Poéticas Do Deslocamento - Bildunsroman
Poéticas Do Deslocamento - Bildunsroman
Poéticas Do Deslocamento - Bildunsroman
MARINGÁ – PR
2014
WILMA DOS SANTOS COQUEIRO
MARINGÁ
2014
À minha mãe e meu pai, meus elementos
formadores essenciais.
À minha irmã Valdete, pelos laços de afeto
definitivos.
À pequena e meiga Heloísa, pela lembrança da
criança que fui.
AGRADECIMENTOS
O romance como uma grande instituição sócio-literária, que projeta os ideais da classe
burguesa, a partir do século XVIII, torna-se a expressão máxima de modernidade. Esse
gênero, caracterizado pela sua maleabilidade e ambivalência, reflete uma orientação
individualista e inovadora. Nesse sentido, os romances de personagem dão origem a subtipos,
como o Bildungsroman, cujo modelo paradigmático seria Os Anos de Aprendizado de
Wilhelm Meister (1795), do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. Por ser o romance
um gênero em constante devir, o conceito de Bildungsroman passa por problematizações e
revisões e, na atualidade, pode-se falar de um romance de formação que inclui as minorias
étnicas, raciais e sexuais. Alguns passos importantes no Bildungsroman masculino, como a
realização amorosa a partir de várias experiências e a descoberta da vocação profissional e de
uma filosofia de vida, se revelam ainda problemáticos nos romances de formação femininos
no decorrer do século XX, devido ao pouco espaço destinado à mulher na sociedade, fazendo
com que suas experiências formadoras fossem mais subjetivas, culminando, na maioria das
vezes, no final fracassado das personagens que não conseguem fugir às teias da opressão
social. À questão que subjaz essa pesquisa – se o romance de formação feminino pode inovar
no século XXI apresentando trajetórias de mulheres sujeitos – corresponde à hipótese de que
nos romances analisados há um processo de subjetificação das personagens femininas no qual
as experiências formadoras ocorrem por meio dos deslocamentos espaciais e identitários,
característicos da época contemporânea. Se no decorrer do século XX, as heroínas ainda
sentiam fortemente o peso da tradição patriarcal, tendo que, não raras vezes, abrirem mão da
integração social em nome da individualização e realização do eu, como a Conceição de O
Quinze ou a Joana de Perto do coração selvagem, nos romances de formação femininos do
século XXI – como Pérolas Absolutas (2003), de Heloísa Seixas, Algum Lugar (2009), de
Paloma Vidal, e Azul-corvo (2010), de Adriana Lisboa, – em meio à globalização e ao
desmantelamento das grandes utopias e verdades, elas vivenciam outros conflitos e
problemáticas resultantes da fluidez das relações humanas no mundo contemporâneo. Por ser
um trabalho que se insere na linha de pesquisa “Literatura e construção de identidades”, a
leitura e análise do corpus escolhido respalda-se sobretudo nos aportes teóricos dos Estudos
Culturais e da Crítica Feminista. Espera-se com essa tese contribuir para com os estudos da
crítica feminista contemporânea, ao mostrar que as personagens do cenário pós-moderno, na
sua busca de subjetificação, passam por experiências de deslocamento e esfacelamento de
identidades, mas buscam, apesar dos percalços, uma construção de si como mulheres.
The novel as a great socio-literary institution, which projects the ideals of bourgeois class,
becomes the maximum expression of modernity from the 18th century on. The genre,
characterized by its malleability and ambivalence, reflects an individualistic and innovative
orientation. In this sense, the novels of characters originate subtypes, as the Bildungsroman,
whose paradigmatic model would be Wilhelm Meister’s Apprenticeship (1795), by the
German writer Johann Wolfgang von Goethe. Since the novel is a genre in constant
becoming, the concept of Bildungsroman undergoes problematizations and revisions and,
today, it is possible to consider a novel of formation which includes ethnic, racial and sexual
minorities. Some important steps in male Bildungsroman, such as fulfillment in love from
several experiences and the discovery of a professional vocation and a philosophy of life, are
still problematic in female novels of formation along the 20th century, due to the small space
dedicated to woman in society, making her formative experiences more subjective, and
culminating, in most cases, in the failed end of characters who cannot escape the webs of
social oppresion. To the question that underlies this research – if the female novel of
formation can innovate in the 21th century, presenting trajectories of women subjects –
corresponds the hypothesis that in the analyzed novels there is a process of subjectification of
the female characters, in which the formative experiences occur through spatial and identity
displacements, characteristic of modern times. If along the 20th century the heroines have still
felt the weight of patriarchal tradition, not infrequently having to forgo social integration on
behalf of individualization and self-realization, as the characters Conceição from O Quinze
and Joana from Perto do coração selvagem, in the novels of formation from the 21th century
– such as Pérolas Absolutas (2003), by Heloísa Seixas, Algum Lugar (2009), by Paloma
Vidal, and Azul-corvo (2010), by Adriana Lisboa, – amid globalization and the dismantling of
great utopias and truths, they experience other conflicts and problems resulting from the
fluidity of human relations in modern times. Since this work is inserted in the line of research
“Literature and building of identities”, the reading and analysis of the chosen corpus is based
mainly on theoretical contributions from Cultural Studies and Feminist Criticism. With this
thesis, we hope to contribute to the studies of contemporary feminist criticism, showing that
the characters in the post-modern scene, in their search for subjectification, undergo
experiences of displacement and disintegration of identities, but seek, despite setbacks, a
building of themselves as women.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
O caminho trilhado pelas mulheres na literatura tem sido longo e árduo, uma vez que
inúmeras dificuldades sempre irromperam, de forma avassaladora, desde a insuficiência no
domínio da língua escrita, preconceitos familiares, dificuldades para publicar as obras, até a
falta de um teto todo seu, como salientou Virgínia Wolf (1928), ao abordar a falta de
incentivo e condições para que as mulheres pudessem se expressar por meio da literatura.
Ao contrário de autoras inglesas como Charlotte Lennox e Frances Brooke, entre outras,
que já publicavam desde o século XVII, a escrita de romances por mulheres, no Brasil, teve um
começo tardio, ocorrendo apenas em meados do século XIX, quando Maria Firmina dos Reis
publica Úrsula: obra crítica em relação ao sistema escravocrata que vigorava no país.
Várias causas poderiam explicar essa escassez do romance de autoria feminina no Brasil.
Em primeiro lugar, pode–se citar a dificuldade do domínio da linguagem, uma vez que o sistema
educacional brasileiro, durante o século XIX, conforme aponta Ingrid Stein (1984), apresentava
diferenças substanciais entre os currículos das escolas primárias masculinas e femininas. A
educação feminina, que tinha como objetivo o desempenho das boas qualidades necessárias ao
papel de “rainha do lar”, tinha como foco basicamente o ensino de gramática portuguesa e
francesa, canto, dança e música. Ademais, não havia ainda escolas secundárias para meninas. Em
segundo, com o casamento e a maternidade, vistos como perspectivas ideais de aceitação social
feminina, as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos não propiciavam as condições de
reflexão necessárias ao exercício de uma escrita longa como o romance. Por fim, a própria
situação de inferioridade vivenciada pela mulher na sociedade – que não era detentora da
qualidade de cidadã uma vez que não tinha direito ao voto e precisava da permissão do marido
para exercer qualquer profissão – evidenciava o preconceito em relação às atividades intelectuais
e artísticas femininas, o que talvez tenha impedido que obras com considerável qualidade estética
e literária fossem publicadas e/ou reconhecidas.
Nesse sentido, é de fundamental importância o veio arqueológico do trabalho de
historiografia literária realizado pela escritora e professora da Universidade Federal de Santa
Catarina, Zahidé Lupinacci Muzart, que organizou a obra monumental Escritoras Brasileiras
do século XIX1, com vistas a resgatar escritoras ignoradas pela crítica ou não devidamente
1
A professora Zahidé Lupinacci Muzart organizou a obra, publicada em três volumes, entre 1999 e 2009, pela
Editora Mulheres, coordenando o trabalho de equipe com várias pesquisadoras. A obra registra as trajetórias
de muitas escritoras com temas e gêneros literários diversos. Dessa forma, ao reavaliar nossa história cultural,
esse resgate possibilita a construção de outra tradição literária brasileira.
12
reconhecidas, como Júlia Lopes de Almeida, Carolina Nabuco e Edith Mendes da Gama e
Abreu, entre tantas outras. Segundo Muzart (2004), o mapeamento das escritoras do século
XIX propiciou uma agradável surpresa em relação à quantidade de escritoras que foram
descobertas e inscritas. Para a pesquisadora, os objetivos do trabalho, filiado aos estudos de
gênero, foi o de tentar “fazer uma revisão da historiografia literária oficial, entender e
denunciar seus critérios de exclusão e retirar das margens do cânone as escritoras”2.
Às iniciativas tímidas do século XIX – como os romances de Maria Firmina dos Reis,
Júlia Lopes de Almeida e Emília de Freitas, que ainda reproduziam certos valores e
estereótipos da escrita masculina, mas com uma nova expressão acerca do universo feminino,
– seguem escritoras tão díspares como Raquel de Queiroz e Clarice Lispector, autoras que
marcariam a cena literária brasileira e, ao abrirem uma tradição literária feminina, seriam
precursoras de muitas autoras excepcionais, como Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Nélida
Piñon, só a título de exemplificação, que formariam o boom do romance de autoria feminina
dos anos 70 e que se prolonga até os dias atuais. Algumas conquistas femininas
desencadeadas pelo movimento feminista marcariam o século XX – como a conquista de
direitos civis, o acesso ao mercado de trabalho e ao ensino superior, a possibilidade de utilizar
métodos contraceptivos seguros, como a pílula anticoncepcional – contribuindo para a
ascensão da mulher escritora e, consequentemente, para a construção de personagens mais
conscientes da condição de submissão que lhes era imposta e em busca de afirmação da
liberdade e de identidades femininas.
A escrita clariceana – marcada pela fragmentação textual, o abandono do tempo
cronológico e o fluxo da consciência, somados à postura crítica em relação aos padrões
tradicionais de gênero, ao problematizar a situação feminina, – exerce influência, até hoje, em
escritores/as contemporâneos/as, marcando, sobretudo, a literatura de autoria feminina. Essas
características podem ser encontradas também em textos de autoria masculina, como nos
romances de Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll, suscitando a questão: existe uma
escrita feminina?
A pergunta pode parecer anacrônica, uma vez que muitos críticos afirmam que a
escrita não tem sexo. Desse modo, a ideia de uma escrita feminina suscita questionamentos
diversos, inclusive acerca do conceito de feminino. Muitos teóricos, sobretudo as críticas
feministas, procuram respostas para essa questão, buscando tanto no nível formal como no
temático as especificidades da escrita feminina e masculina.
2
MUZART, Zahidè Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX: antologia. Florianópolis: Editora
Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. v. 2, p. 27.
13
3
MAGALHÃES, Isabel Allegro. Os véus de Ártemis: alguns traços da ficção narrativa de autoria feminina.
Colóquio Letras, Lisboa, n. 125/126, p. 152, jul-dez. 1992.
14
burguesa, educada e destinada ao casamento, visto como único meio de ascensão social e
aquisição de respeito naquela sociedade.
Com o passar do tempo, o Bildungsroman começou a colocar em cena protagonistas
que problematizavam o ideal do amor e do casamento burguês e buscavam romper com os
laços opressores em busca de subjetificação, assim como as novas leitoras que começavam a
questionar a ordem vigente. Alguns romances de formação do século XX, como os de Raquel
de Queiroz, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Lya Luft, são fundamentais no sentido
de mostrarem que o processo de formação das heroínas já não seguia um script estabelecido.
As escritoras que compõem o corpus desse trabalho pertencem a uma elite intelectual.
Heloísa Seixas, além de escritora, é jornalista. Paloma Vidal é professora universitária de
teoria literária e Adriana Lisboa, com bacharelado em música e doutorado em literatura
comparada, tem se dedicado à escrita de obras ficcionais. Em linhas gerais, elas discutem em
seus romances temas da mulher contemporânea, no mundo globalizado pós anos 2000. Por
isso, questões como a revisão da história recente do país e do mundo, a globalização 4, o
exílio, o deslocamento espacial e pessoal, além da construção da identidade e da sexualidade
femininas, em um momento que alguns críticos denominam de Pós-feminismo, seriam os
elementos catalizadores que inscrevem a experiência feminina na atualidade.
O enredo no Bildungsroman de autoria feminina contemporâneo é organizado a partir
de experiências formadoras. Com isso, novas protagonistas demandam a organização de
novos enredos, muitas vezes caóticos e desordenados, que expressam a vivência interior da
personagem, a partir do predomínio de um tempo psicológico, centrado nos sentimentos e
memórias das personagens.
Em consonância com a literatura contemporânea, de maneira geral, o romance de
formação feminino ao tentar abarcar a vivência contemporânea das personagens, pode
assimilar elementos de várias formas narrativas, como da narrativa de memórias, da
4
Para alguns estudiosos, as origens da globalização situam-se nos tempos modernos com a Era das Grandes
Navegações. Para outros, suas origens estão fincadas muito antes das descobertas europeias. Contudo, é fato
que no final do século XIX e início do século XX, houve um aceleramento desse processo de conexão entre
as economias e as culturas mundiais. A globalização – que afeta vários setores sociais como comunicação,
comércio internacional e liberdade de movimentação – consiste no fenômeno mundial de internacionalização
do capital. Para Milton Santos, é “o resultado das ações que asseguram a emergência de um mercado dito
global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes” (SANTOS, 2000, p. 24). O
autor enfatiza as mudanças ocorridas nos últimos anos do século passado com a imposição de uma
globalização perversa, que unifica o mundo, – “em virtude das novas condições técnicas, bases sólidas para
uma ação humana mundializada” (SANTOS, 2000, p. 37). Stuart Hall, por sua vez, avalia o impacto da
globalização na contemporaneidade, sobretudo em relação à configuração de identidades deslocadas e
híbridas. Na sua concepção, alterações nas noções de tempo e espaço causam um descentramento dos
sistemas de referências. Segundo ele, “a globalização retém alguns aspectos da dominação global ocidental,
mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto de compreensão espaço-
tempo” (HALL, 2011, p. 81).
15
XIX – ao buscarem informações na internet ou nas observações pessoais dos locais públicos,
como as protagonistas de Azul-corvo e Algum lugar, ou sexo e aventura no submundo das
ruas, como a protagonista Sofia, de Pérolas absolutas, no seu impactante encontro com a
“mulher-peixe”. Se, para Benjamin, a descrição da vida humana no romance, “leva o
incomensurável a seus limites” 5, essas contemporâneas mulheres da multidão pós-moderna,
com suas experiências efêmeras e solitárias rememoradas, buscam uma espécie de abrigo no
caos da vida urbana.
Os romances selecionados, publicados entre 2003 e 2010, cujas autoras continuam
com intensa produção ficcional, constituem um desafio à leitura e análise, uma vez que essas
obras ainda não estão cristalizadas ou canonizadas pela ação do tempo, ainda mais em se
tratando de um gênero em constante devir, como o romance, que está sempre sofrendo
metamorfoses. Contudo, essa relação de proximidade espacial e temporal provoca o desejo de
conhecer essa mulher contemporânea – representada na ficção – que continua em processo de
construção e de reinvenção. Isso lembra a confissão de Ruth Silviano Brandão (2006) de que:
“passageiros de voz alheia somos nós, leitores, que escrevemos e tentamos nos reconhecer nos
textos-espelhos em que nos debruçamos” 6.
Por ser um trabalho que tem como referencial teórico a crítica feminista – que integra
a crítica cultural – uma vez que se parte do princípio de que a literatura “é uma transposição
da realidade para o ilusório por meio de uma estilização formal 7” – esse trabalho se respalda
em conceitos operatórios da crítica feminista iniciados com Simone de Beauvoir, passando
pela crítica francesa de Elisabeth Badinter, até as contribuições de pesquisadoras brasileiras
como Cristina Ferreira Pinto, Constância Lima Duarte, Cíntia Schwantes e Lúcia Osana
Zolin. Além disso, embasa-se nos estudos de Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Edward Said,
expoentes dos estudos culturais, que têm em comum o fato de que suas reflexões repousam
sobre as identidades fragmentárias e liquefeitas da contemporaneidade. Se, por meio da crítica
feminista, pode-se compreender as temáticas e as problemáticas que permeiam as produções
romanescas femininas da atualidade, os estudos culturais permitem compreender os
deslocamentos das identidades culturais na contemporaneidade causados, em grande parte,
pela globalização acelerada e pelo esfacelamento das utopias esquerdistas do mundo
5
BENJAMIN, Walter. O Narrador: consideração sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e
Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 201. (Obras escolhidas; v. 1).
6
BRANDÃO, Ruth Silviano. Vida escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 13.
7
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T.A.
Queiroz, 2000. p. 53.
17
ocidental, o que resultou no fim das grandes metanarrativas e das verdades consideradas
universais.
A divisão dos capítulos busca apreender o gênero Bildungsroman desde a sua origem
com Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister à contemporaneidade, fazendo algumas
incursões pelo movimento feminista. O primeiro capítulo intitula-se “Do romance de
formação ao romance em formação: tradição e ruptura no Bildungsroman de autoria
feminina”, e procura fazer uma revisão teórica do gênero Bildungsroman, desde as suas
origens alemãs, como gênero paradigmático do universo masculino, até sua expansão e
evolução, transformando-se em um gênero capaz de representar os grupos minoritários e/ou
marginalizados como pobres, negros, mulheres e homossexuais. Para isso, é necessário o
cotejo de obras teóricas clássicas como as de Georg Lukács (2000) e Mikhail Bakhtin (2010,
2011) com as mais contemporâneas como as de Wilma Maas (2000) e Cristina Ferreira Pinto
(1990), que abordam o surgimento e a evolução do gênero. Também é importante uma
incursão pela ficção brasileira do século XX, apontando e discutindo, em linhas bem gerais,
alguns romances de formação femininos.
No segundo capítulo, intitulado “A subjetificação feminina no Bildungsroman do
século XXI”, buscou-se, a partir de obras mais recentes da crítica feminista, como os do
sociólogo francês Alain Touraine, e da filósofa francesa Elisabeth Badinter, assim como em
artigos de jornais e reportagens de revistas, refletir sobre alguns rumos tomados pelo
feminismo, do final do século passado ao início do século XXI, mostrando que, além do poder
patriarcal e dos preconceitos seculares, a mulher hoje, em sua busca de subjetificação,
enfrenta outras problemáticas advindas da voracidade promovida pelo mundo capitalista
globalizado, no qual os dilemas entre carreira e vida doméstica continuam bastante evidentes.
Os demais capítulos são dedicados à análise dos romances e suas peculiaridades como
romances de formação – Bildungsromane – do século XXI, e em que medida se afastam ou se
aproximam dos romances de formação do século XX. Nesse sentido, é relevante a análise dos
deslocamentos espaciais, temporais e identitários pelos quais passam essas personagens
femininas do mundo contemporâneo, que na concepção de Michel Maffesoli (2001) é
marcado por um grande paradoxo: por um lado, uma sociedade que, diante do
desenvolvimento tecnológico e da ideologia econômica do mundo globalizado, afirma-se
como perfeita e plena e, por outro, expressa-se na “necessidade do „vazio‟, da perda, da
despesa, de tudo que não se contabiliza e foge à fantasia da cifra”8.
8
MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Tradução Marcos de Castro. Rio
de Janeiro: Record, 2001. p. 23.
18
CAPÍTULO I
DO ROMANCE DE FORMAÇÃO AO ROMANCE EM FORMAÇÃO: TRADIÇÃO E
RUPTURA NO BILDUNGSROMAN DE AUTORIA FEMININA
(VASCONCELOS, 2007, p. 25). Para Claudio Magris (2009), é impossível pensar o romance
sem o mundo moderno, uma vez que com sua “polifônica contaminação de gêneros” e a
ambivalência que o caracteriza, o romance define-se como um gênero de transformação
universal, o qual “é com frequência uma mistura de celebração e crítica da modernidade”
(MAGRIS, 2009, p. 1020). Devido ao fato de a burguesia ser a criadora e protagonista do
mundo moderno, esse gênero será produzido, editado e consumido por essa classe, tornando-
se expressão máxima da modernidade. Para Wolfgang Kayser (1985), é evidente que o que
marca esse gênero moderno é a ausência de mitos e milagres próprios do mundo épico. Dessa
forma, o que constitui a matéria romanesca são as vivências pessoais, levando ao
reconhecimento de mundo por meio de experiências, visto que as personagens esvaídas de
caráter universal, tornam-se figuras essencialmente particulares.
Na concepção de Kayser, por ser essa a narrativa de um mundo particular, na obra
romanesca, os motivos são descritos de modo a revelar a poetização de um mundo prosaico,
das situações e vivências cotidianas. Com um novo público leitor, ávido por histórias com as
quais possa se identificar, mas também mais exigente em termos de intriga narrativa, há uma
certa exigência por essa poetização do mundo, fazendo com que o romancista oscile entre a
poesia e a verossimilhança. Isso, de certa forma, assinala a ambiguidade própria do romance
que, paradoxalmente, à mimese do mundo real, deve se pautar pela representação de
aventuras e casos espetaculares, proporcionando aos leitores encantamento e identificação.
O autor pode usar de diversos expedientes nessa busca pela verossimilhança, para que
a história contada pareça o mais “provável” e “verdadeira” possível, como postulava
Aristóteles ao falar de uma das principais características da obra literária que é a mimese, ou a
imitação do real. Para Roland Bourneuf e Réal Quellet (1976, p. 32), isso faz com que o
romance atue “sem cessar na fronteira ambígua do real e da ficção”. O alargamento do
público leitor nos séculos XVIII e XIX, ainda composto de mulheres, mas também de jovens
estudantes, faz com que, sobretudo a partir do Romantismo, o romance torne-se a forma apta
“a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo” (BOURNEUF; QUELLET,
1976, p. 682).
Vítor Manuel Aguiar e Silva (1993) enfatiza a capacidade de análise das paixões e dos
sentimentos humanos como uma das maiores qualidades do romance. Já Bourneuf e Quellet
(1976), corroborando essa visão, acrescentam outro elemento: o fato de podermos
experimentar emoções sem os riscos da vida real. Para os autores, “contra o sofrimento, a
fatalidade econômica, a servidão política, a morte, ele proclama a dignidade, o direito à vida e
21
a liberdade de espírito: o romance do nosso tempo tem, com frequência, vocação metafísica”
(BOURNEUF; QUELLET, 1976, p. 8).
Quanto a uma classificação tipológica do romance, Kayser propõe três tipos de
romance: o de ação ou acontecimento, o de personagem e o de espaço. Isto significa que,
segundo Kayser, o evento, a personagem e o espaço são os três elementos primordiais para
uma análise e interpretação teórica do romance.
O romance de personagem, que é o foco desse trabalho, seria aquele em que há um
realce mais acentuado sobre uma única personagem central, que, na concepção de Kayser,
aparece como “portadora do mundo”. Esse romance é compreendido “se a sua substância é
elaborada sobretudo no sentido de passividade, solidão e sensibilidade, se inclina facilmente
para o subjetivismo lírico” (KAYSER, 1985, p. 402). Nesse sentido, um romance
fundamental é Dom Quixote, publicado em 1605, pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes.
Essa obra, pela profundidade encontrada no personagem central, tornou-se um dos grandes
representantes do romance de personagem. A partir desse modelo, no Romantismo, ocorre a
invenção e codificação do romance de personagem como expressão por excelência da
modernidade.
O romance de personagem, por trazer esse sentimento de individualidade pessoal
como direção da existência, apresenta veredas outras que desembocam no romance
autobiográfico, no romance de evolução e no romance de formação. O romance de evolução,
cujo precursor, para Kayser (1985), seriam as Confissões, de Santo Agostinho, publicado em
397-398, torna-se apto a essa “revelação do mundo”, por meio da evolução da personagem
central.
Por meio da evolução do romance de personagem, ainda no século XVIII, com a
publicação da obra Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795), de Goethe, emerge
na Alemanha, em consonância com os ideais da literatura romântica em toda Europa, um
esforço no sentido de atribuir à literatura alemã um caráter nacional.
Nesse romance tradicional, que se transformaria em matriz e paradigma do gênero
Bildungsroman, ocorre a representação do processo de formação do caráter do herói, o qual
entra em conflito com a realidade e, por meio de muitas aventuras e peripécias, poderia atingir
seu amadurecimento pessoal e aperfeiçoamento humano. Devido a isso, Wilma Maas (2000)
enfatiza que, no Bildungsroman as características conteudísticas predominam sobre as
formais, uma vez que “a questão central que subjaz a todo o texto compreendido pela
historiografia literária como Bildungsroman é a questão do aperfeiçoamento pessoal”
(MAAS, 2000, p. 67).
22
[...] com meios estéticos até então inéditos na literatura alemã, Goethe
empreendeu a primeira grande tentativa de retratar e discutir a sociedade de
seu tempo de maneira global, colocando no centro do romance a questão da
formação do indivíduo, do desenvolvimento de suas potencialidades sob
condições históricas concretas (MAZZARI, 2009, p. 8).
9
Autoficção, termo cunhado pelo crítico francês Serge Doubrovsky, tem sido usado por muitos autores
contemporâneos para caracterizarem suas obras, que misturam ficção com aspectos biográficos. O termo será
melhor discutido no quarto capítulo, na análise do romance Algum Lugar, de Paloma Vidal.
24
10
Segundo Maas (2000), a literatura petista foi muito comum na Alemanha Luterana, desde meados do século
XVIII. Um dos exemplos citados é Historie der Wiedergebohrnen, cuja tradução seria “História dos
renascidos”, publicada em 1724. Nessa coletânea, há o relato do processo de conversão de homens e
mulheres de diferentes classes sociais.
25
degradado como traço intrínseco à constituição do romance. Ao reiterar várias vezes que o
“romance é a epopeia do mundo abandonado por deus” (LUKÁCS, 2000, p. 89), ele está
evidenciando que a sociedade burguesa muda o conceito de herói, cuja trajetória é marcada
por casos acidentais e cujas vitórias ou desgraças não mais simbolizam uma coletividade.
Nesse sentido, é importante observar o modo como Lukács diferencia o romance da
epopeia como formas literárias que expressam conteúdos de épocas históricas distintas. Como
não há mais um destino a cumprir como na tragédia ou na epopeia, o herói do romance torna-
se responsável por seus atos. Por isso, o autor refere-se ao romance como forma da “virilidade
madura”. Com essa expressão, evidenciam-se os traços do romance que o caracterizam como
um gênero tipicamente masculino, a despeito de que, mesmo de forma paradoxal, as mulheres
tenham, ao longo da história, desempenhado papéis centrais na difusão do gênero, como
leitoras, protagonistas ou autoras.
Vasconcelos (2007) enfatiza essa função crucial do romance na construção do ideal de
feminilidade ao relacionar a difusão do amor romântico, proposto pelos romances, como
forma de educação das jovens burguesas, inculcando os valores, as virtudes e as atitudes
desejáveis e adequados às mulheres, a partir de um ponto de vista masculino. A crença na
educação, promovida pelo Iluminismo, obviamente não incluía as mulheres, uma vez que o
conhecimento de temas científicos ou assuntos públicos não lhes cabia. O destino cabível às
mulheres seria, então, o casamento, pilar central da sociedade burguesa, e a criação dos filhos.
Desse modo, o romance teve grande relevância na construção do gênero sexual, confinando as
mulheres aos espaços domésticos e confirmando ao homem o trânsito pela esfera pública.
Vasconcelos ressalta que “o senso de propósito moral e o zelo didático dos romancistas
exprimiam a moralidade burguesa que clamava por expressão” (VASCONCELOS, 2007,
p. 132).
Ao afirmar que o romance é “a expressão do abrigo transcendental” (2000, p. 38),
Lukács pondera que a era da epopeia marca “tempos afortunados”, uma vez que respondia ao
mundo fechado da civilização grega. Nessa civilização integrada não havia uma cisão entre a
interioridade do herói e o mundo circundante. No mundo homogêneo, “perfeito e acabado”,
marcado pelo poder e a vontade dos deuses, os homens só conheciam as respostas e não as
perguntas: “ser e destino, aventura e perfeição, vida e essência são, então, conceitos idênticos”
(LUKÁCS, 2000, p. 27).
Segundo Lukács, essa unidade rompeu-se com a emergência da sociedade burguesa,
que ele caracteriza como degradada. Os personagens centrais do romance só conhecem as
perguntas, pois emergem em um mundo no qual houve uma fratura entre existência e
26
essência: um mundo degradado, marcado pelo silêncio dos deuses, no qual “o herói nasce
desse alheamento face ao mundo exterior” (LUKÁCS, 2000, p. 66). Quando “a interioridade e
a aventura estão para sempre divorciadas uma da outra” (LUKÁCS, 2000, p. 67), o herói do
romance, cujas batalhas são só suas e não mais determinadas pelos deuses e cujas buscas não
encontram proteção nesse “mundo abandonado por deus”, torna-se condenado a fazer
escolhas, tornando-se, assim, responsável por seus atos. Quando afirma que “o processo pelo
qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático
rumo a si mesmo” (2000, p. 82), Lukács está evidenciando que o sentido da vida do herói
problemático do romance, nesse mundo incerto e caótico, se daria pelo autoconhecimento,
que é uma das marcas essenciais do romance de formação, tanto clássico quanto
contemporâneo, abordado mais adiante.
Para Lukács, Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister é uma tentativa de síntese
formal entre o romance do idealismo abstrato e o romantismo da desilusão. Nesse romance,
denominado por ele de romance de educação, o herói pode intervir no mundo por meio de
ações efetivas, uma vez que o ideal que lhe determina as ações tem como objetivo “encontrar
nas estruturas da sociedade vínculos e satisfações para o mais recôndido da alma” (LUKÁCS,
2000, p. 139). Esse herói – cuja busca e aprendizado “revelam, com máxima nitidez, a
totalidade do mundo” (LUKÁCS, 2000, p. 140) – é selecionado para a posicão central da
narrativa de forma casual, com a finalidade única de que, através de sua busca e de seus
conflitos, essa totalidade do mundo lhe seja desvendada:
Tal desejo de se realizar no mundo faz com que a relação do protagonista seja, por um
lado, extremamente conflituosa e, por outro, de reconciliação com a realidade social. Essa
premissa é explicada por Lukács considerando que “tipo humano e estrutura da ação,
portanto, são condicionados aqui pela necessidade formal de que a reconciliação entre
interioridade e mundo seja problemática, mas que seja possível; de que ela tenha de ser
buscada em penosas lutas e descaminhos, mas que possa no entanto ser encontrada”
(LUKÁCS, 2000, p. 138).
27
11
Lukács denomina esse romance que mostra o aperfeiçoamento do herói como “romance de educação”, que se
aproxima mais do conceito literal do termo alemão Bilgungsroman. Já Bakhtin usa o termo “romance de
formação”, usado pela maioria dos teóricos como tradução do Bildungsroman.
28
personagem, já que esta “é aquele ponto imóvel e fixo em torno do qual se realiza qualquer
movimento do romance” (BAKHTIN, 2011, p. 219).
Para Bakhtin, o romance de formação é mais raro, pois cria uma imagem do homem
em formação, mostrando-o em seu devir, por meio de uma representação da unidade dinâmica
da identidade da personagem. Na concepção de Bakhtin, “o próprio herói e seu caráter se
tornam uma grandeza variável na fórmula desse romance. A mudança do próprio herói ganha
significado no enredo e em face disso reassimila-se na raiz e reconstrói-se todo o enredo do
romance” (BAKHTIN, 2011, p. 219-220).
É relevante ressaltar que Lukács e Bakhtin estudaram o gênero romance a partir de
uma perspectiva diacrônica, considerando-o em sua evolução. Por isso, a abordagem da forma
romanesca está vinculada ao condicionamento histórico-filosófico da literatura como
expressão de uma época específica. Contudo, diferentemente de Bakhtin, que se aprofunda
mais nos elementos composicionais do romance, como tempo e espaço, formando o que ele
denomina de cronotopo, as análises de Lukács têm como foco a busca do herói para realizar,
de algum modo, o âmago da sua interioridade no mundo.
fato, essa ideia de identidade fixa e imutável do sujeito sempre foi uma utopia. Segundo esse
autor, as velhas identidades encontram-se em declínio, fazendo surgir novas identidades,
levando o indivíduo contemporâneo à fragmentação. Ao avaliar o que considera a crise de
identidade na contemporaneidade e em que consiste essa crise e sua expressão, Hall afirma
que as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é, “deslocadas ou
fragmentadas” (HALL, 2011, p. 8) e apresenta três concepções de identidade: do sujeito do
iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno.
Fazendo-se uma breve distinção, tem-se o sujeito do Iluminismo, cartesiano, que era
considerado “totalmente centrado” e unificado; já o sujeito sociológico, refletindo a
complexidade do mundo moderno, era formado por suas inter-relações pessoais, ou seja,
interação entre o eu e a sociedade; o sujeito pós-moderno, por sua vez, seria o que assume
várias identidades diferentes e contraditórias. Segundo o autor, “o sujeito está se tornando
fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias e não-resolvidas” (HALL, 2011, p. 12). Hall salienta que o processo de
globalização, ao provocar mudanças sociais rápidas, provoca também um impacto na
identidade cultural.
A referência ao “nascimento e morte do sujeito moderno” leva a uma abordagem da
transição do sujeito moderno para o contemporâneo. Hall explica que o sujeito moderno
nasceu da filosofia de Descartes, constituído como capaz de raciocinar e pensar, definido pela
famosa frase do filósofo francês: “Penso, logo existo”. Dessa forma, esse sujeito já “nasceu”
em meio à dúvida e ao ceticismo, provocados pelo desenvolvimento científico, que marcou o
século XVII. Mesmo assim, o “sujeito cartesiano” era, então, concebido como racional,
pensante e consciente, situado no centro do conhecimento.
Esse sujeito vai sofrer alguns descentramentos, sobretudo no século XX. O primeiro
seria em decorrência da interpretação das afirmações de Marx, na década de 1960, de que “os
homens fazem a história, mas somente sob as condições que lhes são dadas”. Perde-se aqui a
noção do sujeito como protagonista da história, uma vez que ele passa a ser determinado pelas
condições sociais e culturais exteriores. O segundo descentramento resultou da descoberta da
teoria do inconsciente proposta por Freud, o que possibilitou a destruição da noção de sujeito
racional, provido de uma identidade fixa. Para a concepção psicanalítica, “a identidade é
realmente algo formada ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo
inato, existente na consciência no momento do nascimento” (HALL, 2011, p. 38). O terceiro
descentramento do sujeito cartesiano, promovido pelos estudos do linguista estruturalista
Ferdinand de Saussure, decorre da concepção de que o sujeito não é o autor daquilo que
30
expressa por meio da língua, uma vez que a língua é um sistema social e não individual. O
quarto descentramento da identidade do sujeito cartesiano ocorreu com as publicações do
filósofo francês Michel Foucault, ao destacar um novo tipo de poder que ele identifica como
“poder disciplinar”, constituído por novas instituições que se desenvolveram ao longo do
século XIX e que têm o poder de disciplinar o indivíduo. São elas, por exemplo, oficinas,
quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas. O quinto descentramento foi causado pelo
impacto do feminismo, “tanto como uma crítica teórica quanto como um movimento social”
(HALL, 2011, p. 44). Seu caráter questionador e contestador contribuiu para com o
descentramento do sujeito cartesiano.
Todos esses descentramentos coadjuvaram para que o sujeito cartesiano, visto como
tendo uma identidade fixa, fosse deslocado, resultando nas identidades fragmentadas do
sujeito pós-moderno. Maas corrobora essa concepção ao destacar que o século XX marcou o
desaparecimento do ideal de sujeito psicológica e historicamente indecomponível: “A
representação do desenvolvimento individual como um processo linear em direção ao
equilíbrio das tendências individuais no enfrentamento com a sociedade torna-se então uma
aporia” (MAAS, 2000, p. 81).
Nesse contexto marcado pelo descentramento dos sujeitos, desenvolve-se a crítica
feminista que, dentre outros enfoques, analisa o papel desempenhado pelas protagonistas,
tanto em obras de autoria masculina quanto feminina, com vistas ao
reconhecimento/problematização de práticas e de representações de gênero opressoras e/ou
libertárias. Os estudos feministas se somam aos de outros grupos marginalizados,
constituindo, no dizer de Hutcheon, “uma diversidade de reações a uma situação de ex-
centricidades percebida por todos” (HUTCHEON, 1991, p. 50). Dessa forma, os estudos
feministas constituem uma das vertentes dos Estudos Culturais – que têm como grande
destaque o teórico cultural jamaicano, Stuart Hall12 – surgidos nos Estados Unidos, na década
de 1960, com o objetivo de, a princípio, constituir uma mudança de perspectiva no ensino de
arte e literatura, visando analisar sua relação com a história e a sociedade contemporânea.
Richard Johnson avalia as contribuições do Movimento Feminista aos Estudos Culturais ao
ressaltar, sobretudo, as críticas e as lutas feministas contra o racismo, o que provocou um
redimensionamento da “Nova Esquerda”. De acordo com o autor, o Feminismo
12
Stuart Hall foi diretor do centro de estudos culturais contemporâneos da Universidade de Birmingham, entre
os anos de 1968 e 1980, e publicou obras fundamentais sobre a constituição das identidades culturais na
contemporaneidade, como, entre outras, Estudos Culturais: dois paradigmas (1980) e A identidade cultural
na pós-modernidade (1992).
31
Para Cevasco, ao buscar estabelecer uma educação democrática, “os estudos culturais
começaram como um empreendimento marginal, desconectado das disciplinas e das
universidades consagradas” (CEVASCO, 2003, p. 62). A autora avalia que a base dessa
disciplina é um esforço interdisciplinar que busca estabelecer uma relação entre a produção
artística e as condições da sociedade.
Cevasco, ao abordar as colocações de Raymond Williams, outro expoente dos estudos
culturais, afirma que “a posição teórica dos estudos culturais se distingue por pensar as
características da arte e da sociedade em conjunto” (CEVASCO, 2003, p. 64). Para ela, nesse
sentido, os estudos culturais contribuíram para se repensar o conceito de literatura, a formação
do cânone e a lista de obras consagradas pela tradição literária, buscando uma inclusão dos
grupos, até então, mantidos à margem, como negros, mulheres e homossexuais.
A inserção da disciplina de Estudos Culturais em cursos de universidades e escolas
desencadeou nos críticos mais conservadores, como Harold Bloom, uma reação de temor que
essa inclusão fosse uma forma de destruir a literatura. Para Harold Bloom (2001) – que
denomina os críticos culturais, que se opõem à formação elitista e excludente do cânone,
como membros da “Escola do Ressentimento” – a importância de uma obra literária reside
somente no seu valor estético. Desse modo, a literatura canônica deve ser sempre
referenciada, mesmo que, em tese e em certa perspectiva, não discuta aspectos ideológicos da
sociedade. Segundo ele, a arte só pode proporcionar prazer estético, não sendo capaz de
contribuir para uma educação democrática nem uma transformação social: “a crítica cultural é
mais uma triste ciência social, mas a crítica literária, como uma arte, sempre foi e sempre será
um fenômeno elitista” (BLOOM, 2001, p. 25).
Entre nós, a crítica Leyla Perrone-Moisés (1998), na obra, Altas Literaturas, de certa
forma, corrobora as ideias de Bloom ao afirmar que os estudos literários, nos Estados Unidos
e, de certa forma no Brasil, que tende a ser influenciado pelo que vem de fora, tem sofrido a
influência dos Estudos Culturais. A autora lamenta o fato de que há uma tendência de que a
disciplina de Literatura desapareça nas universidades norte-americanas, integrando-se aos
Estudos Culturais. Segundo a autora, o “estrangulamento dos estudos literários” foi obra de
32
13
Segundo Showalter (1994), há dois tipos de crítica literária feminista. A primeira seria a Crítica Ideológica
ou Revisionista, a qual tem como finalidade a historicização dos textos masculinos e retificar as injustiças
construídas sobre modelos existentes, ao questionar conceitos aceitos e propagados pela ideologia patriarcal.
A segunda, denominada Ginocrítica, é uma crítica literária centrada na mulher, buscando ressaltar o estilo, os
temas, as imagens característicos da produção de autoria feminina. Essa forma de crítica procura
substancialmente relacionar a escrita da mulher a sua cultura, reconhecendo que tão importantes quanto a
noção de gênero são as diferenças de classe, etnia, nacionalidade e história.
34
dinâmica. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que é um conceito em movimento, que pode ser
reaplicado a diferentes momentos e situações, como uma possibilidade de leitura ideológica
para cada período histórico cultural e a cada núcleo formador de significados. É nesse sentido
que, entre tantos, pode-se pensar em um Bildungsroman medieval, clássico, barroco,
romântico, socialista, psicanalista, feminista, queer, negro. Conforme a autora, “o que
possibilita a abordagem ao Bildungsroman é a compreensão de sua diversidade, de seu
estatuto híbrido entre constructo literário e projeção discursiva” (MAAS, 2000, p. 263).
Na ficção de autoria feminina, a apropriação do conceito de Bildungsroman, um
gênero tipicamente masculino, como abordagem de análise das personagens femininas pela
crítica feminista, configura-se como uma forma de resistência e revisão literária e cultural
perante o cânone masculino excludente. Maas afirma que o romance de formação feminino
“mostrar-se-ia como um vetor revolucionário subversivo, pela subversão ao próprio modelo
textual ao qual recorre” (MAAS, 2000, p. 247).
Contudo, Maas (2000) cita Benjamin, para quem, apesar das crises sofridas pelo
gênero e dos deslocamentos no conceito do herói romanesco na literatura ocidental, é possível
acreditar na continuidade do Bildungsroman no período burguês, com desdobramentos que o
reconfiguram conforme a realidade histórica do século XX. É isso que faz com que haja uma
expansão do gênero para além do ambiente de origem. Para a autora,
Pinto enfatiza ainda que, para Labovitz (1986), algumas obras que, a princípio, surgem
como Bildungsromane, acabam por não mostrar o desenvolvimento pleno da protagonista,
tornando–se “truncated Bildungsromane” ou “failed Bildungsromane”. Essa interrupção do
Bindungs da protagonista se dá pela aceitação de papéis impostos pela sociedade, como o de
esposa e mãe, sugerindo a posição de conformidade da escritora em relação aos padrões
sociais impostos pela sociedade de sua época.
Assim, se por um lado, a loucura e a morte (suicídio) que, em muitas obras, sobretudo
de autoria masculina, podem ser entendidas como punição à mulher que transgrediu alguma
regra social ou como tentativa fracassada de escapar às imposições sociais, como é o caso de
Madame Bovary, publicado em 1856, por Gustave de Flaubert, e Anna Karênina, de Liev
Tolstoi, publicado entre 1873 e 1877; por outro, o romance de formação de autoria feminina
pode ser visto como uma forma de libertação feminina e como uma forma de expressão, que
tanto a autora quanto a personagem viam como possíveis à mulher. Segundo Pinto (1990,
p. 26), “no contexto da sociedade brasileira – e de forma semelhante ao que se vê em outros
contextos sociais –, o feminino representa a expressão do que tem sido sempre subjugado,
silenciado, colocado em uma posição secundária em termos culturais”.
Podem ser considerados como romances de formação femininos obras como Jane
Eyre (1847), de Charlotte Brontë, e O Despertar (1899), de Kate Chopin. A primeira obra,
sem dúvida, reduplica os valores maculinos ao representar a trajetória feminina de maneira
linear e cronológica, desde a infância ao happy ending final com o casamento interclasses,
mostrando a realização feminina atrelada a um destino de mulher. Já em O Despertar, a
escritora norte-americana Kate Chopin surpreeendeu o público e a crítica da época, ao
publicar uma obra questionadora, cuja protagonista deslocada em relação aos costumes
austeros da época vitoriana, na qual está inserida, caracteriza-se pelo individualismo, pelo
erotismo e pela busca da liberdade, o que pode se observar em passagens como essa:
“Em suma, Sra. Edna Pontellier estava começando a perceber sua posição no universo como
37
ser humano e a reconhecer suas relações, enquanto indivíduo, com seu mundo interior e tudo
que a cercava” (CHOPIN, 1994, p. 25). Exemplificando o que foi dito acima sobre a temática
da morte na literatura de autoria feminina, Pinto enfatiza que, nessa obra precursora de Kate
Chopin, que tem sido muito discutida pela crítica, “por um lado o suicídio é punição; por
outro é liberdade” (PINTO, 1990, p. 18).
No Brasil, alguns romances femininos de formação também abordam essa
problemática ao colocarem em cena protagonistas que encontram na loucura e na morte a
liberdade que não poderiam encontrar de fato na sociedade. Publicado em 1859, o romance
Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, opta por essa fórmula muito comum na literatura de
autoria feminina europeia, ao compor uma heroína que, ao ver frustradas as possibilidades de
um happy ending ao lado do homem que escolhera, Tancredo, morto pelo tio cruel e
apaixonado, vivencia a loucura e a morte, ao final do romance, como inconformismo frente ao
destino que se desenha para ela. Mesmo escrevendo um romance de cariz romântico, de
acordo com as convenções burguesas e patriarcais da época, que afinal era seu público leitor,
Maria Firmina não deixa de denunciar as injustiças sociais, como as advindas pelo sistema
escravocrata, como também de apontar a situação de inferioridade e submissão a que estavam
sujeitas as mulheres da época.
A crítica relativa ao romance de formação no Brasil apresenta uma trajetória bem
recente, sendo um marco, conforme mencionado anteriormente, o estudo de Cristina Ferreira
Pinto, publicado em 1990. Na primeira parte de seu estudo, a autora faz uma retrospectiva dos
estudos sobre o Bildungsroman, tanto no século XIX quanto na primeira metade do século
XX, sobretudo sobre obras de língua inglesa e alemã, enfatizando que na seleção de obras
discutidas pelos autores destaca-se a ausência de figuras femininas em processo de formação.
Pinto ressalta que, além dos aspectos temáticos destacados por Karl Morgenstern como
determinantes da classificação do Bildungsroman, há também uma intenção pedagógica de
contribuir na formação do(a) leitor(a). Nesse sentido, enquanto as obras que apresentam
personagens masculinos mostram o crescimento individual do herói que tem como espaço de
formação o mundo exterior com toda a sua carga de aventura, risco e imprevisibilidade, às
protagonistas femininas restavam os limites do lar e da família. Desse modo, evidencia-se
uma incompatibilidade entre o crescimento da personagem e as exigências do mundo à sua
volta, opondo, de forma inconciliável, a vocação de ser humano e o destino de mulher, como
aponta Simone de Beauvoir (1980).
De acordo com Pinto (1990, p. 13), “enquanto o herói do Bildungsroman passa por um
processo no qual se educa, descobre uma vocação na vida e a realiza, a protagonista feminina
38
que tentasse o mesmo caminho tornava-se uma ameaça ao status quo, colocando-se em uma
posição marginal”. Desse modo, muitas autoras não conseguem desvencilhar-se dos
paradigmas, fazendo com que as obras sirvam ao padrão feminino da época, exercendo um
caráter pedagógico no sentido de formação das leitoras. Pinto evidencia que é importante
considerar que essas obras, escritas no século XIX até meados do século XX, “surgem dentro
de um determinado contexto cultural que permite uma revisão da literatura escrita por
mulheres a partir de uma perspectiva feminista, num processo de reavaliação e revalorização
da experiência feminina” (PINTO, 1990, p. 17).
Pinto ainda aborda o fato de a inexistência de uma tradição literária feminina fazer
com que algumas autoras sofram do que chamam “ansiedade da autoria” (PINTO, 1990,
p. 23)14. Isso evidencia-se no fato de que muitas autoras, precursoras da literatura de autoria
feminina, sentiam-se inseguras em relação à afirmação de sua autoria ao expressar certas
realidades femininas: “a mulher que escreve demonstra, com poucas exceções, certa
dificuldade em definir-se pessoal e textualmente” (PINTO, 1990, p. 23-24). Isso se reflete
naquelas obras, até mesmo em algumas mais contemporâneas, nas quais a incapacidade da
autora em concretizar um final positivo à personagem feminina leva a um desfecho narrativo
que engendra uma conformidade social da personagem, ou até mesmo ao suícido e alienação.
Em outras obras, o final em aberto desvela a dificuldade da autora em conferir um final feliz à
personagem que não age de acordo com as regras sociais ou não se conforma com as
convenções impostas. Conforme Pinto, a dificuldade em imaginar “um destino positivo
plenamente realizado pela personagem vem da inexistência de um precedente literário, da
falta de “mães poéticas”, surgindo então na escritora a dúvida sobre sua autoridade para criar,
para levar a protagonista a auto-realização completa” (PINTO, 1990, p. 24).
No decorrer de suas análises, conforme mencionado anteriormente, a autora seleciona
quatro romances de autoria feminina, publicados entre 1938 e 1954. Segundo ela, as
personagens dos romances Amanhecer e As três Marias buscam tanto a realização do “eu”
quanto a “integração social”, mas veem seus objetivos frustrados devido aos limites sociais
14
Em “Borges e minha angústia da influência”, numa clara alusão ao livro The Anxiety of Influence, do crítico
literário Harold Bloom, o crítico e escritor italiano, Umberto Eco (2003) aborda o conceito de influência
literária, advertindo que é problemático, e subdivide-o em influência direta – aquela que é consciente – e a
influência indireta, ligada a um Zeitgeist, espécie de “cadeia de influências recíprocas” (ECO, 2003, p. 115),
na qual os temas comuns a diversos autores são oriundos da realidade. Ao contrário do que pregavam os
românticos – que tinham o escritor como gênio criador – para Eco, não há autor sem precursor. Na sua
concepção, existe uma espécie de memória coletiva que pode ser acessada, uma vez que “a coisa mais
importante é que os livros falam entre si” (ECO, 2003, p. 116). Se é “muito difícil subtrair-se da angústia da
influência” (ECO, 2003, p. 126), pode-se concluir como foi árduo o caminho da vida intelectual e artística
para as primeiras mulheres a se lançarem no mundo da ficção, que não tinham modelos e/ou autoras que as
inspirassem.
39
impostos às mulheres, nas primeiras décadas do século XX. Já Ciranda de Pedra e Perto do
Coração Selvagem apresentam finais mais promissores, mesmo que as protagonistas de
Lispector e Fagundes Telles tenham que sacrificar a “integração social” em função da
realização do “eu”. A pesquisadora conclui que as mudanças ocorridas em relação aos finais
dos primeiros seriam aquelas provocadas pela evolução social, ainda que durante um tempo
cronológico bastante limitado. Os romances de Lispector e Fagundes Telles fazem parte de
um período de transição, marcado por um “processo de transformação cultural e social cujo
início no Brasil Amanhecer e As três Marias já expressam e que se estende pela época atual
em direção ao futuro” (PINTO, 1990, p. 30-31).
No Brasil, embora houvesse a publicação de alguns romances de autoria feminina
bastante singulares no século XIX e início do XX como Úrsula (1859), de Maria Firmina dos
Reis, e A intrusa (1908), de Júlia Lopes de Almeida, é com a obra O Quinze, Raquel de
Queiroz, em 1930, que começam a ser questionados valores seculares do patriarcado. O
Quinze é o primeiro romance da escritora cearense Raquel de Queiroz, escrito em 1930,
quando ela tinha apenas dezenove anos de idade. Narrado em 3ª pessoa, a obra mostra a
trajetória do amor frustrado entre Conceição e seu primo Vicente. A narrativa evidencia o
processo de aprendizado e formação da professora Conceição e pode ser considerada o
primeiro romance de formação – Bildungsroman – da literatura de autoria feminina brasileira,
por apresentar uma protagonista bastante singular, que se diferencia das heroínas delicadas e
românticas até então representadas na literatura nacional, tanto de autoria masculina quanto
feminina.
Sobre a rica galeria de personagens da autora, a crítica Constância Lima Duarte
ressalta que “suas personagens não temem o enfrentamento e rompem com os estereótipos de
delicadeza, submissão e sentimentalismos então impostos à mulher” (DUARTE, 2011, p. 52).
O mais impactante no romance é a ausência de um discurso nitidamente feminista, uma vez
que a autora sempre se definiu como antifeminista. Contudo, ela cria uma heroína, que,
marcada pela inquietude e rebeldia aos valores impostos pelo Patriarcado, prenuncia uma
mudança significativa em relação ao destino feminino da época ao ser capaz de resistir às
amarras falocêntricas da ordem instituída, questionando os valores do mundo circundante.
Algumas características básicas do romance de formação feminino estão presentes nessa obra
singular, como o conflito de gerações que assinala as diferenças entre as concepções de
mundo de Conceição e da avó que a criara, o processo de formação e autoconhecimento da
heroína, por meio da leitura de obras tanto marxistas como feministas e a recusa a se
enquadrar em aceitar o destino tradicional das mocinhas casadoiras, o que faz com que ela,
40
embora assuma a maternidade ao adotar o afilhado, recuse o casamento com o primo Vicente,
cujo sentimento afetivo recíproco parecia levar ao happy ending romântico. Não só o
envolvimento sexual do primo com as negras da fazenda, mas sobretudo as diferenças
culturais levam Conceição a escolher a solidão a casar-se com ele.
escapar. Por outro lado, são essas perdas que tornam suas mulheres nítidas
em relação a seus homens apagados. É pela falta que Rachel de Queiroz
completa de expressividade suas personagens femininas (ALVES, 2008,
p. 69-70).
mesmo jeito, em casa, mas como escravas dos homens. E o trabalho escravo é o único que
degrada” (PEREIRA, 1979, p. 42).
O romance de Lucia Miguel Pereira assume um matiz existencialista ao abordar, de
forma contudente, a angústia da escolha. Frente a impossibilidade do sonhado casamento com
Antônio, Aparecida muda-se sozinha para o Rio de Janeiro, arruma um emprego, torna-se
amante de Antônio, mas não encontra a felicidade uma vez que ainda deseja o destino de
mulher, que fora tão enfaticamente rejeitado por Conceição, Maria Moura e outras heroínas de
Raquel de Queiroz. No final, apesar de não se mostrar arrependida, ela se pergunta se pode
mudar seu destino: “Às vezes, cruzando tanta gente desconhecida pelas ruas, penso que talvez
esteja ali, entre aqueles anônimos, alguém que poderia me dar o que Antônio me recusa: um
nome, um lar, uma situação estável” (PEREIRA, 1979, p. 109). Conforme enfatiza Pinto
(1990), Aparecida acaba por interiorizar a ideologia patriarcal que coloca a mulher como
inferior ao homem. Por isso, a relação ilegítima vivenciada com Antônio a torna um ser
marginal diante da sociedade e de si própria; por outro, é uma relação que se encaixa nos
moldes patriarcais de a mulher estar sempre submissa, passiva e dependente do elemento
masculino. Desse modo, de acordo com Pinto, esse seria um Bildungsroman fracassado,
marcado por um “trajeto circular”, no qual, ao contrário do Bildugsroman masculino, a
personagem termina do mesmo modo como começou, ou seja, dividida entre o ideal de uma
vida acomodada ao casamento e o desejo de independência por meio do trabalho. Pinto afirma
que o processo de formação da personagem “completa-se, portanto, de maneira negativa, pois
o único resultado alcançado é a tomada de consciência de sua posição dependente e passiva”
(PINTO, 1990, p. 59).
Os romances de Clarice Lispector, que seria precursora de muitas autoras da literatura
de autoria feminina contemporânea, trazem personagens femininas, geralmente pertencentes à
classe média burguesa, em um processo de autodescobrimento, marcado em alguns romances,
como A Paixão segundo G.H., por revelações epifânicas. Em outros, como Perto do Coração
Selvagem (1944) e Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969), há uma sondagem
existencial que percorre as narrativas ao mostrarem personagens vivendo as agruras e as
descobertas do processo de formação.
Perto do Coração Selvagem, primeiro romance da autora, cuja idade na época da
publicação não é unanimidade da crítica, mas que, segundo Bosi (1995), foi aos 17 anos,
marcou uma ruptura em relação à ficção regionalista que vinha sendo feita no Brasil, desde
1930, ciclo de importantes escritores/as do qual fez parte Raquel de Queiroz. Também é uma
obra precursora em relação à literatura de autoria feminina, inaugurando uma nova fase,
43
marcada pela crítica aos valores vigentes. Segundo Pinto, devido aos recursos expressivos e à
problemática feminina que apresenta em suas obras, a autora seria um caso único na literatura
brasileira até meados da década de 60.
Nesse romance que, de acordo com Pinto, tem caráter autobiográfico, Joana percorre
um longo caminho até chegar a um estágio de libertação. O leitor acompanha sua trajetória da
infância sofrida com a morte prematura do pai, a convivência difícil com a tia, que representa
a normalidade das instistuições sociais, a vida adulta com o casamento com Otávio, de quem
se separa após descobrir que ele se tornara amante e engravidara a antiga noiva, Lígia, e um
caso de amor com um desconhecido no final. De fato, a descoberta do caso extraconjugal é
apenas o estopim para o início de um processo de busca existencial que se desenhava bem
antes na imaginação de Joana. É relevante observar que essas vivências são apresentadas ao
leitor por meio de uma estrutura toda fragmentada, na qual episódios da infância, adolescência
e vida adulta aparecem mesclados. Nesse caso, a movimentação temporal do romance ao lado
da linguagem inovadora da autora refletem esse (in)consciente fragmentado da protagonista.
Desse modo, “a trama é feita de rupturas, cujo único centro é a busca de um mistério
intocável: o ser, a existência, a própria identidade” (ROSENBAUM, 2002, p. 31).
Desde a infância livre, da menina magrinha e precoce, segundo Rosenbaum (2002),
Joana sentia-se atraída pelo que havia de mais selvagem nas relações animais e humanas. A
subjetividade da personalidade inquieta e trangresssora tem um aspecto destrutivo, fazendo
com que desse “esvaziamento da razão cartesiana”, possa emergir “uma personalidade
movida por fantasias (mais que por ações) de sadismo e violência como forças vitais
inalienáveis” (ROSENBAUM, 2002, p. 33). E no decorrer da narrativa, surge a constatação
da personagem: “sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de
egoísmo e vitalidade” (LISPECTOR, 1980, p. 8). Da adolescência cheia de questionamentos
como a curiosidade em saber “depois de ser feliz o que acontece” (LISPECTOR, 1980, p. 18),
à idade adulta, quando se faz imperiosa a necessidade de descobrir “como ligar-se a um
homem senão permitindo que ele a aprisione” (LISPECTOR,1980, p. 19), Clarice coloca em
cena uma heroína, marcada pelo questionamento existencial, que seria precursora das
protagonistas dos romances do século XXI, marcadas por dúvidas e incertezas quanto ao ideal
de felicidade pregado pela sociedade burguesa. Para Rosenbaum, as linhas mestras da
narrativa clariceana condensam-se em “abandono, solidão, felicidade e oposição à vida
domesticada” (ROSENBAUM, 2002, p. 30). A personagem Joana é marcada por esse
antagonismo às regras sociais.
44
O casamento com Otávio, com quem cabe cumprir seu “destino de mulher”, imposto
pela sociedade burguesa – que vê no casamento a forma de ascensão e realização feminina – e
com quem se efetiva a iniciação sexual, se mostra como um aprisionamento, limitando-a
como indivíduo. Por isso, o rompimento é inevitável para ambos, e Otávio encontra em Lígia,
a noiva outrora abandonada, o modelo de mulher ideal que se adequa ao seu projeto de vida e
lhe dá segurança. Joana, apesar de uma aventura amorosa posterior, que de certa forma a
liberta, prefere a solidão de um destino que pode se reinventar sempre. Nesse sentido, Pinto
observa que “cortando as últimas amarras sociais, Joana prepara-se para a solidão por ela
desejada, necessária para a continuação de sua busca e para realizar a viagem que a levará,
afinal, à conquista e afirmação do EU” (PINTO, 1990, p. 105-106).
Em linhas gerais, a formação da protagonista ocorre de forma interiorizada, marcada
pela cadência do tempo psicológico, uma vez que “o que ela estava sentindo também era
maior que os minutos contados no relógio” (LISPECTOR, 1980, p. 7). Além do tempo
narrativo interiorizado, Clarice inova na alternância entre a terceira e a primeira pessoa
narrativa. Esse procedimento vai ser bastante usual em autoras do século XXI como Paloma
Vidal e Heloísa Seixas, que alternam distanciamento e aproximação, em suas narrativas pós-
modernas.
Como o estudo de Borges (2007) mostra, os romances de Lya Luft, da década de 80,
como As Parceiras (1980), A asa esquerda do anjo (1981), e Reunião de família (1982),
também apresentam heroínas em processo de formação, em meio a um ambiente familiar
marcado pela opressão e pelo desamor. A escrita feminina, que tem sido marcante no discurso
da atualidade, tem em Lya Luft uma autora que, seguindo a seara intimista aberta por Clarice
Lispector, foca na exploração da formação psicológica das personagens, criando romances de
formação nos quais os conflitos do meio familiar aparecem matizados pelo grotesco, pelo
mórbido, pela loucura e pela morte. Segundo Borges, Lya Luft rompe com o predomínio
masculino na literatura, ao alçar o feminino a um lugar de destaque em suas narrativas. A
autora enfatiza ainda que “muitas mulheres lufteanas são oriundas de famílias burguesas
mutiladoras, cuja opressão extravasa da alma humana para os textos” (BORGES, 2007, p. 88).
Ao mostrar o embate das heroínas com um mundo que lhes é totalmente adverso, suas
personagens trágicas habitam um mundo sombrio, no qual há poucas alegrias e muito
sofrimento. Por isso, geralmente os finais em aberto evidenciam que as realizações femininas
ainda necessitam de condições sociais que sustentem a construção de uma identidade
feminina livre das amarras opressoras.
45
discussão dos problemas e das diferenças em relação aos gêneros, como, entre outros, núcleos de
mulheres dentro das disciplinas acadêmicas e da mídia feminista. Lauretis ressalta que o conceito
de gênero “como diferença sexual tem servido de base de sustentação para as intervenções
feministas na arena do conhecimento formal e abstrato, nas epistemologias e campos cognitivos
definidos pelas ciências físicas e sociais e pelas ciências humanas ou humanidades” (LAURETIS,
1994, p. 206).
A autora evidencia as limitações desse conceito que confina o pensamento crítico
feminista no arcabouço conceitual de uma oposição universal entre os sexos. Além disso,
segundo ela, outro problema seria o de reacomodar as potencialidades críticas do discurso
feminista dentro dos “limites da casa patriarcal”. Far-se-á necessária, então, uma ampliação
dessa visão ao pensar nas relações culturais do sujeito feminista, concebendo as inter-relações
entre subjetividade e sexualidade, algo que se aproxima do modelo de crítica cultural
feminista, defendido por Elaine Showalter (1994). Desse modo, Lauretis corroborando as
ideias de Showalter, afirma que podemos pensar em
artísticas de vanguarda, seja por meio das teorias feministas ou dos trabalhos acadêmicos. Por
fim, a construção de gênero, de forma extremamente paradoxal, ocorre também por meio da
sua desconstrução. Lauretis ressalta que “o gênero, como o real, é não apenas efeito da
representação, mas também o seu excesso, aquilo que permanece fora do discurso como um
trauma em potencial que, se/quando não contido, pode romper ou desastabilizar qualquer
representação” (LAURETIS, 1994, p. 209).
Lauretis ressalta que as concepções culturais de masculino e feminino, como
categorias complementares e excludentes, ao mesmo tempo, formam dentro de cada cultura
um sistema simbólico de gênero que relaciona sexo a conteúdos culturais ligados às
hierarquias e assimetrias sociais. Esse sistema sexo-gênero, como construção sócio-cultural e
como sistema de representação de hierarquias, apresenta como sua instância primária a
ideologia. Desse modo, enquanto as mulheres brancas ricas ou de classe média se veem
oprimidas pelo gênero, outras como as negras e pobres são oprimidas também por relações de
raça e de classe. Por isso, a autora propõe como categoria de análise “um sujeito do
feminismo”, cuja construção teórica encontra-se em andamento nos escritos femininos. Esse
sujeito que emerge a partir da escrita e do debate teórico da crítica feminista recente “está ao
mesmo tempo dentro e fora da ideologia do gênero, e está consciente disto, dessas duas
forças, dessa divisão, dessa dupla visão” (LAURETIS, 1994, p. 217).
mulher”, tão bem conceituado por Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1980). Como
exemplo da representação dessa mulher moldada pelas relações de gênero tem-se a legião de
perdedoras luftianas como Gisela, de Asa esquerda do Anjo (1981), Alice, de Reunião de
Família (1982), e Renata de O quarto fechado (1984). Essas mulheres que abdicam de suas
vidas, de seus sonhos e desejos em nome da manutenção da ordem familiar, sempre
subjugadas a um poder patriarcal, o qual, em muitas obras, é representado por uma
personagem do sexo feminino, são modelares na literatura de autoria feminina da época. A
opressão de gênero que incide sobre essas mulheres mostra que ,apesar dos grandes avanços
ocorridos na sociedade, a trajetória feminina, fora do ambiente doméstico, ainda era uma
conquista bastante improvável. Nesses, como em muitos outros romances de formação dos
anos 70, 80 e mesmo 90, a escrita de autoria feminina revela sua vivência, mostrando que a
inserção social feminina ainda é bastante problemática. Se o casamento e a maternidade ainda
eram os únicos meios de realização afetiva, de reconhecimento da mulher e de constituição de
uma identidade considerada positiva, fugir a esse script tradicional era extremamente
complexo.
Pinto (1990) enfatiza que o objetivo de seu estudo – a análise de romances de
formação do século XX, de autoria de nomes consagrados como Lúcia Miguel Pereira, Raquel
de Queiroz, Ligia Fagundes Telles e Clarice Lispector – é discutir obras que expressem o
início do processo de transformação da sociedade brasileira e, consequentemente, da mulher
entre os anos trinta e cinquenta do século XX, de acordo com seu ponto de vista, a partir de
uma perspectiva crítica ainda pouco explorada na literatura brasileira. Segundo ela, o objetivo
dos romances de formação é “alcançar a integração e realização do EU e a integração social”
(PINTO, 1990, p. 30), o que, na maioria das vezes, acaba frustrado.
Na virada do século XX para o XXI, verificou-se, contudo, uma geração de autoras
que produzem obras, nas quais as protagonistas sentem-se mais livres para ingressar no
mercado de trabalho, vivenciarem sua sexualidade, romperem laços afetivos que já não são
satisfatórios e buscarem um ideal possível de felicidade diferente do modelo tradicional
baseado no casamento e na maternidade.
Autoras, como Adriana Lisboa, Adriana Armony, Adriana Lunardi, Paloma Vidal,
Cintia Moscovich, Helena Jobim, Lívia Garcia-Roza, Maria Adelaide Amaral, Tatiana Salem
Levy, Heloísa Seixas, não trazem impressas em suas obras ficcionais, de forma contundente, a
problemática dos gêneros ou a opressão imposta pelo mundo patriarcal às mulheres. São obras
que ainda colocam mulheres em conflitos, mas muitos deles são advindos da problemática do
cenário pós-moderno, como a fragmentação identitária, o não-lugar, o exílio e a imigração.
49
fracasso e da culpa, sobretudo de Lídice, a amante, que ocupa sempre o segundo lugar, assim
como os recortes das trajetórias das personagens reais que ela coleciona em uma caixa de
papel, os quais integram o time dos que foram relegados à margem como, entre outros,
Camile Claudel, a amante de Rodin, que enloqueceu por ter sido preterida em relação à esposa
do famoso escultor francês, e Henrich Mann, o irmão escritor que sempre viveu à sombra do
ganhador do prêmio Nobel, Thomas Mann. Apesar de todas as diferenças entre elas: Sofia,
morena, 45 anos, bióloga bem sucedida; Lídice, 35 anos, loira alta, de olhos azuis e sem
profissão definida, são personagens que buscam ser amadas, numa narrativa cuja educação, ou
formação, se projeta sempre densa e dramática. Esse romance pode ser caracterizado como
um “romance de transformação ou renascimento”, cujas protagonistas aprendem a viver no
mundo a partir de um lugar desprivilegado, adquirindo, ao final de um ciclo de infortúnios e
perdas, uma nova filosofia de vida.
A obra Algum Lugar, primeiro romance de Paloma Vidal, poderia ser caracterizado
também como de “transformação ou renascimento”, uma vez que nesse tipo de romance o
processo de formação da protagonista tem início já na vida adulta. De fato, a personagem-
narradora, que não tem nome, está quase com trinta anos quando começa a narrativa. Nos
romances de formação femininos, assim como em outras obras literárias escritas ao longo da
história, o motivo da viagem representa quase sempre um sentido de imersão interior, de
autodescobimento da personagem. No caso do romance de Paloma Vidal, há o deslocamento
da personagem e do marido do Rio de Janeiro/Los Angeles/Rio de Janeiro. Dividindo a
narrativa em primeira, segunda e terceira pessoas, devido ao menor ou maior distanciamento
em relação aos fatos narrados, a história, conduzida pelo fio da memória da protagonista,
como se fosse um diário íntimo, abarca fragmentos da sua estada junto com o marido em Los
Angeles para escreverem suas teses de doutorado, da sobrevivência com o dinheiro curto, da
busca por estabelecer relações, mesmo que frágeis, com outros estrangeiros que povoam a
cidade, do seu angustiado processo de desbravamento da cidade: “As ruas desertas me
intimidam, como se ao andar estivéssemos fazendo algo proibido. As distâncias parecem
maiores do que são” (VIDAL, 2009, p. 36). A narrativa é pontilhada por questionamentos
existenciais, nos quais se sobressaem como características do Bildungsroman a busca de uma
filosofia de trabalho, o enfrentamento do mundo exterior e os envolvimentos amorosos. No
final do romance, o nascimento do filho e o fracasso do casamento parecem abrir-lhe novas
possibilidades de autoconhecimento. Para Magri (2010, s.p.), a “qualidade do romance é que
não há nenhum gesto previsível na trajetória da protagonista que vive os papéis de estudante,
professora de espanhol, mãe e mulher às voltas com um casamento que não deu certo”.
52
da mãe e do padrasto, esse seria um Bildungsroman com final positivo, uma vez que, ao final,
ao optar por ficar nos Estados Unidos, a personagem parece ter alcançado uma integração do
eu com o mundo: “Num belo dia eu me dei conta de que não tinha importância o país onde eu
estava. A cidade onde eu estava. Outras coisas tinham importância. Não essas” (LISBOA,
2010, p. 215).
Assim, um aspecto crucial no romance de formação contemporâneo seria a educação
das protagonistas, o que as insere no mundo do trabalho e as torna sujeitos capazes de fazerem
escolhas. Das quatro protagonistas analisadas, tem-se uma bióloga no romance de Heloísa
Seixas, uma professora na obra de Paloma Vidal e uma jovem que também passa por um
processo formal de educação no romance de Adriana Lisboa. São mulheres capazes de fazer
suas próprias escolhas, o que, inevitavelmente, leva a riscos incalculáveis, uma vez que o
ideal dos relacionamentos afetivos caracterizados como eternos é cada vez mais raro na
contemporaneidade, marcada pela impossibilidade de tornar menos fluido o tempo.
No próximo capítulo, será apresentado um resumo dos caminhos trilhados pelo
Feminismo das décadas finais do século XX ao início desse século, as suas fraturas internas e
as transmutações que o transformaram, a ponto de hoje alguns já falarem de Pós-feminismo,
para que, a partir das análises dos romances, possa-se verificar como ocorre o processo de
subjetificação das personagens femininas no Bildungsroman de autoria feminina do século
XXI.
54
CAPÍTULO 2
A SUBJETIFICAÇÃO FEMININA NO BILDUNGSROMAN DO SÉCULO XXI
seria a estratégia da igualdade entre os sexos. Alguns pontos, bastante enfatizados por
Badinter, seriam a regressão da figura feminina ao papel tradicional de mãe, a insistência na
exibição da mulher na situação de vítima ou vitimização e a busca da diferença.
Para a autora, as décadas de 70 e 80 foram marcadas por um grande entusiasmo, entre
as feministas francesas, devido a algumas conquistas femininas como a inserção das mulheres
no mercado de trabalho, o surgimento da pílula contraceptiva (1953), a legalização do aborto
(1975), a possibilidade do divórcio (1975)16. A autora enfatiza que “em menos de vinte anos,
as feministas podiam-se rejubilar com um balanço glorioso” (BADINTER, 2005, p. 13), e,
mais adiante, ressalta que isso assinalava o fim do patriarcado, ao acrescentar que “a imagem
da mulher tradicional ia se apagando para dar lugar a uma outra, mais viril, mais forte, quase
senhora de si, se não do universo” (BADINTER, 2005, p. 14).
Nesse contexto, se a igualdade dos sexos passa a ser o critério da verdadeira
democracia, começam a se acentuar as diferenças entre o feminismo norte-americano e o
francês. Com efeito, se as feministas norte-americanas intensificavam as denúncias da
violência contra as mulheres, colocando em evidência a mulher como vítima, as francesas
estavam mais preocupadas com a dupla jornada de trabalho e com a indolência masculina.
16
No que concerne à questão do divórcio a sociedade francesa tem uma trajetória bem diferente da brasileira.
Em 1975, houve uma reformulação na Lei, levando em conta o consentimento mútuo e a separação de
corpos. De fato, o divórcio já era permitido no país, com uma liberdade bem ampla, desde o advento de uma
lei de 1792.
17
Esse livro, cujo título em português seria O Basta das supermulheres, ainda não tem tradução no Brasil.
58
ser extremamente amarga, obrigando-as a trabalharem fora e assumirem três quartos das
tarefas domésticas. A emancipação feminina, então, acabou por se mostrar frágil, devido ao
fato de que não houve mudanças substanciais no papel desempenhado pelos homens. Nesse
cenário, o ressentimento com as feministas que “havendo proclamado objetivos irrealizáveis,
foram depois refugiar-se no silêncio ou no mea culpa” (BADINTER, 2005, p. 16), era natural
e, até mesmo, inevitável.
As crises econômicas, que marcaram a virada dos anos 90, levaram muitos homens, e
mais ainda mulheres, a ficarem a mercê do desemprego. Assim, “a época não era propícia às
reinvindicações feministas” (BADINTER, 2005, p. 16). A autora reitera as ressalvas a uma
parcela da crítica feminista que põe cada vez mais em evidência a mulher como vítima. Para
ela, no movimento feminista “ao sublinhar incessantemente a imagem da mulher oprimida e
indefesa ante o opressor hereditário, perde-se toda a credibilidade junto às novas gerações,
que veem as coisas por outro prisma” (BADINTER, 2005, p. 19).
Ao indagar sobre os rumos do Feminismo, a partir dos anos 90, Badinter se pergunta
se o discurso feminista da mídia reflete a preocupação da maioria das mulheres e adverte que
“o feminismo dos últimos anos tem deixado de lado as lutas que constituíram sua razão de
ser” (BADINTER, 2005, p. 19). Na sua concepção, a liberdade sexual vem dando lugar a uma
sexualidade domesticada e ao ressurgimento do mito do instinto maternal, que parece
reaprisionar a mulher ao papel tradicional.
Isso pode ser observado ao se folhear algumas reportagens de revistas destinadas ao
público feminino que, além de “ensinarem” as mulheres a serem mais sedutoras e, assim,
manterem o interesse sexual e afetivo de seus parceiros, mostram depoimentos de mulheres,
geralmente de classe média alta, que abriram mão da carreira profissional, para cuidarem dos
filhos, reafirmando a questão do “amor materno”, mito desconstruído por Badinter, na
emblemática obra, publicada em 1981, Um amor conquistado: o mito do amor materno.
Uma reportagem recente da Revista Marie Claire, com o título sugestivo “Pós-
feminismo ou retrocesso?”, escrita por Iracy Paulina, mostra que há uma tendência nos
Estados Unidos, e também no Brasil, de as mulheres abdicarem de uma carreira que se
encontra no auge, para voltarem para casa e serem sustentadas pelos maridos. Nesse caso, é
significativo o depoimento da psicanalista Maria Beatriz Pimentel dos Santos, filha de uma
pioneira do movimento feminista brasileiro, Silvia Pimentel, que abandonou seu consultório
de psicanálise em São Paulo e foi morar na Argentina com o marido. O seu depoimento
reflete a insegurança da mulher que abandona uma carreira promissora para assumir as tarefas
domésticas como inerentes à condição feminina: “Há momentos em que tenho certeza das
59
minhas decisões e me sinto privilegiada por poder fazer escolhas, pois acompanho de perto o
crescimento de meus filhos” (PAULINA, 2013, p. 83-84). Em outros momentos, ela se
contradiz, mostrando que, de fato, muito mais que uma escolha, acaba por ser uma imposição
devido à forma como a sociedade é organizada: “Mas há outros em que a coisa pega, me sinto
insegura e tenho a sensação que, como ele ganha mais, perdi minha independência”
(PAULINA, 2013, p. 84).
Essas revistas, destinadas a um público feminino minoritário, não mencionam o caso
das mulheres pobres, muitas vezes chefes de famílias, que, por não terem essa opção de serem
sustentadas pelos cônjuges, são obrigadas a conviver com o cansaço e a culpa ao assumirem
dupla jornada de trabalho.
Dessa forma, a obra de Badinter (2005), ao apontar a cisão que se opera no feminismo
francês, permite compreender a questão do feminino na atualidade como uma ruptura com o
feminismo tradicional. Esse denominado “feminismo da diferença” tem apontado alguns
retrocessos em relação ao modo de estar da mulher na sociedade.
Nesse sentido, outra obra crucial para a compreensão da situação feminina na
atualidade, e que, de certa forma, dialoga com a de Badinter, é O Mundo das Mulheres, de
Alain Touraine, publicada em 2006, a qual, ao fazer um balanço do movimento feminista, o
autor afirma que este modificou substancialmente a condição das mulheres e que permanece
mobilizado nos lugares em que ainda se conservam traços da dominação masculina. Para
Touraine (2011), se é fato que muitas jovens mulheres valorizam a liberdade que o
movimento feminista lhes permitiu conquistar, por outro lado não suportam o espírito
“militante” e combativo que ainda mantém os discursos de alguns grupos feministas.
É inegável, portanto, que houve um retrocesso quanto à convicção na eficácia das
reformas relativas aos gêneros. Para o autor, embora haja casos excepcionais de casais que
buscam a igualdade nas relações sexuais como em outros domínios da vida em comum, vivendo
em uma espécie de contracorrente, essa não é regra nem uma prática geral, uma vez que não
existe ainda uma concreta igualdade de gêneros. Por outro lado, um dos grandes dilemas da
mulher contemporânea está ligado ao fato de que a diminuição das desigualdades implica, de
certa forma, no esfacelamento das relações familiares, com os relacionamentos cada vez mais
instáveis, como afirma Bauman em várias ocasiões (1998, 2001) e, sobretudo, na sugestiva obra
Amor liquido (2004). Assim, “se a desigualdade diminui um pouco, a solidez de todas as formas
de laços conjugais diminui muito mais rapidamente” (TOURAINE, 2001, p. 20).
As ações femininas e as consequências de seu comportamento, na concepção de
Touraine, são profundas e apresentam grande visibilidade. Mesmo apresentando uma visão
60
positiva em relação à evolução social feminina, o autor apresenta alguns aspectos que
corroboram as afirmações de Badinter, ao refletir que, a despeito dos avanços, ainda se
observa o uso do corpo feminino pela propaganda comercial. Já na esfera econômica, mesmo
as mulheres ocupando um espaço maior, ainda estão restritas a empregos precários ou pouco
qualificados. Além disso, com frequência os homens se referem às mulheres como objeto de
desejo, levando o autor a questionar: “Como, nessas condições, negar que ainda estamos tão
fortemente ancorados numa sociedade de homens?” (TOURAINE, 2011, p. 20).
Isso vai ao encontro das afirmações do sociólogo francês, Pierre Bourdieu (2005), na
obra A dominação masculina, publicada em 1999. A partir de estudo com a sociedade
tradicional Cabila – que não teve conhecimento dos ensinamentos ocidentais – Bourdieu faz
apontamentos relevantes sobre a relação entre os gêneros, que servem para as sociedades
ocidentais contemporâneas. Bourdieu situa a dominação masculina no centro da economia
simbólica, tomando-se uma prática corporizada que atinge tanto homens quanto mulheres.
Dessa forma, é por meio do corpo que se inscrevem as disputas de poder, tornando-se o corpo
uma materialização da dominação. O autor salienta, corroborando o que Badinter afirmou
sobre a sexualidade domesticada, que a dominação masculina faz com que as mulheres sejam,
ainda na contemporaneidade, vistas como objetos simbólicos e adverte que talvez a face mais
cruel da dominação masculina seja a suposta liberdade sexual feminina, que acaba por
subordiná-la ao desejo masculino. Assim, a “exibição controlada do corpo como um sinal de
“liberação”, basta mostrar que este uso do próprio corpo continua, de forma bastante evidente,
subordinado ao ponto de vista masculino” (BOURDIEU, 2005, p. 40). Desse modo, a posição
de Bourdieu é de que as mulheres continuam presas ao mundo feminino criado pelos homens.
Touraine, por sua vez, acredita que essa representação da mulher-para-o-outro, tão
interiorizada ainda em algumas mulheres, deve ser destruída: “Ser uma mulher para si,
construir-se como mulher, é, ao contrário, transformar essa mulher para o outro em mulher
para si” (TOURAINE, 2011, p. 41, grifos do autor). Contudo, o mundo globalizado e cada
vez mais com suas fronteiras móveis, a oposição mais marcante não seria entre homens e
mulheres, embora ainda bastante evidente, mas há uma série de fatores que provocam um
sentimento de impotência geral. Touraine avalia que com o triunfo das redes financeiras e das
empresas transacionais, bem como com o desmantelamento de todas as forças engendradas
pela esquerda – como o Leninismo e a Social-democracia – o liberalismo econômico tem
preponderado como forma extrema do capitalismo, obstruindo qualquer tipo de força ou
reforma social.
61
18
Nesse livro clássico do Movimento Feminista, Betty Friedan relata o estilo de vida da mulher americana que
era educada apenas para ser dona de casa e mãe. O modelo de feminilidade da época não incentivava a
mulher à busca de uma educação mais aprofundada ou à inserção na luta por direitos políticos ou
independência financeira: “Bastava-lhes orientar a vida desde a infância no sentido de busca de um marido e
da formação da família” (FRIEDAN, 1971, p. 18).
62
19
Essas alterações no modo de vida de homens e mulheres, em meio ao cenário globalizado, com as
terceirizações e as privatizações, estabelecem uma ordem social perversa decorrente da internacionalização
do capital.
63
Algumas análises mais pessimistas apontam para um fracasso do feminismo, uma vez
que, além da dificuldade entre conciliar uma carreira de sucesso – a vocação de ser humano,
apontada por Simone de Beauvoir – com a questão familiar que envolve maridos e filhos, que
é um dos grandes debates atuais, há o cerceamento provocado pelo machismo, pelos
preconceitos seculares e pelas pressões da sociedade de consumo capitalista.
Touraine (2011) argumenta que o feminismo ultrapassou seus objetivos originários.
Por isso, após inquestionáveis vitórias sobre as desigualdades, as mulheres se preocupam
menos com a dominação masculina. A própria possibilidade de escolha que as mulheres têm
hoje era impensável antes do movimento feminista. A escritora e crítica feminista, Rosiska
Darcy Oliveira, eleita em 2013 para a Academia Brasileira de Letras, acredita que o
feminismo mudou a face do mundo atual, tanto para os homens quanto para as mulheres. Para
ela, o dilema casa versus trabalho não é restrito às mulheres, mas também concerne aos
homens. Na visão da autora, “precisamos de novas políticas empresariais e públicas que
permitam às mulheres fazerem uma reengenharia do tempo e equilibrar vida profissional e
privada” (OLIVEIRA apud PAULINA, 2013, p. 83).
A mulher sujeito não é uma deusa ou uma estátua, mas um ser humano que
cria (dificilmente) as relações entre seus papéis sociais, dos quais ela não
pode se desfazer, que gera sua experiência biológica inseparável da relação
com as crianças, que constrói suas relações com um ser amado, do mesmo
sexo ou não e, enfim, que gera a relação para consigo mesma –
reconhecimento (recognition) de si que está no centro da construção de si. O
sujeito não sobrevoa as batalhas; ele combate passo a passo, recebe golpes e
ferimentos aos quais às vezes sucumbe, mas carrega nele uma esperança que
dá sentido à vida de muitas pessoas (TOURAINE, 2011, p. 51).
pelo desejo do outro, buscam uma autoafirmação existencial, por meio do direito à construção
de si mesmas.
Segundo Touraine, ainda que as relações de sexualidade reproduzam as desigualdades,
para que haja uma construção pessoal do sujeito, a atividade sexual deve ser dessocializada.
“Daí a importância extrema do corpo como espaço de relação consigo mesmo e de construção
de si” (TOURAINE, 2011, p. 57). Mesmo reconhecendo a importância da noção de gênero
nos movimentos femininos, Touraine afirma que a sexualidade não é consequência do dado
biológico nem uma construção social imposta pelo poder masculino. Na sua concepção, “ela é
transformação dos desejos sexuais em construção de si, já que a sexualidade transforma um
dado não social em afirmação – ela também não social – de uma liberdade criativa”
(TOURAINE, 2011, p. 63). O autor acrescenta que a reordenação dos impulsos sexuais
contribui na criação do ator que não seja determinado pelo meio ambiente.
Touraine reconhece também que há pouco espaço para a criação de um sujeito livre,
uma vez que “o cerceamento da ordem social é tão grande que se faz necessário abrir uma
brecha em seus muros para que os desejos e as forças vitais possam fluir” (TOURAINE,
2011, p. 63). Se, para o homem, esse espaço é restrito, para a mulher é ainda mais limitado,
devido ao fato de que sua libido tende a ser transformada em função social de reprodução, o
que, de certa forma, condiz com a afirmação de Badinter (2005), de que a sexualidade
domesticada leva à emergência do instinto materno como inerente ao feminino. Contudo,
ainda que o corpo feminino tenha sido marcado por funções, pode tornar-se linguagem de
libertação, realizando a sexualidade pela integração da experiência corporal, sexual, estética e
moral. As mulheres, ao não se considerarem “nem prostitutas nem mulheres submetidas”
(TOURAINE, 2011, p. 89), acabam por se sentirem mais livres que dependentes.
É forçoso reconhecer que, na atualidade, o homem – ou seja, o Patriarcado – não é
mais o grande poder opressor. Como afirmou Badinter, “o século XX anunciou a morte dos
valores viris no ocidente” (BADINTER, 1986, p. 139). A organização social, que concentra
poderes políticos e recursos econômicos nas mãos de poucos, acaba por colocar os demais
como inferiores e oprimidos. É compreensível, então, que nos romances de formação
feminina contemporâneos, o foco das autoras não seja – assim como nos romances de
formação emblemáticos do século XX, como os citados no primeiro capítulo, de Raquel de
Queiroz, Lúcia Miguel Pereira, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles e Lya Luft – de
protesto aos valores vigentes da ordem patriarcal.
Autoras como Adriana Lisboa e Paloma Vidal colocam em cena as injustiças sociais e
os desmandos políticos que provocaram mortes e mudaram radicalmente muitas vidas. Em
66
Azul-corvo, a Guerrilha do Araguaia, que ocorreu entre os anos de 1967 e 1974, na região
amazônica, em plena ditadura militar, ganha destaque na voz da adolescente Vanja, que, ao
descobrir a história do seu país, redescobre-se também a si mesma. Já em Algum lugar é a
guerra do Iraque, no ano de 2003, motivada pelos ataques de 11 de setembro de 2001, e com
objetivo de combate ao terror, que aparece em vários momentos da narrativa, agravando o
isolamento da protagonista e suscitando reflexões sobre as justificações da guerra e o
resultado das eleições de 2004, na qual os americanos reelegeram o presidente George Bush,
mesmo reconhecendo que a invasão ao Iraque havia sido um erro.
É inegável, porém, que, nesses romances, algumas marcas do patriarcado reverberem
negativamente nas trajetórias das protagonistas. Vanja, de Azul-corvo, “herda” o vazio da
imagem paterna de Suzana que, ao romper com o pai, não estabelece uma relação de
continuidade familiar, gerando o sentimento de orfandade da filha. A protagonista de Algum
lugar também sofre com os dissabores da maternidade, que ainda hoje é onerosa às mulheres.
E Lídice e Sofia, de Pérolas absolutas, vivenciam de forma dolorosa a descoberta da
sexualidade, o conflito com pais opressores e a rivalidade ferrenha entre mulheres que
disputam o mesmo homem. Ainda assim, pode-se afirmar que a crítica às ações políticas e às
relações sociais acaba por se impor sobre a necessidade de manifestação das reinvindicações
femininas. O que se observa é que o esfacelamento social, a economia globalizada e as
migrações contemporâneas levam homens e mulheres a tornarem-se sujeitos e serem
responsabilizados por suas escolhas. Assim, “o sujeito é a afirmação de cada um à liberdade e
à responsabilidade” (TOURAINE, 2011, p. 181), o que é possível, apesar dos determinismos
sociais que, não raras vezes, reduzem os indivíduos – homens e mulheres – a meros
consumidores. Nesse caso, para Touraine, a luta pela igualdade feminina passa pela
reinvindicação da diferença.
É importante salientar que essa diferença não condiz com o que prega o feminismo
norte-americano e parte do feminismo francês em tornar os atributos relacionados à
sensibilidade, maternidade e domesticidade ligados ao feminino, mas seria a construção de
uma subjetividade própria, que leve as mulheres à construção de si mesmas, não mais a partir
do olhar e do desejo do outro.
Nos romances a serem analisados, pode-se observar que as protagonistas, ao
integrarem uma sociedade pós-moderna e pós-feminista, angustiam-se com os dilemas
inerentes ao cenário contemporâneo, mas vivenciam experiências de subjetividade feminina
no seu contínuo processo de formação de si mesmas.
67
CAPÍTULO 3
O BILDUNGSROMAN NO MUNDO EM TRÂNSITO DE ADRIANA LISBOA
20
Em tradução livre, seria uma “história vibrante e esperançosa sobre como encontrar as nossas famílias e onde
fazemos nossas casas”.
68
mas muito bem-vinda porque, mais uma vez, me expôs a uma novidade, a uma cultura e um
local desconhecidos” (LISBOA, 2010b, s.p.)21.
Azul-corvo, publicado em 2010, é uma dessas obras na qual a protagonista, ainda
muito jovem, começa a traçar as linhas de um novo destino, diferente daquele comum às
protagonistas das narrativas do século XIX e mesmo do século XX. O romance traz como
núcleo narrativo central o deslocamento de Vanja, ainda adolescente, do Rio de Janeiro para
Lakewood, cidade do estado do Colorado, ladeado pelas montanhas rochosas e com um clima
semiárido. Na busca pelo pai biológico que nunca conhecera, a garota se depara com
Fernando, ex-marido da mãe recém-falecida e que a havia reconhecido como filha. Em
Lakewood, de forma bastante improvável, ela acaba construindo laços afetivos importantes
com o ex-guerrilheiro Fernando, o imigrante salvadorenho Carlos, a avó Florence, até então
desconhecida, e a britânica June, a ponto de, anos depois, o fato de conhecer o pai biológico
tão procurado, não fazer mais tanta diferença em sua vida.
A obra poderia ser caraterizada, de acordo com o modelo narrativo proposto por Pratt
(1981), citado por Pinto (1990), como um romance de aprendizagem ou de desenvolvimento,
uma vez que retrata o período de formação da personagem que começa na adolescência e cuja
trajetória tem como objetivo a integração social. O romance, assim como os demais que
constituem o corpus desse trabalho, apresenta uma narradora homodiegética, cuja trajetória é
contada em retrospectiva, anos após a perda da mãe. Essa escolha do ponto de vista, centrado
na memória da personagem, é de extrema importância no modo como são encadeados os fatos
que enformam a formação da protagonista. Para Schwantes (1997), na narrativa em primeira
pessoa, cria-se uma interdependência entre personagem e enredo, cada um determinando o
outro. A pesquisadora salienta que “um narrador homodiegético feminino é, por si só,
subversivo, uma vez que a mulher está narrando ao invés de ser narrada” (SCHWANTES,
1997, p. 5).
A maturidade da personagem tem início com a decisão de ir em busca do pai biológico
e vai até os vinte e dois anos quando parece estar integrada ao espaço norte-americano, pois é
em meio ao sentimento de deslocamento e tentativas de construção de novas referências que
se constituirá o processo de formação de Vanja, a partir de elementos importantes como a
ausência/presença da figura materna, a busca pelo pai biológico e encontro afetivo com
Fernando, a viagem do Brasil aos Estados Unidos e, depois, no interior do Colorado, o
conhecimento formal e informal da história recente do país e suas feridas mais profundas.
21
Entrevista a Suzana Uchôa Itiberê, da Revista ISTOÉ Gente, retirada da internet, sem número de páginas.
Disponível em: <http://www.terra. com.br/istoegente/edicoes /580/artigo189292-1.htm>.
69
Desse modo, é a profusão de imagens oriundas da memória que vão permear as vivências de
Vanja em outro país e no seio de uma família que não é a sua. Há um elo impossível de ser
refeito entre sua identidade e as experiências vivenciadas por seus familiares, sobretudo a
figura da mãe morta, que estará sempre presente em suas reflexões acerca de seu presente e
dos rumos de seu futuro. Contudo, o papel desempenhado pela mãe será sempre o oposto do
tradicional, uma vez que ela não se encaixa no papel usual de mãe que tem sempre todas as
respostas.
O primeiro capítulo, intitulado “Periplaneta americana”, cuja explicação é fornecida
pela protagonista ao sublinhar que eram baratas americanas que tinham “a capacidade de se
autorregenerar, dependendo da gravidade da injúria” (LISBOA, 2010, p. 11), dialoga
simbolicamente com a história de Vanja que, após a perda da mãe, busca reinventar-se em
outro país.
Se sua história se assemelha a tantas outras histórias que acontecem todos os dias com
meninas de 13 anos, que não conheceram seus pais biológicos, e repentinamente se veem
órfãs e obrigadas a morar com um parente mais próximo, o diferencial está no modo como ela
enfrenta suas perdas e seus dissabores.
Ao abarcar um período de nove anos, narrando a trajetória dos treze aos vinte e dois
anos, a narradora protagonista busca, por meio do resgate da história da mãe, as marcas de sua
própria história ao enfatizar que: “Mas digamos, para fins narrativos, que tudo tenha
começado com ela. Treze anos antes” (LISBOA, 2010, p. 25).
A partir daí, de forma alternada e fragmentada, o/a leitor/a passa a acompanhar a
trajetória de Suzana, que perdeu a mãe aos nove anos – “as mães dessa família morrem cedo”
(LISBOA, 2010, p. 27), enfatiza Vanja, ao referir-se à mãe e a si própria – herdou as bonecas
da mãe e foi morar no Texas com o pai geólogo. No período de cerca de vinte e dois anos que
morou nos Estados Unidos, Suzana aprendeu formalmente na escola a língua inglesa e,
informalmente, com os texanos, o espanhol. Esse aprendizado, que impõe a Vanja, anos
depois, será a forma de sustento da mãe de Vanja, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
Ao argumentar que ser professora de línguas era uma “profissão coringa” em qualquer lugar
do mundo, ela transmitia à filha o que mais conhecia:
Foi ela quem me ensinou inglês e espanhol. Era o que ela sabia fazer. Se
fosse professora de ioga, teria passado doze anos me ensinando ioga, e se
trabalhasse na lavoura eu teria uma enxada antes mesmo de aprender a falar.
Era o que ela sabia fazer e achava um desperdício não deixar para mim, de
graça, como herança em vida, qualquer conhecimento que fosse (LISBOA,
2010, p. 26).
71
22
“Diáspora” é um termo bastante usual nos estudos culturais para exprimir os deslocamentos, geralmente
forçados de grandes populações, como a dispersão bíblica dos hebreus, que foram exilados na Babilônia, no
século VI a.C. Stuart Hall (2011) usa o termo para definir os grandes deslocamentos populacionais, sobretudo
de ex-países coloniais para as grandes metrópoles dos países de Primeiro Mundo, a partir da Globalização.
Segundo ele, esses deslocamentos levam à constituição de culturas híbridas – a partir da fusão de diferentes
tradições culturais – e à formação de consciências duplas.
72
Oficialmente, Fernando era meu pai e meu guardião. Quando minha mãe
engravidou de meu pai de verdade, um americano, sumiu da vida dele, e
quando eu nasci ela telefonou do Novo México ao Fernando, seu ex-marido,
que vivia em um estado ao norte e seis horas de carro dali, no Colorado. [...]
Fazia quatro anos que eles estavam separados e possivelmente ele a conhecia
bem a ponto de ela não ter que explicar nada (LISBOA, 2010, p. 68).
Já de volta ao Brasil, com Vanja ainda criança, nas viagens de férias à Barra do Jucu,
no Espírito Santo, ela manteria esse comportamento livre e descompromissado,
impressionando a filha ao colocar a cabeça para fora do carro e cantar, bem alto, músicas da
cantora americana Janis Joplin, símbolo da liberdade e da ousadia propostas pelo movimento
americano de contracultura Hippie, falecida aos 27 anos, em 1970, devido à overdose de
drogas. As canções de Janis Joplin, que sempre teve um comportamento livre e irreverente
para os padrões da época e quase foi presa no Brasil, pouco tempo antes de sua morte, por
atitudes consideradas inadequadas na praia de Copacabana, falavam de liberdade, amor e paz
e eram repetidas de forma entusiástica por Suzana: “Mesmo quando eu não entendia a letra
(“Liberdade é apenas uma outra palavra para nada mais a perder/ Nada significa nada meu
bem se não for livre‟), ficava hipnotizada pelo transe de minha mãe” (LISBOA, 2010, p. 32).
Quando Vanja a compara com a cantora americana, Suzana desconversa dizendo que a
única coisa que elas tinham em comum era o fato de seus pais terem trabalhado para a
Texaco. E mesmo Vanja afirmando que a mãe era o avesso de Janis Joplin – talvez pelo fato
de ter sobrevivido aos vinte anos e ter tido uma filha – a narrativa evidencia que as duas
tinham muito em comum: ambas eram ousadas, libertárias e abandonaram o Texas em busca
de horizontes mais amplos.
Vivendo nesse mundo fluido, onde as oportunidades são infindas e há muitas escolhas
possíveis, os relacionamentos afetivos e sexuais de Suzana são extremamente fugazes,
durando alguns verões apenas, apesar da torcida e do desejo de Vanja para que perdurem. Tal
desejo revela a carência de uma figura paterna. De certo modo, a incapacidade de Suzana em
estabelecer laços afetivos mais duradouros parece derivar da rebelião contra a autoridade
paterna, o que aponta para uma questão de gênero tão marcante nas relações familiares nos
74
anos setenta e oitenta. Embora, na obra, não haja referências ao motivo do rompimento, pode-
se supor que tenha sido algo muito sério, uma vez que o pai morreu sem ser perdoado.
Segundo Bauman, na modernidade fluida, o sexo está despido de obrigações assumidas e de
laços adquiridos. O autor acrescenta ainda que “o resultado total é o rápido definhamento das
relações humanas, despindo-as de intimidade, e o esmorecimento do desejo de entrar nelas,
conservá-las vivas” (BAUMAN, 1998, p. 168). A passagem do livro, citada abaixo, evidencia
esse esvaziamento das relações que, devido ao contexto libertário dos anos noventa, e à
própria configuração da identidade transgressora da personagem, estão condenadas, desde o
início, ao fracasso:
De certa forma, a estranha configuração familiar também reflete esse cenário marcado
pela mobilidade nas relações. O avô, com quem a mãe havia rompido relações antes de seu
nascimento, morto, assim como a avó, que ela nunca conhecera, e a tia adotada, Elisa,
marcada pelo pecado original de ser filha da empregada em uma sociedade de hierarquias
rígidas como a brasileira, formavam uma árvore genealógica composta por “galhos secos”.
Dessa forma, Vanja herda a dificuldade da mãe em estabelecer relações de continuidade, uma
vez que lhe faltou a imagem da figura paterna:
Essa foi minha árvore genealógica até os treze anos de idade. Um homem e
quatro mulheres em três gerações. Aritmética esquisita, amarrada com lenços
coloridos dentro da cartola de um mágico. Uma árvore genealógica à qual
faltavam raízes e que em lugar de certos galhos tinha apenas gestos meio
vagos, indicações, sugestões, deixa-pra-lás (LISBOA, 2010, p. 36).
Talvez por não compor o perfil das mães clássicas, Suzana, além de transmitir seu
conhecimento de línguas à filha, certa de que um dia poderia lhe ser útil, quando precisasse
tornar-se independente e prover seu sustento, procurava nunca dar-lhe respostas prontas ou
ensinamentos dogmáticos. Por outro lado, jamais se eximia de responder a qualquer pergunta
75
que a filha lhe fizesse, fazendo com que ela adquirisse, ao longo da infância, certa autonomia,
que seria extremamente valiosa no momento que, sem a mãe, ela foi obrigada a fazer suas
próprias escolhas. Mesmo argumentando que preferia não ter aquela autonomia sobre a
própria maturidade, Vanja acaba por reconhecer a importância da responsabilidade adquirida.
Essa possibilidade de escolha, que é um dos dilemas vivenciados por Vanja desde a
infância, causa o que Sartre (1978) denomina de angústia. A angústia decorre da profunda
responsabilidade perante as escolhas humanas. Na visão existencialista de Sartre, ao contrário
do que dizem críticos marxistas e cristãos, a angústia não leva ao quietismo e inação, uma vez
que “trata-se de uma angústia simples, conhecida por todos que têm responsabilidades”
(SARTRE, 1978, p. 8). Nesse sentido, o desamparo humano decorrente da não existência de
Deus, faz com que o homem seja livre para fazer escolhas. Sartre afirma que “o homem está
condenado a ser livre”. E acrescenta: “Condenado porque não criou a si próprio; e no entanto,
livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer” (SARTRE,
1978, p. 9). Assim, “o desamparo implica sermos nós a escolher nosso ser. O desamparo é
paralelo da angústia” (SARTRE, 1978, p. 12).
Com efeito, apesar de todo o sentimento de desamparo de Vanja ao perder a mãe e ser
obrigada a escolher, porque “era aquela brecha que previa o impulso, o momento certo de
pular clandestina dentro do trem de carga quando ele passa” (LISBOA, 2010, p. 65), é essa
relação de autonomia e cumplicidade o traço fundamental para sua formação nesse cenário
contemporâneo marcado pela provisoriedade, insegurança e liquefação de todas as relações,
onde não há certezas nem conquistas definitivas. Por isso, quando descobre que está prestes a
morrer, Suzana, com calma, cuidado e seriedade, de forma absolutamente natural, chama a
filha para tomar um sorvete e confidencia sobre a sua condição, explicando tudo que Vanja
quisesse saber. Nessa mesma noite, elas dormem juntas como se nada fosse capaz de separá-
las. Um ano depois, em julho, quando a mãe morre, Vanja, apesar da dor irremediável que a
atinge, já se sentia preparada para não sentir pena de si mesma: “Minha mãe morreu como
avisou que ia morrer e não demorou como avisou que não ia demorar e depois disso, nada foi
como antes, como ambas sabíamos que não seria” (LISBOA, 2010, p. 54).
As referências aos ensinamentos não convencionais da mãe e a ampla concessão de
responsabilidade aparecem ao longo da narrativa, evidenciando que no romance de formação
feminino de Adriana Lisboa, as mães não aparecem como autoritárias e rígidas, nem como
modelos falhados, como ocorrem em alguns romances do século XX, mas como uma força
propulsora que impele à autonomia em um cenário marcado pelas infinitas possibilidades e
poucas certezas, características da sociedade atual. Essa autonomia, que será extremamente
76
Esse período de doze meses entre a morte da mãe e a ida aos Estados Unidos, ela
definiu como não-lugar ao compará-lo aos aos dez dias “roubados” do mês de outubro, pelo
papa Gregório, em 1582, para instituir o calendário atual, denominado de Calendário
Gregoriano em substituição ao Calendário Juliano, instituído pelo imperador romano Júlio
César, no ano de 46 a.C. Tal mudança implicou na adequação nos dois dos reinos da
Península Ibérica, Itália e Polônia, eliminando os dias que iam de 04 a 15 de outubro, no ano
de transição, fazendo com que aquele ano fosse composto de apenas 355 dias nesses países.
Como o calendário tornou-se universal, os demais países fizeram os ajustes em datas
posteriores. Essa metáfora do calendário usada por Vanja assinala esse período em que nada
parece acontecer, mas que é necessário às transformações que ocorrerão depois.
Nesse caso, o tempo passado com a tia seria aquele ponto de trânsito, uma ocupação
precária e provisória, como pontua Augé (2005) ao referir-se a “um mundo assim prometido à
individualidade solitária, à passagem, ao provisório, ao efêmero” (AUGÉ, 2005, p. 74).
Apesar da dor que a atinge, Vanja sente a necessidade de reescrever sua trajetória, encontrar o
pai desconhecido, reinventar sua árvore genealógica composta de galhos secos. Na sua visão,
a orfandade poderia ser um “monstro antediluviano de tristeza” ou “podia ser um
acontecimento entre os inúmeros acontecimentos que pipocam no mundo a todo instante”
(LISBOA, 2010, p. 55), e assim a decisão de seguir em frente é mais uma, entre as muitas
outras possíveis.
A inclusão de Fernando em uma história que “a princípio, não tinha nada, ou quase
nada, a ver com ele” se justifica por esse morar nos Estados Unidos, onde teria começado a
história de Vanja, treze anos antes. Em decorrência disso, ela reitera várias vezes que aquele
ano também começara em julho, quando ela recebeu o telefonema de Fernando: “O ano
começou semanas antes quando Fernando telefonou” (LISBOA, 2010, p. 14).
Como é comum na narrativa contemporânea, sobretudo no Bildungsroman de autoria
feminina, o processo de formação da protagonista se faz de forma cíclica e descontinua. Por
isso, o telefonema de Fernando dando um sinal verde para sua partida para os Estados Unidos
é um marco na sua formação, na qual cada evento tem a sua relativa importância. Até mesmo
o fato de arrumar a mala é educativo, pois é quando ela se dá conta de quantas coisas inúteis e
desconfortáveis se acumulam ao longo da vida. Para Vanja, ao se desfazer dos ursinhos de
pelúcia que colecionavam ácaros, dos brincos, que não costumava usar, e dos tênis mais
bonitos, porém desconfortáveis, “a confrontação da beleza com a adequação pode ser algo
bem constrangedor. E a utilidade de um par de tênis, algo bem clandestino e precário”
(LISBOA, 2010, p. 15).
78
A ida de Vanja aos Estados Unidos, com uma mala praticamente vazia, resume, de
certa forma, o vazio emocional que sente após a morte da mãe, bem como o desejo de se
“preencher” com novas vivências em outro lugar. Dessa forma, o próprio significado da
viagem, em busca de um pai desconhecido, seria uma tentativa desesperada de, por meio do
encontro com pessoas que conheceram e conviveram com sua mãe, retomar uma ligação
afetiva perdida. O período de nove anos que passará nos Estados Unidos, ao lado de
Fernando, será decisivo na formação de Vanja. As noções de tempo, espaço, do estar no
mundo, vão se transformando continuamente assim como a “lenta mutação” da protagonista.
Eu tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O
que acentuava devido ao fato de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa
casa que não era minha, num país que não era o meu, com uma família de
um homem só que não era, apesar das interseções e intenções (todas elas
muito boas) minha (LISBOA, 2010, p. 11-12).
estar em trânsito, e não tínhamos qualquer relevância para a vida um do outro, nem eu para
Lakewood, nem Lakewood para mim” (LISBOA, 2010, p. 18).
A convivência com Fernando propiciará a Vanja um aprendizado informal e valioso
tanto das coisas mais práticas – e que, de certa forma, propagam as tarefas do dito mundo
feminino – como, entre outras, usar a máquina de lavar e o micro-ondas e conservar a casa
limpa, quanto o difícil aprendizado de outra cultura, como o fato de ter que pedir licença ao
dono para fazer carinho em algum cachorro, o que no Brasil é algo tão natural, narrado no
sugestivo capítulo intitulado “May I pet your dog?”, no qual Fernando a aconselha a ser mais
formal com as pessoas: “Não é para você chegar muito perto das pessoas. Fernando havia
explicado. Essa coisa brasileira de ficar dando monte de abraços e beijos. Se quiser
cumprimentar alguém, aperte a mão. É assim que funciona por aqui” (LISBOA, 2010, p. 101).
A formação cultural se dá também pela forma como ela vai se aclimatando, e mais uma vez é
Fernando quem promove o “batismo pela neve”, quando lhe traz de presente um trenó
vermelho de plástico e a empurra costa abaixo:
Dali em diante eu era um deles. Era igual. Era mais uma menina acolchoada
num casaco impermeável violeta, e botas pretas de borracha forradas com
pelo sintético. E calças jeans que ficavam duras de frio e onde emplastros de
neve grudavam. E luvas. E um gorro de lã com duas tranças de lã nas
laterais. [...] Eu agora existia em camadas (LISBOA, 2010, p. 138).
Contudo, mesmo não fazendo o papel tradicional de pai, Fernando, com sua sabedoria
oriunda de anos de convivência no seu autoexílio nos Estados Unidos, assim como nas
batalhas na Guerrilha do Araguaia, quase quarenta anos antes, pode proporcionar a Vanja um
saber feito de experiências: “Cuidado com isso de ser popular, ele disse. Fuja dessa palavra.
Popular. Fuja também da palavra loser. Perdedor. Não diga essas coisas. Não divida o mundo
entre gente popular e gente impopular, vencedores e perdedores. Essa merda toda” (LISBOA,
2010, p. 40).
Por meio dessa fala, Fernando exerce, de maneira informal, o papel do mentor ao
alertar Vanja para não se deixar seduzir pelo discurso perverso estadunidense, baseado na
competividade, que divide o mundo entre perdedores e vencedores. Segundo Mário César
Pacheco (2012), o parâmetro “winner/loser”, profundamente arraigado à cultura norte-
americana, uma vez que está ligado à formação histórica do país, consiste em um paradigma
sócio-cultural-comportamental que atua de forma inconsciente nas pessoas. Na maioria dos
casos, “o perdedor” é escolhido durante os tempos de colégio por não se enquadrar no padrão
popular – geralmente são crianças diferentes e tímidas – e sofrem a opressão de colegas e até
80
mesmo de professores, sob o olhar indiferente dos pais, que consideram natural essa
segmentação cultural. São esses “perdedores” que, muitas vezes, são capazes de assassinar
colegas e professores, de forma bárbara, conforme atesta o documentário Tiros de Columbine,
de 2002, do cineasta Michael Moore. Nesse filme, o diretor tenta buscar respostas para a
fascinação pela cultura bélica americana, ao retratar o massacre de quatorze estudantes e um
professor, realizado pelos adolescentes Dylan Klebold e Eric Harris – que não eram populares
e viviam ridicularizados pelos alunos-atletas da famosa escola – no refeitório do colégio
Columbine, no Colorado, em 1999. Em outros casos, persistem os traumas que acompanharão
a pessoa com a pecha de “perdedor” vida afora, alienando o indivíduo, ao não levar em conta
seu processo de formação individual. O que Fernando quer mostrar a Vanja é que esse sistema
de perdedor/vencedor é baseado nas aparências “e não questiona nem debate o processo de
crescimento pessoal, seja educacional, seja pessoal, seja social” (PACHECO, 2012, s.p.).
O acolhimento solidário de Fernando, que se compromete a ajudá-la no encontro com
o pai que ela desconhecia, estabelece entre os dois um parentesco que contradiz, em certa
medida, as identidades flutuantes da pós-modernidade, na concepção de Bauman (2004),
marcadas por parcerias frouxas e revogáveis. De fato, no começo parecia ser mesmo um
período provisório que eles passariam juntos até Vanja alcançar seu objetivo.
Ainda nesse contexto de convivência com Fernando, responsável não só por seu
deslocamento espacial do Rio de Janeiro ao Colorado, também ele lhe apresentará o mundo
com mapas. Para Augé, “a viagem constrói uma relação fictícia entre olhar e paisagem”
(AUGÉ, 2005, p. 80). É assim quando Fernando tenta unir os mapas do Colorado onde viviam
com o do Novo México onde Vanja nascera, unindo as fronteiras e explicando as distâncias.
Para Vanja, o mundo não era mapeável e as fronteiras, estradas, países, estados e cidades
eram apenas abstrações: “Mas aquelas abstrações estavam lá mesmo, de fato, situadas num
lugar bem específico e localizáveis e por isso os mapas, e essa era a parte intrigante”
(LISBOA, 2010, p. 109).
Para essa aventura, ela conta também com a companhia do imigrante ilegal
salvadorenho, Carlos, um menino de nove anos, que morava com o pai, a mãe e a irmã,
próximos à casa de Fernando. O que mais define Carlos é o fato de que “não tinha papeles”
(LISBOA, 2010, p. 102), ou seja, documentos que tornavam sua situação legalizada no país.
Por meio desse personagem emblemático, e sua família, Adriana Lisboa representa a
clandestinidade e o medo dos imigrantes que vivem de forma ilegal nos Estados Unidos.
Como uma fórmula bastante usada por imigrantes latinos em países de primeiro mundo, a
felicidade da família é possível apenas com o casamento da filha, que era atendente em uma
lanchonete, com um freguês americano, vinte anos mais velho que ela. Ao contrário dela, de
sua família e de seu ex-namorado ciumento, “o gringo tinha papeles. Mais do que isso. Ele era
gringo. Americano mesmo, de pai e mãe americanos e avós irlandeses” (LISBOA, 2010, p. 125).
A viagem pelo Novo México configura-se “em essência, [como] uma busca”
(LISBOA, 2010, p. 156), já que a viagem, nos romances de formação, está relacionada ao
processo de autoconhecimento da personagem. Essa experiência formadora a coloca diante do
novo e da mudança, como ensina Otávio Ianni (2000). Em uma das paradas, Fernando
finalmente conta a Vanja sua participação na Guerrilha do Araguaia e o motivo de sua saída
do Brasil. É quando também Vanja questiona o que mais ele seria dela, além de pai na
certidão de nascimento, e ele responde, sem titubear: “o que você quiser que eu seja”
(LISBOA, 2010, p. 148), evidenciando que a amizade e o afeto são vínculos indestrutíveis.
82
É isso o que faz com que, ao chegarem em Santa Fé, onde morava uma antiga amiga
de sua mãe, a sorridente e hospitaleira June, filha de mãe inglesa e pai americano, Vanja
comece a integrar-se de fato àquele mundo, percebendo que laços afetivos podem ser criados,
mesmo entre pessoas de origens diferentes, com idades e objetivos incompatíveis, formando
uma família multinacional e improvável: “Éramos um mundo de compatibilidades, estávamos
irmanados, nos equivalíamos – e onde não nos equivalíamos, nos compensávamos”
(LISBOA, 2010, p. 157). Nesse sentido, é relevante ressaltar que se os laços do núcleo
familiar tradicional – mãe, tia, avô – se esfacelam no decorrer da trajetória de Vanja,
evidenciando que mesmo as “relações de sangue”, não raras vezes, se mostram frágeis, isso
possibilitará que ela reconstrua esses laços nas relações móveis e periféricas.
83
É interessante esse percurso de Vanja, Carlos e Fernando pelo interior dos Estados
Unidos porque, se para Augé, “o espaço do viajante seria, assim, o arquétipo do não-lugar”
(AUGÉ, 2005, p. 81, grifo do autor), é por meio da viagem que a proximidade afetiva entre
Vanja e Fernando se torna mais evidente, possibilitando à adolescente curiosa e ávida por
informações um entendimento completo da história de Fernando, suas lutas e seus fracassos,
seus amores perdidos. É esse entendimento que permite a Vanja superar a frustração e a raiva
colossal de saber pela sua avó Florence que seu pai biológico morava na África já há algum
tempo. Nesse momento, a relação de afeto estabelecida com Fernando será seu ponto de
apoio, tanto que em duas passagens da narrativa ela reconstrói o fato de, ao ter que enfrentar
um revés na sua busca pelo pai, eles andarem de mãos dadas pelos jardins da casa da avó:
Fernando segurou a minha mão com um aperto que não era fraco nem forte,
e enquanto saíamos para o jardim e flocos esparsos de neve rodopiavam no
céu esbranquiçado, sem definir o seu destino. O tempo descumpria a
meteorologia. Mas os flocos de neve sumiriam no chão. Eles não chegavam
a ser presenças.
[...]
Fernando segurava a minha mão enquanto andávamos pelo jardim de
Florence e víamos as esculturas sem prestar atenção. Foi a única vez que eu
e ele andamos de mãos dadas. Ele segurava a minha mão pequena e fria com
a sua mão grande e fria e para um olhar mais apressado, que deixasse a
genética de lado, podíamos ser filha e pai (LISBOA, 2010, p. 173, 187-188).
Se a visita ao pai na África, algum tempo depois, e a convivência com a avó Florence
vão permitir a Vanja recompor sua árvore genealógica, é a relação com Fernando e sua
história que contribui na sua formação humana e intelectual, uma vez que, concomitantemente
ao fato de tomar conhecimento do passado de Fernando e, consequentemente, de seu país,
Vanja também passa a construir sua memória pessoal. Por isso, ao voltar ao Rio de Janeiro
para visitar a tia Elisa, sete anos depois, ela se dá conta de que “a cidade era a mesma e não”
(LISBOA, 2010, p. 214). E mais adiante acrescenta: “A casa de Fernando na Jay Street em
Lakewood, Colorado, foi aos poucos se tornando a minha casa também, por hábito. Por
costume. Por osmose” (LISBOA, 2010, p. 215). Isso aponta para a reinserção geográfica da
personagem à medida que ocorre o seu crescimento emocional, possibilitando-lhe uma
aproximação no relacionamento com o espaço.
Se a solidão, na concepção de Augé (2005), é uma experiência particular do e no não-
lugar, é a relação de afeto com Fernando que torna a casa no Colorado, que, mais tarde, ela
partilhará com Carlos quando Fernando vier a falecer e a família de Carlos mudar-se para a
84
Flórida, que fará com que Vanja crie uma identidade singular com o lugar, a ponto de, ao
final, os nativos não identificarem sotaque na sua fala.
A propósito, as últimas linhas do romance evidenciam o desejo de Vanja em
reescrever o final da história de Fernando e Suzana, de uma forma diferente da contada nas
páginas 69 e 70, quando Fernando dirige mais de seis horas na estrada, de Denver a
Albuquerque, para registrar a filha de sua ex-esposa, dois anos antes de Suzana voltar
definitivamente ao Brasil. Na versão de Vanja, as coisas se dariam de outra forma:
Pelo fato de o romance propor uma visão alternativa desse conflito ocorrido durante a
Ditadura Militar (1964-1985), apresenta traços do que tem se chamado, frequentemente, na
literatura contemporânea, de metaficção historiográfica.
O conceito de metaficção historiográfica, assim como a lista de obras que se
encaixariam nesse conceito, é bastante problemático e polêmico. Para fins desse trabalho, em
consonância com a proposta dos estudos culturais que embasa o estudo da obra, adota-se a
posição de Linda Hutcheon (1991) que estabelece o conceito de metaficção historiográfica
para as narrativas contemporâneas que apresentem autorreflexidade e façam referências a
personagens e eventos históricos. Essas obras, que se assumem como ficção, geralmente
problematizam e ampliam o saber histórico, com um tom sempre crítico e irônico, em relação
à história oficial.
É justamente essa releitura crítica da história do país, quando já se encontra distante
dele, que permite que Vanja tenha um novo olhar para sua trajetória, a de Fernando e a da
mãe, que volta ao Brasil, após o processo de redemocratização.
Fernando é um personagem que reflete o drama da geração marcada pela ditadura,
pois viveu a luta utópica de transformar o Brasil em um país com justiça social. Como um dos
integrantes do PC do B, dos anos sessenta, com o objetivo de aprender as técnicas de
guerrilha para promover uma revolução socialista no maior país da América do Sul, a partir
do modelo chinês, ele viaja até a China, onde frequenta a Academia Militar de Pequim. Lá
aprendeu o aforismo do qual se lembraria para sempre: “Quase quatro décadas depois, ele
sabia de cor as palavras do Camarada Mao: Quando o inimigo avança, recuamos. Quando
para, o fustigamos. Quando cansa, o atacamos. Quando se retira, o perseguimos” (LISBOA,
2010, p. 45).
Na volta ao Brasil, ganha o codinome de Chico Ferradura e participa do trágico
episódio da Guerrilha do Araguaia (1967-1974), no qual a maioria dos rebeldes foram
86
impiedosamente torturados e dizimados pelo governo ditatorial, entre os anos de 1973 e 1974.
De cerca de oitenta guerrilheiros, calcula-se que apenas vinte tenham sobrevivido, entre eles o
ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, José Genoíno.
Como outros, ele estava convencido, conforme mais tarde ele ia me contar –
a mim, que não era tão estranha àquela história – de que a derrubada da
ditadura militar no Brasil teria que ser feita pegando em armas. Eleições?
Possibilidade que não existia. O caminho da transição pacífica não era um
caminho. Os revisionistas podiam dizer o que quisessem: rachas
aconteceriam e novos partidos nasceriam, confiantes na luta armada popular.
Uma longa guerra de libertação do povo brasileiro, desenvolvida sobretudo
no interior, e com a guerra de guerrilha como estratégia inicial (LISBOA,
2010, p. 43).
Leio um comentário on-line: Que tal botar esse campo pra funcionar
novamente? Mas dessa vez façam o serviço completo. É a nossa única
chance de morar num país que preste.
Leio outro comentário: o exército fez o que TINHA A OBRIGAÇÃO de
fazer dadas as circunstâncias da época. A propósito, estah na hora de fazer
de novo para liquidar este bando de ladrões, corruptos que se apoderam de
Brasília!
Leio outro comentário: Só os covardes e os facínoras tem medo da verdade.
Com certeza, é o caso desses que tanto se opõem a esclarecer os fatos sobre
as execuções do Araguaia. Obviamente, tais covardes devem estar com
medo de se explicar diante de seus filhos, netos e amigos na hora em que
estes descobrirem que aquela imagem do herói e defensor da pátria que
sempre lhes colocaram, na verdade, não passam de sádicos torturadores.
Leio outro comentário. O que eu não aguento é pagar em dinheiro pelas tais
escavações. Quem deveria pagar é o PC do B e seus afins que retiraram os
inconsequentes de suas casas, aliciaram, doutrinaram treinaram, fanatizaram
23
A figura literária do flâneur – cuja origem está ligada ao conto “Homem da multidão”, de Edgar Allan Poe, e
que foi posteriormente descrita por Charles Baudelaire (2006) e analisada por Walter Benjamin (1989) – será
melhor discutida no capítulo quarto, por ocasião da análise do romance Algum Lugar, de Paloma Vidal.
88
e ainda lhes deram uma arma para „brincar‟ de Che Guevara, tudo a mando
do mais facínora dos ditadores, Fidel Castro (LISBOA, 2010, p. 121).
[...] agora ela não ganhava mais em dólares pelas aulas que dava, e no Brasil
os recursos humanos podiam ser mercadoria bem barata, mesmo os recursos
humanos perfeitamente trilíngues – portanto, para o nosso bolso verde e
amarelo e semissubempregado, a viagem era cara (LISBOA, 2010, p. 31).
Como têm salientado alguns críticos, a narrativa de Adriana Lisboa traz a vivência de
personagens em um mundo em trânsito, não mapeável. Com efeito, a epígrafe da obra,
extraída do poema “Estrangeiro”, publicado na obra A mesma noite, em 1997, por Heitor
Ferraz, aponta para essa ideia de falta de comunhão entre as pessoas, ao enfatizar que, não
importa onde estejamos, somos sempre estranhos uns aos outros: “Somos todos estrangeiros/
nessa cidade/ neste corpo que acorda”.
De fato, a narrativa de Vanja, que se organiza in ultimas res, com a personagem com
22 anos, já morando nos Estados Unidos, assume esse tom de sondagem existencial do
sentimento de deslocamento. Esse sentimento de angústia em relação ao tempo e ao espaço,
tão particularmente humano, na visão de Olson (1970), está relacionado à segregação humana
a um determinado tempo e espaço. O ser humano, por natureza temporal, está confinado a um
determinado espaço e a uma determinada época histórica, surgindo aí o que ele denomina de
angústia do aqui e agora. Segundo o autor,
escola, de origem indiana, Aditi Ramagiri, não a convida para a festa de aniversário devido
aos critérios estabelecidos pela mãe: ela só poderia convidar alguém que estivera em sua casa
pelo menos cinco vezes ou a quem em cuja casa também estivera cinco vezes. Ou quando
Fernando a adverte em relação ao modo formal como deve cumprimentar as pessoas ou
mesmo pedir licença para fazer um carinho em um cão acompanhado do dono. Nesses
momentos, as comparações com o Rio de Janeiro tornam-se inevitáveis, uma vez que esbarrar
em alguém no metrô, no supermercado ou nas filas é algo natural assim como beijar alguém
que acabou de conhecer.
Para Vanja, esse aprendizado é doloroso, mas, ao mesmo tempo, provoca um
amadurecimento “aos trancos” como ela mesma enfatiza, em diferentes momentos da
narrativa, com a aceitação das diferenças culturais que a separam de Aditi e de muitos
americanos. Isso se evidencia na sua resposta a Fernando quando conta-lhe que não poderia ir
à festa de aniversário da colega: “Eu queria dizer que Aditi não tinha culpa. Eu não estava
zangada com ela. Não estava zangada nem com Ms. Ramagiri, costume é costume, regra é
regra, cada família tem os seus e as suas” (LISBOA, 2010, p. 107).
O aprendizado cultural que passa pelo domínio da língua inglesa e da literatura norte-
americana, com a leitura constante a fim de aperfeiçoar o idioma, é uma das formas de
suavizar esse estranhamento: “Eu lia ferozmente, como atleta treinando em época de
Olímpiada, e ia extraindo dessas experiências a argamassa para aquele esqueleto externo”
(LISBOA, 2010, p. 78). Nesse sentido, é significativo o encontro com o poema “The Fish”, da
poetisa modernista norte-americana, Marianne Moore, cujo verso “Of the crow-blue mussel-
shells, one keeps24” dá origem ao título da obra: “Azul Corvo”. De certa forma, essa imagem
marca as diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos, pois a Lakewood desértica, seca e
com clima semiárido seria uma espécie de face reversa da Copacabana tropical. Contudo, há
interseções entre os dois lugares uma vez que o mesmo azul-corvo no céu de Lakewood
corresponde ao azul-concha do mar de Copacabana: “Enquanto isso, os moluscos do mar de
Copacabana silenciavam o mundo dentro de suas conchas azul-corvo. E os corvos
sobrevoavam a cidade de Lakewood, Colorado. Os corvos azul-concha” (LISBOA, 2010, p. 41).
Essa dimensão simbólica do título da obra é destacada pela autora quando, em
entrevista a Revista ISTOÉ Gente, ela confirma que o título é importante porque sintetiza e
costura os temas abordados na obra, uma vez que os corvos são marcas de Lakewood e que
24
Há várias traduções para esse verso. Mas, nesse trabalho, preferiu-se essa: “Das conchas azul-corvo um
marisco”, extraída de: MOORE, Marianne. Os Peixes. In: ______. Poemas. Tradução e posfácio de José
Antônio Arantes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
93
também há conchas da cor dos corvos em Copacabana: “São dois símbolos que fazem a ponte
afetiva de Vanja entre um ponto e outro. Fala-se também dos corvos da ditadura, e o fato de o
corvo andar ou não em bando, dependendo da espécie, reflete como os personagens se
relacionam” (LISBOA, 2010b, s.p.).
Com efeito, os corvos que sobrevoavam a cidade remetem à ideia do nomadismo de
Vanja. Para Bauman, “Nesse mundo todos os habitantes são nômades, mas nômades que
perambulam a fim de se fixar” (BAUMAN, 1998, p. 92). Em relação à imagem do corvo,
Chevalier e Gheerbrant afirmam que o aspecto negativo faz parte de uma concepção europeia
mais recente que o relaciona com maus agouros ou figuras da desgraça. Em algumas culturas
orientais, como a japonesa e a chinesa, os corvos simbolizam a gratidão filial, enquanto na
mitologia escandinava seriam o princípio da criação. Na América do Norte, os corvos
aparecem como personificação mítica de eventos naturais como o vento e o trovão. De modo
geral, podem aparecer como mensageiros divinos da esperança. De qualquer modo, para os
autores, os corvos têm concepção negativa quando ligados à vida sedentária da agricultura,
uma vez que, eles pontuam que “seu aspecto positivo está ligado às crenças dos povos
nômades, caçadores e pescadores” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 295).
Quanto ao significado da cor azul, Chevalier e Gheerbrant apontam que a mais
profunda, imaterial e fria das cores, “desmaterializa tudo que dela impregna. É o caminho do
infinito, onde o real se transforma em imaginário” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009,
p. 107). Os autores acrescentam ainda que “imóvel, o azul resolve-se por si mesmo as
contradições, as alternâncias – tal como a do dia e da noite, que dão ritmo à vida humana”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 107).
Essas imagens contraditórias de dia e noite, vida e morte estão presentes no poema
“The Fish”, de Mariane Moore, que Vanja, no seu intenso processo de leitura, acaba por
descobrir, por acaso, em uma antologia de poesia americana, na biblioteca pública de Denver,
onde Fernando trabalhava como segurança. De tanto ler e reler, ela passa a considerá-lo seu
poema favorito: “O Meu Poema”, nas suas palavras. O poema de Moore, com uma beleza
dramática assustadora, aborda os processos de vida e morte como interdependentes e
complementares e provoca na jovem leitora Vanja o desejo de mergulhar nesse mundo
submarino, “símbolo da dinâmica da vida”, na concepção de Chevalier e Gheerbrant (2009,
p. 592).
94
Quando eu lia aquele poema chamado „The Fish‟, os peixes, era transportada
pra um mundo de cores, de movimentos primordiais. Havia nele caranguejos
como lírios verdes e chapéus-de-sapo submarinos.
E um oceano turquesa de corpos. E as conchas azul-corvo (LISBOA, 2010,
p. 92).
O romance, por meio das mudanças vivenciadas por Fernando e Vanja, que vivem a
experiência da diáspora, não por motivos econômicos, mas sim políticos e pessoais,
respectivamente, lança um novo olhar sobre a história da migração, que tem sido um tema
bastante recorrente na ficção contemporânea brasileira, a partir dos anos 80, quando o Brasil
passa por um processo político de redemocratização e começa a verificar-se em todo mundo
um crescente processo de globalização. Diferentemente de escritores como Milton Hatoum ou
Nélida Piñon, que representam em seus respectivos romances, Relato de um certo oriente e A
República dos Sonhos, ambos publicados nos anos 80, a problemática dos imigrantes que
chegam ao Brasil no início do século XX, Azul-corvo, de Adriana Lisboa, põe em relevo a
história do emigrante político, Fernando, e da jovem Vanja, que saem do Brasil por motivos
pessoais, mostrando o sentimento de exílio, em meio a uma cultura que causa estranhamento.
Nesse ponto, Edward Said (2003), importante intelectual, ativista e crítico literário
palestino, faz uma distinção, bastante objetiva e funcional, entre expatriados, emigrados e
exilados. O expatriado é aquele que mora voluntariamente em outro país, geralmente por
motivos pessoais. Embora possa sentir a mesma solidão e alienação do exilado, esse não sofre
rígidas interdições. O emigrado é o que, do ponto de vista técnico, teve escolha, embora
muitas vezes emigre por motivos econômicos. Já o exilado tem origem na velha prática do
banimento. Para Said, “os exilados individuais nos forçam a reconhecer o destino trágico da
falta de lar num mundo necessariamente implacável” (SAID, 2003, p. 56).
Ao percorrer os meandros do sentimento de exílio na obra, pode-se observar que se
Vanja encaixa-se na categoria do expatriado, a situação de Fernando se mostra um tanto
ambígua. Mesmo afirmando a Vanja que saiu porque quis, ele deixa claro, em vários
momentos da obra, que não tivera outra alternativa: “Sei que um dia te falei isso, que tive de
sair. Mas ninguém me mandou embora, e outras pessoas na mesma situação ficaram. Estão
por aí até hoje. Algumas no governo. Pagaram um preço, claro. Mas eu também paguei”
(LISBOA, 2010, p. 146). Em outra passagem quando ele afirma que “eram tempos difíceis”
(LISBOA, 2010, p. 97) e quando reitera ao longo do romance que “a gente acaba se
acostumando”, Fernando acaba por se tornar o exilado de que fala Said, o qual “leva uma vida
anômala e infeliz, com o estigma de um forasteiro” (SAID, 2003, p. 54). Isso pode ser
observado no modo como suas referências pessoais vão se diluindo ao longo da sua estadia
95
frente bem ampla. Pertencem, de fato, a um movimento transacional, e suas conexões são
múltiplas e laterais” (HALL, 2003, p. 45).
É justamente isso que se pode observar ao final do romance quando Vanja parece
integrada de fato à cultura norte-americana. Mesmo com o desapontamento que sente quando,
em uma festa, tenta ajeitar o colar de uma colega da escola e a outra cruelmente lhe responde:
“não preciso de informações da América do Sul” (LISBOA, 2010, p. 218), Vanja parece
cumprir a asseveração de Fernando de que as pessoas acabam se acostumando. No final,
embora tenha perdido um pouco da espontaneidade brasileira, ela pode então, com orgulho,
afirmar: “Não sou de falar muito. Mas as pessoas já não ouvem sotaque quando falo”
(LISBOA, 2010, p. 218).
Dessa forma, a narrativa aponta para uma ressignificação do espaço na medida em que
as experiências pelas quais passa a protagonista permitem a sua inserção como cidadã
americana. Nesse sentido, a diáspora, relacionada às viagens da personagem, torna-se
essencial na constituição dessa identidade híbrida no mundo globalizado contemporâneo.
viva que ali se encontra diante do leitor, desnuda sua vida, estabelecendo-se, então, uma
perfeita união entre autor e leitor” (REMÉDIOS, 1997, p. 9).
Por isso, no romance de formação feminino contemporâneo, há esse entrelaçamento
entre o resgate da história e da memória e a construção da identidade das personagens. Ao
focalizar a linguagem como criadora de realidades e como forma de reparação de uma história
que foi contada pelo ponto de vista dos vencedores, Vanja recorre às confidências de
Fernando e às pesquisas na internet para compor não só sua história pessoal, mas reconstruir a
história recente do país.
Mesmo sem nunca ter perguntado a Fernando por que ele resolveu contar sua história,
quando transitavam pelos limites fronteiriços entre o Colorado e o Novo México, é a partir daí
que ela poderá suprir as lacunas que anos nos bancos escolares não haviam preenchido: “De
todo modo a história que não havia sido contada começava no primeiro aniversário da
Guerrilha do Araguaia” (LISBOA, 2010, p. 179). O ex-revolucionário Fernando, que havia
estudado a arte guerrilheira em Pequim e sido combatente em terras brasileiras, reflete todo o
amargor e desesperança dos expatriados, especialmente quando diz que depois de um tempo
tanto faz. Para a narradora, “Fernando já tinha dado tantas voltas depois de sair de casa que já
não lembrava mais qual o caminho” (LISBOA, 2010, p. 73). E depois acrescenta: “Não é que
a casa estivesse em toda parte: a casa não estava em parte alguma” (LISBOA, 2010, p. 73).
Contudo, a profusão de imagens que Vanja vai formando não só da história do país
como da própria mãe e também da sua acentuam essas complexas interseções entre memória e
identidade. Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz (2008) aborda como importante percepção da
memória a sensação de proximidade que as lembranças do passado propiciam. Isso leva ao
sentimento de pertencimento a uma história e a um espaço.
Na narrativa de Vanja, isso fica bastante evidente quando Fernando leva-a de volta a
Albuquerque e mostra-lhe a casa onde ela havia morado com a mãe até os dois anos de idade.
Por faltar essa proximidade com o vivido, Vanja sente um profundo estranhamento em
relação ao lugar, como se aquela casa fosse igual a qualquer outra. A protagonista é bastante
enfática ao proclamar: “Não havia reconhecimento em mim” (LISBOA, 2010, p. 192). Mas,
para Fernando que viajara horas de Denver a Albuquerque a fim de registrar a pequena Vanja
como se fosse sua filha e, decerto, alimentara esperanças de reconciliação com Suzana, a
imagem da casa provoca um grande sofrimento: “Mas havia reconhecimento nele e não era
fácil e eu sabia” (LISBOA, 2010, p. 193). O filósofo francês Paul Ricoeur, que fez estudos
substanciais sobre o tempo na narrativa e a memória cultural, explica a espacialidade corporal
e ambiental inerente à evocação da memória. Para ele, “as lembranças de ter morado em tal
99
casa de tal cidade ou ter viajado a tal parte do mundo são particularmente eloquentes e
preciosas; elas tecem ao mesmo tempo uma memória íntima e uma memória compartilhada
com pessoas próximas” (RICOEUR, 2007, p. 157).
Queiroz (2008) corrobora essa ideia ao afirmar que, de maneira axiomática, o que tem
qualidade de permanência na existência humana é a faculdade da memória. Essa permanência
relaciona-se não apenas ao que é, mas também ao que passou. Com efeito, à memória é
atribuído o princípio de unidade e continuidade do ser, que é a base da personalidade
individual. Seria, então, a memória “o princípio integrador por meio do qual o indivíduo se
esforçaria para preservar em seu ser” (QUEIROZ, 2008, p. 365). Isto significa que o princípio
identitário seria “sempre desfeito e refeito no curso do tempo” (QUEIROZ, 2008, p. 366).
Por isso, a narrativa de Vanja cumpre esse papel de recuperar parte da história de
Fernando, seus amores, suas lutas, seus fracassos. Após enterrar o que ela chama de ex-
Fernando e as suas ex-memórias, que segundo ela, por mais que ele as compartilhasse, elas
seriam sempre suas, ela pode enfim, dar uma dimensão poética à sua trajetória:
Faz pouco mais de um ano que enterrei Fernando. Ele morreu sem
guerrilhas, sem esposas, nem amantes. Na sua memória deslizavam rios
como o Araguaia e o Tâmisa e os rios encachoeirados das montanhas do
Colorado, e o Rio Grande, que atravessa Albuquerque. Mas as águas dos rios
encontram seu caminho até o mar, e aquilo que era doce torna-se salgado e
povoado por bichos marinhos e suas conchas (LISBOA, 2010, p. 216).
Dessa forma, muito mais que a narrativa da orfandade e da busca pelo pai
desaparecido, é o tecido de memórias de Fernando que entrelaça e dá sentido à trajetória de
Vanja, redimensionando seu memorial com a sondagem existencial na qual se entrelaçam
101
Nick, o meu colega de escola, uma vez me beijou numa festa. Achei
esquisito durante os quinze primeiros segundos, depois não achei mais, as
línguas se acomodaram, os dentes pararam de ser obstáculos, e logo em
seguida eu não pensava mais em línguas nem em dentes, mas em outras
coisas, com uma urgência súbita e meio desesperadora (LISBOA, 2010,
p. 217).
No final, Vanja menciona, também em poucas linhas, sua relação com o pai biológico
e seu trabalho na biblioteca pública de Denver. Dessa forma, no romance não há problemática
amorosa da protagonista que, em nenhum momento, revela o desejo de casar e ter filhos.
103
Também no romance as questões relacionadas a conflitos de gêneros não são ressaltadas, uma
vez que, em nenhum momento, a relação entre Fernando e Vanja, mostra-se autoritária ou
opressiva. Esta seria uma das vertentes do Bildungsroman contemporâneo de autoria
feminina, que busca mostrar que hoje questões mais urgentes e pungentes se colocam às
mulheres, como a inserção no mercado trabalho, o posicionamento crítico frente aos
acontecimentos históricos do país, o sentimento de deslocamento e a construção de uma
identidade em mundo de fronteiras móveis e mutantes.
104
CAPÍTULO 4
O BILDUNGSROMAN DE PALOMA VIDAL COMO NARRATIVA DO
DESLOCAMENTO
Paloma Vidal tem uma trajetória bastante parecida com a de outros expoentes da
ficção contemporânea como Francisco Dantas, Milton Hatoum, Silviano Santiago e Miguel
Sanches Neto, ao conciliar a carreira de professora universitária e a vocação para a escrita.
Vidal, que atualmente leciona na Universidade Federal de São Paulo, na área de teoria
literária, fez Mestrado e Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Entre os anos de 2002 e 2006, enquanto escrevia sua tese de doutoramento, cujo título é
“Depois de tudo: Trajetórias na literatura latino-americana”, realizou parte da pesquisa em
Los Angeles, nos Estados Unidos, paralelamente à escrita de seu primeiro romance Algum
Lugar, publicado em 2009, cuja produção foi financiada por uma bolsa de criação literária do
Programa Petrobrás Cultural 2006/2007.
A temática do romance relacionada ao exílio, à viagem e à memória, em grande parte
condiz com a trajetória da autora, que veio com os pais da Argentina aos dois anos de idade,
passou grande parte de sua vida no Rio de Janeiro, morou em Los Angeles e atualmente
mudou-se para São Paulo. Do mesmo modo, a protagonista do romance vivencia experiências
que condizem com as da autora: ambas têm origens argentinas, deslocaram-se para Los
Angeles a fim de estudarem literatura e concluírem a tese de doutorado, e são marcadas por
identidades ambivalentes ou plurais.
Nesse sentido, é relevante observar que, embora Paloma Vidal tenha passado grande
parte da infância, adolescência e juventude no Rio de Janeiro, escreva em português e atue
profissionalmente no Brasil, nunca abriu mão de sua nacionalidade e identidade argentina. Por
ocasião da publicação do seu segundo romance, Mar Azul, em 2012, ao ser questionada por
Bruno Gheti, em entrevista, se sentia que era mais brasileira ou argentina, Paloma Vidal é
enfática ao afirmar que:
Essa é uma outra pergunta que eu não tenho como responder. Acho que
nunca terei. Eu sou argentina e brasileira, ou brasileira e argentina, e acho
que posso ser de muitas cidades, posso me sentir bem em muitas cidades,
encontrar uma cotidianidade minha nelas, mas, ao mesmo tempo, sempre
estou pensando em me mudar, em como seria morar em outro lugar, porque
105
O sociólogo francês Michel Maffesoli (2001) destaca o fato de que atualmente tem se
difundido a palavra de ordem “guardar distância” em relação aos diversos nacionalismos e às
adesões partidárias. Daí decorre a rejeição de muitos escritores em relação às ideologias e
nacionalismos. Para ele, “o fato de não se enraizar, de estar à vontade em múltiplas culturas, é
uma postura intelectual e existencial muito espalhada hoje em dia” (MAFFESOLI, 2001,
p. 141).
Nesse sentido, seu romance segue uma linha parecida com a de outros escritores que,
assim como Vidal, são professores/as e/ou conhecedores/as da teoria literária – como Silviano
Santiago, Gustavo Bernardo, Miguel Sanches Neto, Cristóvão Tezza, Tatiana Salem Levy e
Adriana Lisboa. Esses romancistas, inseridos em uma tradição que já existe na literatura,
apreciam a transfiguração de elementos autobiográficos em suas obras de ficção. A própria
autora confessa esse entrecruzamento entre experiências pessoais e as vividas por seus
personagens ficcionais ao afirmar, em entrevista já mencionada, que os efeitos dessa
experiência de escrita podem ter resultados catárticos e terapêuticos, uma vez que a escrita
tem, segundo ela, “a capacidade de trazer à tona coisas sobre nós mesmos. Vivi essa
experiência diversas vezes enquanto escrevia meus livros. Faço questão de deixar o texto me
levar quando estou trabalhando e, de repente, aparecem coisas esquecidas, ocultadas,
desconhecidas até” (VIDAL, 2012, s.p.).
Para esse tipo de narrativa que não seria só ficcional nem só autobiográfica, o teórico
crítico francês Serge Doubrovsky cunhou o termo autoficção, que tem provocado debates e
polêmicas, mas que, em geral, tem sido aceito por muitos/as autores/as contemporâneos/as
para classificarem suas obras. Segundo Luciana Hidalgo, com a invenção do neologismo
“autofiction”, hoje já dicionarizado em língua francesa, por Doubrovsky, em 1977, “a ideia de
unir autobiografia e ficção em narrativas contemporâneas consolida-se” (HIDALGO, 2013,
p. 219).
De certa forma, a autoficção seria uma forma derivada da autobiografia. Segundo
Bakhtin (2011), a autobiografia tem suas origens no final da Idade Média e início do
Renascimento, com obras como História das Minhas Calamidades, do teólogo francês
Abelardo, na qual narra as desventuras de seu amor proibido pela jovem Heloísa. O que
25
Entrevista publicada na internet, sem número de páginas. Disponível em:
<http://www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/46502>.
106
marcaria significativamente esse tipo de escrita seria “o tom confessional [que] irrompe
frequentemente na autossuficiência da vida e em sua expressão” (BAKHTIN, 2011, p. 138).
Bakhtin observa que não há limite acentuado entre biografia e autobiografia e que ambas,
como descrição da vida, visam a um “leitor íntimo, partícipe do mesmo mundo de alteridade”
(BAKHTIN, 2011, p. 152). Para Remédios (1997), nessas obras em que são representados
perfis nítidos e precisos, “o homem se compraz em desenhar sua própria imagem, porque se
considera como centro de um espaço vital” (REMÉDIOS, 1997, p. 11). Sendo o limite entre
os gêneros bastante tênue, essa literatura centrada no sujeito, denominada de confessional ou
intimista, pode assumir configurações diversas. Entre outras, a autora cita a autobiografia, o
autorretrato e o diário íntimo. Nesses diferentes gêneros autobiográficos, podem ser
observados “a emergência de um eu ao nível do discurso, mas também a representação duma
história pessoal” (REMÉDIOS, 1997, p. 15).
Com o desenvolvimento dessas narrativas memoriais, que não se assumem totalmente
como autobiografia, nem totalmente como ficção, surgiu a necessidade de um novo termo que
classificasse essas produções que vêm sendo publicadas desde as últimas décadas do século
passado até hoje. Por isso, o termo autoficção parece rentável à crítica atual para designar
formas narrativas próprias da contemporaneidade. Contudo, este ainda se configura como um
terreno movediço, repleto de contradições, uma vez que nem mesmo na França há um
consenso em relação à autoficção como gênero literário.
Mesmo assim, muitos autores assumem seus textos como autoficcionais, inserindo
personagens em suas narrativas com seus nomes próprios, que vivem experiências muito
parecidas com as suas. Nesse sentido, Hidalgo enfatiza que a autoficção promove uma leitura
referencial e ficcional de uma mesma obra, tendo sempre como ponto em comum o
apagamento dos limites entre verdade e ficção. Na autoficção interessa-se sobretudo a carga
ontológica do termo que sugere “a pulsão do eu, tão urgente que o faz ultrapassar todos os
limites” (HIDALGO, 2013, p. 226).
Por isso, há tantos “romances-luto” na literatura brasileira contemporânea, nos quais
os autores podem, por meio de personagens, purgarem suas experiências traumáticas de dor,
exílio, morte. Um exemplo nesse sentido é o romance O Filho Eterno, publicado por
Cristóvão Tezza, em 2007, no qual o autor expõe o aprendizado, a partir das inúmeras
dificuldades, ao cuidar de um filho com síndrome de Down. Mesmo narrando de forma
heterodiegética, quando o mais usual nesse tipo de texto seria o narrador homodiegético, e
não nomeando os personagens, com exceção do filho Felipe, a narrativa acaba por denunciar
os aspectos autobiográficos da vida do autor.
107
Em Algum Lugar, Paloma Vidal, com maestria, reveza o foco narrativo ao longo da
história, alternando distanciamento com reflexão íntima. Ela não segue a máxima de
Doubrosky de dar o seu próprio nome à personagem, que aparece não-nomeada, o que se
coaduna com o cenário contemporâneo marcado pelo anonimato do sujeito. Contudo, mesmo
com essa narrativa, a princípio, anominal, o inequívoco do sobrenome “Vidal”, mencionado
pelo médico, ao visitar seu marido, que se encontrava doente, evidencia o caráter
autobiográfico da narrativa. Outro traço marcante seria a idade da personagem que, no ano de
2003, quando se passa a narrativa, coincidia com a idade da escritora, que nasceu em 1975:
“Twenty-one, confirma. Sete anos menos do que eu” (VIDAL, 2009, p. 110).
Em determinado momento da narrativa esse caráter confessional se evidencia ainda
mais, quando a protagonista-narradora discute a temática do livro. Nesse momento, a
narrativa em terceira-pessoa tangencia essa escrita fragmentada e autoficcional, dando pistas
do desenvolvimento circular da personagem: “Ela pensa em escrever um livro e imagina a
história de uma viagem de um continente a outro. O livro falaria da invenção de um
pertencimento; construiria uma genealogia, atravessando várias cidades, até voltar ao seu
ponto de partida” (VIDAL, 2009, p. 112-113).
Quanto à arquitetura interna, Paloma Vidal reproduz a estrutura da obra de Rua de
mão única, publicada em livro em 1928, por Walter Benjamin. Essa obra, de difícil
classificação, é composta de fragmentos que lembram um diário. Para a protagonista-
narradora, que reproduz alguns comentários de Susan Sotag, que faz a introdução ao livro de
Benjamin, esse é um livro em que “subjetividade e crítica são uma coisa só porque se entende
que a vida e o trabalho são uma coisa só” (VIDAL, 2009, p. 25). Mais adiante, ela se refere à
estrutura do livro de Benjamim, o que de certa forma também compõe a estrutura de Algum
lugar: “menciona os inúmeros cadernos, cartas, diários. Tudo vira escrita, até os sonhos, uma
escrita capaz de condensar a experiência” (VIDAL, 2009, p. 25).
O romance de Vidal estrutura-se, por meio de um ponto de vista retrospectivo, como
um diário capaz de condensar essa experiência do deslocamento, que se traduz na trajetória de
exílio e de busca de sua personagem central, por meio das descobertas em relação à cidade e à
história do país, das anotações das aulas e das leituras, das reminiscências do Rio de Janeiro e
da infância, da verbalização dos medos e angústias, da materialização dos sonhos e pesadelos.
Assim como o livro de Benjamin, o de Paloma Vidal faz referências aos sonhos, registrando
vinte e quatro ao todo. No caso da autora de Algum lugar, esse registro ocorre sempre por
meio do uso da segunda-pessoa, constituindo-se como um aspecto fundante da narrativa, ao
refletir a angústia em relação à doença recente do irmão, as saudades do Rio de Janeiro, a
108
ideia de Los Angeles como “uma cidade fantasma”, impossível de ser habitada, a ansiedade
quanto ao término da tese. Abaixo, são elencadas algumas citações da obra de Benjamin e de
Vidal que permitem visualizar a semelhança estrutural das duas obras, quanto à colagem de
sonhos:
Você sonha mais uma vez com um homem desconhecido. Desta vez está na
casa dele, que é um cubículo com paredes azuis e uma cama desarrumada.
Vocês dormiram juntos? (VIDAL, 2009, p. 90)
Outro aspecto bastante parecido com a obra de Benjamin são as reflexões que
entremeiam a narrativa e dão um tom pungente a esse dilaceramento de identidades na
contemporaneidade, como se observa nos fragmentos abaixo:
Todas as relações humanas mais próximas são atingidas por uma claridade
penetrante, quase insuportável na qual mal conseguem resistir. Pois, uma
vez, por um lado, o dinheiro está, de modo devastador, no centro de todos os
interesses vitais e, por outro, é exatamente este o limite diante do qual toda a
relação humana fracassa, então desaparece, cada vez mais, assim no plano
natural como no ético, a confiança irrefletida, o repouso e a saúde
(BENJAMIN, 1987, p. 19).
Com efeito, a obra apresenta uma protagonista que enfrenta problemáticas inerentes à
época contemporânea como o sentimento de deslocamento e o dilema entre vida pessoal e
carreira, buscando-se encontrar em meio a tantas identidades e se descobrir como sujeito
nesse percurso. Para Schwantes, ao ser delimitado pelo critério temático, uma das marcas
formais do gênero é o hibridismo. Por não ser um romance de tese, como o romance
naturalista do século XIX, “o Bildungsroman é um espaço privilegiado de discussão dos
flutuantes valores de suas épocas, da modificação dos papéis sexuais (masculino e feminino)
da culturalidade (ou não) do nosso gênero, nossa identidade, nossa humanidade”
(SCHWANTES, 1998, p. 37).
No conto “O homem na multidão”, escrito em 1840, por Edgar Allan Poe, o narrador-
protagonista, inserido na atmosfera metropolitana de Londres, em meados do século XIX, mas
já com alto desenvolvimento industrial, vive a experiência de um flâneur que, sentado à janela
de um grande Café, observa e analisa a multidão que passa. Ao acompanhar o fluxo da cidade,
ele se depara com um velho decrépito, entre sessenta e cinco a setenta anos de idade, que lhe
chama a atenção pela “idiossincrasia da sua expressão” (POE, 2008, p. 263). Após seguir o
velho por um dia e uma noite, ele conclui que o velho se recusava a ficar só, andando sem
parar, perseguindo a multidão: “„Esse velho‟ – disse comigo, por fim – „é o tipo de gênio do
crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada
mais saberei a seu respeito ou a respeito de seus atos‟” (POE, 2008, p. 267, grifos do autor).
Esse conto influenciou a obra de Charles Baudelaire, que descreveu os personagens de
Poe como flâneurs, ou seja, personagens que refletem a angústia da Revolução Industrial e da
sociedade moderna, cada vez mais industrializada, e cujo ritmo de vida febril e desordenado,
cria esses personagens em trânsito.
Um dos aspectos que fazem do aeroporto um não-lugar, para as pessoas que estão por
lá de passagem, sobretudo estrangeiros, é que ele não cumpre as características que o
tornariam um lugar antropológico. As relações estabelecidas ali são contratuais e efêmeras,
não criando identidade nem interação humana. Por isso, a sensação tão perturbadora de não
pertencimento e de estar perdida no aeroporto. Ao encontrar M, que viera em outro voo, surge
a esperança de que, ao atravessarem a cidade no carro alugado, algum sentimento de
reconhecimento os confortaria. A paisagem que a protagonista busca encontrar em Los
Angeles, de certa forma, lembra o Rio de Janeiro que ela havia deixado:
habitadas. Nesse sentido, é relevante seu relato sobre seu estranhamento quando visitou pela
primeira vez Brasília, em agosto de 1987. As suas impressões, quando ainda no alto, dentro
do avião, foram de que era uma cidade dinâmica e fascinante, com seu projeto arquitetônico
moderno que remete à imagem de um avião. Porém, para sua decepção, vista do chão, “de
onde as pessoas moram e trabalham, é uma das cidades mais inóspitas do mundo”
(BERMAN, 2007, p. 13). Os grandes espaços vazios e a ausência deliberada de espaços
públicos capazes de propiciar alguma forma de reunião entre as pessoas levam
inevitavelmente ao isolamento27. Na sua concepção, o projeto como capital de uma
democracia, que culminou na criação de uma cidade onde não havia espaço para os próprios
brasileiros, tornou-se escandaloso, a despeito da genialidade do arquiteto Oscar Niemeyer.
Bauman aprofunda as ressalvas em relação à capital do Brasil, ao enfatizar que
Brasília, por ter sido projetada e construída em meio à vastidão do planalto central,
proporcionou a Niemeyer uma liberdade sem precedentes, para colocar em prática as ideias
modernistas de Le Corbusier: proeminente arquiteto francês, que concebia as estruturas
arquitetônicas austeras e monótonas, desprovidas da possibilidade de se criar laços humanos.
Assim, o plano arquitetônico de Brasília previa a eliminação de lugares para encontros, com
esquinas vazias e figuras humanas sem identidade, tonando-se um espaço perfeito para
“criaturas compostas de tarefas administrativas e definições legais” (BAUMAN, 1999, p. 47).
Do mesmo modo, algumas cidades contemporâneas, como Los Angeles, passaram por
esse processo de acelerada urbanização, abrindo espaços aos arranhas-céus e automóveis,
provocando o sentimento de solidão à narradora-protagonista de Algum lugar, quando ela a
compara com um deserto, cheio de ruínas: “Los Angeles havia se transformado numa cidade
fantasma” (VIDAL, 2009, p. 35).
Diferentemente de Vanja, protagonista de Azul-corvo, que consegue, por meio da
voracidade na leitura de livros de literatura, aprender o idioma do país e estabelecer laços de
amizade no Colorado, a narradora-protagonista sente um grande desconforto em relação à
língua inglesa e também em relação ao espanhol, aprendido com a mãe, que se torna seu meio
de trabalho e com o qual se comunica com outros estrangeiros como Lucy. As dificuldades na
proficiência da língua inglesa são resultado da dificuldade em estabelecer contatos com as
pessoas da cidade. Nesse ponto, a narradora expõe um drama comum a muitos brasileiros
27
O projeto arquitetônico da cidade consistia na ideia de que cada superquadra fosse autossuficiente ao se
assemelhar a uma cidade de interior, inclusa em uma grande cidade, de modo que os habitantes desfrutassem
as vantagens de ambas. Desse modo, um grupo de vizinhos poderia se reunir em uma padaria ou barzinho de
uma dessas quadras para conversarem e estreitarem laços de amizade. Contudo, Berman (2007) e Bauman
(1999) interpretam essa amplidão das quadras como um espaço inóspito que propicia o isolamento.
115
emigrados que acabam por viver em guetos culturais, não se integrando de fato à nova cidade:
“Somos massacrados diariamente pela cidade, que nos faz pagar nosso desconhecimento com
uma viagem lenta e maçante. Meu único contato com ela é através da janela do carro, uma
pequena tela particular, em movimento” (VIDAL, 2009, p. 21).
Em relação a esta questão, cabe uma análise do modo como as dificuldades com a
língua interfere nas suas relações pessoais. Em Los Angeles, a protagonista estabelece
algumas relações de convivência com Lucy, uma estudante coreana que, como ela, está
cursando parte do Doutorado nos Estados Unidos, e com Jay, um jovem norte-americano que
estuda na universidade e que é seu aluno de espanhol. Essas relações fugazes e frágeis, que
aparecem nomeadas, ao contrário dos relacionamentos mais centrais com o marido e o filho,
que são identificados apenas pelas iniciais M e C, respectivamente, são marcadas pelos
desencontros culturais criados pela própria cidade.
Com Lucy, as tentativas de aproximação sempre esbarram em desentendimentos
originados da própria linguagem: “É algo nas explicações que gera uma incompreensão, algo
no encontro do espanhol dela com o meu, uma espécie de curto-circuito” (VIDAL, 2009,
p. 70). Com a partida de M e a chegada do inverno, a convivência entre as duas se deteriorará
de forma irreversível, devido a esse distanciamento que, pelo menos em parte, é imposto tão
fortemente pela língua e pela cultura, que não permite uma aproximação mais íntima: “Culpo
a língua sem ter certeza se é disso que se trata. Saberia em português o que dizer a ela?
Saberia como organizar minhas ideias diante dessa moça, que eu achava ter conquistado e que
agora me parece de novo uma estranha?” (VIDAL, 2009, p. 120).
Com Jay, o rápido envolvimento sexual após a partida de M, em uma praia perto de
Los Angeles, também é marcado por essa falta de comunicação e pelo silêncio que se impõe
devido à alteridade cultural: “Peço a ele que deixemos o carro: quero ir à praia. Sentados na
areia, observamos o aquário iluminado. É incrível, mas já anoiteceu. Ele tenta me abraçar de
novo e eu me esquivo. Faço algumas perguntas em espanhol, que ele responde em inglês”
(VIDAL, 2009, p. 111).
Bauman (2001) explica essa dificuldade na negociação de laços humanos duradouros,
ao enfatizar que a precariedade da ordem social leva à visão de que os produtos – inclusive as
relações amorosas ou de amizade – são para consumo imediato. Para ele, pessoas inseguras,
como a coreana Lucy, que depende da aprovação dos pais até mesmo para hospedar uma
amiga em casa e se enerva quando a narradora-protagonista vai embora mais cedo de um
programa entre amigas, “tendem a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa
que funcione como obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer
116
forma frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirvam de objeto a essa
intolerância” (BAUMAN, 2001, p. 188-189).
Às dificuldades com as leituras mais extensas e com as relações interpessoais, devido
a pouca proficiência na língua, somam-se as dificuldades em encontrar um apartamento, o que
ocorre só depois de duas semanas da chegada em Los Angeles. No apartamento de um
cômodo só, mobiliado com utensílios úteis, vão se acumulando livros, apesar de toda
impessoalidade, ela quem tenta criar uma identidade com o lugar. Nesse sentido, é importante
observar como a ideia de lar se torna tão problemática na contemporaneidade. Bauman aborda
essa falta de identidade de alguns lugares, ao afirmar que “as escalas são acampamentos, não
domicílios. Por mais longos que cada intervalo da viagem possa mostrar-se no fim, é vivido,
em cada momento, como uma estada de pernoite” (BAUMAN, 1998, p. 115).
A narradora-protagonista tem consciência dessa provisoriedade dos lugares, mas tenta
dar ao pequeno apartamento um tom mais pessoal. Conforme ela mesma salienta: “Percebo
que estou tentando criar para mim um circuito doméstico na cidade, contrariando a evidência
que meu bairro não é um bairro” (VIDAL, 2009, p. 32). Essa perda da noção de lar, já começa
no Rio de Janeiro, quando, sem ter onde colocar os móveis, eles fazem doações a amigos de
bairros diferentes, de onde surge a dolorosa constatação: “Minha casa espalhada pela cidade
não me pertence mais” (VIDAL, 2009, p. 32). Para Bauman (2001), esse estilo de vida é
marcado pela nova ordem socioeconômica, na qual não há garantias nem continuidade. O
autor enfatiza que
Uma das tentativas de se aproximar da cidade é a opção por não comprarem um carro,
fazendo o trajeto entre o apartamento e a universidade por meio de ônibus. Para Augé (2005),
os transportes públicos também se caracterizam como não-lugares, por serem locais de
passagem cada vez mais rápidos. Benjamin (1989) salienta que os meios públicos de
transportes, que surgiram com a modernidade, são responsáveis pelas reações pouco
amistosas entre as pessoas nas grandes cidades. Antes da criação desses meios, “as pessoas
não conheciam a situação de terem de se olhar reciprocamente por minutos ou mesmo por
horas a fio, sem dirigir palavras umas às outras” (BENJAMIN, 1989, p. 36). É o que observa
117
O Rio é uma sombra que de vez em quando vejo passar, como uma nave
sobrevoando a cidade. Os pontos de comparação são poucos, só a praia na
verdade que mesmo assim é diferente demais, mas me sinto tentada a
sobrepor uma geografia a outra como para medir o grau de meu
deslocamento ou forçar uma adaptação necessária. Estou aqui porque quero,
repito (VIDAL, 2009, p. 29).
Mesmo tentando convencer-se do fato de estar ali por vontade própria, a relação com a
cidade é marcada pelos constantes sonhos com o Rio de Janeiro e por uma série de
questionamentos sobre a necessidade ou vontade de estar ali, quase sempre marcados pelo uso
da segunda-pessoa:
de si e do mundo, já que o período vivido lá configura-se como “um grande fracasso, em quase
todos os termos”28. Ela pondera que a escrita do livro mudou sua opinião em relação à cidade,
ao afirmar que “ao escrever sobre ela, você torna a cidade sua”.
Para a protagonista de Algum lugar, na volta ao Rio de Janeiro, o reconhecimento tão
desejado não ocorre. Assim como em Los Angeles, ela, em uma espécie de flânerie, anda,
observa, descreve as cenas que vê, forçando um reconhecimento que justificasse o sentimento
de inadequação do retorno: “Andava então pelas ruas como se nelas fosse recuperar algo que
se perdeu. Só que elas se mostravam indiferentes a minha busca. Simplesmente não estavam
ali, como se o tempo não tivesse passado” (VIDAL, 2009, p. 126).
A cena final do romance com a personagem em Buenos Aires, de certa forma, retoma
o início ao mostrar seu movimento contínuo e nômade. Nesse ponto, o não reconhecimento do
Rio de Janeiro conota o sentimento de não-pertencimento a nenhum lugar, o que, mais uma
vez, remete a algumas entrevistas da escritora argentina-brasileira, que sempre reitera ter a
impressão de não pertencer a nenhum lugar. Nesse sentido, o título do romance “algum lugar”
é curioso na medida em que antecipa a trama do romance – com a protagonista em busca de
identificação com a cidade indomável – mas também a contradiz no final, mostrando-a em
errância contínua.
Buenos Aires, para onde viaja com a mãe e o filho pequeno, como cidade que figura
nas origens da narradora-protagonista, e também da autora do romance, de certa forma
sintetiza a estranheza de Los Angeles com a familiaridade do Brasil, mostrando também uma
relação analógica com a identidade da protagonista: “Agora andando por lugares aos quais
tantas vezes [a mãe] fazia referência, é como se visse tudo espelhado: de um lado Buenos
Aires, do outro, o Rio, complementares, uma inexistente sem a outra” (VIDAL, 2009, p. 168).
No romance de Paloma Vidal temos como protagonista uma mulher madura, mas
ainda bastante jovem, que vivenciou os papéis de esposa e de mãe e que passa por um
processo formal de educação. Esse é um dos aspectos importantes na formação das
28
Essa fala de Paloma Vidal encontra-se na reportagem de: MURARO, Cauê. “Teju Cole e Paloma Vidal
declaram amor e ódio por grandes cidades”. Globo. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/flip/
2012/noticia/2012/07/teju-cole-e-paloma-vidal-declaram-amor-e-odio-por-grandes-cidades.html>.
120
Aos poucos, em meio ao processo de difícil adaptação à cidade, aos seus horários e
meios de transporte, ela consegue estabelecer uma rotina de estudos, via de regra, com alguns
atrasos, geralmente das dez às dezoito horas.
O desconforto que sente em relação à língua espanhola, que tinha aprendido de forma
assistemática e com a qual se comunica, às vezes, de forma incompleta, com Lucy,
praticamente sua única “amiga” na cidade, se repete em relação à língua inglesa, o que ela
tenta atenuar com a leitura de livros e seção de filmes americanos, já que a interação com
pessoas do lugar torna-se praticamente impossível: “Se depender de Los Angeles, nosso
inglês permanecerá eternamente como é: uma língua básica, latinizada, de passagem”
(VIDAL, 2099, p. 21).
Os livros que a personagem lê e os filmes que assiste são importantes para entender o
processo de assimilação dos valores norte-americanos e de adaptação à cidade. Dos livros,
podem ser citados dois: Rua de mão única, de Walter Benjamin, publicado em 1928, e
Pergunte ao pó, de John Fante, publicado em 1939. O livro de Benjamin é uma obra
caleidoscópica que consiste numa miscelânea de notas políticas e filosóficas, ideias estéticas e
literárias, anotações de viagens, reflexões sobre o amor, etc., sob a égide do fragmento, da
montagem e da colagem de registros diversos como anúncios, placas, outdoors, etc. Mas que
acaba por tematizar a própria cidade com seu aspecto labiríntico.
Já o romance de John Fante, ambientado na década de 30, nas ruas, bares e hotéis
pobres e podres de Los Angeles, é, em grande medida, autobiográfico, ao contar a história do
aspirante a escritor Arturo Bandini, uma espécie de alter ego de Fante. Este seria o terceiro de
uma série de quatro livros com o mesmo personagem, publicados entre 1938 e 1985,
denominados, por isso, de “Quarteto Bandini”.
Escrita em um fluxo muito rápido, como uma mistura alucinante de jazz, bebidas,
drogas e sexo, a obra mostra a marginalidade social de um jovem aspirante a escritor. O que
chama a atenção da narradora-protagonista de Algum Lugar, na obra de Fante, é a
representação niilista de personagens que vivem à margem da sociedade, buscando uma
adaptação forçada. A vida que flui na obra de Fante, nas suas contradições desesperadoras, ao
constituir-se como mistura de afeto, desejo, dor e solidão, acaba por denunciar as frustrações
diante da representação de um mundo de oportunidades, representado pelos Estados Unidos,
sob a forma do “sonho americano”. Segundo a protagonista, mesmo o livro sendo de 1939,
tem uma atualidade geográfica impressionante, uma vez que assim como ela, Arturo Bandini,
mesmo se orgulhando de ser americano, busca se encontrar numa cidade feita contra os
negros e os imigrantes mexicanos e asiáticos, mas também em relação a ele que é pobre e
122
marginalizado. Por isso, soa tão pungente a referência à súplica dilacerada de Bandini: “Los
Angeles, dê me um pouco de você! Los Angeles, venha a mim do jeito que eu vim a você”
(VIDAL, 2009, p. 92).
Também os filmes assistidos pela protagonista de certa forma remetem a busca dessa
interação com a cidade. Muitos deles são baseados em obras do dramaturgo americano
Tennessee Willians (1911-1983) – Cat on a Hot Tin Roof (1958), A Streetcar Named Desire
(1951), Baby Doll (1956), Suddently, Last Sumner e The Night of Iguana(1964)29 – e
abordam problemas familiares, vivenciados pelo próprio autor em sua relação com um pai
despótico, e conflitos de identidade. Nesses filmes, marcados por relações humanas
problemáticas entre pais e filhos, entre irmãs, entre marido e mulher, entre tia e sobrinha, a
narradora conclui que “em todos, é a verbalização, às vezes desesperada, da distância do outro
que se impõe” (VIDAL, 2009, p. 57). Outros filmes – como A place in the Sun (1951), On the
Waterfront (1955) e East of Eden (1955)30 – também falam da ambição e da busca por
ascensão, fazendo menção de certa forma ao sonho americano cada vez mais inconquistável.
Por isso, ela conclui que “a cada noite o sonho americano vai ficando mais obscuro e sua
agonia mais profunda, mais evidentes os medos e os preconceitos, a opressão e a violência,
ocultos atrás de uma miragem” (VIDAL, 2009, p. 57-58).
Esse sentimento de desconforto fica mais intenso quando, no último dia de aula do
semestre, seu aluno Jay lhe entrega um DVD com uma cópia do filme Farenheit 9/11,
documentário americano de 2004, dirigido pelo cineasta Michael Moore, que não havia ainda
estreado nos cinemas. O filme aborda as causas e as consequências do atentado terrorista de
11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, e a posterior invasão ao Iraque, em 2003, com a
justificativa da guerra ao terror. A aprovação do “Ato Patriótico”, pelo senado norte-
americano, teve como consequências a restrição de vários direitos civis e o fechamento de
portas a turistas estrangeiros que queriam visitar o país. Essa mensagem subliminar presente
no filme que ela assiste assim que recebe, no computador da salinha do subsolo da
universidade, traz revelações que causam profundo desconforto: “mas ao voltar para casa não
conseguia me desligar de uma sensação inquietante de que não era isso que eu precisava
saber” (VIDAL, 2009, p. 85).
Por fim, mesmo com todo o esforço e energia gastos no processo de adaptação, de
leituras, de cursos e de escrita de pilhas de cadernos, a frequência nas aulas e a certeza na
29
No Brasil, foram traduzidos respectivamente como: Gata em teto de zinco quente; Uma rua chamada
pecado; Boneca de Carne; De repente, no último verão e A noite de Iguana.
30
Filmes, cujos títulos no Brasil foram traduzidos como: Um lugar ao sol, Há lodo no cais e a A leste do Eden.
123
capacidade de escrita da tese vão diminuindo, à medida que chega o final do primeiro
semestre. Mais um período letivo sem grandes avanços na escrita e na convivência com a
cidade, ela decide passar o mês de férias no Brasil, o que acaba por ser definitivo devido à
gravidez. Quando o marido volta de Los Angeles com os pertences de ambos, ela tenta, em
vários momentos, retomar um trabalho para o qual se sente impotente: “Cada vez que abria
um caderno e encarava algumas de suas páginas, tinha a sensação de estar diante de um
material estranho. [...] as notas eram confusas; nenhum cronograma havia se cumprido”
(VIDAL, 2009, p. 129).
Esse drama vivido pela protagonista em relação à escrita da tese indica uma prática
cultural que, segundo Bauman (2001), surgiu com a modernidade e tem se acentuado muito
na contemporaneidade que é a procrastinação, ou seja, o ato de “por alguma coisa entre as
coisas que pertencem ao amanhã” (BAUMAN, 2001, p. 178). No romance, o fato de a
personagem adiar, interminavelmente, a escrita da tese, não cumprindo o cronograma
estabelecido, provoca uma grande sensação de culpa, perda da produtividade e vergonha em
relação aos outros. Por isso, o sonho em que teria terminado a tese e percorria “um longo
corredor mal iluminado”, entregando-a à mãe, é tão significativo.
Para Bauman, ao contrário do pensamento corrente, a procrastinação não está
relacionada à displicência, mas sim ligada a uma busca vã pela perfeição. Essa tentativa de
assumir o controle das coisas, transferindo a imediatez da realização do trabalho, pelo qual
viajou para tão longe, está presente em várias passagens da narrativa, sempre associada ao
perfeccionismo da personagem: “Quem me fez pensar que conseguiria escrever uma tese. A
ideia me parece cada vez mais distante. É como se tivesse sido em outra vida” (VIDAL, 2009,
p. 108).
Com a volta ao Brasil, ela menciona os cadernos da tese, que são guardados no
armário, e aos quais ela não consegue voltar, sempre adiando sua possível escrita, ao chegar à
conclusão “de que não estava preparada, de que precisava de mais tempo” (VIDAL, 2009,
p. 129). Esse material estranho, cujas notas de aula eram confusas e cujas leituras ela não
mais sabia se seriam relevantes, acaba por ser abandonado com a gravidez. Diante do impasse
profissional, a experiência anterior em Los Angeles como professora de espanhol acaba por
ser determinante e ela, por intermédio da mãe que lhe conseguiu um trabalho em um curso de
línguas de uma amiga, volta a lecionar, já com uma desenvoltura diferente da época em que
lecionava nos Estados Unidos: “Depois da prática em Los Angeles, sente que essa é uma
atividade possível, enquanto decide o que vai fazer com o doutorado abandonado” (VIDAL,
2009, p. 135).
124
italiano Dante Alighieri, na Divina Comédia, obra do século XIV. Para Otávio Ianni, “a
história dos povos está atravessada pela viagem, como realidade ou metáfora” (IANNI, 2003,
p. 13). Chevalier e Gheerbrant (2009) sublinham o aspecto espiritual da viagem, ao
resumirem sua simbologia como busca da verdade, da paz e da imortalidade. Segundo esses
autores, “em todas as literaturas, a viagem simboliza, portanto, uma aventura e uma procura,
quer se trate de um tesouro ou de um simples conhecimento espiritual” (CHEVALIER;
GEERBRANT, 2009, p. 952).
Se na literatura, a viagem metaforiza a diferenciação, para Renato Ortiz (2000), seus
significados foram mudando ao longo do tempo. Na antiguidade clássica, representada pelas
epopeias Odisseia e Eneida, a viagem era determinada pelo destino e os heróis apenas
cumpriam uma vontade divina. Já no mundo moderno, cuja grande expressão é o romance
romântico, a viagem passa a representar o prazer e a afirmação da individualidade burguesa.
Nesse sentido, para o herói do romance, “o movimento é fruto de sua volição pessoal”
(ORTIZ, 2000, p. 30). Maas (2000) destaca o romance Robinson Crusoe, publicado no século
XVIII, por Daniel Defoe, como representante desses “Romances de Viagens”, que se
desenvolvem no “Século das Luzes”, e que contribuem na fixação da forma do romance de
formação alemão, uma vez que a temática da viagem, como forma de conhecer o mundo e a si
mesmo, será um dos elementos cruciais do Bildungsroman. Nesse subgênero romanesco, a
viagem, geralmente, aparece como metáfora do processo de autoconhecimento do indivíduo,
cuja peregrinação rumo a si mesmo, na concepção de Lukács (2000), também revela uma
determinada problemática do mundo.
Se, na contemporaneidade, a viagem parece ter perdido seu caráter predominante de
aventura, passando a ser concebida como um deslocamento no espaço, alguns romances de
formação femininos desse século, em consonância com o mundo globalizado, tematizam a
viagem como renascimento, reconstrução de identidade ou mesmo como exílio. Para Ortiz, a
“mobilidade-mundo” nos acompanha por todos os lugares, reconfigurando nosso olhar sobre
o outro. “Deslocar-se significa tomar conhecimento daqueles que se diferem de um „nós‟”
(ORTIZ, 2000, p. 32-33).
No romance em análise, a viagem configura-se como a translação de um espaço
familiar (Rio de Janeiro) a uma cidade desconhecida (Los Angeles), tensionando a busca da
protagonista em ter acesso a esse outro mundo, com seus riscos, sua linguagem desconhecida,
seu desabrigo. Ao embrenhar-se pela cidade estrangeira, buscando reconhecer-se e ser
reconhecida nela, a personagem, mais uma mulher na multidão, exerce a flânerie, por meio do
exercício do olhar, buscando captar “uma heterogeneidade própria da cidade” (VIDAL, 2009,
126
p. 25). Ortiz assinala a relevância dessa reorientação do olhar para se apreender o fluxo do
mundo atual uma vez que “o entendimento do mundo desterritorializado requer um ponto de
vista também desterritorializado” (ORTIZ, 2000, p. 21).
A sua chegada aos Estados Unidos da América, em 2003, dois anos após os atentados
de 11 de setembro e no início da Guerra do Iraque, coincide com o recrudescimento das leis
anti-imigração, sobretudo em relação a pessoas de origem árabe e/ou mulçumanas. A Lei Usa
Patriot Act, promulgada um mês após os atentados, em 26 de outubro de 2001, por Georg W.
Bush, e com ampla aprovação popular, consistia em um instrumento legal que autorizava a
espionar, deter, deportar e colocar em prisão incomunicável qualquer cidadão suspeito. Com
essa doutrina de guerra preventiva contra o terror, cresce o medo e o mal-estar em relação aos
imigrantes no país, por isso, o desconforto da protagonista ao assistir o documentário
Farenheit 9/11. As referências à guerra aparecem em vários momentos da narrativa, sempre
pontuadas por reflexões acerca da imigração e da dificuldade em estabelecer conexões com a
cidade. Por isso, nos sonhos com Los Angeles, “sente-se parte de um cenário futurista. A
qualquer momento, poderá surgir entre os prédios um carro voador” (VIDAL, 2009, p. 24).
Os veículos de comunicação com lamentos sobre as mortes de americanos no Iraque,
as reportagens na internet sobre as leis de guerras não cumpridas e a divulgação do poder
altamente destruidor da bomba, “que pode se fragmentar em milhares de minibombas que
explodem devastando tudo a sua volta” (VIDAL, 2009, p. 30), e o discurso maniqueísta do
presidente sobre a “linha que divide a civilização e o terror” (VIDAL, 2009, p. 88), provocam
um sentimento de inconformismo em relação aos absurdos da guerra e uma preocupação com
as futuras eleições.
de uma viagem. Na sua percepção, contudo, se perde de um lado, mas se ganha de outro, pois
se há desenraizamento, também há libertação de antigos valores, de modo que a viagem se
configura, paradoxalmente, em perdas e encontros. O autor conclui que “no curso da viagem
há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte nunca é o mesmo que
regressa” (IANNI, 2003, p. 31). Daí o seu caráter formador que permeia os romances de
formação masculinos e também femininos.
Se a sua passagem por Los Angeles se mostra um fracasso em termos profissionais e
afetivos – ela não escreve a tese, não consegue estabelecer laços de amizade consistentes e
seu relacionamento com M começa a deteriorar-se, além da planta do apartamento que morre
– de certa forma, ela consegue desenvolver uma autoconsciência do sentimento do exílio. Os
sonhos constantes com Los Angeles e com o Rio de Janeiro, às vezes tentando sobrepor uma
geografia à outra, dão uma dimensão da recriação de uma identidade nômade, marcada pela
diversidade, ao se questionar, na partida melancólica da cidade, que “se me perguntassem se
gosto da cidade, não saberia responder e assim ela nunca seria minha. Mas o que significa
isto? Não bastaria a familiaridade que sinto ao vê-la do avião, no fim de uma tarde de inverno,
quando o sol invade a cidade e apaga seus contornos?” (VIDAL, 2009, p. 122).
Essa mesma familiaridade ela busca encontrar no Rio de Janeiro, em uma errância
contínua pela cidade, em busca de alguma “justificativa para a inadequação do retorno”. De
novo, a volta do sentimento flâneur, em andar “pelas ruas como se nelas fosse recuperar algo
que se perdeu” (VIDAL, 2009, p. 126), evidencia uma travessia identitária difícil e necessária,
na qual se misturam memória e estranhamento, tempo e espaço, pertencimento e exílio. Para
Ianni (2003), aquele que viaja parece conter em si um eu-nômade que o leva a buscar outras
culturas, podendo ser um modo de conhecer não apenas o “outro”, mas também o “eu”.
O desfecho da obra – que mostra a personagem em contínuo movimento, em Buenos
Aires, ao lado do filho pequeno e da mãe, argentina repatriada, – reflete esse eu-nômade que
busca construir “o tempo todo ponte entre um mundo e outro, para situá-lo e aproximá-lo”
(VIDAL, 2009, p. 168). Com o passeio na cidade e a busca de um reconhecimento por meio
da visita à casa natal da mãe, ela parece dissolver-se na cidade por meio do “que vê e o que
não vê, o que aprende e o que imagina que sabe, a aparência e a essência, o ser e o devir”
(IANNI, 2003, p. 27), próprios dos caminhantes pós-modernos.
128
Não pergunta. Obedece quando ele pede que tire a roupa enquanto faz o
mesmo. Debaixo dos cobertores são dois corpos nus e o mundo se torna
minúsculo. Depois do sexo, ele a abraça com seu corpo todo, como se
129
À medida que ela tenta se adaptar à cidade, conhecendo sua história, travando uma
luta diária contra o isolamento e se arriscando a sair do mundo fechado para ir ao museu, ver
filmes ou sair com Lucy, o isolamento de M se torna cada vez mais frequente. As poucas
palavras trocadas, a cama desarrumada, o descuido com o apartamento, os silêncios
prolongados e os livros que se acumulam em pilhas nos cantos do apartamento, são índices
inequívocos de que “M estava transformando o apartamento num refúgio” (VIDAL, 2009,
p. 66).
Na tentativa de trazer um pouco de vida ao apartamento, que os salve da
despersonalização e do distanciamento que se impõem cada vez mais aflitivos, a personagem
compra uma flor. Para Chevalier e Gheerbrant (2009), embora cada espécie de flor tenha o
seu simbolismo específico, de maneira geral, a flor pode ser identificada com a infância, com
o estado edênico e com o retorno à unidade. Os autores citam Novalis, para quem “a flor é
símbolo do amor e da harmonia que caracterizam a natureza primordial” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 437). Com efeito, o objetivo da personagem é mover o
companheiro, engajando-o no cuidado com a planta, o que, de certa forma, serve como
metáfora do compromisso que ela gostaria que ele tivesse com o relacionamento. Isso está
implícito no seu desabafo de que “o gesto só faria sentido se conseguisse recuperar a casa de
sua indiferença, com algo de que é preciso cuidar, dia a dia, algo mais que um objeto, que
poderá eventualmente denunciar o seu abandono” (VIDAL, 2009, p. 72).
Por fim, o afastamento afetivo torna-se também temporal, com M trocando o dia pela
noite. O personagem estava na cidade, mas ao contrário da protagonista, negava-se à
ambientação. A certeza da provisoriedade da relação afetiva leva-a a ter medo de questionar o
marido: “A pergunta às vezes fica pairando sobre nosso dia, imóvel e densa. Não tenho
coragem de formulá-la para M. Seria uma antecipação desnecessária e até assustadora. Ou
talvez não a formule, pois sei qual seria a resposta: nada é para sempre” (VIDAL, 2009,
p. 84).
Nesse ponto, é importante observar que o amor como condição necessária ao
casamento, no mundo ocidental, surgiu a partir do Romantismo, com a invenção do amor
romântico. Embora os casamentos continuassem a ser realizados entre pessoas do mesmo
grupo social, como mostram os romances de Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar,
entre outros, segundo Maria Ângela D‟Incao (1992), o Romantismo promoveu o advento do
130
individualismo, a possibilidade do casamento por livre escolha, tendo o amor romântico como
condição, e o cultivo de maneiras civilizadas. Ieda Porchat (1992) acrescenta que esse
casamento burguês, identificado com a família nuclear urbana ligada ao processo de
industrialização, “é um casamento que tem como valores predominantes a escolha do parceiro
por amor, a glorificação do amor materno, a visão da mulher como rainha do lar”
(PORCHAT, 1992, p. 108).
Esse tipo de casamento, em declínio a partir da segunda metade do século XX, uma
vez que se acentuaram as intensas desigualdades entre homens e mulheres, tem se mostrado
cada vez mais frágil, uma vez que “sucedem-se as uniões, sucedem-se os rompimentos,
sucedem-se as dores” (PORCHAT, 1992, p. 113). Contudo, D‟Incao vê como uma das causas
desse aumento do número de separações o fantasma do amor romântico, representado na
literatura e enaltecido no cinema, que ainda ronda a imaginação de homens e mulheres pós-
modernos e provoca um desejo de plenitude impossível de ser satisfeito, ainda mais nos
tempos atuais, cujas relações afetivas têm como marcas a vulnerabilidade e a falta de
garantias.
Malvina Muszkat (1992) também destaca essa busca de plenitude como uma das
causas que provocam o fim dos relacionamentos. Para a autora, o prazer sexual seria apenas
um dos requisitos para a permanência das relações. Tanto homens quanto mulheres não
buscam apenas as realidades sentimentais – como ternura e carinho – que satisfaçam o
“coração”, mas também querem alguém com quem estabeleçam uma comunhão intelectual e
espiritual. Por isso, tantos desencontros nas relações afetivas contemporâneas desde a escolha
à manutenção do parceiro. A autora afirma que, tanto em sua experiência como analista
quanto como mulher, tem observado “uma enorme defasagem entre as expectativas do amor
depositados numa relação conjugal e as reais possibilidades de satisfazê-las” (MUSZCAT,
1992, p. 82). Ao se questionar sobre as possíveis causas desses desencontros amorosos, ela
sugere como hipótese o fato de que “esse ideal romântico de amor que supõe níveis profundos
131
impediam de sair. Por isso, a ênfase de que “o resto da casa nunca se recuperaria dessa
reviravolta” (VIDAL, 2009, p. 134).
Com a chegada do filho, o distanciamento acaba por se tornar irreversível: as
acusações mútuas, o isolamento da protagonista nos seus cuidados com a criança, o seu
distanciamento do mundo levam-nos a uma crise irremediável: “A sensação que tenho ao me
lembrar dos meses que passara é de ter vivido fora do mundo. Como retornar? Ao perguntar
isso a M me dou conta de que é um caminho que percorrerei sozinha” (VIDAL, 2009, p. 153).
Para Badinter (1986), o casamento que, para as mulheres, foi por séculos sinônimo de
segurança, respeitabilidade e fecundidade, acabou por perder essas características com os
avanços do movimento feminista. Isso significa que a segurança material já não é condição
para a convivência a dois. Entre uma vida infeliz a dois e a vida solitária de solteira, a
segunda opção é cada vez mais frequente.
Embora, para Mary Del Priore (2012), essa busca de completude e realização tenha
como consequências a responsabilidade e a solidão, ao argumentar que por trás da ideia
libertadora, há um acúmulo de vítimas e perdedores, uma vez que as pessoas parecem querer
tudo: “o amor, a segurança, a fidelidade absoluta, a monogamia e as vertigens da liberdade”
(DEL PRIORE, 2012, p. 321), segundo Badinter (1986), esses tempos de trânsito solitário são
positivos. Com ou sem filhos, a separação cria condições para que laços mais felizes possam
ser atados, uma vez que “vale mais uma solidão momentânea (e relativa) do que a divisão de
sua vida com um ser que não se reconhece como seu” (BADINTER, 1986, p. 206). Mais
adiante, acrescenta que o/a solteiro/a conquistou o direito à cidadania e que a solidão, cada
vez mais preferível em relação à ligação forçada, considerada como uma covardia moral que
causa enorme desconforto afetivo, pode ser resultado de uma escolha consciente.
No romance Algum lugar, apesar do grande amor que sente pelo marido e da solidão
que a atinge tão profundamente, a personagem não faz absolutamente nada para deter a
inexorável marcha dos acontecimentos e evitar o rompimento, vivenciando seu dilaceramento
interno, de forma madura e racional:
Foi ele quem enfim a procurou, numa tarde, sem avisar. Tocou a campainha,
entrou e se sentou no sofá. Ela ficou de pé. Depois de muita insistência,
aceitou se sentar a seu lado. A proximidade dele lhe causava um sofrimento
inexpressável e ela chorou como ele nunca havia visto. A clareza das
palavras dele não a surpreendeu. Sempre intuiu que ele entendia melhor do
que ela o que havia acontecido com os dois. Ele explicou, pacientemente, o
que pensava. Ouvindo-o, doía-lhe perceber, a cada frase, o quanto o amava.
Ele foi embora sem que ela pudesse dizer absolutamente nada (VIDAL,
2009, p. 161).
133
Isso demonstra que o amor materno abnegado e devotado nunca foi um apanágio do
feminino, mas sim um produto social imposto às mulheres pela ideologia dominante. Para a
autora, não há determinismo no amor da mãe pelo filho, quando há tantos casos de mães que
não sentem nenhum tipo de afeto pelos filhos ou mesmo que gostam mais de uns que de
31
O livro de Elisabeth Badinter, publicado originalmente, com o título L'Amour en plus: histoire de l'amour
maternel, é de 1980. Nesse trabalho, citaremos pela edição brasileira da Editora Nova Fronteira, de 1985.
135
outros, mas é algo que se adquire – ou não – com a convivência. Ela acrescenta ainda que
nem toda mulher encontra estímulos e respostas a essa condição e que apenas quando ser mãe
deixa de ser uma imposição social ocorre a possibilidade do amor.
No romance, é perceptível esse longo aprendizado da protagonista. Ao ter o filho na
mesma idade que sua mãe a teve – ambas com trinta anos – de certa forma, está repetindo a
história inscrita pela mãe. Embora não esteja explícito na obra, parece que a perda do irmão
mais jovem, com quem tinha uma relação de afeto e por quem parecia nutrir um sentimento
maternal, lhe causou grande sofrimento e vazio interior. Por isso, é significativo o fato de que
os momentos em que toma conhecimento da gravidez da mãe e da sua, sejam escritos de
forma paralela, forçando um distanciamento com o uso do expediente narrativo
heterodiegético, sobreposto às lembranças.
Ao receber a notícia de que sua mãe está grávida, guardou-o para si o que
estava sentindo. Precisou sair da mesa correndo e, no seu quarto, riu sozinha.
Seus pais a consolaram desajeitadamente, sem entender o que estava
acontecendo.
Antes de falar com M, sem largar ainda o teste com as duas listinhas
vermelhas, liga para o seu médico. Ele pergunta quando foi sua última
menstruação e, depois de um breve cálculo, anuncia: seu bebê vai chegar
com a Primavera (VIDAL, 2009, p. 128-129).
Mesmo com conflitos interiores, ela se sente feliz com a chegada do irmão e a ligação
afetiva com ele acaba por ser extremamente profunda, como demonstram os vários sonhos da
protagonista com ele, sobretudo quando está em Los Angeles. Dos vinte e quatro sonhos
descritos, cinco são relativos ao irmão, com passagens da infância, passeios imaginários ou
ainda com a sua doença. No primeiro e no último sonho, ela está com o irmão em uma cidade.
Ao passo que, no primeiro, essa cidade não é identificada com o Rio de Janeiro nem com Los
Angeles, mas entram em uma livraria; no último seria um passeio em um carro conversível
por Los Angeles, cujo reconhecimento se daria “pelo céu”. Nesse sonho, ela presencia um
sentimento de felicidade jamais visto no irmão. No segundo e terceiro sonhos, o irmão ainda é
recém-nascido e há um misto de enlevo na execução da cantiga de ninar e um deslocamento
devido à nova relação entre mãe e filho, da qual se sente, de certa forma, excluída: “Você fica
à espreita. Sente-se uma intrusa” (VIDAL, 2009, p. 75), mas acaba por concluir que “precisa
ajudar sua mãe” (VIDAL, 2009, p. 76). No quarto sonho, impõe-se de forma perturbadora a
doença do irmão e o seu aspecto debilitado:
136
Além dos sonhos, há outras referências à doença do irmão como em uma conversa
com Lucy, quando ela lhe conta da longa enfermidade pela qual ele tinha passado. Nesse
ponto, o filho, de certa forma, substitui a perda do irmão: “Toda vez que me refiro ao bebê,
pronuncio o nome do meu irmão” (VIDAL, 2009, p. 144).
Os incômodos com a gravidez, não mencionados nos manuais de autoajuda que exaltam
esse “dom” natural feminino, fazem com que ela confesse assustada: “não consigo me encontrar
nesse novo estado. O bebê por enquanto ocupa todo o espaço da minha vida” (VIDAL, 2009, p.
130). Isso, de certa forma, remete à avaliação de Badinter de que a compreensão feminina de que
ter filho é complexo e difícil só ocorre no final do século XX. As inúmeras tarefas maternais a
serem realizadas pelas mulheres, devido à clássica distinção dos papéis entre os sexos, não raras
vezes, tornam a maternidade um fardo difícil de ser suportado. Ao afirmar que “a gestação
acontece dentro de mim, mas seus efeitos se expandem” (VIDAL, 2009, p. 131), ela evidencia
que tanto quanto a casa que tem que ser adequada para receber o novo membro, com várias coisas
espalhadas pelos outros cômodos, também na sua vida não há espaço para uma relação com outro
ser que não seja o filho. Mesmo se questionando, em alguns momentos, sobre esse “dom que tão
naturalmente me havia sido dado” (VIDAL, 2009, p. 134), a chegada do bebê marca uma nova
etapa, na qual “todos os desejos são direcionados para um só lugar. Uma só data. E depois?”
(VIDAL, 2009, p. 140).
Se o nascimento não causa a emoção esperada, é com a convivência que a protagonista
vai aprendendo a ser mãe. Diante dos choros constantes do filho e da dificuldade dela para
dormir, ler ou fazer qualquer tarefa usual, e do seu corpo que insiste em não voltar à forma
anterior, ela se questiona: “Como vou conseguir?” (VIDAL, 2009, p. 141).
Isso aponta para a posição de Badinter de que a mulher continua sendo sacrificada em
relação à maternidade, tendo que assumir tarefas múltiplas e exaustivas como amamentar, dar
banho e comida, vigiar os primeiros passos, tranquilizar à noite, além de demonstrar grande
devotamento e sentimento de renúncia à própria vida. Dessa forma, para a mulher, “está
reservado o prazer ou o fardo de assumir esse primeiro corpo a corpo vital para a criança.
Embora a palavra “devotamento” não esteja em moda, a realidade que designa é um dado
incontornável que todas as mães conhecem perfeitamente” (BADINTER, 1985, p. 338). A
137
autora acrescenta ainda que o tempo e a energia dedicados à criança também se constituem
como privações às mães.
No romance, as tentativas de diferenciação entre o seu corpo e do bebê, como se a
transposição de uma fronteira se fizesse necessária, esbarram na dificuldade em lidar com
essa independência do filho: “efetivamente não penso em outra coisa: torná-lo independente.
Mas o buraco no estômago o tempo todo não seria um índice de um êxito que não posso
aceitar?” (VIDAL, 2009, p. 145). A isso, somam-se as dificuldades em sair de casa devido aos
horários das mamadas do bebê, o que faz com que as compras sejam feitas pela internet, o
desleixo com a aparência que a leva a ficar o dia todo de pijama e as marcas corporais
deixadas pela gestação: “Olho no espelho: meus peitos estão inchados, as pernas tem veias
que formam teias azuis, o umbigo está saliente” (VIDAL, 2009, p. 149). Esse estranhamento
com o próprio corpo e os exaustivos cuidados com o filho, levam a um distanciamento cada
vez maior com o marido, agravando uma crise conjugal, que já se anunciava desde a chegada
dos dois em voos separados em Los Angeles: “Gostaria de ter coragem de pedir a M algumas
precisões, mas tenho medo de comprovar que o estranhamento não é só meu” (VIDAL, 2009,
p. 149).
Segundo Badinter, as mulheres, após o movimento feminista, são capazes de expressar
melhor os problemas em relação à maternidade, como o esgotamento físico e emocional, o
desencanto e o sentimento de renúncia. E acrescenta que estudos e depoimentos de mulheres
“demonstram que a maternidade é mais difícil de viver do que em geral se crê e que a todo-
poderosa natureza não dotou a mulher de armas suficientes para enfrentá-la” (BADINTER,
1985, p. 353).
Contudo, embora ainda que se constituam como uma minoria, muitas mulheres
questionam se o papel específico do cuidado com os filhos pertence necessariamente apenas
ao sexo feminino e reivindicam “que se partilhem com elas os encargos da maternagem e da
educação” (BADINTER, 2009, p. 356). Nesse sentido, pode-se dizer que, apesar dos dramas
vivenciados pela protagonista, a obra apresenta um final positivo quando, após a separação do
casal, eles passam a compartilhar o tempo e as atividades diárias de maternagem com o filho.
Com efeito, o fato de o pai e a mãe compartilharem a guarda do filho aponta para o
surgimento de um novo modelo de pai, em consonância com as mudanças do mundo feminino
na contemporaneidade: “um fim de semana é dele, outro é meu, e durante a semana também
dividimos igualmente o tempo. Tem sido assim desde a separação, há pouco mais de um ano”
(VIDAL, 2009, p. 158).
138
CAPÍTULO 5
O BILDUNGSROMAN DO DESPERTAR FEMININO EM PÉROLAS ABSOLUTAS
32
Entrevista publicada na internet, sem número de páginas, concedida a Schneider Carpeggiani. Disponível
em: <http://fliporto.net/blogliterario/?p=37>.
140
Em uma narrativa tensa e vertiginosa, a autora, com maestria, alterna o uso das
técnicas narrativas de cena e resumo, na oscilação entre passado e presente. Além disso, ela
opta pela não marcação da fala das personagens, abolindo o uso de aspas e travessão. Há
algumas cenas nas quais, o/a leitor/a tem conhecimento do que se passa, mas não tem acesso
ao que as personagens dizem. Os capítulos intitulados “Uma cena” representam, de modo
geral, o encontro das duas no ambiente de um restaurante ladeado pela mata, com um clima
bastante opressor.
É dessa forma, que o/a leitor/a, por meio da voz de um/a narrador/a observador/a,
acompanha a angustiante expectativa de Sofia à espera de Lídice. As protagonistas são
apresentadas basicamente por suas características físicas: Sofia tem 46 anos, é morena, olhos
negros, cabelos castanhos e cacheados abaixo dos ombros, corpo magro, pernas grossas. Já
Lídice, dez anos a menos, é loura, muita alta e magra, tem cabelos louros, muito curtos, e
olhos azuis transparentes.
A cena do restaurante é bastante sombria, assim como o desenvolvimento da narrativa:
Lídice estará lá para matar Sofia, sua rival no amor de Anatole, e Sofia à espera da morte: “A
mulher nada pode fazer, agora. Nada, a não ser esperar” (SEIXAS, 2003, p. 14), conclui o/a
narrador/a. Além do “ruído hipnótico da mata [que] envolve o ambiente”, um clima de tensão
se instala no velho casarão, sobretudo nos garçons que pressentem a tensão como um
“presságio de sangue”, com a chegada da moça loura, de modo que “todos – na sala estão
presos” (SEIXAS, 2003, p. 14). A voz do/a narrador/a sintetiza a força dramática que envolve
o encontro:
Esse conflito resultante do encontro das duas rivais percorre toda a narrativa,
entremeada a lembranças das personagens, só ocorrendo o desfecho nas últimas páginas.
Dessa forma, a narrativa entrecortada e labiríntica, que traz novas configurações de tempo e
espaço, com personagens incompletas e identidades dilaceradas, é marcada por várias vozes
narrativas que se revezam para contar a história, além da constante mudança do ponto de
vista. Contando a partir de tempos alternados, temos as narrativas das co-protagonistas Sofia e
Lídice, além das vozes de Lídia, gêmea esquizofrênica de Lídice, e do/a narrador/a,
fortemente calcada na própria autora, ao sugerir um/a leitor/a pretendido/a.
A narrativa, que se expressa por meio da polifonia, uma vez que muitas vezes é difícil
reconhecer quem está narrando e quem está sendo narrado, alterna as rememorações de Sofia
e Lídice, mudando a perspectiva do ponto de vista autodiegético para o heterodiegético. Nesse
sentido, pode-se afirmar que a autora maneja, com bastante propriedade, a polifonia e a
ruptura do tempo linear. O conceito de polifonia, cunhado e desenvolvido por Bakhtin, em
Problemas da Poética de Dostoiévski, ao analisar a obra desse autor russo, refere-se ao
discurso que resulta de uma trama narrativa com diferentes vozes. Na visão de Bakthin,
“Dostoiévski não cria escravos mudos como Zeus, mas pessoas livres, capazes de colocar-se
lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele” (BAKHTIN, 2008,
p. 4).
Ao analisar a abordagem de Bakhtin da obra de Dostoiévski, Venturelli (2006) afirma
que as personagens do escritor russo “não são unidades biograficamente completas. São
autoconsciências abertas em relação a outras autoconsciências” 33. Mais adiante, ele ressalva
que não é a profusão de personagens que caracteriza a polifonia, mas sim a multiplicidade de
vozes, sem que uma se sobressaia à outra.
No romance Pérolas Absolutas, a polifonia ocorre como metáfora do discurso dos
problemas insolúveis de mulheres contemporâneas, em busca de renovação em uma sociedade
em transformação. Nesse caso, as vozes das personagens Lídice e Sofia se entremeiam com a
do/a narrador/a, para contar suas histórias de culpa, dor, dilaceramento e fracasso. As falas
marcadas por certa dispersão são inerentes a essas personagens femininas em formação que
inscrevem suas experiências e memórias na narrativa por meio do diálogo de uma com a
outra. Nesse sentido, as análises de Bakhtin, ao refletir sobre a obra de Dostoiévski, parecem
referir-se ao romance de Heloísa Seixas:
33
Entrevista publicada na internet, sem número de páginas, concedida ao IHU online.
142
O entendimento entre as duas por meio do diálogo é tão completo que uma consegue
entender o que a outra não quis ou não pode jamais falar, como se evidencia nesse diálogo,
quase ao final da narrativa, entre Lídice e Sofia:
Queria que você soubesse que entendi tudo. Entendi até aquilo que você não
falou. Porque não pôde, ou não quis.
Silêncio.
E vou dizer por você, essa frase que ficou, eu sei trancada aí dentro, talvez
há muitos anos. Se eu estiver enganada, me diga. Mas sei que não estou. Eu
sinto.
Silêncio.
[...]
Sua irmã morreu (SEIXAS, 2003, p. 182).
do despertar feminino – “Novel of Awakening” – termo cunhado por Susan Rosowski – para
aqueles romances que apresentam protagonistas mais maduras e experientes, embora ainda
jovens. Da mesma forma que o Bildungsroman propriamente dito, que apresenta personagens
jovens descobrindo a sexualidade e buscando uma inserção no mundo do trabalho, também o
romance do despertar evidencia o desenvolvimento psicológico e a inserção social da
personagem feminina. Em Pérolas Absolutas, a formação ocorre a partir da travessia pela dor,
pelo sofrimento, pelo desamparo e pela loucura, fazendo com que, ao final, tanto Sofia quanto
Lídice descubram novos sentidos para suas trajetórias e adquiram novas filosofias de vida.
Não só a libertação da sexualidade, mas como também o conhecimento interior dá a tônica
dessa espécie de epifania feminina.
Se alguns pontos da narrativa ainda remetem ao Bildungsroman feminino do século
XX, como a narrativa da culpa devido à opressão familiar e o fracasso nos relacionamentos
amorosos heterossexuais, o romance de Heloísa Seixas aposta em um desenlace feliz
inesperado para suas personagens, e também para os/as leitores/as, a partir de novas
configurações identitárias e descobertas da sexualidade, mostrando uma surpreendente
reinvenção do feminino por meio da aprendizagem do amor.
Lídice era uma cidade tcheca. Uma cidade que Hitler mandou destruir, por
pura vingança, por causa da morte de um oficial. Foi implacável, não queria
que sobrasse ninguém vivo. Eu me lembro que fiquei triste, chorei quando
minha mãe me contou.
Sofia não foi arrasada, mas também sofreu muito. Lídice e Sofia. É
engraçado, não é? Quer dizer, é estranho (SEIXAS, 2003, p. 137).
144
34
Para Freud , em o Id, o Ego e Outros Trabalhos (1923-1925), a personalidade humana seria formada pelo Id,
Ego e Superego. O Id que contem a libido, fonte de energia psíquica, seria o aspecto da personalidade
relacionado aos instintos. Já o Ego, como mediador entre as pulsões do Id e as circunstâncias exteriores, seria
a consciência da realidade e a expressão da racionalidade. Segundo ele, “o Ego procura aplicar a influência
do mundo externo ao Id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina
eternamente no Id, pelo princípio de realidade” (FREUD, 1923-1925, p. 13). O Superego, por sua vez, como
representante da moralidade, é o responsável pela internalização das proibições e dos limites familiares e
sociais. Freud ressalva ainda que “o Superego, contudo, não é simplesmente um resíduo de primitivas
escolhas objetais do id; ele também representa uma formação energética contra essas escolhas” (FREUD,
1923-1925, p. 18).
35
Essa terminologia “Eu-pecador”, não recorrente nos estudos de Freud quando se trata topografia da psique,
aparece aqui no sentido metafórico, tendo em vista sua acepção religiosa.
145
fazenda, minha vida parecia uma história antiga, saída dos livros. Os empregados me
cercando, a mesa posta com apuro, mesmo para o café da manhã” (SEIXAS, 2003, p. 76).
O sentimento de impotência frente a uma vida encastelada e destinada a um enfadonho
destino de mulher e a impossibilidade de corresponder de forma recíproca ao afeto
incondicional do pai, leva-a ao desabafo de que “não poderia suportar tanto amor” (SEIXAS,
2003, p. 77). Presa a uma existência que “parecia uma história antiga, saída dos livros”
(SEIXAS, 2003, p. 76), há um desejo imperioso de fugir desse mundo marcado pelo excesso
de formalidades, rodeada por santos que a vigiavam com olhar piedoso. O amor opressivo do
pai lhe torna cada vez mais insuportável a vida na fazenda. Essa busca da subjetividade
remete à afirmação de Touraine (2011) de que a consciência feminina se configura como
espaço de resistência as suas funções ditas sociais de reprodutoras, repouso do guerreiro,
educadora de crianças e outras. Dessa forma, a mulher criadora de si não se reconhece
somente nessas imagens de mulheres criadas pelos homens, fazendo com que o trabalho de
libertação e de formação de condutas independentes seja bastante complexo.
Devido a esse “conflito de gerações”, tão marcante nos romances de formação
masculinos tradicionais e femininos do século XX, o fato de Sofia abandonar o pai, o que se
configura para ela, como “um gesto de amor”, representa uma possibilidade de crescimento
pessoal fora daquele mundo ocluso e cheio de limites, o que novamente evoca a asserção de
Touraine de que a busca da mulher por subjetificação e autorrealização “não se trata de
egoísmo ou de indiferença para com a situação dos outros, mas de uma vontade de
transformação em atitude de considerar mais central a relação consigo mesma do que a
relação com os outros” (TOURAINE, 2011, p. 42).
Sua fuga de casa em um uma manhã para ir nadar no açude, o que era proibido pelo
pai, e o encontro com o forasteiro, possibilita-lhe conhecer um novo mundo, diverso do que
vivera até então. Nesse sentido, o estranho que, na concepção de Bauman, provoca medo uma
vez que surge da “preocupação contemporânea obsessiva com poluição e purificação”
(BAUMAN, 2001, p. 126), representa na obra a possibilidade de transformação que é tudo o
que Sofia de fato deseja. A entrega sexual de Sofia ao forasteiro hippie, que a ensinou a fumar
o “cigarro dos sonhos” e contou-lhe sua vida de aventuras pelo sertão, uma vez que
abandonara tudo em nome da liberdade, desperta-lhe esse desejo de construir uma nova
subjetividade longe do poderio patriarcal do ambiente familiar.
Lembro de, primeiro, ter fechado os olhos. Mas ainda levou algum tempo até
que a sensação de frio em minhas costas se acentuasse e começasse a
146
penetrar-me nos poros, devagar. Foi por causa dela que eu estendi a mão e
toquei o forasteiro. Depois, tudo aconteceu muito rápido. Sem jamais abrir
os olhos, senti o mundo se transformar em sensações táteis, em gostos e
cheiros até então desconhecidos para mim. O peso de um corpo sobre o meu,
mãos que me percorriam, a boca ávida, nervosa, o odor antigo que se
desprendia. Tudo girava dentro e fora de mim. Não havia prazer nem susto,
apenas nojo. Era com repulsa que eu me entregava (SEIXAS, 2003, p. 89).
36
Carlos Magno Gomes utiliza-se do conceito de Michel Foucault, definindo heterotopia como um
posicionamento contra o espaço opressor. Dessa forma, Foucault define heterotopias como “outros
posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura [e] estão ao mesmo tempo
representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles
sejam efetivamente localizáveis” (FOUCAULT apud GOMES, 2011, p. 103). Por isso, a viagem na literatura
de autoria feminina, como espécie de refúgio e resistência, se configura como esse espaço de heterotopia.
148
Essa vida nômade, na comunidade hippie, em meio à imundície e ao delírio, como ela
própria relata, após chegar à praia das tartarugas, onde descobre sua vocação de bióloga e
onde intui que entre os animais seria mais feliz que “entre os humanos”, perdura por alguns
anos. O forasteiro logo desaparece de sua vida e ela volta a Salvador para assinar os papéis e
receber a herança pela morte do pai, que nunca mais vira desde que fora embora. A volta à
fazenda, deserta e abandonada, três anos após sua partida, não lhe traz nenhuma emoção ou
saudade, apenas o sentimento de solidão daqueles que pagam o preço de romperem com os
laços familiares.
A trajetória de Lídice, ao contrário da de Sofia, que não podia “suportar tanto amor”
(SEIXAS, 2003, p. 77), é marcada pela falta de amor e pela presença onipotente da irmã
gêmea e amada pela família. Lídice, a menos talentosa, apesar de aparentemente ser idêntica à
outra, sempre vivera a sombra de Lídia. A diferença entre as duas é marcante desde a infância,
até mesmo no papel desempenhado por ambas na orquestra infantil da escola de música,
quando faziam as apresentações de final de ano: Lídia tocava violino, instrumento menor e
mais agudo, de maior destaque na orquestra, enquanto Lídice tocava o violoncelo que, apesar
do som grave que produz, seria uma espécie de instrumento coadjuvante.
Por isso, talvez, eu tocasse violoncelo e minha irmã, violino. O violino sim,
voa alto, é no violino que todos prestam atenção. O som agudo como o de
um cristal. O grave faz sustentação. É bonito, eu sei, eu também acho. Mas o
violino é a primeira voz. Não é a segunda. É diferente (SEIXAS, 2003,
p. 152).
Mais de vinte anos depois, após a tragédia familiar que marcou a desagregação
familiar e o atual estado de loucura da mãe, ela consegue finalmente contar sua história de
culpa e de fracasso à sua rival Sofia:
149
Meu nome é Lídice. Ou talvez Lídia, não sei. Não importa – você vai saber.
Vai conhecer o que nem eu mesma conheço. O impronunciável, a palavra
proscrita. Porque é hora de falar. Sem cautela, sem receio, sem freios. Sei
que devo desatar as amarras, soltar o grito há tantos anos sufocado, cortar a
própria carne, deixar correr o sangue, como corre o tempo. Sei que minhas
mãos ficarão feridas, a pele dilacerada pelos arranhões, nos dedos cravadas
as lascas de madeira e pedra, as unhas destruídas, resultado da arqueologia
da dor. E sei, também, que tenho medo. Mas ainda assim o farei, porque é
preciso. A hora chegou (SEIXAS, 2003, p. 19).
Ao contrário de Sofia, que sempre vivera uma vida confortável, mesmo após a morte
do pai, uma vez que recebe uma herança, forma-se em biologia e depois se casa com um
homem também rico, a trajetória de Lídice é marcada pela decadência econômica, sobretudo
após o pai ter abandonado a família. No romance, além de uma cena quando conhece Anatole,
que está tocando violoncelo em um bar, não aparece outra forma de atividade econômica ou
profissional dessa personagem. É através da voz do/a narrador/a que, como se fosse uma
câmera, registra o aspecto sombrio do quarto:
Da mesma forma que em muitos romances de formação do século XX, como Ciranda
de Pedra (1951), de Lygia Fagundes Telles, e A asa esquerda do Anjo (1981), de Lya Luft, a
figura materna representa um modelo falhado e incapaz de contribuir no processo de
formação de protagonista. Vítima de uma série de tragédias familiares: o desaparecimento da
filha predileta e o abandono do marido, a personagem não-nomeada, velha e doente, torna-se
um fardo para a filha que acaba por odiá-la e desejar-lhe a morte: “Minha mãe não tem nome,
o nome não importa. Mas ela está aqui. Agora mesmo, posso ouvir-lhe os rumores no quarto
ao lado. Hoje é uma velha” (SEIXAS, 2003, p. 20).
Lídice rememora os dias de sol intenso e felizes da infância quando iam à praia e
brincavam felizes correndo pela areia. Ao contrário de Sofia, ligada ao barro e à terra, Lídice
é uma personagem tangenciada pelo mar e as areias. O prazer infantil e a sensação de
liberdade proporcionada pelo avanço nas dunas propiciam a sensação de conquista, o que, de
forma simbólica, “relaciona-se inconscientemente ao regressus ad uterum dos psicanalistas. É
150
Talvez os filhos que se afastam sejam aqueles que amam de verdade. Os que
ficam fazem-no por vingança. Querem assistir a lenta degradação, ao
151
Logo após mostrar o desespero da mãe e a ausência do pai, ela se mostra incerta
quanto ao destino da irmã, dando a entender que ela poderia estar encerrada em uma clínica
psiquiátrica: “Viveram ela e a mãe, por muito tempo ainda em casa. O pai se fora. A irmã se
fora. Para onde? Onde está ela agora?” (SEIXAS, 2003, p. 110).
A revelação do destino trágico de Lídia só ocorre, nas páginas finais do romance, após
uma longa conversa com Sofia, em que esta pronuncia a frase impossível de ser dita por
Lídice. Sofia argumenta que é importante a mudança no tempo do verbo uma vez que Lídice
sempre falava da irmã como se ela ainda estivesse viva. Para Sofia, “o único mistério está no
tempo. É preciso mudar o tempo. E o tempo é um passado simples” (SEIXAS, 2003, p. 182),
para finalmente concluir: “Sua irmã morreu” (SEIXAS, 2003, p. 182).
Após essa revelação tão simples e tão difícil, o foco da história volta-se ao/à
narrador/a heterodiegético/a, que mesmo ponderando sobre os limites da narrativa, descreve a
cena como se vista do alto. Ao descrever a escuridão das águas, quando não se há limites
entre mar e céu, como na odisseia bíblica, o/a narrador/a se compara a Deus sobrevoando o
abismo. É do alto que vê um barco perdido no mar, do qual uma garota se ergue, sob o olhar
incrédulo e paralisado da irmã, pondo-se nua e enfrentando a tormenta: “O anjo incréu,
ensandecido, atira-se à frente de braços abertos, num gesto de desafio, mas também de júbilo,
como se desse a si própria em sacrifício, ao mar, aos ventos, à tempestade, como se quisesse
abraçar o universo inteiro. E desaparece sob as águas” (SEIXAS, 2003, p. 187).
Depois, a cena focaliza não mais a dor e o desespero da menina no barco, mas se volta
ao homem – pai de Lídice e Lídia? – de uns quarenta anos, que espera em silêncio em um
canto da praia. Ao abordar o desespero que o atinge e a busca de respostas, há o registro do
fim da tempestade exterior: “Agora só dentro do peito do homem é temporal” (SEIXAS,
2003, p. 189). Seria essa a representação da culpa por ter desejado e amado a filha de forma
incestuosa? A narrativa não permite respostas, mas apenas conjecturas sobre o destino das
personagens.
A dor e o desespero por, de certa forma, ser cúmplice na morte da irmã – e talvez
mesmo por inconscientemente desejá-la, já que a outra sempre fora mais amada – não
podendo impedir o desfecho trágico, marca a personagem, que se deixa dominar pelo rancor e
pela dor.
Sou, fui e sempre serei a segunda. Desde criança, minha irmã sempre foi
melhor do que eu, sempre me venceu. Era a mais bonita, a mais inteligente, a
mais brilhante. Mas eu nunca a odiei, isso nunca. Meu rancor é contra o
mundo, contra tudo o que me cerca e me cerceia. O mundo que está em
153
Para Freud, há muitos limites à felicidade humana, devido à própria fragilidade da sua
constituição. Assim, é bem mais fácil ser infeliz, uma vez que a vida “traz demasiadas dores,
decepções, tarefas insolúveis” (FREUD, 2011, p. 18). Em relação à sua finalidade também
não há respostas, a não ser as que são propostas pelas religiões, que se constituem, com efeito,
como uma espécie de paliativo às dores humanas, assim como os entorpecentes que alteram a
química do corpo. A trajetória de Lídice confirma as asseverações de Freud de que o
sofrimento humano está ligado a três fatores: o primeiro seria o próprio corpo, fadado à
dissolução, cuja dor e medo seriam os sinais principais de alerta; o segundo é o mundo
externo que se abate sobre o ser humano com suas forças inexoráveis e desagregadoras; e, por
fim, as relações, sempre complexas, com outros seres humanos. E daí vem a neurose que
talvez esconda “um quê de sentimento de culpa inconsciente, que por sua vez fortalece os
sintomas ao usá-los como castigo” (FREUD, 2011, p. 86).
O modo como Lídice relaciona-se com a mãe doente, por quem nutre sentimentos
rancorosos e homicidas, e também com os estranhos habitantes de uma caixa de papelão que
guarda no armário, parece encontrar explicações nessas reflexões freudianas. Na caixa, a
personagem guarda recortes das trajetórias de personagens que, segundo sua ótica, integram o
time dos que foram relegados à margem como, entre outros, Camille Claudel, a amante de
Rodin, que enlouqueceu por ter sido preterida em relação à esposa do famoso escultor francês,
Tiago Menor, o irmão esquecido de Jesus, e Henrich Mann, o irmão escritor que sempre viveu
à sombra de Thomas Mann, ganhador do Prêmio Nobel: “São esses os meus irmãos. Todos
fracassados, esquecidos, nulos – como eu. Porque não perderam, não chegaram em último,
mas em segundo, o lugar maldito” (SEIXAS, 2003, p. 29).
Para Lídice, o pior não é o último lugar, mas o segundo, que sempre fora ocupado por
ela, tanto em relação aos pais quanto em relação à Anatole, seu amante e marido de Sofia: “A
verdadeira derrota é estar em segundo. Fui a segunda para Anatole, como fui também a
segunda para meu pai e minha mãe” (SEIXAS, 2003, p. 28). Nessa seara dos fracassados,
duas personagens bastante emblemáticas da situação feminina na sociedade androcêntrica,
ganham destaque – Camille Claudel e Zelda Scott Fitzgerald – mulheres que viveram entre o
final do século XX início do século XX, que amaram apaixonadamente homens que as
menosprezavam e enlouqueceram por não conseguirem reconhecimento pelos seus dons
artísticos. Suas trajetórias de amargura e fracasso dialogam com a história de Lídice.
154
Sobre Camille Claudel, aprendiz e amante talentosa de Rodin, com quem viveu um
tumultuado caso amoroso, enlouquecendo após o abandono e passando os últimos trinta anos
de sua vida em um manicômio, ela destaca o fato de que Camille também foi preterida pela
mãe, que preferia os outros dois filhos. Ela salienta que a escultora tinha opiniões fortes e que,
desde criança, acalentava o grande desejo de ser escultora, o que era do desagrado da mãe.
Vivendo à sombra do escultor francês, para quem produzia obras em troca de um salário de
aprendiz, “foi a segunda como filha, como mulher, como escultora” (SEIXAS, 2003, p. 146).
Após os comentários sobre a personagem, há uma mudança no ponto de vista e o/a narrador/a
heterodiegética passa a acompanhar a personagem, em uma noite fria, pelas ruas desertas de
Paris, flagrando sua loucura e seu desespero.
Deve ter tido, no passado, os traços finos, o nariz ainda é reto e afilado, mas
há bolsas em torno dos olhos e as faces estão infiltradas, com manchas
escuras. Os cabelos desfeitos são uma evocação da Medusa e em torno da
boca podemos ver bem os pontos feridos pelo frio e o mau trato. Traz os
lábios fendidos em um esgar, e há negror nos dentes que se insinuam,
cintilando. Mas é sobretudo no olhar que nós fixamos. São os olhos que nos
deixam sem ar. Olhos de córneas vermelhas, onde se estriam veias, olhos
que trazem em si tal tinta de sangue que somos de imediato tomados pela
certeza de que a mulher cruzou a fronteira entre o humano e a besta. Olhos
de pavor e de ódio, saltados, arregalados, loucos – como os de um cavalo na
hora de morrer (SEIXAS, 2003, p. 149).
Zelda Scott Fitzgerald, escritora americana, casada com Scott Fitzgerald, um dos
expoentes da “Lost Generation” americana dos anos 20, é outra figura feminina com uma
existência trágica, acolhida por Lídice em sua caixa de perdedores, por viver uma “história
feita de loucura e dor, solidão e morte” (SEIXAS, 2003, p. 163). Essa mulher bonita e
considerada frívola, como parte dos americanos ricos da Era do Jazz, foi um ícone nos anos
20 e viveu com o marido famoso em Paris, na condição de expatriados, convivendo com
artistas célebres, como Gertrude Stein e Ernest Hemingway. Tudo levava a crer que, de
acordo com a vida de glamour que viviam, eles formavam um casal feliz. Mas Zelda foi sendo
destruída pelos sentimentos de inveja, rancor e amargura em relação a Scott que, além da
entrega ao alcoolismo, usava os diários da esposa como matéria para seus romances.
Sabia – todos sabiam, menos ela – que era velha demais para isso.
Tampouco incentivava-a a escrever e teve uma ataque de fúria quando soube
que ela, mesmo internada, havia terminado o primeiro romance (SEIXAS,
2003, p. 163).
Após os comentários gerais sobre a história de Zelda, sempre humilhada pelo marido
famoso, a narrativa focaliza a noite fatal do dia 10 de março de 1948, quando após cerca de
dezoito anos vividos em sanatórios e hospitais, devido à esquizofrenia, diagnosticada em
1930, Zelda morre vítima de um incêndio que se espalhara pelo hospital onde estava
internada. O/a narrador/a, presente na cena, descreve o salão deserto, a fumaça que começa na
cozinha e se multiplica pelos corredores e quartos, pressentindo a agonia e o desespero das
mulheres trancadas, que não poderão escapar para, por fim, concluir:
Viemos para conhecer a agonia de uma mulher, uma mulher que está presa
numa das celas do primeiro andar, e que neste preciso instante – por alguma
razão que nós não sabemos – tem o rosto encostado às grades da janela,
tentando não pensar, fingindo estar longe dali, os olhos fechados como se
sonhasse (SEIXAS, 2003, p. 166).
O sentimento de culpa de Lídice, sobretudo devido à morte trágica da irmã, que faz
com que colecione essa galeria de personagens sofredores como ela, sobretudo das mulheres
analisadas que vivenciaram de forma tão dilacerada o amor e a loucura, leva-a a um constante
deslocamento de identidade, a ponto de perguntar quem seria ela – Lídice ou Lídia? – e de
confessar a criação do duplo, como forma de autopunição e, ao mesmo tempo, de negação da
morte, ao admitir que a presença da irmã, cujo corpo jamais fora encontrado, nunca deixou de
existir para ela: “Há em algum ponto um duplo meu. Uma mulher loura e frágil, de olhos,
como os meus, contaminados. Há em algum lugar a outra metade, gema e clara irmanadas – a
outra parte” (SEIXAS, 2003, p. 156). Freud, no ensaio “O estranho”37, publicado em 1919,
faz referência ao tema do duplo, abordado por Otto Rank, seu discípulo, em 1914. Para Freud,
esse tema tem como reflexos os espelhos, as sombras e os espíritos guardiões e se configura
numa segurança contra o ego e em uma negação do poder da morte.
Não é, contudo, apenas esse último material, ofensivo como é para a crítica
do ego, que pode ser incorporado à ideia de um duplo. Há também todos os
futuros, não cumpridos mas possíveis, a que gostamos ainda de nos apegar,
37
Conceito importante na obra de Freud. Ele o usa na análise do conto fantástico “O Homem da areia”, de
Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, cuja atmosfera de estranheza é causada pelo “homem de areia”, do qual
se diz que, por ser um homem perverso, quando as crianças não iam para a cama, arrancava os olhos delas.
Para Freud, o homem da areia seria a representação simbólica do pai temido, de cujas mãos se espera a
castração.
156
Ao final, quando ocorre o acerto de contas entre Sofia e Lídice, ambas afirmam: “Eu
não tive culpa”, para depois se questionarem, talvez para si mesmas: “Você acha que eu tive
culpa?”. Para Freud, a angústia da consciência está ligada ao não cumprimento das severas
exigências culturais. A evolução cultural se apresenta aos humanos como uma luta entre o
instinto de vida e o instinto de morte, fazendo com que o impulso da liberdade seja dirigido
“contra determinadas formas e reinvindicações da civilização, ou contra ela simplesmente”
(FREUD, 2011, p. 41). No romance, Sofia, ao tentar confortar Lídice, afirma que o amor é a
maior das tiranias: “Certas pessoas são assim. Há nelas tanta generosidade, uma tal
benevolência, que vivem para servir aqueles que amam. Mas por trás da doçura há o desejo de
nos acorrentar, de envolver nossas almas em grilhões feitos de culpa, devoção e graça”
(SEIXAS, 2003, p. 95).
Pérolas Absolutas apresenta a representação da culpa que se origina da própria
condição humana e aparece em muitos romances de formação feminina dos séculos XX e
XXI. A questão da culpa, do ponto de vista feminino, é lida a partir da obra de Freud (2011),
na qual ele afirma que as exigências ideais da sociedade são tão severas que geram o mal-
estar na civilização. Tendo em vista a perspectiva desse trabalho pelo viés dos Estudos
Culturais, cuja natureza é interdisciplinar e de acordo com a convicção de Johnson de que
“existe uma enorme potencialidade para os Estudos Culturais no uso das categorias
freudianas” (JOHNSON, 2010, p. 91), optou-se pelo uso de alguns conceitos freudianos para
a análise do romance, em detrimento dos argumentos que sustentam a teoria do romance de
formação.
definidas pelo poder ou pelo desejo do outro, mas por uma autoafirmação existencial”
(TOURAINE, 2011, p. 53).
É nesse sentido que, para a personagem, o extremo amor do pai, que lhe era exclusivo,
desde seu nascimento, se revela como uma espécie de tirania, uma vez que teria que lhe
corresponder às suas expectativas, não podendo ter vontade própria. É isso o que ela confessa
em sua longa e reveladora conversa com Lídice: “Meu pai era um tirano, como sua mãe. Pior,
porque me amava demais, mais do que eu podia suportar. É um fardo terrível, isso. O único
remédio é ir embora. Sair pela porta, fugir – e nunca mais olhar para trás” (SEIXAS, 2003,
p. 198).
Essa passagem mostra um aspecto fundamental do romance de formação que se
configura no conflito de gerações. É a vivência, longe da proteção/aprisionamento do lar que
vai propiciar uma mudança significativa na sua trajetória ao poder acessar outras experiências
e, mais do que isso, poder refletir sobre elas, o que contribui no aprendizado da personagem.
É isso o que enfatiza Schwantes ao afirmar que “parte do conflito de gerações, que é um dos
passos do romance de formação, deve-se à luta do protagonista para ter acesso a vivências
várias” (SCHWANTES, 2010, p. 107).
A longa viagem, de carona em um caminhão, coberta de poeira, com destino a uma
praia deserta, onde viveria cerca de três anos em uma comunidade hippie, em meio “a
imundície, o delírio, o permanente torpor” (SEIXAS, 2003, p. 98), vai propiciar o acesso a
essas vivências. Para Maffesoli (2001), a viagem se apresenta como uma contínua iniciação,
tendo um aspecto fundador. Assim como ocorre em Perto do coração selvagem, romance no
qual a protagonista também viaja em busca de si, uma viagem que tanto se configura como
um deslocamento espacial, quanto como um deslocamento cada vez mais denso no interior de
si, é o que também ocorre com Sofia em meio à errância espacial e identitária. Na concepção
de Mafessoli, “o aspecto imaterial da viagem, em particular de suas potencialidades afetivas e
sentimentais, é um modo de tecer os laços, de estabelecer os contatos, de fazer circular a
cultura e os homens” (MAFFESOLI, 2001, p. 124). De fato, é na praia das tartarugas, cujo
estranho processo de desova a surpreende, que Sofia descobre sua vocação profissional:
“Caminhei, pensando nas tartarugas. Nessa época eu já me interessava pelos animais, de
alguma forma intuía que estaria melhor entre eles do que entre os humanos” (SEIXAS, 2003,
p. 93-94).
Essa vivência na comunidade caracteriza-se, sobretudo, como um tempo de passagem,
marcado por descobertas, uma espécie de acampamento provisório, vivido como uma estada
de pernoite, na concepção de Bauman (1998), do qual só lhe restara “a certeza de que só havia
159
[...] partindo para a conquista no mundo exterior, Eva pôs fim à divisão
sexual do trabalho. Lutando pelo direito à contracepção e ao aborto, ela
recuperou, para si própria, o controle da reprodução. Enfim, liberado o
corpo, dona de sua vida, ela deixa de ser um objeto de troca entre os homens
(BADINTER, 1986, p. 143).
Talvez não tenha sido a solidão, mas sim a lama que me atraiu. Gosto de
lidar com essa matéria estranha, nem sólida nem líquida, pisar no lodo onde
pululam formas de vida, um universo inteiro se autocontendo, se
reproduzindo, no ciclo eterno. Ter nesse pisar a sensação de incerteza. Nem
sólido nem líquido. No lodo, o tanino conserva os corpos mortos. São as
múmias do pântano (SEIXAS, 2003, p. 84-85).
Nesse sentido, essa relação de simbiose de Sofia com a natureza lembra a passagem do
conto “Amor”, de Clarice Lispector, no qual a personagem Ana, acomodada a um “destino de
mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado” (LISPECTOR, 1998,
p. 20), um dia, após um instante de epifania ao observar um cego mascando chicletes, em um
ponto de bonde, e de ela passar do ponto de descida porque a visão do cego estava sufocando-
a de tanta piedade, acaba por atravessar os portões do Jardim Botânico e se surpreender com o
excesso de vida, como se evidencia na seguinte passagem: “A crueza do mundo era tranquila.
O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. [...] Como a repulsa que
precede uma entrega – e era fascinante e a mulher tinha nojo, e era fascinante” (LISPECTOR,
1998, p. 25). Esse mundo imprevisível e “tão rico que apodrecia” contrapõe-se à sua
existência cotidiana de mulher pequeno-burguesa e a faz mergulhar numa intensa crise
existencial. Do mesmo modo, Sofia encontra na reserva esse mundo marcado pela novidade e
pelo imponderável:
Sua formação só é possível com o abandono da aridez do sertão onde morava, a custa
da morte do pai, que agonizara de dor e saudade a sua espera, e com a construção de uma
individualidade solitária, que é uma característica marcante na cena contemporânea. Para
Bauman, “Os medos, ansiedades e angústias contemporâneos são feitos para serem sofridos
em solidão. Não se somam, não se acumulam numa „causa comum‟, não tem endereço
específico, e muitos menos óbvio” (BAUMAN, 2001, p. 170). Mesmo após o casamento com
Anatole, Sofia sentir-se-á incompreendida e solitária, preferindo a reserva dos animais ao
convívio com humanos, inclusive com o marido.
Além dos animais da reserva, Sofia mantém uma relação extremamente afetuosa com
uma gatinha amarela, que dormia ao pé de sua cama e com o Cão Labrador, que também
morava com ela, aos quais estava sempre acariciando, assim como aos animais que encontra
na rua, como o gato preto, com olho de ciclope, que encontra perto do cais, em seu passeio
com Lídice, a quem faz um carinho e de quem diz: “os pretos são os mais mansos, não sei por
quê. Têm uma crença incrível no ser humano” (SEIXAS, 2003, p. 208). Ao ser indagada por
Lídice se tem uma gata, ela afirma que sim e acrescenta: “E um cachorro também. A gata, eu
levo comigo aonde eu vou, até para a reserva” (SEIXAS, 2003, p. 208). A presença dos gatos
é um elemento recorrente na obra de Heloísa Seixas e ela mesma afirma: "São animais muito
especiais e a convivência com eles é algo muito rico para mim" (apud BRASIL, 2004, s.p.).
Para Chevalier e Gheerbrant (2009), o simbolismo do gato é extremamente heterogêneo,
oscilando entre as faces maléficas e as benéficas, devido à ambiguidade na atitude terna e
dissimulada do animal. Em algumas culturas, como a céltica e a japonesa, o gato é
considerado como símbolo do mau agouro. Já em outras, como a mulçumana, a egípcia e a
chinesa, o gato apresenta um aspecto benfazejo. Para os autores, “em muitas tradições, o gato
preto, simboliza a obscuridade e a morte” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 463),
mas, de modo geral, a imagem do gato está ligada à sagacidade, à engenhosidade e ao dom da
162
Esse mundo paralelo de Lídice, marcado pela estranha simbiose, uma vez que “duas
eram as irmãs do mesmo ovo, gema e clara, olhos de cristal” (SEIXAS, 2003, p. 62), como
forma de fuga ao ambiente familiar, no qual não se sentia a filha mais amada e preferida, é
rompido, de forma dolorosa, com o desparecimento trágico da irmã, o que se expressa na
reiteração constante do fato como um paraíso irremediavelmente perdido: “Eu tinha uma
irmã. Era linda e loura, com olhos de cristal. Um dia desapareceu” (SEIXAS, 2003, p. 140).
Com essa traumática perda, Lídice construirá um mundo novo, hermético, imune à
ação do tempo ou às forças exteriores, constituído de recortes de jornais, revistas, várias fotos
163
e um caderno espiralado – o diário da irmã falecida – dentro de uma grande caixa de papelão,
quadrada, com desenhos de flores em tons pastel, guardada no fundo do armário. Lá ela
acolhe e salva do esquecimento, com um amor desmedido, seus irmãos de infortúnios: aqueles
que foram menos amados como Camille Claudel e Tiago Menor – irmão de Jesus – e os que
não tiveram seus talentos reconhecidos como Heinrich Mann ou Zelda Scott. Segundo suas
palavras, essa “é uma coleção difícil. Preciso garimpar para encontrar alguma coisa sobre
eles. A história não registra os fracassados” (SEIXAS, 2003, p. 28).
Para Lídide, o ato de acolhê-los surge do desejo de reparação às injustiças que todos
sofreram, vítimas que são de um mundo que premia alguns, a custa da humilhação dos
demais, como Tiago Menor, que passou à história como o irmão menos importante de Jesus
Cristo38. Por meio desses fragmentos de histórias preservadas em uma caixa, há, de certo
modo, a revelação da psique da personagem, movida pelo angustiante desejo de brilhar assim
como a falecida irmã:
38
É evidente que o/a leitor/a deve desconfiar do ponto de vista de Lídice acerca dos fracassados. Tiago Menor,
como um dos apóstolos, embora não tenha brilhado como Jesus Cristo, não foi esquecido. Camille Claudel,
apesar de ter vivido marcada pelo anonimato, pela rejeição e pela loucura, foi redescoberta após a morte e
hoje é considerada uma grande escultora. E Heinrich Mann, embora não tenha ganhado o Nobel de Literatura
como o irmão mais jovem, Thomas Mann, escreveu um livro que deu origem ao filme mais famoso da diva
do cinema Marlene Dietrich, O Anjo Azul, dirigido por Josef Von Stemberg, em 1930.
164
Nesse mundo paralelo, com uma perspectiva nômade, desafiando o mundo, com seus
valores instituídos, que insiste em cartografar as pessoas entre perdedoras e vencedoras, vivia
a loura Lídice, com seu violoncelo e seus “amigos imaginários”, como ela mesma define, até
a chegada de Anatole, que vem para romper com esse estado de aparente normalidade, ao
transportá-la às vertigens da paixão:
Tinha um mundo só meu, feito de música e silêncio. Nele eu vivia, era feliz.
Por ele flutuava com meus amigos, como se fosse Peter Pan. Meus amigos
derrotados. Eles vivem comigo, dentro da caixa. É onde guardo a história
dos perdedores. São meus irmãos e irmãs – e esses eu sei que nunca vão
desaparecer (SEIXAS, 2002, p. 140).
(TOURAINE, 2011, p. 73). Quando conheceram Anatole, ambas tinham trinta e cinco anos e
uma ficou com ele dez anos e a outra, dez meses.
Com efeito, na história de Sofia, os vários relacionamentos sexuais ao longo do romance
condensam esse desejo de afirmação e individuação. Do relacionamento com o hippie forasteiro,
aos dezoito anos, a quem se entregara com repulsa, e com quem fugira, deixando para trás um
mundo que desejava esquecer, ela admitiria depois que não se importara quando, depois de alguns
meses juntos na comunidade, ele se foi de repente. Para Sofia, esse seu primeiro amante “fora
apenas um corpo, um instrumento, o cavalo que me conduzira para longe do viveiro, das grades
de ouro que, incrustadas na pele, me impediam de viver” (SEIXAS, 2003, p. 98).
Para Touraine, o corpo feminino, ao invés de funções e deveres, “torna-se um
instrumento e uma linguagem de libertação, e a construção da sexualidade a partir do sexo
realiza-se pela integração de todas as fases da experiência corporal e mental, estética e moral”
(TOURAINE, 2011, p. 65). Isso é evidenciado na trajetória da personagem, para quem o sexo,
desde a sua iniciação amorosa até as demais experiências ao longo da trama, é visto como
essa linguagem de libertação de todos os valores morais e estéticos instituídos. Por isso, sua
ligação intrínseca com o que é considerado imundo: a poeira, a lama, a sujeira dos quartos de
prostituição, que em tudo contradiz a arrumação e limpeza da sua casa natal.
De certa forma, essa espécie de redoma que a protege do mundo e que faz com que
seus relacionamentos sejam apenas sexuais, sem um envolvimento mais profundo, é rompida
com a chegada de Anatole, “o velho priápico, o fauno cruel e adorável. O sedutor” (SEIXAS,
2003, p. 116). Ele, que passara a infância em Argel e viera para o Brasil, ainda jovem, para
depois de muito trabalho, abrir um restaurante franco-argelino, conhece Sofia em meio à
poeira da estrada, entre o mangue e a aldeia, quando ela, em um jipe aberto, atravessava uma
ponte de madeira podre. A sensação de inquietude e susto deve-se não somente ao medo que
sempre sentiu das pontes, mas sobretudo do desconhecido que se aproxima e cujos olhos têm
um magnetismo incomum: “Ele se aproxima, cada vez mais. Sou capaz de antever o brilho
nos olhos impiedosos, o torso nu, seu cheiro de suor. Tenho pena. Sei que, uma vez feito o
contato, nada mais será como antes. Mas nada posso fazer” (SEIXAS, 2003, p. 103).
Jean Baudrillard (2000), na obra Da sedução39, publicada originalmente em 1979,
discute o imaginário construído sobre a sedução pós-moderna que, em uma época de
39
Embora algumas concepções de Jean Baudrillard, nessa obra, como a questão da sedução como um atributo
feminino, contradigam, de certa forma, alguns princípios da crítica feminista, que encontrava-se no auge,
quando foi publicada a obra do sociólogo e filósofo francês, algumas de suas considerações sobre a questão
da sedução na contemporaneidade nos parecem relevantes para a compreensão desse aspecto no romance em
análise.
166
É devido a esse enorme poder de sedução dos olhos – elemento que se repete em toda
a narrativa, tanto de Sofia quanto de Lídice – que o homem, com então sessenta anos, mas que
aparentava bem menos, com olhos escuros e perversos, segundo Sofia, revela-se para ela
como “o imponderável – ele também” (SEIXAS, 2003, p. 114). Começa-se aí a sedução que
se materializa em jantares elegantes, gentilezas e sorrisos. Embora afirme que a sedução
estaria ligada ao elemento feminino, sob a forma do engodo e da perturbação das aparências,
Baudrillard pondera que a sedução masculina, com o objetivo de instaurar a perturbação, se
faz por meio do cálculo e da estratégia. Para ele, “há algo de impessoal em todo o processo de
sedução, assim como em todo o crime, algo ritual, supra-objetivo e supra-sensual de que a
experiência vivida, tanto do sedutor quanto da vítima, é apenas reflexo inconsciente”
(BAUDRILLARD, 2000, p. 114). É o que ocorre com Sofia que, mesmo tendo conhecimento
de que ele jamais fora fiel às três mulheres com quem fora casado antes dela e das várias
amantes que tivera durante os dez anos de casamento, muito mais que o amor, fora o sexo que
a fizera continuar ao lado dele, apesar do deslocamento e da desconstrução de sua identidade.
É verdade, eu suportei tudo. Todos esses anos. Nunca fui embora. Usei os
momentos de solidão, na reserva ou em casa, quando Anatole viajava, para
me recompor, recolher estilhaços, refazer a imagem no espelho. Todos esses
anos. Soube de muitas de suas amantes, mas nenhuma delas jamais me
confrontou (SEIXAS, 2013, p. 121).
167
Após a viagem e a morte de Anatole, não explicada no romance, ao que tudo indica
em Argel, Sofia começa a receber insistentes telefonemas de uma mulher que não se identifica
e que nada diz, mas que ela pressente ser uma amante dele e com quem sente formar,
lentamente, uma espécie de vínculo: “Há naquele respirar uma linguagem, uma transmissão,
uma tentativa de contato. Como alguém que lhe pedisse socorro” (SEIXAS, 2003, p. 31).
Após várias ligações, e devido ao fato de não conseguir dormir, com o coração
inquieto e um medo irracional, Sofia resolve sair, para não continuar sozinha ali naquela casa.
Como se ouvisse um chamado da outra, a saída repentina à rua, de madrugada, andando por
lugares perigosos e boêmios, lembra uma abertura, uma vez que “a rua, onde se desempenha a
teatralidade social, predispõe à possível aventura, evoca a efervescência e uma vitalidade que
nada pode frear” (MAFFESOLI, 2001, p. 92). De fato, essa sensação de incompletude e de
tensão vivenciadas pela personagem, como um destino previamente traçado, prenuncia uma
aventura sombria: “É com pavor que dou os primeiros passos, rumo aos lugares
desconhecidos que percorreremos juntas, nesse caminho de sombras” (SEIXAS, 2003, p. 38).
No seu passeio de carro pelas ruas e o encontro com a multidão noturna, caracterizada
pela embriaguez e pelos excessos, em um bairro antigo e decadente, com seus casarões
centenários e cujos “vãos gradeados junto à calçada fazendo pensar em porões cheios de
umidade e escuridão” (SEIXAS, 2003, p. 43), ocorre uma espécie de banalização do espaço
que, para Benjamin (1989), seria a experiência fundamental da flanerie. Para o autor, “aquela
embriaguez anamnéstica em que vagueia o flâneur pela cidade se nutre apenas daquilo que,
sensorialmente, lhe atinge o olhar” (BENJAMIN, 1989, p. 186).
É na avenida antiga e larga, que ela avista muitas mulheres seminuas e/ou vestidas de
forma exuberante, como mercadorias, que se oferecem nas calçadas. Nesse momento de
errância, de busca e, ao mesmo tempo, de fuga da multidão, Sofia, protegida dentro “da bolha
de metal e vidro”, não se intimida de modo algum: “Segue em frente num transe, o carro
deslizando pelo asfalto por conta própria, como a gôndola de um trem fantasma” (SEIXAS,
2003, p. 42). Para Benjamin (1989, p. 203), “a cidade é a realização do antigo sonho humano
do labirinto. O flâneur, sem o saber, persegue essa realidade”. Ao fim de alguns quarteirões,
em uma rua secundária e escura, em frente a um botequim, o carro trepida e, ao virar mais
uma esquina, em frente a um casarão decadente, seu olhar encontra com o de uma bela
mulher.
Alguém que de repente venceu a noite, embora traga-a nos olhos, no corpo,
nos longos cabelos que, num trançado falso, escorrem pelas costas. O
168
Para Sofia que, na sua vida no mangue, aprendeu a desafiar o medo e a morte,
amanhecer, junto ao carro, parada e sozinha, é uma forma de vivenciar, em uma única noite,
como uma flâneur contemporânea, todos os riscos. Também é uma forma de percorrer essa
40
As sereias, força de poder e de sedução, em algumas lendas, são conhecidas como mulheres-peixes, em uma
das figurações do pênis. São, dessa forma, mulheres fálicas, devido ao seu narcisismo. O relato mais
conhecido dessas criaturas perversas e sedutoras – que tem sido retratadas como prostitutas ou divindades,
fazendo parte do imaginário dos povos de todos os continentes, da antiguidade até hoje – vem do episódio
famoso da Odisseia, de Homero, quando Ulisses, após anos tentando voltar a Ítaca, sua terra natal, tem que
atravessar a região onde ficavam as sereias. Assim como em relação à maioria dos mitos, há muitas versões
de sua morfogênese, sendo que suas origens remontam a tempos imemoriais, no período neolítico. Para
Brunel, a figura das sereias apresenta-se como um grande enigma, uma vez que – após serem punidas por
Deméter, por não terem conseguido evitar o rapto de sua filha Perséfone – elas passaram por uma grande
transformação “ao perder sua forma inicial de mulher-pássaro para se tornar mulher-peixe” (BRUNEL, 1997,
p. 829). Por serem figurações mais antigas que os deuses do panteão grego, elas remetem às representações
das deusas-mãe, que eram poderosas e até mesmo violentas e severas. Quando a Deusa-mãe foi substituída
pelo casal divino e, depois, pelo deus monoteísta, as sereias foram rebaixadas de seu poder e passaram a usar
a arma dos dominados que é a sedução. É esse o significado do mito, para Juanito Brandão, que afirma: “as
sereias simbolizam a sedução mortal [...] traduzem emboscadas provenientes dos desejos e das paixões [...]
configuram criações do inconsciente, dos sonhos alucinantes e aterradores em que se projetam as pulsões
obscuras e primitivas do ser humano” (BRANDÃO, 2005, p. 310).
169
via-crucis profana de dor e dilaceramento e, talvez, mesmo como uma forma de um encontro
simbólico com Lídice nos “porões da loucura e do ódio”.
Se a errância “dá ênfase à vida em seu perpétuo recomeço: uma vida sempre e outra
vez antiga e atual” (MAFFESOLI, 2001, p. 107), é o que se observa na relação entre Sofia e a
mulher-peixe, que na sua ambiguidade sexual, macho e fêmea, também como uma espécie de
reverência ao marido morto, já traz implícita o germe da transformação pela qual passará a
personagem, marcando um momento de transição na trajetória de Sofia que, ao ser seduzida
por uma mulher fálica, poderá ao final vivenciar uma experiência homoerótica. É interessante
notar que, embora sua busca, a princípio, parecesse ser por uma mulher, até mesmo pela ida a
um bairro de prostituição feminina, Sofia não se surpreende com o travestimento da
personagem. Baudrillard explica que esse fascínio exercido pelos travestis está relacionado ao
jogo de indistinção de sexo. Na sua visão, “aquilo pelo que se apaixonam os travestis é o jogo
de signos, o que os apaixona é seduzir os próprios signos” (BAUDRILLARD, 2000, p. 17,
grifos do autor). Ao acrescentar que neles tudo é teatro, maquilagem e sedução, o autor
ressalta que eles “fazem do sexo um jogo total, gestual, sensual, ritual, uma invocação
exaltada, mas irônica” (BAUDRILLARD, 2000, p. 17), o que fica evidenciado quando o
“sorriso da sereia escancara-se debochado” e na “boca que se abre, nela explodindo um
sorriso insinuante, de dentes tão brancos, que seu cintilar, na rua deserta e escura, é quase um
grito” (SEIXAS, 2003, p. 43). Baudrillard enfatiza ainda que essa mobilidade por entre os
signos faz com que o travesti alcance o extremo da sedução, mais que uma mulher real, na
cômoda posição de sua sexualidade.
Ao observar que “a casa de olhos mortos voltou a ser, agora, apenas uma casa”
(SEIXAS, 2002, p. 52), Sofia parece estar superando a morte de Anatole e apontando para um
novo recomeço. De fato, após um banho de imersão na banheira, fazendo com que a água leve
“qualquer sinal da imundície que há pouco a encharcava” (SEIXAS, 2003, p. 53), e que
funciona como um rito de passagem, Sofia sente-se purificada para finalmente pensar em
Anatole: “Pensa nele sem dor, sem culpa. Como quem olha para um copo de água limpa”
170
(SEIXAS, 2003, p. 54). Para Touraine, mesmo que a construção da sexualidade feminina
reproduza as desigualdades e discriminações, o sexo, por si mesmo, é libertador, uma vez que
“a construção pessoal do indivíduo apoia-se na atividade sexual a mais dessocializada
possível. Daí a importância extrema do corpo como espaço de relação consigo e de construção
de si” (TOURAINE, 2011, p. 38).
A trajetória de Lídice, dez anos mais jovem que Sofia, mostra-se diversa. Ela em uma
existência confortável no seu mundo colorido, metaforizado nas colchas de retalhos que
cobriam sua cama e a da irmã e sobre a qual elas inventavam histórias. No verão, geralmente
a família ia à praia, onde podiam brincar livremente nas areias. Marcada pelo
desaparecimento, jamais superado, da irmã gêmea, o abandono do pai e a doença da mãe, sem
encontrar abrigo ou afeto em um mundo que parecia ser feito contra ela, Lídice fecha-se em
seu mundo, acolhendo os fracassados como ela, em uma caixa de papelão. Porchat (1992)
aborda as separações mais conturbadas, como as da primeira infância, do casamento, de
amantes e as causadas pela morte, que criam vazios difíceis de suportar. Segundo ela, em
todas as formas de separação, “há perdas, da pessoa física e de tudo o que de significativo a
ela se vincula ou dela deriva. Na separação podem-se perder amigos, filhos, estilos de vida,
posição socioeconômica e também autoestima e significado de vida” (PORCHAT, 1992,
p. 103).
Após viver muitos anos nesse mundo que criara e no qual só a música fazia sentido, a
chegada de Anatole faz com que “rompido o véu, feito o contato, o mal se consumara”
(SEIXAS, 2003, p. 101). Ao narrar a noite em que o conhece, quando tocava violoncelo em
um bar, Lídice acaba por presentificar o momento e, assim como Sofia, lembra-se da sedução
exercida por ele por meio do olhar: “Vejo os olhos, aquela foi a noite dos olhos. Mas não
quero falar deles ainda. Voltemos ao lugar. Sinto o cheiro dos lírios” (SEIXAS, 2002, p. 54).
Aqui é relevante uma observação quanto aos lírios, cujo cheiro a protagonista sentia na
noite fatídica. Para Chevalier e Gheerbrant (2009), de forma geral, essa flor está relacionada à
brancura e, por consequência, à pureza e à virgindade, o que evoca a situação de Lídice,
virgem aos 35 anos, antes de conhecer Anatole. Contudo, o significado também pode ser
ambíguo, uma vez que, segundo a mitologia, “seria o final da metamorfose de um favorito de
Apolo, Jacinto, e evocaria, sob esse aspecto, amores proibidos” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 553-554), o que também remete ao aspecto clandestino da relação
entre os dois, uma vez que ele já era casado. Mas há um terceiro significado que também se
aproxima da trajetória do conturbado romance de dez meses, entre os dois. Ainda segundo os
autores acima citados, “Foi colhendo um lírio (ou um narciso) que Perséfone foi arrastada por
171
Hades, enamorado dela, através de uma abertura repentina do solo, para o seu reino
subterrâneo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 554). Nesse caso, o lírio simboliza a
tentação, ou a porta dos infernos, o que remete ao que Lídice chama de trilogia do assombro –
composta de paixão, solidão e loucura –, que se desencadeia sobre ela, após o envolvimento
amoroso com Anatole: “Quando eu conheci Anatole tudo se precipitou. / Comecei a ouvir
vozes” (SEIXAS, 2003, p. 217).
Lídice volta a falar dos olhos de Anatole, e do poder que eles exerceram sobre ela, em
vários momentos da narrativa, o que faz lembrar a afirmação de Baudrillard (2000) de que a
sedução do olhar nunca é linear, mas sim oblíqua, como lembram os olhos da mais famosa
personagem machadiana, Capitu, com os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS,
1995, p. 55). Baudrillard, então, questiona sobre o momento indescritível e ferino do olhar ao
observar: “Que arma é tão afiada, tão penetrante, tão luzente no seu movimento e, graças a
isso, tão ilusória quanto um olhar?” (BAUDRILLARD, 2000, p. 121). É o que enfatiza Lídice
ao mencionar a impossibilidade de fugir deles, que sempre a alcançavam: “E mesmo no
escuro, senti seu poder. [...] Noite afora, insone, vaguei por eles. Sabia que, em algum lugar,
um olhar parecido, todo aquele negror” (SEIXAS, 2003, p. 55). Perturbada, sem saber porque,
somente de madrugada, a lembrança de mais de vinte anos reprimida e proscrita, guardada no
fundo da memória dilacerada pela dor da perda, rompe a membrana e explode afinal:
“Aqueles eram os olhos de meu pai” (SEIXAS, 2003, p. 56).
É quando aflora dos escombros da memória a lembrança de uma noite escura, com
nuvens pesadas, véspera do aniversário de treze anos das irmãs. Vestidas com camisolas
finas, elas, que sempre gostaram de ser idênticas, estão em frente ao espelho, quando se dão
conta de uma diferença: em Lídia, sob a nervura da camisola, começam a romper dois
pequenos seios, fazendo com que Lídice mordesse os lábios, desconcertada. Nesse momento,
surge, no quarto, o pai cujo olhar escuro e devastador sobre a irmã lembraria o de Anatole,
anos depois, com Lídice.
Mais que música, eu queria sangue [...] Toquei como quem quer morrer.
Toquei, por paradoxal que pareça, tomada por uma lucidez imensa, pela
certeza, ainda que tardia, de que enlouquecia. Toquei.
Sabia – como não saber? – que aquela era a última vez (SEIXAS, 2003,
p. 62-63).
observada pelos garçons, quando Lídice atravessa o salão, com uma arma dentro da bolsa.
Após o impacto do olhar aterrador inicial, a falta de luz impede, temporariamente, que se
consuma o crime premeditado de Lídice, dissolvendo, de certo modo, a tensão inicial. É
quando elas se sentam à mesa, pedem água e Martini seco aos garçons, que se entreolham
confusos e amedrontados, e falam sem receio dos motivos que as levaram ao local:
A franqueza e o desvelamento interior que ocorre entre elas, desde o instante inicial,
faz com que experimentem, pela primeira vez, a urgência para falarem de si mesmas, soltarem
o grito calado, desfazerem as amarras que as prendiam a um mundo de aparente normalidade
e mesmice. Isso se reflete na voz do/a narrador/a que, conforme expressamos anteriormente,
funciona como uma espécie de coro da tragédia grega antiga. Segundo Romilly (1998), o coro
era originalmente o elemento mais importante da tragédia e o ponto de partida da
representação, uma vez que era por seu intermédio que a tragédia podia tocar os espectadores.
Quanto ao seu papel, a autora afirma que “ele tinha que intervir, suplicar, esperar, e que, por
fim, as suas emoções acompanhem, do início ao fim, as diversas etapas da ação” (ROMILLY,
1998, p. 27). Com efeito, é o que ocorre no romance com a voz narrativa que expressa
sentimentos e opiniões, retoma e esclarece alguns pontos da história, e que insiste nessa
necessidade de que as personagens femininas exponham as feridas, as máculas e as
frustrações:
É por meio dessa voz dilacerada – sem freios ou amarras, que se consubstancia em
uma narrativa, por vezes caótica, marcada por uma reiteração constante de frases e de cenas,
que apontam para o conteúdo recalcado de suas memórias – que elas podem enfim contar suas
histórias, reviver os desacertos amorosos e acertar as contas com seus respectivos passados:
175
“Nós duas – você sabe muito bem – estamos juntas nesse jogo. E, quando você terminar, será
a minha vez” (SEIXAS, 2003, p. 143).
O pedido de pratos iguais, composto de coxa e sobrecoxa de frango, formando um
ângulo idêntico, arroz selvagem e legumes ao vapor, de certo modo, caracteriza-se como um
ritual antropofágico, no qual, simbolicamente, estariam comendo a carne do homem morto
e/ou exterminando essa imagem patriarcal que as oprimia: “O garçom se aproxima, trazendo a
comida. Com gestos ágeis troca os pratos vazios que estão diante de cada uma das mulheres
por aqueles que trouxe, já prontos. São gêmeos” (SEIXAS, 2003, p. 167).
Anatole parece ser o sangue que se interpõe entre elas; desparecido ele, restam-lhes
suas cinzas, sobre as quais elas não decidem o que fazer. Mais que isso: seria a impureza e/ou
a contaminação capaz de produzir as pérolas absolutas, unindo-as por um “laço
inquebrantável”, como propõe o/a narrador/a, em diversos momentos da narrativa:
Somos a contraparte uma da outra, nossos nomes, nossos genes, você não
vê? Sofia e Lídice, guerra sangue e fogo, Sofia e Lídice, gêmeas em tudo, até
no horror. Mas até do horror pode surgir a beleza, como na contaminação
que faz a ostra verter o nácar, que faz nascer a pérola (SEIXAS, 2003,
p. 233).
A partir daí ocorre o desfecho, que a princípio parecia que seria trágico, até mesmo
pela configuração do ambiente – um porto deserto e noturno – e a estranha presença do gato
preto que, conforme expusemos anteriormente, em algumas culturas está relacionado à morte,
parecem trazer, segundo o/a narrador/a, “o prenúncio de um crime, os eflúvios de suas águas
sabem a sangue, a mênstruo” (SEIXAS, 2003, p. 208). Contudo, a tensão se desfaz após o
entendimento de que, a despeito de tudo, elas merecem viver. Então, Sofia joga a arma e o
veneno ao mar e quebra o frasco do veneno com o sapato.
176
E agora?
Agora temos uma à outra. Somos cúmplices, irmãs.
Silêncio.
Somos nossa própria salvação (SEIXAS, 2003, p. 231).
Mas elas não se vão, elas querem mais. Ouço suas vozes, ainda, sinto o
movimento dos corpos na lama, por entre os galhos, raízes. Vejo-as nuas,
mais uma vez frente a frente, as mãos femininas que caminham, que
deslizam na carícia suave, feita de pele e pasta e negror. As mulheres que se
amam no lodo aqui estão, elas o embrião, elas o princípio de tudo, pois que a
vida começou no barro, elas a semente do prazer, dando-se uma à outra
(SEIXAS, 2003, p. 237).
Nesse sentido, muito mais que um romance homoerótico feminino, Pérolas absolutas
se configura como um romance de formação feminina do século XXI, no qual, muito mais
que questões de identidade sexual, se discute a questão do desejo e do afeto, ao apostar no
amor como antídoto para a loucura, o ódio e a morte. Nesse sentido, são relevantes as
considerações de Touraine de que a lesbianidade 41 não é uma negação da identidade feminina,
mas sim um reforço dessa identidade “ao criar um espaço misto para as mulheres [...]
Homossexuais ou não, primeiramente as mulheres se definem como mulheres e colocam essa
definição antes das outras: profissional ou nacional etc.” (TOURAINE, 2011, p. 57).
A narrativa confirma isso ao mostrar essas mulheres em processo de construção de si
mesmas, após percorrido um longo caminho de sombras, encontram uma na outra a
contraparte de si. Por isso, essas “pérolas liquefeitas, pérolas absolutas”, ao se purificarem na
lama, com a profanação das matérias decompostas, antes que a noite caia sobre elas “querem
ainda dizer que apesar de todo o pranto, todo horror e toda mágoa, esta é apenas – e acima de
tudo – uma história de amor” (SEIXAS, 2003, p. 237-238).
41
O termo lesbianidade vem dividindo espaço e paulatinamente substituindo lesbianismo, dentro dos quadros
teóricos dos estudos queer, constituindo-se como estratégia semântica na agenda das políticas de identidade,
a exemplo da já sedimentada substituição de homossexualismo por homossexualidade. O investimento
semântico, segundo os expoentes da Teoria Queer, referencia para lesbianidade a uma concepção da
homossexualidade feminina enquanto pertencente a uma forma de subjetivação orientada pelo desejo sexual,
evidencia em múltiplas formas de vivência, seja das sexualidades, da conjugalidade, do círculo social, da
formação familiar, do sistema jurídico-político etc. Para uma compreensão mais apurada da validação do
termo lesbianidade e seu conteúdo político, remetemos à leitura das seguintes obras: RICH, Adrienne.
Heterosexualidad Obligatoria e Existencia Lesbiana: Revista Nosotras que nos queremos tanto, Madrid:
Editorial Colectivo de Lesbianas Feministas, n. 3, nov. 1995; DOVER, Kenneth James. As mulheres e a
homossexualidade. In: A homossexualidade na Grécia antiga. Trad. Luís Sérgio Krausz. São Paulo: Nova
Alexandria, 1994.
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
luta pela sobrevivência torna-se cada vez mais ferrenha. Nesse sentido, a conquista da
subjetividade feminina, com a formação de condutas independentes da mulher-para-si e a
construção de uma sexualidade não imposta pelo outro, são fatores cruciais no agenciamento
de uma identidade feminina marcada pela subjetificação, na qual as personagens femininas –
conforme apontou Georg Lukács, ao definir o herói do romance, cujo mundo é contingencial
e modalizado pelo acaso, como responsável pelo seu destino – tornem-se conscientes de suas
escolhas, por mais incoerentes ou desacertadas que, por vezes, possam parecer.
Por isso, ao se debruçar sobre o estudo do Bildungsroman feminino do século XXI,
nos capítulos de análises das obras, foi necessária uma reflexão acerca da sociedade
globalizada e de consumo, marcada pelo esfacelamento das grandes utopias, pela liquefação
dos valores e pelos intensos movimentos migratórios, que diluem as fronteiras, ao mesmo
tempo em que proliferam as identidades múltiplas. É nesse cenário que as heroínas do
Bildungsroman feminino contemporâneo – assim como os heróis masculinos dos romances de
formação estudados por Lukács, que buscavam uma conciliação, problemática, mas possível,
entre a interioridade e o mundo circundante – adquirem ao longo de suas trajetórias um
autoconhecimento e uma compreensão prática da realidade, resultantes dos embates do eu
com o mundo exterior, o que as leva a uma formação que tem como elemento central a
conquista da subjetividade feminina.
Contudo, as diferenças cruciais entre os romances de formação masculinos e os
femininos são oriundas sobretudo do universo social, no qual tanto as relações amorosas
quanto a realização profissional são mais problemáticas para as personagens femininas,
mesmo no cenário atual. Isto significa que a remodelagem do Bildungsroman no século XXI,
com base no corpus analisado, que se constitui dos romances – Pérolas absolutas, Algum
lugar e Azul-corvo, de autoria de Heloísa Seixas, Paloma Vidal e Adriana Lisboa,
respectivamente, – tem como fio condutor a narrativização do processo de formação marcado
por vários deslocamentos, tanto espaciais como identitários, que culminam no surgimento de
novas sujetividades femininas.
Da comparação entre eles, foi possível identificar algumas temáticas recorrentes. O
considerável declínio do patriarcado leva a uma menor ênfase nas questões relativas à
opressão sexual – ainda que elas apareçam, sobretudo em Pérolas absolutas – uma vez que a
globalização acelerada, que resulta no nomadismo e no exílio, provoca um esfacelamento das
identidades em homens e mulheres contemporâneos. O sentimento de desamparo e o
deslocamento cultural são consequências das imigrações igualmente temporárias e
permanentes. No primeiro caso, a personagem não-nomeada de Algum lugar passa por essa
180
Em Azul-corvo, ao final, após encontrar o pai que não conhecia, o que não faz muita diferença
em sua vida, e após a morte do amigo Fernando, Vanja termina trabalhando em uma
biblioteca nos Estados Unidos, aparentemente integrada à cultura norte-americana, apesar do
afloramento de uma identidade híbrida. Já em Pérolas absolutas, além do deslocamento
espacial vivenciado por Sofia, também há um grande deslocamento identitário, com a
reconfiguração da sexualidade das duas personagens femininas, entrevendo um final feliz ao
fechamento da narrativa, mas ainda em devir, prenhe de possibilidades.
A narrativa homodiegética, marcante no romance de formação feminino
contemporâneo, contribui para com a construção de personagens capazes de redimensionar
suas memórias e contar suas histórias, por meio de um discurso que se consubstancia em
forma de uma estrutura textual fragmentada e, até mesmo, caótica, que reconfigura as
categorias de tempo e espaço, capaz de expressar a vivência interior das personagens, por
meio de construções frasais coloquiais e poéticas. Em Algum lugar, a narrativa que reproduz a
estrutura textual de Rua de mão única, de Walter Benjamin, desvela, por meio do registro de
sonhos e de diários, o cotidiano solitário e angustiado de uma mulher, inserida no cenário pós-
moderno de duas grandes cidades, Los Angeles e Rio de Janeiro, ao experienciar o exílio e a
desagregação do relacionamento afetivo. A mudança de perspectiva da narrativa alterna
proximidade e distanciamento em relação aos fatos narrados. Em Azul-corvo, por meio de um
enredo não linear, por conta do caráter descontínuo da memória, Vanja também apresenta sua
experiência de emigração, suas dificuldades na adaptação a uma casa e a um país totalmente
diverso do seu de origem, mas também sua enorme vontade de aprender, o seu
autoconhecimento por meio do amadurecimento “aos trancos” como ela mesma enfatiza e, de
certa forma, sua adequação à cidade, devido aos laços de afeto que conseguiu estabelecer,
mesmo diante da fluidez do mundo contemporâneo. Em Pérolas absolutas, a narrativa
polifônica, ao dar voz às duas protagonistas, muitas vezes, borra os contornos da narração,
ficando difícil perceber quem está narrando e quem está sendo narrado. A mudança de
perspectiva entre o/a narrador/a autodiegético/a e heterodiegético/a, assim como em Algum
lugar, também altera as noções de proximidade e de distância em relação aos fatos abordados
na narrativa.
Com efeito, os três romances analisados apresentam, gradualmente, uma dissolução
formal que contribui para as soluções radicais de seus desfechos. Isso desvela o modo como, à
medida que as personagens femininas encontram algum tipo de opressão ou de barreira para o
desenvolvimento de suas subjetividades, as personagens masculinas acabam por ser deixadas
de lado. Em Azul-corvo, cuja narrativa apesar de fragmentada, ainda se apresenta nos moldes
182
mais convencionais, Vanja, apesar de terminar sozinha, vivendo como expatriada nos Estados
Unidos da América, encontra na figura não patriarcal de Fernando, uma espécie de guia
afetivo e um mentor não convencional, que lhe ensina a viver em um país estrangeiro e a
interagir com a cultura norte-americana. No romance Algum Lugar, ao investir em uma
narrativa mais dispersa, inclusive com a oscilação do foco narrativo, Paloma Vidal conta uma
história, cujo desencontro de expectativas no relacionamento afetivo, leva a um final, até certo
ponto, positivo, quando o companheiro, que assumira uma postura de homem patriarcal ao
trair a esposa, muda de conduta e assume a responsabilidade como pai na guarda
compartilhada do filho. Já Pérolas Absolutas apresenta uma estrutura formal mais dispersa
que as anteriores, implodindo a narrativa tradicional e se aproximando mais do estilo
clariceano. Nesse romance, as personagens femininas – Sofia e Lídice – respectivamente,
esposa e amante de Anatole – que funciona como uma espécie de emblema do mundo
patriarcal – enfrentam esse mundo e buscam uma realização afetiva mais radical no
surpreendente encontro homoerótico entre as duas, ao final da narrativa.
Portanto, por meio da leitura e análise dos três romances citados, comprovou-se a tese
inicial de que eles podem ser considerados romances de formação feminina do século XXI e
que se apresentam como poéticas do deslocamento uma vez que refletem identidades
femininas contemporâneas dilaceradas em meio ao cenário pós-moderno, nas quais as
problemáticas das relações de gênero – tão marcante nas narrativas de autoria feminina dos
anos oitenta – começam a ceder espaço para questões mais existenciais e urgentes. Algumas
dessas questões, que são recorrentes nas três obras, são relativas à inserção feminina no
mundo do trabalho, o questionamento e a revisão da história recente do país e do mundo, a
angústia existencial do estar no mundo, a relação dialética entre o pertencimento e o mundo
globalizado, e a busca do significado mais profundo das relações afetivas e as crises nos
relacionamentos interpessoais. São essas experiências formadoras que enformam esses
Bildungsromane do século XXI, no qual a autoconsciência das personagens se espressa por
meio de suas memórias e de suas vozes, que são capazes de um redimensionamento da
experiência feminina marcada pelo deslocamento do mundo pós-moderno.
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