24.2 - HORNSTEIN, L. Introdução À Psicanálise, Cap. 7 - Teoria Do Sonho

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Luis Hormstein INTRODUCAO TONG: escuta Scanned with CamScanner 7 AULA TEORIA DO SONHO Na aula anterior tentei mostrar 0 modelo de aparelho psf- quico que se depreende do livro A interpretacdo dos sonhos. Na aula de hoje, tentarei me referir a outro produto que surge a partir desse texto: a teoria do fenémeno onfrico. Recapitulando a aula anterior: j4 em A interpretagdo dos sonhos, Freud fala de um sistema inconsciente. Comeca defi- nindo 0 aparelho psiquico segundo 0 modelo do arco reflexo, mas de um arco reflexo que contém uma histéria, na medida em que as lembrancas se inscrevem, produzem-se modificagdes permanentes (marcas mnémicas) que se organizam de diversas . formas e que fazem com que os novos estimulos que cheguem a esse aparelho psiquico sejam processados em fungéo da es- pecificidade das inscrig6es anteriores. O ponto inicial do capf- tulo VII chama-se “Esquecimento dos sonhos”. Sabemos da importéncia que o esquecimento tem para a teoria psicanalitica, a tal ponto que chegou-se a definir 0 sujeito como sujeito do esquecimento, j que, na medida em que a histéria vai se fa- zendo estrutura, vai se segregando um sistema de lembrancas, 1a partir do recalcamento, Esse recalcado seré considerado co- mo determinante em suas buscas, proibigées, medos, fantasias, projetos. Assim, 0 sujeito 6 excéntrico em relagio A conscién- cia, © que permite, a partir da psicanélise, definir 0 sujeito co- mo sujeito cindido. Desse ponto de vista, 0 esquecimento que < Scanned with CamScanner 100 INTRODUGAO A PSICANALISE, aparece, de fato, como uma condicio negativa (algo que se es- quece € algo que no se possui como lembranga), surge como uma condigéo positiva, configurando uma estrutura. © ponto seguinte refere-se A regressio, onde Freud vai descrever todo o movimento dentro do aparelho psfquico, mo- vimento que vai ter que unir 0 processo atual que se dé na ané- lise (a produgo de’ sintomas, a vida cotidiana) com a histéria do sujeito como persistente através de inscrig6es materiais. Ele define © sonho como um fenémeno regressivo, como um mo- vimento tendencial do psfquico a reassumir formas de ex- pressio passadas, arcaicas. Levado pela légica interna do de- senvolvimento expositivo, vai conceitualizar as leis que regem esse movimento tao peculiar que a regresséo e, simultanea- mente, definir os sistemas. Estes serao definidos e a perdurabi- lidade do passado no presente seré precisada. No Ponto C, “Realizagao de desejos”, postula o desejo como um movimen- to que vai da representagdo do objeto ausente & recatexia da marca mnémica de tal objeto. Recapitulando até aqui, diremos que, no Ponto A, Freud coloca como a negatividade do esquecimento se transforma em condigo estruturante. No Ponto B, a regress4o — os movimen- tos para o passado — obriga-o a definir o sistema dentro do qual se produz essa regresso. No Ponto C, ponto ‘central, ele define 0 desejo como um movimento: a tentativa de recriar uma experiéncia de satisfagao anterior. Mas, dentro desses desejos, haverd desejos inconscientes, indestrutiveis, atemporais. Esses desejos so inconscientes porque foram objeto de recalcamento s6 emergem através de transferéncia sobre fatos atuais. Si- multaneamente com a satisfacio da necessidade, através das vivéncias de satisfagdo, emerge uma ordem sexual. A sexuali- dade ap6ia-se na autoconservagao mas, através do auto-erotis- mo, produz-se um deslocamento. O auto-erotismo é a possibi- lidade que a sexualidade tem de satisfazer-se na auséncia de objeto, auséncia que é perda de objeto. O objeto da sexualida- de nao € um objeto real, mas um objeto fantasmético. A vivén- cia de satisfagdo tem como ponto de partida a busca do desapa- recimento da excitagéo. Os estimulos que entram devem set descarregados através do que Freud chama de “ago espectfi- Scanned with CamScanner INTRODUGAO A PSICANALISE 01 ca”, que uma alteragao do mundo exterior que possibilita ao corganismo a apropriagao daquilo que ele requer para diminuir a tenso de necessidade. Mas, o bebé tem a peculiaridade de nfo poder realizar a acdo especffica sem a ajuda matemna, Este bebé, como sujeito inerme que 6, depende da codificacao que ‘0s outros fagam de suas necessidades. Em sua busca de prazer (descarga das excitages), vé-se na contingéncia de fazé-lo através de outro do qual depende absolutamente. E assim que 0 bebé (como um marxista) ndo quer 0 produto, neste caso o lei- te, sendo os meios de produgdo (a mae), sendo que, portanto, © objeto buscado no campo da sexualidade nfo é 0 leite, mas 0 peito. E a mie (meio de produgao) a quem ele quer possuir. E por isso que 0 objeto sexual ndo é idéntico ao objeto da autoconservacio, € um objeto deslocado. O objeto da sexuali- dade, portanto, no o objeto perdido real, mas, por ser um objeto fantasmAtico, nfo poderé voltar a ser encontrado na rea- lidade. A busca do desejo assume a forma da tentativa de uma repeti¢ao impossivel. A isso me referia na aula passada, quan- do falava da passagem que deve acontecer, no campo da auto- conservagao, desde a realizacio alucinatéria do desejo ao re- encontro do objeto no mundo real (a¢ao espectfica), pois esta se complica pela armadilha gerada pelo auto-erotismo, jé que o objeto fantasmético que © bebé tenta encontrar sé pode ser parcialmente reencontrado na realidade. Em cada um destes t6picos, 0 suposto bésico com o qual Freud trabalha € o de determinismo pstquico. Em relagao a0 esquecimento, a legitimidade de trabalhar sobre fragmentos esté baseada na idéia de que nada é casual: nem 0 esquecimen- to do sonho nem as distintas versdes sobre um mesmo tema sio acidentes, na medida em que esto determinados pelo trabalho da censura. No caso da regressao, o pressuposto do determi. nismo se faz presente pela importdncia dada & histéria do sujei- to, histéria que se faz sincronia por se inscrever dentro de um aparelho que persiste com suas marcas para sempre. E dbvio que isso tem a ver com o conceito (cada vez mais importante na psicanéliise) de repeti¢éo, repeticfio como tentativa de busca do objeto perdido, mas também como compulséo a repeticaio (Conceito posterior), O determinismo também opera na reali- Scanned with CamScanner 102 INTRODUGAO A PSICANALISE zagio de desejos, jf que formula que os caminhos do desejo abrem-se de uma vez e para sempre, fazendo com que um su- jeito seja prisioneiro de sua histéria. Isto aponta para um pro- blema teérico do qual tentaremos nos aproximar na proxima aula: o do determinismo, e de como incidir transformadoramen- te nesse colossal sistema de repetigdes ¢ fixacées. item D do capftulo VII chama-se ““A interrupgio do re- pouso pelo sonho, A funcdo do sonho. O sonho de angiistia”. Trata do que aparece como mais antag6nico da idéia de sonho como realizagéo de desejos, na medida em que a angustia néo parece ser compatfvel com tal concepeao. B neste t6pico que Freud estabelece uma conexdo precisa entre 0 sonho eo sintoma. No item E, Freud define o mecanismo de funcionamento ¢ as leis das distintas instncias ¢ volta a retomar o tema do re- calcamento, para culminar, na tltima parte, com a problemética da relacdo entre inconsciente, consciéncia e realidade psfquica. Neste ultimo t6pico, Freud se refere & ética e ao problema dos valores. E importante marcar as contradigdes profundas que subjazem a toda pritica clfnica. Como manter 0 compromisso com a verdade? E diffcil, em fungo da dupla realimentagio dos sistemas resistenciais dos pacientes, por um lado, e, por outro, dos terapeutas. Estamos em um momento onde hd pro- postas de distintas escolas ou pseudo-escolas que postulam te- rapias originais; possivelmente algumas delas o sejam (a hist6- ria o dir). Por outro lado, como oposigéo, deparamo-nos com uma proliferagio de estudos “tedricos” com sofisticagao erescente, onde se pode observar, freqiientemente, um esque- cimento filoséfico no pior sentido da palavra, o esquecimento do sonho natal da psicanilise: a clinica, Cito um parégrafo de Freud, de 1932: ‘A psicantlise nasceu como terapia: Tem chegado a ser muito mais que is, mas nunca abandonou sua patria de origem, ¢, quanto a seu aprofundamento ¢ posterior desenvolvimento, continua dependendo do trato com pacientes. Nao se pode obter de outro modo as impressdes ‘acumuladas, a partir das quais desenvolvemos nossas teorias, Os fra- ‘ca8sos que experimentamos como tsrapeutas nos colocam, Vez ou ou- tra, diante de tarefas novas. E as exigéncias da vida real constituem tua eficaz defesa contra a hipertrofia da especulacdo, que, sem divi- 4a, toma-se imprescindivel em nosso trabalho, Scanned with CamScanner INTRODUGAO A PSICANALISE 103 De fato, estamos nos movendo em meio a um sistema con- traditério, formado, de um lado, por um pragmatismo que se langa a empresas entusiastas ou aventureiras com os outros, As vezes chamadas de terapias. Em alguns casos, essas aventuras se cercam de uma sofisticagio técnica. Este seria um dos pélos da contradig&o, © outro surge das dificuldades objetivas que a terapia psicanalftica apresenta, e que consiste em uma certa fu- ga a filosofia, no sentido negativo, evitativo que lhes assinala- va antes. Tudo isso acarreta propostas de profissionalizacio grosseiramente tecnocréticas ou, inversamente, propostas “‘so- fisticadas” de natureza pseudofiloséfica e de pequenos cfrculos nos quais se tende a imaginar 0 homem como abstrato, sem histéria encamada, baseando sua “prética” em um permanente dissolver-se e relativizar-se, como se nessa ascese laica tornas- sem valiosa sua fungio. Essa proposta leva, inevitavelmente, a um sadismo iluminista, um cultivo do vazio pela literalizagdo delirante das nogées de apagamento e excentracdo como Ra- fael Paz adverte em um trabalho recerite. Agora, sim, vamos nos introduzir no estudo do fenémeno onfrico. Queria comegar a falar do sonho das criangas. Freud utiliza o exemplo do sonho das criangas para demonstrar que os sonhos infantis tém sentido e so realizag6es de desejos. E importante (e agora vou dizer por que) incluir este comentério dentro dos argumentos de Freud; é necessdrio fazer uma leitura produtiva das contradig6es em fung&o dos desenvolvimentos te6ricos que essas contradicées permitem, e nao converter-se em uma espécie de drbitro grotesco que se limita a assinalar a contradigao disto com aquilo. De qualquer forma, a concepcio dos sonhos infantis que Freud postula em A interpretagdo dos Sonhos nao seria sustent4vel hoje (a nao distincia que Freud Ppostula entre contetido manifesto e contetido latente). Apesar de no ser uma idéia vigente, justifica-se pela necessidade de poder fundamentar que os sonhos tém sentido. Freud, em A in- terpretagdo dos sonhos, postula que 0 desejo das criangas & determinado pelo imediatismo da vigflia. O sonho dos adultos, a0 contrério, sofre a intervengao de uma proibicio, impossibili- tando assim a realizagio do desejo, caso este nfo se tome irre- conhecfvel pelas transagées feitas no trabalho do sonho, Caso contrério, haveré produgo de angifstia, Entdo, a oposigao que Scanned with CamScanner 104 INTRODUGAO A PSICANALISE Freud estabelece entre 0 sonho da crianga e 0 sonho do adulto baseia-se na formulacdo de que é a complexidade da estrutura psfquica do adulto que est interferindo na inteligibilidade do fenémeno onfrico, nao havendo, portanto, um enfraquecimento da fungio do sonho no adulto. Vou partir de um pardgrafo de Freud, de 1901: Observa-se uma mie que faz seu filho dormir, Ele manifesta, sem cessar, desejos © necessidades; quer outro beijo, queria continuar brincando, e em parte estes si satisfitos, masem parte sio pasterga~ dos autoritariamente para amanhé. Fica claro que os desejos neces- sidades que se avivam slo 0s obstfculos para dormir. Analisemos esse pardgrafo: a crianga quer outro beijo, queria continuar brincando e, em parte, seus desejos so satis- feitos, mas, em parte, so postergados autoritariamente para amanha. Amanh tampouco serio satisfeitos, o que implica que se vai gerando um tanto de insatisfagdo que a realidade nunca vai poder satisfazer. Para Freud, a fungdo do sonho tem a ver com essa realizacdo de desejos ligados a objetos fantasméticos que nenhuma realidade poderia preencher. Quando ele se refe- te ao sonho do adulto, esse caudal de desejos insatisfeitos de- terminados por uma hist6ria, marcada pelo auto-erotismo, 0 perfodo de laténcia e a proibicdo, seré muito maior. E entio que Freud utiliza a crinca para mostrar como essa proibigéo materna de satisfazer-Ihe certos desejos gera um campo de an- seios que se realizardo durante 0 ato de sonhar. Quando Freud, em 1908, nos fala da fantasia, diré que o adulto fantasia, em vez de brincar, e constré6i sonhos diurnos. Diz ele: ‘Nio podemos imaginar como rfgidos ¢ imutiveis os produtos desta atividade fantasiadora: as fantasias singulares, castelos no ar ou sonhos diurnos. Elas se adequam &s impresses vitais mutdveis, que se alteram a cada variagSo das condigées de vida, recebem de cada nova ‘mpressio eficaz uma marca temporal. O nexo da fantasia com o tem po € muito substantivo, E I{cito dizer: uma fantasia oscila, de certo modo, entre ts tempos, trés momentos temporais do nosso represen tar, O trabalho animico junta-se a wna impresséo atual, a ana ocasido do presente que foi capaz de despertar os grandes desejos da pessoa: a partir dat, remontam-se @ recordagdo de wna vivéncia anterior, infantil ‘na maioria das vezes, em que aquele desejo se cunpria, criando entéo tuna situagéo referida ao futuro, que aparece como 0 cumprimento Scanned with CamScanner INTRODUCAO A PSICANALISE 10s esse desejo = justamente 0 sonho diurno ou a fantasia ~ em que vio ‘impressas as marcas de sua origem na ocasiéo ¢ na recordacéo. Vale dizer: passado, presente ¢ futuro so como as contas de un colar enca- deado pelo desejo. E Freud prossegue: “Tampouco nossos sonhos noturnos sio outra coisa que nio tais fantasias”. Como vocés véem, pa- ra Freud, o desejo insatisfeito vai ser o motor do sonho. E im- portante destacar que ainda que Freud tome como modelo o ar- co reflexo, 0 aparelho psfquico € um arco reflexo mas com descarga demorada. Isto € importante como discussao tedri- co-técnica. Em muitas técnicas enfatiza-se a importincia da descarga (terapias emocionais), mas, do ponto de vista psica- nalftico, no se pode colocar o problema da descarga senéo em termos da singularidade de um sujeito, cujos sistemas de prazer e desprazer estio intrinsecamente articulados com as significagdes propriamente humanas que o situam como sujei- tos do Edipo, como sujeitos das determinagées simbdlicas e da Sociedade é qual pertencem. H& uma dialética sempre presente no pensamento freudia- no, a da falsa oposigéo normal-patolégico com a qual ele quer romper. Freud diré em Psicopatologia da vida cotidiana que todos somos um pouco neuréticos, e que nao hé uma diferenca essencial entre 0 sujeito que tem sintomas e aquele que s6 tem Japsus, ou que s6 tem sonhos, j4 que, em tiltima instincia tudo dependeré do tipo de transagdes que cada sujeito realize entre seus desejos inconscientes, as exigéncias de seus sistemas ideais e as possibilidades que tem de articular na realidade es- sas exigéncias contraditérias. E assim que Freud utiliza perma- nentemente a passagem do normal ao patolégico como uma forma de compreender seja um fenémeno, seja 0 outro. A partir do sonho, Freud vai dar contar mais cabalmente do fenémeno sintomatico. A partir do luto normal vai tentar entender 0 luto patolégico. O caminho inverso é, sem diivida, © mais conhecido, Freud, fiel & sua idéia de que, “ali onde se mostra uma fratura ou uma fissura, pode existir normalmente uma articulagao”, interroga-se sobre como 0 patolégico nos Pérmite entender o funcionamento normal. A partir do sintoma, como temos visto, Freud comeca a entender o fendmeno ontti- Scanned with CamScanner 106 INTRODUGAO A PSICANALISE co. A partir da perversio, discute o caréter instintivo da sexua- lidade. Chega ento & conclusio de que a sexualidade tem, no adulto considerado normal, a aparéncia de um instinto, mas que nio € mais do que o resultado de uma evolugio hist6rica que, a cada nova etapa, pode bifurcar-se por outros caminhos, para dar nascimento As aberragGes mais estranhas. Sintetizan- do, entdo, a sexualidade — mediante a perversdo — € despojada do caréter instintivo com fim e objeto previamente determina- dos para entrar no campo do pulsional. A partir da psicose (caso Schreber, “Introdugéo do Narcisismo”), Freud comega a fazer formulagées sobre a teoria do eu. Como ele mesmo disse- ra, “esse eu que to evidente parecia” é produto de um com- plexo processo de produgio, Como vocés véem, tanto a per- verso como a psicose mostrariam fissuras que estariam enco- bertas como articulagdes na normalidade. Fissuras quanto ao objeto sexual no campo da perversio € quanto A constituigéo do eu no campo da psicose. Normalmente, quando nos defron- tamos com um sujeito adulto, seria natural que ele soubesse quem é, que nio tivesse vivéncias de despersonalizagéo, que no sentisse fragmentagdo de seu corpo, que pudesse enun- ciar-se a si mesmo na primeira pessoa do singular (eu sou tal ou qual coisa). Freud, pelo contrério, tenta demonstrar que es- sa naturalidade da existéncia do eu € 0 resultado de um proces- so identificatério e de uma adequada narcisagdo de si mesmo. A partir da melancolia, Freud estuda o problema do supe- reu e da identificagéo. Se a melancolia mostra uma fissura on- de 0 sujeito se autocritica, se despreza, se denigre, se maltrata, Freud se pergunta por que nfo pensar que todos temos um pouco dessa instincia erftica interna que vai se definir, poste- riormente, como supereu. A partir do fetichismo, abre-se todo um campo sobre o problema das crengas, das cises no eu, de um saber que, sem ser inconsciente, nfo se articula como outro saber. Insisto, a partir do fetichismo pode-se colocar todo 0 problema das crengas, de sistemas de idéias contrapostas, coe~ xistindo no campo do consciente. A partir da hipocondria, on- de h4 um desmedido investimento narcisista do corpo, Freud se pergunta se essa erogenizacio do corpo nio est presente em todos. A partir da esquizofrenia parandide, interroga-se sobre a génese dos ideais e da construgio do sistema de autocritica, Scanned with CamScanner INTRODUCAO A PSICANALISE, 107 Voltando ao nosso tema de hoje, o sonho vai significar pa- ra Freud a possibilidade de romper a dicotomia patologia-nor- malidade, permitindo-lhe construir um sistema conceitual a partir do qual uma diversidade de manifestag6es seré entendida como efeitos do inconsciente. Entrando no tema do proceso onirico, Freud define 0 ato de dormir como uma tentativa de regressfio ao narcisismo, como uma retirada de interesse pelo mundo. Isto quer dizer que, enquanto dormimos, todos preten- demos uma espécie de Nirvana, 0 que antes era chamado por Freud de principio de inércia, ou seja, um rebaixamento da ati- vidade psfquica ao nivel zero. Vocés se lembram de que Freud falava de Nirvana como a possibilidade de baixar os estimulos a0 nivel zero, 0 que seria incompativel com a vida ps{quica, tendendo ento o aparelho psiquico a manter a excitacZo no mais baixo nfvel possfvel (princfpio de constancia). Mas Freud imediatamente acrescenta que o segredo do sonho é que o in- consciente nao obedece ao desejo de dormir. O ato de dormir, portanto, vé-se perturbado por estimulos que vém de fora, € principalmente por estimulos que vém de dentro, Estes serdo os desejos inconscientes sempre em atividade, indestrut{veis etc. O menininho do qual Freud falava, para quem a mame, sedu- toramente, Ihe dizia “‘amanha”, néo vai esperar até amanhé. Esta noite sonharé com tudo aquilo no que a mie o frustrou. Freud postula que durante o sono h4 muitas regress6es em jo- go. Vamos tentar ver algumas: uma regress4o do eu, uma re- gresséo da libido, uma regressdo t6pica, uma regressio formal, uma regresso cronol6gica. Hé uma regressdo do eu ao modo de funcionamento da sa- tisfagéo alucinatéria do desejo. O funcionamento segundo o proceso secundério é colocado entre parénteses. Isto quer di- zer que o eu passa ao estgio de um eu de prazer, anterior a0 cu de realidade. No estégio do eu de prazer, 0 prazeroso € 0 eu eram idénticos, assim como 0 desprazeroso se identifica ao no eu. H4 uma distingSo interior-exterior segundo o prinefpio de prazer ¢ outra segundo o principio de realidade. Segundo 0 prinefpio de prazer, o exterior coincide com o desprazeroso enguanto que o interior se constréi pela introjegéo da fonte de prazer. Isto constitui uma primeira demarcacdo entre interior © exterior, anterior A introdugao do principio de realidade, © Scanned with CamScanner 108 INTRODUGAO A PSICANALISE mantém a possibilidade da satisfacéio auto-erdtica. E assim que se constréi um primeiro campo de exterioridade por expulsio do desprazeroso. Essa diferenciagio realizada sob 0 regime do prazer fica como que subjacente em relacdo aquela fundada no Prinefpio de realidade, que implica a perda do objeto. A hist6- Tia da constituigao do interior e do exterior passa pelo princf- pio de prazer. Por isso, Freud articula a constituigao do interior ¢ do exterior com a polaridade de prazer e desprazer. Esta dife- Tenciagio nio € um dado, mas o resultado de um processo (1915). O campo da satisfagéo auto-erética se sustenta na identi- dade entre o interior e o prazeroso. As pulsdes de autoconser- vagdo reclamam, inexoravelmente, um aplacamento que 0 au- to-erotismo néo pode consumar. f essa a regressao do eu A sa- tisfago alucinatéria do desejo, ao eu de prazer. Hé, também, uma regressdo da libido ao narcisismo, tenta- tiva de desligar-se dos estimulos externos ¢ estar exclusiva- mente conectado consigo mesmo. Freud diz que tal regressao ao narcisismo mostra 0 sonho como egofsta — ninguém sonha com’ algo que nao o afeta. De alguma forma, em todo sonho sempre esti implicado 0 sonhador. Dizer que o sonho é egofsta néo 6 o mesmo que dizer, como o faria um Kleiniano, que todos os elementos do sonho so aspectos do eu do sonha- dor, um fluxo incessante de identificagSes projetivas e de loca- lizag6es de pedagos dele no mundo. Essa diferenga tem im- portincia teGrica, mas também importincia técnica, O narci- sismo do sono € perturbado pelo sonho. O sonho 6, portanto, uma transagio entre o desejo de dormir ¢ a emergéncia de de- sejos inconscientes. Como dissemos antes, 0 sono pode ser perturbado a partir do exterior ou do interior. Do interior, por que durante a vigiia aconteceram coisas ao sujeito, restos diurnos que geram pensamentos latentes. A definicio de restos diurnos é feita retrospectivamente: a partir do relato do sonho, pode-se descobrir que elementos do cotidiano serviram de su- porte para transferéncias. Somente perturbardo 0 sono aqueles restos diurnos que recebam um reforgo por sua conexdo com 0 inconsciente, j4 que a censura inconsciente-pré-consciente di- minui e as relagGes entre os dois sistemas se tornam mais fut das enquanto se dorme. O desejo de dormir procura estabelecer Scanned with CamScanner INTRODUCAO A PSICANALISE 109 ‘um narcisismo absolut, que consegue em relagao ao pré-cons- ciente, mas nfo em relagio ao recalcado. Forma-se, eno, o desejo ontrico, que deve ser definido como a transferéncia do inconsciente aos restos diurnos pré-conscientes. Freud disse que esse passado, reatualizado, poderia aceder & consciéncia via pensamento, constituindo entdo uma representagio,obsessi- va. Porém, na medida em que o pré-consciente est4 em repou- so, 0 caminho progressivo est coartado. No sonho, esse processo urdido dentro do pré-consciente e reforcado pelo inconsciente torna-se consciente como per- cepedo. Falamos que durante o sono hé uma realizacdo aluci- nat6ria do desejo por falta de funcionamento eg6ico, que im- pede a prova de realidade. Isso 6 o que Freud chama regressdo i6pica, onde o recordar torna-se alucinar. Freud também diz que h4 uma regressdo formal durante o sonho: 0 desejo onfrico éprocessado segundo as leis do inconsciente. E hd também uma regresséio cronoldgica, j4 que so algumas lembrangas infantis as que reaparecem com insisténcia durante o sonho. Isso costu- ma-se chamar de hipermnésia do sonho. Por titimo, uma carac- terfstica do sonho 6 que os pensamentos se transformam em imagens, 0 que & chamado de consideragdo a representabili- dade. O trabalho do sonho, ento, é a transformacao desse de- sejo onfrico pelas operagdes préprias da elaboracio onttica: condensacéo e deslocamento. Estes fazem com que 0 contesdo manifesto seja lac6nico, breve; pela sobredeterminagdo, a cada elemento do contetido manifesto corresponderao varios ele- mentos do contetido latente. Essa percepcdo alucinatéria é ela- borada secundariamente. A elaboracdo secundéria jé € um tra- balho do pré-consciente, onde se tenta organizar, tomar coe- rente, 0 que aparece sob a forma de processo primfrio. Freud também vai definir como elaboracdo secundéria os trabalhos egéicos de elaboragao que se fagam durante o despertar ¢ nos posteriores relatos do sonho. A elaboracdo secundéria tende a dar uma coeréncia I6gica e € uma das razdes, além da conden- sago e do deslocamento, que tomam imprescindfvel a frag- mentago do sonho para poder interpreté-lo, Freud postula que o sonho precisa estar deformado. Se nio hé uma deformagao adequada, o desejo inconsciente aparece Scanned with CamScanner 110 INTRODUGAO A PSICANALISE com muita clareza, produzindo o sonho de angtistia, que € um sonho no qual a transaco fracassa, obrigando 0 despertar. O sonho de angitstia € un sonho falho em sua transagdo de ter que satisfazer, simultaneamente, ao desejo de dormir e ao de- sejo inconsciente. Podemos definir 0 conteiido manifesto como um proceso psfquico que se dé durante o sono e que é percebido pela cons- ciéncia como uma trama de representacées e afetos que podem ser relatados pelo sonhador. O trabalho do sonho, resultado das transformagées, consiste em quatro operagées: conden- sagdo, deslocamento, passagem de idéias a imagens e elabo- ragdo secundéria. Através desse trabalho do sonho, um conjun- to de idéias pré-conscientes que se vincularam com um desejo inconsciente emerge sob forma alucinatéria. Freud postula que a interpretago do sonho é 0 caminho inverso do trabalho do sonho: parte-se desse contetido manifesto, através da asso- ciagdo livre gera-se um contetido latente e tenta-se descobrir, dentro desse contetido latente, quais s4o 0s desejos onfricos. Para um estudo mais detalhado do fenémeno onfrico, terfamos que voltar a cada um desses conceitos: contetido ma- nifesto, contetido latente, desejo onfrico, trabalho do sonho etc. Estudaremos todos esses conceitos numa segunda leitura. Tentarei, apenas, uma primeira aproximagao. ‘A condensacio, em sentido amplo, refere-se & compresséo que sofre o contetido latente, mais extenso que o manifesto. E necessfrio diferenciar dois registros na condensacdo: 0 do afe- to o da representagao. A nfvel do afeto, é a confluéncia em uma representacio, de afetos que provém de diversas represen- tages. Do ponto de vista da representacdo, a condensagéo funde varias representacdes em uma, para o que € imprescindf- vel que tenham um elemento em comum. Lacan identifica a condensagio com a metéfora. Como vocés sabem, a retérica define como metAfora o nascimento de um novo sentido por uma substituicéo de elementos que tem entre si um vinculo de semelhanga, Mas, diversamente do que acontece na poesia, onde a metéfora remete a uma semelhanca compartilhada por outros, na psicanélise, a condensago nio remete a um cédigo compartilhado, Af os elementos que se Scanned with CamScanner INTRODUGAO A PSICANALISE ut substituem sfo singulares do paciente, j4 que se constituem a partir de sua histéria, de uma trama pessoal, que s6 pode ser descoberta através de suas associagGes. (© deslocamento também opera sobre a totalidade do so- nho. Em sentido amplo, o nticleo fundamental das idéias laten- tes est representado no contetido manifesto por um elemento trivial. Hé uma transmutagdo dos valores psfquicos, uma acen- tuagdo diferente. A nfvel do afeto, d4-se uma passagem de umas representagdes a outras. A nfvel das representagées, dé-se uma passagem de uma representagio a outra que tenha contigiiidade, seja no espago, seja no tempo. Hé uma conexio contextual, mas é estritamente particular do paciente. Eu queria apenas acrescentar que, no modelo técnico que Freud propée, a associacio livre, o que se tenta por entre parénteses € a censura pré-consciente-consciente. Freud postu- lar& que o paciente associard livremente com aqueles elementos da vigflia que estejam, de alguma forma, conectados privile- giadamente com sua realidade psfquica. Portanto, de um ponto de vista estritamente técnico, os restos diurnos sero equiva- lentes As associagées livres de um paciente que respeita a regra fundamental. 9 de Junho de 1982 Scanned with CamScanner

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