Souzalima Pqaindaestudarelites
Souzalima Pqaindaestudarelites
Souzalima Pqaindaestudarelites
1 Antonio Carlos de Souza Lima agradece a Caio Gonçalves Dias as profícuas dis-
cussões durante o curso Antropologia do Poder – Antropologia, governamentali-
zação do Estado e Colonialismos, ministrado por ambos no PPGAS/Museu Nacio-
nal-UFRJ no primeiro semestre de 2019, que recordaram e informaram muitas de
nossas reflexões neste texto. Aqui usaremos itálicos para categorias nativas, ter-
mos em língua estrangeira e títulos de obras. Entre aspas estarão termos cujo sen-
tido queremos relativizar, ou cujo uso tem sentido irônico. Este texto se remete às
pesquisas geradas por meio de Bolsa Cientistas do Nosso Estado, para o período de
2014-2017 (processo n. E-26/201.172/2014) e para o período 2019-2021 (processo
E-26/202.652/2019), e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico, através de bolsa de produtividade em pesquisa (nível IB), no período
2016-2020 (processo n. 302706/2015-1) para este autor.
2 A pesquisa que fundamenta a contribuição desta autora a este texto recebeu
apoio do CNPq na forma de bolsa de produtividade (processo 307156/2017-6).
“novo” dos estudos da política em sociedades contemporâneas de
larga escala (ou de coletividades com elas entretecidas), afirmando
uma certa descontinuidade em relação aos estudos sobre a política
em Antropologia, outros enfatizando as continuidades, ainda que
não categoricamente.3
Esforços importantes, como os enfeixados em torno do Núcleo
de Antropologia da Política (NuAP), parte dos quais documentada
numa coleção de livros disponível on-line, são analisados e apresen-
tados a um público estrangeiro por dois de seus integrantes natos
(Bezerra & Comerford, 2013), numa releitura importante dos tra-
balhos realizados por este Núcleo.4 O Instituto Nacional de Estudos
Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) reúne hoje um
elenco importante de pesquisadores que dialogam há décadas, pri-
mordialmente em torno dos estudos sobre o direito, sobre a segu-
rança pública ou a burocracia (jurídica sobretudo) governamental,
com extensa produção sobre tópicos extremamente atuais. Teixeira
e Souza Lima (2010) já sinalizaram o quanto esses esforços dirigidos à
dispersão fenomênica que se reúne sob o termo Estado são devedores
3 Ver Bevilaqua e Leirner (2000); Miranda (2005); Teixeira e Souza Lima (2010).
4 “O Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), fundado em 1997, tem sua sede
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional, e reúne
pesquisadores de várias instituições. Seu objetivo é examinar a política vivida,
dando ênfase à etnografia e, portanto, aos aspectos do tecido social em sua totali-
dade. Esta perspectiva resultou de uma implosão etnográfica das categorias do senso
comum, inclusive acadêmico, que distingue domínios estanques, como parentesco,
família, política, religião, território, justiça, burocracia. A publicação de 33 livros
(ver neste site para download) tornou clara a percepção de que a própria ‘política’
era uma categoria sempre sob escrutínio, mesmo quando explicitamente definida
para pesquisa e análise. Tal orientação pautou uma multiplicidade de estudos sobre
os mais variados temas, incluindo pesquisas sobre eleições, comícios, marchas e
movimentos sociais, festas da política, violência e crimes por encomenda, direitos,
perda de mandato de congressistas, políticas públicas, monografias sobre a vida em
pequenos municípios e cidades periféricas, documentos e identificação cívica – a
maioria resultado da análise de eventos, situações específicas, dramas, rituais, casos
críticos. Este resultado da opção etnográfica do projeto em torno do qual original-
mente se articulou o NuAP tem permitido revitalizar a perspectiva teórica primeira
e básica da antropologia – a de que a procura da alteridade reposiciona, quando
não implode, as categorias classificatórias paralisantes a que aderimos no mundo
ocidental, produzindo mais dúvidas e originando novos e ricos questionamentos”.
Disponível em http://nuap.etc.br/. Acesso em 25/09/2019.
5 Os trabalhos de Mariza Corrêa (1988, 1995, 2013, dentre outros) são importan-
tes pontos de partida para estudos que, pelo ângulo da institucionalização, tratem
etnograficamente desta questão, mas as informações mais importantes estão em
Trajano Filho e Ribeiro (2004); e em Simião e Feldman-Bianco (2018). Há alguma
produção em teses e dissertações, mas também falta muita pesquisa etnográfica
sobre o sistema de fomento à ciência, tecnologia e educação superior. Ver também
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 435
Nossa intenção aqui não é a de fazer um balanço de 2010 até o
presente, cobrindo assim o intervalo de tempo decorrido do texto
de Teixeira e Souza Lima (2010), no qual proliferaram os trabalhos
não apenas sobre o funcionamento da “vida democrática” a partir
da retomada das eleições presidenciais, mas também – diríamos que
sobretudo – da análise das ações governamentais voltadas para a
efetivação dos direitos políticos, econômicos e sociais reconhecidos
pela Carta Constitucional de 1988. Os textos aqui coligidos são exce-
lentes exemplos da potência do muito que se fez em Antropologia
no sentido de acompanhar e analisar as formas pelas quais se geriu e
gerenciou (para recuperar a expressão de Souza Lima [2002] para os
mútuos processos de construção de coletivos e formas de gestão do
social) a diferença, na descrição minuciosa a partir da visada etno-
gráfica sobre documentos, eventos, rituais e situações etnográficas.
Como nos sinaliza a introdução desta coletânea, as referências
às obras de Michel Foucault, Pierre Bourdieu e a um texto seminal
(mas de difícil metabolização) de Philip Abrams (1988) avultam, e
contribuem para, à luz do melhor investimento etnográfico, trazer
os contornos de como em variadas áreas da vida social brasileira, em
seu cotidiano mesmo, as tecnologias neoliberais de governo foram
se instalando, ao mesmo tempo e em consonância com o que pare-
cia ser uma crescente ampliação da esfera pública, de construção de
uma democracia participativa no país. De resto, esses movimen-
tos não se deram apenas na escala nacional e só poderão ser mais
bem compreendidos se confrontados com o panorama da América
Latina, com o das Américas (e da hegemonia norte-americana em
tensa relação com a ascensão chinesa), dos ditos países emergen-
tes (os outros integrantes dos BRICs) e, obviamente, com os movi-
mentos das organizações do sistema multilateral da Organização das
Nações Unidas, assim como de sua “contraparte” financeira, com a
galáxia de instituições articulada ao Fundo Monetário Internacio-
nal e ao Banco Mundial, cujas conexões no Brasil mereceriam ser
remapeadas. E, de certo, o uso polissêmico dos termos neoliberal/
Almeida, A.W. B. (2018), e Souza Lima; Beltrão; Lobo; Castilho; Lacerda e Osorio
(2018). Ver ainda Peirano (1991, 1992, 1999).
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 437
pesquisas, direcionadas ao que alguns têm chamado de backlash
(sendo simplistas, um retrocesso ou reação após um momento de
grande avanço em especial no plano do reconhecimento de direitos),
particularmente quando referidos aos movimentos sociais também
chamados de neoconservadores, em que velhos valores surgem
mobilizados sob condições sociais em larga medida novas, que pro-
curam pautar moralmente a vida pública no momento brasileiro
presente. A imagem do retrocesso nos parece tímida diante das ver-
dadeiras e ostensivas declarações de guerra aberta a costumes, prá-
ticas, direitos fundamentais da pessoa humana, assim como diante
das diversas ações violentas postas em curso de modo desabrido na
presente conjuntura.
Aceitemos ou não a tese do backlash, concordemos ou não com
a aposição do prefixo “neo” ao “conservadorismo” dos costumes,
das relações de gênero etc. na vida brasileira, estamos nos deslo-
cando no tempo e fazendo recurso a um passado que não surge aqui
estudado. Se reconhecemos a necessidade fundamental de compa-
rar os tempos atuais a outras conjunturas, ou seja, de considerar a
historicidade dos processos que formam este momento particular-
mente tenso e obscuro da vida brasileira, então devemos mergulhar
na perspectiva de uma antropologia histórica que recorra a diferen-
tes movimentos analíticos e fontes diversas e dialogue com outras
perspectivas disciplinares para além da antropologia e da démarche
etnográfica baseada na observação participante.
Pensamos assim no que poderia ser uma fecunda releitura da
produção antropológica sobre diversos temas que espelham os efei-
tos nocivos do desenvolvimentismo autoritário, tal como surgem
registrados nos estudos produzidos sobre temas como a coloniza-
ção induzida, remoções de favelas, o contato interétnico entre povos
indígenas e atores governamentais e não governamentais etc. Isto
deveria ser feito com um olhar simultaneamente lançado sobre as
teorias, os métodos e as relações estabelecidas na pesquisa entre
antropólogos e seus interlocutores, pois, num certo plano, uma
antropologia feita sobre os fenômenos qualificados pelo termo esta-
tal deve comportar a necessária autorreflexividade como parte de
seus procedimentos. A produção sociológica e da ciência política
precisaria ser igualmente considerada, assim como seria possível e
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 439
ções e instituições. Pensar nos efeitos de poder da introdução de tec-
nologias de governança neoliberal, ou descrever certos fenômenos
sob um recorte eminentemente etnográfico e baseado numa abor-
dagem sincrônica, ou na vivência do presente e no ensaísmo nela
baseado, ganharia muito em perspectiva e substância – e na explica-
ção da durabilidade de certos padrões relacionais – se alguns outros
movimentos se somassem a estes.12 Julgamos que uma abordagem
sociogenética, mesmo aquela voltada, sobretudo, para alimentar
o horizonte reflexivo dos pesquisadores, de modo a perceber lap-
sos e recorrências infundadas em nossa produção científica no largo
espectro da história e das ciências sociais, contribuiria para que
conectássemos estas perspectivas a processos de longo prazo, sedi-
mentados e repetitivos, de modo que nos surpreendêssemos menos,
por exemplo, com os inúmeros recrudescimentos de episódios
autoritários, e dimensionássemos melhor sobre que terreno histó-
rico poderiam medrar as práticas de uma democracia participativa.
Assim, além de nos alertar para a lábil mutabilidade do tempo pre-
sente (algo sempre de difícil definição), e sua vinculação com possí-
veis futuros, conseguiríamos focar com maior facilidade naquilo que
parece se repetir, mas de certo não da mesma maneira, na vida social
brasileira.
Tendo isto em mente, olhemos o cenário mais recente no qual
alguns desses trabalhos foram realizados, fonte de angústias e ques-
tões às quais antropólogos e outros pesquisadores das Humanidades
têm buscado responder. Para pensá-lo, a literatura calcada nos estu-
dos sobre Europa (em especial a focada na Inglaterra e na França) e
Estados Unidos pode ser fonte interessante, mas é de certo bastante
limitada. Sem dúvida, teríamos muito a ganhar conhecendo melhor
a história portuguesa, ou a ibérica de modo geral. Da mesma forma,
pensando nas dimensões comparativas, o trabalho de diversos cole-
gas (brasileiros ou não) sobre as formas de poder em outros contex-
tos pós-coloniais, como os africanos, caribenhos, canadense, aus-
traliano ou asiático(s) podem ser fontes sugestivas.
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 441
com guinadas fundamentais, constituindo-se espaços de conflitos,
ameaças, violência simbólica intensificada.13
Pensando para além dos contextos urbanos, o (neo?)desenvolvi-
mentismo que já despontava nos anos de governos petistas exacer-
bara os ataques aos povos indígenas e, segundo dados do Conselho
Indigenista Missionário, fizera com que os índices de violência e o
número de assassinatos de indígenas duplicassem nos anos de 2003-
2005, e não cessasse de crescer daí por diante.14 Juntamente com os
ataques de milícias e pistoleiros rurais contratados por interesses
econômicos de cada região, houve também a mobilização da Polí-
cia Federal e da Força Nacional contra os coletivos que procuravam
fazer valer os direitos que estão consignados na própria legislação
brasileira ou de que o Brasil é signatário. Tal foi o caso da ação gover-
namental contra os Munduruku e outros povos que se opuseram à
hidrelétrica de Belo Monte (aqui sob a análise de dois dos textos desta
coletânea) e o licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapa-
jós.15 Situações de extrema violência com direito à presença de forças
coercitivas estatais também foram e continuam sendo frequentes
13 Há muito dito já sobre 2013 e, como frisamos, ainda há muito por dizer. Mas
vale destacar as análises de Santos (2013); Santos e Szwako (2016); Facchini e Sívori
(2017); Sant’Ana (2017). Os comitês e comissões da Associação Brasileira de Antro-
pologia produziram um balanço no final de 2015 sobre diversos temas presentes na
vida pública brasileira nos quadros pré-processo de impeachment intitulado 2015 –
Balanços parciais a partir de perspectivas antropológicas. Disponível em: http://
www.aba.abant.org.br/administrator/informativo/informativo.php?inf=00115.
Acesso em 25/10/2019.
14 Ver https://pib.socioambiental.org/es/Not%C3%ADcias?id=41613. Para
os relatórios sobre a violência contra os povos indígenas, ver https://cimi.org.
br/2019/09/a-maior-violencia-contra-os-povos-indigenas-e-a-apropriacao-e-
-destruicao-de-seus-territorios-aponta-relatorio-do-cimi/ e https://cimi.org.
br/observatorio-da-violencia/edicoes-anteriores/. Acesso em 25/09/2019.
15 Sobre as questões em torno de Belo Monte, ver Pacheco de Oliveira e Cohn
(2014); Magalhães e Carneiro da Cunha (2017). A cobertura de imprensa mais subs-
tantiva está em sites da imprensa alternativa, como, por exemplo, em: https://
www.brasildefato.com.br/node/11236/ (2012); https://www.cptnacional.org.
br/multimidia/12-noticias/conflitos/1518-nota-publica-governo-federal-mon-
ta-nova-operacao-de-guerra-contra-o-povo-munduruku (2013); https://apu-
blica.org/2014/12/batalha-pela-fronteira-munduruku/ (2014); https://amazonia.
org.br/2016/05/carta-do-movimento-xingu-vivo-a-nacao-munduruku/ (2016);
https://amazonia.org.br/2016/05/carta-do-movimento-xingu-vivo-a-nacao-
-munduruku/ (2016). Acesso em 25/09/2019.
16 Ver http://caci.cimi.org.br/#!/dossie/968/?loc=-20.612219573881028,-56.568603515625,6
(Acesso em 25/09/2019) para um minucioso quadro da situação do MS, onde estão
os mais elevados números de assassinatos de indígenas no Brasil; ver igualmente o
dossiê “Fighting for Indigenous Lands in Modern Brazil. The reframing of cultures
and identities”. Vibrant, 15 (3), organizado por João Pacheco de Oliveira (2018); Ver
também Amado (2019) e Alarcon (2019).
17 Ver https://revistaforum.com.br/noticias/o-toque-do-maraca/; https://jor-
nalggn.com.br/politicas-sociais/a-mobilizacao-pelos-guarani-kaiowa-nas-re-
des-sociais/, dentre muitos outros. Acesso em 25/09/2019.
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 443
humana sob a forma de direitos culturalmente diferenciados.18 E
atuar por omissão tem sido a regra em muitos casos.
Não surpreende, pois, saber que, segundo os dados publicados
no 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2018 houve
57.341 assassinatos no Brasil e o número de pessoas mortas pela
polícia chegou a 6.220 casos.19 Este número, considerado recorde,
significa que uma em cada 10 mortes violentas no país é causada
por policiais, representando um aumento de 47% desde 2016.
Ainda de acordo com a mesma fonte, a maior parte das vítimas é
negra (75,4%), estudou apenas até o ensino fundamental (81,5%) e
tem entre 18 e 29 anos (68,2%). A polícia mais letal está nos estados
do Rio de Janeiro e São Paulo, onde a instituição é responsável por
22,8% e 19,7% das mortes violentas, respectivamente. Se na favela
o Estado mata e as instituições seguem seu funcionamento normal,
as bombas e as balas de borracha lançadas contra manifestantes per-
dem relevância enquanto índice de ameaça contra o que se chama
de “Estado de Direito”, numa chave mais prescritiva e jurídica que
empírica e sociológica. A explícita fórmula “vamos atirar na cabe-
cinha”, enunciada em debate televisivo pelo candidato a governador
do Rio de Janeiro em 2018, reiterada em discurso e ação após sua
eleição, esgarça a ideia de Estado democrático de direito a ponto de
não podermos mais vislumbrar a diferença entre margem e centro
do poder estatal, para usar os termos de Das e Poole. Fica claro o
quanto “centro” e “margem” são parte da (re)construção cotidiana
da ideia de UM Estado, processo permanente e em disputa figurados
em narrativas encantatórias que para serem quebradas e ultrapas-
sadas precisam ser inseridas na história, ganhando nomes e rostos.
As práticas inconstitucionais toleradas de desrespeito aos Direitos
Fundamentais da Pessoa Humana se transformam em plataforma
de governo e propaganda política.
20 Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relato-
rios-analiticos/br/br. Acesso em 25/09/2019.
21 Ver em particular https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2019/09/relato-
rio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2018.pdf. Acesso em 25/09/2019.
22 Pensamos que é bom recordar que: “Em que pese o afã modernizador do
Segundo Império brasileiro, as elites mestiças governantes da República tinham
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 445
em presídios, que despertam pouca comoção, revelam os propó-
sitos punitivistas de um sistema penal baseado em vingança, gozo
baseado em castigo corporal e morte. O sociólogo Loïc Wacquant,
pautado sobretudo no caso dos Estados Unidos, argumenta que as
últimas décadas do século XX, marcadas pela ascensão do neolibe-
ralismo, assistiram à substituição do Estado de Bem-Estar Social
pelo Estado Penal. O Estado Penal, ao invés de redistribuir renda e
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 447
pode, assim, falar em um Estado de Bem-Estar Social no sentido
europeu, e o punitivismo é estruturante para a criação e a repro-
dução das desigualdades sociais duráveis em nossa república, com-
pondo-se no paradoxo que Roberto DaMatta enunciou sob a forma
dos dilemas entre igualdade e hierarquia na formação social brasi-
leira (DaMatta, 1979).
Assim, no Brasil, o tempo livre e autônomo dos de baixo nas
hierarquias sociais foi historicamente construído como ameaça à
ordem. Imediatamente após a lei de 13 de maio de 1888, a Câmara
dos Deputados iniciou um debate sobre a repressão da ociosidade.
Era consenso entre os deputados de que a Abolição poderia trazer
desordem e caos social. Educar os libertos para o trabalho era uma
maneira de evitar isto, promovendo a regeneração moral dos mais
pobres. O conceito de vadiagem foi elaborado como oposto à con-
cepção do trabalho dignificante. Após a proclamação da República,
em 1889, a questão permanece. O que fazer com os trabalhadores
urbanos, libertos e homens pobres livres (mestiços na sua grande
maioria), perambulando pela cidade, se juntando em rodas de batu-
ques e pernadas, jogando conversa fora em botequins e quiosques?
A modernização capitalista exigia que eles vendessem sua força de
trabalho e a manutenção da ordem burguesa dependia da regulação
de suas sociabilidades. Herdeiro dos debates parlamentares de 1888,
o Código Penal de 1890, em seu capítulo XIII, criminaliza “vadios e
capoeiras”. Na caracterização do vadio, o não trabalho não é o pro-
blema em si. O alvo é aquele que não trabalha e não tem meio de
subsistência. O castigo? Prisão, colônias penais e trabalhos forçados
(Chalhoub, 2012).
Esse arcabouço fez com que a tortura fosse exercida entre nós mais
como um objetivo do que um meio; o castigo físico e o extermí-
nio se transformassem em uma cena cotidiana exercida com certa
naturalidade pela polícia contra negros e pobres (Morais, 2019:
186).
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 449
O crescente acesso aos instrumentos de disputa política por parte
de pequenos segmentos sociais das classes subalternas, a capacidade
de organização política, ainda que bastante titubeante e por vezes res-
trita e transformada em uma participação pró-forma, retomada ou
construída desde o auge da ditadura militar, e institucionalizada por
numerosas políticas nos governos de Fernando Henrique Cardoso,
Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff (quando se constituiu
numa política de Estado estabelecida pelo Decreto nº 8.243, de 23 de
maio de 2014, que “Institui a Política Nacional de Participação Social
– PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e dá
outras providências”; e foi revogada pelo Decreto nº 9.759, de 11 de
abril de 2019, que “Extingue e estabelece diretrizes, regras e limita-
ções para colegiados da administração pública federal.”).24 O acesso
à educação pública, em especial o acesso ao ensino médio técnico e
superior por parte destes segmentos, incentivado por ações afirma-
tivas dirigidas a segmentos sociais menos favorecidos em matéria de
renda, de identificação étnica e racial, conquanto não tenha atin-
gido satisfatoriamente o nível da pós-graduação, é sem dúvida um
aspecto que reverberou intensamente no rumo que a vida política no
Brasil tomou após 2013.25
Nada há de tão surpreendente, pois, que a criminalização coti-
diana tenha se desdobrado na criminalização dos movimentos
sociais e de lideranças populares, demonstrando sua serventia para
administrar os efeitos de políticas concentradoras da terra, de renda
e pouco ou nada democráticas. No relatório Enemies of the State?
How governments and business silence land and environmental
defenders, publicado pela ONG Global Witness em julho de 2019, o
Brasil aparece no 4o lugar mundial em número total de assassinatos
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 451
dominantes, mas sempre presentes na vida das populações menos
privilegiadas em termos de poder, seja em cenário urbano ou rural.
Afinal, reiteramos, a verdadeira “franquia” do controle da coerção
física operada pelo Estado através do seu centro de poder, seja por
omissão ou ação intencional, não é uma novidade nem tampouco
foi inventada pelo regime militar. Podemos retroagir à história da
Guarda Nacional, ou ficar no horizonte que se desdobra desde a ins-
tituição do regime republicano. Assim, a transferência do controle
da exploração do trabalho indígena para seringalistas era evidente
nas chamadas delegacias do Serviço de Proteção aos Índios (Souza
Lima, 1995: 239-242), bem como, já nesse período inicial, se pre-
via uma “polícia indígena” e formas de punição aos indígenas tidos
como criminosos (Souza Lima, 1995: 194-197).
Alguns dos aspectos mais tenebrosos da ação indigenista repu-
blicana, trazidos à tona pelo chamado Relatório Figueiredo, que
trata dos crimes praticados por funcionários do SPI, também já
sob a ditadura militar, estão em continuidade com um passado de
atrocidades que precede a criação do Serviço, mas que se abrigou
mesmo sob o manto da proteção fraternal rondoniana, sacralizada
na formulação de Darcy Ribeiro do mote (teoricamente) enunciado
por Cândido Rondon para atuação em pacificações de tribos hostis:
“Morrer se preciso for; matar, nunca”.29
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 453
culados à Frente Parlamentar da Agropecuária na atual legislatura,
veremos que a hegemonia de uma fração de classe (de resto nem tão
unida quanto quer fazer parecer, em ampla concorrência entre si,
com perfis ideológicos flutuantes e histórias de acesso à propriedade
também distintas) pensar na ação das milícias rurais transforma-
das em firmas de segurança seria sem dúvida pauta de investigações
futuras.
No cenário urbano, a presença crescente de milícias nas gran-
des cidades tem sido estudada, bem como a atuação das polícias, e
vêm sendo objeto de trabalhos de diversas ordens, que chegam até os
cenários de militarização, como no caso do Rio de Janeiro e do ainda
pouco refletido na situação atual do estado de Roraima, hoje justifi-
cada pela “crise” gerada pela migração transfronteiriça de venezue-
lanos.32 E certas articulações tornam-se a cada dia mais evidentes.
Dentre elas, aquelas entre tráfico, milícia, polícias e igrejas evangé-
licas saltam aos olhos.33 Personagem sinistra dos porões da ditadura,
Claudio Guerra, protagonista do documentário Pastor Claudio, diri-
gido por Beth Formaggini (2017), funcionário estatal especializado
em assassinatos e desaparecimentos de corpos, é friamente sincero
ao falar sobre essa continuidade. As práticas que já aconteciam nas
delegacias foram ampliadas, aprofundadas e aprimoradas pelo apa-
relho repressivo montado durante a ditadura. E este aparelho não
foi desmontado e até mesmo se expandiu, tornando as violações de
direitos parte das práticas rotineiras, seguindo leis próprias e igno-
rando a Constituição promulgada em 1988. Claudio Guerra se tornou
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 455
grandes demonstrações da força política e cultural desse projeto de
poder.36
Aqui, como em outras manifestações públicas de segmentos hoje
à frente da política brasileira, a retórica extraída do arquivo imagi-
nário da guerra colonial de conquista vem plenamente à tona: há
inimigos a derrotar, povos a pacificar, territórios a ocupar, ímpios
a converter e absorver, uma “civilização” a se impor e edificar, pas-
toreando e assujeitando. Mais uma vez encontramos o padrão cons-
truído a partir do contato entre o invasor português e os povos indí-
genas das Américas, sem dúvida o paradigma do combate ao inimigo
interno que baliza as formas de ação coercitivas dos Estados pós-
-coloniais em especial da América Latina, sobretudo do Brasil.37 A
ditadura militar foi certamente, também aí, um ponto de inflexão
que mereceria maiores estudos e mais pesquisa histórico-antropo-
lógica, inclusive no que tange ao estímulo à verdadeira invasão de
povos indígenas por missões de seitas neopentecostais.38 As ideias de
guerra e pacificação (uma forma de guerra de conquista sublimada)
reatualizaram-se e ganharam o cotidiano nos anos recentes, eviden-
ciando pontes que demandam pesquisas mais aprofundadas.39
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 457
administrando a dimensão disciplinar de escolas em Goiás e, mesmo
que de modo indireto, influenciando a dimensão pedagógica, como
nos mostra Nicholas Castro nesta coletânea, denuncia o fascínio pela
disciplina militarizada para manter a ordem entre os “de baixo”. A
generalização das escolas militares representaria o fim de uma das
únicas instituições públicas estatais presente na vida cotidiana da
população mais pobre que não se apresenta como instrumento de
repressão, que é a escola pública civil e laica.43
Para a maioria da população, Estado – ou governo – é sinônimo
de violência, destrato e desassistência, controle predatório, expro-
priação. Se nos aprofundarmos na leitura, por exemplo, de Philip
Abrams (1988), mencionado em alguns artigos desta coletânea,
poderemos perguntar se a ideia de Estado como máscara, ou da per-
sona que se apresenta entre nós como aquela que confere unidade à
pluralidade de processos históricos e culturais, e de redes de agên-
cias e agentes muitas vezes em luta concorrencial, que se reúnem e
se unificam sob a linguagem comum do direito administrativo, não
está muito longe daquelas que em outros contextos nacionais – não
sem lutas, não sem disputas – produziram a coletivização da assis-
tência à saúde, à educação, à seguridade social.44 A máscara-Estado,
no caso brasileiro, é uma face de horror e um instrumento de ter-
ror. Podemos pensar que a ideia de Estado de exceção é entre nós a
regra, como no poema de Bertolt Brecht45 e nas reflexões de Walter
Benjamin sobre o conceito de História?46 Indagações a serem opor-
tunamente investigadas.
47 Para a ideia de efeitos de Estado, ver Trouillot (2003). Ver, dentre outros, o
dossiê “Mining, violence and resistance”. 2017. Organizado por Andréa Zhouri.
Vibrant, 14 (2). Disponível em http://www.vibrant.org.br/issues/lastest-issue-v-
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48 Dentre muitos outros, ver Seyferth (1994, 1997).
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 459
Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo
do que elas precisam ser protegidas. Estar protegido da violência
do Estado-nação é estar exposto à violência exercida pelo Estado-
-nação; assim, depender do Estado-nação para a proteção contra
a violência significa precisamente trocar uma violência potencial
por outra (Butler, 2018: 46-7).49
49 É sempre bom lembrar que Judith Butler é filósofa, e escreve deste ângulo,
ao falar de Estado – como um ente lógico, institucional, e não como o feixe fluido
de processos de gestão e governo e produção imagética mostrados na pesquisa da
Sociologia Política e Histórica, ou da Antropologia, revelado para uma ou para outra
pela via da Etnografia, o que aqui nos instiga e protege de reificações nominalistas e
tantalizantes.
50 Para uma visão mais completa de sua densa etnografia, ver Magalhães (2019).
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 461
rimos – os efeitos de unicidade e homogeneidade. Se lembrarmos
com Weber (1983: 175) que “[...] para a vida cotidiana, dominação
é primariamente administração”, veremos que a racionalização
burocrática garante essa complexidade e, ao mesmo tempo, possibi-
lita ações cuja responsabilidade não pode ser atribuída a um sujeito
individual singular, ainda que na prática, por vezes, sejam deci-
sões de redes específicas que acabam figurando o sujeito coletivo “O
Estado”. Nesse sentido, “O Estado” é, e não é, formado por pessoas,
mas para usar a imagem de Abrams (1988), é máscara que unifica
as ações de uma engrenagem própria e multifacetada que passa, por
metonímia, a materializar uma vontade coletiva, que é sempre de
alguns, mas se dispersa em práticas que não guardam necessaria-
mente uma relação de causalidade ou coerência entre si.
Se refletirmos nestes termos e nos concentrarmos na escalada
de eventos do momento brasileiro, parece-nos importante pensar
a partir do exemplo extremo do Terceiro Reich, como analisa Han-
nah Arendt com a noção de banalidade do mal. Ao cumprir ordens
em um “Estado criminoso”, Eichmann se considerava inimputá-
vel, pois, ainda que enviasse milhões de pessoas para os campos de
morte, seguia estritamente as regras enquanto funcionário público
sob o nazismo. Desse modo, o mal banal é produzido por indivíduos
comuns e não por monstros sádicos. É uma ação sem sujeito indivi-
dualizado que não seja “O Estado” (de exceção, nazista, criminoso,
totalitário, autoritário, como se queira qualificá-lo), coletiva, sus-
tentada por um aparato burocrático no qual o “massacre adminis-
trativo” é parte de uma rotina disciplinarizada (Arendt, 1999).53
Nestes termos, tanto o comportamento administrativo autoritá-
rio rotineiro, pautado por estratégias de assujeitamento e subordi-
nação na administração pública, identificado por Monique Floren-
cio, quanto a aparente contraface das boas práticas politicamente
assépticas, parte essencial do léxico corporativo neoliberal, e que se
apresentam como técnicas neutras de governo, estudadas por Maria
Gabriela Lugones e Lucia Tamagnini, podem ser compreendidos
como inseridos numa lógica burocrática capaz de definir políticas,
em última instância, de vida e de morte, como bem demonstrado
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 463
citada no texto de Roberta Cerri Reis que afirma: “Eu sou o IBAMA”,
num ato de indignação diante da burocracia que busca o assujeita-
mento dos povos ameaçados pelo progresso representado pela usina
hidrelétrica de Belo Monte. A afirmação indica, de certo modo, a
inutilidade da administração estatal, subvertendo a lógica da tutela.
Ainda sobre Belo Monte, o trabalho de Luiz Villaça aponta para outros
paradigmas de atuação estatal ao focar nos procuradores do Minis-
tério Público Federal agindo a favor dos povos indígenas, das comu-
nidades ribeirinhas, do meio ambiente e de movimentos sociais na
luta por direitos, evidenciando como “O Estado”, enquanto rede de
agências e agentes, é em si um nó de contradições. Os artigos, por-
tanto, nos sinalizam também como o uso da criatividade dentro da
burocracia, os múltiplos processos que fazem Estado no cotidiano
são reconfigurados permanentemente nas interações do dia a dia,
criando caminhos para uma indispensável garantia de direitos.
Assim, escandir as formas de ação que podem ser subsumi-
das à ideia de Estado nos demonstra que estas não são inexoráveis,
nem inescapáveis, tampouco permanentes e insuperáveis, mesmo
quando os horizontes de luta parecem carecer de melhor definição
e reinvenção. Ou seja – recuperando a referência de Teixeira, Lobo
e Abreu na introdução desta coletânea à ideia de Pierre Bourdieu de
que o Estado é uma espécie de metacapital – adquirir elementos para
a compreensão e a manipulação da gestão de suas vidas cotidianas
da qual amplas porções das coletividades brasileiras se viram sempre
apartadas pelos centros e as elites de poder governamental, e aces-
sar elementos necessários à sua ação cívica não são nem de longe
dados desprezíveis, e seu significado não pode ser confrontado com
um presente ou um futuro desejado, mas sim com o passado que de
fato podemos estudar e recuperar. Entender e desmontar a ideia de
Estado não quer dizer mais uma vez achar que só por ele e através
dele se pode transformar a realidade, mas é uma das formas de pur-
gar e romper com sua magia totalizante.
É importante lembrar que tal forma de tratamento analítico
dos feixes fenomênicos (ideias, práticas, agências e redes sociais
e territoriais entretecidas, repetimos) não pode ser descolada de
sua dimensão essencial de produção de assimetria. Nestes termos,
pensamos que ela decupa e permite melhor descrever, no plano
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 465
doras e presentes, até por mostrarem que nada disso está fora das
dinâmicas. A ideia da guerra como horizonte da ação política, e da
guerra de invasão e conquista como modalidade mais próxima das
relações de poder e dominação aparecem como chaves privilegiadas
no pensamento de Michel Foucault (sobretudo em Foucault, 2008a,
e em 2008b), e que a complexidade da dominação encompassa
relações de poder e estratégias de luta (Foucault, 1983). Na chave
marxista, mas na mesma direção, e em diálogo tanto com Gramsci
quanto com Michel Foucault, Poulantzas (1985: 13-53) propôs ultra-
passar a conjunção entre “repressão” e “doutrinação ideológica”,
para reconhecer que “[...] o Estado também age de maneira posi-
tiva, cria, transforma, realiza” (1985: 35), estando presente mesmo
antes de sua centralização sob a forma do Estado Nacional burguês
e indo para além das balizas ditas neoliberais. Ao focar na centra-
lidade das lutas, ou nos termos de Gramsci, na dimensão movediça
da hegemonia, e logo da luta entre classes, frações de classe, elites,
e mesmo entre agências e seus integrantes, Poulantzas afasta-se da
perspectiva estruturalista marxista, e restitui na percepção do devir
histórico a centralidade agônica do conflito e da luta política.
Se reunirmos tais propostas analíticas, e retomarmos os textos
que têm informado nossa produção sobre as políticas de governo no
Brasil, em especial nesta tentativa de enfrentar os efeitos da introdu-
ção de valores, ideias, práticas e tecnologias ditas neoliberais, apa-
rentemente invertendo a primazia que o vínculo com a administra-
ção pública manteve como forma de acesso a direitos ao longo do
século XX (a mencionada “estadania”), poderemos atribuir todas
essas questões, decisões e ações (ou omissões) políticas como ema-
nadas de um lugar institucional substantivo, “O Estado”? Cremos
que não; cremos que sim.
Vale retomar algumas das ideias de Timothy Mitchell (1999)
sobre o caráter construído e artificial da distinção entre Estado,
sociedade e economia (ou mercado), e do Estado como efeito de
“processos sociais mundanos”, passíveis de decomposição e descri-
ção etnográfica, como vimos nos textos da presente coletânea, não
por isso sendo menos real. Afinal, o tratamento cotidiano do Estado
como um ente específico e diferenciado da “sociedade” e da “econo-
mia” (/mercado) é constituinte do mundo contemporâneo, maté-
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 467
entenderem as dinâmicas de assujeitamento, submissão e insurgên-
cia. Rever repertórios de ação social no plano da vida diária é um
imperativo no momento.
Por outro lado, sim, a centralidade da máquina pública – “O
Estado” por excelência para o senso comum, ideia que imanta essa
materialidade organizacional – em detrimento das formas de arti-
culação social e participação democrática é de tal monta na vida
pública do Brasil que o controle das agências da administração
pública federal (sobretudo, mas não só) permite célere “desmonte”
de ações governamentais nos campos da proteção social, dos direi-
tos humanos e ambientais, da cultura, da saúde e educação públicas,
requerendo a ampliação do seu braço repressivo e censor. A con-
solidação desse “Estado” em negativo – ou a máscara no seu sen-
tido de produtora do terror – no que diz respeito a direitos necessita
de amplo investimento na produção de consenso. A destituição, na
prática, dos direitos indígenas (constitucionalmente previstos), por
meio da desidratação orçamentária e institucional de todas as ações
de governo destinadas ao seu reconhecimento, a militarização da
Fundação Nacional do Índio através daquela que opera hoje como a
principal “arma” contra os tarjados como inimigo interno – a Polícia
Federal – nos mostram o quanto o controle da máquina pública do
governo federal pode ser mesmo eficaz para destruir, mais que para
construir.
A profissionalização na criação e na disseminação de Fakenews,
as teorias conspiratórias que revivem o anticomunismo da Guerra
Fria, ao mesmo tempo em que desacreditam a racionalidade cien-
tífica ao defenderem o terraplanismo, a denúncia sobre “a mentira
do aquecimento global” e o perigo das vacinas, o conservadorismo
nos costumes propagado como discurso de ódio aos LGBTQIA+ são
exemplos disso. No entanto, para entender melhor e não atribuir
mais uma vez tudo à “mágica do Estado” (como luta por hegemonia,
ou como mera institucionalidade), comparando os resultados da
performatividade que o sustenta e dando-lhe uma substância inde-
vida, de modo a que nos aprisionemos num verdadeiro terrorismo
diariamente instilado por meios de comunicação de massa tradicio-
nais, por atos governamentais, por informações falsas ou verdadei-
ras nas redes sociais etc., precisamos entender que não há UM “des-
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 469
tendo a primazia e ditando os traços essenciais da nossa evolução
colonial. Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na
realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns
outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e
em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto.
É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e
sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele
comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasilei-
ras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as
atividades do país. Virá o branco europeu para especular, realizar
um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão de obra que
precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos,
articulados numa organização puramente produtora, industrial,
se constituirá a colônia brasileira. Este início, cujo caráter se man-
terá dominante através dos três séculos que vão até o momento
em que ora abordamos a história brasileira, se gravará profunda
e totalmente nas feições e na vida do país. Haverá resultantes
secundárias que tendem para algo de mais elevado; mas elas ainda
mal se fazem notar. O ‘sentido” da evolução brasileira, que é o que
estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial
da colonização (Prado Júnior, 1974: 31-32).
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 471
retratadas várias histórias de pessoas reais correndo atrás de seus
sonhos, porém longe de uma visada meritocrática e individualista:
“Aí, maloqueiro, aí, maloqueira/ Levanta essa cabeça/ Enxuga essas
lágrimas, certo? (Você memo)/ Respira fundo e volta pro ringue (vai)/
Cê vai sair dessa prisão/ Cê vai atrás desse diploma/ Com a fúria da
beleza do Sol, entendeu?/ Faz isso por nóis/ Faz essa por nóis (vai)/
Te vejo no pódio”. A vitória de um é a vitória de todos, corpo negro
coletivo dançando, estudando, criando. “Permita que eu fale, não as
minhas cicatrizes”, canta Pablo Vittar, mudando o registro que se
espera de pessoas matáveis quando produzem arte. O compromisso
em não morrer é também o que explica a transformação de Marielle
em símbolo onipresente das lutas das vidas precarizadas no mundo
pelo direito de existirem dignamente, metaforizada como semente,
sinal desse desejo de resistir e perdurar no tempo. Marielle Vive,
Marielle Presente, Marielle Semente são frases-senhas a identificar
aqueles e aquelas que lutam pelo direito de viver.
Produção cultural, imagética, uso intenso das novas tecnologias
digitais e de redes sociais não são domínio apenas dos produtores de
fakenews. Ainda que sem robôs, ou ajuda técnica externa, israelense
ou estadunidense, e sem intenções terroristas, um uso intenso das
novas tecnologias de comunicação em especial entre jovens, sejam
indígenas ou de periferias das grandes cidades brasileiras (onde tam-
bém vivem indígenas), tem apontado caminhos para superação e
metamorfose de um momento histórico de grande sofrimento cole-
tivo e individual, possibilidades de construção de redes de suporte
e afeto, capazes de ultrapassar as prisões em que, sabemos, muitas
famílias se transformaram. Pontes sobre o ódio, modos de bem-que-
rer e criar um futuro, que nunca nos será usurpado como se pre-
tende fazer crer que já esteja.56
É acerca da afirmação do direito de viver sobre o direito de
matar que trata a principal produção do cinema brasileiro em 2019.
Bacurau, filme dirigido por Kleber Mendonça, sucesso de público e
ganhador do Prêmio do Júri em Cannes, foi tema de intensos deba-
tes na imprensa, nas redes sociais, em bares, escolas e universida-
des. Neste filme, num futuro distópico assustadoramente possível,
2019, Brasil: por que (ainda) estudar elites, instituições e processos de formação de Estado? 473
a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que
é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza.
Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é
mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova
barbárie (Benjamin, 1993a: 115).
57 Dunker (2019).
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