O Ndongo E O Envolvimento No Tráfico Atlântico de Escrvizados (Século Xvi) Luciana Lucia Da Silva
O Ndongo E O Envolvimento No Tráfico Atlântico de Escrvizados (Século Xvi) Luciana Lucia Da Silva
O Ndongo E O Envolvimento No Tráfico Atlântico de Escrvizados (Século Xvi) Luciana Lucia Da Silva
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) do IH-UFRJ, bolsista do
CNPq ([email protected]).
portuguesas nas ilhas do Atlântico a na América para o estreitamento das relações entre esses
dois grupos. De forma que possamos valorizar as relações atlânticas que estavam a se
desenvolver, pois, “no último quartel do século XVI e primeiro do século seguinte registram-
se importantes modificações em Portugal e no vasto Império que conseguiria juntar, num
processo inédito e inicial de globalização” como nos diz Ilídio do Amaral (2000).
Desse modo, é imprescindível se pensar a história do Ndongo, no período aqui
considerado, em conexão com a existência de um Mundo Atlântico no qual os Mbundu se
inseriram e ajudaram a construir. Perspectiva que busca romper com a visão de que as
dinâmicas atlânticas foram encenadas de forma majoritária por europeus, assim os estudos
sobre os contatos e o comércio atlântico demonstram a centralidade da África e dos africanos
na formação desse chamado Mundo Atlântico, como afirma John Thornton (2004). A partir
disso faz-se pertinente que nos voltemos, mesmo que de forma breve, a importância dessa
região para o tráfico transatlântico de escravos.
Para Alberto Oliveira Pinto (2015: 189) o olhar sobre as relações do Ndongo com
Portugal e com os portugueses ao longo da primeira metade do século XVI deve estar atento
para o fato de ele ter se dado em duas dimensões: a formal (pública) e a informal (privada). A
formal diz respeito a relações diplomáticas tuteladas oficialmente pelo ngola e pelo rei de
Portugal, focalizando os interesses públicos de ambos os Estados. A informal relaciona-se a
presença no reino do Ndongo de indivíduos que, sendo súditos do reino de Portugal,
operavam em território Mbundu a título particular e de modo frequentemente clandestino. Nos
dois casos estavam presentes os interesses comerciais Mbundu e portugueses, ligados,
sobretudo, ao tráfico negreiro e legitimados, no caso português, pela evangelização. Essa
diferenciação feita por Oliveira Pinto é fundamental para que o início da relação, nem sempre
tranquila, entre portugueses e Mbundu, possa ser melhor compreendida.
Nesse sentido existem indícios de que os primeiros contatos informais tenham se dado
ainda no fim do século XV, como indica um documento de 1607, escrito por autor anônimo
que aparece na compilação feita por Luciano Cordeiro e fala de relações comerciais informais
entre portugueses e Mbundu que se davam desde os tempos de D. João II (1481-1495):
O comércio de Angola se descobriu desde o tempo de el-rei D. João
II, pôsto que com pouca frequência. E nêste tempo o rei de Angola era
amigo e quási súbdito do rei de Congo e lhe mandava cada ano seu tributo,
em modo de presente, e com sua licença iam os portugueses negociar à ilha
de Luanda, que é nos confins de ambos aqueles reinos, e tudo o que ali se
resgata se vinha despachar à ilha de S. Tomé, e com aquele trato andava este
unido, e à ida primeiro os navios tomavam a ilha de S. Tomé e dali passavam
ao resgate de Angola, mas acrescendo pelo tempo adiante este resgate e
trato, começaram a ir navios em direitura de Portugal a êle (CORDEIRO,
1935: 300-301).
Neste trecho verificamos não só o apontamento de que o comércio com a região do Ndongo
pode ter se iniciado ainda nas últimas décadas do século XV, mas a importância da ilha de São Tomé
para o desenvolvimento do comércio atlântico de escravizados nessa região e para a sua crescente
aproximação com Portugal. Assim, em resultado das relações comerciais baseadas no tráfico de
escravos, que os Mbundu foram estabelecendo com alguns portugueses a partir da baía de
Luanda, Ngola Inene, o soberano do Ndongo naquele momento, foi tomando conhecimento
das vantagens do lucro comercial proveniente deste tráfico. Bem como que o cristianismo –
com base na experiência do Congo – poderia reforçar seu poder, quer face aos sobados
submissos, quer a permanente ameaça hegemônica do Congo (PINTO, 2015: 192). Desse
modo, a documentação aponta para vários momentos em que chefes políticos do Ndongo
tentam, por iniciativa própria, manter contatos formais com a coroa portuguesa. Como é o
caso do Regimento datado de 1520 onde D. Manuel afirma estar informado das muitas das
muitas vezes que o “rei de Angola” mandou seus embaixadores ao rei do Congo pedindo
sacerdotes, pois queria se tornar cristão (BRÁSIO, 1952: 432; 434). Referência que aparece
em diversos outros documentos como na “Informação acerca dos escravos de Angola (1582-
1583)” que afirma que os reis de Angola por quatro vezes pediram aos reis de Portugal
Sacerdotes para se converterem (BRÁSIO, 1953: 228).
A embaixada de Manuel Pacheco e Baltasar de Castro enviada em 1520 por D.
Manuel para proceder ao “descobrimento de Angola” teria, de acordo com regimento acima
mencionado, como principal fundamento fazer o rei de Angola cristão. Mas, ao longo do
documento aparecem diversas referências ao desejo de descobrir e adquirir amostras de
mercadorias estimadas em Portugal – em especial prata, escravos e marfim –, além do
objetivo de inquirir quais mercadorias eram estimadas pelos Mbundu. O que evidência o
interesse na aquisição de produtos de valor e no estabelecimento de comércio propriamente
dito, como podemos observar nos trechos a seguir:
Outrosy somos ẽformado que no dito Regno dAngola [h]á prata [...];
trabalhare[y]s por saber parte donde há a dita prata. E asy de quaees quer
outros metães e se os há e acham ẽ sua terra ou noutras e quam lomge sam e
se sã estimados e se leuam trabalho ẽ os tirar, fazemdo por nos trazer
amostra de todos e quallquer outro avjso que cõprir, asy das cousas e
mercadoyas que lá haa que caa são estimadas [...]. E asy mesmo, quaes das
nosas sam lá prezada e ẽ comtya e preço as tẽ (BRÁSIO, 1952: 432-433).
Ainda nesse sentido, D. Manuel instrui seus embaixadores para que, uma vez
estando na presença do rei de Angola, lhe diga que dará a ele as mercês que Portugal sempre
dá ao rei do Congo por este ser bom cristão e por efetuar muitos resgates a Portugal, o que
tem feito com que o Congo seja grande entre os outros reinos (BRÁSIO, 1952: 435).
Demonstrando o objetivo português de estabelecer com o Ndongo relações nos moldes das
mantidas com o Congo. O soberano português provavelmente tem indícios para crer que os
benefícios adquiridos pelo Congo, em decorrência do contato com os estrangeiros seriam
objeto de interesse por parte dos soberanos Mbundu, o que garantiria boas relações com esses
chefes e benefícios a coroa. Apesar disso, essa primeira embaixada portuguesa ao Ndongo
revelou-se um fracasso, pois o ngola não aceitou se converter ao cristianismo, apesar de não
se saber as razões do soberano para essa recusa, e aprisionou Baltasar de Castro.
Considerações finais
Com o exposto até aqui, podemos perceber que o desejo na venda de escravos, nas
relações diplomáticas e, em alguns casos, na evangelização se deu por iniciativa dos chefes do
Ndongo, em especial do ngola. Desse modo, os avanços e recuos dessa relação foram quase
sempre resultado de interesses mútuos por parte de portugueses e Mbundu. No caso desses
últimos ligados às vantagens, lucros, prestígio e fortalecimento nos conflitos locais que
poderiam obter a partir das relações comerciais e políticas com os estrangeiros. O que nos
leva a constatar que, através da convivência com este novo universo, intercâmbios – nos quais
a sociedade Mbundu foi contribuinte essencial, participando de forma intensa e ativa – foram
promovidos através do Atlântico.
Bibliográfia
BIRMINGHAN, David. A África Central até 1870: Zambézia, Zaire e o Atlântico Sul.
Luanda: ENDIPU/UEE, s/d.
MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de
coroação de Rei Congo. Vol. 71. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
MORGAN, Philip & GREENE, Jack (ed.) Atlantic History – A Critical Appaisal. New
York: Oxford University Press, 2009.