Ciencias Sociais 2010-04-23 Cristhiane Aparecida Falchetti
Ciencias Sociais 2010-04-23 Cristhiane Aparecida Falchetti
Ciencias Sociais 2010-04-23 Cristhiane Aparecida Falchetti
ARARAQUARA – S.P.
2010
Cristhiane Aparecida Falchetti
The present research broaches the Brazil’s democratization process, building itself on new
participation forms that were developed, fundamentally, in 90’s, and verifying how well the
councils of public politics amplify the decision arena and favor the enhancement of popular
protagonism in the social politics management. The analysis heads toward the social
assistance politics, discussing its characteristics, changes and articulations related to
participation. Thereby, the research involves two principal points: the first tries to articulate
the conceptual, social and political elements that should have given sustentation and
materiality to the councils; and the second focuses on the relation between state and society,
and on how well the councils interfere in this relation and modify the results of deliberations,
that is, how well they modify the social politics content. The research comprise theoretical
study about the democratization process and the Brazil State’s reform (which involves
discussion about the notions of participation, citizenship, civil society and decentralization),
and empirical analysis, wherein those questions are examined in the context of Araraquara
city and its social assistance municipal council. The analysis intends to understand how well
the insert of new participative mechanisms modifies the management of public politics and
influences the local decision arena. By studying the social assistance municipal council, we
purport to verify how this space is occupied by the civil society and how is configured the
influence of this council upon the municipal politics management. The period from 2001 to
2008 was studied, which comprehends three different boards of the council and two
administrations of the Workers Party in the Executive Power.
LISTA DE TABELAS
LISTA DE GRAFICOS
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
de cidadania que não desvincula o político do social. Neste sentido, ao integrarem a estrutura
das políticas sociais, os conselhos se colocam como estratégias de garantias dos direitos
sociais. “Sendo espaços de convivência e debate, esses espaços potencialmente requereriam e
fortaleceriam o aprendizado e a consolidação de uma ‘cultura de direitos’, por meio do
exercício efetivo da cidadania” (DAGNINO, 2002, p.12).
A partir dessa discussão, buscamos saber como a cidadania é concebida e efetivada nos
espaços participativos, tomando o caso da Política de Assistência Social como exemplar, pois
além de a LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social de 1993) propor um avanço em termos
de direitos sociais, ela também insere a gestão participativa na Política Pública de Assistência
Social. A política de assistência social constitui-se num processo recente de modernização da
política social, cuja transformação vislumbra a transição de uma compreensão da assistência
social baseada na filantropia e assistencialismo para uma compreensão baseada no direito
social inscrito no âmbito da seguridade social. Essa nova compreensão e sua formatação legal
foi alvo de intensa disputa política entre distintas propostas de reforma e envolveu a
participação de setores organizados da sociedade civil, que lutaram pela universalização dos
direitos sociais e pela democratização das políticas sociais. Dentro dessa proposta de
modernização da política social surge o sistema descentralizado e participativo, cuja
materialização se encontra no SUAS (Sistema Único de Assistência Social), que passa a ser
implementado nos municípios a partir de 2004.
A descentralização participativa tornou-se uma das principais estratégias de
democratização da relação Estado/sociedade civil em atendimento aos princípios de
participação popular e descentralização político-administrativa. Tais princípios alterariam o
pacto federativo, transferindo para as esferas subnacionais novas atribuições e
responsabilidade na provisão das políticas sociais, bem como, trariam mudanças na arena
decisória dos governos locais. Daí a importância das pesquisas empíricas voltadas para o
âmbito municipal, especialmente aqueles que assumiram a gestão plena dos serviços públicos,
como é o caso de Araraquara, município em que empreendemos nossa pesquisa empírica.
Araraquara, assim como os demais municípios do interior paulista, caracteriza-se por
uma tradição política coronelista e clientelista, quadro esse que começaria a se alterar a partir
dos anos 1960 por meio de uma série de mudanças econômicas e institucionais, que
desencadearam uma espécie de modernização conservadora. Comentando o modo como se
deu a transição do rural para o urbano em Araraquara, Kerbauy (2000, p.23) diz tratar-se de
um caso de “modernização conservadora”, em que “as transformações institucionais e
estruturais matizaram a polarização rural-urbano, interior-capital, tradicional-urbano,
14
tornando possível a permanência de cada um desses modelos numa nova realidade”. Tendo
em vista essa dinâmica das mudanças, vale investigar como o processo de democratização
repercutiu no município, uma vez que a luta pela democratização não teve a mesma
intensidade no plano local como teve no plano nacional. Qual teria sido o impacto das novas
propostas participativas para a democratização da arena decisória local? Em que medida a
nova institucionalidade pública, amplamente difundida nos municípios, teria contribuído para
a efetiva partilha do poder de decisão no plano local?
Em Araraquara, a difusão dos conselhos municipais também está associada à proposta
de governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o qual conquistou seu primeiro mandato no
município em 2001, alterando o quadro eleitoral e trazendo uma proposta de governo
participativo. Nossa análise sobre os conselhos municipais de Araraquara compreende o
período de 2001-2008, correspondente aos dois governos do Prefeito Edinho Silva (PT), e
enfoca o Conselho Municipal de Assistência Social e seu papel na gestão da política
municipal. Pretendemos verificar em que medida a participação popular se efetiva por meio
desses canais e influencia no processo de formulação e implementação de políticas públicas.
A pesquisa envolveu tanto o aspecto formal-legal quanto o aspecto funcional-efetivo do
conselho. A metodologia integra dados quantitativos e qualitativos, obtidos através das
seguintes técnicas de investigação: a) entrevistas gravadas e questionário estruturado com os
conselheiros representantes de todos os segmentos e gestões no período de (2001-2008); b)
análise documental do conselho (regulamento, leis, estatuto, regimento interno e atas de
reuniões, etc.), e da política de assistência social (relatórios das conferencias de assistência
social, legislação pertinente, planos de assistência social, etc.); c) acompanhamento das
atividades do conselho, o que inclui presença nas reuniões mensais e extraordinárias,
participação em fóruns, debates, conferências e demais atividades desenvolvidas. Também
foram levantadas informações veiculadas pelo jornal (Folha da Cidade) e pelos sites da
Prefeitura e da Câmara Municipal. Os documentos e informações sobre os Conselhos foram
obtidos por meio da Casa dos Conselhos, da Coordenadoria de Participação Popular, e da
Secretaria Municipal de Inclusão Social e Cidadania de Araraquara.
Com o propósito de desenvolver as questões e objetivos expostos, a apresentação do
trabalho foi estruturada em cinco capítulos.
No primeiro capítulo, retomamos alguns pontos de discussão sobre a democracia, tais
como: forma e substância, democracia e burocracia, democracia e capitalismo, participação e
representação, apresentando as principais tendências nesse debate ao longo do século XX. Em
seguida destacamos alguns modelos teóricos da teoria democrática contemporânea e as
15
“soluções” oferecidas por eles em relação às questões anteriores. Por fim, tratamos da
repercussão desses modelos teóricos nas análises sobre a democratização na America Latina,
delineando alguns parâmetros para a pesquisa empreendida.
No segundo capítulo, procuramos caracterizar a relação Estado/sociedade no Brasil a
partir de uma perspectiva histórica sobre a participação social e a construção da cidadania.
Com isso, buscamos mostrar alguns aspectos históricos e culturais da política brasileira e do
contexto específico de Araraquara, destacando o caráter autoritário e conservador que
marcaram nossos processos de modernização.
No terceiro capítulo, mergulhamos no processo de democratização e reforma do Estado
a fim de compreender em que medida a relação Estado/sociedade se modifica e qual o
significado das mudanças introduzidas, especialmente, no que diz respeito à gestão das
políticas sociais. Analisamos a política de assistência social, verificando os efetivos avanços
em relação à democratização e descentralização da política social em termos de acesso aos
direitos e maior protagonismo popular.
No quarto capítulo, aprofundamos o nosso objeto de estudo, ou seja, os conselhos de
políticas públicas, caracterizando sua natureza constitutiva, seus limites e potencialidades.
Essa discussão sobre os conselhos se estende aos conselhos municipais de Araraquara e à
proposta de gestão participativa do governo municipal, explorando como se dá a inserção
desses novos mecanismos participativos na arena local.
No quinto capítulo, partimos para a análise detalhada do conselho municipal de
assistência social em Araraquara, verificando sua constituição e seu papel na gestão da
política municipal. A investigação concentrou-se na representação e no processo de
deliberação do conselho, visando compreender em que medida ele contribui para
democratização do processo decisório, politizando o debate público e assegurando a
intermediação das demandas sociais.
Por fim, concluímos que, apesar de as formas de participação institucionalizadas
(conselhos) constituírem-se em importante instrumento de democratização no âmbito das
políticas sociais, alterando o padrão tecnocrático e clientelista da relação Estado/sociedade;
elas são limitadas diante do desafio enfrentado pela democracia no Brasil. As instâncias
participativas enfrentam limites inerentes ao seu próprio escopo de ação, bem como,
dificuldades colocadas pelas forças sociais que se contrapõem aos princípios democráticos e
universais e inviabilizam uma maior participação popular na definição das ações estatais.
Assinala-se, ainda, o risco de distorção dos mecanismos participativos quando estes se tornam
instrumentos de gestão e perdem seu caráter político.
16
Neste capítulo discutimos alguns aspectos de ordem teórica e conceitual que envolvem a
democracia, passando por questões que embalaram o debate político sobre o tema no século
XX. Em seguida, destacamos as principais concepções de democracia dentro da Teoria
Democrática Contemporânea, e suas diferentes interpretações sobre representação e
participação. E, por fim, tratamos da repercussão das teorias participativa e deliberativa no
contexto de democratização na América Latina, ressaltando as perspectivas analíticas que
vêm se desenvolvendo nesses países.
condições, como o equilíbrio econômico entre os indivíduos e a autonomia deles. Ele não
defende a igualdade absoluta nem o fim da propriedade privada, mas a situação em que
“nenhum cidadão fosse rico o bastante para comprar o outro e em que nenhum fosse tão pobre
que tivesse que se vender”. Todo homem deveria possuir alguma propriedade para lhe
conferir segurança e independência. Atendidas estas condições, Rousseau esclarece que a
participação deve ocorrer na tomada de decisão, que é uma forma de proteger os interesses
privados e assegurar bons governos (PATEMAN, 1992).
O destaque em relação a esses dois autores contratualistas é que algumas de suas
concepções servirão de base para a teoria democrática moderna, especialmente dentro da
vertente liberal. Segundo Bobbio et al. (1991), é por meio da teoria da soberania popular que
a teoria do contratualismo entra para a tradição do pensamento democrático moderno e torna-
se fundamental para a construção da teoria moderna da democracia.
No século XIX, a discussão sobre democracia orbitou as duas doutrinas políticas
dominantes na época: o Liberalismo e o Socialismo.
Na concepção liberal, a democracia aparece associada ao Estado de Direito, aquele que
reconhece e assegura os direitos fundamentais (direitos civis e políticos). Assim, Benjamin
Constant diferencia a liberdade dos antigos como sendo a liberdade de participar diretamente
na elaboração das leis, e a liberdade dos modernos como sendo a liberdade individual em
relação ao Estado. Desta forma, a democracia direta seria algo impraticável e até indesejável
nas sociedades modernas. Da mesma forma, John Stuart Mill e Alexis Tocqueville defendem
a democracia representativa ou parlamentar, reservando aos cidadãos a liberdade de associar-
se e eleger seus representantes, como forma de participação na política.
Em relação ao processo de democratização, ou seja, ao desenvolvimento e consolidação
da soberania popular, o liberalismo o compreende de duas formas: pela extensão do direito ao
voto, até atingir o sufrágio universal; e pela ampliação dos órgãos representativos nas diversas
instâncias de governo, objetivando a descentralização do poder (BOBBIO et al., 1991).
Para o pensamento liberal, só é liberal aquele Estado que reconhece as liberdades
fundamentais e só pode existir democracia onde forem reconhecidos direitos de liberdade que
possibilitem ao indivíduo participar politicamente de forma autônoma. A democracia, assim
entendida, está vinculada às liberdades fundamentais e sua consolidação consiste no
aperfeiçoamento das formas de representação, atendendo o critério quantitativo.
No pensamento socialista, representado pelas teorias marxistas, a democracia
corresponde a um elemento integrante de sua proposta revolucionária, mas não central. O
cerne da perspectiva socialista é a emancipação social por meio da transformação das relações
19
Diversas vezes a história mostrou que, diante da ameaça de perder o poder, a classe
dominante não hesita em lançar mão de instrumentos autoritários. Na perspectiva socialista, o
limite da democracia liberal reside na desigualdade entre as classes, pela qual a classe
economicamente dominante sempre conta com melhores condições para manter-se no poder.
Quanto ao processo de democratização, os socialistas visualizam duas estratégias: a
crítica à democracia representativa e a retomada de alguns temas da democracia direta; e a
defesa da participação popular e do controle do poder a partir de baixo, desde os órgãos de
decisão política até os órgãos de decisão econômica, estendendo-se pelas esferas política e
20
representava uma ameaça revolucionária e que, inclusive, poderia produzir uma estabilização
da luta política. Offe (1984) destaca que, embora com perspectivas diferentes, Rosa
Luxemburg e Robert Michels também teriam chegado ao mesmo resultado analítico que
Weber. Luxemburg teria observado uma especialização e hierarquização das lideranças nas
organizações políticas de massa. Michels, por sua vez, transformou essas tendências
observadas nas organizações de classe em uma fatalidade, ao formular a “Lei de Ferro das
Oligarquias”.
A conjunção entre sufrágio universal e política partidária competitiva teria alterado
profundamente o conteúdo e a forma da política, implicando uma modificação no cenário
democrático. Sob a lógica representativa competitiva, observa-se uma burocratização da
organização política e uma profissionalização da política, o que pode resultar tanto na
instrumentalização da vontade do Povo, em prol do cargo político, como na desmobilização
das bases partidárias.
1
Ver: Carvalho (2002).
23
2
Com base no conceito de Gramsci, os autores entendem hegemonia como “a capacidade econômica, política,
moral e intelectual de estabelecer uma direção dominante na forma de abordagem de uma determinada questão,
no caso a questão da democracia” (Santos e Avritzer, 2002, p.43).
3
Os modelos democráticos estão baseados na classificação de Nobre (2004) e Ugarte (2004)
24
forma única de organização política já tinha sido proposta por Kelsen, que procurou articular
relativismo moral com métodos de solução de divergências (SANTOS e AVRITZER, 2002).
indivíduo teria o mesmo peso (seu voto) nas decisões. Da mesma forma que os consumidores
no mercado, os eleitores podem manifestar suas preferências através da escolha entre as
propostas dos líderes. Como os resultados derivam de preferências individuais, o “bem
comum” não entra em pauta. Nessa lógica, a cidadania equivale à integração individual no
“mercado político”, que faz do interesse privado a medida de todas as coisas. Em tese, todos
estão em situação de igualdade e podem defender suas preferências. Partindo do pressuposto
da igualdade política, os critérios democráticos recaem apenas sobre os procedimentos
deliberativos e não sobre os resultados das deliberações, ou seja, os processos democráticos
são desvinculados de resultados justos ou injustos.
Apesar de pretender-se realista, a teoria competitiva baseia-se em pressupostos difíceis
de serem verificados na realidade empírica. Se nem mesmo no mercado há “concorrência
perfeita” que a teoria elitista propõe, tampouco poderá haver a igualdade política que essa
teoria imagina, pois isso depende de outros condicionantes, como igualdade material,
igualdade de informação, etc. Além disso, a aposta exclusiva no campo institucional como
garantia democrática e a desqualificação da participação dos cidadãos são grandes
fragilidades da teoria elitista.
b) O modelo “pluralista”: o principal representante dessa vertente é Robert Dahl, cuja
obra de destaque é Poliarquia: participação e oposição (1971).
Esse modelo é bastante próximo do modelo elitista e também partilha da pretensão
“realista” deste, embora o pluralismo considere o elitismo pouco realista por basear-se no
cidadão individual e perder de vista os grupos e associações políticas. Dessa forma, a teoria
pluralista desenvolve o princípio da competição em torno da ideia de “interesses”, julgando
que as elites políticas se organizam e competem pelo poder.
O cerne da posição pluralista está na sua concepção de poder como a capacidade de
impor objetivos a outrem. Assim, a problemática estaria em entender a lógica de distribuição
do poder nas democracias ocidentais, lógica essa que, na concepção pluralista, seria
competitiva e não-hierárquica.
Para Dahl (1997), a sociedade estaria representada por diversos núcleos de poder
agrupados por interesses4, formando um jogo em que vence aquele que melhor articula suas
estratégias. Dentre os diferentes tipos de democracia, caracterizados pelo autor como
“arranjos institucionais” centrados no processo eleitoral, a democracia poliárquica – governo
das múltiplas minorias – seria o regime que melhor se adéqua à configuração pluralista, pois
4
Os grupos de interesses seriam representados organizações comerciais, sindicatos, partidos políticos, grupos
étnicos, estudantes, grupos religiosos, etc.
27
quanto menor for a unidade democrática, maior será o potencial para a participação
cidadã e menor será a necessidade para os cidadãos de delegar as decisões de governo
para os seus representantes. Quanto maior for a unidade, maior será a capacidade para
lidar com problemas relevantes para os cidadãos e maior será a necessidade dos
cidadãos de delegar decisões para seus representantes. (DAHL, 1998, p.110)
1944; The Constitution of Liberty, 1960) e Robert Nozik (Anarquia, Estado e Utopia, 1974).
O modelo “legal” possui um caráter normativo e faz uma radical defesa das liberdades
negativas como princípio soberano. Tal pressuposto leva a defesa do Estado Mínimo e do
laisser-faire como valor fundamental da organização social. A intervenção estatal é
considerada prejudicial à liberdade. Essas ideias ganharam força no final do século XX, com
o projeto “neoliberal” e o declínio dos modelos de Estado de bem-estar social.
Dentro desse modelo, é reforçada a lógica competitiva como a forma mais democrática
de distribuição do poder, pressupondo a igualdade política na defesa dos interesses
individuais. Retomando a tradição liberal (Locke, Tocqueville), o aspecto fundamental dessa
teoria é evitar a “tirania da maioria”. Desta forma, a democracia não é considerada um fim em
si mesma, mas um “instrumento útil” para salvaguardar o mais alto fim político, que é a
liberdade individual. Nenhuma proposta de democracia poderia estar, portanto, associada a
alguma forma de “bem-estar social”, pois isso retiraria a condição de liberdade individual.
Nesse sentido, propõem-se a desvinculação entre democracia e cidadania e a redução da
democracia a um “instrumento” de garantia das condições de liberdade individual, sem que os
resultados da deliberação democrática estejam vinculados a valores de justiça social.
O ponto em comum entre as vertentes teóricas agrupadas em torno da concepção
“liberal representativa de democracia” é que a participação e a “soberania popular” são
reduzidas a mecanismos de representação e procedimentos para a formação de consensos. De
forma geral, o modelo democrático liberal tem sido hostil à participação ativa e, quando a
admite, o faz em termos de pequena escala.
Há, portanto, uma valorização da democracia formal em detrimento da democracia
substancial, ou seja, valorizam-se os procedimentos e as regras pelas quais são tomadas as
decisões, e desvaloriza-se a preocupação com valores que envolvam os resultados da
deliberação democrática. A democracia não é tida como valor, mas como método, rompendo
com o ideal rousseauniano, em que democracia formal (“vontade geral”) e democracia
substancial (“bem comum”) estavam fundidas.
herdeira do movimento político dos anos 60 –, esse modelo surge por volta dos anos 1970,
com as teorias de Carole Pateman (Participação e Teoria Democrática, 1970); e C.B.
Macpherson (A Democracia Liberal: origens e evolução, 1977).
A concepção participativa contrapõe-se aos modelos da concepção “liberal
representativa” à medida que segue os preceitos marxistas de que o mercado capitalista
cristaliza as desigualdades existentes na base da produção entre capital e trabalho. Desta
forma, não basta a igualdade política (democracia formal), seria preciso superar as
desigualdades materiais que impedem a efetivação da verdadeira liberdade, bem como os
déficits de formação política daí resultante (democracia substancial). Nesse sentido, esse
modelo defende a participação democrática em todas as esferas da vida: econômica, política e
social, como forma de equilibrar as relações de poder.
Em seu livro Participação e Teoria Democrática (1970), Pateman questiona os
argumentos da teoria democrática representativa de que, nas sociedades contemporâneas, a
participação teria de se restringir ao processo eleitoral, e de que o mais importante para a
democracia seria a competição pelos votos entre aqueles que irão tomar as decisões pelo
povo. De acordo com essas teorias contemporâneas (Sartori; Dahl; Eckstein; Berelson;
Schumpeter), a participação defendida pela “teoria clássica” baseia-se em fundamentos
empiricamente irrealistas e, portanto, estaria obsoleta.
Pateman (1992) argumenta que a noção de uma “teoria clássica democrática” não se
sustenta, pois essa noção ignora as diferenças entre os autores supostamente representantes
dessa “teoria clássica”. De acordo com a autora, Schumpeter “não apenas faz uma falsa
representação daquilo que os assim chamados teóricos clássicos tinham a dizer, como também
não se dá conta que podem se encontrar duas teorias bem diferentes sobre a democracia nos
textos deles” (p.30). Para ela, nem todos os autores clássicos adotaram a mesma visão sobre a
participação. Como a teoria elitista despreza essas diferenças entre os autores "clássicos", a
participação perdeu espaço na teoria democrática contemporânea. Em sua opinião, as
instituições representativas são insuficientes para o aprimoramento da democracia, sendo
necessária a participação em todas as estruturas da sociedade.
A partir disso, a autora chama a atenção para a popularidade e recorrência adquirida pela
participação nos anos 1960 em uma diversidade de situações, e propõe uma teoria
democrática participativa que seja viável. Para isso, ela retoma alguns autores clássicos que
consideram fundamental a participação para o estabelecimento do Estado Democrático, no
caso, J.J. Rousseau e J.S. Mill. A teoria democrática participativa de Pateman inclui as
preocupações de Rousseau em relação ao nível de igualdade econômica e a importância da
30
Nos termos propostos pela teoria deliberativa, a democracia não pode ser reduzida à
organização político-estatal, nem pode abrir mão da institucionalidade político-estatal. Ela
deve ser compreendida como uma “forma de vida”, que pressupõe uma “cultura política” que
sustente, inclusive, a institucionalidade político-estatal (NOBRE, 2004). Entendida como uma
forma sócio-histórica a democracia implica em ruptura com tradições estabelecidas e com a
inserção de novas práticas, determinações e leis. Desta forma, em lugar da discussão sobre as
condições estruturais, proposta pela concepção hegemônica, a teoria deliberativa volta-se para
os elementos culturais e sociais que poderiam influenciar o processo democrático.
Assim, considerando a pluralidade como a base das sociedades contemporâneas, a
política também deve ser plural e terá de contar com o assentimento dos diversos grupos
societários num processo racional de discussão e deliberação. Nesse sentido, a teoria
deliberativa retoma alguns preceitos da teoria pluralista – tais como a pluralidade da
organização social e o consenso sobre as regras democráticas (Dahl) – e procura fazer a
reconexão entre procedimentalismo e participação.
Para Habermas, a legitimidade de um estatuto legal implica que todos os afetados por
esse estatuto concordem com ele, assim como concordem com o procedimento democrático
de obtenção desse “consenso” sobre as regras. De acordo com o “princípio D”, “apenas são
33
5
Como se sabe, a formulação inicial da esfera pública privilegiava a análise do processo de construção da esfera
pública burguesa, cuja origem tinha sido a “esfera íntima”. A família burguesa, os salões e círculos literários são
considerados por Habermas como espaços de construção de autonomias em relação à ordem hierárquica das
autoridades medievais.
34
arbitragem) que confere legitimidade às decisões tomadas por meio de tais regras.
Dessa forma, a teoria deliberativa abre espaço para a participação, lançando o conceito
de “esfera pública” e, ao mesmo tempo, mantém a atenção nos procedimentos de deliberação,
como critério de legitimidade. Para definir sua “teoria do discurso”, ou modelo
“procedimental” de democracia, Habermas (1995) retoma as concepções democráticas
“liberal” e “republicana”, articulando elementos de ambas.
sociais quando, na verdade, o problema da desigualdade está justamente na relação entre eles.
Ainda que eles discutam e deliberem em espaços distintos que os homogeneíze, em
determinado momento haverá enfrentamento, já que o que está em jogo é sua própria relação
de desigualdade.
Outra autora preocupada com as exclusões da “esfera pública” é Young, que destaca as
condições de participação, ressaltando que os indivíduos podem ser proibidos explicitamente
de participar, ou podem estar submetidos a condições que impossibilitem sua interação, como
quando a interação é construída de forma a excluir determinados grupos ou indivíduos. Essas
variáveis que envolvem as condições de deliberação colocariam em questão a própria
produção dos consensos no interior da esfera pública, e revelam o risco de que o processo
deliberativo fique restrito a um pequeno grupo de letrados.
Nesse sentido, a autora questiona a opção pela argumentação racional como o único
mecanismo de definição das escolhas políticas e defende outras formas de comunicação,
como: a) o cumprimento (geeting), entendido como uma comunicação que antecede a troca de
razões numa discussão; b) a retórica, como troca de argumentos, mas com estilo próprio e
direcionada a uma audiência; c) a narrativa ou o testemunho, como uma forma de partilha de
experiências de vida. (PEREIRA, 2007).
Acerca das diferentes formas de comunicação na esfera pública para que seja assegurada
a diversidade, Dryzek (2004, p.51) argumenta que é preciso respeitar as diferentes identidades
e os diferentes tipos de comunicação que as acompanham, porém “elas não devem ser
admitidas para autorizar um relativismo no qual a deliberação seja impossível e as identidades
sejam apenas afirmadas dogmaticamente”. Para ele, muitas formas de comunicação podem ser
admitidas desde que: sejam capazes de induzir à reflexão; não sejam coercitivas; e sejam
capazes de conectar a experiência particular de um indivíduo com algum princípio geral.
Dryzek (2004), por sua vez, procura tornar a democracia deliberativa mais compatível
com a realidade e refutar algumas críticas quanto a sua inviabilidade prática. Na sua proposta
da “democracia discursiva”, ele procura articular legitimidade e economia deliberativa,
desvinculando a legitimidade do critério de contagem do número de indivíduos reflexivos e
conscientes. Para isso, o autor sugere que a esfera pública seja “lar de uma constelação de
discursos”, os quais são definidos como “um modo compartilhado de se compreender o
mundo incrustado na linguagem” (p.48). Dryzek (2004) considera que esses discursos
competem por hegemonia na esfera pública e um resultado provisório dessa competição seria
a opinião pública que é transmitida ao Estado de diversas formas.
Assim, a legitimidade discursiva seria atingida “quando uma decisão coletiva for
38
consistente com a constelação de discursos presentes na esfera pública, na medida em que esta
constelação seja submetida ao controle refletido de atores competentes” (DRYZEK, 2004,
p.52). Ou seja, quanto maior o grau de ressonância, maior será a legitimidade discursiva.
Segundo o autor, para avaliar o grau de ressonância é preciso saber: quais discursos existem;
quais são seus pesos relativos; e se as decisões coletivas são consistentes com esse peso
relativo.
Ao propor que a deliberação seja “um intercâmbio ou disputa multifacetados entre
discursos dentro da esfera pública”, o autor também procura resolver o problema da economia
deliberativa (contagem dos indivíduos), argumentando que não é necessário determinar o
número de participantes para que se possa ter legitimidade, bastando apenas que a competição
discursiva seja empreendida por uma diversidade de atores.
Desta forma, a proposta de Dryzek faz reformulações na teoria deliberativa (Habermas,
Cohen), especialmente no que se refere à noção de esfera pública e ao processo deliberativo.
Na proposta de Habermas, a opinião pública é convertida em poder comunicativo como
resultado do processo eleitoral, e depois em poder administrativo via legislação, e a
legitimidade é assegurada pela aceitação pública do procedimento (das regras) da deliberação.
Desta forma, a centralidade da proposição habermasiana está no procedimentalismo
deliberativo, sem que haja abertura para a deliberação sobre conteúdo da legislação, ou seja,
não há espaço para a substância da opinião pública sobre um assunto. Além disso, Habermas
também parece desconsiderar que a opinião pública pode afetar o Estado sem que seja sobre a
legislatura, pois a administração também delibera. Outra questão é a ênfase atribuída ao
critério da eleição.
A formulação de Dryzek representa uma importante contribuição à teoria deliberativa,
especialmente no que tange ao procedimentalismo democrático e às possibilidades de
influência no conteúdo das políticas deliberadas, muito embora o autor tenha feito referência à
influência de discursos e não de mecanismos de decisão sobre o Estado. Segundo Dryzek
(2004, p.42), sua proposta procura colocar a democracia deliberativa “em termos de direito,
capacidade ou oportunidades universais para deliberar, em vez do exercício efetivo daquele
direito”.
Apesar de a ideia da competição entre discursos trazer contribuições à teoria
deliberativa ao reconhecer o conflito e a heterogeneidade da sociedade civil, e oferecer uma
saída para o problema da economia deliberativa, é preciso destacar que restam entraves à sua
operacionalização. Existem interferências que alteram a lógica de funcionamento da
competição de discursos como, por exemplo: a) as situações em que determinados grupos
39
6
Brasil, Colômbia, África do Sul, Portugal, Índia, e Moçambique.
42
7
Para a elite política a unidade territorial exigia a consolidação de um Estado forte e centralizado e a monarquia
era o elemento de integração política e social. Para os escravocratas a unidade territorial assegurava a
manutenção da escravidão, protegendo-os das revoltas abolicionistas regionais.
47
- A República Oligárquica
8
Para maiores detalhes ver GOHN (1995).
50
promoção de recursos dos institutos. O sistema previdenciário deixou de fora, porém, muitos
trabalhadores do meio urbano e rural, restringindo-se àquelas categorias que se enquadravam
na estrutura sindical corporativa. A política social brasileira era excludente, seletiva e
centralizadora.
O Estado Novo também é marcado pelo grande esforço em construir uma imagem mais
nacionalista e uniforme da nação brasileira por meio da associação entre Estado e Nação,
pela qual ambos formavam uma unidade indissolúvel que dispensava instrumentos
intermediários de representação, remetendo, assim, a legitimidade do Estado Novo ao seu
Projeto Nacional, cuja proposta era a “democracia social”. Essa projeção da Nação contém
uma imagem de povo, mas destitui-lhe de voz.
Em resumo, o processo de modernização brasileira se caracterizaria pela sua intensa
estatização baseada no corporativismo que, por sua vez, restringia as possibilidades
democráticas no país. Para Nogueira (1998, p.37), tratou-se de uma modernização
incompleta, pela qual
54
(...) a industrialização ganhará certo impulso mas não perderá seu caráter dependente
nem ingressará no terreno da produção de base (maquinaria e tecnologia); a legislação
trabalhista e social será implantada mas trará consigo dispositivos legais cerceadores
da ação sindical e o paternalismo desmobilizador do Estado; o velho sistema
oligárquico de dominação acabará derrotado mas não será substituído por um regime
democrático, e sim por uma articulação elitista administrada por um Estado que
submeterá a sociedade a si e assumirá feições bonapartistas, dedicando-se à
montagem de um complexo mecanismo de controle político e social das massas
emergentes.
Conforme Ianni (1993, p.73), são as forças sociais presentes na sociedade civil que conferem
ao Estado, em última instância, a capacidade de exercer determinado comando. O povo, os
grupos sociais, as classes sociais, criam e recriam as condições do governo, do regime, e do
Estado com base nas suas atividades políticas, econômicas, e culturais. “As formas do
Estado, as recorrências do autoritarismo e as vicissitudes da democracia têm suas raízes nas
relações internas e externas que movimentam a sociedade civil”.
responsabilidade dos sindicatos rurais, o que, somado à repressão inicial pelo regime,
contribuiu para reduzir sua combatividade política e gerou dividendos políticos para os
governos militares, que foram apoiados pelo eleitorado rural em todas as eleições
(CARVALHO, 2001). Outra inovação no campo das políticas sociais foi a criação do Banco
Nacional de Habitação, cuja finalidade era facilitar a compra de casa própria aos
trabalhadores de menor renda.
Foi em torno da proposta desenvolvimentista, cuja ideologia era “ordem e progresso”,
que todo o aparato administrativo foi organizado e direcionado em função da política
econômica proposta. A estratégia econômica consistia na substituição de importações de bens
de capital e matéria-prima, sustentada pelo investimento estatal e por empréstimos
estrangeiros. Para isso, retomou-se a centralização política juntamente com uma
desconcentração administrativa (Decreto-Lei 200/69); foram feitos grandes investimentos na
produção de bens de consumo, subsidiando grandes empresas nacionais e internacionais; foi
promovida a capitalização e a reprivatização da economia.
O chamado “milagre econômico”, ocorrido entre 1968-1974, representou um rápido
crescimento econômico, cujas taxas estavam em torno de 10% e até 13,6% ao ano. Porém,
como seria analisado posteriormente, tratou-se de um crescimento profundamente desigual,
que acentuou a concentração de renda no Brasil, sendo que o 1% mais rico aumentou sua
participação na renda total de 11,9%, em 1960, para 16,9% em 1980. Em 1980, enquanto os
10% mais ricos ficavam como 50,9% da renda total, os 20% mais pobres ficavam com
apenas 2,8% (CARVALHO, 2001).
Após curto período de crescimento, os índices começaram a declinar a partir de 1977,
chegando a -3,2% em 1983. Os problemas econômicos ressurgiram de forma acentuada, com
alta inflação, queda no salário mínimo e recessão econômica. Os desequilíbrios sociais
tornaram-se mais agudos, e a dívida externa havia aumentado. Esse também foi o período de
maior crescimento urbano, em 20 anos a população urbana havia saltado de 44,7% do total da
população para 67,6% em 1980, o que gerava enormes déficits de infraestrutura urbana.
À medida que a crise se evidenciava e a configuração social se modificava, o governo ia
perdendo sua base de sustentação e a oposição e manifestações sociais se acentuavam,
configurando um novo cenário reivindicativo juntamente com a abertura política. De acordo
com Kinzo (2001), o longo período de transição democrática no Brasil pode ser subdividido
em três fases: a) de 1974-1982, quando predomina o controle da transição pelos militares,
aproximando-se mais de uma tentativa de reforma do regime do que de uma transição de
fato; b) de 1982-1985, período em que ainda predomina o controle dos militares, mas em que
58
- (1790 -1850): A Ocupação das Terras da Região de Araraquara pelo Homem Branco
59
A região central do estado de São Paulo começou a ser povoada no final do século
XVIII, com a abertura de uma trilha que levava às minas de ouro de Cuiabá e Goiás. Os
povoadores saíam de Piracicaba, passando por Rio Claro, subindo as escarpas das encostas do
planalto, passando pelos campos, matas e cerrados de Araraquara, e estabeleceram-se na
região. A freguesia de São Bento de Araraquara foi fundada em 22 de agosto de 1817 pelo
Decreto n.32 de D. João VI, mediante aprovação do bispo de São Paulo, ficando subordinada
à vila de Itu. Era costume da época que se pedisse a aprovação eclesiástica para fundar
freguesias e vilas ou distribuir sesmarias, uma vez que a Igreja exercia funções burocráticas
no Estado português, ao qual o Brasil ainda se subordinava. Essa situação perdurou até a
Proclamação da República, tanto com o clero dando trato a assuntos civis, como com os
dirigentes do Estado português tendo poderes sobre a Igreja. Os primeiros moradores haviam
chegado por volta de 1790, sendo a presença mais antiga no local atribuída a Pedro José Neto.
De acordo com os historiadores, Pedro José Neto estaria fugindo da justiça de Itu, devido a
alguma pendência criminal ou política que nunca foi esclarecida. Há uma hipótese de que sua
fuga tenha relação com a inconfidência mineira, porém isso nunca foi comprovado
(TELAROLLI, 2003; CORREA, 1967).
A região, nessa época conhecida como os “Campos de Aracoara”, não tinha plantios
nem povoações próximas, de modo que, quando o local ascendeu legalmente ao estatuto de
freguesia, estava isolada. Tratava-se de uma região que fora passagem de viajantes, mas
nunca propriedade de ninguém. Os posseiros tomaram para si essas terras devolutas e,
valendo-se da extensão das pastagens, aproveitaram-na para a criação de gado e agricultura de
subsistência. Com o tempo e a geração de algum excedente da atividade agropecuária,
iniciou-se um incipiente comércio com as regiões vizinhas. A natureza dessa atividade
econômica prescindiu de escravos na região, cuja presença foi muito reduzida nessa época. Os
trabalhadores eram, em geral, os próprios posseiros, suas famílias, seus poucos escravos e os
agregados e camaradas9.
O incipiente comércio da região não foi o bastante para livrá-la do isolamento.
Araraquara comercializava principalmente com a região de Piracicaba, economicamente mais
ativa, mas, para isso, contava apenas com estradas de péssima qualidade, meras trilhas no
mato, que tinham de ser trasladadas com mercadorias levadas em lombo de burro e carro de
boi. Os apelos dos habitantes para a construção de estradas (muito caras na época) não foram
atendidos, com a justificativa de que a região não tinha expressão econômica que justificasse
9
“Os camaradas recebiam um pagamento por trabalho que faziam e os agregados podiam ou não receber, muitas
vezes moravam na mesma casa do dono da terra e recebiam alimentação e proteção” (TELAROLLI, 2003, p.32).
60
um investimento de tal monta. Os maiores proprietários das terras não moravam nas sesmarias
de Araraquara, segundo Corrêa (1967), os maiores sesmeiros eram habitantes de Itu, Porto
Feliz ou Piracicaba, onde tinham propriedades de maior valor. Por outro lado, o isolamento da
região era atrativo para os desordeiros fugitivos da justiça, índios fugidos da opressão dos
brancos, e negros dispostos à formação de quilombos, o que também desencorajava o
comerciante de fazer travessias no meio da mata.
Em 1832, a freguesia foi elevada à categoria de vila, e as decisões passaram a ser
tomadas por uma câmara de vereadores, que normalmente era ocupada por esses proprietários
de terra que viviam a léguas da cidade. Mesmo os que viviam dentro dos limites municipais
distavam muito uns dos outros, já que “as áreas onde se desenvolviam cidades como Jaú,
Brotas, São Carlos, Descalvado, Jaboticabal, São José do Rio Preto, além de muitas outras,
integravam os domínios de Araraquara” (TELAROLLI, 2003, p.41).
aumento significativo da presença de escravos na região, o que faz supor que a força de
trabalho fosse ainda a dos agregados, camaradas e familiares. O plantio de cana-de-açúcar deu
origem a alguns assentamentos familiares, que se fixaram na terra e passaram exigir melhorias
para a localidade como um todo.
O estabelecimento na terra ampliou-se com a instalação da agricultura comercial. O
maior entrave dessa agricultura era o escoamento da produção, para o qual os produtores não
tinham estradas. Ao longo da década de 1860, as famílias começaram a substituir a cana-de-
açúcar pelo café, mais rentável. Os capitais aplicados no café eram de origem heterogênea,
mas sua maior parte advinha dos sesmeiros que haviam acumulado riquezas com seus
engenhos situados em outros lugares (CORRÊA, 1967). Com o café, acumularam-se mais
riquezas na região, valorizaram-se mais as terras, e atraíram-se investidores de certo poder
aquisitivo, que pretendiam expandir suas lavouras. A região foi ganhando visibilidade e em
1866 Araraquara passa à categoria de Comarca.
Na década de 1880, já havia em Araraquara fazendeiros de café de relativo poder
econômico, embora até então a vila figure com participação reduzida no montante de riquezas
produzido pelo café na região. Em 1885, uma reivindicação desses fazendeiros deu início à
construção de uma estrada de ferro que chega à vila de Araraquara. A concessão da Cia. Rio
Claro de Estradas de Ferro foi feita ao Conde do Pinhal, que, depois de fazer com que os
trilhos viessem até São Carlos, reuniu-se com pessoas ligadas ao café em Araraquara e as
convenceu a tomar ações da companhia (TELAROLLI, 2003). Era o início de um novo
momento para a economia local. Em breve, os cafeicultores, dessa vez sob a liderança de
Carlos Baptista de Magalhães, formariam a sociedade que abriria a Estrada de Ferro
Araraquara. Com isso, Araraquara viria a se tornar um importante centro de referência
econômica na macrorregião central do estado. Por estar localizada na região central do estado
de São Paulo, passou a ser o ponto de entroncamento rodo-ferroviário, o que fortaleceu sua
economia e desenvolvimento.
O processo de crescimento econômico carecia de disponibilidade de mão-de-obra. Tanto
a valorização das terras quanto a produção de café em quantidade precisavam de quem
trabalhasse na lavoura e, como se sabe, a região tinha poucos escravos. Não bastasse isso, o
preço do escravo passava por uma alta sem precedentes, devido às restrições ao tráfico
negreiro (CORREA, 1967). Além disso, a abolição da escravatura já era dada como certo. Por
esses motivos, vê-se já desde 1870 em Araraquara a presença de imigrantes vindos de várias
regiões, como Suíça, Síria, Espanha, Portugal, Japão e, sobretudo, Itália. Além dos muitos
italianos que vieram chegando à região nos anos finais do século XIX, também um fluxo
62
não viviam em ferrenho confronto, viviam apenas em oposição. Em Araraquara não era de se
esperar algo diferente, embora, na região, o monarquismo fosse prestigiado, o que daria feição
à política araraquarense até 1908, quando o grupo de republicanos liderados por Bento de
Abreu Sampaio Vidal sairia vitorioso das eleições. Telarolli (2003, p.117-8) aponta, como
evidência desse prestígio, a eclosão de um movimento restaurador em Taquaritinga, que ficou
conhecido como “Rebelião do Ribeirãozinho”, e que atraiu para suas fileiras voluntários de
várias partes do Estado. Em Araraquara, republicanos e monarquistas teriam sua oportunidade
de se enfrentar na contenda que ficou conhecida como o “linchamento dos Britos”10.
O personagem que detonou o conflito foi um poderoso fazendeiro local, o coronel
Antonio Joaquim de Carvalho. Tratava-se de homem de letras, que teve a oportunidade de
estudar em São Paulo, junto com Campos Sales e Prudente de Morais, tornando-se aliado
político dos dois e, como eles, republicano. Em 1897, após um episódio de briga entre ele e
um ex-correligionário monarquista, o sergipano Rosendo de Brito, o coronel Carvalho é
morto. Rosendo e seu tio, que estava no local e nada tinha com o caso, foram presos na cadeia
da cidade, a qual era muito precária, e uma semana depois foi invadida por um numeroso
grupo que assassinou os Britos. Os monarquistas aproveitaram o ensejo e, nas páginas dos
principais jornais da capital, passaram a divulgar o assassinato de maneira escandalosa e a
atacar, assim, a República e os republicanos. Até um livro foi escrito com essa intenção,
chamado O crime de Araraquara. O julgamento ocorreu longe da cidade, perto de
propriedades de aliados do coronel morto, em Américo Brasiliense, de forma a intimidar os
jurados e garantir a absolvição dos acusados. Eles foram absolvidos; a cidade, não. Ela foi
apelidada de “linchaquara”, e seu povo, que apenas assistiu aos acontecimentos sem nada ter
com eles, levou a fama de bruto e incivilizado.
Na realidade, todo o dramático episódio com as três mortes deve ser compreendido à
luz do coronelismo, o sistema político que vigorava então. [...] Não fossem os
episódios de Araraquara, onde se contrapunham republicanos e monarquistas, e não
existisse ainda no Brasil uma forte aspiração pela restauração do antigo regime
decaído e os episódios, apesar da selvageria e da brutalidade, não teriam a
repercussão que tiveram, especialmente pelo apaixonado noticiário de imprensa, que
provocou comícios e reuniões de protestos em muitos lugares, inclusive em São
Paulo. (TELAROLLI, 2003, p.120-1)
10
Segundo Telarolli (2003), não houve linchamento e sim uma simulação de ação popular nos jornais.
64
entre figuras de alto escalão do governo conseguiam benefícios para sua cidade, e garantiam
seu prestígio. Além disso, era comum que os coronéis fizessem ações beneméritas em prol da
coletividade, mesmo porque só eles tinham posses suficientes para tanto. Quase toda a
prosperidade se devia a esse tipo de ação. Em Araraquara, são exemplos disso, a construção
do Jardim Público, inaugurado em 1º de janeiro de 1899, que contou com a contribuição de
figuras afamadas da cidade; a doação do sino de bronze da Igreja Matriz de São Bento por
Mafalda Pinto Ferraz, pertencente a uma família tradicional, os Pinto Ferraz; a imagem de
São Sebastião, doada por Sebastião Machado de Barros e a imagem de São Bento, por
Marquinha Vaz; e o órgão da matriz, trazido da Europa e doado por Tito de Carvalho. No
final do século XIX, também foi produto de doação, feita pelo coronel Joaquim Duarte Pinto
Ferraz, o terreno em que seria construído o primeiro grupo escolar da cidade. São exemplos,
ainda, a fundação da Santa Casa de Misericórdia, em 1902; da Beneficência Portuguesa, fruto
de uma articulação entre vários doadores iniciada em 1914; do Teatro Municipal, no início
dos anos de 1920; e da maternidade Gota de Leite, no início da década seguinte
(TELAROLLI, 2003, p.115).
Como se vê, não se fazia nada sem recurso ao dinheiro privado. A filantropia era a
principal forma de intervenção no social. Telarolli (2003) explica que os coronéis não se
esquivavam de empenhar seus recursos em tais projetos, pois eram movidos, muitas vezes,
por desejos de ostentação. Era comum que buscassem status entre os integrantes de sua
classe, especialmente frente aos de cidades vizinhas. É famosa, por exemplo, a disputa entre
araraquarenses e são-carlenses, e ilustra bem o caso que aqui discutimos.
Como pouco se faz sem o dinheiro do café, pouco se pode contra os cafeicultores. Isso
explica também o autoritarismo com que eles conduziam a política local. Sua postura de
generosidade, expressa pelas doações (que pouco espoliavam suas vultosas fortunas),
convivia com sua posição autoritária e conservadora, expressa na truculência dispensada aos
inimigos políticos, principalmente em épocas de eleição. O caso dos Britos não deixa de ser
exemplo disso, bem como o são os atos do filho de Antonio Joaquim de Carvalho, Plínio de
Carvalho, eleito para vários cargos políticos após o ano de 1908. Esse ano marca a transição
do poder local para um grupo liderado por Bento de Abreu Sampaio Vidal, que contava ainda
com Plínio de Carvalho e seu irmão, Dario de Carvalho. Os três eram cafeicultores e
mantiveram-se afinados com o poder estadual e, por isso, estiveram à frente do movimento de
urbanização.
Essa urbanização não foi um simples crescimento da cidade, que se desse de forma
desorganizada, mas de um crescimento meticuloso e pensado para ser bonito e confortável.
66
retração da atividade cafeeira, na década de 1930, trouxe novas culturas para Araraquara, que
teve seus plantios diversificados e o êxodo rural de muitas famílias. Boa parte delas se
mudava para o norte do Paraná, em busca de oportunidades. Já outros trabalhadores rurais
marchavam cidade adentro, em busca de melhores condições de vida. A maior renda
continuou a ser a do café, embora as terras cansadas dessem cafeeiros com baixa
produtividade. Esses cafeeiros extenuados por diversas safras não podiam ser replantados, já
que uma lei há certo tempo vigente impedia o plantio de novos pés de café. O cultivo que
mais cresceu foi o de algodão e, na década de 40, ainda em pleno Estado Novo, começou um
estímulo para que se investisse em indústrias nas periferias, com a intenção de absorver a
mão-de-obra ociosa do campo que inundava a cidade.
Esse foi o período em que o bairro Vila Xavier em Araraquara, isolado do resto da
cidade pela linha do trem, começou a crescer. Instalaram-se lá as empresas Anderson Clayton
e a Dianda Lopez, que absorviam a produção de algodão para fazer óleo. Além do algodão,
grandes fazendas de Araraquara, antes cafeicultoras, começaram a criar gado, que, como
sabemos, dispensa pouca mão-de-obra. Essa criação de gado quase não absorveu os
excedentes do campo, mas atraiu, em 1946, a Nestlé para o bairro da Vila Xavier. A fábrica
passou a consumir o leite produzido nessas fazendas para produzir leite condensado. Assim, a
indústria passava a empregar os desempregados pela quebra do café.
Nesse período, a questão social passou ser enfrentada pelo estado populista por meio de
uma política de valorização do trabalho como mecanismo de ascensão social e exercício da
cidadania. A classe operária é pensada como força produtiva e como base de sustentação
política do Estado. A noção de justiça social que emerge está vinculada a uma questão
nacional que enfoca o trabalho como uma forma de servir à pátria.
Com o Estado Novo, a política social orienta-se no sentido de “promover modificações
substanciais na capacidade produtiva dos trabalhadores atuais e futuros” (GOMES, 1982,
p.156). A nova política social pode ser compreendida em dois campos de intervenção: um é o
da previdência e assistência social, com o objetivo de recuperar ou fazer a manutenção da
força de trabalho; e o outro é o das condições de vida dos trabalhadores.
[...] a economia cafeeira de São Paulo foi a que demonstrou maior dinamismo no
contexto nacional. Resolvendo pioneiramente sérios problemas de infra-estrutura,
como o dos transportes ferroviários, do porto marítimo, de comunicações e de
urbanização, estava, ao mesmo tempo, criando um acumulo de economias externas
que beneficiariam a formação industrial, reduzindo-lhe os gastos de inversão e os
custos de produção. (CANO, 1983, p.227)
Esse cenário, é claro, foi atraente para os industriais da época, que começaram a se
proliferar pelo Estado. Tal vantagem referida por Cano (1983) é, ainda, aliada a outra, que diz
respeito diretamente à decadência do café. Como se sabe, muitos trabalhadores foram trazidos
ao interior do Estado para se ocupar das lavouras de café. Com a decadência do café e o
deslocamento desses trabalhadores para as cidades, há muita oferta de mão-de-obra para as
indústrias (CANO, 1983). O aumento do assalariado desencadeou o desenvolvimento do
comércio e do setor terciário como um todo, e um aumento no número de profissionais
liberais, intensificando a urbanização. Já desde a década de 1940, a população urbana de
Araraquara era maior do que a população rural (TELAROLLI, 2003).
Nessa época, os industriais passaram a ganhar expressão na política local, o que se
verifica principalmente na eleição de figuras como Rômulo Lupo para prefeito, e na eleição
de Aldo Lupo para deputado estadual, ambos da família proprietária da indústria de meias.
Também ganha expressão política a família Barbieri, ligada ao comércio; o grupo empresarial
ligado à Estrada de Ferro Araraquarense (EFA), cujo maior nome é Benedito de Oliveira; e
outro grupo ligado aos transportes rodoviários, que tem em Rubens Cruz sua maior expressão.
Essa nova elite política expressa as modificações econômicas por que passa a cidade.
Todo o interior de São Paulo passou por esse processo que descrevemos, embora haja
especificidades locais que dizem respeito, principalmente, ao tipo de atividade econômica que
se desenvolveu em cada microrregião. No caso de Araraquara, desenvolveu-se, a partir dos
anos 1950, o plantio de cana-de-açúcar e, a partir de 1960, o plantio de laranja. Mas não se
trata de simples plantio com vistas à exportação, e sim de uma atividade agrícola atrelada ao
beneficiamento industrial dos produtos do campo. O que se instalava em Araraquara, nessa
época, era a agroindústria, a qual inseriu, outra vez, a monocultura na região, a da cana e da
laranja. Desde meados da década de 1940 instalara-se na cidade a Usina Tamoio, que foi logo
seguida, na década seguinte, pelas usinas Maringá, Zanin, Santa Luiza, Santa Cruz e Santa Fé.
A cana passou a substituir os cafezais, contando, na década de 1960, com estímulos do
69
sendo prejudicada pela Segunda Guerra Mundial. Em 1973, foi instalada em Araraquara uma
unidade da Villares. Essas indústrias somam-se a outras, formando um considerável parque
industrial na cidade.
Portanto, na segunda metade do século XX, muita coisa havia mudado no município de
Araraquara. O mando dos coronéis vinha sendo reprimido na região desde a chegada do
Estado Novo. Com o passar do tempo, essa situação apenas se aprofundou. Na ditadura, a
partir de 1964, os governos estaduais de São Paulo passaram a incentivar a descentralização
econômica e administrativa, causando grande impacto sobre o perfil dos agentes políticos
locais. Os governos do período de 1964-82 fizeram a divisão do interior em regiões
administrativas, com sedes próprias, que aproximaram o poder público dos municípios,
tirando-os do isolamento (KERBAUY, 2000). Houve diversas propostas de interiorização,
como
seria uma boa maneira de atingir esse intento. Contra eles, vários agentes políticos
aglutinaram-se, também com contradições internas, no MDB. Esses agentes políticos eram os
surgidos da urbanização, que se opunham à política tradicional do interior. O MDB foi o
partido que ofereceu possibilidade de ascensão política à classe média recém-surgida. As
bases municipais desse partido, no interior de São Paulo, ampliaram-se graças à ação política
de Orestes Quércia. A atuação do partido, cujo lema era trazer a novidade política às cidades,
fundou-se na projeção de novas elites políticas locais (KERBAUY, 2000).
Segundo Kerbauy essas duas mudanças – descentralização administrativa e reforma
partidária – rompem com o poder coronelista e com a política tradicionalista, tornando a
política do interior (aí incluída a de Araraquara) mais burocrática e técnica, ainda mais
quando se passou a exigir dos governos municipais os Planos de Desenvolvimento Integrado,
que tornaram necessária a figura dos técnicos especialistas. Os políticos passaram a dividir as
decisões administrativas com esses novos quadros técnicos e vários grupos com interesses
privados encontraram meios de se valer desses quadros, especialmente os do setor imobiliário.
Os problemas administrativos e urbanos, altamente racionalizados e cada vez mais
complexos, levaram o político a dedicar-se de maneira integral à sua atividade. Ele deixou de
ser aquele que angariava fundos junto às esferas mais altas do governo, ou que empenhava
recursos próprios no atendimento a demandas pessoais e a benesses públicas para formar
currais eleitorais. Nesse novo contexto, ele passa a ser o político profissional, que exerce sua
função permanentemente. O centro de sua atuação profissional será aquilo que é condição
para que ele possa manter-se em serviço: a maximização do êxito eleitoral (KERBAUY,
2000). Essa alteração provocará uma mudança fundamental no modo de fazer política em
cidades do interior, como Araraquara:
No lugar do coronel ou antigo notável local – que detinha o monopólio das relações
da localidade com o mundo exterior e garantia a provisão de benefícios seletivos e
individualizados, referidos a grupos econômicos e sociais específicos –, surge um
político local, que tem no prefeito sua melhor expressão, que se aproxima do policy
broker que negocia bens coletivos para a comunidade e concilia a necessidade de
crescimento econômico com o atendimento das demandas de uma certa coletividade.
O domínio pessoal das relações políticas é substituído, no novo político, pela
normalização das regras administrativas. (KERBAUY, 2000, p.80)
O fim do coronelismo não significa, porém, o fim do clientelismo, pois ele passa a
existir de diferentes formas. O clientelismo, antes mediado pelos que detinham a posse da
terra, passou a ser mediado pelos que detêm poder sobre as estruturas administrativas:
prefeitos, deputados estaduais e federais, e os que ocupam cargos técnicos na administração
pública. Esse clientelismo de tipo novo não é mais o do atendimento a demandas estritamente
72
pessoais, mas o do atendimento a demandas de grupos. Ele implica, já, uma racionalidade
administrativa e certa impessoalidade. O ganho de votos, nessas condições, não poderá se
fazer apenas com base na pessoa do candidato, mas demandará uma cooptação permanente do
eleitorado (KERBAUY, 2000).
Os grupos beneficiados pelo novo contexto sociopolítico são os agentes sociais
emergidos da urbanização da cidade, organizados para obter do poder público a satisfação de
suas demandas. Trata-se, como diz Kerbauy (2000, p.79), de “associações comerciais,
sindicatos do comércio, representações da FIESP, associações profissionais liberais (médicos,
advogados, engenheiros, dentista etc.), associações de funcionários públicos e dos mais
diversos setores de serviços”. A pressão que esses grupos exercem sobre o poder público para
verem atendidos seus interesses é o que se pode chamar de “clientelismo de massa”. Apenas a
parcela politicamente desorganizada da sociedade é que ainda recorre ao clientelismo de tipo
antigo, mediado agora não pelos coronéis, mas pelos vereadores. Essa atuação política
singular dos vereadores se explica pelo ostracismo em que entrou o Legislativo após sua
quase desativação pela ditadura militar. Ele praticamente deixou de cumprir função política, e
passou a servir apenas como uma espécie de “estágio” para os políticos que desejassem, no
futuro, concorrer a cargos mais importantes. Nesse “estágio”, o político procurava ganhar
prestígio junto à população de modo parecido com o dos antigos coronéis: atendendo as
demandas pessoais daqueles que não se organizaram em grupos capazes de pressionar o
Executivo. A carreira política de Waldemar De Santi (PDS) em Araraquara ilustra bem essa
dinâmica. Após ter sido eleito vereador por quatro vezes, De Santi (PMDB) governou a
cidade em três mandatos.
Contudo, para barganharem melhores condições de desenvolvimento, os municípios
tinham que negociar nas esferas estadual e nacional, o que acabava resultando numa posição
situacionista dos municípios diante da ditadura militar. Os governos estadual e federal
exerceram grande influência, uma vez que a administração municipal era ameaçada com a não
doação de benesses oficiais, principalmente verbas. Desta forma, as eleições para cargos
municipais assumiram características diversas daquelas para o Legislativo Estadual e Federal.
Essa forte influência estadual e federal tornou clara a opção situacionista da maior parte dos
municípios, garantindo ao regime autoritário o controle da situação sem precisar impedir a
realização de eleições nos governos locais.
Somente em meados da década de 1970 e com a consolidação de importantes mudanças
na estrutura social do município, que as bandeiras nacionais emedebistas começaram a
penetrar no nível local, com lemas como “renovação”, “democracia” e “participação”. A
73
partir daí, Araraquara passou a votar mais intensamente no MDB – voto esse que expressava
o maior peso dos grupos novos da política municipal –, e a ter um padrão de comportamento
eleitoral típico de cidade urbanizada. A migração de votos da ARENA para o MDB, nítida
nos grandes centros, tornou-se patente nas cidades médias. Isso rompeu com uma tradição de
décadas em que “(...) o situacionismo e os acordos entre elites municipais, estaduais e federais
garantiam vitória à situação e a perpetuação dos governistas” (KERBAUY, 2000, p. 102).
Como esse processo ocorreu concomitantemente em quase todo o interior do Estado de
São Paulo, o peso do voto dessas camadas médias urbanas tornou-se decisivo para as eleições
estaduais, de modo que os políticos que aspirassem a algum sucesso eleitoral em São Paulo
precisavam cativar o eleitorado. Nas eleições para senador em 1975, Araraquara revelou-se
definitivamente oposicionista. Nesse mesmo ano, o então desconhecido Orestes Quércia
ganhou a eleição no município para senador. E, em 1978, a votação para o candidato
emedebista ao senado suplantou a média dos votos no Estado - 82,4% (TOLEDO, 2006).
Está, assim, completo o quadro em que se delineará a política moderna de Araraquara.
Os antigos padrões de comportamento, típicos de uma cidade institucionalmente isolada e
com sua economia composta de um único plantio, chefiado por umas poucas famílias,
desmoronaram. Kerbauy (2000, p.95-6) nos mostra como essas famílias cedem espaço aos
grandes empresários, que até mediam certos problemas municipais, mas não participam da
gestão municipal. Eles têm poder para negociar diretamente com os poderes estaduais e
federais, e não são mais os donos de fabriquetas familiares, das quais o chefe era um
imigrante, do tipo self made man, mas sim os administradores de grandes complexos
industriais. A classe média não é mais composta de imigrantes, nem se dedica às profissões
artesanais. O setor de comércio e serviços se expande e ganha uma enorme diversificação,
para o que contribuiu o aumento do número e da variedade de instituições de ensino na
cidade. A classe média também não será mais composta pelos ferroviários, já que a ferrovia
estava empregando menos e passou-se investir no sistema rodoviário no interior do estado,
principalmente entre os anos de 1950 e 1970. A classe média será agora composta por
funcionários, tanto de secretarias estaduais e federais como de universidades, e por
profissionais liberais assalariados, organizados em sindicatos e associações de classe. O
operariado da cidade torna-se sindicalizado, e também se sindicalizam os trabalhadores rurais,
que agora são os “boias-frias”.
O novo perfil do representante político local, o policy broker, caracterizado pelo político
“administrador” e negociador, aparece nas eleições municipais de 1972, com a eleição de
Clodoaldo Medina (ARENA), comerciante e dono de financiadora; e depois, em 1976, com a
eleição de Waldemar De Santi (MDB), eleito diversas vezes vereador da cidade. A gestão de
De Santi se prolongou por seis anos e foi marcada pelas pressões do governo federal em
relação à legenda dos políticos oposicionistas locais, mediante um conjunto de
favorecimentos e atendimento de velhas demandas municipais. Foi em troca da sede da 12ª
Região Administrativa do Estado que De Santi mudou de partido, migrando para a ARENA.
Esse fato marca o compromisso clientelista entre a esfera municipal e a federal, e um novo
tipo de coronelismo. De um lado, o governo local teve suas expectativas pessoais realizadas,
aumentando seu prestigio e controle sobre o eleitorado devido à garantia de um número
razoável de empregos públicos em órgãos da administração regional. De outro lado, o bloco
da situação acomodou-se nos anseios da elite política local, o que fez com que o
situacionismo fosse reintroduzido na rota política do município.
Parece paradoxal, mas a oposição local (MDB), após montar uma máquina partidária
muito eficiente no período 1964-1982, reintroduziu o município na rota do
situacionismo. A política local assumiu caráter conservador. E foi o estafe de ajuste
político das classes médias em ascensão, que a seu tempo, passou a cumprir o
minueto conciliador de conflitos e de mitigadora das manifestações político-eleitorais
da população desorganizada. (TOLEDO, 2006, p.102-103)
11
Frisamos aqui que nos referimos ao voto no MDB especificamente em Araraquara. O partido tem um caráter
na esfera nacional e estadual, outro na esfera municipal, conforme salienta Kerbauy (2000). A análise do voto
em cada esfera, por isso, deve ser diferenciada, de modo a contemplar as especificidades de cada uma.
76
12
De acordo com essa ideologia, a história deveria evoluir num sentido dado, tido como naturalmente melhor.
Esse seria o caminho do aperfeiçoamento técnico que, por ser derivado da ciência, é visto, no positivismo, como
neutro e infenso à influência ideológica.
77
Várias lideranças municipais disputaram entre si, todas elas com projetos semelhantes
para a cidade. Edinho do PT, que não fazia parte dessas lideranças, foi quem conseguiu a
vitória em 2000, um resultado surpreendente à época, mas não isolado. O PT conseguiu um
número expressivo de vitórias a partir desse ano, tornando-se um dos mais competitivos
partidos brasileiros. Esse foi o momento de uma inflexão no discurso do PT, que diminuiu o
tom esquerdista, proveniente de sua origem nos movimentos sindicais, e tomou o discurso da
eficiência administrativa. A inflexão da esquerda não é uma tendência brasileira, mas
mundial. Nogueira (2001, p.136) afirma que essa situação é fruto de um desgaste do
marxismo, e que esse desgaste introduziu nas esquerdas uma necessidade de “novos símbolos,
conteúdos, jargões e procedimentos em sua cultura”.
Ao que parece, em Araraquara, um misto de continuísmo com vontade de rompimento
guiou as eleições que levaram Edinho do PT à prefeitura. Continuísmo porque o PT ganhou
expressão quando adotou o discurso dos políticos aos quais se opunha. Vontade de
rompimento porque Edinho venceu figuras conhecidas do eleitorado da cidade, o que parece
indicar um desgaste da imagem desses candidatos junto à população, ansiosa por
modificações na vida política local. Essa ambiguidade marcou não só a eleição de Edinho,
mas os muitos votos que o PT passou a ganhar a partir de 2000, em todo o Brasil.
O registro histórico que fizemos até aqui aponta para o caráter autoritário assumido pelo
Estado em decorrência das forças sociais que, por meio dele, impõem seu domínio. Com base
na análise oferecida por Ianni (2004), vimos que o Estado esteve organizado e orientado
conforme os interesses do bloco no poder, e toda vez que tal organização foi ameaçada, as
classes e frações de classes (agrárias, comerciais, industriais, nacionais e estrangeiras) criaram
ou rearticularam o bloco de poder, assegurando o domínio sobre o aparelho estatal. O projeto
de modernização do país, engendrado pelas elites brasileiras no século XX, proporcionou um
crescimento econômico desigual e concentrador de renda, cujo resultado final foi o contraste
entre ser a décima economia do mundo e ser também o país mais desigual de todos. As elites
não se preocuparam, portanto, com um desenvolvimento mais universalista e foram impondo
seu projeto político de “cima para baixo”, suprimindo as manifestações sociais contrárias e
ocultando o papel das classes populares como sujeitos políticos.
Assim, diante da ameaça de perder o poder, as elites não hesitaram em deixar de lado a
democracia e lançar mão de instrumentos autoritários. Todas as tentativas de ruptura com a
ordem democrática a partir de 1930 envolveram conflitos entre as elites acerca do papel do
Estado, o que contraria os pressupostos da “concepção hegemônica da democracia” de que as
elites aderem aos valores democráticos, e de que a competição entre elas assegura a ordem
democrática. No Brasil, a regra entre as elites não foi a competição e sim a conciliação de
interesses e, quando esta não era possível, apelou-se para os golpes de Estado e ditaduras,
evitando que qualquer movimento radical pudesse vir das classes populares.
De acordo com Ianni (2004), a força repressiva, e a preeminência dos interesses dos
grupos e camadas dominantes representados no aparelho do Estado eram de tal porte que
alguns intelectuais e políticos imaginavam que a sociedade era amorfa, e o Estado organizado.
Algumas das interpretações que adotam a concepção da “via prussiana” ou “revolução
passiva” acabam perdendo de vista a história social do povo, suas revoltas e lutas, reforçando
a ideia de que a sociedade civil é “amorfa” e incapaz de promover a transformação social.
Assim entendida, a tese da “revolução passiva” funciona como ideologia das classes
dominantes de que a sociedade civil é frágil e, por isso, deve ser tutelada pelo Estado forte e
supostamente neutro.
Contrariamente à noção de que a sociedade brasileira é amorfa e apática às questões
políticas, as inúmeras revoltas e enfrentamentos ocorridos no Brasil – desde as lutas da
Colônia contra a Metrópole, passando pelas lutas contra a escravidão e pelo sindicalismo
anarquista do início do século XX – mostram que a participação política e o confronto social
fazem parte da nossa história. E, se é verdade que o aparelho estatal estava organizado e
orientado pelo bloco político no poder para atender seus interesses, também é certo que esse
Estado era mobilizado no combate a qualquer força que ameaçasse o poder estabelecido.
Assim, a intensidade da reação, por vezes, ocultou e desmobilizou as lutas dos setores
populares. Além disso, como argumenta Gohn (1995), a ausência da democracia ou de ideais
socialistas mais articulados dificultava uma maior coesão e organização social. Em lugar
disso, a conciliação tornou-se a principal estratégia utilizada entre as elites dirigentes nos
momentos de crise ou de mudança.
O predomínio do modelo de dominação oligárquico e patrimonialista afetou
profundamente a formação do Estado, a cultura política, a constituição do sistema político e a
construção da cidadania no Brasil. O caráter autoritário do Estado, a restrição ou privatização
79
Nas últimas décadas do século XX, houve grandes expectativas em relação às mudanças
no cenário político, especialmente na América Latina, devido ao processo de
redemocratização e ao fortalecimento da sociedade civil. As décadas de 60 e 70 foram de
grande mobilização política em diversos lugares do mundo, e essa mobilização caracterizava-
se pela proposta de transformação e rupturas com a ordem vigente.
No Brasil, essa mobilização repercutiu sobre a redemocratização do país, criando novos
parâmetros para a construção democrática e ampliando a noção de cidadania e os direitos
sociais. Contudo, o contexto sócio-político dos anos 1990, inseriu novas tendências ao
processo de democratização, fazendo com que a reforma do Estado fosse permeada por
consensos e divergências entre as diferentes agendas de reforma.
Nesse capítulo, trataremos das mudanças introduzidas pelo processo de democratização
e reforma do Estado no padrão de relacionamento entre Estado e sociedade civil e na
consolidação da política social, discutindo seus efetivos avanços em termos de ampliação da
cidadania e maior protagonismo popular.
O período compreendido entre os anos 1970 e 1980 representa o auge dos movimentos
sociais e da literatura sobre eles. Em nenhuma outra época as ideias de povo e de participação
popular ganharam significado tão positivo no pensamento sociológico da “esquerda”. No
campo teórico, as reinterpretações sobre a cultura política no Brasil rejeitavam as propostas
interpretativas de que as massas eram “amorfas” e subordinadas, e introduziam a noção de
que as classes populares seriam os sujeitos privilegiados do processo de mudança em curso.
autoritário.
O rápido processo de urbanização desencadeou uma série de problemas em relação à
infraestrutura e aos serviços públicos nos grandes centros urbanos13, gerando protestos e
reivindicações populares. Nessa época, surgem vários movimentos urbanos de caráter
reivindicativo e com alto poder mobilizador, juntamente com as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs). Além desses, havia também o movimento sindical com o “novo sindicalismo”;
os sindicatos rurais juntamente com a Pastoral da Terra; os “novos movimentos sociais”,
voltados para as questões ligadas aos direitos civis, à subjetividade e ao meio ambiente; e os
partidos de oposição.
Toda essa articulação social trouxe mudanças significativas para a forma de organização
e atuação dos movimentos sociais, dando-lhes direcionamento e continuidade. Muitas
organizações de perfil assistencialista abandonam tal estratégia e passam a adotar ações
politizadoras. Setores da “esquerda” abandonam a estratégia anterior, baseada no Estado-
nação, e partem para uma espécie de “popular desenvolvimentismo”, que envolvia a definição
de metas para a organização autônoma da sociedade civil. Em meio à crise do marxismo,
segmentos da intelectualidade descobrem o conceito de sociedade civil de Gramsci, o que se
reflete no campo das ações sociais devido à “filosofia da praxis” (DOIMO, 1995, p.75).
Quanto aos movimentos urbanos, eles encontram apoio institucional, material,
organizacional e simbólico na Igreja Católica por meio de suas pastorais e CEBs, num
momento em que a Igreja abre-se para novas experiências organizativas e teológicas,
enfatizando a “autonomia das organizações de base” frente ao avanço da racionalidade do
Estado14. Também são intensificados os programas de colaboração internacional com a
profusão de ONGs voltadas para a “educação popular”. As ONGs seriam a expressão mais
bem definida das redes movimentalistas, servindo de elo entre os atores dispostos a participar
continuamente em movimentos reivindicativos, formando uma ampla rede de interação e
movimentação. Por meio dessas redes sociais circulam as informações, objetivos, recursos e
registros de um universo político não-especializado e não-institucionalizado (DOIMO, 1995).
Doimo (1995) defende que o todo organizado que compunha o Movimento Popular nos
13
Na década de 70, cerca de 80% das habitações urbanas em São Paulo não tinham rede de esgoto e 54% não
dispunham de um sistema regular de água. Além disso, 2/3 das ruas não eram pavimentadas e mais de 70% não
tinham iluminação pública (Moises, 1977).
14
Segundo Doimo (1995), três fatos teriam marcado a posição da Igreja rumo ao “Povo como sujeito”: a
campanha de esclarecimento público deflagrada em 1973 sobre os direitos humanos no Brasil; o documento
‘Escutai os Clamores do meu Povo’, subscrito por Bispos e religiosos do Nordeste; e o documento
‘Marginalização de um Povo’ dos Bispos de Goiás e do Centro-Oeste.
82
anos 70 era fruto da interação entre a Igreja Católica, agrupamentos de esquerda, organizações
não-governamentais e intelectuais. E, apesar do caráter diverso, fragmentado e localizado,
próprio dos movimentos de ação-direta, é possível observar regularidades, homogeneidade e
continuidade entre esses movimentos, o que leva à caracterização de um grande ciclo
reivindicativo. Compõe-se, assim, um campo ético-político autoidentificado como
Movimento Popular, cuja caracterização e articulação se davam pelas conexões ativas, pela
linguagem comum e pelas redes movimentalistas. Conforme Sader (1988), esses setores
sociais redefiniram a forma de organização e atuação dos movimentos sociais, alterando sua
relação com seus respectivos públicos e fornecendo novas matrizes (Teologia da Libertação, o
marxismo renovado, e novo sindicalismo) que sustentariam a participação política autônoma
frente ao Estado. Tal interação não só colocou a capacidade ativa do povo no centro da
elaboração teórica como também o promoveu como personagem central da vida política.
Enquanto Dom Mauro Morelli proclamava já em 1976 que “nós devemos ser
sujeitos da nossa própria historia”, e enquanto teólogos progressistas
entendiam, também em meados da década de 70, a presença do provo
organizado como um “novo sujeito histórico”, os intelectuais conferiam
legitimidade a esse discurso, nomeando os movimentos sociais emergentes de
“novo sujeito coletivo” (Moises, 1982, p.36), “sujeito popular” (Petrini, 1984,
p.84), “sujeito político” (Caccia Bava, 1983, p.9), “sujeito político histórico”
(Martins, 1987, p.15), “sujeitos de sua própria história” (Evers, 1985, p.18).
(DOIMO, 1995, p.78).
À medida que a noção de povo, como sujeito ativo, ganhava proporção, também ficava
mais evidente a posição de recusa à institucionalidade política, como modo de evitar que o
movimento fosse instrumentalizado por partidos ou governos no contexto da ditadura militar.
sentido, Doimo (1995) ressalta o caráter ambíguo dos movimentos reivindicativos, afirmando
que eles possuíam uma face expressivo-mobilizadora e outra reivindicativo-integrativa, porém
essa dupla face também funcionava como fator agregador entre os diversos setores sociais.
15
Para melhor compreensão sobre as fases ou gerações da esquerda no Brasil ver Garcia (1994).
85
ser percebida pela ausência de referências internacionais (crise dos paradigmas comunista e
social-democrata), pela heterogeneidade ideológica, e pela ênfase dada à democracia. A
democracia passa a ser vista não mais como um meio, mas como um fim, como um objetivo a
ser construído. A democracia política aparece vinculada à democracia econômica e social,
pois se considera que, sem enfrentar o tema da desigualdade econômica e social, a liberdade
política estava ameaçada16.
Algumas reformulações do pensamento “de esquerda” podem ser observadas na defesa
de novas teses sobre a democracia, Toledo (1994) destaca as seguintes: a) o recuo em relação
ao caráter classista da democracia moderna, pois, uma vez que ela era fruto das lutas dos
trabalhadores, poderia levar gradativamente à hegemonia destes sobre o conjunto da
institucionalidade democrática; b) a associação entre as classes trabalhadoras e a democracia,
sendo esta um instrumento do operariado e das massas populares contra a burguesia, de forma
que a democracia deixaria de ser vista como um instrumento de legitimação da ordem
burguesa e tornar-se-ia um valor em si mesma; c) considerações sobre a relação entre
socialismo e democracia, entendendo que o projeto socialista só seria possível se houvesse
ampla hegemonia no conjunto da sociedade, a qual deveria ser obtida por meio de
instrumentos democráticos. Isso implica, por um lado, a recusa à ação violenta ou às rupturas
com os setores dominantes e, por outro, uma aposta na radicalização da democracia como
projeto de sociedade. Embora essas teses sobre a democracia não tivessem sido aderidas por
toda a esquerda, elas se difundiram e criaram certa articulação em torno de alguns de seus
aspectos.
De outro lado, o fortalecimento e a articulação da sociedade civil nos anos 70
possibilitou uma maior mobilização em torno do processo de democratização, associando-o à
noção de direitos. A cidadania foi tomada pelos setores progressistas da sociedade como uma
“estratégia política” na construção de uma democracia que envolvesse também a cultura
política e as desigualdades nas relações sociais. Nesse sentido, Dagnino (1994) ressalta a
emergência de uma “nova noção de cidadania”, que teria surgido a partir das experiências
concretas, de um lado, dos novos movimentos sociais urbanos e de luta por identidade,
reafirmando o entrelaçamento da cidadania à cidade e colocando novas demandas sociais e,
de outro, da construção democrática, buscando aprofundar a democracia para além do aspecto
institucional.
Segundo a autora, essa “nova noção de cidadania” se distingue da concepção liberal de
16
Essas reflexões estão presentes nas produções teóricas da esquerda brasileira: A democracia como valor
universal (1979) de Carlos Nelson Coutinho; Por que democracia (1984) de Francisco Weffort.
86
cidadania nos seguintes pontos: a) não se limita à conquista legal dos direitos ou ao acesso
daqueles já definidos, mas redefine-os e inclui a invenção/criação de novos direitos, que
emergem de lutas específicas e da sua prática concreta, cujo ponto de partida é a concepção de
“direito a ter direitos”; b) ao contrário da concepção liberal, a nova concepção não se vincula
a uma estratégia das classes dominantes e do Estado para a incorporação política progressiva
dos setores excluídos rumo à integração social ou ao desenvolvimento do capitalismo; trata-
se, ao contrário, de uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos, de uma cidadania de
“baixo para cima”; c) o alargamento do âmbito da nova cidadania, que vai além do conjunto
formal de direito, constitui-se numa “proposta de sociabilidade”, a qual envolve relações
sociais mais igualitárias; d) a ampliação da concepção de cidadania implica, em relação à
liberal, na transcendência do foco privilegiado da relação com o Estado (Estado/indivíduo),
para incluir fortemente a relação com a sociedade civil; e) transcendência da referencia liberal
em que a luta é pela inclusão, “pertencimento” ao sistema político. Na nova noção de
cidadania, a luta é pela participação na própria definição desse sistema e pela invenção de
uma nova sociedade. (DAGNINO, 1994).
Um aspecto importante dessa concepção de cidadania é que ela agrega tanto os direitos
formais quanto a noção de sociabilidade, o que vai além da armadura institucional e permite
que as desigualdades e os conflitos sociais sejam reconhecidos e não fiquem mascarados pela
ideia da igualdade formal. O reconhecimento da “diferença” e da desigualdade não significa,
porém, abrir mão da igualdade em favor de “particularismos” ou “parcialidades”, mas
significa defender tanto o direito à igualdade quanto o direito à diferença. Como explica
Dagnino (1994, p.114) “a diferença emerge enquanto reivindicação precisamente na medida
em que ela determina desigualdade. A afirmação da diferença está sempre ligada à
reivindicação de que ela possa existir como tal”. Daí a associação entre a cidadania e a
construção democrática a partir das bases sociais. Numa sociedade heterogênea e desigual,
que não atingiu patamares mínimos de igualdade social e civil, a dinâmica de resolução de
conflitos se processa “por fora” das estruturas estatais e das armaduras jurídicas e
burocráticas. A igualdade formal é, portanto, insuficiente para resolver conflitos que emergem
e se resolvem por mecanismos informais, seguindo a lógica excludente e autoritária que rege
as relações sociais dessa sociedade. Como defende Vera Telles, a cidadania carrega a ideia de
um “contrato social dinâmico” regido pelo reconhecimento do outro.
17
Um exemplo disso é a prefeitura de São Paulo com a eleição de Luiza Erundina (PT), representando os
próprios movimentos populares. Os primeiros governos municipais de esquerda formularam propostas críticas e
alternativas aos limites da institucionalidade democrática representativa, e mais atentas à criação e difusão de
uma cultura democrática no âmbito societário. No entanto, esse quadro foi se alterando.
92
incorporando a dimensão da cultura política democrática e todos os espaços que ela atravessa.
A estratégia fundamental da luta empreendida pelos diversos setores sociais que compunham
o “projeto democratizante” foi a definição e apropriação de uma nova noção de cidadania, que
possibilitou uma visão ampliada da democracia (DAGNINO, 1994; TELLES, 1994).
O processo de democratização no Brasil, bem como em outros países da América
Latina, recolocou na agenda de discussão algumas questões importantes sobre a democracia.
Uma delas foi o questionamento sobre o seu caráter estritamente institucional, demonstrando
que este é insuficiente diante das relações hierarquizadas existentes numa sociedade
heterogênea e desigual. A segunda diz respeito ao desprezo, pela “concepção hegemônica” de
democracia, pelo papel da mobilização social e ação coletiva na construção democrática. As
experiências dos países latinos mostram que os movimentos sociais não só foram atuantes
como contribuíram para dar um novo significado às relações entre cultura política e
aprofundamento democrático. A terceira questão refere-se à relação entre procedimentalismo
democrático e participação social e ao fato de a “concepção hegemônica” reduzir o
procedimentalismo ao processo eleitoral, juntamente com a proposição da solução burocrática
na gestão pública, sem responder se isso esgotava o processo de autorização por parte dos
cidadãos ou se esgotava a representação da diferença (SANTOS e AVRITZER, 2002). A luta
da sociedade civil pela participação tanto na definição do sistema democrático quanto na
deliberação sobre as políticas sociais coloca a demanda por um novo padrão de
relacionamento entre Estado e sociedade civil, padrão esse que contenha princípios
participativos. O surgimento de novas experiências participativas traz a possibilidade de
articulação entre procedimentalismo e participação.
A participação de novos atores sociais na cena política durante a democratização nos
países da América Latina abriu uma disputa pelo próprio significado da democracia, pois,
enquanto os movimentos sociais associavam a democracia a uma nova noção de cidadania e a
uma nova forma de sociabilidade, o diagnóstico hegemônico sobre a crise do Estado
caracterizava a “radicalização democrática” como um “excesso de demanda” que colocava em
risco a governabilidade dos países latinos. A partir disso, os processos democráticos latino-
americanos acabaram sendo alvos de descaracterização ou cooptação pelas elites excludentes
ou metropolitanas (SANTOS e AVRITZER, 2002).
pelo FMI, sobretudo ao Terceiro Mundo, reforça a perda de substância dos Estados nacionais,
ao reorientar a parte mais competitiva da economia para a exportação e, assim, incorrer no
risco da desindustrialização, além de conter o mercado interno e bloquear o crescimento dos
salários e dos direitos sociais (BEHRING, 1998).
No que diz respeito à influência das “nações hegemônicas” sobre as chamadas “nações
secundárias”, os estudos nessa área apontam que tal influência se expressa através de relações
coercitivas de poder, que vão desde a ameaça de retaliação e embargos em várias áreas até
incentivos econômicos e financeiros. A hegemonia dessas nações tem provocado alteração
nas “orientações e valores das elites nacionais, difundindo novas idéias e crenças causais, em
especial sobre as funções do Estado ou sobre meios e fins da economia”, para responder à
crise do capitalismo neste estágio globalizado (COSTA, 1997, p.2).
Consideramos que os países centrais, de forma diretamente ou pela via das agências
internacionais, exercem hegemonia sobre os países periféricos e influenciam suas agendas
políticas. Isso, porém, não anula completamente a ação das elites dirigentes locais, suas
opções e coalizões, que definem a inserção do país no sistema internacional e as políticas a
serem implementadas. A globalização não é, portanto, um fenômeno determinista e
puramente econômico, como expresso na visão liberal ortodoxa e na visão crítica “radical”.
(...) a globalização não está comandada por forças inexoráveis e nem marcada
exclusivamente por relações e processos de natureza econômica. Está, sobretudo,
sujeita a uma lógica política (Diniz, 2000a, cap.1), que por sua vez, tem a ver com
relações assimétricas de poder, que se estabelecem entre as potências em escala
mundial, traduzindo-se pela formação de blocos e instâncias supranacionais de poder.
Configuram-se, assim, as redes transnacionais de conexões, através das quais
articulam-se alianças estratégicas, envolvendo atores externos e internos, destacando-
se, entre estes, as grandes corporações multinacionais, a alta tecnocracia de teor
cosmopolita, as organizações financeiras internacionais, burocratas de alto nível, entre
outras elites estratégicas. Tais relações estão por trás das escolhas feitas pelos atores,
escolhas estas que não são aleatórias, nem o reflexo de critérios exclusivamente
técnicos ou econômicos, senão que se orientam também por um cálculo político
(DINIZ, 2001, p.14)
Considerar a influência das elites internas não implica, contudo, ignorar os limites de tal
autonomia e os mecanismos de “internalização” dos elementos “externos” por essa elite.
“Essa internalização se dá, no mais das vezes, como parte integrante da formulação de
projetos políticos próprios dos atores locais” (DAGNINO, 2004, p.100). Portanto, é a
combinação de fatores econômicos, políticos e ideológicos, internos e externos, que norteia
um país, e o resultado dessa combinação é definido pela disputa entre as forças sociais nele
existentes. “A adoção do modelo neoliberal corresponde a e expressa uma enorme fatia dos
interesses, desejos, crenças e aspirações presentes nos países latino-americanos: nas suas
96
A crise econômica, que se iniciou nos países centrais nos anos 70 e estendeu-se por todo
o globo, gerou um debate político que trouxe novas perspectivas para os Estados nacionais,
orientando suas reformas e agendas nos anos seguintes. O debate teria focalizado duas
questões: a) o “equilíbrio do poder” que estava assentado sobre a soberania nacional e a força
militar; b) o “internacionalismo liberal” que vislumbrava o desaparecimento do Estado-Nação
no contexto de reagrupamento de diversas regiões pelas forças transnacionais (SHOUP e
MINTER, 1979). Essas questões caracterizariam a denominada crise do Estado e o
“consenso” em torno da necessidade de reformá-lo. As oscilações no mercado internacional e
o fracasso dos planos de estabilização econômica levantaram uma discussão sobre a crise de
governabilidade19.
No Brasil, vimos anteriormente que, desde a década de1970, houve um fortalecimento
da sociedade civil e uma mobilização em torno da democratização e da ampliação dos
direitos, o que exigia uma reformulação do Estado. A crescente oposição ao regime militar
também questionava o padrão centralizador, hierárquico e autoritário do Estado, e ressaltava a
ineficiência do Estado no provimento dos serviços públicos, e os elevados índices de inflação.
A proposta de reforma desses setores da sociedade civil concentrava-se na democratização da
relação Estado/sociedade e na ampliação da cidadania. Num primeiro momento, essa
perspectiva avançou na luta pelo Estado democrático e conseguiu consolidar, na Constituição
de 1988, importantes conquistas sociais pleiteadas nas décadas anteriores pelos movimentos
sociais.
De outro lado, acompanhando o movimento internacional de reestruturação produtiva e
reforma do Estado, estavam importantes setores das elites políticas e econômicas que
defendiam a concepção neoliberal. Para essa perspectiva, a crise do Estado era um problema
de “excesso de Estado”, e a crise de governabilidade era resultado de um “excesso de
demandas sociais” e de pressões políticas que imobilizavam a capacidade decisória do
governo. No campo teórico, Samuel Huntington, em A Ordem Política das Sociedades em
Mudança, identifica que a crise de governabilidade e a decadência dos governos nos países da
América Latina resultavam da incapacidade deles em responder institucionalmente às
19
Conforme Diniz (2001), governabilidade corresponde às condições sistêmicas sobre as quais se dá o exercício
do poder numa determinada sociedade.
97
mudanças econômicas e às demandas de uma sociedade cada vez mais organizada. De acordo
com o relatório da Comissão Trilateral (1975), elaborado por Crazier, Huntington e Watanuki,
a inclusão política de grupos sociais anteriormente excluídos, e as demandas “excessivas”
dirigidas ao Estado, causavam uma “sobrecarga” no regime democrático e riscos à
governabilidade20.
Sendo assim, defendia-se a racionalidade burocrática como uma forma de neutralizar a
política e concentrar o processo decisório; e a redução dos gastos públicos para diminuir o
déficit público. Conforme Santos (2002, p.59), a consolidação da democracia liberal busca
estabilizar a tensão entre capitalismo e democracia por meio de duas vias: “pela prioridade
conferida à acumulação de capital em relação à distribuição social e pela limitação da
participação cidadã, tanto individual quanto coletiva, com o objetivo de não ‘sobrecarregar’
demais o regime democrático com demandas sociais (...)”.
Surgem, então, duas perspectivas sobre a crise do Estado, as quais iriam polarizar todo o
debate e as propostas de reforma nas décadas seguintes. Segundo Tatagiba (2003), essas
diferentes posições sobre a crise do Estado brasileiro constituíram “campos ético-políticos”
que pautariam a discussão sobre a reestruturação administrativa do Estado e o ritmo e
intensidade da redemocratização21. A autora identifica duas matrizes discursivas em disputa
pela hegemonia na definição dos novos princípios orientadores da vida social e política: a
“democratização/moralização” e a “modernização/liberalização”, as quais estariam associadas
aos grupos “progressistas” e “conservadores”, respectivamente (Sebastião Velasco e Cruz
(1994, apud TATAGIBA, 2003). Essas matrizes convergiam quanto à existência da crise e à
necessidade de reformar o Estado, mas divergiam quanto às causas da crise e,
consequentemente, quanto às propostas de reforma.
Assim, no discurso dito ético-político dos setores de esquerda e progressistas, o
problema estava na natureza da relação do Estado com os grupos sociais, tornando-se
necessário reconstruir a esfera pública, democratizar a sociedade e desprivatizar o Estado. Já
na perspectiva mais economicista, no discurso dominante da mídia, dos empresários, e da
20
Na tradição liberal conservadora, Alexis de Tocqueville também via com preocupação o crescente
associativismo nos EUA. Segundo ele a capacidade de associação era um instrumento perigoso nas mãos do
povo, pois “o controle tirânico que estas sociedades exercem é freqüentemente muito mais insuportável que a
autoridade que o governo possui sobre a sociedade à qual elas atacam”. No entanto, Tocqueville, assim como
Hannah Arendt (1973) e J.S. Mill, defende a existência controlada dessas associações, pois acredita que “a
liberdade de ação tornou-se uma garantia necessária contra a tirania da maioria” (Tocqueville, apud ARENDT,
1973, p.86).
21
A autora destaca que os campos ético-políticos são generalizações e não esgotam a variação das propostas
contidas em cada um deles.
98
neoliberal elegeria justamente aqueles temas decisivos da área social como responsáveis pelo
déficit público pelo ‘excessivo’ gasto estatal, atribuindo ao setor público a condição de fonte
única da corrupção e da ineficiência” (NOGUEIRA, 1998, p.150).
Diante da insatisfação da sociedade com a esfera estatal e instrumentalizando a ideia do
controle social sobre o Estado, o neoliberalismo reduziria os termos da crise ao problema do
déficit público, do “gigantismo” do Estado, transformando tudo em argumento contra o
Estado. E se a desconstrução do Estado era a única alternativa diante dos problemas
enfrentados e da globalização que avançava, a “sociedade civil” foi potencializada como o
agente que ocuparia o espaço deixado pelo Estado. Tudo poderia ser feito “por fora” do
Estado, de modo que houve grande incentivo e aposta nas ONGs, OSs, empresas, nichos
sociais, etc.
A reforma econômica foi posta de forma unilateral e imposta à sociedade como um
ultimato para a derrubada da inflação, o que refletiria o próprio desfecho da transição
democrática. Conforme Nogueira (1998), os primeiros movimentos do governo evidenciavam
“a existência de um projeto voltado para a ‘absolutização’ do poder do Executivo e a
afirmação categórica de sua prevalência sobre o sistema representativo e a sociedade”. Tal
postura marcaria “‘o inicio de uma ofensiva do grande capital a fim de reordenar o País à sua
imagem e semelhança, visando uma relação de homologia entre sua economia, o Estado, e as
principais instituições da sociedade civil’” (p.132).
A postura antipolítica, autoritária e arrogante de Collor acabou por isolá-lo e por
imobilizar a reforma do Estado, culminando em seu impeachment em 1992 e na frustração
dos rumos da democratização. Seu breve mandato teve como consequência a aproximação do
Estado do neoliberalismo e da globalização, o agravamento da crise moral do governo, o
aumento da distância entre Estado e sociedade civil, e uma descrença generalizada nas
instituições, nas elites políticas e na própria política.
Ainda no mesmo sentido das reformas iniciadas por Collor, o governo Fernando
Henrique Cardoso avançou com o programa das privatizações, continuou centrado na política
de ajuste fiscal, e manteve a centralização no Executivo, fortalecendo a assimetria de poder
entre este e o Poder Legislativo e aos setores populares e sindicais. Os principais pressupostos
do projeto de reforma incluem: redução de custos e racionalização do gasto público para
assegurar a estabilidade do Plano Real; melhoria da eficiência do aparelho do Estado;
descentralização e transferência de serviços públicos (MARE, 1997). Tais pressupostos
implicariam em: a) diminuição do tamanho do Estado, reduzindo suas funções através da
privatização, terceirização e publicização por meio das Organizações Sociais; b) redefinição
100
22
Na análise de Diniz (2001), atribuir a crise do estado ao anacronismo da burocracia é um equívoco, uma vez
que esta nunca se consolidou no seu caráter racional-legal, desde o início o que tivemos de fato foi uma espécie
de “hibridismo”, formado pela coexistência de princípios universalistas e meritocráticos com práticas
clientelistas.
23
Os dados estatísticos dos países da América Latina, que passaram pelas reformas neoliberais revelam que a
distribuição de renda desses países, nas décadas seguintes às reformas, piorou numa media de 5-10 pontos
percentuais no coeficiente de Gini. As pesquisas também apontam o aumento da pobreza nesse mesmo período.
(PANFICHI e CHIRINOS, 2002).
101
24
Ver Stiglitz (1998); Banco Mundial (1997, 2000).
102
Para alguns autores26, o termo governança pode ser entendido como a gestão
administrativa da ordem social, e tem um alcance implícito: o de despolitização das escolhas e
ajustes sociais. Assim, o poder estaria confiscado pelas elites financeiras técnico-
administrativas com finalidades decididas de antemão e na ausência das sociedades. Desse
ponto de vista, o conceito de governança estaria relacionado à prioridade do econômico sobre
o político, do capital sobre o Estado, do mercado sobre a democracia, do lucro sobre a justiça
social. Seria a vitória final do dinheiro sobre quaisquer outros valores sociais.
No caso da reforma brasileira, é possível observar pontos de confluência com a nova
agenda de reforma das agências internacionais, principalmente, no que diz respeito à
concepção de governança que esteve associada à reforma gerencial. No âmbito da
administração pública, os princípios gerencialistas eram: desestatização, flexibilidade, foco no
cliente, controle social e orientação para os resultados. Os pressupostos do Projeto de
25
O conceito de governança foi importado da administração privada e empregado na gestão pública pelo Banco
Mundial em seus programas nacionais de “boa governança” nos “países do Sul”, a fim de atender às exigências
de eficácia e rentabilidade economicista de seus programas. Estes eram frequentemente acompanhados por
políticas de descentralização e adoção de técnicas do New Public Management (MATIAS-PEREIRA, 2008).
26
Referencia à obra de MAPPA, S. (dir. e org.). Les Métamorphoses du Politique au Nord et au Sud. Paris:
Karthala, 2004.
103
27
MARE: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Ver BRASIL (1996; 1997a; 1997b)
104
acordo com o estudo de Rocha (2009), da parcela de recursos destinados ao Estado segue três
direcionamentos: a) financiar o processo de acumulação por meio de investimentos em
estrutura, subvenções econômicas ao capital internacional, isenção ou redução de impostos,
manipulação de preços, etc.; b) pagar a dívida externa e seus juros, bem como os empréstimos
realizados, dividendos e amortizações; c) sustentar o financiamento de precários mecanismos
de proteção social, garantir a segurança pública e outros investimentos internos.
Diante disso, os países periféricos não conseguiram constituir um sistema de proteção
social pleno, ou nos moldes do Welfare State dos países centrais, mesmo porque ajudaram a
financiar o sistema social dos países ricos. Desta forma, o sistema de proteção social
consolidado durante o Estado desenvolvimentista tornou-se restrito às camadas assalariadas e
com uma forma fragmentada de incorporação dos diferentes segmentos das classes
trabalhadoras.
Dada a escassez dos recursos econômicos destinados às políticas sociais, a concreta
intervenção estatal na melhoria das condições de vida das sociedades periféricas
(latinoamericanas) sempre foi produto da reivindicação e luta das massas, o que assinala o
protagonismo popular como elemento fundamental na construção do sistema de proteção
social. Porém, a despeito da importância da política social no exercício da cidadania, é preciso
ter clareza quanto aos seus limites. Nesse sentido, é pertinente a crítica de Behring (1998) à
perspectiva redistributivista que aposta na política social como via de solução da
desigualdade, sem considerar a vinculação entre produção e reprodução sociais. Ao voltar-se
somente para a esfera da circulação (distribuição e consumo) e deixar de lado a esfera da
produção, tal perspectiva subestima os determinantes econômicos e as particularidades de
cada país no sistema econômico mundial.
Para Behering a política social é vulnerável aos movimentos de expansão e retração da
economia, sendo utilizada pelo modelo marshalliano/keynisianista como uma estratégia
econômica anticrise. Assim, diante de um contexto de economias abertas e competitivas,
postulam-se políticas flexíveis e focalizadas que estejam adaptadas às variações do mercado e
aos ajustes dos gastos públicos. Segundo a autora, atualmente os elementos que configuram
uma moldura desfavorável às políticas redistributivas são identificamos pela:
supercapitalização, que pressiona para a mercantilização dos diversos setores da vida social;
crise fiscal que tensiona a distribuição dos recursos estatais; tendência de deterioração das
instituições democráticas que carecem de legitimidade; presença das concepções
meritocráticas neoliberais, contrárias aos sistemas de proteção social; dificuldade de
organização do sujeito contra-hegemônico.
107
Observando a expansão dos direitos sociais no Brasil, a partir de 1930, constata-se que
estes estiveram centrados na legislação trabalhista, restringindo-se a algumas categorias
profissionais e urbanas. A assistência social não integrava as políticas sociais do Estado, ao
contrário, sua origem está na caridade privada ou cristã. Como observa Carvalho et al (1981),
a assistência social,
O Serviço Social surgiu em 1936 com o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), o
qual estava vinculado à Ação Católica de São Paulo (YAZBEK, 1980). Em 1938, o Decreto
n. 525 criou uma organização nacional de Serviço Social como uma “modalidade de serviço
público”. Neste mesmo ano foi criado o Conselho Nacional de Serviço Social, cuja função era
emitir certificados à entidades caritativas (hoje filantrópicas) e opinar sobre o repasse de
subvenção sociais a essa entidades28. Em 1945, surge a primeira “instituição de assistência
social”, a Legião Brasileira de Assistência (LBA), cuja presidência era ocupada pela primeira
dama da República.
Assim, juntamente com a legalização da profissão, a assistência social entra no âmbito
do governo associada à figura “materna e protetora” da primeira dama, no contexto do
populismo. Outro aspecto marcante dessa época, em relação à prática da assistência social, é o
imbricamento entre Público e privado. Há um esforço do Estado e do empresariado em
promover uma série de ações assistenciais e educativas visando certa “adequação” da mão-de-
28
Vale lembrar as irregularidades e corrupção que envolviam o CNSS e que foram objeto da CPI do orçamento
na década de 90.
108
duas concepções: a) a visão reducionista dos direitos sociais e da Seguridade Social que
procura “ajustar” os gastos sociais à redução do déficit público e ao ajuste fiscal; b) a visão
progressista que lutava pela ampliação dos direitos sociais e da seguridade social, buscando
afirmar a assistência social como política pública. Bidarra (2004) define essas duas
concepções como “strictu sensu” e “lato senso”, respectivamente a e b.
29
Ministério do Bem-Estar Social, a Legião Brasileira de Assistência Social (LBA), o Conselho Nacional de
Serviço Social (CNSS) e o Centro Brasileiro da Infância e Adolescência (CBIA).
30
De acordo com a LOAS, a Conferencia tem "a atribuição de avaliar a situação da assistência social e propor
diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema [descentralizado e participativo]"
114
“terceiro setor”. Por meio das OSs operacionaliza-se a transferência de atividades públicas do
poder público para setor privado sem fins lucrativos por de contrato de gestão, pelo qual a
licitação pode ser dispensada e o patrimônio público pode ser utilizado pela Organização
contratante. As OSs ocupam o lugar de um órgão público que deixa de existir. Já as OCIPs
representam um incentivo do Estado para que haja uma ampliação dos serviços públicos por
meio da iniciativa privada de interesse público. Para isso são realizadas parcerias entre o
Estado e as OCIPs, pela qual o Estado coopera com entidades das mais variadas formas.
Um dos recursos da nova forma de gestão do social foi o apelo à participação solidária,
orientada pelo voluntariado e pela responsabilidade moral, vinculando, assim, à assistência
social uma falsa noção de cidadania identificada com a caridade. De acordo com Nogueira
(2005, p.57), a filantropia do “terceiro setor” emerge como um projeto de hegemonia que
contribui para a despolitização no imaginário coletivo, incentivando a solidariedade como
caridade ao mesmo tempo em que celebra o individuo empreendedor.
Em geral, as críticas dirigidas a estratégia de gestão via “terceiro setor”, incluindo aí as
ações voluntárias e decorrentes da “responsabilidade social”, referem-se ao caráter
fragmentado, focalizado e emergencial das atividades desenvolvidas pelas organizações do
“terceiro setor”31. Ao atuar sobre os efeitos sociais e não sobre as causas, o “terceiro setor”
recoloca antigas práticas voltadas à filantropia e à iniciativa privada, numa complexa
combinação entre privado e estatal. “Os mecanismos utilizados pelo Estado para a
transferência de recursos e de responsabilidade pela execução de programas para a rede de
entidades sociais não configuram a assistência social nem como política nem como pública”.
(RAICHELIS, 1998, p.28).
31
Não entraremos aqui na problemática que envolve o “terceiro setor”, que foi amplamente trabalhada pela
volumosa literatura, dentre a qual destacamos o trabalho de MONTAÑO, C.E. Terceiro Setor e Questão Social:
critica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
116
Participação e sociedade civil não mais serão vistas como expressão e veículos da
predisposição coletiva para organizar novas formas de Estado e de comunidade
política, de hegemonia e de distribuição do poder, mas sim como tradução concreta da
consciência benemérita dos cidadãos, dos grupos organizados, das empresas e das
associações. Será essa a base do rasgado elogio que se passará a fazer ao ‘terceiro
setor’, ao voluntariado e à responsabilidade social corporativa”. (NOGUEIRA, 2005
p.57)
32
Intitulada “Trajetória de Avanços e Desafios da Assistência Social no Brasil”, a conferência contou com a
participação paritária de governos, sociedade civil organizada, prestadores de serviço, e usuários. Os três
principais eixos de discussão foram: o controle social, o financiamento da política de assistência social, e a
gestão descentralizada. Essa agenda de reformas representa uma pauta comum entre os diversos setores
envolvidos.
33
A Gestão Intergovernamental seria o " espaço formal de negociação entre entes federados, com enfoque na
resolução de problemas, na organização das redes de serviços e de informação e comportamento estratégico
visando o atendimento dos destinatários da política." (BRASIL/PNAS 1999, p. 74).
117
Na verdade, com essas Comissões instalou-se o "real" espaço para fazer política para
a Política de Assistência e ele está reservado para os órgãos gestores, para os técnicos
que representam a burocracia governamental. Na perspectiva deles, os conselhos não
devem "ter a preocupação e o desgaste" do "fazer política". Se antes da existência
dessa normativa já se registrava o descaso do setor governamental para com os
assentos a que têm direito nas estruturas dos conselhos, a partir da criação desse foro
“privativo” corre-se o risco de dispensar-se os conselhos gestores como interlocutores
políticos (...). A normatização dessas Comissões que, em alguns casos, estipulou
funções concorrentes com os conselhos gestores, reforça a arbitrariedade do governo
e dá mostras da intenção do Projeto Conservador de tornar os conselhos uns
apêndices dessas Comissões, pois elas podem "publicar e divulgar as suas
deliberações, que serão formalizadas através de resoluções, e dar ciência das mesmas
aos respectivos conselhos [grifo meu]" (BRASIL, 1999, p.13). Avançando no texto da
normatização percebem-se os traços do autoritarismo político, pois o papel
desempenhado por essas Comissões pode impactar negativamente na legitimidade
política dos conselhos. (BIDARRA, 2004, p.82-83)
Nesse caso, a estratégia tecnocrática utilizada retirou o caráter político dos espaços
participativos, deixando-lhes apenas a tarefa de gerir os recursos e meios previamente
definidos, com o objetivo de proporcionar, com o máximo de eficiência administrativa, a
inclusão dos destinatários já pré-definidos. Como aponta Nogueira (2005), o reformismo da
década de 1990 apoiou-se no argumento do caráter técnico e da neutralidade administrativa
para despolitizar a abertura do Estado para a sociedade.
No que diz respeito à política social, Ivo (2004) avalia que nas duas últimas décadas a
política social foi caracterizada por uma “reconversão” da questão social, passando de uma
perspectiva constitucional do Estado social inclusivo para o âmbito exclusivo da assistência
subordinada à tese da eficiência dos gastos sociais. Com isso, há uma despolitização e uma
tecnificação da questão social, diluindo o princípio do direito frente a racionalidade técnica do
gasto público. Os direitos sociais (universais) são transformados em programas e medidas
técnicas ou estratégicas para distinguir, contar e atribuir benefícios a um conjunto de
indivíduos selecionados pelos inúmeros programas sociais focalizados. Para a autora, a
implementação de políticas compensatórias gera uma segmentação e seletividade entre
cidadãos protegidos pela seguridade social, cidadãos assistidos pela assistência social e
aqueles totalmente excluídos.
Essa “estratificação” na relação dos indivíduos com o Estado democrático constitui-se
num paradoxo entre o regime político democrático, que tende a incluir politicamente e
ampliar a cidadania, e a dinâmica econômica, que historicamente produziu as maiores taxas
de desigualdades socioeconômicas e hoje levou massivamente à exclusão.
municípios em parceria com a sociedade civil). O Fome Zero acabou recebendo muitas
criticas, sendo acusado de autoritário, focalizado e populista e, diante dos resultados abaixo
do esperado, deixou de ser a principal bandeira do governo e passou a ser uma meta estratégia
a ser atingida por meio dos programas de transferência de renda. A partir daí, ganha
centralidade o Bolsa Família, que consiste na unificação dos programas de transferência de
renda condicionada, cujos objetivos são:
34
Informações obtidas no site oficial do SUAS: http://www.mds.gov.br/programas/rede-suas. Acesso em
20/01/09.
124
Conselhos Populares (entre 1970 e 1980); e, por fim, os Conselhos Institucionalizados (1990).
Todos eles mantinham forte relação com o Estado e, com exceção dos Conselhos Populares,
que eram uma proposta dos movimentos sociais e dos setores de esquerda, foram criados
pelos próprios governos. Vejamos cada um deles:
Os Conselhos Comunitários (CCs) foram criados pelo Poder Público Executivo com o
argumento de que serviriam de mediação entre o governo e os movimentos sociais e
organizações populares. No município de São Paulo, os CCs foram criados pelo ex-prefeito
Reynaldo de Barros em 1979. De acordo com seu regulamento, o conselho deveria ser
múltiplo, organizado por regiões administrativas, com a finalidade de discutir o orçamento
municipal e participar na elaboração de projetos e programas dos órgãos municipais.
Toda essa discussão acerca do papel e do significado dos CPs está bastante ligada ao
momento de transição da participação da sociedade civil para formas mais institucionalizadas,
quando se observam a desarticulação do Movimento Popular e a redemocratização do país.
Dentre os fatores que contribuíram para a institucionalização da participação no âmbito dos
governos, destaca-se a vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) em importantes municípios
brasileiros nos anos 1980. Em São Paulo, a gestão de Luiza Erundina (1989-1992) criou
vários conselhos, incorporando ao governo antigas propostas dos movimentos populares.
Os Conselhos Institucionalizados (CIs) também eram uma proposta do Poder Executivo
de instituir a participação na gestão de governo. Na Lei Orgânica do Município de São Paulo
(1989), eles apareceram como Conselhos de Representantes. No entanto, até o surgimento dos
conselhos de políticas públicas, os conselhos de representantes nunca foram viabilizados
porque não foram regulamentados.
129
O modelo atual dos conselhos, formados por Estado e sociedade civil, também pode ser
considerado um tipo de conselho institucionalizado. De acordo com a classificação do IBAM-
IPEA (1997), esses conselhos podem ser divididos da seguinte forma: Conselhos de
Programa, Conselhos Temáticos e Conselhos de Políticas Públicas.
Os Conselhos de Programa são vinculados aos programas governamentais voltados para
ações emergenciais específicas, nos quais acumulam funções executivas. Referem-se à
extensão de direitos ou garantias sociais, baseadas em metas incrementais por meio do acesso
a bens e serviços. Em geral, os participantes são os beneficiários e as parcerias ou demais
envolvidos. São exemplos dos conselhos de programa, os Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural, de Alimentação Escolar, de Habitação, de Emprego, de Distribuição
de Alimentos. (IBAM-IPEA, 1997).
Os Conselhos Temáticos, por sua vez, não estão estabelecidos em legislação nacional,
sendo mais comum na esfera municipal, por iniciativa local, o que também faz com que seu
formato seja mais variável do que nos conselhos de políticas públicas. “Em geral, associam-se
a grandes movimentos de ideias ou temas gerais que, naquele município, por força de alguma
peculiaridade de perfil político ou social, acolhem ou enfatizam o referido tema em sua
agenda” (IBAM-IPEA, 1997). São exemplos disso os Conselhos Municipais: de Direitos da
Mulher, de Cultura, de Esportes, de Transportes, de Patrimônio Cultural, de Urbanismo, etc.
Já os Conselhos de Políticas Públicas (ou Setoriais) estão ligados às políticas públicas
mais estruturadas e organizadas, onde se constituem como parte integrante dos respectivos
sistemas nacionais de política social. São previstos em legislação nacional e normalmente
estão atrelados à transferência de recursos entre os entes federativos. Suas atribuições
referem-se à formulação, implementação e fiscalização das políticas públicas na respectiva
esfera de atuação. São também concebidos como fóruns públicos de captação de demandas e
negociação de interesses específicos dos diversos grupos sociais, e como uma forma de
ampliar a participação dos segmentos com menos acesso ao aparelho do Estado. Neste grupo,
situam-se os Conselhos de Saúde, de Assistência Social, de Educação, de Direitos da Criança
e do Adolescente. Portanto, “dizem respeito à dimensão da cidadania, à universalização de
direitos sociais e à garantia ao exercício desses direitos. Zelam pela vigência desses direitos,
garantindo sua inscrição ou inspiração na formulação das políticas e seu respeito na execução
delas” (IBAM –IPEA, 1997).
130
Ainda em relação à gestão partilhada, o princípio básico que orienta a composição dos
conselhos é a paridade entre Estado e sociedade civil, a fim de manter um equilíbrio nas
36
Entendido como espaço físico de intermediação e deliberação pública entre sociedade civil e Estado.
131
Por um lado, a constituição dos espaços públicos representa o saldo positivo das
décadas de luta pela democratização, expresso especialmente — mas não só — pela
Constituição de 1988, que foi fundamental na implementação destes espaços de
participação da sociedade civil na gestão da sociedade. Por outro lado, o processo de
encolhimento do Estado e da progressiva transferência de suas responsabilidades
sociais para a sociedade civil, que tem caracterizado os últimos anos, estaria
conferindo uma dimensão perversa a essas jovens experiências (DAGNINO, 2004,
p.97).
37
Ver: Dagnino e Tatagiba (2007); Fuks; Perissinotto; Souza (2004); Dagnino (2002a); Perissinotto e Fuks
(2002), Gohn (2001), além de teses e dissertações sobre o tema.
133
um lado, a concepção de cidadania havia sido reformulada pelo projeto participativo desde o
final dos anos setenta, quando os movimentos sociais mobilizaram-se em torno de demandas
materiais e culturais. Como visto no capítulo anterior, a nova noção de cidadania
(DAGNINO, 1994) implica numa nova sociabilidade, cuja noção de direitos ultrapassa os
limites do sistema político-jurídico para penetrar nas demais relações sociais, reconstruindo
uma nova dimensão ética da vida social. Sua construção tornou-se uma importante estratégia
de luta e articulação da sociedade civil “desde baixo”, contribuindo de maneira decisiva para a
definição de novas práticas e instituições democráticas.
A redefinição neoliberal da cidadania vem no bojo do processo de reestruturação
produtiva, com a “flexibilização” do trabalho e o império do mercado como forma de
regulação social. Com isso, os direitos sociais sofrem ataques ostensivos por serem
considerados obstáculos ao livre funcionamento do mercado e à modernização trazida por ele.
A cidadania passa a ser atrelada à noção de mercado, numa perspectiva individualista em que
“Tornar-se cidadão passa a significar a integração individual ao mercado, como consumidor
ou como produtor” (DAGNINO, 2004, p.106). O deslocamento de significado da noção de
cidadania também aparece vinculado à gestão da pobreza, em que se faz um apelo à
solidariedade e à responsabilidade moral dos indivíduos para com os pobres. “(...) esse
discurso da cidadania é marcado pela total ausência de qualquer referência a direitos
universais ou ao debate político sobre as causas da pobreza e da desigualdade” (DAGNINO,
2004, p.107). Esse afastamento da política social do referencial dos direitos universais e do
debate político sobre as causas da desigualdade retira a questão social da arena pública e do
domínio da justiça e da igualdade, atribuindo-lhe um tratamento técnico ou filantrópico.
Todas essas redefinições incidem sobre o significado e o papel assumido pelos espaços
participativos no âmbito da gestão pública. Dado o atual consenso em torno do ideário
participacionista, essa compreensão acerca da ambigüidade dos mecanismos participativos
pode ser uma chave importante para a análise das experiências concretas. Porém, além das
diferentes orientações político-ideológicas, que operam conforme as coalizões políticas
formadas, existem outras variáveis de ordem estrutural (institucional) e cultural que
influenciam a atuação dos mecanismos participativos, e que podem ou não estar relacionadas
às diferentes orientações político-ideológicas.
Dentre as limitações vinculadas à própria estrutura dos conselhos, destaca-se a sua
natureza setorial e fragmentada, pela qual cada conselho fica limitado ao tema da política
social à qual está vinculado e aos grupos que por ela têm interesse. Essa característica dos
conselhos não deixa de ser uma expressão da departamentalização da estrutura administrativa
134
participação nos espaços públicos refere-se à articulação institucional e não à base política do
representante. Isso não significa, necessariamente, que as organizações institucionalizadas não
tenham base política, mas que os argumentos de legitimidade se afastam da noção de
“consentimento” pela maioria. Em uma pesquisa realizada no município de São Paulo em
2002, Lavalle, Houtzager e Castello (2006b) identificam que a nova concepção de
representação baseia-se em novos critérios de legitimidade, tais como: identidade, serviços,
proximidade e intermediação.
A ligação automática que se estabelece entre organizações da sociedade civil e
representação da sociedade civil requer maior atenção acerca de sua legitimidade, pois uma
das dimensões da participação é extrapolar os limites das organizações sociais e atingir os
setores não organizados da população. Além disso, é preciso atentar para que o esquema de
representação com base nas organizações sociais instituídas não acabe por sobrepor a
representação daqueles atores mais articulados ou com mais tradição organizacional,
inviabilizando a participação de novos sujeitos representativos.
Além dos aspectos considerados até aqui, outras condições, em variados graus de
especificidades em cada município, também podem afetar o desempenho e a dinâmica
de funcionamento dos conselhos municipais, como, por exemplo, variáveis
socioeconômicas, a mobilização da sociedade local em torno de temas específicos,
questões relativas à formação do corpo de conselheiros, convicções e práticas do
poder executivo local, entre outras. A seguir, veremos como se configuram os
conselhos no município de Araraquara – SP.
38
O slogan faz alusão ao fato de a cidade ser conhecida como “morada do sol”, que é o significado do nome
indígena Aracoara.
39
Entrevista concedida em 25/02/2009.
40
Entrevista concedida em 26/08/2007
139
é como essa proposta se desenvolveu neste município de tradição política pouco participativa.
A ampliação dos conselhos municipais em Araraquara demonstra uma disposição do
governo, em relação à democratização da gestão pública, contrária à tendência que
caracterizou os governos antecessores. Durante as duas gestões do prefeito Edinho (PT),
(2001-2004) e (2005-2008), cada secretaria municipal deveria ter um conselho. Mesmo
aquelas áreas que não tinham determinação legal das esferas federais ou estaduais receberam-
na, portanto, do próprio município. Conforme a coordenadora do Projeto Casa dos Conselhos,
a ideia de institucionalizar a participação era uma forma de assegurar a participação social na
gestão pública mesmo após o término da gestão de governo. Ela explica que, mesmo nas áreas
que não tinham pastas na administração, mas que eram temáticas representativas na sociedade
local, formaram-se conselhos temáticos que ficaram vinculados ao gabinete do prefeito.
O quadro a seguir oferece um panorama geral dos conselhos existentes em Araraquara,
que, ao todo, são mais de 30, incluindo os diversos conselhos das unidades de atendimento
nas áreas de saúde e educação, os quais não estão relacionados no quadro. Podemos notar que
dos vinte e três conselhos informados, apenas sete foram criados antes da gestão Edinho
Silva. Destes sete, seis relacionam-se com o processo de descentralização das políticas sociais
e representam uma exigência federal. O outro, o conselho de desenvolvimento rural, é
resultado de um convênio do município com o governo estadual para inserir-se na política
integrada da agricultura e abastecimento. A constituição desse conselho em torno da temática
do desenvolvimento rural reflete a principal atividade econômica do município, a
agroindustrial. Vale ressaltar que, em 2001, no governo Edinho Silva, foram feitas alterações
na composição do conselho de desenvolvimento rural, ampliando o número de participantes e
incluindo representantes dos assentamentos rurais e instituições de financiamento.
É possível perceber, ainda, que a criação dos demais conselhos, a partir de 2001, busca
integrar as temáticas nacionais que constituíram-se em bandeiras dos movimentos sociais na
década de 80 e ganharam repercussão no âmbito local como é o caso da questão da mulher,
etnia, criança, idoso, deficiente, meio ambiente. A representação da sociedade civil nesses
conselhos não, necessariamente, precisa estar ligada a uma organização (pessoa jurídica), pois
alguns deles prevêem a participação de representantes das regiões do Orçamento Participativo
da cidade. Segundo a coordenadora da Casa dos Conselhos41, essa proposta visa promover
uma interação entre as organizações da sociedade civil e os demais cidadãos que não estão
organizados institucionalmente.
41
Entrevista concedida em 26/08/2007.
140
Direitos da 2001 12 sociedade civil Deliberativo Gabinete do Prefeito Formular, propor, opinar e executar
Criança e do 12 poder público e fiscalizador políticas sociais de interesse da criança.
Adolescente
Defesa do 2001 12 sociedade civil Consultivo Gabinete do Prefeito Assessorar e colaborar no plano de
MeioAmbiente 8 poder público expansão urbana e desenvolvimento.
Unidades de 2001 50% população Consultiva e Conselho Municipal Assegurar a participação da comunidade
Saúde 50% servidores da fiscalizadora. de Saúde na definição das prioridades das unidades
unidade de saúde
Usuários de 2001 28 sociedade civil Consultivo Não identificado Promover a participação da sociedade
Transportes 5 poder público organizada, ampliando a possibilidade
Coletivos destes influenciarem no processo de
planejamento do transporte coletivo
Bolsa-Escola e 2001 4 sociedade civil Operacional Não identificado Acompanhar e avaliar a execução das
Renda Mínima 4 poder público ações e analisar os relatórios das
atividades
Tutelar I 2001 Não identificado Operacional COMCRIAR zelar pelo cumprimento dos direitos das
crianças e do adolescente
Segurança e 2001 23 sociedade civil Consultivo Gabinete do Prefeito Propor ações e políticas públicas na área
Cidadania 17 poder público de segurança e cidadania.
Combate a 2002 16 sociedade civil Deliberativo Gabinete do Prefeito Elaborar e implementar políticas públicas
Discriminação 9 poder público e consultivo sob a ótica racial, para garantir a
e ao Racismo igualdade de oportunidades e direitos
Esporte e 2002 25 sociedade civil Deliberativo Sec. Mun. de Esporte Formular políticas públicas e ações
Lazer 10 poder público consultivo, e Lazer destinadas ao fortalecimento das
fiscalizador atividades esportivas e de lazer.
Direitos das 2002 18sociedade civil Deliberativo Gabinete do Prefeito Assessorar o governo municipal, para
Pessoas com 18 poder público e consultiva assegurar os direitos civis e humanos das
Deficiência pessoas com deficiências e transtornos
mentais graves .
Planejamento 2002 26 sociedade civil Deliberativo Sistema Municipal de Formular políticas, planos, diretrizes,
Urbano e 14 poder público Planejamento e programas e projetos relacionados à
Ambiental Política Urbana Amb. política urbana e ambiental.
Turismo 2002 15 sociedade civil Deliberativo Não consta Avaliar, opinar e propor sobre a política
4 poder público e consultivo municipal de turismo
Unidades 2002 50% população Deliberativo, Não consta Democratizar as relações de poder no
Escolares 50% servidores fiscalizadora interior da escola
Programa 2003 2 sociedade civil Operacional Conselho Mun. de Orientar, organizar, monitorar e avaliar as
Fome Zero 5 poder público Segurança Alimentar ações do Programa Fome Zero
Fonte: Leis Municipais de criação dos referidos conselhos
141
Desta forma, a expansão dos conselhos em Araraquara deve-se, em grande parte, à iniciativa
do governo local, o que evidencia uma modernização na política no município, seja pela
ascensão de um governo cuja proposta se pauta pela participação popular, seja pela
modificação na arquitetura da arena decisória com a inserção de novos mecanismos
participativos. Ganharão expressão, por meio desses espaços participativos, os setores da
sociedade civil organizados o bastante para os ocuparem e fazerem deles áreas de sua atuação.
Por outro lado, essa ampliação da participação institucionalizada, também, é expressão do
aumento da participação do denominado “terceiro setor”, o qual se ampliou na década de
1990, mediante as pressões do contexto sócio-histórico pela redução do papel do Estado.
No que tange à institucionalização da participação na gestão pública, as informações
apresentadas até aqui nos permitem afirmar que o governo Edinho (PT) foi bastante favorável
à participação, especialmente durante o primeiro governo (2001-2004), com a ampliação dos
espaços participativos e a inserção da participação como eixo central do seu projeto político.
A criação da Coordenadoria de Participação Popular e do Projeto Casa dos Conselhos
representa um esforço de organização e estruturação da gestão participativa no governo local.
Todas essas iniciativas são indicativas do tipo de participação que se configura no município e
da concepção de participação popular inscrita no projeto político do governo, ou seja, daquilo
que o governo entende por participação e do que espera dela. Essa concepção se expressa
desde no lugar reservado à participação no processo decisório, até no tipo de formatação dos
espaços participativos, como, por exemplo, a composição e as atribuições dos conselhos.
Mas, para além dos aspectos institucionais e quantitativos, é preciso ter maior clareza
sobre a qualidade e as condições dessa participação, bem como saber qual teria sido o efetivo
resultado da institucionalidade participativa em termos de democratização dos processos
decisórios que envolvem a definição das políticas públicas. Temos destacado até aqui que,
dentro do ideário participacionista, a participação pode assumir matizes diferenciados, e os
espaços participativos apresentam graus variados de participação, operando, muitas vezes,
como instrumentos de gestão. À compreensão dos resultados dessa institucionalidade
participativa, dedicamos essa pesquisa, especialmente o próximo capítulo.
Com base em nosso estudo e em outras pesquisas realizadas sobre a atuação dos
conselhos em Araraquara (TOLEDO, 2006; GAZETA, 2005; SOUZA, 2008), verificamos
que a participação ocupa um lugar central no projeto de governo do PT, porém, o processo
participativo em si é atravessado por outros condicionantes históricos e políticos que
configuram um quadro participativo pouco representativo do ponto de vista da deliberação
sobre a política pública.
142
um espaço que tendia mais para a corroboração dos estudos produzidos pela equipe
técnica da prefeitura do que para o debate e a formação de consensos com a sociedade
civil. Situação similar ocorria no momento em que os estudos eram apresentados nas
plenárias para votação e incorporação ao PD. A população não dispunha de
conhecimento técnico e informacional prévio suficiente para fomentar contrapontos
às propostas elaboradas pela comissão da prefeitura (TOLEDO, 2006, p.166).
42
Fontes: Censo IBGE-2000 / PNUD/ IPEA / Unesp/FCLAr
43
Dados obtidos no Plano Municipal de Assistência Social de Araraquara (2004).
146
foram contratadas mais duas assistentes sociais para atuarem junto a dois centros de Saúde do
Município. Com isso, o setor de promoção social transformou-se em uma divisão do
departamento de saúde, porém sem ampliação da equipe nem definição de uma política de
atuação.
Tendo em vista a mobilização nacional em torno da constituição da política de
assistência social, a Lei Orgânica Municipal de Araraquara de 1990 dedicou um capítulo ao
tema, visando atender o disposto nos artigos 203 e 204 da Constituição Federal de 1988, que
tratam da política da assistência social, e nos artigos 232 e 235, que tratam da
descentralização participativa das políticas sociais. Iniciou-se, assim, o processo de
construção descentralizada da Política de Assistência Social. A Lei Orgânica Municipal
também previa a criação de um conselho, estabelecendo que o “Conselho Municipal de
Promoção Social terá como objetivo formular, assessorar e controlar a execução da política
municipal de Promoção Social” (ARARAQUARA, 1990, p.57).
Apesar disso, o conselho de assistência social só seria criado em 1994 pela Lei
Municipal n. 4386/94 na gestão do prefeito Roberto Massafera (PMDB), em atendimento ao
artigo 30 da Lei Orgânica de Assistência Social de 1993. Nesse mesmo impulso de
institucionalização da LOAS, foi criado o Fundo Municipal de Assistência Social em 1996
(Lei Municipal n.4665/6), que deveria ser gerido pela Secretaria Municipal de Promoção
Social44 e controlado pelo Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS).
Na Lei Orgânica do Município, o tema da assistência social aparece em termos de
promoção social, reforçando os preceitos constitucionais de que “a assistência social será
prestada independente de contribuição” e de que as “ações de natureza emergencial não
deverão prevalecer sobre a formulação e aplicação de políticas sociais básicas”
(ARARAQUARA, 1990, p.56). As ações propostas envolviam o apoio às entidades
beneficentes e a implementação de políticas integradas, como o programa habitacional para a
população de baixa renda, a suplementação alimentar, o transporte público para os idosos e
deficientes e o estímulo às empresas para contratação de portadores de deficiência. Em 1992,
a reforma administrativa da prefeitura instituiu o Departamento de Promoção Social e o
subdividiu em Divisão de Programas e Divisão de Apoio Comunitário.
Desse modo, a assistência social entrou para a agenda política do município, mas de
forma muito tímida, com ações pontuais dentro de outras políticas, e no incentivo ao trabalho
das entidades filantrópicas. A construção de uma política municipal da assistência social só
44
Em 1998, a Secretaria Municipal de Promoção Social passou a denominar-se Secretaria Municipal de
Assistência Social e, de 2005 a 2008, Secretaria Municipal de Inclusão Social e Cidadania.
147
começaria a ser desenhada no final da década de 1990, a partir das prerrogativas legais de
âmbito nacional. Note-se, porém, que nesse período o país vivia sob o neoliberalismo e a
política de ajuste fiscal, o que limitava a expansão das políticas sociais.
Em 1995, iniciou-se o processo de descentralização da política de assistência social,
quando os estados assumiram todos os serviços de ação continuada e os municípios
receberam todos os serviços operacionais de execução direta. Em 1998, após a aprovação do I
PNAS e da primeira NOB de descentralização no âmbito nacional, o município de Araraquara
começou a assumir a gestão dos serviços de assistência social, que contariam com a
cooperação técnica, administrativa e financeira do estado e seriam executados ou de forma
direta, ou em colaboração com as entidades e organizações de assistência social45 situadas no
Município (Lei Municipal n. 4976/98). Durante o governo De Santi (PPB), foi viabilizada a
celebração de convênios com o governo estadual para que fosse operacionalizada a
municipalização da gestão dos serviços de assistência social. Com isso, propunha-se a gestão
compartilhada e a transferência de recursos do Fundo Estadual de Assistência Social para o
Fundo Municipal de Assistência Social.
Nesse primeiro momento, a municipalização dos serviços de assistência social não
dispunha de uma estrutura pública de atendimento, e a principal estratégia de descentralização
baseou-se na realização de convênios com as entidades sociais do município. Desse modo,
houve uma reorganização e uma formalização das ações e agentes sociais que já atuavam na
área da assistência social, como revelam as leis municipais (Lei n. 4977/98 e Lei n.5006/98) e
os planos municipais de assistência social desse período.
A participação do Conselho Municipal de Assistência Social nesse momento de
configuração da assistência social no município foi meramente formal. Embora tenha sido
criado por lei em 1994, o primeiro registro de reunião do CMAS data de 15/03/1995 e não há
registros de como teria sido formada a primeira composição do conselho. De 1995 até 1997,
os registros em ata mostram que as reuniões eram bastante esporádicas e consistiam
basicamente na organização interna do conselho. As pautas eram sobre a diretoria, o
regimento interno, o estatuto, o cronograma de encontros, etc. Em 1997, foi formada uma
nova composição no conselho, mas não há registro de como foi o processo de escolha dos
representantes. Pelos relatos dos conselheiros da época, foram convidados a participar todos
aqueles que tinham alguma relação ou envolvimento com a área da assistência social.
45
A LOAS, no Art. 3º, define que: "Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas que
prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta lei, bem como
as que atuam na defesa e garantia de seus direitos."
148
46
Fundação do Desenvolvimento Administrativo, Órgão do governo estadual de São Paulo voltado para
capacitação na administração pública.
149
dependia de incremento nos recursos financeiros. Além disso, o conselho não rediscutia os
critérios para definir quais entidades deveriam fazer parte da rede. Em geral, as entidades que
não faziam parte dela recorriam a subvenções sociais, para cuja aprovação solicitavam o
apoio do conselho.
O PMAS de 2005 ressaltou a questão do desemprego e da falta de moradia e renda,
propondo políticas emergenciais para que fossem cumpridos os direitos estabelecidos na
LOAS. Foi definido como objetivo a implementação de “políticas públicas na área de
assistência social através de uma proposta orgânica, estruturada pela gestão estatal nas três
esferas de governo a partir do paradigma da universalização do direito à proteção social,
fundada na cidadania e na inclusão social” (Plano Municipal de Assistência Social 2005, fl.9).
Durante a segunda gestão do governo Edinho (PT), iniciou-se a implementação do SUAS no
município e, desde então, esta tem sido a principal diretriz da política de assistência social do
governo. As ações de maior destaque são a instalação dos equipamentos públicos (CREAS,
CRAS) e a organização do serviço de atendimento (básico e especial). Com isso, a política
municipal de assistência social ganhou uma nova referência de atendimento, com ações mais
integradas. Conforme relato da secretária de assistência social (gestão 2006-2008) e
representante do governo no CMAS (2006-2009), “com a implementação do SUAS o
município passou a ver a assistência como política pública, estruturada de forma
descentralizada. Por intermédio dos CRAS e CREAS o serviço foi ampliado e qualificado,
pois o equipamento público é levado até a população e junto com ele uma equipe qualificada
de profissionais”47. Ao falar sobre as dificuldades do município na implementação do SUAS,
ela destacou as limitações apresentadas pela Lei de Responsabilidade Social quanto à
contratação dos profissionais, e as dificuldades para adequar os espaços de atendimento da
assistência social à NOB-rh do SUAS.
Atualmente, a área de assistência social encontra-se estruturada da seguinte forma:
I) Divisão Regional de Assistência e Desenvolvimento Social (DRADS): a regional da
Secretaria Estadual de Assistência Social, sediada em Araraquara, desenvolve atividades
relativas à normatização, supervisão apoio técnico e acompanhamento da rede de assistência
social.
II) Secretaria Municipal de Inclusão Social e Cidadania (SMISC): além da concessão de
benefícios, atende e gerencia a rede de assistência social. É responsável, por meio do Fundo
Municipal de Assistência Social, pela captação, repasse e aplicação dos recursos destinados
47
Entrevista concedida em 21/01/09.
151
assistência social atuam mais no âmbito municipal, esfera onde mais se processa a execução
dos programas e projetos de assistência social, principalmente após a descentralização
político-administrativa. Os órgãos do Poder Executivo são os principais parceiros das
entidades sociais, segundo os dados do IBGE (2006), do percentual das entidades que
receberam recurso público no Brasil, 84,9% delas recebem financiamento municipal.
Em Araraquara, a maior parte do financiamento público às entidades da rede privada,
cerca de 51% do valor, vem do Fundo Estadual de Assistência Social, o que representou 78%
dos investimos estaduais de 2009 na assistência social de Araraquara. Esses valores são
distribuídos pelo conselho municipal, ou seja, nem todos os recursos vêm carimbados para o
“terceiro setor”, mas como a maioria dos convênios foram firmados há 10 ou 12 anos atrás,
acabaram sendo mantidos nas mesmas entidades executoras. Como visto anteriormente, na
década de 1990 houve um forte apelo às Organizações Sociais sem fins lucrativos, fazendo
com que muitas atividades públicas fossem repassadas ao denominado “terceiro setor”. Entre
outras razões, acreditava-se que essa era uma estratégia que baixaria o custo com as políticas
sociais.
A partir da implementação do SUAS, ampliou-se a rede pública de atendimento, que,
como se vê na tabela abaixo, passou a receber a maior parte dos investimentos públicos:
Como se vê, a rede privada executa cerca de 11% do total do orçamento municipal, mas
vale lembrar, no entanto, que alguns projetos da rede pública são executados em parceria com
as entidades, pelos quais elas recebem parte dos recursos alocados na rede pública. Além
disso, não estão inclusos neste percentual da rede privada outros benefícios públicos
concedidos às entidades filantrópicas que não entram no orçamento da assistência social. Vale
destacar ainda que a declaração de entidade filantrópica as isenta da cota patronal48 da
seguridade social, o que resulta numa forma de transferência de recursos por meio da
48
Contribuição de 20% sobre a folha de salários da empregadora para Previdência Social.
153
renúncia fiscal49.
Ainda sobre o financiamento da assistência social, o governo estadual (FNAS) é quem
menos contribui com o co-financiamento da assistência social em Araraquara, representando
cerca de 7,2 % do orçamento para 200950. Já o governo federal participa diretamente com
7,5% do Orçamento e privilegia os investimentos na rede púbica. O volume maior do
financiamento federal está nos programas de transferência de renda direta ao beneficiário, os
quais não estão inclusos no orçamento municipal. Como mostra o quadro abaixo, o volume de
recursos federais destinados aos programas de transferência direta em Araraquara é superior
ao orçamento total da assistência social do município. O governo federal participa com 95,3%
do financiamento desses programas de transferência de renda, o que corresponde à cifra de
R$ 13.663.753,06.
TOTAL 14.324.393,60
Fonte: Plano Municipal 2009
49
Para ser uma entidade filantrópica, basta aplicar 20% de sua receita em atividades socioassistenciais.
(FERRAREZZI, 2001 apud Côrtes, 2001, p.207).
50
Dados obtidos junto ao Fundo Municipal de Assistência Social de Araraquara.
154
Programa de Atendimento a População em Municipal 53.500,00 Publica: Centro de Referência do Morador de Rua, +
Situação de Rua Estadual 29.436,00 Parceria com Terceiro Setor
Programa de Atendimento a Municipal 259.000,00 Publica: Casa Transitória, + Parceria com Terceiro Setor
Migrante/Itinerante
Municipal
Serviço de Enfrentamento à Violência, ao 21.900,00 Publica / CREAS
Abuso e à Exploração Sexual contra Estadual 45.500,00
Crianças e Adolescentes Federal 28.800,00
Serviço de Orientação e Apoio Municipal 21.980,00 Publica: CREAS, + Parceria com Terceiro Setor
Especializado às Crianças e Adolescentes
Estadual 45.500,00
Federal 28.800,000
Programa de Atendimento à Pessoa com Federal 74.520,00 Privada: AAEE; TOQUE; APAE; UDEFA; Para DV
Deficiência Empresas 63.999,99
Pessoa Fisica 42.200,00
Própria executora 25.449,99
Fonte: Plano Municipal de Assistência Social – 2009
155
“Iniciativas do conselho? Eu acho que foi a criação do próprio conselho, aí, depois, toda a parte do
regimento, a parte de organização e orientação às entidades com relação ao registro. Sabe, acho que isso é
uma maneira de organizar uma rede, ali começou uma possível organização das entidades, saber quais
eram, o que faziam, quais eram seus objetivos... Tentou-se fechar uma rede. Isso foi muito importante,
embora ainda falta”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2001-2003
e 2004-2006 – Entrevista em 18/02/09)
“A gente fazia as visitas, verificando se a programação apresentada estava sendo feita. As instituições
mandavam seus projetos para o conselho, aí era discutido se aquele programa estava dentro do perfil da
instituição. Muitas vezes ela queria o registro, mas as atividades e os objetivos que ela apresentava não
vinham de encontro com a promoção social. Às vezes era mais voltado para atendimento de assistência,
não tinha uma programação direta para uma clientela específica. Às vezes era até um atendimento, assim,
mais religioso, principalmente as espíritas fazem muito isso, para dar o atendimento às famílias e aos
indivíduos, elas primeiro fazem a evangelização, né... Então, muitas vezes elas colocam a evangelização
156
em primeiro plano. [...] A dificuldade era de mudar mesmo alguma coisa, porque as pessoas são bem...
assim, às vezes até meio fechadas para as mudanças. As mudanças na forma de agir dentro da instituição,
tem instituição que não admite que tem de melhorar determinadas coisas e se adequar às novas diretrizes”
(Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestão 2004-2006 – Entrevista em
13/02/09)
Quando perguntamos aos representantes das entidades sobre a percepção que tinham da
cidadania, obtivemos respostas muito variadas. Mas, muitas vezes, a cidadania é definida com
base em moralismos ou associada à caridade, e a autonomia se confunde com ausência de
proteção estatal.
“Cidadania... ela está bem correlata á solidariedade, cidadania é responsabilidade, é deveres e obrigações
e não apenas benefícios, como muita gente pensa. Tem gente que confunde e fala: ‘não, porque é o resgate
da cidadania tirar a pessoa da margem’, então acha que o Estado tem que tomar conta dele. Isso não é
promoção social, você está prejudicando essa pessoa, tem que dar oportunidade para ela ser igual os
outros, mas cuidar dela a prejudica. De qualquer maneira, a linha que divide os que merecem dos que não
merecem que você cuide deles, que você os ajude, é muito tênue, sempre vai ter vazamento de um lado
para o outro, mas é muito melhor que os culpados saiam com vantagens sobre os inocentes, do que os
inocentes pagarem pelos culpados. Então, você faz a sua parte, dá sua colaboração e fica com a sua
consciência tranquila, que é melhor”. (Conselheiro Representante das Entidades Prestadora de Serviço,
gestões 2004-2006 e 2007-2009 - Entrevista em 10/02/09)
“Cidadania é o ser humano ter voz, conhecer seus direitos e deveres, é o cidadão sentir-se realmente
respeitado nos seus direitos, por isso trabalhamos muito a autonomia. Mas é um conjunto, uma coisa que
sempre me incomodou é falar sempre nos direitos dos cidadãos, mas pouco se ouve sobre os deveres do
cidadão, e muitas vezes eu acho que ele não cumpre seus deveres por falta de informação, pela falta de
educação (não como um trato social). A base de tudo é a educação e enquanto não se fortalecer a
educação não vai ter uma voz contra o governo, que ele exerça seu direito de voto com consciência. Não é
só em termos da população de baixa renda, falta na educação formal como um todo, é preciso formação
para educador social, isso para toda a área de humanas”. (Conselheira Representante das Entidades
Prestadora de Serviço, gestão 2007-2009 – Entrevista em 16/02/09)
“Cidadania é essa participação e olhar para o outro e poder, tendo disponibilidade, fazer alguma coisa para
o outro, seja da forma que for”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões
2001-2003 e 2004-2006 – Entrevista em 16/02/09)
e de a assistência ser a área privilegiada de atuação das entidades filantrópicas. Como ressalta
Raichelis (1998), uma das maiores dificuldades da área de assistência social é “constituir-se
como política e realizar-se como pública”, e, embora a Constituição de 1988 a tenha
entendido como uma política pública e a LOAS tenha reforçado esse caráter público ao
estender a responsabilidade a todos os níveis de governo, as políticas e programas ainda são
bastante restritivos e, em boa parte, continuam sendo executados por entidades sociais.
No que tange as entidades sociais de Araraquara, em sua maioria, são tradicionais e
atuam no município há muitos anos, mantendo-se com doações pessoais e de instituições
privadas, além de subvenções públicas. Elas mantêm uma boa relação com a secretaria
municipal de assistência social, como se verificou durante a pesquisa e nos relatos dos
conselheiros. O discurso entusiasmado de um dos conselheiros quando deu as boas vindas ao
novo secretário de assistência social, José Carlos Porsani, revela esse fato:
“Zé, o que eu gostaria de dizer a você e à sua equipe, acho que todos gostariam de dizer isso, é desejar a
você uma gestão fantástica, eu sei que o que você falou aqui não são só palavras, eu conheço você há
muitos e muitos anos atrás, [...]. Então, eu sei da sua força e vontade de realizar. Então, nós desejamos a
você, junto com a equipe que você está montando lá, um sucesso enorme, isso juntamente com as nossas
entidades que estarão colaborando, eu tenho certeza. E eu tenho certeza que em 2012 nós estaremos aqui
para ver uma Araraquara bem diferente, é... limpa, tem muitos andarilhos por aí, gente deitada nas
avenidas e ruas”. (Conselheiro representante das entidades - gestão 2006-2009 / Manifestação durante a
reunião de 28/01/09)
“Eu estou colocando à disposição de vocês a Secretaria, no que for possível ajudar vocês. Eu sei da
dificuldade que vocês passam, nós vamos fazer parceria com todas as entidades, viu? O que eu puder
fazer pelas entidades vocês podem ter certeza que vou fazer”. (Secretário Municipal de Assistência Social
158
51
Um município adquire gestão plena quando dispõe de todas as condições exigidas para que possa exercer a
gestão de todos os recursos recebidos para o desenvolvimento das ações socioassistenciais.
159
compor o Poder Público e os segmentos de atendimento que iriam compor a sociedade civil
no conselho. Ao todo, são 16 membros titulares e igual número de suplentes, sendo: 8
representantes do Poder Público e 8 representantes da sociedade civil. Em 2003, houve uma
alteração na legislação e o conselho passou para 18 integrantes, incluindo um membro da
Câmara Municipal na representação do Poder Público, e um membro do atendimento às
mulheres na representação da sociedade civil. Em 2004, o número de representantes voltou a
ser 16, e os segmentos recém incluídos foram retirados. Nesse mesmo ano, a representação do
Poder Judiciário foi substituída pela da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico,
em atendimento à solicitação da Comissão Intergestora Bipartite, para a qual os poderes
Legislativo e Judiciário não poderiam compor o conselho, por serem órgãos externos à
administração pública. Também houve alterações na forma de representação da sociedade
civil, sendo que na gestão de 2001 a 2003 ela estava organizada entre: a) grupo dos
representantes dos segmentos de atendimento, composto por entidades prestadoras de serviço;
b) grupo dos representantes da sociedade civil, composto por associações de moradores e
clubes de serviços. Nas gestões seguintes, as entidades prestadoras de serviço passaram a ser
as representantes dos segmentos da assistência social, e foram incluídos no conselho
representantes dos usuários da política de assistência social.
Em relação à escolha dos representantes, os do Poder Público devem ser indicados pelos
órgãos com participação no conselho, e os da sociedade civil, eleitos entre seus pares. Podem
candidatar-se a representantes da sociedade civil as entidades prestadoras de serviço em pleno
funcionamento e devidamente inscritas no CMAS, e os usuários atendidos pela assistência
social, desde que sejam maiores de 18 anos e residam no município. Nas gestões analisadas,
consta em ata que as eleições foram feitas por meio de assembleia geral, mas, embora a Lei do
CMAS especifique que os membros devem ser eleitos por seus pares, o regimento interno não
se refere à eleição, o que torna o processo de escolha um pouco aleatório. Nas duas primeiras
eleições (2001 e 2004), a comissão eleitoral redigiu regimento de eleição (que consta em ata),
mas não há registro disso na eleição de 2006. Consta também que a eleição de 2006 foi refeita
devido à falta de candidatos para preencher as vagas de suplência, o que revela pouca
disposição da sociedade civil em participar do conselho. Quanto à recondução, uma única é
aceita, e ela se refere, entretanto, à pessoa do conselheiro e não à instituição na qual ele atua,
o que acaba tornando permanente a representação de determinadas instituições. Como a
representação das entidades prestadoras de serviço é feita por segmento de atendimento,
podem ser eleitos titulares cujos suplentes sejam de instituições diferentes.
De acordo com a Lei 6014/03 do CMAS, o mandato é de três anos para a sociedade
161
civil e de quatro anos para o Poder Público. O que se observou, contudo, nas gestões
analisadas, foi a substituição de todos os membros (Sociedade Civil e Poder Público) em três
anos. Em geral, não há rigor com os prazos de eleição. A diretoria do CMAS possui mandato
de dois anos e é composta por um presidente, um vice-presidente e três secretários, todos com
mandato de dois anos e possibilidade de uma única recondução. Constatou-se que a diretoria
tem sido bem distribuída entre entidades prestadoras de serviço e governo. Durante as gestões
analisadas, a presidência foi ocupada uma vez por representantes do governo e duas vezes por
representantes das entidades sociais. Segundo depoimentos dos conselheiros, o prefeito
municipal, Edinho Silva (PT), fazia questão de que a presidência do conselho fosse ocupada
por representantes da sociedade civil.
Os usuários não têm muita participação na diretoria. Até agora, apenas um
representante deles ocupou a função de 3º secretário, tendo se retirado do cargo, declarando
não se sentir à vontade diante das atribuições. Notamos que os usuários não se dispunham
muito a participar e, muitas vezes, mostravam-se constrangidos em assumir uma posição na
diretoria. Também sua participação nas reuniões era bastante limitada à presença física.
52
Ao todo foram respondidos 13 questionários por 13 conselheiros dos diferentes segmentos e gestões entre
2001 e 2008. Cada gestão do CMAS tem 16 representantes, porém a maioria deles participou de duas ou três
gestões. Assim, os 13 conselheiros que participaram correspondem a uma porcentagem significativa do total.
162
mínimos (SM), 25% ganham entre 6 e 9 SM, 12,5% ganham entre 9 e 12 SM, e 25% ganham
de 15 a 18 (SM). Esses dados refletem a heterogeneidade das entidades sociais e suas diversas
formas de organização. Entre os representantes do Poder Público, a variação é menor, sendo
que 33,33% deles recebem entre 3 e 6 SM e 66,67% recebem entre 6 e 9 SM. Em geral, os
representantes do poder público atuam em cargos mais ou menos equivalentes. Já entre os
representantes dos usuários, 50% deles recebem entre 1 e 3 SM e 50% ficam entre 3 e 6 SM.
Muitos deles têm sua renda proveniente de auxílio do governo, mas esse dado é pouco
representativo dos usuários em geral, já que, neste caso, a representação está limitada ao
segmento das pessoas com deficiência física.
Portanto, o perfil dos conselheiros remete a um universo predominantemente feminino,
com mais de 40 anos, bom nível escolar e situação financeira confortável. Essas
características refletem o fato de que a participação nos conselhos ocorre por referência ao
vínculo dos participantes com a área específica da política em que atuam. O que destoa o
perfil dos conselheiros é o usuário, que é o beneficiário da política.
Quanto ao engajamento político e ao tipo de participação que exercem, a tabela abaixo
aponta que os conselheiros, em geral, têm uma maior participação em atividades políticas
institucionalizadas, as quais não estão vinculadas a partidos ou categorias profissionais, ou
seja, eles priorizam espaços como conselhos, ONGs e conferências públicas.
para a adesão aos conselhos, sendo que 100% deles participam ou já participaram de outro
conselho. Os representantes do Poder Público demonstram uma participação mais ativa que a
dos usuários, porém distanciada dos canais mais tradicionais de mediação política, tais como
partidos, sindicatos e eleições. O não partidarismo entre os representantes do poder público
deve-se ao fato de que quase a totalidade deles é de funcionários públicos efetivos, e não de
ocupantes de cargos políticos. Já os representantes das entidades interagem com os partidos,
mas em pequena proporção: cerca de 25% dos representantes. Quando investigamos sobre a
filiação partidária destes representantes, encontramos a seguinte distribuição: 12,5% são
filiados ao PMDB, 12,5% ao PSDB e 12,5% ao PP. De qualquer modo, a maior participação
política dos representantes das entidades concentra-se nas ONGs e conferências. Outro dado
importante é que, diferentemente dos usuários e representantes do Poder Público, 100% dos
representantes das entidades já participaram de mais de um mandato no CMAS, e muitos
deles já estão no terceiro mandato. Isso revela uma certa permanência das entidades no
CMAS, confrontando o argumento da falta de capacitação e compreensão pelos conselheiros
sobre o papel do conselho.
53
A troca de gestão era feita entre agosto e outubro de cada ano, mas, para fins didáticos, organizamos as trocas
como se feitas em períodos anuais, cuidando sempre para que o levantamento dos dados respeitasse o período de
cada gestão.
164
Poder Público
Nº de
Órgãos Conselheiros Frequência nas reuniões (%)
Secretaria Municipal de Assistência Social 1 90
Sociedade Civil
Segmentos de atendimento
Nº de Conselheiros Frequência nas reuniões (%)
Atendimento à Família 1 77
S: GASPA
Atendimento à Infância 1 79
T: Orfanato Renascer
S: Cristo Rei
Atendimento ao Adolescente 1 90
S: Cedro Mulher
Atendimento ao Idoso 1 77
T: Para DV
S: APAE
Clubes de Serviços 2 31
Rotary Clube
Lions Clube
Poder Público
Sociedade Civil
Segmentos de atendimento
Nº de Conselheiros Frequência nas reuniões (%)
Atendimento à Criança e ao Adolescente 2 73
S: CEPROESC
T: Liga de Assistência Cristo Rei
S: Lar Nossa Senhora das Mercês
T: Vila Vicentina e
S: Asilo da Mendicidade
Usuários
Poder Público
Sociedade Civil
Segmentos
Nº de Conselheiros Frequência nas reuniões (%)
Atendimento à Criança e ao Adolescente 2 80
T: Otoniel de Camargo
S: Asilo da Mendicidade
Atendimento às pessoas portadoras de 1 57
necessidades especiais
Universidade Particular 1 63
A saúde apresentaria um caráter mais universal, com forte presença do setor público na oferta
de serviços, e uma tradição de organização e mobilização em âmbito nacional, o que levou os
movimentos populares urbanos a organizarem-se durante o processo legislativo para ampliar a
participação de seus representantes. Já a assistência social teria um caráter focalizado, sendo
relegada às parcelas mais pobres da população, cujas organizações são de grande fragilidade
política. Isso, somado ao clima político favorável à “refilantropização” na década de 1990,
são agravantes para a participação dos usuários no conselho de assistência.
Mesmo a existência de cadeiras destinadas aos usuários da política de assistência social
não assegura, por si só, uma maior participação e representatividade deles no conselho, seja
por razões específicas, seja por razões mais amplas. Uma das maiores dificuldades é a
definição de quem são os usuários da política de assistência social, já que a própria ideia de
usuário guarda uma seletividade, o que é problemático, uma vez que estamos falando de
políticas definidas como universais. É preciso, ainda, ter em conta a dificuldade de
organização coletiva por parte dos grupos mais empobrecidos, que são os principais
destinatários da política de assistência social. Segundo Raichelis (1998), de um lado, os
setores sociais empobrecidos encontram-se aprisionados na luta cotidiana por sobrevivência,
submetendo-se a “ações de ajuda e tutela reprodutoras da subalternidade”. De outro lado, os
grupos vulneráveis tornam-se ainda mais vulneráveis à medida que os mediadores
governamentais e privados não os veem como cidadãos, e sim como “receptáculos das
benesses da caridade estatal ou privada” (p.280).
Essa relação de subordinação, que se estabelece a partir da condição de desigualdade
material, ofusca as possibilidades de protagonismo na política de assistência social, à medida
que coloca a pobreza “como foco de uma incivilidade que descredencia o ‘pobre’ como
sujeito de direitos e o coloca aquém das prerrogativas que, supostamente, a lei deveria lhes
garantir [...]” (TELLES, 2001, p. 59). Nesse sentido, o entendimento da política de assistência
social como um direito social e sua efetividade no provimento das necessidades básicas do
cidadão em situação de vulnerabilidade tornam-se fundamentais para que a gestão
democrática se constitua nessa política.
A representação dos usuários no CMAS enfrenta ainda questões específicas, ligadas ao
acesso e ao exercício da participação no conselho. Em geral, a representação dos usuários nos
conselhos é feita por meio de organizações representativas dos diversos grupos atendidos,
mas, no CMAS, a eleição não é feita com base em organizações dos usuários, e sim em
usuários individuais. Desta forma, frequentemente a representação é assumida por usuários
das entidades prestadoras de serviço, o que vincula a representação deles a essas entidades e a
169
torna, portanto, pouco representativa. Além disso, a forma como tem sido conduzido o
processo eleitoral, muitas vezes, afeta a representação dos usuários, que em geral encontram-
se “desorganizados”. Conforme o relato da conselheira do CMAS (representante do poder
público – gestão 2006-2009), não houve empenho da secretaria na divulgação da eleição de
2006, o que levou a se candidatarem apenas os atendidos pelas entidades prestadoras de
serviço. Essa mesma conselheira levanta a questão da representação e fala dos reflexos da
composição do CMAS par ao seu funcionamento.
“Acho que a representação está muito ligada à questão dos interesses, e acho que isso dificulta os
encaminhamentos no conselho. Até mesmo na comissão de monitoramento, não nessa atual, muitas vezes
a gente vai fazer a visita e aí é complicado porque alguns conselheiros falam: ‘vamos ver tudo, mas não
vamos pegar pesado porque o fulano é meu camarada’. [...] A constituição do conselho ainda é feita por
segmento, eu entendo que esses públicos têm de estar representados, mas não as entidades em si. O
próprio usuário acaba tendo de comprovar que é usuário por meio do atestado de uma entidade! Mas e o
usuário do bolsa família?, não é usuário?!, o usuário aqui do Plantão, não é usuário?!” (Conselheira
Representante do Poder Público, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
previdência social e assistência social. Desta forma, a representação dos trabalhadores fica
mais restrita aos próprios assistentes sociais, por atuarem na área.
Em geral os conselhos apresentam, na sua composição, quatro segmentos sociais: o
setor governamental, o setor privado, os trabalhadores e os usuários. Uma pesquisa do IBGE
(2005) mostra que 77,5% dos municípios brasileiros do porte de Araraquara contemplam o
segmento dos trabalhadores na composição do conselho de assistência social. No CMAS de
Araraquara, os profissionais da assistência social participam do conselho, mas como
representantes das entidades prestadoras de serviço ou dos órgãos públicos onde trabalham, e
não representando um segmento ou categoria profissional.
Entendemos que o tipo de participação estabelecida pelos conselhos e a representação
no seu interior são questões preeminentes, pois nos ajudam a visualizar o tipo de relação
estabelecida entre Estado e sociedade civil e entre representantes e representados da sociedade
civil. De acordo com Lüchmann (2007, p.146),
Segundo a autora, nas experiências brasileiras observa-se uma relativa consolidação de dois
modelos de participação e representação: a) o modelo dos conselhos que estaria pautado na
ideia de participação coletiva, ou seja, norteado pela representação das organizações da
sociedade civil; b) o modelo do orçamento participativo, que apresentaria uma configuração
mais aproximada à de uma assembleia geral, articulando melhor a participação direta (nas
assembleias dos bairros e regiões) e a representação (eleição de delegados).
Para Luchmann, o tipo de representação presente nos conselhos favorece a
representação dos interesses gerais:
a representação por entidades, ou organizações da sociedade civil, está difusamente
ancorada na legitimidade destas organizações em promover, de diferentes formas, a
defesa das variadas “causas” sociais e de demandas e interesses de grupos e setores
sociais historicamente excluídos dos processos de decisão política. Poder-se-ia dizer,
portanto, que a representação nos conselhos apresenta maior grau de independência,
na medida em que está relacionada com a formulação de políticas públicas e,
portanto, pautada na perspectiva de representação de interesses gerais (LUCHMANN,
2007, p.154-155).
perspectiva dos “interesses gerais”. A nosso ver, é exatamente neste ponto que reside a
importância da questão da representação no interior do conselho, visto que ele pode tanto ser
um espaço de publicização dos conflitos e articulação do interesse geral, quanto se tornar um
canal legitimador de interesses particulares e corporativistas.
Interessa-nos, aqui, destacar a frequente associação imediata que se estabelece entre as
organizações da sociedade civil e a defesa dos direitos dos setores excluídos. É preciso
atenção acerca da legitimidade da representação de tais setores por essas organizações.
Conforme Lüchmann, a representação no interior dos conselhos esboça uma ideia difusa
do que é o representado, “podendo ser, tanto um segmento (ou vários setores da população),
quanto a própria entidade indicada para assumir a representação” (LÜCHMANN, 2007,
p.154). No caso do CMAS, embora os conselheiros enfatizem que representam o segmento e
não a entidade em que atuam, ainda assim, a referência legal para a representação é o
atendimento, ou seja, eles representam o conjunto das entidades que prestam serviço naquele
segmento (idoso, deficiente, criança e adolescente). A autointitulação das organizações como
representantes dos grupos subalternizados e marginalizados esconde uma lacuna na
legitimidade dessa representação, uma vez que essas entidades estão descoladas da base que
dizem representar, e sua eleição no conselho é feita entre seus pares e não pelos usuários.
Segundo a pesquisa empreendida por Lavalle, Houtzager e Castello (2006b), as
organizações sociais se apoiam em diferentes critérios de legitimidade. Os autores identificam
pelo menos seis tipos de argumentos utilizados por elas para justificarem sua
representatividade. São eles: a) eleitoral: a legitimidade estaria baseada nos procedimentos de
eleição dos representantes; b) filiação: a legitimidade se assenta na afinidade de interesses
entre representantes e representados, o que é a razão de existência da organização; c)
identidade: a legitimidade estaria na coincidência de condição existencial entre representantes
e representados; d) serviços: a legitimidade estaria relacionada à atuação da organização
172
“[...] hoje, se tivesse que reescrever o Estatuto [ECA], não definiria como entidades representativas
aquelas que trabalham com a criança e o adolescente [...] me bateria para que fossem as entidades
representativas da população [...] Porque esse viés – foi corporativismo à nossa maneira que nos fez
colocar apenas entidades de atendimento que trabalhassem com criança e adolescentes – objetivamente
atrasou o processo, pois, em sua maioria, em todo o país, elas são politicamente muito frágeis”. (Gomes
da Costa, apud TATAGIBA:2002:61)
“A composição do conselho veio um pouco na esteira do que já era, sabe... Acho que existe a questão de
ter mais representação do próprio beneficiário da política, mas a gente não tem esse estágio de avanço,
né? [refere-se à participação ativa dos usuários]... E mesmo que esse estágio não seja o ideal, também não
se efetivou ainda. Essas coisas que vêm à base da lei, nem sempre a prática acompanha. [...] Mas acho que
é preciso continuar aprofundando essa questão no conselho para que haja mais avanços, porque ele está
inacabado. Na gestão anterior, tinha o Lions e o Rotary, os clubes de serviço, o problema é que eles não
iam. É claro, é um fragmento daquele momento. Então é assim: o que é possível nesse momento nomear?
Eu concordo que isso pode ser melhorado, ser mais abrangente, mas eu lembro do primeiro processo para
eleger os representantes dos usuários, o quanto foi complicado, porque se tinha de dividir entre todas as
pessoas que estavam ali sendo atendidas por todos os programas e tal. E, na hora de eleger, tem de ser um
processo aberto, com edital e eleição... Só que isso ainda não se tem, porque as pessoas que mais precisam
da assistência, muitas vezes não têm ciência em relação a tudo isso. Quanto às outras organizações da
sociedade civil, quantas realmente têm o desejo, a intenção e a disponibilidade para participar de um
174
trabalho dessa natureza? Então, tem toda uma dificuldade oriunda aí do próprio movimento de
participação que nós não temos muito ainda. Você não tem associações de bairro, quando tem ela tem
dono, é... você não tem movimento social, você tem grupos que dominam determinado território, é assim:
‘esses pobrinhos são meus’. A verdade é essa”. (Conselheira Representante do Governo, gestão 2001-
2003 e Secretária da Assistência Social entre 2001-2004 – Entrevista em 25/02/09)
“Hoje, o usuário tem um papel de controlador social, mas na época nós não sabíamos nem onde procurar
esse usuário, então as entidades que atendiam esses usuários ficaram mais fortalecidas. Onde íamos
procurar o usuário de assistência social? Onde ele estaria representado? Não existia os CRAS, por
exemplo. Hoje, a gente já pode fazer outro tipo de regimento interno. Na época, a gente não sabia onde ia
buscar esse usuário, você entendeu? Então, o usuário estava dentro de algum programa oferecido pelo
município e estava dentro das entidades assistenciais”. (Conselheira Representante das Entidades
Prestadora de Serviço, gestões 2001-2003 e 2004-2006 – Entrevista em 18/02/09)
“Acho que as questões, problemas, demandas, são discutidas superficialmente. As pessoas lutam por
interesses próprios e não coletivos, e isso inclui o Poder Público, estou falando de representantes da
sociedade civil e do Poder Público. Acho que a gente não aprofunda a discussão e, se aprofunda, as
pessoas se incomodam com isso, porque muitas vezes estão mais preocupadas com o tempo do que com o
conteúdo”. (Conselheira Representante do Poder Público, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“Hoje, os representantes das entidades veem o conselho, mas eles veem com uma visão limitada. Limitada
no sentido assim: quando é colocado no conselho: ‘olha, precisamos de gente para atuar em uma comissão
de fiscalização ou na comissão de monitoramento de entidades’, aí fica aquela coisa: ‘olha, eu não posso
porque o presidente da entidade que eu represento não vai me liberar’. Então, os conselheiros ainda ficam
muito atrelados às entidades que eles trabalham. É preciso perder aquela visão de que ‘eu vou para a
reunião do conselho porque vai ser discutido uma verba que a minha entidade tem interesse’. E a questão
da capacitação, porque acho que falta entender a mudança da política, entender a evolução da assistência
175
social. Acho que o conselho ainda não conseguiu digerir isso...” (Conselheira Representante do Poder
Público, gestão 2007-2009 e Secretária da Assistência Social 2006-2008 – Entrevista em 21/01/09)
Quando os representantes das entidades falam sobre as razões de participarem do
CMAS, o que se sobressai é o interesse em apresentar-se como componente da rede de
atendimento, pleiteando recursos e informações que favoreçam a entidade.
“É importante a participação para que se possa mostrar o trabalho de cada segmento e entidade dentro do
contexto geral”. (Conselheiro Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2004-2006 e
2007-2009 - Entrevista em 10/02/09)
“A entidade tinha interesse em saber como eram feitas as discussões e essa partilha [dos recursos], e pelo
benefício que essas discussões trazem, quem participa, quem é atuante, se faz presente e é lembrado”.
(Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2001-2003 e 2004-2006 –
Entrevista em 16/02/09)
“A instituição queria estar presente, mostrar que a gente estava empenhada em participar e estava
envolvida com as mudanças e maiores benefícios para as instituições, porque assim como a gente recebia
das outras, as outras também recebiam de nós, era uma troca...” (Conselheira Representante das Entidades
Prestadora de Serviço, gestão 2004-2006 – Entrevista em 13/02/09)
Ainda que os interesses das entidades sociais sejam legítimos, pois elas prestam um
serviço importante na rede de atendimento e enfrentam grandes dificuldades financeiras para
manter suas atividades, eles são fragmentados e, por isso, muitas vezes as entidades assumem
um caráter particularista, voltando-se para si mesmas ou limitando-se a trocar informações e
atuar em cooperação com as demais entidades locais. Nota-se uma ausência de preocupação
com a política de assistência social no seu sentido macro, o que pode tornar o conselho um
mero espaço de reuniões administrativas, em que as partes dividem tarefas e valores, sem
assumir, portanto, o papel de conselheiros e representantes da sociedade como um todo nas
discussões e deliberações que a ela dizem respeito.
Dessa forma, podemos dizer que o novo mecanismo deliberativo não expressou grandes
mudanças quanto à introdução de novos agentes políticos na arena decisória do município,
limitando-se a incorporar um grupo que já exercia influência sobre o campo da assistência
social e dar legitimidade a ele. Sendo assim, a importância do conselho estaria mais na
publicização do diálogo entre Estado e sociedade civil, antes obscurecido por relações
clientelísticas. Antes de existir o CMAS, os recursos públicos destinados às entidades eram
obtidos diretamente com o Poder Executivo, em negociações sujeitas a todo tipo de
favoritismo, corrupção e submissão das entidades sociais.
176
Como mostra a tabela, a organização interna do CMAS ainda é o tema que domina as
deliberações do conselho, ocupando 22,47% da pauta de discussões. A organização interna
constitui a própria operacionalização do conselho. A predominância desse tema indica que o
conselho não se encontra estruturado ou que ele está se tornando muito burocratizado. No
caso do CMAS, é possível perceber que houve um declínio dessa atividade ao longo dos oito
anos analisados, o que indica que o conselho atingiu uma estabilidade organizacional.
Verificamos que a última gestão tinha problemas sérios com a formação da diretoria. Todos
os secretários haviam se retirado e a questão não se resolveu até o final do mandato; até lá, em
todas as reuniões era preciso muito tempo até que se conseguisse um voluntário para lavrar a
ata. Outro problema para a organização do conselho é a falta de infraestrutura. O CMAS não
178
conta com sede própria, não tem secretário, e não possui veículo para realizar as visitas de
monitoria, o que dificulta enormemente os seus trabalhos. Apesar dessas questões não
constarem em atas, elas eram constantemente frisadas pelos conselheiros.
“Geralmente, as comissões têm que ter sempre um integrante da secretaria de assistência [...], se não, não
funciona. Tem que ter para puxar o trabalho e para representar essa comissão dentro da secretaria, se não,
a comissão fica sem apoio, sem estrutura para atuar. Você precisa do carro para fazer as visitas, aí você
precisa que alguém de dentro da secretaria agende o veiculo”. (Conselheiro Representante das Entidades
Prestadoras de Serviço, gestões 2004-2006 e 2007-2009 - Entrevista em 10/02/09)
“Eu, às vezes, acho que é uma mistura, que você não sabe o que é secretaria o que é conselho, até por
conta de não termos um espaço, não ter uma secretária. Você veja, para oficiar as entidades das reuniões,
tem que ser feito via secretária, porque nós não temos como. [...] A nossa maior dificuldade até hoje, é
que o conselho não conseguiu, mas não é só do conselho de assistência, é a sede para os conselhos, isso a
gente ainda não conseguiu”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadoras de Serviço, Presidente
do CMAS, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“A gestão municipal não pode esquecer o que está lá na lei, a lei que cria os conselhos estabelece que é
papel do poder público oferecer infraestrutura e recursos, porque aquele representante está ali para um
trabalho que é voluntário, para uma contribuição e participação, mas ele não pode tirar dinheiro do bolso
dele para pôr gasolina no carro e fazer monitoria, ou mesmo para se qualificar. Da minha parte, esse
problema foi uma frustração imensa, fiz tudo o que podia do ponto de vista de colocar o que tinha na
secretaria à disposição do conselho, mas isso é uma resposta que o governo não deu. A gente tinha essa
discussão da Casa dos Conselhos porque o governo falava e criou um número imenso de conselhos, e
onde está a infraestrutura? Então, se você tem a política, tem que ter efetivamente esse espaço de
participação popular. Eu acho que é fundamental, e cansei de dizer isso dentro do governo: ‘Está ruim,
está a desejar, a gente não está cumprindo com aquilo que nós nos propomos e construímos em lei’. Tinha
o discurso, mas ele não se efetivou”. (Conselheira Representante do Governo, Presidente do CMAS
gestão 2001-2003 e Secretária da Assistência Social entre 2001-2004 – Entrevista em 25/02/09)
C - Denuncias e Irregularidades
G 9%
A 23%
F 17%
D - Encaminhamentos e
solicitações enviadas a outros
orgãos e instâncias
B 13%
E - Organização e distribuição de
C 1% recursos e programas na rede
E 29%
D 8%
G - Outros
Fonte: atas das reuniões do CMAS (2001-2008)
“Via de regra, as pautas são definidas pela secretaria de assistência social, conforme a demanda do
município. Se alguém pede que quer falar sobre um assunto, a gente pede para incluir na pauta. Mas o
conselho não elabora a pauta. Se a gente [a secretaria de assistência social] não fizer, não tem pauta
(risos). Sempre é a gente que leva, pouca coisa surge do conselho mesmo. A demanda do conselho para
discutir é recurso. [...] As discussões e deliberações giram em torno das nossas demandas, porque somos
nós que colocamos os assuntos em pauta. Nós levamos o que é solicitado ao município, geralmente
181
exigências legais, por exemplo, o Plano Municipal. Agora vai ter o Plano Federal, o município vai ser
instruído para elaborá-lo e o conselho vai deliberar sobre aquilo que os municípios fizerem, conforme
orientação federal. Não vão entender nada, mas vão ter de deliberar!” (Conselheira Representante do
Poder Público, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“O conselho está atendendo mais as necessidades do executor da política pública, que é a Secretaria, [...]
no sentido de apoio e pequena participação nas decisões. [...] Quando o executor [Poder Executivo], por
força de lei, precisa de uma aprovação do conselho, ele convoca o conselho. Convoca a mesa e a mesa
convoca o conselho, ao passo que deveria ser o inverso. O conselho está mais apoiando as decisões do
executivo, não que esteja errado, a assistência é um setor que necessita de muita atenção e quando as
necessidades aparecem nesse ou naquele segmento elas são nítidas, são evidentes, então o conselho apoia
o Executivo porque também identifica aquele problema ou demanda”. (Conselheiro Representante das
Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2004-2006 e 2007-2009 - Entrevista em 10/02/09)
“Agora mudou um pouco, mas nos dois primeiros anos o conselho apenas legitimava a vontade do
prefeito, eu cansei de dizer que nós éramos ‘vacas de presépio’. Os conselheiros não tinham noção do que
era o conselho e do papel que eles tinham”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadora de
Serviço, gestões 2004-2006 e 2007-2009 – Entrevista em 30/01/09)
“O conselho é um órgão de controle social da assistência social, então ele tem que existir, ele está dentro
182
da política nacional da assistência social, então não tem como você trabalhar a política da assistência sem
ter o órgão de controle social. [...] A influência dos conselhos na política municipal de assistência social
teria que ser maior, isso ainda não acontece da forma como gostaríamos que acontecesse, por isso que
volto a falar para você da capacitação, que é importantíssima. Eles ainda não tomaram posse do poder que
eles têm diante da política da assistência no município”. (Conselheira Representante do Governo, gestão
2007-2009 e Secretária da Assistência Social entre 2006-2008 – Entrevista em 21/01/09)
“Os gestores precisam da atuação dos conselhos, se não ele não consegue nem gerir. O conselho é um
aliado extremamente importante no sentido de avançar a política, na hora de discutir um recurso, de
definir a prioridade. O secretário que tem clareza disso... A representação da sociedade civil só lhe
concede mais poder, partilhar a informação só lhe concede mais poder”. (Conselheira Representante do
Governo, gestão 2001-2003 e Secretária da Assistência Social entre 2001-2004 – Entrevista em 25/02/09)
Os demais itens deliberados pelo conselho são: prestação de contas, com 17%;
manutenção dos registros no CMAS, com 13%; encaminhamentos externos, com 8%;
denúncias e irregularidades, 1%. Todas essas atividades, incluindo as deliberações sobre as
demandas dos governos, referem-se ao controle social efetuado pelo CMAS. Por
representarem atividades obrigatórias do conselho, elas mantiveram-se estáveis ao longo do
período analisado. As prestações de contas, normalmente, eram aprovadas sem grandes
questionamentos ou discordâncias, mas os técnicos da Secretaria (SMISC) sempre
enfatizavam a ausência da comissão fiscal. Ao apresentar a Prestação de Contas do 1°
Semestre de 2008, a gestora do Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS) lamentou que
a comissão fiscal do CMAS assumisse a função de fiscalizar as contas apresentadas (Ata do
CMAS de 24/07/08).
Em vários momentos da pesquisa pudemos identificar que o controle social foi o
principal enfoque do CMAS, sendo que quase todas as suas atividades objetivavam cumprir
essa função. A ênfase na fiscalização e controle é recorrente nas falas dos conselheiros
quando lhe perguntamos sobre as principais atividades do conselho.
“Na verdade, o conselho delibera sobre a concessão de registro das entidades. A comissão de
monitoramento faz a triagem, a gente retorna a essa entidade falando se falta documento, enfim, procura
deixar certo, para que quando chegue ao conselho para aprovação não esteja faltando documento, porque,
se não, vai e volta muitas vezes. Então, a gente faz essa parte de preparar, ver se o pedido não está fora do
âmbito da assistência social. Aí ela [a entidade] vai para o conselho, apresenta o seu projeto, e o conselho
aprova ou não. O conselho pode deliberar, por exemplo, sobre cortar o registro de uma entidade, se existe
alguma irregularidade. A irregularidade para o conselho de assistência é mais voltada para a questão
financeira. Não que não possamos ver irregularidade no atendimento, nós podemos ver e nós podemos
alertar, mas a questão financeira é mais avaliada.” (Conselheira Representante das Entidades Prestadoras
183
“A comissão de monitoramento faz as visitas, nós temos reuniões semanais em que a gente discute, por
exemplo, o relatório de atividades e faz as visitas, certo? Inclusive para constatar, porque o relatório de
atividades, ele retrata muita coisa, mas não retrata tudo, então, a gente faz as visitas para comparar. E
quando, a partir da reunião, você sente que há alguma dúvida, prepara-se uma orientação para esclarecer.
[...] As visitas são feitas em várias situações, por exemplo, para acompanhar e avaliar os serviços, para
orientação, ou também para a concessão de registro”. (Conselheira Representante da Universidade
Particular, gestões 2004-2006 e 2007-2009 – Entrevista em 18/02/09)
“O monitoramento foi muito importante para o conselho conhecer melhor todas as entidades e seus
trabalhos”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2001-2003 e 2004-
2006 – Entrevista em 16/02/09)
“O conselho poderia estar mais organizado, melhor estruturado, eu penso que eles esperam muito que o
Poder Público resolva um problema que é do conselho, que eles não se assumem enquanto conselheiros,
que eles delegam a atribuição deles para a gente. Eles ficam esperando que a gente faça, e a gente por
outro lado, não faz aquilo que não é de nossa competência. Como naquele dia que o presidente de uma
entidade ficou falando que nós éramos desorganizados porque não tínhamos levado a relação das
entidades inscritas no conselho, mas nós não identificamos que precisaria e isso não foi solicitado, se
tivéssemos identificado, porque não levar? Aí ele ficou falando assim: ‘para mim, vocês repassando o
recurso, já estou satisfeito’. Isso é muito pouco para uma entidade inscrita no conselho, é se isentar
demais e não saber seu papel e, se sabe, finge que não sabe. [...] Qual iniciativa o conselho tem tido? Esse
ano é ano de conferência, se nós [secretaria de assistência social] não organizarmos – indicar palestrantes,
arrumar o espaço – não é realizada a conferência, mesmo que eles também, enquanto conselho e política
de assistência, sejam prejudicados. Mas se a gente não faz, eles não fazem, ‘ah porque não pode sair
porque o presidente da entidade não libera’”. (Conselheira Representante do Poder Público, gestão 2007-
2009 – Entrevista em 04/03/09)
Apesar de ser pertinente sua critica, a fala da representante do poder público revela a
mesma postura criticada por ela. Ao referir-se ao conselho como “eles”, ela também não se
184
inclui como conselheira, ou seja, o conselho é visto como as entidades sociais que o
compõem. De outro lado, no discurso dos representantes das entidades, o CMAS se confunde
com a Secretaria de Assistência Social e, portanto, com os funcionários da secretaria. Ao
final, ninguém assume a representação do conselho e ele se torna um espaço de defesa dos
interesses particulares.
Nas entrevistas, os conselheiros das entidades afirmam que não tinham muita
disponibilidade para envolver-se nas atividades do conselho porque a diretoria da entidade
não permitia que o representante se afastasse por muito tempo do trabalho na sua instituição.
Em geral, a diretoria das entidades sociais envia um representante para acompanhar as
reuniões ou para assumir o papel de representante no CMAS, mas nem sempre esse
representante tem o poder de decisão na entidade. Isso revela também um descrédito ou
desinteresse das entidades sociais pelo conselho.
A grande expectativa em relação aos mecanismos participativos institucionalizados está
no seu potencial deliberativo enquanto órgão co-gestor, destacando-se seu papel na
formulação de políticas públicas e no controle social como principais atribuições. Entretanto,
no caso estudado, vimos que, enquanto o controle social é amplamente incentivado e
desenvolvido, a elaboração de políticas públicas não tem muito espaço no interior do CMAS.
As atividades mais recorrentes do conselho são a partilha dos recursos destinados à rede de
atendimentos e às atividades relacionadas ao controle social, que se referem à fiscalização da
execução da política de assistência social. Desta forma, o CMAS atua mais no sentido de
garantir a eficiência e a transparência da gestão pública do que na definição da política
pública, o que confere ao conselho uma atuação mais operacional, em detrimento de sua
função propositiva e decisória. Nesse sentido, os dados obtidos em nossa pesquisa apontam
em direção à nossa hipótese inicial de que o conselho estaria atuando num sentido mais
gerencial que político.
Recorrendo a outros estudos sobre os conselhos, observamos que há certa regularidade
nos dados por nós constatados. Pesquisando o Conselho Municipal de Assistência Social de
Curitiba, Renato Perissinotto (2002, p.224) verificou que os temas mais recorrentes nas atas
do conselho eram as concessões do atestado de funcionamento das entidades (registro), as
deliberações sobre os recursos destinados aos diversos projetos e a prestação de contas do
Fundo Municipal de Assistência Social. Da mesma forma, Soraya Cortês (2002, p.189)
identificou que as principais pautas do Conselho Municipal de Assistência Social de Porto
Alegre eram o registro das entidades sociais no conselho e as deliberações sobre o repasse dos
recursos financeiros dos projetos e programas às entidades sociais.
185
Na análise de Cortês (2002, p.194), “as atividades que o conselho desenvolve poderiam
ser classificadas como gerenciais, em vez da deliberação política”, pois elas têm um caráter
administrativo e cartorial. Para a autora, as atividades do conselho remetem às articulações e
conflitos entre os atores coletivos que participam do processo de decisão, e às características
institucionais da assistência social, “que definem o modo como se organizam e são
financiados os serviços e afetam a natureza das relações entre poder público e prestador de
serviços” (p.191).
Na análise de Perissinotto (2002, p.224), “a instituição [conselho municipal de
assistência social] funciona menos como um espaço de debate sobre a política de assistência
social e mais como uma agência implementadora de políticas e fiscalizadora das entidades
atuantes na área”. Para o autor, dois fatores contribuem para esse quadro: a orientação
político-ideológica do governo local, que, no caso estudado pelo autor, era pouco favorável à
participação; e a própria natureza da assistência social e das entidades prestadoras de serviço,
que não são engajadas no debate político e concentram-se apenas em suas atividades de
caridade. “Podemos dizer que há um certo ethos na assistência social segundo o qual a
caridade é superior à política” (PERISSINOTTO, 2002, p.225).
Assim, corroboramos com as análises oferecidas por Cotês (2002) e Perissinoto (2002)
em relação à natureza da assistência social e às características institucionais apontadas pelos
dois autores. Entendemos que, de um lado, o fato de a assistência social ser constituída por
uma série de projetos específicos, desenvolvidos pelas mais variadas entidades, e, de outro, a
ausência de uma política pública mais estruturada, com procedimentos mais padronizados,
impõem dificuldades para a análise e controle dos serviços públicos e para a própria
constituição da assistência social como política pública. O resultado disso é um difícil e
detalhado trabalho burocrático que tem sido delegado aos conselhos de assistência social.
Concordamos também com a observação de Cortês (2002), de que muitas vezes o processo
decisório transcende o conselho municipal e a própria esfera municipal, restando muito pouco
a ser decidido no nível local. Essa questão remete às características da descentralização no
Brasil, que muitas vezes é mais administrativa do que política, relegando aos municípios
apenas a operacionalização e o controle das políticas, e pouca autonomia deliberativa.
Contudo, a ênfase dada ao controle social não se restringe ao conselho de assistência
social e está presente na própria definição dos conselhos, sendo que sua maior ou menor
intensidade pode estar associada ao entendimento que se faz da participação. Assim, quando a
participação é entendida como um recurso gerencial, a tendência é que o conselho assuma um
papel mais fiscalizador para garantir a “gestão eficiente”; quando a participação é entendida
186
“Eu não vejo aquilo como um Plano, eu vejo como um balanço, porque o Plano é algo que antecede, e
aquele era uma espécie de um balanço dos gastos”. (Conselheira Representante da Universidade
187
Todos os Planos aprovados entre 2001 e 2008 seguiram a mesma sistemática, com
apresentação detalhada pelos técnicos da SMISC no CMAS e posterior aprovação pelo
conselho. Normalmente, o prazo para envio à secretaria estadual de assistência social é curto e
o modelo do plano já vem pronto da secretaria estadual, bastando preencher com os dados do
município. As falas dos conselheiros expõem a ausência de participação propositiva no Plano
de Assistência Social:
“O Plano sempre foi apresentado e, esclarecidas as dúvidas de entendimento sobre esse ou aquele item,
depois era aprovado. Mas, nesse aspecto, eu nunca entrei muito, então não sei te dizer se houve
encaminhamento de propostas para o Plano Municipal de Assistência Social”. (Conselheira Representante
das Entidades Prestadora de Serviço, gestão 2007-2009 – Entrevista em 16/02/09).
“Participação na elaboração do Plano eu acredito que não tem, mas aí é a minha interpretação. Porque os
recursos já estavam deliberados, aqueles que iriam para as entidades já estavam liberados e intocáveis,
então quer dizer... Agora, a respeito da política pública de assistência, tudo, não participou. A participação
no Plano foi pequena e voltada para a parte do Terceiro Setor. O Plano tem programas nossos [secretaria
municipal de assistência social], mas eles [conselheiros] não opinaram. Então, cada entidade participou
colocando a sua própria realidade, como: meta de atendimento, recurso investido, recursos humanos...
tudo aquilo que pede no Plano. Mas cada uma falou de si, não foi uma discussão coletiva com meta
estabelecida para ser cumprida no ano seguinte para assistência”. (Conselheira Representante do Poder
Público, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“Olha, eu vou ser sincera com você, eu tenho algumas dificuldades com relação a isso [Plano Municipal
de Assistência Social] porque não é minha área. Mas eu entendo assim: que o Plano Municipal tem de
estar dentro do âmbito do conselho por conta de ser uma execução que tem que ser fiscalizada pelo
conselho, entende? Compete ao conselho a fiscalização de tudo isso, certo? Embora a gente, às vezes, foca
mais na fiscalização das ONGs. Mas propostas em relação ao Plano Municipal, não. Houve apenas a
votação para aprovação do Plano”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadoras de Serviço,
Presidente do CMAS, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
Sobre todos os planos, exige-se um parecer do conselho. Dos pareceres emitidos entre
2001 e 2008 (com exceção do de 2005, que faz objeção à insuficiência dos recursos) todos
apenas reiteram o dito pela secretaria municipal. Cabe registrar que, durante as discussões que
acompanhamos, os técnicos e conselheiros representantes do governo sempre se colocaram à
disposição para receber o conselho ou uma comissão para acompanhar e colaborar na
elaboração do PMAS. Entretanto, não há registros de que tenham sido formadas comissões ao
longo do ano para estudo e discussão sobre a assistência social e as políticas desenvolvidas, a
188
“Falta iniciativa mesmo no conselho, e falta informação. Acho que isso tem a ver com a constituição do
conselho, por as entidades estarem preocupadas com os recursos, elas voltam o olhar só pra si. Às vezes, a
gente fala de sistema único da assistência, de política, parece que estamos falando de Marte, coisa que
deveria ser comum a eles! Essas políticas foram aprovadas em 2004!” (Conselheira Representante do
Poder Público, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“Não há muita proposta e discussão porque os conselheiros não têm muita disponibilidade de participar
das comissões e acompanhar mais de perto. Dificilmente os dirigentes das entidades autorizam seus
representantes a ausentar-se tanto tempo da entidade. Então, se você não está por dentro, não tem como
discutir”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2004-2006 e 2007-
2009 – Entrevista em 30/01/09)
189
“O conselho tem tido baixa frequência e participação dos representantes das entidades, então, a gente não
consegue alcançar os objetivos propostos. Há uma ausência... nem quando a pauta da reunião é partilha de
dinheiro a gente tem uma boa frequência, você faz ideia de quanto é complicado... Eu vejo que há uma
falta de capacitação e de entendimento dos conselheiros sobre a função verdadeira desse conselho e do
poder que ele tem de deliberação, certo? E uma visão assim, muito egocêntrica do trabalho, quer dizer,
falta estar ali, discutir as ideias, partilhar as coisas... Imagina que eu resolvo ficar aqui dentro da minha
entidade fazendo tudo o que dá na minha cabeça? Então, acho que falta mesmo conhecimento, vontade de
fazer uma coisa diferente, não sei... Acho que falta fazer um trabalho de capacitação”. (Conselheira
Representante das Entidades Prestadoras de Serviço, Presidente do CMAS, gestão 2007-2009 – Entrevista
em 04/03/09)
“Uma dificuldade que eu encontrei, e acho que a maior parte encontra, é que você entra no conselho e
você não sabe exatamente o funcionamento do conselho, porque você não conhece a fundo a organização.
E tem pessoas que vão completamente nulas, tem outras que até participam. Eu, no início, tive muitas
dificuldades de acompanhar e entender o andamento, todas aquelas siglas... Acho que a grande
dificuldade dos conselheiros é exatamente por falta de conhecimento, de como funciona, do que é a
estrutura de uma secretaria e de um conselho, né... a gente não tem isso. [...] Sempre a gente falava da
necessidade de uma capacitação para os conselheiros porque, você sabe, as ONGs, em geral, são fundadas
por pessoas de boa vontade, são pessoas que têm um amor imenso, que lutam e trabalham para manter a
190
entidade, mas nem sempre têm a noção de como agir no conselho”. (Conselheira Representante das
Entidades Prestadora de Serviço, gestão 2007-2009 – Entrevista em 16/02/09)
“Acho que o funcionamento do conselho ainda tem muita coisa para ser discutida e elaborada em termos
de visão, daquilo que o conselho pode vir a fazer. Acho que é muito difícil a compreensão das pessoas de
algumas coisas. Não falo isso recriminando. A gente, quando está fora, também tem essa dificuldade de
ver o que é realmente o trabalho do conselho. E essas leis todas, elas são difíceis para quem não é
assistente social”. (Conselheira Representante das Entidades Prestadoras de Serviço, Presidente do
CMAS, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“Uma questão de extrema importância para quem está no governo e valoriza os conselhos é fazer a
qualificação, é facilitar isso. Esse processo de formação do conselheiro, de ele entender que está lá não é
para servir um governo ou um secretário, ele está lá para pensar a política pública do município, enfim, ter
clareza desse papel. Falta clareza, informação, competência para fazer a política, porque a gente vem de
uma história de não ter participação”. (Conselheira Representante do Poder Público, gestão 2001-2003 e
Secretária da Assistência Social entre 2001-2004 – Entrevista em 25/02/09).
Conforme Dagnino (2002b), diversos fatores bloqueiam a efetiva partilha de poder nos
mecanismos deliberativos. Do lado do Estado, encontramos aspectos relacionados tanto a
concepções políticas resistentes à democratização, quanto à estrutura e funcionamento do
aparelho estatal. Do lado da sociedade civil, as limitações à participação mais igualitária estão
relacionadas à exigência de qualificação técnica e política que essa participação impõe aos
representantes da sociedade civil.
Em primeiro lugar, a aquisição dessa competência técnica por parte das lideranças dos
setores subalternos tem exigido um considerável investimento de tempo e energia que
191
muitas vezes, num quadro de disponibilidade limitada, acaba sendo roubado do tempo
dedicado à manutenção dos vínculos com as bases representadas. [...] Uma segunda
implicação é que a rotatividade da representação nesses espaços fica prejudicada:
dadas as dificuldades da aquisição dessa competência, seus eventuais portadores
tendem a ser perpetuados enquanto representantes. Em terceiro lugar, a ausência
dessa qualificação não é apenas uma ausência absoluta: é também uma deficiência
relativa com respeito aos interlocutores governamentais e representantes de outros
setores mais privilegiados da sociedade civil. [...] Nesse sentido, ela carrega para o
interior desses espaços públicos uma desigualdade adicional que pode acabar
reproduzindo exatamente o que eles têm como objetivo eliminar: o acesso
privilegiado aos recursos do Estado que engendra a desigualdade social mais ampla.
(DAGNINO, 2002b, p.148-149)
Sem dúvida, uma das questões principais da gestão pública é o orçamento, pois é ele que
define o alcance das políticas a serem executadas. A participação social na sua definição é,
portanto, fundamental para a formulação das estratégias e prioridades das políticas. Sendo
assim, procuramos verificar como é a participação do CMAS na elaboração do orçamento.
O orçamento anual da secretaria municipal de assistência social de Araraquara
corresponde a quase 4% do orçamento total da Prefeitura, ficando em R$: 10.488.000,00 (dez
milhões, quatrocentos e oitenta e oito mil reais) em 2008 e R$: 11.619.750,00 (onze milhões
seiscentos e dezenove mil setecentos e cinquenta reais) em 2009.
Assim como no caso do Plano Municipal de Assistência Social, a lei de criação do
CMAS estabelece que o Orçamento Anual deve ser aprovado pelo conselho, mas não
estabelece a participação deste na elaboração do orçamento. Conforme observado nas atas, a
aprovação do Orçamento Anual seguia a mesma dinâmica todos os anos: os técnicos da
secretaria municipal de assistência social apresentam o orçamento, mostrando os valores por
programas de atenção, e a distribuição desses valores para cada projeto.
Durante a pesquisa assistimos à reunião referente à aprovação do Orçamento de 2009,
192
quando a técnica gestora do Fundo Municipal de Assistência Social enfatizou que há dois
anos “a Câmara Municipal vem trabalhando com as Secretarias para que estas apresentem os
Orçamentos de forma mais didática”. Na apresentação, houve pouca repercussão sobre o
volume e a alocação dos recursos, mesmo porque se mantinha basicamente o mesmo quadro
dos anos anteriores. A gestora do Fundo chamou atenção para a proporção do valor investido
em um único programa da SMISC, Frentes da Cidadania, cujo valor corresponde a quase 50%
do volume total dos recursos.
Questionada sobre tal programa, a secretária municipal de assistência social explicou
que ele atendia cerca de 600 famílias e envolvia diversas atividades, além de ter despesas com
funcionários em regime de contratação temporária pela Prefeitura para diversos serviços.
Metade do custo do programa, por isso, era destinado à folha de pagamento, EPIs e Vale
Transporte.
Além da proporção dos recursos abarcados pelo programa, chama a atenção o fato de ele
desenvolver atividades equivalentes a serviços de manutenção, prestados pela Prefeitura
independente do programa, porém o pagamento dos funcionários é feito com recursos do
orçamento destinado à assistência social. A Secretária de assistência social (2001-2004)
explica que, inicialmente, o programa era custeado pela Secretaria de Obras e Serviços,
porque o orçamento da secretaria de assistência não comportava o valor. Posteriormente, a
verba foi transferida para a secretaria de assistência social para que ela bancasse o programa,
dando uma falsa impressão de aumento no seu orçamento.
Outro ponto de discussão, ocorrido durante a aprovação do Orçamento de 2009, foi a
alocação de dois programas provenientes de emendas parlamentares, ambos dotados de verba
para execução, mas cujos temas, segundo a Secretária, não eram da pasta da assistência social.
A questão era o que fazer com o recurso, porém nenhuma proposta foi encaminhada pelos
conselheiros sobre o destino dos programas e os valores a eles vinculados.
As questões feitas pelos conselheiros ao longo da apresentação do Orçamento e os
relatos nas entrevistas demonstram que eles tinham pouco conhecimento sobre os programas
desenvolvidos, o que indica que o CMAS não discute muito a política de assistência no
município.
“A discussão sobre os programas acontece quando eles estão pautados pela secretaria, caso contrário, não.
Por exemplo, a proposta do ProJovem adolescente. Era um projeto do governo federal para ser
implementado nos municípios, o próprio Ministério elencou os municípios e precisava da aprovação do
conselho. Mas que conselho diria não? E qual era o entendimento do conselho sobre o Programa? Então, a
gente [secretaria municipal de assistência social] pediu inclusão na pauta, apresentamos o programa de
193
acordo com as normas estabelecidas no Ministério e colocamos em votação. Mas, falando sério?! Como é
que eles [conselheiros] vão falar não?! A primeira pergunta é: ‘vai ter recurso?’ Vai, mil e tanto por mês
para cada coletivo. Como é que eles vão recusar? Nem o município pode questionar o tratado
metodológico do programa! Então, se no conselho é uma farsa, o município também participa disso,
porque já veio do ministério pronto. [...] Muitos dos programas, às vezes, eles nem têm conhecimento”.
(Conselheira Representante do Poder Público, gestão 2007-2009 – Entrevista em 04/03/09)
“Há uma certa dificuldade de compreensão porque os conselheiros têm dificuldade de estar mais a par da
política, para saber o que poderia ser mudado”. (Conselheiro Representante das Entidades Prestadora de
Serviço, gestões 2004-2006 e 2007-2009 - Entrevista em 10/02/09)
“Não há participação do conselho de dizer assim: ‘olha, porque em vez de vocês reservarem dentro do
orçamento uma rubrica para construir mais três CRAS, vocês não constroem quatro?’, entendeu? É isso
que falta para o conselho, ele não tem uma participação efetiva no Orçamento, ele ainda não tem esse
olhar”. (Conselheira Representante do Governo, gestão 2007-2009 e Secretária da Assistência Social
2006-2008 – Entrevista em 21/01/09)
“O Orçamento até hoje é complicado, porque aquilo é uma peça orçamentária, né... Quem elaborava a
parte de Orçamento era a Prefeitura, as técnicas, e isso passa para o conselho aprovar, mas era uma peça, a
gente tinha pouca participação na elaboração do orçamento. Hoje você sabe que, como conselheiro, você
pode até sugerir, fazer o acompanhamento desse Orçamento até na Câmara, mas, quando começou, isso
era feito pelos técnicos da Prefeitura que elaboravam uma apresentação e a gente referendava, até hoje é
meio assim, não é?” (Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2001-2003
e 2004-2006 – Entrevista em 18/02/09)
“Temos que admitir que não há uma participação no Orçamento no sentido de opinar sobre ele, acho que
nisso o conselho ainda tem que avançar”. (Conselheira Representante do Governo, gestão 2007-2009 e
Secretária da Assistência Social entre 2006-2008 – Entrevista em 21/01/09)
“O Orçamento era apresentado no conselho e o conselho aprovava, nós discutíamos a parte da divisão das
verbas destinadas à execução das atividades pelas entidades”. (Conselheira Representante das Entidades
Prestadora de Serviço, gestão 2001-2003 e Presidente do CMAS gestão 2004-2006 – Entrevista em
16/02/09)
“Não, a gente não participava, o tesoureiro lá da Secretaria de Promoção trazia o montante das verbas a
serem repassadas, e já trazia mais ou menos especificado o quanto ia ser destinado a cada setor, entendeu?
Setor do menor, setor do excepcional, setor do idoso. Então, eles vinham com as verbas já mais ou menos
calculadas pelo orçamento do ano anterior, aí a gente aprovava ou não aprovava. As discussões eram
sempre quando tinham mais instituições que queriam ter participação nas verbas, então tinha que tirar um
pouquinho de um e de outro para poder atender todo mundo. Na época que eu participei não tinha
propostas de mudanças no orçamento porque cada um estava acostumado a receber uma determinada
parte e já conta com aquela quantia para desenvolver as atividades do próximo ano. Então, se você tira ela
já fica defasada, né...”(Conselheira Representante das Entidades Prestadora de Serviço, Presidente do
CMAS gestão 2004-2006 – Entrevista em 13/02/09)
“O conselho aprova o orçamento anual. Ele é apresentado pela gestora do fundo e aprovado pelo
conselho, ele pede aprovação do conselho [...]. Proposição?... todo mundo quer mais verba para a
entidade, ou o segmento que representa, como não tem... Então existem sugestões, raras, mas existem
sugestões do conselho dentro da execução da política que ele aprova”. (Conselheiro Representante das
Entidades Prestadora de Serviço, gestões 2004-2006 e 2007-2009 – Entrevista em 10/02/09)
“Pelo o que eu já vi, o orçamento se resume àquela coisa da divisão entre as entidades... [...] Não,
proposição não tem”. (Conselheira Representante da Universidade Particular, gestões 2004-2006 e 2007-
2009 – Entrevista em 18/02/09)
“não é ir lá na Câmara reivindicar aleatoriamente, a gente quer que o Conselho tenha condições de enviar
um pedido de emenda parlamentar para discutir o Orçamento. Eu lembro que convidei todos vocês para
irem para a Câmara, que eu ia apresentar lá o Orçamento para 2009. Então vocês podem chegar lá e
propor uma emenda: ‘olha eu quero um aumento aqui na receita’ [...] Quando eu estou discutindo o
Orçamento e que eu venho trazer para vocês, lá para o final de outubro, a gente deixa tudo em aberto:
‘olha a participação é importante, vocês podem vir, está aberto e o conselho é um órgão colegiado
legitimado para propor emenda parlamentar’. Vocês podem mexer no Orçamento inteiro, se o conselho
assim entender, eu já me coloquei a disposição do conselho para vir aqui e esmiuçar o orçamento. Vocês
têm os instrumentos, é só articular mais, se articular mais. A gente já poderia ter aumentado o valor”.
(Reunião do CMAS em 29/01/09)
“[...] Nós temos movimentos dentro das conferências para que não se tenha emenda parlamentar. Se existe
tal recurso, ele deve ser disponibilizado para ser aplicado às prioridades, não ser direcionado por meio de
emendas. Outro problema é que o prefeito tem poder de contingenciamento, então, se tem uma crise, ele
196
pode, por exemplo, contingenciar 20% do orçamento. Bom, e aí é geral? Sabe, acho que para poder
contingenciar o orçamento é preciso definir o que pode ser contingenciável. Não é simplesmente pegar a
rubrica e aplicar 20% sobre tudo. Porque, às vezes, já é tão minguado o orçamento, então como é que
você vai fazer isso? Tem que ter critérios, que eu entendo que o gestor precisa votar no conselho”.
(Conselheira Representante do Governo, gestão 2001-2003 e Secretária da Assistência Social entre 2001-
2004 – Entrevista em 25/02/09).
As conferências municipais de assistência social são organizadas a cada dois anos pelo
Conselho Municipal de Assistência Social e são consideradas o principal espaço de discussão
sobre as diretrizes da política de assistência social. A dinâmica das conferências é semelhante
a uma assembleia geral, em que as questões são discutidas e as propostas, apresentadas pelos
grupos de trabalho, são votadas. As deliberações são levadas pelos delegados eleitos às
conferências regionais, estaduais e nacional, para que sirvam de orientação à política de
assistência social.
Durante o período delimitado em nossa pesquisa, houve quatro conferências municipais
(2001, 2003, 2005, 2007). Dessas, a mais bem organizada e que contou com a maior
participação foi a IV Conferência Municipal, realizada em 2001, que teve como tema: “A
Política de Assistência Social: uma trajetória de avanços e recuos”. Durante o evento, foram
organizados três grupos temáticos: Gestão da Assistência Social, Controle Social e
Financiamento.
O grupo sobre Gestão da Assistência Social limitou-se a apresentar a proposta de
criação de um sistema de informações que utilize dados de outros setores da administração
municipal para identificar a população demandante da assistência social e auxiliar na
implantação dos serviços da rede de entidades e dos programas governamentais.
O grupo sobre Controle Social fez uma moção de repúdio aos recursos “carimbados”,
que não abririam espaço para deliberação no conselho54. As propostas apresentadas por esse
grupo foram: a) a publicização dos órgãos, serviços e leis da assistência social a fim de
orientar sobre os direitos e seu acesso; b) a intensificação do controle social por meio da
divulgação da gestão dos recursos; c) a criação de mecanismos de controle da qualidade de
atendimento.
O grupo sobre financiamento propôs: a) uma política intersetorial, formada por
membros de diversos conselhos para fomentar ações conjuntas entre as diversas pastas do
54
De fato, identificamos em algumas atas, demandas de deputados por aprovação de verbas destinadas à projetos
ou entidades especificas
197
CONSIDERAÇÕES FINAIS
participação popular foi uma das principais características desse governo, que aumentou
significativamente o número de conselhos nas políticas sociais e articulou-os ao governo local
por meio da Coordenadoria de Participação Popular e da Casa dos Conselhos.
Os aspectos quantitativos e discursivos sobre a participação popular, contudo, são
insuficientes para afirmar uma gestão efetivamente participativa. A experiência de Araraquara
mostra que o projeto participativo do governo Edinho (PT) obteve sucesso relativo, pois se
deparou com diversas tensões e constrangimentos de ordem estrutural e conjuntural. Esses
impasses podem ser percebidos pela dinâmica de implementação da proposta participativa na
gestão das políticas. Na primeira gestão, essa proposta teve grande impulso e adquiriu
centralidade nos processos decisórios do governo, mas, na segunda gestão, arrefeceu, e a
participação passou a assumir uma feição mais formal do que real, os espaços participativos
se esvaziaram.
As dificuldades em relação à efetivação da proposta participativa vão desde o problema
da tecnificação da gestão pública, que dificulta o diálogo e a deliberação sobre certos temas,
até questões como: o interesse eleitoral do partido com a pretensão de reeleição do governo;
os interesses corporativistas e particularistas de determinados grupos sociais que compõem os
espaços participativos, como visto no conselho de assistência social; a estrutura centralizada e
a natureza fragmentada de algumas políticas, como no caso da política de assistência social; e
a baixa mobilização social, característica da cultura política local.
Além disso, é preciso ter em vista que o processo de democratização no Brasil foi
marcado por uma disputa em torno do próprio significado da democracia, o que acarretou
uma confluência entre distintas propostas de reforma. Nesse sentido, a análise dos
mecanismos participativos não pode desprezar o contexto contraditório em que eles foram
implementados, nem pode ignorar que o ideário neoliberal imprimiu valores e marcas na
cultura política do país, expressos no agir político de determinados atores que influenciam no
campo decisório.
Ao estudar a política de assistência social, pudemos exemplificar essa disputa e a
influência das distintas agendas de reforma sobre a definição e o desenho da política
socioassistencial. Notamos que, apesar do esforço em direção à construção de uma política
pública universal e participativa, o novo formato da assistência social preserva alguns traços
da concepção conservadora e minimalista, forjados pelos modelos privativistas que
antecederam o SUAS. Essa lógica da preservação ou reedição de antigos esquemas de cunho
assistencialista e moralizante no trato à questão social compromete a proposta participativa,
retirando-lhe o caráter político. Acreditamos, pois, que a necessária construção da política de
200
públicos que possibilitam uma maior participação social nas decisões públicas, mas que
contêm limites e não estão isentos de apropriação ou instrumentalização para fins difusos.
Desse modo, a participação institucionalizada deve ser pensada dentro de suas possibilidades
e como uma das estratégias participativas, o que não exclui ou desqualifica as outras formas
de participação social, nem faz contraponto a elas.
203
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