O Caminho Do Peregrino - Laurentino Gomes Osmar Ludovico
O Caminho Do Peregrino - Laurentino Gomes Osmar Ludovico
O Caminho Do Peregrino - Laurentino Gomes Osmar Ludovico
Osmar Ludovico
O CAMINHO
DO PEREGRINO
Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995).
Editor responsável: Estevão Azevedo Editora assistente: Elisa Martins Editor digital: Erick Santos Cardoso Preparação de texto: Tomoe Moroizumi Revisão: Jane Pessoa
Diagramação: Gisele Baptista de Oliveira Capa: Mariana Bernd
Imagem de capa: Afresco Emaús, de Cláudio Pastro, na capela do Colégio Santo André, São José do Rio Preto, SP 1a edição, 2015
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G612c
Gomes, Laurentino,
O caminho do peregrino : seguindo os passos de Jesus na Terra Santa / Laurentino Gomes, Osmar Ludovico ; ilustrações de Cláudio Pastro. - 1. ed. - São Paulo : Globo, 2015.
il.
ISBN 978-85-250-6153-9
1. Peregrinos e peregrinações cristãs - Oriente Médio. 2. Jerusalém-Descrição. 3. Espiritualidade. I. Ludovico, Osmar. II. Pastro, Cláudio. III. Título.
teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu poder. E
estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração” (Dt 6,4-6).
Toda a história seguinte dos hebreus gira em torno das tentativas e
fracassos em cumprir esse conjunto de leis e, dessa forma, de se manter fiéis
à antiga aliança celebrada com os patriarcas e com Moisés. Profetas e
mensageiros são enviados por Deus para alertar e orientar o povo a não se
afastar dos seus preceitos, por vezes inutilmente. Em consequência dessas
dificuldades, Israel passa por grandes tribulações.
Até a época posterior ao Êxodo, as doze tribos de Israel formavam um
conglomerado relativamente frágil de tribos muitas vezes rivais. A adoção de
um sistema de governo centralizado e monárquico nasceu da necessidade de
apoio mútuo diante da ameaça representada pelos filisteus e cananeus, os
ocupantes originais da Terra Prometida. Por volta do ano 1.000 a.C., os
hebreus elegeram o seu primeiro rei, Saul, encarregado de organizar as
campanhas militares contra os inimigos. Coube a Davi, seu sucessor,
conquistar Jerusalém, a partir de então capital oficial do novo Estado, onde
também foi instalada a Arca da Aliança, com as leis recebidas por Moisés
durante a fuga do Egito. Salomão, filho de Davi, consolidou a ocupação do
território e mandou erguer o primeiro templo de Jerusalém.
Depois da morte de Salomão, em 928 a.C., os hebreus se dividiram em
dois pequenos Estados. O reino do norte herdou o nome de Israel, com capital
na Samaria. O do sul adotou a denominação de sua tribo mais importante,
Judá, e manteve a sede em Jerusalém. Em 721 a.C., o reino do norte
desapareceu do mapa, invadido pelos assírios, que levaram os hebreus dessa
região para Nínive e outras cidades, de onde jamais retornaram. O reino do
sul resistiu pouco mais de um século, até a ocupação de Jerusalém, em 586
a.C., pelos exércitos de Nabucodonosor, rei da Babilônia. O templo erguido
pelo rei Salomão foi destruído. Levados para o cativeiro na Babilônia, os
judeus só retornariam para a Terra Prometida sessenta anos mais tarde por
decisão de Ciro, rei da Pérsia, que também autorizou a reconstrução do
templo de Jerusalém.
O exílio na Babilônia teve impacto profundamente transformador na
história e nas crenças dos judeus. São dessa época os primeiros textos
messiânicos das Escrituras, que anunciam a futura chegada de um Messias,
um rei poderoso e transcendente, o salvador incumbido da tarefa de restaurar
a glória perdida de Israel. “[...] o Deus do céu levantará um reino que não
será jamais destruído; e esse reino não passará a outro povo; esmiuçará e
consumirá todos esses reinos e será estabelecido para sempre”, afirma o Livro
de Daniel (Dn 2,44). “E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que
todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio
eterno, que não passará, e o seu reino, o único que não será destruído” (Dn
7,14). É dessa nova aliança, ou promessa, que tratam os livros dos profetas na
parte final do Antigo Testamento.
Para os cristãos, o ápice dessa longa e turbulenta história, e também a
consumação da nova promessa, ocorre com o nascimento de Jesus, cerca de 2
mil anos atrás. Nessa época, como se verá mais adiante, os judeus estavam
novamente sob domínio de uma potência estrangeira, dessa vez dos romanos,
fundadores do mais vasto e poderoso império conhecido até então. Cerca de
três décadas e meia após a morte e a ressurreição de Jesus, no ano 70 da atual
era cristã, ocorreu a derradeira e mais devastadora tragédia na história de
Israel: a ocupação de Jerusalém pelas tropas do general e futuro imperador
Tito. O templo, novamente arrasado, jamais seria reconstruído. Expulsos
pelos romamos da Terra Prometida, os judeus se dispersariam pelo mundo
por mais dois milênios, sendo vítimas frequentes de preconceitos e
perseguições. A saga dessa longa diáspora judaica ainda está sendo escrita
nos dias de hoje, em meio a acontecimentos de profundo significado
histórico. Tem como cenário tanto os campos de concentração nazistas
durante a Segunda Guerra Mundial como o atual retorno, de certa forma
surpreendente e miraculoso, de milhões de judeus para as terras de seus
patriarcas e ancestrais no Oriente Médio.
Embora o povo hebreu tenha uma história tão antiga, o moderno Estado de
Israel é relativamente jovem. Foi criado em 1948, três anos após o fim da
Segunda Guerra Mundial, quando, segundo estimativas, cerca de 6 milhões
de judeus morreram vítimas do Holocausto. Hoje, Israel é um dos países mais
dinâmicos e prósperos do mundo. Há mais de meio século funciona como
uma democracia relativamente estável, uma raridade em uma região ainda
dominada por monarquias, como na Arábia Saudita e na Jordânia, ou regimes
ditatoriais, caso do Egito e da Síria. A moderna Tel Aviv é uma cidade jovem
e alegre, um dos principais centros financeiros mundiais, também grande
produtor de diamante lapidado. Ali bem perto, um futurista centro de
tecnologia produz novidades como o navegador Waze, hoje utilizado por
milhões de motoristas no mundo inteiro.
Na falta de fontes abundantes de água doce, a irrigação produziu milagres.
Em Israel não se desperdiça uma única gota de água. Esgotos domésticos e
industriais são tratados e reutilizados na agricultura. Oásis belos e verdejantes
encantam os visitantes em meio à paisagem ressequida. Ao sul, na região do
Negev (próxima à fronteira com o Egito), uma faixa de vinte quilômetros de
extensão foi tomada ao deserto para produção de frutas, hortaliças e cereais.
Metade de toda a água potável consumida no país provém de usinas
dessalinizadoras. É uma tecnologia relativamente nova no mundo todo para
retirar o sal da água do mar e na qual os engenheiros israelenses mais uma
vez estão na vanguarda. Para os brasileiros, às voltas com o racionamento de
água e energia, são lições preciosas de como conservar e utilizar os escassos
recursos naturais.
Ao mesmo tempo, grandes incertezas ainda pairam no horizonte. As
dificuldades de alcançar a paz com os palestinos, que ocupavam partes dessas
terras antes da criação do Estado de Israel, são imensas. De um lado, projetos
habitacionais israelenses estimulados ou tolerados em territórios palestinos
levantam dúvidas sobre as reais intenções do governo de desejar uma paz
duradoura. Do outro, grupos terroristas bem organizados e financiados pelo
Irã e outros países da região se recusam a reconhecer o Estado israelense. Em
vez disso, cavam túneis sob os muros da Faixa de Gaza e lançam foguetes
com o objetivo de atingir alvos civis em Israel. Entre israelenses e palestinos
existem muitas pessoas — provavelmente a maioria — genuinamente
interessadas numa solução que permita uma convivência pacífica entre os
dois povos. Mas existem também, em ambas as partes, grupos e partidos
políticos cujo poder se alimenta do radicalismo. Como consequência, os
precários acordos diplomáticos alcançados até agora em meio a enormes
esforços internacionais têm sido sistematicamente quebrados de parte a parte.
O fundamentalismo religioso é cada vez maior nos dois lados. Por essas
razões, orar pela paz em Jerusalém é também uma obrigação de todo
peregrino que chega a Israel.
Uma região tão carregada de simbolismos, dores e esperanças pode ser
plena de paz e harmonia ou repleta de medos e ansiedades. Depende da busca
de cada um e das respostas que espera encontrar. O clima de euforia e ruído
exige muita paciência e disciplina do peregrino empenhado em fugir do
consumismo e das distrações mundanas que dominam os lugares sagrados.
Para mim, essa jornada começou muitos anos atrás. Venho de uma família
católica, rural e conservadora, do interior do Paraná. Era uma tradição que o
filho mais velho se tornasse padre. Por isso, na adolescência, fui seminarista
da Pia Sociedade de São Paulo (a congregação dos padres e irmãos paulinos)
por três anos. Saí ao descobrir que não tinha vocação para o sacerdócio. Anos
depois, ao me tornar jornalista, afastei-me quase que totalmente de qualquer
prática religiosa. Nos meus tempos de redação, julgava que seria um
sacrilégio alguém ousar dizer que era cristão, orava ou acreditava em
qualquer coisa que não fosse o universo visível, racional e comprovável,
prometido e autorizado pela ciência e pelas ideologias políticas do século .
XX
Apesar de todo esse ambiente, durante mais de trinta anos havia, sim,
dentro de mim, um resíduo de vida espiritual, embora raso e inconstante. Nos
momentos de dificuldades, repetia as orações aprendidas na infância, de
formação católica. Por algum tempo, pratiquei meditação oriental — como,
aliás, boa parte de minha geração. No esforço de dar algum verniz intelectual
a essa busca do que transcende a realidade visível e racional, li quase todos os
livros de Joseph Campbell, Mircea Eliade, Rudolf Otto e Norman Khon,
entre outros grandes pensadores nessa área. Estava, obviamente, à procura de
respostas, mas nada disso conseguiu, de fato, satisfazer-me plenamente.
Certo dia, depois de participar do Sempre um Papo, tradicional e
respeitado evento literário promovido em Belo Horizonte pelo jornalista
Afonso Borges, discuti essas ideias em um jantar com o teólogo frei
Leonardo Boff. Ele me ouviu com paciência e curiosidade. No dia seguinte,
quando desci para tomar café, descobri que Leonardo Boff já tinha ido
embora do hotel. Antes de partir, no entanto, havia me deixado de presente
uma frase singela, que me tocou o fundo do coração: “Laurentino, Deus é
mais para ser sentido do que pensado”. Algum tempo depois, tomei coragem
e fui assistir a uma missa no mosteiro trapista de Campo do Tenente, no
Paraná, perto do hotel onde estava hospedado. No sermão, o abade, padre
Bernardo Bonowitz, discorreu sobre as dimensões de Cristo no Evangelho de
João: “Jesus, a água que eu bebo; Jesus, o pão que eu como; Jesus, o ar que
eu respiro”. Ao ouvir essas palavras, fui tomado por um choro compulsivo e,
de certa forma, constrangedor perante os demais fiéis que lotavam a igreja.
Começava ali meu processo de renascimento espiritual, que coincidiu com
um período de crise pessoal, repleto de dor e sofrimento. Ao retornar para
casa, decidi ler todo o Evangelho de João junto com Carmen, minha mulher.
Lemos um capítulo diariamente durante quase um mês, antes de dormir. Em
seguida, enveredamos pelas cartas de Paulo, Hebreus, Tiago, Pedro, João,
recuamos para Jó, Isaías e o Livro dos Salmos. Inaugurávamos ali um ritual
diário que mantemos desde então. A leitura desses textos nos ensinou que,
apesar das sombras, dúvidas e incertezas naturais da vida, a jornada de um
peregrino pode, sim, ser plena de confiança, gratidão e alegria.
A conversão espiritual é um percurso que se renova a cada dia e envolve a
mudança de valores e ideias preconcebidas. Em novembro de 2013, ao ser
entrevistado no programa Provocações, da Cultura de São Paulo, fui
TV
também conhecido como “edh-Dhib” (“o lobo”), procurava uma cabra que se
perdera do rebanho na região árida, monótona e pedregosa do mar Morto. Ao
atirar uma pedra dentro de uma caverna, ouviu o estalo seco de vasos que se
quebravam. Começou assim a história da mais extraordinária descoberta
arqueológica do século , uma gigantesca biblioteca de textos sagrados
XX
referem não apenas os Evangelhos como outros textos antigos. Jesus é citado
nos relatos de pelo menos dois importantes historiadores da época. Tácito
escreve que Jesus “tinha sofrido a pena de morte durante o reinado de
Tibério, mediante sentença do procurador Pôncio Pilatos”. Flávio Josefo,
judeu de nascimento que se tornou cidadão e general romano, afirma que
“Pilatos, depois de ouvi-lo ser acusado pelos homens mais importantes entre
nós, o condenou a ser crucificado”.
A outra face é a do Jesus transcendente, inefável e elusivo que, embora
íntimo de todos os que nele creem, não se pode exprimir por palavras ou
argumentos racionais. Trata-se aqui de um personagem que extrapola os
limites da história e da ciência para habitar o coração de cada ser humano
que, ao longo desses últimos 2 mil anos, por razões misteriosas e
inexplicáveis, o aceitam como o Filho de Deus, o Messias Prometido, o
Salvador — e nele depositam, mais do que suas esperanças, a explicação de
sua própria existência. O Jesus transcendente que se manifesta nessa
dimensão puramente espiritual nem sempre está de acordo com as provas a
respeito do Jesus histórico, que, também por muitos séculos, arqueólogos,
historiadores e estudiosos de textos antigos procuram encontrar por meios
puramente racionais ou científicos.
O próprio Jesus enfrenta esse dificílimo desafio em uma das passagens dos
Evangelhos. Segundo o relato de João (Jo 20,19-29), ao saber que Cristo
havia aparecido aos discípulos após a ressurreicão, Tomé, um deles que não
estava presente na ocasião, responde: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal
dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo
algum acreditarei”. Dias mais tarde, estando novamente os discípulos
reunidos, Jesus se coloca no meio deles e, numa demonstração de que está
disponível para ser encontrado por todos os meios, chama Tomé, pede que
lhe toque as chagas da cruz. Ao ter as provas que buscava, Tomé reage com
uma declaração singela mas de profundo significado espiritual, a mais
completa a respeito de Jesus dita até então nos Evangelhos: “Meu Senhor e
meu Deus!”. Ao que Jesus acrescenta: “Você acreditou porque me viu; bem-
aventurados os que não viram e ainda assim creram”.
Na época do nascimento de Jesus, o povo judeu encontrava-se diante de
uma encruzilhada histórica e decisiva em todos os aspectos. Sinais de crise,
profecias apocalíticas relacionadas à chegada do Messias e ao fim dos tempos
estavam por todo lado. Como se viu na Introdução deste livro, o primeiro
templo de Jerusalém, erguido pelo rei Salomão, havia sido reduzido a ruínas
no ano 586 a.C. pelas tropas do rei da Babilônia, Nabucodonosor. Levados
para o exílio, os judeus só retornariam sessenta anos mais tarde, com a
autorização do rei da Pérsia para reconstruir o templo, o qual ficou pronto no
ano 515 a.C. Este segundo templo duraria 585 anos, até sua completa
destruição pelos romanos em 70 d.C. Nesse longo período, os judeus
estiveram sucessivamente sob o domínio dos persas (539-331 a.C.), dos
gregos (331-170 a.C.) e dos romanos (de 63 a.C. em diante). Apenas por um
breve período, entre 164 e 63 a.C., gozaram de algum grau de autonomia,
governados pelos irmãos macabeus e pela dinastia dos asmoneus.
No ano 63 a.C., o general romano Pompeu conquistou a Judeia e entrou em
Jerusalém, dando início ao longo domínio romano na região. A rigor duraria
até bem depois da destruição do segundo templo, em 70 d.C., quando os
judeus foram oficialmente proibidos de morar ou entrar em Jerusalém.
Herdado pelo império bizantino de Constantinopla, o poder romano só
terminaria mesmo em 639 d.C., durante a conquista árabe da Palestina. No
tempo de Jesus, os romanos, embora detivessem o poder de fato, permitiam
que a região fosse governada por reis locais subordinados a Roma.
Um desses reis fantoches, Herodes, o Grande, governou por 33 anos
protegido pelos césares romanos. Nascido na Idomea, província convertida ao
judaísmo durante o período macabeu, recebeu do senado romano o título
oficial de “rei dos judeus”, expressão que, por zombaria, seria também
inscrita na cruz de Jesus. Herodes ficou conhecido pelas suas magníficas
obras arquitetônicas, em especial a restauração e a ampliação do segundo
templo, que, iniciada em 20 a.C., só seria concluída oitenta anos mais tarde,
bem depois de sua morte. “Quem nunca viu o Templo de Herodes não sabe o
que é a beleza”, dizia um ditado na época. Casado com dez mulheres, que
disputavam sua herança e poder, Herodes fez três diferentes testamentos.
Morreu em 4 a.C., portanto, um pouco antes do nascimento de Jesus. Depois
disso, a Judeia caiu sob o controle direto dos romanos. Um de seus guardiões
foi Pôncio Pilatos. Herodes Antipas, um dos filhos de Herodes, o Grande,
tornou-se rei da Galileia, onde se situava Nazaré, vilarejo habitado por Jesus,
Maria e José.
O judaísmo do Segundo Templo, como era conhecido na época de Jesus,
caracteriza-se por profundas divergências internas. Eram quatro os principais
grupos rivais, também conhecidos como seitas. Os fariseus, com frequência
criticados por Jesus nos Evangelhos, eram apegados a tradição e aos
costumes, consideravam-se intérpretes e guardiões da lei de Moisés, mas
colaboravam ostensivamente com os romanos. Parte deles acreditava em
ressurreição. Os saduceus constituíam a casta sacerdotal e a aristocracia que
mandava no templo. Também colaboravam com os ocupantes romanos. Os
essênios, autores dos manuscritos de Qumran, haviam se afastado do
judaísmo oficial do templo, que consideravam corrompido e desvirtuado.
Preferiam levar uma vida austera e monástica no deserto. Os zelotes eram o
grupo mais radical, que pregava a resistência armada contra os romanos e
teria participação importante na revolta que levaria à destruição do templo em
70 d.C. De certa forma, o próprio cristianismo podia ser considerado uma
seita ou dissidência do judaísmo oficial nos seus primeiros anos, antes de
ganhar o mundo e ser adotado como religião oficial pelo Império Romano em
313 d.C.
O tempo do nascimento de Jesus foi marcado também pela feroz
resistência contra a inevitável influência cultural dos impérios dominadores
da região. Na remodelação do templo, Herodes dotou o edifício de colunas e
fachadas inspiradas na arquitetura greco-romana. Sobre o pórtico principal,
instalou uma águia de ouro, símbolo dos imperadores de Roma. A decisão
causou tal revolta entre os judeus que a águia acabou derrubada durante a
noite por um grupo de sabotadores. Na manhã seguinte, dezenas de pessoas
foram executadas por ordem de Herodes. Pôncio Pilatos mandou instalar
dentro dos muros de Jerusalém imagens de César Augusto, chamado pelos
romanos de “o Deus Vivo”. Voltou atrás quando uma gigantesca
manifestação de protestos cercou sua casa em Cesareia Marítima. Tanto os
romanos quanto Herodes mantinham os olhos atentos sobre as atividades do
templo, centro político, religioso e cultural dos judeus. Por isso construíram,
bem ali ao lado, a fortaleza Antonia, de onde soldados e centuriões
controlavam toda a movimentação dos sacerdotes e dos fiéis. Dentro da
fortaleza ficavam guardadas as vestes do sumo sacerdote, símbolo e
autoridade máxima do judaísmo, cujo uso era liberado pelos romanos em dias
de festas e celebrações religiosas especiais. Tudo isso representava uma
grande humilhação para os judeus, que ansiavam pela chegada do Messias
libertador.
Essas são as circunstâncias do Jesus histórico.
Os textos das meditações que compõem as partes e deste livro, de
II III
Os textos do Novo Testamento são econômicos no que se refere à vida de Maria, mãe de Jesus. Há cerca de meia dúzia de citações sobre ela nos quatro Evangelhos, não mais que
isso. As circunstâncias de seu nascimento e morte são misteriosas, o que levou o monge trapista norte-americano Thomas Merton a dizer que a santidade de Maria é a mais escondida
de todas. Só se revela na forma humilde e obediente com que se submete à vontade de Deus e pode ser resumida em uma frase do Magnificat: “Eis aqui a serva do Senhor”. Na
ausência de informações objetivas, sobram teorias e tradição a seu respeito. Uma delas diz que Maria seria natural de Séforis, cidade vizinha de Nazaré, e que teria morado com os
pais Joaquim e Ana em Jerusalém, no local onde hoje está erguida a bela igreja de Santa Ana, situada entre o Monte do Templo e o tanque de Betesda.
A Basílica da Natividade, em Belém, é um dos templos cristãos mais antigos de Israel. A primeira igreja ali construída é do ano 339 d.C. A basílica é também um caso único de lugar
sagrado que resistiu às ondas de destruição e vandalismo durante as frequentes guerras e revoluções na Terra Santa. Na invasão dos persas, no ano 614 d.C., o edifício foi salvo
devido a uma curiosidade iconográfica: o mosaico situado sobre a porta principal mostra a cena da adoração dos reis magos ao menino Jesus, com personagens cujas roupas,
turbantes e acessórios logo foram identificados pelos soldados e oficiais invasores como sendo de sua própria terra de origem. A tradição diz que os reis magos, de fato, teriam vindo
da Pérsia para adorar o Jesus recém-nascido na manjedoura de Belém.
vida pública, conheceu seus amigos e fez seu primeiro milagre. Podemos
imaginar o quanto Jesus Cristo gostou e desfrutou desse lindo lugar. É uma
região fértil, de clima ameno, gente simples, entremeada por singelas aldeias,
suaves colinas e pequenas praias. Por ali, ele frequentou a sinagoga, andou no
meio do povo, participou de almoços, jantares, festas de casamento, como
uma pessoa simples e despretensiosa. Ao escolher um lugar assim, Jesus
revela traços marcantes do caráter de Deus, seu desejo de estar perto do povo
e seu amor por gente despojada e humilde.
Foi em uma dessas praias do mar da Galileia que Jesus Cristo encontrou e
escolheu seus primeiros discípulos. Mas, antes disso, o texto bíblico nos diz
que ele já tinha pregado na sinagoga de Nazaré, curado um possesso em
Cafarnaum e também a sogra de Pedro. Já era conhecido na região como
profeta e suas pregações atraíam muita gente.
Certo dia Jesus prega à beira do lago. A multidão vai chegando e o
empurra em direção às águas. Ele olha ao redor e vê, não muito longe dali,
alguns barcos de pesca atracados e os pecadores sentados na praia, lavando as
redes. Ele se aproxima, sobe em um dos barcos e continua sua pregação.
Embora não tenhamos o registro do que disse naquele dia, sabemos que
gostava de falar das coisas de Deus através de parábolas. Falava do divino e
do eterno por meio de metáforas, a partir de situações com as quais seus
ouvintes estavam familiarizados no dia a dia.
Jesus, depois de ter falado para as multidões, agora se dirige a alguns
poucos homens: Simão, Tiago e João. Ele se volta aos pescadores na praia e
diz: “Vamos zarpar e lançar as redes para pescar”. E encontra por parte deles
certa frustração e relutância. Simão diz: “Tentamos pescar a noite inteira, não
tem peixe”. Imagino Simão fazendo uma pequena pausa antes de emendar:
“Mas sobre a tua palavra lançarei as redes”.
O que terá acontecido com Simão naquela pequena pausa, entre sua
relutância e sua concordância? Ele diz: “Sobre a tua palavra lançarei as
redes”. Naquele intervalo, invadido por misteriosa convicção, ele responde ao
convite de Jesus com uma afirmação de obediência. Poderia ter dito: “O mar
não está para peixe hoje, disto nós entendemos, pois pescamos neste mar
desde meninos”. Mas, ao ouvir a palavra de Cristo, Simão tem a coragem de
experimentar aquilo que achava que não ia dar certo.
Frequentemente ouvimos a voz de Jesus Cristo, mas não temos a coragem
de crer e obedecer. Sua mensagem nos parece bela e pertinente, mas no fundo
não achamos que pode dar certo. No entanto, basta uma pequena pausa para
que essa palavra suscite em nós a fé e a obediência.
Na sequência desse relato, eles saem para pescar. Para a surpresa de todos,
a pesca é farta, muito além do que se esperava. As redes estão tão repletas de
peixes que quase se rompem. Os barcos, abarrotados, correm o risco de
submergir com o peso da carga. Simão e seus sócios, Tiago e João, chamam
outro barco para socorrê-los, que também volta para a margem no limite de
sua capacidade.
Qual o significado da pesca milagrosa? Os pescadores ouviram a voz do
Senhor, creram e obedeceram contra todas as evidências. Como resultado,
tocados pela graça e pela providência divinas, foram abençoados com uma
grande pesca. Se tentassem ficar com toda a carga de peixes, teriam
afundado, mas dividem aquilo que receberam graciosamente da parte de
Deus. É o que ocorre conosco quando somos tocados pela graça de Deus e
abençoados materialmente. Já não queremos desfrutar sozinhos. O milagre é
um convite à partilha e à vida comunitária.
Muitas pessoas vivem estas três primeiras etapas da experiência cristã:
ouvem a Palavra de Deus; creem e obedecem; são abençoados e repartem. E
param por aqui, acomodados em suas comunidades, onde celebram, estudam
a Bíblia, observam preceitos morais, vivem fraternalmente e ajudam os mais
pobres. No entanto, Jesus Cristo ainda não terminou a Sua obra. Ele quer
aprofundar ainda mais a experiência de encontro com os Seus primeiros
discípulos.
O texto do Evangelho nos diz que, logo depois da pesca milagrosa, Simão
Pedro “prostrou-se aos pés de Jesus dizendo: Senhor, retira-te de mim,
porque sou pecador”. O que aconteceu a Pedro continuou acontecendo a
milhares de homens e mulheres ao longo da história, e até os dias de hoje.
Encontramo-nos com Jesus Cristo e não conseguimos mais permanecer em
pé, caímos de joelhos diante Dele. Sua presença desarma o nosso espírito e
também o nosso corpo. Algumas vezes, a experiência do encontro divino
altera o batimento cardíaco, provoca uma lágrima no canto do olho ou um
longo e profundo suspiro. O impacto da presença de Cristo mexe com a alma,
mas também gera alguma reação somática, de natureza física e biológica.
Deus transforma tudo o que encontra pela frente.
Os místicos cristãos dizem que, em face do mistério de Deus, nosso
consciente, nossos sentimentos, nossos sentidos e nosso corpo são igualmente
afetados. É uma experiência completa, imediata, transcendente, inenarrável e
irreproduzível ante o sagrado, o divino, o eterno, o sublime. O texto diz: “À
vista da pesca, a admiração e o temor se apoderaram dele e de todos os seus
companheiros”, uma experiência de êxtase reverente que as palavras não
conseguem descrever.
Pedro é invadido por uma profunda sensação de finitude, inadequação e
pequenez diante da inacessível santidade de Cristo. Ele se percebe longe de
Deus e necessitado de perdão e salvação. Por isso, diz: “Senhor, retira-te de
mim porque sou pecador”.
Assim como Pedro, maravilhado com a santa, doce e bendita presença do
Senhor, agora é a nossa vez de clamar ao Senhor: “Tem misericórdia de nós,
não somos dignos, somos pecadores, precisamos de sua salvação e do seu
poder para nos tornar pessoas melhores”.
E Ele nos ouve. Tem sido assim nestes últimos 2 mil anos de história.
Homens e mulheres cujas vidas impactaram a humanidade foram seguidores
e imitadores de Jesus Cristo. Madre Teresa de Calcutá, uma freira albanesa,
de baixa estatura, transformou o mundo servindo aos pobres nos bolsões de
miséria da Índia. Pelos padrões corporativos atuais, era alguém sem nenhuma
credencial, currículo ou avaliação de desempenho. A força transformadora
dessa alma muito simples, cuja beleza era reconhecida por todos, inclusive
pelos mandatários deste mundo, estava no seu compromisso com Cristo e na
sua coerência em seguir Seus ensinamentos.
A pesca é ainda hoje uma importante atividade econômica no mar da Galileia. Nas suas águas existem 22 espécies comerciais. Na época de Jesus, os peixes frescos não duravam
muito sob o calor da região, situada em uma depressão a mais de duzentos metros abaixo do nível do mar. Por isso, o produto era salgado ou mantido em conserva dentro de uma
mistura de sal, azeite e vinagre. A denominação de alguns vilarejos são indicativos dessas técnicas de conservação dos pescados. Magdala, nome do povoado onde teria nascido
Maria Madalena, vem do hebraico Migdal Nunnaya, que significa “Torre de Peixe”: uma estrutura de madeira usada para secar os peixes antes de serem vendidos nas cidades
vizinhas de Tiberíades e Séforis. No mar da Galileia também são comuns, ainda hoje, as famosas tempestades descritas nos Evangelhos. No verão, mudanças bruscas de temperatura
seguidas de fortíssimas rajadas de vento nos vales que circundam a região podem produzir ondas com mais de dois metros de altura.
Até aqui falamos de quatro etapas da vida cristã: ouvir a voz de Deus, crer
e obedecer, ser abençoado e repartir o fruto da graça, se reconhecer como
pecador e encontrar o perdão de Cristo. Mas há uma etapa mais profunda e
definitiva no relacionamento com Deus. No milagre da pesca milagrosa, ela
ocorre quando Jesus ajuda Pedro a se levantar e diz: “Não temas, doravante
serás pescador de homens”.
“Não tenha medo” é uma das mensagens divinas mais frequentes e mais
poderosas nas Escrituras. Deus não quer que tenhamos medo de segui-Lo ou
de usufruir plenamente o dom da vida que recebemos pelo Seu amor e Sua
misericórdia. “Eu vim para que tenham vida e a tenham com abundância”,
anuncia Jesus no Evangelho de João (10,10).
Há muito medo em nós: medo de Deus, medo de morrer, medo de não
sermos aceitos e compreendidos, medo de ficar sem nada. Em meio à
opressão do Império Romano e da corrupção dos líderes religiosos de
Jerusalém, Jesus Cristo anuncia uma boa-nova: Deus é Pai com muitas coisas
de mãe, seu Filho está entre nós para nos perdoar e salvar, encher nosso
coração de fé, de esperança e de amor. Não há nada a temer.
Nessa mensagem há um sentido existencial profundo. Deus nos confia uma
missão, um chamado, uma tarefa. Ele nos quer a Seu serviço, espalhando Sua
mensagem de amor e esperança por todo o mundo. Deseja que sejamos
instrumentos em Suas mãos para construir um mundo melhor, mais pacífico,
mais justo, com mais generosidade e solidariedade. É através do amor ao
próximo que realmente encontramos um significado para a nossa vida.
Os Evangelhos nos convidam a lançar redes mundo afora, isto é, anunciar
as boas-novas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nós podemos lançar as redes,
fazer o anúncio, mas o milagre de recolher homens e mulheres para o Seu
Reino é de Deus, somente de Deus. Jesus fez uso de uma metáfora para que
aqueles homens, a maioria deles sem diploma ou credenciais, pudessem
compreender sua nova vocação.
Quando Deus nos chama para uma missão, nunca temos o quadro todo.
Deus não se explica, não tenta convencer, é extremamente econômico em
Suas palavras. Até aqui, Ele só disse: “Vamos pescar” e, agora, “serás
pescador de homens”. Só isso! E o texto nos conta que “eles, deixando tudo,
o seguiram”. Ou seja, mesmo não compreendendo tudo, eles abrem mão dos
barcos, da pesca, do negócio, do ter e do fazer, do medo, para dali em diante
serem discípulos a serviço do Senhor Jesus Cristo.
Jesus não é um profeta ou filósofo, é o Filho de Deus, e naquela manhã, às
margens do mar da Galileia, não viu somente pescadores anônimos e
frustrados pelo resultado de seu trabalho. Viu os apóstolos que iriam espalhar
sua mensagem pelos quatro cantos da Terra.
Jesus acalma uma tempestade
Evangelho segundo São Marcos 4,35-41
Naquele dia, sendo já tarde, disse-lhes Jesus: Passemos para a outra margem. E eles,
despedindo a multidão, o levaram assim como estava, no barco; e outros barcos o seguiam.
Ora, levantou-se grande temporal de vento, e as ondas se arremessavam contra o barco, de
modo que o mesmo já estava a encher-se de água. E Jesus estava na popa, dormindo sobre o
travesseiro; eles o despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa que pereçamos? E ele,
despertando, repreendeu o vento e disse ao mar: Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e
fez-se grande bonança. Então, lhes disse: Por que sois assim tímidos?! Como é que não tendes
fé? E eles, possuídos de grande temor, diziam uns aos outros: Quem é este que até o vento e o
mar lhe obedecem?
Uma presença silenciosa em meio às nossas crises
U se aglomera às margens do mar da Galileia para ouvir os
MA NUMEROSA MULTIDÃO
nos ensina como Deus age quando se aproxima de nós. Uma inspiração para
entender como agir quando encontramos o nosso próximo.
Olhamos para um texto que tem mais de 2 mil anos e ele parece uma
história remota e distante de nós. É, no entanto, uma palavra viva que se
realiza aqui e agora, e Cristo vem nos encontrar da mesma forma como
encontrou o surdo e gago. Esta é a função da Palavra Viva: gerar um
encontro. Ele nos encontra e somos curados.
O texto é a descrição detalhada de uma cura. É um enredo de cinco ações e
uma só palavra. As ações precedem e preparam a palavra. Jesus Cristo não
tenta convencer ou explicar, Ele só diz Efatá. Embora Marcos escrevesse em
grego, deixou a palavra em aramaico, e ao longo de toda a história os
tradutores da Bíblia para outras línguas não ousaram retirar Efatá do Texto
Sagrado, limitando-se a acrescentar o seu significado mais próximo em
outros idiomas: “Abre-te”. Trata-se de uma palavra forte, que viaja através da
história e das nações tal qual Jesus a pronunciou.
O surdo e gago é uma metáfora da humanidade. Temos dificuldade de
ouvir o outro. Às vezes, ouvimos de forma truncada e seletiva. Ou, então,
simplesmente não ouvimos. Em outras ocasiões, nos expressamos mal, não
conseguimos dizer tudo que desejamos ou simplesmente nos calamos. Há
colocações fora de hora, palavras truncadas e interpretações equivocadas.
Todo mundo fala, todo mundo ouve, mas ninguém se entende. Dos
obstáculos à comunicação surgem as dificuldades no casamento, na família e
na comunidade em que vivemos. O surdo e gago levado a Jesus representa
cada um de nós em nossas dificuldades relacionais de compreender e de ser
compreendido.
A forma e o ambiente em que se dá essa cura têm muito a nos dizer. Jesus
tira o surdo da multidão. É o seu primeiro movimento. Ele quer distância de
uma aglomeração curiosa e ruidosa. O encontro começa com privacidade, não
sob os holofotes, mas secretamente. A cura vai acontecer no contexto de um
encontro pessoal, olho no olho. Aceitamos Seu convite de um encontro
privado ou preferimos nos esconder atrás do burburinho? Muitos buscam
Cristo nos templos, nos ajuntamentos, mas têm medo da intimidade.
Por causa dessa dificuldade humana, as religiões promovem grandes
celebrações e rituais, nos quais muitos correm em busca de um encontro, mas
acabam por se render a uma espiritualidade superficial, de natureza mágica e
de entretenimento, em que as pessoas se dissolvem anonimamente no meio
da multidão, sem vínculos, sem vida comunitária.
O que significa para nós esse convite de Jesus, que nos tira dos grandes
ajuntamentos e nos leva para um lugar de privacidade e intimidade? Ao fazer
isso, Jesus revela o valor infinito do ser humano na sua unicidade e a
possibilidade de um verdadeiro encontro de duas individualidades. Revela
também que uma cura não precisa de palco e de público, e que Ele não quer
somente curar, mas também encontrar.
O segundo movimento de Jesus é tocar com Seus dedos os ouvidos do
surdo e gago. Ele não diz nada, simplesmente toca a parte ferida naquele
homem. Ele toca empaticamente, pois como disse o profeta Isaías: “Ele
tomou sobre si todas as nossas enfermidades” (Is 53,4). Nada que é
verdadeiramente humano Lhe é desconhecido, Ele sabe de todas nossas
capacidades e habilidades, mas também de todas nossas patologias e
maldades. Jesus é o ferido que cura. Somos curados quando Ele nos toca.
Com Suas mãos amorosas, Ele toca nosso corpo e também a nossa
interioridade. Sim, também nossa alma está ferida. Temos uma agenda
secreta, que ninguém sabe e ninguém vê: são nossos pecados ocultos, nossas
mentiras, nossos relacionamentos conflituosos, nossos ressentimentos, nossas
frustrações, nossas dores e nossas angústias. Por vezes, nem temos
consciência desse ferimento e nos escondemos da cura. Tentamos conviver
com a dor e ocultá-la por meio de sorrisos cordiais, agenda cheia e
religiosidade sem substância. Nossa agenda secreta nos corrói por dentro;
somatizamos e passamos a depender de analgésicos e tranquilizantes.
Para feridas escondidas, camufladas e negadas, não há cura. No encontro
com Jesus, para ser curado é preciso mostrar a ferida e permitir que Ele a
toque. Jesus Cristo nos convida a esse encontro e a ser tocado por Ele ali
onde está nossa dor maior, aquela que ninguém sabe, ninguém vê. O surdo e
gago se deixa levar por Jesus a uma experiência de encontro pessoal e
privado e permite ser tocado na sua ferida.
O terceiro movimento de Jesus é lhe tocar a língua com a saliva. Trata-se
de um gesto de extrema afetividade, no qual o homem sente na sua boca o
gosto da boca de Jesus. Uma experiência tão intensa que chega a ser quase
sufocante. De tal intensidade que é difícil suportá-la. Diante dela, a única
resposta possível é o silêncio — não um silêncio constrangedor, mas uma
comunhão profunda, reverente e sem palavras.
A boca é a porta para nossos afetos. Com ela expressamos ternura e amor
quando beijamos a pessoa amada. É também o lugar da palavra que
reconhece, que afirma, que acarinha. A boca é sensível aos sabores, ao
paladar, aos prazeres da mesa com a família e os amigos. Ao tocar nossa
boca, Jesus nos liberta para expressar nossos afetos e para desfrutar os
sabores da vida.
Esta é, portanto, uma cura a partir de um toque de intimidade. Jesus busca
convívio e proximidade. Em geral, desejamos curas mágicas, ter a saúde
devolvida, mas de modo mecânico, à distância. Ele vem para curar nossa
dificuldade de desenvolver vínculos de intimidade. Um encontro com Jesus,
uma cura de Jesus, pode dar início a um recomeço, a uma nova história de
vida, a uma transformação interior que nos torna mais compreensivos e mais
bem compreendidos nos relacionamentos mais próximos.
O quarto movimento de Jesus é erguer os olhos aos céus. Ele ora
silenciosamente. Ao tirar os olhos daquela situação, Ele ora ao Pai, Aquele
que é a fonte e a origem de todas as curas, de todos os afetos, de todas as
narrativas bondosas e de todos os sabores. Jesus Cristo é o nosso intercessor e
o nosso advogado junto a Deus Pai.
Em seguida, o texto nos relata que Jesus suspirou. Ele é tocado por esse
encontro e continua a ser tocado hoje a cada novo encontro com cada um de
nós. Ele se emociona diante de nós, que há muito desaprendemos a suspirar.
Controlamos nossas emoções, as tristes e as alegres, as de desgosto e as de
contentamento, as de amor e as de ódio. E o resultado é uma vida fria,
preocupada, entediada, sem choros, mas também sem alegria e risos. Ah, que
falta faz o suspiro nas nossas orações, nos nossos casamentos, nas nossas
famílias e nos nossos encontros.
Finalmente, o sexto e último movimento de Jesus é falar. Uma só palavra:
Efatá. Abre-te. Jesus Cristo nos tira da multidão, deseja intimidade, toca
nossa ferida, intercede por nós, suspira e diz Efatá, abre-te. Abre o teu
coração. Somos seres trancados, o pecado original é a exclusão do outro. Ele
vê a nossa aflição e ordena: Efatá, abre-te. Assim nos abrimos para Deus e
para o próximo. Só então somos curados de nossos relacionamentos feridos e
podemos recomeçar, pouco a pouco, dia após dia, a construir vínculos de
afeto e intimidade, a ouvir e falar com o coração.
Quando nos abrimos a Jesus Cristo, encontramos a realidade profunda de
seu amor incondicional, imerecido, irretribuível, imutável e infinito.
Entramos em contato com o mistério de Deus revelado na face de Jesus e
permeado por um amor que não podemos medir ou quantificar, que nos
constrange, nos toca e para o qual nos entregamos plenamente.
No encontro com Jesus Cristo o surdo e gago não diz nada. E Jesus só diz
uma palavra. Para aqueles que confiam e esperam, basta uma só palavra de
Deus para mudar o curso de sua vida. Tocado e transformado por Jesus, o
surdo e gago sai dali e começa a falar desembaraçadamente. Há nele um jeito
novo de se expressar, mais claro, mais fluido, mais compreensível. Um
milagre extraordinário acaba de acontecer, mas Jesus ordena que nada se
divulgue. O Filho de Deus não precisa de publicidade! Ele não busca
notoriedade ou visibilidade, Seu desejo é simplesmente estar perto de nós.
O bom samaritano
Evangelho segundo São Lucas 10,25-37
E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-
lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Então, Jesus lhe perguntou: Que está escrito
na Lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o
teu próximo como a ti mesmo. Então, Jesus lhe disse: Respondeste corretamente; faze isto e
viverás. Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? Jesus
prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de
salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-
se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e,
vendo-o, passou de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o,
também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e,
vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e
vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.
No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem,
e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece
ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da
Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.
A arte de ensinar por parábolas
U dos Evangelhos é a sua linguagem. Como é possível que
M DOS MISTÉRIOS MAIS INTRIGANTES
Vizinhos e rivais dos judeus na época de Jesus, os samaritanos ainda hoje sobrevivem no Estado de Israel. Formam uma pequena comunidade étnica de cerca de setecentas pessoas,
divididas entre as cidades de Nablus e Hebron. Eles se consideram descendentes de Efraim e Manassés, duas das dez tribos perdidas de Israel, o reino do norte capturado pelos
assírios em 721 a.C., assertiva que os atuais judeus ortodoxos rejeitam. Sua religião é baseada no Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia, mas não reconhece Jerusalém como
o centro espiritual. Em vez disso, consideram como lugar sagrado o monte Jerezim, situado no território da Antiga Samaria.
N A
A Jerusalém era um lugar ermo, distante das grandes rotas de
NTIGUIDADE,
A destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. praticamente eliminou da paisagem todos os traços do antigo e suntuoso Templo de Herodes. A única exceção é o chamado
Muro das Lamentações, que consiste em parte do alicerce do antigo edifício. A esplanada sobre o monte Moriá, onde antes havia o templo, é hoje um território controlado pelos
muçulmanos. Ali estão dois edifícios dos mais sagrados do islã em todo o mundo: as mesquitas de Al-Aqsa e de Omar, também conhecida como Templo ou Domo da Rocha.
Inaugurada em 691 d.C., a mesquita de Omar impressiona pela cúpula dourada e pelas proporções geométricas perfeitas. Foi o primeiro grande santuário construído pelo islã. No seu
interior, hoje fechado aos turistas, está a rocha com duplo significado: para as três religiões monoteístas é o local do sacrifício de Abraão e onde antigamente situava-se o Santo dos
Santos, no coração do Templo de Jerusalém; para os muçulmanos é também o lugar de onde Maomé ascendeu aos céus.
A indignação de Jesus Cristo se dirige a uma religião cujo objetivo é o
dinheiro e que se tornara um negócio lucrativo. Ao se afastar da dimensão
espiritual e transcendente, a fé se transforma em mercadoria e Deus, em
produto. Não há mais lugar para a santidade, o compromisso, o sacrifício, a
renúncia, a integridade, o amor ao próximo; ao contrário, o importante é a
produtividade, o desempenho, o faturamento, o profissionalismo, as
estratégias de marketing, ou seja, como arrecadar mais.
A cena que vem a seguir nos choca. Jesus age como se estivesse fora de si,
algo inusitado ao se tratar de Cristo, a quem associamos docilidade, mansidão
e paciência. O Templo foi profanado, o lugar santo e sagrado onde Deus é
cultuado se tornou um mercado, um negócio, um abrigo de comerciantes
desonestos. Muitas vezes associamos a ira de Deus com não religiosos,
porém aqui a sua fúria se manifesta contra aqueles que se consideram
escolhidos, mas enriquecem usando Seu nome.
A ira de Jesus nesse caso não é uma explosão de violência, mas uma
profunda indignação em face do mal. Nesse sentido, a raiva pode ser uma
virtude, que se manifesta diante de situações que profanam o sagrado, ou de
extrema maldade e perversidade. Muitas vezes perdemos a capacidade de nos
indignar e nos tornamos resignados. Não enfrentamos o mal e a nossa
complacência nos faz cúmplices. Jesus nos ensina como expressar a ira de
forma adequada.
Primeiro, Ele faz um chicote com cordas, que usa para expulsar os bois do
local. Em seguida, derruba as mesas dos cambistas com as mãos e ordena:
tirai estas pombas. É um uso adequado da força, agir energicamente, mas sem
violência, sem destruir. Ele não brande o chicote contra os cambistas, mas
contra os animais de grande porte. Ele não derruba as mesas com as gaiolas,
mas simplesmente ordena que sejam retiradas. Que o exemplo de Jesus nos
ensine a nos indignar contra o mal, expressar nossa ira e agir com coragem e
determinação contra a profanação e a injustiça, mas de forma adequada, não
violenta, sem machucar ninguém, sem destruir nada.
A religião e o dinheiro andam juntos ao longo da história. Muitas vezes se
confundem, e a pompa, a riqueza e a conquista do poder se tornam símbolos
do sagrado. Jesus nos esclarece quando diz: “Nenhum servo pode servir a
dois senhores; pois odiará um e amará outro, ou se dedicará a um e
desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e a Mamon” (Lc 16,13).
Ele dá um nome próprio ao dinheiro: Mamon, palavra em aramaico que
quer dizer “riqueza” ou “lucro”. Trata-se de uma potestade, de um poder que
compete com Deus e que desaparecerá com a restauração de todas as coisas
no fim dos tempos. Com essa afirmação, Jesus Cristo nos revela algo
excepcional, que o dinheiro pretende ser um poder divino. Assim, não se trata
apenas de um assunto material, moral ou econômico, mas também de algo
que apresenta uma dimensão espiritual.
Deus e Mamon se opõem. Como potestade, o dinheiro pode se assenhorear
do coração do homem, estabelecendo com ele uma relação de senhor e servo.
Engana-se, portanto, o homem que acha que possui o dinheiro; na realidade, é
o dinheiro que o possui.
Mamon compete com Deus porque acena com a perspectiva de alegria,
felicidade, segurança, realização, estabilidade, bem-estar, prosperidade, fama
e liberdade. Mas não entrega o que promete; ao contrário, nos faz infelizes,
insatisfeitos, endividados, egoístas, desconfiados, consumistas, sem amigos e
insensíveis ao drama humano da miséria e da pobreza. Uma potestade que
enfatiza o ter, impedindo-nos de viver com ideais elevados, valores éticos, de
ver a nobreza das causas, de sonhar com um mundo melhor e ser ativos na
promoção do bem comum.
No mundo tudo está à venda e tudo tem seu preço. O dinheiro promete
comprar tudo: a integridade e o caráter, a vida humana e, no mercado da fé,
até mesmo o bom relacionamento com Deus. Vivemos neste início de século
um momento de grande vazio existencial e ideológico. Há pouca esperança
neste mundo sem alternativas econômicas justas e sem perspectivas políticas
consistentes. Cenas traumáticas de ódio e violência nos noticiários fazem
crescer em nós os sentimentos de incerteza e insegurança.
A ganância desmedida, a acumulação, o lucro a qualquer custo, sem visão
social e ecológica, sem partilha, geram corrupção, injustiça e conflito, mas
também inveja e ódio entre irmãos, violência e guerra.
Nossa geração vive nesse quadro social caracterizado pelo vazio
existencial e espiritual, pela falência dos sonhos e utopias, pelas privações
materiais e pela ausência de parâmetros e valores éticos e morais na família,
no Estado, na ciência e nos negócios.
Atônitas com o vazio existencial do mundo contemporâneo, muitas
pessoas se voltam para a religião como uma resposta, um alívio, uma cura
para seus males. O problema é que também existem armadilhas nesse
caminho. Surge, então, um supermercado da fé com suas prateleiras repletas
de produtos de antigas e novas religiões ocidentais e orientais.
Vivemos um despertar religioso caracterizado pelas leis do mercado, pela
competição e pela esperteza. Ganha o seguidor fiel quem tem a melhor
estratégia de marketing, quem apresenta o melhor produto, quem presta o
melhor serviço. O resultado da religião de mercado é um crescimento
vertiginoso do número de fiéis, mas também uma crise de credibilidade e
profundidade espiritual sem precedentes daqueles que se dizem seguidores de
Jesus Cristo.
Em meio a uma sociedade materialista e consumista, Deus nos oferece
outra lógica, a da graça, da gratuidade, da generosidade, da simplicidade, da
libertação do dinheiro e do consumo, em que nosso valor está no ser e não no
fazer e no ter. E nos conduz às verdadeiras felicidade, segurança e liberdade,
que não estão no dinheiro, mas num coração que encontra em Deus uma
suficiência e um contentamento superiores a tudo que a vida oferece.
Ao expulsar os mercadores do Templo, Jesus expressa também o desejo de
expulsar o espírito mercador que está no nosso coração, que pauta nossas
ações com interesse e ganância. Percebemos que estamos presos na lógica de
Mamon quando nos tornamos egoístas, interesseiros, consumistas,
acumuladores, mas principalmente quando trocamos nossa integridade por
dinheiro. Nosso ser preso à preocupação com Mamon precisa de purificação.
É através da generosidade, da honestidade e da repartição das riquezas que
nos tornamos livres do poder do dinheiro.
Mas o que pensar da nossa relação com Deus? Terei eu um coração
mercador, cujo interesse Nele está ligado aos benefícios materiais a serem
auferidos?
Jesus diz: a casa de meu Pai não é um mercado, mas uma casa de oração.
A casa do Pai é o nosso próprio coração. Ele vem a nós e o acolhemos no
profundo da nossa alma, não para usá-lo em nosso benefício, mas para amá-
lo e com ele construir um relacionamento de afeto e intimidade.
Uma fé verdadeira gera homens e mulheres que têm a coragem de olhar
para dentro de seu coração e confessar suas mazelas, seus desejos de poder e
riqueza, para se tornar íntegros, desapegados do conforto e do supérfluo,
desinteressados nos seus relacionamentos, generosos e misericordiosos com
os pobres.
Os discípulos de Jesus Cristo sabem que o amor de Deus é o maior bem
que um homem ou uma mulher pode possuir.
O tanque de Betesda
Evangelho segundo São João 5,1-18
Passadas estas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu para Jerusalém. Ora, existe ali,
junto à Porta das Ovelhas, um tanque, chamado em hebraico Betesda, o qual tem cinco
pavilhões. Nestes jazia uma multidão de enfermos, coxos, paralíticos esperando que se movesse
a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o primeiro que entrava no
tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer doença que tivesse. Estava ali um homem
enfermo havia trinta e oito anos. Jesus, vendo-o deitado e sabendo que estava assim havia muito
tempo, perguntou-lhe: Queres ser curado? Respondeu-lhe o enfermo: Senhor, não tenho ninguém
que me ponha no tanque, quando a água é agitada; pois, enquanto eu vou, desce outro antes de
mim. Então lhe disse Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e anda. Imediatamente o homem se viu
curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. E aquele dia era sábado. Por isso disseram os judeus
ao que fora curado: Hoje é sábado e não te é licito carregar o leito. Ao que ele lhes respondeu: O
mesmo que me curou me disse: Toma o teu leito e anda. Perguntaram-lhe eles: Quem é o homem
que te disse: Toma o teu leito e anda? Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus
se havia retirado, por haver muita gente naquele lugar. Mais tarde, Jesus o encontrou no templo e
lhe disse: Olha que já estás curado, não peques mais para que não te suceda coisa pior. O homem
retirou-se e disse aos judeus que fora Jesus que o havia curado. E os judeus perseguiam Jesus,
porque fazia estas coisas no sábado. Mas ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho
também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o
sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.
Um sábado entre os pobres e os doentes
N E
ESSA PASSAGEM DOS Jesus está em Jerusalém para mais uma das festas
VANGELHOS,
judaicas, não sabemos qual. Certamente ele passa pelo majestoso templo
construído por Herodes. Não longe dali, descendo as escadarias pela Porta
das Ovelhas, está o tanque de Betesda, palavra do aramaico que quer dizer
“Casa da Misericórdia”. É para lá que Jesus se dirige.
O lugar, que era um reservatório, havia se convertido num centro de
milagres e estava sempre repleto de doentes à espera de um poder
sobrenatural que os curasse. O que só acontecia, segundo a tradição, aos que
se banhavam no momento que um anjo passava e agitava as águas.
O texto bíblico fala de cinco pavilhões repletos de cegos, paralíticos e
doentes desenganados. Podemos imaginar um lugar de muito sofrimento,
desagradável aos olhos e mal cheiroso. O sábado é o dia do descanso, dos
passeios, do lazer, para ser desfrutado prazerosamente. Para os judeus
piedosos da época, havia regras rígidas de como viver esse dia sagrado. Ao
sair do Templo em direção ao tanque de Betesda, Jesus contraria as regras
judaicas, porque vai usar esse dia para visitar e curar doentes miseráveis.
Vai em direção oposta ao que nós fazemos hoje. Preferimos gastar nosso
tempo livre no shopping ou com qualquer outro lazer. Ignoramos meninos
fumando crack, bêbados maltrapilhos, meninas se prostituindo e portadores
do . Confinamos os doentes miseráveis em pavilhões e guetos fora do
HIV
Maria e Lázaro, amigos íntimos de Jesus. A última vez que Ele estivera ali
fora apenas algumas semanas antes, quando, à pedido de Marta, havia
ressuscitado Lázaro. Desde então, mantivera-se distante de Jerusalém, pois
àquela altura havia uma ordem expressa das autoridades judaicas para
prendê-Lo.
A notícia da ressurreição de Lázaro havia repercutido em Jerusalém e a
cidade, que já era perigosa para Jesus, se tornou ainda mais ameaçadora. Na
semana da Páscoa, por conta da presença de grande número de peregrinos, os
sacerdotes temiam as consequências da presença de Jesus. Por isso,
estipularam uma recompensa para quem o denunciasse.
Quando Jesus chegou a Betânia, já havia um clima de tensão na casa de
Seus amigos. Eles, que amavam Jesus, sabiam do perigo que corria. Ao
acolhê-Lo, tentariam manter a visita em segredo, pois também se arriscavam
abrigando alguém procurado pelas autoridades.
É com esse pano de fundo que tem início o jantar. O momento é
significativo para Marta e Maria. Trata-se da primeira visita de Jesus depois
da ressurreição de Lázaro e, com o jantar, elas querem expressar a sua
gratidão.
Estamos diante de uma mesa com emoções ambivalentes: a alegria do
encontro, mas também a apreensão e o medo. Todos sabem da firme
disposição de Jesus de entrar em Jerusalém no dia seguinte e da grande
probabilidade de Ele ser preso.
Estão reunidos na casa de Simão, mas é Marta, a mais velha, quem serve a
ceia. Deveria ter criados, mas ela mesma o faz, discretamente. Porém Maria,
a irmã mais nova e menos convencional, que sempre se portou com grande
liberdade, agora fará algo que surpreenderá a todos.
Naquela cultura, ao receber hóspedes, era usual o anfitrião tomar
providências para que os pés do visitante fossem lavados. Depois de
caminhar um dia inteiro de sandálias rústicas, em estradas precárias e sob
forte calor, os pés estavam sujos e inchados. Geralmente era uma tarefa
confiada aos empregados. Na ausência deles, os convidados lavariam seus
próprios pés.
Quando havia um visitante ilustre, o anfitrião também lhe oferecia óleo,
pois a pele precisava ser hidratada naquela região de clima seco, desértico e
de sol escaldante.
Maria faz essas duas gentilezas a Jesus, mas com criatividade e
extravagância. Para ungir a cabeça de Jesus, ela utiliza um frasco de perfume
muito caro, provavelmente vindo do Himalaia, como era costume na época.
Com o dinheiro gasto nessa essência, uma família poderia viver um ano,
conforme nos conta Mateus (Mt 20,2). O próprio frasco era precioso, feito da
rocha de alabastro e confeccionado de forma a conservar o aroma, que só saía
gota a gota. Somente quebrando o frasco o perfume poderia ser derramado.
Não satisfeita em derramá-lo na cabeça de Jesus, Maria o utiliza para ungir-
Lhe também os pés. E em vez de oferecer-Lhe uma toalha, enxuga-os com os
próprios cabelos.
Maria expressa seu amor de forma extravagante, com afeto e generosidade.
Um amor que surge de um impulso do coração, sem censura, sem
racionalizações, sem restrições, sem medo do que os outros vão pensar. Ela
simplesmente está fazendo algo convencional, mas de maneira original.
Jesus já havia predito Sua morte várias vezes, mas os discípulos nunca
aceitaram a ideia. Só Maria compreende plenamente o que Ele está dizendo.
É capaz, na intimidade, de perceber a verdade. Sabe que Ele vai morrer e
aceita que é a vontade de Deus. Talvez só ela naquela sala tenha
compreendido o tamanho do mistério que se desenrola diante de todos eles.
Maria não pensa em demover Jesus de sua decisão de ir a Jerusalém. Não
questiona nem se opõe, simplesmente recebe Jesus e retribui Seu amor
através desse ato inusitado e profético, ungindo-O para a sepultura.
Com essa certeza no coração, Maria intui que é a última chance de
demonstrar eu amor por Jesus. Uma última ação, uma despedida. Por isso,
Jesus diz: ela praticou boa ação para comigo, ela fez o que pôde, antecipou-se
a ungir para a sepultura (Mc 14,8).
O que ela fez merece ser contado, pois penetra no cerne do Evangelho. Ela
reconhece que o caminho da cruz é o destino necessário do Cordeiro de Deus
para tirar o pecado do mundo, conforme anunciado por João Batista. É isso
que leva Jesus a fazer a afirmação tão marcante: onde for pregado este
evangelho também será contado o que ela fez (Mc 14,9).
Custa-nos entender a necessidade de Jesus morrer numa cruz. Essa dúvida
é o ponto de partida ao nos aproximarmos de Deus. A resposta da fé é aceitar
aquela misteriosa necessidade da obediência de Cristo até a morte, que Ele
cumpriu em nosso lugar. Quando isso acontece, compreendemos melhor a
intuição e o gesto de Maria.
A cruz é paradoxal e contraditória. Nela conhecemos Deus em sua
fraqueza. Enquanto muitos querem alcançá-Lo através da razão e da filosofia,
e outros exigem provas, sinais e milagres, Deus escolheu salvar o mundo pela
loucura da pregação da cruz (1Cor 1,18-31).
Um Deus insólito e desconcertante:
Deus é Deus
Porque é plenificado no seu esvaziamento.
Porque é vivificado na sua morte.
Porque é exaltado na sua humilhação
Porque é glorificado na sua fraqueza.
Maria então encontra Deus ali onde menos poderíamos encontrá-Lo, no
Seu esvaziamento, na Sua humilhação, na Sua fraqueza, na Sua morte. E, ao
encontrá-Lo, expressa todo o seu amor de mulher, com seus sentimentos,
suas emoções, seu corpo. É uma cena carregada de erotismo, uma mulher
com seu perfume e seus cabelos homenageando um homem. Jesus acolhe
esse gesto sensual e fala de morte e sepultura, reafirmando seu chamado e sua
missão.
Emoções conflitantes durante essa ceia: a alegria do encontro de amigos, o
pressentimento do perigo. O ato de Maria combina com o ambiente. Expressa
ao mesmo tempo alegria e tristeza. Ele é o Senhor de nossas alegrias e de
nossas tristezas. Perfumes e óleos expressam naquela cultura a alegria de uma
festividade. Mas também eram usados em ritos fúnebres para preparar o
corpo para o funeral.
Então um perfume encheu a casa. O ato de Maria transforma o ambiente,
literal e metaforicamente. Ela se derrama de forma extravagante e afetiva na
aceitação da morte de Cristo. Com seu perfume ela O unge para a sepultura,
mas também dissipa o pavor e o medo, enchendo a casa com o óleo da
alegria, do contentamento, da coragem. O odor da morte está presente, mas o
perfume do amor é maior. Porque Maria percebe o grande amor com que
Jesus, de bom grado, assume a Sua morte. O coração de Maria acolhe a
ambos, a morte e a ressurreição, a humilhação e a exaltação de Cristo. E o
perfume enche toda a casa.
Em Caná da Galileia, Maria, mãe de Jesus, havia revelado, por meio do
milagre da transformação da água em vinho, a hora do Seu ministério
público. Em Betânia, Maria revela, com seu perfume, a hora de Sua morte.
Os discípulos não conseguem entender a extravagância de Maria, acham
um desperdício. O perfume poderia ser vendido por trezentos denários, o
salário de um ano de um lavrador da época. O dinheiro poderia ser dado aos
pobres, conforme a piedade judaica e o ensino de Cristo. Ao jovem rico Ele
havia dito: “Vai, vende tudo e dá aos pobres”. Mas a respeito de Maria Ele
diz simplesmente: “Deixai-a; por que a molestais? Ela praticou boa ação para
comigo. Porque os pobres, sempre os tendes convosco e, quando quiserdes,
podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre me tendes”. Maria,
compreendendo que Jesus vai morrer, faz uma despedida, um réquiem. Jesus
está interessado no nosso amor, mais do que nas nossas boas ações; Ele ama e
deseja ser amado por nós. Não que Ele desmereça o trabalho com os pobres,
pelo contrário: ao aceitar a cruz Ele se solidariza profundamente com eles.
Destituído de bens, tratado com desprezo, excluído da sociedade, torturado,
abandonado para morrer, em Sua morte Jesus mergulha na situação da pessoa
mais miserável da Terra. Ele se identifica com o pobre, com o miserável, com
o sofredor.
Seguir o caminho da cruz significa solidariedade e boas obras. Não basta
só doar dinheiro como resultado de uma má consciência. A caridade tem de
ser fruto do nosso amor e gratidão a Cristo. É ser misericordioso, empático e
sensibilizado com o drama humano.
Ao amar Jesus, como Maria amou, nos encontraremos mais profundamente
mergulhados na identificação que Ele tem com os pobres.
Entrada triunfal em Jerusalém
Evangelho segundo São Mateus 21,4-11
Ora, isto aconteceu, para se cumprir o que foi dito por intermédio do profeta: Dizei à filha de
Sião: Eis aí te vem o teu Rei, humilde, montando em jumento, num jumentinho cria de animal de
carga. Indo os discípulos e tendo feito como Jesus lhes ordenara, trouxeram a jumenta e o
jumentinho. Então, pusera em cima deles suas vestes, e sobre elas Jesus montou. E a maior parte
da multidão estendeu as suas vestes pelo caminho, e outros cortavam ramos de árvores,
espalhando-os pela estrada. E as multidões, tanto as que o precediam como as que o seguiam,
clamavam: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas
maiores alturas! E, entrando ele em Jerusalém, toda a cidade se alvoroçou, e perguntavam: Quem
é este? E as multidões clamavam: Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia!
Um rei montado num jumentinho
T de Deus. Ora pensamos que é um juiz atento e severo, ora
EMOS IMAGENS EQUIVOCADAS
que é um titã poderoso pronto para intervir em nosso favor. Para alguns, é um
ser enigmático, desconhecido e distante; para outros, uma força impessoal
que podemos manipular. E assim construímos um ídolo, uma projeção
humana, fruto de nossas expectativas.
A palavra arrependimento que aparece na Bíblia é uma tradução do grego
metanoia. (meta = mudança, noia = mente). Exprime a ideia da mudança de
modelo mental. É um processo contínuo, ao longo de toda a vida, de
desconstruir imagens equivocadas a respeito de Deus. Assim tornamos
possível que Ele se revele a nós como um Deus criador de todas as coisas, um
Deus de amor e Pai de Jesus Cristo.
Israel vivia um clima conturbado nos dias de Jesus, ocupado pela força
militar romana, dominado por uma liderança espiritual e civil corrupta. Era
um reino mergulhado numa profunda crise espiritual, social, política e
econômica.
Em meio a tudo isso os judeus esperavam, conforme predito pelos profetas,
a vinda do Messias, um libertador que haveria de restaurar a força e a glória
perdidas de Israel e reinar para sempre com justiça e retidão.
Para os zelotes, esse quadro justificava a tomada do poder pela luta
armada. Os fariseus buscavam agradar os romanos e obter benefícios para si.
Já para os essênios, a opção era se retirar para o deserto para orar e aguardar
o Messias. Havia ainda o grupo dos saduceus, que constituíam a casta
sacerdotal e aristocrática, dominavam o templo e o sinédrio, eram rivais dos
fariseus, mas que também colaboravam com os romanos.
Em várias ocasiões, Jesus afirmou que Ele era o Messias prometido. Ele
falava de justiça e anunciava um Reino de paz. Demonstrava sua autoridade
messiânica ao curar enfermos, expulsar demônios, multiplicar pães, acalmar
tempestades e ressuscitar mortos.
Ao agir assim, Jesus Cristo criou uma enorme expectativa no povo de toda
a Galileia e também de Jerusalém. Mas não deu qualquer sinal de que
desejava liderar um movimento religioso ou político. Ao contrário, João
Batista proclamou que Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
E ele se disse servo de todos e afirmou que ia entregar a Sua vida para a
salvação do mundo.
Esse é o quadro da semana tensa em que Jesus retorna à Jerusalém para os
últimos dias de Sua vida. Jesus é visto como um insurgente e uma ameaça
para as lideranças religiosas. Elas temem que a situação fuja ao seu controle,
desencadeie uma intervenção armada romana e a perda de seus privilégios.
Por isso, os sacerdotes e os fariseus planejam silenciar Jesus. Mais que isso,
decidem prendê-Lo e matá-Lo.
Cerca de quinhentos anos antes, o profeta Zacarias anunciara a chegada do
Messias, montado num jumentinho, a Jerusalém: “Alegra-te muito, ó filha de
Sião; exulta, ó filha de Jerusalém; eis que o teu rei virá a ti, justo e Salvador,
pobre e montado sobre um jumento, sobre um asninho, filho de jumenta” (Zc
9,9). E Jesus Cristo faz exatamente isso.
É a semana da Páscoa, a grande festa judaica que celebra a libertação do
Egito. Peregrinos de todas as partes estão em Jerusalém, e uma multidão
aclama a chegada de Jesus montado no jumentinho: “Bendito o Reino do
nosso pai Davi! Hosana nas maiores alturas!”. Hosana quer dizer “salva”, é
portanto um grito de socorro dirigido ao Messias. Segundo os Evangelhos,
Jesus é de linhagem real e descendente do rei Davi.
Jesus, já bem conhecido pela fama de seus milagres e ensinamentos,
incluindo a ainda recente ressureição de Lázaro, é recebido em Jerusalém
como Rei, Sacerdote e Profeta prometido, na expectativa de que colocaria um
fim à dominação e à opressão romanas. E que restauraria a fé e o culto
trazendo tempos de paz, justiça e prosperidade para Israel. É tratado,
portanto, como um libertador triunfante que iria mudar radicalmente o status
quo e trazer a felicidade para todos.
Na sua entrada triunfal em Jerusalém, atualmente celebrada na liturgia cristã no Domingo de Ramos, Jesus desceu pelas encostas do monte das Oliveiras, passando pelo meio de
plantações de azeitonas e de um gigantesco cemitério a céu aberto que continuou a se expandir pelos séculos seguintes. Ali já foram identificados mais de 150 mil túmulos. Incluem
desde tumbas ancestrais, da época dos profetas do Antigo Testamento, até rabinos e judeus ricos do século XX. Entre as pessoas famosas recentemente sepultadas no monte das
Oliveiras está o primeiro-ministro Menachem Begin, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1978. Todas essas sepulturas se devem a uma antiga crença segundo a qual, no fim dos
tempos, o Messias descerá novamente pelo mesmo caminho, entrará em Jerusalém pela Porta Dourada e se dirigirá à esplanada do templo seguido primeiramente pelos homens e
mulheres que ali dormem à espera da ressurreição.
O Cenáculo é hoje um local turístico muito popular em Jerusalém. Está situado no andar superior de um edifício antigo na colina do monte Sião. Na época de Jesus, teria sido usado
como sinagoga e foi poupado da destruição pelas tropas do general Tito no ano 70 d.C. No andar térreo há uma tumba que alguns judeus dizem ser a do rei Davi. Por isso, ao entrar
nesse local, os visitantes são convidados a fazer silêncio e, no caso dos homens, usar a quipá judaica sobre a cabeça em sinal de respeito. O Ministério do Turismo de Israel, no
entanto, afirma que a tumba tem caráter meramente simbólico, uma vez que essa parte do edifício teria sido construída na Idade Média, portanto, muitos séculos após a morte de
Davi. Da mesma forma, não há nenhuma comprovação de que seja, de fato, o local da Última Ceia de Jesus com Seus discípulos.
desafiadora, que nos tira da zona de conforto, nos convida à reflexão e que
suscita uma resposta. À pergunta de Cristo não podemos responder de forma
impulsiva. Arriscaríamos que nossa resposta viesse contaminada pelo senso
comum ou pelo nosso próprio olhar equivocado.
Como definir uma pessoa? Haveria uma resposta única e definitiva?
Temos um limite de palavras e conhecemos parcialmente o conteúdo dos
dicionários. A nossa linguagem para descrever o mundo espiritual é ainda
mais limitada. Descrevemos o outro a partir de nossa própria ótica, que não é
neutra. É, portanto, míope e permeada de conceitos, preconceitos e
expectativas. Ou seja, não basta colocar um rótulo. Para conhecer e definir
alguém há que se aguardar paciente e silenciosamente que o outro se revele,
se exponha, num processo lento e gradual. Só assim podemos ser visitados
pela singularidade e unicidade do outro que se revela. Só então podemos
descrever essa pessoa, ainda que de forma inconclusiva, a partir de um
conhecimento baseado no convívio e na amizade.
Dada à visibilidade e à importância histórica de Jesus de Nazaré, a
pergunta que Ele faz aos discípulos é dirigida a toda a humanidade. Quem é
Jesus Cristo?
Todos os livros do mundo não conseguiriam defini-lo. São diversas as
respostas históricas, teológicas e filosóficas ao longo de 2 mil anos, mas
ninguém tem o monopólio dessa verdade. Como somos seres inteligentes e
racionais, podemos começar nos debruçando sobre o Livro, as Escrituras que
nos contam sobre Ele. A fé cristã pode verificar a autenticidade histórica,
geográfica, arqueológica, e aceitar seu testemunho como verdadeiro.
Ainda assim, algo nos escapa. A revelação espiritual não está sujeita aos
nossos pressupostos. Ela quebra paradigmas e embaralha nossas certezas. A
verdade espiritual nos surpreende e, quando a desvendamos, faz arder no
nosso coração uma chama que desconhecemos. Ela toca regiões profundas e
adormecidas da nossa alma e desperta virtudes essenciais para a vida, como a
fé, a esperança e o amor.
Assim, vamos conhecendo Jesus Cristo pelo caminho. Aprendemos com
Ele, e, apesar de já sabermos alguma coisa, nessa jornada sempre
conviveremos com dúvidas e questões mal resolvidas. A fé é a experiência de
uma peregrinação que se desdobra em diferentes paisagens e realidades ao
longo da vida, sem volta, sem nunca chegar, um caminho com Cristo até
Cristo.
O caminho de fé começa com uma confissão humilde: eu não sei muito
bem quem é Jesus Cristo. Seguido por um pedido: eu gostaria de conhecê-Lo
e por isso quero ter ouvidos atentos e abertos para que Ele se revele. E
sabendo de antemão que poderei ouvi-Lo todos os dias da minha vida sem
nunca ter uma definição completa e exclusiva.
Devemos ouvir com o coração aberto, progressivamente, dispostos a
aceitar encontros, desencontros e reencontros, com momentos de êxtase
espiritual seguidos de dúvidas de fé e crises existenciais, sem nunca desistir.
Caminhando ao lado desse amigo que é Jesus Cristo, podemos compreender e
aceitar Seu amor por nós — um amor infinito, irrestrito, incondicional,
imerecido e irretribuível.
Começamos a conhecer alguém pela soma total de suas experiências de
vida, por sua biografia, por seus atos e suas palavras. Felizmente podemos ter
os Evangelhos como ponto de partida para essa sublime aventura de perceber
quem é Jesus Cristo.
Ainda que resumidamente, olhemos para Sua vida, Sua morte e Sua
ressurreição.
Teremos dificuldades de acolher essa revelação somente com a razão. A
biografia de Cristo se apoia em três fatos inverossímeis, difíceis de acreditar.
Primeiro: Ele nasceu de uma virgem que nunca teve contato com um homem.
Poderia um óvulo feminino ser fecundado sem um espermatozoide
masculino? Segundo: nasceu em Israel, periferia do Império Romano, e na
Galileia, periferia de Israel; filho de um carpinteiro, se dizia Filho de Deus, o
Messias Prometido, Deus encarnado. Terceiro: crucificado e morto,
ressuscitou depois de três dias no túmulo, conversou e comeu com Seus
amigos e, em seguida, foi tomado por uma nuvem e ascendeu aos céus. Como
acreditar em coisas tão extraordinárias somente à luz da razão?
O secularismo, de modo geral, tem sido condescendente com Jesus Cristo.
De um lado, a maior parte dos pensadores, historiadores e filósofos não O
condena. Ao contrário, O vê como um modelo de integridade, um mestre, um
vulto importante da história. De outro, novas e antigas religiões não cristãs,
apesar de respeitarem Jesus Cristo, negam a possibilidade de um nascimento
virginal, suas próprias afirmações de que era Deus, bem como o testemunho
de Seus discípulos de que Ele ressuscitou dos mortos e ascendeu aos céus. A
maioria dessas religiões afirma que Jesus Cristo foi um ser iluminado, um
profeta, um mestre espiritual, alguém que atingiu um estágio elevado de
purificação, enfim, um bom homem.
Mas será que poderíamos, de fato, sendo honestos e usando apenas
argumentos racionais, dizer que Ele foi um bom homem? Por esse parâmetro,
provavelmente faríamos exatamente o contrário: a partir de suas declarações
e de sua biografia autorizada, diríamos que foi um farsante ou louco. Um
farsante, se Ele mentiu acerca de sua origem divina. Um louco, se não sabia
que estava mentindo e vivia um surto psicótico. Portanto, as hipóteses de que
Jesus foi apenas um profeta ou um homem bom, como defendem certas
religiões e correntes de pensamento secular, não se coadunam com Suas
próprias declarações a respeito de Si mesmo.
Uma vez que a história e a identidade de Jesus Cristo não se sustentam por
argumentos meramente racionais, só nos resta como alternativa — caso Dele
queiramos nos aproximar — render-nos a Ele e reconhecer que é o Filho de
Deus, que nasceu da Virgem Maria, morreu no Calvário para nos perdoar e
nos dar a vida eterna, em seguida ressuscitou e subiu aos céus, e está agora
assentado no trono do Universo.
Ao olharmos para a continuação dessa história, veremos os discípulos
perdidos e amedrontados no episódio da crucificação. Logo depois, porém,
estarão saindo pelo mundo cheios de fervor e coragem, anunciando que Jesus
Cristo é o Deus vivo encarnado, que morreu na cruz pelos nossos pecados e
ressuscitou ao terceiro dia. Como é possível uma transformação tão radical e
profunda, em tão pouco tempo?
Essa mensagem só chegou até nós por conta do sangue dos cristãos da
primeira hora. Pois sabemos que a base do Império Romano era o culto a um
imperador revestido de autoridade divina. Ora, ao recusar o culto a césar, os
cristãos foram vistos como grande ameaça ao império. O resultado foi uma
perseguição implacável para aniquilar a propagação dessa nova doutrina.
Aqueles mesmos discípulos enfrentaram tribunais e sentenças de morte e
não abriram mão de suas convicções. Eles sabiam a enorme diferença entre
Jesus Cristo e o imperador de Roma. Só há um Senhor, Jesus Cristo, a Ele
toda glória e todo poder.
Como poderiam Seus discípulos, gente simples, com Cristo morto e
enterrado, ser capazes de viajar pelo mundo, arriscar a vida e enfrentar o
martírio? Se fugiram, negaram e se dispersaram quando Ele morreu, como
poderiam agora proclamar que é o Senhor do mundo inteiro?
Parece evidente que, se eles não tivessem visto Cristo ressurrecto, não
teriam fé, força e coragem para assumir tamanho risco.
Fica esta pergunta para nós: Afinal, quem é Jesus Cristo?
Pedro conviveu com Cristo. Ele sabia de todas as circunstâncias de Seu
nascimento, desde as predições dos profetas do Antigo Testamento até o
anúncio do anjo a Maria. Do parto num estábulo, do cocho servindo de berço,
dos anjos cantando nos céus e dos pastores chegando. Da fuga para o Egito
quando Herodes decretou a morte das crianças de até três anos. De Sua vida
familiar e anônima em Nazaré. Esteve com Ele nas bodas de Caná, na
multiplicação dos pães, no monte da transfiguração, na ressurreição de
Lázaro. Ele ouviu Jesus Cristo dizer: “Tudo que ouvi de meu Pai lhes dei a
conhecer”, e ainda: “Eu e o Pai somos um”.
Pedro então responde à pergunta de Jesus, dizendo: “Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo”.
E Jesus acrescenta: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi
carne e sangue que to revelou, mas meu Pai que está nos céus”.
Conhecemos Cristo à medida que vamos respondendo à Sua indagação e
reconhecendo Sua transcendência. Quando isso acontece, sabemos que a
resposta surgida no profundo de nossa alma é fruto não de uma conclusão
humana, mas de uma revelação divina, misteriosa, surpreendente e
desconcertante. E somos tomados subitamente por um amor infinito, uma
experiência de fé que toca nossa mente, nossas emoções e nosso corpo,
impossível de ser descrita ou explicada. Nessa experiência, nossa
humanidade finita, ambivalente e precária é visitada por um Deus pessoal e
amoroso que nos enche de fé, esperança e amor.
Então, o nascimento virginal, as afirmações de que Ele é Deus, a morte
para remissão de nossos pecados e a ressurreição deixam de ser indagações a
serem respondidas racionalmente e se tornam verdades recebidas de joelhos
diante da Beleza e da Majestade de Deus.
Certamente o caminho do peregrino é cercado de dúvidas. Quando Jesus é
preso e levado ao Sinédrio, o sumo sacerdote lhe pergunta: “Eu te conjuro
pelo Deus vivo que nos diga se tu és o Cristo, o Filho do Deus”. Jesus
respondeu: “Tu o disseste, entretanto eu vos declaro que desde agora vereis o
Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as
nuvens do céu”.
O Filho de Deus e o Filho do Homem são a mesma pessoa. Em Jesus
Cristo, o divino e o humano se encontram, duas naturezas indivisíveis. No
ano de 325, em meio a muitas controvérsias sobre a identidade de Jesus, os
principais líderes da Igreja nascente se reuniram em Niceia e responderam à
pergunta que Jesus havia feito a Pedro através do Credo Apostólico, que
desde então se tornou normativo para todas as Igrejas cristãs: oriental,
romana e reformada. Cito a primeira parte concernente à identidade de Cristo:
Creio em um só Deus, Pai onipotente, Criador do céu e da terra,
de todas as coisas, visíveis e invisíveis.
E em um só Senhor, Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus,
nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus,
Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus,
nascido, não criado, de uma só substância com o Pai,
por quem todas as coisas foram feitas;
o qual por nós homens e pela nossa salvação desceu do céu e se fez carne
pelo Espírito Santo na Virgem Maria e se fez homem,
e foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado,
e ao terceiro dia ressuscitou, segundo as Escrituras,
e subiu ao céu e está sentado à direita do Pai,
e virá novamente com glória para julgar os vivos e os mortos,
e o Seu reino não terá fim.
O apóstolo Paulo nos fala de três virtudes cristãs, também chamadas de
virtudes teologais: a fé, a esperança e o amor. São as virtudes cultivadas por
aqueles que creem em Jesus Cristo.
A fé nos conduz a uma confiança irrestrita no Senhor Altíssimo e Criador
de todas as coisas. Deus não é mais um ser estranho ou enigmático. Na face
de Cristo vemos como Deus é e como o homem deveria ser. Percebemos
então que Deus é amor, perdemos o medo e nos entregamos a Ele, para viver
Nele e para Ele.
A esperança é uma convicção profunda, vibrante e acalentadora de que
tudo vai acabar bem. O mal não é definitivo. Em Cristo, vemos o triunfo do
amor e do bem sobre a injustiça e a maldade. A morte não é o fim de tudo,
pois Jesus ressuscitou e prometeu a vida eterna a todos que Nele cressem.
O amor que Cristo demonstra na Sua doação por nós e no perdão dos
nossos pecados é a cura da solidão humana, e nos salva do nosso próprio
egoísmo, à medida que tomamos consciência da nossa capacidade de fazer o
mal. Aprendemos com Ele a amar com doçura e humildade o nosso próximo,
ainda que esse amor seja às vezes imerecido e não retribuído.
Todo ser humano, consciente de sua existência incompleta, anseia pela
eternidade. Jesus Cristo é a resposta de Deus para a genuína busca humana de
estabelecer uma conexão com algo maior e capaz de nos garantir completude
e significado. No fundo de nosso coração mora uma saudade de
transcendência, de pertencimento e sentido existencial, uma saudade de Deus.
O mundo precisa conhecer Jesus Cristo para então viver com fé, esperança
e amor.
Epílogo: O caminho do peregrino
Epístola aos Filipenses 3,20-21
Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus
Cristo, o qual transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual o corpo de sua glória,
segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas.
E em me tornar um escritor.
U NUNCA PENSEI
Zahar, 2013.
L , Timothy. The Dead Sea Scrolls: A Very Short Introduction. Nova York:
IM
Letras, 2013.
Book, 2007.
from Earliest Time to 1700. Nova York: Oxford University Press, 2008.
Letras, 1993.
Table of Contents
Ilustração
Folha de rosto
Créditos
Dedicatória
PARTE I: História e geografia de uma promessa
Introdução
Grandes revelações, sofrimentos e esperanças
Mapa
Israel no tempo de Jesus
PARTE II: A Galileia
As águas e os desertos
Meditações sobre Jesus na Galileia
Maria, mãe de Jesus
Uma vida de entrega e obediência a Deus
O nascimento de Jesus Cristo
Evangelho segundo São Mateus 2,1-12
Os personagens ao redor do recém-nascido
A pesca maravilhosa
Poucas palavras e um chamado sublime
Jesus acalma uma tempestade
Uma presença silenciosa em meio às nossas crises
A cura do surdo e gago
A restauração pela palavra e pela intimidade
O bom samaritano
A arte de ensinar por parábolas
PARTE III: Jerusalém
O templo no coração da cidade
Meditações sobre Jesus em Jerusalém
A expulsão dos vendilhões do templo
Um confronto com o mercado da fé
O tanque de Betesda
Um sábado entre os pobres e os doentes
Na festa dos Tabernáculos
Uma fonte eterna jorrando em nosso coração
Maria de Betânia
O amor criativo de uma mulher
Entrada triunfal em Jerusalém
Um rei montado num jumentinho
O grande mandamento
A primazia do amor
Com Tomé no Cenáculo
Um homem que tem dúvidas
No caminho de Emaús
Ele nos encontra pelas estradas da vida
Quem é Jesus Cristo?
Evangelho segundo São João 11,25
A pergunta que pede uma resposta
Epílogo: O caminho do peregrino
Epístola aos Filipenses 3,20-21
Agradecimentos