Juvenal Savian Filho - Sobre o Trabalho Do Medievalista
Juvenal Savian Filho - Sobre o Trabalho Do Medievalista
Juvenal Savian Filho - Sobre o Trabalho Do Medievalista
Artigos / Articles
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2019.v42esp.02.p13
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que é impossível e certamente equivocado. Esse ponto, para ser bem tratado,
mereceria obviamente investigar com rigor o que se entende por história,
historiografia, autor, estrutura cultural, causalidade histórica etc. Sem, porém,
entrar nesse cipoal de problemas, basta lembrar que mesmo os críticos de uma
noção como a de Idade Média ou de pensamento medieval não deixam de
defender a possibilidade de construir uma narrativa histórica que veja certa
unidade ou certo conjunto de constantes que aparecem no pensamento
da “Idade Média”. É o caso do próprio Alain de Libera, que escreveu sua
Filosofia medieval esticando o pano de fundo dessa história de lado a lado do
Mediterrâneo e incluindo as tradições não latinas ou não cristãs, e mesmo
cristãs não latinas (DE LIBERA, 1989).
A esse respeito, não deixa de ser instigante a proposta de Giulio
d’Onofrio, que, em sua História do pensamento medieval (D’ONOFRIO,
2013), estica não apenas geograficamente, mas também temporalmente, as
pontas do pano de fundo da filosofia medieval: sem retomar a ideia de filosofia
cristã de Etienne Gilson, Giulio d’Onofrio reconhece que continua válida a
ideia gilsoniana de uma metafísica da criação como paradigma mental novo
em relação às filosofias da Antiguidade; essa metafísica, então, permitiria
caracterizar as diversas formas de pensamento da Idade Média. No dizer de
D’Onofrio, trata-se de um paradigma que opera com o reconhecimento
do manifestar-se de uma verdade divina eterna no tempo e no devir. Esse
reconhecimento obriga, no entanto, a rever as fronteiras históricas do
pensamento medieval, pois ele não começa no século V, quando Odoacro
restitui as insígnias do Império do Ocidente a Zenão, Imperador do Oriente,
mas no momento mesmo da redação do quarto Evangelho e do epistolário
de Paulo de Tarso. Poder-se-ia, aliás, perguntar se a metafísica da criação não
pode ser recuada de ainda mais um século, chegando a Fílon de Alexandria.
Giulio d’Onofrio não responde a isso, mas permite entender que, para ele, é
quando a ideia de criação começa a enformar um tipo de civilização que se
pode considerá-la como um divisor de águas. É assim que a redação do quarto
Evangelho e das cartas de Paulo revelam sua função de divisor de águas, pois,
com esses textos, entra na história ocidental outro ideal de humanidade, sem
cidadãos nem estrangeiros, sem homens livres nem escravos, mas como uma
respublica de todos os que se deixam interpelar pelo mistério divino.
A proposta de D’Onofrio não deixa de ser interessante para uma
revisão histórica da periodização do pensamento “medieval”, pois consegue
identificar uma constante teórica que une judeus, cristãos e muçulmanos
3 Nessa direção vai o inspirado e mais recente dos títulos sobre o método em história da filosofia:
Panaccio (2019). No momento em que esta conferência foi escrita, o livro de Pannacio ainda não havia
sido publicado, razão óbvia pela qual seu trabalho não é aqui detalhado.
O modelo comunicacional
O único caminho para evitar os riscos dessas três possibilidades
metodológicas e beneficiar-nos das contribuições de todas elas para o
esclarecimento filosófico das redes de conceitos, temas e problemas parece ser
o do debate ou o da partilha comunicacional.
Não há grande novidade em dizer isso, mas parece importante
relembrá-lo, sobretudo para nós que recebemos o debate entre história e
estrutura como se ambos se tratassem de polos “naturalmente” opostos. O
livro de Christophe Grellard pode ser novamente tomado como exemplo,
pois o autor não hesita em reconhecer a importância da contribuição de um
historiador-filósofo como Michel de Certeau (DE CERTEAU, 1975), a fim
de melhor compreender o tema filosófico da teorização do ato de fé. Grellard
reconhece a correção e o ganho do trabalho de De Certeau, que se interrogava
sobre o processo de secularização na Idade Moderna e sobre a substituição
progressiva de uma organização religiosa da sociedade medieval por uma ética
laica iluminista. Grellard acrescenta que tais modificações foram possibilitadas
por um conjunto de mudanças teóricas cujas raízes estavam já na Idade Média;
e, como historiador da filosofia medieval, conjuga-se ao trabalho do historiador
De Certeau, fazendo vir à tona essas raízes. É, portanto, em um diálogo que
Observações conclusivas
Levada ao extremo, a temática da metodologia em história da filosofia
medieval implicaria não apenas tratar do que se entende por filosofia e por
história, mas também da própria concepção de universidade, espaço em que
nós, medievalistas, ainda conseguimos trabalhar. Pertencer a uma universidade
é já, ao menos em princípio, entrar em uma comunidade de pesquisa cujas
fronteiras hoje são o próprio mundo, visto que os muros de nossos campi são
facilmente ultrapassáveis.
Outro ponto que eu gostaria de trazer à tona nessa minha partilha
despretensiosa se refere à importância da contribuição dos medievalistas para a
vida universitária e a cultura geral em nosso país. Concentrando-nos apenas no
trabalho com filosofia, convém lembrar que o Brasil possui uma das maiores
associações de filósofos e professores de filosofia, tendo dado um visível salto
de qualidade na pesquisa filosófica nos últimos 20 anos. A leitura “estrutural”,
como se diz, contribuiu muito para esse ganho (sem falar, obviamente, do
SAVIAN FILHO, J. Structure, theme, or context: on what should the work of the historian
of philosophy concentrate, especially the medievalist? Trans/Form/Ação, Marília, v. 42, p.
13-30, 2019. Edição Especial.
Abstract: Many works in history of philosophy, especially in the history of medieval philosophy,
are marked by a methodological opposition between three approaches: an emphasis on the internal
structure of a thought, an emphasis on investigating a theme or concept, and an emphasis on the place
of a thought in its historical-philosophical context. However, it is possible to defend the approximation
of these three approaches, and even their combination, aiming at greater intelligibility of the thoughts
under investigation. This article aims to point out the artificiality of the opposition between the three
approaches and to defend a communicational model that overcomes it.
Keywords: History of philosophy. Structure. Theme. Context. Conversational community.
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GRELLARD, C. De la certitude volontaire: débats nominalistes sur la foi à la fin du
Moyen Âge. Paris: PUPS, 2014.
Recebido: 30/12/2019
Aceito: 30/12/2019