procura não manchar-se novamente. Estando nesse estado de paz e
fortaleza, a alma conhece a sua verdadeira grandeza e, por isso, se dirige a Deus
com absoluta confiança.
Quando a alma se libertar de toda imperfeição e estiver limpa de todas
as manchas, então, finalmente, se mantém alegremente em si mesma e
nada teme absolutamente para si e não se angustia por nenhum motivo.
Portanto, este é o quinto grau. Uma coisa, porém, é realizar a purificação,
e outra, manter-se na pureza; e uma é a ação com a qual se renova,
estando manchada, e outra, a ação pela qual não consente em se manchar
novamente. Neste grau ela percebe sob todos os aspectos o quanto é
grande. Quando a percebe, então se dirige para Deus com confiança de
certo modo imensa e incrível, ou seja, para a contemplação da verdade
e para aquele altíssimo e deveras misterioso prêmio pelo qual tanto se
esforçou. (AGOSTINHO, 2012, p. 343)70.

Nesse grau, a alma tende para Deus, ou seja, para a contemplação da


verdade, com uma confiança inacreditável e, sentindo-se próxima da recompensa
alta e profunda pela qual tanto se esforçou, encontra a tranquilidade. Isso é
possível, porque a alma não está agora impedida pelos apetites desordenados;
a parte superior da alma está assim sossegada e é, por conseguinte, quando
empreende seu encaminhamento para a união com Deus.

Sexto grau: a alma conduz à retidão (ingressio)


Neste sexto grau, a alma dirige seu olhar para Deus e tem sua entrada
na luz, que somente os corações puros podem contemplar. Esse ingresso é um
grau intermediário e, embora esteja próximo do fim desejado, contudo, ainda
70
“Quod cum effectum erit, id est, cum fuerit ab omni tabe anima libera maculisque diluta, tum se
denique in seipsa laetissime tenet, nec omnino aliquid metuit sibi aut ulla sua causa quidquam angitur.
Est ergo iste quintus gradus: aliud est enim efficere, aliud tenere puritatem; et alia prorsus actio qua
se inquinatam redintegrat, alia qua non patitur se rursus inquinari. In hoc gradu omnifariam concipit
quanta sit: quod cum conceperit, tunc vero ingenti quadam et incredibili fiducia pergit in Deum, id
est, in ipsam contemplationem veritatis, et illud, propter quod tantum laboratum est, altissimum et
secretissimum praemium” (De quantitate animae 33.74).

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não atinge a paz plena. Todavia, sente agora o ardente desejo de entender
aquilo que é o grau mais excelente e verdadeiro. Este é o grande aspecto da
alma que não reconhece nada melhor.
Mas esta ação, ou seja, o desejo de entender o que é verdadeiro e sumo,
é o mais sublime olhar da alma; não há outro mais perfeito, melhor e
mais virtuoso. Portanto, este será o sexto grau, pois uma coisa é purificar
o próprio olhar da alma para que não olhe inútil e temerariamente e
enxergue o mal, outra coisa é preservar e fortalecer sua saúde, e outra
coisa ainda é dirigir o olhar sereno e firme ao que pode ser visto. [...]
Com efeito, conforme creio, é reto o Espírito que possibilita à alma não
se deixar desviar nem errar na procura da verdade. Ele, sem dúvida, não
se renova na verdade, se antes não purificar o coração, ou seja, se antes o
pensamento não se reprimir de toda paixão e sordidez e delas se purificar.
(AGOSTINHO, 2012, p. 344)71.

No quarto grau, purificamos a alma, para afastá-la do mal; no quinto


grau, a alma possui a pureza, conservando-a e fortalecendo-a para, então, neste
sexto grau, lançar-se sobre si e olhar com retidão e serenidade para aquele
que deseja ver. Esta é a via iluminada dos místicos, na qual a alma é assistida
sobrenaturalmente pelo Espírito Santo e, segundo a advertência de Agostinho,
é preciso ter a alma limpa, pois, do contrário, se correria o perigo de não
encontrar nem o bem, nem a verdade. Determina assim claramente o esforço
necessário para contemplar a verdade bem-aventurada e desfrutá-la. Esta é a
beleza do ingresso em direção àquele que é belo por excelência.

Sétimo grau: a alma contempla a verdade (contemplatio)


O sétimo grau, na verdade, não existe, porque este não é transitório,
como os demais graus, mas é um certo ponto de chegada dos graus anteriores.
Este último grau é o fim desejado, é a meta para a qual o sexto grau (ingressio)
conduziu a alma, ou seja, a mansão celeste. Esse fim é Deus mesmo, a sabedoria

71
“Sed haec actio, id est, appetitio intellegendi ea quae vere summeque sunt, summus aspectus est
animae, quo perfectiorem, meliorem rectioremque non habet. Sextus ergo erit iste gradus actionis:
aliud est enim mundari oculum ipsum animae, ne frustra et temere aspiciat, et prave videat; aliud
ipsam custodire atque firmare sanitatem; aliud iam serenum atque rectum aspectum in id quod
videndum est, dirigere. [...]  Spiritus enim rectus est, credo, quo fit ut anima in veritate quaerenda
deviare atque errare non possit. Qui profecto in ea non instauratur, nisi prius cor mundum fuerit, hoc
est, nisi prius ipsa cogitatio ab omni cupiditate ac faece rerum mortalium sese cohibuerit et eliquaverit”
(De quantitate animae 33.75).

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e verdade plena. Não é mais o caminho para a verdade, mas é, de fato, a mesma
visão ou contemplação da verdade (ipsa visio atque contemplatio veritatis):
Na visão e contemplação da verdade, que é o sétimo e último grau da
alma, o qual não é certamente grau, mas certa mansão aonde se chega pelos
outros graus, como dizer qual seja a alegria, o gozo do sumo e verdadeiro
bem, de cuja serenidade e eternidade é o sopro? Algumas almas grandes e
incomparáveis falaram dessas coisas o quanto julgaram que deviam falar;
e nós cremos que as viram e as veem. (AGOSTINHO, 2012, p. 344)72.

Alcança-se aqui a causa suprema, o supremo autor, onde nossa alma


compreende que tudo o que nos circunda é vaidade das vaidades, um mundo
obscuro e carente do foco luminoso da alma.
Agora, atrevo-me a dizer isso claramente. Se nós nos mantivermos com
perseverança no caminho que Deus nos indica, o qual recebemos para
ele nos mantermos, chegaremos pela Virtude e Sabedoria de Deus àquela
suprema Causa, ou supremo Autor, ou supremo Princípio de todas as
coisas, ou denomine-se de outro modo com mais propriedade, a essa
realidade tão grande. Tendo compreendido isto, veremos em verdade
como é vaidade tudo o que há debaixo do sol. Com efeito, a vaidade é
ilusão, e por vaidosos se entendem os que são falsos ou enganadores, ou
ambas as coisas. (AGOSTINHO, 2012, p. 344)73.

A visão da alma que chega à contemplação possibilita distinguir que


as coisas que, neste mundo, conhecemos, ainda que sejam criadas por Deus,
não se comparam com as coisas eternas. As coisas criadas são belas, enquanto
participam da beleza do seu autor – e isso nos é revelado por seus vestígios
presentes nas coisas, de sorte que, na medida em que nos confundimos
com as coisas corpóreas, o próprio autor nos faz voltar para o interior pela

72
“Iamvero in ipsa visione atque contemplatione veritatis, qui septimus atque ultimus animae gradus
est; neque iam gradus, sed quaedam mansio, quo illis gradibus pervenitur; quae sint gaudia, quae
perfructio summi et veri boni, cuius serenitatis atque aeternitatis afflatus, quid ego dicam? Dixerunt
haec quantum dicenda esse iudicaverunt, magnae quaedam et incomparabiles animae, quas etiam
vidisse ac videre ista credimus” (De quantitate animae 33.76).
73
“Illud plane ego nunc audeo tibi dicere, nos si cursum quem nobis Deus imperat, et quem tenendum
suscepimus, constantissime tenuerimus, perventuros per Virtutem Dei atque Sapientiam ad summam
illam causam, vel summum auctorem, vel summum principium rerum omnium, vel si quo alio
modo res tanta congruentius appellari potest: quo intellecto, vere videbimus quam sint omnia sub
sole vanitas vanitantium. Vanitas enim est fallacia, vanitantes autem vel falsi, vel fallentes, vel utrique
intelleguntur” (De quantitate animae 33.76).

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contemplação da beleza dos objetos, a fim de buscar em nós as regras e, assim,


alcançarmos até a mesma visão da beleza imparticipada (em si mesma). A alma
sente tão grande alegria, contemplando a verdade, que, desde o seu ingresso
nesse estado de pureza e de verdadeira sabedoria, acreditará que nunca soube
nada sobre tudo, quando, presunçosamente, considerava possuir toda a
ciência. Nesse estágio a que a alma chegou, ela deseja a morte, para unir-se
integralmente a toda a verdade.
Mas é tão grande o prazer na contemplação da verdade, seja qual for o
aspecto sobre o qual cada um pode contemplar; é tanta a pureza, tanta
a sinceridade, tamanha fé inquebrantável nas coisas, que ninguém pense
ter conhecido algo depois disto, se lhe parecia saber. E para que a alma
toda não seja impedida de aderir a toda verdade, desejaria como a maior
recompensa a morte que antes temia, ou seja, a fuga e a evasão deste corpo.
(AGOSTINHO, 2012, p. 345)74.

Torchia (2001, p. 321) assevera que, na vida presente, a contemplação


deve ser entendida como a meditação das ideias que são expressões inteligíveis
da verdade, entretanto, é preciso distinguir entre esse modo imperfeito de
contemplação e a visão pura de Deus, sem impedimentos, reservada para a vida
futura. Na vida temporal, a alma apenas pode desfrutar de um conhecimento
esporádico do ser verdadeiro, considerando que ela faz isso com a mediação do
corpo. Nesse sentido, o bispo de Hipona descreve o ato da contemplação numa
linguagem apropriada para as experiências místicas, naqueles casos especiais, em
que a alma entra em união íntima e amorosa com Deus. Torchia (2001, p.321)
enfatiza que Agostinho, ao estudar a união mística, demonstra uma notória ênfase
racionalista. Quando ele fala de suas experiências em Milão e em Ostia, descreve
uma ascensão intelectual, desde as coisas mutáveis do mundo dos sentidos, até a
captação momentânea da realidade incorpórea e imutável. Por essa razão, seria
equivocado estabelecer uma separação radical, conforme Agostinho, entre a
contemplação e a mística. Ambas as aproximações entre a alma e Deus implicam
a concentração da alma em verdades superiores, sem recurso aos sentidos. No
entanto, enquanto a contemplação constitui a busca ativa de Deus por parte dos
homens, Deus nos concede, escassas vezes, uma experiência mística.

74
“Tanta autem in contemplanda veritate voluptas est, quantacumque ex parte eam quisque
contemplari potest, tanta puritas, tanta sinceritas, tam indubitanda rerum fides, ut neque quidquam
praeterea scisse se aliquando aliquis putet, cum sibi scire videbatur; et quo minus impediatur anima
toti tota inhaerere veritati, mors quae antea metuebatur, id est ab hoc corpore omnimoda fuga et
elapsio, pro summo munere desideretur” (De quantitate animae 33.76).

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conclusão
A partir do que foi exposto, percebemos que a ascensão da alma através
dos sete graus, apresentados por Santo Agostinho, revelam a verdade existencial
do espírito humano, ou seja, esta é a natureza da nossa alma, para isso ela foi
criada. A alma humana exerce todas as atividades da vida vegetativa, sensitiva
e racional – e vai além disso, pois tem a potência para evoluir na virtude,
a qual é a ordem do amor, a saber, cabe ao ser humano amar os seres de acordo
com a sua dignidade ontológica. Este é o caminho da realização humana,
porém, esta só é possível, se, além do esforço humano, for tornada eficaz pela
graça divina. Portanto, cabe ao homem buscar elevar-se, subir essa escada da
retidão, que lhe proporcionará a recompensa da contemplação da verdade.
Esta constitui o vislumbre de experimentar a graça de Deus, a experiência
mística, que, embora fugaz, deve ser considerada a mais plena realização da
vida do espírito, durante nossa vida terrestre. Os graus da alma, ao somarem
sete, evidenciam um número significativo, porque simboliza o sétimo dia da
criação, o dia do descanso, a totalidade, a plenitude da perfeição75. Hinrichsen
(2009, p.128) salienta que, itinerante, no seu percurso ascendente, o ser
humano é privilegiado mediador entre as criaturas e seu autor.
Agostinho analisa a alma humana e conclui que, “[...] entre as coisas que
Deus criou, nada está mais próximo a ele do que a alma”76. Por isso, é natural
à alma que somente encontre descanso, quando repousa no sobrenatural
do qual está próxima77. O bispo de Hipona proporciona uma antropologia
filosófica, que nos oferece um conhecimento profundo da natureza humana.
Na medida em que nos voltamos ao homem interior, não fugimos daquilo
mesmo que somos e possibilitamos o caminho para conhecer a totalidade do
que somos. Destarte, a nossa realização, enquanto pessoas humanas, só pode
acontecer quando reconhecermos a nossa realidade, que é exterior: os sentidos;
mas também, interior: a alma. Esta é a “[...] realidade mais excelente, depois
de Deus, e superior aos demais animais, somente Deus lhe é superior”78, por
isso, a alma deve adorar somente a Deus e aos outros, respeitar. Para que
isso aconteça, em nossa vida, se faz mister considerar os dois princípios da
moralidade, tantas vezes expostos por Agostinho, a saber: o uti e o frui, pelos
quais a vontade humana distingue as coisas a serem usadas (uti) daquelas que
75
De civitate dei 11,31.
76
De quantitate animae 34.77.
77
“Inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te” (Confessiones 1.1).
78
De quantitate animae 34.78.

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devem ser gozadas (frui)79. Esse discernimento do livre arbítrio da vontade,


iluminada pela graça divina, salvaguardará a magnitude da alma humana.

Strefling, Sérgio Ricardo. The seven degrees of activity of the human soul in Saint
Augustine’s “de Quantitate Animae”. Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 3, p. 179-200,
Set./Dez., 2014.

ABSTRACT: The soul is undoubtedly one of the problems that most interested St. Augustine. He
defines it as a substance participating of reason, adequate for the government of a body. The soul
has no  corporal  quantity, but is nevertheless a great thing. This study aims to reflect on the seven
degrees of activity of the soul, which the author presents in his work De quantitate animae. They are:
animation, sensation, art, virtue, tranquility, ingress and contemplation.
KEYWORDS: Soul. Anthropology. Ascension. Art. Virtue. Contemplation.

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79
De doctrina christiana 1.22.20; De beata vita 4.34.35; De ordine 2.2.6; De libero arbitrio 1.16.34.

Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 3, p. 179-200, Set./Dez., 2014 199


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Recebido em: 13/09/2014


Aprocado em: 26/09/2014

200 Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 3, p. 179-200, Set./Dez., 2014

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