História Das Músicas No Brasil - Centro Oeste

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 203

Ana Guiomar Rêgo Souza; Flavia Maria Cruvinel

Histórias das
Músicas no Brasil
Centro-Oeste Ana Guiomar Rêgo Souza
Flavia Maria Cruvinel
Editoras

1
Introdução

Histórias das
Músicas no Brasil
Centro-Oeste
Ana Guiomar Rêgo Souza
Flavia Maria Cruvinel
Editoras

Vitória-ES
ANPPOM
2 2023
Sumário
Projeto gráfico e diagramação
Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Música Carolina Noury
Marina Sirito Prefácio .................................................................................................... 8
Diretoria 2022-2023 Prof. Dr. Marshal Gaioso Pinto
Capa
Presidente: Luis Ricardo Silva Queiroz, UFPB Bruno Constantino
1ª Secretária: Joana Cunha de Holanda, UFRN Introdução ................................................................................................ 10
2º Secretário: Edilson Assunção Rocha, UFSJ Ana Guiomar Rêgo Souza; Flavia Maria Cruvinel
Revisão
Tesoureiro: Vanildo Mousinho Marinho, UFPB
Editora: Mónica Vermes, UFES

Conselho Fiscal
Nayana Ferraz (Revisão com S)

Crédito da imagem da capa


1 A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos ............................................
Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio Silva
16

2
Eurides de Souza Santos, UFPB Parte do livro Missas pro Defunctis e Missale Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história
Helena Lopes da Silva, UFMG Romano (1938) localizado na cidade de Silvânia,
Fabio Soren Presgrave, UFRN GO. Foto de autoria de Hélia Marina Monteiro e práticas formativas ................................................................................. 60
Adriana Lopes da Cunha Moreira, USP gentilmente cedida à editora Ana Guiomar Rêgo Aurélio Nogueira de Sousa

3
Luciana Marta Del-Bem, UFRGS Souza.
João Bellard Freire, UFRJ
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa
Organização da série
Editora de Publicações da ANPPOM perspectiva de cartografia musical ............................................................ 84
Mónica Vermes (ANPPOM/UFES)
Mónica Vermes, UFES Marcos Holler (UDESC)
Beatriz Magalhães Castro

4 Notas para uma história da construção da musicalidade


em Mato Grosso do Sul .............................................................................
Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal
148

5 Música e liturgia católica na cidade de Goiás:


um percurso histórico de sua herança cultural ........................................... 184
Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

6 Famílias musicais em Goiás no século XIX:


reprodução de poder via capital cultural herdado ...................................... 204
Flavia Maria Cruvinel

7 O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha


em Goiás com sua música-teatro ............................................................... 238
Lucas Manassés; Luiz Gonçalves
8
O lundu-canção na sociedade Goiana do final do século XIX
e início do século XX ............................................................................. 268
Magda de Miranda Clímaco

9 Bandas das cidades históricas de Goiás:


memórias, identidade e tradição ............................................................ 298
Marcos Botelho

10 A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás:


do final do século XIX ao início do século XX ......................................... 332
Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

11 Mato Grosso: um estado de muitas festas ............................................... 358


Silbene Corrêa Perassolo da Silva

Sobre os autores .................................................................................... 397

Sobre a série ......................................................................................... 404


Introdução

Prefácio
As histórias das músicas brasileiras redigidas no século XX têm em comum uma pronuncia-
da ênfase na música da Região Sudeste. Há uma ou outra referência esporádica a episódios
da música na Bahia ou em Pernambuco, mas o país que surge das páginas de Cernicchiaro,
Renato Almeida ou Vasco Mariz não costuma se afastar muito do eixo Rio-São Paulo. Difícil
saber em que medida essa situação se deve à escassez dos eventos musicais das regiões não
contempladas na nossa bibliografia ou ao estágio de desenvolvimento da musicologia que
teria por objeto de estudo esses eventos. As pesquisas de outras regiões, raras e por isso de
Prof. Dr. Marshal Gaioso Pinto grande valor, em geral não chegam a alcançar circulação nacional nas nossas histórias.
Especificamente sobre a Região Centro-Oeste, a situação não poderia ser mais desen-
Instituto Federal de Goiás corajadora. Quem quer que busque saber qual foi o impacto do movimento ultramontano e
do Concílio Vaticano II na música sacra da Cidade de Goiás ou qual o papel das mulheres nos
seus saraus e suas serestas, ou ainda qual a relação das óperas apresentadas em Pirenópolis
e das “músicas-teatro” de Estércio Marquez Cunha com o gênero ao qual se dedicaram Verdi
e Wagner, pouca ajuda teriam das nossas histórias. Mesmo questões menos específicas, como
quais são as práticas culturais em música no Distrito Federal ou como é a cena musical de
Campo Grande, ou de Cuiabá, não obteriam melhores respostas. Decorridas duas décadas do
século XXI essa situação tem se tornado um incômodo cada vez mais pronunciado.
A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), atra-
vés de seus editores Prof. Dr. Marcos Holler e Profa. Dra. Mônica Vermes, ao criar a série
Histórias das Músicas do Brasil dá um passo importante na tomada de consciência do
tamanho do Brasil musical, ampliando as fronteiras do nosso universo de referências.
A ANPPOM acerta na concepção da série e acerta também na escolha dos editores
regionais. Esse volume dedicado ao Centro-Oeste é organizado por duas figuras de
destaque no cenário musical da região. Profa. Dra. Ana Guiomar Souza é uma das
criadoras do Simpósio Internacional de Musicologia da Universidade Federal de Goiás.
Atualmente se preparando para a sua 12ª edição, o Simpósio iniciou em 2011 e desde
então tem trazido para o centro do Brasil seus mais importantes musicólogos, bem
como destacados pesquisadores da Europa, América do Sul e América do Norte, agora
se expandindo para a África. A Profa. Dra. Flávia Cruvinel é atualmente responsável pela
gestão da Orquestra Filarmônica de Goiás, que tem como uma de suas ações a inédita
gravação integral das sinfonias de Claudio Santoro. O Simpósio de Musicologia e as
temporadas da Filarmônica são testemunhos do caráter empreendedor das musicistas
goianas. Nisso as organizadoras pertencem a uma longa tradição de mulheres que cons-
truíram a música em Goiás e que incluem nomes como Belkiss Spenzière, Tânia Cruz
e Glacy Antunes de Oliveira. A prova da pertinência da indicação das musicistas como
editoras do presente volume está na lista de autores selecionados, que abrange desde
jovens pesquisadores a figuras notórias da musicologia brasileira. Os textos escritos por
esses autores certamente contribuem para que tenhamos uma história da música brasi-
leira que seja plural e que faça justiça ao caráter continental do nosso país.

Goiânia, maio de 2023

8 9
Introdução

Introdução
Ana Guiomar Rêgo Souza
Universidade Federal de Goiás

Flavia Maria Cruvinel


Universidade Federal de Goiás

como citar
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria. Introdução. In:
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.). Centro-
Oeste. Vitória: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Música, 2023. p. 10-14. (Histórias das Músicas no
Brasil).

10
Introdução Ana Guiomar Rêgo Souza; Flavia Maria Cruvinel

Em 2022, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) Já Beatriz Magalhães Castro, no capítulo 3 – “Música no Distrito Federal: interfe-
lançou a chamada para a coleção Histórias das Músicas no Brasil, composta por cinco rências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical” –, discute prá-
livros eletrônicos (e-books), cada qual dedicado às histórias das músicas de uma das cin- ticas culturais plurais em essência, dado que trazidas pelo intenso processo de migração
co macrorregiões brasileiras (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste), com vistas que constituiu o Distrito Federal e sua sede, Brasília, e que se amalgamou ao substrato
a dar visibilidade à reflexão sobre a vasta e plural produção musical do país – iniciativa cultural existente na região, frequentemente ignorado. Também aborda a coexistência
pioneira há muito aguardada por musicólogos e pesquisadores brasileiros. dos grupos de vanguarda Música Nova e Música Viva e do Grupo de Compositores da
Trata-se de publicações que contribuem para a integração de diversos atores envol- Bahia, considerando tais intercâmbios e interconexões, como tipos de processos móveis
vidos com práticas musicais e musicológicas advindas de um Brasil diverso e múltiplo, para a historiografia musical.
propiciando a compreensão e divulgação de histórias das músicas no Brasil que contem- No capítulo 4, Evandro Rodrigues Higa e L. da Giulia Leal nos oferecem o texto
plem regiões invisibilizadas, como o Centro-Oeste brasileiro; que não sejam, pois, restri- “Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul”, que
tas ao Sudeste do Brasil (cujas histórias são equivocadamente generalizadas para todo o busca refletir sobre os processos de construção da musicalidade sul-mato-grossense a
país); e que abranjam a nação, levando em conta o que nos une e o que nos diferencia partir dos discursos regionais e, especialmente, do projeto Mato Grosso do Som: Mapea-
em temos identitários. Uma iniciativa também atenta às reflexões de uma historiografia mento Musical de Mato Grosso do Sul, que gerou um conjunto de CDs constituído por
contemporânea concernente a visões que compreendam o regionalismo não como opo- música regional, música nativa, música folclórica, música urbana, música instrumental,
sição ao globalismo, mas como necessário contraponto, uma vez que regiões são lócus canto coral e lírico e música pop, rock e blues.
onde atores sociais de fato vivem e atuam. Como diz Zlatic (2020: 73),1 “Com essa inter- “Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua heran-
pretação, não pretendemos colocar a abordagem regional como inconciliável ou contrá- ça cultural”, capítulo 5, de autoria de Fernando Passos Cupertino de Barros e Consuelo
ria em relação as macroanálises, e sim salientar que cada uma tem suas especificidades”. Quireze Rosa, apresenta um percurso histórico da música litúrgica da Igreja Católica na
Neste volume, como tópicos de destaque, os autores se detiveram em propostas cidade de Goiás, antiga capital do estado homônimo e reconhecida pela Organização
por nós apresentadas na chamada de trabalhos, em tramas que transitam entre as se- das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como patrimônio
guintes temáticas: músicos e suas práticas no Centro-Oeste: artísticas e formativas; cultural da humanidade. Os autores analisam o repertório e a produção local utilizados
memória e patrimônio no Centro-Oeste: o som na festa e a festa no som; música e nas cerimônias litúrgica de séculos anteriores, suas peculiaridades, transformações e
religiosidades no Centro-Oeste; músicos do Centro-Oeste e seus espaços de performan- adaptações necessárias a partir da instauração do movimento ultramontano e do Concí-
ce; representações sociais e de poder na música do Centro-Oeste; e empoderamento lio Vaticano II. Chamam atenção para as relações afetivas construídas ao longo do tem-
feminino através da música no Centro-Oeste. po com a população, gerando um lastro cultural importante para as sucessivas gerações.
Desse modo, as diferentes relações entre sujeitos, com seus receptores e com o Em “Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital
mundo, estabelecidas nesta obra, nos remetem a onze capítulos. No primeiro, Ana Guio- cultural herdado”, capítulo 6, Flavia Maria Cruvinel movimenta-se pelo universo das
mar Rêgo Souza e Geraldo Marcio da Silva discorrem e discutem “A ‘ópera’ em Pirenópo- tradições familiares e do poder familiar, na estruturação do campo de produção musical
lis desde os oitocentos” a partir das inter-relações entre o fenômeno em tela e o socio- no estado de Goiás nos oitocentos, partindo da praxiologia de Pierre Bourdieu. As prá-
cultural, o estudo das representações sociais e identitárias e as ritualizações inerentes ticas musicais via capital cultural herdado como uma das estratégias de reprodução do
aos encontros festivos. Em outras palavras, uma instituição que aquela sociedade se poder familiar, a partir da tradição colonial luso-brasileira, foram elucidadas por meio
concedeu e ainda se concede. das famílias musicais investigadas.
O capítulo 2 traz o texto “Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história No capítulo 7 – “O guarda-noite: a vanguarda de Estércio Marquez Cunha em Goiás
e práticas formativas”, de autoria de Aurélio Nogueira de Sousa, que nos oferece um com sua música-teatro” –, Lucas Manassés e Luiz Gonçalves detêm-se na obra O guarda-
histórico das bandas de música na cidade de Goiânia e uma reflexão sobre esse espaço -noite, do compositor goiano Estércio Marquez Cunha, um dos maiores representantes
de performance enquanto centros de formação de músicos que integrarão orquestras e do modernismo musical em seu estado e pioneiro da música cênica, tanto ali como no
grupos profissionais. Brasil. O guarda-noite é, no texto, analisado em detalhes, evidenciando, assim, sua técni-
ca composicional e seu tratamento de elementos cênicos.
Magda de Miranda Clímaco, no capítulo 8, intitulado “O lundu-canção na socieda-
1
ZLATIC, Carlos Eduardo. História regional: convergências entre o local e o global. Curitiba: InterSaberes, de goiana do final do século XIX e início do século XX”, versa sobre o período de 1870 a
2020.

12 13
Introdução Ana Guiomar Rêgo Souza; Flavia Maria Cruvinel

1920, quando o investimento na atividade musical foi significativo na cidade de Goiás,


antiga Villa Boa, focando nos saraus em que eram apresentadas transcrições de árias
de óperas acompanhadas ao piano, modinhas e serestas, omitindo, no entanto, o lundu-
-canção. Nesse sentido, aborda esse gênero musical considerando sua relação com a
cultura musical dos escravizados e sua consequente e proposital invisibilidade, em face
da moralista sociedade goiana de então, não obstante esta tenha conhecido, menciona-
do e praticado o gênero, ainda que de uma maneira discriminatória, sigilosa e, às vezes,
em situações de humor.
Em “Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição”, ca-
pítulo 9, Marcos Botelho trabalha com a forte tradição das bandas de músicas em cida-
des goianas surgidas com o ciclo do ouro em Goiás, em específico as cidades de Goiás,
Pirenópolis, Jaraguá e Corumbá de Goiás. Por meio do acervo de entrevistas da Banda-
Lab-UFG, buscou-se compreender as tradições, práticas e sentimentos identitários das
respectivas bandas. Tradições que são, principalmente, apontadas como tocar nas festas
locais com músicas, geralmente compostas pelos seus mestres.
No capítulo 10 – “A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do sé-
culo XIX ao início do século XX” –, Robervaldo Linhares Rosa investiga o espaço ocupado
pela mulher goiana nos saraus e serestas do final do século XIX e início do século XX na
cidade de Goiás. A partir de levantamento bibliográfico, com análise e interpretação de
programas de saraus e de fotos, conjuntamente com o cenário sócio-histórico e cultural,
aponta que a mulher se fazia presente, tanto como participante quanto como promoto-
ra, nos saraus, mas, nas serestas, ela só aparece como homenageada pelos seresteiros
e não participa.
Silbene Corrêa Perassolo da Silva oferece, no capítulo 11 – “Mato Grosso: um es-
tado de muitas festas” –, parte da cultura e da música do estado de Mato Grosso, dos
seus primórdios ao final do século XX. Segundo a autora, práticas e experiências foram
adquiridas e adaptadas formando um conjunto de valores e comportamentos que so-
breviveram graças à relação homem-natureza na parte mais meridional do Brasil. Ela
apresenta as festas mato-grossenses como práticas significativas da cultura de origem
popular, amálgama da sociedade, o que movimenta cidades, reafirmando laços sociais
e trazendo a memória do passado cultural dos habitantes. Além disso, informa sobre os
indícios da formação de seus principais folguedos, o cururu e o siriri; do único instru-
mento regional, a viola de cocho; e das festas do Divino e de São Benedito de Cuiabá.

14 15
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos

A “ópera” em Pirenópolis
desde os oitocentos
Ana Guiomar Rêgo Souza
Universidade Federal de Goiás

Geraldo Márcio da Silva


Secretaria Estadual de Educação / Goiás

16
1 como citar
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; SILVA, Geraldo Márcio da. A
“ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos. In: SOUZA, Ana
Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.). Centro-Oeste.
Vitória: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Música, 2023. p. 16-58. (Histórias das
Músicas no Brasil).
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

1. Introdução elemento intrínseco do processo histórico e sociocultural que ali se desenrolou, refle-
Abordamos neste texto as relações entre a movimento cênico-musical na cidade de Pi- tindo e, ao mesmo tempo, refratando essa sociedade.
renópolis (denominado como ópera pelos pirenopolinos) em diálogo com aspectos do O termo “ópera”, em Pirenópolis, designava qualquer tipo de peça musical encena-
cenário social e cultural daquela comunidade. O viés interpretativo ampara-se no estu- da. Conforme Rogério Budasz (2008: 16), “comédia” e “tragédia” eram termos utilizados
do das representações identitárias e das ritualizações inerentes aos encontros festivos. de forma intercambiável para designar o teatro cênico-musical ou a partir de outros
O processo conduziu à ideia de que este movimento se constituiu em instituição que parâmetros:
aquela sociedade se concedeu.
A literatura levantada, relativa à história da música brasileira, à história do Brasil o gênero da escrita (versos metrificados da tragédia e na comédia ver-
sos livres ou prosa no entremez e/ou baile como atrações secundárias
e à história do teatro no Brasil, traz referências ao movimento cênico-musical ocorrido
– o que também poderia variar a ponto de, em alguns casos, a função
no Rio de Janeiro, em Salvador, em Campos dos Goytacazes, em Ouro Preto, em Cuia- constituir em apenas uma comédia ou um entremez, ou a inclusão de
bá, entre outras localidades surgidas no período colonial. Não há, contudo, menção à personagens cômicos (a ponto de uma tragédia ser classificada como
sua existência em Goiás. Entretanto, depoimentos de viajantes que estiveram em ter- comédia (BUDASZ, 2008: 16).
ras goianas no século XIX, citações no periódico A Matutina Meiapontense (1830-1834),
informações de cronistas, memorialistas e historiadores da região, referências em do- Ainda acompanhando Budasz (2008: 19), ópera é “um tipo de representação a meio
cumentos oficiais da província e de irmandades registram a ocorrência de significativa caminho entre o teatro falado e cantado, que formava a base do repertório dos teatros
atividade cênico-musical em várias localidades goianas, nos séculos XVIII, XIX e início no Rio de Janeiro, Vila Rica, São Paulo, Belém, dentre outras”. Em Pirenópolis, não foi
do século XX. diferente, mas o interessante é a permanência desse termo no linguajar pirenopolino
Palacín, Garcia e Amado (1994: 202) apresentam os seguintes números: “durante nos séculos XIX e XX, e mesmo em algumas encenações no século XXI. Nas palavras do
viagem empreendida em 1773, o governador D. José de Almeida assistiu a duas óperas viajante luso-brasileiro Oscar Leal, que esteve em Pirenópolis em 1889:
em Pilar, duas em Traíras e quatro em São Félix, perfazendo o total de oito em pouco
mais de um mês!”. Nesse sentido, é igualmente relevante a construção de teatros. De Esta cidade (Perynópolis), ardia n’esta occasião em festas, e nas ruas
notava-se um movimento e enthusiamos próprios das cidades centra-
acordo com o historiador goiano Paulo Bertran (2004), assistiu-se, em Vila Boa de Goiás
es. Por volta da tarde perguntou-me uma mulher se eu não ia à ópera.
(atual cidade de Goiás e antiga capital do estado homônimo), à construção de uma Casa Ópera! Exclamei admirado. Sim, tornou ella, a ópera lá na rua Direita. E
de Ópera, a qual aparece em uma planta da cidade datada de 1782. Não há registros eu refletia: Pois dar-se-há o caso de que haja aqui no centro das terras
posteriores de sua existência ou de atividades ali desenvolvidas. Dos setecentos, tam- goyanas admiradores e amadores de Verdi, de Mozart, de Wagner? Isto
bém remontam as fundações do Teatro de São Joaquim, construído no antigo Arraial de era incrível. E fitando a rapariga: Explique-me uma cousa. A ópera de
que você me falla o que vem a ser? Ora esta! Pois o senhor vem lá do
Traíras. Em 1850, foi fundado o Teatro de São Joaquim de Vila Boa de Goiás e, em 1860, Rio de Janeiro e não sabe o que é ópera? Ora ... sim, meu caro senhor,
o Teatro de São Manoel em Pirenópolis (MENDONÇA, 1981), este de curta existência. a ópera é uma representação feita por vários rapazes, alguns vestidos
Também em Pirenópolis foi construído, em 1899, o Teatro Sebastião Pompêo de Pina. de damas. Vá ver, que é cousa boa, mas bem enjoada. A ópera de hoje é
Em Pirenópolis, no transcorrer do século XIX, o cultivo de atividades cênico-musi- ‘Amor e Infâmia’. E o theatro é grande? (Pergunta Leal). De certo, pois é
no meio da rua (LEAL, 1982: 57).
cais mantem-se ativa durante os séculos XX e o XXI.
A encenação de uma ópera era um evento ligado não somente à fruição, como
também representava uma ocasião relevante para o exercício das relações sociais. Atribui-se a José Joaquim Pereira da Veiga (1772-1840) a introdução, em Pirenó-
Constituía-se, por exemplo, em “palco” para a celebração de alianças e, possivelmente, polis, do repertório de Metastasio e de António José da Silva. Veiga nasceu em Pirenó-
em “arena” onde os conflitos se desenvolviam. Freire (1994), em sua pesquisa sobre a polis em 1772. Ordenou-se padre em 1799, no Rio de Janeiro, e retornou a Pirenópolis
ópera no Rio de Janeiro, afirma que a história dessa cidade poderia ser contada através em 1800. Teria trazido consigo algumas óperas, as quais, por 40 anos, se encarregou de
da história das óperas ali realizadas, tal o grau de articulação existente entre esse fenô- ensaiar e encenar. Padre Veiga também organizou um quarteto de cordas para acom-
meno e as estruturas sociais cariocas do século XIX. Levando-se em conta os diferentes panhá-las: dois violinos, uma viola e um violoncelo. O primeiro violino era executado
contextos, é possível inferir situação semelhante a respeito da cidade de Pirenópolis. por Paulo Antônio Baptista, o segundo por Emídio Baptista da Ressurreição, a viola por
Nesse sentido, consideramos a atividade operística desenvolvida em Pirenópolis como José Inácio do Nascimento, e o violoncelo por padre João, cujo nome de família é des-

18 19
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

conhecido (MENDONÇA, 1981: 102). Entre seus discípulos, apontamos a figura de Paulo No ano de 1751, em Santa Luzia1, foram suntuosas as festas celebradas
pela elevação de D. José I ao trono de Portugal, as quais começaram a
Antônio Baptista. A esse homem, o vigário da vara entregou a direção do quarteto de 15 de dezembro. Com o produto da subscrição que importou em 3125
cordas. Mendonça encontrou, no acervo da família Pompêo de Pina, inúmeras cópias de oitavos de ouro, fez-se tudo quanto humanamente era possível fazer-se
músicas assinadas por “Baptista”. Supõe-se que esse copista seja o referido discípulo de em um centro como este. Um esplêndido jantar de mais de quatrocen-
padre Veiga. Entre essas cópias, Mendonça registrou várias sonatas e minuetos, datados tos talheres, servido em praça pública, na tarde do dia 15 de dezembro,
pôs termo a estas festas que começaram por missa solene, Te Deum,
de 1809, “trios de Bach, copiados em 1815, quartetos de Ignace Pleyel, com cópias data-
ópera, cavalhadas, corro, e castelo de fogos de artifício. Dirigiam as
das de 1837, trio de Zanetti, de 1835, e diversas outras obras” (MENDONÇA, 1981: 102). festas os portugueses que eram monarquistas de coração, e olhavam o
Na Figura 1 apresentamos a imagem de uma capa localizada por Mendonça contendo monarca como um vice Deus na Terra (ÁLVARES, 1978: 34, grifo nosso).
partes do primeiro violino da ópera Anfitrião ou Jupiter e Alcmena, com a assinatura do
padre Francisco Manuel da Luz. As práticas reladas por Álvares integram a retórica das festas-espetáculo barrocas.
Trata-se de dramatização ritual do poder, intrínseca ao exercício da realeza: “o poder de
fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo,
a ação sobre o mundo; poder quase mágico”, como diz Pierre Bourdieu (2003: 14), “que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), gra-
ças ao efeito específico de mobilização, se exercendo se for ‘reconhecido’, quer dizer,
ignorado como arbitrário”.
Qualquer acontecimento era suscetível de se tornar objeto de celebração pública
e privada. Não passava mês sem que houvesse alguma festa. Conforme Iara Lis Souza
(1999), o calendário de festividades, nos domínios portugueses, dividia-se em dias de
“grande gala” e dias de “simples gala”. No primeiro caso, situam-se os aniversários do
rei e da rainha, a procissão de Corpus Christi realizada na capela real, o Dia de Reis, a
primeira oitava da Páscoa e o nome do rei; já os dias de gala incluíam outros aniversá-
rios reais, a procissão de Corpus Christi pela cidade, o dia dedicado ao coração de Jesus
e o Natal. A essas datas, outras eram acrescentadas, em função de eventuais situações
festivas – casamentos, exéquias, aclamações, entradas reais ou de autoridades civis e
eclesiásticas etc. –, bem como de particularidades locais, como as festas de padroeiro e
santos de devoção; algumas, por outro lado, eram retiradas do calendário em virtude de
questões políticas, o que significa dizer que fatos e pessoas deveriam, ocasionalmente,
ser esquecidos (SOUZA, 2007).
O controle sobre mentes e corações, implícito na retórica das festas, foi sobrema-
Fig. 1: Capa contendo partes do primeiro violino da ópera Anfitrião ou Jupiter e Alcmena, com assinatura neira importante nas capitanias entranhadas no interior do Brasil e distanciadas dos
do padre Francisco Manuel da Luz. Fonte: Mendonça (1981: 100).
centros de poder, mais suscetíveis a desmandos de toda ordem – condição largamente
apontada por historiadores goianos no contexto colonial de Goiás. Entrando em deca-
2. Óperas em Pirenópolis: uma “festa dentro da festa” dência os veios auríferos de Minas Gerais e Mato Grosso, a nova corrida do ouro superou,
Joseph de Mello Álvares, relatando a coroação de dom José I, informa sobre as práticas em muito, as precedentes, trazendo para Goiás uma população heterogênea formada
festivas portuguesas do Antigo Regime na comemoração de datas significativas. Até por aventureiros. Nesse cenário, as festas fizeram-se necessárias para “disciplinar” a po-
onde foi possível investigar, esse relato contém a mais remota referência a respeito da pulação; para revigorar, via recursos lúdicos e de sedução, os laços de adesão ao pacto
encenação de óperas em terras goianas: colonial (SOUZA, 2007).

1
Atual cidade de Luziânia, localizada no estado de Goiás, Brasil.

20 21
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

Os mesmos elementos retóricos se fazem presentes no relato de Joseph de Mello tem notícias da celebração de Pentecostes (nome eclesiástico da Festa do Divino) em
Álvares sobre as comemorações da Semana Santa ocorridas em 1773, na mesma Santa localidades goianas no século XVIII, a exemplo da citação acima.
Luzia, destacando-se, para efeitos deste texto, a encenação de duas comédias e da tra- Em contrapartida, em 1819, o viajante francês Auguste Saint-Hilaire, discorrendo
gédia Inês de Castro. sobre estada em Bonfim2, informa sobre a presença de meiapontenses3 atuando em
récita por ocasião da Festa de Nossa Senhora da Abadia:
O auge das minas de Santa Luzia foi simbolicamente comemorado
na semana santa de 1773, com uma festa de fazer parelha ao famoso seja como for, um grande número de pessoas aflui para o arraial, vindo
Triunfo Eucarístico de Vila Rica. Foram 34 sacerdotes residentes no ar- de Santa Luzia, de Meiaponte e de lugares mais distantes [...]. Com
raial, celebrando conjuntamente a missa solene e o Te Deum Laudamus, efeito, as comemorações não se limitam apenas a uma missa cantada
assistidos por algo como 15 mil pessoas e a plena assistência financei- e a um sermão. Soltam-se também bombas e foguetes, encenam ópe-
ra e logística da irmandade do Santíssimo Sacramento. Em quatro dias ras e realizam um simulacro de torneio, divertimentos profanos que se
de festas houve corridas e cavalhadas, queima de castelos de fogos ar- misturam às solenidades religiosas, como ocorre na festa de Pentecoste
tificiais, corras e dançarás, para culminar, a encenação de três peças de (SAINT-HILAIRE, 1944: 105, grifo nosso).
teatro: duas comédias “de gosto” e nada menos do que o drama de Inês
de Castro, o mais clássico teatro português no Século XVIII! (ÁLVARES,
1978 apud BERTRAN, 1985: 125, grifos nossos). Foram encenadas, pois, no contexto de festividades, e ainda o são, em certa medi-
da. Segundo José Sisenando Jayme (1983: 281), “se o imperador era mesmo do barulho”,
Inês de Castro foi também encenada na celebração de Pentecostes, também em ou seja, rico e poderoso, “providenciava para que sua festa fosse abrilhantada por ses-
Santa Luzia, em 1773: sões teatrais, no Domingo do Divino, na segunda e terça-feira seguintes”. Nesse cenário,
31 obras foram levadas à cena em Pirenópolis, conforme o arrolamento de Jarbas Jayme
o Pentecostes que é, depois da Semana Santa, a festa mais solene da (1971: 610-617), de 1819 a 1944. Citamos as peças presentes nessa listagem na Tab.
Igreja caminhou sempre a par, para assim dizer, com a festa da Sema-
1, organizando-as por ano de encenação e obra encenada, acrescentando uma classi-
na Santa, foi também, pela primeira vez, celebrada com toda pompa e
magnificência, tanto na parte religiosa como na profana. Além dos cas- ficação preliminar por gênero e autoria (com exceção das obras de Pietro Metastasio
telos de fogos de artifício, cavalhadas, corros e dançarás, foram levadas e António José da Silva, as demais não indicavam a autoria). Também acrescentamos
ao comércio duas comédias de gosto e a tragédia Ignês de Castro – a duas encenações da ópera Artaxerxes, uma realizada em 1846 e outra em 1850, que não
produção admirável, a verdadeira glória do Horácio português, Antônio foram listadas por Jarbas Jayme, mas que constam no jornal O Mensageiro (AS PASTORI-
Ferreira (ÁLVARES, 1978: 112, grifos nossos).
NHAS, 1976: 2).
É importante salientar que, no contexto da província de Goiás, Pirenópolis foi um
Lorenzo Mammì (2001) afirma que as encenações por ele levantadas no Brasil, du- polo de cultura com muita música, além de teatro e tradição. As pessoas que vinham
rante o século XVIII, se encontravam inseridas em festas oficiais. No entanto, os relatos de outros lugares ficavam surpresas quando chegavam à cidade e se deparavam com
acima revelam que não foi bem assim. Essas festividades seguiam lado a lado com as tamanha diversidade cultural. Maria Helena Borges (1998: 36-37) assim relata:
religiosas, superpondo-se no calendário, de tal maneira imbricando significados que é
difícil precisar as fronteiras entre um e outro domínio. Fato que engendrou encontros O diário de Inhazinha, Ana das Dores, mais uma vez oferece pistas sobre
a dinâmica cultural do local, em vários relatos ela afirmou gostar de ir
e cruzamentos culturais, ao mesmo tempo que os eventos festivos, gradativamente,
a Meia-Ponte para assistir a peças de teatro. Em uma das vezes em que
ganhavam vida própria (SOUZA, 2007). É a “festa dentro da festa”, diz Mary Del Priore visitou a cidade, menos de um mês depois de vir de lá, disse ter voltado
(1994: 53), como é o caso das Cavalhadas, do Congo e, naqueles tempos, das Óperas. para assistir a opera de dramas como Ignez de Castro. Outros aspectos
É o que se observa na Festa do Divino Espírito Santo realizada em Pirenópolis. O que nos revelam essa dinâmica em torno do teatro são as várias apre-
culto ao Divino Espírito Santo teria sido introduzido em Pirenópolis na segunda metade sentações durante os festejos do Divino. Entre tantas peças e autos
podemos citar o drama Demofonte, representado em maio de 1837, em
do século XVIII, segundo o genealogista e cronista pirenopolino Jarbas Jayme (1971), junho de 1887 e em 24 de maio de 1896; Aspásia na Síria em 3 de junho
com base em informações a ele prestadas por pessoas que viveram na primeira metade
do século XIX. Jayme diz que não conseguiu obter registros escritos dessa festa anterio-
res a 1819, fato que de maneira alguma invalida os depoimentos orais, até porque se
2
Arraial de Nosso Senhor do Bonfim, fundado em 1774, atual cidade de Silvânia, Goiás, Brasil.
3
Naturais de Meia Ponte, atual cidade de Pirenópolis.

22 23
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

de 1837; O Fantasma Branco em 9 de junho de 1867 e 24 de maio de OBRAS


1885; e ainda Estatua de Carne, O Poder de Outro e Graça de Deus, em 24 ANO
[aqui referidas
(da encenação
de maio de 1874, tudo isso relatado pelo jornal Mensageiro de junho segundo denominação GÊNERO AUTORIA
na Festa do
de 1976, p.2 quase um século depois. O Mensageiro trouxe informações Divino)
constante em Jarbas
que demonstram e importância dessas peças de teatro para a seleta Jayme (1971)]
memória histórica local, a partir de uma peça especifica, julgada a mais Texto: José da Silva Mendes Leal
O Homem da Máscara Comédia em cinco
famosa, que já era representada nos tempos antigos, por ocasião dos 1879 Música: autoria não localizada até
Negra5 atos
festejos do Divino, e o seria aquele ano. o momento
Texto: Ernesto Biester
Melodrama em
1883 As Duas órfãs6 Música: autoria não localizada até
cinco atos
o momento
OBRAS
ANO Comédia
[aqui referidas Texto: Joaquim Manuel de Macedo
(da encenação 1885 O Fantasma Branco7 musicada em cinco
segundo denominação GÊNERO AUTORIA Música: Dionísio Vega
na Festa do atos
constante em Jarbas
Divino) Texto: José Candido dos Reis e
Jayme (1971)]
Melodrama em um Carlos Clementino Carvalháes
Libreto: Pietro Metastasio 1889 Amor e Infâmia8
Ópera séria em três prólogo e três atos Música: autoria não localizada até
1837 Demofonte Música: autoria não localizada até o momento
atos
o momento
Libreto: Pietro Metastasio Libreto e música atribuídos ao
Ópera em cinco Inconfidência Mineira ou
1838 Aspásia na Síria Música: autoria não localizada até 1891 Ópera compositor pirenopolino Tonico
atos Tiradentes
o momento do Padre
Libreto: António José da Silva Libreto: Pietro Metastasio
Guerras do Alecrim e Ópera joco-séria em Ópera séria em três
1842 Música: atribuída, em Pirenópolis, 1891 Artaxerxes Música: autoria não localizada até
Manjerona dois atos atos
a António Teixeira o momento
Libreto: Pietro Metastasio Libreto: A. P.
Ópera séria em três Ópera cômica em
1846 Artaxerxes Música: autoria não localizada até 1891 Dom César de Bazan Dennery e Dumanoir
atos três atos
o momento Música: Jules Massenet
Libreto: Pietro Metastasio
Ópera séria Autorias não localizadas o
1850 Artaxerxes Música: autoria não localizada até [s. d.] Estátua de carne Melodrama
em três atos momento
o momento
Comédia musicada Texto: Joaquim Manoel de Macedo
1867 O Fantasma Branco Libreto: Pietro Metastasio
em cinco atos Música: Dionísio Vega Ópera séria em três
1896 Demofonte Música: autoria não localizada até
Autorias não localizadas até o atos
1874 Poder do Ouro Melodrama o momento
momento
Texto: Adolphe d’ Enery e Gustave
Lemoine
1874 Graça de Deus Melodrama
Música: autoria não localizada até 5
Comédia em cinco atos escrita por José da Silva Mendes Leal (1818-1886). Teria subido ao palco do Tea-
o momento tro da Rua dos Condes, em 1840. Disponível em: www3.fl.ul.pt/biblioteca/biblioteca_digital/publicacoes/
Autorias não localizadas até o th/html/titulos.html.
1875 Anjo ou Demônio Melodrama
momento 6
Ernesto Biester (1829-1880) foi escritor, crítico literário, dramaturgo, empresário do Teatro Nacional D.
Libreto: Pietro Metastasio Maria II e jornalista português.
Ópera séria em três
1878 Demofonte Música: autoria não localizada até 7
Pode se tratar do melodrama La statua di carne, apresentado, em 1872, no Teatro de D. Maria II, constante
atos
o momento no “Índice de espectáculos recenseados por Júlio César Machado em A Revolução de Setembro e no Diário
Texto: Manoel Joaquim Pinheiro de Notícias”. Disponível em: www.fl.ul.pt/cet/1562-cesar-machado. Acesso em: 31 jul. 2013.
A Morgadinha de Melodrama em Chagas 8
José Candido dos Reis Montenegro e Carlos Clementino Carvalháes eram oficiais da Artilharia, conforme
1879
Valflor4 cinco atos Música: autoria não localizada até relata Sacramento Blake em 1893. Essa peça foi representada na Escola Militar a 13 de janeiro de 1872,
o momento no Rio de Janeiro, pela sociedade dramática particular União Escolástica (BLAKE, 1970).
9
Francisco Corrêa Vasques nasceu na cidade do Rio de Janeiro a 29 de abril de 1839 e aí faleceu a 10 de
dezembro de 1892. Entre sua vasta produção, encontra-se a peça Lágrimas de Maria. Conforme Sacramen-
4
A Morgadinha de Val-Flor de Pinheiro Chagas (1842-1895), foi representada, pela primeira vez, em Portu- to Blake, Lágrimas de Maria foi à cena, pela primeira vez, em dezembro de 1875, com muito sucesso, no Rio
gal, em 1868, no Teatro D. Maria II. No Brasil, estreou em 1871, no Rio de Janeiro, com a Companhia Dramá- de Janeiro. (BLAKE, 1970). Vasques foi cantor, compositor, violonista, dramaturgo e folhetista do periódico
tica Nacional, sob a direção de Joaquim Augusto Filho. Foi uma das peças mais encenadas em seu tempo. Gazeta da Tarde, do Rio de Janeiro. A partir de 1920, durante 15 anos, atuou em teatros musicados e nos
filmes Alô, alô, Brasil e Alô, alô, Carnaval.

24 25
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

OBRAS Na “Introdução” de seu livro Comédias, Sebastião Pompêo de Pina Júnior – Tãozico
ANO
[aqui referidas
(da encenação
segundo denominação GÊNERO AUTORIA
Pompêo (1896-1970) (Fig. 2) – elenca obras que foram levadas à cena em Pirenópolis
na Festa do de 1891 a 1924 (1979: 21-22) – (Tab.2). Várias constam da listagem de festividades da
constante em Jarbas
Divino)
Jayme (1971)] Festa do Divino organizada por Jarbas Jayme. Pina Júnior, no entanto, acrescenta, a esse
Texto: Francisco Corrêa Vasques rol, mais 27 encenações. No seu texto, não há referência ao ano das encenações. Toda-
Melodrama em três
1899 Lágrimas de Maria9 Música: autoria não localizada até via, aponta que as obras (por nós organizadas na Tab. 2) foram encenadas por seu pai,
atos
o momento
Sebastião Pompêo de Pina (1896-1927), de 1899 até 1924, quase sempre por ocasião
Libreto: António José da Silva
Guerras do alecrim e Ópera joco-séria em da Festa do Divino, no teatro por este construído em 1899. Sua última encenação foi 29
1899 Música: atribuída, em Pirenópolis,
manjerona dois atos ou honra e glória, realizada em 1924.
a António Teixeira
Libreto: Pietro Metastasio
Ópera séria em três
1916 Artaxerxes Música: autoria não localizada até
atos
o momento
Texto: Francisco Corrêa Vasques10
Melodrama em três
1917 Lágrimas de Maria Música: autoria não localizada até
atos
o momento
Texto: Adolphe d’ Enery e Gustave
Lemoine
1917 Graça de Deus Melodrama
Música: autoria não localizada até
o momento
Texto: B. Daubigny e A. Maillard
Melodrama em três Tradução: Luís José Baiardo
1919 Os Dois Sargentos
atos Música: autoria não localizada até
o momento
Texto: Joaquim Manuel de Macedo
Comédia musicada
1921 O Fantasma Branco Música: Dionísio Vega
em três atos

Tab. 1: Fonte: a autora e o autor com base em Jayme (1981:610-617) e no jornal O Mensageiro (1976: 2).

Fig. 2: Sebastião Pompêo de Pina Júnior (Tãozico Pompêo) – dentista, advogado, promotor de justiça,
músico, maestro, ator, dramaturgo, poeta, encarnador de imagens e compositor na cidade de Pirenópolis.
Fonte: Curado (2016: n.p.).

9
Francisco Corrêa Vasques nasceu na cidade do Rio de Janeiro a 29 de abril de 1839 e aí faleceu a 10 de A atuação de Pina Júnior no campo do teatro musical iniciou-se ainda criança,
dezembro de 1892. Entre sua vasta produção, encontra-se a peça Lágrimas de Maria. Conforme Sacramen-
to Blake, Lágrimas de Maria foi à cena, pela primeira vez, em dezembro de 1875, com muito sucesso, no Rio quando, aos dez anos de idade, foi protagonista da obra As duas torres – peça de oito
de Janeiro. (BLAKE, 1970). Vasques foi cantor, compositor, violonista, dramaturgo e folhetista do periódico atos, à época apresentada em barracões. Como músico, tocou pistom por muitos anos,
Gazeta da Tarde, do Rio de Janeiro. A partir de 1920, durante 15 anos, atuou em teatros musicados e nos na Banda Phoenix, mas seu instrumento principal era o violino, ao qual se dedicava de
filmes Alô, alô, Brasil e Alô, alô, Carnaval.
forma quase obsessiva, à procura da perfeição. Homem culto, viajava ao Rio de Janeiro
10
Trata-se, possivelmente, do drama em cinco atos nomeado como Alcacer-Kibir, em verso de João da Câ-
mara. Cópia localizada na Revista Theatral, Lisboa, 1895 (“Bibliotheca dramatica da Revista Theatral”, 5). para assistir a peças de teatro, filmes e recitais e se aperfeiçoar no violino com o mestre
Representado pela primeira vez no Teatro de D. Maria II, em 14 de março de 1891. Disponível em: Peri Machado, titular do Conservatório Nacional de Música. Fez parte da Orquestra Ideal
ww3. fl.ul.pt/biblioteca/biblioteca_digital/teatro-monografias.htm.

26 27
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

na cidade de Goiás e, em Pirenópolis, iniciou, em fins de 1923, um movimento musical OBRA


ANO (referidas conforme
para criar um conjunto instrumental similar ao vilaboense, com Otacílio Ferreira (cla- (de 1899 a nomeadas por GÊNERO AUTORIA
rineta), José da Abadia (violão), Joaquim Propício de Pina (Mestre Propício) (flauta), Luiz 1924) Sebastião Pompêo de
de Aquino Alves (violão), Osmar Tocantins (clarineta) e Hilário Alves de Amorim (violão). Pina Júnior)
Esse conjunto se apresentava em saraus e acompanhava árias teatrais. Tãozico Pompêo Libreto: Pietro Metastasio
Ópera em cinco
[s. d.] Aspásia na Síria Música: autoria não localizada até o
escreveu diversas peças teatrais, que foram publicadas com o título de Comédias, em atos
momento
1979, pela Editora Oriente. Encenou, em Pirenópolis, mais de 40 peças teatrais, sendo o Libreto: Pietro Metastasio
Ópera séria em
[s. d.] Demofonte Música: autoria não localizada até o
autor e o ator de muitas delas; destacou-se, também, por zelar pelo acervo musical de três atos
momento
Pirenópolis (CURADO, 2016: n.p.). Libreto: Pietro Metastasio
Frente à excelente receptividade por parte dos pirenopolinos, esse conjunto musical [s. d.] Adriano Ópera séria Música: autoria não localizada até o
momento
foi ampliado como Orquestra Pireneus (Fig. 3). Mestre Propício convidou, para integrar Libreto: A. P.
Ópera cômica em
esse conjunto, músicos que tocavam na Banda Phoenix: Joaquim Thomaz de Aquino (flau- [s. d.] Dom César de Bazan Dennery e Dumanoir
três atos
Música: Jules Massenet
ta), Benedito Marcos da Conceição (baixo em Si), Sebastião Brandão (trombone). “Poste- Texto: Antônio Ferreira
riormente entraram [...] os irmão Euler e Hélio Amorim (violino) e Braz Wilson Pompeu de [s. d.] Inês de Castro11 Tragédia lírica Música: autoria não localizada até o
Pina (flauta). José da Abadia deixou o violão e passou a tocar o violoncelo de ouvido, pois momento
Texto: José da Silva Mendes Leal
não sabia música” (CURADO, 2015: n.p.). A atividade principal da Orquestra Pireneus era O Homem da Máscara Comédia em cinco
[s. d.] Música: autoria não localizada até o
Negra12 atos
tocar no Cinema do Ilídio e em peças teatrais e saraus (CURADO, 2016: n.p.). momento
Texto: João da Câmara
Cavaleiro de Melodrama em
[s. d.] Música: autoria não localizada até o
Acalcerquibir13 cinco atos
momento
Texto: Luiz Antônio Burgain
[s. d.] Pedro Sem14 Melodrama Música: autoria não localizada até o
momento

11
Os primeiros autores que se debruçaram sobre a história de dom Pedro I de Portugal e dona Inês de
Castro foram Garcia Rezende, em suas Trovas à morte de Inês de Castro e Luís de Camões, no “Canto III”
d’Os Lusíadas. Também no século XVI, o grande trágico português Antônio Ferreira tratou desse tema na
sua A Castro: tragédia mui sentida de dona Inês de Castro. Desde então (em Portugal, sobretudo), a trágica
história “daquela que depois de morta foi rainha” se fez objeto da pena de poetas, dramaturgos e com-
positores. Conforme o maestro português Manuel Ivo Cru (INÊS, [20--]: n.p.), teria sido Pietro Metastasio
quem primeiro adaptou para libreto a história de Inês de Castro, situando a trama na antiguidade clás-
sica, alterando os nomes dos personagens e denominando-a Demofonte, com música de Leonardo Leo,
António Caldara, David Perez, Marcos Portugal, entre outros. Mas foi em 1799, no Teatro Lírico de Lisboa,
que a ópera intitulada Inês de Castro, com o enredo original e personagens com seus devidos nomes, foi
encenada pela primeira vez. O compositor é Giovani Paisiello, que estava, na ocasião, a serviço da corte
portuguesa, com libreto de Angelo Talassi. Como Inês de Castro é citada pela primeira vez em Goiás em
1773 não podemos confirmar a autoria da música. Já em Pirenópolis, as notícias são do século XIX, o que
abre a autoria da música e do libreto para vários autores.
12
Comédia em cinco atos escrita por José da Silva Mendes Leal (1818-1886). Teria subido várias noites ao
palco do Teatro da Rua dos Condes, em 1840. Disponível em: www3.fl.ul.pt/biblioteca/
biblioteca_digital/publicacoes/th/html/titulos.html. Acesso em: 20 jun. 2021.
13
Trata-se, possivelmente, do drama em cinco atos nomeado como Alcacer-Kibir, em verso de João da
Câmara. Cópia localizada na Revista Theatral, Lisboa, 1895 (“Bibliotheca dramatica da Revista Theatral”,
5). Representado pela primeira vez no Teatro de D. Maria II, em 14 de março de 1891. Disponível em:
ww3. fl.ul.pt/biblioteca/biblioteca_digital/teatro-monografias.htm.
Fig. 3: Orquestra Pireneus. Da esquerda para a direita, em pé, Euler Amorim, Benedito Marcos da Con-
ceição, Hilário Alves de Amorim, Sebastião Brandão, Benedito de Aquino Alves e Luiz de Aquino Alves.
14
Trata-se, possivelmente, da peça Pedro-Sem que já teve e agora não tem: drama fundado em factos, de
Sentados: Otacílio Ferreira, Braz Wilson Pompeo de Pina, Joaquim Tomás de Aquino, Joaquim Propício de autoria de Luís Antônio Burgain, editada no Rio de Janeiro, em 1845, por Eduardo e Henrique Laemmert.
Pina, Osmar Tocantins, Sebastião Pompêo de Pina Júnior, Hélio Amorim e José d’Abadia. Luís Antônio Burgain nasceu no Havre (França), em 1812. Veio jovem para o Rio de Janeiro, onde se de-
Fonte: Curado (2016: n.p.). dicou ao magistério; foi poeta e autor de livros didáticos. Consagrou-se como dramaturgo. Morreu nessa
cidade em 1877.

28 29
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

OBRA OBRA
ANO (referidas conforme ANO (referidas conforme
(de 1899 a nomeadas por GÊNERO AUTORIA (de 1899 a nomeadas por GÊNERO AUTORIA
1924) Sebastião Pompêo de 1924) Sebastião Pompêo de
Pina Júnior) Pina Júnior)
Texto: Luís Antônio Burgain Texto: autoria não localizada até o
[s. d.] Luiz de Camões Melodrama Música: autoria não localizada até o Manoel Mendes Miscelânea lírica
[s. d.] momento
momento Inxudia19 em um ato
Música: António Luís Miró
Melodrama Texto: Castro Alves Texto: Martins Pena
[s. d.] Gonzaga15 histórico em três Música: autoria não localizada até o Comédia em um
[s. d.] Juiz de paz na roça Música: autoria não localizada até o
atos momento ato
momento
Texto: Forêt de Senart Texto: Martins Pena
Nódoas de sangue Melodrama em Tradução: Costa Braga e L. A. de Mesquita Judas no Sábado de Comédia em um
[s. d.] [s. d.] Música: autoria não localizada até o
três atos Música: autoria não localizada até o Aleluia ato
momento
momento Texto: Martins Pena
Texto: Francisco Corrêa Vasques Comédia em três
A Honra de um Melodrama em [s. d.] O noviço Música: autoria não localizada até o
[s. d.] Música: autoria não localizada até o atos
Taberneiro16 três atos momento
momento Texto: Martins Pena
Texto: Baptista Machado ou Benjamim de Os irmãos das almas Comédia em um
[s. d.] Música: autoria não localizada até o
Melodrama em Oliveira ato
[s. d.] Gaspar, o serralheiro17 momento
quatro atos Música: autoria não localizada até o O morto embargado20
[s. d.] Farsa em um ato Autorias não localizadas até o momento
momento
Gênero não Lucas que chora e Comédia em um
[s. d.] Autorias não localizadas até o momento
[s. d.] Obras do Porto localizado até o Autorias não localizadas até o momento Lucas que ri ato
momento Uma criada Intervalo cômico Texto: Luís de Araújo
Texto: Joaquim Manoel de Macedo [s. d.] impagável21 -original ornado Música: autoria não localizada até o
A torre em concurso Comédia burlesca
[s. d.] Música: autoria não localizada até o de música momento
em três atos
momento
Texto: Artur Azevedo
Comédia em três
[s. d.] O Dote18 Música: autoria não localizada até o
atos
momento
Comédia em um Texto: Eduardo Garrido
[s. d.] Trinta botões ato “ornada de Música: autoria não localizada até o
música” momento

15
Gonzaga ou a revolução de Minas é um melodrama escrito por Castro Alves, em 1867, em homenagem à
atriz portuguesa Eugênia Câmara. Sacramento Blake (1970), no entanto, em seu Diccionario bibliographico
brazileiro, de 1893, credita esse drama a Constantino do Amaral Tavares, nascido na cidade de Salvador a
17 de junho de 1828, tendo aí falecido a 28 de abril de 1889. 19
António Luís Miró (1815-1853) destacou-se em Portugal como compositor teatral. Suas peças foram
A honra de um taberneiro, de Francisco Corrêa Vasques (1839-1892), foi representada, pela primeira vez,
16 representadas no Teatro das Laranjeiras, no Teatro de S. Carlos e no Teatro de D. Maria de Lisboa (MIRÓ,
em novembro de 1873. [20--], n.p.), entre elas Manuel Mendes Inxudia, composta em 1847. Vem para o Brasil em 1849, onde aca-
bou por falecer em 1853.
17
Walter de Sousa Junior (2012), em sua pesquisa sobre circo-teatro, atribui a autoria de Gaspar, o serra-
lheiro ao autor romântico português de melodramas Baptista Machado. Trata-se, segundo Sousa Junior, de
20
O morto embargado ou Cholera-morbus estreou no Theatro S. Pedro de Alcântara com a Companhia
um drama de temática operária. Já Daniel Marques Silva (2004) atribui a autoria dessa peça a Benjamim Dramática (THEATRO, 1845: 3). O registro de exame censório da peça contém a designação de Ernesto
de Oliveira. Silva (2004), em sua pesquisa sobre os “palhaços negros”, encontrou dez textos teatrais, entre Frederico Pires de Figueiredo Camargo, passada por José Rufino Rodrigues de Vasconcelos, com: reque-
melodramas e burletas, atribuídos a Benjamim de Oliveira. Além de Gaspar, o serralheiro, cita O negro do rimento de exame remetido por Joaquim Bernardo Leal; parecer e despacho de Diogo Soares da Silva
frade, O punhal de ouro, A escrava Marta, A Ilha das Maravilhas e Os bandidos da Rocha Negra, as quais se de Bivar (Anexo: requerimento de exame remetido em 1845, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, seção
encontram na Biblioteca Edmundo Muniz da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Já A mancha na corte, Manuscritos, 1-08,09,074). Conforme Mayor (2020), “há registros de exames censórios de textos teatrais
O grito nacional ou A história de um voluntário, Sai despacho! e Olho grande! estão guardadas no acervo da requeridos por Leal nos anos de 1851, 1852 e 1853”. Mas acrescenta que “sua responsabilidade no pedido
Segunda Delegacia Auxiliar de Polícia, da Biblioteca do Arquivo Nacional. de liberação de peças não necessariamente indica autoria dramatúrgica. Muitos dos textos são, inclusive,
versões de peças conhecidas do público brasileiro desde meados do século XVIII. No caso específico de
18
O Dote é uma comédia de Artur Azevedo (1855-1908) que fez grande sucesso em 1907 (LIVROS, [20--], Cholera morbo ou O morto embargado, há a indicação no Jornal do Commercio de que ‘a espirituosa comé-
n.p.), no Rio de Janeiro. Segundo alguns críticos, é a mais bem acabada revista do autor, muito embora dia’ foi traduzida do francês por J. B. Ferreira” (apud MAYOR, 2020: 39).
apresentando um enredo simples e curto, que não permite um aprofundamento emotivo, como ocorre
nas outras comédias curtas do autor.
21
Uma criada impagável é datada de 1864.

30 31
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

OBRA
1925), sobrinho do escritor e dramaturgo Joaquim Manuel de Macedo, com libreto de
ANO (referidas conforme
(de 1899 a nomeadas por GÊNERO AUTORIA Augusto de Lima. Poderia se tratar da mesma obra? Não parece o caso, vez que a ópera
1924) Sebastião Pompêo de de Joaquim Manuel de Macedo teria sido composta em 1897.
Pina Júnior)
Texto: Joaquim José da França Júnior Foi o professor do Instituto de Artes (hoje Escola de Música e Artes Cênicas) da
Como se fazia um Comédia em três
[s. d.] Música: autoria não localizada até o Universidade Federal de Goiás (UFG) Braz Wilson Pompeo de Pina Filho (1946-1994),
deputado22 atos
momento também jornalista, pesquisador, escritor, compositor e regente, quem trouxe à luz, no sé-
Comédia-drama de Texto: José Romano
1924 29 ou honra e glória costumes militares Música: autoria não localizada até o culo XX, os acervos musicais de Pirenópolis. Em 1966, obteve as primeiras informações
em três atos momento sobre a música em Pirenópolis em séculos anteriores, por meio de depoimentos e es-
critos do historiador e escritor Jarbas Jayme. Durante 12 anos, trabalhou com os acervos
Tab. 2: Fonte: a autora e o autor com base em Sebastião Pompêo de Pina Júnior (1979: 21-22). das bandas Euterpe e Phoenix de Pirenópolis, identificando e organizando as partitu-
ras, incentivando os músicos a preservarem os originais, usados nas missas, procissões,
Sintetizando o conteúdo das Tab. 1 e 2, verifica-se a ocorrência de 13 encenações tocatas, entre outros documentos. Organizou o acervo particular da família, herdado
classificadas, originariamente, como “óperas sérias” de autoria de Metastasio. Acrescen- de seu avô paterno, Sebastião Pompêo de Pina, idealizador e construtor do Theatro de
ta-se que igualmente desse autor é Ézio em Roma, que não se encontra listada, mas Pirenópolis em 1892, passado depois aos tios Benedito Pompeu de Pina e Sebastião
estava presente em Pirenópolis, segundo Mendonça (1981), perfazendo um espaço de Pompêo de Pina Júnior. Realizou o I Recital de Compositores Goianos em 1970, gravado
tempo que vai de 1837 a 1942. De António José da Silva, verifica-se, na Tab. 1, duas ao vivo na Igreja Matriz de N. Sra. do Rosário, em Pirenópolis. Encenou peças de teatro
ocorrências de Guerras do alecrim e manjerona (uma em 1842 e outra em 1899). Sabe-se cantado, tragédias, clássicos portugueses e italianos e autores brasileiros, entre essas,
ainda que Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e As variedades de Protheu também constavam Guerras do alecrim e manjerona, em 1º, 3, 5 de junho de 1979, no Teatro de Pirenópolis,
desse repertório; as três obras do Judeu foram classificadas, inicialmente, como óperas e em 16, 17 e 18 de junho do mesmo ano, no Teatro Goiânia, com o Grupo Meya-Ponte
joco-sérias23. – Centro de Pesquisa Teatral, com a direção de Pina Filho. Destaca-se aqui textos de An-
Na categoria ópera-cômica, está Dom César de Bazan, com uma encenação em tónio Jose da Silva, o que atraiu, em 1985 e 1986, a vinda de pesquisadores portugueses
1891 e outra pós-1899. Já Inês de Castro aparece apenas na Tab. 2 e teria sido encenada a Pirenópolis, como Felipe de Souza e Ivo Cruz.
pós-1899. Entretanto, como se tem notícia da encenação dessa obra em várias localida-
des goianas no século XVIII, é pertinente considerar que também tenha sido encenada
em Pirenópolis nos séculos XVIII e XIX. Já de conteúdo histórico é a ópera Inconfidência
Mineira ou Tiradentes, atribuída, segundo Mendonça (1981), ao músico pirenopolino An-
tônio da Costa Nascimento (1837-1903), conhecido como Tonico do Padre. Foi encenada,
muito a propósito, menos de dois anos depois da Proclamação da República, durante a
Festa do Divino, em 1891. A respeito dessa obra, é conveniente assinalar a existência de
uma ópera intitulada Tiradentes, cujo compositor é Manuel Joaquim de Macedo (1847-

22
França Júnior – jornalista e teatrólogo – nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 18 de março de 1838, e faleceu
em Poços de Caldas-MG, em 27 de setembro de 1890. Escreveu cerca de duas dezenas de comédias e peças
teatrais. Além de Como se fazia um deputado (1882), destacam-se: Amor com amor se paga (1870); Direito por
linhas tortas (1870); O tipo brasileiro (1872); Caiu o ministério (1883); Entrei para o Clube Jácome (1887); Os
candidatos e As doutoras (1889). Foram reunidas em O teatro de França Júnior, dois volumes (1980).
23
As obras de Metastasio aparecem na relação de obras encenadas no Theatro da Ajuda e no Theatro da
Rua dos Condes, entre outros. Quanto à Alecrim e manjerona, tem-se notícia de sua encenação no Theatro
do Bairro Alto, entre 1733 e 1738, em Lisboa (LAMBERTINI, 1943: 2.423, 2.427, 2.428 e 2.430). Tais obras
também aparecem encenadas em festas que se realizaram em Cuiabá-MT, Rio de Janeiro-RJ, São Paulo- Fig. 4: Trecho de reportagem no jornal O Popular de 16 jun. 1979 (PINA FILHO, 1979: 20) sobre a ence-
SP, Salvador-BA, Santo Amaro-BA, Diamantina-MG, Ouro Preto-MG, São João del-Rei-MT, São Luís-MA, nação. Fonte: acervo particular de Braz Wilson Pompeo de Pina Filho.
Mazagão Novo-AP, Belém-PA, Casam Vasco-MT, Recife-PE (BUDASZ, 2008: Apêndice 1).

32 33
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

O trabalho pioneiro de Braz Wilson Pompeo de Pina Filho, relativo à produção


DATA OBRA GÊNERO AUTORIA
cênico-musical de Pirenópolis, em termos de produção acadêmica, somente teve con-
tinuidade com a dissertação de mestrado A Era dos Barracões (1997), de Ana Guiomar 1940 Texto: António José da Silva
Anfitrião ou Júpiter Ópera joco-séria
Rêgo Souza, divulgada em palestras em eventos científicos. Posteriormente, vieram a Pirenópolis Música: atribuída, em Pirenópolis, a
e Alcmena em dois atos
(Festa do Divino) António Teixeira
monografia de Geraldo Márcio da Silva, Anfitrião ou Júpiter e Alcmena: uma ópera portu-
guesa em Pirenópolis-GO (2006), orientada por Maria Lúcia Roriz. Também Andrea Luiza 1940 Texto: Francisco Corrêa Vasques
Melodrama em
Pirenópolis Lágrimas de Maria Música: autoria não localizada até o
Teixeira vem desenvolvendo pesquisas sobre o teatro musical pirenopolino, assim como (Festa do Divino)
três atos
momento
Isabel Maria de Fátima Roriz Pompeu de Pina, filha de Pina Filho, para sua dissertação
1940 Texto: António José da Silva
de mestrado (ainda não defendida), com orientação de Diósnio Machado Neto. Maria Guerras do alecrim Ópera joco-séria
Pirenópolis Música: atribuída, em Pirenópolis, a
e manjerona em dois atos
Lúcia Roriz, por sua vez, vem divulgando o repertório desse acervo por meio de reci- (Festa do Divino) António Teixeira
tais e espetáculos cênico-musicais. Ademais, encenamos, tanto em Pirenópolis como Texto: António José da Silva
em Goiânia, espetáculos cênico-musicais resultantes de pesquisas musicológicas e Música: atribuída, em Pirenópolis, a
1-3-5/06/1979 Guerras do alecrim Ópera joco-séria
António Teixeira
adaptações relacionadas ao teatro cênico-musical realizado na província e, posterior- Pirenópolis e manjerona em dois atos
Direção: Braz Wilson Pompeo de Pina
mente, no estado de Goiás nos séculos XX e XXI, durante edições do Simpósio Interna- Filho
cional de Musicologia e outras ocasiões. Texto: António José da Silva
Na Tab. 3, acrescentamos Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, encenada em Pirenópolis 16-17-18/06/1979 Música: atribuída, em Pirenópolis, a
Guerras do alecrim Ópera joco-séria
Goiânia António Teixeira
durante a Festa do Divino Espírito Santo de 1940. O imperador da festa, o sr. Manuel de (Teatro Goiânia)
e manjerona em dois atos
Direção: Braz Wilson Pompeo de Pina
Assunção Bastos, também levou, em barracão, na Rua Direita, o melodrama Lágrimas de Filho
Maria e Guerras do alecrim e manjerona (PINA FILHO, 1979)24. Também incluímos ence- Libreto de Artaxerxes: Pietro
nações de Guerras do alecrim e manjerona, informações localizadas por Isabel Maria de Metastasio
Libreto de Guerras do alecrim e
Fátima Roriz Pompeu de Pina no acervo de seu pai, com cópias gentilmente cedidas manjerona: António José da Silva
05/2004 Artaxerxes e Ópera séria e
a nós para este texto. Música de Artaxerxes: autoria não
Goiânia Guerras do ópera joco-séria
localizada até o momento
(Teatro Goiânia) alecrim e adaptadas para o
Música de Guerras do alecrim e
manjerona formato de recital
manjerona: atribuída, em Pirenópolis,
a António Teixeira
Direção musical: Maria Lúcia Roriz
Libreto de Artaxerxes: Pietro
Metastasio
Recital com Libreto de Guerras do alecrim e
músicas de manjerona: António José da Silva
29/07/2005
Operetas com Artaxerxes e Música de Artaxerxes: autoria não
Goiânia
Graça de Deus Guerras do alecrim localizada até o momento
(Teatro Goiânia)
e manjerona Música de Guerras do alecrim e
manjerona: atribuída, em Pirenópolis,
a António Teixeira
Direção musical: Maria Lúcia Roriz

Libreto: António José da Silva


05/2005 Música: atribuída, em Pirenópolis, a
Anfitrião ou Júpiter Ópera joco-séria
Pirenópolis António Teixeira
e Alcmena em dois atos
(Festa do Divino) Direção artística: Demétrio de Pina
Direção musical: Maria Lúcia Roriz

24
Este relato se encontra no caderno de José Odilon de Pina Filho, datado de 23 jul. 1940, escrito na capa,
em que se lê: “Acontecimentos extraordinários que se deram por ocasião das festas do Divino Espírito
Santo desde 1819” (apud PINA FILHO, 1979).

34 35
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

DATA OBRA GÊNERO AUTORIA DATA OBRA GÊNERO AUTORIA

Entremez da
Libreto: António José da Silva Libreto: António José da Silva
20/10//2005 ópera joco-séria
Música: atribuída, em Pirenópolis, a 10/11/2014 Música: António Teixeira e Carlos
Goiânia Anfitrião ou Júpiter Ópera joco-séria Vida do grande
António Teixeira Goiânia Seixas
(Teatro Goiânia) e Alcmena em dois atos O grande Dom Quixote de
Direção artística: Demétrio de Pina (Teatro Belkiss Adaptação musical e musicológica:
governador da Ilha La Mancha e do
Direção musical: Maria Lúcia Roriz S. Carneiro de David Cranmer
dos Lagartos gordo Sancho
Mendonça – EMAC- Direção musical: Carlos H. Costa
Pança
Parte 1: Anfitrião UFG) Direção artística: Kleber Damaso
Recital com Produção: Ana Guiomar Rêgo Souza
ou Júpiter e
trechos de óperas Texto: António José da Silva
Alcmena
17/09/2008 joco-sérias de Música: atribuída, em Pirenópolis, a 19/06/2019 Recital com
(Teatro Goiânia) António José da António Teixeira Goiânia Cantos de Meia árias e duetos
Parte 2: Guerras
Silva adaptadas Direção Musical: Maria Lúcia Roriz (Teatro Belkiss Ponte em seus de óperas
do alecrim e Direção musical: Maria Lúcia Roriz
para esse formato S. Carneiro de palcos e barracões constantes do
manjerona
Mendonça – EMAC- Acervo Musical
Texto: Joaquim Augusto d’Oliveira e UFG) de Pirenópolis
11/05/ 2011
Comédia musical Francisco Palha
Pirenópolis Tab. 3: Óperas e melodramas realizados nos séculos XX e XXI em Pirenópolis e em Goiânia.
A loteria do Diabo mágica em três Música: Joaquim Casimiro Júnior
(Teatro de Fonte: a autora e o autor com base em programas do acervo pessoal de Ana Guiomar Rêgo Souza, bem
atos Pesquisa: Vanda Lima Bellard Feire
Pirenópolis) como programas e recortes de jornais do acervo pessoal de Braz Wilson Pompeu de Pina Filho.
Produção: Ana Guiomar Rêgo Souza
24/05/2011
Texto: Joaquim Augusto d’Oliveira e
Goiânia
Comédia musical Francisco Palha
(Teatro Belkiss 3. De Metastasio e António José da Silva aos melodramas oitocentistas
A loteria do Diabo mágica em três Música: Joaquim Casimiro Júnior
S. Carneiro de
Mendonça – EMAC-
atos Pesquisa: Vanda Lima Bellard Feire Nas óperas de Metastasio (1698-1750), batizado como Pietro Trapassi, aspectos da tendên-
Produção: Ana Guiomar Rêgo Souza
UFG) cia humanista clássica podem ser observados, em especial no que tange à temática e ao
Tragédia,
Libreto e música: Carlos Clara Fontes conteúdo: formalismo, ênfase em heróis da Antiguidade e personagens mitológicos, opo-
Adaptação musical e arranjos: sição entre o amor e o dever, afirmação da ordem social vigente. Podem ser vistas como
14/05/2013 adaptação do
Tarantilho Costa e Carlos Henrique
Pirenópolis Agora é tarde, Inês livro Auto da representação de uma cultura política e literário-musical dos setecentos. Geralmente em
Costa
(Teatro de é morta! Fonte dos Amores,
Pirenópolis) de Carlos Clara
Direção artística: Urania Maia e três atos, apresentavam uma trama complexa ambientada na Antiguidade, concentrada
Marcos Davila no fluxo das emoções e nos conflitos íntimos dos personagens em detrimento da ação.
Fontes
Produção: Ana Guiomar Rêgo Souza
Trata-se de um tipo de enredo que gira em torno de uma situação amorosa do tipo A ama
Libreto e música: Carlos Clara Fontes B, B ama C, C ama A (ou D); trocas de identidade são frequentes, escravos ou prisioneiros de
Tragédia,
28-29/11/2013 Adaptação musical e arranjos:
adaptação do guerra descobrindo sua origem real, sendo, pois, elegíveis para o “mercado matrimonial”. A
Goiânia Tarantilho Costa e Carlos Henrique
Agora é tarde, Inês livro Auto da
(Teatro do Instituto
é morta! Fonte dos Amores,
Costa essência do drama não está em qualquer conflito físico, mas na luta moral entre o amor e o
Federal de Direção artística: Urania Maia e dever. As partes cantadas eram destinadas aos personagens principais: figuras mitológicas
de Carlos Clara
Educação) Marcos Davila
Fontes e heróis da Antiguidade de nobre linhagem; já soldados e servos permaneciam silencio-
Produção: Ana Guiomar Rêgo Souza
Entremez da sos e eram diferenciados dos cantores pelo figurino e posição no palco (ORREY, 1987: 76).
ópera joco-séria Libreto: António José da Silva O argumento principal é estruturado em diálogo – no estilo de recitativo sec-
Vida do grande Música: António Teixeira e Carlos
co; no clímax emocional, normalmente nas árias, acrescentava-se o naipe das cordas.
04/06/2014 Dom Quixote de Seixas
O grande Recitativos e árias alternavam-se: a ação ficando a cargo dos recitativos, cabendo às
Pirenópolis La Mancha e do Adaptação musical e musicológica:
governador da Ilha
(Teatro de
dos Lagartos
gordo Sancho David Cranmer árias a reflexão. Cenas em conjunto são raras. As árias apresentam-se na forma ABA da
Pirenópolis) Pança de Antonio Direção musical: Carlos H. Costa
ária da capo: um arranjo interessante, por expor um padrão retórico que “enquadrava as
José da Silva Direção artística: Kleber Damaso
Produção: Ana Guiomar Rêgo Souza árias como oratória”; a repetição facilitando o entendimento enquanto representação
ou construção do poder real no Antigo Regime (ORREY, 1987: 77).

36 37
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

Mais ou menos na mesma época em que as óperas com libreto de Mestastasio As comédias do Judeu, denominadas, por ele próprio, como “óperas joco-sérias”,
foram introduzidas em Pirenópolis (início do século XIX), também o foram obras de correm ao longo de planos que se complementam e se opõem: o grotesco, a seriedade,
António José da Silva – o Judeu –, tais como Guerras do alecrim e manjerona e Anfitrião o fantástico, o histórico, o cotidiano, o galante, poderosos, criados, amor nobre, amor
ou Júpiter e Alcmena. De uma estética voltada para aspectos normativos e instrutivos, do prosaico, entre outros. Uma visão de mundo carnavalesca: um mundo às avessas, nos
formalismo aristocrático, passa-se à crítica social. Para Pedro Calmon ([1939 1.243), An- termos de Mikhail Bakhtin (2010), manifestado pelas imagens caricaturadas, pelo uso
tónio José da Silva (1705-1739) foi o mais talentoso autor de comédias no século XVIII. de marionetes, chamadas de “bonifares”, “bonifrates” ou “títeres”25, e pela presença do
“gracioso”26: artifícios que relativizam identidades e satirizam a ordem vigente.
Plebeísmo, licenciosidade, maledicência, comum às sátiras de costumes António José da Silva criou um modelo original que transita entre a comédia es-
estão presentes em sua obra. Teve o mérito de subordinar os fatigados as-
panhola e a ópera italiana, a partir de Calderón de la Barca, que misturava prosa com
suntos (mitológicos ou arcádicos) à inquietação contemporânea, zurzir os
vícios numa festa cômica de símbolos maliciosos (CALMON, [s. d.]: 1.243). partes cantadas. Nesse sentido, em Vida do grande Dom Quixote de la Mancha e do gor-
do Sancho Pança, António José transforma o texto de Cervantes para atender a duas
Sem poupar a Universidade, as praxes ridículas, a Medicina, a Justiça, exigências do Teatro do Bairro Alto em Lisboa: de um lado, receber partes cantadas,
o clero, caricaturando as potestades com traços de pasquinada, conse- cujo número cresceu progressivamente nas óperas posteriores; de outro, explorar as
guia tirar novos efeitos de temas esplêndidos, como o de “Dom Quixo-
te”, tão engenhosa que Bocage estranharia que não tivesse ocorrido a liberdades toleradas pelo teatro de bonifares e maravilhar o púbico com efeitos cênicos
Cervantes (CALMON, [s. d.]: 1.243). espetaculares (CHARTIER, 2012: 169). Para tanto, fazia uso de uma companhia formada
por volta de oito atores, cantores também em torno de oito, artesãos responsáveis pela
construção dos bonifares e adereços, cenógrafos e figurinistas.
Conforme Niskier (2005) e Pereira (2005), o dramaturgo António José da Silva nasceu Seus textos apresentam uma linguagem dúbia, com uma vertente voltada ao dra-
em 1705 no Rio de Janeiro. Em 1712, mudou-se com o pai para Lisboa aos oito anos de ida- ma cômico, e outra, a um grito de protesto, velado por detrás do drama cômico.
de, para acompanhar a mãe prisioneira da Inquisição. Seu pai era advogado e poeta e man-
teve a fé judaica secretamente. Sua mãe, Lourença Coutinho, não teve êxito em esconder A linguagem teatral de Antônio José, dominada pela farsa cômica, se
caracteriza pela sátira à construção pedante do barroquismo, pondo
suas origens e foi acusada de ser judia, deportada para Portugal e julgada pelo Tribunal do
em circulação um diálogo vivo que não se via nos palcos portugueses
Santo Ofício. António José estudou em Coimbra e, ainda estudante, foi detido pela primeira desde o século XVI. A contribuição renovadora de sua comédia para a
vez em 1726. Foram confiscados os seus bens e esmagados seus dedos – “ato praticado na língua portuguesa está, entre outros aspectos, no uso pioneiro da pro-
Igreja de São Domingos, em 13 de outubro de 1726 – na esperança de que assim ficasse sa em vez do verso. Basta lembrar que, desde o quinhentismo com Gil
impedido de manejar sua pena mordaz” (NISKIER, 2005, p.120). Como tal medida não surtiu Vicente e José de Anchieta, passando pelo século XVII com D. Francisco
Manuel de Melo e Manuel Botelho de Oliveira, o teatro, como represen-
efeito, já que suas peças se tornaram cada vez mais críticas, mudaram a tática: tação nas tábuas de um palco, fora escrito em verso. Quando, em 1733,
sobe à cena, no Teatro do Bairro Alto, a Vida do grande D. Quixote de La
criou-se uma rede de denúncias e falsos testemunhos, como a de que Mancha e do gordo Sancho Pança, Antônio José quebrava uma tradição
ele ria quando ouvia falar o nome de Cristo, jejuava às segundas e de mais de dois séculos (PEREIRA, 2005: 134).
quintas-feiras, vestia roupa limpa aos sábados e rezava o Padre Nosso,
substituindo no final o nome de Jesus pelo de Abraão e o Deus de Israel
(NISKIER, 2005: 120). Se Metastasio agradava por seu sabor ilustrativo da moral e dos bons costumes,
António José da Silva encantava pelo proverbial senso crítico do pirenopolino, que, como
Foi preso novamente em 1737, juntamente com sua mãe e sua esposa (Leonor Car- bom goiano, tinha a sabedoria de rir de si mesmo. Conta José Sisenando Jayme que
valho). Ambas foram libertadas, e o Judeu, torturado mais uma vez. Foi executado por
asfixia no garrote vil e depois queimado no Campo da Lã, em Lisboa, a 18 de outubro de 25
Conforme Roger Chartier (2012: 164), “sua leveza permitia movimentos espetaculares e rápidas
1739. Interessante apontar, seguindo Pereira (2005: 131), que “não houve impedimento na ‘mutações’ ou mudanças de cenário”.
publicação de suas oito peças, que saíram com as licenças necessárias das três censuras 26
O gracioso é um personagem originário do teatro espanhol, que aparece nas peças de Antônio José
existentes em Portugal, inclusive a do Santo Ofício”, o que abre o questionamento de que da Silva em duas versões: uma mais grotesca e outra mais elegante. Trata-se de um criado que tem
a função de urdir as intrigas e os enganos. Paulo Roberto Pereira (2007: 43) afirma que, “no teatro
sua execução não se deveu unicamente ao viés satírico e a suas críticas às instituições. do Judeu, o gracioso é o fio condutor das ações, representa a consciência social e serve para pôr em
ridículo os poderosos do tempo”.

38 39
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

a vivacidade mental do pirenopolino extravasava-se em crítica mordaz, Para Camargo (2009), a música incidental, executada sempre ao vivo nos melo-
descambando até para a maledicência. Razão não faltava, pois, às cida-
des vizinhas, não sabemos se por inveja ou temor, quando diziam: “Meia dramas, tinha três finalidades: reforçar, anunciar ou preparar o aspecto emocional dos
Ponte, meia gente, meia cara... e língua inteira!” (JAYME, 1983: 234). personagens. Funcionaria também como dispositivo para exteriorizar as condições sub-
jetivas do personagem, sua ação ou seu estado emotivo. Acentua que a relação do ele-
As obras de Metastasio circularam no Brasil também no formato de literatura mento sonoro (palavras, silêncio e música), quando justaposta ao gestual, “permite uma
de cordel: edições baratas, vendidas em cordas, remodeladas para atender ao gosto percepção mais complexa que do simples encontro da música com o texto”:
local, com acréscimo ou supressão de partes, acréscimo de personagens, aí incluindo
os graciosos do teatro de marionetes do Bairro Alto, tornando-as paródias mais leves e o ator apresenta sua personagem como texto sonoro-gestual, um tex-
to fragmentado no icônico da representação, texto silencioso que fala,
caricatas. Um caso de hibridação da sátira, do grotesco, do cômico, com o viés classici-
significa, na intersecção e sinestesia da sonoridade/visualidade músi-
zante, normativo e ilustrativo do original metastasiano, o que, sem dúvida, agradaria ao co-gesto-verbal. Se considerarmos que o excesso gesto-sonoro é cen-
público pirenopolino, justificando, de certo modo, uma permanência que extrapola os tral na linguagem do melodrama, contrapondo-se a fala sintética das
limites dos oitocentos. personagens, este encontro excesso/economia verbal nos coloca fren-
Em fins da primeira metade do século XIX, seguindo a tendência europeia, a tra- te a um paradoxo ou a um contínuo deslocar no discurso (CAMARGO,
2009: 329-331).
gédia e a temática histórica começam a ceder espaço ao melodrama e a temas mais
contemporâneos. Este último viés aparece mais intensamente na obra de Joaquim Ma-
nuel de Macedo, que, de maneira geral, será vista como modelo (HUPPES, 2000), bem 4. A remontagem de Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, de António José da
como de Martins Pena. Assim é que, de 1874 até 1924, são encenados 18 melodramas Silva – o Judeu –, em 2005, na cidade de Pirenópolis e Goiânia-GO
em Pirenópolis, dentre os quais, conforme grafia da fonte, destacam-se os celebrados A ópera Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, de António José da Silva, foi encenada pela pri-
espetáculos A morgadinha de Valflor, de Pinheiro Chaves, Graça de Deus, de D’ Enery e meira vez durante as comemorações do Divino Espírito Santo em 1899 (não consta na
Lemoine, Luíz de Camões, de Burgain, Gonzaga, de Castro Alves, e Juiz de paz na roça, de listagem de Jarbas Jayme). Nesse sentido, Belkiss Spenzière Carneiro de Mendonça, em
Martins Pena. Vale apontar que, embora não tenhamos encontrado dados a respeito de seu livro Música em Goiás, nos dá a seguinte informação: “ensaiara e encenara, nas festas
Anjo ou demônio e Poder do ouro, pela sugestão moral dos títulos, pode-se incluir essas religiosas de Meia Ponte com mais frequência nas festas do Divino, uns dramas inter-
peças na categoria melodramática. Trata-se de mensagem moralizante que se constituiu calados de árias, que o povo chamava de ópera” (MENDONÇA, 1981: 101). Somente em
em fio condutor da trama. 2005, Anfitrião ou Júpiter e Alcmena foi remontada e encenada em Goiás, na cidade de
Foi René-Charles Guilbert de Pixérécourt (1773-1844) quem estabeleceu as bases Pirenópolis-GO, antiga Meia Ponte, também nas atividades culturais da Festa do Divino.
do melodrama oitocentista, a partir de sua peça Coelina, ou l’enfant du mystère: embate Meses depois, foi encenada durante o 30º Festival de Música do Estado de Goiás, da Escola
entre personagens virtuosos e vilões, exagero sentimental, discursos grandiloquentes, de Música e Artes Cênicas da UFG, no Teatro Goiânia.
afastamento da temática histórica, entre outras. Aspectos que, sendo reproduzidos in- O texto e as partituras musicais das árias das remontagens de 2005 de Anfitrião ou
tensamente nas peças, levaram os críticos do século XIX a rotular o melodrama como Júpiter e Alcmena foram retirados do acervo músico-teatral da família Pompeu de Pina.
uma fórmula teatral repetitiva, destituída de qualidades literárias. A difusão do gênero, Sobre esse acervo, Marshal Gaioso Pinto (2004: 19) afirma
entretanto, levou a Academia Francesa ao seu reconhecimento, classificando as obras
em melodrama clássico e burguês: o primeiro apresentando “seres superiores”, geral- que esse arquivo é resultante da junção dos arquivos da Banda Euterpe
de Pirenópolis, comprado do maestro Vasco da Gama Siqueira pelo Sr.
mente pertencentes à monarquia; o segundo atendo-se à escola romântica (HUPPES,
Pompeu em 1961, da banda Phenix e da Igreja Matriz que estavam sob
2000). Quanto aos personagens, no melodrama burguês, o “caráter elevado” era atribuí- a guarda do Dr. Sebastião Pompeu de Pina Júnior. Parte do arquivo de
do a homens comuns que lutassem contra os infortúnios monetários. Quanto à temática, Sebastião foi, após sua morte, passado ao maestro Brás Wilson Pompeu
o amor é o elemento fulcral, aliado, frequentemente, aos conflitos sociais e à exacerba- de Pina Filho e hoje se encontra sob a responsabilidade da sua viúva, a
ção de recursos que codificariam o conflito entre o bem e o mal, tendo como desfecho a professora Maria Lúcia Roriz.
vitória redentora da virtude. Em Portugal, as categorizações “clássico” e “burguês” foram
substituídas por “histórico” e “burguês”. No acervo da família Pompeu de Pina, existe uma cópia em manuscrito do texto da
ópera Anfitrião, transcrita por Joaquim Pompeu de Pina, certamente para a montagem de
1899. Para a montagem de 2005, a sra. Maria Luiza Curado de Pina, esposa do dr. Pom-

40 41
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

peu Christovam de Pina, responsável pelo acervo acima mencionado, iniciou a cópia do Anfitrião ou Júpiter e Alcmena foi remontado na cidade de Pirenópolis em 2005,
manuscrito de Joaquim Pompeu, já muito deteriorado pelo tempo. primeira remontagem nos séculos XX e XXI, não apenas com o intuito de preservar
Segundo o musicólogo português Filipe de Sousa (em publicação no Diário de a tradição de se apresentar ópera durante os festejos do Divino Espírito Santo, mas
Notícias em Lisboa, em 1986, s/p): “no panorama da música dramática europeia de Sete- também para tomar parte nas comemorações mundiais do aniversário de 300 anos de
centos, as óperas de António José da Silva e António Teixeira são as únicas conhecidas nascimento de António José da Silva (o Judeu). Também em 2005, encenamos Anfitrião
por marionetas, e neste setor, do mais alto nível”. Sabemos que o teatro de marionetes e ou Júpiter e Alcmena, no Teatro Goiânia, durante 30º Festival de Música do Estado de Goiás
de sombras nasceu dentro das comemorações dos festejos do Divino Espírito Santo em da EMAC-UFG.
Portugal, angariando, ao longo dos anos, um caráter profano. No século XVIII, tornaram- O libreto do Judeu mistura mitologia e realidade. Os personagens de Anfitrião ou
-se frequentes as apresentações de óperas profanas em Portugal, como é o caso de Júpiter e Alcmena dividem-se entre deuses e mortais: Júpiter, deus do Olimpo, casado
Anfitrião ou Júpiter e Alcmena. Essas óperas introduzem uma novidade estrutural para com a deusa Juno; a ninfa Iris, criada de Júpiter; o deus Mercúrio, embaixador dos deu-
a época, tanto na riqueza dos conjuntos vocais quanto na força estrutural e vocal com ses, criado de Júpiter; Anfitrião, mortal, guerreiro valente, casado com a também mortal
que se expressam as várias diferentes situações dramáticas, do burlesco ao amoroso, do Alcmena; Cornucópia, criada de Anfitrião e casada com Saramago, também criado de An-
cômico ao trágico, da mesma maneira que acontecia com a tragédia lírica francesa da fitrião; Tirésias, representante da República de Tebas, ministro; Polidaz, guerreiro, criado
mesma época. Estamos perante as óperas em língua portuguesa que desfrutaram, no de Júpiter. Os figurantes são ninfas, elfos e seres mitológicos (SILVA, 2013, n.p.).
período, de extraordinária popularidade. Baseada na mitologia romana, Anfitrião ou Júpiter e Alcmena tem, em sua sinopse,
No Brasil, não sabemos se houve alguma encenação de Anfitrião ou Júpiter e Alc- um deus onipotente. António José da Silva escreve, no Argumento a sua sinopse:
mena com marionetes. Segundo o maestro Braz Wilson Pompeo de Pina, tem-se notícia
de que foi encenada na Bahia em 1762, por ocasião das núpcias de dom José, mas os Júpiter, marido da deusa Juno, por gozar da formosura de Alcmena, mu-
meios utilizados permanecem um mistério (acervo Braz Wilson Pompeu de Pina Filho). lher de Anfitrião, general dos Tebanos, se transforma em Anfitrião por
conselho de Mercúrio, embaixador dos deuses, tomando este também
No Simpósio Internacional de Musicologia da Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC) da a forma de Saramago, criado de Anfitrião, para ajudar, que Júpiter con-
Universidade Federal de Goiás (UFG) de 2014, no entanto, encenamos, com marionetes, siga o seu intento, por meio dos seus enganos; o que Júpiter consegue,
um entremez intitulado O Grande Governador da Ilha dos Lagartos, retirado de Vida do introduzindo-se na casa de Alcmena com o nome de Anfitrião, aconse-
grande Dom Quixote de la Mancha e do gordo Sancho Pança, de autoria de António José lhado por Mercúrio, que toma o nome de Saramago, estando Anfitrião
ausente de Tebas, contra El-Rei dos Tebanos, donde vindo vitorioso, por
da Silva (Ver um fragmento da cena final na Fig. 5).
ter morto o mesmo rei, Júpiter lhe usurpa o triunfo, com que em Teba
o esperavam, ficando juntamente laureado Júpiter dentro do mesmo
Senado com a ilusão da figura, juntamente com Alcmena, e condenados
à morte por industria, e vingança da deusa Juno, que se disfarça com
o nome de Flérida na casa de Anfitrião; mas enfim como inocentes
do imposto delito, são livres de serem sacrificados por declaração de
Júpiter, que sustenta o engano até o fim, e deixa em Alcmena por sua
descendência o esclarecido, fortíssimo, e nuca vencido Hércules. O mais
se verá no contexto da obra (SILVA, 2013, n.p.).

A ópera começa na sala empírea do personagem Júpiter, onde este está sentado
num trono com Mercúrio à sua direita. Nesse momento, o coro canta “Poder celeste do
Olimpo sagrado”. A primeira ária cantada por Júpiter, “De amor todo abrasado”, retrata o
amor idealista de Júpiter por Alcmena. Na segunda ária, “Tirana ausência”, Alcmena can-
ta seu sofrimento pela ausência de seu Anfitrião. Júpiter, deus dos deuses, casado com
a deusa Juno, apaixona-se pela mortal Alcmena, mulher de Anfitrião, também mortal.
Aconselhado pelo deus Mercúrio, embaixador dos deuses, Júpiter desce à terra e as-
Fig. 5: Cena final da montagem de O grande governador da Ilha dos Lagartos. Pirenópolis, 2014. sume a forma humana de Anfitrião para desfrutar do amor de Alcmena. O personagem
Fonte: Souza e Bueno (2015: 10).

42 43
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

Mercúrio, com a forma de Saramago, criado de Anfitrião, que se encarrega da terceira um quarteto entre Júpiter, Anfitrião, Saramago e Alcmena – “Traidor fementido”, em que
ária: “Venho da guerra” (um canto em defesa da guerra). Enquanto Anfitrião e Saramago acontece uma luta de espadas entre Júpiter e Anfitrião; Alcmena desmaia no final da
estão na guerra, em Tebas, contra el-rei dos Tebanos, Júpiter e Mercúrio, disfarçados, ária. Tirésias diz que o fingido deve morrer, e Alcmena, por ter incorrido no delito, receba
entram na casa de Alcmena a fim de tratarem de interesses amorosos (SILVA, 2013, n.p.). a mesma pena. Saramago se confunde ao encontrar a sua cópia idêntica (deus Mercúrio
O verdadeiro Anfitrião volta para casa, após sair vitorioso da guerra. Encontra o ministro disfarçado), perde a própria identidade e canta a 11ª ária “É verdade”, em que, comica-
de Tebas, Tirésias, que lhe fala sobre a homenagem que os ministros querem prestar a mente, ele se confunde com Mercúrio disfarçado (SILVA, 2013).
ele no Senado. O real Anfitrião, ao encontrar sua esposa Alcmena, após longo período Depois de haver firmado um trato com Juno, Júpiter se revela como falso Anfitrião.
na guerra, percebe que ela está agindo de forma estranha, dizendo que ele já havia Em alta voz, Júpiter diz:
chegado e passado a noite com ela. Saramago é o primeiro a descobrir que a ordem não
estava instaurada e comenta sua estranheza com Anfitrião, que se propõe a averiguar a Sabei que Jove sou onipotente, que abrasado pelo amor da bela Al-
cmena, vendo ser impossível o abraçá-la, tomei de Anfitrião a forma
situação. No decorrer da história, Anfitrião constata que Júpiter havia invadido sua casa,
humana, com a qual disfarçado entre vós outros, este dia passei; e, pois
roubando-lhe seu nome, sua estimada esposa Alcmena e todo o seu triunfo em Tebas Alcmena, como humana não pode resistir a um divino impulso ardente,
(SILVA, 2013). ficará perdoada sem que tenha nisso Anfitrião valente; pois desse pas-
A deusa Juno desce à Terra com a ninfa Íris para investigar o caso, pois sabe que satempo que tive, Hércules nascerá, a cujo esforço rendido cederá todo
seu marido, Júpiter, está lhe traindo; um coro triunfante canta “Oh Íris da paz”, represen- universo, pagando nesta forma, este engano de amor, esta violência, em
dar-lhe tão divina descendência (SILVA, 2013, n. p.).
tando a sua descida à terra junto a um arco-íris, que é a própria ninfa. Juno descobre que
existem dois Anfitrião e sabe que um deles é o seu marido disfarçado. Não consegue
identificar o fingido, pois ambos são idênticos. Nesse momento, a deusa Juno canta a Alcmena fica desolada e canta “A tímida corsa”, em que, iludida, pede perdão a
quarta ária da ópera: “A um esposo fementido”, reclamações das traições do seu marido, Anfitrião. Segue a ária “Mísera, já não posso”, em que Alcmena lamenta a sua situação.
o deus Júpiter. Indignada, Juno tenta persuadir Alcmena e se apresenta como Flérida. No final da ópera, os deuses revelam-se, e todos cantam em coro, um gran finale, “A fama
Tirésias, ao ver Juno, se apaixona por ela. Juno promete seu amor a Tirésias, mas, em canora”, em que todos os cantores e atores cantam proclamando Anfitrião como mártir
troca, pede que mate Alcmena. Júpiter, disfarçado de Anfitrião, está com Alcmena, e singular (SILVA, 2013).
juntos entoam “Alcmena, enxuga o pranto” – dueto de profundo sentimento entre o par Para as montagens de Anfitrião ou Júpiter e Alcmena realizadas em 2005, as partitu-
romântico. Aparece em cena Juno, que permanece às escondidas para saber se aquele ras utilizadas foram as do acervo da família Pompeu de Pina, que se encontram, até hoje,
Anfitrião era ou não o seu esposo Júpiter. Segue o terceto entre Anfitrião, Alcmena e na residência de Eufêmia Conceição de Pina Jayme (tia Feminha, como chamada pelos
Juno – “Desengana-me tirana” – em que Anfitrião expõe seus sentimentos com a recep- familiares e amigos), antiga casa onde moraram os patriarcas dos Pompeu de Pina. A
ção dada por Alcmena depois de tanto tempo longe de casa. Juno não sabe se ele é o família relata que o acervo, em sua constituição originária, tinha vários donos, entre
verdadeiro ou o falso Anfitrião (SILVA, 2013). eles os músicos ou os condutores da cultura do teatro: Sebastião Pompêo de Pina Júnior
Cornucópia, esposa de Saramago, fica confusa com as atitudes de seu “marido” – (Tãozico Pompêo), Braz Wilson Pompeo de Pina Filho (Braz de Pina), Pompeu Christo-
nesse momento, ele é o deus Mercúrio disfarçado. Saramago se apaixona pela ninfa Íris. vam de Pina. Com a morte de Pina Júnior, Pompeu Christovam se tornou o guardião do
Íris canta para Saramago “Vai-te logo rebolindo”, expulsando o impetuoso Saramago do acervo: um baú guardado a “sete chaves” nessa casa da Rua Direita, ao qual não se tem
seu caminho. Júpiter se encontra com Anfitrião e Alcmena, que, ao entrar na sala e ver acesso. Hoje, uma parte desse acervo encontra-se sob a guarda do filho, das filhas e da
os dois Anfitrião desmaia. Mercúrio se exibe para Íris (ambos disfarçados de humanos). sobrinha de Pompeu Christovam; a outra parte está sob a guarda de Maria Lúcia Roriz,
Alcmena, aconselhada por Juno, resolve ignorar os Anfitrião, o marido e o deus disfar- viúva de Braz Wilson Pompeo de Pina Filho.
çado, até que o verdadeiro seja revelado. Tirésias prova o delito de Alcmena e decide António Teixeira seria estreito colaborador do Judeu: uma espécie de “alma gê-
matá-la, mas é impedido por Júpiter. Tirésias canta “É tal a esperança”, depois de ter se mea criativa”, que teria composto as árias da maioria de suas peças. Teixeira nasceu em
apaixonado pela deusa Juno, disfarçada de Flérida, num tom de bravura de guerreiro e Lisboa e foi batizado a 14 de maio de 1707. Em 1716, aos nove anos de idade, recebeu
doçura de um homem apaixonado. Júpiter canta novamente para Alcmena “Pois tirana, uma bolsa de estudos de dom João V, rei de Portugal, e seguiu para Roma. Ali, durante
não te abranda”, em que suplica seu perdão, pede seu amor e que também abrande o 11 anos, recebeu lições de contraponto e cravo de Alessandro e Domenico Scarlatti. Em
coração em relação a ele e lhe revela quem é o verdadeiro Anfitrião. A décima música é 1728, foi eleito capelão cantor da Santa Igreja Patriarcal e examinador dos ordinandos

44 45
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

e cantochão em todo o Patriarcado. Dentre suas inúmeras obras, destaca-se um Te Deum


Laudamos a 20 vozes (MACHADO, 1759 apud PÁSCOA, 2018: 13).

A identificação da obra operística de Antonio Teixeira surgiu quando Luis


de Freitas Branco revelou nas páginas do periódico Século, em 1947, a
existência dos manuscritos de Vila Viçosa, hoje sob a cota A.M.G-7. Logo
na década seguinte sairia à luz nova edição da obra de Antonio José da
Silva, constante no Theatro Cômico Portugez, agora sob o nome de Obras
completas [...]. Realizada, portanto, em 1957 pela livraria e Editoria Sá
da Costa, aos cuidados de José Pereira Tavares, que fez notas diversas
e o prefácio, tal edição passava a ser a primeira que informava a asso-
ciação das peças de Antonio José da Silva com o trabalho de Antonio
Teixeira (SILVA, 1957 apud PÁSCOA, 2018: 16).

Freitas Branco indica que a orquestra do Teatro do Bairro Alto estreou as óperas
do Judeu; constava, em geral, de: dois oboés, duas trompas, timbales e instrumentos de
arco (FREITAS BRANCO, 1947 apud CARDOSO, [s. d.]). Não sabemos qual a instrumenta-
ção usada na montagem de Anfitrião em 1899 em Pirenópolis. No entanto, com base nas Fig. 6: Cena final, em que a verdadeira identidade de Júpiter é revelada: Geovani Maia, Débora di Sá,
partituras do acervo músico-teatral da família Pompeu de Pina, a formação instrumen- Eustak Figueiredo, Geraldo Márcio da Silva, Séfora Eufrasia de Pina, Mariangela Abreu, Aurélia Assunção
Guerrera, Isabel Maria Roriz Pompeu de Pina. Fonte: acervo pessoal de Geraldo Márcio da Silva.
tal seguia a instrumentação introduzida em Pirenópolis pelo padre Veiga: formação do
quarteto de cordas (violinos um e dois, viola, baixo). Em 2005, o Anfitrião recebeu sono-
plastia, trilha sonora ao piano, figurino, efeitos especiais. A adaptação do texto foi feita
por Marta Lobo e Demétrio Pompeu de Pina. Débora di Sá, filha de Soní Pompeu de Pina,
cantora e musicista que interpretou Alcmena nessa montagem, foi também responsável
pela edição prática, na qual os manuscritos musicais foram adaptados conforme o tem-
po de duração do espetáculo, cortes do tempo de duração de algumas árias, ritornelos
e algumas partes instrumentais. O elenco dividiu-se entre atores e cantores de Goiânia
e Pirenópolis. De Goiânia: Geovani Passos Maia (Anfitrião), Geraldo Márcio da Silva (Jú-
piter), Débora di Sá (Alcmena), Isabel Maria de Fátima Roriz Pompeu de Pina (Ninfa 1).
De Pirenópolis: Eustak Figueiredo (Mercúrio), Wellington Eli de Sousa (Tirésias), Marcos
Amaral (Polidaz), Mariangela de Abreu (Juno), Fabiola de Pina Leite (Cornucópia), Auré-
lia Assunção Guerrera (Ninfa 2), Séfora Eufrasia de Pina (Íris). A direção musical ficou
a cargo da professora Maria Lúcia Roriz, que, na ocasião, também tocou o contínuo. A
confecção do figurino ficou a cargo de Maria do Socorro e Lilian Batista. A produção e
direção geral do espetáculo foi de Demétrio Pompeu de Pina (Na figura abaixo a cena
final e cena inicial de Anfitrião ou Júpiter).

Fig. 7: Cena inicial, quando Júpiter desce à terra para seduzir Alcmena: Geraldo Márcio da Silva e Débora
di Sá. Fonte: acervo pessoal de Geraldo Márcio da Silva.

46 47
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

Comentando sobre a linguagem musical de Guerras do alecrim e manjerona, Páscoa


(2018: 18) informa que, nessa ópera, quase todas as árias apresentam uma introdução
instrumental. Não é o caso da cópia que serviu de base para a encenação de Anfitrião
ou Júpiter e Alcmena. Em muitas, verifica-se apenas um ou dois acordes introdutórios ou
alguns compassos que introduzem a tonalidade. Introdução longa verifica-se em duas
árias: “De amor todo abrasado” (23 compassos, Fig. 7) e, “Pois, tirana, não te abranda” (17
compassos).
Em Anfitrião ou Júpiter e Alcmena, como em outras obras operísticas de Teixeira, o
estilo é seu galante característico, italianizante com traços ibéricos. Em “De amor todo
abrasado” (Fig. 7), por exemplo, os violinos um e dois aparecem ora dobrados em terças,
por vezes em movimento paralelo, ora em figurações em colcheias e semicolcheias,
em movimento paralelo e contrário, em desenhos do tipo baixo d’Alberti. O contínuo
apresenta-se sobremaneira em notas repetidas, conferindo apoio à harmonia. Também
o esquema harmônico evidencia o estilo galante em sua “simplicidade” – essa ária é, es-
sencialmente, esquematizada no padrão I-V7-I, I-IV-I. A forma foge da ária da capo muito
utilizada por António Teixeira e mostra-se com uma variação da forma estrófica, qual
seja: A-Á (A – do compasso 1 ao 37 de acordo, com a Fig. 8 e Fig. 9; Á – do compasso 38
ao 76). Interessante notar que essa ária é modesta em melismas. No final da seção (c. 24
a 29), no verso final repetido duas vezes, “Me vai matando a dor”, acentua-se o desenho
melismático, sobretudo nos compassos 28 e 29.

Fig. 8: Parte da introdução da ária de Júpiter – “De amor todo abrasado”27. Fonte: partitura em posse de
Geraldo Márcio da Silva.

27
A partitura acima se encontra em Dó M, e não em Ré M, como na cópia original, que se encontra no
acervo da família Pompeu de Pina, para atender ao registro vocal do cantor.

48 49
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

Acrescida por virtualidades que somos incapazes de esclarecer a se comparar com


a genuína proposta teatral do autor, o que se pode ter hoje é o estudo da obra, da par-
titura, sob uma possível compreensão. Uma aproximação entre passado e contempora-
neidade. Uma possibilidade de reviver, reinventar, atualizar e repetir o mundo anterior.
Releituras do passado são possibilidades de se fazer história hoje.

5. Considerações finais
Para os intelectuais do século XVII e parte do século XVIII, o espetáculo era uma neces-
sidade associada ao exercício do poder: o monarca devia deslumbrar o povo. Tornar-se
espetáculo aos olhos do povo. As aparências prevalecem, de modo a garantir o status do
prestígio social. Segundo Norbert Elias, em seu livro O processo civilizador:

Isso explica por que nessas classes superiores, o controle de emoções


e a autodisciplina costumavam ser mais altamente desenvolvidos do
que nas classes mais baixas: o medo da perda ou redução do prestígio
social constituía uma das mais poderosas forças motrizes para trans-
formar as limitações impostas pelos outros em autolimitação. Neste
particular, também, como em muitos outros casos, as características
de classe superior de “boa sociedade” estavam muito desenvolvidas na
aristocracia cortesã dos séculos XVII e XVIII exatamente porque, neste
contexto, o dinheiro era indispensável e, a riqueza, desejável como um
meio de vida, mas seguramente não constituía, ao contrário do mundo
burguês, também o fundamento do prestígio. A filiação à sociedade de
corte significava para os que a ela pertenciam mais do que riqueza;
exatamente porque essa razão, eles estavam tão completa e inescapa-
velmente ligados à corte, e era tão forte a pressão da vida cortesã que
lhes modelava a conduta. Não havia outro lugar onde pudessem viver
sem perda de status; era por isso que dependiam tanta do rei (1993:
223-224).

A alta sociedade não quer perder status e imita o rei – aquele que faz o que o rei
faz é visto por todos os demais como pertencente à elite. Os hábitos e costumes do rei
são observados na integralidade. Se o rei aprecia ópera, então se torna costume levá-la
aos festejos de que essa elite comunga, ou costumes que ela cria ou que a tradição lhe
impõe.
O advento das monarquias constitucionais e, principalmente, dos Estados demo-
cráticos não inviabilizou o exercício da sedução pela via da espetacularização, mas de-
terminou alterações. No que se refere à democracia – regime que, como bem
aponta Balandier (1982: 7 apud SOUZA, 2007: 36), não depende, ordinariamente, nem
da conivência dos deuses ou do respeito à tradição nem do surgimento do herói ou do
Fig. 9: Parte vocal da ária de Júpiter – “De amor todo abrasado”. controle das correntes históricas –, o seu reconhecimento atrela-se à arte da
Fonte: parte cavada em posse de Geraldo Márcio da Silva. persuasão, ainda que em outros níveis. A dramatização faz-se visível, especialmente,
em época de eleições – “ocasião em que novas partidas serão jogadas” (1982: 7 apud
SOUZA, 2007: 36) .

50 51
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

– ou quando das crises do governo, sem esquecer os espetáculos tragicômicos levados a às casas teatrais, à semelhança do que Freire (2013) nos informa sobre a ópera no Rio
público nas câmaras e parlamentos mundo afora. As práticas democráticas, pelo menos de Janeiro oitocentista, ocorriam (e, relativizados os contextos, ainda ocorrem) em dois
em tese, interditam o recurso à violência como procedimento principal e legítimo ao planos: na plateia, onde a elite ostentava dinheiro e poder, validando sua posição na
tratar o poder político. Na busca por hegemonia, o convencimento, a sensibilização, a ar- hierarquia social, bem como no próprio espaço cênico: na relação texto-música, veículo
gumentação e a pressão reivindicativa não violenta se tornam os expedientes legítimos simbólico de valores e significados inerentes à sociedade pirenopolina, sobretudo em
de como proceder para a conquista e a manutenção do poder político. O espetáculo, an- séculos passados; ou, pelo menos, lembrando Freire (2013), inerentes à visão que as
tes afirmação suntuosa do poder, ganha uma nova dimensão, passando a ser produzido classes dominantes pretendiam imprimir ou sublinhar junto a essa sociedade.
também como modo de sensibilização, visando à disputa do poder e à construção de Castoriadis nos ensina que “a humanidade é aquilo que tem fome...” (1991: 164).
legitimidade política (SOUZA, 2007: 36). Assim é que, em sua vertente predominante, o movimento cênico-musical de Pirenó-
A ópera, construída na intersecção entre os espaços de performance palacianos e polis respondeu e responde à “fome” de poder de uma elite, mesmo que de forma sim-
casas teatrais, barracões e festas-espetáculo, consubstanciada em produto de viés eli- bólica. Trata-se de uma instituição (nos termos de Castoriadis) a meio caminho entre a
tista e, ao mesmo tempo, popular, situa-se na esfera das metáforas, do simbólico – é o elitização e a popularização, que funcionou e continua funcionando como um instru-
mundo das ritualizações. Em outros termos, segundo Da Matta (1990: 39), é o domínio mento de classe, validando características marcantes de sua estrutura social: o conser-
“dos momentos extraordinários construídos pela sociedade”, em que se dão dramatiza- vadorismo, o situacionismo e o sentido hierarquizante que separa ricos de pobres, quem
ções sociais com as pessoas representando a si próprias, aquilo que gostariam de ser ou manda de quem obedece, quem sabe de quem não sabe. Responde também às necessi-
aspectos considerados relevantes para a situação vivida. No ritual da ópera e das festas- dades comuns do grupo social: a “fome” de momentos extraordinários, que rompam com
-espetáculo, como as do Divino, os discursos proferidos nessas situações ou salientam a a monotonia do quotidiano. Momentos que, situados nas esferas dos rituais festivos,
hierarquia social ou ressaltam aspectos ambíguos da ordem social. como a Festa do Divino, criam situações de aparente conciliação, em que o povo, de
Em Pirenópolis, até o século XIX, verificou-se a definição de uma classe social certa forma, participando de uma atividade própria das elites, se imagina semelhante
dominante, detentora dos meios de produção – terra e escravos –, dos cargos públicos, ou mais próximo destas. Por fim, no ritual do palco, amor e ódio, vida e morte, pecado
das funções eclesiásticas. Cantores, atores e músicos pertenciam a essa burguesia. Par- e perdão, expostos em toda a sua tragédia ou comicidade, satisfazem, simbolicamente,
ticipar de uma ópera era sinal de prestígio. Significava que o indivíduo era de uma elite à “fome” de momentos dramáticos – situações que, embora relativamente estranhas à
cultural de tradição portuguesa, que tinha acesso à leitura e à escrita e fazia parte dos vida quotidiana, são, no entanto, fundamentais para a compreensão das reais dimensões
restritos grupos dedicados ao cultivo das letras, do teatro e da música. Uma elite con- da existência.
servadora, ciosa de seus valores morais, como evidenciado em um relatório da Câmara
Municipal ao Governo da Província de Goyaz, datado de 23 de fevereiro de 1861 (GOIÁS, Referências
1996), a respeito do Theatro de São Manoel:
A MATUTINA MEIAPONTENSE, Meiaponte-GO: Tipografia D’ Oliveira, 1830-1834 (im-
Devido aos esforços de um particular, temos hoje n’esta cidade um The- presso e digitalizado). CD-ROM pela AGEPEL - Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovi-
atro, arranjado ao gosto moderno, com duas ordens de camarotes e
co Teixeira.
bem elegante scenario, tudo pintado, e dessente, com a inscrição que
lhe dá o nome – Theatro de São Manoel. Das representações ahy ha-
vidas se tem obtido além de ilustrar o povo a concentração e união ÁLVARES, Joseph de Mello. História de Santa Luzia: Luziânia. Brasília: Gráfica e Editora
de famílias, que reunidas no recinto, como que ajuntão para formarem Independência Ltda., 1978.
protestos de amizade e perfeita liga.
BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. São
No decorrer do tempo, o ritual operístico em Pirenópolis atualizou e, de certa for- Paulo: Hucitec, 2010.
ma, ainda atualiza, em muitos níveis, as distinções hierárquicas. Organiza-se em torno
de uma burguesia local (patrocinadores, produtores e intérpretes, reverenciados não BERTRAN, Paulo. Memória de Niquelândia. Brasília: SPHAN/Pró-Memória, 1985.
só em função do poderio econômico e político, como também por serem parte de uma
elite intelectual). Podemos dizer que a ópera ou os melodramas levados a barracões ou BERTRAN, Paulo; FAQUINI, Rui. Cidade de Goiás, patrimônio da humanidade: origens. Goi-
ânia: Editora Instituto Rizzo; Brasília: Editora Verano; São Paulo: Editora Takano, 2004.

52 53
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

BLAKE, Sacramento. Diccionario bibliographico brasileiro (senado.leg.br). Rio de Janeiro: CURADO, Adriano. Sebastião Pompêo de Pina. Cidade de Pirenópolis, Pirenópolis, 1
Typographia Nacional, 1970 [1883-1902]. abr. 2016. Série Biografias. Disponível em: https://cidadedepirenopolis.blogspot.
com/2016/04/sebastiao-pompeo-de-pina.html. Acesso em: 6 jan. 2023.
BORGES, Maria Helena Jayme. A música e o piano na sociedade goiana (1805-1972).
Goiânia: FUNAPE, 1998. CURADO, Adriano. Sebastião Pompêo de Pina Júnior. Cidade de Pirenópolis, Pirenópo-
lis, 2 set. 2015. Série Biografias. Disponível em: http://cidadedepirenopolis.blogspot.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. com/2015/09/sebastiao-pompeo-de-pina-junior.html. Acesso em: 18 jul. 2023.

BRASIL. Relatório da Câmara Municipal ao Governo da Província de Goyaz, datado de DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema bra-
23 de fevereiro de 1861. In: INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS HISTÓRICOS DO sileiro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1990.
BRASIL CENTRAL. Memórias goianas. Goiânia: Editora da UCG, 1996. v. 9.
ELIAS, Norbet. O processo civilizador. Tradução da versão inglesa de Ruy Jungmann. Re-
BUDASZ, Rogério. Teatro e música na América Portuguesa: convenções, repertório, raça, visão, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
gênero e poder. Curitiba: DeArtes-UFPR, 2008.
FREIRE, Vanda Lima Bellard. Rio de Janeiro, século XIX: cidade da ópera. Rio de Janeiro:
CALMON, Pedro. História do Brasil: séculos XVIII – XIX. Rio de Janeiro: José Olímpio Garabond, 2013.
Editora, 1939, v.4.
HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. Cotia: Ateliê Editorial, 2000.
CÂMARA, João da. Alcacer-Kibir. Revista Theatral, Lisboa, 1895 (“Bibliotheca dramati-
ca da Revista Theatral”, 5). Disponível em: ww3.fl.ul.pt/biblioteca/biblioteca_digital/ INÊS de Castro. Antena 2, Lisboa, [20--]. Argumentos de óperas. Disponível em: https://
teatro-monografias.htm. Acesso: 25.jun.2021 antena2.rtp.pt/compositor/giuseppe-persiani/argumentos-de-operas/ines-de-castro/.
Acesso em: 18 ago. 2022.
CAMARGO, Robson Corrêa de. Mundo é um Moinho: O Teatro Popular no século XX. His-
tórias e Experiências. 1. ed. Goiânia: PUC Goiás, 2009. JAYME, Jarbas. Esbôço histórico de Pirenópolis. 1. ed. póstuma. Goiânia: Imprensa da Uni-
versidade Federal de Goiás, 1971. 2 v.
CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. Os métodos da história. Rio de
Janeiro: Graal, 1983. JAYME, José Sisenando. Pirenópolis (humorismo e folclore). Goiânia: Secretaria de Cultura
do Estado de Goiás, 1983.
CARDOSO, João Paulo Seara. Reflexões sobre a vida e obra de António José da Silva, o
Judeu. Marionetas do Porto, Porto, [s. d.]. Disponível em: https://marionetasdoporto.pt/ LAMBERTINI, Michel’angelo. Portugal. In: ENCYCLOPÉDIE de la Musique et Dictionnaire
reflexoes-sobre-a-vida-e-obra-de-antonio-jose-da-silva-o-judeu/ Acesso: 17 jan. 2023. du Conservatoire. Paris: Libraire Delagrave, 1943.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e LEAL, Oscar. Viagem às terras goyanas (Brazil Central). Goiânia: UFG Editora, 1980. (Cole-
Terra, 1991. ção Documentos Goianos).

CHARTIER, Roger. O Dom Quixote de Antônio José da Silva, as marionetes do Bairro Alto LEAL, José da Silva Mendes. Comédia em cinco atos (1818-1886). Disponível em:
e as prisões da Inquisição. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 161- www3.fl.ul.pt/biblioteca/biblioteca_digital/publicacoes/th/html/titulos.html. Acesso
181, jun. 2012. 20.jun.2021

LIVROS de Artur Azevedo. Mensagens com Amor, [S. l.], [20--]. Disponível em: https://
www.mensagenscomamor.com/livros-de-artur-azevedo. Acesso em: 16 ago. 202

54 55
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

MAMMÌ, Lorenzo. Teatro em música no Brasil monárquico. In: JANCSÓ, I.; KANTOR, PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. A música em Goiás. Revista Cultura, Brasília, ano
I. (org.). Festa: cultura & sociabilidades na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec; quarto, v. 16, 1975.
Edusp; Fapesp; Imprensa Oficial, 2001, p.37-54.
PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. O Popular, Goiânia, 16 jun. 1979.
MACHADO, Júlio César. Índice de espectáculos recenseados por Júlio César Machado.
Diário de Notícias. Disponível em: www.fl.ul.pt/cet/1562-cesar-machado. Acesso em: 31 PINA JÚNIOR, Sebastião Pompêo de. Comédias Sebastião Pompêo de Pina Júnior. Goiânia:
jul. 2013. Oriente, 1979.

MENDONÇA, Belkiss S. Carneiro de. A música em Goiás. Goiânia: UFG Editora, 1981. PINTO, Marshal Gaoiso. Prefácio. In: PINA FILHO, Braz Wilson Pompeo de. O Cancioneiro
de Armênia. Goiânia: Agepel, 2004, p. 9-11.
MIRÓ António Luís (1815 - 1853). MIC.pt, [Lisboa], [20--]. Disponível em: http://
www.mic.pt/dispatcher?where=0&what=2&show=0&compositor_id=373&pessoa_ PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
id=4788&lang=PT&site=ic. Acesso em: 10 ago. 2022
SAINT-HILAIRE, August de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela Província de
NISKIER, Arnaldo. O sarcasmo em Antônio José da Silva, o Judeu. In: 300 Anos de An- Goyaz. São Paulo: Ed. Nacional, 1944.
tônio José Da Silva, O Judeu. Anais 300 Anos de Antônio José da Silva, o Judeu. Academia
Brasileira de Letras, 5 de maio de 2005. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, SILVA, António José da. Anfitrião: ou Júpiter e Alcmena. Braga: Edições Vercial; UMinho, 2013.
2005., p. 119-121.
SILVA, Geraldo Márcio da. Anfitrião ou Júpiter ou Alcmena: uma ópera portuguesa em
ORREY, Leslie. Opera: a concise history. Revised and updated edition by Rodney Milnes. Pirenópolis-GO. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) - Escola de
London: Thames and Hudson, 1987. Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2006.

PALACÍN, Luís; GARCIA, Ledonias Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em docu- SILVA, Daniel Marques. O Palhaço Negro que dançou a Chula para o Marechal de Ferro.
mentos. Goiânia: UFG Editora, 1994. Rio de Janeiro: UniRio, 2004.

PÁSCOA, Marcio Leonel Farias Reis. Guerras do Alecrim e Mangerona 1. ed. Lisboa: Coli- SOUSA, Filipe. Artigo. Diário de Notícias, Lisboa, 1986.
bri / CESEM-UNL, 2018.
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Paixões em cena: a semana santa na cidade de Goiás. Tese
PEREIRA, Paulo Roberto. Antônio José da Silva: seu percurso e o juízo da Academia. (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília,
In: 300 ANOS DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU. Anais do 300 ANOS DE ANTÔNIO Brasília, 2007.
JOSÉ DA SILVA, O JUDEU. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2005, p.131-
142, SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. A Era dos Barracões: uma abordagem histórico-social da
ópera em Pirenópolis no séc. XIX. Dissertação (Mestrado em Arte) - Escola de Música e
PEREIRA, Paulo Roberto. As comédias de Antônio José, o Judeu. São Paulo: Martins Edito- Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1998.
ra, 2007.
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; BUENO, Kleber Damaso. O grande governador da Ilha dos
PEREZ, José. Antônio José da Silva (O Judeo): óperas. Lisboa: Ed. Cultura, 1944. Tomo I. Lagartos: álbum de fotografias. Goiânia: Gráfica UFG, 2015.

PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. Memória musical de Goiânia. Goiânia: Ed. Kelps, SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônimo 1780-
2002. 1831. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

56 57
A “ópera” em Pirenópolis desde os oitocentos Ana Guiomar Rêgo Souza; Geraldo Márcio da Silva

SOUZA JUNIOR, Walter de. Entre o contemporâneo e o grotesco: Piolin e as comédias de


picadeiro encenadas entre 1933 e 1960. São Paulo SP: Universidade de São Paulo Escola
de Comunicações e Artes – RELATÓRIO CIENTÍFICO Bolsista de pós-doutorado, novem-
bro de 2012.

Jornais

DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, Theatro de S. Pedro de Alcantara. Rio de Janeiro, ano XXIV,
n. 6.825, 25 jan. 1845. Obras publicadas, p. 3. Disponível em: https://memoria.bn.br/do-
creader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pagfis=28401. Acesso em: 16 ago. 2023.

O MENSAGEIRO. As Pastorinhas. Pirenópolis, edição especial, p. 2, jun. 1976. Disponível


em: http://www.pirenopolis.tur.br/arquivo/OMensageiro.pdf. Acesso em: 16 ago. 2023.

O POPULAR, Goiânia, abr. 1979.

58 59
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas

Bandas em Goiânia:
uma abordagem a partir da
história e práticas formativas
Aurélio Nogueira de Sousa
Universidade do Estado da Bahia

60
2 como citar
SOUSA, Aurélio Nogueira de. Bandas em Goiânia: uma
abordagem a partir da história e práticas formativas. In:
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.).
Centro-Oeste. Vitória: Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Música, 2023. p. 60-82 (Histórias
das Músicas no Brasil).
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

1. Breve histórico das bandas no estado de Goiás Ainda assim, registros históricos trazidos por Tinhorão (1998: 179 apud
Segundo Ellmerich (1977: 77), o termo “banda” tem origem no latim bandum, que signi- VIEIRA, 2013: 91) apontam que as bandas da Guarda Nacional já existiam nos
fica “estandarte”. No entanto, no contexto brasileiro, várias definições, como “associação”, estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Goiás desde 1840, em
“grupo”, “filarmônica”, “corporação”, “lira” e “euterpe” estão associadas a esse termo. Em- consonância com Alencar (2010: 46) ao afirmar que as bandas de músicas já estavam
bora a banda seja entendida como um conjunto de instrumentos de metais e madeiras ativas na cidade de Goiás desde o século XIX. No estado de Goiás, o primeiro registro
(ELLMERICH, 1977: 77), foi somente após cerca de mil anos da era cristã que os músicos de banda é de Pirenópolis, de acordo com Mendonça (1981: 113), a primeira banda
que tocavam em contextos guerreiros, religiosos ou de entretenimento passaram a ser de música a surgir na cidade remonta a 1830, fundada pelo generoso cidadão
chamados de “banda de músicos”. Esse termo chegou aos dias atuais como “banda de Joaquim Alves de Oliveira. Concomitantemente, por meio de uma lei datada de 18
música” (BRUM, 1980: 9). Nessa mesma perspectiva, Reis (1962:9) menciona queas pri- de agosto de 1831, foi estabelecida a Guarda Nacional, sob a liderança do ministro
meiras manifestações de bandas remontam ao século XIV, quando emergiram grupos de da justiça, o padre Diogo Antônio Feijó. Esse movimento também se expandiu para a
músicos que se reuniam para embelezar celebrações ao ar livre em contextos palacia- antiga cidade de Meia Ponte (atual Pirenópolis), tendo o Comendador Joaquim Alves
nos. Compostas unicamente por instrumentos de sopro disponíveis naquela época, essas como pioneiro nessa empreitada. A banda preexistente, à qual, posteriormente, se deu
formações musicais se constituíam verdadeiros conjuntos (bandos) de executantes. o nome de “Banda Militar”, foi incorporada à Guarda Nacional.
Um elemento que desempenhou um papel importante no crescimento das bandas Outra cidade que se destacou como um local de expansão, nascimento, renas-
de música foi a criação de unidades especializadas dentro das estruturas militares, as cimento e divulgação das bandas no estado, foram á cidade de Goiás. Para
quais começaram a incorporar músicos em suas formações (REIS, 1962: 17). Esse fenô- Mendonça (1981: 82-83), no que diz respeito às bandas de música, são inúmeras as
meno surgiu da necessidade de instrumentos com projeção sonora adequada para man- que tiveram existência naquela localidade, sendo a mais antiga a Banda
ter o ritmo das tropas em atividades marciais, de forma que, durante os deslocamentos, Phil’harmonica, cuja fundação remonta a 1870. A Banda de Música da Guarda
a última companhia pudesse ser ouvida por todos. Nacional emergiu em 1880. Logo após, surgiu aquela que se tornaria amplamente
No Brasil, a atividade de grupos de instrumentos de sopro está documentada des- reconhecida, a Banda do Batalhão 20. A Banda da Polícia Militar, estabelecida em
de o século XVII, tendo como fontes de referência os charameleiros (organizadores na 1893, durante o governo de Francisco Januário da Gama Cerqueira, também ocupou
formação de ternos), nas irmandades religiosas e nas bandas com atividade nas fazendas um lugar proeminente nesse panorama musical.
de grandes proprietários rurais (ALVES DA SILVA apud SOUSA, 2020: 26). Nesse sentido, a Já em Goiânia, de onde advém esta pesquisa, as bandas foram documentadas em
disseminação de grupos de instrumentos de sopro idênticos – designados, hoje, “banda” 1942, dentro das festividades do batismo cultural da cidade, com a apresentação da
– deu-se, primeiramente, nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil e, posteriormente, em Banda da Polícia Militar, transferida da antiga para a nova capital de Goiás (PINA,
outras (SOUSA, 2020: 26). 2002 apud SOUSA, 2020: 27), que mantinha uma escola para os seus músicos-
No estudo Bandas de músicas militares: performance e cultura na Cidade de Goiás militares. Nessa ocasião, a Banda da Polícia Militar, proveniente de Goiás Velho (atual
(1822-1937), Joelson Pontes Vieira (2013) traçou uma análise histórica sobre as bandas no cidade de Goiás), apre-entou-se, marcando o início desse cenário musical na região
Brasil, em especial, na cidade de Goiás e no estado homônimo como um todo. Para o autor, (PINA, 2002 apud SOUSA, 2020: 27). Outrora, a criação de bandas dava-se por meio do
no início, as bandas brasileiras tinham forte ligação com os costumes europeus, como se mestre de banda, aquele que detinha a capacidade de tocar os instrumentos, fazer
vê em seus repertórios (VIEIRA, 2013:24). Além disso, as transições históricas pelas quais o arranjos, reger, administrar e ensinar os alunos.
Brasil passou desde a sua colonização também refletiram na história da música em Goiás. Após o batismo cultural, Goiânia tornou-se o novo centro para as bandas civis
Após a Marcha para o Oeste, no governo Getúlio Vargas, as bandas musicais passaram a e militares. Como descreve Alencar (2010: 47-48), o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de
vivenciar uma nova fase de expressão, engajando-se em uma variedade de atividades na Azevedo esteve presente na cidade para registrar manifestações do folclore local em
sociedade e incorporando tanto ideais políticos quanto elementos das manifestações mu- gravações, como parte de um projeto de arquivamento da música popular brasileira
sicais populares. Foram nesse período de transformação que as bandas de música desem- atual, associado à Cadeira de Folclore Nacional da Escola Nacional de Música da
penharam múltiplos papéis na cidade de Goiás, antiga capital do estado, tecendo diversas Universidade do Brasil, que abrigava o Centro de Pesquisas Folclóricas. Renato
narrativas que exploram as interações entre a música e a comunidade local. Dessa forma, Almeida, também renomado musicólogo, participou desses trabalhos em Goiânia.
elas captaram os anseios e as inquietações do povo em relação à mudança da capital para Além das gravações, filmagens foram realizadas pelo Instituto Nacional de Cinema
Goiânia, tornando-se um reflexo dessa transição (VIEIRA, 2013:31). Educativo e entrevistas com músicos foram realizadas (GOVERNO DE GOIÁS, 1983).
Os pesquisadores escreveram diversos artigos em periódicos nacionais com base

62 63
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

no que testemunharam e ouviram ali. No entanto, não mencionaram bandas em suas tocam instrumentos de sopro, cordas e percussão iniciaram sua formação em grupos
narrativas, pois estava mais focada nas questões do folclore, considerado, na época, a musicais escolares ou bandas cívicas e, mais tarde, já profissionalmente, atuam em
manifestação mais autêntica da musicalidade brasileira. bandas militares, bandas do Corpo de Bombeiros, orquestras da cidade, bandas de
É sabido que, em tempos passados, no século XIX, no Brasil, as bandas civis e as igrejas e organizações não governamentais.
escolares exerceram importante papel social e educacional na formação de músicos e É relevante salientar que esta pesquisa focalizou, especificamente, as
que, atualmente, continuam sendo centros de formação e preparação de jovens músicos bandas marciais da cidade de Goiânia. No que diz respeito aos procedimentos
para processos seletivos e concursos públicos no ingresso as diversas bandas militares metodológicos empregados, o presente estudo adotou uma série de etapas. Em
existentes no país. Na sociedade goianiense, as bandas têm incentivado a formação primeiro lugar, foi conduzida uma revisão de literatura, a fim de aprofundar o
musical de muitos alunos da educação básica, principalmente as bandas escolares, que conhecimento sobre o estado atual da temática em questão, assim como reconhecer
são marciais em sua maioria. o valor cultural e histórico dessas bandas no âmbito educacional. Em seguida,
Ao longo da minha atividade como músico, foi possível notar uma significativa procedeu-se ao levantamento e análise preliminar dos materiais didáticos utilizados
proporção de profissionais da área que deram início aos seus estudos musicais em ban- nas bandas marciais, abrangendo métodos de ensino coletivo para bandas e
das marciais de escolas de ensino fundamental. Algumas dessas bandas, como aquelas repertório. Além disso, foram meticulosamente exami-nadas as estratégias
vinculadas à Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) de Goiás e à Secretaria Municipal pedagógicas adotadas nas aulas coletivas, bem como os planos de ensino baseados
de Educação de Goiânia, desempenham um papel fundamental ao introduzir e moldar nos exercícios propostos pelos métodos de instrução musical. Em uma terceira etapa,
musicalmente os jovens. Elas dão oportunidade única e, talvez, decisiva na formação de foram conduzidas entrevistas com os professores e maestros das bandas marciais,
futuros professores de música. objetivando uma compreensão mais profunda de suas abordagens pedagógi-cas e
Assim, ao longo da história de Goiás, é possível observar que as bandas militares escolhas metodológicas.
foram pioneiras na construção, e no desenvolvimento do movimento bandístico no esta-
do. Desde sua fundação, no século XVIII, o histórico dessas bandas perpassa o contexto 2. Bandas escolares no Brasil
civil e militar estadual. Quando observado o contexto da cidade de Goiânia, fica visível A tradição das bandas escolares no Brasil é bem antiga; as primeiras são registradas
uma ampliação significativa das bandas escolares, principalmente a partir do início do em instituições religiosas nos estados do Sudeste como, por exemplo, Rio de Janeiro
século XXI. Isso ocorreu, especialmente, em função de haver muitas escolas de ensino e Minas Gerais. De acordo com Benedito (2005:37), a presença de bandas escolares
específico de música na capital. É possível dizer, então, que boa parte dos professores de música pode ser confirmada mesmo antes de 1894, com exemplos como o Colégio
de bandas escolares de Goiás teve sua formação profissional em instituições locais, Duval e, posteriormente, o Colégio Maciel. Além disso, o Ginásio Santo Antônio possuía
como, por exemplo, Instituto Federal de Goiás (Banda Sinfônica Nilo Peçanha), Instituto sua própria banda, composta por alunos sob a orientação do professor Augusto Mül-
Gustav Ritter, Centro de Educação Profissional em Artes Basileu França (antigo Veiga ler, sendo carinhosamente apelidada pelos estudantes do ginásio como “Furiosa”. Outra
Valle), Centro Livre de Artes e Universidade Federal de Goiás, e nas bandas escolares instância notável era a banda do Colégio São João, completando, assim, o conjunto de
das secretarias Municipal e Estadual de Educação de Goiás (SOUSA; PEREIRA, 2021:24). bandas colegiais em São João del´ Rei.
Além disso, é importante ressaltar que muitos instrumentistas da cidade de Goiânia Portanto, é notável que, no final do século XX, a banda escolar já realizava um
tiveram sua iniciação musical em bandas escolares, seguindo, posteriormente, a carreira grande papel histórico, social e formativo na sociedade com os jovens e adolescentes
de músico ou optando pela docência (SOUSA; PEREIRA, 2021: 24). Sabendo que as e que, em um passado recente e nas transformações da época, se tornaram grandes
ins-tituições públicas são centros de formação das bandas goianas, seja como curso professores e mestres de música. Ao longo da história do Brasil, as bandassofreram in-
técnico, seja como disciplina curricular ou optativa na escola de educação básica ou, fluência tanto da sociedade comoda formação musical de renomados profissionais da
ainda, nos cursos superiores em música de institutos e universidades locais, a maioria área de instrumentos de sopro e percussão. Para Nascimento (2003: 35), muitos músicos
desses centros formativos tem uma banda oficial ou disciplinas práticas que profissionais recebem alguma influência de banda de música em sua formação, e essa
contemplam os instrumen-tos de banda ou a realidade dos instrumentos que influência foi e é ocasionada, muitas vezes, pelo contexto social do grupo, que participa
compõem a banda. De acordo com Sêga (2010: 39), por princípio de colaboração, os de eventos sociais de naturezas diversas, como missas, procissões, festas, retretas, desfi-
indivíduos têm sido envolvidos em uma variedade de ações e práticas sociais, algumas les cívico-militares, eventos esportivos, entre outras, encantando o público.
vezes surgindo espontaneamente e outras sendo impostas pelas normas de cada Para além, Salles (1985) afirma que a primeira banda escolar do estado do Pará
sociedade. Por isso, como afirmam Sousa e Pereira (2021: 24), muitos dos músicos que data de 1839. Para o autor, trata-se da banda do Instituto Lauro Sodré, estabelecimento

64 65
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

profissionalizante de música que mantém o ensino e a prática instrumental visando à tanto no Brasil quanto no exterior, incluindo líderes nacionais destacados, como o compo-
formação humana e social dos educandos. Em contrapartida, Lima (2007: 40) afirma sitor Luciano Gallet (1893-1931), ex-diretor do Instituto Nacional de Música.
queas bandas escolares se desenvolveram separadamente no decorrer dos anos poste- Lima (2007), em seu trabalho sobre a Filarmônica 24 de Outubro de Cruzeta-RN
riores a 1960, e que elas se fragmentaram de forma espantosa na última década do sé- (uma banda que começou suas atividades no ano de 1986) e a Filarmônica Hermann
culo XX. Barbosa (2008: 67), por sua vez, ratificou esse pensamento ao afirmar que tanto Gmeiner (fundada em 1990) do Projeto Aldeias Infantis SOS, de Caicó-RN, ambas de Se-
a tradição quanto a inovação das bandas estão presentes em suas atividades internas e ridó, sertão rio-grandense-do-norte, destacoua relação singular entre os integrantes da
externas. De acordo com o autor, as externas perpassam o âmbito religioso, social, artís- banda escolar e os professores, que decorre de uma formação partilhada, uma vez que o
tico, político, civil e militar e, no ambiente interno, dirige-seàformação instrumental, na trabalho realizado aposta no desenvolvimento do indivíduo como um ser complexo, não
escola e performance do repertório; ao ensino; e às práticas de vestimentas, marchas e reduzido apenas ao aprendizado de um instrumento musical, mas sim inserido em um
coreografias junto aos membros da corporação. processo educacional capaz de facilitar o desvelamento de si, do outro e da sociedade.
Diante de toda a trajetória histórica e evolução das bandas no Brasil, surge um Corroborando Lima (2006), Monte e Montenegro (2011) perceberam que a banda,
marco significativo em 1976, com a inauguração do pioneiro projeto de abrangência e ou fanfarra escolar, contribui para a melhoria da qualidade da formação sociocultural
gestão federal no país. Lemos (2010) aborda, em seu artigo, que a Fundação Nacional dos alunos que dela fazem parte. Eles observaram que os alunos integrantes da banda
de Artes (Funarte), através de seu Instituto Nacional de Música, lançou o Projeto Bandas de fanfarra da escola Amaury de Medeiros, instituída em 1 de outubro de 2008 pelo
de Música, idealizadoe organizado para conhecer a realidade das bandas de música Projeto Mais Educação, da rede estadual de educação do estado de Pernambuco, atri-
civil no país e ajudar a identificar suas dificuldades e seus problemas, com propósito buem alto valor a essa atividade artístico-musical, já que muitos deles se tornam músi-
de as apoiar nessas demandas. Dessa maneira, o projeto tem como objetivo principal cos profissionais e, os que não se profissionalizam, mantêm contato com a arte em sua
o registro das bandas civis em território brasileiro, a oferta de cursos de capacitação, a vida em geral. Além disso, os autores defendem que a banda escolar realiza a formação
doação de instrumentos, a realização de competições e a organização de Painéis Funar- interpessoal entre os seus componentes, o que mostra que, além do fazer musical, essa
te de formação em colaboração com entidades estatais, municipais e privadas em todo prática contribui efetivamente para a formação sociocultural de seus participantes.
o território nacional. Alves da Silva (2009) relatou, como objetivos de seu trabalho, a atuação de mes-
A conexão entre as bandas e as comunidades permaneceu intacta ao longo de vá- tres de bandas escolares e a avaliação do desenvolvimento musical de alunos; propôs
rias décadas. De acordo com o estudo de Holanda (2002), a banda do Centro Educacio- também metodologias de ensaio para essas bandas. O autor analisou três formas de se
nal Juventude Padre João Piamarta, fundada em 1973, investigada pelo autor, tem por relacionar com a música: apreciação musical (questionário e entrevista confirmatória
missão formar músicos e cidadãos, em um contexto socioeconômico e cultural específi- semiestruturada); composição (composição e improvisação) e performance (estudo pre-
co da cidade de Fortaleza-CE. Sua missão é a formação humana através da atividade de parado e estudo à primeira vista). A pesquisa foi realizada em quatro bandas de música
banda escolar, que inclui concertos, desfiles e turnês no Brasil e na Europa. A pesquisa escolares que desempenharamas três formas mencionadas pelo autor, todas doestado
evidencia um considerável número de ex-participantes da banda que seguem carreiras do Rio de Janeiro. O trabalho foi realizado sob a ótica da Teoria Espiral de Desenvolvi-
musicais profissionais tanto no Brasil quanto no exterior. mento Musical (SWANWICK, 2003).
No mesmo sentido, Higino (2006) apresentou a Banda Sinfônica do Colégio Sale- Assim, é evidente a importância do trabalho de educação musical, através da ban-
siano Santa Rosa, da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Trata-se de uma banda fundada da escolar de música, na formação humana do aluno inserido no ambiente escolar em
em 1888, de reconhecido prestígio no meio musical brasileiro, com premiações em con- várias localidades do país, como também apontou Almeida (2016) em seu estudo sobre
cursos nacionais e europeus. Em seu trabalho, a pesquisadoracitou o fundador da ordem a Banda do Colégio Militar do Corpo de Bombeiros do Ceará. No espectro do determi-
Salesiana de Dom Bosco, São João Bosco: “Uma escola sem música é um corpo sem alma” nismo recíproco, seu trabalho identificou que o ambiente da banda de música pode
(HIGINO, 2006, epígrafe). De acordo com o fundador (HIGINO, 2006: 14), a alegria desem- proporcionar a construção da aprendizagem social, pois é capaz de despertar nas pes-
penha um papel fundamental na educação, o que explica por que as bandas das escolas soas envolvidas novos conhecimentos não só musicais, mas também do outro, da au-
salesianas têm sido pioneiras nas celebrações cívicas, contagiando a plateia com marchas todisciplina, da capacidade de refletir, de questionar, de criticar e, ao mesmo tempo, de
e hinos patrióticos, liderando desfiles escolares e imprimindo seu ritmo, transmitindo, fortalecer sua capacidade ante os desafios (ALMEIDA, 2016: 13). A partir desse aprendi-
através da música, o espírito de comunidade. Higino (2006: 48) também compilou uma zado, o participante, espontaneamente, vai-se percebendo e estimulando a realizar suas
lista de ex-integrantes da banda que seguiram carreiras profissionais na área da música, tarefas dentro do contexto escolar. Considerando as observações da autora, quando tais

66 67
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

estímulos são analisados de uma perspectiva externa, nota-se que impactam a maneira em concursos, competições e desfiles faz com que as bandas nem sempre consigam
como os indivíduos passam a se envolver em situações que requerem soluções ou res- desenvolver “um ensino de música sistemático e, muitas vezes, os aspectos como mu-
postas imediatas. Em outras palavras, a educação musical tem um efeito benéfico sobre sicalidade e expressão não chegam a serem desenvolvidos consistentemente, devido à
o comportamento individual no que se refere à prática da comunicação e da interação ênfase nos ensaios de repertório, necessários para manter as várias apresentações”.
entre as pessoas. Como prática diária, no ambiente da banda, constrói-se um bom rela- É importante ressaltar que, até recentemente, as bandas de música eram uma das
cionamento entre todos, e todos se envolvem no debate relativo à conscientização dos formas mais populares de acesso à cultura musical em nosso país. Com a inclusão da mú-
aspectos diários da sociedade e do contexto em que vivem (ALMEIDA, 2016: 14). sica na educação básica no Brasil, conforme estabelecido na Lei nº 11.769/2008, houve
Silva e Wolffenbüttel (2018), em sua narrativa de experiência, destacaram a im- um aumento na consolidação de grupos musicais nas escolas brasileiras, especialmente
portância das bandas marciais como o primeiro contato de muitos estudantes de esco- nos estados do Centro-Oeste e em algumas áreas do Sul. Embora haja progresso em ou-
las públicas com a música. Levando em consideração as dimensões históricas e sociais, tras regiões, este não foi tão significativo como nas mencionadas anteriormente. Com isso,
elas frequentemente representam o ponto de partida musical para estudantes, especial- concursos públicos, cursos de formação e aperfeiçoamento foram realizados Brasil afora.
mente aqueles de escolas públicas na cidade de Montenegro, localizada no estado do Ao mesmo tempo, intensificou-se o fomento de pesquisas nesse âmbito, mas, infelizmen-
Rio Grande do Sul. Nessas bandas, os alunos têm a oportunidade de iniciar sua jornada te, com a reforma do ensino médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Lei nº
musical por meio de instrumentos de sopro e percussão, o que os expõe a uma am- 11.769/2008 não está vigorando atualmente (SOUSA, 2020: 1 e 56-60).
pla gama de sons, timbres e configurações sonoras diversas (SILVA; WOLFFENBÜTTEL,
2018: 7). Essa experiência permite que os alunos comecem a distinguir entre sons gra- 3. Bandas marciais em Goiânia e seus processos de ensino-apren-
ves e agudos, desenvolvam suas habilidades rítmicas e se envolvam em um contexto dizado
pedagógico-musical que oferece variadas possibilidades de criação. Além disso, eles po- Visto que, ao longo da minha atividade como músico, pude observar um percentual
dem relacionar esses aspectos musicais com seu ambiente e cotidiano. As bandas mar- elevado de profissionais da música que principiaram seus estudos em bandas marciais
ciais e escolares, por meio do ensino da música, oferecem uma relevância pedagógica escolares de nível fundamental, é possível, então, afirmar que as bandas têm incentiva-
que abrange diversos aspectos da educação musical, incluindo a exploração de timbres do a formação musical de muitos alunos da educação básica, principalmente as bandas
e valores, contribuindo para a formação integral do indivíduo, mesmo quando não estão escolares, que são marciais, em sua maioria. Algumas delas, como as que fazem parte da
formalmente incorporadas ao currículo obrigatório. SEDUC de Goiás e da Secretaria Municipal de Educação de Goiânia, desempenham um
Lorenzete Tozzo (2009), por sua vez, relataram a atividade musical realizada nas papel crucial na introdução e no aprimoramento musical de jovens. Elas oferecem uma
bandas escolares da cidade de Chapecó, interior de Santa Catarina, no Sul do Brasil, oportunidade singular e possivelmente determinante na preparação de futuros educa-
que, na ótica das autoras, tem como propósito resgatar valores culturais, respeito, amor dores musicais (SOUSA, 2020: 28).
à pátria e formação moral. A participação em uma banda escolar viabiliza o aprimora- No estado de Goiás, desde 1999, tem sido desenvolvido e sistematizado o ensino
mento e a consolidação do pensamento lógico-matemático, a apuração do senso esté- de bandas por meio do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, departamento
tico, o aprimoramento da percepção auditiva e espacial, bem como o desenvolvimento da Secretaria de Estado, Educação, Esporte e Cultura de Goiás, que é responsável pela
da coordenação motora e da criatividade, especialmente em crianças e adolescentes. formação, capacitação e gerenciamento dos professores de artes do estado (SOUSA,
Também para essas autoras, as bandas escolares de música têm incentivado a formação 2020:30). Esse departamento é um órgão pioneiro que tem protagonizado a constru-
de um grande quantitativo de instrumentistas de metais, madeiras e percussão para o ção do ensino de música nas escolas estaduais, principalmente por priorizar grupos de
mundo da música profissional. estudos, grupos de produções artísticas, coros e bandas para a promoção de formação,
Campos (2008), em seu artigo, trouxe um novo assunto na análise que fez das recitais e concertos didáticos para escolas, professores, gestores e alunos.
bandas no Centro-Oeste do Brasil. Essas entidades podem desempenhar um papel edu- Em 2006, 2009 e 2010, foram realizados três concursos públicos pela SEDUC de
cacional, como é o caso das bandas e fanfarras escolares, que se estabelecem como Goiás, sendo que o primeiro foi com vagas específicas para professor de banda, e os dois
locais relevantes para a experiência e capacitação musical, sendo consideravelmente últimos para professor de música e professores de artes em geral. Sem dúvidas, esses
moldadas pelas características das bandas militares no que diz respeito à disciplina e concursos deram motivação e valorização à profissão de professor de banda, sendo que,
estrutura, e pelas bandas municipais, no que concerne às performances cívicas e compe- hoje, há aproximadamente vinte professores efetivos de bandas, e aqueles que não são
tições de que participam. No entanto, para Penna et al. (2016: 46), esse ensino focado concursados têm sua função como professores temporários de banda nessas escolas.

68 69
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

Como já destacado, é evidente que, na cidade de Goiânia, onde a pesquisa foi rea- têm formação superior em música, sendo raros os que são formados em outra área. A
lizada, a influência das bandas marciais tem estimulado a formação musical de diversos formação de professores de música necessita abarcar conhecimentos relacionados não
estudantes. São observados casos em que alunos, após vários anos de estudo, retor- somente aocampo prático, mas também aodesenvolvimento pedagógico-musical, uma
nam como instrutores na mesma instituição onde iniciaram suas jornadas musicais. Em vez que as bandas se encontram no contexto escolar, local de grande fomento e empre-
suma, a notável presença de bandas marciais em Goiânia tem contribuído de maneira gabilidade para os professores de música (SOUSA; PEREIRA, 2021: 30-32).
sólida e substancial para nutrir um mercado de emprego promissor, o que No Centro-Oeste do Brasil, especificamente em Goiânia, estas estão configuradas
concorda com Alves (2003: 53), quando afirma que “Em Goiânia, as bandas marciais na seguinte divisão de nomenclaturas: banda marcial, banda de música de marcha, ban-
são parte da atividade musical de instrumentos de sopros de escolas regulares, e da de música de concerto, fanfarra simples, banda de percussão melódica e banda de
corporações como bombeiros e polícia militar; tornam-se a porta de entrada dos percussão rudimentar. Particularmentenessa cidade, a maioria são bandas marciais, de-
músicos iniciados nessas escolas para o trabalho”. vido ao baixo custo de manutenção, condizente à realidade de manutenção por partes
Seguindo essa linha de pensamento, Nascimento (2003: 35) identificou que as dos gestores escolares.
bandas escolares desempenham um papel significativo na formação profissional dos As composições originais são um pouco escassas, pois os compositores dedicam-
músicos em todas as áreas de atuação. No entanto, apesar desses benefícios, é necessá- -nas para banda de música, banda sinfônica e orquestra de sopros. Usa-se, geralmente,
rio um suporte educacional adicional nas instituições de ensino formal de música para uniformes bem-decorados, dando grande importância aos adereços, quepes, sapatos,
complementar a formação dos professores. Segundo o autor, embora as bandas escola- bandeiras e estandartes. As bandasdisputam o melhor uniforme, ou mais novo, aquele
res contribuam para a formação de músicos profissionais, elas não são suficientes para com o melhor detalhe de cores e o mais caro. Outro fator preponderante é que todas
abranger integralmente a educação musical do indivíduo. Dessa forma, é perceptível contam com Pavilhão Nacional, corpo coreográfico, balizas e mor, o que constitui a cha-
que, em certos casos, os professores das bandas introduzem os alunos aos instrumentos mada “linha de frente” que, geralmente, é integrada por mulheres. Digamos que o naipe
utilizando, principalmente, conhecimentos empíricos, ou seja, não há uma abordagem da banda é responsável por toda sua parte coreográfica e éocupado por professores com
metodológica sistemática para as aulas. formação em música, educação física ou dança. No entanto, há pouco material biblio-
Além disso, outra questão importante que dificulta o processo educacional é a gráfico e técnico sobre a linha de frente (SOUSA, 2020: 29). Segundo Corrêa (2017:
falta de materiais didáticos específicos para bandas marciais. Isso demonstra a relativa 160):
falta de preparo desses docentes, situação agravada pelas falhas formativas. Isso confir- é oportuno problematizar a concepção do que venha a ser esse seg-
ma a constatação de Sousa e Ray (2007), que explicaram que “em locais onde o ensino mento [linha de frente], pressupondo que a sua gênese se localiza nas
diversas manifestações de cunho popular devido aos elementos que
de música conta com profissionais qualificados, não só métodos são adotados como a caracterizam, que sejam em ritos religiosos, profanos ou militares;
também apostilas são criadas pelos professores para atender a necessidade específica assim, acredita-se que a constituição das LF, “[..] vem desde os tempos
de grupos de estudantes de cada localidade”. Nesse contexto, as pesquisas relacionadas mais remotos da história, baseada nas alas frontais das tropas de guer-
ao ensino coletivo de música buscam apresentar propostas metodológicas que susten- ra e das guardas reais, que traziam a frente os brasões, escudos, flâmu-
las, bandeiras e bandeirolas para identificação das mesmas”.
tem e aprimorem o trabalho realizado nas bandas estudantis.
O quadro acima apresenta indícios da origem das LF, e ao rastrear as
Além dessa dificuldade com os materiais e usos de metodologias para as bandas, suas adaptações, compreende-se “[..] como Linha de Frente de Bandas
observamos, ainda, que a formação dos professores que nelas trabalham vem passando e Fanfarras, todos os portadores de: bandeiras, flâmulas, bandeirolas,
por várias transformações. Assim, em pesquisa realizada entre os anos de 2011 e mea- estandartes, guarda honra, baliza, mor, corpo coreográfico etc. Isto é, o
dos de 2015, ficou perceptível que as expectativas para o futuro do gestor e professor conjunto dos componentes que vem à frente do Conjunto Musical com-
põe a LF.” Todavia ele não deveria possuir um contingente maior que o
de banda em Goiânia estão depositadas nas bandas marciais, nas quais cerca de 90% Conjunto Musical. Apoderando-se desse discurso, percebe-se claramen-
dos professores começam a estudar. Sendo que cerca de 90% atuam como professores te o desejo de legitimação dos aspectos militares e a naturalização de
nessas bandas e 95% também atuam como instrumentistas frente às bandas populares um movimento cultural completo.
ou orquestras. Verifica-se, também, que a grande maioria dos docentes não possui for-
mação adequada, sendo que 60% não teve formação pedagógica de nível superior ou Goiânia, cidade próxima a Brasília, capital do país, contabiliza 22 bandas escolares
de gestão escolar. Assim, o investimento na formação de docentes faz-se indispensável na rede estadual, sendo que cinco são colégios militares; dentre os demais, seis são
e urgente, visto que apenas cerca de 40% dos professores atuantes na gestão de bandas escolas em período integral e 11 são em período parcial. As bandas variam conforme

70 71
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

o modelo de instituição, e as seis bandas escolares que estão inseridas em escolas de que se referiam aos anos de 2009, 2010 e 2016 foram para professores de artes de sua
tempo integral atendem cada uma, a, aproximadamente, 200 alunos, cada qual com de respectiva formação, como exemplo: 50 vagas para professor de música; 50 vagas para
quatro a sete professores de música, além dos professores da comissão de frente. professor de artes cênicas; 50 vagas para professor de artes visuais; e 50 vagas para
A atividade de banda faz parte do currículo da escola, sendo uma disciplina op- professor de dança.
tativa curricular que ocorre quatro vezes por semana. Nas escolas de tempo parcial e Todos os concursos públicos, de 2017 até hoje, foram feitos a partir das normativas
militares, a banda está inserida nos projetos de extensão, e as aulas acontecem nos in- da BNCC. Posto isso, oportunidades para professores de artes foram abertas, isto é, nove
tervalos de troca de turno, no horário do almoço e no final da tarde. As bandas vagas para professores com formação em artes cênicas, música, artes visuais e dança. Em
escolares de Goiânia têm entre cinco e oito professores de música, sendo Goiás um 2022, um concurso público disponibilizou 54 vagas para artes-teatro; 53 para professor
dos estados pioneiros da União a sistematizar um professor específico para cada de artes-dança; 54 para professor de artes-música; e 54 vagas para professor de artes-
instrumento da banda. Nas escolas que adotam o regime integral e nas instituições -artes visuais. Logo, foram consideradas vagas para a grande área de artes, e não para o
militares, é comum contar com uma equipe de até oito professores dedicados à componente de cada área de formação. Esses eventos avançaram sobre os professores de
banda. Em determinadas situações, devido ao número de alunos, pode haver até dois artes regentes de sala de aula. A realidade do professor de banda marcial também ficou
professores de trompete e/ou dois professores responsáveis pela linha de frente complicada, já que não há vagas para professores de banda em concurso público. Também
(SOUSA, 2020: 30). foram reduzidos a carga horária de trabalho nas escolas e o número de professores nas
bandas marciais das escolas estaduais e municipais da grande região metropolitana.
4. BNCC e novo ensino médio: impactos no ensino das bandas esco-
lares 5. História do ensino coletivo em banda no Brasil
A partir de 2016, após o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a edu- Na atualidade, à medida que novos cursos de licenciatura em Música estão sendo es-
cação pública passou por transformações significativas. No período pós-2016, a escola tabelecidos em diversas regiões do Brasil, incluindo Goiás, a incorporação e a estrutu-
pública foi alvo de diversas opiniões, teorias e abordagens que, muitas vezes, não es- ração do ensino coletivo consolidam-se como parte integral das atividades regulares
tavam alinhadas com o propósito fundamental da educação transformadora. Uma das de ensino e pesquisa nesses cursos. Além disso, o aumento do enfoque na pesquisa
primeiras medidas que teve um impacto substancial no ensino de bandas no ambiente científica durante a graduação e os programas institucionais de apoio à pesquisa têm
escolar, assim como nas bandas vinculadas às prefeituras municipais em todo o estado, proporcionado oportunidades para a realização de estudos com apoio financeiro. Como
foi a revogação da Lei nº 11.769/2008, que estabelecia a obrigatoriedade do ensino de resultado, pesquisas que se propõem a analisar a aplicabilidade do Ensino Coletivo de
música nas escolas brasileiras. Instrumentos Musicais (ECIM), concentrando-se em entender e explorar os procedimen-
Essa mudança foi seguida por um impacto mais amplo no ensino das artes como tos delineados nos métodos coletivos, têm ganhado destaque. Outro fator relevante é
um todo, devido à reformulação do currículo a partir da BNCC, bem como pela imple- o crescimento do número de referências bibliográficas relacionadas a esse tema, origi-
mentação da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que trata da reforma do ensino nadas em grupos de pesquisa e de trabalhos em níveis de graduação e pós-graduação,
médio. Essas medidas tiveram um impacto notável no cenário educacional, contribuindo, assim, para o avanço das investigações.
influencian-do o modo como a música e as artes eram abordadas no contexto escolar. Apesar dessa observação, em uma publicação datada de 1970, Bennett Reimer
Com isso, as reduções foram significativas, tais como: editas, via Ministério da Cultura expôs que as bandas estudantis eram associadas ao entretenimento e, por consequên-
e Funarte, em apoio às bandas de músicas e bandas escolares; quantidade de bandas cia, não eram consideradas um campo sério de estudo, já que suas atividades não eram
em todo o esta-do; abertura de concursos públicos específicos para professores de consideradas relevantes para a educação musical (REIMER, 1970: 23). Por outro lado,
banda; número de aulas de artes no currículo escolar; e contratação de professores Reily e Brucher (2013: 23) sustentam que, nos tempos atuais, as bandas são percebidas
temporários tanto na sala de aula como nos projetos extracurriculares. de maneira mais precisa como forças responsáveis pela preservação da tradição.
Entretanto, após todos os desdobramentos da reforma para o novo ensino mé- Ao considerar a fusão entre tradição e campo de estudo, é evidente que, no con-
dio técnico e da aplicação da BNCC em todas as fases da educação básica em escolas texto brasileiro, as investigações relacionadas às bandas de música têm experimentado
estaduais e municipais, saímos de uma realidade do espaço escolar em que tínhamos um crescimento gradual. Kandler e Figueiredo (2010: 498) destacam que, na última
o professor de artes regente, o professor de música regente e dois professores de ban- década, mais de 40% das teses e dissertações sobre as bandas de músicas abordam os
das escolares para somente um professor de artes em muitas realidades. Esse impacto processos de ensino e aprendizagem de instrumentos em bandas. Conforme apontam
chegou, também, nos últimos concursos públicos do estado de Goiás, já que os editais

72 73
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

esses pesquisadores, a maior concentração de estudos nesse tema se encontra nas regi- SA, 2020: 26), a instrução dos instrumentos de banda era conduzida pelo maestro, visan-
ões Sudeste e Sul, seguidas por Centro-Oeste e Nordeste. do à integração rápida do aluno na própria formação musical. Esse modelo, oriundo em
Na região Sudeste, pesquisas como as de Sulpicio e Sulpicio (2011) e Rodrigues terras lusitanas, foi aqui adotado desde os tempos coloniais e mantém sua influência
(2009) focalizaram os desafios relacionados à insuficiente formação musical dos profes- até os dias atuais na capacitação dos músicos instrumentistas, sobretudo nos estados
sores de bandas, à carência de materiais específicos para o ensino musical em bandas do Norte, Nordeste e Sudeste brasileiros. Essa prática não é uma escolha deliberada,
e à escassez de cursos acadêmicos de música voltados para a capacitação de regentes mas, sim, uma herança da tradição europeia que se consolidou e resulta da escassez de
de bandas. Esses elementos agravam o processo educativo, que impacta diretamente profissionais qualificados para atender às numerosas bandas presentes no Brasil. Diante
a preparação e a apresentação das bandas em concertos, festivais e competições mu- dessa realidade, o ensino por naipe emerge, uma vez que, em muitos estados, o maestro
sicais em todo o país. No estado de Santa Catarina, localizado na região Sul, dentre os da banda assume a responsabilidade de designar os instrumentistas mais experientes
distintos métodos de instrução instrumental em bandas, um pouco mais de 45% optam de cada naipe para auxiliar no processo de ensino instrumental da banda.
pelo ensino coletivo, enquanto cerca, de 55% adotam a abordagem de ensino individual No Brasil, conservatórios, escolas, organizações não governamentais (ONGs) e ini-
(KANDLER; FIGUEIREDO, 2010: 498). ciativas de extensão universitária adotam a abordagem do ensino coletivo (seja homo-
Na região Centro-Oeste, estudiosos como Campos (2008) e Sousa (2015) destaca- gêneo, seja heterogêneo) em suas bandas. Essa metodologia, presente nessas institui-
ram que o ensino coletivo é amplamente adotado, seja com a banda completa (aborda- ções, não apenas inspira e engaja os alunos, mas também promove uma abordagem
gem heterogênea), seja com grupos de instrumentos de metais (abordagem homogê- de estudo colaborativa (TOURINHO, 2014 apud SOUSA, 2020: 52). Além do estímulo
nea). Segundo esses pesquisadores, essa tendência ocorre devido à faltade professores proporcionado, o aprendizado conjunto exerce um papel significativo na transformação
para cada instrumento ou em virtude da promoção da inclusão social, na qual alunos social e na preparação de indivíduos para uma sociedade mais aprimorada. Tal transfor-
novatos e experientes aprendem juntos. Na região Norte, também se evidencia a pre- mação tem raízes, no Brasil, desde os primórdios das primeiras bandas de escravizados,
dominância do ensino coletivo, abrangendo cerca de, 95% das bandas como apontado mesmo durante o período colonial.
por (AMORIM, 2014 apud SOUSA, 2015: 17). Já na região Nordeste, além de sernotável A abordagem do ensino coletivo musical envolve a realização de aulas simultâ-
a predominância do ensino coletivo, observa-se que a reflexão sobre a experiência nas neas para múltiplos alunos. Essas aulas podem ser conduzidas de forma homogênea
bandas de música tem relevância em todas as áreas de atuação profissional dos músicos ou heterogênea. No formato homogêneo, um mesmo instrumento é ensinado para o
(NASCIMENTO, 2006: 95). grupo, enquanto no formato heterogêneo, diversos instrumentos diferentes são
A origem da primeira tentativa de estabelecer um método coletivo de ensino mu- abor-dados dentro do mesmo grupo (ALVES, 2011 apud SOUSA, 2020: 52). Essas aulas
sical no Brasil é frequentemente associada a Heitor Villa-Lobos, durante a década de podem ser estruturadas de maneira multidisciplinar, abarcando, além da prática
1930, no período do governo Vargas. Nesse contexto, o canto orfeônico foi introduzido instrumental, outros conhecimentos musicais, como teoria, percepção auditiva,
como uma proposta para a inclusão do ensino musical nas escolas. Ao longo do tempo, história da música, improvisação, composição e outros aspectos acadêmicos.
outros educadores também se destacaram na área da educação musical coletiva. Cru- O método intitulado Tocar Junto – Ensino Coletivo de Banda Marcial, destinado
vinel (2003) defende, em sua investigação, que a abordagem de ensino coletivo de ins- ao nível inicial, e publicado por Alves e Cruvinel (2014), trouxe uma nova perspectiva
trumentos desempenha um papel essencial na promoção da socialização no contexto ao ser adotado pelas bandas escolares do estado de Goiás. Isso não apenas expandiu
da educação musical, contribuindo para democratizar o acesso à formação musical para as possibilidades práticas, mas também suscitou a criação de pesquisas que investigam
a população em geral. Apesar disso, a adoção dessa abordagem no cenário educacional a sua eficácia no âmbito da educação básica, abrangendo tanto o ensino fundamen-
brasileiro ainda é limitada. Muitas instituições de ensino musical seguem o modelo tal quanto o médio. É relevante ressaltar que esse método foi desenvolvido com base
tradicional de conservatório como estrutura educativa predominante. Nesse modelo, em preceitos já utilizados em todo o território nacional, nomeadamente os métodos
o desenvolvimento das bandas era liderado por um mestre com habilidade para tocar Da Capo (2004) e Da Capo Criatividade (2010), propostos por Joel Barbosa, docente da
todos os instrumentos, incumbido de instruir cada músico. Essa prática era especial- Universidade Federal da Bahia. Essas duas abordagens têm representado contribuições
mente comum devido à presença de apenas um profissional na maioria das bandas para significativas no contexto do ensino coletivo de bandas no Brasil.
ministrar as lições. Em contrapartida, o método Da Capo foi concebido tendo em mente um conjunto
É possível perceber, igualmente, que esse formato de ensino prevalece em outras mais amplo, ou seja, a banda musical, que engloba uma variedade de instrumentos de
nações, como em Portugal, por exemplo. Conforme apontado por Mota (2009 apud SOU- sopro, incluindo naipes de metais, percussão e madeiras. Nessa realidade, o método

74 75
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

supriu as necessidades da iniciação musical na formação instrumental de sopro. No en- Conclusões


tanto, no contexto da banda marcial, cuja formação é composta apenas por instrumen- Com os métodos de ensino coletivo em vigor e toda a estrutura que as bandas escolares
tos de metais e percussão, essemétodo apresenta algumas realidades técnicas que não goianienses conquistaram, a pesquisa teve como propósito a averiguação dosmétodos
correspondemà realidade, sendo necessárias algumas adaptações para tal formação no utilizados e seus desdobramentos nas diversas realidades em que essas bandas estão
que se diz respeito aos repertórios do método. situadas. A investigação detectou diversas divergências no que se refere ao ensino-
Diante disso, o presente capítulo, que é parte do que se iniciou em 2017 e teve tér- -aprendizado, principalmente no pouco conhecimento da temática sobre o ensino co-
mino no final de 2021, tem como objetivo apresentar a investigação do contexto histó- letivo, o pouco interesse em se realizar cursos de reciclagem e formação continuadae
rico das bandas marciais em Goiânia, bem como suas práticas formativas, nos processos pouco material específico para as bandas marciais escolares, uma vez que a grande
de ensino coletivo no contexto das escolasemtempo integral, parcial e militar da cidade, maioria da literatura é adaptada ou oriunda das bandas de música compostas por ins-
por meio de revisão bibliográfica, pesquisa de campo e análise de material didático, com trumentos de madeiras, metais e percussão.
as devidas metodologias empregadas em sua aplicação. A proposição de um método de ensino coletivo para banda marcial pode ser vá-
Dessa forma, a banda, que integra outras expressões artísticas da escola, assume lida no intuito de trazer contribuições que fundamentam e aprimoram o trabalho das
o papel de disciplina em escolas de período integral, seguindo um cronograma que atividades e práticas musicais. O estudo investigou a relevância dos recursos didáticos
inclui horários, reuniões de planejamento, registros diários e avaliações quinzenais. No e as variadas abordagens educacionais empregadas nas bandas marciais de Goiânia no
contexto brasileiro, as investigações que se propõem a avaliar a viabilidade do ECIM contexto do ensino coletivo de música.
buscam compreender a eficácia das abordagens sugeridas pelos métodos coletivos. Es- Na investigação, foram identificados diversos desafios relacionados ao ensino e
sas pesquisas apontam para a escassez de literatura especializada no ensino de ban- aprendizado no contexto amplo da pedagogia musical coletiva. Esses desafios abran-
das, destacando também a carência de métodos brasileiros que facilitem o processo de gem questões como a escassez de compreensão sobre o ensino coletivo de instrumen-
aprendizado em ambientes escolares que adotam o ensino coletivo de instrumentos tos musicais, a falta de preparo e informação acerca dos recursos didáticos para ensino
musicais. coletivo, resistência por parte de muitos professores de bandas marciais em relação ao
Em uma análise preliminar, é evidente a falta de um consenso claro em relação à método coletivo, limitada disponibilidade de cursos de formação e atualização sobre
abordagem metodológica para o ensino coletivo em bandas marciais entre os profes- ensino coletivo de instrumentos musicais, carência de material didático voltado para
sores e maestros. O presente estudo procurou, portanto, estabelecer novos horizontes o ensino coletivo de bandas marciais e presença de profissionais que não estão plena-
de informações específicas no campo da atuação musical, para a realidade de ensino mente familiarizados com a metodologia coletiva de instrução musical.
aprendizado em bandas marciais (metais e percussão). Com essa iniciativa, almejava-se Embora o estado de Goiás tenha sido pioneiro na incorporação da disciplina de
fornecer respostas para as indagações que ainda perduram entre instrutores, professo- música ao currículo das escolas de período integral e tenha estabelecido a banda mar-
res e maestros de bandas no que diz respeito ao ensino coletivo de música. cial como uma subárea dessa disciplina, apenas seis escolas atualmente mantêm uma
Nesse contexto, a ausência de uma metodologia de ensino e prática pedagógica banda marcial. De fato, inúmeros desafios têm sido enfrentados na administração, orga-
sistematizada, bem como a faltade material abordando o ensino musical coletivo no nização e integração dessa disciplina, o que reflete a relutância por parte dos gestores
Brasil, juntamente com sua limitada disponibilidade ao público, foram os elementos que e diretores das instituições escolares. Essa resistência é decorrente da reticência em
motivaram a escolha deste tema para a pesquisa em questão. No cenário atual, ao reali- assumir todas as obrigações e custos que acompanham o desenvolvimento adequado
zar levantamentos bibliográficos em todo o país, nota-se a presença de apenas um mé- de uma banda marcial.
todo específico para bandas marciais: o método Tocar Junto – Ensino Coletivo de Banda Um elemento que incita consideráveis discussões sobre a administração por parte
Marcial, voltado para o nível de iniciação, publicado e adotado nas bandas escolares dos professores de bandas diz respeito ao cumprimento das cargas horárias, ao desen-
de Goiás. Embora seja necessária uma adaptação para que se adequem à realidade de volvimento do planejamento escolar, à elaboração de avaliações semestrais e à intera-
uma banda marcial, os métodos propostos por Joel Barbosa, já citados, se destacam por ção com o grupo gestor e a comunidade local. Isso apresenta um significativo desafio
serem métodos brasileiros desenvolvidos para bandas marciais. Diante desse cenário, para os docentes de música no cenário brasileiro, pois muitos deles têm origem em
a proposição de um método de ensino coletivo direcionado para bandas marciais pode renomadas orquestras e em cursos de licenciatura em instrumentos. Desde a introdução
ser extremamente valiosa, com o objetivo de proporcionar contribuições sólidas que desse modelo de banda marcial nas escolas de período integral, houve uma evolução
embasem e aprimorem as atividades musicais das bandas escolares no Brasil. notável na construção e no fortalecimento das relações entre gestores e professores de

76 77
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

banda. Isso resultou em um cenário onde todas as escolas que possuem banda contam, ALVES, Marcelo Eterno. Aplicabilidade do ensino coletivo em música no Curso Técnico de
agora, com uma equipe composta por de cinco a sete professores, distribuídos entre os Música do IFG: Relatório de Pesquisa. Goiânia, Brasil: PROAPP, 2011.
instrumentos específicos. Isso possibilitou a realização de um trabalho de alta qualida-
de, que atende às demandas do projeto de ensino integral. Esse esforço culminou na ALVES, Marcelo Eterno; CRUVINEL, Flavia Maria (org); ALCANTARA, Luz Marina (org).
promoção da educação musical por meio dos instrumentos de metais, percussão e até TOCAR JUNTO Ensino Coletivo de Banda Marcial. Pronto Editora e Gráfica. 1º edição. Goi-
mesmo da comissão de frente (corpo coreográfico). ânia, 2014.
Assim, acreditamos que, com essa realidade, devido a tamanhas alterações nas leis
educacionais e aos problemas políticos que estamos enfrentandodesde 2016, devemos ALVES, Marcelo Eterno. Os instrumentos de metal no choro n° 10 de Villa-Lobos: uma
buscar contribuir para futuros estudos que comprovem a importância educacional das visão analítico-interpretativa. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música e
bandas e as possíveis perspectivas para o futuro, alertando para o desmonte das políti- Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2003.
cas públicas em relação ao ensino de música pelo qualo Brasil e o sistema educacional
está passando. Espera-se, ainda, levantar diretrizes para a elaboração de projetos que AMORIM, Herson Mendes. Bandas de Música: espaço de formação profissional. São Pau-
garantam seu fortalecimento e sua continuidade nas escolas, uma vez que essas bandas lo: Scortecci, 2014.
marciais que estão presente em colégios de tempo integral, parcial e militar são direta-
mente centro de educação musical para jovens e adolescentes, oportunizando formação BARBOSA, Joel. Da Capo: método elementar para ensino coletivo e/ou individual de
em música gratuita de qualidade para eles. instrumentos de banda. São Paulo: Musical, 2004.
Além disso, é necessária, com urgência, uma revogação ou reforma das diretrizes
do ensino de música na educação básica, seja com o aprimoramento,seja como retor- BARBOSA, Joel. Da Capo Criatividade: método elementar para ensino coletivo e/ou indi-
no da Lei nº 11.769/2008, ou ainda com uma mudança drástica nas diretrizes do novo vidual de instrumentos de banda. São Paulo: Musical, 2010.
ensino médio, favorecendo a possibilidade de contemplar verdadeiramente o ensino
de música – e que esse ensino não seja tratado com um mínimo de tempo em horário BARBOSA, Joel. Tradição e inovação em bandas de música. In: SEMINÁRIO DE MÚSICA
extra dentro da escola. O ensino de música, a partir da prática coletiva de instrumentos DO MUSEU DA INCONFIDÊNCIA – BANDAS DE MÚSICA, 1., 2008, Ouro Preto. Anais [...].
de músicas de banda e de linha de frente, precisa urgentemente do olhar de respeito e Ouro Preto: Museu da Inconfidência, 2008. p. 65-72.
de seriedade do Ministério da Educação, pois 80% de toda essa problemática pela qual
estamos passando vem das diretrizes em esfera federal. BENEDITO, Celso José Rodrigues. Banda de Música Teodoro de Faria: Perfil de uma banda
civil brasileira através de uma abordagem história, social e musical de seu papel da
Referências 225 comunidade. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-graduação da
Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Bandas ou “furiosas”: tradição, memória e a for-
mação do músico popular em Goiânia - GO. Música em contexto, Brasília, n. 4, 2010, p. BRUM, Oscar da Silveira. Conhecendo a Banda de Música. Rio de Janeiro: Recordi Brasi-
43-56. leira, 1980.

ALMEIDA, Maria Lucineide Freire de. Educação Musical e estímulo à autoeficácia: Um CAMPOS, Nilceia Protásio. O aspecto pedagógico das bandas e fanfarras escolares: o
estudo com a banda do colégio militar do corpo de bombeiros do Ceará. Dissertação aprendizado musical e outros aprendizados. Revista da Associação Brasileira de Educa-
(Mestrado em Artes) – Instituto de Cultura e Arte, Universidade Federal do Ceará, For- ção Musical, Porto Alegre, v. 16, n. 19, p. 103-111, mar. 2008.
taleza, 2016.
CORRÊA, Elizeu de Miranda. Linhas de frente das bandas marciais de São Paulo: uma
ALVES DA SILVA, Lélio Eduardo. Bandas de música no Brasil: um pouco da história. In: história de tensões e negociações (1957-2000). Cutitiba: CRV, 2017. v. 1.
CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSI-
CA, 19., 2009, Curitiba. Anais [...] Curitiba: ANPPOM, 2009. p. 223-226.

78 79
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

CRUVINEL, Flavia Maria. Efeitos do ensino coletivo na iniciação instrumental de cordas:a MENDONÇA, Belkiss S. Carneiro de. A música em Goiás. Goiânia: UFG, 1981.
educação musical como meio de transformação social. Dissertação (Mestrado em Mú-
sica) – Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2003. MONTE, Windson Alves do; MONTENEGRO, Maria Sandra. Banda de fanfarra, escola e
identidade sócio-cultural: um estudo de caso na escola Amauri de Medeiros. Trabalho
ELLMERICH, Luís. História da música. 4. ed. São Paulo: Fermata, 1977. de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) – Centro de Educação, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2011.
GOVERNO DE GOIÁS/SEC/UFG. Relação dos Discos Gravados no Estado de Goiás (jun.
1942) Centro de Pesquisas Folclóricas. Escola Nacional de música. Universidade do MOTA, Graça. Crescer nas bandas filarmônicas: um estudo sobre a construção da identi-
Brasil. n. 2 Rio de Janeiro, MCML. (1950). 50º Aniversário de Goiânia. Edição Comemora- dade musical de jovens portugueses. Lisboa: Afrontamento, 2009.
tiva 1942/1983. Goiânia: Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Núcleo de Refe-
rência Cultural, 1983. NASCIMENTO, Marco Antonio Toledo. A banda de música como formadora de músicos
profissionais, com ênfase nos clarinetistas profissionais do Rio de Janeiro. Monografia (Li-
HIGINO, Elizete. Um século de tradição: a banda de música do Colégio Salesiano San- cenciatura plena em Música) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio
ta Rosa (1888-1898). Dissertação (Mestrado Profissionalizante em Bens Culturais e de Janeiro, 2003.
Projetos Sociais) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2006. NASCIMENTO, Marco Antonio Toledo. O ensino coletivo de instrumentos musicais na
banda de música. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-
HOLANDA, Francisco José Costa. A banda juvenil Dona Luíza Távora como fonte formado- -GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 16., 2006, Brasília.Anais [...]. Brasília: ANPPOM, 2006.
ra de músicos e de cidadãos na cidade de Fortaleza– Ceará. Dissertação (Mestrado Inte-
rinstitucional em Música) – Universidade Estadual do Ceará; Universidade Federal da PENNA, Maura; MENDES, Eliane; BRITO, Alan Araújo; LINHARES, Ian Bandeira; BARROS,
Bahia, Fortaleza, 2002. Olga Renalli; PEREIRA, Raquel Dantas Gomes. O Programa Mais Educação e a Banda
Escolar: a atualização de uma tradição. Plures Humanidades. v. 17, n. 1, 2016.
KANDLER, Maira Ana; FIGUEIREDO, Sérgio Luiz Ferreira de. Bandas de música: um
levantamento sobre as pesquisas no Brasil em cursos de Pós-Graduação stricto sensu PINA FILHO, Braz Pompeu de. Memória musical de Goiânia/ Braz Wilson Pompeu de Pina
entre 1983 e 2009. In: CONGRESSO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDU- Filho. Goiânia: Kelps, 2002.
CAÇÃO MUSICAL, 19., 2010, Goiânia. Anais[...].Goiânia: ABEM-UFG, 2010.
REILY, Suzel Ana; BRUCHER, Katherine (org.). Brass Bands of the World: Militarism, Colo-
LEMOS, MayaSuemi. Música nas Escolas: Ações da Funarte em prol da implementação nial Legacies, and Local Music Making. Aldershot: Ashgate, 2013.
da Lei 11.769. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 18, n. 24, p. 117-120, set. 2010.
REIMER, Bennett. A Philosophy of Music Education. New Jersey: Prentice-Hall, 1970.
LIMA, Marcos Aurélio. A banda estudantil em um toque além da música. São Paulo: Anna-
blume; Fapesp, 2007. REIS, Dalmo da Trindade. Bandas de música, fanfarras e bandas marciais. Rio de Janeiro:
Ricordi Brasileira,1962.
LORENZET, Simone; TOZZO, Astrid MariaSavaris. Bandas Escolares. In: CONGRESSO
NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 9.; ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA, 3., RODRIGUES, Lutero. Coreto paulista: I Festival de bandas em Serra Negra, o que foi e o
2009, Curitiba. Anais [...] Curitiba: PUCPR, 2009. p. 4893-4904. que nos ensinou o evento. In: SEMINÁRIO DE MÚSICA DO MUSEU DA INCONFIDÊNCIA-
-BANDAS DE MÚSICA, 1.,2008, Ouro Preto.Anais[...]. Ouro Preto: Museu da Inconfidên-
MARTINS, José Alípio de Oliveira. O Método Da Capo: Banda de Música, Educação, cia, 2009.
Sociologia e pontos de convergência. Musifal: revista eletrônica de música da Universi-
dade Federal de Alagoas, v. 1, p. 10-13, 2010. SALLES, Vicente. Sociedades de Euterpe: as bandas de música no Grão-Pará. Brasília, DF:
V. Salles, 1985.

80 81
Bandas em Goiânia: uma abordagem a partir da história e práticas formativas Aurélio Nogueira de Sousa

SÊGA, Cristina MariaPedrazza. Relações sociais princípios de cooperação. Revista Inter-


Ação. Goiânia, v. 35, n. 1, p. 39-51, jan./jul. 2010.

SILVA, Lucas Nascimento Braga; WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. Banda do CIEP: uma
experiência em educação musical escolar. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE ARTE E EDU-
CAÇÃO: O ENSINO DA ARTE EM TEMPOS DE CRISE?, 26., 2018, Montenegro. Anais [...].
Montenegro: Editora da Fundarte, 2018. p. 671-679.

SOUSA, Aurélio Nogueira. Ansiedade na preparação da performance no ensino de instru-


mentos de banda. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música e Artes Cêni-
cas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015.

SOUSA, Aurélio Nogueira. Bandas marciais escolares de Goiânia: relações com a vida
estudantil de seus integrantes. Tese (Doutorado em Música) – Programa de Pós-gradu-
ação em Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.

SOUSA, Aurélio Nogueira; PEREIRA, Eliton Perpetuo Rosa. Bandas e fanfarras escolares
de Goiânia: formação, trabalho e gestão. In: CRUZ, FernandoVieira da (org.). Manifesta-
ções culturais e arte-educação na América Latina. Foz do Iguaçu: Editora CLAEC, 2021. v.
1, p. 22-35.

SOUSA, Aurélio Nogueira; RAY, Sonia. Mapeamento do Ensino de Trompete em Goiânia.


In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM
MÚSICA, 17., 2007, São Paulo. Anais[...]. São Paulo: UNESP, 2007.

SULPICIO, Carlos Afonso; SULPICIO, Eliana Cecília Maggioni Gugliemetti. O ensino


musical brasileiro voltado às bandas: reflexões e críticas. In: CONGRESSO DA ASSOCIA-
ÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 21., 2011, Uberlândia.
Anais[...]. Uberlândia: ANPPOM, 2011.

SWANWICK, Keith. Ensinando Música Musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina Touri-
nho. São Paulo. Moderna, 2003.

TOURINHO, Ana Cristina Gama dos Santos. Aspectos atuais do ensino de instrumentos
musicais no Brasil: pesquisas e novas tecnologias. In: NASCIMENTO, Marco Antonio To-
ledo; STERVINOU, Adeline Annelyse Marie (org.). Educação musical no Brasil e no
mundo: reflexões e ressonâncias. Fortaleza: UFCE, 2014. p. 165-178.

VIEIRA, Joelson Pontes. Bandas de música militares: performance e cultura na cidade de


Goiás. 2013. 392 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal de Goiás,
Goiânia.

82 83
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical

Música no Distrito Federal:


interferências, mobilidade e
trânsitos numa perspectiva
de cartografia musical*

Beatriz Magalhães Castro


Universidade de Brasília

84
* Este texto constitui um resumo de trabalho mais amplo,no prelo,
que trata a historiografia musical de Brasília e do Distrito Federal,
com referências iconográficas e bibliográficas e notas completas de
referenciamento, totalizando cerca de 220 páginas.
3 como citar
CASTRO, Beatriz Magalhães. Música no Distrito Federal:
interferências, mobilidade e trânsitos

Maria
numa
perspectiva de cartografia musical. In: SOUZA, Ana
Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia (ed.).
Centro-Oeste. Vitória: Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Música, 2023. p. 84-146. (Histórias
das Músicas no Brasil).
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

1. Imaginário, ideação, espetáculo Se a sua fixação histórica, nos começos da capital, tornaria a Brasília: Sinfonia da
Como prática cultural, a música sempre ocupou um papel central no imaginário humano pela Alvorada um marco simbólico, esta permanece pouco executada, não penetrando no
sua capacidade de adentrar áreas da memória, principalmente as afetivas, que exercem um imaginário coletivo como uma sonoridade de referência que a distinga ou a torne sim-
papel identitário na construção do sujeito. Esse processo substantivo permite ao sujeito se bólica daquele espaço-tempo. A obra é marcante, mas seus recursos sinfônicos e dispo-
achar em processos diversos, sejam estes anteriores, coevos ou posteriores a um deslocamen- sitivos de orquestração se assemelham àqueles usados por Villa-Lobos, sem possuir a
to migratório. Esse imaginário de e sobre Brasília reúne tanto dimensões de planejamento força imagética e simbólica que a possa identificar como “candanga”. Trata-se de uma
estratégico para ocupação do espaço geográfico e humano como de invenção e estética na referência em linguagem universalista, mas de conotações mais bem cariocas.
elaboração de uma face para uma capital inventada. Assim, se o presidente bossa-nova era mineiro, o compositor e o(s) arquiteto(s)
Os versos de Vinícius de Moraes utilizados na composição de Brasília: Sinfonia da Alvo- eram nitidamente cariocas, criaram elos históricos indeléveis, mas nem sempre inesque-
rada por Tom Jobim, capturam a terra agreste de uma Brasília antes dela, das solidões antigas cíveis, entre a linguagem musical de Jobim e o modernismo arquitetônico de Niemeyer.
sem mágoas, banhadas por mansos rios inocentes, no espaço em que, antes, habitara o indí- As referências imagéticas a Oscar Niemeyer e Lúcio Costa permanecem na vida
gena, deslocado pelo Goyaz, agora removido pelo presidente bossa-nova, como foi conhecido dos brasilienses residentes no Distrito Federal (Figura 1), percorrendo os caminhos co-
Juscelino Kubitschek pela música de mesmo nome de Juca Chaves. tidianos das “tesourinhas” e a estrutura espacial dos eixos, cuja nomenclatura designa
Já Brasília: Sinfonia da Alvorada encerra alguns fatos importantes, demarcando esse iní- pontos cardeais em “Ws”, “Ls”, “Ns” e “Ss”. Contudo, a trilha sonora da capital já não será
cio musical da cidade, que já nasce com trilha sonora, concebida para uma festa cuja ideia é aquela dos seus inícios, de gosto carioca, praiano e macio.
atribuída, por Vinícius, em depoimento no livro que reúne suas crônicas, Samba falado, a Oscar A aridez do planalto, a tortuosidade do cerrado e, sobretudo, as gentes que para cá
Niemeyer, o arquiteto da cidade – e não a Juscelino Kubitschek, como comumente se pensa. vieram trouxeram ou criaram a sua própria música.
Para estimular a composição da obra, Tom e Vinicius passam dez dias, em setembro de Por esse motivo, o Distrito Federal, como capital inventada, torna-se contexto es-
1960, no Catetinho, quando escrevem, ainda, Água de beber, inspirada no “lindo olho d’água” pecialmente fértil para a discussão de processos identitários na construção do sujeito,
que brotava do capão de mato próximo, hoje ainda fluindo dentro do Brasília Country Club, permitindo a este se encontrar em momentos de deslocamento migratório. Como ex-
na saída sul de Brasília. Segundo dados do Instituto Antônio Carlos Jobim (2012), “Por trás do presso nos versos de Marcos Fabrício Lopes da Silva, quando a geografia humana altera
Catetinho passava um córrego que Tom e Vinicius namoravam, mas não tinham coragem de o espaço geográfico, origina o “afroarquitetado saído do traço de Niemeyer”. A música,
beber a água. Quando, um dia, um candango os informou que aquela água era de beber, os pelas suas características de imaterialidade e capacidade de adentrar áreas da memó-
dois comporiam mais um sucesso[,] o samba Água de beber’”. ria, principalmente as afetivas, torna-se um meio pelo qual identidades do sujeito serão
Brasília: Sinfonia da Alvorada, descrita como um poema sinfônico, foi composta entre construídas nesse espaço-tempo.
1958 e 1960 para orquestra sinfônica e recitante, estruturada em cinco movimentos: 1) “O
Planalto deserto”; 2) “O homem”; 3) “A chegada dos candangos”; 4) “O trabalho e a construção”;
e 5) “Coral”. A obra, de caráter descritivo desses momentos, nunca foi apresentada como parte
das comemorações da inauguração de Brasília, seja no 21 de abril, seja no 7 de setembro sub-
sequente. A capa do disco da gravação feita em novembro de 1960, no estúdio da Colúmbia, no
Rio de Janeiro, utilizada também na capa da partitura impressa, apresenta desenhos originais
de Niemeyer; alguns similares podem ser vistos nas paredes do Centro de Planejamento
(CEPLAN) da Universidade de Brasília e ainda fizeram parte da programação visual do
XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)1,
realizado no Departamento de Música da UnB.

1
XVI Congresso da ANPPOM. Temas: “Transformações da sensibilidade musical”; “Ciência e tecnologia para
a circulação do conhecimento científico em música”; e “Políticas públicas para a cultura, artes e música”.
Brasília, UnB, de 28 de agosto a 1º de setembro de 2006. Presidente da Comissão Executiva: Beatriz Ma-
galhães Castro.

86 87
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Tocantins/Araguaia
São Francisco

Paraná
Fig. 1: Grafite com imagem do arquiteto Oscar Niemeyer em uma quadra residencial de Brasília, por
Sergio Lima (AFP). Identifica-se como a SQS 308, uma das quadras-modelo de Brasília. Fonte: a autora.

Completam-se mais de 152 anos do histórico da implantação de Brasília (1960), que


remonta a 1808, no desembarque singular da Corte portuguesa no Brasil, quando se avalia
que a nova capital do Reino de Portugal necessitaria de uma estrutura urbana mais bem-
-dimensionada, devido ainda à vulnerabilidade da implantação costeira do Rio de Janeiro.
Contudo, a estratégia de implantação da nova capital seria definida pela situação geográfica Fig. 2: Bacias hidrográficas brasileiras, destacando as do Tocantins/Araguaia, do São Francisco e do
do altiplano central, especialmente pela localização de bacias hidrográficas, a partir de Paraná. Fonte: Carlos Diego (2019).
um dito ponto de confluência das nascentes de três grandes rios – Tocantins, São Fran-
cisco e Paraná –, permitindo acesso, controle e trocas comerciais com extremos do país. Na Figura 2, evidencia-se a localização do Distrito Federal (azul claro) na con-
fluência das bacias do Tocantins/Araguaia (verde), do São Francisco (rosa) e do Paraná
2. Cartografia, interferências e gêneses (amarelo), três dos “maiores rios” brasileiros, assim como as interligações com rios, ribei-
Na realidade, como definido desde o relatório da Missão Cruls, de 1894, e corroborado ros e riachos, conforme nomenclatura da ANA.
hoje por informações obtidas a partir de mapeamentos de projetos como Rios do Brasil Podemos, ainda, identificar, no mesmo detalhe, que essas interligações perfazem
e Hidroweb, da Agência Nacional de Águas (ANA), é possível identificar que o Distrito uma malha hidrográfica de caminhos passíveis de “internação” da ocupação humana,
Federal foi inserido entre três bacias hidrográficas nacionais: do Tocantins/Araguaia, do termo utilizado por Capistrano de Abreu (1975: 137-141) para dividir os períodos da
São Francisco e do Paraná (Figura 2). Nesse local, encontram-se as cabeceiras dos tribu- história do Brasil, uma das quais associa àquela feita por meio dos rios, identificando,
tários (e não as nascentes) de três dos maiores rios brasileiros: o Maranhão – afluente em seguida, alguns pontos de circulação.
do Rio Tocantins –, o Preto – do Rio São Francisco –, e os rios São Bartolomeu e Desco- Essa abordagem historiográfica, apoiada na geografia, instala possibilidades de
berto – do Rio Paraná. mapeamento e identificação de rotas propícias a trocas e trânsitos culturais, permitindo

88 89
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

discutir o impacto da mobilidade como conceito para a historiografia musical, conside- Começa, assim, o governo que, sob o lema de “50 anos em cinco”, prometia cumprir
rando os intercâmbios, interconexões, transferenciabilidade e outros tipos de processos o Plano de 30 Metas, anunciado durante a campanha, e que, ao seu fim, as havia todas
móveis presentes nas práticas musicais nesse contexto. cumprido, inclusive a de número 31, a dita “meta síntese:” a construção de Brasília e a
transferência da capital federal, o grande desafio de Kubitschek.
2.1 Mudancismo, platonismo, cidade inventada Empossado em 31 de janeiro de 1956, o presidente Juscelino Kubitschek assi-
A ideação dessa capital inventada parte de um substrato de hipóteses e propo- nava, em 18 de abril daquele ano, a “Mensagem de Anápolis”, tratando da criação da
sições, posteriormente corroboradas por estudos de geolocalização, para definição do Companhia Urbanizadora da Nova Capital (NOVACAP) e autorizando o Poder Executivo
local mais propício para a sua implantação. Esse pensamento é frequentemente deno- a praticar todos os atos necessários ao cumprimento do dispositivo constitucional que
minado como movimento “mudancista”, em favor da mudança da capital nacional, que ordenava a transferência da capital para a região central do país. Três dias depois dessa
encontrará defensores em entendimentos contextualizados em momentos históricos sanção, em sessão pública, na sede da Comissão de Planejamento da Construção e da
distintos. Mudança da Capital Federal, no Rio de Janeiro, era constituída a Companhia Urbaniza-
O estudo de Laurent Vidal, De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital dora da Nova Capital do Brasil (NOVACAP). Colocava, assim, termo a todas as comissões
(séculos XIX-XX), de 2009 (p. 11), destaca-se entre muitos, por examinar esse percurso, criadas desde o século XIX para a transferência da nova capital.
indagando, em suma: “A que corresponde esta imperiosa necessidade social de projetar No curto período em que presidiu a comissão, de apenas três meses, Ernesto Silva
ou fundar, mesmo que no papel ou em palavras, cidades?”. Avalia, assim, os contextos pôde executar duas importantes tarefas: a demarcação das divisas do futuro Distrito Fe-
históricos a partir dos nomes imaginados para a capital nos diferentes períodos: Nova deral – com apoio do Governo de Goiás, que financiou as despesas de demarcação – e a
Lisboa, a capital de uma corte no exílio (1808-1815); Brasília ou Petrópole, como su- elaboração do Edital do Concurso do Plano Piloto – da qual participaram Israel Pinheiro
gerido por José Bonifácio durante a Constituinte de 1823, e Cidade Pedrália, do ainda e os arquitetos Oscar Niemeyer, Raul Pena Firme e Roberto Lacombe.
pouco conhecido Paulo Ferreira de Menezes Palmiro, no contexto de uma capital para Em 30 de setembro de 1956, é lançado, nos meios de comunicação, o Concurso
o Brasil independente (1821-1824); Imperatória, ou o sonho de uma São Petersburgo Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil. A expressão “plano-piloto” foi usada
tropical (1839-1878), durante o Império; Tiradentes, a cidade “sem gente”, no contexto por Le Corbusier em correspondências dirigidas ao marechal José Pessoa e mediadas
republicano (1889-1895), quando o debate entre liberais e positivistas, que viam o povo por Paulo Prado, quando expressou o seu interesse e termos contratuais para elabo-
como uma massa bestializada a ser gerida, ultimou ainda a instituição da Missão Cruls; ração de um plan pilote para a capital brasileira, manifestações que foram, em grande
Vera Cruz, a capital da reconciliação nacional (1930-1955); e, finalmente, Brasília, a obra medida, ignoradas por Pessoa (VIDAL, 2009: 199-260). A expressão foi usada no edital
fundamental de Juscelino Kubitschek (1956-1960). do concurso, colocando, finalmente, de alguma forma, uma “marca” tangível de Corbu-
Nesse contexto, os trabalhos das Missões Cruls, e daquelas ocorridas durante a Era sier, edital este que, deliberadamente, decidiu privilegiar “pessoas físicas ou jurídicas
Vargas (general Polli Coelho e marechal Pessoa), definiram o caminho para a construção domiciliadas no país”, valorizando a arquitetura produzida no Brasil, questão que exigiu
de Brasília. esclarecimentos, devido a questionamentos sobre os termos do edital.
Dentre os 26 projetos apresentados, classificou-se, em primeiro lugar, o projeto nº
2.2 Brasília: do traço ao espaço, Juscelino Kubitschek (1956-1960) e a nossa 22, do arquiteto e urbanista Lúcio Costa. O projeto vencedor foi apresentado por meio
bossa de um esboço acompanhado de relatório magistral, no qual Lúcio Costa se justifica e
Em 15 de abril de 1955, durante um comício na cidade goiana de Jataí, Juscelino explica elementos do seu projeto. A sua simplicidade estava de acordo com o objeto do
Kubitschek (JK), que, em seus discursos, sempre defendia o respeito à Constituição e às edital, como britanicamente explicado por sir William Holford: o concurso era “de idéias,
leis, foi perguntado, por Antônio Soares Neto (1925-2019), conhecido como Toniquinho não de detalhes”, e, por essa razão, o edital exigia “somente um esboço do projeto (um
JK, se, uma vez eleito, cumpriria a Constituição e mudaria a capital do Rio de Janeiro ‘plano-piloto’) e um memorial ilustrativo das idéias do concorrente”. Assim, o júri teria de
para o Planalto Central. Ao que Juscelino respondeu que sim, passando para os anais das aproveitar, como o fez, “a idéia que lhe parecesse oferecer a melhor e mais criativa base
muitas histórias contadas, atribuindo a esse gesto a motivação para que JK começasse para a cidade-capital a ser construída”.2
a planejar e, mais tarde, construir a nova capital. Ganhou Toniquinho – posteriormente
conhecido como Toniquinho JK, um vendedor de seguros, o apelido de Pai de Brasília, e
muitas especulações também apareceram dizendo que o episódio teria sido ensaiado.
2
Página web do Memorial JK. In: http://www.memorialjk.com.br/bsb/pgs/concurso.htm

90 91
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

A questão central, evidenciada nas discussões sobre o edital, foi a necessidade de designados pela Comissão Polli (1948), a maior das áreas definidas por uma das comis-
privilegiar características essencialmente brasileiras para a nova capital, momento no sões exploratórias, com uma população de aproximadamente 4,8 milhões de habitantes.
qual também se torna clara a omnipresença de Oscar Niemeyer. Em agosto de 1956, A Tabela 1 expõe o percentual de incremento da área de influência de Brasília
cerca de um mês antes do lançamento do edital do concurso, Oscar Niemeyer finalizava hoje em relação às áreas propostas pelas comissões exploratórias. O Distrito Federal
os primeiros estudos arquitetônicos para a cidade: um hotel de turismo para os visi- possui 33 regiões administrativas, que representam as ditas “cidades-satélites”, fruto da
tantes, um palácio presidencial para servir de sede para o Poder Executivo, um palácio expansão territorial devido ao aumento populacional, remetendo esse excedente para
destinado à residência oficial do presidente e uma pequena igreja curva (SILVA, 2012). regiões periféricas ao plano-piloto.
Além disso, já estava em curso o alagamento da área que daria origem ao Lago Paranoá.
Corrobora, assim, a frase: “Brasília teve arquiteto antes de ter urbanista, teve palácio 1891 (Constituição e Missão Cruls) 14.400km² 84,77%
antes de ter plano” (FICHER, 2010).
1948 (Comissão Polli) 77.000km² 18,57%
O simbolismo do tomar posse por meio do sinal da cruz, consubstanciado no pro-
jeto de Lúcio Costa, equivalente ao sagrado madeiro da Vera Cruz, proposto pelo mare- 1948 (Retângulo do Congresso) 52.000km² 45,01%
chal Pessoa, e materializado no projeto de Penna Firme, Lacombe e Oliveira Reis, apro-
1955 (Decreto nº 480 e Comissão Pessoa/Belcher) 5.850km² 93,81%
pria-se desse significado caro a um país de formação lusitana essencialmente católico.
A bossa-nova na trilha sonora da Sinfonia da alvorada insere-se, assim, como elemento RIDE 94.570,39km²
em meio a uma aglutinação de valores e significados: uma cruz medieva, inserida num
Tab. 1: Incremento da área de influência de Brasília (RIDE) em relação às áreas definidas pelas comis-
ambiente agreste e agrário, a partir de um projeto modernista, que traz, de uma só vez, sões exploratórias. Fonte: a autora a partir dos relatórios e dados colhidos.
os preceitos mais modernos de planejamento urbano, negociado entre interesses de
poder e alinhamento de forças locais e regionais, face a ideologias nacionais e externas.
Esse processo, de afetação de uma área privada como pública, levou à desapropria-
2.3 RIDE: extratos, substratos, expansão e diversidade ção de terras antes ocupadas e assumidas por populações históricas que já possuíam um
Portanto, em termos geográficos, a área original de 14.000km² (Constituição de legado cultural significativo, com suas próprias idiossincrasias e valores. Com a implan-
1891) é mantida no mapeamento da Missão Cruls, eleva-se a 77.000km² no relatório tação de Brasília, os antigos acampamentos de construtoras foram sendo removidos, e a
de Polli Coelho (1948), logo reduzida a 52.000km² no Retângulo do Congresso (1953) população considerada “excedente” às áreas internas da Bacia do Paranoá foi deslocada
e, finalmente, a 5.850km² em 30 de abril 1955, data do Decreto nº 480, do Governo de em direção aos vazios mais próximos do plano-piloto. A importância de entender essa
Goiás, para a expropriação das terras, correspondendo aos limites do Sítio Castanho, de- gestação de Brasília recai, ainda, na compreensão das ditas “periferias” urbanas, nas quais
finido pelo relatório do marechal Pessoa e relatório Belcher (1955), como escolha para se desenvolveu parte das atividades culturais “populares” ou “tradicionais”.
a construção de Brasília. Destacamos, ainda, as dimensões místicas para validação desses anseios, quando,
Contudo, entendendo a grandeza de uma área de influência de Brasília, foram em 1883, dom Bosco, o italiano fundador da Congregação dos Salesianos, sonha que,
criadas, desde 1972, áreas de desenvolvimento integrando a região geoeconômica da entre os paralelos 15° e 20° do Hemisfério Sul, numa região onde se formava um lago,
cidade, que, devido à sua contínua expansão, ultimou, em 1998, a criação da Região Inte- surgiria uma nova civilização. Tal dimensão torna dom Bosco o padroeiro da cidade, jun-
grada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE), pela Lei Complementar to com Nossa Senhora Aparecida, entranhando o componente religioso do catolicismo,
nº 94, de 19 de fevereiro de 1998, composta pelo Distrito Federal, por 19 municípios numa analogia ao sebastianismo lusitano. Assim, justifica-se a alcunha de “cidade da
do estado de Goiás e dois do estado de Minas Gerais. Em 2018, a região foi ampliada esperança”, numa projeção do “rei bom” como oportunidade de salvação, renovação e
com a publicação da Lei Complementar nº 163, de 14 de junho de 2018, quando foram organização do espaço urbano.
incorporados mais 12 municípios, dez goianos e dois mineiros.
Apesar de extinta em 1990, no governo Collor, mas recriada em 2009, a Superin- 3. Música, geografia humana: inícios e sequências
tendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO) passa a administrar a RIDE, O longo trajeto de construção material e simbólica de Brasília, como capital da Repú-
hoje a terceira região mais rica do Brasil, com um PIB na casa dos 240 bilhões (IBGE, blica, cria o arcabouço de significados e possibilidades ancorados sobre uma geografia
2015). Ocupa uma área de 94.570,39km²; já ultrapassou em quase 23% os 77.000km² humana, que, em sua mobilidade e diversidade, permite trocas, também materiais e

92 93
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

simbólicas, que compõem o mosaico cultural que representa a cidade. Esta se insere, modelos, até então vigentes, do ensino em nível superior, especialmente pelas novas
penetra e interage nesse contexto geoespacial a partir dos caminhos e caminhamentos perspectivas da interdisciplinaridade e interação de saberes. Sua concepção inovadora
possíveis, de rotas abertas ou a abrir, onde o encontro com o outro se dá por meio de partiu do trabalho de Darcy Ribeiro, que julgava como o “mais importante para os bra-
trocas e trânsitos, que permitem essa mobilidade humana, que traz consigo possibilida- sileiros [...] é inventar o Brasil que nós queremos” (RIBEIRO, in O POVO brasileiro,
des de trocas e movimento sobre a paisagem sonora. 2000), permitindo que a renovação dos modelos educacionais se entrelaçasse às
Assim, ao optarmos por adentrar os meandros da geografia humana, interessa- concepções de universidade que Brasília, como nova sede do país, viria a adotar. Foi
-nos a possibilidade de examinar a interação entre a sociedade e o espaço como leitura concebida a par-tir de uma filosofia humanista – visando ao progresso e à
crítica tanto das ações humanas sobre este, como também dos condicionamentos do emancipação dos povos, no-meadamente do homem brasileiro – e de uma ideologia
espaço sobre a sociedade. Construímos, ainda, o conceito de territorialidades cultural nacionalista, demarcando uma autonomia e independência no plano científico e
e social, nas quais a ação humana extrapola os limites geopolíticos e constrói níveis cultural em relação às demais nações.
de identidade cultural alheios a questões geopolíticas, no sentido de Ratzel (1901), de Além disso, a UnB conduziu a consolidação da pós-graduação desde a sua
um “Lebensraum” ocupante e tomador, mas também um espaço de interação propícia à criação, instituindo, de forma pioneira, o então chamado “quarto nível”, designando,
criação artística, mesmo que de disputa de poder. em 1963, o primeiro coordenador de pós-graduação no Brasil, o Prof. Aryon Dall’Igna
Ao estabelecermos uma linha temporal para uma construção historiográfica, opta- Rodrigues. Na-quele momento, a universidade passou também a permitir o acesso aos
mos por uma cartografia musical, identificando a inserção de corpos fundantes oriundos escalões mais elevados (“Escada Educacional Brasileira”) por meio de defesas diretas
da migração para a nova capital, sem desconsiderar a sua justaposição ao substrato cul- de dissertações de mestrado e teses de doutorado, para as quais eram solicitados
tural existente. Substrato este que é frequentemente ignorado como base pré-existente, pareceres de dois especialistas externos, distinguindo-se, deliberadamente, das
fazendo com que práticas exógenas sejam significadas localmente e legitimadas como “universidades comuns”, diferenciando a “escola de professores” da “escola de
“naturais”. Tal questão emerge da forma como essas práticas estiveram ligadas a deter- licenciados”, cujo caminho seria o exercício no ensino médio e primário.
minados grupos sociais, com variados poderes simbólicos, numa cidade permeada pelo A organização da Universidade de Brasília foi baseada num modelo de
exercício do poder e concebida para ele. Dessa forma, dividimos esta historiografia em integração de três modalidades de órgãos: os institutos centrais, as faculdades e os
dois aspectos: 1) das instituições e corpos artísticos fundantes; e 2) das práticas e pessoas. órgãos comple-mentares. O campo da música foi desenvolvido no âmbito do Instituto
O primeiro visa a recuperar, enquanto ação de patrimônio e memória, o processo Central de Artes (ICA), um dos oito institutos centrais inicialmente concebidos,
de construção da cidade a partir dos primeiros grupos formais instituídos. O segundo juntamente com os de Matemática, Física, Química, Biologia, Geociências, Ciências
pretende entender motivações intrínsecas numa etnografia voltada a práticas contem- Humanas e Letras.
porâneas, que, por estarem em processo continuado, não poderiam ser fixadas de forma As primeiras estruturas acadêmicas surgem, em caráter imediato, para o início das
definitiva nesta historiografia. atividades letivas a 9 de abril de 1962, quando a Universidade de Brasília, sob a direção
Assim, provemos um mapeamento cronológico dos principais corpos fundantes de Alcides da Rocha Miranda, opta por oferecer três cursos-tronco, de
para uma cartografia musical de Brasília, em parte tratados neste texto, pois a metodo- funcionamento transitório, a serem absorvidos à medida em que fossem implantados
logia exige ampla documentação na sobreposição a relatos orais, não reproduzindo fa- os institutos cen-trais e as faculdades, previstos para iniciarem seu funcionamento
tos equivocados ou simplesmente jornalísticos; o mapeamento integral é apresentado pleno somente em 1964. Os cursos-tronco eram, a saber:
no trabalho completo. 1) Direito/Administração/Economia (coordenado por Vitor Nunes Leal);
2) Letras Brasileiras (coordenado por Cyro dos Anjos); e
3.1 Universidade de Brasília e Departamento de Música 3) Arquitetura e Urbanismo (coordenado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa).
A fundação da Universidade de Brasília (UnB) posiciona-se de forma estratégica na Inicialmente, agregava-se aos cursos-tronco um “núcleo de atividades culturais a
historiografia musical da cidade pelas características inerentes ao processo modernista serviço da população”, de forma a fixar “em Brasília uma equipe de professores e pes-
da capital. Ou seja, se a arquitetura deveria ser moderna, também o deveria ser a sua quisadores, que, além de suas atividades docentes, colaborassem na programação das
universidade, como polo gerador de formação e conhecimento. diversas unidades acadêmicas a serem estruturadas” (APARECIDA, 1995: 40).
Criada pela Lei nº 3.998, de 15 dezembro de 1961, e pelo Decreto nº 500, de 15 de Como afirmado no Diagnóstico de desenvolvimento da Universidade de Brasília 1962-
janeiro de 1962, inaugurada em 21 de abril de 1962, distingue-se, de forma robusta, dos 1968 (1969), “a ideia inicial que orientou a instalação da Universidade de Brasília foi a
que ela deveria dedicar-se, intensivamente, a uma política de formação de quadros do-

94 95
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

centes nos dois primeiros anos, através de cursos de pós-graduação”, pois “somente em Apesar desse esforço, há uma nova demissão do quadro docente em 1970. Esse
1964 é que passaria a oferecer cursos de graduação”. Contudo, diz o relatório, a presença fato gera a reformulação do ICA, fazendo surgir, naquele ano, um novo instituto, o Insti-
de graduados em cursos de nível médio residentes no DF provocou uma mudança e, por tuto de Artes e Arquitetura (IAA), o qual, apesar de manter juntas as duas áreas, cria três
esse motivo, esses cursos-tronco foram criados para oferecer cursos de graduação já departamentos distintos: Arquitetura & Urbanismo; Artes Visuais & Cinema; e Música.
em 1962. Sua estrutura previa habilitações em bacharelado e licenciatura, mas também Contudo, o novo estatuto, de 1970, veio a contrariar as concepções originais da criação
uma formação profissional, além da pós-graduação (DIAGNÓSTICO, 1969: 183-184), da nova universidade, limitando as atividades dos professores, proibindo a atividade
questão considerada chave no desenvolvimento geral da universidade, especialmente política e enquadrando a instituição nos moldes da Ditadura Militar.
da formação de quadros superiores. O período subsequente é permeado por um ambiente controlado, com a presença
Isso explica a motivação e a forma pela qual terá ocorrido o doutoramento de de interventores externos, situações que estão documentadas no arquivo da Assessoria
Régis Duprat (“Música na Matriz e Sé de São Paulo colonial”, 1966) e Nise Obino (“Re- de Segurança e Informações (ASI) da UnB. O fato é que, aos poucos, professores foram
alização pianística: tudo é técnica”, 1966), cuja explicação está justamente no fato de sendo arbitrariamente demitidos, e um novo projeto para a UnB foi sendo estabelecido.
que a “política de formação de quadros docentes nos dois primeiros anos, através de No MUS, a ameaça de fechamento do departamento, em 1973, última a contratação de
cursos de pós-graduação”, era parte de um “esforço de formar quadros”. Tal é evidenciado novos professores com perfil distinto, demarcando uma mudança radical em relação aos
pela circunstância de que, para os 58 professores admitidos em 1962, a “UnB recrutou, princípios de ação e visão social dos anteriores.
também, 26 instrutores”, que deveriam atuar como auxiliares docentes, mas, ao mesmo Além disso, em 1976, o IAA foi redimensionado, fato não documentado nos di-
tempo, frequentar cursos de nível de pós-graduação (DIAGNÓSTICO, 1969: 109). versos relatos sobre o atual Instituto de Artes e os departamentos de Artes Visuais e
Contudo, o estudo admite que “a Universidade não conseguiu concretizar essas Música, ambos oriundos diretamente desse processo. Em meados do segundo semestre
ideias” e, como mais adiante (DIAGNÓSTICO, 1969: 109), esclarece que “os graus conce- de 1976, entra em funcionamento o novo Instituto de Expressão e Comunicação (IC),
didos ao nível de Mestrado e Doutorado, o foram principalmente com base em trabalhos resultado da divisão do Instituto de Artes e Arquitetura (IAA) em dois: o de Arquitetura
apresentados (teses) e, algumas vezes, estudos realizados sob a orientação de Professores”. e Urbanismo (IAU), com três departamentos – de Desenho (DES), de Arquitetura (ARQ) e
Não faz qualquer referência ao ICA ou ao Departamento de Música (MUS), apresentando de Urbanismo (URB) –; e o de Expressão e Comunicação (IC), também com três departa-
apenas um gráfico com o número de títulos acadêmicos concedidos entre 1964 e 1968. mentos – de Arte (ART), de Letras e Linguística (LEL) e de Comunicação (COM). Esse ART
O ICA testemunha os profundos problemas políticos do país sobre a construção é, na realidade, o Departamento de Música.
das atividades artísticas, sobretudo da arte-ensino no âmbito da UnB. Se nasce, ofi- Essa acomodação “incômoda” do Departamento de Desenho (DES) no Instituto de
cialmente, em 1964, agregando, até 1969, os departamentos de Cinema & Fotografia, Arquitetura e Urbanismo (IAU) e do Departamento de Música (ART/MUS) no Instituto
Expressão & Representação, História e Música, será profundamente marcado pela in- de Expressão e Comunicação (IC) evidencia o problema de localização das artes como
tervenção, no campus universitário, da polícia militar de Minas Gerais em 9 de abril de campo do conhecimento na estrutura acadêmica universitária, expresso no relatório do
1964, com a cassação do então reitor Anísio Teixeira em 13 de abril daquele ano. IAU, que “reclama melhor definição” para o Departamento de Desenho “face à criação do
Em setembro de 1965, ocorre a renúncia coletiva de todos os coordenadores de Departamento de Arte” (RELATÓRIO, 1976: 186), que permaneceu no novo IAU.
institutos, e, em 18 de outubro, 223 professores pediram demissão em solidariedade O Instituto de Artes (IdA) surge, finalmente, em 1988, inicialmente com três e
aos colegas demitidos e perseguidos por motivações políticas, fazendo com que a UnB depois com quatro departamentos diferenciados: de Música, de Artes Cênicas e de Ar-
perdesse 79% de seu quadro de 305 docentes, dos quais 35 pertenciam ao ICA, inclu- tes Visuais, que, posteriormente, se subdivide, criando o de Desenho Industrial. O novo
sive Claudio Santoro, idealizador do Departamento de Música (SALMERON, 2007:244- contexto dos anos 90 é caracterizado por uma consistente titulação dos seus docentes,
245). Após a renúncia coletiva dos professores, em 1965, e a nova intervenção militar a partir dos novos moldes e planos de carreira estabelecidos para o serviço público na
na universidade, houve uma recomposição do quadro, que não mais refletia os ideais área da educação e da criação de programas de pós-graduação nas respectivas áreas.
inicialmente concebidos. Esse quadro se manteve até 1967, quando os alunos decidem Hoje, o Instituto de Artes (IdA) está organizado em quatro departamentos – de
fechar, em 10 de outubro, o Instituto Central de Artes. Artes Cênicas (CEN), de Desenho Industrial (DIN), de Música (MUS) e de Artes Visuais
Somente após a intervenção militar de 29 de agosto de 1968, as aulas são reini- (VIS) –, é responsável por 17 habilitações (bacharelados e licenciaturas, inclusive a dis-
ciadas no ICA em outubro daquele ano, quando também o instituto passa a promover os tância) em cursos de graduação, quatro programas de pós-graduação acadêmicos stricto
fóruns internos com o objetivo de discutir uma reestruturação das atividades e do ensino. sensu – em Artes Cênicas (mestrado e doutorado), Artes Visuais (mestrado e doutorado),

96 97
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Design (mestrado) e Música (mestrado) – e participa de um mestrado profissional em O Centro de Documentação e Pesquisa incluía:
Artes (Prof-Artes) interinstitucional, coordenado pela Universidade do Estado de Santa 1) arquivo sonoro;
Catarina (UDESC). 2) biblioteca com partituras e iconografia, arquivo da música brasileira (ligado à
Editora da UnB para desenvolvimento de plano editorial de compositores bra-
3.2 Claudio Santoro e o Departamento de Música sileiros), serviço de cópias (que abrangia uma escola para cópia, inclusive em
As origens da criação do Departamento de Música remontam a 1962, ano no qual atendimento ao arquivo de música brasileira) e um boletim;
Claudio Santoro, a pedido de Darcy Ribeiro, desenvolve o projeto estrutural e pedagógi- 3) museu instrumental (dedicado à parte etnográfica e folclórica);
co, apreciado pelo Conselho Universitário (CONSUNI), o qual permanece relevante nos 4) laboratório eletrônico (para composição de música concreta e eletrônica); e
seus principais elementos definidores do perfil do ensino artístico em música, abraçan- 5) rádio e televisão (com a colaboração do Departamento de Música na programação).
do a filosofia inovadora da UnB em relação ao contexto educacional brasileiro, na pre-
paração de quadros especializados, sob a mesma ótica filosófica humanista e ideológica A Escola Profissional centrava-se no instrumental orquestral (cordas; sopros; te-
nacionalista, comum aos modelos usados na criação da própria universidade. clados – piano, cravo e órgão; e percussão), canto e teoria da música, enquanto previa
Os princípios para a estruturação do Departamento de Música foram abrangen- cursos “especiais” em jazz, música popular, música sacra e violão.
tes, tendo a colaboração de algumas das principais mentes musicais do país, como os Já a Escola Superior de Música contemplava estruturas similares às habilitações
compositores José Siqueira, Heitor Alimonda, Edino Krieger e Camargo Guarnieri; os do novo bacharelado, à exceção da Música Popular (incluída parte em Composição e
pianistas Arnaldo Estrela, Jacques Klein e Anna Stella Schic; os críticos e historiadores parte em Musicologia) e do mestrado, agrupadas como a seguir:
Eurico Nogueira França, Ayres de Andrade e Renzo Massarani; os instrumentistas Oscar 1) Especialização Instrumental (Sopros, Cordas, Teclado e Instrumentos antigos);
Borgerth e Iberê Gomes Grosso; e o maestro Eleazar de Carvalho. 2) Composição (com especializações em Cinema e Teatro; Rádio e Televisão; Com-
Esse projeto está descrito num documento dirigido ao então reitor Darcy Ribeiro, posição Popular; Orquestração para Banda, Jazz, Populares, Cinema, Disco, Rá-
no qual propõe um plano para a criação de uma Faculdade de Música, estruturada, de dio e Televisão; Teorias Modernas da Composição Contemporânea na Música
forma integrada, sobre três núcleos – Centro de Documentação e Pesquisa, Escola Pro- Serial – Dodecafonismo; Música Eletrônica; e Música Concreta);
fissional e Escola Superior de Música, com bacharelado e licenciatura, mas também uma 3) Engenheiro de Áudio (Controle técnico musical de gravação ou transmissão de
formação profissional e um mestrado, atendendo à estrutura geral estabelecida para os Rádio e Televisão);
cursos de graduação e pós-graduação da UnB. 4) Musicologia (História da Música e História da Música do Brasil; Estética; Etnografia
Evocando os “numerosos projetos de reforma dos nossos Conservatórios [que] sur- musical e folclore; Pesquisa Musicológica ou Orientação Musicológica; e Crítica);
giram nos últimos anos”, provavelmente se referindo ao Música Viva, de Koellreutter, 5) Professor (com especializações em Teoria da Música – Teoria Elementar, Harmo-
Santoro (1962) qualifica pôr em prática “um novo tipo experimental de escola de música”, nia, Contraponto, Formas Musicais, Instrumentação e Orquestração; Iniciação
a renovação do modelo pedagógico dos estudos superiores em música e estratégias de Musical; e Educação Musical);
preservação e memória da identidade nacional na corporificação da sua modernidade. 6) Regência (com especializações em Coro, Orquestra, Opera, Opereta, Ballet, Mu-
Portanto, a estrutura do modelo proposto, a seguir, norteia o ensino profissional sical, Cinema, Rádio e Televisão);
da música estruturado em dois níveis (técnico e superior), apoiado numa estrutura de 7) Canto (Ópera e Música de Câmara); e
documentação e pesquisa, capaz não só de acesso a uma formação humanista e cultu- 8) Mestrado.
ralmente informada, como também de ações de preservação e memória, por meio da
pesquisa qualificada, documentação de fontes históricas, laboratório tecnológico para A evolução do Departamento de Música foi realizada em etapas sucessivas, desde
criação e meios de comunicação na difusão e socialização dos seus produtos. Todas logo marcadas pelos episódios de caráter político que interviram na UnB e no ICA. Em 1963,
essas são questões debatidas hoje, especialmente no âmbito das ações de preservação entra em atividade o Setor de Música do ICA, e, a partir de 1964, é constituído um corpo
e memória do patrimônio arquivístico-musical brasileiro, como também da formação docente formado, em sua maioria, por professores colaboradores contratados diretamente
humanista e socialmente referenciada. pelo Conselho Diretor, por indicação seja de Claudio Santoro, seja do reitor e do vice-reitor,
ou, por último, do próprio departamento. Dessa forma, o ICA, gerado no curso-tronco de Ar-
quitetura e Urbanismo, congregou uma espécie de conselho de personalidades da música,

98 99
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

como Claudio Santoro, Régis Duprat, Rogério Duprat, Nise Obino, e artistas plásticos e ar-
quitetos, como Alfredo Ceschiatti, Zanine Caldas, Athos Bulcão, Alcides da Rocha Miranda,
entre outros. Segundo o Plano Orientador da UnB (1962), esta foi projetada para

dar a toda a comunidade de Brasília oportunidade de experiência e de


apreciação artística [...] despertar vocações e incentivar a criatividade e,
sobretudo, formar plateias esclarecidas, que se façam efetivamente her-
deiras do patrimônio artístico da humanidade (DIAGNÓSTICO, 1969: 188).

Contudo, esse projeto se vê interrompido, especialmente na perda de 305 docen-


tes ou 79% do seu quadro, na renúncia de 223 professores em 1965 – mais 16 expulsos,
dos quais 15 eram docentes no Departamento de Música: Claudio Santoro, Angel Jaso,
Fernando Santos, Gelsa Ribeiro da Costa, Joaquim Tomaz Jayme, Levy Damiano Cozzella,
Maria Amélia Cozzella, Maria Amélia Del Picchia, Moacyr Del Picchia, Nise Obino, Régis
Duprat, Rogério Duprat, Suzy Piedade Chagas Botelho e Sylvio Augusto Crespo Filho
Fig. 4: Invasão policial e prisão de alunos. Ao fundo, parte do Departamento de Música.
(SALMERON, 2007: 244-245). Fonte: Universidade de Brasília. Arquivo Central. AtoM UnB.
Assim, muitas dificuldades são apontadas no Diagnóstico... (1969),
especialmente na perda de 50% do corpo docente entre 1962 e 1968 (p. 98), “visto
que em 1968 esta área passou quase todo o ano em situação acadêmica anormal” (p. O Departamento de Música obtém a aprovação do curso no Ministério da Educa-
146), o que explica a realização dos fóruns internos na retomada das aulas no ICA- ção (MEC) em 1969, Portaria nº 64.745, de 30 de junho de 1969, quando se inicia o fun-
FAU, em outubro de 1968, após a intervenção militar de 29 de agosto (Figuras 3 e 4)3 cionamento do bacharelado (em instrumentos e em canto) e da licenciatura, permitindo
e a greve dos estudantes. No mesmo trecho, sinaliza que, nas Artes, o Curso de Música, a dupla habilitação.4 Antes disso, a capacidade formativa estava pouco estruturada, com
especificamente, apresentou o menor aproveitamento do corpo discente da área (p. índices de “sobrevivência” baixíssimos em relação aos do país.
146). Essa trajetória é marcada pela crescente intervenção militar e a dissolução do pro-
jeto de Claudio Santoro, em claro apagamento e memoricídio institucional, reforçado
ainda pelos novos atores que ingressam no corpo acadêmico do MUS.
Assim, em 1970, o ICA é extinto, e entra em funcionamento o novo Instituto de
Artes e Arquitetura (IAA), no qual se insere o Departamento de Música. Nesse contexto,
são oferecidos três cursos de extensão ao nível de formação (RELATÓRIO, 1970-1971:
40-41), num dos quais a atividade Oficina Básica de Música (OBM) aparece como módu-
lo no Curso de Treinamento e Aperfeiçoamento para Professores de Educação Musical,
em convênio com a Coordenação de Educação Primária do DF, com Ernst Schurmann em
Cultura Musical e Regência, Nicolau Kokron Yoó5 na Oficina Básica de Música e Guido
Pascoli em Tecnologia Instrumental. Naquele mesmo ano, foram oferecidos dois cursos
de extensão ao nível de aperfeiçoamento: Técnica e Estética da Música de Vanguarda,
pelo Prof. Conrado Silva de Marco, e Música Brasileira Contemporânea para Piano, com
o Prof. Paulo Affonso de Moura Ferreira (RELATÓRIO, 1970-71, ibidem).

Fig. 3: Retirada e consequente prisão de estudantes no campus da UnB, em 29 de agosto de 1968.


4
Fonte: eMEC. Disponível em: http://emec.mec.gov.br/emec/consulta-cadastro/detalhes-curso/.
Fonte: Universidade de Brasília. Arquivo Central. AtoM UnB. 5
Segundo o Relatório das atividades da UnB em 1970 (1971: 3 e 40), então chefe do Departamento de
Música e responsável pela oferta da Oficina Básica de Música. Disponível em:
3
Fonte: Universidade de Brasília. Arquivo Central. AtoM UnB. Disponível em: https://atom.unb.br/index. https://dpo.unb.br/images/phocadownload/documentosdegestao/relatoriogestao/ate1979/
php/00031 RelatorioAti-vidadesUnB1970.pdf.

100 101
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

O trabalho de OBM teve um forte impacto sobre os alunos que iniciavam o ciclo Educação e Cultura do DF (1974-80). Murtinho teria conhecido Santoro durante
básico da UnB, a julgar por depoimentos da época, quando havia 500 candidatos para uma visita deste a Brasília, em 1977, quando lhe teria convidado “para levar adiante
as 80 vagas da disciplina. No âmbito da universidade, esse era um dos poucos cursos dois grandes projetos: inaugurar o Teatro Nacional e implantar a sua infraestrutura,
abertos a toda a comunidade, sem a exigência de um conhecimento prévio da música, bem como dar vida a uma escola profissional de dança” (BUENO, 1974: 79). Portanto,
considerado como uma aula de liberdade. o retorno de Santoro impac-tará, sobretudo, a constituição da Orquestra do Teatro
Em 1971, ocorreram a contratação de Orlando Leite e o período intervencionista Nacional, a qual, numa formação inicial organizada pelo maestro Levino de Alcântara7
no MUS, ameaçado de fechamento em 1973, na “liquidação” a ser executada por Orlando com professores e alunos desta-cados da Escola de Música de Brasília (EMB) e
Leite, cumprindo ordens do reitor Amadeu Cury, como relatado por Bohumil Med, um docentes do MUS, por fim, inaugurará o Teatro Nacional em concerto emblemático, em
dos “novos músicos contratados”, a Gomes (2018: 244), que “recebeu carta branca para 6 de março de 19798.
renovar o corpo docente”, realizando uma Santoro passará também a integrar os quadros da Fundação Cultural do Distrito
Federal como regente, como ocorrerá com a maioria dos professores de instrumentos,
contratação dos melhores profissionais para cada área da música [que]
dispensou o concurso e qualquer outro tipo de seleção. [...] E bastou a que estarão lotados tanto no MUS quanto na orquestra (Figura 5). E será a Orquestra
avaliação do professor Orlando Leite para validar o processo. E assim se do Teatro Nacional palco para os dolorosos embates de Santoro, quando Marlos Nobre
deu essa nova contratação para contrato de tempo integral [...] Todos se torna diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal entre 1988 e 1990, Santoro
oficialmente contratados! (MED apud GOMES, 2018: 244). tendo falecido em 1989.

Essa “liquidação” alcança, mesmo que metaforicamente, todo o corpus acadêmico


e criativo, seja aquele configurado por Santoro, que, em 1965, integrará os docentes de-
missionários, seja aquele parcialmente (re)constituído na intervenção de 1968 até 1975,
período no qual um dos últimos representantes da geração dos compositores baianos
se demite (Fernando Cerqueira) e outro coloca fim à sua vida (Nicolau Kokron, em
1971).
Tal situação ultima, em 1976, a extinção do IAA e a abertura do novo Instituto de
Expressão e Comunicação (IC), o Departamento de Música sendo designado como
Departamento de Arte (ART). Nesse ínterim, são contratados os membros do Quarteto de Cordas
e do Quinteto de Sopros, ambos identificados como “da UnB”, sucedidos por novas
contratações6.
Não obstante, o ART/MUS vivencia um ano de grande turbulência política,
quando ocorrem os “incidentes estudantis” (RELATÓRIO, 1977: 18), que culminam na Fig. 5: Apresentação da Orquestra do Teatro Nacional na Reitoria da UnB, sob a regência de Claudio
invasão do campus por tropas militares em 6 de junho de 1977. Segundo os dados Santoro, com a participação de docentes e alunos do MUS e da EMB. Fonte: Universidade de Brasília.
Arquivo Central. AtoM UnB.
sobre as invasões históricas da UnB (abril de 1964, setembro de 1965, agosto de 1968,
junho de 1977 e posteriores, até a abertura política de 1979), a sucessão de Amadeu 7
Em depoimento a Sousa e Almeida (2013: 48), Levino de Alcântara afirma: “Bom eu gastei nove
Cury pelo professor, doutor em física e capitão de mar-e-guerra José Carlos de anos mais ou menos cuidando da educação musical nas escolas. Então ficou funcionado, um dia veio
um go-vernador para cá e fez funcionar o teatro, ou melhor, deu corpo, deu vida ao teatro. Então me
Almeida Azevedo, em maio de 1976, não conteve, mas recrudesceu os protestos, que chamaram assim: ‘maestro, o teatro tá pronto. Precisamos fazer a inauguração.’ Aí eu comecei a ensaiar
resultaram na greve de estu-dantes e professores para “pôr um fim às agressões que uma obra de Villa- Lobos. Eu estudei com Villa-Lobos três anos, então eu tinha uma intimidade muito
forte e via o tra-balho que o Villa queria fazer no Brasil naquele tempo. Então quando o trabalho estava
sofriam” (RELATÓRIO, 1977: 18).
mais ou menos ensaiado, eu convidei até a viúva de Villa-Lobos para vir assistir o concerto, eu chamei
Em 1978, ocorre o retorno de Claudio Santoro, intermediado pelo o maestro Claudio Santoro para reger porque eu tinha minha escola, e ele estava aqui sem
embaixador Wladimir Murtinho (1919-2002) (BUENO, 2017: 110), então presidente praticamente nada”.
da Fundação Educacional do Distrito Federal (1974-79), como também secretário de 8
A composição era a da Orquestra da Escola de Música, com professores e alunos, convocada para
o concerto de inauguração do Teatro Nacional, acrescida com o quadro docente do MUS, i.e., o Quarteto
de Cordas e o Quinteto de Sopros. Assim, a composição daquela orquestra não é a composição
6
Esse fluxo histórico, inclusive de contratações, é expresso no “Apêndice 1 – Tabela 2: Síntese cronológica posterior com enquadramento laboral do Fundação Cultural do Distrito Federal (FCDF). Uma correção
dos eventos históricos na construção do Departamento de Música da UnB”. foi solicitada nos registros que circulam na cidade (MACEDO, 2009), nos quais foram incorretamente
utilizados dados da composição ulterior, e não como corretamente exposto por Mattos e Pinheiro
(2007: 212).
102 103
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Apesar de os relatórios não avançarem e serem interrompidos entre 1985 e gislação. Ao nível da pós-graduação, desenvolve o Programa de Pós-graduação Música
1993, alguns esclarecimentos e detalhamentos necessitam ainda ser discriminados, em Contexto (PPGMUS-UnB), criado em 2004, renomeado, em 2018, como Programa de
embora questões mais distantes e controversas já se tornaram mais claras com os Pós-graduação em Música, que oferece o mestrado acadêmico stricto sensu, avaliado,
dados obtidos e cruzamentos de informações, já que ainda alguns equívocos devem em 2021, com conceito 4, e já preparado para abertura do doutorado acadêmico. Desde
ser corrigidos para que não se perpetuem. 2010, desenvolve também o grupo PET-Música em Etnografia, vinculado ao Programa
Considera-se ainda que, ca. 1979, o ART/MUS constitui o seu primeiro núcleo es- de Educação Tutorial (PET).
tável, ampliado, posteriormente, por novas contratações e reintegrações de docentes Por fim, ao analisarmos os elementos estabelecidos, há mais de meio século, no
exilados ou demitidos por questões políticas e reduzido por aposentadorias ao longo projeto original de Claudio Santoro, de 1962, destacamos a sua atualidade, fruto da
do tempo. Tais mudanças atendem a diversas demandas, além de disputas internas por renovação que Brasília representou, sobretudo no adensamento da intelectualidade
maiores espaços de poder simbólico, que viriam a desafiar ou mesmo tentar alterar a brasileira trazida para a capital, no qual um projeto pedagógico em música teria, neces-
sua configuração e seu propósito enquanto departamento voltado à criação, ao ensino sariamente, que se articular com as preocupações sociais do momento.
e à reflexão da prática musical. Ou seja, confrontam ainda, o mal compreendido
conceito de “habitus conservatorial”, atribuindo, de forma indevida, ao exercício 3.3 Espaços arquitetônicos do MUS: Oscar Niemeyer e Lúcio Costa
artístico, a pecha de “repetitivo” e “antiquado”, não reconhecendo seus legados de O Departamento de Música está instalado no dito Sítio Histórico da Universidade
práticas transmitidas por tradições orais, que fazem parte de um patrimônio imaterial de Brasília, nas dependências originais dos prédios de Serviços Gerais (SG)9 da UnB (o
a ser preservado e aco-lhido, em toda a sua extensão como ofício. SG-02 e o SG-04, Figura 7), edifício projetado por Oscar Niemeyer e detalhado por
A matriz curricular até então vigente foi revista somente em 1988, promovendo João Filgueiras Lima (Lelé), com jardins internos da paisagista Alda Rabelo. Uma lista
alterações substanciais no âmbito da licenciatura (com a implantação do curso de Li- detalhada das edificações da UnB, inclusive aquelas ocupadas pelo MUS, está disponível
cenciatura em Educação Artística com habilitação em Música), mas não do bacharelado. em CEPLAN ([20--]).
A partir dos anos 1990 e das políticas de indução das agências de fomento, como Conta com o Auditório de Música (SG-08), com mobiliário projetado por Sérgio
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Na- Rodrigues (o dito modelo “candango”), palco de muitas das suas realizações históricas, como
cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), caracterizadas pela con- os concertos de Santoro, as diversas edições do Concurso de Música de Câmara e simpósios
sistente titulação no exterior por meio de outorga de bolsas de mestrado e doutorado, históricos, como a mesa-redonda “A memória musical colonial da América Latina”, na se-
inicia-se um processo de renovação do corpo docente, marcado pela contratação de gunda edição do Festival Latino-Americano de Arte e Cultura (FLAAC), com a participação de
egressos dessas agências. Nesse período, apesar da criação da habilitação em Saxofone Curt Lange (então no Uruguai/Venezuela), José Maria Neves (coordenador da mesa), Carlos
e respectiva contratação, houve duas tentativas de reformulação do bacharelado, que Seoane (Bolívia), Carmen María Saenz Coopat (Cuba), César Bolaños (Peru), Waldemar Rol-
enfrentaram resistências do ponto de vista dos modelos de ensino da música contidos dán (Argentina) e Odette Ernest Dias, a mentora e representante do MUS/UnB.
no contexto de criação do projeto de 1969. Os prédios estão próximos ao Centro de Planejamento Oscar Niemeyer (CEPLAN)
Em abril de 2007, por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e (SG-10), onde desenhos de Niemeyer, feitos nas paredes, ainda permanecem.
Expansão das Universidades Federais (REUNI), o MUS instala a Licenciatura em Música Todas as edificações do MUS pertencem ao Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB),
diurna, com proposta articulada ao Bacharelado em Música por meio de um Núcleo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e reconheci-
Básico Comum. Em razão dessa expansão, o quadro docente do MUS ampliou-se, prin- do pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
cipalmente com docentes atuantes nas áreas de educação musical e música popular. A como patrimônio mundial. O campus universitário foi também objeto de um “plano-pi-
partir do REUNI, passou a desenvolver a restruturação do Bacharelado em Música, que loto” para a Universidade de Brasília (Figura 6), elaborado por Lúcio Costa, reproduzido
já se encontra em implantação e terá nove habilitações – Instrumento (aglutinando os no Plano orientador da Universidade de Brasília (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 1962). O
instrumentos orquestrais), Piano, Violão, Canto, Composição e Regência, mas ampliando- arruamento tem traçados entremeados pelos prédios dos vários institutos da UnB, sen-
-as com a oferta de habilitações em Musicologia, Música Popular e Tecnologia Musical do o Instituto de Artes previsto, desde então, para a localização C, todos implantados na
–, de forma a melhorar a identidade profissional do aluno, com o curso em melhor sin- área gramada, em parque aberto à população da cidade. Destacam-se a localização dos
tonia com o mercado de trabalho. Oferece ainda a Licenciatura em Música nos turnos
diurno e noturno e à distância (UAB), voltados à educação básica, como previsto na le-
9
Denominados como SG, abreviatura de serviços gerais.

104 105
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Institutos das Artes (C) e Letras (B) a leste, e junto à Aula Magna (1), Reitoria (2) e três Tal fato evidencia que, embora planejados na origem, os processos de ocupação
Museus: da Ciência (3), de Arte (4) e da Civilização Brasileira (5). humana dessa geografia dos espaços sofrem desgastes e alterações, por vezes profun-
Embora localizado nos prédios de Serviços Gerais (SGs), ocupados até hoje pelo das, ao ponto extremo de descaracterizar a concepção original da obra arquitetônica e
IdA e pelo MUS, o projeto de construção do novo edifício, que abrigará a Direção, secre- urbanística, exigindo atenção constante e cuidado na preservação do patrimônio artís-
tarias e os programas de pós-graduação, tem entrega prevista para o primeiro semestre tico brasileiro, além da mobilização de estratégias pedagógicas na construção de uma
de 2024, após longa e disputada batalha interna pela designação da área que já lhe era identidade e uma memória integradas às novas realidades.
prevista (Figura 6).
3.4 O vórtex criativo em criação musical do MUS: Música Viva, Música
Nova, Compositores da Bahia e o Movimento Candango de Música Contempo-
rânea (MC)10
Na análise dos diferentes “tempos” do MUS, destacamos um núcleo de composi-
ção musical, que, por distintas razões e reveses, veio a se consolidar na UnB e em seu
Departamento de Música, como um desses tempos mais marcantes. Esse fenômeno,
designado aqui como o “vórtex” criado em Brasília, no encontro de representantes dos
movimentos criativos do Música Viva (Koellreutter e outros), do Música Nova (Rogério
Duprat e outros) e do Grupo de Compositores da Bahia (Jamary Oliveira e outros), a que
se soma a criação do MC11, além de outras iniciativas de e para a música contemporânea.
Na leitura que fazemos desse período, distinguimos, primeiramente, todos os en-
Fig. 6: Plano-piloto da Universidade de Brasília, 1960. Fonte: CEPLAN ([20--]). laces do contexto de modernidade, inovação e conquista de um Brasil sedento de iden-
tidade e de impressão de sua marca, significadas e subjetivadas na criação de Brasília. A
concretização modernista que Brasília virá a representar alcança o plano internacional
numa versão própria, num traço particular e quase “carioca” dos postulados do funciona-
lismo purista francês, já agora num “novo espírito” tropical, brasileiro, capaz de até proje-
tar, ainda em maior escala, os princípios que lhe deram origem. Assim, o esprit nouveau do
SGs: ICA / IAA / IC / Área C: novo Le Corbusier, como assimilado, interpretado, subjetivado e materializado por Niemeyer e
Lúcio Costa, integra-se ao esprit du temps, no sentido de que terá “chegado a sua hora” no
IdA IdA Brasil de JK, tornando Brasília o epicentro dessa revolução, para onde convergem todos
esses anseios e movimentos, provendo, no Departamento de Música da Universidade de
Brasília, uma morada provisória para as vanguardas musicais brasileiras.
Consignados nas concepções da Neue Musik, desde Koellreutter, e das vanguardas
musicais que ocuparão a UnB, estarão direta ou indiretamente presentes nos principais

10
1962-1965: Santoro, como aluno e colaborador de Koellreutter e membro do movimento Música Viva,
constitui o departamento trazendo, ainda, os representantes do movimento Música Nova (Damiano Co-
zzela, Rogério Duprat e Régis Duprat), como também músicos então professores na UBa (Moacyr Del
Picchia, Nicolau Kokron e Yulo Brandão), que atuaram até outubro de 1965, momento em que todos estes
se juntam ao pedido coletivo de demissão dos professores, ocorrido após a invasão do campus, em 8 de
setembro de 1965.
11
1965: A esses se agregam os alunos dos seminários livres de Música da Universidade da Bahia (UBa),
alguns autores do futuro Manifesto do Grupo de Compositores da Bahia (novembro de 1966), que chegam
Fig. 7: Vista aérea do campus da UnB, ca. 1960, com o Sítio Histórico, onde estão os SGs do MUS/IdA, à à UnB em março de 1965 – ou seja, sete meses antes da demissão coletiva –, instalando o leque mais
esquerda; e a nova localização do IdA, hoje em construção, à direita, na área original (C). representativo e inovador das tendências musicais do país em Brasília, na sua universidade.

106 107
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

refortalecendo o modo convencional de pensar a Música e o ensino e


manifestos das vanguardas musicais brasileiras do Música Viva (1944, 1945 e 1946) e a sua relação com a política institucional da Universidade e com todo
do Movimento Música Nova (1963) e na Declaração de princípios dos compositores da o resto (CERQUEIRA, 2010 apud NOGUEIRA, 2011: 369, grifos nossos).
Bahia (1966), num clamor pela Neue Musik do mundo pós-tonal, no sentido adorniano
e filosófico-sociológico da escola de Frankfurt, e por um chamamento à construção de Antes que Fernando Cerqueira retornasse a Salvador (1975), ingressou, em 1973,
um universo humanista revolucionário, essencialmente anarco-socialista, das vertentes no MUS, também a convite de Orlando Leite, o compositor carioca Jorge Antunes,
libertárias pós-bolcheviques. agregando-se também, aos compositores, o uruguaio Conrado Silva (entre 1969-1973,
Podemos identificar, ainda, convergências com o purismo e o funcionalismo hu- reintegrado em 1992) e o argentino Emilio Terraza (1969-1971; 1975-1993); e, aos
manista do esprit nouveau, que não só clama pelo “novo”, como também pelo “útil”, instrumentistas engajados na execução da música contemporânea, o pianista Paulo
como no poema-produto da poesia concreta, especialmente no que diz respeito ao Affonso de Moura Ferreira e o luthier Guido Pascoli, que experimentava com instru-
“diálogo com as massas”, questão que assombrará os compositores em um nível muito mentos musicais.
mais subjetivo e epistêmico na abordagem de construção das novas linguagens e de Fernando Cerqueira dirá ainda a Nogueira (2011: 371) que “voltar para a Bahia sig-
discursos musicais. nificava recuperar aquele sentido novo musical e de equipe criativa que construímos e
Essa rede, fundamentada e desenvolvida através do ideário de Koellreutter, cria perdemos em Brasília e que tornava o Departamento de Música da UnB, de certa forma,
gerações de compositores e músicos, e ainda de ouvintes e agentes articulados no semelhante aos Seminários de Música da Universidade Federal da Bahia, mesmo com
“novo”. Possibilita, de forma inédita e única, que o MUS abrigue, simultaneamente, entre toda aquela diversidade”. O que Fernando Cerqueira tampouco encontrará em Salvador,
março e outubro de 1965, membros dos três grupos de vanguarda, os quais, apesar das pois a “Escola de Música estava diferente institucionalmente” e “o ambiente ideológico
constrições políticas na instauração da Ditadura Militar, puderam interagir num “semi- e político em 1975 era [...] do descompromisso de quase todos os professores e músicos
parnasso” criativo em pleno cerrado. com assuntos que não envolvessem problemas internos da Escola” (CERQUEIRA, 2010
Em depoimento a Nogueira (2011: 369), Fernando Cerqueira, embora não revele apud NOGUEIRA, 2011: 372).
um aspecto “salvacionista” ou “socorrista” ao projeto brasiliense, demonstra como a vor- Algo mudou não somente ao nível das escolas e departamentos, mas ao nível do
ticidade do esprit nouveau exerceu papel basilar, alterando-se, posteriormente, na con- país, com a Ditadura Militar recrudescendo, sufocando e não fortalecendo as “utopias” e
tratação do corpo docente menos politizado, mas também mais coagido pelas políticas os novos espíritos. Agora, como isso ocorreu e como foi ou não negociado naquele con-
de silenciamento então vigentes na UnB: texto político é uma questão em aberto, que necessita ser aprofundada tanto em relatos
orais como também na documentação dos órgãos de inteligência do MEC e do Serviço
O que mais me atraiu [...] foi a efervescência e a modernidade das Nacional de Informações (SNI), que mantinha vigilância sobre os agentes percebidos
ideias na UnB, que levavam a um pensamento mais experimental, com
por esses setores como “uma articulação global de profissionais em prol de interesses
pesquisas metodológicas e reflexão antropológica sobre o papel da
arte e do artista, considerando a Música de modo integrado na sua comunistas” (ÁVILA, 2021: 85).
percepção estética e na relação epistemológica com as demais expres- Para além da carga letiva (composição, contraponto, acústica musical), Antunes
sões artísticas. O ambiente de centro de artes que o IAA proporcionava desenvolve atividades de concerto e criação por meio do Grupo de Experimentação
facilitou essa integração de pessoas e ideias em torno de um pensa- Musical da Universidade de Brasília (GeMUnB), dedicado ao repertório contemporâneo,
mento mais próximo da vanguarda, apesar de politicamente naciona-
lista porque não podia deixar de envolver a luta contra a repressão e com a participação dos docentes contratados por Orlando Leite, assim como organiza
pela volta da democracia. [...] A modernidade arquitetônica de Brasília o Movimento Candango de Música Contemporânea, de caráter associativo, em prol da
certamente favorecia este modo de ver a arte, intelectual e sensorial- música coetânea. Com o GeMUnB, Antunes realiza concertos na UnB desde a sua che-
mente engajada no puro novo. Brasília, no entanto, perdia para a Bahia gada, em audições-palestras no Auditório de Música na UnB e no Auditório Dois Can-
naquilo que musicalmente termina sendo o essencial: a criatividade
dangos. Em 1975, faz uma extensa turnê no Brasil e uma turnê europeia, para a qual
espontânea e a vivência musical [...] Voltei para a Bahia quando aquele
espírito [...] já havia se deteriorado, por dispersão dos componentes Orlando Leite obteve apoio da UnB e do Itamaraty, com concertos em Cuomo, Roma,
e por divergências com as novas orientações provocadas pelas Haia, Bruxelas, Amsterdã, Paris, Londres, Lisboa e Madri, cujos programas incluem obras
mudanças no corpo docente, com novos músicos contratados, em geral de Stockhausen, Riley, Tacuchian, Jamary Oliveira, Tomás Marco, Kagel, Luis de Pablo e
instrumentistas. Apesar de excelentes profissionais e apoiadores dos
Conrad de Jong. Finaliza o ano regendo concerto da Orquestra Sinfônica Brasileira, na
projetos dos compositores, [...] não compartilhavam das ideias sociais
e políticas do grupo anterior e foram aos poucos reestabelecendo e Sala Cecília Meireles, com a primeira audição no Brasil de suas obras sinfônicas.

108 109
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Em 14 de novembro de 1977, motivado pela carta-aberta de 23 compositores no descreve o texto de apresentação do site da sociedade (ANTUNES, [20--]). O Encontro In-
I Simpósio Internacional de Compositores, em São Bernardo do Campo, que demandava ternacional de Música Eletroacústica contou com três edições, sendo a última em 2003, em
a criação de entidades regionais e corpos organizados interessados na “prática, criação Brasília, no Teatro Nacional (já batizado como) Claudio Santoro, onde docentes do MUS
e divulgação da nova música brasileira”, Jorge Antunes e outros 17 músicos, inclusive e convidados executaram obras de 33 compositores nacionais e internacionais, inclusive
Orlando Leite e outros oito docentes do MUS, fundam o MC. Em seu Comunicado nº 1: com um concerto integral pelo renomado saxofonista francês Daniel Kientzy.
novembro 1977 (ANTUNES, 20--), anunciam, ainda, o próximo concerto, em 5 de dezem- Ou seja, uma música eletroacústica eclética nos desdobramentos de “círculos co-
bro de 1977, na Sala de Concertos da Escola de Música de Brasília, com um “programa laborativos” (FARRELL, 2001), agora articulados localmente, refletindo, ainda, o escopo
inteiramente dedicado a seis dos jovens compositores brasilienses: Celso Eira, Maria do desenho associativo desenvolvido pelos compositores brasileiros, no empenho pela
Helena Costa, Wilson Trajano, Ney Rosauro, Emílio César de Carvalho e Eduardo Farias”. institucionalização da música contemporânea, realizada por uma “coalizão pela produ-
As atividades possibilitadas ou tangenciadas por esse vórtex em terras candangas ção nacional de música de concerto” (ÁVILA, 2021: 85), que inclui compositores e todos
incluem as três edições do Encontro Nacional de Compositores realizadas em Brasília, os demais agentes desse ecossistema.
presididas por Paulo Affonso de Moura Ferreira, que trouxeram um conjunto eclético de Não obstante, os círculos colaborativos dessa coalizão se trasladaram a Brasília,
compositores, cujo motivo era, na realidade, problemas recentes na dinâmica da Socie- reforçados por novas iniciativas locais, que passam a exercer uma função coesiva e
dade Brasileira de Música Contemporânea (SBMC). integradora, na tentativa de dar novo fôlego à SBMC. Esses círculos se transmutam, e o
Isso posto, não foi simplesmente um evento que “incluiu a cidade no mapa da local de incidência do vórtex muda, sem que se perca de vista o horizonte de interesses
música erudita contemporânea” (BUENO, 2017: 196-198), mas uma reorganização asso- comuns. Dessa forma, o ponto nevrálgico dessa coalizão permanecerá no Rio de Janeiro,
ciativa da classe criativa, reunindo compositores não necessariamente ligados aos mo- por meio das edições da Bienal de Música Contemporânea, relevante não só pela qualida-
vimentos anteriores, embora também os representantes desses mesmos movimentos de, como também pela longevidade das ações, que remontam ao Festival de Música da
(Edino Krieger e César Guerra-Peixe, do Música Viva; Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Guanabara, organizado por Edino Krieger em 1969 e 1970.
Oliveira, do Música Nova; Lindembergue Cardoso e Jamary Oliveira, do Grupo Baiano),
assim como os seus antagônicos, com a presença de Camargo Guarnieri já no I 3.5 Finalmente Darcy...
Encontro, de 1975. Compositores do DF listados por Bueno (2017: 196-204) foram O protagonismo da Universidade de Brasília e seu Departamento de Música nesta
Emmanuel Coelho Maciel (o violinista da “pequena, mas completa” orquestra de historiografia musical de Brasília está ancorado ainda em preceitos urbanísticos, mais
Santoro), Orlando Leite, Jorge Antunes, Rafael Menezes Bastos, Maria Helena da Costa, do que arquitetônicos, na inserção de um campus universitário em uma área urbana,
Emilio Terraza, Emílio César de Carvalho e Carlos Alberto Farias Galvão. Nota-se, a que extrapolam, segundo Motta e Lima (2020), o âmbito acadêmico e cultural, já que “as
partir do II Encontro, de 1976, uma gradual expansão a representantes do Rio Grande repercussões físicas, sociais e ambientais causadas por sua implantação são sentidas
do Sul (Bruno Kiefer e Armando Albuquerque) e do Pará (Waldemar Henrique), além em diferentes escalas, tanto em relação à integração com a cidade, quanto à vinculação
dos diversos estados representados por compositores de São Paulo, Rio de Janeiro, com o indivíduo e o seu entorno imediato”, fazendo com que “um campus universitário se
Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Piauí. Identificamos, ainda, a presença de constitua em um grande equipamento urbano que pode ser localizado de forma a pro-
observadores e representantes de instituições re-levantes para o meio cultural, como mover uma participação mais ativa da universidade junto à sociedade” (MOTTA; LIMA,
Vicente Salles (Programa de Ação Cultural-PAC, do Ministério da Educação e Cultura), 2020: 103.551).
que se radicou em Brasília e se destacou como mu-sicólogo em temas do seu estado Como equipamento urbano de grande porte, um campus universitário gera mudan-
natal, o Pará, e Vasco Mariz, o diplomata historiador da música brasileira e autor de ças na organização espacial da cidade e influi nas atividades em seu entorno, bem como
Figuras da música brasileira contemporânea, cuja segunda edição, mais conhecida e se constitui em referência na estrutura e tecido urbano (LOPES JÚNIOR; SANTOS, 2010).
disponível hoje, foi publicada pela Editora da Universidade de Brasília, em 1970. Essa ligação universidade-cidade promove “o surgimento de novas áreas”, ocorrendo,
Jorge Antunes formará, ainda, a Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica nesse processo, “a descontinuidade do território da cidade e a criação de novos espaços
(SBME), em setembro de 1994, atendendo a uma “curva de crescimento” de compositores que representam a fragmentação” (LOPES JÚNIOR; SANTOS, 2010). É nessa fragmenta-
dedicados à música eletroacústica; se, no “final dos anos 60[,] menos de cinco composi- ção, ocorrida num espaço amplo e geograficamente situado num planalto, com hori-
tores brasileiros praticavam aquela linguagem musical”, “no início dos anos 90[,] a comu- zontes de visão dilatados, que espaços subsidiários e complementares surgem, numa
nidade eletroacústica brasileira já somava mais de uma centena de criadores”, conforme ocupação pelas forças criativas da cidade.

110 111
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Nesse sentido, destacamos os textos publicados no número 14 do periódico Carta’: 2. informais: desenvolvimento de práticas musicais que foram se estabelecendo
falas, reflexões, memórias, sob o título A invenção da Universidade de Brasília, um informe a partir dos aportes pessoais de indivíduos migrantes (Maranhão,
de distribuição restrita do senador Darcy Ribeiro, demarcando o ano da outorga do títu- Paraíba, Pernambuco, Ceará, para nomear apenas) e de núcleos de
lo de doutor honoris causa a Darcy pela Universidade de Brasília e a mudança do nome práticas urbanas, como o rock de Brasília, além do rap e o funk, am-
do campus universitário para Darcy Ribeiro, em março de 1995. bos situados na periferia, i.e., nas cidades-satélites.
O texto “UnB em dois tempos”, de Geralda Dias Aparecida (1943-2021), historia-
dora e ex-docente do Departamento de História da UnB, tange um problema crucial, 3.6 Institucionalidade e forma: SEEDF e FCDF
que preocupará a mente de vários autores que se debruçam sobre a problemática de Entre as organizações e instituições formais de ensino que abrangeram práticas
Brasília, quando afirma que musicais, além da Universidade de Brasília, temos os sistemas de ensino aos níveis
primário e médio, entre 1959 e 1960, executados, até a inauguração de Brasília, pela
a instalação de uma universidade em Brasília não constituía apenas Comissão de Administração do Sistema Educacional de Brasília (CASEB), que tinha por
um problema de ordem prática, mas suscitava a dúvida entre alguns
intelectuais e políticos, incrédulos, com a ideia de que uma cidade sem finalidade construir a rede física e montar o sistema de ensino referente a contratação
tradição não poderia abrigar com eficiência uma instituição daquele de professores, organização de currículos, efetivação de matrículas, aquisição de equi-
porte ou, simplesmente, viria alterar a ordem da nova cidade (APARECI- pamentos e material escolar.
DA, 1995: 40, grifos nossos). Essa comissão foi logo substituída pela Fundação Educacional de Brasília (março
de 1960), sucedida pela Fundação Educacional do Distrito Federal (FEDF) (junho de
Além da questão exógena percebida como a “a-tradicionalidade” da inserção de 1960), permanecendo até janeiro de 1999, quando se instala a Secretaria de Estado de
Brasília, que merece aprofundamento, por denotar amplo etnocentrismo de outros cen- Educação do Distrito Federal (SEEDF), hoje vigente. Essas instituições foram responsá-
tros urbanos, ignorando o lócus Goiás, aponta ainda essa relação da universidade com veis pela rede de ensino formada pelas ditas “escolas pioneiras de Brasília”, de nível pri-
a cidade, na construção de um polo agregador e que exercerá suas funções a partir mário, e dos centros de ensino médio (CEMs), especialmente o Ginásio do Plano Piloto
do poder simbólico que o capital cultural do homo academicus (BOURDIEU, 1979, 1982, (conhecido como “CASEB”, sigla da Comissão de Administração do Sistema Educacional
1984, 1992), lhe confere. de Brasília), o Centro de Ensino Médio “Elefante Branco” (CEMEB), o Centro de Ensino
De forma a compreender o todo orgânico desse ecossistema de práticas musi- Médio Ave Branca (CEMAB), de Taguatinga, e, posteriormente, a Escola de Música de
cais, reconhecemos que as dinâmicas e características da implantação de Brasília, assim Brasília. Também é importante destacar que as corporações militares e policiais instala-
como da sua universidade, no plano nacional e, posteriormente, no plano mundo, das em Brasília também desenvolvem práticas musicais, especialmente as bandas, que
abar-carão um processo histórico-geográfico que se dará em três tempos, a partir do atuam em sistemas de ensino próprios, alguns membros, inclusive, atuando, em caráter
desa-lojamento de populações que antecedem essa implantação, isto é, povos informal, principalmente em escolas particulares.
originários e população rural e urbana do estado de Goiás; do alojamento de novas O mapeamento dessas redes de ensino e das escolas do estado de Goiás pré-exis-
populações migrantes e instalação de estruturas formais de ensino; e do realojamento tentes à instalação da capital foi feito nos trabalhos de Reis e Cordeiro (2020, 2021),
e (con)vivência dessas populações num novo arranjo cultural e urbano. publicados na Revista Com Censo (RCC), da Secretaria de Educação do Distrito Federal e
Para tal, e partindo dos pressupostos da ocupação humana dos espaços concebi- instituições parceiras.
dos e construídos para Brasília, elencamos a seguir algumas das atividades estruturan- Essas publicações proveem uma ideia bastante mais clara sobre as estruturas de
tes que se instalaram e se desenvolveram na cidade, as quais identificamos sob duas ensino anteriores à instalação da capital e durante esse processo, em que outras es-
tipologias: feras e unidades de ensino vieram a se sobrepor, mesmo que desafiando as melhores
1. formais: organizações e instituições formais de ensino, como as Escolas Pionei- estimativas das demandas educacionais, uma vez que “o Plano de Construções de Anísio
ras de Brasília de ensino primário e médio, sob a égide da Comissão Teixeira não abordava tal perspectiva e nem incluía construções escolares fora do Pla-
de Administração do Sistema Educacional de Brasília (CASEB), o De- no Piloto” (REIS; CORDEIRO, 2020, 2021). Assim, as “vilas” erguidas pelas construtoras
partamento de Música da UnB e, mais adiante, a Escola de Música de para hospedagem de operários e engenheiros, que tinham caráter provisório, logo
Brasília; e se tornariam permanentes, como cidades-satélites – onde, aliás, hoje se encontram as
ditas periferias de Brasília.

112 113
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

A primeira escola de ensino médio foi o Ginásio do Plano Piloto (conhecido até 1961 mar trabalhadores, trazendo-o para uma apresentação no Núcleo Bandeirante, quando
como CASEB), atualmente Centro de Ensino Fundamental CASEB, inaugurado em 16 de conheceu Brasília. Retorna a Anápolis, onde alugou um sobrado, abriu uma escola e
maio de 1960, para a educação profissionalizante (artes industriais), educação para o lar, passou a dar aulas no Colégio Estadual. Com auxílio de “uma turma do Banco do Brasil”,
educação física, educação cultural, com uma biblioteca, entre outros equipamentos. Na compraram “piano etc.” e formaram uma banda, coral e orquestra. Em seguida, a história
lista de equipamentos escolares sendo adquiridos e instalados, incluíram-se máquinas, prossegue com uma segunda visita a Brasília, quando regeu a Missa de Réquiem do
instrumentos e ferramentas de artes industriais e educação para o lar, mas também “piano, padre José Maurício [Nunes Garcia], no Salão Vermelho do Hotel Nacional, com uma
instrumentos musicais para a educação cultural” (DISTRITO FEDERAL, 2019: 6). orquestra formada “por músicos de Goiânia e Belo Horizonte”. A partir daí, convidado por
Em 19 de maio de 1960, o presidente Juscelino Kubitschek, com Clóvis Salgado e o Esaú de Carvalho, diretor da Rádio Educadora, para criar o coral da emissora (embrião do
prefeito de Brasília, Israel Pinheiro, profere a aula inaugural, abrindo os cursos ginasial, Madrigal de Brasília), passa a lecionar no CASEB – a que Levino se refere como “Ginásio
colegial, clássico, científico e normal, quando se iniciam as primeiras atividades musi- Moderno da CASEB”, provavelmente por todas as novas escolas de ensino médio serem
cais (DISTRITO FEDERAL, 2019: 7-8). referidas como “ginásio” e, pelo modelo inovador, serem consideradas como “modernas”.
Reginaldo de Carvalho se encontrava em Brasília desde 1960, participando des- Estando Reginaldo de Carvalho já no CASEB, Levino decide se estabelecer no CEMAB,
se evento inaugural. Em depoimento a Bueno (2017: 82), diz ter “recebido licença [em em Taguatinga, que é a cidade-satélite que recebe mais prontamente as primeiras es-
1960] para implantar o ensino musical em Brasília”, o que se refere ao Centro de Estu- truturas, após o plano-piloto. Sua história é determinante para a cidade e para a educa-
dos Musicais Villa-Lobos (CEMVL), um núcleo de oficinas e atividades oferecidas dentro ção musical em Brasília, desde a organização de concertos abertos ao público na Sala
desses centros de ensino médio, primeiro no CASEB e logo no CEMEB. Martins Pena até a instalação definitiva, em 1974, da Escola de Música no seu atual
O segundo centro de ensino médio, inaugurado em abril de 1961, foi o CEMEB, endereço, na L2 Sul.
próximo ao CASEB, que por se encontrar em construção desde o começo de 1960, foi por As estruturas da EMB incluem corpos artísticos importantes, pela sua atuação na
isso denominado “Elefante Branco”. cidade e pela capacidade de nucleação artística e formativa. Pela sua formação em re-
O terceiro centro de ensino médio a oferecer atividades musicais, inaugurado em gência coral, Levino de Alcântara construiu o Madrigal de Brasília, regendo também a
agosto de 1961, foi o CEMAB, de Taguatinga, inicialmente Ginásio de Taguatinga, inseri- Orquestra Sinfônica da Escola de Música, assim como Reynaldo Coelho, músico militar
do na Escola Industrial de Taguatinga (EIT). Ou seja, estruturas menores eram abrigadas atuando na EMB, desenvolveu a premiada Banda Sinfônica da Escola de Música, vence-
provisoriamente em estruturas maiores, como também ocorrido com o CEMVL, primeiro dora do 2º Campeonato Nacional de Bandas, numa das ações da Fundação Nacional de
no CASEB, depois no CEMEB. Artes (Funarte) na década de 70.
Portanto, junto com o CASEB, o CEMEB e o CEMAB, o CEMVL é um marco impor- A construção da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional (hoje) Claudio Santoro
tante para as práticas musicais em Brasília, especialmente pelas atividades abertas à partiu da Orquestra Sinfônica da Escola de Música de Brasília, dirigida por Levino de
comunidade, nas quais participaram personalidades de projeção nacional como Ney Alcântara, que contava com os professores da escola e alunos escolhidos por meio de
Matogrosso (1941-) e Guilherme Vaz (1948-2018), e outros que marcaram Brasília, como concurso para bolsas12.
Carlos Galvão, Laura Conde (integrante do GeMUnB) e Vanda Oiticica (posteriormente, “Emprestada” para o ato inaugural da Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional, essa
professora de canto da Escola de Música de Brasília). orquestra se torna permanente sob a regência de Claudio Santoro após o concerto de
Desde já, constatamos a rede de interação de músicos profissionais, com diversas 6 de março de 1979, com obras de Villa-Lobos. Mattos e Pinheiro (2007: 216) relatam,
formações e origens, que, em Brasília, criam círculos colaborativos e se congregam para de forma bastante completa e correta, esse episódio, quando afirmam que a Orquestra
executar ações e alcançar objetivos comuns, ocupando os espaços abertos na nova capital. Juvenil da EMB “igualmente participou da inauguração da Sala Villa-Lobos do Teatro
Nacional com um concerto de sua orquestra em 1979”. Os autores destacam, na gestão
3.7 Escola de Música de Brasília (EMB) do maestro Levino de Alcântara,
A Escola de Música de Brasília, em consenso com os diversos relatos, partirá das
ações de Levino de Alcântara (1922-2014) no CEMAB. A história relatada por Levino a
Lopes (2006 apud BUENO 2017: 89) é “mais ou menos” assim: natural de Recife, tendo
estudado na Escola Nacional de Música no Rio de Janeiro e atuado como assistente
12
Não posso deixar de mencionar que eu fui um desses alunos “premiados”, e essa verba, economizada,
permitiu que eu comprasse minha passagem, quando a oportunidade de estudar em Paris com Jean-Pier-
de Villa-Lobos, é convidado, em 1957, a ir a Anápolis para organizar um coral para ani- re Rampal surgiu. Essa pequena bolsa certamente foi determinante para muitos jovens músicos naquele
momento, colegas da orquestra como Armênio Suzano, Dilson Florêncio e Vânia Godinho.

114 115
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

a fundação da OTN - Orquestra do Teatro Nacional. hoje OSTNCS - Or- Ou seja, uma coalizão de círculos colaborativos locais para formar e subvencionar
questra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, [...] a partir da
antiga Orquestra da EMB em esforços conjuntos dos maestros Levino os salários de uma orquestra, longe daquela “pequena, mas completa”, de Claudio San-
de Alcântara, Claudio Santoro e dos secretários de governo Eurides Bri- toro. Representa ainda uma demonstração do capital cultural da UnB, com a adesão do
to e Carlos Matias, em 1980 (MATTOS; PINHEIRO, 2007: 216). então vice-reitor e de setores do empresariado de Brasília. Também demonstra o capital
cultural dos professores da Medicina enquanto classe capaz de agregar um círculo ain-
Essa articulação entre Claudio Santoro e Levino de Alcântara é exemplar na cons- da maior de membros.
trução de boas práticas em prol de um objetivo comum, formando mais um elo nos
círculos colaborativos entre a Universidade de Brasília e a Escola de Música de Brasília. 3.9 Orquestras sinfônicas, um teatro e uma fundação
Ambos, Levino de Alcântara e Reynaldo Coelho, deixaram legado substancial na O estabelecimento da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro
formação de músicos na cidade e, respectivamente em 2010 e 2011, receberam ho- encerra estruturas e problemas ocasionados a partir da instalação da Fundação Cultu-
menagens em vida, além da comemoração pelo Centenário de Levino de Alcântara em ral do Distrito Federal, a qual a orquestra estava subordinada. Problema inequívoco do
2022. ponto de vista sociológico, e questão repisada por Claudio Santoro, na desnecessária
subordinação do cargo de regente como indicação política no loteamento de cargos e
3.8 Orquestra Sinfônica do Distrito Federal – Fundação Ars Brasiliensis interesses, nas fragmentações partidárias impostas no território político de Brasília.
Entre outros elos formados pela e com a Universidade de Brasília, a Orquestra Sin- Essa polarização entre Direção do Fundação Cultural do Distrito Federal (FCDF) e
fônica do Distrito Federal é, do ponto de vista sociológico, um caso interessante, por se o regente causou tensionamentos de tal grandeza que, dez anos após a estreia da or-
tratar da constituição de um corpo orquestral por pessoas externas aos círculos de mú- questra (1979), seria possível cogitar como terá afetado a saúde de Santoro, que faleceu
sicos e artistas. Foi formada por meio de um mecenato, principalmente de professores enquanto regia um ensaio desta. Em homenagem ao seu legado, em 1989, a casa foi
de vários departamentos da Universidade de Brasília, com apoios e patrocínios públicos renomeada como Teatro Nacional Claudio Santoro.
e privados13, num cartel de indústrias e comerciantes. Dos seus 71 sócios fundadores e O corpus pré-existente ao da criação da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional
efetivos, 25 são professores da UnB – em: Medicina (20); Biologia (1); Engenharia Me- Claudio Santoro é formado por uma malha colaborativa que incluía alunos e professo-
cânica (1); Faculdade de Tecnologia (1); Línguas Clássicas (1); e o próprio futuro reitor res da Escola de Música de Brasília e do Departamento de Música da UnB, como tam-
da UnB, José Carlos de Almeida Azevedo, da Física (1) –, além de pelo menos outros sete bém músicos de bandas militares, e o que mais fosse possível e necessário em termos
médicos, alguns muito conhecidos na cidade, como Aloysio Campos da Paz, responsá- de pessoal e equipamentos, que deu suporte até a sua efetivação.
vel, a partir de 1968, pelo Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek, e Gustavo Fonseca, Em 1976, o concerto dessa orquestra híbrida teve como finalidade demarcar o
odontologista. A identificação desses sócios foi feita a partir dos vários Relatórios gerais fechamento do teatro até 1978, quando “suas duas salas estarão acabadas, os palcos
de atividades da UnB, alguns já citados, fazendo o cruzamento de informações entre equipados com os melhores aparelhos de som e iluminação, e um velho sonho ter-se-
o programa do concerto inaugural, de 1970, e os nomes de docentes constantes nos -á realizado” (RÓNAI, 1976). A Sala Villa-Lobos, parecendo um depósito, já apresentava
diversos relatórios. Os demais 39 membros ainda não foram identificados, podendo “en- ameaça à segurança pública, gerando o caso dos seus fantasmas, reportando a aciden-
grossar” as fileiras dos médicos, que já perfazem 38,02% do total de sócios-fundadores e tes ocorridos, pois os vultos seriam os dos seis operários que morreram durante a sua
efetivos, e de docentes da UnB, que perfazem 35,21%. Gostaríamos de sinalizar que essa construção, e de um garçom, encontrado afogado numa piscina natural embaixo do
pesquisa requalifica o afirmado por Bueno (2017: 195): que a Ars Brasiliensis foi consti- palco ao fim de um baile de Carnaval.
tuída “a partir da adesão de médicos admiradores da música clássica”, pois, na realidade, Nesse processo, temos, ainda, a Fundação Orquestra Sinfônica de Brasília (FOSB),
o foi por um considerável efetivo de docentes da UnB, dos quais 74,07% lecionavam na criada em 1965 por Esaú de Carvalho, irmão de Eleazar de Carvalho, diretor da Rádio
área da medicina. Educadora e pai de Emílio César de Carvalho, e Levino de Alcântara, o que teria moti-
vado a saída de Levino do CEMAB, de Taguatinga, para o CEMEB “Elefante Branco” no
plano-piloto.
13
Apoios e patrocínios de: Ministério da Educação e Cultura; Fundação Cultural do Distrito Federal; Esco-
la Paroquial Santo Antônio: Frei Miguel Breman; Correio Braziliense S.A. e TV Brasília; Corpo de Bombei- Cruzeiro (2018) faz esse levantamento relatando que, apesar dos concertos reali-
ros do DF; Batalhão de Guarda da Presidência da República; Polícia Militar do DF; Base Aérea de Brasília; zados na Sala Martins Pena entre 1964 e 1965, e dada a escassez de recursos, “as ativi-
Artes Gráficas Regina; Banco da Lavoura de Minas Gerais S.A.; Brasal S.A.; Churrascaria do Lago; Curso
Pré-universitário; Hotel Nacional de Brasília; Mainline Móveis S.A. – Indústria e Comércio; Ótica Luxor dades progrediram lentamente e essa orquestra acaba se configurando como Orquestra
Ltda.; Skol International Beer; Valença Veículos, Indústria e Comércio.

116 117
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

da Escola de Música de Brasília, que associada à FOSB, concedia 40 bolsas de estudo Em seu depoimento ao ArPDF (2008: 132), de 18 de março de 1993, Teodoro dis-
aos alunos e pagava cachês aos músicos convidados” (CRUZEIRO, 2018: 39-40). Emílio corre sobre as festas populares do Maranhão e a introdução do Bumba-meu-boi quando
César esclarece como se dava a participação de alunos e professores da Escola de retorna ao Rio de Janeiro, em 1953. Como relata Brochado (2012), foi então que chegou
Música de Brasília e do Departamento de Música da UnB, como também de músicos a Brasília, em 1961, a convite de Ferreira Gullar, assessor do presidente Jânio Quadros,
das bandas militares que atuavam na cidade: no primeiro aniversário da Capital. Logo encaminhado ao Ministro da Educação, Darcy
Ribeiro, passa a trabalhar na UnB, quando é indicado para
Com a FOSB, o Levino então consegue verbas, vão conseguindo verbas
e com essas verbas ele começa a criar algumas bolsas de estudo na falar de literatura de cordel para os professores do Instituto de Letras
Escola de Música de Brasília [...]. Guerra-Peixe esteve aqui tocando e que iriam participar do IV Congresso de Literatura de Cordel, em João
falando, dando aulas etc. [...] o Levino foi conseguindo com a FOSB o Pessoa. Resulta dessa aproximação, o fato de que, inicialmente ele tra-
dinheiro pra fazerem cachês, etc. Por isso que a escola de música co- balhou no Instituto de Letras, depois no Centro Brasileiro de Estudos
meçou a ter a sua orquestra, entendeu? Porque a orquestra da escola Portugueses e no Instituto de Ciências Humanas. Heron de Alencar, Ciro
de música ela se desenvolve com professores da escola, com alunos da dos Anjos, Almir Brunetti, Luiz Piva, Elson Andrade Martins, Agostinho
escola, professores da UnB, alunos da UnB e pessoal das bandas, que da Silva, Maurício Vinhas de Queiroz, Cassiano Nunes, Roque de Barros
tinha de uma banda, de outra banda etc., eles também participavam. Laraia e Alcida Rita Ramos, Wladimir de Carvalho foram alguns dos
Então era uma misturada muito grande e não era uma coisa em termos professores com os quais Teodoro Freire se orgulhava de ter convivido,
de qualidade, não era a perfeição porque variava muito (CARVALHO, assim como se orgulhava dos alunos José Prates, Fausto Alvim e Ro-
2017: 6-8 apud CRUZEIRO, 2018: 40, grifos nossos) berto Pontual, que ele considerava serem excepcionalmente dedicados
aos estudos e amigos do Brasil, “sabiam valorizar a cultura brasileira”.
(BROCHADO, 2012: 33)
Portanto, o emblemático concerto de reinauguração do Teatro Nacional, em 6 de
março de 1979, regido por Claudio Santoro, cujo retorno, em 1978, foi motivado pela
missão, dada pelo secretário de Cultura, o embaixador Wladimir Murtinho, de reinaugu- Darcy Ribeiro teria possibilitado as primeiras apresentações do Boi com apoio
rar o teatro, não será com o efetivo posterior da OSTNCS (MACEDO, 2009. BUENO, 2017), financeiro de 65 mil cruzeiros para compra de adereços, roupas e instrumentos. As ati-
mas com esse efetivo mutante e constituído pelo trabalho de Esaú de Carvalho, Emílio vidades foram consolidadas no Centro de Tradições Populares, em Sobradinho, registro
César e Levino de Alcântara, sem o qual aquele concerto jamais teria ocorrido. Fato que cartorial de 31 de março de 1963, tendo sido incluídas no Calendário de Eventos Ofi-
necessita ser corrigido em vários relatos que circulam na cidade, oriundos de anotações ciais do Governo de Distrito Federal (GDF) pela Lei nº 1.383, de 20 de janeiro de 1997.
de pessoas sem formação na área historiográfica. Recebeu o título de cidadão honorário de Brasília (1998) e, pela Fundação Cultural do
Distrito Federal, de comendador cultural nos anos 80; ingressa na Ordem do Mérito
4. Mas e o não formal, permanece não institucional? Cultural no governo Lula, em 2006 e, ainda, é contemplado pelos títulos de mérito
Ao contrário das atividades formais de ensino e práticas musicais já relatadas, aquelas acadêmico e de notório saber, em decisão unânime, em 2012. O Boi do Seu Teodoro é
comentadas a seguir formam um segundo bloco de atividades, mas de caráter informal, registrado no Livro de celebrações do Distrito Federal, instituído pelo Decreto Nº 24.797,
oriundas de tradições orais e não escritas. Contudo, veremos que instituições como a de 15 de julho de 2004, declarado como patrimônio cultural imaterial do DF.
UnB e a EMB estarão presentes na ampliação desses círculos colaborativos, na constru- Assim se expressa a “cidade sem tradição”, que, em termos “hobsbawmsianos”, encon-
ção de práticas não formais da música tradicional, como será o caso do Bumba-meu-boi tra, em Brasília, tanto um território impulsionado pelo “novo” como também pelo “autênti-
do Seu Teodoro e a constituição do Clube do Choro. co” da brasilidade modernista, confluindo na promoção de novos projetos de significação.

4.1 Bumba-meu-boi do Seu Teodoro 4.2 Clube de Choro de Brasília


As atividades de Teodoro Freire (1920-2012), natural do povoado de Tapuio, mu- No seu histórico, há também importante interação com docentes da UnB, quando
nicípio de São Vicente do Ferrer, no Maranhão, encantaram a Universidade de Brasília, abrem as portas das suas “casas” para dar continuidade às rodas de chorões. Clímaco
onde trabalhava como contínuo, na convivência e em parcerias com grupos e artistas da (2008) relata depoimentos que variam na percepção do número de etapas em que esse
cidade, e elevaram o Boi maranhense a patrimônio imaterial do Distrito Federal. histórico se desenvolve, ela mesmo propondo cinco. Contudo, e tendo acompanhado
essas rodas e, eventualmente, participado delas desde os anos 70, proponho dividir es-

118 119
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

sas “fases” em três, numa concepção mais sociológica e historiográfica longa, ancorada para o Lago Norte. O que ajudaria a descomprimir tensões, numa dimensão de liberda-
sobre os espaços onde as rodas ocorrem, na construção de poderes simbólicos e conso- de, mas também do tédio, presente em vários relatos, quando comparado aos centros
lidação de capitais culturais, na disputa nesses diferentes “palcos”. urbanos de origem, muitos do Rio de Janeiro.
1) Palcos móveis: de forma esporádica e, muitas vezes, espontânea, principalmente Muitos dos frequentadores da Turma da Colina eram estudantes e/ou filhos de
em bares e hotéis (Rádio Nacional; Brasília Palace Hotel; Hotel Aracoara; restau- professores e servidores da UnB. Foi o caso de Fê e Flávio Lemos, filhos do Prof. Briquet
rante-bar Amarelinho, no Centro Comercial Gilberto Salomão; Fina Flor do Samba; de Lemos, com os então jovens Renato Russo, André Pretorius, Philippe Seabra, Dinho
bar Xadrezinho, da 407 Norte; Bar do Cardoso; Chorão, da 302 Norte; Bar do Di- Ouro Preto, Herbert Vianna, Dado Villa-Lobos, entre outros, que se encontravam na Coli-
zinho, na 314 Sul; Bar Macambira, na 408 Sul) (LIMA, 1978 apud CLÍMACO, 2008: na. E, para se livrarem desse “tédio” e das tensões numa Brasília vigiada e dividida, talvez
144-145). numa retórica de contraste, encontraram, no punk rock britânico e norte-americano, a
2) Palcos da vida privada: em salas particulares, de pessoas que gostam de tocar, possibilidade de romper com moldes musicais vigentes, como a bossa-nova, a MPB, a
de ouvir o choro e ter um momento de prazer estético e ponto de reunião, na resi- jovem guarda e mesmo a tropicália, pois a sonoridade dos arranjos eruditos de Rogério
dência de Neusa França (pioneira, morava na 305 Sul), Raimundo de Brito (jorna- Duprat deveria soar bastante careta para o pessoal do punk rock de Brasília.
lista, redator dos anais da Câmara dos Deputados, morava na 105 Sul) e Francisco O alcance desse movimento cultural estimula algumas reflexões, seja pelo aporte
de Assis Carvalho (Six, cavaquinista que tinha seis dedos) e, após o falecimento criativo musical intrínseco, seja pela simples ruptura com a barreira linguística, que
de Brito, na casa de Celso Alves Cruz (clarinetista, funcionário do Ministério do se comentava à época, de que o português não serviria para o rock, que faria sentido
Planejamento e professor de Economia da UnB, na 308 Sul) e Odette Ernest Dias somente se cantado em inglês. Criam, assim, no Planalto Central, um contraste intenso
(professora de flauta do MUS/UnB, na 311 Sul). ao já talvez entediante “novo” de Brasília, o ressignificando em algo ainda “mais novo”.
3) Palcos de exibição, legitimação e experimentação: em diversos espaços, como no Além disso, a emancipação que representa o rock brasileiro tem raízes organoló-
Teatro Galpão, no Teatro da Escola Parque e no Auditório de Música e no Dois Candan- gicas na inclusão da eletrificação dos instrumentos musicais, impulsionando o processo
gos, na Universidade de Brasília (UnB), mas, sobretudo, no palco instituído, sonorizado de consolidação das correntes da música brasileira popular a partir da Ditadura Militar,
e preparado comercialmente para serviço de bar e consumo local, do Clube do Choro, entre a música engajada nacionalista e revolucionária (de esquerda) e as cenas mais
desde a sua fundação à sua ampliação no âmbito do ensino formal, já em desloca- “caretas” da jovem guarda integrada (de direita); a tropicália, já eletrificada, irrompe
mento em relação às formas espontâneas e caseiras das suas origens. essa dicotomia num movimento antropofágico “para frente”. Essa distinção e os seus
processos são ilustrados nos desdobramentos da Marcha Contra a Guitarra Elétrica, em
Nessas três fases, identificam-se os atores/agentes nesse processo: músicos que julho de 1967, liderada por Elis Regina, na defesa das raízes musicais brasileiras e de
vieram trabalhar na Rádio Nacional e em bandas militares, aqueles transferidos para a uma música, feita no Brasil, “puramente brasileira”, que tinha o violão (acústico, intimis-
nova capital em diversos contextos, músicos profissionais independentes e, posterior- ta, violeiro e trovador) como voz.
mente, professores do MUS e alunos da UnB, além de docentes da Escola de Música de Episódio hoje caricato, demarcou os antagonismos entre estilos e formas, sobre-
Brasília, que constam na Ata de Fundação do Clube do Choro, de 9 de setembro de 1977. tudo na insurreição do tropicalismo como proposta de um “som universal à música bra-
Nessa abordagem do tema, damos conta dos conflitos e tensões que, surpreendentemen- sileira”. Grande contradição, pois, três meses após a marcha de julho, ambos, Caetano e
te, marcaram a passagem de algo quase naïf e nostálgico para um campo de narrativas Gil, aparecem cobertos de influências, dos Beatles aos Rolling Stones. Podemos, ainda,
em disputa de sentidos históricos, no qual o aporte sociológico e historiográfico pode dar discutir como essa referência ao rock britânico já se espelha no rock psicodélico d’Os
melhor conta do reposicionamento de relatos pessoais, os quais, justamente, se anulam. Mutantes – em “Domingo no parque”, de Gil, em 1967 – e o perpassa, provendo uma
“cama” e um caminho para o punk rock da capital.
4.3 Turma da Colina e a “música elétrica para a cidade de concreto humano” Como forma de visualizar esse processo da música brasileira a partir do pós-
Mesmo no rock de Brasília, conexões com a UnB nascem na chamada Turma da Guerra, em termos de tipologias de programas estético-ideológicos, propomos a Tabela
Colina, que se reunia no bloco A, na área residencial do campus, denominada hoje Colina 3 (“Apêndice 2”), quando os movimentos musicais da “cultura massificada”14, entre a
Velha, onde estão os apartamentos funcionais para professores e técnico-administrati-
vos. Convivendo nos ambientes dos pilotis, um dos cinco pontos da arquitetura moderna 14
A expressão “cultura massificada”, também usada por Caetano Veloso, na entrevista feita durante o III
de Le Corbusier, em local afastado e em frente a um enorme descampado, com vista Festival da MPB, é uma referência à música veiculada pelas mídias de massa, ou mass media. Caetano,
então, fala sobre o que é “pop” (III FESTIVAL, 2022: 1h07min50s).

120 121
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

instalação da Ditadura Militar (1964) e sua distensão (1979), assumem papéis e funções Celebrada como ponto turístico de Brasília, a Rota Brasília Capital do Rock, inau-
nos seus programas estéticos, de acordo com os programas ideológicos com os quais se gurada em 13 de julho de 2021, Dia Mundial do Rock, reúne 37 pontos que marcaram a
identificam15. história do gênero em Brasília, além da toponímia do Teatro Galpão, que, em 1999, foi
Nesse contexto, o rock nacional que parte de Brasília é quase uma apoteose de denominado Espaço Cultural Renato Russo.
ideias libertárias – contra o tédio e a violência da ditadura, mediante os inconformismos Brasília também assiste ao surgimento de outras correntes locais, numa canção
a um quadro “fraturado” de Brasil –, que vai buscar, num rock já “punkificado” e ruido- urbana integrada a uma música mais “gostosa” de se escutar. Essas correntes são pro-
so, o seu canal de expressão. A partir das bandas seminais Aborto Elétrico e Blitz-64, tagonizadas por grupos ecléticos, que se somam a uma cena pop alternativa e têm,
traçam-se os caminhos para Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude, sucedidas, nas inicialmente, como palco, os auditórios e ginásios de esportes de colégios particulares
décadas seguintes, por Raimundos, Maskavo Roots, já influenciadas pelo reggae, Bois de de ensino superior e médio, que, por meio de festivais e shows de artistas em circuito
Gerião, Little Quail and The Mad Birds, Natiruts e Móveis Coloniais de Acaju. nacional16, movimentaram e deram visibilidade a grupos locais, premiando, com contra-
O manuscrito de Renato Russo (1960-1996) (Figura 8) revela o que seria a tos de gravação e concertos em outras capitais, nomes como Fagner, Clodo Ferreira, os
“música elétrica feita para a cidade de concreto humano”. Esse documento gera irmãos Renan e Chico Maranhão e Oswaldo Montenegro.
inúmeras discussões e poderia ser considerado como um proto-manifesto, parte de Emerge, ainda, o levíssimo Liga Tripa, que, para Renato Russo17, realizou uma tran-
uma bibliografia e filmografia hoje extensa sobre Renato Russo e o contexto do sição na constituição das bandas de Brasília, na convivência com uma música mais “vio-
movimento. lenta”, do punk rock de Russo. Contudo, se o movimento Cabeças ao Ar Livre poderia ser
entendido como uma espécie de erupção tardia hippie em Brasília, no seu despojamento
e engajamento utópico e alternativo, o comentário de Bueno (2017: 180) mostra uma
face menos visível, já que, segundo a autora, não teria permitido que bandas como
Aborto Elé-trico e Liga Tripa se apresentassem no seu palco, supostamente por
“insuficiência técnica”!
Idealizado por Néio Lúcio, o Cabeças inaugura uma tentativa independente,
ir-reverente e intertextual de produzir espetáculos, explorando espaços alternativos
nas entrequadras das superquadras de Brasília, ocupando, por assim dizer, as
“entrelinhas” do seu riscado. Segundo Nicolas Behr (apud BUENO, 2017: 180), “Era uma
atitude política, porém sem ideologia partidária. [...] um movimento de amor a
Brasília, quando a cidade virou musa e objeto”. Ou seja, ao virar “musa e objeto”,
Brasília deu espaço a uma “elétrica urbe”, ávida em ressignificar os espaços
arquitetônicos e urbanos, mas sem um programa estético pré-definido ou unificado.

4.4 Associação Ópera Brasília (AOB)


Nos anos 80, além da continuação desses grupos e processos em diferentes graus
de sobrevida cultural, adiciona-se a criação da Associação Ópera Brasília (AOB), de na-
tureza jurídica, como associação privada de defesa de direitos sociais, cuja responsável
é, apesar de falecida, Asta-Rose Jordan Alcaide (1922-2016). Asta-Rose exerceu
papel fundamental na institucionalização das atividades operísticas da cidade, além
de atuar em várias outras atividades culturais e artísticas, como a direção do Teatro
Fig. 8: Manuscrito de Renato Russo. Fonte: Carlos Marcelo (2018).
Nacional Claudio Santoro, montando 18 espetáculos em Brasília. Não obstante, em

16
O notório concerto de Rita Lee, Gilberto Gil, Quinteto Violado, Pepeu Gomes e Baby Consuelo, Vinicius,
Toquinho e Quarteto em Cy (BUENO, 2017: 172).
15
Para uma discussão aprofundada sobre os programas estéticos na canção popular, ver Napolitano
(2010). 17
O depoimento foi transcrito e encontra-se no “Anexo 1.”

122 123
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

1983, cinco anos e meio após a sua fundação, a Associação Ópera Brasília (AOB) é Foi, ainda, protagonista dos espetáculos teatrais Dose dupla, com Janette Dornellas,
declarada de uti-lidade pública, por meio de um sucinto Decreto nº 7.485, de 19 de e Gigolôs, na Sala Martins Pena, e atração no Cabeças, na rampa acústica do Parque da
abril de 1983, apenas com dois artigos, data e identificação dos outorgantes. Cidade. Também participou do primeiro trio elétrico do Planalto, o Massa Real, criado
Contudo, estruturas de ópera ou ligadas ao teatro musical antecedem a AOB, lo- por Reco do Bandolim (futuro presidente do Clube do Choro e responsável por sua ins-
calizadas no Instituto de Letras da Universidade de Brasília, onde os professores Arthur titucionalização) e da banda Malas e Bagagens, de Dora Galesso.
Meskell e Lúcia Sander produzem atividades cênicas com o objetivo de aprimorar o inglês
dos alunos. Em parceria com o Departamento de Música, produziram 12 operetas de Gil- 5. Considerações finais
bert e Sullivan, promovendo o exercício de montagem de produções a partir de um teatro Brasília nos dias mais recentes ofereceria o tema necessário para concluir este trabalho,
musical divertido e despojado, que depois evoluíram a montagens mais complexas. especialmente no que tange às relações centro/periferia, que vieram a se estabelecer
A presença de Cássia Eller (1962-2001) em Brasília nos inícios dos anos 80, apesar entre o plano-piloto e as cidades-satélites de Brasília. E, entre esses polos geográficos,
de conhecida pelo seu incontestável sucesso no rock brasileiro, pode ser identificada persistem trânsitos nos estilos e práticas musicais mapeados, com o crescimento destas
nesse contexto das produções de operetas e sketches cênicos e no coro de produções em igrejas evangélicas gospels, além da diversidade de estilos da moda, com grupos se de-
de ópera, já que seu sonho era ser cantora de ópera (LEIA..., 2004: n.p.). Morando em dicando a bailes e shows, distantes do “novo”. Contudo, as práticas do hip-hop brasiliense
Brasília a partir de 1980, na mudança da família, cantou e trabalhou em vários bares, emergem nessa periferia com características próprias, descrevendo desigualdades e ten-
o como o Bom Demais, que existiu entre 1984 e 1990, na 706 Norte, com a Banda dos sões desse contexto. Surgido em 1993, com DJ Jamaika e, principalmente, GOG, hoje com
Bons. O Bom Demais foi também palco para Zélia Duncan, que cantava também no várias gerações de rapeiros, é o movimento que mais se assemelha à utopia libertária do
Amigos, e, ainda, para Rosa Passos, na cena dos bares da capital. Depois de um rock de Brasília no engajamento e na busca de alternativas pelos jovens da cidade.
período em Belo Horizonte, onde trabalhou como servente de pedreiro [“Fiz massa e O Eixo Monumental constitui-se, ainda, como palco magno, aberto para manifesta-
assentei tijolos” (LEIA, op. cit.)], Cássia retorna a Brasília, onde permanece até 1989. ções políticas, algumas graves, como no 8 de janeiro de 2023, assistidas globalmente, na
Em 1985, fez parte do coro da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin (1984) (Figura invasão e depredação de patrimônio artístico incalculável. Mas também é local de con-
9) e de My Fair Lady (1985), além de Veja você, Brasília, de Oswaldo Montenegro. templação, por ali estarem localizadas as obras de Niemeyer, como o Teatro Nacional
(hoje) Claudio Santoro e a Catedral de Brasília. A oeste, acima da Torre de TV, o antigo
Complexo da Funarte, hoje Eixo Cultural Ibero-americano, composto, inclusive, pela Sala
Cássia Eller, cuja reabertura foi prevista para 2023, reformada e sob a administração de
uma organização da sociedade civil (OSC); o Teatro Plínio Marcos, reaberto, em 2022,
como a nova casa da OSTNCS; o Clube do Choro de Brasília; o Centro de Convenções
Ulysses Guimarães; o Memorial JK; finalizando na Praça do Cruzeiro, local onde o ma-
rechal Pessoa estabeleceu o marco inicial de Brasília. Fora do Eixo Monumental, temos
o Auditório da Casa Thomas Jefferson, a melhor acústica da cidade, e a Catedral Dom
Bosco, talvez a sua pior.
Assim, os intercâmbios, interconexões, transferências e outros tipos de processos
de mudança, presentes nas práticas musicais, tornam-se particularmente críticos na
historiografia musical de Brasília e do DF, narrativas lineares, não expondo interseções
entre contextos aparentemente diversos, desde concertos a culturas tradicionais e
originárias. Assim, ao falar de Brasília, despertam-se questões como: como contextos
diversos se entrelaçam ou permanecem desconectados? como estruturas pós-estrutu-
ralistas, desprovidas de fendas entre a musicologia (entendida como histórica) e a et-
nomusicologia, poderiam promover uma compreensão profunda do fenômeno musical?;
ou qual seria o papel de uma historiografia panorâmica em um mundo móvel e globali-
Fig. 9: Cássia Eller, Janette Dornellas e Zélia Duncan, 1984, no camarim de maquiagem da zado, em que os indivíduos acabam criando suas próprias historiografias?
ópera Porgy and Bess. Fonte: Dornellas (2020: 25).

124 125
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

A importância das histórias locais/regionais versus globais, como propostas des- uma linha do tempo e evidencia interconexões, agentes e, ainda, “intelectuais êmicos”
coloniais de um olhar historiográfico dentro de um dado contexto, permite subsidiar as (FERNANDES, 2015), como mediadores de tais possibilidades – não mais como práticas
necessidades de empreendimentos historiográficos na superação de linearidades, nas autônomas, mas interligadas, agenciadas e legitimadas.
quais uma concepção evolutiva obscurece conexões horizontais, rizomáticas e sistêmi- Para a análise interna dessas tramas e redes, os círculos colaborativos de Farrell
cas, numa pálida sociologia histórica e determinista, em que uma perspectiva histórica (2001) expandem-se, não só entre colaboradores espontâneos, mas também por meio
regressiva reconstitui o “movimento progressivo do tempo natural” (NAPOLITANO, 1998: de agentes posicionados sociopoliticamente, inserindo toda essa dinâmica no espectro
92). Engendra, ainda, a ideia de que exista uma força, “ora uma espécie de espontaneís- histórico do país e, eventualmente, no plano mundo.
mo, ora uma espécie de dirigismo [que] dava cabo da estruturação das manifestações Interna e visualmente, manifestam-se em pontos nodais, expressos nesses en-
populares” (FERNANDES, 2015: 470). contros e convergências, no plano da cidade, como trama, desenvolvendo-se através
Podemos ampliar esses conceitos aos fluxos culturais globais, como conceituados de coalizões, dentro de organizações e entre elas, a partir de agrupamentos de pessoas
por Appadurai (1990), na sua metateoria da disjunção. Nesta, uma economia global deve com interesses, objetivos e valores comuns, trabalhando com flexibilidade e autonomia
ser entendida como uma ordem complexa, sobreposta e disjuntiva, composta por dife- no alcance destes. Brasília representava esse esforço, estímulo da construção do “novo”
rentes fluxos culturais globais, que compõem a complexidade da globalização, nomea- na espacialidade duma modernidade, sem a qual a efervescência poética e sensível não
damente em cinco tipos: 1) ethnoscapes: o fluxo transnacional de pessoas entre culturas encontraria território.
e fronteiras; 2) mediascapes: o repertório de imagens e de informações produzido e Por último, não fui ao encontro de uma centralidade da Universidade de Brasília,
distribuído pela indústria cultural, que moldam a forma como vemos nosso mundo; 3) mas achei-a ao tentar resolver algumas questões que poderiam servir para a moldagem
technoscapes: o fluxo e o alcance da tecnologia (mecânica e informacional) no mundo; de narrativas históricas para sistemas complexos como a cidade, capital de um país em
4) financescapes: o fluxo global de dinheiro e capital; e 5) ideoscapes: o fluxo global de permanente retrovisão de seus passados, livres ou não de construtos históricos não
ideias e ideologias. resolvidos.
Assim, operam os nossos três tempos, identificados nesse processo histórico-ge-
ográfico das práticas musicais de Brasília, caracterizado como partes do seguinte eth- Referências
noscape:
1) deslocamento de populações originárias indígenas e de culturas urbanas e ru- ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro:
rais do estado de Goiás; Ed. Sociedade Capistrano de Abreu; Liv. Briguet, 1960.
2) alojamento de populações migrantes na década de 60; e
3) realojamento das populações originárias desalojadas e (con)vivência com as po- ABREU, Capistrano de. Sobre o Visconde de Porto Seguro. In: ABREU, C. de. Ensaios e
pulações migrantes instaladas, num novo arranjo urbano, a partir da década de 70. estudos (crítica e história): 1ª série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL,
1975. p. 131-147.
Contudo, os demais fluxos, subliminarmente presentes e, por vezes, implícitos
(mesdiascapes e tecnoscapes), requerem sistematização e análise, de forma a compor- ALBERTO, Klaus Chaves. Formalizando o ensino superior na década de 1960: a cidade
mos um quadro que dê conta da complexidade dessas historiografias. Especialmente, os universitária da UnB e seu projeto urbanístico. Tese (Doutorado em Urbanismo) - Fa-
ideoscapes podem nos gerar análises bastante implexas, considerando o quadro político culdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
na instalação da Ditadura Militar e na sua posterior distensão (“redemocratização” e Janeiro, 2008.
“abertura” foram termos usados por Renato Russo para caracterizar mudanças de com-
portamento) (RUSSO, depoimento, Anexo 1). ALMEIDA, Jaime Gonçalves de. Campus do milagre. Dissertação (Mestrado em Planeja-
De forma a refletir essa concepção sobre a ocupação humana dos espaços cons- mento Urbano) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasí-
truídos para Brasília, utilizamos esses três tempos histórico-geográficos, sobrepostos a lia, 1983.
duas tipologias – formal e informal – das práticas musicais que se instalaram, e ainda
hoje interagem, abarcando tradições orais e escritas, para a elaboração do “Roteiro para ALMEIDA, Jaime Gonçalves de. Território das instituições federais de ensino superior
uma cartografia das práticas musicais de Brasília e entorno” (“Apêndice IV”), que informa brasileiras (IFES): uma reflexão sobre o planejamento de campus e suas práticas na
década de 70 e atual. Paranoá, Brasília, v. 1, p. 10-30, 2015.

126 127
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

ANTUNES, Jorge. Apresentação. Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica, Brasília, BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris: Éd. de Minuit, 1984.
[20--]. Disponível em: https://www.sbme.com.br/apresenta.htm Acesso em: 10 nov.
2022. BOURDIEU, Pierre. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Éd. de Minuit, 1979.

APARECIDA, Geralda Dias. UnB em dois tempos. Carta’: falas, reflexões, memórias: BOURDIEU, Pierre. Pouvoir et légitimité. Paris: Presses Universitaires de France, 1982.
informe de distribuição restrita do senador Darcy Ribeiro, Brasília, n. 14, p. 37-54, 1995.
Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/brasilia/revistas/A_carta.pdf BRASIL. A mudança da capital federal, editorial. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 4,
Acesso em: 23 nov. 2022. n. 40, p. 445-446, jul. 1946.

APPADURAI, Arjun. Disjunção e diferença na economia cultural global. In: FEATHERS- BRASIL. Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital (Brasil). Relatório téc-
TONE, M. (org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. 3. Ed. Petró- nico. Rio de Janeiro: Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital, 1948. 3 v.
polis: Vozes, 1990. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/185568 Acesso em: 3 out.
2022.
ARQUIVO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL. Coordenação de Arquivo Histórico. Projeto
“Documentos Goyaz”: guia de pesquisa. Brasília: Arquivo Público do Distrito Federal, BRASIL. Decreto nº 500, de 15 de janeiro de 1962. Institui a Fundação Universidade de
2014. v. 1. Disponível em: https://www.arpdf.df.gov.br/wp-content/uploads/2017/09/ Brasília.
GUIA_DOC-GOYAZ_LARANJA_VOL_1_CONSOLIDADO.pdf Acesso em: 02 dez. 2022.
BRASIL. Decreto Nº 64.745, de 26 de junho de 1969. Concede reconhecimento dos Cursos
ARQUIVO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL. Depoimentos Orais I: catálogo / Coordena- de Direito, Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de Brasília. Dispo-
ção Silvia Regina Viola de Castro. -- 2ª edição. Revisada e atualizada. Brasília: Arquivo nível em: https://legis.senado.leg.br/norma/487381/publicacao/15748694 Acesso em:
Público do DF, 2008. -- 200 p. il. 25 abr. 2022.

ARRAIS, Matheus Eurich. A marcha para o oeste e o Estado Novo: a conquista dos ser- BRASIL. HidroWeb. Agência Nacional de Águas (ANA), Brasília, [202-?]. Disponível em:
tões. Artigo de conclusão de curso (Graduação em História) - Instituto de Ciências https://www.snirh.gov.br/hidroweb/mapa Acesso em: 2 dez. 2022.
Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: https://bdm.unb.br/
bitstream/10483/15448/1/2016_MateusEurichArrais_tcc.pdf. Acesso em: 03 mar. 2022. BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOFRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Conselho Na-
cional de Geografia. Goiânia. Rio de Janeiro: SERGRAF do IBGE, 1942. Disponível em:
ÁVILA, Danilo Pinheiro de. Música contemporânea brasileira: sentidos de uma formação https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?view=detalhes&id=213970
(1963-1980). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Acesso em: 24 nov. 2022.
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2021.
BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOFRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Produto Interno
BEARD, David; GLOAG, Kenneth. Musicology: The Key Concepts. 1. ed. London; New York: Bruto dos Municípios 2010-2015. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/
Routledge, 2005. economicas/contas-nacionais/9088-produto-interno-bruto-dos-municipios.html Aces-
so em: 26 out. 2022.
BISPO, Antônio Alexandre. A Sociedade Brasileira de Música Contemporânea no “Ano
Villa Lobos” (1987): excertos da comunicação de Paulo Affonso de Moura Ferreira ao BRASIL. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Portaria
I Congresso Brasileiro de Musicologia pelo centenário de H. Villa-Lobos (1887-1959). nº 166, de 11 de maio de 2016. Estabelece a complementação e o detalhamento da
Revista Brasil-Europa: correspondência euro-brasileira, Gummersbach, n. 169, 19, n.p., Portaria nº 314/1992 e dá outras providências. Disponível em: http://portal.iphan.gov.
2017 (5). Disponível em: http://revista.brasil-europa.eu/169/Villa_Lobos_na_Musica_ br/uploads/legislacao/portaria_166_consolidada_2018_com_mapas.pdf Acesso em: 18
Contemporanea.htm Acesso em: 3 set. 2022. out. 2022.

128 129
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

BRASIL. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Superinten- CAVALCANTE, Neusa. CEPLAN: 50 anos em 5 tempos. Tese (Doutorado em Arquitetura e
dência do Iphan no Distrito Federal. REIS, Carlos Madson; RIBEIRO, Sandra Bernardes; Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília,
PERPÉTUO, Thiago Pereira (org.). GT Brasília: memórias da preservação do patrimônio 2015.
cultural do Distrito Federal. Superintendência do Iphan no Distrito Federal. Brasília:
Iphan-DF, 2016. CEPLAN (CENTRO DE PLANEJAMENTO OSCAR NIEMEYER). Campus Universitário
Darcy Ribeiro. CEPLAN, Brasília, [20--]. Disponível em: http://ceplan.unb.br/index.
BRASIL. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Superinten- php?option=com_content&view=article&id=17&Itemid=693 Acesso em: 15 dez. 2022.
dência do Iphan no Distrito Federal. REIS, Carlos Madson; RIBEIRO, Sandra Bernardes
(org.). Roteiro dos acampamentos pioneiros no Distrito Federal. Brasília: Iphan-DF, CLÍMACO, Magda de Miranda. Alegres dias chorões: o choro como expressão musical no
2016. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/roteiro_dos_acam- cotidiano de Brasília: anos 1960 – tempo presente. Tese (Doutorado em História) – De-
pamentos_pioneiros_no_distrito_federal.pdf Acesso em: 24 nov. 2022. partamento de História, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. Disponível em: https://
repositorio.unb.br/handle/10482/1740 Acesso em: 2 out. 2022.
BRASIL. Lei nº 3.998, 15 de dezembro de 1961. Autoriza o Poder Executivo a instituir a
Fundação Universidade de Brasília e dá outras providências. Disponível em: https:// CLUBE DO CHORO. Ata de Fundação do Clube do Choro, de 9 de setembro de 1977.
legislacao.presidencia.gov.br/ficha?/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%20 Acesso restrito. Documento acervo pessoal.
3.998-1961&OpenDocument Acesso em: 2 out. 2022.
CONHEÇA a história de Cássia Eller. Diário de Cuiabá, Cuiabá, 5 jan. 2002. Disponível
BRASIL. Lei Complementar nº 94, de 19 de fevereiro de 1998. Autoriza o Poder Executivo em: https://www.diariodecuiaba.com.br/azul/conheca-a-historia-de-cassia-eller/83445
a criar a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno - RIDE e Acesso em: 06 ago. 2023.
instituir o Programa Especial de Desenvolvimento do Entorno do Distrito Federal, e dá
outras providências. CORNELL UNIVERSITY. Office of the Dean of the University Faculty. Memorial State-
ment for Professor Donald J. Belcher, who died in 2005. Ithaca: Cornell University, 2005.
BRASIL. Lei Complementar nº 163, de 14 de junho de 2018. Dá nova redação ao § 1º do Disponível em: https://ecommons.cornell.edu/bitstream/handle/1813/18757/Belcher_
art. 1º da Lei Complementar nº 94, de 19 de fevereiro de 1998, que autoriza o Poder Donald_J_2005.pdf?sequence=2&isAllowed=y Acesso em: 5 nov. 2022.
Executivo a criar a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entor-
no - RIDE e instituir o Programa Especial de Desenvolvimento do Entorno do Distrito COSTA, Lúcio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. 1957. In: GOVERNO DO DISTRITO
Federal, e dá outras providências. FEDERAL. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília: GDF, 1991. p. 18-34.

BROCHADO, Izabela. Ao mestre, em reconhecimento do seu saber. Participação, Brasília, CRULS, Luiz. Atlas dos itinerarios, perfis longitudinaes e da zona demarcada / Atlas des
n. 22, out. 2012. Disponível em: http://seer.bce.unb.br/index.php/participacao/article/ itinéraires, des profils longitudinaux et de la zône démarquée. Rio de Janeiro: H. Lom-
view/7710/5938 Acesso em: 10 jan. 2023. baerts & C., Impressores do Observatorio, 1894. Disponível em: http://www2.senado.
leg.br/bdsf/handle/id/174485 Acesso em: 20 nov. 2022.
BUENO, Fátima. Do peixe-vivo à geração Coca-Cola: música em Brasília 1960-1980. Bra-
sília: MusiMed, 2017. CRULS, Luiz. Relatório apresentado a S. Ex. o Sr. ministro da Industria, Viação e Obras
Públicas / Rapport présenté a Son Ex. M. le Ministre de l’Industrie, de la Voirie et des
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Travaux Publics. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & C., Impressores do Observatório, 1894.
São Paulo: Editora Unesp, 1997. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/182911 Acesso em: 20
nov. 2022.
CAETANO, Maria do Rosário. Choro: uma antiga tradição sem compasso de espera. Cor-
reio Braziliense, Brasília, 2 dez. 1984.

130 131
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

CRULS, Luiz. Relatório Cruls: (relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central ESCOREL DE CARVALHO, Lilian. A revista francesa L’Esprit Nouveau na formação das idéias
do Brasil). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Disponível em: https:// estéticas e da poética de Mário de Andrade. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de
www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/574202 Acesso em: 20 nov. 2022. Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

CRULS, Luiz. Relatório parcial apresentado ao Exm. Sr. Dr. Antônio Olyntho dos Santos Pi- FARRELL, Michael P. Collaborative Circles: Friendship Dynamics and Creative Work. Chi-
res. Rio de Janeiro: C. Schmidt, 1896. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/ cago: University of Chicago Press, 2001.
item/id/182910 Acesso em: 21 out. 2022.
FERNANDES, Dmitri Cerboncini. O Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e a
CRULS, Luiz. Relatório parcial apresentado ao ministro da Indústria, Viação e Obras Pú- autenticidade na música brasileira (1960-1970). Contemporânea, São Carlos, v. 5, n. 2, p.
blicas. Rio de Janeiro: H. Lombaerts, 1893. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/ 467-494, jul.-dez. 2015.
bdsf/handle/id/182932 Acesso em: 19 out. 2022.
GOIÁS (Estado). Decreto nº 480, de 30 de abril de 1955. Declara de necessidade e utili-
CRUZEIRO, Roseane Lopes. A formação de oboístas em Brasília: um levantamento histó- dade pública e de conveniência ao interêsse social a área destinada à localização da
rico. Dissertação (Mestrado em Música em Contexto) - Instituto de Artes, Universidade Nova Capital Federal. Diário Oficial do Estado de Goiás, Goiânia, 3 maio 1955. Disponível
de Brasília, Brasília, 2018. em: https://legisla.casacivil.go.gov.br/pesquisa_legislacao/105417/decreto-480 Acesso
em: 25 nov. 2022.
DIEGO, Carlos. As veias do Brasil: arco-íris das bacias hidrográficas do território nacio-
nal. ArchDaily Brasil, [S. l.], 13 out. 2019. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/ GOMES, Sabrina Linhares. Autoridade musical pedagógica: Orlando Vieira Leite. Tese
br/802719/as-veias-do-brasil-arco-iris-das-bacias-hidrograficas-do-territorio-nacional (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Ceará,
ISSN 0719-8906. Acesso em: 15 jan. 2023. Fortaleza, 2018.

DISTRITO FEDERAL. Departamento de Planejamento Educacional. A origem do siste- GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Decreto-lei nº 12.055, 14 de dezembro de 1989. Cria a
ma educacional de Brasília: criação da CASEB, 22 dez. 1959. Brasília: Departamento de Área de Proteção Ambiental do Lago Paranoá. Disponível em: https://www.sinj.df.gov.
Planejamento Educacional, 1984. Disponível em: https://bit.ly/2NsC3Rw Acesso em: 20 br/sinj/Norma/18372/Decreto_12055_14_12_1989.html Acesso em: 23 nov. 2022.
fev. 2023.
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Decreto nº 7.485, de 19 de abril de 1983. Declara
DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado de Educação. 40 anos de educação em Brasília. de utilidade pública a “Associação Opera — Brasília (AOB)” com sede em Brasília —
Brasília: Subsecretaria do Planejamento e de Inspeção de Ensino, 2001. Disponível em: Distrito Federal. Disoinível em: https://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/9941/Decre-
https://bit.ly/2Tzj0J2 Acesso em: 20 fev. 2023. to_7485_19_04_1983.html Acesso em: 25 nov. 2022.

DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado de Educação. Projeto Político Pedagógico do GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Decreto Nº 24.797, de 15 de julho de 2004. Dispõe
Centro de Ensino Fundamental CASEB. Brasília: GDF, 2019. Disponível em https://bit. sobre o registro do “Bumba-meu-boi do Seu Teodoro” no Livro das Celebrações como
ly/2NrC1cD Acesso em: 20 fev. 2023. patrimônio cultural imaterial do Distrito Federal e dá outras providências. Disponível
em: https://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/45204/Decreto_24797_15_07_2004.html
DORNELLAS, Janette Ribeiro. A Ópera em Brasília: gênese e desdobramentos. 2020. Acesso em: 21 set.2022.
[292] f. il. Tese (Doutorado em Artes Visuais)—Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Lei nº 1.383, de 20 de janeiro de 1997. Inclui a Festa
DUPRAT, Regis. Música na Matriz e Sé de São Paulo Colonial. Brasília, 1966. 2 v. Tese do Bumba-Meu-Boi, de Sobradinho, como evento oficial do Distrito Federal. Disponível
(Doutorado)-Universidade de Brasília, 1966. em: https://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/49342/Lei_1383_17_01_1997.html Acesso
em: 22 nov. 2022.

132 133
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

III FESTIVAL da MPB 1967 (a grande final TV Record) [Raridade]. [S. l.: s. n.], 2022. 1 LOPES JÚNIOR, Wilson Martins; SANTOS, Regina Célia Bega dos. A reprodução do
vídeo (2h02min21s). Publicado pelo canal Musicalidade. Disponível em: https://www. espaço urbano e a discussão de novas centralidades. RA’EGA: o espaço geográfico em
youtube.com/watch?v=TOCUntjNRTk Acesso em: 2 fev. 2023. análise, Curitiba, n. 19, p. 107-123, abr. 2010. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/
raega/article/view/14827 Acesso em: 19 out. 2022.
INSTITUTO ANTÔNIO CARLOS JOBIM. [Tom e Vinicius em Brasília]. Instituto Antônio
Carlos Jobim, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://www.jobim.org/jobim/hand- MACEDO, Clinaura. Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro: memorial. [S.
le/2010/14778. Acesso em: 13 jul. 2022. l.: s. n.], 2009. Circulação restrita.\

JOBIM, Tom. Sinfonia da Alvorada. Disponível em: https://www.jobim.org/jobim/hand- MAHLER, Christine Ramos. Territórios universitários: tempos, espaços, formas. Tese (Dou-
le/2010/10968 Acesso em: 12 jul. 2022. torado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universi-
dade de Brasília, Brasília, 2015.
KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade.
São Paulo: Musa Editora e Através, 2001. MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Edição revista e ampliada. Edição
especial, 20 abril 2018. São Paulo: Planeta, 2018.
KORSYN, Kevin. Decentering Music: a Critique of Contemporary Musical Research. Ox-
ford: Oxford University Press, 2003. MATTOS, Ataíde; PINHEIRO, Regina Galante. Escola de Música de Brasília: um lugar de
sonho musical. In: OLIVEIRA, A.; CAJAZEIRA, R. (org.). Educação musical no Brasil. Salva-
LASSANCE, Adalberto. A influência da cartografia na história de Brasília. Revista do Ins- dor: P & A, 2007. p. 214-220.
tituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Brasília, Ano II, no. 2, p. 85-122, set. 1999.
MARIZ, Vasco. Figuras da música brasileira contemporânea. Brasília: Editora da UnB,
LEIA a biografia de Cássia Eller. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 out. 2004. Folha 1970.
Ilustrada, p. sn. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ul-
t90u47955.shtml Acesso em: 22 jul. 2022. MEMORIAL JK. Concurso do Plano Piloto. In: Memorial JK (site). Disponível em: http://
www.memorialjk.com.br/bsb/pgs/concurso.htm Acesso em: 21 mar. 2022.
LIMA, Irlam R. Chorando pelos dedos. Correio Braziliense, Brasília, 9 set. 1978. Caderno
2. MPB. MORAES, Vinicius de. Samba falado. Rio de Janeiro: Editora Beco do Azougue, 2008.

LIMA, Vicente Ferrer Correia; LOPES, Tomás de Vilanova Monteiro. A área do novo Dis- MOREIRA ALVES, Lara. A construção de Brasília: uma contradição entre utopia e reali-
trito Federal: condições de solo, clima e recursos naturais. Revista do Serviço Público, [S. dade. In: SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FAV, 5., 2004, Goiânia. Cultura visual: exercícios
l.], v. 85, n. 2-3, p. 113-119, 1959. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/ do olhar, 2004. p. 9-76. p. 123-132. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/
RSP/article/view/3689 Acesso em: 22 dez. 2022. eventos/index.php/eha/article/view/3586/3465 Acesso em: 12 jul. 2022.

LOPES, Luís Carlos. Brasília: o enigma da esfinge: a construção e os bastidores do po- MOTTA, Amanda Carolina dos Santos; LIMA, Cristina de Araújo. Campus universitário
der. Porto Alegre: UFRS; Ed. Unisinos, 1996. e cidade: discutindo integração e acessibilidade em casos de Universidade Brasileira
e Sueca com repercussões socioespaciais. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v.
LOPES, Regina Ivete. Entrevistado: Levino de Alcântara. Boletim Informativo Música em 6, n. 12, p. 103.551-103.572, dez. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.34117/bjd-
Brasília, Brasília, Ano III, Abril de 2006. v6n12-745 Acesso em: 25 fev. 2023.

134 135
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

NAPOLITANO, Marcos. A invenção da música popular brasileira: um campo de reflexão PEREIRA, Eva Waisros. Fontes documentais para a história da educação de Brasília. In:
para a história social. Latin American Music Review/Revista de Música Latinoamericana, ENCONTRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DA REGIÃO CENTRO-OESTE, 3., 2015, Catalão.
Austin, v. 19, n. 1, p. 92-105, spring/summer 1998. Disponível em: http://antenor.mus. Anais [...]. [Catalão]: EHECO, [2015?]. Disponível em: https://bit.ly/2RolIyw Acesso em:
br/wp-content/uploads/2018/04/A-Inven%C3%A7%C3%A3o-da-M%C3%BAsica-Popu- 25 fev. 2023.
lar-Brasileira-Marcos-Napolitano.pdf Acesso em: 20 set. 2019.
PEREIRA, Eva Waisros; COUTINHO, Laura Maria; RODRIGUES, Maria Alexandra; HEN-
NAPOLITANO, Marcos. O olhar tropicalista sobre a cidade de São Paulo. Revista Varia RIQUES, Cinira Maria Nóbrega; SOUZA, Francisco Heitor de Magalhães; ROCHA, Lú-
História, Belo Horizonte, v. 21, n. 34, p. 504-520, 2005. Disponível em: https://www.scie- cia Maria de Franca (org.). Nas asas de Brasília: memórias de uma utopia educativa.
lo.br/j/vh/a/cJX3BZrT8HZ85HytVc9d4MQ/?lang=pt Acesso em: 22 set. 2019. Brasília: Editora UnB, 2011.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na PEREIRA, Eva Waisros; HENRIQUES, Cinira Maria Nóbrega. A primeira escola pública
MPB (1959-1969). São Paulo: edição do autor, 2010. E-book. Disponível em: https:// do Distrito Federal: memória e história. Revista de Estudos Sobre a Educação Pública,
www.academia.edu/3821530/SEGUINDO_A_CANCAO_digital Acesso em: 22 set. 2019. Brasília, v. 1, n. 1, p. 39-52, ago. 2013. Disponível em http://www.museudaeducacao.
com.br/cte-17/artigos/ Acesso em: 25 fev. 2023.
NOGUEIRA, Ilza. A criação musical em diálogo com o contexto político-cultural: o caso
do Grupo de Compositores da Bahia. Revista Brasileira de Música, Rio de Janeiro, v. 24 n. PERES, Eraldo. O encantador: Seu Teodoro do boi. Brasília: Editora SENAC, 2007.
2, p. 351-380, 2011.
PORTO, Nélio Tanios. H. J. Koellreutter e Música Viva: catalisadores da música moderna
NOGUEIRA, ILZA. Entrevistado: Fernando Cerqueira. In: A criação musical em diálogo no Brasil. Galáxia, [São Paulo], n. 3, p. 253-259, 2002. Disponível em: https://revistas.
com o contexto político-cultural: o caso do Grupo de Compositores da Bahia. Revista pucsp.br/index.php/galaxia/article/download/1275/777 Acesso em: 22 jan. 2023.
Brasileira de Música, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 351-380, 2011. p. 369. Depoimento
escrito concedido em 15 maio 2010. RATZEL, Friedrich. O espaço vital. Um estudo biogeográfico. Edição Especial. Reimpres-
são reprográfica inalterada. Scientific Book Society, Darmstadt 1966 (Libelli 146; im-
NOGUEIRA, Ilza. Entrevistado: Régis Duprat. In: A criação musical em diálogo com o pressão original em: Karl Books (ed.): Festgabe para Albert Schäffle para o septuagési-
contexto político-cultural: o caso do Grupo de Compositores da Bahia. Revista Brasi- mo aniversário de seu aniversário em 24 de fevereiro de 1901. Laupp, Tübingen 1901).
leira de Música, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 351-380, 2011. p. 363. Depoimento escrito
concedido em 20 maio 2010. REIS, Carlos Madson. A simbologia de Brasília na história do Brasil. Resenhas Online,
São Paulo, ano 14, n. 159, 3, n.p., mar. 2015. Disponível em: https://vitruvius.com.br/
NOGUEIRA, Ilza. Duprat em seus 80 anos. Entrevistado: Régis Duprat. Revista Brasileira revistas/read/resenhasonline/14.159/5462 Acesso em: 15 nov. 2022.
de Música, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 293-302, 2010.
REIS, Vanessa de Paula; CORDEIRO, Lucilene Dias. Escolas pioneiras de Brasília: a
OBINO, Nise. Realização pianística: Tudo é técnica. 1966. 61 p. Tese (Doutorado) - Uni- instalação das primeiras instituições educacionais até a inauguração da nova capital.
versidade de Brasília, 1966. Cadernos RCC#20, Brasília, v. 7 n. 1, mar. 2020. Disponível em: https://periodicos.se.df.
gov.br/index.php/comcenso/article/view/787/500. Acesso em: 20 fev. 2023.
O POVO Brasileiro. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Produção: Zita Carvalhosa. Apresen-
tação: Chico Buarque de Holanda. Narração: Matheus Nachtergaele. Roteiro: Isa Grins- RENATO Russo: Renato Russo falando sobre a banda brasiliense “Liga Tripa”. [S. l.: s. n.],
pum Ferraz. Fotografia de José Guerra, Adrian Cooper, Carlos Ebert. Trilha sonora origi- 2020. 1 vídeo (3min17s). Publicado pelo canal Arquivo Legião. Disponível em: https://
nal: Marco Antonio Guimarães. Direção de arte: Rico Lins, Siron Franco. Rio de Janeiro: www.youtube.com/watch?v=RU7WjF15nww Acesso em: 15 fev. 2023.
TV Cultura, GNT, Fundar, 2000. DVD.

136 137
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

ROMERO, Marta Adriana Bustos; SILVA, Caio Frederico; PAZOS, Walmor Cerqueira. Uni- SOARES, Eduardo Oliveira; MEDEIROS, Ana Elisabete de Almeida. O Teatro de Arena da
versidade nos quatro cantos: planos diretores urbanísticos dos campi da Universidade Universidade de Brasília capturado na paisagem. In: ENCONTRO NACIONAL DE ENSI-
de Brasília. Brasília: FAU, 2012. NO DE PAISAGISMO EM ESCOLAS DE ARQUITETURA E URBANISMO NO BRASIL, 14.,
2018, Santa Maria. Anais [...].
RÓNAI, Cora. Notas do programa para fechamento do Teatro Nacional para obras. Bra-
sília, programa de concerto, 1976. SOUSA, Fabiana; ALMEIDA, Kleyton. Orquestra Sinfônica de Brasília: fragmentos de
uma história. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Jornalismo) - Escola de
SALMERON, Roberto. A universidade interrompida: BRASÍLIA 1964-1965. Brasília: Educação, Tecnologia e Comunicação, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013.
EdUnB, 2012. Disponível em: https://repositorio.ucb.br:9443/jspui/handle/123456789/10014 Acesso
em: 10 mar. 2023.
SANTORO, Claudio. Projeto apresentado CONSUNI para criação de uma Faculdade de
Música da Universidade de Brasília. Brasília: 1962. Circulação restrita. TAVARES, Jeferson C. Projetos para Brasília: a cultura urbanística nacional. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Univer-
SAUTCHUK, Jaime. Cruls: histórias e andanças do cientista que inspirou JK a fazer Bra- sidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/
sília. Brasília: Editora Geração, 2014. disponiveis/18/18131/tde-23092008-111353/publico/jeferson_tavares.pdf Acesso
em: 5 abr. 2023.
SCHLEE, Andrey Rosenthal; GARCIA, Cláudia da Conceição; SOARES, Eduardo Oliveira;
TENORIO, Gabriela de Souza; NASCIMENTO, Márcio Luiz Couto do; VULCÃO, Maria Go- UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Anuário estatístico da UnB 2017: período 2012 a 2016.
retti Vieira; CHOAS, Mona Lisa Lobo de Souza. Registro arquitetônico da Universidade de Brasília: UnB, 2017. v. 2.
Brasília. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2014.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Campus Darcy Ribeiro: elementos do projeto urbano. Bra-
SCHRADER, Erwin. O canto coral na cidade de Fortaleza/Ceará: 50 anos (1950-1999) na sília: UnB, 2010.
perspectiva dos regentes. Dissertação (Mestrado Interinstitucional em Música) - Uni-
versidade Federal da Bahia; Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2002. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Diagnóstico de Desenvolvimento da Universidade de Brasí-
lia 1962-1968. Brasília: UnB, 1969.
SILVA, Elcio Gomes da. Os palácios originais de Brasília. 2012. 597 f., il. Tese (Doutorado
em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Estudos do Plano de Circulação para o Campus, Brasília,
Brasília, Brasília, 2012. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/11159 2008. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Paranoá, n. 21, 2018. Disponível em: http://
Acesso em: 25 out. 2022. dx.doi.org/10.18830/issn.1679-0944.n21.2018.0721 Acesso em: 12 mar. 2023.

SILVA, Ernesto. História de Brasília. 2. ed. Brasília: Senado Federal, 1985. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Estudos para o Parque Científico e Tecnológico. Brasília:
UnB, 2007.
SILVA, Marcos Fabrício Lopes da. [Excerto]. In: Nelson Oliveira, Brasília 60 anos. Dis-
ponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/04/brasilia-60- UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Ideia de desenvolvimento físico espacial do campus. Brasí-
-anos-2014-brasilia-poetica. Acesso em: 12 mar. 2023. lia: UnB, 1988a.

SOARES, Sérgio Monteiro; ROCHA, J. O.; ROUDRIGUES, R. I Centenário da Missão Cruls UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Resolução do Conselho Diretor da FUB nº 4/2000, de 21
1892-1992: relatório de relocação dos vértices do Distrito Federal. Brasília: Centro de de julho de 2000. Institui a setorização e as diretrizes de uso do solo do território do
Cartografia Automatizada do Exército, 1992. v. 1. campus Universitário Darcy Ribeiro e dá outras providências.

138 139
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Planejamento da extremidade sul do campus. Brasília: UnB, UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relatório parcial do Plano Diretor de Ampliação da Capaci-
1988b. dade Física do Campus. Brasília: UnB, 1996b.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Planejamento físico do campus. Brasília: UnB, 1989. VASCONCELOS, Adirson. A mudança da capital. Brasília: edição do autor, 1978.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Plano de Circulação do Campus. Brasília: UnB, 1992. VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX).
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Plano de Desenvolvimento Físico. Brasília: UnB, 1975.
WESTIN, Ricardo. Brasília, a capital que precisou de 150 anos para sair do papel. El
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Plano de trabalho do Plano Diretor Físico do Campus. Bra- País, [S. l.], 21 abr. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-21/
sília: UnB, 1996a. brasilia-a-capital-que-precisou-de-150-anos-para-sair-do-papel.html Acesso em: 13
mar. 2023.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Plano Diretor Físico do Campus. Brasília: UnB, 1998.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Plano Orientador da Universidade de Brasília. Brasília: Edi-


tora Universidade de Brasília, 1962.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Política de ocupação do campus. Brasília: UnB, 1987.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Programa de Necessidades Ambientais. Brasília: UnB, 1978.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relatório de apresentação do Parque Tecnológico. Brasília:


UnB, 1993.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relatório de Atividades: UnB, 1970-71. Disponível


em:https://dpo.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=46&Item
id=816 Acesso em: 21 abr. 2022.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relatório de Atividades: UnB, 1976. Disponível em: https://


dpo.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=46&Itemid=816 Acesso
em: 21 abr. 2022.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relatório de Atividades: UnB, 1977. Disponível em:https://


dpo.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=46&Itemid=816 Acesso
em: 19 abr. 2022.

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Resolução do Conselho Diretor da FUB nº 7/2016, de 6 de


abril de 2016. Institui a setorização e as diretrizes de uso do solo do território do cam-
pus Universitário Darcy Ribeiro e dá outras providências. Disponível em: https://unb.
br/images/conselho_diretor/resolucoes/Resolucao_do_Conselho_Diretor_0007_2016.
pdf Acesso em: 13 dez. 2021.

140 141
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Anexo Apêndices

Instituto Ano Momento Corpos artísticos Contexto Reitor


et al.
Instituto Cen- 1962- Claudio Santoro: Orquestra de Darcy Ribeiro
tral de Artes 1965 concepção e Câmara (1962)
(ICA) instalação Frei Mateus
(1962-1970) Rocha (1962)
Departamen- Darcy Ribeiro
to de Música (1963)
Anísio Teixeira
(1963-1964)
Zeferino Vaz
(1964-1965)
1965 Demissão coletiva Invasão do Laerte Ramos
campus (1965) (1965-1967)
1966- Transição Doutoramentos de Invasão do Caio Benjamin
1968 OBM Nise Obino e Régis campus (1968) Dias
Duprat (1967-1971)
Instituto de 1969- Grupo de
Artes e Arqui- 1971 Compositores da
tetura IAA Bahia
(1970-1976)
1971- Orlando Leite e Quarteto de Saída do Amadeu Cury
1975 transição ao corpo Cordas último (1971-1976)
Departamen-
de instrumentistas GeMUnB e MC2 compositor da
to de Música
Bahia
Instituto de 1976- Quinteto de Invasão do José Carlos
Expressão e 1988 Sopros campus (1977) de Almeida
Comunicação Trio de Sopros Azevedo
(IC) (1976- (1976-1980)
1988) (1980-1985)
Geraldo Ávila
Departamen- (mar. 1985)
to de Arte Luiz Otávio
Carmo
(mar.-jul. 1985)
Instituto de 1988 Criação do IdA Regime Cristovam
Artes [IdA celetista Buarque (1985-
Anexo I– Depoimento de Renato Russo. (1988)] Ingresso por 1989)
Fonte: Renato (2020). concurso João Claudio
Departamen- público Todorov
to de Música (ago.- nov. 1989)

142 143
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Instituto Ano Momento Corpos artísticos Contexto Reitor


et al.
Instituto de 1990- Ingresso de docentes Coro Sinfônico Antonio Ibañez
Artes [IdA titulados Madrigal Ruiz
(1988)] (doutorado e Sinfonieta (1989-1993)
mestrado) (Roberto Minczuk, João Claudio
Departamen- reg.) Todorov
to de Música Habilitação em (1993-1997)
Saxofone Lauro Morhy
Big Band (1997-2001)
Orquestra de
Cordas
2004 Instalação do Lauro Morhy
Programa de Pós- (2001-2005)
Graduação Música
em Contexto
2007- UAB Licenciatura a Ingresso Timothy
REUNI distância de sete Mulholland
Nova licenciatura professores (2005-2008)
Início de elaboração com perfil Roberto Ramos
do novo bacharelado em educação de Aguiar
musical (abr.- nov. 2008)
(REUNI)
2010- Instalação do Grupo José Geraldo de
PET-Música em Souza Júnior
Etnografia (2008-2012)
Ivan Marques de
Toledo Camargo Apêndice II – Tab. 3: Identidade de estilos musicais no Brasil do pós-Guerra (1950) e na Ditadura Militar
(2012-2016) (1964), posicionados num espectro ideológico em relação aos seus programas estéticos.
Fonte: Elaborada pela autora.
2018 Programa de Márcia Abrahão
Pós-Graduação Moura
em Música (2016-2020)
(reformulação)
2022 Novo bacharelado Márcia Abrahão
(aprovação no Moura
Colegiado, em (2020-2024)
tramitação)
2018 Programa de Pós- ?
Graduação em
Criação e Formação
2023 Aprovação do
doutorado
Programa de Pós-
Graduação em
Música

Apêndice I – Tab. 2: Síntese cronológica dos eventos históricos na construção do Departamento de


Música da UnB. Fonte: a autora.

144 145
Música no Distrito Federal: interferências, mobilidade e trânsitos numa perspectiva de cartografia musical Beatriz Magalhães Castro

Apêndice III – Roteiro para uma cartografia musical em “três tempos” e dois tipos (formal e informal)
das práticas musicais de Brasília e entorno. Fonte: Elaborado pela autora.

146 147
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul

Notas para uma história da


construção da musicalidade em
Mato Grosso do Sul
Evandro Rodrigues Higa
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

L. da Giulia Leal
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

148
4 como citar
HIGA, Evandro Rodrigues; LEAL, L. da Giulia. Notas para uma
história da construção da musicalidade em Mato Grosso
do Sul. In: SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia
Maria (ed.). Centro-Oeste. Vitória: Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p.
148-182. (Histórias das Músicas no Brasil).
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

1. Introdução tidade autêntica é uma forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procura
Construir uma narrativa histórica nunca é uma tarefa neutra. Entre tantas dificuldades, se impor como legítima”. A construção dessas identidades é mediada pelos intelectuais
talvez a maior seja fazer as escolhas do que será contado. Buscar fontes, garimpar infor- que, como agentes históricos, interpretam e reinterpretam o mundo empírico:
mações, vasculhar arquivos são tarefas prazerosas para quem gosta de contar histórias.
Porém, na hora de escrever, com a consciência de que o produto final poderá ser consi- os atores da memória coletiva dramatizam um papel pautado pela es-
trutura da peça encenada [...] os agentes da memória nacional se defi-
derado uma fonte, o que vem à tona é um sentimento de grande responsabilidade e de
nem por uma ação politicamente orientada. [...] essas duas instâncias
que, em nosso relato, talvez revelemos muito mais de nós mesmos do que das histórias são distintas, mas não forçosamente antagônicas. Colocar o intelectu-
que contamos. Vanda Freire, no texto publicado como resumo de sua conferência profe- al como mediador simbólico implica apreendermos a mediação como
rida em concurso para professora titular de história da música da Universidade Federal possibilidade de reinterpretação simbólica. (ORTIZ,1986: 140)
do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que:
Invocando Pierre Bourdieu, Michel Nicolau Netto aponta as lutas simbólicas como
História é um relato interpretativo, feito por um sujeito histórico, ele pró- inerentes a todo processo de construção identitária:
prio impregnado de significados e percepções inerentes a seu tempo, e
dos quais ele nunca poderá se despir inteiramente... Seu relato, sua visão
A análise sociológica, [...] deve enxergar o processo de formação de
do passado, trará inevitavelmente essa marca. (FREIRE, 1994: 153)
identidade como histórico, que só se realiza em contextos específicos,
a partir de conflitos entre forças de agentes que buscam “uma definição
De onde falo, com a legitimação conferida pelo capital simbólico da academia, do mundo social mais conforme aos seus interesses”. [...] a formação
como nativo de Campo Grande, descendente de imigrantes de Okinawa, Espanha e Por- identitária é gerada a partir de conflitos. [...] uma ação de violência (ao
tugal e pertencente a um estrato social privilegiado, que teve acesso aos bens cultu- menos simbólica). (BOURDIEU, 2014 apud NICOLAU NETTO, 2009: 27).
rais entronizados pelos códigos de distinção ocidentais, devo acrescentar a paixão pela
observação e reflexão sobre os processos de construção das tradições e das práticas Categorizando as identidades coletivas em nacionais (espaço gerido pelo Estado-
musicais regionais. Porém, para escrever este texto, tive que fazer escolhas sobre onde -nação), restritas (espaços regionais) e mundial (espaço global), Nicolau Netto afirma
jogar o foco narrativo e qual seria o ponto de partida. Comecei pelos trabalhos escri- que o caráter popular invocado por todas elas, faz com que se articulem entre si:
tos e publicados sobre história, música e cultura de Mato Grosso do Sul por autores
regionais (sem desprezar as preciosas narrativas dos cronistas), passei pela consulta Assim, se as identidades nacionais são agora forjadas a partir das diver-
sas vertentes culturais, as outras identidades também não se mantem
a reportagens da imprensa local e complementei com a audição atenta dos suportes
sozinhas. Há, com isso, uma clara necessidade de negociações que leva
fonográficos que documentam a diversidade de práticas musicais da região. Além disso, a perdas e ganhos.
como sujeito histórico, resgatei das minhas próprias memórias diversos fatos e acon- O que procuramos mostrar é que estas negociações não se dão em um
tecimentos, lembranças que, como todas as outras, são inconscientemente seletivas e cenário desprovido de poder e controle. Ao contrário, tais negociações
interessadas. Nesta narrativa incorporamos também o resultado da pesquisa feita por ocorrem em um espaço controlado no qual o mercado (no caso estu-
dado, o de música) capitalista dita as ordens através de estruturas mais
Giulia Leal, egressa do Curso de Música da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul complexas, mas talvez ainda mais restritas. (NICOLAU NETTO, 2009: 223)
(UFMS), sobre o compositor mirandense Genaro Marsiglia.
Falar de música é também falar de identidades, e todos somos atravessados, si- Em um cenário contemporâneo marcado pela globalização econômica e pela
multaneamente, por muitas identidades e identificações, em diversos graus de inten- mundialização da cultura, as grandes narrativas construídas pelas identidades nacio-
sidade e duração. Os espaços sociais e os habitus constituídos dos e pelos agentes nais não mais detêm o monopólio da organização total das identidades. A tese principal
conferem significados a essa complexa teia identitária que articula temporalidades e do autor é de que:
territorialidades distintas e, ao mesmo tempo, integradas. Os discursos sobre identidade
nacional, regional e local geralmente estão ancorados em concepções essencialistas e as identidades restritas devem se articular com a identidade mundial
para se sustentarem no processo total da globalização e da mundiali-
justificadas pela evocação de mitos de origem. Se as culturas são construídas através de
zação, pois é esta última identidade que detém a posição privilegiada
processos históricos e sociais, falar em autenticidade é uma armadilha perigosa. Con- na geração de sentido social na contemporaneidade. Portanto, para que
forme Renato Ortiz (1986: 9), “na verdade, a luta pela definição do que seria uma iden- uma identidade restrita – e mesmo nacional – possa se estabelecer,

150 151
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

ela precisa empreender um processo de negociação com a identidade Moacir de Lacerda contabiliza “mais de 600 pessoas envolvidas, entre músicos, cantores,
mundial no qual as relações de forças não estão distribuídas igualmen-
te. (NICOLAU NETTO, 2009: 125) instrumentistas, coralistas e técnicos, totalizando mais de 800 horas de gravações em
estúdios, externas e recuperação fonográfica” (MATO, 1994).3
Mato Grosso do Sul foi desmembrado do antigo Mato Grosso uno, em 1977, e pas- É a partir da categorização em que foram divididas as faixas dos CDs, que organizamos
sou a existir juridicamente no primeiro dia de 1979. Localizado em uma zona fronteiriça este texto. O primeiro CD inclui 24 faixas de música regional, de música nativa e de músi-
compartilhada, em grande parte, com o Paraguai e, em menor escala, com a Bolívia, ca folclórica. O segundo CD, com 22 faixas, é inteiramente dedicado à música urbana. O
possui a maior parte do bioma do Pantanal em seus domínios. terceiro CD contem 24 faixas de música instrumental, de canto coral e lírico e de música
A historiadora Lúcia Salsa Corrêa explicita: pop, rock e blues. Não estão explícitos os conceitos adotados para cada um dos termos
escolhidos nem os critérios utilizados para categorizar as faixas, mas é possível que te-
a região distingue-se pela singularidade de seu território politicamen- nham sido levados em consideração os estratos sociais, culturais e étnicos dos agentes
te demarcado como fronteira num complexo contexto internacional,
envolvidos na produção, a poética das letras e as configurações rítmicas e estruturais
representado pela grande área de influência da bacia do Prata. Esse
posicionamento específico permitiu o desenvolvimento de uma socie- das músicas. Curioso constatar que a clássica dicotomia entre música popular e música
dade também peculiar e assentada em bases sociais, políticas e cultu- erudita não aparece na coletânea. Em vez disso, a opção escolhida pelos idealizadores
rais resultantes de formas variadas e combinadas de maneira original. do projeto foi dividir em música instrumental e canto coral e lírico, misturando faixas
Seu espaço de fronteira movente, de linhas fictícias e mal traçadas, executadas por orquestras, bandas, corais, solistas e instrumentistas diversos.
permeado de comunidades indígenas, foi palco de fluxos populacionais
oriundos de outras bandas do país e do estrangeiro como paulistas, Quando nos referimos à musicalidade de Mato Grosso do Sul, adotamos a con-
mineiros, nordestinos, destacando o gaúcho e, em especial, o paraguaio. cepção fornecida por Acácio Piedade (2011: 104-105) como “memória musical-cultural
Nesta composição da feição da fronteira, a contribuição do imigrante compartilhada constituída por um conjunto profundamente imbricado de elementos
paraguaio não apenas por seu número expressivo representou o traço musicais e significações associadas” (grifo do autor). Como uma espécie de “audição-
mais notável nesse processo de formação social e cultural, sobretudo
-de-mundo que ativa um sistema musical-simbólico”, a musicalidade “não é um sistema
pelas diversas estratégias de integração e de resistência que auxiliou
a sua incorporação como mão de obra nas atividades da pecuária e da fechado e imutável. [...] não está no indivíduo, não depende de sua habilidade, mas se
produção de erva-mate. (CORRÊA, 2012: 288, grifo da autora) encontra sim na comunidade e seus gêneros musicais, que estão em permanente trân-
sito e transformação” (PIEDADE, 2011: 105, grifo do autor)
Este texto deve ser lido como um ensaio-tentativa, que busca refletir sobre os Franco Fabbri (2006: 3, tradução nossa) define gênero musical como “um conjun-
processos de construção de uma musicalidade sul-mato-grossense. Optamos por partir to de eventos musicais reais e possíveis, cujo desenvolvimento é governado por um
de uma base material, um discurso que procurou retratar – como um instantâneo foto- conjunto definido de normas socialmente aceitas” 4. Podemos acrescentar que, como
gráfico – as práticas musicais e as concepções identitárias da região em um dado mo- resultado de um processo de categorização, os gêneros musicais (especialmente na
mento histórico. Estamos nos referindo a um projeto de 1994, coordenado por Moacir de música popular) contribuem para a construção de um forte sentido de territorialidade,
Lacerda, integrante e fundador do Grupo ACABA, que produziu uma caixa, com três CDs, revelando múltiplos vínculos identitários. Sua construção está inserida em um processo
intitulada: Mato Grosso do Som: Mapeamento Musical de Mato Grosso do Sul.1 O trabalho complexo que encadeia representações, práticas, estratégias, táticas e atribuições de
ambicioso construiu uma narrativa pensada a partir das escolhas dos produtores e pro- significados em que componentes estruturais e semânticos de gêneros já existentes são
motores culturais (em que se destacam as instâncias de cultura do Governo estadual, da apropriados, ressignificados e categorizados – geralmente em uma situação assimétrica
Prefeitura Municipal de Campo Grande e da UFMS), visando a “contribuir para resgatar de poder –, constituindo, como resultado, um novo bem cultural, que podemos chamar
a verdadeira identidade cultural de Mato Grosso do Sul” (MATO, 1994)2. Admitindo que de híbrido (HIGA, 2019).
há “muitos outros valores de inegável reconhecimento cultural [que] não puderam estar Os gêneros musicais, seja em suas características intra-musicais, seja em suas co-
contemplados nesta coletânea por motivos de natureza física ou outros impedimentos”, nexões sociais e históricas, podem ser lidos como discursos que configuram identidades

1
Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=dOCA2F-80Ug&list=PLO-QEpiig_Ijwd- 3
Texto de apresentação no encarte da caixa.
Vs116HRZJMyIM7iddOw 4
Original: “un conjunto de hechos musicales, reales y posibles, cuyo desarrollo se rige por un conjunto
2
Texto de apresentação no encarte da caixa. definido de normas socialmente aceptadas.” (FABRI, 2006: 3)

152 153
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

culturais, que, com o passar do tempo, têm sua legitimidade reforçada e, muitas vezes, As populações dos bairros da periferia dos grandes centros urbanos
são em sua maioria constituídas por trabalhadores de baixa renda, de
monumentalizada. Seu caráter movente e camaleônico está constantemente em trans- origem rural recente ou remota, inseridos de diferentes maneiras no
formação, através dos processos de apropriação de referências externas, hibridização aparelho produtivo capitalista, sujeitos à ação dos media – membros,
com as próprias historicidades e ressignificação em novos bens culturais. Na verdade, enfim, de uma sociedade complexa, nela ocupando, não sem conflitos,
como bem lembra Vanda Freire (1994), a ausência de um universo fixo de significações os últimos escalões da estratificação social. (MAGNANI, 1998: 29-30)
é um dos atributos mais instigantes e desafiadores da música em si:
A musicalidade espontânea e informal que ocupava o cotidiano das pessoas na
a música, como qualquer linguagem, não se restringe a um universo roça, teve que se transformar e se adaptar às novas realidades. Apesar desse estranha-
fixo de significações e contém também latências e resíduos de sig-
mento, o mundo de referências rurais foi preservado na medida do possível através de
nificações (resignificados). Significados residuais, aqui, são concebidos
como resignificados, pois que não é possível à sociedade apropriar-se, táticas e negociações – assimétricas – com os meios de produção e difusão musical.
de maneira idêntica, de significados elaborados fora de sua realidade Modas de viola, catiras, desafios e cantos de devoção integram o rico repertório que,
(significados remanescentes de outras épocas ou contextos) Os signos, mesmo tendo sido ressignificado no contexto da indústria fonográfica, continuou a ser
portadores desses significados, quando reutilizados por outra época ou praticado nas comunidades do interior do país.
contexto, são dotados de novas significações, pertinentes à atualidade
da sociedade considerada, pertinentes à realidade operante em que Mato Grosso do Sul faz divisa com cinco estados brasileiros (Mato Grosso, Goiás,
são utilizados. Assim, apesar da aparente identidade, esta é apenas ex- Minas Gerais, São Paulo e Paraná) e fronteira com o Paraguai e a Bolívia. A ocupação
terna, ao nível do suporte material do processo simbólico, pois o nível desse território foi intensificada após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e, na se-
de significações passou por uma transformação, fruto da capacidade quência, a instalação de uma poderosa indústria para extração e beneficiamento de er-
dinâmica de qualquer linguagem (FREIRE, 1994: 165).
va-mate nativa. Do norte de Mato Grosso, dos estados vizinhos e do distante Rio Grande
do Sul, veio a maioria dos migrantes e aventureiros, trazendo, na bagagem, sua cultura
2. Música regional e suas práticas musicais que, somadas à cultura e às práticas musicais dos paraguaios,
Das 16 faixas do primeiro CD Mato Grosso do Som: Mapeamento Musical de Mato Grosso do que atravessavam as fronteiras desde antes de serem demarcadas oficialmente após o
Sul, categorizadas como Música Regional, 12 são gravações de músicos historicamente término da guerra, foram construindo uma paisagem sonora única no Brasil.
conectados com a cultura rural e fronteiriça e que se tornaram referência no campo da
música caipira/sertaneja de Mato Grosso do Sul: Amambai e Amambaí, Jandira e Benites, Na década de 1830, começou de fato o povoamento das terras que
hoje constituem o Estado de Mato Grosso do Sul; havia já moradores
Conjunto Ponta Porã e Casal Tupi, Dino Rocha, Cruzeiro e Tostão, Tangará e Taquari, Lígia
nos arredores do presídio de Miranda, no Forte de Coimbra, nos dois
Mourão, Ivo de Souza e Frorito, Délio e Delinha, Aral Cardoso e Zé Correa, que registra- povoados de Albuquerque, na fazenda Camapuã, no destacamento do
ram modas de viola, rasqueados, polcas paraguaias, guarânias e chamamés5. Piquiri e no sertão dos Garcias, nele levantada a freguesia de Santa
As modas de viola estão integradas na cultura rural do país e, especialmente, nas do Paranaíba (CAMPESTRINI; GUIMARÃES, 1991: 36).
regiões do interior do Sudeste e Centro-Oeste, refletem formas de sociabilidade do ho-
mem do campo. A partir das pioneiras gravações de Cornélio Pires, em 1929, passaram O cronista Paulo Coelho Machado aponta que, em Campo Grande, alguns anos
a constituir um dos subgêneros de um importante segmento da indústria fonográfica: após a chegada do mineiro José Antonio Pereira, considerado o fundador da cidade, em
a música caipira/sertaneja. Desde o início do século XX, a gradativa intensificação dos 1872, a catira era largamente praticada:
processos migratórios do campo para os núcleos urbanos provocou uma fricção social
e cultural entre os paradigmas de uma urbanidade modernizante e as práticas tradicio- No final de 1898, a população urbana andava perto de trezentas pes-
soas, todas praticamente morando na mesma Rua 26 de Agosto. Modi-
nais dessa massa de trabalhadores:
ficava-se a fisionomia do antigo arraial, não apenas fisicamente, pela
substituição dos ranchos pelas casas de taipa e de alvenaria cobertas
de telhas-canoa, como na sua parte anímica; já se preludiava a feição
cosmopolita que caracteriza a cidade hodierna. Gente de toda parte
começava a procurar a vila sedutora e atraente. Eram os chamados mu-
5
Para uma melhor compreensão desse segmento, deve-se consultar o livro de Rodrigo Teixeira (2009) danceiros: italianos, espanhóis, portugueses, árabes, brasileiros de to-
intitulado “Os pioneiros: a origem da música sertaneja de Mato Grosso do Sul”. dos os rincões e da própria campanha sul-mato-grossense fixavam-se
em Campo Grande. (MACHADO, 1990: 52)

154 155
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

Parece que o primeiro deles [comerciantes sírios] foi Amim Scaff, em chamando toda gente de “che cambá”, trouxeram a polca e a dolente
1894, que se instalou na Rua 26 de Agosto e costumava recordar suas guarânia, logo incorporadas ao nosso folclore, cantadas ao violão dia e
antigas impressões de Campo Grande, quando aqui assistia às danças noite (MACHADO, 1990: 80).
de catira, com que o pessoal da vila e os boiadeiros se divertiam, dan-
çando os cavalheiros de chapéu e esporas. As festas terminavam sem- Abílio Leite de Barros é um dos mais notáveis cronistas da região do Pantanal da
pre em “bochichos e sururus”. (MACHADO, 1990: 60) Nhecolândia e de Corumbá, e ele faz diversas referências à cultura e à música paraguaia
na região:
As festas religiosas de Campo Grande continuaram a ser comemoradas
durante muito tempo, até pelo menos os anos 30.
Um dos maiores festeiros da Rua 26 de Agosto foi, sem dúvida, Sebas- No lazer, é flagrante a influência de nossos irmãos guaranis. Deles ado-
tião da Costa Lima, que homenageava todos os anos os dias de Santo tamos o tereré, o gosto pela dança, as festas, o baile com aqueles ale-
Antônio, São João e São Pedro, quando eram construídos enormes gal- gres gritos no salão, o gosto pelas corridas de cavalo e o truco espanhol.
pões cobertos de capim para as danças e os “comes e bebes”, que se Particularmente, deles adotamos a música: a polca de ritmo rasqueado.
prolongavam noite adentro, junto às grandes fogueiras com mandioca, Os vaqueiros paraguaios, em maioria, sabiam dedilhar o violão que os
milho verde, batatas e, ao lado, nas mesas, os bolinhos, o amendoim, o nossos bugres pantaneiros e negros papabananas ouviam extasiados.
pé-de-moleque, os doces açucarados de abóbora, batata, mamão, la- Logo adotaram o instrumento e a música. Não somente no Pantanal,
ranja azeda, limão e tantos outros, além dos panelões do quentão que mas em toda a zona rural mato-grossense deu-se esse fenômeno: a
animava os convidados mais tímidos. [...] adoção, como sua, de uma música estrangeira e cantada em uma língua
Diz que todas as festas religiosas terminavam sempre com grandes ininteligível, o guarani. (BARROS, 1998: 268)
cateretês, surgindo cantadores e violeiros importantes, tais como Va-
leriano Tomé da Costa [primeiro latoeiro e funileiro da cidade], Francis- “Papabananas” é o termo utilizado para os habitantes da cidade de Nossa Senho-
co Gomes (vulgo Chico Moleque) e Bento Gomes Benjamim [Bentinho, ra do Livramento, um dos núcleos urbanos mais antigos de Mato Grosso, de onde veio
dono da Pensão Bentinho], além de outros. (MACHADO, 1990: 89)
grande parte dos colonizadores do Pantanal Sul-mato-grossense. Barros destaca o curu-
ru e a viola de cocho como fundamentais contribuições desses migrantes para a cultura
Porém, a convivência – nem sempre pacífica – com os paraguaios foi moldando um de Corumbá e do Pantanal:
cenário em que as trocas culturais se tornaram marcantes:
A música rural do centro-sul brasileiro é a cantiga de viola, a modinha,
As danças da época eram a quadrilha, a santa-fé, a polca paraguaia, o que não é dançada e de ritmo lento e triste. No Pantanal, os negros
xote, a catira ou cateretê paulista, [...] moda de viola. papabananas trouxeram o cururu, de muito pobre melodia, pouco ro-
Não raro vinham violeiros de Minas Gerais, os repentistas do Rio Gran- mântica e, na maioria das vezes, moda de desafio. O cururu não é entre-
de, os cantadores paraguaios, e dessa forma a vilazinha ganhou larga tanto de origem pantaneira, mas do interior de São Paulo. Era música
fama de arraial da alegria, onde havia muito prazer entrelaçado com o de escravo, herança bandeirante entre nossos negros. Estes acabaram
trabalho árduo [...] (MACHADO, 1990: 90). construindo um instrumento típico para o acompanhamento – a viola
de cocho – com cordas feitas de tripa de macaco.
A rápida troca da cantiga mineira e do cururu pantaneiro pela rasque-
No início do século XX, a partir da chegada dos trilhos da Noroeste do Brasil, Cam- ada paraguaia parece-nos um fenômeno curioso (BARROS, 1998: 268).
po Grande foi adquirindo o status de núcleo urbano mais importante para o comércio
do sul de Mato Grosso, desbancando a cidade de Corumbá, na fronteira com o Paraguai Nas festas no Pantanal, as negociações e trocas culturais foram, aos poucos, cons-
e a Bolívia: truindo um espaço de sociabilidade, em que as práticas musicais típicas do meio rural
brasileiro conviviam e, de alguma forma, se hibridizavam com a música dos paraguaios.
A cidade beneficiou-se grandemente com a nova forma de comercia- A polca paraguaia, com seu ritmo vivo e dançante, era ideal para os bailes e dança de
lização. Novos bares e estalagens foram abertos, casas de tavolagem,
pares. Barros menciona alguns músicos amadores que se tornaram famosos na região,
cabarés nasciam a todo instante, ao lado do comércio de gêneros ali-
mentícios, armazéns, bazares, e outros que se foram aperfeiçoando. Mu- tocando violão, cavaquinho, sanfona e harpa:
lheres de todas as partes procuravam a cidade, onde corria dinheiro a
rodo. Logo começaram a chegar também as jovens paraguaias, interna- Os músicos eram recrutados com antecedência. Amadores que se reve-
cionalizando e valorizando a zona campo-grandense. Frescas, bonitas, zavam na noite. Bastavam dois violões, um no solo, outro no acompa-
amoráveis, desinibidas, falando e ensinando carinhosamente o guarani, nhamento. Nas grandes festas havia sanfona e até harpa. Toda fazenda

156 157
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

tinha um ou dois tocadores de violão. Nos galpões, junto aos laços e Zé Tripa. [...] a lenda já o transformou no maior vaqueiro de todos os
redes, sempre existia um pinho pendurado, do qual, nos fins de tarde e tempos.
nos domingos, se procurava tirar o som das rasqueadas. Assim foram se José Tripa era filho de um paraguaio, que não deixou rastro. Mas sua
formando grandes tocadores. Famosos no violão foram, no passado, o mãe era a bugra Chica Papuda [...] Teve cinco filhos, cada um de um pai,
José Mercês e o Tomás Aparecido, do Aguaçuzinho. O canhoto Nego da como costuma acontecer no Pantanal. [...] além de José Tripa, o grande
Baía, do Braz, desde menino fazia do cavaquinho e do violão uma caixa astro do laço, deu-nos Estácio Ferreira, artista da doma, e o bugre Arlin-
mágica de sons e ritmos. O cego Pôncio fazia sozinho um baile com sua do, tocador de harpa e acordeão” (BARROS, 1998: 197).
sanfona ou violão. O bugre Arlindo, irmão do Zé Tripa, tocava acordeão
e harpa. Neste instrumento, mais famosos foram o Bruno, um morador
da Esperança e o albuquercano Antônio Ventura. Esses artistas são aqui Outro importante cronista é Hélio Serejo, que menciona “bailecitos” e “musiquia-
nomeados ao acaso e em tempo pretérito, na certeza de se tratar de da” na cidade de Nioaque em 1887, passagem de comitivas de vaqueiros que levavam o
coisa do passado. Os rádios e tocafitas de pilhas substituíram nossos
gado para o Paraguai:
tocadores e mataram a nascente música folclórica pantaneira – a ras-
queada (BARROS, 1998: 224).
Dezesseis anos após o término da guerra de Lopes, Nioaque começava
a recuperar-se. Novos estabelecimentos comerciais iam surgindo. E as
Barros menciona a “rasqueada” como uma suposta “música folclórica pantaneira”.
carretas brasileiras puseram-se a trilhar, com maior freqüência, as es-
O termo “rasqueado”, em princípio, refere-se à forma de tocar o violão “rasqueando” (ras- tradas do Paraguai. [...]
gando) as cordas e fornecendo o ritmo e a base harmônica ao mesmo tempo, uma das E como se alvoroçava a vila Conceição com a chegada das carretas
principais características da polca paraguaia. A partir das primeiras décadas do século brasileiras. Às vezes, eram em número de cinco a oito; outras, trinta,
XX, “rasqueado” também foi a denominação dada a um gênero musical dentro do campo e mesmo noventa. Um verdadeiro pandemônio, então, se formava. A
ciudad ficava formigando. Logo depois, numa provocante e sensuálica
da música caipira/sertaneja e relacionado, poética e musicalmente, à música das fron- exibição de carne moça, viriam los bailecitos, ou quando não, uma diver-
teiras com o Paraguai. tida musiquiada (SEREJO, 2008, vol.5: 295).
Além de atuarem como músicos, esses homens integravam a “peonada”, trabalha-
dores especializados nas lides com o gado. Entre esses peões, destacava-se o grande Antonio Lopes Lins é mais um cronista que, no prefácio ao livro de Brígido Ibanhes
número de paraguaios e filhos de paraguaios: (2007) sobre o famoso e temido bandoleiro gaúcho Silvino Jacques, menciona festas e
danças na fronteira. Silvino Jacques era sobrinho de Getúlio Vargas, em favor de quem
No Pantanal e planalto de Maracaju, pouco a pouco, fomos adotando lutou na Revolução Constitucionalista de 1932 em terras sul-mato-grossenses, e segun-
a postura platina, mais acentuada ainda pela migração gaúcha, no co-
do Lins, era músico amador:
meço do século, no sul do estado. Mesmo a forte presença mineira no
planalto, de longa tradição, acabou suplantada pela influência platina.
Acabamos usando botas campeiras, em vez de botina mineira, e bom- De sanfoneiro, mulherengo, trovador, churrasqueador e com um gosto
bachas e faixas com predominância das cores da bandeira paraguaia, especial para festas e danças, qualidades inatas ao habitante da fron-
que usávamos sem notar, além de guaiacas, palas, puitãs e tiradores. teira do sul, se passou fácil para os pugilatos e as mortes e daí, espe-
Em cidades e vilas do planalto, ainda bem próximo de nossos dias, era cialmente impelido pelo instinto da vingança, sua mais forte caracte-
roupa usual nas ruas. rística, para o crime. Começou com crimes acidentais, não programados,
Também toda nossa traia de montaria, do loro à cabeçada, tem ori- mas daí foi apenas um passo para chegar ao crime organizado, ao qual
gem paraguaia, confeccionada pelos seus insuperáveis talabarteiros. passou depois de pequeno interregno político (LINS, 2007: 11).
Um grande número de denominações, na zona rural, são derivadas do
guarani, língua que muitos dos nossos aprenderam a falar. A carreta
Outro memorialista, Samuel Medeiros, relata sua juventude na cidade de Jardim
pantaneira, nosso carro de bois, também é de origem paraguaia (BAR-
ROS, 1998: 267). e os bailes dos paraguaios, que denominavam “jeruquis”, em que imperavam a música
sertaneja e a polca paraguaia:
Barros destaca a figura do peão Zé Tripa, filho de paraguaio, e seus irmãos Estácio
e Arlindo, este um “tocador de harpa e acordeão”: “Vai ter brincadeira hoje na casa do Felipe”. [...]
À noite lá estávamos nós, com bastante brilhantina nos cabelos e os
sapatos reluzentes, dançando ao som da alta fidelidade os autênticos e
recentes ritmos dos anos 60: boleros de Nelson Gonçalves, as canções

158 159
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

de Nat King Cole e Roberto Carlos, sem dúvida. [...] gado e da cultura da erva-mate – principal atividade econômica na passagem do século
Havia, também, os bailecos que se estendiam pela Vila Angélica, em
casas de desconhecidos, onde entrávamos, muitas vezes sem convite. XIX para o XX.
Eram os chamados jeruquis, um termo guarani que designava os bailes No século XX, a permanente instabilidade política e econômica do Paraguai conti-
de fundo de quintal num lugar sem soalho, onde a poeira levantava ao nuou motivando a vinda de paraguaios para Mato Grosso do Sul, seja para trabalhar nas
rodar dos casais, levando o pó sabe lá pra onde. Nos jeruquis havia basi- zonas rurais, seja para exercer ofícios modestos nos núcleos urbanos, especialmente na
camente violão, acordeão ou sanfona, tocando música sertaneja, o que
manufatura de artefatos de couro.
nunca acontecia em nossas brincadeiras. O termo, para nós, qualificava
como pejorativo o baile, seu local e freqüentadores. Quando falamos em música fronteiriça de Mato Grosso do Sul, estamos nos
Quando o conjunto era mais sofisticado, é que entrava o contrabaixo, referindo a esse conjunto de gêneros musicais que se conectam, tanto por configura-
aquela espécie de violino gigante, com os sons mais graves. Do centro ções musicais quanto por poéticas: a polca paraguaia, a guarânia, o rasqueado, a moda
da cidade podia-se ouvir, nas madrugadas, seu som, ao longe, no final
campera e, por extensão, o chamamé argentino. Esses gêneros musicais foram construí-
da Vila Angélica. Não se ouvia a melodia da polca paraguaia, só o acom-
panhamento do instrumento. Era só segui-lo que se chegava ao jeruqui dos no Brasil, no Paraguai e na Argentina, a partir de complexos processos de apropria-
ou “bate-coxas”, onde nem sempre se era bem recebido. Ir a um baile ção, hibridização e ressignificação cultural, e se converteram em fortes representações
desses em Guia Lopes sem ser convidado era uma temeridade (MEDEI- culturais que, pelo menos até a década de 1950, eram mais praticadas por músicos
ROS, 2002: 120-121). amadores e profissionais ligados ao segmento de música caipira/sertaneja regional.
Entre as 24 faixas do primeiro CD do projeto Mato Grosso do Som, 16 são dedica-
Paulo Coelho Machado lembra que, mesmo no Rádio Clube de Campo Grande, das à categoria de Música Regional e, entre essas, 4 são registros de músicos identifica-
fundado em 1924 como reduto da elite da cidade, a polca paraguaia ocupava lugar de dos com a música urbana e 12 de músicos e cantores identificados com a cultura rural
destaque nos bailes: “As danças mais populares eram o samba, o Fox, a polca paraguaia, e fronteiriça. Nesse segmento, foram incluídas cinco modas de viola (“Estrada de chão”,
a marcha. Menos usadas a valsa e o tango. Também o charleston teve seu tempo, embora “Prece pantaneira”, “Fogo humano”, “Canção de boiadeiro” e “Pantanal em silêncio”), uma
curto” (MACHADO, 2000: 84). polca paraguaia (“Mensaje de amor”), uma guarânia (“Lejania”), três rasqueados (“A mato-
Se a música rural brasileira foi trazida pelos migrantes internos, a música para- -grossense”, “Pé de cedro” e “Prenda querida”) e dois chamamés (“Gaivota pantaneira” e
guaia fornece um pano de fundo para a musicalidade de Mato Grosso do Sul. O compar- “O jacaré”). As modas de viola e as polcas paraguaias, como vimos, já eram praticadas
tilhamento de uma história conectada com o Paraguai remete a diversas narrativas, que, desde o final do século XIX. A guarânia consolidou-se como gênero musical urbano a
em uma visão mais essencialista, evocam uma ancestralidade guarani. Esse discurso, partir de Assunção, na década de 1930, época em que músicos paraguaios começaram a
que também é detectado na região nordeste da Argentina (fronteiriça com o Paraguai), gravar discos no Brasil. O rasqueado surge no segmento da música caipira na década de
toma forma na concepção de um mito de origem denominado “alma guarani”. Porém, é 1940, como uma ressignificação da música paraguaia feita por músicos paulistas como
preciso lembrar os fatos históricos que conectam o Mato Grosso do Sul ao Paraguai e à Mário Zan e Nhô Pai6. O chamamé tem seu marco fonográfico com a gravação de “Cor-
Bacia do Prata. O primeiro deles foi o momento da implantação das Reduções Jesuíticas rientes Poty”, pelo cantor paraguaio Samuel Aguayo em 1930, em Buenos Aires, sendo
na então chamada Província do Itatim no início do século XVII. Esses núcleos, localiza- que o sanfoneiro Zé Correa, foi o primeiro músico a gravar e divulgar o chamamé no sul
dos na região centro-oeste do estado, tiveram vida efêmera por conta dos ataques dos de Mato Grosso, na década de 1960.
bandeirantes paulistas, o que levou os jesuítas a transferirem suas missões mais para o
sul, atual Paraguai, nordeste argentino, fronteiras do Rio Grande do Sul e Bolívia.
O segundo evento foi a Guerra da Tríplice Aliança, travada entre 1864 e 1870,
que opôs o Paraguai ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai. O conflito, que, no Brasil, é
denominado de Guerra do Paraguai e, no Paraguai, de Grande Guerra, teve parte de suas
batalhas travada em solo sul-mato-grossense. Os limites fronteiriços definidos após a
guerra não puderam conter o intenso trânsito de paraguaios e brasileiros na região. Os
paraguaios, especialmente, buscavam trabalho em solo brasileiro para reconstruir suas
vidas. Pejorativamente chamados de “bugres” e “abugrados”, por conta da fisionomia
indígena e mestiça, esses personagens foram fundamentais para os ciclos de criação de 6
Para maior aprofundamento no tema, ver o livro ““Para fazer chorar as pedras”: guarânias e rasqueados
em um Brasil fronteiriço” (HIGA, 2019).

160 161
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

3. Música urbana Peter Ens, a participação da comunidade musical local restringiu-se ao empréstimo, pelo
O segundo CD Mato Grosso do Som: Mapeamento Musical de Mato Grosso do Sul, contém Conservatório Matogrossense de Música, dirigido pela professora Tunita Mendes, de um
23 faixas inteiramente dedicadas à música urbana, conferindo, a essa categoria, o maior surrado piano 1/4 de cauda. Mato Grosso do Sul nascia com uma trilha musical esfuziante
destaque do projeto7. Entre blues, pop, reggae e diversos subgêneros de sambas, o disco e sofisticada, porém muito pouco vinculada a sua história e cultura.
traz músicos de Campo Grande e Corumbá, com destaque para Geraldo Espíndola que Criado em plena ditadura militar pelo presidente Ernesto Geisel, em 11 de outubro
abre e fecha o CD com Cunhataí porã e Vôos claros, respectivamente. Essa opção sinaliza de 1977, a partir da divisão do estado de Mato Grosso, o primeiro governador designa-
o esforço em reforçar a construção de uma marca regional no campo da música popular do para o 23o estado da federação foi Harry Amorim Costa, engenheiro natural de Cruz
brasileira, potencializado após a divisão do antigo Mato Grosso uno. Aqui, permitimo- Alta, Rio Grande do Sul. As ideias divisionistas já circulavam desde o início do século XX,
-nos resgatar nossas próprias lembranças. sendo que, em 1932, no contexto da Revolução Constitucionalista, se criou o efêmero
Na manhã do primeiro dia de 1979, o Teatro Glauce Rocha ficou lotado de autorida- estado de Maracaju, que, durante três meses (de julho a outubro), se declarou indepen-
des e personalidades convidadas para a cerimônia solene de instalação político-adminis- dente do norte de Mato Grosso (MACHADO, 2000). A região sul de Mato Grosso havia
trativa do estado de Mato Grosso do Sul. Na parte da tarde, no estádio de futebol More- aderido às tropas revolucionárias. Nas memórias de Atamaril Saldanha (2010), soldado
não, uma apresentação de bandas militares e do Coral Universitário antecedeu a grande de cavalaria “natural da região fronteiriça de Mato Grosso do Sul, oriundo do campo e,
atração da festa popular: o desfile da Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis, campeã do como muitos, descendente de gaúchos”:
Carnaval carioca nos três anos consecutivos anteriores, que veio com centenas de músi-
cos, passistas e representantes de alas trazidos especialmente para o evento. desejávamos condições mínimas de vida como estradas, pontes, esco-
las, transportes, hospitais, luz, telefone e água encanada para nossos
Na noite seguinte, dia 2 de janeiro, no Teatro Glauce Rocha, uma plateia lotava o
povoados e cidades, já que o governo não aplicava em nada disto um
espaço, ansiosa para ver o concerto de gala comemorativo do evento. O palco foi ocupa- mínimo do muito que representava a arrecadação do estado naquela
do pela Orquestra Sinfônica Nacional que, sob a regência de Alceo Bocchino, apresentou região, só no arrendamento das terras à Mate Laranjeira, que devería-
um programa aberto com o Hino Nacional Brasileiro, seguido da primeira audição do Hino mos defender, apesar dos pesares” (SALDANHA, 2010: 79).
de Mato Grosso do Sul e a abertura da ópera O Guarani de Carlos Gomes. Em seguida, o
violoncelista Alceu Reis executou o Concerto n. 1 em Lá menor, de Camille Saint-Saëns e Alguns meses depois da instalação de Mato Grosso do Sul, o selo independente
o pianista José Carlos Cocarelli solou o Concerto em Lá menor op. 16, de Edward Grieg. Marcus Pereira – especializado em registro e difusão de música brasileira fora do eixo
Mato Grosso do Sul nascia envolto em uma aura modernizante, conectada com a música comercial mainstream – lançou o disco Grupo ACABA: cantadores do Pantanal,8 em que
e a cultura projetada a partir do Rio de Janeiro, que, apesar de não ser mais a capital do os nove músicos de Campo Grande, registraram 11 canções autorais e uma faixa com
país desde 1960, continuava a ser a referência do que se entendia por identidade cultural temas de rodadas de siriri e cururu tradicionais de Corumbá. Na canção Carandá (Chico
e musical brasileira. Com exceção do Coral Universitário (à época ligado informalmente de Lacerda, Moacir de Lacerda e Alaor Pereira), que abre o álbum, uma declaração inci-
à Universidade Estadual de Mato Grosso – federalizada como Universidade Federal de siva: “Grupo Acaba: em busca da rês perdida, no casco do cavalo um pedaço de poema,
Mato Grosso do Sul (UFMS) – em julho daquele mesmo), dirigido pelo músico alemão na face pantaneira o ponto de partida”. A proposta do grupo, de trazer para o primeiro
plano as paisagens, flora e fauna do Pantanal, as representações dos povos originários
e as manifestações folclóricas regionais, fornecia uma trilha musical e simbólica para a
7
Cunhataí porã (Geraldo Espíndola) com Geraldo Espíndola, Só de surpresa (ZéDu) com Américo e Nando, formulação das políticas culturais do novo estado da federação:
De onde venho (Silva Neto e Clio Proença) com Silva Neto, Águas de piscina (Celito Espíndola) com João
Fígar, Cantando a tristeza (Bicudo, Vlalmir e Rato) com Grupo Zuera, Segredo (Waléria Leite e Wagner An-
tunes) com Waléria Leite, Vaga-lume (Gilson Espíndola) com Gilson Espíndola, Cachoeira (Cesar Oliveira, Por questões de ligação com a natureza os integrantes do Acaba abor-
W. Vieira e Paula dos Anjos) com Paula dos Anjos, Oceanos no céu (José Boaventura e Rubens Aquino) daram pioneiramente as culturas do Pantanal e indígena e definiram de
com José Boaventura, O abraço da terra (Ogg Ibrahim) com Ogg Ibrahim, Abril (Celito Espíndola e Toninho forma sólida a identidade cultural de nosso Estado em que lastrearam
Porto) com Dami Gladis, Natureza (Vandir Barreto e Eliene Barreto) com Vandir Barreto, Pequenos trechos e influenciaram todos os segmentos de expressão artística (SÁ ROSA;
(ZéDu e Pedro Mattar) com ZéDu, Sentimentos blues (Geraldinho) com Geraldinho, Flor de abacate (Jose
DUNCAN, 2009: 59).
Eloy de Magalhães) com Tadeu Atagiba e Grupo Geração de Samba, Coisas clandestinas (Paulo Gê) com
Paulo Gê, Coração banido (Sandra Menezes e Eline Bélier) com Sandra Menezes, Jeito bandido (Juninho e
Bibi do Cavaco) com Só Prá Descontrair, Bola de cristal (Eline Bélier) com Eline Bélier, Corda bamba (Caio
Ignácio e Carlos Colman) com Caio Ignácio, Bandeira (Geraldo Ribeiro) com Geraldo Ribeiro, Fuga (Antonio
Mário da Silva e Sílvia Cesco) com Antonio Mário e Vôos claros (Geraldo Espíndola e Antonio Mario) com 8
Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ooOfwnPnCMc&list=PLO-QEpiig_
Geraldo Espíndola. IgXMDmxSez_6hAOHLI-4bYi

162 163
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

A concretização da divisão, em 1977, como resultado de uma ampla articulação documento histórico a publicação, pela UFMS, do livro Projeto Universidade 81: festivais
das elites regionais, trouxe a necessidade de construção de políticas culturais, e a pau- de música em Mato Grosso do Sul, que, tem, entre seus objetivos, o de “valorizar uma
ta das discussões sobre identidades norteou os debates que se seguiram. No campo linguagem regional emergente” (SÁ ROSA; SIMÕES; FONSECA, 1981).
musical, artistas, em sua maioria, radicados na nova capital Campo Grande, como Almir A legitimação desse movimento, veio com a publicação, no ano seguinte, de A
Sater, Paulo Simões, Geraldo Espíndola, Lenilde Ramos, Grupo ACABA, Geraldo Roca e moderna música popular urbana de Mato Grosso do Sul, de José Octávio Guizzo. Tendo
outros, que, desde a década de 1960, já defendiam a busca de uma musicalidade que como fontes os relatos de cronistas como Renato Baez9 e Melo e Silva10, além de suas
conciliasse a ruralidade regional, o nacional, o latino-americanismo e o global – tendo próprias memórias, Guizzo inicia sua narrativa com uma afirmação categórica: “A divisão
como matéria-prima primordial a natureza do Pantanal e as relações da música de fron- de Mato Grosso em 1977, criando o novo Estado, colocou em evidência um dado con-
teira – reforçaram o discurso identitário que Geraldo Roca sintetizou no rótulo “Música creto até então despercebido: somos um povo sem identidade cultural definida” (1982:
do Litoral Central” (MLC). 5). Guizzo detecta, naquela geração de músicos surgida dos festivais, “a existência de
Em seu livro Enquanto este novo trem atravessa o litoral central: música popular duas grandes vertentes que lhe dão uma base sólida: a música sertaneja e a advinda da
urbana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul, Álvaro herança cultural guarani” (1982: 43). Para Guizzo, o que ele define como “herança cul-
Neder detecta, nos discursos musicais dessa produção, o que denomina de “poética do tural guarani” na música, é o rasqueado, “um ritmo intermediário entre a polca paraguaia
deslocamento”, como uma “contínua migração entre diferentes posições subjetivas” e a guarânia” (1982: 43).
(NEDER, 2014: 63), e um certo “desfronteiramento”, que aponta para uma intertextuali- Complementando o processo legitimador dessa musicalidade, no mesmo ano, no
dade metaforizada nas imagens recorrentes do Rio Paraguai (e do Pantanal) e do trem, Teatro Glauce Rocha, foi gravado, ao vivo, o antológico LP Prata da casa.11 Apesar de
não apenas como rota de fuga mas também como “procura do movimento e atração esse registro ter entrado para a história da música sul-mato-grossense como um marco
pela indeterminação” (NEDER, 2014: 63). Neder observa que a proposta da MLC “baseia- fundador de uma “identidade” musical regional, o projeto Prata da Casa, da Universidade
se na ideia de fragmentação, não de integração” (grifos do autor), e que a opção por um Federal de Mato Grosso do Sul, já estava em andamento desde o ano da implantação
discurso que excluiu “o universo cultural das populações periféricas da cidade de Campo do novo estado. Em 9 de dezembro de 1979, foi realizado o primeiro show integrando
Grande e rurais do restante de Mato Grosso do Sul, em última análise, não chegou a a nova geração com os veteranos músicos que se destacavam no campo da música ser-
promover efeitos sobre elas” (NEDER, 2014: 325). taneja e fronteiriça, como o trio Cruzeiro, Tostão e Centavo, a dupla Délio e Delinha e a
Apesar de cooptada pelas elites locais e tendo seu capital simbólico valorizado, cantora Jandira. Rodrigo Teixeira observa que: “no cartaz do espetáculo, chama atenção
a MLC “não privilegiava o polo da tradição – relacionada, como regionalismo, aos inter- a frase ‘música popular regional’ logo abaixo do título ‘Prata da Casa’, demonstrando que
esses dominantes –, que era aqui alterada, transformada, tornando-se, não mais familiar o projeto tinha a preocupação de demarcar o território da regionalidade” (2016: 31). O
ou nostálgica, mas estranha” (NEDER, 2014: 146, grifo do autor). Seu prestígio atingiu o projeto continuou com outros shows e a produção de 11 videoclipes, em um total de
ápice na década de 1980 com a difusão dos apelos ecológicos em defesa do Pantanal, quatro fases, que culminaram com a gravação do LP. Porém, Teixeira lembra que, após
levando a MLC a uma certa “defesa essencialista de raízes regionais”, e sendo associada a primeira fase, “tanto os músicos mais experientes e que tinham envolvimento com a
a um “ideário solene, pedagogizante e limitador”, passando às novas gerações uma “ima- música fronteiriça, quanto os jovens estudantes que estavam fazendo música de forma
gem retrógrada, do mato, da natureza, do passado” (NEDER, 2014: 162), o que dificultou amadora desapareceram nas fases seguintes” (2016: 30). Podemos inferir que, além da
sua difusão fora dos círculos universitários e das elites culturais da região. busca por uma “identidade” musical de cunho essencialista, foi grande a preocupação
Se a sigla MLC foi inventada como uma forma de dar voz a um movimento de bus- em construir uma produção musical que dialogasse com as novas gerações e se afir-
ca identitária na música regional, potencializada após a divisão do antigo Mato Grosso, masse na cena da música popular brasileira através da hibridização de aspectos da
pelo menos duas décadas antes os artistas locais já buscavam canais de expressão ruralidade e referências fronteiriças, embalados em um pacote cosmopolita, capaz de
inspirados pelos históricos festivais transmitidos pelas TV Excelsior e Record em São
Paulo desde 1965. Em dezembro de 1967, foi realizado, no Clube Surian, o 1o. Festival da
Música Popular em Campo Grande, conforme lembra Maria da Glória Sá Rosa: “1960 foi 9
BAEZ, Renato. Corumbá, figuras & fatos. Bauru: Tipografia e Livraria Brasil S/A, 1964.
a década dos festivais de música em Campo Grande, nessa época denominada capital BAEZ, Renato. Cenas de minha terra. Bauru: Tipografia e Livraria Brasil S/A, 1965.
econômica do Estado de Mato Grosso, ainda não desdobrado em duas unidades”. Diver- 10
MELO E SILVA. José de. Canaã do oeste (sul de Mato Grosso). Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1947.
sos festivais, com nomes variados, foram organizados entre 1967 e 1981, tendo como 11
Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=0b7AV6y8_8Y&list=PLO-
QEpiig_IguR-nYY82A94SRbOLM4QVjs

164 165
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

ser entendido e consumido por um amplo público no contexto da consolidação de uma depoimento concedido ao jornalista Lizoel Costa e publicado no jornal Folha do Povo, de
indústria fonográfica poderosa no Brasil. 23 de janeiro de 2002, Maria da Glória Sá Rosa avalia aquele projeto:
A busca desse espaço já havia sido iniciada alguns anos antes da divisão de Mato
Grosso. Em 1978, os irmãos Espíndola haviam gravado, pela Polygram/Philips, o LP Tetê Pela primeira vez na história de nossa música fazia-se um registro co-
letivo, em LP das melhores produções dos artistas do Estado, do que
e o Lírio Selvagem12, com a maioria das faixas de autoria de Geraldo Espíndola. Em uma
resultou um disco, que, apesar das falhas naturais, pode ser ouvido com
ambientação onírica, com uma comunicação visual colorida, evocando uma simbiose prazer e hoje é fonte de pesquisa para os estudiosos de nossa música.
estilizada dos irmãos com a natureza, a tentativa de inaugurar um nicho inédito no Vinte anos depois, ao retomar, através dos fios da memoria as lutas
campo da música popular brasileira não foi bem-sucedida. Segundo Neder (2013: 158) daquela época em que tudo foi feito na garra, no desprendimento dos
a assimetria de forças entre os artistas e as exigências dos produtores acabou gerando participantes, que abriram mão de qualquer recompensa financeira e
das instituições que colaboraram para o empreendimento, reavalio a
um disco com arranjos padronizados e com instrumental inadequado, desagradando os importância de um projeto que abriu fronteiras musicais e serve de
próprios Espíndola e o restrito público que conhecia seu trabalho. Apesar disso, é pos- estímulo para novas produções em conjunto. O Prata da Casa faz parte
sível que, de alguma forma tenha sinalizado, para os artistas do sul de Mato Grosso, um da história (COSTA, 2002: C-1).
caminho possível a ser desbravado: buscar, na própria natureza da região, os signos e
símbolos para construir uma narrativa identitária. Se, no mesmo material, o compositor Paulo Simões afirma que “a geração Prata da
Entretanto, se as paisagens, fauna e flora pantaneiras forneciam farto material Casa levou a música a sério, como um projeto de vida; não ficaram como muitos artistas
para as canções, fatores humanos, históricos e sociais despertaram a atenção dos artis- talentosos que foram envelhecendo, casando, e indo cuidar de suas vidas”, Lizoel Costa
tas e instâncias de gerência cultural: a fronteira e a cultura paraguaia. Entre as faixas (2002) reitera que:
do Prata da Casa, destaca-se a guarânia “Sonhos Guaranis”, que faz referência a um Mato
Grosso anterior à divisão de 1977, porém conectado, em sua região sul, com a história do A geração “Prata da Casa”, que se destacou a partir de 1982 com o disco
do mesmo nome, está voltando com força total este ano. Não que eles
Paraguai, os paraguaios e sua ancestralidade guarani. Em depoimento de Paulo Simões
tenham encerrado suas respectivas carreiras artísticas, pelo contrário,
para o jornalista Danilo Japa Nuha (2016): a volta acontece através de novos CDs independents que prometem
estar nas lojas a partir de março. […] Fica no ar a expectativa de que
Em 81, 82, se não engano, o Almir e eu fomos pra uma fazenda em Rio os artistas que deram uma cara à música sul-mato-grossense mostrem
Verde, a Fazenda Garimpo, da nossa querida professor Maria da Glo- novas propostas e ajudem os novatos a achar o caminho das pedras”
ria Sá Rosa. Fomos com o filho dela, que também era músico, o José (COSTA, 2002: C-1).
Boaventura. Uma tarde, começou a surgir uma melodia, uma guarânia,
e um início de letra que se tornou Sonhos Guaranis. Lembro que nós
a terminamos numa chácara em 3 Barras, de um tio do Almir, Nelson 4. Música instrumental e canto coral e lírico
Buainaim. Nós dois lemos o livro Genocídio Americano, do Julio Cesar Sob os rótulos de “música instrumental”, “canto coral” e “lírico”, o terceiro CD da caixa
Chiavenatto, que mostrava a Guerra do Paraguai por outro ângulo, e
também começou a Guerra das Malvinas, na mesma época. A gente al- traz registros feitos pelo Coral e Orquestra Clássica de Mato Grosso do Sul, pela Banda
ternava a finalização da música com partidas de WAR, com o noticiário de Música Municipal Ulisses Conceição, Coral da Telems, Coral da UFMS, Coral Vozes
da Guerra ao fundo (JAPA NUHA, 2016: 41). do Lions Club de Corumbá e Banda de Música do 17o. Batalhão de Caçadores, Coral
Canto do Futuro, Coral Cante Conosco e um solo da cantora lírica Clarice Maciel. Além
Com apoio institucional dos órgãos estaduais de cultura e da UFMS, apesar de dessas faixas, foram incluídas gravações de instrumentistas ligados à música popu-
muitas dificuldades, a chamada “geração Prata da Casa”, em alusão ao disco de 1982, lar urbana regional, como Pedro Ortale, Roberto Espíndola, Miguel Tatton, Zeca do
continuou a produzir shows e discos individuais e coletivos, como o LP Caramujo som, Trombone, Orlando Brito, Jairo Lara e Gelton de Paula. Todos esses fonogramas foram
de 199313, que reabriu o Teatro Glauce Rocha após um longo período de reforma. Em gravados por grupos e músicos de Mato Grosso do Sul. A única exceção foi a inclusão
da faixa Regresso pacífico, uma das partes da suíte sinfônica Retirada da Laguna, do
12
Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=74nOZRLDU0I&list=PLO-QEpiig_IhxeXI-
compositor fluminense César Guerra-Peixe, regendo a Orquestra Sinfônica Nacional
TO5A8citES4mNQBR8 da Rádio MEC, em gravação de 1972. Acreditamos que a adição dessa obra tenha sido
13
Disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=ZJzUuWOmI7A&list=PLO-QEpiig_Ih9I- feita por conta da temática relacionada a um episódio da Guerra da Tríplice Aliança,
0teIAdPgOB8vtFf0HCC

166 167
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

ocorrido em terras de Mato Grosso do Sul e narrado na obra homônima de Visconde grupo privilegiado usufruía dessa prosperidade: os comerciantes estrangeiros e brasi-
de Taunay. leiros estabelecidos no porto, vinculados a casas comerciais no exterior. [...] o povo –
A inclusão de grupos vocais e instrumentais regionais comumente ligados ao vivia na pobreza” (PROENÇA, 1997: 122).
segmento de música de concerto aponta para a necessidade de uma pesquisa mais Conforme Barros (1998: 138), na cidade de Corumbá, em 1910:
aprofundada sobre essa prática e os processos de transmissão e ensino de música em
Mato Grosso do Sul, seus professores, escolas e conservatórios particulares. O Curso os estrangeiros correspondiam a 40% da população. Mas, se levarmos
em conta a população nativa descendente próxima desses estrangei-
de Licenciatura em Música na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, criado em
ros, essa porcentagem deveria ser muito alargada. Logo após a guerra
2002, atendeu a uma demanda antiga desse segmento, sendo o único curso presencial do Paraguai, só a imigração daquele país representava mais de 50% da
de formação de educadores musicais no estado. Conforme seu projeto pedagógico, em população corumbaense.
vigor desde 2019: Depois dos paraguaios, os turcos, [...]
Entre os europeus, os mais numerosos eram os italianos, portugueses,
Existem, no Estado do Mato Grosso do Sul, duas frentes principais de alemães e ingleses (BARROS, 1998: 138).
atuação na área musical: a atividade de educador musical nos ambien-
Nessa babel cultural, conectada à Bacia do Prata, as referências das elites eram
tes formais de ensino-aprendizagem e a atuação do educador musical
nos espaços não-formais de ensino-aprendizagem de música. A primeira orientadas, em grande parte, pelos padrões de consumo e entretenimento europeus.
vertente, apesar de ser uma demanda antiga, fortalece-se a partir da im- Barros (1998: 135) lembra o luxo, por exemplo, da casa Petit Paris, uma das lojas onde
plantação da Lei 11.769/2008, que torna o ensino da música como com- podiam ser comprados artigos finos e caros, e o Bijou Theatro, com capacidade para
ponente curricular obrigatório nas escolas regulares. A segunda, que se mais de 500 espectadores e palco de “apresentações cinematográficas ou represen-
mostra como atividade de considerável demanda no Estado, apresenta-
se como interesse complementar à primeira, representada pelas inúme- tações de operetas, zarzuelas e comédias, por companhias trazidas de Buenos Aires,
ras escolas livres de música, núcleos de ensino musical de instituições Montevidéu e Assunção”.
religiosas, além de coros institucionais e bandas marciais e militares. O jornalista Renato Baez, no livro Cenas de minha terra, publicado em Bauru – SP,
Mato Grosso do Sul possui intensa atividade musical: orquestras, ban- em 1965 (Tipografia e Livraria Brasil S/A), relata, no artigo “Orquestras e bandas famo-
das municipais, bandas militares, coros religiosos, coros de empresas,
sas”, que, em Corumbá:
coros universitários, além de inúmeras formações musicais eruditas e
populares que anseiam por qualificação e por profissionais capazes de
atuar como educadores nesses ambientes. Matias Saragosa Ferreira, formou o Conjunto do Matias, que atuou de
A formação que o Curso de Música – Licenciatura proporciona aos que 1900 a 1911. Nesse mesmo ano nascia a Orquestra do Mestre Ferro, do
pretendem atuar nessa área contribui para a democratização do acesso português Álvaro Ferro. Em 1914 era formada a Orquestra dos Inocen-
a um campo de saber hoje ainda restrita a poucos, concorrendo para a tes, que teve duração até fins de 1915 ou meados de 1916. Logo depois
formação de indivíduos que, de posse desses conhecimentos, estarão foi organizada a Filarmônica Corumbaense, sob a regência do maestro
aptos a contribuírem para a qualidade da produção musical local, bem Emídio Campos Vidal. Essa orquestra, que durou até fins de 1919, ani-
como à preservação e fomento do patrimônio musical da região (BRA- mava as sessões do cinema mudo, no Cine Excelsior. Em seguida, ainda
SIL, 2019). em 1919, uma outra orquestra não nominada pelo autor, mas com re-
lação completa de seus integrantes é citada, como animadora do Cine
Sociedade Italiana. Entre 1918 e 1924 existia a Orquestra de Martins
Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, o aumento do fluxo de Paniagua. As orquestras de Luiz (Lulu) Feijó e a de Francisco Ignácio da
imigrantes para a região foi notável. Machado (1990: 52) narra que, no final de 1898, a Silva (Pequenino), funcionaram até por volta de 1931, quando o cine-
ma falado, através do sistema Vitaphone, chegava a Mato Grosso. Entre
população urbana de Campo Grande contava com cerca de 300 pessoas, incluindo imi-
1930 e 1934, havia tantos músicos em Corumbá, a ponto de ser forma-
grantes italianos, espanhóis, portugueses e árabes; destaca também que, em Corumbá, da uma Orquestra Especial com cerca de 30 elementos. E entre 1931
“durante a Guerra do Paraguai, já era numerosa a comunidade italiana que sofreu com e 1935 a Orquestra Colon. De 1932 em diante a Orquestra Tamandará,
os brasileiros as mesmas agruras da invasão e ocupação da cidade” (MACHADO, 1990: de 1934 a 1937 a Orquestra Castro. Já nas décadas de quarenta e cin-
quenta são alinhados os seguintes conjuntos: Coringa e Seus Rapazes,
169). Como Corumbá foi o núcleo urbano mais importante do sul de Mato Grosso até a
Amantes do Ritmo, Os Maiorais do Ritmo, O Guarani, Flamboyant, Os
inauguração da estrada de ferro Noroeste do Brasil, em 1914, uma elite próspera usu- Vagalumes, Os Diamantes, Agápito Ribeiro e Seu Conjunto (BAEZ, 1965
fruía de um padrão de vida bastante alto para o contexto local: “apenas um pequeno apud GUIZZO, 1982: 8 grifos do autor).

168 169
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

Baez (1965 apud GUIZZO, 1982: 7) também cita a formação de bandas militares, no início da década de 1960, para o segundo regente, o cuiabano João
Corrêa Ribeiro. E morreu, pobre, contando com ajuda de alguns ex-alu-
como a do Arsenal da Marinha de Ladário, cuja base naval foi instalada em 1873, e a do nos, em 1974 (MACIEL, 2009: 51)14.
Exército, a partir de 1903.
Em outro livro, intitulado Corumbá: figuras e fatos, publicado em 1964 (Tipografia
e Livraria Brasil S/A), no artigo Carnaval corumbaense, Renato Baez (1964 apud GUIZZO, Embora Guizzo (1982: 14) afirme que Campo Grande, “desde a década de 40, já
1982: 9) lembra a “figura negra e cega de Levino Albano, compositor e exímio violonista proclamava orgulhosamente ser a única cidade, em toda a linha noroeste do Brasil, a
de música clássica e popular, tendo se apresentado em diversas cidades de nosso Esta- possuir uma orquestra sinfônica”, Maciel (2009: 51), baseado na pesquisa de Melissa
do, na década de trinta”. Azevedo Nogueira refere-se à estréia oficial da orquestra em 1950, em concerto realiza-
Em Campo Grande, Machado (1990: 174/175) rememora a família Giseler, vinda de do no luxuoso Cine Alhambra, que tinha capacidade para 1.700 espectadores e contava
Uberaba, em 1911: “Lúcia tocava o violino; Ida e Otília executavam a flauta e Paula a cí- com 28 camarotes. Conforme matéria publicada no Midiamax (POUCA, 2014, n.p.), em
tara”. Considera também a frequência de “bailes e festas na alegre residência da família. 16 de novembro de 1956, “a câmara municipal decretou e o prefeito Marcílio de Olivei-
Juntamente com Letícia Moliterno, [...] participavam da orquestra de Emídio Widal que, ra Lima sancionou um auxílio anual de trinta mil cruzeiros” destinado à formação dos
no tempo do cinema mudo, tocava no Cine Trianon”. músicos. A orquestra, que foi dirigida pelos músicos Federico Liebermann, Kalil Rahe e
Segundo o site do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, Emídio João Corrêa Ribeiro, só foi realmente oficializada como Orquestra Municipal de Campo
Campos Vidal é considerado o primeiro professor de música de Campo Grande e teria se Grande através da Lei no. 4.403, de 30 de agosto de 2006, quando passou a ser dirigida
estabelecido nessa cidade em 1920, oriundo de Corumbá (QUEM FOI, [20--]: n.p.). Além por Eduardo Martinelli.
de professor, trabalhava também como músico nas sessões de cinema mudo: Em 1982, por iniciativa de músicos, escolas e professores de música da capital de
Mato Grosso do Sul, como Marina Rego Lopes e Tunita Mendes – que, durante várias
Em maio de 1932, Zé Bernardo assistiu a um filme no Cine Trianon, décadas, foram as mais importantes pianistas e professoras de piano do estado, – foi
em Campo Grande, intitulado Alma do Brasil, que retratava a retirada
instituída a Sociedade Pró-Música, dirigida por José Tarcísio Leal. Em seguida, foi criada
da Laguna e principalmente, o pantanal mato-grossense, tendo como
principal protagonista a atriz portuguesa e cantora de fados, Conceição a Orquestra Filarmônica de Mato Grosso do Sul e Coral da Fundação Barbosa Rodrigues,
Ferreira, além dos atores da terra: Octaviano Ignácio de Souza, Adol- que trouxe, como regente, o maestro português Vitor Marques Diniz, que, por quase 40
fo Marconi e Waldir dos Santos Pereira. Os diretores foram: Alexandre anos, desenvolveu intensa atividade de formação musical no estado.
Wulfes e Líbero Luxardo. Enquanto os telespectadores assistiam ao fil- Em 1985, após o encerramento das atividades do projeto da Fundação Barbosa
me, o Maestro Emídio Widal tocava músicas de sucesso da época; o
filme era mudo (FERREIRA NETO, 2004: 404). Rodrigues, foi fundada, com os músicos remanescentes e o maestro Vitor Diniz, a Socie-
dade Coral e Orquestra Clássica de Mato Grosso do Sul, responsável por duas faixas do
CD 3 do projeto Mato Grosso do Som: o hino do estado, que tem música de Radamés
Em 1939, estabeleceu-se em Campo Grande o músico argentino Federico Lieber- Gnattali e letra de Otávio Gonçalves Gomes e Jorge Antônio Siufi, e a canção “Coração
mann (1904-1974): ventania”, do compositor e cantor campo-grandense Carlos Colman.
O compositor João Guilherme Ripper, nascido no Rio de Janeiro em 1959, tem
Um tesoureiro que fugiu com todo dinheiro da Companhia de Óperas fortes ligações familiares com Mato Grosso do Sul e, desde 1992, tem participado inten-
argentina Dora Solima, em 1939, contribuiu para que Campo Grande
samente da cena musical de Campo Grande. Em 1992 e 1993, foi um dos organizadores,
recebesse o seu primeiro regente de orquestra de música de concerto,
o maestro Frederico Liebermann. Nascido na Argentina, em 1904, ele junto com Manoel Rasslan, Evandro Higa e Viviane Steiner, das duas edições da Semana
era o spalla (primeiro violino) da companhia. Durante turnê pela Amé- de Música de Campo Grande, festivais que trouxeram músicos e professores de renome à
rica do Sul, quando se apresentavam em Araçatuba (SP), foram lesados. cidade. Em 2001, Ripper fundou e dirigiu, durante alguns anos, a Orquestra de Câmara
Sem perspectivas financeiras, Liebermann lembrou-se da cidade que do Pantanal e tem, em sua vasta obra composicional, trabalhos criados para o contexto
recebera a companhia em 1938, no ano anterior, e veio tentar a vida.
Deu aulas particulares de violino, piano e outros instrumentos. Juntou sul-mato-grossense. Podemos citar a Cantata a céu aberto, com versos de Manoel de Bar-
outros mil-réis aqui e ali, em eventos diversos. Liebermann acabou se
tornando o regente da Orquestra Sinfônica de Campo Grande, conside- 14
Segundo o autor da matéria, essa informação foi retirada do livro Sinfonia de bravos, ainda não publi-
rada a pioneira da cidade. Deixou as batutas por problemas de saúde, cado, defendido como conclusão do Curso de Jornalismo, em 2003, na Anhanguera-Uniderp, pela
cantora e jornalista Melissa Azevedo Nogueira (MACIEL, 2009: 51).

170 171
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

ros e a cantata cênica Peabiru, sobre texto de Lélia Rita de Figueiredo, ambas estreadas Esta composição foi escrita no ano de 1974, inicialmente concebida
para banda categoria C com 30 componentes. Sua 1º apresentação, com
em Campo Grande. Foi sobre um poema de Manoel de Barros que Ripper compôs Aquela a Banda do 17 Bfron foi no Centro Pedagógico de Corumbá, MS, e con-
madrugada, canção de câmara registrada no CD 3 de Mato Grosso do Som pela soprano tou com a participação do Coral Vozes do Lions Clube de Corumbá para
Clarice Maciel. a estréia, tendo sido gravada precariamente em fita cassete (LEANDRO,
Atualmente, entre os conjuntos institucionais mais importantes, podemos elencar, 2012: 4)
além da Orquestra Municipal de Campo Grande, a Banda Sinfônica da UFMS, com regên-
Nos três movimentos, que possuem constantes mudanças de andamen-
cia de Jorge Geraldo, a Orquestra de Câmara da Universidade Estadual de Mato Grosso to e caráter, há interferências do coral misto onde o compositor intro-
do Sul (UEMS), em Dourados, sob direção de Miriam Suzuki, e a Orquestra e o Coral Vale duz poemas de autores corumbaenses, versos de sua própria lavra e
da Música, do Moinho Cultural de Corumbá, dirigidos por Eduardo Martinelli. até mesmo trecho de cantiga tradicional de São João até hoje entoada
pelas numerosas procissões que descem as ladeiras até o rio Paraguai
No âmbito da música vocal em conjunto, o chamado “movimento coral” teve seu
para banhar as imagens do santo no mês de julho. (LEANDRO, 2012: 8)
auge especialmente na década de 1990. Em artigo publicado no jornal Diário da Serra,
de 11/12 de abril de 1993, Manoel Rasslan relata que:
O compositor Antonio José de Almeida nasceu em 1925, em Carmo da Mata – MG,
O Canto Coral tem chamado a atenção dos que vivem em nosso Estado. e, a partir de 1964, passou a residir em Corumbá, onde assumiu, como subtenente, a
Hoje, na maioria das cidades de Mato Grosso do Sul, encontramos o
direção da banda de música do 17o. Batalhão de Caçadores, hoje 17o. Batalhão de In-
aparecimento cada vez maior de grupos vocais nas universidades, nas
congregações religiosas, nas escolas de 1o e 2o graus, nas empresas, ou fantaria da Fronteira. Parte do manuscrito foi perdido e, a partir de fragmentos e dessa
mesmo entre amigos. Canta-se enfim por todos os cantos. (RASSLAN, gravação de estreia, a partitura foi reconstituída (e ampliada), em 1987, pelo primeiro
1993: 2) sargento músico José Franco Neto.
Outra faixa dedicada à música de banda é uma adaptação de temas de rodada de
Rasslan, que é regente do Coral da UFMS, enumera alguns dos eventos e festivais siriri-cururu, feita por Moacir Lacerda e Luiz Porfírio e gravada pela Banda de Música
que reuniam dezenas de coros na época: Encontro de Coros de Dourados, Serenata de Municipal Ulisses Conceição, com regência de Delmo Tartarotti. Essa banda foi criada
Natal de Campo Grande, Encontro de Coros em Três Lagoas e Encontro de Coros do em 1976 como banda marcial, em 1986 passou para a categoria de banda musical e
Centro-Oeste. Uma das mais ativas organizadoras e regente de inúmeros coros foi a recebeu a atual denominação em 1988 como homenagem ao seu fundador (MOSLAVES,
soprano e maestrina Ivone Frahia, hoje radicada nos Estados Unidos. Do terceiro CD de 2014: 24).
Mato Grosso do Som, participaram o Coral da Telems (reg. Luiz Quirino Oliveira), o Coral A prática da música de bandas em Mato Grosso do Sul é muito ampla, especial-
da UFMS (reg. Manoel Camara Rasslan), o Coral Canto do Futuro (reg. Evandro Higa) e o mente por conta da militarização da região e de sua situação de fronteira. Apesar de ser
Coral Cante Conosco (reg. Eleni Soares). Todos esses coros escolheram arranjos de can- um tema interessante, até o momento, não temos conhecimento de pesquisas e levan-
ções populares urbanas, respectivamente: Chalana (Mário Zan e Arlindo Pinto), Trem do tamentos documentais sobre sua história.
Pantanal (Paulo Simões e Geraldo Roca), Sonhos Guaranis (Paulo Simões e Almir Sater) e Neste ponto de nossa narrativa, abrimos parênteses para trazer um compositor
Pantanal (Jane Leitzke), o que os conecta com o projeto de construção de uma identida- nascido na cidade de Miranda, localizada na região do Pantanal, palco de eventos dra-
de musical sul-mato-grossense, objetivo muito claro naquele momento. máticos da Guerra da Tríplice Aliança. Pouco se sabe sobre Genaro Ribeiro Marsiglia
A faixa 14 do CD 3 trouxe a Banda de Música do 17o. Batalhão de Caçadores e (1922-1969), filho do italiano Braz Marsiglia e de Henriqueta Rebuá Ribeiro, moça de
o Coral Vozes do Lions Club de Corumbá com Sinfonia pantaneira, de José Antonio de influente família mirandense.
Almeida, com regência do compositor. Embora o texto do encarte não especifique, é As informações e os dados que apresentamos a seguir são frutos de extensa pes-
possível que se trate de um registro de parte da obra feito, precariamente, em fita K7, quisa documental, feita por Giulia Leal (2019) como trabalho de conclusão do Curso de
em 1974, em sua primeira execução pública. A obra completa possui três movimentos e Música e da transcrição de uma entrevista informal realizada em Campo Grande, por
é intitulada Pantanal – poema sinfônico. Conforme pesquisa e análise feitas por Marcelo Evandro Higa, com os familiares do compositor, em 1986.
Aparecido da Silva Leandro, como trabalho de conclusão do Curso de Música da UFMS De acordo com relatos dos familiares, Genaro foi uma criança inteligente, tran-
em 2012: quila e sensível. Adorava brincar de teatro com seus irmãos, tanto quanto se divertia
ouvindo óperas italianas no gramofone de sua avó. Também escrevia pequenos poemas,

172 173
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

alguns publicados, em 1936, na seção “Supplemento infantil”, de O Jornal, do Rio de Ja- completas, encontramos os seguintes manuscritos: Trio para violino, violoncello e piano
neiro, como Sonho de Marinho, Ponte e triste ilusão, Anoitecer e Minha casa e elogio (MAR- (allegro, ma non troppo, marcha fúnebre e rondó, allegro scherzoso); Suíte para orques-
SIGLIA, 1936a: 7, 1936b: 7, 1936c: 7, 1936d: 7). Seus versos singelos revelam uma criança tra (prelúdio, marcha fúnebre e elegia16); Suíte no. 1 (sobre temas folclóricos) para piano,
sonhadora e que ansiava, desde cedo, em alçar vôos para além da distante região em contendo toada, fandango, ciranda, coco e macumba; Suite em Dó menor no 2 “Imperial”
que nascera. Segundo a família, ele aspirava a uma vida no Rio de Janeiro e gostava de contendo ponteio, cantiga, valsa, tanguinho, brincadeira e batuque; Suite para Cordas
desenhar mapas da cidade, planejando onde iria morar. Aliás, desenhar era mais uma (ponteio, cantilena, primeira dansa, em andamento allegretto, seresta e segunda dansa
de suas distrações, tendo, inclusive, dois pequenos desenhos – Minha casa e Ponte – pu- em andamento allegro vivo) e Suíte à antiga (prelúdio, allemande, corrente, sarabanda,
blicados no mesmo jornal em que aparecem seus poemas (MARSIGLIA, 1936c; 1936b). minuetto Io, minuetto IIo trio, gavotta Io, musette – gavotta IIa e giga).
Em torno dos 16 anos de idade, apresentou-se voluntariamente ao exército e foi
aceito. Apesar de ser admirado, inclusive por seus superiores, não se adaptou à vida mi- 5. Notas finais: identidades restritas e mundialização da cultura
litar e deu baixa como sargento. Conforme citado no início desta narrativa, Nicolau Netto (2009: 113) vislumbra, na con-
Por volta de 1939, após concluir o serviço militar em Miranda, foi para a cidade temporaneidade, a existência de, ao menos, três níveis de identidades que negociam
de seus sonhos, o Rio de Janeiro. Ali, morou, primeiramente, no bairro de Laranjeiras e constantemente entre si e que geram sentidos: identidades restritas, construídas nos
pôde estudar o ginásio, pois, em sua cidade natal, havia somente o primário. Finalmen- espaços regionais e que adotam discursos pré ou infranacionais; identidade nacional,
te começou seus estudos de piano, já que, em Miranda, não havia quem lhe ensinasse. construída pelo Estado-nação; e identidade mundial, diluída no espaço global. Consi-
Sempre demonstrou seu gosto por música erudita, e, segundo sua família, também can- dera que as narrativas das identidades nacionais não possuem mais o monopólio de
tava em italiano, e muito bem. No Conservatório Brasileiro de Música, foi aluno de Olga organizar as identidades das pessoas no mundo e que, no campo cultural, o destaque é
Coruja dos Santos, e seu nome aparece em programa de audição de alunos publicado para o internacional-popular.
no jornal Gazeta de Notícias (CONSERVATÓRIO, 1947: 6). Não se sabe ao certo com Desde o início do século XX, com o advento das tecnologias de reprodutibilidade
quem prosseguiu os estudos de música, mas se especula que tenha estudado piano com artística e a invenção de novas linguagens, as artes passaram a funcionar em dimensões
Francisco Mignone e, conforme informa o programa de concerto da Orquestra Sinfônica até então inimagináveis. Reter um material sonoro para ouvir quando quiser em forma
Universitária de Mato Grosso15, com o compositor José Siqueira, do qual também teria de gravações foi uma revolução midiática, que difundiu mundialmente os produtos co-
sido aluno avançado de composição na Escola Nacional de Música. mercialmente mais bem-estruturados pela indústria cultural. Gêneros musicais passa-
Em 1944, foi convocado para o serviço militar e serviu, como datilógrafo, no Rio ram a constituir redes mundiais de admiradores e consumidores, que se identificam e se
de Janeiro até o fim da guerra, em 1945. Depois de morar em Laranjeiras, transferiu-se organizam em torno de suas representações e seus significados. Talvez um dos segmen-
para a região da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde deu aulas de piano. Por volta de 1960, tos mais difundidos globalmente tenha sido o de música pop (guarda-chuva genérico
passou a trabalhar como datilógrafo e na sessão de contabilidade da Universidade do que abriga inúmeros subgêneros).
Brasil. Por essa época, construiu uma grande casa no Jardim Primavera, onde se dedicou Sob o rótulo de “música pop, rock e blues”, o CD 3 de Mato Grosso do Som traz sete
com afinco à composição (LEAL, 2019: 37). faixas autorais desses gêneros, sinalizando a conexão da música local com a mundiali-
Fumante inveterado, levou uma vida solitária e faleceu precocemente em 13 de ja- zação da cultura em um contexto pós-moderno. Curioso que nenhuma das faixas se en-
neiro de 1969, por complicações cardíacas. Foi sepultado no Cemitério de São Francisco quadra no rótulo de “polca-rock”. Essa denominação surgiu nos anos 1980 com músicos
de Paula, no Rio de Janeiro, e, quatro anos depois, seus ossos foram levados para Campo como Jerry Espíndola, Caio Ignácio, Toninho Porto e Rodrigo Teixeira.
Grande, onde permanecem até os dias atuais, no Cemitério Santo Antônio.
Além das obras relacionadas a seguir, há também um caderno de peças para pia- A primeira vez que se falou em polca rock foi em 1985. Nessa época, Jerry
Espíndola morava em São Paulo e tocava na banda “Os Incontroláveis”.
no e um fragmento de seu caderno pessoal de notas. Entre as peças do caderno para
Entre tantas composições, uma marcou pela estranheza: “Colisão”, que
piano, há prelúdios, variações, marchas, uma fantasia, uma valsa, uma mazurka e outras ele fez em parceria com Ciro Pinheiro, guitarrista da banda. A estranheza
peças simples, provavelmente feitas como exercícios de composição. Entre as obras ficou por conta do ritmo ternário, próprio da polca em contraponto à rou-
pagem, guitarras distorcidas e “groove” do rock (COSTA, 2001: C-1).

15
Programa de concerto da Orquestra Sinfônica Universitária de Mato Grosso, temporada de 1987, em que 16
Apresentada em concerto de 1987 pela Orquestra Sinfônica da Universidade Federal de Mato Grosso
foi apresentada sua obra intitulada Elegia (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO, 1987). (UFMT).

174 175
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

A fusão do rock com o ritmo da polca paraguaia foi proposta no contexto da cons- Foi surpreendente o resultado, que contrariava o pensamento daqueles
que sempre insistiram na tese de que somos um Estado culturalmente
trução de uma “identidade” musical para Mato Grosso do Sul, logo após a divisão. Porém, pobre (SIGRIST, 1996: 17).
a primeira apresentação de um show inteiramente dedicado à proposta aconteceu em
23 de fevereiro de 2002, no teatro Prosa-SESC Horto, em Campo Grande. O jornalista Entre as danças, as músicas e os folguedos, Sigrist cita as cirandas Engenho de ma-
Oscar Rocha (2002) relata que: romba, Engenho novo, Caranguejo e Sarandi, Cobrinha ou Revirão, Xote de três, Catira Siriri,
Chupim, Palomita, Polca de carão, Mazurca e a brincadeira do Toro candil. Algumas dessas
A bandeira de Mato Grosso do Sul, no fundo do palco, indicava que o manifestações são ressignificações regionais surgidas pela presença de migrantes pau-
show de Jerry Espíndola & Croa [Banda Croa] e Rodrigo Teixeira, sábado
listas, mineiros, goianos, cuiabanos e, principalmente, paraguaios.
à noite, no Teatro Prosa, seria ato de celebração de ritmos comuns no
Estado com o rock, ou, então, com as várias ramificações do pop (RO- Na categoria “música nativa”, foram incluídos um fonograma de música ofaié-xa-
CHA, 2002: Correio B-1). vante17, gravado em 1950; um fragmento da música cerimonial do tembeta18 caiuá19,
gravado em 1993; e um fragmento da música da dança do bate-pau20 terena21, gravado
Na crítica feita pelo jornalista, “o que se viu e ouviu foram apenas esboços do que em 1980. Infelizmente, o encarte do CD não traz nenhuma informação ou contextualiza-
ainda pode ser um novo gênero dentro do concorrido cenário do pop rock nacional” ção dessa musicalidade. Importante ressaltar o lançamento de um CD intitulado Música
(ROCHA, 2002: Correio B-1). Desde então, eventualmente, a polca rock é incorporada ao cerimonial terena, em 200322, com fonogramas gravados com a mentoria e produção
repertório de bandas de Mato Grosso do Sul, e “Colisão” tornou-se uma das músicas mais executiva da cantora lírica e professora de música Edineide Dias de Oliveira, ela própria
difundidas no estado. Porém, naquele momento de produção do projeto Mato Grosso do integrante da comunidade terena, que assim se manifestou em entrevista ao jornal Cor-
Som, a polca rock Colisão ainda não havia adquirido a visibilidade que obteve a partir reio do Estado, em 19 de abril de 2003:
dos anos 2000. Devido à aproximação que as aldeias possuem com a cidades, muitos acham que
No CD 3, foram incluídos Só eu sei (Guilherme, Guga, Deco, André e Alex) com a os Terenas já estão totalmente aculturados, não mantendo antigas tradições. O trabalho
banda Inverno Russo, Vendi minha alma (Renato Fernandes) com a Blues Band, Roses que desenvolvemos mostra o contrário. E faço questão de frisar: não é uma ação de res-
and thorns (Alex Cavalheri e Ronney Machado) com a banda Medarock, Intruso (Marcelo gate, como muita gente pensava quando falava do projeto; somente podemos resgatar
Tezeli e Sergio Zero), com a banda Vaticano 69, Tô à toa (Jerry Espíndola, Geraldo Mariano aquilo que está perdido, e não é o caso da cultura terena (apud XIMENES, 2011: 98).
e Naissandy), com Jerry Espíndola; e as faixas instrumentais Fusão (Adilson Fernandes A musicalidade de Mato Grosso do Sul é plural. O mais adequado seria falar em
Big e Pedro Ortale), com a Banda Lilás e Planeta SOS (Luiz Bulhões). “musicalidades”, já que estas estão fortemente conectadas com as “identidades” em um
Em contraponto a essa produção conectada com as redes musicais mundializadas, contexto de lutas simbólicas e forças desiguais, que se enfrentam, negociam e reivin-
finalizamos nossa narrativa retornando ao CD 1, que traz cinco faixas sob o rótulo “mú- dicam voz e visibilidade. Em 2009, quatro jovens Guarani-Kaiowá, moradores das al-
sica folclórica” e três faixas categorizadas como “música nativa”. deias Jaguapiru e Bororo, na Reserva Indígena de Dourados, montaram um grupo de rap
Nos espaços regionais, onde as identidades restritas se articulam (NICOLAU NET- intitulado Brô MC’s. Considerado pioneiro no segmento de hip-hop indígena, o grupo,
TO, 2009: 113), as festas tradicionais cumprem papel fundamental na sociabilidade da formado por Bruno Veron, Clemerson Batista, Kelvin Peixoto e Charlie Peixoto, mistura
população das zonas rurais. No CD 1 Mato Grosso do Som, foram incluídos dois mo- os idiomas guarani e português em letras de forte impacto político e social. Em 2009,
mentos da Festa do Divino Espírito Santo de Coxim (chegada e despedida da bandeira),
dois registros de cururu (Moça como eu sinto triste e Marrequinha da lagoa), pelo Grupo
Pantaneiro de Cururu, das cidades de Corumbá e Ladário, e uma adaptação de Engenho 17
Atualmente, vivem em uma pequena comunidade de cerca de 150 pessoas na cidade de Brasilândia,
leste de Mato Grosso do Sul.
de maromba feita pelo Sarandi, grupo para-folclórico ligado à UFMS.
Segundo a fundadora do grupo, a professora Marlei Sigrist (1996): Tembeta é a resina de uma árvore usada na cerimônia de nominação das crianças e da passagem dos
18

meninos para a idade adulta.

Durante o levantamento das manifestações folclóricas de Mato Grosso Os Guarani-Kaiowá são a etnia com maior número de integrantes, e cerca de 20.000 vivem confinados
19

do Sul, foi possível registrar várias danças executadas num passado em cerca de 36 pequenas áreas na região sudoeste do estado, especialmente na fronteira com o Paraguai.
próximo ou distante, que praticamente estavam à beira do esqueci- 20
A denominação correta é “dança da ema”.
mento devido às novas gerações não valorizarem o que seus antepas- 21
Os Terena vivem em cerca de 13 áreas na região central e no Pantanal do estado.
sados tanto prestigiaram.
22
Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=mHkclZc8v2w

176 177
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

lançou um CD independente e, nos últimos anos, tem divulgado seus trabalhos em FABBRI, Franco. Tipos, categorías, géneros musicales: ¿Hace falta una teoria?. Tradução
plataformas de streaming, além de se apresentar em shows pelo Brasil e no exterior. Em de Marta García Quiñones. In: CONGRESSO IASPM-AL, 7, 2006. La Habana - Conferência.
2022, foi convidado para o Rock in Rio:
FERREIRA NETO, João. Raízes de Coxim. Campo Grande: Ed. UFMS, 2004.
Foi na segunda tarde do maior festival de música do Brasil que o gru-
po sul-mato-grossense Brô MC’s brilhou. Atrações do palco Sunset, na
FREIRE, Vanda Lima Bellard. A história da música em questão: uma reflexão metodoló-
companhia de Xamã, os rappers levaram a cultura indígena ao Rio de
Janeiro, falaram da luta dos povos originários e fizeram milhares de gica. Revista Musica, São Paulo, v.5, n.2, p. 152-170, nov. 1994.
pessoas cantarem em uma só voz:
“Chega, de matança e violência, não importa a raça ou crença, somos a GARNES, Geisy. Brô MC’s faz do Rock in Rio vitrine da cultura indígena para o mundo.
luta da resistência, tamo na luta até o fim” (GARNES, 2022)23. Primeira Página, [S.l] 3. set. 2022. Disponível em: https://primeirapagina.com.br/musi-
ca/bro-mcs-faz-do-rock-in-rio-vitrine-da-cultura-indigena-para-o-mundo/ Acesso em:
Referências 2 out. 2022.

BARROS, Abílio Leite de. Gente pantaneira: (crônicas de sua história). Rio de Janeiro: GUIZZO, José Octávio. A moderna música popular urbana de Mato Grosso do Sul. Campo
Lacerda Editores, 1998. Grande: UFMS, 1982.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. HIGA, Evandro Rodrigues. “Para fazer chorar as pedras”: guarânias e rasqueados em um
Brasil fronteiriço. Campo Grande: Ed. UFMS, 2019.
BRASIL. Anexo da Resolução 622, Cograd, de 8 de novembro de 2019. Projeto pedagógi-
co do Curso de Música da UFMS, Campo Grande, 2019. IBANHES, Brígido. Silvino Jacques - o último dos bandoleiros: história real. 5ª. ed. Doura-
dos: Dinâmica, 2007.
CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. Cam-
po Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991. LEAL. Giulia. Genaro Marsiglia: aspectos da vida de um compositor sul-mato-grossense.
Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Música) – Faculdade de Artes, Letras
Conservatório Brasileiro de Música. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, n. 287, fev. 1947. e Comunicação, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2019.
Música, p. 6.
LEANDRO, Aparecido da Silva. Considerações sobre a obra Pantanal – Poema Sinfônico,
CORRÊA, Lúcia Salsa. História e fronteira: o sul de Mato Grosso 1870-1920. Campo de José Antonio de Almeida. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Música)
Grande: Ed. UFMS, 2012. – Faculdade de Artes, Letras e Comunicação, Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Campo Grande, 2012.
COSTA, Lizoel. Polca rock – fusão de ritmos. Jornal Folha do Povo, Campo Grande, 5 set.
2001, C-1. LINS, Antonio Lopes. Prefácio. In: IBANHES, Brígido. Silvino Jacques, o último dos bando-
leiros: história real. 5a. ed. Dourados: Dinâmica, 2007. p. 9-12.
COSTA, Lizoel. Prata da Casa, geração de ouro. Jornal Folha do Povo, Campo Grande, 23
jan. 2002, C-1. MACHADO, Paulo Coelho. A grande avenida. Campo Grande: Edição do autor, 2000.

MACHADO, Paulo Coelho. A rua velha. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Gros-
so do Sul, 1990.

23
Leia mais em: https://primeirapagina.com.br/musica/bro-mcs-faz-do-rock-in-rio-vitrine-da-cultura-
-indigena-para-o-mundo/

178 179
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

MACIEL, Alexandre. Cena erudita: prelúdio e movimentos. Revista Cultura em MS, Campo POUCA gente sabe, mas Campo Grande tem uma orquestra sinfônica há quase 50 anos.
Grande, n.2. p. 48-51, 2009. Midiamax, [Campo Grande], 12 abr. 2014. Disponível em https://midiamax.uol.com.br/
geral/2014/pouca-gente-sabe-mas-campo-grande-tem-uma- orquestra-sinfonica-ha-
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. -quase-50-anos/. Acesso em: 1 out. 2022.
2ª. ed. São Paulo: Hucitec/UNESP, 1998.
PROENÇA, Agusto César. Pantanal: gente, tradição e história. Campo Grande: Ed. UFMS,
MARSIGLIA, Genaro. Anoitecer. O Jornal, Rio de Janeiro, n. 5.344, 15 nov. 1936a. 5a. Sec- 1997.
ção, Suplemento Infantil, p.7.
QUEM FOI o primeiro professor de música em Campo Grande?. Instituto Histórico e Geo-
MARSIGLIA, Genaro. Minha casa e elogio. O Jornal, Rio de Janeiro, n. 5.356, 29 nov. gráfico de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, [20--]. Você sabia?. Disponível em: https://
1936b. 5a. Secção, Suplemento Infantil, p. 7. ihgms.org.br/vc-sabia/quem-foi-o-primeiro-professor-de-musica-em-campo- gran-
de-154. Acesso em: 1 out. 2022.
MARSIGLIA, Genaro. Ponte e triste ilusão. O Jornal. Rio de Janeiro, n. 5.290, 13 set.
1936c. 4a. Secção, Suplemento Infantil, p. 7. RASSLAN, Manoel Camara. O canto coral no estado de Mato Grosso do Sul. Jornal Diário
da Serra, Campo Grande, 11/12 abr. 1993, Caderno dois, p. 2.
MARSIGLIA, Genaro. Sonho de Marinho. O Jornal. Rio de Janeiro, n. 5.254, 2 ago. 1936d.
4a. Secção, Suplemento Infantil, p. 7. ROCHA, Oscar. Som da polca rock ainda busca perfeita tradução. Correio do Estado,
Campo Grande, 26 fev. 2002, Correio-B-1.
MEDEIROS, Samuel Xavier. Memórias de Jardim. Campo Grande: Edição do autor, 2002.
SALDANHA, Atamaril. História e estórias da revolução de 1932 em Mato Grosso do Sul. 2ª.
MOSLAVES, Bruno Andrade. Diagnóstico da situação das bandas de música de campo ed. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2010.
Grande em 2014. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Música). Faculdade
de Artes, Letras e Comunicação, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo SÁ ROSA, Maria da Glória; DUNCAN, Idara. Música de Mato Grosso do Sul: histórias de
Grande, 2014. vida. Campo Grande, MS: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2009.

NEDER, Álvaro. Enquanto este novo trem atravessa o litoral central: música popular ur- SÁ ROSA, Maria da Glória; SIMÕES, Paulo; FONSECA, Cândido Alberto. Projeto Universi-
bana, latino-americanismo e conflitos sobre modernização em Mato Grosso do Sul. Rio dade 81: Festivais de Música em Mato Grosso do Sul. Campo Grande: UFMS, 1981.
de Janeiro: Mauad, 2014.
SEREJO, Hélio. Nioaque (um pouco de sua história). vol. 1. In SEREJO, H. Hélio Serejo:
NICOLAU NETTO, Michel. Música brasileira e identidade nacional na mundialização. São obras completas. Campo Grande: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do
Paulo: Annablume; Fapesp, 2009. Sul, 2008 [1985] v. 5, p. 229-319.

NUHA, Danilo Japa (org.). Sonhos guaranis: a poesia de Paulo Simões. Campo Grande: SIGRIST, Marlei. Sarandi Pantaneiro, em busca das raízes culturais. Revista MS Cultura.
Ed. UFMS, 2016. Campo Grande, ano III, n. 1, p. 17-20, 1996.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira &iIdentidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986. TEIXEIRA, Rodrigo. Os pioneiros: a origem da música sertaneja de Mato Grosso do Sul.
Campo Grande: Edição do autor, 2009.
PIEDADE, Acácio. Perseguindo fios da meada: pensamentos sobre hibridismo, musi-
calidade e tópicas. PER MUSI – revista acadêmica de música, Belo Horizonte, n. 23, p. TEIXEIRA, Rodrigo. Prata da casa: um marco da música sul-mato-grossense. Campo
103-112, jan./jul. 2011. Grande: Ed. UFMS, 2016.

180 181
Notas para uma história da construção da musicalidade em Mato Grosso do Sul Evandro Rodrigues Higa; L. da Giulia Leal

Universidade Federal de Mato Grosso. Orquestra Sinfônica Universitária de Mato Grosso.


Programa de concerto. Cuiabá, 1987.

XIMENES, Lenir Gomes. Terra indígena Buriti: estratégias e performances Terena na luta
pela terra. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas, Uni-
versidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2011.

Gravações

CARAMUJO SOM: a música de Mato Grosso do Sul. Intérpretes diversos. Campo Grande:
Sauá Produções, 1993. 1 LP.

GRUPO ACABA: cantadores do Pantanal. Intérprete: Grupo Acaba. São Paulo: Discos
Marcus Pereira, 1979. 1 LP.

MATO Grosso do Som: Mapeamento Musical de Mato Grosso do Sul. Intérpretes diver-
sos. Campo Grande: Estúdio Vozes, 1994. 3 CDs.

MÚSICA Cerimonial Terena. Intérpretes diversos. Campo Grande: Fundação de Cultura


de Mato Grosso do Sul, 2003. 1 CD.

PRATA DA CASA. Intérpretes diversos. Campo Grande: UFMS, 1982, 1 LP.

TETÊ e o Lírio Selvagem. Intérpretes: Tetê, Alzira, Geraldo e Celito Espíndola. São Pau-
lo: Polygram/Philips, 1978. 1 LP.

182 183
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural

Música e liturgia católica


na cidade de Goiás:
um percurso histórico
de sua herança cultural
Fernando Passos Cupertino de Barros
Universidade Federal de Goiás

Consuelo Quireze Rosa


Universidade Federal de Goiás

184
5 como citar
BARROS, Fernando Passos Cupertino de; ROSA, Consuelo
Quireze. Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um
percurso histórico de sua herança cultural. In: SOUZA, Ana
Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.). Centro-Oeste.
Vitória: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Música, 2023. p. 184-203. (Histórias das
Músicas no Brasil).
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

1. O contexto histórico-cultural abolicionista surgido em Goiás em 1830, motivando-o a acrescentar ao


seu nome de batismo o nome de guerra – Serradourada, mas acredito
A cidade de Goiás foi fundada pelo bandeirante paulista Bartolomeu Bueno da Silva,
que essa adoção seja anterior, pois, nos livros de 1824 daquela irman-
o Anhanguera, em 25 de julho de 1727. Recebeu, inicialmente, o nome de Arraial de dade religiosa, assim já encontrei firmado.
Sant’Anna, em razão da festa litúrgica a ela dedicada, no dia 26 de julho. Passou às ca- Para os motetos, o autor considerou de grande importância a drama-
tegorias de vila, com o nome de Villa Boa de Goyaz (1736), e de cidade, com o nome de ticidade do texto, o significado patético do episódio da Paixão. A eles
Cidade de Goyaz (1818), tendo funcionado como capital do estado de mesmo nome até imprime um caráter denso, articulando frases melódicas simples, sem
ornamentos, “andante sempre” sobre austero texto, o que lhe acentua
1937, quando se deu a transferência para Goiânia, construída especialmente para ser a solenidade. Intrigantemente, apresenta algumas dissonâncias observa-
capital goiana (PASSOS, 2018). das pelos antigos músicos que conheci e que insistiam e faziam ques-
As fontes secundárias sobre a atividade musical no século XVIII naquela cidade tão dos intervalos dissonantes. [...] No meu entender, são pertinentes;
são muito escassas, e praticamente nada se encontra nos museus e arquivos locais. As há uma coerência no emprego dos elementos inarmônicos que coin-
cidem com as estrofes trágicas, devendo ter sido usados como efeitos
referências mais robustas assinalam ser a Igreja, no século XVIII, quem centralizava o expressivos em relação texto/melodia, causando uma atmosfera de
cultivo da música, que foi, pouco a pouco, ganhando também os círculos sociais fora tensão, aflição, angústia (RODRIGUES, 1998: 4).
dos eventos religiosos (BORGES, 1996). Mendonça (1981) aponta que teria sido o padre
Manuel de Andrade Werneck, chantre da Sé do Rio de Janeiro, o introdutor da música
sacra na antiga Villa Boa de Goyaz, de onde se tornaria vigário em 1757. Em contrapartida, Pela mesma época, destaca-se a figura singular de José do Patrocínio Marques
Dias (2008: 130-137) afirma que, na segunda metade do século XVIII e no início do século Tocantins (1844-1889). Natural da cidade de Goiás, fez seus estudos de mineralogia no
XIX, parece terem existido poucos cantores e instrumentistas, quase sempre membros da Rio de Janeiro, onde também frequentou o Conservatório Imperial de Música, hoje Esco-
comunidade e clérigos, que colaboravam para o maior brilho do culto divino. A situação la de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Regressando à sua terra
alterou-se a partir de meados do século XIX, com a presença de maior número de instru- natal, foi professor e grande incentivador das atividades musicais e culturais, tendo
mentistas de sopro oriundos de diferentes bandas de música de corporações militares e tido, ainda, importante participação nos movimentos abolicionistas. Fundou, em 1864,
associações civis. Com isso, a direção musical dos ofícios religiosos passou a ser confia- a primeira banda da Guarda Nacional e, em 1870, juntamente com Antônio Martins de
da a regentes de banda, ou a padres que, sendo músicos, assumiam a tarefa de selecionar Araújo, a banda Phil’harmonica. De sua autoria, a antífona “Domine, tu mihi lavas pedes”,
o repertório e mesmo de compor peças para festas litúrgicas específicas. São dessa época para coro misto a quatro vozes e acompanhamento de harmônio, ainda é utilizada atu-
os motetos dos Passos e das Dores, atribuídos a Basílio Martins Braga Serradourada (mú- almente, nas cerimônias da Quinta-feira Santa.
sica), com textos latinos escolhidos por seu filho, o cônego José Iria Xavier Serradourada Dias (2008) afirma que, em 1879, Tocantins dirigia o coro da Igreja de Nossa Se-
(1831-1898), também músico, autor do “Solo das Dores”, cantado pela primeira vez em 8 nhora da Boa Morte, com a participação de suas alunas, situação rara à época, em que
de abril de 1863 (PASSOS, 2018: 222). Essas peças são ainda utilizadas na atualidade, nas o sexo feminino não costumava participar de conjuntos instrumentais ou corais. A qua-
celebrações do ciclo quaresmal e da Semana Santa na cidade de Goiás. lidade das atuações mereceu, na imprensa local, por repetidas vezes, em 1879, 1880,
Rodrigues (1982), em sua pesquisa, que culminou com a gravação do CD intitulado 1882 e 1886, por exemplo, os mais efusivos elogios (RODRIGUES, 1982).
Semana Santa em Goiás, aponta, a partir de registros deixados por João da Costa Oliveira Vale ressaltar que Tocantins, um típico afrodescendente, casara-se com Anna Fran-
(1865-1956), que os motetos dos Passos teriam sido compostos, em 1855, por Basílio cisca Xavier de Barros (1857-1949), de família tradicional e de cor branca, o que não
Martins Braga Serradourada e cantados, pela primeira vez, na Matriz de Sant’Ana, em 7 deixava de se constituir em fato inabitual. Na casa da família, funcionava também uma
de março de 1856. Já os motetos das Dores teriam sido encomendados pela Irmanda- tipografia, além das aulas particulares de música dadas pelo casal.
de de Nossa Senhora das Dores, em 1856. Infelizmente, nunca foram encontrados os As atividades didáticas desenvolvidas por Tocantins contribuíram para o desenvol-
manuscritos originais, mas, sim, cópias datadas de 1881. Referindo-se ao compositor, a vimento do gosto e do conhecimento musicais na antiga capital goiana, afora que, por
pesquisadora assim se expressa: sua influência, se logrou a aprovação, pela Assembleia Provincial, em 1882, de um plano
para o ensino de música no Lyceu de Goyaz (princípios elementares de música; solfejo;
Basílio Martins Braga nasceu em 1804 na antiga capital Cidade de Goi- canto; música instrumental; princípios elementares de harmonia; e composição musical),
ás, ali expirando em 1874. Foi homem religioso, pertenceu à Irmandade
e, ainda, foi atribuído a ele o encargo de ministrar duas lições de música por semana nas
do Bom Jesus dos Passos em cujos livros se encontram suas assinatu-
ras. Suas convicções religiosas fizeram-no participar de um movimento classes de primeiras letras das escolas públicas do sexo feminino (princípios elementares

186 187
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

de música, solfejo e canto). Além de ser professor de música no Lyceu, na Escola Normal de Janeiro (BARROS; ROSA, 2011: 212). Organista e compositor, é considerado um dos
e em caráter particular, lecionava liturgia e canto gregoriano no Seminário Episcopal de pilares da música sacra vilaboense. Entre 1893 e 1894, visitou a Terra Santa,
Santa Cruz. Como jornalista, teve intensa atividade, seja como diretor do Correio Official, datando dessa época a composição de sua “Via Sacra” e do “Venite adoremus”, ambos
seja como editor da Tribuna Livre, jornal abolicionista que circulou de 1878 a 1884. Foi, ainda exe-cutados nas cerimônias da Sexta-Feira da Paixão, na cidade de Goiás.
ainda, representante comercial de fabricantes franceses de instrumentos musicais e de Prestou seus ser-viços, especialmente, no seminário diocesano de Goiás e depois em
casas de edição musical, entre elas, a renomada Pleyel (BORGES, 1999). Uberaba, para onde foi com a transferência da sede do bispado. Mais tarde, mudou-se
Conclui Borges (1996: 31) que: para São Paulo, onde foi vigário em diversas paróquias e, em seguida, para o Rio de
Janeiro, onde foi pároco de Santo Antônio dos Pobres e do Engenho Novo. Ali faleceu
Em linhas gerais, evidenciava-se que o Coro das igrejas, as orquestras, em 1920, deixando tudo o que possuía para a Mitra de Goiás.
as bandas de música, o ensino da música em família e as aulas particu- Nota alusiva a seu falecimento, publicada no jornal Cidade de Goyaz, de 26 de feve-
lares constituíram nossas primeiras escolas de música. Certo é, ainda,
que inúmeras outras pessoas, isoladamente, muito fizeram pela música
reiro de 1920 (BARROS; ROSA, 2011), menciona que, quando da viagem de monsenhor
em Goiás. Pedro Ribeiro a Roma, na qualidade de representante do bispado, ali sofrera alguma dis-
A existência, na segunda metade do século XIX, de várias corporações criminação por ser moreno, mas a reação dos presentes mudou para genuína admiração
musicais, tanto civis, quanto militares, intensificou a vida musical da quando indagou ao santo padre em que língua deveria falar. A tradição oral refere-se a
cidade. (BORGES, 1996: 31)
ele como tendo sido um sacerdote virtuoso, muito dedicado ao ensino no seminário e à
música, com a qual parecia ter grande intimidade. Ao contrário de muitos padres, que, à
Como as atividades religiosas constituíam-se, também, em ponto alto da vida so- época, tinham ainda um comportamento mundano, ele se mantinha em grande recato e
cial, a população acompanhava, com vivo interesse e entusiasmo, as celebrações pre- na estrita observância de seus votos.
paradas com esmero, sobretudo as realizadas na Igreja da Boa Morte, que funcionava Conforme registra Dias (2009: 61),
como catedral provisória, desde 1874. A catedral, chamada Matriz de Sant’Ana, ruiu várias
vezes, ficando definitivamente interditada para uso em 1874. Sua reabertura somente se em 1919, já morando no Rio de Janeiro, o religioso copiou diversas obras
para todos os dias de celebrações da Semana Santa em um primoroso
daria em 26 de março de 1967 (PASSOS, 2018). O naturalista Johann Emmanuel Pohl, em
livro cerimonial, já na ordem em que deveriam ser executadas, nele for-
visita aos sertões goianos em 1818 e 1819, reparara que as festas religiosas eram tam- necendo, inclusive, instruções sobre os passos das cerimônias. O livro
bém ocasião em que se verificava a estratificação social na capital, com separação en- contém o acompanhamento (a maioria, apenas redução do coro em duas
tre brancos, pardos e negros, cujas irmandades procuravam superar umas às outras no pautas) das peças cantadas, tendo sido dedicado a Adelaide Sócrates
fausto da festa em honra a seus respectivos padroeiros. Referindo-se às celebrações em (1888-1935), então regente do coro da Igreja da Boa Morte. No volume,
várias das peças copiadas contêm datas que remontam ao final do século
honra ao Senhor Bom Jesus dos Passos, cuja irmandade, fundada em 1745 pelo padre XIX, demonstrando que muitas já eram usadas mesmo antes que Mons.
João Perestrello de Vasconcelos Espíndola, era de brancos, assim se refere Pohl (1976): Pedro Ribeiro fosse transferido da diocese de Goiás. Nele constam mú-
sicas de Palestrina (1525-1594), Henry Dumont [Du Mont] (1610-1684),
Como essas festas eram exclusivas dos brancos, os mulatos, por sua vez, Luigi Sabbatini (1732-1809), Giulio Bas (1874-1929), Giovanni Tebaldini
faziam outra semelhante, celebrada oito dias depois, que tinha o nome (1864-1952), Oreste Ravanello (1871-1938), Lorenzo Perosi (1872-1856),
de Procissão dos Pardos das Dores de Nossa Senhora [...] esforçando-se Giovanni Concina (18??-19??) e Carlo Carturan (?-?). Como o restante das
os mulatos para superarem os brancos em magnificência (POHL, 1976: peças copiadas não tem indicação de compositor, supõe-se possam
143) ser atribuídas ao próprio Ribeiro (DIAS,, 2009: 61).

Três figuras de relevo destacaram-se no panorama da música litúrgica da cidade O destacado musicólogo, jornalista e professor Frei Pedro Sinzig (1876-1952), da
de Goiás a partir do último quartel do século XIX: as de monsenhor Pedro Ribeiro da Ordem dos Franciscanos ou Ordem dos Frades Menores (OFM), que viveu no Brasil du-
Silva, de Adelaide Sócrates e de Darcília Amorim. rante 59 anos, assim se referiu à sua “Via Sacra”, em publicação na revista Música Sacra,
Nascido na cidade de Goiás, monsenhor Pedro Ribeiro da Silva (1867-1920), or- Editora Vozes, ano II, número 8, de agosto de 1942: “Seja cantada na igreja, seja mesmo
denado em 29 de junho de 1890, desenvolveu intensa atividade musical em sua terra em concerto, esta Via-Sacra de Mons. Pedro Ribeiro da Silva é uma das mais preciosas
natal até 1896, quando foi transferido para Uberaba e, mais tarde, para São Paulo e Rio heranças que deixou e que lhe perpetuará o nome” (MENDONÇA, 1981: 24-25).

188 189
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

É importante referir a forte influência da escola romântica na música litúrgica, Declaro que por fraqueza humana tive uma filha de nome Benedicta,
com Maria Joaquina da Rocha e um filho de nome Benedicto, com Nor-
no século XIX, e no universo da modinha, que também sofreu as influências do bel berta da Silveira Borges, ambos solteiros; cujos meus filhos existem vi-
canto italiano. Jornais da época, na cidade de Goiás, noticiam a execução de trechos do vos n’esta Capital, estimando-me e respeitando-me com todo o affecto e
“Stabat Mater”, de Rossini, por exemplo (RODRIGUES, 1998), além de frequentes saraus e carinho; e como não os tivesse ainda sido reconhecidos, os reconheço por
apresentações no Teatro São Joaquim, inaugurado em 1857, onde árias de ópera italiana meus filhos por meio d’este testamento e de conformidade com as leis
que regem esta matéria (TESTAMENTO-CERRADO DO PADRE JOSÉ IRIA
eram parte dominante nos programas.
XAVIER SERRADOURADA, 1898: 2v apud SILVA; MOREIRA, 2010: 188).
Souza (2020) destaca que, em sua edição de 23 de outubro de 1880, a Tribuna Livre
deixa entender que a performance de trechos de óperas era tida como sinal de desen- Como bem salientam Silva e Moreira (2010: 180),
volvimento.
A fim de conter esses excessos, que chegavam a utilizar árias de ópera com ou Goiás, durante longo tempo, permaneceu sem a presença efetiva de
um representante episcopal da Igreja, tendo ainda como agravante a
sem adaptação do texto para cerimônias litúrgicas àquela época, o papa Pio X, em 1903,
presença de um clero sem a mínima consonância com as diretrizes da
edita um motu proprio intitulado Tra le solicitude, de modo a prescrever que se fizesse cúria romana, afora às várias interferências dos poderes políticos nas
uso de um repertório mais contido e tecnicamente ao alcance da maioria dos coros das atribuições de fórum eclesiástico. A longa vacância de bispos na Dioce-
igrejas em todo o mundo. Como ainda destaca Dias (2009), um dos baluartes dessa re- se de Goiás foi um fato representativo para a história da Igreja goiana.
forma foi Giovanni Tebaldini, copiado por monsenhor Pedro Ribeiro no livro cerimonial Seu primeiro prelado foi conhecido somente no início de 1824. Nesse
período a única forma de se ter acesso aos normativos eclesiais seria
para a Quaresma e a Semana Santa, já referido. pelas visitas pastorais, de modo periódico e esparso. A Igreja foi ino-
A esteira de transformações na música litúrgica, impulsionadas em Goiás por mon- perante em firmar-se institucionalmente nesse sertão, o que ocasio-
senhor Pedro Ribeiro da Silva, antecede as disposições do motu proprio de Pio X. Suas nou tanto aos padres quanto a própria população um modus vivendis
composições, tais como a “Via Sacra” e o “Hino da coroação de Nossa Senhora”, ambos totalmente alheio às normatizações impostas por concílios e sínodos.
Soma-se a este fator a grande extensão territorial, a presença escassa
em língua portuguesa e ainda cantados na atualidade, revelam boa técnica composicio-
de um clero que acabou por associar-se a uma dinâmica de vida e a
nal aliada à singeleza da estrutura e ao conforto da tessitura vocal, em perfeita sintonia uma religiosidade nada ortodoxa.
com a preocupação voltada ao uso de uma música litúrgica mais acessível e sem gran-
des exigências técnicas para sua execução. Tais transformações se deram no contexto Diante de tal situação, preocuparam-se os bispos em trazer, para Goiás, padres
do movimento ultramontano, ou de romanização do clero brasileiro, que, em Goiás, se estrangeiros e congregações religiosas, a fim de transformar as práticas da devoção po-
iniciou por volta de 1860, sob as ordens de dom Domingos Quirino de Souza (1860- pular conforme os moldes preconizados por Roma e debelar os costumes do dito “clero
1863), e teve continuidade com os bispos que o sucederam. Sobre isso, Souza (2020) en- sertanejo”, considerados nefastos pela Igreja.
fatiza o papel de dom Eduardo Duarte Silva (1891-1907), cuja formação ultramontana e Com a presença de muitos religiosos e religiosas com formação europeia, inclu-
tridentina se chocou com os oligarcas locais, muitos deles maçons e republicanos, fer- sive no campo musical, tanto no clero secular quanto na Ordem Dominicana, aportada
renhos opositores do clero goiano e de sua filosofia ultramontana e romanizante. A des- em Goiás, inicialmente, em 1882 (frades pregadores da Província de Toulouse) e, ainda,
peito da oposição dos políticos e intelectuais da época, o bispado logrou prosseguir no em 1889 (irmãs dominicanas da congregação de Nossa Senhora do Rosário de
caminho traçado e, assim, reforçou as orientações tridentinas; promoveu a sacralização Monteils) (PASSOS, 2018: 130-139), buscou-se um envolvimento vigoroso das
dos locais de culto e a moralização do clero e reforçou a estrutura hierárquica da Igreja, mulheres da aristocracia local em associações religiosas e nos coros, especialmente
ao diminuir o poder das irmandades religiosas e estimular fortemente o culto mariano. na Igreja da Boa Morte e na Igreja de Nossa Senhora do Rosário (BRITO; ROSA, 2017).
À guisa de maior esclarecimento sobre a preocupação romanizante dos prelados É, pois, nesse contexto que surge a figura de Adelaide Sócrates (1882-1935). Nascida
goianos no século XIX, é preciso destacar que, à época, a prática do concubinato cle- de uma família profundamente católica, foi educada segundo os princípios romanizadores,
rical era fato notório nas várias localidades da Diocese de Goiás. A sociedade goiana especialmente pela proximidade com seu primo, monsenhor Joaquim Confúcio de Amo-
conhecia e aceitava famílias compostas por padres, convivendo naturalmente com elas. rim (1869-1937) (BRITO; ROSA, 2017). Este fez seus estudos no Seminário Santa Cruz, da
O já mencionado cônego José Iria Xavier Serradourada, por exemplo, falecido em 4 de cidade de Goiás. Monsenhor Confúcio foi ali ordenado sacerdote, em 20 de maio de 1893,
setembro de 1898, em seu testamento cerrado, assumiu a paternidade de dois filhos tornando-se um dos principais agentes da romanização. Assim como seus irmãos e outros
com mulheres diferentes, que residiam na cidade de Goiás: membros da família, era músico. Tocava harmônio e era capaz de afinar e reparar o instru-

190 191
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

mento. Em torno dele, uma escola de música informal terminaria por se formar, especial-
mente depois de assumir a direção do Coro da Boa Morte, com as mortes de José do Pa- Ao receber as chaves da Igreja da Boa Morte das mãos de Monsenhor
Joaquim Confúcio de Amorim e o livro de partituras organizado por
trocínio Marques Tocantins e do cônego José Iria Xavier Serradourada, que o precederam
Monsenhor Pedro Ribeiro da Silva, tornou-se herdeira das manifesta-
no ofício. Tornou-se, ainda, regente do coro e da banda de música do seminário, onde ções de sua terra. Assim como na iconografia de Sant’Ana, empunhando
também ensinava canto gregoriano e teoria musical. o livro de partituras conseguiu formar um grupo de mulheres devotas,
A convivência de Adelaide Sócrates com esse ambiente religioso e musical de tornou-se responsável pela educação e formação de outras “guardiãs
seus familiares, e a formação musical que disso decorreu, fez com que ela assumisse da memória” – a exemplo de suas sobrinhas, especialmente Diva, Dinah,
Laíla e Darcília Amorim que, assim como ela, se destacaram no campo
a regência do Coro da Boa Morte, uma vez que monsenhor Confúcio já se encontrava artístico e religioso vila-boense ao longo do século XX.
sobrecarregado com as funções de vigário-geral do bispado. Para o exercício de suas
funções, contou com o concurso de sua irmã, Leonor Sócrates, que tocava o “meio-órgão”,
como era conhecido o harmônio de fabricação francesa, de som bastante potente, que
existia na Igreja da Boa Morte. Nessa altura, os jornais da cidade passaram a se referir
não mais ao Coro da Boa Morte, mas, sim, ao Coro da Catedral, como noticiado no jornal
O Lidador, em sua edição de 21 de agosto de 1931, página 2, acerca da festa de Nossa
Senhora da Glória, em agosto daquele ano:

A incansável diretora do Coro da Cathedral, exma. Sra. D. Adelaide Só-


crates, que foi a principal organizadora da procissão e ao esforçado
Cura da Cathedral, Revmo. Pe. Joaquim Confúcio de Amorim, levamos as
expressões de nosso contentamento pela sympathica festa que vieram
de nos prodigalizar (apud BRITO; ROSA, 2017: 132).

É importante referir que as condições foram propícias para que ela pudesse
desenvolver suas atividades musicais, com o apoio do primo, vigário da Catedral de
Sant’Ana, e do próprio bispo, dom Prudêncio Gomes da Silva, também músico, que havia
sido diretor da banda de música do Seminário Maior de Mariana-MG, onde fizera seus
estudos, e apoiou fortemente o uso da boa música litúrgica em seu episcopado, entre
1907 e 1921. Todavia, para além disso, Adelaide Sócrates foi responsável pela difusão de
novas devoções, especialmente as marianas e ao Sagrado Coração de Jesus, bem como
participou ativamente da Confederação das Associações Católicas e do Círculo Católico,
que realizava sessões literomusicais em prol da Igreja (BRITO; ROSA, 2017).
Envolvida nesse ambiente, Adelaide manteve intensa troca de correspondência
com monsenhor Pedro Ribeiro, de quem recebeu influência e orientação. Disso, cer-
tamente, decorre a coletânea cuidadosamente preparada por ele, e a ela entregue em
mãos, em 1919, com toda a liturgia musical e orientações procedimentais para o ciclo
da Quaresma e da Semana Santa (Figuras 1 a 6). Viveu apenas 49 anos e permaneceu
solteira, devotando toda a sua existência à Igreja, porém teve o cuidado de preparar a
continuidade de seu trabalho, através das sobrinhas, que já a auxiliavam nos diferentes
encargos, entre elas, de modo especial, Darcília Amorim, que a sucedeu à frente do coro, Fig. 1: O livro oferecido por monsenhor Pedro Ribeiro da Silva a Adelaide Sócrates, em 1919. Tem for-
após sua morte, em 1935. Como bem salientam Britto e Rosa (2017), mato 34,5x26,5cm, encadernado pela Casa de Correcção, Rio de Janeiro, conforme carimbo na segunda
capa. Fonte: Acervo pessoal de Fernando Passos Cupertino Barros.

192 193
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

Fig. 2: Segunda capa, onde se vê o carimbo da Casa de Correcção, Rio de Janeiro, e folha de rosto do Fig. 4: A data da cópia e outra, possivelmente a indicar que as músicas já eram usadas em Goiás na últi-
mesmo livro, com a assinatura de monsenhor Pedro Ribeiro da Silva. Fonte: Acervo pessoal de Fernando ma década do século XIX. Fonte: Acervo pessoal de Fernando Passos Cupertino Barros.
Passos Cupertino Barros.

Fig. 3: A dedicatória a Adelaide Sócrates. Fonte: Acervo pessoal de Fernando Passos Cupertino Barros.

194 195
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

Fig. 6: O livro, além de conter as partituras, prescreve instruções para o desenrolar da cerimônia à qual
está relacionado o cântico em questão, conforme apontado por Dias (2009: 61). Fonte: Acervo pessoal
de Fernando Passos Cupertino Barros.

Fig. 5: O introito para a Missa de Quinta-Feira Santa, ainda hoje utilizado na Catedral de Sant’Ana da
cidade de Goiás, com a indicação de que a transcrição e a adaptação foram feitas por monsenhor
Pedro Ribeiro da Silva. Fonte: Acervo pessoal de Fernando Passos Cupertino Barros.

196 197
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

Ao assumir as responsabilidades da tia, em 1935, Darcília Amorim (1903-1995) as obras de reconstrução da catedral, não apenas em seus aspectos de edificação física,
passa, então, a dirigir o Coro da Boa Morte, a aprimorar a formação musical de seus mas de proximidade e apoio à gente mais vulnerável. Paralelamente, não se descuidava
integrantes e a formar novos coralistas. Ela e suas irmãs ocupavam, desde a adolescên- das atividades musicais dos ofícios litúrgicos, mas também se ocupava em promover
cia, cargos e funções nas diferentes associações religiosas então existentes, o que se concertos, saraus e outras atividades musicais que pudessem angariar fundos para suas
intensificou após a morte da tia. Não bastasse o duro golpe que foi a passagem de Ade- obras (BRITO; ROSA, 2017).
laide, em 1935, dois anos mais tarde falece monsenhor Joaquim Confúcio de Amorim, Assim, em 22 de setembro de 1965, a catedral foi reaberta para uso, embora ina-
deixando às irmãs Amorim o encargo de cuidar não apenas da questão da música para cabada. Os anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II e à morte de dom Abel Ribeiro
os ofícios litúrgicos, mas também da administração quotidiana das atividades da Igreja Camelo (1902-1966) não foram fáceis para Darcília, para suas irmãs, para o Coro da
da Boa Morte. Ainda adolescentes, engajaram-se no movimento pela reconstrução da Catedral e para a população católica da cidade. A missa em português; as novas práticas
catedral, fechada e em ruínas desde 1874, que Darcília passou a liderar após 1935, com de evangelização; a ruptura com a liturgia antiga; e a inserção social da Igreja, especial-
relativo sucesso, até o fim de sua vida. mente com a chegada no novo bispo, dom Tomás Balduíno, em 1967, trouxeram confli-
“Dona Darcília”, como a ela se referem ainda hoje seus conterrâneos, iniciou seus tos e incompreensões. Darcília, obediente às disposições da Igreja, mas profundamente
estudos de música com as tias Adelaide e Augusta Sócrates, além de receber aulas de ligada à cultura de sua terra e à música, soube navegar nesse mar revolto. Com o seu
canto, harmônio e piano no Colégio Sant’Ana, das irmãs dominicanas. Mais tarde, apri- jeito meigo e delicado, soube adaptar-se e adaptar o trabalho do coro aos novos tem-
morou seus conhecimentos musicais e de técnica pianística com Yolanda Lisboa do Nas- pos, porém, mais que isso, cercou-se de um grupo de jovens, que, orientados e musical-
cimento, Vera Setti e Olga Moreira. Como suas irmãs, dedicou-se também ao magistério, mente formados por ela, terminaram por arregimentar outros mais. Sem isso, não teria
tendo ensinado no Colégio Sant’Ana, em grupos escolares oficiais e na escola particular sido possível garantir a sobrevivência e a perenidade do canto coral na cidade de Goiás,
de Yeda Sócrates do Nascimento (BRITO; ROSA, 2017). tampouco salvaguardar antigas peças musicais, sobretudo as de autores locais, que ain-
As irmãs Amorim, lideradas por Darcília, a mais jovem entre elas, contribuíram da hoje integram a liturgia, de modo particular a da Semana Santa, sem com isso excluir
de modo significativo para a educação musical, para o cultivo da música litúrgica de outros momentos fortes do ano litúrgico, tais como o Natal, a festa de Pentecostes, as
qualidade e, também, para a música em sociedade. Darcília fazia arranjos, compunha, festas de Sant’Ana e de Nossa Senhora do Rosário, entre outras (BRITO; ROSA, 2017).
dirigia o coro e ensaiava seus integrantes, indo até suas casas e martelando com eles Para vencer as resistências do clero contra o emprego dos cânticos em latim, Dar-
o solfejo, pacientemente, até que tudo estivesse a contento. Além disso, era cultora das cília tratou logo de traduzir a antífona de José do Patrocínio Marques Tocantins, utiliza-
modinhas, que não apenas cantava no ambiente familiar e social, mas ensinava aos da na Quinta-Feira Santa, assim como o “Pange língua gloriosi” e o “Tantum ergo sacra-
mais jovens. Seu modo terno e sereno, porém firme e exigente com relação aos resul- mentum”, também usados na mesma cerimônia; as “Sete palavras”, de Antônio Mesquita
tados, conquistou a admiração, a amizade e o respeito de toda a sociedade. Na década (?-?); e o “Venite adoremus”, da cerimônia da Adoração da Cruz, na Sexta-Feira da Paixão,
de 1940, chegou mesmo a ser convidada, como única candidata de todos os partidos entre outros. Ensaios adicionais foram necessários para que os antigos cantores, acos-
existentes, a se apresentar às eleições para a Prefeitura Municipal, que declinou, por não tumados às versões originais em língua latina, fossem capazes de cantar em português.
desejar abandonar suas atividades ligadas à Igreja (BRITO; ROSA, 2017). A propósito de Buscando, ainda, integrar-se às novas disposições sobre música litúrgica, ensaiou e diri-
seu protagonismo dinâmico no desejo de ver soerguida a antiga catedral, a ela assim se giu a missa “Nossa Senhora Mãe da Igreja”, do padre Fausto Santa Catarina, uma das pri-
referiu a poetisa Cora Coralina: meiras missas escritas na era pós-conciliar no Brasil, a uma voz, com acompanhamento
de harmônio.
A Matriz de Sant’Ana, hoje Catedral, caída há mais de um século, vai se Essas diligentes providências de proteção ao patrimônio musical da comunidade
levantando, reconstruída pelo notável empenho de uma jovem goiana,
vila-boense, empreendidas por Darcília, com o auxílio de outras pessoas que comunga-
que tomou a iniciativa feliz de conjugar esforços e articular o auxílio
dos goianos dispersos, mas sempre unidos na boa vontade. (apud BRI- vam das mesmas preocupações, certamente se basearam na cautela em salvaguardar
TO; ROSA, 2017: 239-240). um legado cultural relevante, que necessitou, para tanto, de se adaptar às exigências de
um tempo novo para sua própria sobrevivência. Religiosidade, fé e arte amalgamavam-
Nas décadas de 1950 e 1960, Darcília intensificou seus esforços, criando a As- -se numa dimensão afetiva e inerente à cultura local. Sobre isso, importa referir as con-
sociação de Sant’Ana, que contava com um ambulatório para atendimento médico e siderações de Bernardi e Castilho (2016: 745-756):
distribuição de medicamentos à população mais necessitada. Com isso, pôde ampliar

198 199
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

A vida de uma coletividade envolve crenças que se revelam nas condu- locais. À ocasião, seus discípulos Elder Camargo de Passos, Heber da Rocha Rezende
tas e se materializam nas formas espaciais do cotidiano vivido, o que
Júnior, Sebastião da Silva Curado, sob a direção de Fernando Cupertino e com acompa-
inclui a valorização, não só da dimensão simbólica -significativa dessas
condutas -, como também da dimensão cultural reveladora dessas cren- nhamento ao piano de Consuelo Quireze, apresentaram, no Palácio Conde dos Arcos, em
ças e condutas. 6 de novembro de 2021, um recital de música sacra e modinhas, com um programa que
[...] A experiência religiosa, mesmo sendo subjetiva, contribui para a procurou mostrar as peças mais apreciadas por Darcília Amorim e por ela ensinadas a
vida social, na medida em que motiva atitudes e comportamentos co- várias gerações (Figura 7).
letivos referentes ao sagrado, as formas espaciais resultantes exercem
influência sobre a vida cotidiana da sociedade.
O comportamento religioso é direcionado pelo imaginário intuitivo e
pelo sentimento religioso e emocional, revelando-se como sagrado,
sob formas materiais e imateriais no contexto do território e da terri-
torialidade.

Na segunda metade da década de 1980, já com a saúde debilitada, Darcília ainda


recebia para ensaios, em sua casa, os cantores que compunham o Coro da Catedral.
Nessa época, tinha confiado a direção a Fernando Cupertino, que já acompanhava os
cânticos ao harmônio, fazia arranjos e compunha pequenas peças para uso litúrgico do
coro. Uma das últimas atuações de Darcília Amorim, como regente, foi na festa de Pente-
costes de 1985, quando dirigiu a primeira missa composta por Cupertino, cantada pelo
Coro da Catedral, tendo a professora Maria Jubé ao harmônio.

2. Para encerrar...
A criação do Coral Solo, também em 1980, sob a direção de Sebastião da Silva Curado,
um dos discípulos de Darcília Amorim, injetou sangue novo no canto coral, passando a
se responsabilizar pela música litúrgica na Catedral de Sant’Ana, especialmente para o
tríduo de Nossa Senhora das Dores, na semana que antecede a Semana Santa, a missa
de Quinta-Feira Santa e a missa solene de Pentecostes. A partir de 2003, a cidade passa
a contar com a presença, sempre solícita e disponível, da pianista e professora Consuelo
Quireze, da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (EMAC-
-UFG), em suas atividades musicais, tanto na música litúrgica, apoiando o Coral Solo, por
exemplo, em suas atuações, quanto em recitais, concertos e festivais.
Assim, a herança cultural transmitida a Darcília Amorim e por ela legada à cidade
de Goiás continua viva e ativa, não só no domínio da música sacra, mas também na pre-
servação da memória musical como um todo. Dela decorre, ainda, o Encontro de Corais
Darcília Amorim, idealizado e promovido pelo Coral Solo, sob a coordenação de Sebas-
tião da Silva Curado, já em sua 16ª edição em 2022.
Em 2021, por ocasião do 20º aniversário da outorga do título de patrimônio cul- Fig. 7: Recital em homenagem a Darcília Amorim, na cidade de Goiás, em 6 de novembro de 2021. Fon-
te: Acervo pessoal de Fernando Passos Cupertino Barros e Consuelo Quireze Rosa.
tural da humanidade à cidade de Goiás pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Darcília Amorim foi uma das pessoas home-
nageadas, na condição de “mulher fundamental” para a cultura vilaboense, nas comemo-
rações promovidas pelo Instituto Biapó, em parceria com outras organizações culturais

200 201
Música e liturgia católica na cidade de Goiás: um percurso histórico de sua herança cultural Fernando Passos Cupertino de Barros; Consuelo Quireze Rosa

Referências RODRIGUES, Maria Augusta de Saloma. Semana Santa em Goiás. Intérpretes diversos.
Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás: 1998. 1 CD (46min).
BARROS, Fernando Passos Cupertino; ROSA, Consuelo Quireze. A música para a Sema-
na Santa da Cidade de Goiás no primeiro quartel do século XX: uma reconstituição SILVA, Maria da Conceição; MOREIRA, Wellington Coelho. Conjugalidades clericais na
com base no arquivo do Coro da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. In: SIMPÓSIO Diocese de Goiás, 1824-1907. História, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 170-196, 2010. Disponí-
NACIONAL DE MUSICOLOGIA, 1.; ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA, 3., 2011, vel em: https://doi.org/10.1590/S0101-90742010000100011. Acesso em: 15 ago. 2022.
Pirenópolis. Anais [...]. [S. l.]: [s. n.], [2011]. p. 210-216. Disponível em https://files.cer-
comp.ufg.br/weby/up/269/o/anais_do_1_simposio_musicologia_3_encontro.pdf. Acesso SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Paixões em cena: a Semana Santa na cidade de Goiás
em: 13 ago. 2022. (século XIX). Brasília: UnB, 2007. Disponível em: https://repositorio.unb.br/hand-
le/10482/1084. Acesso em: 13 ago. 2022.
BERNARDI, Clacir José; CASTILHO, Maria Augusta. A religiosidade como elemento
do desenvolvimento humano. Interações, Campo Grande, v. 17, n. 4, p. 745-756, 2016. SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. O processo de romanização nas últimas décadas do século
Disponível em: https://doi.org/10.20435/1984-042X-2016-v.17-n.4(15). Acesso em: 16 XIX na Cidade de Goiás: antífona Domine, tu mihi lavas pedes, atribuída a José do Patro-
ago. 2022. cínio Marques Tocantins. In: SOUZA, A. G. R.; CRANMER, D.; ROSA, R. L. (org.). Musicologia
& diversidade. Curitiba: Appris, 2020. E-book. Disponível em https://books.google.com.
BORGES, Maria Helena Jayme. A música e o piano na sociedade goiana (1805-1972). Dis- br/books?id=bHwUEAAAQBAJ&lpg=PT20&dq=adelaide%20s%C3%B3crates%2C%20
sertação (Mestrado em Educação Escolar Brasileira) - Faculdade de Educação, Universi- cidade%20de%20goi%C3%A1s&hl=pt-BR&pg=PT20#v=onepage&q=adelaide%20
dade Federal de Goiás, Goiânia, 1996. s%C3%B3crates%2C%20cidade%20de%20goi%C3%A1s&f=false. Acesso em: 13 ago.
2022.
BRITTO, Clovis Carvalho; ROSA, Rafael Lino. Mestra e guia: a Catedral de Sant’Ana e as
devoções de Darcília Amorim. Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2017.

DIAS, Ângelo. O canto coral em Goiânia: uma trajetória. Revista UFG, Goiânia, v. 10,
n. 5, p. 130-137, dez. 2008. Disponível em: https://revistas.ufg.br/revistaufg/article/
view/48222. Acesso em: 16 ago. 2022.

DIAS, Ângelo. Música de exéquias em Vila Boa de Goyaz: contextualização de uma


coleção de manuscritos. Revista Música Hodie, Goiânia, v. 9, n. 1, 2009. Disponível em
https://revistas.ufg.br/musica/article/view/10710. Acesso em: 12 ago. 2022.

MENDONÇA, Belkiss Spenzéri Carneiro de. A música em Goiás. Goiânia: Editora da UFG,
1981. (Coleção Documentos Goianos, n. 11).

PASSOS, Elder Camargo. Goyaz: de arraial a patrimônio mundial. Goiânia: Kelps, 2018.

POHL, Johann Emanuel. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

RODRIGUES, Maria Augusta de Saloma. A modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia: UFG,
1982. (Coleção Documentos Goianos, n. 12).

202 203
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado

Famílias musicais em Goiás no


século XIX: reprodução de poder
via capital cultural herdado
Flavia Maria Cruvinel
Universidade Federal de Goiás

204
6 como citar
CRUVINEL, Flavia Maria. Famílias musicais em Goiás
no século XIX: reprodução de poder via capital cultural
herdado. In: SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia
Maria (ed.). Centro-Oeste. Vitória: Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p.
204-236. (Histórias das Músicas no Brasil).
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Este trabalho é resultante de investigação, ainda em andamento, que aborda os proces- a busca por riquezas minerais e a evangelização foram os principais responsáveis pela
sos de formação musical no estado de Goiás no contexto sociocultural do século XIX, exploração do Centro-Oeste. Palacín, Garcia e Amado (1995) destacam que o povoamen-
por meio do projeto de pesquisa “Formação Musical no Brasil no Século XIX” (PI01937- to do território goiano se dá ao longo do século XVIII e está diretamente ligado aos em-
-2016)1 e de seus nove planos de trabalho em nível de iniciação científica2, executados preendimentos dos bandeirantes paulistas na corrida do ouro. Os autores observam que,
no período de 2019-2023. assim como ocorreu em Minas Gerais e, posteriormente, em Mato Grosso, a repercussão
O escopo geral do projeto de pesquisa é investigar os primeiros campos de pro- das notícias sobre a incidência do ouro em Goiás provocou a migração de pessoas para
dução musical no estado de Goiás no século XIX, partir das 21 cidades: 1) Vila Boa a região, sendo criados os primeiros povoamentos urbanos, com ênfase em Arraial de
de Goiás, atual Cidade de Goiás; 2) Vila de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte, Sant’Anna3, atual Cidade de Goiás, e Arraial de Meia Ponte, atual Pirenópolis, os dois
atual Pirenópolis; 3) Corumbá de Goiás; 4) Arraial de Campinas, atual bairro de Campi- primeiros centros de poder na capitania de Goiás.
nas, anexado a Goiânia; 5) Distrito de Nossa Senhora do Barro Preto, atual Trindade; 6)
Córrego do Jaraguá, atual Jaraguá; 7) Vila de Sant’Ana das Antas, atual Anápolis; 8) Vila Nesse período, ficou estabelecido o mapa básico da mineração em Goi-
ás, constituído por três grandes áreas: a região de Vila Boa (Barra, Fer-
de Bonfim, atual Silvânia; 9) Curralinho, atual Itaberaí; 10) Santa Luzia, atual Luziânia;
reiro, Ouro Fino, etc.) contendo Meia Ponte e Santa Cruz ao Sul; a região
11) Catalão; 12) Santa Rita do Paranaíba, atual Itumbiara; 13) Vila de Santa Cruz, atual do rio Maranhão (Traíras, São José, Cachoeira, etc.), contendo Crixás a
Caldas Novas; 14) Distrito Paraíso, atual Jataí; 15) Santo Antônio do Rio Verde, atual Rio oeste; e a região do Norte (Natividade, Pontal e Conceição, etc.) (PALA-
Verde; 16) Vila Nossa Senhora da Conceição, atual Crixás; 17) Pilar de Goiás; 18) Pouso CÍN; GARCIA; AMADO, 1995: 34-35).
Alto, atual Piracanjuba; 19) Vila Bela de Morrinhos, atual Morrinhos; 20) Santa Cruz
de Goiás; e, por fim, 21) Traíras, atual povoado de Niquelândia. Neste capítulo, serão A sociedade goiana era formada por estratos sociais bem-definidos no final do
apresentados os resultados parciais das coletas de dados referentes às três primeiras período colonial. Palacín, Garcia e Amado (1995) iluminam a discussão quando apontam
cidades citadas. que a elite goiana, naquele momento, era composta por fazendeiros, proprietários de
A história de Goiás inicia-se no fim do século XVI, quando as explorações portu- minas, comerciantes ricos, funcionários do governo, militares e integrantes da Igreja.
guesas não mais se limitaram à região do litoral. A perseguição aos povos originários, Já os grupos sociais ligados às camadas médias tinham, nas suas composições, pro-
prietários de médio porte, comerciantes, feitores, vaqueiros, carreiros, ourives, alfaiates,
marceneiros, pedreiros, barbeiros, entre outros profissionais especializados; e, por fim,
1
O projeto de pesquisa tem o objetivo de investigar o campo da formação musical brasileira no século as pessoas pobres, grupo composto por excluídos sociais, com mestiços, negros, forros,
XIX. A partir da reconstituição e estruturação do campo musical do período, pretende-se desvelar os pro-
cessos de formação no Brasil no período proposto e quais eram os agentes e as instituições presentes aventureiros, fugitivos, mendigos e pessoas desocupadas, que perfaziam grande parte
nesse cenário específico, a fim de compreender quais foram os processos de dominação e reprodução do população, sendo suplantadas apenas pelos negros escravizados, que, nesse triste mo-
capital cultural vigente à época e se houve rupturas e transformações genuínas no campo formativo da
música, trazidas pelos fluxos e intercâmbios e pela miscigenação cultural, que constitui a formação do
mento da história brasileira, por vezes não eram considerados pessoas, mas coisificados,
povo brasileiro. tidos como mercadorias.
2
Planos de trabalho de iniciação científica e respectivos orientandos: 2019-2020 – “Formação musical Ainda, Palacín, Garcia e Amado (1995) citam o documento escrito pelo governador
na cidades de Pirenópolis e Corumbá de Goiás: agentes e instituições no campo de produção musical dom Francisco de Mascarenhas (1804-1808), que relaciona os nomes e os currículos dos
oitocentista”, com Jéssica Rodrigues Neiva; “Formação musical na cidade de Goiás: agentes e instituições
no campo de produção musical oitocentista”, com Guilherme Braga de Carvalho; “Formação musical em eleitos para a lista tríplice de escolha do novo capitão-mor de Goiás. Nesse documento,
Campininha das Flores (Campinas): agentes e instituições no campo de produção musical oitocentista”, datado do início do século XIX, é demonstrado como a elite era composta por pessoas
com Pablínia Lisboa Pires do Prado; 2020-2021 – “Formação musical em Goiás no século XIX: mapea-
mento dos agentes e instituições no campo de produção musical nas cidades de Pirenópolis e Corumbá com atributos de distinção social, tais como a cor da pele, a origem, a riqueza, o cargo,
de Goiás”, com Jéssica Rodrigues Neiva; “Formação musical em Goiás no século XIX: mapeamento dos a religião católica, ou seja, era imprescindível ter comportamento social adequado e a
agentes e instituições no campo de produção musical na Cidade de Goiás”, com Guilherme Braga de Car-
valho; “Formação musical em Goiás no século XIX: mapeamento dos agentes e instituições no campo de
vida de acordo com as leis da nobreza. Além de possuir riqueza e cargos, ser branco era
produção musical nas cidades de Campininha das Flores (Campinas) e Arraial do Barro Preto da Santís- uma característica imprescindível para se distinguir socialmente, assim como ser de
sima Trindade (Trindade)”, com Pablínia Lisboa Pires do Prado; 2021-2022 – “Famílias musicais da cidade origem nobre ou ter parentesco com família poderosa ou antiga na região.
de Goiás no século XIX: construção do campo de produção cultural pela força do habitus musical”, com
Alberto de Oliveira Nascimento; “Famílias musicais de Pirenópolis e de Corumbá de Goiás no século
XIX: construção do campo de produção cultural pela força do habitus musical”, com Cassiano Lopes de
Oliveira; 2022-2023 – “Famílias musicais da cidade de Goiás no século XIX e as profissões musicais: ma-
peamento do campo de produção cultural e de trabalho a partir do habitus musical familiar”, com Alberto 3
A cidade de Pirenópolis foi fundada como pequeno arraial em 1727 e elevada à categoria de vila com a
de Oliveira Nascimento. denominação de Meia Ponte, pelo Decreto de 10-07-1882.

206 207
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Apesar da miscigenação racial entre homens brancos e mulheres negras, e do de seu padroeiro ou sua padroeira por meio de uma festa, e esta era caraterizada por
costume luso-brasileiro de se reconhecer oficialmente a paternidade de relações do um grupo de cerimônias realizadas no dia de comemoração da santidade, “às vezes se
casamento, ter o sobrenome paterno não levava à ascensão social de forma direta. iniciando nos dias precedentes e às vezes, quando havia choque com outra celebração
importante, realizadas no domingo seguinte ao dia santo” (PINTO, 2012: 324).
Na sociedade colonial brasileira, a cor da pele tornara-se um dos atri- Por meio de vasta pesquisa em documentos antigos dos séculos XVIII e XIX, não
butos mais importantes de distinção social. Em Goiás não foi diferente:
publicada, Braz Wilson Pompeu de Pina Filho apontou para a existência de uma tradição
para pertencer à elite, era necessário antes de tido ser branco, mesmo
quando muito pobre, um branco considerava-se sempre superior a um musical no estado de Goiás.
negro, mesmo que este gozasse de melhor situação financeira (PALA-
CÍN; GARCIA; AMADO, 1995: 183). Criavam-se conjuntos instrumentais e vocais para o acompanhamento
das músicas nas cerimônias litúrgicas, nas festas populares que eram
eminentemente de cunho religioso. Para a encenação do teatro canta-
No início do século XIX, a presença de pessoas negras em Goiás era grande e foi do, comumente chamado de ópera, também se formavam os
responsável pela introdução de crenças e de rituais praticados de forma oculta em uma conjuntos para o acompanhamento das árias. (RORIZ, 2005: 30).
sociedade católica, como apontam os viajantes Spix e Martius em sua passagem pela
província em área rural.
Já em 1760, há notícias dos festejos em virtude do reestabelecimento da saúde
Ali encontramos toda a família e a numerosa criadagem preta, choran- de dom José I. O então governador recém-empossado, João Manoel de Mello, convocou
do em volta de um corpo que estava costurado num lençol de algodão
toda a cidade para festejar durante oito dias, quando a cidade foi iluminada como pe-
como as múmias do Egito. Explicaram-nos que a morte de uma escrava
[sic] era o motivo dessa lúgubre solenidade, pois os africanos não se dia a ocasião, e a programação contou com desfiles de tropas, missa cantada “por bons
deixam demover de prestar, segundo os costumes pátrios, os últimos músicos”, no fim do sermão, foi cantado um Te Deum Laudamus, e à noite, um banquete
deveres aos mortos. As lamentações são feitas pelos negros com tan- no palácio foi ofertado, seguido de baile de máscaras, conforme destacam os pesquisa-
to fervor e vivacidade, que os fazendeiros consideram pouco prudente dores Bertran e Faquini, citados por Souza (2007).
negar para isso o consentimento. Essa cerimônia religiosa, chamada
de entame pelos negros, é celebrada, na Guiné, de portas fechadas e Palacín, Garcia e Amado (1995) destacam que, no século XVIII, havia uma intensa
degenera frequentemente na mais licenciosa extravagância, razão por atividade teatral em Goiás, com a presença de numerosos teatros no interior goiano,
que o Sr. Frota só com a sua presença receava poder conte-los. (SPIX; locais onde eram encenadas as óperas. Os autores também mencionam as pesquisas do
MARTIUS, 1981: 112). historiador Paulo Bertran, que apontam para a encenação de óperas na região já nos
anos 1770, em recintos rústicos, como durante a viagem do governador dom José de
Essa presença também se refletiu nas festas populares, como as congadas e as Almeida pela capitania, empreendida em 1772, quando o mandatário “assistiu a duas
folias de Reis, no estado, bem como nas bandas musicais e nos conjuntos instrumentais óperas em Pilar, duas em Traíras e quatro em São Félix, perfazendo o total de oito ópe-
e vocais. ras em pouco mais de um mês!” (PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995: 220).
Outro viajante europeu que passou pela Província de Goiás foi Johan Emanuel O viajante Auguste de Saint-Hilaire presenciou a festa de N. S. da Abadia, que
Pohl. Na sua visita à Cidade de Goiás, presenciou, além da comemoração da Semana atraía multidões provenientes de Santa Luzia, de Meia Ponte e de arraiais mais distantes
Santa, outra festividade relacionada, que ocorria uma semana antes, a Procissão de Nos- e tinha o objetivo de relembrar um milagre operado por intercessão da Virgem numa
so Senhor dos Passos em direção à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, santa de devo- abadia qualquer da França. Saint-Hilaire se mostra intrigado pelo fato de essa festa ser
ção dos negros. Pohl (1976) relata a grande presença de mulatos e negros escravizados, celebrada com pompa em variados arraiais do Brasil, entre eles Bonfim e Traíras, em
em sua maioria, abrindo o cortejo. Goiás, sendo que é inteiramente desconhecida dos católicos franceses.
A música, como componente das cerimônias da tradição católica, esteve presente
no início da povoação do território goiano, ainda no século XVIII. Inicialmente, as irman- Com efeito, as comemorações não se limitam apenas a uma missa can-
tada e um sermão. Soltam-se também bombas e foguetes, encena-se
dades religiosas desempenharam um papel fundamental tanto no processo de povoa-
uma ópera e se realiza um simulacro de torneio - divertimentos profa-
mento quanto no de evangelização de Goiás, como destaca Pinto (2012). O autor pon- nos que se misturam com solenidades religiosa, como ocorre na festa
tua que as irmandades tinham, como uma das suas principais ocupações, a celebração de Pentecostes. Os que figuram na ópera e no torneio pertencem geral-

208 209
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

mente às famílias abastadas das vizinhanças. No torneio sempre é re- Para construir a história social do objeto investigado, a pesquisa bibliográfica foi
presentada, uma passagem qualquer na história de Carlos Magno e dos
dozes pares de França, que ainda é muito apreciadas pelos brasileiros devolvida a partir da revisão de literatura constituída por pesquisas disponibilizadas
do interior” (SAINT- HILLAIRE, 1975: 105, grifos nossos). em bancos de teses, livros e artigos científicos. Embasaram teoricamente as discussões
trazidas nesta pesquisa autores que abordam a sociedade goiana pelo viés histórico,
social e cultural, como Palacín (1979, 1990), Palacín, Garcia e Amado (1995) e Bertran
O viajante francês cita também uma cavalhada de Pentecostes em Santa Luiza, (2000); e, no campo específico da música em Goiás, a revisão de literatura foi respaldada
atual Luziânia, em que havia separação entre homens e mulheres, comum na vida coti- nos trabalhos de Mendonça (1981), Rodrigues (1982), Moreyra (1983), Pina Filho (1986),
diana; pobreza nos adereços; e a não clareza da identificação da tradição cavalheirosa Borges (1998), Roriz (2005), Souza (2007), Cruvinel (2007) e Pinto (2012). Da mesma
ibérica – lutas entre cristãos e mouros –, ou a da tradição francesa – saga de Carlos forma, os relatos dos viajantes Pohl (1976), Saint-Hilaire (1975) e Spix e Martius (1981)
Magno. Saint-Hilaire, citado por Palacín, Garcia e Amado, também apontou “a existência foram importantes para a compreensão do contexto histórico, social e cultural coevo.
de cavaleiros mascarados, ‘fantasiados de mil maneiras diferentes’, fazendo ‘momices No que se refere ao trabalho relacionado à pesquisa em fontes primárias, a pes-
e trejeitos semelhantes aos dos palhaços de circo’, marcando irreverente e alegra pre- quisa documental foi realizada em periódicos coevos presentes na Hemeroteca Digital
sença popular na festa” (PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995: 196-197). Nos dois casos, as da Biblioteca Nacional4. No período de 2021-2022, a coleta de dados foi realizada nos
narrativas remetem às invenções das tradições, conceito apresentado por Hobsbawm e seguintes periódicos goianos: Revista do Instituto Historico de Goianna (1871); O Porvir
Ranger (1997), quando se referem a fatos que, muitas vezes, parecem ser ou são consi- (1882); O Publicador Goyano (1885 a 1889); Almanak de Goyaz : c Calendario para o anno
derados antigos, mas não o são. É difícil encontrar as origens das tradições inventadas, de 1887 – compto Ecclesiastico (1887); A Plebe: Pátria e Povo (1890); A Cruz: Revista
de natureza tanto ritual quanto simbólica, quando construídas ou institucionalizadas Catholica (1890 a 1891); Jornal do Commercio (1880); – Correio Official de Goyaz (1837 a
por meio de repetições, e não raro foram inventadas de forma mais recente do que se 1921)5.
imagina, estabelecidas com rapidez. A partir da busca de palavras-chave, como “música”, “musical”, ““instrumento”,
A pesquisa, em andamento, é ancorada pela praxiologia bourdieusiana, ou teoria “orquestra”, “banda”, “coral”, “canto”, “piano”, “violino”, “ópera”, ““missa”, “festa”, “maestro”,
da prática, que apresenta princípios epistemológicos de investigação para os fenôme- “regente”, foram encontrados os dados trabalhados, sendo tabulados e analisados a partir
nos sociais, sobretudo aqueles pertencentes ao campo simbólico. Bourdieu (2002, 2013) da classificação inicial como agentes e instituições. Posteriormente, os dados foram obser-
concebeu um modo de pensamento e de análise por meio de pesquisas exaustivas no vados a partir das categorias: capital cultural herdado, ofício musical, distinção e domínio.
sentido de desvelar questões tidas como fundamentais sobre o mundo social, tais como
os processos de dominação, a hereditariedade cultural, a trajetória social e as formas 1. Formação musical do estado de Goiás
de ingresso, de permanência e de sucesso na carreira escolar, entre outros temas. Sendo Na coleta de dados realizada no período de 2019-2023, primeiramente foi feito o levan-
assim, o método praxiológico foi construído a partir de observações das práticas das tamento bibliográfico sobre a música em Goiás no século XIX, identificando teses, dis-
relações entre a estrutura e a conjuntura, de forma dialética. Tendo como ponto de par- sertações, livros e artigos diversos sobre a temática. Em um segundo momento, foram
tida conceitos basilares como habitus, campo e capital, a teoria da prática busca romper empreendidas as pesquisas nas fontes primárias, por meio dos periódicos publicados no
com a dicotomia objetivismo-subjetivismo, presente nas análises dos fenômenos soci- estado de Goiás no século XIX, disponibilizadas pela Hemeroteca Digital da Biblioteca
ais, compreendendo o espaço social na relação dialética entre a estrutura e o agente Nacional. Note-se que variados acervos, como o primeiro periódico goiano, Matutina
social, resultado da simultaneidade entre a interiorização da exterioridade. Dessa forma, Meiapotense, que circulou no período de 1830 a 1834, de propriedade do comendador
optou-se por investigar o objeto, Formação musical na Cidade de Goiás, a partir da sua
história social, inicialmente em duas vertentes: a pesquisa bibliográfica e a pesquisa
documental. 4
Disponível em https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital. Acesso em: 6 jan, 2023.
Partindo do conceito de Hobsbawm (2015), de que “o longo século XIX” com- 5
Ainda faltam ser pesquisados os seguintes periódicos: Estado de Goyaz: orgam do Partido Republicano
Federal (GO) – 1891 a 1896; Goyaz: orgão Democrata (GO) – 1885 a 1910; Semanario Official (GO) - 1894
preende de 1789 a 1914, ou seja, de parte da Revolução Francesa até o início da Pri- a 1909; A Thesoura: Orgão Critico e Liiterario (GO) – 1888; Brazil Federal: Orgão do Grupo Republicano de
meira Guerra Mundial, marcos que contemplam as mudanças que incidiram no contexto Goyaz (GO) – 1866; A Provincia de Goyaz: Hebdomadario lLitterario e Noticioso, dedicado aos interesses da
sociocultural contemporâneo, o período abordado pela pesquisa dá-se a partir desse Provincia (GO) – 1883 a 1884; A União: orgão do Partido Conservador (GO) – 1888; A Tribuna Livre: orgão do
Club Liberal de Goyaz (GO) – 1878 a 1884; O Planalto (GO) – 1910 a 1916; Relatórios dos Presidentes dos
parâmetro temporal. Estados Brasileiros (GO) – 1891 a 1929; O Tocantins (GO) – 1885; Mensagens do Governador de Goiás para
Assembléia (GO) – 1891 a 1917.

210 211
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Joaquim Alves de Oliveira, tendo como redator o padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, provavelmente, pela documentação encontrada por Dorvi, o vigário Verneck teria tra-
ainda não foram consultados, bem como outros não disponibilizados digitalmente pela zido para a cidade o ritual católico da época, quando a música era elemento de grande
Biblioteca Nacional. Dessa forma, esgotada a coleta de dados nos repositórios digitais, destaque nas cerimônias católicas. A autora julga que esse vigário pode ter sido o pre-
será necessário proceder à pesquisa de campo in loco. cursor do “cultivo da música” nessa cidade, ou seja, da música proveniente da tradição
Neste trabalho, apresentamos os resultados investigativos, ainda parciais, da europeia.
análise do capital cultural herdado, no campo da produção musical, na Cidade de Goiás, A partir da segunda metade do século XVIII, as primeiras famílias que estrutu-
em Pirenópolis e em Corumbá de Goiás, como se apresenta a seguir. raram a sociedade vilaboense, provenientes de Portugal, de São Paulo e do Nordeste
brasileiro, vão se acomodando na cidade.
1.1 Cidade de Goiás
O povoamento de Goiás foi iniciado no século XVIII, a partir da exploração da Dentre os primeiros, contamos: Rodrigues Jardim, Vieira, Veiga, Caiado e
Guedes Amorim; já no final do século XIX chegaram os italianos Perillo,
mineração, período conhecido como o do ciclo do ouro. Em 1725, Bartolomeu Bueno da
Viggiano e Rizzo e também o suíço francês Henrique Alfred Peclat. As
Silva, o Anhanguera, iniciou a exploração do ouro às margens do Rio Vermelho e fundou famílias nordestinas também constituíram troncos vilaboenses, como
o povoado da Barra e, posteriormente, o Arraial de Sant’Anna, em 1727. os cearenses Rocha Lima e os pernambucanos Loyola (RODRIGUES,
1982: 18).
O governador de São Paulo, Conde de Sarzedas, viajou em 1737 a Goiás,
sertão norte da Capitania que governava, para ali proceder à instala-
Rodrigues (1982) ainda destaca que, com a decadência da mineração aurífera, o
ção da primeira vila. Morreu durante uma viagem de reconhecimento
ao povoado de Traíras, antes de realizar seu propósito. Seu sucessor, D. marasmo esteve presente na sociedade vilaboense em fins do século XVIII e início do
Luiz Mascarenhas, deslocou-se em 1739 até Goiás com o mesmo fim: XIX. Porém, para a autora, é nesse momento que acontece a tomada de consciência dos
demarcar o lugar da vila que veio a criar (PALACÍN; GARCIA; AMADO, problemas da província, a luta pela autonomia e pelo poder. Destarte, há interesse pelas
1995: 36). questões econômicas e políticas, mas também pelo desenvolvimento intelectual, com
destaque para a figura de Luiz Antonio da Silva e Sousa.
Bertran (2000) afirma que, devido à grande quantidade de ouro encontrada nessas
minas, o arraial, por sua importância econômica para a Coroa portuguesa, foi elevado à Consolidando mais tarde este entusiasmo de desenvolvimento, os Bu-
lhões tiveram fundamental importância na imprensa, na literatura, na
categoria de vila, que, em 1739, passou a ser chamada de Vila Boa de Goiás. Até 1749, o
música, na educação e na política. Mas o embrião desta fase foi ger-
território pertencia à capitania de São Paulo, quando foi elevado à capitania de Goiás, minado ainda quando alguns governantes do tempo colonial, por aqui
sendo dom Marcos de Noronha, o conde dos Arcos, nomeado o primeiro governador. passando, lançaram bases de uma futura cultura urbana (RODRIGUES,
Somente em 1818 é que a vila foi transformada em cidade de Goiás, por carta régia as- 1982: 30).
sinada por dom João VI.
No século XVIII, desde as primeiras décadas do povoamento do antigo Arraial de Vila Boa de Goiás possuía programação musical considerável, como encenação
Sant’Anna, território dos lendários indígenas Goiá ou Guayazes, a música fez-se pre- de peças teatrais com acompanhamento musical, recitais nas residências das famílias
sente. Palacín, Garcia e Amado (1995) destacam que um teatro foi construído durante tradicionais e no Palácio do Governo. No século XIX, em sintonia com as mudanças
a década de 1780 em Vila Boa e, posteriormente, estatizado. Ademais, Moreyra (1983) socioculturais em decorrência da fundação do Estado brasileiro, pelo advento da in-
afirma que, na tradição popular, a Folia de Reis já se fazia presente no cenário goiano dependência do país em relação à Coroa portuguesa, novos costumes e gostos foram
quando da passagem do viajante francês Saint-Hilaire, que presenciou um grupo que sendo implementados naquela sociedade, pela formação da cena musical e de um novo
recolhia donativos para a Festa do Divino em Curralinho, vilarejo nos arredores. gosto musical devido à força do habitus cortesão bragantino, cunhado por Cruvinel
A despeito da ausência de fontes primárias, já que grande parte da música que (2018, 2022), e à ascensão dos membros das famílias pertencentes à burguesia nascen-
estava relacionada às obras sacras provavelmente se perdeu no incêndio da Igreja da te, que buscava a distinção social a partir dos padrões culturais.
Boa Morte, em 1921, Mendonça (1981) ressalta o apontamento de frei Simão Dorvi, Nos anos 30 dos oitocentos, a partir do período regencial no Brasil, entre 1831
que supõe que o chantre da Sé do Rio de Janeiro, padre Manuel de Andrade Verneck, e 1840, houve um crescente da participação de grupos sociais, sobretudo aqueles que
tenha atuado na cidade, tendo se tornado vigário da Igreja de Vila Boa em 1757. Assim, podiam consumir hábitos e modos de vida refinados. Nesse ínterim, houve uma diversi-

212 213
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

ficação do campo de trabalho no âmbito musical, e novas redes de sociabilidade foram Família musical Músicos formadores – formação e atuação Fontes
musical
sendo formadas, sobretudo ligadas àquelas famílias provenientes da “boa sociedade”. A
distinção dava-se pelo gosto “elegante” e “moderno”, que estava em sintonia com o que Serradourada Basílio Martins Braga Serradourada (1804-1874) – Correio Official de
pai, compositor Goyaz (1837 a 1921)
se considerava civilizado, com os modelos eurocêntricos do bom viver. José Iria Xavier Serradourada (1831-1989) – filho, Mendonça (1981)
cônego, compositor Rodrigues (1982)
Igualmente, houve uma profusão de lojas de instrumentos e partituras,
movidos pelas redes de sociabilidade, formadas pelos “novos ricos” e Tocantins José do Patrocínio Marques Tocantins – O Publicador Goyano
pelas “pessoas de bem”, ávidas por investir em uma estrutura adequa- instrumentista, cantor, compositor, regente, professor, (1885-1889)
da para receber seus convidados para saraus, recitais e bailes no seu além de ser redator-chefe d’O Publicador Goyano Correio Official de
ambiente doméstico, onde o piano, as partituras e os músicos não po- Anna Francisca Xavier de Barros Tocantins – esposa, Goyaz (1837 a 1921)
deriam faltar. Desta forma, a manutenção da estrutura social das casas pianista Bocayuva: orgão
e linhagens é dissimulada pelo domínio dos códigos da cultura erudita, Deborah Tocantins Esteves – filha, pianista (casou- republicano e dos
que são “quase reveladas” nos termos como “ter berço”, “vem de família”, se com o flautista e compositor doutor Armando interesses geraes da
“pedigree”, entre outros (CRUVINEL, 2022: 297). Esteves) provincia (1883)
Aurora Tocantins – filha, cantora Mendonça (1981)
Anna Gabriella Tocantins – tipógrafa Rodrigues (1982)
Em consonância com o que se passava no Rio de Janeiro, a música como parte
Luiza Suzana Tocantins – tipógrafa
do processo civilizatório na Cidade de Goiás oitocentista, igualmente, estava presente
tanto nas festas religiosas quanto em atividades ligadas à burguesia vilaboense, por
meio das famílias que dominavam o campo de produção musical, validando a estrutura Xavier de Barros José Rodrigues Jardim – avô, presidente da província Mendonça (1981)
(1831-1937) Rodrigues (1982)
do poder local por meio de recitais, saraus musicais e teatros com música, denominados Inácio Xavier da Silva – pai Mendes (2014)
“óperas”, em ambiente privado, como é destacado por Souza (1998). Anna Francisca Xavier de Barros – pianista, esposa
de José Tocantins
Vemos as famílias mais abastadas mandando seus filhos estudar na Leonor Xavier de Barros
Europa ou em bons colégios da Corte, de onde regressavam trazendo Maria do Nazareth Xavier de Barros – tipógrafa
Maria do Rozario Xavier de Barros – tipógrafa
maneiras elegantes e fidalgas.
Seus habitantes cultivavam as artes, o latim e a retórica. O francês era
a língua do bom-tom: todos a falavam em sociedade (MENDONÇA,
1981: 19). Rodrigues Jardim José Rodrigues Jardim Mendonça (1981)
Augusta Purificacão Jardim – esposa
Ana Jardim (1889-1929) – filha
A tradição musical familiar via capital cultural herdado, como destacam Bourdieu e
Bulhões Leonor Bulhões Gouvea Mendonça (1981)
Passeron (2014a, 2014b) e Bourdieu (2004, 2013b), foi decisiva no fomento do campo de Angela Bulhões Natal
produção musical em Goiás, partindo da ideia de processo civilizador defendida por Elias Josefina de Bulhões Baggi de Araújo
(1994), que é ditado a partir das normas e regras sociais na autorregulação e autocontro- Martins Francisco Martins do Carmo – pai Mendonça (1981)
le dos objetos e funções corporais. Dessa maneira, diversas famílias, que comandavam a Maria da Pureza Gomes de Araújo – mãe, primeira Rodrigues (1982)
professora primária nomeada
cena musical vilaboense oitocentista, igualmente, contribuíram para o desenvolvimento
Antônio Martins de Araújo – clarinetista, violinista,
cultural, social e econômico da província de Goiás, mediante o investimento em aquisi- compositor, integrante do Club Bellini
ção de conhecimento e práticas culturais consideradas civilizadas, bem como no capital Donizetti Martins de Araújo – integrante do Club
Bellini
cultural institucionalizado dos descendentes, por meio de estudo nas melhores escolas.
Luiz Martins de Araújo – integrante do Club Bellini
Nas pesquisas bibliográficas e nas documentais em periódicos, já citados, perten- Ovídio Martins
centes ao acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, foram encontradas refe- Mozart Martins
Sebastião Martins
rências sobre as seguintes famílias: Serradourada, Tocantins, Rodrigues Jardim, Xavier de
Francisco Martins de Araújo – flautista, compositor
Barros, Bulhões, Martins, Xavier, Albernaz, Freitas, Marques, Brandão, Fleury e Santana,
como se destaca no Quadro 1:

214 215
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Família musical Músicos formadores – formação e atuação Fontes a tradição vilaboense, teria composto variados motetes para a Semana dos Passos da
musical
Cidade de Goiás e Semana das Dores, supostamente em 1855-1856.
Xavier Antônio Manuel Xavier – regente da Banda de Correio Official de Os Motetos dos Passos, segundo os manuscritos de J. Costa e Oliveira, foram can-
Música do Bomfim Goyaz (1837 a 1921) tados pela primeira vez na Matriz de Sant’Ana em 7 de março de 1856. Já os Motetos das
Dores foram cantados pela primeira vez em 10 de abril de 1856, na Igreja da Boa Morte,
como destaca Rodrigues (1982).
No periódico Correio Official de Goyaz, publicado entre 1837 e 1921, há notícia da
Albernaz Francisco de Faria Albernaz – professor O Publicador Goyano bênção da imagem de Nossa Senhora da Aparecida, na capela de Areas, distrito da ca-
Emerenciana de Faria Albernaz – filha, professora (1887) pital de Goiás, no dia 7 de fevereiro de 1875, ocasião em que a banda Phi’larmonica se
Maria de Faria Albernaz – filha, professora O Publicador Goyano
Júlia de Faria Albernaz – filha, professora (1889)
apresentou:
Nicanor Albernaz – violão (século XX?)
José Iria Xavier Serra-Dourada, Vigário Colado da Paroquia da Cathe-
dral; Antonio Pereira Ramos Jubé, Vigário Colado da Paróquia de N. S.
do Pilar do Ouro Fino; Dr. Francisco Antonio de Azeredo; Ramiro Pereira
Freitas Antônio de Paula Freitas – instrumentista de sopros Mendonça (1981)
Manuel Ribeiro de Freitas – tio, músico em Jaraguá
de Abreu; Christiano Joaquim de Sant’Anna; João da Rocha Vidal; Ma-
Clotário de Freitas – violinista noel Alves de Castro; Francisco Antonio Ferreira de Azeredo; Benedicto
Pereira de Andrade; Berlamino Felippe do Nascimento; José do Patro-
cínio Marques Tocantins; o tesoureiro Luiz Marques dos Santos Aranha.
Marques Minervino Marques – instrumentista de sopros, Mendonça (1981) A notícia ata foi assinada por Gregorio da Silva Abrantes, escrivão
mestre da Banda do Batalhão do 20 de capelas e resíduos (CORREIO OFFICIAL DE GOYAZ BENÇAO, 1875,
Joaquim Marques – instrumentista de sopros edição 00013: 3).
Joaquim Santanna Marques – compositor, chefe de
banda, professor
Pedro Valentim Marques – filho, instrumentista de
sopros, compositor A família Tocantins era formada por variados agentes na cena musical da antiga
capital, intelectuais e musicistas, liderada pelo casal José do Patrocínio Marques Tocan-
Fleury João Brandão Fleury Mendonça (1981)
tins e Anna Francisca Xavier de Barros Jardim. Além de o casal ter grande conhecimento
Oscar de Pádua Fleury sobre música, ambos eram exímios pianistas. Necessário se faz destacar que o piano era
João Fleury de Camargo Rodrigues (1982) um instrumento central nos bailes, concertos, saraus, salões, conforme atesta Borges
Maria da Glória Gaudí Fleury
Mariana Fleury Curado Mendes (2014)
(1998).
Augusta de Faro Fleury Curado José do Patrocínio Marques Tocantins era filho de Anna do Espírito Santo, mulher
Maria de Paula Fleury Godoi de origem humilde, que ficou viúva precocemente. O jornal A Tribuna Livre: Orgão do Club
Anita Fleury
Liberal de Goyaz, noticiou, no dia 4 de outubro de 1879, sua morte da seguinte maneira:

Brandão Maria Angélica da Costa Brandão (Nhanhá do Couto) Mendonça (1981)


Terça-feira d’esta semana baixou a sepultura o cadaver da Sr.a D. Anna
Manuel Luiz do Couto Brandão – esposo do Espirito Santo Marques, viúva de Francisco Marques Aranha de ex-
Rodrigues (1982) tremosa Mãe do nosso amigo, chefe da nossa officina, o Sr. J. do P. M.
Tocantins... ... Filha da obscuridade, tendo por companheira inseparável
Quadro 1: Famílias musicais da Cidade de Goiás no século XIX. Fonte: Elaborado pela autora. a –pobresa – passou a sua vida em (30 annos de viuvez) contínuos e
duros trabalhos, proporcionando à seus filhos não só o sustento do cor-
po, como tambem o do espirito, para que fossem uteis a sociedade. Com
effeito, são todos elles pessoas que se-fazem distinguir, e entre elles
A família Serradourada, cujo primeiro membro abordado é Basílio Martins Braga nota-se o Sr. José Marques, professor de musica, de intelligencia
Serradourada (1804-1874), pai de José Iria Xavier Serradourada, vigário da primeira fre- não vulgar (A TRIBUNA LIVRE: ORGÃO DO CLUB LIBERAL DE GOYAZ
guesia da capital, igualmente musicista e compositor. Basílio Serradourada, conforme FALLECIMENTO, 1879: 1).

216 217
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

José Tocantins era minerólogo, músico instrumentista, cantor, regente, professor, A família Bulhões, cujas atividades estavam ligadas ao comércio, à magistratura e
jornalista, entre os variados ofícios que desempenhava. No campo musical, em 1864, à política, era reconhecida pelos investimentos no campo educacional, seus membros
fundou e regeu a Banda de Música da Guarda Nacional e, em 1870, a Orchestra Philar- considerados de mentalidade avançada para a época. O casal Inácio Soares de Bulhões
mônica. Foi também professor de música do Liceu de Goiás e elaborou o programa de e Antônia Emília Rodrigues Jardim investiu em proporcionar a seus filhos o capital cul-
ensino musical da instituição em 1882. Como jornalista, foi editor d’A Tribuna Livre (1878- tural institucionalizado, conforme a teoria bourdieusiana, oferecendo “uma educação
1884) e um dos proprietários do jornal O Publicador Goyano (1885-1889). Esse agente esmerada nas letras e nas artes, buscou na corte professores para seus filhos, comprou
destacado no campo de produção musical vilaboense coevo teve grande influência piano de cauda e o transportou em carro de bois para Goiás, divulgando o gosto pela
também no campo educacional, sendo professor de música das importantes famílias da música por meio de concertos realizados em sua própria casa” (BORGES, 1998: 47). Nes-
cidade e um dos responsáveis por apresentar o plano para o ensino de música no Liceu sa família, também havia mulheres destacadas no campo musical, como Leonor Bulhões
de Goiás, que impunha duas lições de música por semana, aprovado na Assembleia Gouvea, Angela Bulhões Natal e Josefina de Bulhões Baggi de Araújo.
Provincial em 1882, como destaca Borges (1998). O jornal A Tribuna Livre” destaca a presença feminina no campo de produção mu-
A música e as letras estavam presentes no cotidiano de sua numerosa família, que sical vilaboense, como na apresentação da procissão das dores, regida por José do Pa-
chama atenção pela quantidade de mulheres atuantes na música, como foi o caso de trocínio Marques Tocantins:
sua esposa, Anna Francisca Xavier de Barros Tocantins, conhecida por Donana, e de suas
filhas Deborah e Aurora Tocantins, pianista e cantora, respectivamente; e na imprensa, Motetes e Miserere
Missa: - de Lysias Momigny e trechos de Sabat Mater, sobressaindo-se a
como Anna Gabriella Tocantins e Luiza Suzana Tocantins, que atuavam no ofício de
execução de d. Anna F. Xavier de Barros no Cuyus Animas. As cantoras
tipógrafas-compositoras, sendo responsáveis pela parte intelectual e pelas obras avul- eram: Messias Amorim, Emerenciana Albernaz, Josepha de Amorim, Ilí-
sas do periódico O Publicador Goyano. dia Curado, Victotiana de Castro, Mariquinhas Albernaz e Anna Gabriela
Por sua vez, Anna Francisca Xavier de Barros era filha de Inácio Xavier da Silva e - acompanhadas pela Phil’larmonica e mais Anna X. De Barros, M de
neta de José Rodrigues Jardim, que foi presidente da província de Goiás entre 1831 e Nazareth X. De Barros e Leonor Xavier de Barros.
Estas últimas senhoras sai do número das mais adiantadas discípulas
1837, e de Augusta Purificação Jardim, cujas irmãs Leonor Xavier de Barros e Maria do do sr. Tocantins (A TRIBUNA LIVRE, 1879 apud RODRIGUES, 1982: 48).
Nazareth Xavier de Barros tiveram formação musical com José do Tocantins. As irmãs
Xavier de Barros eram mulheres destacadas da sociedade. Maria Nazareth e Maria do
Rosário também exerciam a função de tipógrafas. Necessário se faz destacar que a famí- Da mesma forma, o Correio Official de Goyaz, aborda o sarau musical, em que parti-
lia Xavier de Barros confluía com a família Rodrigues Jardim, que, por sua vez, também cipam membros das famílias Tocantins e Bulhões:
tinha parentesco com outra importante família de intelectuais vilaboenses, a Bulhões.
Concerto Musical - Realisou-se a 13 do corrente, sabaddo, em uma das
Anna Francisca Xavier de Barros Tocantins (1857-1949) - uma das maio- salas do palácio da presidencia, um segundo sarau executado o pro-
res inteligências femininas vilaboenses. Seus dotes artísticos abran- gramma publicado em nosso numero quarta feira passada.
geram não só a música como também a literatura. Estudou harmônio Não nos é possivel fazer, nos limites deste noticiário, apreciação minu-
com mestra Cyriaca, piano e canto com José do Patrocínio Marquez ciosas sobre essa festa que, sem dúvida, foi, como a de 9 de outubro,
Tocantins, a quem em 1886, desposou. Os jornais anunciam em 1892 uma solene afirmação do progresso que vae tendo nesta capital a arte
suas aulas de francês, português, música vocal e piano. Sua casa foi um de Carlos Gomes.
centro cultural onde, além das reuniões literárias, reunia os intelectu- A leitura do programma, onde figurão trechos das melhores operas
ais para assistirem recitais de suas alunas. Poetisa e compositora de desde a Norma até a Aida e a Fosca, desde a Traviata até o Fausto, o
modinhas. Possuídora de bela voz soprano, ouvido absoluto e profundo Rei de Labore, e os Huguenotes acusa o gosto pela boa musica, o qual,
conhecimento musical. Sua atividade como professora e musicista foi esperamos, cada dia mais se desenvolva e aperfeiçoe.
marcante como em outros setores culturais, tendo sido sócia fundadora Taes festas não causam somente um prazer ephemero que desapparece,
do Instituto Histórico, Geográfico de Goiás. Recebeu a medalha de bron- sem deixar vestígios, ao expirar a ultima nota musical; elas imprimem
ze outorgada pelo. Rei Alberto da Bélgica (RODRIGUES, 1982: 63-64). forte impulse a arte, descobrem e aproveitão vocações, aperfeiçoão os
nossos costumes: concorrem, em uma palavra, para o melhoramento da
nossa pequena e desconhecida sociedade.
Benvindas sejão sempre ellas!

218 219
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Sob a intelligente direcção do Sr. Tocantins a Phil’larmonica e a banda conceito bourdieusiano de denegação, na medida em que o agente disputa espaços de
do Batalhão 20, reunidas, executarão satisfactorianente o pot-pourri.
do Freischutz de Weber, arranjado por Kuffner, que serviu de abertura. poder e consagração, ou seja, quanto mais transparece desinteresse ou desdém, mais se
Na primeira parte do programma, desde a belíssima balada de Cecília quer alcançar os dividendos nas “trocas simbólicas”. Nesse sentido, aos olhos do narra-
no 2 acto do Guarany, cantada e acompanhada a [sic] piano pela Exmª dor, a “pequena e desconhecida sociedade” já estaria tomando um “banho de civilização”,
Srª D. Josefina de Bulhões, até o duetto - il supplizio - do Trovador, can- termo usado por Schwarcz e Costa (2016) em relação a quando o Rio de Janeiro recebeu
tado pelas Exmª Srª D. Anna e D. Leonor X. De Barros, e o coro da mesma
a família real e “respirou ares da melhor sociedade”, sendo assim, os salões vilaboenses
scena em que tornarão parte as Exmª Srª D. Maria X. De Almeida, hou-
veram se muito bem as cantoras, dando provas de estudo e aplicaão já se credenciavam a disputar os melhores salões, que circulavam a “música de primeira
a música.O difficílimo allegro com que termina a scena foi brilhante- linha” para os padrões culturais mais exigentes.
mente executado, bem como o solo antecedente do Trovador. Um fato digno de nota, que une mais uma vez as famílias Tocantins e Bulhões, é a
A Exmª Srª D Angela Bulhões estreou bem no romance de Robande
autoria do “Hino abolicionista de Goiás”, cujo texto é de Antônio Félix de Bulhões Jardim,
- alla stella confidente -no qual, entretanto, não podia revelar a sua
aplicação e gosto, com música de José do Patrocínio Marques Tocantins. Bulhões Jardim fundou a primeira
Os dois duetos da Aída e da Fosca, que entrarão nesta primeira parte, Sociedade Emancipadora de Escravos em 2 de julho de 1879 e, em 1855, o Centro Li-
aquele cantado pela Exmª Srª D. Anna e D. Leonor X. de Barros e estes bertador de Goyaz e o jornal ligado a ele, O Libertador, periódico em que esse hino foi
pela Exmª Srª D. Josefina e D. Angela de Bulhões, com acompanhamen- publicado, como assinala Calado (1987/1988).
to do piano, confirmarão os créditos das dignas dillettanti.
A Phil’larmonica em nenhuma das peças do concerto acompanhou mel- A família Albernaz era formada pelo patriarca educador Francisco de Faria Alber-
hor do que no referido duo de Aída. naz e as educadoras-musicistas Emerenciana de Faria Albernaz, Maria de Faria Albernaz
A segunda parte foi aberta pela grande sinfonia do Guarany, executa- e Júlia de Faria Albernaz. No periódico O Publicador Goyano, há anúncio sobre aulas de
do em piano a quatro mãos pelas Exmª Srª D. Josefina e D. Angela de música na casa da família. “As abaixo assinadas oferece-se lecionar musica, canto e har-
Bulhões, que vencendo grandes dificuldades dessa notabilíssima com-
monia em casa das mesmas, e nas das famílias que assim quiserem. Goyas 11 de Janeiro
posição. Foi, sem dúvida, a execução desta peça, que revelou muito es-
tudo, uma das que mais abrilhantou o festival. de 1889. Emerenciana, Maria e Júlia de Faria Albernaz” (ALBERNAZ; ALBERNAZ; ALBER-
Na melodia - Pace, pace mio Dio - da Força do Destino, e na conhecida aria NAZ, 1889: 4). Ou, ainda, “Uma familia offerece-se para lecionar musica, dando lições
da Traviata - Ah!fors é lui che l’anima, as Exmª Srª D. Anna e D. Leonor X. de canto e harmonia. Quem precisar dirija-se a casa de Francisco de Faria Albernaz, rua
de Barros, revelarão, ainda una vez, as suas aptidões artísticas, bem como
direita” (UMA FAMILIA, 1887: 4).
as Exmª Srª D. Angela de Bulhões na ballade - saper vorresti, - e a Exmª
Srª D. Josefina, na cavatina de Margarida, de Hughenotes, de Meyerbeer. N’A Tribuna Livre: Orgão do Club Liberal de Goyaz, do dia 3 de abril de 1880, a famí-
Um dos mais bellos trechos do - Rei de Lahore, a serenata de de [sic] lia é retratada em solenidade na Semana Santa, ao lado de outros membros de famílias
Kaled - Oh! bella innamorata - foi bem interpretada Exmª Srª D Maria N ilustres, como a Xavier de Barros e a Tocantins:
Xavier de Barros. A Exmª Srª D Leonor de Bulhões estreou no acompan-
hamento difícil do dueto -Pur ti rivejo - da Aída, brilhantemente cantada Semana Santa. – Domingo, 28 do passado, terminarão-se as solemni-
pelas Exmª Srª D Josefina e D. Angela de Bulhões, sem que se notasse dades da Semana Santa com a procissão da ressurreição, que teve lugar
defeitos na execução. pelas 4 horas da manhã e missa cantada em seguida. Estas solemni-
O sr. José do P. M. Tocantins, a quem se deve grande parte do concerto, dades forão bem concorridas e animadas, funcionando no côro a mu-
digno de justos encomios, executou bem as duas Strofas de Menphisto- sica da Phil’harmonica, habilmente dirigida pelo professor Tocantins e
les, no Fausto, e a difficillima cavatina do Trovador - Di due figlie vivea, executada pelas Ex.mas Snr.as D. Anna F. Xavier de Barros, Leonor de
padre beato (CORREIO OFFICIAL DE GOYAZ CONCERTO, 1880: 4). Lemos Xavier de Barros, Maria de Nazareth Xavier de Barros, e Anna Ga-
briela do Espirito Santo Marques, acompanhadas em hamonium pelas
Ex.mas Snr.as D. Josépha Candida de Faria Albernaz e Emerenciana
O trecho aponta a demonstração do cultivo de repertório dos renomados autores de Faria Albernaz (A TRIBUNA LIVRE: ORGÃO DO CLUB LIBERAL
da música clássica ocidental, como nas óperas Norma, de Vicenzo Bellini; La Traviata, Il DE GOYAZ SEMANA, 1880: 03).
Trovatore e Aída, de Giuseppe Verdi; Fausto, de Charles Gounoud; Les Huguenots, de Giá-
como Meyerbeer; Il Guarany e Fosca, de Carlos Gomes, entre outras. Na narrativa, pode-se Em outra publicação, do dia 16 de agosto, há notícia de que Emerenciana de Faria
notar a atmosfera civilizatória, quando evoca o talento e o “aperfeiçoamento” dos costu- Albernaz atuava em drama musical em cinco atos, ao lado de mulheres ligadas às famí-
mes, para o “melhoramento da pequena e desconhecida sociedade”. O trecho remete ao lias Xavier de Barros e Souza Fleury.

220 221
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Theatro – Teve lugar, como estava annunciado, a 2a representação, em


Por fim, da família Brandão6, destaca-se o casal Maria Angélica da Costa Brandão,
beneficio da sociedade Emancipadora, do drama em 5 actos – Luiz e
conhecida com Nhanhá do Couto, que era pianista, cantora e professora de música,
da comedia – O diabo atráz da porta. Antes de começar o espetaculo
foi cantado um hymno, pelas Ex.mas Sr.as DI). Anna F. Xavier de e Manuel Luiz do Couto Brandão, cenógrafo e maquiador amador. A sua neta Belkiss
Barros, M. Nazareth X. de Barros, Leonor de L. X. Barros, Emerenciana Spencière Carneiro de Mendonça foi uma pianista renomada e uma das fundadoras do
de Faria Albernaz, Maria do Rozario de Faria Albernaz e Josephina Conservatório Goiano de Música, que originou a Universidade Federal de Goiás e a atual
Candida de Souza Fleury, cuja lettra foi escripta pelo nosso distincto Escola de Música e Artes Cênicas.
amigo o Sr. Dr. Bulhões e a musica pelo insigne e intelligente artista
Sr. Tocantins, A execução agradou summamente a todos que sabem
avaliar o merito artístico de tão distinctas Sr.a A( TRIBUNA LIVRE: 1.2 Pirenópolis
ORGÃO DO CLUB LIBERAL DE GOYAZ THEATRO, 1879: 02). A cidade de Pirenópolis, antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte,
Uma outra importante família de músicos na cidade foi a de Antônio Martins de foi fundada em 1727 pelo português Manuel Rodrigues Tomar e elevada à condição de
Araújo, “que era considerado maestro, compositor, flautista, violinista, violonista e con- cidade em 1853. O seu território compreendia Córrego do Jaraguá, Corumbá de Goiás e
siderado o primeiro clarinetista do Estado. Formou um conjunto musical com seus seis Sant’Ana do Rio do Peixe. No último quartel do século XIX7, era o maior arraial da capi-
filhos, que se apresentava em saraus, festas familiares e serenatas” (CRUVINEL, 2007: tania de Goiás, sendo cabeça de julgado e freguesia de Nossa Senhora do Rosário dos
185). Pretos, Nossa Senhora do Monte do Carmo e Nossa Senhora da Lapa, além de ter “um
Outro nome importante da cena musical vilaboense pertencente à família hospício em que residem os frades franciscanos incumbidos das esmolas da Terra Santa.
Marques é Joaquim de Sant’Anna Marques. Foi encontrada em notícia no periódico Al- Tem de quartel duas companhias de cavalaria do 1º Regimento, uma de pardos duas de
manak de Goyaz: Calendário para o anno de 1887 – Compto Ecclesiastico, a publicação de ordenanças” (PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995: 42).
sua contratação como professor de música para a Companhia de Aprendizes Militares Naquele momento, a rivalidade com a antiga capital de Goiás era evidente, já que,
do Batalhão do 20 (PROFESSORES, 1886: 116), criada pelo Decreto 5.205 de 3 de junho “nos primeiros anos da colonização, o arraial de Meia Ponte (Pirenópolis), dotado de con-
de 1887 e instalada, no mesmo ano, no dia 7 de setembro, sob presidência do doutor dições naturais favoráveis, tornou-se tão florescente, que algumas autoridades chegaram
Antero Cícero de Assis, em Vila Boa de Goiás. a sugerir que ele, e não Santana, fosse elevado a vila” (PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995:
Sobre a família Fleury, sabe-se que João Brandão Fleury e Oscar de Pádua Fleury 45). Essa afirmação é ancorada por meio do Documento nº 18, de 1738, do superinten-
foram ativos no Club Bellini, que surgiu como um conjunto de amadores, composto por dente das minas de Goiás, Agostino Pacheco Telles, trazido por Palacín, Garcia e Amado
cordas e flautas. Segundo Rodrigues (1982), o Club Bellini começou com músicos atu- (1995). Os autores destacam que o superintendente enumerou as variadas vantagens de
antes da cena vilaboense, já destacados, como José do Patrocínio Marques Tocantins, Meia Ponte sobre Vila Boa, destacando que aquele teria as melhores águas, além do “cli-
Antônio Martins de Araújo, José Basílio Serradourada, Luiz e Francisco Martins de Araújo ma mais saudável, menor distância desde São Paulo e localização em entroncamento de
e Luiz Godinho. caminhos, o que facilitaria o acesso, a cobrança de impostos e a vigilância mais
eficiente sobre os destinos do ouro” (apud PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995: 45).
Em parte, seguia os moldes dos da Corte, como promover recitais em No campo de produção musical meiapontense, assim como em Vila Boa de Goiás,
residências e em palácio e ministrar aulas a novos instrumentistas.
Suas apresentações não excluíam o belo sexo. Conserva-se até hoje a as famílias dominavam a cena. Jayme (1973) aponta que as famílias, em sua maioria,
tradicional “Serenata do Divino” que era executada pelo Belini (RODRI- possuíam origem portuguesa, sobretudo no que se refere à linha varonil; já as linha-
GUES, 1982: 66). gens femininas procediam, principalmente, da província de São Paulo, com destaque às
cidades de São Paulo, Taubaté, Itu, Sorocaba, Pindamonhangaba, e algumas, de Minas
A família Fleury possuía pianistas com formação sólida. Rodrigues (1982) des- Gerais, mormente do bispado de Mariana. No Quadro 2, constam algumas das famílias
taca a pianista Mariana Fleury Curado, que iniciou os estudos musicais com seu tio, encontradas por meio do levantamento de dados em fontes primárias e secundárias.
João Fleury de Camargo, e era filha da pianista Maria da Glória Gaudí Fleury. Mendonça
(1981) também salienta que o piano mais antigo da então capital de Goiás foi adqui-
6
Maria Angélica da Costa Brandão e Manuel Luiz do Couto Brandão se mudaram para Cidade de Goiás
rido por João Fleury de Camargo para sua filha Mariana Augusta Gaudie Fleury. Outra em 1901. A inserção desta família na pesquisa se deu ao conceito do “Longo século XIX” , cunhado por
pianista de destaque na antiga capital foi Augusta de Faro Fleury Curado, que realizou Hobsbawm (2015), já mencionado.
sua formação musical no Colégio D’Autiel, na França, conforme relata Rodrigues (1982). 7
Segundo “Notícia geral da capitania de Goiás em 1783”, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Seção de
Manuscritos, Códice 16.3.2, citada por Palacín, Garcia e Amado (1995).

222 223
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Família musical Músicos formadores – formação e atuação Fontes As famílias Pereira Vale e Pereira da Veiga são abordadas por Jayme (1973) no im-
musical
portante estudo genealógico Famílias Pirenopolinas. Segundo o autor, a família Pereira
Pereira Vale Custódio Pereira da Veiga – pai Jayme (1973) Vale é descendente do capitão Joaquim Pereira Vale, natural da Cidade de Goiás, filho
Padre José Joaquim Pereira da Veiga Mendonça (1981)
Pereira da Veiga Pina Filho (1986) Borges do alferes José Pereira Vale, proveniente da cidade de Guimarães, arcebispado de Braga,
(1998) Portugal, e de Maria Francisca Castelo Branco.
Cruvinel (2007)
Era capitão Pereira Vale irmão de Úrsula Pereira Vale, casada que foi com
Nascimento José Inácio de Nascimento Mendonça (1981) o cabo de esquadra de Dragões e, ao depois, tenente-coronel Antônio Ra-
Padre Francisco Inácio da Luz Pina Filho (1986) Borges mos Jubé , de cujo consórcio nasceu, em Porto Nacional, o padre Antônio
Antônio da Costa Nascimento (Tonico do Padre) (1998) Pereira Ramos Jubé, que se ordenou em Goiás, pelo bispo D. Francisco
Cruvinel (2007) Ferreira de Azevedo, em 7.8.1842, e ali f., a 29.9.1896 (JAYME, 1973: 219).
Mendonça Silvino Odorico de Siqueira A Tribuna Livre: orgão
Siqueira Vasco da Gama de Siqueira do Club Liberal de Goyaz Nota-se a descendência direta de portugueses da região norte desse país europeu,
João Gonzaga de Siqueira (1880) que teve fluxo migratório crescente para o Brasil a partir da década de 30 do século XIX.
Omerzino Odorico de Siqueira Jayme (1973)
Arlinda de Siqueira Pina Filho (1986)
Jayme (1973) prossegue informando que, no início do século XIX, mais precisamente em
Odilia de Siqueira Borges (1998) 1802, o capitão Pereira Vale se casou com Ana Joaquina Pereira da Veiga, filha de Custó-
Ubirajara de Siqueira dio Pereira da Veiga e de Pertonilha do Amor Divino, filha de Inácio da Silva Leme e de
Sebastião José de Siqueira (Nenzão)
Artemísia de Siqueira
Maria Teresa de Almeida. Na descendência da família, está Custódio Cincinatto Pereira
Agesiliau de Siqueira (Lalau) da Veiga, exímio musicista, ainda segundo Jayme (1973), e José Joaquim Pereira da Veiga,
Natércia de Siqueira precursor do ensino musical em Pirenópolis.
Isabel de Siqueira
Jonas Siqueira
José Joaquim Pereira da Veiga, filho do casal Custódio Pereira da Veiga e de Pe-
Oresres Donizetti de Siqueira tronilha do Amor Divino, foi ordenado pelo bispo dom José Joaquim Justiniano Masca-
Branca de Siqueira renhas Castelo Branco, no Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1799, e retornou para
Gedeão Siqueira
Meia Ponte, onde se dedicou ao sacerdócio e ao magistério.

Pelos seus merecimentos e grande cultura, foi governador da então


Prelazia de Goiás e vigário da vara da comarca eclesiástica de sua terra,
em substituição do vigário Joaquim Gonçalves Dias Goulão. Grande mu-
Pina Braz Luiz de Pina Jayme (1973) sicista, ministrou aulas de música a diversos meiapontenses e fundou a
Teodolino Graciano de Pina Pina Filho (1986) primeira orquestra de sua terra. Faleceu esse ilustre brasileiro, a 11 de
Teodoro Graciano de Pina Cruvinel (2007) dezembro de 1840, sepultado junto da porta [lado externo] principal da
José Odilon de Pina Matriz de Pirenópolis (JAYME, 1973: 233-234).
Joaquim Propício de Pina

Baptista Paulo Antônio Baptista Jayme (1973) Joaquim Gonçalves Dias Goulão é considerado o músico mais antigo de Pirenó-
Emídio Baptista da Ressureição polis, sendo também um dos pioneiros da instrução pública em Goiás; notabilizou-se
Cunha Telles José Inácio da Cunha Teles Jayme (1973) como “mestre Régio de gramática latina” em Meiaponte e foi o sucessor do poeta Barto-
José Rafael da Cunha Teles lomeu Antônio Cordovil, primeiro professor público da então capitania de Goiás.
Mendonça (1981) destaca que o padre José Joaquim Pereira da Veiga também era
Quadro 2: Famílias musicais de Pirenópolis no século XIX. Fonte: Elaborado pela autora. professor de latim e de desenho. A autora complementa que se supõe que muitas com-
posições sejam de sua autoria, sabidas por fontes orais, e que o padre teria trazido, do
Rio de Janeiro, uns dramas intercalados de árias, os quais eram denominados de “ópe-
ras”, por ocasião das festas do Divino.

224 225
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Essas árias foram musicadas em Meia Ponte, julgando uns que pelo cimento, responsável pela criação de uma orquestra e da Corporação Musical Euterpe.
próprio Vigário da Vara; outros já créem que ele tenha designado pes-
Por sua vez, padre Francisco cuidou da formação musical do seu irmão, Antônio da Costa
soas para fazê-lo.
Esses dramas são representados durante a festa do Divino, conforme do Nascimento (1837- 1903), conhecido pelo apelido Tonico do Padre, mestre de músi-
manda a tradição, apesar dos longos diálogos e grande número de ca. Segundo Pina Filho (1986), Tonico do Padre era exímio compositor, deixando para a
árias, alguns com até oito atos! Os ensaiadores atuais têm omitido tre- posteridade aproximadamente 400 títulos de obras musicais; além da criação musical,
chos, sem contudo, desvirtuarem as obras (MENDONÇA, 1981: 101). atuou como diretor musical de igreja, exercendo também a atividade de professor. O
autor (1986) complementa que seus alunos mais destacados foram Joaquim Propício
O Conjunto Musical de Meia Ponte, com formação de um pequeno grupo vocal e de Pina, igualmente pertencente à família de músicos pirenopolinos, que fundou a Banda
quarteto clássico, como destacou Jayme (1973), foi dirigido por padre José Joaquim Pereira de Música Phoenix, e Silvino Odorico de Siqueira, mestre da Banda de Música Euterpe.
da Veiga. Ainda em conformidade com Mendonça (1981), especula-se que o início desse A família Mendonça, considerada por Jayme (1973) como ilustre e numerosa, foi
conjunto tenha sido em 1805, e a direção do quarteto tenha sido entregue a um dos alu- iniciada pelo tenente João Bonifácio de Mendonça e Gouveia. Seus pais eram paulistas,
nos de padre Veiga, o violinista Paulo Antônio Baptista. O quarteto era formado por Paulo oriundos de São Paulo e Taubaté, já seu avô paterno era natural de Algarve, Portugal.
Antônio Baptista, primeiro violino; Emídio Baptista da Ressureição, segundo violino; José O major Silvino Odorico de Siqueira, pertencente à família Mendonça, exerceu
Inácio do Nascimento, viola; e padre João, violoncelo. O quarteto teria durado até 1840, diversas funções públicas. Jarbas Jayme (1973: 47) o descreve da seguinte maneira:
com o falecimento do padre Veiga, segundo informação de Pina Filho (1975).
Borges (1998) acrescenta que, além de formar novos músicos, o padre Veiga intro- Maestro, e dos mais competentes, dirigiu durante mais de quarenta anos,
a corporação musical “Euterpe”, hoje extinta. Dessa corporação fizemos
duziu o teatro em Meia Ponte e que, dessa vila, irradiou para Vila Boa de Goiás e Bon-
parte, havendo sido ele o nosso guia, o nosso mestre, na arte dos sons.
fim, atual Silvânia. Sobre a temática, Pina Filho (1975) destaca que as representações Insubstituível é a voz grave do major Silvino, no coro, por ocasião das
teatrais e musicais tinham lugar na casa do padre Veiga, que possuía espaço necessário solenidades da Semana Santa e da Festa dos Passos. Foi escultor, pintor,
para tais atividades. Nela, foi iniciado um reduto artístico-cultural de Meia Ponte, que relojoeiro e ourives, de renomada habilidade. Em 28.4.1877, casou com
perdurou por mais de um século e influenciou várias cidades goianas. O padre Veiga Natália de Pina, filha do capitão Antonio Luiz de Pina e de Ludovina Al-
ves de Amorim. Cidadão prestante, honrado e extremamente zeloso de
teve alunos ilustres, como Paulo Antônio Baptista, Emídio Batista da Ressurreição e José seus deveres, era muito popular, sem se haver vulgarizado. Maneiroso e
Inácio do Nascimento. acessível a todas as classes sociais, sua morte, ocorrida em 11.2.1935, foi
O trabalho de outra família, Rodrigues Nascimento, descendente de paulistas, con- muito sentida pelo povo de nossa terra […] (JAYME, 1973: 47).
tribuiu de forma decisiva para o desenvolvimento cultural do vilarejo de Meia Ponte. O
professor José Inácio do Nascimento (1787-1850), patriarca dessa família, foi considera- O autor (1973) ainda afirma que o major Silvino Odorico de Siqueira teve seis filhas
do um grande artista da região. e seis filhos músicos, sendo que as primeiras foram perfeitas conhecedoras da arte dos
sons, cantoras de festas religiosas. O maestro Silvino deixou os seguintes descendentes:
No magistério, foi mestre de outros mestres; na música, foi instrumen- Omerzino Odorico de Siqueira (14/01/1878-08/08/1914), que tocava requinta e saxo-
tista do conjunto musical erudito que existiu no início do século XIX,
fone; Arlinda de Siqueira (22/11/1879-21/04/1925), grande musicista, que fazia parte do
compositor e regente da Orquestra e coro da Matriz; no teatro, atuou
como diretor, embaixador e ator, atuações que lhe deram um destacado coro nas festas religiosas; Odilia de Siqueira (19/08/1881), cantora nas festas religiosas;
papel cultural na vida de Goiás (PINA FILHO, 1986: 2). Vasco da Gama de Siqueira (12/11/1885), maestro e compositor; Ubirajara de Siqueira
(19/01/1915), musicista de renome; Sebastião José de Siqueira (Nenzão) (03/05/1917),
Ele pertenceu ao conjunto instrumental dirigido pelo padre José Joaquim Perei- que executava com perfeição o saxofone; Artemísia de Siqueira (13/06/1888), musicista,
ra da Veiga (1770-1840), convivendo com os músicos Hilário dos Santos Silva (17??- que fez parte do coro da Corporação Euterpe; Agesiliau de Siqueira (Lalau), maestro e
1815), Manoel Joaquim Batista (17??-1850) e outros considerados da segunda geração compositor de grande projeção, que tocava cornetim e requinta e se dedicou à pintura
de meiapontenses, conforme realça Pina Filho (1986). e à escultura; Natércia de Siqueira (26/08/1893), pintora e escultora, além de musi-
A tradição musical familiar, ou seja, o capital cultural herdado, pelo viés bourdieu- cista; Isabel de Siqueira (25/08/1983), cantora da Euterpe; Jonas Siqueira (11/07/1897),
siano, proporcionou que outros membros dessa família se dedicassem ao estudo e ao músico consagrado e relojoeiro; Oresres Donizetti de Siqueira (22/01/1901), musicista;
ofício musical, como padre Francisco Inácio da Luz (1821-1879), primeiro filho de Nas- Branca de Siqueira, cantora em festas religiosas; Gedeão Siqueira, clarinetista.

226 227
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

No periódico A Tribuna Livre: Orgão do Club Liberal de Goyaz, de 1879 e 1880, en- Seu arquivo de música religiosas e profanas, inclusive teatrais, era ad-
mirável e bem acondicionado, graças ao espírito de organização do
contramos anúncios mencionando a casa do senhor João Gonzaga de Siqueira como saudoso maestro Propício de Pina. Contava a “Phenix” em 1943, cinco-
ponto de referência para a busca do professor de música Antonio Luiz de Faria Leite. enta (sic)[sic] e sete instrumentos bem conservados e funcionava com
dezoito, vinte e até vinte e cinco músicos, e sete ou oito cantoras, nas
Em caza de João Gonzaga de Siqueira. Vende-se á preço commodo: papel solenidades religiosas. (JAYME, 1971: 254).
de musica, album para copiar musicas, caixas redondas de musicas, gai-
tas de sopro – para creança, sortimento completo de cordas para violão,
caixas de costura com musica – (alta novidade!!!) (EM CAZA, 1880: 4). Outros músicos encontrados foram Paulo Antônio Baptista e Emídio Baptista da
Ressureição e José Inácio da Cunha Teles e José Rafael da Cunha Teles, das famílias Ba-
Ou para vendas de artigos musicais, tais como papel pautado, álbum para copiar tista e Cunha Teles, respectivamente. Foram encontrados, no periódico A União: órgão
músicas, gaitas de sopro, cordas para violão, entre outros artigos, como se lê a seguir: do Partido Conservador, membros da família Cunha Moraes que encomendaram missa
“Antonio Luiz de Faria Leite, vulgo – bembem –, ensina, por modico preço, elementos de para o aniversário de morte de Sebastião da Cunha Moraes. Porém, não é mencionada
musica vocal e instrumental. Pode ser procurado em caza do Sr. João Gonzaga de Siquei- a presença de música.
ra, onde está rezidindo” (PROFESSOR, 1879: 4).
Outro periódico, A União: órgão do Partido Conservador, publicado em 1888, men- Salvador da Cunha Moraes e Affonço da Cunha Moraes, mandão [sic]
celebrar uma missa na capella de Nossa Senhora do Rosário, no dia
ciona a realização de uma missa de um ano da morte do senhor tenente coronel Manoel
13 deste pela 7 horas da manhã anniversario do passamento de seu
Sardinha de Siqueira, e na ocasião as pessoas escravizadas que serviam a ele foram querido e sempre lembrado irmão Sebastião da Cunha Moraes. Pedem
libertas por sua viúva e filhas: respeitosamente a todos os amigos e parentes do finado para assistir
esse acto de caridade (A UNIÃO: ÓRGÃO DO PARTIDO CONSERVADOR
A entrega solemne dessas cartas effectuou se na capella de N. S. do Ro- (GO)SALVADOR, 1888: 4).
sário, logo após missa, com libera-me, em sufftagio da alma do finado,
mandada celebrar por seu filho e nosso digno amigo João Gonzaga de
Siqueira. As famílias Mendonça, Siqueira e Pina têm origens comuns e misturam-se nas
As cartas de Maria, Januaria e Amelia forão entregues pelo celebrante suas ramificações. A família Mendonça é proveniente de Algarve, Portugal, como já des-
da missa Frei Manoel, que depois de salientar a magnitude dos senti- tacado; a família do ramo Siqueira tinha linhagem nobre, com brasão “com campo azul,
mentos da familia do morto solenizando o seu primeiro anniversario cinco viveiros de ouro, postos em santor. Elmo de prata aberto”, segundo Silva Leme, ci-
com um acto nobre e eloquente, exhortou-as a inaugurarem novo regi-
me da liberdade, uma vida recta e probidosa , não esquecendo nunca o tado por Jarbas Jayme (1973). Esse autor, em sua antológica obra Famílias Pirenopolinas,
immenso favor alcançado. (A ENTREGA SOLEMNE, 1888: 3). destaca inúmeros musicistas dessa família, como: major Silvino Odorico de Siqueira e
Natália de Pina, esposa; Vasco da Gama Siqueira, filho do major Silvino Odorico de Si-
queira e Natália de Pina; Eufenia de Pina, filha de Sebastião Pompeu de Pina e de Maria
Outra família tradicional pirenopolina é a Pina. Os irmãos Braz Luiz de Pina, Teo- Cristina d’Abadia Mendonça; Rosaura d’Abadia Mendonça (Lalá), casada com professor
dolino Graciano de Pina e Teodoro Graciano de Pina participaram da segunda Orques- Joaquim Propício de Pina, filho do capitão Antonio Luiz de Pina e de Ludovina Alves de
tra Musical de Pirenópolis, criada pelo padre Francisco Inácio da Luz. Segundo Jayme Amorim; e Sebastião Pompeu de Pina, irmão de Joaquim Propício de Pina.
(1971), essa orquestra fez época por tocar trechos de óperas de Bellini, Rossini, Bee-
thoven, entre outros compositores relevantes na música ocidental coeva. “Nas músicas 1.3 Corumbá de Goiás
religiosas, o capitão Braz Luiz de Pina e seu irmão, capitão Teodoro Graciano de Pina que Na cidade de Corumbá de Goiás, a vida musical é marcada pelas bandas musi-
cantava baixo, com voz forte e muito grave, auxiliavam à orquestra” (JAYME, 1971: 248). cais. A União Corumbaense foi fundada, em 1866, pelo padre Manoel Inocêncio, ex-
Figura de destaque, nessa família e no campo de produção musical da Pirenópolis tinta em 1870 e, posteriormente, reorganizada em 1874, denominada 14 de Julho, em
oitocentista, foi Joaquim Propício de Pina, aluno de Tonico do Padre e fundador da banda homenagem à Queda da Bastilha, conforme assinala Curado (2016). O autor esclarece
Phoenix. Jayme (1971) afirma que, de janeiro de 1892 a agosto de 1943, Propício de Pina que os corumbaenses tocavam piano, rabeca, violoncelo, concertina, sanfona, violão,
ministrou aulas de música de forma gratuita, sem nenhum auxiliar, nem mesmo para o cavaquinho e viola caipira, e, nas festas religiosas, havia a presença de teatro, dança
trabalho no arquivo musical. e música.

228 229
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

A Corporação Musical 13 de Maio, nominada em memória da Abolição da Escrava- Segundo Jayme (1973), a família Curado é descendente do tenente José Gomes
tura, foi criada em 1890 por Antônio Felix Curado, conhecido por Felinho, filho do coronel Curado, natural de Quintão, priorado de Crato, bispado de Coimbra, Portugal. Em pesqui-
Luiz Fleury de Campos Curado. Para sua formação, Felinho convidou José Gomes Gerais, sa no acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, encontramos, no periódico
maestro da banda do padre Simeão Lopes na Fazenda Babilônia, município de Pirenópolis. O Publicador Goyano (1885), a menção de membros da família de músicos Fleury Curado.

A primeiro de fevereiro de 1890, na casa de Luiz Fleury situada na es- Luiz Fleüry de Campos Curado. —Francisco H. Fleüry Curado,— Joaquim
quina do Largo da Matriz (hoje Praça Com. Antônio Félix) com o Largo Fleury Curado,—Anua das Dores Curado Fleury,—Maria das Dores Curado
da Cadeia (atual Praça da Matriz), Gerais começou a lecionar música Fleury,—Maria Joaquina Fleury Curado,—- César Augusto Gáudio Fleu-
para Luiz Augusto, José da Trindade, Tito Lívio e Euzébio Ceciliano Cura- ry,—Antônio Felix Curado,—José da Trindade Curado e Tito Livio Cura-
do (filhos de Luiz) e para Anastácio da Costa Campos, Manoel Pacífico do,— irmãos, cunhados e sobrinhos do coronel João Fleury de Campos
Mesquita, Custódio Cincinato da Veiga e Sebastião Correa de Lima Curado, fallecido na capital a Io do corrente, cordialmente agradecem a
(CURADO, 2016: 2). todas as pessoas que se dignarão concorrer a Missa do 7o dia celebrada
na Igreja Matriz d’esta Villa era sufFragio da alma do fallecido e espe-
cialmente o fazem com referencia ao Revm Vigario Simeão Estellyta
Ainda segundo o autor, na estreia da Corporação Musical 13 de Maio, tocaram os Lopes, a quem se coiifessão eternamente gratos. Villa do Corumbá, 8 de
seguintes músicos: Antônio Félix Curado, clarinete; José Gomes Gerais, requinta; Tito Outubro de 1885. (O PUBLICADOR GOYIANO, 1885: 4).
Lívio Curado, trombone; José da Trindade Curado, oficleide; Sebastião Correa Lima, sa-
xhorn; Anastácio da Costa Campos, saxhorn; Custódio Cincinato da Veiga, barítono; Luiz Nota-se que as famílias musicais de Corumbá de Goiás também possuem relação
Augusto Curado, contrabaixo; Euzébio Ceciliano Curado, caixa; Manoel Pacífico Mesqui- de parentesco entre si, corroborando o princípio da prática musical como um viés de
ta, prato e, provavelmente, João de Moraes Fleury, bumbo. sociabilização e reforço de laços sociais e afetivos.
Os Curado, Fleury Curado e Campos são importantes famílias musicais estabeleci-
das em Corumbá de Goiás, como se lê a seguir: 2. Famílias musicais em Goiás: apontamentos finais
A partir da coleta parcial de dados, já se constata a presença das famílias musicais
Família musical Músicos formadores – formação e atuação musical Fontes como propulsoras do campo de produção musical das cidades goianas no século XIX.
Os processos de formação do Estado português e de colonização de outros territórios
Curado Antônio Felix Curado (coronel Felinho) O Publicador Goyano deram-se por meio das “casas portuguesas” e das famílias, sendo que os investimentos
João Fleury de Campos Curado (1885: 4)
Fleury Curado Luiz Fleüry de Campos Curado Jayme (1973)
em música se deram, sobretudo, pela força do habitus cortesão bragantino, como abor-
Luiz Augusto Curado Curado (2016) dado por Cruvinel (2018, 2022).
Euzébio Ceciliano Curado Através do capital cultural herdado, a música foi e é adquirida no ambiente fa-
Francisco H. Fleüry Curado
Joaquim Fleury Curado
miliar. No contexto goiano oitocentista, não foi diferente: os conjuntos musicais, não
Anual das Dores Curado Fleury raro, eram formados pelas famílias que dominavam culturalmente e economicamente
Maria das Dores Curado Fleury determinada sociedade. A prática e a difusão social davam-se em espaços diversos: nas
Maria Joaquina Fleury Curado
César Augusto Gáudio Fleury
igrejas, nos teatros, nos salões, nas casas de famílias, nas bandas, nas festas oficiais ou
Antônio Felix Curado populares, em contexto tanto urbano quanto rural.
José da Trindade Curado A presença feminina nas diversas cenas musicais no século XIX, sobretudo na
Tito Lívio Curado
Rosa Augusta de Moraes Fleury Curado (1867-1944)
antiga capital do estado, Cidade de Goiás, com quantidade significativa de mulheres
Ewerton Humboldt Fleury Curado (1894-1925) protagonizando a cena musical da cidade, foi observada.
Odilon Kneipp Fleury Curado (1898-1980) Espera-se que este capítulo, como resultado parcial de pesquisa em andamento,
Joaquim de Moraes Curado (1879)
já possa contribuir para o entendimento de como os campos de produção musical nas
Campos José Vicente da Costa Campos (1860) Jayme (1973) cidades abordadas operavam, a partir das famílias que tinham, na prática musical, uma
Manoel Inocêncio da Costa Campos Neto Curado (2016)
forma de sociabilidade, mas também de domínio e reprodução de poder local.
Anastácio da Costa Campos

Quadro 3: Famílias musicais de Corumbá de Goiás. Fonte: Elaborado pela autora .

230 231
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

Referências BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: CATANI, A.; NOGUEIRA, M. A.
(org.) Escritos de educação. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b. p. 79-88.
A ENTREGA SOLEMNE [...]. A União: órgão do Partido Conservador, Goiás, n. 11, 6 abr.
1888. Noticiario, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria
aspx?bib=716790x&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=3\. Acesso em: 02 fev. 2023. do sistema de ensino. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2014a.
ALBERNAZ, Emerenciana de Faria; ALBERNAZ, Maria de Faria; ALBERNAZ, Jú-
lia de Faria. As abaixo assignadas. O Publicador Goyano, Goiás, n. 203, 12 jan. 1889. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura.
Secção livre, p. 4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014b.
aspx?bib=716774&p&pagfis=608. Acesso em: 2 fev. 2023.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura.
BENÇAO de imagem. Correio Official de Goyaz, Goiás, n. 13, 20 fev. 1875. Noticiario, Florianópolis: Editora da UFSC, 2014b.
Noticias locaes, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader. aspx?
bib=167487&pasta=ano%20183&pesq=Musica&pagfis=1795. Acesso em: 2 fev.2023. CALADO, Maria Augusta. Antônio Félix de Bulhões Jardim. Revista Goiana de Artes, [Goi-
ânia], v. 8/9, n. 1, p. 31-58, jan./dez. 1987/1988.
BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem no Planalto Central: eco-história do Dis-
trito Federal: do indígena ao colonizador. 2. ed. Brasília: Verano, 2000. CONCERTO musical. Correio Official de Goyaz, Goiás, n. 89, 17 nov. 1880. Noticiario, p. 4.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=167487&Pesq=
BOAVENTURA, Deusa Maria Rodrigues. Urbanização em Goiás no século XVIII. Tese (Dou- Musica&pagfis=3587. Acesso em: 02 fev. 2023.
torado em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arqui-
tetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. CRUVINEL, Flavia Maria. O habitus cortesão bragantino nos trópicos: a formação musical
como estratégia de reprodução do poder monárquico no Rio de Janeiro oitocentista.
BOCAYUVA: ORGÃO REPUBLICANO E DOS INTERESSES GERAES DA PROVINCIA (GO) - Tese (Doutorado em Educação) -– Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018.
1883 Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=734985
Acesso em: 15 jan. 2023. CRUVINEL, Flavia Maria. Música e Poder: o habitus cortesão bragantino nos trópicos.
Curitiba: Appris, 2022.
BORGES, Maria Helena Jayme. A música e o piano na sociedade goiana (1805-1972). Goi-
ânia: Funape, 1998. CRUVINEL, Flavia Maria. O panorama da educação musical em Goiás: aspectos histó-
ricos e socioculturais. In: OLIVEIRA; A.; CAJAZEIRA, R. (org.). Educação musical no Brasil.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2. ed. rev. São Paulo: Zouk, Salvador: P&A, 2007. p. 183-188.
2013a.
CURADO, Ramir. Corporação Musical 13 de Maio, surgimento e consolidação. BandaLab,
BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. [Goiânia], 2016. Disponível em: https://www.bandalab.com/_files/ugd/21ef81_598d0e3
aa9c94a7c948cedd98ebb4c9f.pdf. Acesso em: 03 abr. 2023.
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuindo para a economia dos bens sim-
bólicos. São Paulo: Zouk, 2002. DIAS, Angelo. Música de exéquias em Vila Boa de Goyaz: contextualização de uma cole-
ção de manuscritos. Revista Música Hodie, Goiânia, v. 9, n. 1, p. 53-65, 2010.
BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
ELIAS, Nobert. O processo civilizador: uma história de costumes. 2. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1994. v. 1.

232 233
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

EM CAZA de João Gonzaga de Siqueira. A Tribuna Livre: orgão do Club Liberal de Goyaz, PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. Antônio da Costa Nascimento (Tonico do Padre):
Goiás, n. 1, 3 jan. 1880. Annuncios, p. 4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocRea- um músico no Sertão brasileiro. Revista Goiana de Artes, Goiânia, v. 7, n. 1, p. 1-24, 1986.
der/DocReader.aspx?bib=717592&pagfis=205. Acesso em: 2 fev. 2023.
PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. A música em Goiás. Revista Cultura, Brasília, ano 4,
FALLECIMENTO. A Tribuna Livre: orgão do Club Liberal de Goyaz, Goiás, n. 85, n. 16, jan./mar. 1975.
p. 1, 4 out. 1879. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.
aspx?bib=717592&pagfis=159. Acesso em: 2 fev. 2023. PINA FILHO, Braz Wilson Pompeu de. Antônio da Costa Nascimento (Tonico do Padre):
um músico no Sertão brasileiro. Revista Goiana de Artes, Goiânia, v. 7, n. 1, p. 1-24, 1986.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2015. PINTO, Marshal Gaioso. A música nas irmandades de Goiás. Revista Brasileira de Música,
Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 321-333, jul./dez. 2012.
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. 6. ed. Rio de Janei-
ro: Paz e Terra, 1997. POHL, Johann Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Tradução de. Milton Amado e
Eugênio Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo
JAYME, Jarbas. Esboço histórico de Pirenópolis. 1. ed. póstuma. Pirenópolis: Estado de Edusp, 1976.
Goiás, 1971.
PROFESSOR de musica. A Tribuna Livre: orgão do Club Liberal de Goyaz, Goiás, n. 91,
JAYME, Jarbas. Famílias pirenopolinas: ensaios genealógicos. 1. ed. póstuma. Pirenópolis: 15 nov. 1879. Annuncios, p. 4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/Do-
Estado de Goiás, 1973. v. 1. cReader.aspx?bib=717592&pagfis=185. Acesso em: 2 fev. 2023.

LARINDO, Aparecida Macedo. José do Patrocínio Marques Tocantins (1844-1889): tra- PROFESSORES. Almanak de Goyaz: calendário para o anno de 1887 – compto ecclesias-
jetória de um afrodescendente na Província de Goiás no século XIX. Dissertação tico, GOIÁS, n. 1, 30 out. 1886. Companhia de Aprendizes Militares, p. 116. Disponível
(Mestrado em História) - Escola de Formação de Professores e Humanidades, em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=707180&pagfis=115.
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2017. Acesso em: 2 fev. 2023.

MENDONÇA, Belkiss Spencière Carneiro de. A música em Goiás. 2. ed. Goiânia: Editora RODRIGUES, Maria Augusta Calado de Saloma. As modinhas em Vila Boa de Goiás. Goiâ-
da UFG, 1981. nia: Editora UFG, 1982.

MOREYRA, Yara. Música nas folias de Reis “mineiras” de Goiás. Revista Goiana de Artes, RORIZ, Maria Lúcia Mascarenhas Pina e. Concerto dos sapos: um patrimônio musical
Goiânia, v. 4, n. 2, p. 173- 188, 1983. goiano. Dissertação (Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural) - Instituto Goiano de
Pré-História e Antropologia, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2005.
O PUBLICADOR GOYANO, 17 de outubro de 1885 (Sábado) 1885/34. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=716774&p&pagfis=1 Acesso SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. São Paulo: Ed. Itatiaia/Edusp,
em: 2 fev. 2023. 1975.

PALACÍN, Luis. Coronelismo no extremo norte de Goiás. Goiânia: UFG, 1990. SALVADOR da Cunha Moraes [...]. A União: órgão do Partido Conservador, Goiás, n. 11,
6 abr. 1888. A pedido, p. 4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.
PALACÍN, Luis. O século do ouro em Goiás. Goiânia: Oriente, 1979. aspx?bib=716790x&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=4. Acesso em: 2 fev. 2023.

PALACÍN, Luis; GARCIA, Ledonias Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em docu-
mentos: I. Colônia. Goiânia: Editora da UFG, 1995.

234 235
Famílias musicais em Goiás no século XIX: reprodução de poder via capital cultural herdado Flavia Maria Cruvinel

SCHWARCZ, Lilia Moritz; COSTA, Angela Marques da Costa. Como ser nobre no Brasil.
In: SCHWARCZ, L. M. As barbas do imperador: d. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 159-205.

SEMANA Santa. A Tribuna Livre: orgão do Club Liberal de Goyaz, Goiás, n. 14, 3 abr.
1880. Secção de noticias, p. 3. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocRe-
ader.aspx?bib=717592&pagfis=256. Acesso em: 2 fev. 2023.

SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. A Era dos Barracões: uma abordagem histórico-social da
ópera em Pirenópolis – século XIX. Dissertação (Mestrado em Música) -– Escola de
Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1998.

SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Paixões em cena: a Semana Santa na Cidade de Goiás (sécu-
lo XIX). Tese (Doutorado): Brasília: ICH, Unb, 2007.

SPIX, Jonhann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil:
1817-1820. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. v. 2.

THEATRO. A Tribuna Livre: orgão do Club Liberal de Goyaz, Goiás, n. 78, 16 ago. 1879.
Secção de noticias, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.
aspx?bib=717592&pagfis=132. Acesso em: 2 fev. 2023.

UMA FAMILIA offerece-se. O Publicador Goyano, Goiás, n. 102, 5 fev. 1887. Se c-


ção livre, p. 4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.
aspx?bib=716774&p&pagfis=408. Acesso em: 2 fev. 2023.

VIEIRA, Joelson Pontes. Bandas de música militares: performance e cultura na cidade de


Goiás (1822-1937). Dissertação (Mestrado em Música na Contemporaneidade) - Escola
de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2013.

236 237
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro

O guarda-noite: a vanguarda
de Estercio Marquez Cunha em
Goiás com sua música-teatro
Lucas Manassés
Universidade Federal de Goiás

Luiz Gonçalves
Universidade Federal de Goiás

238
7 como citar
MANASSÉS, Lucas; GONÇALVES, Luiz. O guarda-noite: a
vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua
música-teatro. In: SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL,
Flavia Maria (ed.). Centro-Oeste. Vitória: Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023.
p. 238-267. (Histórias das Músicas no Brasil).
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

1. Introdução estado. Esse cenário nos fornece diversos indícios do ambiente que constitui o berço
Estercio Marquez Cunha, nascido em 1941 em Goiatuba, Goiás, tem, em seu repertório cultural do compositor.
de composições, obras para instrumentos solo e outras diversas formações de música O interesse pela música entra em sua vida pelo gosto pela “música caipira” oferta-
de câmara, orquestra e coro. É também autor de trilhas sonoras para filmes de curta- da na rádio – ouvida às escondidas por não ser um gênero bem-visto em seu ambiente
-metragem e peças de teatro, além de um extenso número de – adotando a terminolo- familiar. Sua relação com a música moderna é igualmente nutrida pela experiência
gia do próprio compositor – “músicas-teatro”. Também tem seu reconhecimento no meio radiofônica, quando, no único dia inteiro dedicado à transmissão de “música clássica”,
musical goiano, expresso em várias situações, mas com destaque para a realização do na Sexta-Feira da Paixão, ele vem a escutar atentamente a Sagração da primavera. Essa
36º Festival Nacional de Música (Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Fe- experiência acaba sendo responsável por sua “primeira ‘sacudida’ musical” (ALCÂNTRA,
deral de Goiás – EMAC-UFG) em homenagem à Estercio, além da gravação do CD Lento 2021: 6). Não sabendo que se tratava da icônica obra de Igor Stravinsky durante o mo-
acalanto, ambas inteiramente dedicadas à sua obra. O recebimento do Troféu Jaburu, mento da escuta, o jovem corre à estação de rádio para descobrir o que ouvira. Cons-
a mais importante honraria concedida, anualmente, pelo Governo do Estado de Goiás, ciente do que se tratava e movido pelo desejo de escutar a obra mais vezes, Estercio
e a participação do compositor na comissão de elaboração do Currículo Mínimo em torna-se, então, frequentador de uma discoteca da cidade, que tinha essa e outras obras
Educação Artística no Ensino de 1º Grau (da Superintendência de Ensino Fundamental em seu catálogo.
do Estado de Goiás) demonstram sua estima na esfera pública. Já no que tange à prática musical, apesar de poder ser retraçada ainda na infância
Apesar dessa notoriedade local e mesmo sendo autor de um catálogo de obras do compositor, através das aulas particulares de piano na casa de Dona Amélia Brandão
expressivo, Estercio é ainda um compositor muito desconhecido, com obras ainda “pou- Neri (Tia Amélia) – utilizadas como uma desculpa para o acesso à casa e às brincadeiras
co executadas fora do círculo de músicos próximos ao compositor” (GONÇALVES, 2014)1. com os netos da pianista –, essa entra de fato em sua vida mais tarde, na adolescên-
Por essa razão, parece-nos justo tecer algumas linhas acerca de sua trajetória biográfica. cia. Nessa fase, Estercio tem acesso à música de forma abundante, sobretudo no Lyceu
Dado que outros trabalhos já o fizeram2, procuraremos ser breves em tal empreitada, (tradicional colégio da cidade), onde tem aulas de teoria musical, além de prática do
sem deixarmos de nos ater aos momentos em que sua biografia é marcada pelo desen- coro orfeônico com Joaquim Edison de Camargo3; e piano com Nize de Freitas (Dona
volvimento de seu interesse em relação à música-teatro. Nizinha4), a fim de se preparar para o antigo Conservatório Goiano de Música. Uma
Estercio, cidadão goiano, tem raízes em diferentes lugares do estado. Filho de pai vez admitido, tem aulas de instrumento com a pianista Dalva Maria Freitas Machado
rio-verdense e mãe itumbiarense (ambos municípios do interior de Goiás), nasce em Bragança5 e de teoria e solfejo com Maria Lucy Veiga Teixeira6 (na turma em que trava
Goiatuba (também no interior) em 1941 e, com 1 ano de idade, é transferido junto com
a família para Goiânia, capital recém-criada (1933) para receber a sede do poder do

1
É certo que, à época de lançamento de seu livro Música contemporânea brasileira (1981), Estercio ain-
da era relativamente jovem e ainda menos conhecido, mas o prestigiado musicólogo José Maria Neves,
nesse trabalho, apenas menciona o compositor. Em sua tese de doutorado pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), Marina Machado (2014) faz um levantamento de quase 300 obras para diversas
formações instrumentais, abrangendo os anos de 1960 a 2012. Hoje, esse número é ainda maior, haja
vista que, das seis obras a serem discutidas aqui, cinco datam de anos posteriores ao período abordado
pela pesquisadora. Para se ter uma ideia, tendo como foco obras compostas para trio com piano, Adriana
Lemes Dias Vieira (2013), em sua dissertação, traça um comparativo entre a produção de Estercio e a de
3
O violinista Joaquim Edison de Camargo foi professor no antigo Lyceu goiano, uma das escolas mais
outros 19 compositores brasileiros (dos 40 listados na seleção da Fundação Nacional de Artes – Funar- importantes da cidade. Ali, lecionou teoria musical e dirigia também o canto orfeônico.
te, de 2012). Segundo a pesquisadora: “Verificamos uma produção expressiva de Estercio M. Cunha [sic] 4
Filha do primeiro prefeito de Goiânia, senhor Venerando de Freitas Borges, pianista e educadora musical.
comparada aos compositores brasileiros listados no anexo I. No conjunto de sua obra existem 12 trios
com piano, enquanto a maior produção para a mesma formação foram 8 composições de Roberto Victório” 5
Natural de Uberlândia, a pianista, graduada pelo Instituto Musical de São Paulo, é membra da Academia
(VIEIRA, 2013: 28). Feminina de Letras e Artes de Goiás (AFLAG). É também uma das fundadoras do Conservatório de Música
da UFG. Disponível em: https://www.aflag.com.br/academicas/11-dalva-maria-pires-machado-braganca.
2
Convém citar aqui os trabalhos acadêmicos de Martha Martins Andrade (2000), Marina Machado Gon- Acesso em: 5 mar. 2023.
çalves (2014), Leonardo Victtor de Carvalho (2012) e Eduardo Barbaresco Filho (2015), que, juntamente
com as entrevistas realizadas por Othaniel Alcântara para o jornal A Redação em 2021 (em duas partes) 6
A Dona Fifia, como era conhecida na cidade, foi professora do Estercio nos cursos de teoria musical,
e pelo Música Íntima [em uma série de oito episódios de podcast (2020)], servem como fonte para a solfejo e canto coral. Natural de Goiânia, a também membra da AFLAG e uma das fundadoras do Con-
construção desta sessão. Entrevista ao jornal A Redação disponível em: https://www.aredacao.com.br/co- servatório de Música da UFG (onde foi regente do coral), formou-se pela Universidade de Música de
lunas/153896/estercio-marquez-cunha-e-sua-formacao-inicial-em-musica. Série de podcasts disponível São Paulo e Canto Orfeônico no Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.aflag.com.br/academicas/27-
em: https://open.spotify.com/show/0xFBvTKaRgGYgbDTx4BbcI?si=d085c1771db944cb. -maria-lucyveiga-teixeira. Acesso em: 8 fev. 2023.

240 241
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

contato com o futuro maestro da Orquestra Sinfônica de Goiânia, Joaquim Jayme7). Ali, em detrimento da Escola Nacional de Música11. Por outro lado, se é quem primeiro o
conhece também o maestro Jean Douliez8, que o estimula a escutar os compositores orienta acerca da instituição, a professora Fiúza ainda é responsável pelo curso da vida
clássicos germânicos. acadêmica de Estercio. Tendo ido para se tornar um pianista, é ela quem o instiga a
exercitar e, depois, cursar formalmente a composição, tornando-se sua primeira profes-
2. Vida laboral e formação sora nesse ofício. Isso, gradualmente, o afasta de suas expectativas quanto à carreira de
Analisando a vida laboral de Estercio, esta nos parece estar relacionada à perda relati- concertista e o leva a canalizar seus esforços para a criação12.
vamente precoce dos pais. De fato, Estercio perde seu genitor, Glicério Ferreira Cunha Ao fim dos sete anos no Rio de Janeiro, e recém-esposado de Maria Lucia Marquez
(1913-1942), enquanto ainda recém-nascido, ficando sua criação e a de seu irmão, na Cunha, retorna à capital goiana para assumir o cargo de professor na cadeira de Harmonia
nova vida na capital goiana, inteiramente à cargo da mãe. Na adolescência, após um Superior, Contraponto e Fuga do Departamento de Música da recém-criada Universidade
período como entregador e, depois, telefonista (ambos trabalhos com carteira assina- Federal de Goiás, onde permanece de 1967 até 1995, atuando principalmente nas áreas
da), Estercio se vê convidado ao posto de assistente de sua professora de piano. Daí em de estética e composição musical13.
diante, a docência musical será sempre parte integrante de sua vida. Infortunadamente, Como já foi mencionado, o direcionamento de Estercio para a composição (influen-
logo nos primeiros meses de sua partida para seus estudos musicais no Rio de Janeiro, ciado pela professora Virginia Fiúza) deu-se após sua chegada no Rio de Janeiro, aos 19
em 1960, sua mãe, Estherlina Marquez Cunha (19211960), vem igualmente a falecer, anos de idade, para seus estudos no CMB. Assim, cursa, nessa instituição, primeiramente
e, para sustentar financeiramente a si e ao seu único irmão, Amauri Cunha (1941), Es- piano, seguido de composição e regência. Entretanto, seu período de estudante de piano
tercio é constrangido a recorrer a bolsa de estudos, monitorias e aulas particulares. E, o obrigou a cumprir com um repertório tradicional muito vasto e “que não passava de
nesse ponto, as professoras Elzira Amabile9 e Virgínia Fiúza10 são providenciais. Ambas Debussy” (CUNHA apud FILHO, 2015: 101). Do mesmo modo, como podemos notar em
sempre foram as personagens que colaboraram com o acesso a esses meios de sustento
financeiro. Muito além disso, Amabile é quem primeiro o recebe no Rio de Janeiro,
orientando o jovem Estercio na escolha do Conservatório Brasileiro de Música (CMB),
11
É comum, em biografias ou entrevistas, narrar-se o primeiro encontro entre o jovem Estercio e Elzira
Amabile, sua professora de piano no Rio de Janeiro, e esse relato, em especial, é bastante ilustrativo acer-
ca de traços da personalidade do compositor. Apenas instalado na nova grande cidade, tendo somente
a companhia de seu irmão mais novo, Estercio vai ao encontro da pianista, que ainda não conhecia, mas
7
Conhecido como maestro Joaquim Jayme (1941-2017), desenvolveu também atividades como pianista, com quem conseguira uma audição, graças a uma carta de recomendação de Erico Pieper (um pianista
arranjador, compositor e professor. Também tendo estudado com a Tia Amélia e vindo do interior de alemão amigo de sua mãe). Ao entrar, para seu encontro, nas instalações da Escola Nacional de Música,
Goiás (da cidade de Niquelândia), Jayme tem uma trajetória extensa, da qual destacamos seus estudos Estercio, em vez de tocar para a professora, passa todo o tempo em lágrimas por ter sido repreendido
Koellreuter nos famosos seminários internacionais de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA) (em tom rabugento), momentos antes, simplesmente por entrar no elevador exclusivo de docentes. Essa
e com Cláudio Santoro na Universidade de Brasília (UnB). Como maestro, é responsável direto pela cria- história demonstra bem sua personalidade tímida e, de certa forma, amedrontada. Em contrapartida, a
ção de várias instituições importantes no cenário da música de concerto em Goiás, entre elas, estão, em resposta de Amabile foi notavelmente amável, acolhendo o jovem e iniciando, ali, uma relação de cuida-
destaque, o Coro e a Orquestra Sinfônica de Goiânia, além da Orquestra Filarmônica de Goiás, tendo sido do. É fácil perceber, nos relatos de Estercio, seu apreço especial por personagens que o ajudaram, e eles
regente titular de todas elas. Mais sobre o maestro pode ser encontrado aqui: https://pt.wikipedia.org/ aparecem aos montes em sua história. E, se é certo que “a arte se faz pelo artista, que produz e materializa
wiki/Joaquim_Jayme. sua expressão diante das relações sociais, culturais, da linguagem” (FILHO, 2015: 83) etc., podemos per-
ceber como casos assim revelam não apenas traços de sua personalidade, mas também se associam às
8
Jean François Douliez (1903-1987) foi um músico belga de ampla formação musical, o que o permitiu temáticas recorrentes do compositor (como a solidão, o medo e o desânimo), tratadas por um viés nada
atuar como maestro, instrumentista, compositor e professor. Residiu em Goiânia entre 1954 e 1963, sendo pessimista, mas, pelo contrário, buscando trazer mensagens bastante humanistas.
considerado um dos grandes expoentes da música em Goiás. Disponível em: https://www.aredacao.com.
br/colunas/148972/othaniel-alcantara/jean-douliez-1903-1987-alguns-dados-biograficos.
12
Um breve relato do compositor sobre como Fiúza o teria convidado a cursar composição: “Eu trabalhan-
do com a Dona Virgínia esse tempo todo, claro, aprendi muito mais que os outros de harmonia, contrapon-
9
A pianista Elzira Polonio Amabile (1897-1973) foi professora da Escola Nacional de Música (atual Escola to, essa coisa toda. Ela a certa altura me tacou na lata assim ‘oh você estuda depressa que você vai fazer
de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ), além de fundadora e membra titular do Con- semana que vem o vestibular de composição!’. Foi assim bem na lata” (CUNHA apud FILHO, 2015: 101).
servatório Lorenzo Fernandez. Disponível em (acessado em 15/02/2023): http://institutopianobrasileiro.
com.br/images/view/1437.
13
Nos dois últimos anos de seu período no Rio de Janeiro, depois de graduado, Estercio se torna docente
da rede de ensino do estado da Guanabara, alçado ao cargo via concurso público. Como professor da Uni-
10
Virgínia Salgado Fiúza (1897-1987), nascida no estado do Ceará, foi professora das turmas das quais versidade Federal de Goiás, assume como docente no recém-criado Instituto de Artes (atual EMAC-UFG)
Estercio foi monitor nas disciplinas de Harmonia e Contraponto, no Conservatório Brasileiro de Música – uma vez que, até então, os professores dessa instituição haviam sido admitidos graças à incorporação do
(CBM). Fiúza “residiu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro onde desenvolveu atividades como vice-pre- Conservatório Goiano de Música ou contratados através de indicação, Estercio, supostamente, teria sido o
sidente administrativa e professora das disciplinas de piano, contraponto e harmonia no Conservatório primeiro professor efetivamente contratado através de concurso público. Além disso, atuará como professor
Brasileiro de Música - Centro Universitário. A composição manteve-se presente em sua vida sendo suporte no Departamento de Música da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, e na Faculdade
para a sua prática docente além de escrever livros didáticos de contraponto, harmonia vocal e estrutura- Carlos Gomes de São Paulo, na capital paulista. Sua longa experiência como docente deixará marcas na
ção musical. Pertenceu a Academia Nacional de Música ocupando a cadeira N.17- Pe. José Maurício Nunes gestão estadual de Goiás, ao participar da elaboração e da difusão do Programa Currículo Mínimo para o
Garcia, tomando posse em 1967” (BRAGA, 2009: 70). Ensino Fundamental da Secretaria de Educação do estado, na área de educação artística (1990).

242 243
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

alguns relatos do compositor, assim como nas obras de seu catálogo montado por Gon- composição de Reza, já em 197118, que pretendia evocar as sonoridades sibilantes das
çalves (2014)14, o período de estudos em composição foi bastante tradicionalista, total- rezas antigas, que habitavam a memória do compositor, mas não encontravam meios
mente focado na aprendizagem através de exercícios composicionais sobre as formas expressivos suficientes para sua composição até essa data, como atesta Estercio:
clássicas – Estercio chega a dizer que sua professora, Dona Virgínia, “conhecia muito de
música, muito mesmo, mas o estilo dela terminava no Romantismo” (GONÇALVES, 2015: Eu tentei isso [a composição da obra] durante alguns anos, aí uma so-
noridade que eu tinha comigo que é [...] aqueles sons que eu escutava
87), e, assim, sua instrução para possibilidades técnicas e expressivas não tradicionais
nas rezas, nas igrejas, enquanto menino. Agora, eu adulto [...], pensar
virá posteriormente e de outras fontes. naquele som que eu escutava e falei “puxa vida [...], aquele som na
Dessa forma, mesmo tendo terminado sua formação acadêmica, três anos após seu verdade, a reverberação dos sons das pessoas rezando, ou cantando na
retorno a Goiânia, dá continuidade aos seus estudos na Universidade de Brasília (UnB), igreja, podia aproveitar isso pra fazer música”. E foi uma coisa que eu
onde cursa duas especializações distintas: música brasileira contemporânea para piano demorei muito pra assimilar comigo, pra ver como eu poderia trans-
formar aquilo, organizar aquilo em termos de obra de arte, [...] aquela
e técnica e estética da música de vanguarda. Nesta última, trava importante contato sonoridade (CUNHA apud FILHO, 2015: 107)19.
com os compositores Conrado Silva15 e Gilberto Mendes16.
Gilberto Mendes foi um expoente no trabalho composicional de massas sonoras
no Brasil. Esse tipo de recurso já vinha sendo utilizado por outros grandes compositores Anos depois, já em sua tese, Estercio ainda a define como uma de suas primeiras
em outras partes do mundo, e Mendes se revela um grande pioneiro brasileiro dessa experiências na combinação de música e teatro, sendo uma “obra para grande coro
estética, em obras de suma importância, como o Moteto em Ré menor (Beba Coca-Cola) falando e sussurrando palavras escolhidas pelos próprios intérpretes, assim como em-
(1966) e Santos Football Music (1969). Na primeira peça, é marcante o direcionamento pregando ataques percussivos com pedras. Assim, fui capaz de obter uma massa sonora
da ideia de massas à composição coral, utilizando textos concretistas, feito que será controlada através de improvisações limitadas dos intérpretes” (CUNHA, 1982: 1).
uma das marcas composicionais de Gilberto Mendes, levando-o a compor outras peças, É inegável a importância do contato com Gilberto Mendes para a abertura de
como Nascemorre (1966) e Vai e vem (1969). Notemos que todas essas peças já tinham novos horizontes composicionais para Estercio. Lembremos que o primeiro também
sido compostas antes dos cursos de extensão em Brasília, e elas, bem como suas téc- é conhecido como um compositor do experimentalismo no teatro musical brasileiro,
nicas de escrita, certamente impressionaram Estercio17. Um indício dessa afirmação é a tendo composto, até 1970, suas já citadas Santos Football Music e Vai e vem, entre outras
obras, como Cidade (1964), Son et Lumière (1968) e Atualidades: Kreutzer 70 (1970) (BO-
NIN, 2018). Seria necessário um estudo mais aprofundado tanto dos teatros musicais de
Mendes quanto das músicas-teatro de Estercio, se quiséssemos estabelecer conexões
mais profundas entre ambos os compositores, mas, de qualquer forma, encontramos,
14
Basta verificar a lista entre 1960 e 1967 (e nas obras catalogadas como “estudo de graduação”), presente nas palavras de Estercio, a admiração pela pessoa e pelo trabalho de Gilberto Mendes:
no “Anexo II: Catálogo de obras” da tese de Marina Machado Gonçalves (2014), em que constam pratica-
mente peças para piano e exercícios de contraponto.
Nesse curso [referindo-se às extensões na UnB] também foi onde en-
15
O uruguaio Conrado Silva de Marco (1940-2014) foi um músico, engenheiro acústico e professor. En- contrei pela primeira vez o Gilberto Mendes, que pra mim é o papa da
quanto compositor, é tido como um dos precursores da música eletroacústica no Brasil. Teve contato com Música Brasileira, e [...] que me influenciou muito. [...] [A] leitura que
vários dos grandes nomes da música experimental, como Mauricio Kagel, György Ligeti, John Cage, Pierre eu fiz da obra do Gilberto depois, me influenciou muito, principalmente
Boulez, Henri Pousseur e Karlheinz Stockhausen. Foi professor na UnB, onde travou contato com Estercio.
É também um dos responsáveis pelos Cursos LatinoAmericanos de Música Contemporânea. Mais infor- com as ideias daquilo que é o teatro-música (CUNHA apud FILHO, 2015:
mações em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa223/conrado-silva. Acesso em: 10 fev. 2023. 105-106).
16
“Estudou composição com Claudio Santoro e Olivier Toni. Frequentou o curso Ferienkurse fuer Neue
Musik, em Darmstadt, em 1962 e 1968. Em 1962 criou o Festival Música Nova e em 1963 foi signatário do
Manifesto Música Nova. Pioneiro em música aleatória e concreta no Brasil. Professor convidado na Univer-
sity of Wisconsin-Milwauke entre 1978 e 1979”. Disponível em: https://musicabrasilis.org.br/compositores/
gilberto-mendes. Acesso em: 13 fev. 2023. 18
Eduardo Barbaresco Filho (2015) afirma que essa obra teria sido composta em 1970, enquanto Marina
Gonçalves, em seu expressivo catálogo da obra do compositor, indica ter sido feita em 1971, e, portanto,
17
Em conversa pessoal com o compositor em 2022, Estercio afirmou a forte impressão causada pelo adotaremos a informação da pesquisadora neste trabalho.
contato com as sonoridades, bem como suas novas possibilidades de escrita, encontradas nas obras de
Mendes, mas não se referiu a nenhuma em específico. Traços dessa influência podem ser encontrados em 19
Filho (2015) e o próprio Estercio veem a estreia dessa obra, numa das principais catedrais da cidade, na
algumas obras da década de setenta. Dentre elas, como ficará evidente mais adiante, citamos O guarda- década de 1970, como sendo um marco na história da música em Goiânia, que sempre foi caracterizada
-noite, que aplica extensivamente o uso de massas vocais e recursos gráficos de escrita. por sua “sociedade elitista em moldes europeus da tradição pianística do século 19” (FILHO, 2015: 84).

244 245
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

Estercio, nessas entrevistas a Eduardo Barbaresco Filho (2015), também enfatiza Musicais na Oklahoma University, orientado por Michael Hennagin22. Tendo completado
bastante a influência dos cursos de extensão – que “estavam mostrando aquilo que era seu período de estudos dentro dos quatro anos que sua licença de professor universitá-
vanguarda musical, as possibilidades da vanguarda toda, [...] europeia, brasileira” – e rio permitia (obrigando-o a cumprir créditos também em cursos de verão), retorna à sua
o contato continuado que teve com Conrado Silva, personagem responsável por seu atividade docente no Brasil até a sua aposentadoria.
“acordamento”, por sua “abertura de consciência” (FILHO, 2015: 105). Dessa forma, a UnB Mesmo tendo sido muito intenso, devido às suas obrigações acadêmicas (dado
mostra-se um centro de extrema importância para o desenvolvimento estético de Es- que, entre outros fatores, Estercio obteve suas titulações nesse incomum curto espaço
tercio, sendo ele mais um dos muitos jovens que, nas palavras do musicólogo José Maria de tempo), esse período nos Estados Unidos foi fundamental para o desenvolvimento de
Neves, foram “conquistados para a música experimental”: seu interesse pela exploração cênica de suas obras. A bem da verdade, Estercio já havia
composto ao menos três de suas músicas-teatro antes de sua ida para o exterior: Reza,
Desde que se iniciaram as atividades musicais na Universidade [de Bra- em 1971; O guarda-noite, de 1977; e Tempo, em março de 1978 (pouco antes de sua che-
sília], diversas equipes de trabalho tiveram a responsabilidade de orien-
gada ao novo país) – esta última, de fato, já apresenta um pensamento cênico bastante
tação dos jovens músicos que frequentaram aquela Universidade; e a
orientação estética de cada um destes grupos era tão particular e forte desenvolvido, como podemos notar em sua descrição do compositor:
que, com um mínimo de tempo de ação, poderiam ter nascido em Brasília
importantes escolas de composição, fazendo daquela cidade o centro Tempo é tão visual e dramática quanto musical. Sua intenção é a de
musical que ela nunca chegou a ser. [...] Mesmo assim, muitos jovens usar o humor para confundir a audiência que, esperando por uma obra
compositores que passaram pela Universidade foram definitivamente ‘séria’, encontra participantes vestidos em roupas casuais, um deles está
conquistados para a música experimental (NEVES, 1981: 173-174)20. determinadamente levantando e abaixando uma corrente ao toque do
metrônomo. Ao fim da procissão, os atores passam pela audiência, cada
um, por sua vez, sorrindo e zombando (CUNHA, 1982: 2).
Gilberto Mendes e Conrado Silva tiveram um importante trânsito em solo euro-
peu, e, talvez por influência dos cursos ministrados, o desejo inicial de Estercio era o Todavia, logo no início de seu mestrado, Estercio é estimulado por seu orienta-
de continuar suas pesquisas na Alemanha – e, de fato, o compositor conta que chegou dor a frequentar as classes de teatro do Dr. Carveth Osterhaus23, o que se revelará um
a receber uma bolsa para essa empreitada, mas que esta teria “se perdido” em Brasília. período intenso de aprendizado para o compositor, que, “apesar de não ter dois títulos
Assim, em 1978, tendo recebido uma bolsa Fulbright, segue para os Estados Unidos, a de mestre, cumpriu a carga horária dos dois cursos, composição e teatro” (GONÇALVES,
fim de desenvolver um mestrado em composição musical na Oklahoma City University, 2014: 9).
sob orientação do Prof. Dr. Ray Luke21. Em seguida, com bolsa da Coordenação de Aper- Pelos relatos de Estercio, podemos notar que o período de mestrado (entre 1978
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), é aceito como doutorando em Artes e 1979) foi o mais rico em aprendizado. A relação com Ray Luke e Carveth Osterhaus
revelou-se bastante intensa, e esse tempo lhe proporcionou a realização de óperas e

22
Hennagin (1936-1993) foi um compositor e professor estadunidense. Formou-se no Los Angeles City
20
Na visão de Estercio, sua cidade natal era, de fato, ilhada em relação ao resto do país, e foi a construção College com Aaron Copland, tendo também estudado música eletrônica na Southern Illinois University.
de Brasília que começou a conectar o goiano ao universo cultural nacional. Com a UnB, não foi diferente. Foi compositor em residência na University of Oklahoma, universidade em que atuou também como pro-
Com efeito, desde sua criação, em 1962, o Departamento de Música da UnB abrigou, em seu quadro fessor de teoria e composição entre 1972 e 1991. É destacado na cidade de Oklahoma, juntamente com
docente, grandes nomes do meio musical brasileiro, a começar por seu fundador, o compositor Claudio Ray Luke, como um compositor de música nova, distanciando-se de um estilo tradicionalista, e foi dez
Santoro. Para o que seria a composição da primeira fase do departamento, Neves (1981) ainda cita a par- vezes vencedor do Annual Award, promovido pela American Society of Composers, Authors, and Publishers
ticipação dos vanguardistas paulistas Damiano Cozzella, Rogério e Régis Duprat. Já em fases posteriores, (ASCAP), que reconhece a qualidade da produção e performance de obras de compositores dos Estados
seguir-se-iam nomes como Fernando Cerqueira, Nicolau Kokron, Rinaldo Rossi, Emílio Terraza, Conrado Unidos. Para maiores detalhes, acesse o sítio na internet: https://www.okhistory.org/publications/enc/
Silva (um dos responsáveis pelas extensões frequentadas por Estercio) e Jorge Antunes. entry?entry=HE014> Acesso em: 04 jan. 2023.
21
Ray Luke (1928-2010) teve sua formação na Texas Christian University e obteve o título de doutor na 23
O jornal The Oklahoman apresenta Carveth Osterhaus (1937-2013) como “um diretor de ópera e teatro
University of Rochester. Enquanto compositor, é reconhecido por sua extensa produção, incluindo óperas musical que passou a maior parte de sua carreira ensinando na Oklahoma City University [OCU] e na Uni-
e balés, e grande quantidade de premiações, recebidas ao longo de sua atuação. Trabalhou como regente versity of Central Oklahoma [...]. Após uma distinta carreira como ator e dançarino, Osterhaus voltou-se à
associado e diretor musical da Oklahoma City Orchestra, além de ter regido a banda e orquestra da Oklaho- direção. Tem produções teatrais no New York City Opera, Maine State Music Theatre, Dallas Theatre Center
ma City University, universidade na qual também lecionou até 1997. Maiores informações podem ser e Music Theatre of Wichita. [...] Na OCU, ele criou o libreto para a ópera Medea, de Ray Luke” (tradução nos-
acessadas a partir do sítio na internet: https://www.okhistory.org/publications/enc/entry?entry=LU004>. sa). Para mais informações, acesse o link: https://www.oklahoman.com/story/entertainment/2013/05/17/
Acesso em: 3 jan. 2023. noted-oklahoma-theater-director-carveth-osterhaus-dies-at-age-75/60952193007/.

246 247
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

de outras obras de músicateatro. Especificamente sobre a importância do contato com ainda cita a ópera, composta em 2005, Décima quarta estação26 e o trio, de 1983, Brinca-
Osterhaus e as classes de teatro, Eduardo Barbaresco Filho (2015: 125) afirma que “esse deiras no piano27 (que, apesar de descrito no corpo do texto como tal, não é apresentado
estilo marcou de modo profundo sua vida de artista, o gesto sonoro, a ação cênica que no catálogo como sendo uma música-teatro). A pesquisadora ainda nos apresenta Music
é também musical, ou a ideia de que toda performance é um teatro”. Relembrando sua for Trombone and Piano (1981), obra também mencionada por Jackes Douglas Nunes Ân-
experiência de mestrado, Estercio oferece o seguinte relato: gelo, em seu trabalho O gesto musical na interpretação, de 2015, que também acresce as
Música para trombone n. 4 (2013) e Música para trombones e percussão (2014). Essas três
Logo de início Doctor Lucky [sic] estava olhando minhas primeiras pe- últimas obras fazem uso de um recurso cênico bastante caro ao compositor, que, apesar
ças, o que eu andava fazendo, essa altura eu tinha escrito “O tempo”
de muito sutil, é recorrentemente utilizado em outras obras: fermata silenciosa. Sim-
[sic], eu levei no repertório daqui pra lá, “O Tempo” [sic] teatro música.
Ele viu aquilo e achou muito interessante, discutimos e tal e ele falou: plesmente indicado por uma fermata sobre uma pausa, esse é um recurso que funciona
“parece que você [...] está muito interessado em teatro música, por que como um tipo de gesto mudo (sonora e visualmente), que, nas palavras de Ângelo, tem
não fazer então, isso aí [...] eu sei que você pode fazer isso só sendo a função de “chamar a atenção do público para o que vai acontecer depois” (ÂNGELO,
músico e tal, mas por que não você não fazer [sic] experiência em tea- 2015: 15), sendo que, com base em sua própria experiência como intérprete (sempre em
tro também? Você vai fazer leituras muito maiores disso que você está
querendo” (CUNHA apud FILHO, 2015: 110-111). constante colaboração com o compositor), ainda acrescenta: “Quanto mais o intérprete
tem consciência do gesto musical deste momento, mais expectativa ele vai causar no
público” (2015: 36). Ângelo ainda cita a obra Diálogo (2011), para voz masculina e trom-
Já acerca do seu período de doutorado, poucos são os relatos, e menos expressivos. bone. Em suma, as três pesquisas mencionadas neste parágrafo não cobrem períodos
Ao que parece, a experiência de completar o doutorado em apenas dois anos e meio foi posteriores a 2015, porém, o compositor gentilmente nos forneceu uma listagem de
bem difícil, mas o resultado foi a composição de uma obra de grandes proporções, uma próprio punho com informações sobre suas músicas-teatro (contendo também dados
de suas músicasteatro, ainda não estreada: Requiem for Prometheus (1982)24. sobre instrumentação e, quando fosse o caso, estreia).
A partir disso, notamos algumas divergências entre a listagem do compositor e
3. As obras cênicas de Estercio todas as listagens mencionadas no parágrafo anterior. Apresentando-as na ordem em
Martha Martins Andrade (2000), pianista e pesquisadora da obra de Estercio, afirma que que aparecem no documento fornecido por Estercio, são elas: O guarda-noite (1977);
o compositor teria escrito composições com recursos cênicos até o fim de sua estada Tempo (1978); Natal (1984); Ofício do homem (1985); Rizoma (2001); Diálogo (2011); O
como estudante no exterior, porém não traça, de imediato, uma relação de quais seriam homem só (2016); Tô nem aí (2017); Tempo e espaço (2018); e Solilóquio (2021). Dessa for-
essas obras. No entanto, como sua pesquisa busca, ao menos, citar obras do compo- ma, o compositor não denomina como música-teatro algumas das obras anteriormente
sitor que façam uso de texto, a autora menciona apenas quatro músicas-teatro, sem mencionadas pelos pesquisadores. Nota-se, também, que outras várias obras, em outro
relacioná-las diretamente ao seu período nos Estados Unidos, das quais duas (Réquiem momento consideradas como pertencentes a um âmbito entre teatro e música, não fi-
para Prometheus e Lírica infantil) teriam sido compostas em seu último ano no país, em
198225. Marina Machado Gonçalves (2014), em seu catálogo de obras do compositor,
apresenta como sendo músicas-teatro seis obras: as já mencionadas O guarda-noite 26
Encomendada pela Coordenadoria de Arte e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, a
ópera em dois atos (para orquestra, coro e solistas) tem como libretista um dos expoentes da literatura
e Tempo, acrescendo ainda Natal (1984), Ofício do homem (1985) e Pastoril (2001). Ela goiana, Miguel Jorge, que adaptou para o libreto o primeiro conto (homônimo) de seu livro, de 1978,
Avarmas (um marco da exploração de novas técnicas de escrita para a literatura goiana). Baseada em um
caso ocorrido em Catalão (cidade do sudeste goiano), a trama é, basicamente, o resultado do intertexto
que conecta os sofrimentos do fármaco Antero, ordenados pelo coronel Rufino, aos de Jesus nas mãos de
Pilatos. Apesar de encomendada em 2005, a ópera foi estreada apenas em 2019, pelo Coro e Orquestra
24
Estercio não é claro sobre o que seria essa obra. No texto de sua tese, define-a como um tipo de compo- Sinfônica de Goiás, e pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=Lb2yKwB5ASg. Acesso
sição multimídia e, em entrevista a Filho (2015), trata-a como sendo ópera (mesmo não trabalhando com em: 9 jan. 2023.
cantores). Mesmo assim, a obra conta com um libreto, escrito pelo próprio compositor, que procura pôr 27
“Esta peça deve ser tocada em piano de cauda e utiliza várias técnicas estendidas, como a execução
em cena a figura mitológica de Prometheus, ao mesmo tempo dotada de singularidades, contrastando-a
direta nas cordas e a percussão na caixa do piano, além de utilização de papel alumínio, a fim de alterar
com representantes de vários estereótipos sociais (o povo, o demagogo, a socialite, o jornalista e o líder
religioso), tudo isso em uma trama que busca expressar a ideia central da “opressão e manipulação do o timbre do instrumento. [...] Ao longo da peça, o compositor indica novas posturas, além do fato das
povo por aqueles que representam poderosas instituições: o estado, a igreja e a mídia” (CUNHA, 1982: 4). crianças tocarem juntas ou separadamente, que simula uma situação cotidiana, em uma casa com piano
de cauda, na qual as crianças se reúnem e descobrem as possibilidades do instrumento” (GONÇALVES,
25
Gonçalves (2014) também as apresenta em seu catálogo (acrescentando informações sobre suas res- 2014: 15-16). Como podemos ver no link seguinte, a própria pesquisadora também interpretou uma des-
pectivas formações), mas não as menciona como sendo músicas-teatro. sas crianças, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EDeQ9QBiTbI. Acesso em 9 jan. 2023.

248 249
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

guram na listagem dele. Estamos falando de Reza (1971), Requiem for Prometheus (1982), fugas, imitações, cânones e passacaglias, com especial atenção à construção intervalar
Edward Albee’s Sandbox (1979) e Cycle of Man (1981). Todas essas obras foram descritas, de suas frases (principalmente a utilização do trítono). Assim, o pesquisador sintetiza:
em sua tese de 1982, como sendo, de alguma forma, trabalhos cênico-musicais.
Dado esse apanhado das obras de Estercio que são, de fato, teatro-música, ve- O caminho percorrido destaca o compositor no tempo histórico, o que
mos que seu catálogo é muito vasto e sua produção é riquíssima. Através da consulta a memória e a experiência alude no seu ato criativo. A antiguidade, a
idade média, o barroco, o clássico, o romântico, o impressionismo, na-
bibliográfica e do contato direto com o compositor, o que procuramos, nesses parágra- cionalismo, regionalismo, séc. XX. Estercio como um passeur du temps,
fos anteriores, foi apresentar uma breve introdução biográfica de Estercio, além de um arquiteta em seu tempo de vida sua obra e o próprio tempo musical,
primeiro apanhado de suas obras que fazem uso de materiais cênicos como recurso visto em grande parte, de modo lento, como algo que perdura, e nesses
composicional. Enfatizamos, no entanto, que não temos a pretensão de apresentar um termos que intenta perpassar o histórico e o vivido (FILHO, 2015: 163).
catálogo dessas obras com caráter definitivo, deixando esse trabalho mais sistemático
para futuras pesquisas. A todas essas sonoridades, presentes no arcabouço composicional de Estercio, ci-
tadas, acrescentaríamos ainda uma outra, bastante recorrente em sua estética: a vo-
4. Características estéticas e posicionamentos filosóficos de cação seresteira. Essa é uma vocação confessa e que se estende, do ponto de vista do
Estercio compositor, ao cidadão goiano em geral:
O tempo tem forma, da periodicidade ou não, tudo isso é fantástico, não
só em termos de música, mas em termos de vida. Eu acho que o meu Eu vejo todos nós [goianos] como seresteiros, realmente. É alguma coi-
tempo, o tempo do cerrado, é um tempo solidão. A paisagem nossa aqui sa muito nossa, o fazer seresta, pelo menos, da minha época, enfim... A
é tão maravilhosa, da qual eu gosto tanto, é árida, seca, dramática [sic], gente fazia muita seresta, recebia seresta e, enfim [...]. Mas é mais uma
nessa coisa o silêncio está muito presente [...] eu tenho alguns momen- atitude que tem. Então, a maneira de cantar um som, ou de conduzir
tos sim, passagens rápidas, e nesse interrompimento, acontece muito uma frase, acaba sendo muito, pra mim, seresteiro... a melodia... achar
de fragmentos rápidos num tempo lento, e isso eu acho fantástico. Esse o caminho da melodia (ENTREVISTA, 2020a).
fragmento aparece, é como uma pluma flutuando no ar, são coisas as-
sim, elementos que estão soltos por aí (CUNHA apud FILHO, 2015: 125).
A fim de pensar a “solidão” em Estercio, Eduardo Barbaresco Filho (2015) percorre
várias obras do compositor que trabalham com essa temática, demonstrando sua impor-
Eduardo Barbaresco Filho (2015: 141-163), através de uma descrição detalhada de tância para Estercio. Entretanto, a seleção traz apenas obras com texto (todos do próprio
várias obras do compositor, define Estercio como um passeur du temps. O termo busca compositor), o que torna o tema trabalhado mais evidente. Mesmo assim, encontramos
sintetizar a presença de vários recursos comuns a outros períodos históricos, conden- a temática tanto em obras puramente instrumentais como também nas obras cênicas. A
sados na criação do compositor, como uma característica sua. Dessa forma, sua obra faz expressão da “solidão” parece estar associada a uma ideia de vazio, o que, sonora e visu-
uso dos recursos de exploração da teatralidade, da performance e do aspecto visual da almente, pode ser interpretado pela pouca incidência de informações. De fato, Estercio
gestualidade do intérprete, além de da escrita em busca de massas sonoras, recursos tem uma vocação ao silêncio, muitas vezes manifesta no uso de pausas como recurso
característicos da segunda metade do século XX. Encontramos, em várias de suas obras, sonoro e visual, na preferência por andamentos bastante lentos, por dinâmicas menos
a busca por recursos de indeterminação e aleatoriedade formal; a aplicação do pensa- intensas e pelas interrupções abruptas no discurso.
mento dodecafônico e serial do expressionismo da Segunda Escola de Viena, mas tam-
bém de técnicas colorísticas (principalmente através do mascaramento de sons) e usos Eu encaro a estética como conhecimento da percepção. Toda obra de
arte é feita para ser percebida [...] quanto mais civilização a gente se
de harmonias e escalas comuns ao impressionismo musical; regionalismos (expressos
torna mais sérios são os problemas da percepção. Eu acho que a forma
nos textos, instrumentos e seus modos de tocar) e discurso rítmico (muito presente na é o tempo sonoro e no mundo em que se vive hoje tão poluído de tanto
síncopa e na quiáltera do 3x2), comuns no nacionalismo brasileiro; extensa produção de ruido, tanto mais silêncio conseguirmos, mais elementos de percepção
canções em estilo harmônico e gestual característico do lied romântico; o trabalho com ofereceremos (CUNHA apud FILHO, 2015: 124).
formas clássicas, como a sonata e o tema com variações, mas também na composição
de suítes (clássicas e brasileiras); o uso da retórica musical barroca, presente também É interessante como Estercio, reconhecendo essa sua vocação, entende que a soli-
na relação entre texto e música; a força do pensamento contrapontístico, expresso em dão não é um privilégio da lentidão ou do pouco som, mas, pelo contrário, é ocasionada

250 251
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

pela monotonia dos acontecimentos, o que pode ocorrer também nas texturas bastante história pessoal, numa dimensão da crítica, do espaço goiano, do cerrado, e de sua vida”
sonoras e dinâmicas, basta que o discurso se baseie numa incessante sucessão de pa- (Ibidem).
drões repetidos28 (como, muitas vezes, aparece em vários gêneros populares e até na
música de concerto do minimalismo). 5. Análise de O guarda-noite (1977)29
Além desses pontos estético-musicais, aqui segue uma revisão crítica de alguns O guarda-noite é uma das primeiras músicas-teatro de Estercio, e nela já encontramos
pontos mais filosóficos presentes no discurso de Estercio. De acordo com Barbaresco o tratamento temático da solidão, bem como o uso sonoro e cênico da seresta como
Filho (2015), estes são: “A ideia de arte e comunicação”. “A obra é aberta, o discurso pode veículo expressivo. A obra põe em cena o drama de uma personagem, representada por
aprisionar o pensamento, contudo Estercio [sic] não afirma, a própria liberdade, pois, a uma voz feminina, que expressa seus conflitos internos, que serão ambientados por um
arte deve sempre comunicar, nesses termos significar”; “O ser humano é livre pela arte, pequeno coro feminino e outros dois instrumentos tipicamente seresteiros: a flauta e
pela educação artística”, o que leva o pesquisador a desenvolver uma interessante críti- o violão. Em sua tese de doutorado, o compositor diz ter “utilizado vários recursos tea-
ca à postura de Estercio, dizendo ser esse um “discurso romântico e idealista, ideologia trais para ressaltar um tipo de solidão da mulher” (CUNHA, 1982: 1-2, tradução nossa).
partidária, releitura da educação Grega, que pode ser mera utopia se não adequada Dessa forma, na tentativa de dar ressonância ao psicológico dessa personagem, o uso
à realidade cultural que cerca a própria educação, como não considerar a revolução de alguns recursos corais – massas sonoras e sua utilização como uma espécie de “ce-
tecnológica, as novas mídias e a forte influência na sociedade” (FILHO, 2015: 139-140). nário vivo”30 – é um feito marcante dessa obra. Estercio, ao longo de toda a obra, mescla
Aponta também a contradição do próprio compositor ao não enxergar sobriamente o modos de escrita diferentes, justapondo trechos em escrita tradicional com trechos sem
que é tecnologia, por habitar em um ambiente prefigurado pela tradição (em seus pa- barras de compasso ou de escrita aberta31.
péis pautados, canetas, lápis e borrachas); “A indústria cultural é a desgraça da humani- Nessa peça, também é possível perceber a presença de alguns dos pontos carac-
dade” leva a outra crítica, que enxerga um “menosprezo a fatores da tecnologia frente terísticos da estética do compositor abordados anteriormente. Notemos que essa é uma
a educação, frente a espaços da criação e da arte”, e termina com uma questão retórica, obra de 1977, ou seja, uma das primeiras músicas-teatro do compositor (ou, em suas
“como não considerar a revolução tecnológica?” (Ibidem). O pesquisador termina por se próprias palavras, teatro-música), o que aponta para a longevidade de suas decisões
perguntar se “A dimensão ‘solidão’ revista e pensada de modo amplamente ecoa uma estéticas e escolhas temáticas. Em uma entrevista, comentando sobre O guarda-noite em
relação sertão e litoral, ou grandes centros de arte” (Ibidem). Ponto que repercute num específico, o próprio compositor afirma tratar-se de uma seresta, que será entrecortada
Estercio que conta muito de seu ambiente histórico, em uma sociedade musical voltada com interrupções em seu fluxo, de modo a retratar a personagem (uma mulher) com a
à cultura pianística do período romântico, fechada a outras possibilidades estéticas e temática da solidão:
culturais (principalmente aos modernismos), o que leva à conclusão de que “a solidão
em sua obra não é apenas artística, do artista solitário, parece ecoar algo pessoal, de Eu fiz um teatro-música para o poema todo, e ele começa com uma
seresta que vai ser interrompida. Na seresta (de propósito) quem que
está é a mulher pra ela mesma! [...] O coro todo faz como se fosse uma
esquina na frente dela, e aí ela está cantando, e aí ela vai descobrir a
28
“Em termos técnicos, fazer uma música onde tem pausas, onde eu não quero que a pausa seja ausência solidão dela na própria mão (que tudo isso está no poema). [...] Lá pela
de som, quero que ela seja ali, ou tem que criar fatores para o intérprete dele criar expectativa naquele metade, depois de tanta coisa, [...] o poema chega num clímax lá de
silêncio. O tempo do silêncio está dentro do tempo musical, então ele vai criar angústia, esse silêncio aí. muita tensão dela, daquilo [da situação da mulher], que a solução que
Isso tem que ser manipulado. Eu evito muito na música grandes volumes de som, o mínimo de som. [...] eu achei foi a de fazer um improviso da atriz (de quem estivesse can-
Então uma música com pouco som, ela vai chatear o ouvinte, que coisa monótona, que coisa pequena,
mas ela traduz isso aí. Segundo: os espaços em silêncio dentro da música, e a quebra, é outro elemento,
de um ritmo periódico, muita música que eu tenho feito eu construo toda uma frase e a certa altura da
peça, aqueles elementos todos vão aparecer muito fragmentados, antes da escuta de uma linha completa.
[...] Eu acho que o andamento lento é uma coisa minha mesmo. Eu trabalho sempre [...], o tempo que eu
29
“Another composition, a setting of a cycle of four poems, Guarda-Noite (Night Watchman) by Yêda Sch-
gasto pra perceber uma coisa lenta eu posso enriquecer muito esse tempo aí, mais do que quando eu maltz, used various theatric devices to underline the sense of a woman’s loneliness. In this case a choir
tenho um andamento rápido, onde as coisas acontecem rapidamente. Isso é normal em música, acontece was instructed to enfold the female narrator as she expressed her own emotional withdrawal. In addition,
[...], talvez seja um elemento que não esteja muito comigo não. Não acho que seja pelo andamento que this cycle incorporated both speech and song” (CUNHA, 1982: 1-2).
eu vou dizer isso da solidão não, pode ser que aconteça, mas eu posso fazer um ritmo bem acelerado e 30
Em sua tese, o compositor diz instruir o coro “a encobrir a narradora à medida que a mesma expressasse
aquilo ser solidão, aliás é o que acontece com a música popular do disco, música comercial dos nossos seu próprio distanciamento” (CUNHA, 1982: 2, tradução nossa).
dias. Você tem um padrão só, de um ritmo bem rápido que se repete com todo mundo e que leva as pes-
soas, [...] tudo isso é ditado a um gesto ou atitude típica, todo mundo sabe a hora que está escutando a 31
Tanto no tratamento do coro (na busca por massas sonoras) quanto nas diferentes formas de escrita da
hora de bater palma, de fazer os [...] gestos diferentes ali, isso tudo é um tipo de solidão inconsciente” partitura, podemos encontrar, como comentado anteriormente, traços da influência de Gilberto Mendes e
(CUNHA apud FILHO, 2015: 183-184). Conrado Silva, através dos cursos de extensão na UnB, na criação de Estercio.

252 253
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

tando ali), de fazer um improviso onde ela ia ficar histérica, realmente,


com gritos, cantos, usando palavras do poema, e usando o corpo dela,
certo? Então tudo isso são interrupções que vão ter, mas, no fundo,
é uma seresta que está ali acontecendo o tempo todo (ENTREVISTA,
2020b, grifos nossos).

É também uma das poucas obras em que o compositor se utiliza de poemas não
escritos por ele mesmo. O texto é composto por cinco poemas homônimos retirados
do livro O Peixenauta (1975), da poeta goiana Yêda Schmaltz. E, à primeira vista, fica
evidente a reiteração constante das palavras “noite” e, desde o título até o fim do ciclo,
“guarda-noite”. Júnior (2017: 305) afirma ser “notável nessa sequência de poemas a mu-
sicalidade que encerram seus versos”.
Para Estercio, as obras que trabalham com texto devem, inevitavelmente, estar
subordinadas a ele32. Dessa forma, o texto de O guarda-noite será fundamental para a
escolha dos materiais cênico-musicais, bem como para a concepção da estrutura formal
da obra. Os poemas estão todos conectados em um único movimento, são usados inte-
gralmente e seguem a ordem em que aparecem no livro.
Além disso, os poemas valem-se de uma composição gráfica diferenciada, o que
acaba por os enriquecer em suas possibilidades de significação (como veremos no de-
correr da análise). Desse modo, apresentaremos os cinco poemas (Quadro 1), tais quais Quadro 1: Os cinco poemas retirados do livro O peixenauta (1975), de Yêda Schmaltz.
retirados do livro da poeta a fim de contribuir para a melhor compreensão da obra, bem Fonte: Elaborado pelos autores.
como de sua análise aqui proposta.
Os poemas trabalham com três personagens: o eu lírico narrador do poema, que,
desperto ao longo da noite, observa o guarda-noite33 (o segundo personagem). Além de-
les, pode-se perceber a existência de um terceiro, porém mais misterioso, a quem Júnior
(2017) nomeia como sendo o amado. No poema, não fica claro o gênero do eu lírico,
mas o compositor o vê como uma “mulher solitária”, que “transfere a solidão dela para o
guarda-noite”. Nos poemas, o eu lírico, que também observa a noite, mas sempre em seu
contraste com o guarda noturno (como também é chamado, no fim do primeiro poema),
deixa transparecer um tipo de desejo pela figura do vigilante, como quando descre-
ve seu “polegar/ esquerdo”, ou seu tom “negro/ e colorido”, como aparece nos primeiro
e quinto poemas (Quadro 1). Também, o compositor procura expressar essa sensação
de desejo latente quando pede à “mulher solitária” que, depois de uma improvisação
lasciva, interprete, sussurrando (e com desejo), o comentário do “eu lírico” na última
estrofe do quarto poema, a respeito dos “olhos de asteroide e corpo de celuloide” do
“guarda-noite” (Figura 1). No entanto, ao longo dos poemas, não fica claro haver ou não
qualquer tipo de interação direta entre os dois personagens.

32
Nas palavras do próprio compositor: “Nesse sentido, eu vejo sempre de que a música, nesse caso, deve 33
A figura do guarda-noite, motivo fundamental dos poemas, é um tipo de profissional da vigilância. O dicio-
ser sempre subordinada ao texto. [...] Eu acho que, se há um texto, aquele texto ele está dizendo alguma nário Michaelis define-o como um “Indivíduo que, em ronda noturna, vigia e protege casas e estabelecimen-
coisa mais imediata: a música tem que realçar isso e não dialogar”. Trecho retirado do documentário tos de uma rua ou de um bairro”, e o Oxford Languages acresce que o faz “a soldo”. Em uma entrevista, Estercio
Tempo de silêncio, direção de Luiz Gonçalves. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gKAkxy- diz se tratar de “uma figura que já não existe mais, o guarda que ficava apitando no quarteirão guardando as
-SAtE&t=624s. Acesso em: 24 dez. 2022. casas. Isso, até há pouco tempo, era uma figura que existia. Ele ficava ali” (ENTREVISTA, 2020a).

254 255
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

Portanto, dessa relação à distância entre os três, o eu lírico vive consigo mesmo
suas questões com ambos os outros dois personagens. E, da mesma maneira, Estercio,
para sua criação, escolhe colocar em cena apenas o eu lírico, na figura de uma mulher,
transformando a obra em um monólogo interior34. A mulher é interpretada por uma voz
Fig. 1: Trecho do quarto poema, tal qual aparece no último sistema da quinta página da partitura. feminina, mas o coro pode ser visto como uma extensão sua. De fato, o texto com essas
Fonte: Elaborada pelos autores.
confissões do eu lírico na forma de poemas, é constantemente alternado (e em alguns
casos até sobreposto) entre voz feminina e coro, confundindo, entre ambos, a identidade
Para Júnior (2017), da personagem. A escolha por vozes femininas (solista ou corais) também é um indício
dessa intenção de confundir a personalidade sonora da protagonista.
A sequência de cinco poemas intitulados “O guarda-noite” explora a Para as vozes, Estercio adota técnicas vocais diferentes de apresentação do mate-
atividade do trabalhador que passa as noites acordado e por isso po-
rial musical, muitas vezes combinando-as para alcançar massas sonoras mais densas. O
deria melhor conferir os aspectos místicos da lua, e com ela acaba por
relacionar-se intimamente, visto que a lua deixou de abrigar o céu para material musical, nesse caso, consiste no trabalho do texto como recurso sonoro, apre-
deitar-se no seu polegar esquerdo (JÚNIOR, 2017: 305). sentando-o em frases completas ou fragmentando-o em palavras, sílabas ou até vogais/
consoantes diversas. Desse modo, o material musical poderá ser apresentado (como
Os poemas são ambientados pela atmosfera noturna que as imagens tecem, au- mostram os retângulos numerados nas figuras 2, 3 e 4) em uma série de formas diferen-
sente de lua, mas, ao mesmo tempo, iluminada pela presença astronômica e brilhante tes: 1) declamado; 2) entoado, ao modo do sprechgesang de Schoenberg; 3) cantado; 4)
do guarda-noite – ele, no poema, traz consigo, além da lua, as estrelas, um apito para- sussurrado (para frases inteiras, palavras, sílabas, vogais ou consoantes); 5) sustentado
noico e um grito heroico, como também uma série de matérias e cores. Devido a um em alturas indeterminadas (trabalhando com vogais); 6) movendo-se por glissandos; e
caráter marcadamente onírico que envolve seus personagens, os poemas tomam um ar 7) falando de uma forma ininteligível, ou, como escolhe indicar o próprio compositor,
bastante misterioso. Há uma estranha relação entre os personagens, que gera, assim, obscura. Esta última é uma técnica empregada, e em apenas um curto momento, apenas
uma certa dubiedade quanto ao desenlace dos acontecimentos. Isso se deve bastante para o coro (primeiro e segundo sistemas da página 6 da partitura), mas todas as outras
graças à obscura presença do terceiro personagem. O eu lírico refere-se a ele, nos se- são utilizadas por ambos (voz feminina e coro feminino).
gundo e terceiro poemas, como sendo “um ladrão”, que teria roubado seu sono. Tomado
como literalmente um criminoso ou se tratando de uma figura de linguagem, a sensação
que evoca é bastante incômoda à personagem. Mesmo assim, Júnior (2017) chama a
atenção para o caráter plurissignificativo que muitas palavras recebem ao longo dos po-
emas e, desse modo, ele interpreta o ciclo pela ótica do eu lírico, que vive um processo
de distanciamento da figura do “amado”, mas, ao mesmo tempo, observa com seus olhos
e pensamentos a chegada do “guarda-noite”:

O ser amado, aquele que rouba o sono do eu lírico, é substituído pela


imagem do guarda noturno que se apresenta de feição mais lírica do que Fig. 2: Quarto sistema da sexta página da partitura. Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.
aquele. O amado dorme e se distancia da imaginação da poeta, o que é
indicado pela fragmentação da palavra “dorm/indo”, de modo a assumir
sentido dúbio, ao mesmo tempo os verbos “dormir” e “ir”. Esse jogo lin-
guístico parece comunicar o processo de desenlace amoroso, razão que
leva o trabalhador noturno a ocupar o imaginário do sujeito lírico. Esse
tipo de jogo linguístico é usado para definir o estado do guarda-noite, no
início da composição, que está “só/ rindo”, a fragmentação do verbo no 34
Sobre solilóquio, Ricardo Sérgio escreve: “neste a oralização se passa no subconsciente do
gerúndio passa a indicar um estado de felicidade e de solidão, simulta- protagonista, de modo que suas emoções e ideias são estruturadas de forma ilógica e
neamente, do trabalhador que chama atenção da poeta. Esse jogo lúdico, incoerente” (SÉRGIO, 2007: 1). Para se ter uma ideia, a voz feminina deverá efetivamente “cantar” em
apenas um momento, o que indica que a obra tenha a exigência de uma voz feminina com habilidades
abrindo para a plurissignificação de um mesmo termo, torna-se recorren-
cênicas desenvolvidas, mais até do que as de cantora – o que explica o ato falho do compositor, que,
te a partir de então na obra da autora (JÚNIOR, 2017: 305). ao comentar sobre a peça, chama a intérprete de atriz.

256 257
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

encostando na corda (acrescendo um certo nível de ruído); 4) utiliza o trêmulo com os


dedos nas cordas do violão ou, na flauta, através do frullato. Todos os exemplos podem
ser encontrados nas figuras 5 e 6.

Fig. 3: Primeiro sistema da sexta página da partitura. Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.

Fig. 5: Segundo sistema da quinta página da partitura. Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.

Fig. 4: Último sistema da quarta página da partitura. Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.

Aos outros dois instrumentos, a flauta e o violão, são reservados basicamente


quatro categorias de recursos diferentes, e na Figura 4 já podemos verificar dois deles
(destacados em formas ovaladas). É interessante como o compositor procura equilibrar
o uso desses dois instrumentos, utilizando-os individualmente em situações correlatas,
Fig. 6: Segundo sistema da primeira página da partitura.
como quando: 1) eles tocam fragmentos do material da seresta, sendo preservados seus Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.
tradicionais papéis de melodia e acompanhamento (à flauta e ao violão, respectivamen-
te); 2) dão suporte ao texto declamado pela voz feminina, sendo que, enquanto a flauta
dobra o texto da voz feminina, falando no bocal de modo a desempenhar uma função As indicações cênicas são feitas de duas maneiras distintas. Na primeira delas,
mais colorística em relação ao texto (papel próximo ao do coro), o violão tem um papel presente na folha de instruções da partitura, o compositor cria um tipo de abertura à
mais ambiental, criando uma camada de harmônicos em suporte ao texto declamado. improvisação, na criação e manipulação do que Estercio chama de “efeitos de luz”. De-
Estercio também procura equilibrar o uso dos recursos sonoros, buscando um certo tipo terminando apenas que esses efeitos devem se manter entre “claro e escuro”, o compo-
de equivalência de técnicas, como quando: 3) a flauta oscila microtonalmente uma nota sitor restringe a possibilidade de utilização de outras cores. Por último, Estercio também
longa, ao que o violão também oscilará uma nota longa, mas através da combinação determina que essa improvisação deverá ocorrer sobre as “ações em destaque”,
entre o som grave pinçado do bordão livre (nota Mi), alterado pela unha levemente sem explicar quais são elas (CUNHA, 1977, ed. 2022: iii).

258 259
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

Entretanto, essas ações parecem dizer respeito à segunda forma de manipulação Portanto, excetuando-se o recurso da iluminação, que, na obra, é aberto à impro-
cênica adotada pelo compositor, ou seja, através da inserção de caixas de texto dispos- visação a partir de algumas bases, todos os demais recursos cênicos encontrados nes-
tas ao longo da partitura. Ao longo da obra, é utilizado um total de 15 caixas de texto, se trabalho estarão presentes nessas caixas de texto. No caso de O guarda-noite, vale
que, como recursos textuais de indicação cênica, trazem manipulações na movimenta- ressaltar o uso do efetivo coral, que, além de contribuir com as massas sonoras vocais,
ção e disposição espacial, gestualidade e cenário. Além disso, elas aparecem de duas desempenha também, em alguns momentos, a função visual de um cenário, mas aos
maneiras: 1) as primeiras, de caráter coletivo, trazem indicações gerais e sempre para moldes de um “cenário vivo”, que se rearranja à medida que a narrativa o requer – o
mais de um integrante – são estruturalmente muito importantes na medida em que próprio compositor, na abertura do texto de sua tese de doutorado, comenta que a obra
funcionam como transições entre uma cena e outra (na Figura 8); e 2) em contrapartida, “utilizou vários recursos teatrais para realçar a sensação de uma solidão da mulher. Nes-
existem também as indicações cênicas individuais, geralmente direcionadas à ação cê- se caso, o coro foi instruído a encobrir a narradora enquanto ela expressava seu próprio
nica da voz feminina (também na Figura 8). afastamento emocional” (CUNHA, 1982: 1).
Dessa forma, por meio da cenografia, o compositor pretende, em dois momentos
específicos e com indicações textuais bastante claras, criar metáforas visuais que con-
tribuam com a narrativa cênica. O compositor tenciona que o coro feminino assuma,
primeiro, a forma de uma “esquina” e, ao final, de uma “porta/ flor/ [...]”. Como podemos
notar na Figura 10, ambas as caixas trazem essa direção em forma de texto, sendo que,
na caixa da esquerda, essa indicação é reforçada através de desenho. As marcações
em vermelho destacam o trecho específico em que o compositor recorre ao texto para
orientar a metáfora visual.

Fig. 8: Primeiro sistema da primeira página da partitura.


Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.

Fig. 9: Primeiro sistema da quarta página da partitura. Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.

260 261
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

no segundo, o eu lírico diz que o guarda-noite teria ganhado o poema de quem lhe rou-
bou o sono, e este não seria o guarda-noite. Tomando esse poema como símbolo de uma
transferência sentimental, esses versos simbolizam a passagem do desejo da mulher,
direcionado inicialmente ao amante, mas que, agora, é direcionado ao guarda-noite.
Em consonância com Júnior (2017), essa é também a leitura que Estercio procurou
trazer para sua obra. No primeiro poema, coro e voz feminina alternam a apresentação
dos versos, sendo que esta última deverá declamar com tons de ingenuidade e carinho
as suas leituras, de modo que o som de sua voz deverá evidenciar um traço inicial da-
quele desejo discutido no começo desta seção. Para o segundo poema, o coro deverá
criar a já citada metáfora visual de uma esquina. Como comenta o próprio compositor, a
obra, como um todo, seria essencialmente uma seresta, sendo que, no caso do segundo
poema especificamente, Estercio compõe uma canção literalmente seresteira: uma sim-
ples valsa de amor e lamento em modo menor (Fá menor) para o “guarda-noite”, cantada
pela mulher. Nesse sentido, a metáfora da esquina pode ser compreendida como a re-
criação do espaço natural da seresta: a noite a céu aberto, e suas ruas seriam ocupadas,
um de cada lado, pelos instrumentos acompanhadores: a flauta e o violão36. Mas o que
salta aos olhos (ou o que não salta) é justamente a ausência da voz feminina solista.
Durante toda essa seção (que abarca esses dois poemas), Estercio pede que o coro a
esconda, primeiro como que perdida na multidão37 e, depois, atrás dessa “esquina”, como
que escondida dentro de sua residência.
Outro aspecto importante diz respeito ao recurso motívico utilizado por Estercio
na segunda parte dessa seção. O compositor associa seu motivo de segundo menor (Dó-
-Réb) à palavra “poema” (Figura 11), ressaltando a significação dessa palavra. Depois de
Fig. 1035: Indicações presentes na primeira e última páginas da partitura, respectivamente. apresentado esse segundo poema, fragmentos musicais e textuais dessa seresta, junto
Fonte: Elaborada pelos autores.
com esse motivo de segunda menor, retornarão insistentemente38.

Portanto, evidenciados os materiais musicais e cênicos da obra, foquemos em sua


forma. A peça adota uma forma em três partes, e isso fica evidenciado quando observa-
mos, principalmente, o aspecto cênico de sua construção. Estruturalmente, a obra segue
36
Em entrevista (lançada em forma de podcast, com um episódio intitulado “Seresta”), tentando desenvol-
a ordem de apresentação dos poemas em suas cinco partes, que, como já foi dito ante- ver uma ideia do que seria uma seresta, Estercio (ENTREVISTA, 2020a) cita, como sendo um bom termo:
riormente, são introduzidos integralmente e de maneira majoritariamente linear. “valsas de esquina”, utilizado pelo compositor e pianista Francisco Mignone (1987-1986) em suas Doze
valsas de esquina (1938-1943). O próprio Mingone aponta a presença da seresta em sua vida nos tempos
De acordo com a leitura dos poemas feitas por Júnior (2017), o eu lírico vive um da criação da obra: “Elas se mantêm num ponto em que eu posso fazer alguma coisa, e lembrei do meu
processo de distanciamento do “amado”, enquanto observa a chegada do “guarda-noite” tempo de seresteiro, daquelas Valsas e consegui em São Paulo um grande número delas” (MIGNONI apud
em seu imaginário. Esse arco narrativo já pode ser encontrado nos dois primeiros poe- MACHADO, 2004: 71).

mas, uma vez que, no primeiro, o eu lírico já nota a chegada do guarda-noite, sendo que, 37
Estercio não traz nenhuma metáfora visual para esse primeiro momento do coro, apenas indica que ele
deverá esconder a voz feminina, ao mesmo tempo que deverá pautar seu gestual por movimentos lentos
e uniformes. Nessa obra, entendemos que a utilização do recurso cenográfico é, de certa forma, ambígua.
Portanto, a fim de procurar meios para a realização da obra que valorizem suas intenções narrativas, no
35
O segundo ponto é o da ideia de um recurso cênico auxiliar a um recurso principal. É evidente que, para caso dessa multidão que esconde a mulher, poder-se-ia pensar, muito naturalmente, no coro como a mul-
que o coro crie essas metáforas visuais, o compositor necessita pôr em movimento as integrantes do coro. tidão de estrelas, imagem da qual o poema faz uso.
Entretanto, como o compositor não as faz de forma invisível ao público, essas reordenações se tornam
integralmente visíveis, mas como um recurso auxiliar, que têm a finalidade de criar essas imagens. Dessa 38
De fato, esse motivo já havia sido introduzido pelo violão (em seus harmônicos) e pela flauta (com
forma, a utilização da “movimentação e disposição espacial” não é a motivação final do discurso cênico, suas notas osciladas) desde o início da seção. Entretanto, nas segunda e terceira seções, apresentado não
mas, sim, uma ferramenta de auxílio a um recurso principal. apenas pela flauta, mas por todos os integrantes (e com, também, a palavra “poema”).

262 263
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

público (o compositor pede que ela vire as costas para o público no início dessa cena),
agora se volta novamente a ele, para confidenciar, aflita, seu desejo pelo guarda-noite.
O que se segue é um momento aberto da obra, de bastante liberdade cênica. Estercio
pede um longo improviso cênico (evidenciado pela utilização da fermata por sobre a
caixa de texto), que deverá trazer à tona todo o desejo lascivo, sexual, que o guarda-
-noite provoca na personagem.
É interessante a volta do verso “um ladrão pousou a flor na minha mão”, como
uma rememoração de seu compromisso para com o amante e, consequentemente, a
impossibilidade desse desejo. Isso explicaria o gestual de desespero exigido pelo com-
positor à voz feminina, que procura o som do violão desesperadamente, como se tivesse
Fig. 11: Segundo sistema da segunda página da partitura. a intenção de recobrar a posse de seu poema.
Fonte: Acervo pessoal de Estercio Marquez Cunha.
Na última seção, sustentada pelo quinto poema, enquanto o coro, a flauta e violão
finalizam a última referência à seresta, a cantora parece voltar a si, e esse gesto é
A segunda seção é iniciada como uma dissipação da imagem seresteira constru- demonstrado por seu retorno para o interior do coro. Suas últimas palavras, como orienta
ída há pouco, e a flauta e o violão voltam a ocupar o fundo da cena. Em contrapartida, o compositor, devem ser ditas normalmente, sem nenhum tipo de filtro emocional,
é o momento do surgimento da mulher, que, agora relevada, dirigirseá diretamente como em um recobro de consciência. Em seus últimos versos, o eu lírico deixa evidente
ao público. A seção é construída com os terceiro e quarto poemas do ciclo. O terceiro sua distância em relação ao “guarda-noite”, que é assistido através do “olvido ouvido”, ou
poema é o mais curto de todos e tem uma característica muito peculiar. Como já dito de uma memória distante. A cena é finalizada com o coro desempenhando mais uma vez
anteriormente, a palavra “guarda-noite” é repetida muitas vezes ao longo de todo o o papel de um objeto cenográfico, mas, dessa vez, o compositor não dá uma metáfora
conjunto de poemas. Entretanto, o “guarda-noite” não figura no terceiro poema, nem final, única, mas, sim, uma profusão delas: “como uma porta, como uma flor”, todas com a
como palavra, nem mesmo como imagem. Quem domina esse poema é a figura do intenção narrativa de trazer visualmente esse retorno para dentro, para o interior,
amado, tido no poema como um ladrão, ou um “mal’/ feitor”. Estercio tenta evidenciar
a tensão desse poema, levando-o a realizar um acúmulo de tensão por meio da repeti- Uma pequena coda ...
ção de dois versos, com atenção especial ao “um ladrão pousou a flor em minha mão”. E, assim, deixamos uma mensagem: que compositores da grandeza de Estercio Mar-
Dessa forma, o poema mais curto do ciclo é, curiosamente, o que toma mais espaço na quez Cunha, com obras magníficas como O guarda-noite, sejam conhecidos e valorizados
execução da obra. No último sistema da página 4, pode-se verificar que, pela primeira como procuramos aqui fazer.
vez, os quatro integrantes da obra soam ao mesmo tempo, tendo coro e voz feminina
um mesmo tipo de sonoridade (como um retorno da mulher para dentro de si), enquanto Referências
flauta e violão soam fragmentos da já apresentada seresta.
Essa tensão é subitamente interrompida com a imagem do “apito”, que o composi- ALCÂNTARA, Othaniel. Estercio Marquez Cunha e sua formação inicial em música. A
tor busca retratar sonoramente através de um curto glissando ascendente, seguido de Redação, Goiânia, 22 jul. 2021. Disponível em: https://www.aredacao.com.br/colu-
um longo glissando descendente, produzido por todo o efetivo coral. Esse apito, início nas/153896/estercio-marquez-cunha-e-sua-formacao-inicial-em-music. Acesso em: 20
do quarto poema, é o sinal da volta do guarda-noite, que retorna de maneira heroica, out. 2022.
como que vindo a salvar o eu lírico. Logo após esse longo apito, Estercio traz, pela pri-
meira vez, à sonoridade coral as vogais, sustentadas ou alteradas por glissandos, em ANDRADE, Martha Martins de Castro. Poéica musical como instauração de mundo pelos
alturas indeterminadas, além de apresentar, apenas nesse momento, os sons de unha e caminhos de Estercio Marquez Cunha. Dissertação (Mestrado em Musicologia) - Centro
trêmulo no violão, bem como o frullato da flauta. A impressão que se tem é a da cons- de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão, Conservatório Brasileiro de Música, Rio de
trução de uma cena de salvamento, ressaltada pelo vazamento da palavra “heroico” do Janeiro, 2000.
meio da massa coral, mas vivida no delírio da mulher (uma possível leitura reforçada
pelo “paranoico” também vazado do coro). A personagem, que havia se “escondido” do

264 265
O guarda-noite: a vanguarda de Estercio Marquez Cunha em Goiás com sua música-teatro Lucas Manassés; Luiz Gonçalves

ANGELO, Jackes Douglas Nunes. O gesto musical na interpretação de três obras para GUARDA-NOTURNO. In: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis. Editora
trombone de Estercio Marquez Cunha. Dissertação (Mestrado em Música) - Escola de Melhoramentos Ltda, 2023. Disponível em https://michaelis.uol.com.br/palavra/lldN/
Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015. guarda-noturno/ . Acesso em: 15 dez. 2022.

BRAGA, Simone Marques. A obra pedagógica para piano de Virgínia Salgado Fiúza: análi- JÚNIOR, P. A. Vieira. Caminhos poéticos de Yêda Schmaltz: a construção de um esti-
se de 29 peças e orientações para a sua utilização didática. ICTUS (PPGMUS/UFBA), v. 10, lo. Cadernos do IL, [S. l.], v. 1, n. 54, p. 295-310, 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/
p. 69-72, 2009. index.php/cadernosdoil/article/view/67309. Acesso em: 10 jan. 2023.

BONIN, Gustavo. Quadro a Quadro: Música Cênica Brasileira. 2018. 146p. Dissertação MACHADO, Marcelo Novaes. As Doze valsas de esquina de Francisco Mignone: um estudo
(Mestrado em Música). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, técnico-interpretativo a partir de suas características decorrentes da música popular.
São Paulo, 2018. Dissertação (Mestrado em Performance Musical e Musicologia) - Escola de Música, Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.
BONIN, Gustavo. “Obras brasileiras de música cênica contemporânea”. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 76, ago. 2020, p. 50-72. NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ed. Ricordi, 1981.

CARVALHO, Leonardo Victtor de. A obra vocal de Estercio Marquez Cunha: especificidades SÉRGIO, Ricardo. O solilóquio. Tipos de discursos. Enviado em 01/03/2007. Site: <ht-
da música e memória musical no cenário goianiense. Dissertação (Mestrado em Música) - tps://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/398133> acesso em: 23 dez. 2022.
Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.
TEMPO de silêncio. Direção: Luiz Gonçalves. Produção: Música Íntima e T3mpo filmes.
CUNHA, Estercio Marquez. Requiem for Prometheus: a multimedia composition in three [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (21min41s.). Publicado pelo canal Música Íntima. Disponível
acts. Dissertation (Doctorate in Musical Arts) - Graduate Faculty, University of Okla- em: https://www.youtube.com/watch?v=gKAkxy-SAtE&t=647s. Acesso em: 24 dez.
homa, Oklahoma, 1982. 2022.

CUNHA, Estercio Marquez. O Guarda-Noite. Partitura. 1977. Edição Música Íntima, 2022. VIEIRA, Adriana Lemes Dias. O piano nos trios de Estercio Marquez Cunha. Dissertação
(Mestrado em Música) - Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de
ENTREVISTA com Estercio Cunha, parte 4: seresta. Entrevistado: Estercio Marquez Goiás, Goiânia, 2013.
Cunha. [S. l.: s. n.], 2020a. 1 áudio (12min43s). Publicado pelo canal Música Íntima. Pod-
cast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/7iEQzWlTriMIlo0YDBlEJN. Acesso
em: 15 jan. 2023.

ENTREVISTA com Estercio Cunha, parte 5: civilização da orgia. Entrevista-


do: Estercio Marquez Cunha. [S. l.: s. n.], 2020b. 1 áudio (18min58s). Publica-
do pelo canal Música Íntima. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/
episode/1ZQvINvNPvkAo3M5MCe176. Acesso em: 15 jan. 2023.

FILHO, Eduardo Barbaresco. Entretempos do corpo e da voz na escrita de artista como


história: testemunho e (des)construção de representações na escritura biográfica de
Estercio Marquez Cunha (Goiânia, dos anos 1965 a 2013). Tese (Doutorado em História)
- Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015.

266 267
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX

O lundu-canção na sociedade
goiana do final do século XIX e
início do século XX
Magda de Miranda Clímaco
Universidade Federal de Goiás

268
8 como citar
CLÍMACO, Magda de Miranda. O lundu-canção na sociedade
goiana do final do século XIX e início do século XX. In:
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.).
Centro-Oeste. Vitória: Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Música, 2023. p. 268-297. (Histórias
das Músicas no Brasil).
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

1. Introdução As reflexões relacionadas ao “como narrar” esta pesquisa vieram também dessa con-
Ainda há muita história da música para narrar, muita pesquisa a realizar, neste Brasil dução metodológica. Isso porque remeteram a circunstâncias de empenho do pesquisa-
imenso e multicultural, segundo o musicólogo Bruno Kiefer (1977a). Esse autor obser- dor/narrador na prefiguração da “experiência vivida” em um tempo passado, vinculada ao
vou, na contracapa do seu livro História da música brasileira: dos primórdios ao século XX, seu trabalho de análise, interpretação, organização e peculiar sucessão dos dados, que
que “a história do nosso passado musical, mais rico do que se costuma pensar, apresenta traduz a sua percepção das diferentes interações e possibilidades de tramas simbólicas
ainda algumas lacunas muito sérias. O melhor que se pode fazer, em tais circunstâncias, concretizadas nesse tempo e contexto de relações. Prefiguração da experiência vivida que
é recolher as peças e juntá-las do melhor modo possível” (KIEFER, 1977a). traduz a sua “compreensão prática” dos relacionamentos e ações que lhe deram suporte
Levando em consideração esses apontamentos, esse contexto e o meu estado, Goi- para a configuração da narrativa, configuração esta que o historiador Paul Ricœur rela-
ás, que se encontra em pleno Brasil Central, representando uma das lacunas citadas ciona a uma urdidura, à tessitura de uma intriga. Para esse autor, “em resumo, a tessitura
por Kiefer, parto, neste momento, para o relato de uma pesquisa sobre o lundu-canção da intriga é a operação que extrai de uma simples sucessão uma configuração” (RICŒUR,
na cidade de Goiás, antiga Villa Boa de Goyaz e antiga capital do estado com o mesmo 1994: 103). Enfatiza a função de mediação da configuração da narrativa, realizada entre
nome. Foi abordado, sobretudo, um recorte de tempo que abrange o final do século XIX a prefiguração e a refiguração dessa experiência, esta última efetivada pelo leitor, um
e o início do século XX (décadas de 1870 a 1920), sem deixar de buscar, algumas vezes, ser histórico localizado também espacial e temporalmente (ver esquema no Quadro 1).
algumas atualizações desse gênero no tempo presente.
Esse recorte remete a um período em que o investimento na atividade musical foi Prefiguração da narrativa → Configuração da narrativa → Refiguração da narrativa
significativo nessa cidade – o povo goiano cultivou bastante saraus em suas casas, in- (pelo pesquisador) (pelo pesquisador/narrador) (pelo leitor)
vestiu na música de concerto, em transcrições de árias de óperas acompanhadas ao
MEDIADORA
piano, entre outros gêneros, e, além disso, já no universo popular, investiu muito
também na modinha e nas serestas (RODRIGUES, 1982: 97. GUILARDI; CLÍMACO, 2016).
No entanto, apesar dessa grande atenção para a modinha, muito raramente o lun- Quadro1: Esquema do processo de prefiguração, configuração e refiguração da Narrativa.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir da exposição de Paul Ricoeur (1994: 103).
du-canção, que, no Brasil, sempre esteve lado a lado com ela nesse período, apareceu.
Assim, esta pesquisa teve como objeto de estudo o lundu-canção na sociedade
goiana do século XIX e início do XX, abordado nas suas interações com essa trama so- Percebida sob esse ângulo, em acordo com Ricœur (1994 : 103 ), a narrativa rea-
ciocultural e em alguns de seus processos de atualização no presente, percebidos como lizada neste trabalho pode ser considerada uma trama, uma “urdidura”, uma “tessitura”,
ressignificações ocorridas através do tempo, mas plenas de resíduos do período men- um discurso que reconstrói o caminho que o historiador/pesquisador/narrador percorreu
cionado. Com o amparo da história cultural, que tem um diálogo estreito com a antro- diante de um problema, colocado em relação ao “caco” do passado problematizado. Um
pologia e namora a literatura, investiu-se em análises e interpretações de transcrições de discurso que está sendo apresentado ao leitor, que o receberá e o interpretará de acordo
canções, de textos e entrelinhas da escassa historiografia local, de depoimentos formais com a sua bagagem e condição única de ser histórico. Entendida como representação,
e informais com pessoas que vivenciaram ou mesmo estudaram esse contexto. de acordo agora com Pesavento (2003), essa narrativa pode ser interpretada como um
Contemplando fontes diversas, portanto, foi colocado um empenho muito grande dos possíveis discursos sobre a abordagem de um traço do passado, como uma ficção
na relação dessas abordagens e práticas com alguns elementos colhidos no estudo do controlada. Ficção porque é uma construção do narrador sobre o real, e controlada por-
cenário sócio-histórico-cultural e musical goiano levantado. Trajetória metodológica que que pressupõe a utilização de métodos reconhecidos pelo universo acadêmico.
levou ao indivíduo fazendo e recebendo música no seu dia a dia, relacionando-se com Foi esse encaminhamento da pesquisa e da narrativa que possibilitou constatar,
outros sujeitos, interagindo de cabeça com os sentidos e significados que integraram o relatar e provocar a recepção do leitor referente ao motivo da falta de investimento da
seu tempo e espaço, com elementos da sua memória e com a latência do porvir. Uma historiografia goiana no lundu, da não aceitação do lundu-canção pelas “boas famílias”1
“descrição densa” foi efetivada, conforme fundamentação no antropólogo Clifford Geertz goianas no período recortado, de estarem muito mais preocupadas com a realização de
(1989: 13-15) e no historiador Roger Chartier (2002: 23), buscando sentidos, significados, uma “boa música”, em serem percebidas como uma sociedade do Brasil Central “culta”,
representações sociais, relacionadas ao povo goiano. Foi de grande interesse entender a
inserção do lundu-canção no cenário sócio-histórico e cultural goiano, quem o praticava,
1
A expressão “boas famílias”, referindo-se à família tradicional goiana, foi muito encontrada na
onde era praticado, de que maneira era praticado... ou, mesmo, por que não foi praticado... historiografia local.
ou ainda... por que não está incluído no investimento dos pesquisadores/narradores.

270 271
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

que se dedica a essa “boa música” e à literatura. Em contrapartida, foi esse mesmo enca- Esse contexto inicial e local do ciclo do ouro no Brasil do século XVIII caracterizou
minhamento da pesquisa que apontou também para representações que evidenciaram uma sociedade em que havia predomínio de homens, e poucas mulheres, tanto brancas
a força e a interferência da mulher goiana no cenário musical, a sua grande participação da elite quanto negras escravizadas (RODRIGUES, 1982). Ribeiro (2001: 26) comenta
nos saraus, nos piqueniques-serenatas e, mais tarde, nas serestas, a sua atuação no que as mulheres goianas, a partir do olhar dos viajantes europeus que passaram por ali
campo da música e da literatura, modalidades artísticas que essa mulher buscava in- nesse período, já prenhe da visão capitalista/progressista, consistiam na “própria mate-
tegrar em um mesmo evento e na educação dos filhos (RODRIGUES, 1982). Elementos e rialização do desolamento em que vivia a população goiana”. Goiás girava em torno das
circunstâncias que se constituem, também, em um dos indícios explicativos, dentre ou- representações de atraso e decadência. Segundo Souza (2001), com a exploração do
tros, para a ausência do lundu-canção nos ambientes em que a força dessa mulher esteve ouro, houve a vinda de muitas pessoas negras para Goiás, “ [...] eram feitos escravos ou já
sempre presente. Daí a importância de se versar um pouco sobre essa sociedade goiana. chegavam nessa condição, quando eram importados de alguma capitania do Brasil para
o trabalho das minas”. O trabalho era ligado tão somente à mineração, e eram trazidos
2. A sociedade goiana que cultivou música no final do século XIX e da Bahia, de Minas Gerais, de São Paulo, de Mato Grosso e do Sul, representando diver-
início do XX sas etnias. O autor afirma que, através de pesquisas e discussões a respeito, se chegou a
A sociedade goiana emergiu do movimento do ciclo do ouro, que teve início no século um consenso de que a predominância era de bantos, que tinham “como grupo de linha-
XVIII no Brasil colônia, caracterizado pela grande circulação de pessoas advindas de gem os angolas, congos e moçambicanos” (SOUZA, 2001: 25-26).
várias localidades em busca do precioso metal, paulistas, nordestinos, portugueses, por Citando o autor goiano Martiniano José da Silva, afirma que
exemplo, que conviviam de perto com o povo autóctone da região: os indígenas (RODRI-
GUES, 1982). Nesse cenário, na região central do país, surgiu o Arraial de Sant’Anna nas os negros do Congo trouxeram a exuberância e o tom alegre de suas
danças, como as congadas, os moçambiques e as cavalhadas, enquanto
primeiras décadas do século XVIII, que, em 1739 passou a vila – Villa Boa de Goyaz – e,
os angolas eram “humildes,” alegres e muito inteligentes; e, ainda, que
em 1818, a cidade, a cidade de Goiás (PALACÍN, 1995). Foi a capital do estado de Goiás os moçambiques eram de cor retinta e as mulheres gostavam de músi-
(Figura 1) por mais de um século, quando aconteceu, na década de 1930, a instalação da ca, balangandãs e eram sempre preferidas nas casas de família. (SILVA
nova capital, a moderna cidade de Goiânia (CHAUL, 1997). apud SOUZA, 2001: 26).

Em contrapartida, como todas as pequenas vilas que surgiam nesse contexto, Villa
Boa de Goyaz interagiu com as ordens religiosas de origem europeia, com os rituais de
suas igrejas. Contexto, rituais e instituições religiosos que se mesclavam com o cenário
profano, ocasionando as chamadas “festas coloniais”, que eram alimentadas pela intensa
circulação de pessoas e, no que interessa mais de perto a este trabalho, pelo cultivo da
música, pela circulação de partituras e atividades musicais diversas (MENDONÇA, 1981).
Os africanos, por sua vez, por possuírem uma religião divergente da que lhes era impos-
ta (católica apostólica romana), constantemente eram proibidos de realizar os seus ritu-
ais; tinham as suas manifestações culturais limitadas. No entanto, mesmo quando faziam
um festejo católico, misturavam elementos de sua cultura. “O batuque, a dança, o ritmo
frenético, a festa, as ornamentações, a ginga, são elementos constitutivos da cultura dos
povos africanos” (SOUZA, 2001: 84), que não eram bem-vistos pela sociedade goiana
em questão.
À medida que se esgotava o ouro, todavia, a povoação decaía, e outros meios de
Fig. 1: Cidade de Goiás: antiga Rua Direita (1915). Fonte: Craveiro e Poeta apud Chaul (1997: 214). subsistência tiveram que ser cultivados pelos moradores. O final do século XVIII e o
início do século XIX marcaram a sua decadência, o que favoreceu muito o desenvolvi-
mento da agropecuária, que garantiria a sobrevivência da sociedade goiana a partir, so-
bretudo, de meados do século XIX. Chaul (1997) lembra a atuação, no cenário nacional,

272 273
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

de membros de famílias que se estabeleceram nesse período a partir do investimento da Academia de Letras (1904), como foi o caso de Eurídice Natal (1883-1970); publicou em
nessa atividade e no comércio, começando a dialogar de forma intensa com os ideais jornais, como já observado; fez parte de clubes literários (RODRIGUES, 1982).; e, o que mais
desenvolvimentistas advindos da Europa. Ideais que levaram ao culto da ordem e do interessa aqui, dedicou-se intensamente à música em várias situações. Dias (2008) comen-
progresso, ao cultivo de determinados valores morais e de uma postura intelectual. ta a atuação excepcional de mulheres na música religiosa; Rodrigues (1982) revela que
Essas famílias conviviam, ainda, com as pessoas africanas e seus descendentes, já que organizavam saraus lítero-musicais em suas casas; e Mendonça (1981), que criavam, orga-
estes continuaram prestando serviços a esses senhores, mesmo depois da abolição. nizavam e dirigiam conjuntos instrumentais que sonorizavam cinemas na cidade de Goiás.
Rodrigues (1982: 30) já considera que as oligarquias resultantes desse contexto vi- A descrição de alguns elementos do histórico da sociedade goiana, o que inclui o
venciaram um renascer, um despertar implicado com “um novo interesse não só pela papel importante da mulher, mais uma vez remete ao representacional, a práticas evi-
situação econômica e política como por um conhecimento intelectual”. O culto do fran- denciadoras de alguns valores e condições de desenvolvimento dessa sociedade, às
cês, da literatura, da música e da educação passou a existir de forma peculiar e adap- “disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo”, se Chartier (2002: 17) for lem-
tada ao cenário goiano, assim como um novo modelo de família, em que a imagem da brado. Remete a um sistema de representações, ou seja, a
mulher não estava mais ligada à reclusão, mas, sim, a uma participação ativa na vida
cultural, no controle e no direcionamento da família, em termos tanto educacionais quan- classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do
mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apre-
to econômicos e políticos. Tornou-se corriqueiro, nesse período, as famílias influentes
ciação do real. Variáveis consoante às classes sociais ou os meios inte-
e bem-situadas financeiramente mandarem os filhos estudarem fora do estado ou do lectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, pró-
país (RODRIGUES, 1982). É essa a elite que a historiografia goiana descreve, deixando prias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam
sempre um lugar de destaque para a mulher que a integrava. O enfoque do imaginá- as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro
rio feminino, dos seus investimentos, de suas formulações intelectuais, dos conceitos tornar-se inteligível e o espaço decifrado (CHARTIER, 2002: 17).
que difundia, de suas práticas e obras, evidencia representações, ou seja, constructos
simbólicos, esquemas intelectuais incorporados, que revelam, segundo Chartier (2002), Tão cara à história cultural, a abordagem das representações permite compreen-
posições e relações, um lugar de fala, de ação. der como, em diferentes lugares e momentos, os grupos constroem, pensam e dão a
Houve um desenvolvimento intelectual, portanto, que trouxe uma preocupação perceber uma determinada realidade social. Woodward (2014: 17) também lembra que
com a situação da mulher, deu a ela um lugar privilegiado na sociedade. Segundo Ro- “os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os
drigues (1982: 35), também estimulavam esse proceder “as campanhas feitas através dos indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar”.
jornais locais sobre a reivindicação de direitos da mulher, combatendo o sistema de Foi nessa sociedade, portanto, integrada por algumas famílias abastadas, que a
educação que a mantinha na ignorância e na dependência constante do sexo masculi- música foi realizada; os escravizados continuaram praticando a herança musical dos
no”. Ribeiro (2001: 53) já comenta que, à medida que a mulher goiana foi se tornando primeiros tempos, inclusive o batuque, que está na base do lundu. No entanto, como já
peça fundamental da engrenagem da sociedade republicana, os comportamentos des- observado, se Rodrigues (1982) e Mendonça (1981) em suas obras, de um modo geral,
critos reforçavam a ideia de emancipação. “Participar de clubes culturais e literários citam principalmente o cultivo da música sacra, da música de concerto e de alguma outra
(Gabinete e Club Literário Goyano), tornou-se tão importante, e complementar, quanto a de origem profana, como a modinha, por exemplo, praticamente não fazem referência à
sua função de esposa e mãe. Fazer parte deste círculo cultural passou a ser sinônimo de música que tem uma ligação mais direta com a prática dos afrodescendentes. A menção
‘brilhar em sociedade’”. Foram formadas as primeiras ligas femininas, e, segundo ainda aos gêneros lundu, lundu-dança ou lundu-canção, contemplados por esta pesquisa, é fei-
Ribeiro (2001: 53), objetivava-se “divulgar as formas e os comportamentos exemplares ta apenas para lembrar que ocorriam na zona boêmia da cidade, a dimensão cultural que
da mulher moderna”. Conforme Rodrigues (1982 ; 35-36), essas ligas foram divulgadas não foi privilegiada pela historiografia investigada, o que já evidencia, novamente, re-
por jornais que eram abertos à atuação da mulher, como o informativo Bem Te Vi (1915), presentações relacionadas a essa prática musical e à própria historiografia, praticamente
dirigido por Aurora Tocantins, A Rosa (1907) e, mais tarde, O Lar, fundado por Oscarlina narrada por mulheres, descendentes de famílias tradicionais goianas.
Alves Pinto, com a colaboração de Altair Camargo e Genesi de Castro, que expressavam Depois de abordados elementos e representações que revelam investimentos, tra-
a luta em favor do progresso feminino. ços identitários dessa sociedade, resta agora esboçar algumas peculiaridades estilísticas
Assim, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, essa mulher goia- do lundu, para depois analisar as relações estabelecidas por esse gênero musical com o
na atuou de forma constante e decisiva no magistério; ocupou a primeira presidência cenário goiano, ao longo da sua trajetória local.

274 275
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

3. O lundu: o lundu-dança, o lundu-canção Os me deixas que tu dás


O lundu, conforme Kiefer (1977b: 31), “descende diretamente do batuque dos negros”,
Os me deixas q´tu das Ficas taõ mugangueirinha
de um processo de interação da dança dos africanos e afrodescendentes com o fandan- Quando a gentes pega im ti Que muito me satisfàs
go de origem europeia, provavelmente espanhola. Segundo o autor, São coizinhas taõ mimozas Esse mando que te vás
Que nas outras nunca vi
costumava ser dançado o lundu [...] a cantoria, que logo cede o passo à
atraente dança dos negros. Emprego esse termo como o que mais se Muito gosto da nhànhàzinha Depois te torno a prender
coaduna ao divertimento em questão, misto de dança da África e fan- De andar bulindo contigo He somentes para ver
dango da Espanha e Portugal (KIEFER, 1977b: 34). Quando vejo que comigo Os me deixas que tu das
Tu estas infadadinha

A história do lundu teve início através da dança e do canto, portanto, mas, com o
passar do tempo ramificou-se também em lundu-canção. Foi atribuído a Domingos Cal-
das Barbosa, um brasileiro que cantava modinhas em Portugal, a introdução da mo-
dinha e do lundu-canção na corte portuguesa do final do século XVIII. O musicólogo Já a análise da organização sonora, de acordo também com Lima (2010), tem reve-
Mozart Araújo menciona que era frequente a confusão inicial entre modinha e lundu nes- lado um misto de elementos de origem afro-brasileira e da música europeia do período,
se período, sendo possível encontrar, no manuscrito MSS 1596 (Modinhas do Brazil)2, sobretudo, pré-clássico. No primeiro caso, a presença forte de uma contrametricidade bá-
“modas ou modinhas que são quase lundus. E lundus que são quase modas ou modinhas” sica, conforme também mencionado por Sandroni (2001: 28-32), muitas vezes denomina-
(ARAÚJO, 1963: 11). Esse manuscrito se encontra hoje na Biblioteca da Ajuda, Portugal, da, de forma simplificada, de “síncope”, e que já indica um elemento brasileiro resultante
com autoria atribuída, embora com muita polêmica3, segundo Lima (2001), a da fusão de dois sistemas rítmicos: o europeu e o africano. Isso se torna mais caracterís-
Domingos Caldas Barbosa. O contato com essa obra, no entanto, possibilitou observar tico quando se junta ao texto picante, que evidencia termos utilizados pelos africanos e
que a modinha número 5, “Os me deixas que tu dás”, exemplificada pela Figura 2, pelas afrodescendentes, que remetem a relações mais próximas entre escravizado e senhor,
suas características estilísticas, pode ser considerada um lundu. Uma dessascaracterísti- como “nhanhá”, “neguinho”, “quindim” etc., o que levou Caldas Barbosa a falar em “chuli-
cas pode ser percebida através da letra (LIMA, 2001: 79), que revela um teor picante e ce” do lundu, e foi reafirmado por Tinhorão (2013: 61), ao também se referir ao gênero
uma proximidade muito grande do escravizado com a “nhànhàzinha”. mencionando “chulice”, com conotação também de “denguice”, “moleza brasileira”.
As relações com a música europeia aparecem através da ornamentação melódica,
do compasso e da quadratura das frases, dos elementos do acompanhamento que lem-
bram o baixo d’Alberti, da centralidade no emprego do sistema tonal, entre outros (LIMA,
2010). A Figura 2 revela algumas dessas peculiaridades estilísticas.

2
O prefácio assinado pelo musicólogo Regis Duprat na obra As Modinhas do Brazil (LIMA, 2001: 9) observa
que Gérard Behágue foi um dos divulgadores, no Brasil da existência dos manuscritos MSS 1595/1596,
coletâneas de canções do século XVIII, que se encontram na Biblioteca da Ajuda, Portugal. A obra citada,
além do prefácio de Duprat, traz a seguinte referência: “Gérard Behágue, ‘Biblioteca da Ajuda (Lisboa) MSS
1595/1596: Two eighteenth century anonymous of modinha’, em Anuário, vol. IV, Tulane University, 1968”.
3
Nesse comentário e na intenção referente ao seu trabalho, que transfiro ao meu, coloco-me junto a Lima
(2001: 15) quando, ao comentar sobre essas circunstâncias polêmicas relacionadas ao manuscrito 1596,
observa: “A bibliografia existente não nos permite dizer com certeza que as 30 modinhas do manuscrito
1596 são de autoria de Domingos Caldas Barbosa. Duas, no entanto, têm letra desse autor, embora o
anonimato do manuscrito nos impeça de confirmar tal afirmação. Ademais, este trabalho propõe-se a
analisar prioritariamente o estilo musical das modinhas nele contidas, e não a autoria das mesmas”.

276 277
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

Lá no Largo da Sé Velha

Lá no Largo da Sé Velha Os estrangeiros dão bailes Elefantes berrões


Stá vivo um longo tutu, P ŕ a regalar o Brasil, Cavalos e rodopios
Numa gaiola de ferro Mas a rua do Ouvidor Num curro perto d’Ajuda
Chamado surucucu; É de dinheiro um funil. Com macacos e bugios,
Cobra feroz Lindas modinhas Tudo se vê
Que tudo ataca Vindas de França Misericórdia!
Té d’algibeira Nossos vinténs Só por dinheiro
Tira a pataca. Levam na dança A tal mixórdia;
Bravo a especulação, Bravo a especulação, Bravo a especulação,
São progressos da Nação. São progressos da Nação. São progressos da Nação.

Água em pedra vem do norte Taratatá! Roma, Veneza, Londres, Paris,


P' ra sorvetes fabricar Bravo a especulação, Tudo se chega
Que nos sorvem os cobrinhos São progressos da Nação. Ao nosso nariz!
Sem a gente refrescar. Cosmoramas treplicados Bravo a especulação,
A pitanguinha. Garatujões mal pintados São progressos da Nação.
Caju, cajá, Fazem ver-nos toda Europa
Na goela fazem Por vidrinhos mal pintados.

No entanto, esse gênero não perdeu a estrutura rítmico-melódica, sobretudo, da


rítmica contramétrica que sempre o caracterizou, assim como a tendência à realização
do baixo d’Alberti, o que pode ser conferido na Figura 3.

Fig. 2: Parte inicial do manuscrito da modinha número 5 – “Os me deixas que tu dás” – do MSS 1596, com
características estilísticas do lundu. Fonte: Lima (2001: 221).

Com o desenvolvimento do lundu-canção no cenário carioca do século XIX, se-


gundo Sandroni (2001: 53), a palavra “mulata” passou também a ser muito utilizada, e a
crítica social e o humor tornaram-se constantes, capazes de fazer rir a plateia dos teatros
de revista e dos circos. A crítica social e o humor aparecem no lundu “Lá no Largo da Sé
Velha”, de Cândido Inácio da Silva (1800-1838) com letra de Manuel de Araújo Porto-
Alegre (1806-1879), em que se efetua uma crítica direta sobre a questão financeira e
a especulação econômica internacional na primeira metade do século XIX no Rio de
Janeiro, conforme pode ser constatado na transcrição da letra.

278 279
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

3.1 O lundu em Goiás


Em Goiás, a busca pelo lundu levou, inicialmente, a encontrar, no anexo da obra
Viagem pelo Brasil, de Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e Johann Baptist
von Spix (1781-1826), intitulado “Canções populares brasileiras e melodias indígenas”,
em referência a uma canção com alguns elementos que remetem ao lundu. O documen-
to, publicado em Munique entre 1823 e 1831, faz menção ao estado de Goiás juntamen-
te com o de Minas Gerais, mostrando que os seus autores transitaram por ambos. Martius,
que transcreveu a canção que será comentada a seguir, por não saber o seu local de
origem, descreveu onde foi escutada. Ao que tudo indica, parece que o esboço de gê-
neros como a modinha e o lundu não era estranho totalmente às terras de Goiás entre
1817 e 1820, a data em que foi realizada a expedição integrada por Martius e Spix. Con-
forme o musicólogo Paulo Castagna (2004: 9), essa expedição foi enviada pelo rei da Ba-
viera para realizar um levantamento botânico, zoológico, mineralógico e etnológico nas
províncias de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão e Amazonas.
Sobre o anexo da obra e o responsável pela redação da Viagem pelo Brasil, Castag-
na observou:

Martius, responsável pela redação da Viagem pelo Brasil, também era um


bom conhecedor de música e, para enriquecer a publicação, elaborou
um anexo musical intitulado Brasiliajuhunische Volkslieder und Indianis-
che Melodien (Canções populares brasileiras e melodias indígenas), com
quatro canções recolhidas em São Paulo, uma em Minas Gerais, uma na
Bahia, uma com a indicação “de Minas e Bahia” e outra com a indicação
“de Minas e Goiás”, além de um lundu instrumental (sem indicação de
localidade) e 14 melodias indígenas (CASTAGNA, 2004: 9).

A transcrição da canção, cujo início está evidenciado na Figura 4, possui, na letra,


a palavra “mulata”, um dos termos geralmente usados no lundu, ligados a uma menção
sensual envolvendo algum tipo de relacionamento com a mulher afrodescendente bra-
sileira. A canção está dividida em duas partes, e o compasso é binário composto, o que,
segundo Rodrigues (1982), caracterizou a maior parte das modinhas em Goiás, diferente
de outras regiões do país. Na primeira parte, cuja letra lembra elementos do lundu, apa-
recem os versos “Huma mulata bonita, não careça rezar/ basta o mimo que tem para sua
alma salvar” e “Mulata se eu podia formar altar, ne’lle te colocaria/ para o povo te adorar,
Fig. 3: Lundu “La no Largo da Sé Velha”, de Cândido Inácio da Silva. Fonte: Silva ([20--], n.p.). te adorar”. A melodia começa com a tonalidade de Dó maior, passando, na segunda parte,
para Dó menor. O canto é acompanhado de piano (Figura 4), embora possa ser concor-
dado com o musicólogo Paulo Castagna, que isso se deve muito mais à necessidade de
satisfazer o gosto dos austríacos, já que a obra foi publicada na Áustria. No Brasil, possi-
velmente, o canto teria sido acompanhado por uma viola. Segundo esse autor,

280 281
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

embora Martius tenha observado, ao passar pela cidade de São Paulo em Interessante e contraditória essa menção de Rodrigues. Ao ser abordada informal-
1818, que, além da viola, “nenhum outro instrumento é estudado” (SPIX
e MARTIUS, v.1, p. 141), o autor apresentou suas transcrições em versões mente4 e questionada sobre o lundu-canção, já que teve um grande foco na modinha em
para canto e piano. [...] Presume-se, portanto, que Martius elaborou um suas pesquisas, respondeu firme e rapidamente: “o lundu não teve vez em Goiás”. Men-
acompanhamento para piano destinado aos seus leitores austríacos e donça (1981) cita o lundu lembrando palavras da poeta Cora Coralina, que evidenciam a
não exatamente por tê-lo observado no Brasil (CASTAGNA, 2004: 9). diferença que a sociedade goiana fazia entre esse gênero e a modinha, sendo esta acei-
ta, e o lundu malvisto. Cunha Mattos, citado por Ribeiro (2001: 42), também mencionado
por Mendonça (1981: 330), referindo-se ao lundu-dança, afirma que acontecia na zona
boêmia da cidade e era dançado apenas por mulheres “ordinárias”. Segundo Mendonça,

a poetisa Cora Coralina, quando por nós arguida sobre a música em


Vila Boa, disse haver, em princípio, profunda restrição das famílias goia-
nas pelo lundu, só sendo ele executado na zona boêmia da cidade. E
Cunha Mattos comenta: “as mulheres ordinárias também dansam [sic]
boas cousas, mas a sua favorita paixão é pelos lundus, em que mostram
destreza incomparável.” (MENDONÇA, 1981: 330).

Comentário que se justifica, a partir do momento que se lembra de que a vida goiana
girava em torno da igreja e de que a cultura era voltada, sobretudo, para a música erudita
e para a literatura. Sua sociedade mostrava-se moralista, tanto que o jornal Província de
Goyaz, em 1870, “public[ou] um anuncio procurando cantoras, mas que deveriam ter boa
conduta” (RODRIGUES, 1982: 50). Ao que tudo indica, teria sido esse aspecto cultural e mo-
ralista um dos motivos, entre outros, de não ter sido o lundu-canção cultivado pelas “boas
famílias” da cidade e não ter sido objeto de atenção dos autores e pesquisadores que
assinam a historiografia musical goiana, reconhecidamente descendentes diretos dessas
Fig. 4: Trecho da canção para voz e piano encontrada no anexo da obra Viagem pelo Brasil, indicando a “boas famílias”. Essa circunstância remete também a práticas reveladoras de representações
procedência de Minas e Goiás. Fonte: Camargo ([20--], n.p.). sociais, que evidenciam valorações, categorizações, classificações, de um grupo social.
Outra menção feita por Mendonça (1981) ao lundu conduz a uma música instru-
A contínua busca pela trajetória histórica do lundu e, sobretudo, do lundu- canção mental, traz a foto do manuscrito de uma polca-lundu (Figura 5), de autoria do músico
em Goiás, no século XIX, levou a autores locais, como Mendonça (1981) e Rodrigues pirenopolino Antônio da Costa Nascimento – o Tonico do Padre –, citada como se fosse
(1982), que mencionam, rapidamente, a existência desse gênero na cidade, mas sempre o próprio lundu. O que pôde ser constatado é que se trata de uma parte cavada de um
ligada a uma dimensão cultural bem diferente daquela a que pertencem ou a mo- instrumento de banda, provavelmente a requinta, já que não fica claro na foto do ma-
mentos que exigiam discrição. Rodrigues (1982), quando traz uma citação de Carvalho nuscrito. As bandas eram cultivadas não só na cidade de Pirenópolis, mas também na
Ramos relacionada a Antônio Felix de Bulhões Jardim (1845-1887), membro da família cidade de Goiás, desde o século XIX. Pela proximidade e pela troca que acontecia entre
Bulhões, que teve uma importante participação na vida cultural da cidade, lembra que o universo musical das duas cidades oriundas do ciclo do ouro, e conforme pôde ser
Antônio Felix, além de ter sua profissão como magistrado, era um “boêmio”, que cantava constatado através da historiografia, pôde ser intuído que polcas-lundus, que eviden-
lundus de sua composição. ciam a sobrevivência do espírito do lundu e as suas interações com outros gêneros,
também foram executadas pelas bandas em Goiás. Referindo-se a essa circunstância de
A toga de magistrado e os labores da imprensa não continham nele o “sobrevivência” do lundu, o estudioso da música brasileira Luiz Heitor (1956) observou:
boêmio que ele era. À noite, nos momentos do sueto, metido num cham-
bre cor de rapé, alegre e galhofeiro, espichava-se na rede, violão em
punho e, às galadas de caninha, cantava modinhas e lundus de sua
composição para gáudio dos presentes (CARVALHO RAMOS apud RO- 4Informação colhida através de conversa informal na sala de espera de um consultório médico.
DRIGUES, 1982: 101). Goiânia: 16 mar. 2016

282 283
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

Quando a polka europeia invade os salões brasileiros, com o mesmo A pesquisa em arquivos de periódicos locais, por sua vez, chegou a três menções do
furor que havia produzido no velho mundo, é a esse gênero, sempre ins-
trumental, que se recolhem o movimento e o espírito do velho lundu. lundu, geralmente trazendo um tom de galhofa, ilustrando uma situação engraçada ou
O binário esperto do seu andamento, baixos fortemente marcados e curiosa. Uma matéria do jornal A Tribuna de Goyas, do dia 1º de maio de 1880, p. 4 (Figura
variações da linha melódica, amoldavam-se com perfeição a experi- 6), menciona um fato: ao receber uma excelente notícia de ordem política, o personagem
mentadas tendências do nosso passado musical. Não tardam a aparecer citado na matéria “ficou tão possuído de alegria que até cantou o lundu Mulatinha do ca-
as Polkas-lundus, consagrando esses processos de aculturação e reve-
roço5, e deo uma beijoca no Sr. Wanderley que se achava presente e muito admirado”. Sinal
lando a capacidade de sobrevivência do lundu (grifo meu) (HEITOR,
1956: 145-146) de que esse lundu, que circulou muito na cidade de São Paulo6 no período em questão, era
conhecido pelos goianos, e que eles aproveitavam o caráter jocoso do gênero para o citar
nessas circunstâncias implicadas com comemorações e efusões de alegria.

Fig. 6: Recorte do periódico A Tribuna de Goyas, dia 1º de maio de 1880, p. 4, mencionando o lundu Mula-
tinha do caroço. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

O periódico O Publicador Goyano do dia 18 de março de 1885, p. 4, também traz uma


referência ao lundu, indicando que ele era praticado na cidade e, mais uma vez, sinaliza

5
Segundo Morila (2013: 21), no lundu “Mulatinha do caroço”, “reconhecemos a visão da mulher bela, mas
Fig. 5: Manuscrito da polca-lundu de Antônio da Costa Nascimento, Tonico do Padre. Este manuscrito também feiticeira, objeto de desejo e de desilusão, marcado sempre com o humor típico do lundu”. Na
provavelmente integra o acervo pessoal da família Pompeu de Pina, Pirenópolis. nota de rodapé 50, observou: “Em várias coletâneas podemos observar uma série de letras, com a indica-
Fonte: Mendonça (1981: 361). ção de serem cantadas com a melodia da música Mulatinha do Caroço, quer seja como resposta a ela, quer
seja como paródia, quer seja com temas díspares, revelando a popularidade que esta música – melodia e
letra – deve ter alcançado na época” (MORILA, 2013: 21).
6
Morila (2013: 21) observou também que esse lundu foi citado por Affonso de Freitas na obra Tradições e
reminiscências paulistanas (1985), como corrente na cidade de São Paulo no século XIX.

284 285
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

o desafogo irônico da imaginação do goiano. Isto ao ilustrar a introdução (exórdio) de


sua fala com uma referência ao “zu...m...m...m do Lundu predilecto do Augusto”.

Prometi ao amigo Alfredo, rabiscar uma pomada com o título de Fo-


lhetim, e, na verdade, Alfredo merece, porque nada mais se pareça com
Alfredo do que o mêsmo Alfredo. Porém, acho Alfredo demais nesse
exordio, tão exórdio como o exordiano autor d’estas linhas que traz na
cabeça, neste momento, nem zum-zum dos meus pecados – mais com-
prido ainda que o zu...m...m...m do Lundú predilecto do Augusto ( O PU-
BLICADOR GOYANO, 18 de março de 1885: 4)

A terceira referência ao lundu foi encontrada em uma seleção de “Trovas goyanas”,


trazida pelo periódico A Informação Goyana do dia 15 de março de 1918, p.86. Entre
elas, consta uma alusão ao lundu instrumental Lundu de marruá7:

Minha mãe me poz na escola


P’ra aprender o bê a bá,
Eu fugi fui aprender
O Lundu do marroá!

O Lundu de marruá (Figura 7), como outros lundus, serviu de tema para variações,
glosas, muito comuns no período em questão. Segundo Lima, em “Notas introdutórias
ao Lundu de marruá” (2016: 219), se, no início, o título faz referência à famosa bailarina
francesa Marie Antoniette Monroy (Lundu de Monrov), que, conforme relatos da época, Fig. 7: Manuscrito do Landum do marruá. Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal. Fonte: Lima (2016: 220).
era exímia dançarina do lundu, transformações observáveis nas partituras encontradas
tanto no Brasil quanto nos arquivos da Biblioteca Nacional de Lisboa remetem também
ao Lundu de mon roi (“Lundu do meu rei”). Uma alusão “aos velhos tempos de monarquia Em contrapartida, entre os raros livros de canções goianas encontrados, a obra Can-
luso-brasileira, onde tudo deveria ser propriedade real, ‘meu rei’” (LIMA, 2016: 219). Já tigas e cantares: músicas folclóricas e modinhas goianas, de Regina Lacerda (1985), trouxe
a grafia abrasileirada, “marruá” (Lundu de marruá), de acordo com o mesmo autor, “faz uma canção que chamou atenção pelo título, Lundu do tropeiro. Não apresenta pecu-
alusão ao universo da cultura popular, tão cara ao universo do lundu, onde, marruá pode liaridades estilísticas como letra sensual, picante, contrametricidade básica e marcante
aludir ao boi bravo, violento (HOUAISS, 2001), àquele que não se dobra ao mando, ao na melodia e acompanhamento, embora esboce uma crítica com uma veia humorística
domo, portanto, aquele que resiste bravamente” (LIMA, 2016: 219). Lembra que “o geni- velada à situação de penúria e cansaço do tropeiro (Figura 8).
tivo do substantivo, conserva a alusão, mesmo em tempo de monarquia escravocrata, à
luta dos negros e mestiços na lida por uma existência negociada dia a dia” (LIMA, 2016:
219). Outra situação que remete a representações, a lutas de representações, a processos
identitários dessa sociedade goiana, que se revelam através da prática da música.

7
Segundo Lima (2016: 218-219), o “Lundu de marruá” “está registrado em um grupo documental per-
tencente à Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal, que comporta cinco manuscritos que apresentam
diferentes conjuntos de variações, atribuídas a D. Francisco da Boa Morte [...] gênero que esteve em
grande voga, não apenas nos últimos anos do século XVIII, mas continuou sendo tocado, tanto em versões
instrumentais servindo de suporte para a dança homônima, bem como cantado e dançado em salões
particulares e entremezes durante os séculos XVIII e XIX”.

286 287
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

Se eu pudesse, senhor, nesta hora,


Minha tropa agora vender,
Ai meu Deus, que já não posso
Com esta vida de tanto sofrer

Interessante dizer, também, que pesquisas como a de Vinhal (2016), que tem por
objeto a Festa do Divino e a Congada na cidade de Niquelândia – antiga São José do To-
cantins –, mencionam o lundu integrando essas festas. Niquelândia é outra cidade goia-
na que, como Goiás e Pirenópolis, surgiu na época do ciclo do ouro e esteve ativa ainda
no século XIX, legando resíduos de memória importantes para essas sociedades. Nesse
caso particular, o canto mencionado como lundu (Sambaruê, sambaruá), que aparece
na Festa do Divino, organizada pelas famílias mais abastadas da cidade, revela- se mais
cométrico na melodia e no acompanhamento, e a letra nada tem a ver com o picante,
o sensual ou o cômico, referindo-se à não aceitação do samba no local e no evento em
questão. Em contrapartida, alguns cantos da Congada, organizada pelas pessoas mais
simples, sobretudo a comunidade dos afrodescendentes, como “Dor de canela”, mostram-
se bastante contramétricos na melodia e no acompanhamento, revelando comicidade
na letra (Figura 9), embora não sejam denominados “lundu”.
Fig. 8: Transcrição do Lundu do tropeiro. Fonte: Lacerda (1985: 57).

Lundu do tropeiro

O tropeiro não goza prazer


Viajando sem nunca parar
Carregando arroz com toucinho
E por cama trazendo o ligar
Dê-me lá o prato de folha
Camarada, vamos repartir,
Que a tropa já vem lá no pasto
Já ouvi o cincerro tinir
Anda, vamos, rapaz, anda, vamos
Pra chegar cedo no pouso,
Que hoje mesmo tenho que ferrar
A PAQUINHA e o macho MIMOSO
Anda, vamos, rapaz, anda, vamos
Olha o burro e olha tu,
Olha a carga da mula ROLINHA
Olha a carga do macho TATU
Apeia, apeia, camarada
Acorda a mula atolada
Que a roupinha que tenho para vestir
Já de lama está toda engomada
Olha a carga da mula ANDORINHA Fig. 9: Transcrição das canções “Sambaruê, sambaruá” (lundu da Folia do Divino) e “Dor de canela” (canto
Camarada que vai pra diante, da Congada), na cidade de Niquelândia. Fonte: Vinhal (2016: 221).
Olha a carga do burro MANHOSO
Olha a carga do macho CHIBANTE

288 289
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

Frente a essas constatações, um dos próximos passos da pesquisa, ainda em anda- Araújo, citado por Sandroni, assevera:
mento, é ir a campo nas festas do Divino e da Congada na cidade de Goiás, buscar fontes
diversas, inclusive orais, que possam informar se o lundu é cultivado ali e se existem Nascidos de berços opostos – ela, açafata de corte e ele, moleque de
eito – Modinha e Lundu, a despeito desse antagonismo social de ori-
notícias ou relatos que possam remeter à sua prática no recorte de tempo em questão.
gem, apresentam conexões históricas tão estreitas e cresceram numa
Sempre houve e ainda há muito trânsito entre essas cidades goianas que emergiram no convivência tão íntima dentro da “sociedade” brasileira que, em deter-
ciclo do ouro no Brasil, entre seus músicos e produções. minados momentos e principalmente na última década de setecentos,
pude encontrar modas ou modinhas que são quase lundus. E lundus,
4. Algumas considerações e reflexões que são quase modas ou modinhas (ARAÚJO, 1963: 11).
Importante lembrar que, no cenário goiano, surgiu uma sociedade de mulheres dinâ-
micas, que, entre outras práticas domésticas e culturais, cultivavam a música através, Enquanto Renato Almeida, no seu clássico História da música brasileira, de 1942,
sobretudo, dos “saraus líteromusicais” (RODRIGUES, 1982: 97/98) e que, apesar desses comenta:
investimentos e dinamismo, renegaram o lundu-canção, percebido como a manifesta-
ção musical de outra dimensão cultural, diferente da sua, relacionado, de certo modo, O lundu ofereceu certa semelhança com a modinha, resultando a con-
fusão entre as duas modalidades, que foram das mais populares aqui e
ao lundu-dança, que acontecia na “zona boêmia”, distante da realidade intelectual, moral
em Portugal. Basta o ritmo para diferenciá-las, embora seja irrecusável
e social que construíam. que as duas, enquanto uma descia para a boca do povo e a outra subia
As pouquíssimas e breves citações encontradas na escassa bibliografia local, em para os salões, se encontraram e influíram reciprocamente, permitin-
periódicos e depoimentos orais, inclusive a menção de Rodrigues a Ramos, trazem a do assim erros de designação ou generalizações equívocas (ALMEIDA,
possibilidade de esse gênero musical ter aparecido, algumas raras vezes, em saraus 1942: 74, grifo meu).
mais informais e mais íntimos do universo masculino, em ocasiões como a relatada por
Ramos. Em contrapartida, dados revelaram que foram conhecidos lundus que circula- Referindo-se ao lundu-dança, no final do século XIX, na antiga capital brasileira,
vam em outras regiões do país, como o Lundu de marruá e Mulatinha do caroço, citados o Rio de Janeiro, acrescenta: “A voga do lundu foi extraordinária. Nos salões e teatros
em periódicos como “lundus prediletos” de algum cidadão e/ou mencionados em situa- durante o intervalo dos espetáculos era dansado [sic] em cena para divertimento dos
ções curiosas, com um ar irônico ou satírico do relator. Mas onde estão os relatos sobre expectadores, consistindo numa atração muito especial” (ALMEIDA, 1942: 77).
esses eventos na historiografia musical local? Já Tinhorão (2013) relata o sucesso do lundu-canção nos palcos dos teatros de
Constatações, portanto, que intrigaram muito, já que a modinha, que sempre teve revista e circos.
a sua trajetória histórica narrada de forma inseparável da trajetória do lundu-canção
no cenário luso-brasileiro, aparece com uma força muito grande no cenário histórico [...] o ritmo do lundu cantado e dançado dos entremezes do teatro, o
lundu- canção solista dos tempos de Caldas Barbosa, “confundido la-
goiano, em detrimento da prática do lundu. Na verdade, é bom lembrar que um silêncio
mentavelmente com a cançoneta francesa, pela identidade maliciosa
quase total está relacionado a essa prática na historiografia musical local. Comentando dos versos, leveza do canto dialogado e das sátiras velhacas”, tal como
a relação intrincada que os dois gêneros parecem ter estabelecido no cenário histórico observou ainda o maestro Batista Siqueira, caminhou para a sua fase
brasileiro, na sua trajetória no século XIX, Sandroni (2001) observa: final de sua estruturação como música humorística, ligando-se já ao
teatro de revista. E foi sob essa forma que o lundu – embora muitas
o lundú e a modinha têm estado indissoluvelmente associados na histo- vezes confundido com o maxixe – alcançou ainda com sucesso o início
riografia da música brasileira. [...] Esse tratamento conjunto que os gê- do século XX, cantado em circos de todo Brasil e em casas de chope no
neros receberam por parte dos estudiosos reflete o que Araújo chama Rio de Janeiro [...] (TINHORÃO, 2013: 68).
de “conexões históricas”. Andrade escreve em seu clássico estudo sobre
a primeira: “o fato é que modinha e o lundum andaram muitíssimo ba-
ralhados”. E Kiefer: “No século passado não era rara a confusão entre No entanto, em terras de Goiás, que tanto cultivou a música, inclusive através de or-
modinha e lundú”. Para discutir o lundú será pois necessário abordar questras que tocavam no cinema, parece que esse encontro lundu/modinha, influência
também a modinha (SANDRONI, 2001: 41).
e popularidade não aconteceram do mesmo modo, e a historiografia, mencionou muito
a modinha.

290 291
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

Outras perguntas surgiram diante do contexto musical goiano relatado: que ele- o cruzamento dos dados colhidos nessa historiografia com os colhidos na historiografia
mentos levaram a esse “esquecimento” tão marcante do lundu-canção em Goiás?; que goiana geral, a partir de textos de autores que embasaram teoricamente este trabalho,
“olhares”, ou melhor, que viés metodológico e ideológico está por trás da historiografia da pesquisa em periódicos, de relatos orais, do exercício de comparação realizado tendo
disponível?; há um predomínio de material colhido, sobretudo, nos eventos frequen- em vista elementos comuns narrados por mais de um autor da historiografia musical
tados ou organizados por mulheres da elite?; será que as coletâneas de modinhas di- em questão – possibilitou chegar à consideração de lutas de representações. Essa so-
vulgadas podem incluir antigas versões do lundu, transformadas ritmicamente ou na ciedade, que apreciava tanto a erudição e a cultura europeia e investia nelas, que se
abordagem dos temas, “embranquecidas”, com o intuito de se aproximar desse gênero achava em pleno Brasil Central, distante do movimento e do desenvolvimento cultural
tão cultivado pela sociedade goiana?; uma sociedade muito moralista e preocupada em da então capital do país, o Rio de Janeiro, não aceitou e praticou, do mesmo modo que
se afirmar através dos seus investimentos na “alta cultura”, situada no interior do país, naquela cidade, uma música contramétrica, com textos picantes, jocosos ou críticos,
teria discriminado, de forma decisiva, a prática do lundu? Parece que a pré-figuração e a que implicava “chulice”, em uma conotação de “denguice” e “moleza brasileira”, segundo
configuração dessa narrativa, conforme descritas por Ricœur (1994: 103), conseguiram palavras de Tinhorão (2013: 61). No entanto, a circulação, em jornais, da menção a lun-
responder de forma positiva essas questões. dus praticados em outros centros do país, que aparecem relacionados ao cotidiano do
Representações evidenciaram-se, portanto, revelando essa realidade, juntando-se povo goiano, indica também que outros lundus podem ter sido cantados, inclusive em
àquelas que objetivaram uma trama social decididamente escravocrata, que cultivava reuniões fechadas, masculinas, especiais, já que “O lundu foi também cantiga silenciosa,
a erudição, a atividade musical intensa na Igreja e um comportamento exemplar, esbo- lundus em voz baixa, só para homens, como nos fala Melo Morais Filho” (ALMEIDA, 1942:
çando uma sociedade que se mostrava elitista, discriminadora e moralista. Ao que tudo 77). Melo Filho, mencionado por Almeida, citou entre esses lundus, como um dos mais
indica, teria sido esse aspecto elitista, discriminador e moralista um dos mais consis- famosos pelas “intenções fasceninas”, os de Laurindo Rebelo, musicados por João Cunha.
tentes motivos que levaram o lundu-canção e o lundu-dança a não serem praticados
e a não terem sido buscados e divulgados pelos autores que assinam a historiografia 5. Considerações finais
musical goiana, o que também já evidencia novamente valorações, categorizações, clas- Foi constatada, portanto, a evidência de representações, relacionadas à elite da socieda-
sificações, de um grupo social, ou seja, representações sociais e lutas de representações. de goiana, que se confrontavam com aquelas ligadas à dimensão cultural mais direta-
Neste momento, retomo Chartier (2002) e Woodward (2014), quando afirmam que as mente relacionada à cultura dos escravizados, que tinham uma história e uma atuação
identidades são marcadas pela diferença e que, na base dessa diferença, estão os sis- bem-definidas nessa trama social, já que foram marcadamente relegados a um lugar
temas classificatórios. Segundo Woodward (2014: 40), “um sistema classificatório aplica “que era o seu”. Representações que não deixaram de salientar a relação nós/eles nesse
um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la contexto, eu e o outro, conforme mencionado por Woodward (2014), o poder da “tradi-
(e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos – nós/eles [...]; eu/ cional família goiana” de dizer o que era, o que queria e o que podia, através do poder
outro” Lembro também Pesavento (2003: 41-42) quando, fundamentada em Chartier, ao de representar, o que incluía evitar a prática “do outro” e a menção ao lundu na histo-
se referir às lutas de poder implicadas com as lutas de representações, observa: riografia local. Assim, o lundu-canção não teve o mesmo trânsito, aceitação e circulação
na cidade de Goiás que teve no Rio de Janeiro no século XIX e início do século XX, apesar
Aqueles que têm o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo também de ter estado sujeito a lutas de representações na então capital. Goiás revelou-
tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em
-se como uma cidade do interior do Brasil, isolada, que, nessa condição, parece ter tido
uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua
maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, mais condição de externar o preconceito e o descaso por uma prática que lembrava a
de propor valores e normas que orientam o gosto e a percepção, que cultura dos escravizados, mesmo tendo sido tão aberta ao papel e à atuação da mulher
definem limites e autorizam os comportamentos e os papéis sociais na sociedade.
(PESAVENTO, 2003: 41-42). A experiência com essa abordagem do lundu em Goiás – uma entre tantas outras
possíveis –, que contempla o campo de produção da música popular e que integra uma
Representações também se evidenciam quando se observa que a historiografia cena musical periférica no cenário historiográfico musical brasileiro, trouxe a possibi-
musical local, de um modo geral, foi escrita praticamente por mulheres, e mulheres lidade do preenchimento de uma lacuna não só na história da música do estado, mas
descendentes de figuras femininas goianas implicadas com a elite e com os mecanis- também na história da música do Brasil. Cenário historiográfico que, praticamente, des-
mos sociais locais descritos, com uma atuação efetiva na sociedade. Em contrapartida, conhece o universo musical significativo mais amplo que existiu no interior do país no

292 293
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

século XIX e início do século XX. “Tentar recolher as peças e juntá-las do melhor modo ÍBERO-AMERICANO, 4.; CONGRESSO NACIONAL DE MUSICOLOGIA DA ABMUS,
possível”, em diversas frentes, conforme afirmado por Kiefer na contracapa do seu livro 1., 2016, Belo Horizonte. Anais [...]. 513-531
História da música brasileira: dos primórdios ao século XX (1977a), depois de observar que
existem enormes lacunas na historiografia musical brasileira, continua sendo ainda uma HEITOR, Luiz. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
importante tarefa do musicólogo.
KIEFER, Bruno. A modinha e o lundu, duas raízes da música popular brasileira. Porto Ale-
Referências gre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1977b.

ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp., 1942. KIEFER, Bruno. História da música brasileira: dos primórdios ao início do século XX. Por-
to Alegre: Movimento, 1977a.
ARAÚJO, Mozart. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1963.
LACERDA, Regina. Cantigas e cantares: músicas folclóricas e modinhas goianas. Goiânia:
CAMARGO, Guilherme. Viagem de Spix e Von Martius pelo Brasil (1817-1821). Musica- Editora UFG, 1985.
Brasilis, [S. l.], [20--]. Disponível em: http://musicabrasilis.org.br/sites/default/files/8_
uma_mulata_bonita_svm_0.pdf. Acesso em: 22 fev. 2018. LIMA, Edilson. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.

CASTAGNA, Paulo. A modinha e o lundu nos séculos XVIII E XIX. In: Apostila do curso LIMA, Edilson. A modinha e o lundu: dois clássicos dos trópicos. Tese (Doutorado em
História da Música Brasileira do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Musicologia) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
“Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, 2003, p. 1-23. Disponível em: https://mail.google. 2010.
com/mail/u/0/#trash/FMfcgzGtwqNKpcwvrNdxwMxRHwgTlwXr Acesso em: 31 ago.
2023. LIMA, Edilson. Notas introdutórias ao Lundu de marruá. Revista Brasileira de Música, Rio
de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 217-221, jan./jun. 2016.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações sociais. Rio de Janei-
ro: Bertrand, 2002. MENDONÇA, Belkiss S. C. de. A música em Goiás. Goiânia: Editora da Universidade Fede-
ral de Goiás, 1981.
CHAUL, Nars Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da
modernidade. Goiânia: Editora UFG, 1997. MORILA, Ailton Pereira. O amor nas canções populares no final do século XIX e início
do século XX. Revista Fenix de História e Estudos Culturais, Uberlândia, v. 10, n. 1, p. 1-22,
CLÍMACO, Magda Miranda. O papel da mulher no cenário musical goiano: o enfoque jan./jun. 2013.
de uma trajetória de Vila boa a Goiânia. In: SOUZA, Guiomar Rego; ROSA, Robervaldo
Linhares; CRANMER, David [Org.]. Musicologia e Diversidade. Goiânia: Appris, 2020, p. PALACÍN, Luis; GARCIA, Leônidas Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em docu-
288-312 mentos. Goiânia: Editora UFG, 1995.

DIAS, Ângelo. O canto e coral em Goiânia: uma trajetória. Revista UFG, Goiânia, ano X, n. PESAVENTO, Sandra J. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. PINA
5, p. 130-137, dez. 2008 FILHO, Braz Wilson Pompeu O Cancioneiro de Armênia. Goiânia: Agepel, 2004.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 1989. RIBEIRO, Paulo Rodrigues. Sombras no silêncio da noite: imagens da mulher goiana no
século XIX. In: CHAUL, N. F.; RIBEIRO, P. R. (org.). Goiás: identidade, paisagem e tradição.
GUILARDI, Ludymilla C.; CLÍMACO, Magda de Miranda. Saraus e serestas em Goiás: Goiânia: Editora UCG, 2001. p. 25-56.
processos identitários e interações com a modinha. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL

294 295
O lundu-canção na sociedade goiana do final do século XIX e início do século XX Magda de Miranda Clímaco

RICŒUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Tomo I. FOLHETIM no comprido. O Pulicador Goyano, Goiás, p.4, Ano I, n. 3, 18 de Março de 1885.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
RODRIGUES, Maria Augusta Calado de S. A modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia: Edi-
tora UFG, 1982. TROVAS Goyanas. A Informação Goyana, Goiás, p. 86, Ano II n. 8, 15 de Março de 1918.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Rio de janeiro: Zahar, 2001.

SILVA, Cândido Inácio da. Lá no Largo da Sé Velha. Musica Brasilis, [S. l.], [20--]. Dispo-
nível em: https://musicabrasilis.org.br/partituras/candido-inacio-da-silva-la-no- largo-
-da-se-velha. Acesso em: 28 nov. 2022.

SOUZA, Antônio Rocha de. As irmandades católicas dos negros na cidade de Goiás no sé-
culo XX. Tese (Mestrado em Ciências da Religião) – Departamento de Filosofia e Teolo-
gia, Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2001.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora
34, 2010.

TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular segundo seus gêneros. São
Paulo: Editora 34, 2013.

VINHAL, Felipe E. Dias de festas e lutas de representações: música e identidades na


Congada e na Festa do Divino de Niquelândia – GO. Dissertação (Mestrado em Música)
– Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.


In: SILVA, T. T. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15. ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.

Conversa Informal

RODRIGUES, Maria Augusta Calado de S. Informação colhida através de conversa infor-


mal na sala de espera de um consultório médico. Goiânia: 16 Mar 2016

Periódicos

PROPALOU-SE durante a semana. A Tribuna de Goyás, Goiás, p. 4, Ano III, n. 18, 1º de


Maio de 1880. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

296 297
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição

Bandas das cidades históricas


de Goiás: memórias,
identidade e tradição
Marcos Botelho
Universidade Federal de Goiás

298
9 como citar
BOTELHO, Marcos. Bandas das cidades históricas de Goiás:
memórias, identidade e tradição. In: SOUZA, Ana Guiomar
Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.). Centro-Oeste. Vitória:
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Música, 2023. p. 298-330. (Histórias das Músicas no
Brasil).
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

As bandas de músicas estão espalhadas pelos quatro cantos do Brasil, arraigadas 2) Memórias das Bandas das Cidades Históricas de Goiás: realizado em 2020 e
em inúmeras cidades e vilarejos. Entretanto, não é possível generalizar uma tradição ou 2021 com recursos do Fundo de Artes e Cultura do Estado de Goiás em parceria com o
prática única no país. De modo geral, as bandas surgem como necessidades locais, para Instituto Bertran Fleury.
prover música ao vivo em festividades religiosas e cívicas, e, sem dúvidas, somente para O roteiro das entrevistas possui tópicos convergentes.Serão estes que iremos uti-
entretenimento. Porém, são fortemente influenciadas e moldadas por questões estrita- lizar como fonte de dados e comparação:
mente regionais, incluindo desde questões estéticas até políticas (BOTELHO, 2006). 1) importância das bandas na vida dos entrevistados;
Empiricamente, podemos apontar que existem duas práticas de bandas distintas 2) história das bandas e relação com a localidade; e
no estado de Goiás, mas que mantêm laços entre si. Na capital e em localidades de 3) repertório e atividades das bandas.
desenvolvimento urbano mais recente, onde acreditamos haver uma forte influência da
capital, encontramos várias bandas escolares marciais. Estas são pertencentes às esco- Logicamente, as entrevistas possuem outras informações, que se referem mais às
las, geralmente estaduais, e são formadas por instrumentos de metais e percussão, ou cidades e/ou especificidades das diferentes pesquisas. Os entrevistados tinham a liber-
até mesmo somente por percussão, acrescendo-se um corpo coreográfico. São bandas dade de abordar assuntos que consideravam importante, e ainda eram estimulados a se
mais jovens, com não mais de 30 anos, muitas vezes. É exatamente esse tipo que en- lembrarem de “causos” e acontecimentos vividos por eles.
contramos na região metropolitana em grande número, assim como em Anápolis e em Ainda complementamos que, no projeto Em Busca da Memória de uma Banda
outras cidades pelo estado, de forma pontual. Centenária,foram editadas e revisadas dez músicas de compositores de Corumbá de
Em contrapartida, as cidades históricas goianas apresentam forte tradição de ban- Goiás. O BandaLab ainda foi responsável técnico pela implementação do acervo musi-
das de músicas, diferenciam-se das já mencionadas por apresentar instrumentos de ma- cológico da Corporação Musical 13 de Maio; nesse processo, foram editadas e revisadas
deiras, metais e percussão, assim com ausência de corpo coreográfico. Elas são intima- mais 15 peças de compositores da banda, totalizando 25. Além, é claro, de higienizar,
mente ligadas às atividades e festividades locais. Também existiram bandas em outras digitalizar e acondicionar todo o acervo de músicas, composto por cerca de 1.500 obras.
cidades de povoamento mais antigo, como Luziânia e Santa Helena de Goiás, mas que As bandas possuem poucos registros escritos, e algumas não têm nem mesmo o
estão desativadas. Aqui, iremos tratar somente de quatro cidades: Pirenópolis, Corumbá acervo de partituras. Realizar a reconstrução histórica delas é sempre um desafio para
de Goiás, Jaraguá e Goiás.Essas localidades mantêm tradições centenárias, como a Festa qualquer pesquisador. Também as localidades escolhidas são pequenas, com poucos re-
do Divino, Cavalhadas, festividades da Semana Santa etc. De modo geral, tradições com gistros escritos , como periódicos. Assim, as entrevistas e o cruzamento de dados com as
origens lusitanas, mantidas desde o século XIX. Pelo posicionamento geográfico, essas poucas fontes escritas tornam-se, a nosso ver, a principal fonte de informações e dados.
localidades mantiveram certo isolamento do restante do país, criando, cultivando e mo- Compreendemos também que a utilização de fontes orais pode trazer imprecisões de
dificando tradições aparentemente sui generis, em relação às bandas de outras partes data, esquecimentos e mesmo memórias “falsas”, criadas com a passagem do tempo. En-
do Brasil (BOTELHO, 2022). tendemos que grande parte disso forma a beleza e a importância das bandas. Assim, “a
pluralidade de expectativas e de memórias é o inevitável corolário da existência de uma
1. O acervo e concepções da pesquisa pluralidade de mundos e de uma pluralidade de tempos sociais” (CATROGA, 2001:34).
O presente texto é fruto das pesquisas desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos e Prá- A memória das bandas e de suas práticas confunde-se com a história pessoal de seus
ticas de Bandas e Instrumentos de Sopros da Universidade Federal de Goiás (BandaLab- componentes, desse modo, “a ligação visceral existente entre a memória das bandas e
-UFG), que vem constituindo acervos de entrevistas de músicos e seguidores das bandas a de seus integrantes não permitiria outro tipo de abordagem” (MESQUITA, 1994:87). As
de música de Goiás desde 2016. Atualmente, o acervo, intitulado Memória das Bandas questões aqui abordadas são fruto dessa interação.
de Goiás,conta com cerca de 27 horas de gravações de entrevistas semiestruturadas
com 31 pessoas ligadas às bandas (músicos e admiradores) das cidades de Corumbá Na experiência vivida, a memória individual é formada pela coexistên-
cia, tensional e nem sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, fa-
de Goiás, Pirenópolis, Jaraguá e Goiás. Até o momento, possui entrevistas realizadas por
miliares, regionais, nacionais etc.) em permanente construção, devido
meio de dois projetos, todos coordenados por nós: à incessante mudança das re-presentações (ou re-presentificações)
1) Em Busca da Memória de uma Banda Centenária: realizado em 2016 e 2017 com do pretérito (CATROGA, 2015: 11, grifos nossos).
recursos do Fundo de Artes e Cultura do Estado de Goiás e Itaú Cultural; e

300 301
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

Utilizamos a reminiscência pessoal, a evidência oral específica das experiências As diferentes temporalidades, citadas por Freire (1994), também estão expressas
de vida do entrevistado. “Os dados orais podem proporcionar detalhes insignificantes nas bandas. Mais uma vez, o repertório é exemplo do convívio de músicas tradicionais,
que de outra maneira são inacessíveis e, por isso, estimulam o historiador a reanalisar como os dobrados ou músicas das procissões, com música que toca atualmente nas rá-
outros dados de maneira nova” (PRINS,1992: 195). A ligação das bandas com suas dios e é divulgada por diferentes meios de comunicação (BOTELHO, 2006: 17). Assim, “a
localidades torna-as únicas. Até mesmo quando há mais de uma banda na mesma pluralidade de expectativas e de memórias é o inevitável corolário da existência de uma
localidade, os seus relacionamentos criam características distintas. pluralidade de mundos e de uma pluralidade de tempos sociais” (CATROGA, 2001: 34).
As bandas de música representam uma das muitas práticas rituais que Ressaltamos também o conceito de mudança abordado por Nettl (2000). Achamos
estão presentes na sociedade brasileira, como o futebol, o carnaval, oportuno utilizar essas concepções, pois o objeto de estudo é reconhecidamente liga-
as festas cívicas e religiosas. Não é por acaso que em cada momento do à tradição. À primeira vista, as mudanças são nulas. Observamos, porém, que Nettl
destes, frequentemente, os sons das bandas são ouvidos. [...] possuem (2000) considera que a noção de mudança não é fixa, e que se transforma de cultura
grande significado cultural e comunitário, resgatando e valorizando o
para cultura. O entendimento do conceito de mudança deve ser buscado no próprio
patrimônio musical (PEQUENO; TACUCHIAN; GERK, 1994: 16).
âmbito de estudo. Pelo fato de as bandas serem intimamente ligadas às tradições e ao
A tradição e a sistematização de suas práticas são oriundas de sentimentos de iden- passado, deve-se ter especial cuidado ao buscar compreender as mudanças e continui-
tidade criados pelo imaginário e pelas memórias coletivas. Isso é o que une um determi- dades, ressaltando-se que a percepção, para os membros das bandas, sobre o que muda
nado número de indivíduos, de modo que estes passem a se perceber como uma não é, necessariamente, o mesmo ponto de vista do observador externo. Mesmo o que é
unidade social, como uma banda. Castoriadis (1982: 193) afirma que “não podemos considerado imutável deve ser encarado como uma construção cultural, sujeita a varia-
compreender uma sociedade sem um fator unificante, que fornece um conteúdo ções, tanto no tempo como no espaço.
significado e o entrela-ce com as estruturas simbólicas”. Ainda acrescenta que: “as
instituições não se reduzem ao simbólico, mas elas só podem existir no simbólico, são 2. Origens das bandas no Brasil
impossíveis fora de um simbólico em segundo grau e constituem cada qual sua rede Reconstruir, de forma generalizada, a trajetória das bandas no Brasil é tarefa bastante
simbólica” (CASTORIADIS, 1986: 159). árdua e talvez impossível, embora seja um erro corriqueiro. O mais comum é utilizar-se
Buscamos as respostas diretamente em interação com o objeto estudado. de uma perspectiva local para buscar a generalização, gerando equívocos imensos. Nós
Portanto, “os nexos são ditados por afinidades electivas, e estas determinam que cada mesmos já cometemos esse erro quando começamos a estudar bandas. Alguns autores,
presente cons-trua a sua própria história, não só em função da onticidade do que como Granja (1984), retornam aosjesuítas e seus grupos musicais com instrumentos de
ocorreu, mas também das necessidades e lutas do presente” (CATROGA, 2001: 22). Essa sopro. Outros,às bandas de escravos nas fazendas, como Tinhorão (2005).
base metodológica está relacionada com o fato de o pesquisador ter forte ligação com o Entretanto, podemos elencar alguns fatores que são importantes e recorrentes
objeto de estudo escolhido. em quase todas as regiões. Primeiramente, o fato de que vários autores (GRANJA, 1984.
Acrescentamos que a história é um fenômeno social, “o indivíduo puro e simples TINHORÃO, 2005, 2010. SILVA, 2018) destacam direta ou indiretamente a influência de
é invisível enquanto tal na perspectiva histórica” (FREIRE, 1994: 115). Por essa visão, músicos e mestres europeus, em sua maioria portugueses, italianos e alemães. Além de
a sociedade é entendida como uma pluralidade e uma heterogeneidade de estes, geralmente, serem professores de escravizados ou pessoas negras livres, tornan-
significados, com uma unidade que é dada pelo seu imaginário. Existem, dentro de do, assim, as bandas uma conjunção entre as culturas e músicas.
uma mesma sociedade, diferentes culturas, com diferentes expressões, inclusive Kaltenecker (2004) demonstra que as bandas europeias, principalmente a partir
artísticas, do que resulta uma trama social heterogênea e complexa. Essas múltiplas do século XVIII, estavam presentes nas ruas, sendo importante fonte de entretenimento.
culturas, essa multi-plicidade e essa heterogeneidade da sociedade, estão em O autor ainda destaca a importância dessas bandas em projetos políticos, como o de
constante movimento. Napoleão. Beltrán (2011) acrescenta a integração das ibéricas em todas as atividades
Podemos citar, para melhor elucidar, Freire (1994: 128): comunais: cívicas, religiosas e puramente de entretenimento. Embora não conheçamos
Os signos utilizados na linguagem musical reportam-se à rede simbóli- estudos que comprovem que tais atividades e fatos tenham se replicadono Brasil, acre-
ca presente no momento histórico de sua elaboração, mas, também, os ditamos que há grande semelhanças.
signos utilizados podem ser investidos de outras significações que não As bandas compuseram fortemente o cenário cultural colonial. Tinhorão (2005,
correspondem a esse mesmo momento histórico, assim como podem 2010) descreve esse momento, principalmente os ternos e quartos de barbeiros no sé-
portar, residualmente, significados elaborados em momentos históricos
outros, e que, portando, estão sendo utilizados através de um processo
de ressignificação.

302 303
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

culo XIX, que são chamados, por vários autores, de “bandas de barbeiros”. Estas últimas As bandas participaram dos primeiros registros fonográficos de música brasileira,
eram formadas por escravizados ou mestiços, e, ainda segundo o autor, seus conheci- como no caso da Banda do Corpo de Bombeiros e da Banda da Casa Edison. As bandas fo-
mentos musicais eram oriundos das práticas de bandas nas fazendas. Chegados às cida- ram, no início do século XX, instrumento de divulgação da música erudita e popular, des-
des, complementavam os espaços deixados pelas bandas militares, além de represen- pertando interesse das gravadoras e dando uma grande contribuição através da recriação
tarem uma forma barata de música para animação de festas populares, como o entrudo. de diversos gêneros musicais, às vezes com caráter quase orquestral (SOUZA, 2015).
Esses músicos geralmente não sabiam ler música, porém tocavam desde o repertório Vinicius Mariano de Carvalho (1997) nos fala das bandas nas Minas Gerais no sé-
militar ao popular. Todavia, ressalta o autor, sempre com um certo “tom de senzala”, culo XIX. Informa-nos que a decadência do ouro, ligada a uma nova organização social,
fato que revela a importante presença da música popular urbana entre os músicos de fez com que surgissem muitas bandas civis. Afirma que essas bandas assumiram, como
bandas. Ainda nesse período, as bandas militares eram muito atuantes no cotidiano da herança, o serviço eclesiástico antes executado pelas orquestras e, também, ocuparam
sociedade, participando das festas religiosas, cerimônias cívicas e de retretas domin- as funções dos charameleiros.Acreditamos que algosemelhante ocorreu em Goiás.O au-
gueiras (TINHORÃO, 2005: 99-107). tor complementa que ocupavam amplo espaço na sociedade e que, com a proibição de
Outro fator que consideramos muito impactante para as bandas no Brasil foi as bandas tocarem nas igrejas no final do século XIX, passaram a ocupar os “coretos das
o decreto de 20 agosto de 1802, que tornou obrigatória a existência de banda de praças, nas quais, em geral, se localizavam também as Igrejas” (CARVALHO, 1997: 117).
música em todo Regimento de Infantaria mantido pelo erário público (GRANJA,
1984: 198). Isso fez com que essas novas bandas militares substituíssem as antigas 3. As cidades históricas de Goiás e suas bandas
forma-ções de charameleiros e bandas de barbeiros (TINHORÃO, 2010). Eram A região de Goiás começa a ser povoada pelos portugueses com as “bandeiras pene-
necessários muitos músicos para suprir essa demanda nos quartéis. A banda militar, trando e alargando o domínio português a cata de índio e dum caminho para Cuiabá”
segundo Ti-nhorão (2005: 99-107), oferecia uma das poucas oportunidades que (RODRIGUES,1982:17).Os primeiros músicos no estado de que se tem notícias foram o
grande parte da população das principais cidades brasileiras, na segunda metade do padre José Joaquim Pereira da Veiga, na então Vila de Nossa Senhora do Rosário de Meia
século XIX, tinha para ouvir música instrumental. Possivelmente, a existência de Ponte(hoje Pirenópolis), em 1772, e o padre Manuel de Andrade Verneck, na entãoVilla
bandas militares em várias localidades deve ter tornado sua presença em Boa de Goyaz(hoje Goiás), em 1775, ambos vindos do Rio de Janeiro. Assim, são “esses
festividades cívicas e religiosas condição sine qua non. Assim, quando as localidades dois vigários o embrião do cultivo da música nas duas cidades goianas” (MENDONA,
não possuíam bandas militares, a sociedade organizava-se para as criar e manter. 1981:15). A autora afirma que, com sua chegada, as famílias locais conseguiram instru-
Assim como banda de alemães, suíços e austríacos, que circulavam pelo Rio de mentos para seus filhos, formaram pequenos grupos instrumentais familiares, “verda-
Janeiro nos séculos XVIII e XIX (TINHORÃO, 2005). Acreditamos que, pelo fato de o deiros embriões de conjuntos, orquestras e bandas musicais” (MENDONÇA, 1981: 16).
Rio de Janeiro ser a capital do Império, era mo-delo paras cidades e formações
urbanas emergentes no século XVIII e, principalmente, nos oitocentos. Buscavam ter 3.1 Villa Boa de Goyaz e suas bandas
as mesmas atividades, mas desenvolvendo suas práticas de bandas com A cidade de Goiás, antiga Vila Boa, surge onde foram descobertas as primeiras
características próprias e locais. Muito provavelmente,isso influenciou as cidades aqui minas de ouro na região, em 1727, assim, em 1818, é elevada à categoria de cidade, ten-
estudadas. do sido capital da província e do estado de 1749 a 1937 (RODRIGUES, 1982). Torna-se
Vale lembrar que as primeiras bandas organizadas surgiram no fim do século XIX patrimônio histórico e cultural mundial em 2001 pela Organização das Nações Unidas
e início do século XX, quando as bandas particulares dos fazendeiros e as charamelas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
deixam de existir e a vida urbana começa a ser mais valorizada (BOTELHO, 2006). O escritor Elder Passos (2018: 224-236) aponta que a primeira banda
Suas características instrumentais foram estabelecidas nessa época, e alguns oficialmente fundada na cidade de Goiás foi a Sociedade Phil’larmonica de Goyaz, em
instrumentos característicos de bandas deixaram de ser utilizados, como 1870, seguida de inúmeras outras, como a Banda de Música Joaquim Marques (1890), a
charamelas, serpentões e oficleide substituídos, gradativamente, por outros, como os Sociedade de Santa Cecília “Lira Musical” (1905), a Banda Musical do Seminário (1910)
saxofones e a tuba (BOTELHO, 2006). Edinha Diniz (1999: 27-39) revisa essa fase e ea Sociedade Beneficente de Santa Luzia (1912). Também as bandas militares
informa que essas corporações passam a congregar indivíduos com interesses exerceram papel im-portante na cidade, como a Banda da Música da Guarda
comuns. É o caso dos “clubes políticos, grêmios literários, ligas abolicionistas, grupos Nacional, fundada em 1880, também conhecida comoBanda do 20º Batalhão. A única
de choro, sociedades carnavalescas etc.” (DINIZ, 1991:33). Essas instituições banda em funcionamento atu-almente na cidade é a Banda da Polícia Militar, fundada
contribuíram para o deslocamento e a mobilidade social de seus integrantes (DINIZ, em 1893. Ainda existiu a Banda Ypiranga, que surgiu 1922, com a transferência do 6º
1991).
304 305
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

Batalhão de Caçadores (MENDONÇA, 1981: 87). Reconhecidamente, “realizavam-se das em caráter particular para amadores” (MENDONÇA, 1981: 89); nas entrevistas,
retretas às quintas e domingos: às 17 horas, ouvia-se a Banda do Exército, em frente tal fato também é destacado, como na fala do senhor Ondumar Gomes, que diz que
ao quartel, e, à noite a Banda da Polícia, no coreto do jardim” (MENDONÇA, 1981: 87). come-çou a aprender com Ismael Santana, seu vizinho, também adolescente. Este
O artista plástico Euder Lima lembra e relata as retretas em seu depoimento. comenta: “os músicos lá da banda sempre passavam coisas para gente, nos ensinavam,
Quando perguntado se a banda marcou a sua vida, responde: “tanto marcou que eu mas não tinha aula, não” (relato oral).
lem-bro” (relato oral) , complementa que “a moçada ficava lá, toda reunida em volta do A música fazia parte do cotidiano, principalmente entre a segunda metade do sé-
coreto da praça, isso acontecia uma vez por semana, não me lembro o dia, mas era um culo XIX e a primeira do século XX. Existiam inúmeras atividades religiosas, saraus, se-
dia de semana” (relato oral)1. Fato interessante é que, na cidade de Goiás, ocorreram restas etc., não sendo exatamente necessário um grupo formalmente constituído, como
bandas ligadas às famílias, chamadas pelos entrevistados de “bandas particulares”; a uma banda, para a realização (MENDONA, 1981: 59-77). Fernando Cupertino ainda
família Oto Marques é bem citada. O senhor Elder Camargo de Passos2 fala sobre: complementa: “a cidade é pequena, não tem tantos músicos assim, então eles acabam
que participam de tudo” (relato oral).
A Banda da Polícia Militar, que ainda está aí, banda do exército que
Um fato que corrobora isso é que, em alguns grupos musicais locais, não há exata-
esteve aqui. Bem... Bandas particulares aí tem um monte, Banda de Oto
Marques, banda do pai de Oto Marques [...]. Era o pessoal que reunia e mente uma divisão instrumental entre bandas, orquestras e/ou outros grupos.Mendon-
falava “Vamos fazer uma banda?”.“Vamos.” Aí levava o nome ou do ma- ça (1982) afirma que, com “o desenvolvimento do aprendizado local, os vocacionados
estro ou irmandade (relato oral). [...] sentiam logo o desejo de se agregarem a outros, formando
grupos” (MENDONÇA, 1982: 62). Muito nos chamou a atenção a instrumentação das
Outro fato incomum é que não existia escola formal nas bandas. Em depoimentos, primeiras orquestras formadas em Goiás no início do século XX. A mesma autora
dois ex-músicos aposentados da Banda da Polícia Militar, os senhores Ismael Santana afirma que a primeira orquestra foi fundada em 1914 e era composta por piano, três
e Ondumar Gomes3, relatam como aprenderam música, informam que alguns músicoso violinos, um violoncelo, um contrabaixo, uma flauta, duas clarinetas e dois
grupo que integravamdavam aulas informais. O senhor Ismael relembra que, quando bombardinos. Assim como a orquestra do Cine Ideal, fundada em 1919, com os
começou a estudar com um músico na banda, passou a dar aula para seus colegas vizi- mesmos instrumentos, alterando-se somente as quantidades, sendo mais tarde
nhos e que, aos 13 anos de idade, principiaram a ensaiar aos domingos, formando uma acrescida de piston.
banda. Relata que a banda não possuía nome oficial, mas era conhecida como “Atuais do Souza (2015) complementa que, quando se fala da fundação da primeira banda
Ritmo”, e que, após isso, passou a participar de várias atividades na cidade (relato oral). da cidade:
Havia uma grande atividade doméstica musical. Os entrevistados demonstram que José do Patrocínio Marques Tocantins, músico de grande prestígio na
região, criou, por sua vez, em 1870, a “Sociedade Phil’harmnica”, con-
os músicos participavam das várias atividades culturais. Mesmo a Banda da Polícia Mi- junto instrumental que funcionava como orquestra ou como banda.No
litar, sendo militar,se integrava com a comunidade. Podemos notar tal fato na entrevista primeiro caso, atuava no teatro de São Joaquim e em concertos. apre-
do compositor e médico Fernando Cupertino4, que diz que ele próprio foi convidado, em sentava um naipe de cordas, como pode ser atestado por manuscritos
várias ocasiões, pelos regentes dessa banda a reger e os auxiliares; acrescenta que era que trazem o nome “Phil’harmnica” junto ao título, indicando as partes
dos primeiros violinos, segundos violinos e violas. Possuía ainda um
corriqueira a participação de músicos externos à banda.
harmônio, instrumento que também foi adquirido por particulares
As bandas de música, tradicionalmente, possuem ou mantêm escolas de música e pelos dominicanos (SOUZA, 2015: 191, grifo nosso).
para suprir sua demanda por novo integrantes.Entretanto, em Goiás, “as aulas eram da-
Outro fato interessante relatado por todos os entrevistados é que era comum os
compositores locais fazerem arranjos para que a banda tocasse suas composições. Assim,
as músicas das serestas, Carnaval, saraus, festas do Divino etc. eram levadas para bandas.
1
As citações retiradas das entrevistas serão apontadas como “relato oral”. As informações e referências Compositores como João Ribeiro, conhecido por sua produção de músicas de Carnaval, são
relativas a cada entrevista encontram-se nas referências ao final do texto. Utilizamos somente uma en-
trevista de cada pessoa. muito citados. Mais uma vez, demonstrando a fusão entre todos os fazeres musicais locais.
2
Escritor e memorialista da cidade de Goiás. Portanto, acreditamos que nossa estranheza surja de um pré-conceito que classifi-
ca e organiza os grupos musicais como bandas, orquestras, corporações etc. Entretanto,
3
Entrevistas concedidas, separadamente, em 25 de agosto de 2021.
4
Médico, compositor e regente atuante nas atividades musicais da cidade de Goiás.

306 307
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

na cidade de Goiás, tais divisões e classificações não são relevantes em suas práticas. Foi extinta em 1851, e, em 1868, foi criada a Euterpe, aproveitando-se alguns músicos
Todos os fatores apontados até aqui podem explicar a falta de grupos com vidas dura- da banda anterior (MENDONÇA, 1981: 113-115). A Banda Phoenix, única ainda em fun-
douras, sendo formados e extintos de acordo com comodidades de seus integrantes. As cionamento em Pirenópolis, surge em 1893 (Figura 2).
práticas são repetidas e tradicionais, os músicos são provavelmente os mesmos, mas
não possuem a necessidade ou mesmo a vontade de formalização, diferentemente das
outras cidades estudadas.

3.2 Demais cidades históricas de Goiás


Ainda no século XVIII, surgem as outras três cidades históricas estudadas: Pirenó-
polis, Jaraguá e Corumbá de Goiás. As cidades de Corumbá de Goiás e Pirenópolis são
vizinhas, separadas por cerca de 10km de distância, assim, desde sua fundação, mantêm
grande intercâmbio, sendo que Jaraguá está um pouco mais longe, a cerca de 70km. A
cidade de Goiás situa-se geograficamente mais distante, a cerca de 150km, estando re-
lativamente isolada (Figura 1). Outro fato que pode ter contribuído para seu isolamento
foi ter sido capital do estado de Goiás. Entretanto, todas mantêm tradições e festivida-
des muito semelhantes e antigas e têm bandas desde seus primórdios, intimamente
ligadas a suas atividades culturais.

Fig. 2: Quadro demonstrativo com as datas de fundação e extinção das bandas de Pirenópolis. Fonte:
Mendonça (1981: 143).

Desde o início do século XIX, houve grande número de atividades musicais na


cidade, em especial religiosas, inúmeros grupos que surgiram e desapareceram
desde 1805 (MENDONÇA, 1981: 108). No povoado, eram representados dramas,
intercalados com árias, que a população chamava de “óperas”.
Fig. 1: Mapa demonstrando o distanciamento da cidade de Goiás e a aproximação das demais.
Fonte:http://www.vilaboadegoias.com.br/mapa_de_brasilia_goias_velho.htm Não havia teatro na cidade, de modo que as peças eram encenadas
nas ruas, fechadas para tal fim. O palco, armado à altura das janelas de
ambos os lados da via pública, possibilitava aos artistas entrar e sair de
cena pelas janelas, usando ainda as casas como camarins e bastidores
3.3 Pirenópolis: a Banda Phoenix (MENDONÇA, 1981: 108).
Pirenópolis foi fundada em 1727 e foi tombada, como patrimônio histórico
nacional, em 1989. Mendonça (1981: 95) afirma: “crê-se que a as primeiras atividades
musicais foram realizadas pelo padre José Joaquim Pereira da Veiga, que veio do Rio O grande vulto das bandas em Pirenópolis foi Tonico do Padre (Antônio da Costa
de Janeiro em 1772, e ele próprio ensaiou e encenou nas festas religiosas”. Também Nascimento), que viveu entre 1837 e 1903, tendo sido regente da Banda Euterpe até
menciona que a primeira banda de música surgiu em 1830. No ano seguinte, criou-se a a sua morte. Deixou grande número de composições, sacras e profanas (MENDONÇA,
banda da Guar-da Nacional, pertencente ao grupamento, tornando-se conhecida
como Banda Militar.

308 309
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

10
1981: 115). O antigo maestro Alexandre Pompeu de Pina comenta sobre a fundação da
5 O antigo maestro Alexandre também conta o mesmo episódio. O maestro
11
Aurélio ainda complementa que ouviu, de um músico veterano, que Pompeu de Pina
Banda Phoenix, em 1897.
era dono do campo de futebol da cidade e que “os garotos só podiam jogar bola se
Por que nasceu a Banda Phoenix? Porque as pessoas tinham necessidade fossem es-tudar com Vasco” (relato oral). O senhor Alexandre12 informa que o acervo
de aprender música, e o Tonico já não estava mais com paciência para de partituras da Banda Euterpe foi comprado por Pompeu em 1967, por 200 mil
ensinar. Então, procuraram o mestre Propício, porque ele era mais calmo cruzeiros. Conclui dizendo que “então somou tudo, Euterpe e Phoenix, e tá tudo
para ensinar. [...] Então, os músicos que estudavam com Propício resol- aí” (relato oral).
veram fazer uma homenagem no dia do seu aniversário. Se reuniram e Assim, podemos compreender que a Banda Phoenix herda e funde sua
preparam alguma coisa e foram fazer a homenagem. [...] Nesse dia, a
banda tocou, aí ele disse: “Então, a partir de hoje, nasce a Banda Phoenix,
história nas “memórias” e “lembranças” da população, passando a ter seu passado
porque surgiu das cinzas, porque ninguém queria ensinar” (relato oral). confundido com o da Banda Euterpe. Entendemos que tal fato ocorra por ser a única
em atividade na cidade e possuidora do arquivo de partituras das duas bandas,
tocando as músicas tradicionais (incluindo as de Tonico do Padre), e por ter passado
Os entrevistados de Pirenópolis acreditam que, por esse motivo, as bandas pas- a incluir vários inte-grantes que foram da Euterpe após sua extinção. O maestro
saram a ter uma certa rivalidade. O maestro Aurélio Afonso da Silva6 informa que, em Aurélio Silva relata que seu bisavô assumiu a Euterpe com a morte do Tonico do
certos momentos, as duas bandas se envolviam na política local, apoiando lados opos- Padre e conclui que “os grandes compositores pirenopolinos são da Banda
tos. Quando perguntamos sobre os compositores locais, o senhor Alexandre7 citou uma Euterpe” (relato oral).
série de nomes, e omitiu Tonico do Padre. Assim, indagamos sobre esse personagem, e
ele respondeu que “Tonico era da Euterpe, estou falando somente os compositores da
Phoenix” (relato oral). Entretanto, entre os nomes citados, havia alguns que foram da 3.4 Corumbá de Goiás: a Corporação Musical 13 de Maio
Euterpe e que, depois, passaram a compor a Phoenix.O senhor Aurélio8 conta que a riva- O município de Corumbá de Goiás foi fundado em 1730. O historiador Ramir
lidade das bandas e a divisão da cidade era tal que, de acordo com quem era sorteado Curado (2014) afirma que a paróquia foi criada em 1845, e junto também surgiu
para ser o festeiro ou imperador das festas, “já se sabia qual banda ia tocar, Euterpe ou uma orquestra e um coral para as atividades litúrgicas. O mesmo autor ainda informa
Phoenix” (relato oral). que, em 1866, é instituída a Banda de Música União Corumbaense, que acompanhava
A partir de 1935, com a extinção da Euterpe, a Phoenix torna-se a única banda da as festas religiosas, sendo extinta em 1870, devido à morte do seu fundador. Em
cidade. Porém, na década de 1960, entra em declínio e chega a parar por cerca de um 1874, a antiga banda é reorganizada com o nome de Banda 14 de Julho, findando
ano.O atual maestro Aurélio9 comenta sobre esse momento: suas atividades em 1909. A Corporação Musical 13 de Maio (Figura 3) foi
estabelecida em 13 de maio de 1890. É considerada a banda civil mais antiga em
Conta a história que veio de Anápolis a Banda Lira de Prata e fez um atividade do estado de Goiás com data de fundação documentada,sendo, atualmente,
desfile aqui. [...] Aí, Pompeu viu e disse:“Pirenópolis não pode ficar a única em funcionamento na cidade. Sobre sua criação, Curado (2016) informa-nos:
sem banda”, e Pompeu foi atrás de músicos, inclusive da Euterpe. [...]
Foi atrás de Vasco da Gama, filho de Silvino Rodrigues Siqueira, que Em Corumbá uma das lideranças desse partido (Liberal) resolveu co-
era da Euterpe, para ele administrar a banda. [...] Por fim, Vasco falou: memorar esse fato (de estar à frente do gabinete monárquico) com
“Pompeu, se você arrumar alunos para mim, eu dou aula na banda para uma passeata, mas a Banda 14 de Julho, cujo diretor era o chefe local
você”(relato oral). do Partido Conservador, se negou a tomar parte nesse evento. Por esse
motivo Antônio Félix Curado (Felinho) cujo pai, Cel. Luiz Fleury de Cam-
pos Curado, era o líder do Partido Liberal em Corumbá, resolveu fundar
outra banda de música na vila. Foi convidado para formar os músicos e
reger a banda José Gomes Gerais, maestro da banda do Pe. Simeão
5
Regente da Banda Phoenix na década de 1990, entrevista concedida em 5 de junho de 2021. Lopes na fazenda Babilônia, município de Pirenópolis (CURADO, 2016:
2).
6
Atual regente da Banda Phoenix, entrevista concedida em 5 de junho de 2021.
7
Alexandre Pompeu de Pina. 10
Alexandre Pompeu de Pina.
8
Aurélio Afonso da Silva. 11
Aurélio Afonso da Silva.
9
Aurélio Afonso da Silva. 12
Alexandre Pompeu de Pina.

310 311
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

A princípio, eu nem me toquei que seria a primeira mulher a tocar na banda, para
mim era uma experiencia nova. [...] Tenho, inclusive, o diploma de ser a primeira inte-
grante feminina. O ambiente era muito machista. Realmente, nem tinha como ter mu-
lheres na banda, mas, como eu já tinha uma certa idade, me impus, e me senti muito
acolhida por eles. O olhar da sociedade para com a banda mudou, mudaram as brinca-
deiras, e diminuiu bastante o consumo de bebida. Com a minha entrada, vieram outras.
[...] Depois, puseram as meninas para estudar música (relato oral).

Assim, seu pai, complementa que, a partir de então, algumas coisas


mudaram no comportamento dos músicos: “Foi bom porque moralizou
mais a banda, a banda era meio esculhambada. [...] muita cachaça, mui-
ta bebida, muita festa”(relato oral).Ramir Curado informa que, na déca-
da de 1950, algumas jovens solteiras, que cantavam na igreja, tentaram
tocar na banda, mas foram “barradas”: “principalmente as solteiras, para
as casadas era ousadia demais para o pensamento da época”(relato
oral). Não iremos nos deter na questão ou a aprofundar, mas gostarí-
amos de a registrar, por ter sido bastante abordada nos depoimentos,
demonstrando a importância que ocupa no imaginário e na formação
de suas identidades na banda .

Fig. 3: Nota fiscal da compra dos primeiros instrumentos, em 1889, para a fundação da banda,um dos 3.5 Jaraguá: a Santa Cecília e a Lira Jaraguaense
documentos de comprovação da fundação.Fonte: Acervo da Corporação Musical 13 de Maio.
O município de Jaraguá foi fundado em 1736 como Córrego do Jaraguá.Atualmen-
te, podemos localizar duas bandas, a Corporação Musical Santa Cecília, que se autointi-
O historiador Ramir Curado também é músico da banda.Em seu acervo pessoal, tula como a mais antiga de Goiás, com fundação em 1869 (atribuindo a sua instituição
guarda parte da documentação referente à sua fundação. Os entrevistados de Corumbá a um recibo de pagamento, exposto na Figura 4) e a Banda Lira Jaraguaense, fundada
de Goiás, quando perguntados sobre a história da banda, indicando a instauração, in- em 2010 por iniciativa do maestro Eurípedes dos Santos, formando a Associação dos
cluindo a motivação política já relatada, ressaltam a disputa entre partido conservador Músicos de Jaraguá, entidade mantenedora.
e partido liberal. Vale salientar que as falas sobre a fundação são sempre concentradas
na figura do senhor Ramir Curado, referindo-se a ele como detentor do conhecimento.
Os entrevistados ainda apontam os antigos maestros e, principalmente, fatos vividos
por eles como significativos. Podemos destacar duas situações sempre lembradas: a ida
da banda para uma apresentação televisionada no Rio de Janeiro e a inserção de mu-
lheres entre os músicos.
No histórico oficial da banda, encontrado em seu site (www.banda13demaio.com)13,
desataca-se que somente em final da década de 1970 as mulheres foram admitidas. As-
sim, lemos: “sendo composta não só por homens, como foi até início da década de 70,
mas, também, por mulheres, executando instrumentos de sopro e percussão e apresen-
tando peças musicais dos mais variados estilos” . A senhora Maria Gorete foi uma dessas
pioneiras, sendo filha do maestro à época, Geraldo Magela. Assim, informa que já estu-
dava clarineta na Escola de Música de Brasília e era muito amiga dos músicos da banda.

13
Disponível em: www.banda13demaio.com. Acesso em: 14 ago. 2022

312 313
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

A nossa banda, hoje, é a banda mais antiga do estado de Goiás, banda


não oficial. Ela não é particular, é um acervo do município. O único do-
cumento que nós temos é uma folha de pagamento dos músicos que
tocaram na festa de Nossa Senhora da Penha, que era a padroeira de
Jaraguá. Esse é o único documento que temos mais ou menos, eu acho
que ela já existia antes de 1869 (relato oral).
Após esse relato, ele volta a expor como começou na banda. No final, perguntamos
diretamente sobre o passado da Santa Cecília e momentos marcantes, ao que somente
informa que a banda nunca parou de funcionar e que tem uma importância muito grande
para a cidade. Assim, parece-nos que queria, logo no início da entrevista, falar sobre a fun-
dação da banda e que ela era a mais antiga de Goiás. Quando perguntamos ao atual
maes-tro da banda, senhor Túlio Alves, sobre sua história, ele diz: “temos contato mais
pelos relatos dos antigos, maestro Joaquim e doutor Paulo14, e temos também aquele
documento”15 (relato oral, grifos nossos). Em seguida, fala que a banda sempre tocava nas
festas. Então, aponta a importância da presença do atual presidente, senhor Paulo16, e do
incremento da escola de música. O relações públicas e professor da banda, formado em
história, complementa que a documentação sobre sua trajetória é muito escassa, havendo
várias lacunas.
Os senhores Joabe e Paulo informam que o acervo de partituras da banda come-
çou a ser constituído após a chegada do maestro José Joaquim do Nascimento, na
déca-da de 1960.O senhor Paulo explica-nos sobre a falta de músicas de datas
anteriores a esse período: “A banda só veio a ter sede própria recentemente; ela
ensaiava na casa de seus mestres, que escreviam as músicas” (relato oral). Assim, todo
as partituras e todo o material da banda ficavam em suas casas e, após suas mortes,
o em posse das famílias. Tanto o senhor Paulo como o senhor Eurípedes (regente da
Fig. 4: Reprodução do recibo a que a Corporação Musical Santa Cecília credita a sua fundação. Fonte: Lira Jaraguaense) também informam que era comum os músicos tocarem sem
Acervo Corporação Musical Santa Cecília.
partituras; tocavam de cor ou “de ouvido”. O maestro17 corrobora essa opinião e
acrescenta: “também pela banda tocar principalmente nas festas e o repertório ser
A Santa Cecília considera-se como a mais antiga de Goiás em funcionamento. To- sempre o mesmo” (relato oral).
dos os entrevistados ligados a ela apontam o recibo citado como documento de “fun- Com relação ao passado e à tradição, podemos notar um certo antagonismo entre os
dação”. Entretanto, esse recibo não se refere a nenhuma banda; pode ter sido a Santa integrantes das duas bandas,sendo a Santa Cecília a detentora da tradição, e a Lira, a por-
Cecíliaou outra, ou até mesmo um grupo de músicos arregimentados na região para tadora da atualidade, da modernidade. Principalmente nos depoimentos dos integrantes
tocar na festa. Assim, podemos compreender que a Corporação Musical Santa Cecília da Lira, tal fato fica latente.O maestro Eurípides relata que, ao retornar a Jaraguá18, enviou
faz uso desse artifício, possivelmente inconsciente. A criação de um “mito de origem” e umas músicas para a Santa Cecília, dizendo que “é isso que as bandas tocam hoje” (relato
a exaltação ao passado são fatores fundamentais para a manutenção e a existência oral). O maestro Túlio Alves, da Santa Cecília, fala sobre essa dualidade de tempos:
das bandas (BOTELHO, 2006, 2020). Como já relatamos, não buscamos comprovar
14
Paulo Antônio Gonçalves.
tal fato, mas o analisar nos discursos.
No início da entrevista do atual presidente da Santa Cecília, senhor Paulo Antô-
15
Nesse momento, aponta para o recibo já citado, que se encontra emoldurado em uma parede da sede
da banda, onde foi realizada a entrevista.
nio Gonçalves, perguntamos como ele havia chegado à banda ou se era de família de
16
Paulo Antônio Gonçalves.
músicos. Então, respondeu-nos que possuía vários familiares que tocaram na banda e
continuou seu relato sobre a origem da Santa Cecília.
17
Túlio Alves.
18
Morou muitos anos em Brasília, onde era músico militar.

314 315
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

a banda deve sempre deve estar em contato com público, deve estar to- que a banda fazia parte de suas vidas e que a vivência nas respectivas bandas os for-
cando nas festas, tocando esse repertório tradicional, que faz parte da
história. [...]. Mas também acredito que, por a banda lidar com jovens, a mara enquanto pessoas. Vários iniciavam suas respostas com a mesma frase: “A banda
banda tem que ter um ponto de ligação com esses jovens, acredito que é tudo para mim!”. Como exemplo, trazemos a fala do maestro Aurélio Afonso da Silva:
temos que trazer um pouco da música popular. Às vezes, um pouco de
músicas atuais que eles estão ouvindo, para eles terem essa referência, se eu não tocasse em banda, não saberia dizer como seria a minha vida.
que a banda executa essas músicas de banda, mas também essas ou- A minha vida se confunde com a banda. Quando comecei a namorar
tras músicas (relato oral). minha esposa, eu avisei: “Olha, eu toco na banda, tem dia que não posso
estar com você, pois tenho que tocar na banda”. Eu não saberia te dizer
o que eu seria se não fosse músico da Banda Phoenix (relato oral).
Assim, notamos que há, em todos os discursos das duas bandas locais, uma no-
tável preocupação entre o novo e o tradicional.Afirmam que as bandas participam das Granja (1984: 80) relata que as bandas de música “caracterizam-se também por
atividades tradicionais e tocam as músicas antigas. Porém, percebem que parte da po- seu aspecto coletivo, integrado, onde são valorizadas as relações de amizade, entre
pulação não aprecia muito esse repertório e que têm que tocar músicas diferentes, que seus componentes e entre estes e seus seguidores”. Os sentimentos de identidade nas
são consideradas por eles “modernas”, ou seja, fora da tradição. bandas relacionam-se a sentimentos familiares, às vezes há realmente relações de pa-
Transparece nos discursos dos integrantes de ambas as bandas que o equilíbrio rentesco entre os músicos, principalmente no caso de nossas pesquisas em Goiás, por
entre tradição e atualidade é refletido pelo repertório. Entretanto, acreditamos que as se tratar de cidades pequenas. Mesquita (1994: 38) complementa que “as memórias das
duas ocupam posições opostas “nessa balança”. Todavia, as bandas parecem aproximar- bandas se confundem com a história familiar de seus componentes, muitos namoros e
-se, com a Santa Cecília buscando “atualizar” o seu repertório, como já demonstrado na casamentos nasceram em suas sedes”.
fala de seu regente, para atrair jovens locais. Em contrapartida, o maestro Eurípides, que, A maioria dos entrevistados foi aprender música por meio de parentes que já to-
na juventude, foi músico da Santa Cecília e passou algumas décadas fora de Jaraguá, cavam nas bandas. Para exemplificar, trazemos a fala do senhor Ismael: “primeiro, meu
defronta a tradição da Santa Cecília, enviando músicas e criticando-a, como aponta- irmão mais velho quatro anos, que se envolveu com banda primeiro, aí eu vi e tomei
mos em sua fala; ao mesmo tempo, tenta encaixar a Lira nas tradições, principalmente gosto com isso, nessa época tinha 13 anos” (relato oral).O senhor Ciro dos Santos, filho
religiosas, da cidade. O maestro Eurípides relata-nos que, desde 2018, a Lira faz parte do maestro Eurípedes, também relata que: “já nasci na banda, mas comecei na prática
da programação oficial de alguns festejos e que tal fato causou atritos com o senhor estudar tarde, meu pai começou a me ensinar, mas não me interessei muito. Mas depois
Paulo19. Assim, podemos supor que uma busca o espaço que a outra ocupa no imaginário fui me interessando. Meu pai dizia que eu pequeno dormia ouvindo banda” (relato oral).
local e que isso faz com que, cada vez mais, se aproximem. O senhor Paulo afirma que: “Minha família sempre foi de músicos, meus dois avós eram
músicos, por parte de pai e mãe. Eu comecei com dez anos, tinha um colega que ‘batia’
4. Identidades e pertencimentos nas bandas de Goiás prato, e eu queria ‘bater’ prato. [...] Eu ficava sempre em volta da banda, só ia embora
A identidade é uma criação simbólica, segundo Hall (2005), entendida como “pertenci- quando a banda ia” (relato oral). O senhor Alexandre, antigo regente da Phoenix, afirma:
mento”, acrescentando que a identidade cultural se refere “àqueles aspectos de nossas “minha família é toda de músicos” (relato oral).
identidades que surgem de nosso pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguistas, O senhor Ondumar Gomes informa que o pai era músico: “a banda de música para
religiosas e, acima de tudo, nacionais” (HALL, 2005: 8). Castoriadis (1986: 159) obser- mim é tudo, meu pai criou a família por meio da banda de música e da Polícia Militar,
va que toda instituição social “é uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde aí eu continuei a linhagem” (relato oral, grifo nosso). E continua: “essa banda antiga, da
se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um época minha, tinha um tipo de irmandade única” (relato oral).O senhor Geraldo Magela,
componente imaginário”. Portanto, o sentimento de identidade ou pertencimento é pro- antigo regente da Corporação Musical 13 de Maio, diz: “eu passei a vida toda na banda”
duzido pelos próprios grupos. (relato oral); durante a entrevista, a sua esposa interrompeu-nos e afirmou “eu me casei
Em todas as entrevistas, sempre perguntávamos o que as bandas representavam com ele em 1959 e já sabia que estava me casando com um músico” (relato oral), assim
na vida dos entrevistados. Assim, notamos que, recorrentemente, os que não eram mú- demonstra que já sabia que a banda era parte integrante da vida do seu futuro marido.O
sicos se referiam à tradição local e à exaltação ao passado. Porém, os músicos falavam senhor Jose Caetano, morador de Corumbá de Goiás, fala sobre essa relação na cidade:
“a banda para a gente aqui em Corumbá era tudo, ou era da banda ou não era. Os filhos
de músicos tinham que ser músicos” (relato oral).
19
Paulo Antônio Gonçalves.

316 317
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

Esses relatos comprovam que a banda ocupa grande espaço na vida de seus in- cidade para uma festa acabava sendo tocadas em outras. Afirma: “às vezes, nem era a
tegrantes, e que estes se identificam entre si. Formam laços tantos familiares como de música que chegava, mas um ia lá, tocava, aprendia e trazia de cor e passava para os
amizades muito fortes. outros” (relato oral).
Na seção 3, abordamos as bandas e as cidades; lá, nota-se presença do “mito de Podemos exemplificar essa circulação através do dobrado Espírito Santo. Ao pedir
origem” em todos os discursos, obviamente cada banda com o seu. Claramente, a para citar nomes de peças tradicionais que as bandas costumavam tocar, o dobrado
Santa Cecília com o recibo “autenticando” sua fundação, mesmo com lacunas e, foi citado por, pelo menos, um entrevistado em cada cidade. Ele foi uma das músicas
principalmen-te, ausência de memórias anteriores à década de 1960;a 13 de Maio editadas e revisadas por nós em projetos anteriores. Sabendo disso, o senhor Alexandre
com o senhor Ramir Curado, detentor e propagador de sua história; a Phoenix com sua informou que, quando a Phoenix fora ensaiar nossa edição, alguns músicos notaram
ressignificação do passado, fundindo-se com a Banda Euterpe e a figura do Tonico do diferenças na instrumentação e na orquestração; não era exatamente como estavam
Padre, ou mesmo, mais recentemente, a reestruturação da banda, feita pelo senhor acostumados a tocar de cor, e “o pessoal começou a dizer: ‘Esse é o “Espírito Santo” de lá
Braz de Pina. de Corumbá, o nosso não se toca assim’” (relato oral).
Na cidade de Goiás, não conseguimos notar um fato ou pessoa que possa centra- Desde o início de nossa pesquisa, notamos uma relação “simbiótica” entre as bandas
lizar esse mito de origem, mas talvez possamos compreendê-lo através da e as suas localidades, é impossível falar de uma sem falar de outra. A inserção das bandas
manutenção da tradição, do status quo aparentemente imutável.Para completar o nas atividades culturais, sejam religiosas, sejam seculares, nas cidades estudadas é tama-
papel desse “mito de origem” para a formação da identidade, Hall (2005: 51) nha que alguns entrevistados repetiam a mesma frase: “sem banda, não tem Cavalhadas”,
comenta: “esses sentidos [sobre a identidade] estão contidos nas estórias que são “sem a participação da banda, não temos os festejos da Semana Santa”, “sem banda, não é
contadas [...] memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens possível ter a Folia do Divino” e assim por diante. A senhora Maria do Carmo, moradora an-
que dela são construídas”. Esse passado comum é importante para a construção das tiga e conhecida de Corumbá de Goiás, afirma: “a banda 13 de Maio é Corumbá de Goiás, e
identidades e do sentimento de pertença, fazendo, desse modo, com que os Corumbá de Goiás é a banda 13 de Maio. É impossível pensar em uma sem a outra” (relato
indivíduos se insiram em cadeias de filiação identitária (CATROGA, 2001: 28-31). oral).As tradições religiosas e liturgias locais são indissociáveis da participação da banda,
5. Tradições as músicas compostas pelos maestros são parte integrante de quase todos esses eventos.
Vários entrevistados, quando perguntados sobre a relação da banda com a cidade, res-
Ao indagar aos entrevistados o que consideravam tradição de banda, abordavam, ge-
ponderam que muitos moradores locais,às vezes, acreditam que banda pertença à Igreja.
ralmente, dois fatores: as festas locais (destacando as religiosas) e as “músicas que a
Entre as festas religiosas, podemos destacar a Festa do Divino, comemorada em
banda toca”, sempre enfatizando as específicas das mesmas festas citadas. Quando per-
maio ou junho. Esta possui um cortejo em que as bandas percorrem as cidades. Porém,
guntávamos sobre o repertório tradicional, muitas vezes respondiam somente “músicas
vale ressaltar que a participação das bandas é primordial nesse cortejo. Foram compos-
de bandas”; assim, pedíamos para dar exemplos ou explicar melhor, e complementavam
tas músicas especialmente para eles, assim como para todas as festividades tradicionais
informando gêneros como valsa e dobrados ou nomes de músicas. Porém, claramente,
locais,além de tocarem peças corriqueiras de seus repertórios. Há pequenas variações
queriam referir-se às músicas que as bandas tocavam em ocasiões específicas e com-
na participação das bandas em cada cidade, mas em todas ocupam papel principal.
postas por músicos da região.O maestro Túlio Alves relata: “Tradição de banda, para
Interessante notar que as atividades da Festa do Divino representavam momento
mim, é poder vivenciar tudo aquilo que vem lá de trás, é poder fazer parte da história
especial no calendário das bandas. Fernando Cupertino relata, sobre Goiás, que: “na épo-
[...] podendo tocar as tradições [...]. Veja só, tradição de banda, para mim, é poder tocar
ca da Folia do Divino, os músicos da PM sempre estavam de férias, mas tocavam mesmo
esses maxixes, dobrados, valsas, essas coisas” (relato oral, grifo nosso).
assim” (relato oral). Em Jaraguá, sobre a Santa Cecília, o senhor Joabe Godois afirma que
Ressaltamos a grande produção de obras realizadas nessas cidades, tanto para
“a banda se apresenta e todo mundo assiste, após a Festa do Divino aparece um monte
as bandas como para outras formações, religiosas e sacras. Os compositores locais, ge-
de jovens querendo estudar música na banda” (relato oral). Já sobre a Corporação Musi-
ralmente, eram ligados às bandas. As festas e atividades locais, por vezes sui generis,
cal 13 de Maio, o senhor Cleiton Neves comenta: “os alunos novos sempre começavam
como a Festado Divino, a Semana Santa, as Cavalhadas etc., provavelmente obrigavam
na banda da Festa do Divino, porque cai na mesma época que as Cavalhadas de Palmei-
os mestres a comporem especialmente para elas. Por exemplo, as músicas que a banda
ras de Goiás. Aí, os antigos vão tocar lá, e os alunos que tocam aqui” (relato oral).
toca na Semana Santa em Goiás, ou mesmo as marchas fúnebres de compositores da
Ainda tratando das festas religiosas, na Semana Santa, a participação da banda
13 de Maio e galopes das Cavalhadas. O senhor Alexandre Pompeu de Pina relata que
está enraizada nas tradições. Cada dia possui sua atividade característica, com seu re-
o repertório ia de uma cidade a outra, muitas músicas compostas em uma determinada

318 319
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

pertório a ser executado, que pode diferir um pouco em cada cidade. Inúmeras dessas Mendonça (1981: 251) explica sobre asCavalhadas que se realiza em Goiás:
músicas foram compostas pelos maestros que estiveram à frente das bandas. São toca-
das sempre nessas procissões específicas; essas partituras somente são localizadas nos A cavalhada é reminiscência dos torneios da Idade Média, onde nobres
mediam sua força e habilidade em festas públicas. [...] Com o fim da
arquivos das bandas. Embora muitas músicas sejam as mesmas tocadas por todas as
Cavalaria, os torneios perderem sua função de preparação individual;
bandas, como o moteto dos Passos. foram transformados em distração popular e, depois, em função dra-
mática-religiosa, representando a luta entre cristãos e mouros. [...] A
6. As práticas das bandas que se faz em Goiás [...] consta de uma parte dramática (a embaixada)
As bandas são nosso objeto de pesquisa desde 2003. Nossa formação musical tam- e outra representada pelos jogos e torneios.
bém ocorreu nas bandas fluminenses. Assim, nosso olhar para as bandas sempre foi de
um Insider, músicos de banda estudando-as. Entretanto, algumas práticas tradicionais Os entrevistados apontam, com orgulho, a existência de um camarote para eles to-
das bandas investigadasfizeram com que questionássemos nossa posição. Localizamos carem, isso se referindo a Pirenópolis, Jaraguá e Corumbá de Goiás. Suas falas destacam,
atuações bastantes distintas das que conhecíamos e havíamos vivenciado em bandas como mais importante, os desfiles, conduzindo os cavaleiros até a área de encenação
dasregiões Sudeste e Nordeste. (“Cavalhódromo”), em que as bandas tocam dobrados. Complementam que, durante a
A primeira prática que nos chama a atenção são as tradicionais festas locais e seus encenação, tocam os “galopes”. Esses galopes são diferentes dos de origem europeia.
repertórios característicos. Todas as cidades estudadas possuem um rígido e intenso ca- Carvalho (2001) informa-nos que, em Pirenópolis, foram compostas peças espe-
lendário anual de atividades, como acabamos de relatar. Vale notar que, quando pergun- cialmente para as encenações; infelizmente, o autor não apresenta os compositores:
tamos sobre o repertório, os entrevistados destacavam músicas que foram compostas 1) galope: Dos mouros e dos cristãos;
para festas e/ou situações específicas. 2) quadrilhas: Violeta, Flor da noite, Três sossegados, Noiva
É tradicional, em todo o Brasil, as bandas participarem de procissões; para isso, encantada;
são compostos hinos e marchas de procissões. Pela nossa vivência em outras bandas, 3) valsa: Do batismo;
a escolha do que a banda vai tocar fica a critério do mestre. Entretanto, vemos que a 4) galope final: A Cavalhada acabou.
prática nas localidades é compor ou utilizar músicas para situações específicas, sendo Os entrevistados de Corumbá de Goiás afirmam que a banda executa inúmeros
que estas se repetem ano após ano. galopes, e que estes não possuem nome e são identificados por números.
Outro fato que podemos exemplificar foi o da marcha fúnebre “Rua da Amargura”, Complementam que o gênero é genuinamente local e que só é executado pela
do compositor da 13 de Maio, Francisco Bruno do Rosário. Ela foi uma das escolhidas Corporação Musical 13 de Maio. Informam que foram compostos pelos seus maestros
pela diretoria da banda para ser editada. Quando perguntamos sobre o motivo da es- e que o gênero provém de adequações das quadrilhas. Quando perguntados se, em
colha, o Cristiano, ex-presidente da Corporação Musical 13 de maio, explicou, em sua Pirenópolis, também é exe-cutado, eles respondem que lá não se tocam galopes.
entrevista, que foi composta para a banda tocar na procissão de Sexta-feira Santa e que Afirmam que a velocidade em que são tocados os galopes deve coincidir com a
é executada desde sua composição, em 1913. velocidade dos passos dos cavalos, embora os entrevistados não soubessem responder
Talvez a prática cultural não religiosa mais significativa da região sejam as Cava- se é o cavalo que segue a banda ou a banda que segue o cavalo. Mas o certo é que os
lhadas, que são realizadas em várias cidades de Goiás.Segundo Curado (2014), as Cava- dois, cavalo e banda, devem estar em sincronia. Após essas informações obtidas em
lhadas, em Corumbá de Goiás, começaram em 1752, com algumas interrupções em sua Corumbá de Goiás, perguntamos aos entrevistados de Pirenópolis sobres os galopes;
trajetória. Mendonça (1981) afirma que, em Pirenópolis, se iniciaram em 1826; eles afirmam que tocam galopes e quadrilhas durante as Cavalhadas. Complementam
completa que as atividades duram três dias. Não localizamos informações, na que os galopes tocados em Pirenópolis e Corumbá de Goiás são os mesmos e que
literatura, sobre as Cavalhadas em Jaraguá, embora sejam abordadas nas tocam, inclusive, muitos galopes de compositores de Corumbá de Goiás, contrariando
entrevistas.Não houve menções sobre as Cavalhadas nas entrevistas relacionadas à os corumbaeneses. O maestro Aurélio Afonso Silva informa que não há diferença,
cidade de Goiás. assim como o maestro Alexandre Pompeu de Pina, tam-bém de Pirenópolis, afirma
Durante as festas, a parte musical é feita pelas respectivas bandas locais: desfile, que os galopes são as músicas tocadas na hora que os cavalos estão galopando e que
apresentação dos cavaleiros, fundo musical etc. Sendo que, em alguns casos, as sua velocidade é aproximadamente a mesma dos cavalos. Há consenso de que os
bandas também podem tocar em outras localidades próximas, como no caso da 13 de galopes são pequenas músicas oriundas da quadrilha, que são tocadas durante a
Maio, que, tradicionalmente, anima as Cavalhadas da cidade de Palmeiras de Goiás.

320 321
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

apresentação dos cavalos. Essas músicas, por serem muito pequenas (compostas de Pudemos observar, nas entrevistas realizadas, a importância que os mestres tive-
somente uma ou duas seções), são repetidas inúmeras vezes. Raramente são utilizadas ram em sua trajetória. Mestres como Francisco Bruno do Rosário marcaram, de forma
partituras nessa ocasião; os músicos tocam de cor ou “de ouvido”, e a troca de uma indelével, a banda e suas práticas. Os entrevistados falam sempre das composições e
para outra é feita com o maestro, ao seu instrumento, “puxando” uma nova. Explica o de comoesses mestres eram grandes professores; a figura de mestre Garibaldi é muito
presidente da 13 de Maio, Cristiano Ferreira: lembrada. Muitas vezes, os entrevistados chamavam os regentes da banda de “professo-
res” no decorrer das entrevistas.
Os músicos raramente tocam lendo qualquer tipo de partitura. Quase
todos são anônimos, sem qualquer registro de procedência. Acredita-se Assim, sua função de preparar novos músicos, renovando o quadro, acreditamos
que a maioria tenha sido composta pelos maestros da banda, todavia também ser muito reconhecida. Provavelmente, era essa a atividade que mais ocupava os
supõe-se que alguns sejam de Cavalhadas de outras cidades e que fo- maestros, formar uma nova geração de músicos. Pelo acervo de fotografias, podemos notar
ram adaptadas ao jeito da banda tocar (relato oral).
que as bandas sempre tiveram dimensões pequenas, com cerca de 20 músicos ou menos,
em alguns momentos. Assim, o maestro tocava junto com os músicos. Do mesmo modo,
O maestro Túlio Alves fala sobre os galopes na banda Santa Cecília: grande parte das atividades ordinárias da banda era feita em movimento (procissões, des-
files, passeatas etc.), dificultando a condução por gestos. Essas mesmas atividades eram
Nossos galopes vêm de Pirenópolis. Mas só veio a partitura da melodia. repetidas ano após ano, gerando uma sensação de “Já sei o que fazer” nos músicos.
Aí, eu montei a harmonia dela. [...] O que eu entendo dos galopes são
Esses mestres são também lembrados por suas músicas, ainda hoje executadas.
uma marcha, se a gente pensar na época das Cruzadas, era um campo
muito grande, não dava para gritar. Então, a comunicação deve ser feita Algumas, inclusive, são tradicionais e essenciais em várias atividades realizadas pelas
por um toque de corneta ou bombo. [...] Então, eu pensei e conversei bandas. Entretanto, devemos considerar que, tradicionalmente, os mestres não as regiam.
com os integrantes da banda que os galopes tinham que ser essa co- Durante as apresentações, eles não estavam à frente, conduzindo-as;eles utilizavam-se
municação, uma melodia simples (relato oral). do artifício do “avisa”, comum em algumas partes do Brasil, em todas as apresentações da
banda. O senhor Cleiton Neves, que foi aluno da 13 de Maio quando criança e atualmen-
Quando assistimos às cavalhadas, vemos os cavalheiros, os cavalos e a banda. Ela te é líder sindicalista, lembra que, na sua primeira apresentação com a banda, “a gente
é condição sine qua non para a existência do espetáculo. Como foi apontado, até mesmo aprendia que o bumbo tocava, e a gente tinha que tá atento para começar a tocar” (relato
as músicas são originais e próprias para o evento. oral). Assim como foi mencionado por outros, como Ramir Curado. Também contam que
Outro fato interessante a se falar é a questão dos maestros. Tradicionalmente, os mestres tocavam junto com os músicos.Segundo o senhor Sebastião, “Garibaldi tocava
o mestre de banda tem suas funções divididas em um tripé: reger, ensinar e preparar muito bem, o Zezinho também, juntava com Dario e davam show no pistão” (relato oral).
repertório (arranjos ou composições). São os verdadeiros líderes das bandas; muitas Os entrevistados informaram-nos que o primeiro maestro a reger a banda 13 de
vezes,elas são, inclusive, conhecidas por “banda do maestro fulano”, mas as principais Maio de fato, a se posicionar à frente e a conduzir por gestos, foi o Zezinho. Em 1977,
funções são reger e escolher repertório, voltadas para a performance (BOTELHO, 2006). a banda foi ao Rio de Janeiro participar de um concurso. Segundo informado, as regras
Segundo Silva (2018), o perfil tradicional de um mestre de banda é de um músico desse concurso exigiam que o maestro tomasse a frente da banda, na posição usual de
que teve seus ensinamentos iniciais dentro dela, aprendeu a tocar um pouco de cada regência, e não tocasse no meio dos músicos, como se costumava fazer. O filho do ma-
instrumento, “além disso é arranjador e comumente compositor”, e “a atividade de reger estro, senhor Marcos de Assis, relata:
geralmente é aprendida através da prática na banda” (SILVA, 2018: 49).
No caso específico de Corumbá de Goiás, quando perguntamos sobre os fatos Eu me lembro que papai não era assim um regente, ele regia porque
era o diretor, mas ele sabia, tinha experiência. Mas me lembro que, lá na
importantes da banda, incluíam os antigos maestros.O atual presidente da banda, Cris-
TV Globo, ele foi obrigado a reger. Eu me lembro que a calça dele tre-
tiano Ferreira, comenta: “de fato histórico, aqui temos os grandes mestres professores mia, ele estava muito nervoso. Mas ele fez uma gravação bonita, depois
que tivemos, como o Francisco Bruno, Getúlio Silva e outros” (relato oral). O senhor ficou à vontade. Foi muito bonito (relato oral).
Sebastião Dirceu Curado, antigo músico, recentemente falecido, conta que “as coisas
mais importantes da história da banda foram os mestres que tivemos, como Garibaldi e Assim, aos poucos, os maestros subsequentes passaram a reger, e o costume do to-
o Francisco Bruno, com suas músicas. Me lembro que, depois, com o Zezinho, fomos até que do bombo foi se extinguindo aos poucos. Embora, durante esses anos de pesquisas
na Globo” (relato oral). e convivências com essas bandas,pudéssemos observar, em vários momentos, os seus

322 323
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

respectivos regentes tocando em atividades das bandas. Percebemos que é comum, para alcançarmos nuances que, de outra forma, poderiam ser inascíveis. Suas falas são
ainda hoje, não somente em Corumbá de Goiás, mas nas demais cidades também, em repletas de sentimentos vivos, as memórias trazem-nos as práticas, os “causos”, enfim, a
atividades em que a banda toca se movimentando (desfiles, procissões, passeatas etc.), banda viva.
seus respectivos regentes tocando à frente da banda. Somente em apresentações com a Ainda foi possível visualizar diferenças entre as bandas, geradas, obviamente, por
banda sentada, o regente posicionava-seà frente e conduzia-a por gestos. questões específicas e por suas trajetórias. Pudemos compreender que, na cidade de
Outra prática que parece estar se extinguindo com a nova geração é o hábito de Goiás, as práticas domésticas e informais criaram situações em que os grupos não são
tocar de cor ou “de ouvido”. Importante ressaltar que não fizemos nenhuma pergunta duradouros, embora a participação dos músicos locais nas atividades e festividades seja
diretamente sobre isso e que, em muitos casos, quando os entrevistados diziam tocar contínua. Hoje, a Banda da Polícia Militar é a única ainda atuante na cidade, mas, em
de cor, acreditamos que, na verdade, era uma mistura entre se recordar do que leu em várias ocasiões, músicos que não fazem parte de seus quadros ativos tocam com ela.
algum momento e preencher com algumas passagens “de ouvido”. Em contrapartida, as demais três cidades estudadas apresentam bandas centená-
As bandas possuem um calendário anual repleto de atividades, a maioria com rias. Mesmo com a incerteza da data de fundação da Santa Cecília, em Jaraguá, e perda
seu repertório próprio, sendo que muitas músicas são tocadas somente nessas ocasi- de parte de sua história da memória local, a banda busca sua legitimação como a mais
ões. Outro fator é que grande parte do repertório tradicional possui instrumentação antiga do estado. Assim, gera antagonismo com a jovem Lira Jaraguaense, e, aparen-
consideravelmente simples, com as “funções” de cada instrumento bem-determinadas temente de forma inconsciente, os entrevistados apresentam, em seus discursos, uma
(BOTELHO, 2022). preocupação com a disputa entre o tradicional e o novo e com o papel de cada uma das
Quando as bandas tocam os galopes nas Cavalhadas, fica bem claro o que estamos bandas. Embora cada uma ocupe lados opostos, Santa Cecília, detentora da tradição, e
abordando. O maestro Túlio, em sua entrevista, disse que os galopes que a banda toca Lira, da “modernidade”, acreditamos que ambas almejem um pouco a posição e o espaço
vieram de Pirenópolis, mas que somente havia a melodia escrita e agora está fazendo a da outra e que, em um ponto futuro, alcancem um equilíbrio.
própria orquestração. Complementa que havia o hábito de “cada um tocar como sabia”, A Corporação Musical 13 de Maio, de Corumbá de Goiás, exalta seus antigos mes-
dando o exemplo de que cada tubista tocava à sua maneira. O maestro Aurélio também tres, pondo a presença deles como referência importante na trajetória da banda. Nos
informou que estava reescrevendo as músicas, pois, na prática, eles tocavam “de ouvido”. discursos, há marcos temporais de mudanças bastante claros, conquanto relativamente
Ainda acrescentamos um fato vivenciado por nós, na execução de um projeto com recentes e contemporâneos de muitos entrevistados;podemos destacar a entrada de
abanda 13 de Maio.Fomos gravar o Galope nº 2, utilizando a edição que havíamos fei- mulheres na corporação e o momento em que o maestro Zezinho regeu, efetivamente,
to, baseados nos manuscritos do acervo da banda. Para a gravação, foram convidados pela primeira vez, à frente da banda.
alguns músicos de Goiânia, um “reforço”. Durante o ensaio, percebemos que havia uma A 13 de Maio e a Phoenix, de Pirenópolis, são as bandas estudadas mais atuan-
discrepância no ritmo de um determinado fragmento do tema, os músicos convidados e tes e imersas nas atividades locais. Suas participações são fundamentais em todas as
os músicos da banda tocavam de forma diferente. Os músicos da banda tocavam como inúmeras festas regionais. Ressalta-se que a Phoenix, com o passar do tempo,começou
estavam acostumados, e, com o passar do tempo e a transmissão de um para outro, o a ocupar, no imaginário, posição central, fazendo com que seu passado se misturasse
ritmo da melodia acabou sendo modificado. Nesse momento, vários músicos nos disse- com o da Euterpe, extinta há mais de um século. Nesse momento, a Phoenix tornou-se
ram, informalmente, que nunca haviam visto o galope escrito. a única banda da cidade, aos poucos absorvendo os músicos da Euterpe e criando, nas
memórias, um passado e uma “filiação” comuns.
Considerações finais Os sentimentos de identidade e pertencimento já eram esperados por nós desde
As bandas das cidades históricas de Goiás estão inseridas no grande panteão da tra- o início de nossas pesquisas. Estiveram bem claros em todos os entrevistados, principal-
dição de bandas brasileiras. As festividades religiosas e desses municípios são indis- mente por estes possuírem, de modo geral, familiares músicos e integrantes das bandas.
sociáveis de suas bandas. Elas assumem características próprias, diferenciando-se das Sua inserção nas tradições locais, com momentos de destaque nos rituais e práticas das
bandas de outras partes do Brasil. Desde o século XIX, ocupam lugar central no coti- festividades, ainda cria uma relação simbiótica da cidade com suas bandas.
diano local. As tradições e práticas das bandas estudadas diferem-se, ligeiramente, das que
As entrevistas do acervo Memórias das Bandas de Goiás, do BandaLab-UFG, forma- havíamos presenciado e investigado em outras regiões do Brasil. Assim, suas atividades
ram a principal fonte de informações para o presente trabalho. Mergulhar nas memórias nas festividades locais e as poucas alterações que tiveram no decorrer de quase dois
de músicos, atuantes ou afastados, e seguidores das bandas mostrou-se importante sé-culos criaram práticas tradicionais igualmente estáveis. Acreditamos que vários

324 325
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

hábitos corriqueiros na banda, como tocar de ouvido, o regente tocar junto nas CURADO, Ramir, Corumbá de Goiás:dos primórdios à atualidade. Anápolis: ed. do autor,
apresentações e compor músicas específicas para cada festividade etc., tenham 2014.
surgido exatamente de acordo com as necessidades cotidianas.
Temos a certeza de que apenas arranhamos a superfície de todo o arcabouço do DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga:uma história de vida. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos
universo dessas bandas. Ainda que utilizando o mesmo acervo, é possível ir mais fundo, Tempos, 1991.
com recortes diferentes. Esperamos ter contribuído um pouco com nosso olhar sobre elas.
FREIRE, Vanda Lima Bellard. A história da música em questão: uma reflexão metodoló-
Referências gica.In:Fundamentos da educação musical. Porto Alegre: Abem, 1994, p. 113-135

BELTRÁN, Carlos Diéguez. El oficio de director de banda. Baiona: Dos Acordes, 2011. GRANJA, Maria de Fátima Duarte. A banda: som e magia. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) –Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
BOTELHO, Marcos. Imaginario, identidades y relaciones sociales en una banda de mú- Janeiro, 1984.
sica: un estudio de caso. Actos: revista de investigación en arte, Santiago do Chile, v.
2,n. 4, p.114-134, dic. 2020. HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2005.
BOTELHO, Marcos. Memórias de uma banda centenária: resgaste das memórias e práti-
cas da Corporação 13 de Maio. In: SOUZA, A. G. (org.). Musicologia & Diversidade. Curiti- KALTENECKER, Martin. El rumor de las batallas:ensayo sobre la musica en la transicion
ba: Editora Appris, 2022. p. 361-394. del siglo XVII Al XIX. Madrid: Paidos Iberica Ediciones, 2004.

BOTELHO, Marcos. Sociedade Musical Beneficente Euterpe Friburguense: um estudo MENDONÇA,Belkiss S. Carneiro de. A música em Goiás.Goiânia: Fundação Cultural de
sócio-histórico. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Goiás, 1981.
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
MESQUITA, Cláudia. Projeto Memória das Bandas Civis Centenárias: o método e a prá-
CARVALHO, Adelmo de. Pirenópolis coletânea: 1727-2000. Goiânia: Ed. Kelps, 2001. tica da Fundação Museu da Imagem e do Som. In: GERK, A. E.; MESQUITA, C. Memória
das Bandas Civis Centenárias do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria de
CARVALHO, Vinicius Mariano de. As bandas nas Minas Gerais.In:SIMPÓSIO LATINO- Estado de Cultura, 1994. p. 35-54.
-AMERICANO DE MUSICOLOGIA, 1., 1997,Curitiba. Anais. Curitiba: Fundação Cultural de
Curitiba, p. 115-123 NETTL, Bruno. O estudo comparativo da mudança musical: Rstudos de caso dequatro
culturas. Revista Anthropológicas, Recife, ano X,v. 17, n. 1, p. 11-34, 2006.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1982. PASSOS, Elder Camargo de. Goyaz: de arraial a patrimônio mundial. Goiânia: Kelps,
2018.
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001.
PEQUENO, Nelia; TACUCHIAN, Ricardo; GERK, Antônio E. W.Bandas do estado do Rio
COMO CHEGAR a cidade de Goiás Velho – GO. Vila Boa de Goiás, [Goiás?]: [20--]. Dispo- de Janeiro: uma tradição centenáriaIn: GERK, A. E.; MESQUITA, C. Memória das Bandas
nível em: http://vilaboadegoias.com.br/mapa_de_brasilia_goias_velho.htm. Acesso em: Civis Centenárias do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de
18 set. 2022. Cultura, 1994, p. 13-34.

CURADO, Ramir. Corporação Musical 13 de Maio, surgimento e consolidação.Goiânia: Ban- PRINS, Gwyn. História oral. In: BURKE, P.(org.).A escrita da história: novas perspectivas.
daLab, 2016. São Paulo: Editora Unesp, 1992. p. 163-198.

326 327
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

RODRIGUES, Maria Augusta Calado de Saloma. A modinha em Vila Boa de Goiás.Goiânia: CURADO, Sebastião Dirceu. Entrevista concedida a Marcos Botelho e Andreia Teixeira
EditoraUFG, 1982. em 10 maio 2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GO para o projeto Em Busca da
Memória de uma Banda Centenária do BandaLab-UFG.
SILVA, Lelio Eduardo Alves. Bandas de música: definição e história no Brasil. In: SILVA, L.
E. A.(org.). Manual do mestre de banda de música. Rio de Janeiro: Faperj, 2018. p. 10-26. FERREIRA, Cristiano. Entrevista concedida a Marcos Botelho e Andreia Teixeira em 28
maio 2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GO para o projeto Em Busca da Memória
SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Villa Boa de Goyaz: uma outra história contada em prosa, de uma Banda Centenária do BandaLab-UFG.
versos e sons. ArtCultura, Uberlândia, v. 17, n. 30, p. 179-197, jan.-jun. 2015.
GODOIS, Joabe. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 9 jun. 2021. Realizada em
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora Jaraguá-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG.
34, 2010.
GOMES, Ondumar. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 25 ago. 2021. Realizada
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: os sons que vêm da rua. Rio de Janeiro: Edi- em Goiás-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG.
ções Tinhorão, 2005.
GONÇALVES, Paulo Antônio. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 25 maio 2021.
Entrevistas (dados adicionais) Realizada em Jaraguá-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do
BandaLab--UFG.
ALVES, Túlio. Entrevista concedida aMarcos Botelho em 9 jun. 2021. Realizada emJara-
guá-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG. GORETE, Maria. Entrevista concedida a Marcos Botelho e Andreia Teixeira em 29 maio
2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GO para o projeto Em Busca da Memória de
ASSIS, Marcos. Entrevista concedida a Marcos Botelho e Andreia Teixeira em 17 jun. uma Banda Centenária do BandaLab-UFG.
2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GOpara o projeto Em Busca da Memória de uma
Banda Centenária do BandaLab-UFG. LIMA, Euder. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 24 ago. 2021. Realizada em
Goiás-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG.
CAETANO, José. Entrevista concedida aMarcos Botelho e Andreia Teixeira em 25 maio
2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GOpara o projeto Em Busca da Memória de uma MAGELA, Geraldo. Entrevista concedida a Marcos Botelho e Andreia Teixeira em 28
Banda Centenária do BandaLab-UFG. maio 2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GO para o projeto Em Busca da Memória
de uma Banda Centenária do BandaLab-UFG.
CARMO, Maria. Entrevista concedida aMarcos Botelho e Andreia Teixeira em 20 maio
2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GOpara o projeto Em Busca da Memória de uma NEVES, Cleiton. Entrevista concedida a Marcos Botelho e Andreia Teixeira em 17 jun.
Banda Centenária do BandaLab-UFG. 2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GO para o projeto Em Busca da Memória de
uma Banda Centenária do BandaLab-UFG.
CUPERTINO, Fernando. Entrevista concedida aMarcos Botelho em 28 jul. 2021. Realiza-
da em Goiânia-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG. PASSOS, Euder. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 23 ago. 2021. Realizada
em Goiás-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG.
CURADO, Ramir. Entrevista concedida aMarcos Botelho e Andreia Teixeira em 10 maio
2017. Realizada em Corumbá de Goiás-GOpara o projeto Em Busca da Memória de uma PINA, Alexandre Pompeu. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 5 jun. 2021.
Banda Centenáriado BandaLab-UFG. Reali-zada em Pirenópolis-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do
BandaLab--UFG.

328 329
Bandas das cidades históricas de Goiás: memórias, identidade e tradição Marcos Botelho

RORIZ, Maria da Penha. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 6 jun. 2021. Reali-
zada em Pirenópolis-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-
-UFG.

SANTANA, Ismael. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 25 ago. 2021. Realizada


em Goiás-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG.

SANTOS, Ciro dos. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 29 jun. 2021. Realizada
em Jaraguá-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do BandaLab-UFG.

SANTOS, Eurípedes dos. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 29 jun. 2021.


Realizada em Jaraguá-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do
BandaLab-UFG.

SILVA, Aurélio Afonso. Entrevista concedida a Marcos Botelho em 5 jun. 2021.


Realizada em Pirenópolis-GO para o projeto Memórias das Bandas de Goiás do
BandaLab-UFG.

330 331
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX

A mulher nos saraus e serestas


da cidade de Goiás: do final do
século XIX ao início do século XX
Robervaldo Linhares Rosa
Universidade Federal de Goiás

Ludmylla Cristina Guilardi


Universidade Federal de Goiás

332
10 como citar
ROSA, Robervaldo Linhares; GUILARDI, Ludmylla Cristina. A
mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do
século XIX ao início do século XX. In: SOUZA, Ana Guiomar
Rêgo; CRUVINEL, Flavia Maria (ed.). Centro-Oeste. Vitória:
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Música, 2023. p. 332-357 (Histórias das Músicas no
Brasil).
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

1. Introdução Já as serestas, também chamadas de “tocatas”, eram praticadas por grupos de mú-
Muito possivelmente, de um transeunte que ande pelas ruas de pedra da centenária ci- sicos que saíam pela cidade com seus instrumentos, entoando “modinhas” sob o luar, de-
dade de Goiás, reconhecida como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade1, baixo das janelas de moças e amigos, ou mesmo em determinados pontos costumeiros
bem pouco das efervescentes sonoridades e práticas musicais de outrora chega aos da cidade; ao contrário dos saraus, que aconteciam nos salões, caracterizavam-se por
ouvidos e à memória. cultivar música ao ar livre (RODRIGUES, 1982).
No entanto, além da beleza plástica e sonora da Procissão do Fogaréu na célebre No decorrer das pesquisas realizadas, foi possível verificar que há uma quantidade
Semana Santa, cujo cortejo acontece em vívida ambiência urbana, da sonoridade das expressiva de mulheres executando os programas dos saraus. Rosa (2020) afirma que
bandas e dos coros, aparecem duas práticas musicais relevantes para se conhecer a mú- os saraus eram utilizados para que as moças conseguissem pretendentes a noivos, ou
sica feita no estado de Goiás, a saber: o sarau e a seresta. Ambas, a um só tempo, revelam seja, “os saraus, funcionavam, também, como meio para que elas vissem possíveis pre-
faces poderosas das dimensões pública e privada. tendentes e, principalmente, fossem vistas por eles” (ROSA, 2014: 40). Então, a partir
Escrutinar acerca das personagens que praticavam tanto o sarau quanto a seresta dessa constatação, tornou-se relevante investigar qual teria sido o espaço ocupado pela
leva-nos, sem muito esforço, a questões de gênero, visto que essas relações, muito longe mulher goiana nesses encontros.
de serem neutras, são construídas socialmente. Reivindicar a suposta naturalização da A cidade mais citada na bibliografia relacionada a esses eventos musicais é a anti-
imposição de gêneros (MEDEIROS; REGIANI, 2019), a partir da música e das relações es- ga capital do estado de Goiás – já conhecida por seu investimento na música. Tudo isso
tabelecidas por seus praticantes, não apenas musicais, mas também, sobretudo, sociais, contribuiu para a pesquisa que deu origem a este capítulo. Na cidade de Goiás, os saraus
apresenta-se como potente vestígio que pode levar a um novo e ressignificado olhar. tinham uma ligação com as serestas: “saraus e serestas possuem uma relação, pois não
Assim, este capítulo tem como objeto de estudo o espaço que as mulheres goia- só esses eventos aparecem em certas ocasiões misturados, como alguns músicos parti-
nas ocupavam nos saraus musicais e nas serestas que aconteciam na cidade de Goiás, cipam dos dois eventos musicais” (CLÍMACO; GUILARDI, 2018: 173).
a antiga capital do estado de mesmo nome, no final do século XIX e início do século Foi a partir desse contexto que algumas inquietações surgiram: qual o papel da
XX. Para tanto, é levada em consideração a busca por elementos do contexto histórico e mulher na sociedade goiana? A mulher estava presente nos saraus e nas serestas? Se
musical da cidade nesse período de transição do Brasil Imperial para o Brasil República; sim, de que forma? E como a participação da mulher nesses eventos musicais pode ser
a investigação e descrição dos espaços ocupados pela mulher nos saraus e nas serestas relacionada com a sociedade goiana da época? Dessa forma, partimos da pressuposi-
goianas; a observação da relação feminina com o contexto sócio-histórico e cultural; a ção de que a análise feita a partir de dados colhidos poderia chegar, segundo Chartier
identificação dos gêneros musicais e dos instrumentos mais praticados pelas mulheres; (1998), ao suporte simbólico, à capacidade de objetivar sentidos e significados através
e, sobremodo importante, o exame de quais mulheres frequentavam e participavam dos de práticas, obras e constructos intelectuais de um grupo social.
saraus e das serestas. A investigação, de caráter qualitativo, utilizou-se de uma pesquisa bibliográfica
O contato com a bibliografia pertinente, ainda que escassa, levou-nos a compre- e de uma pesquisa documental. Referente à pesquisa bibliográfica, lançamos mão
ender o grande investimento que as “famílias da elite” das antigas vilas goianas faziam de uma estante de autores que discorrem sobre a música goiana (MENDONÇA, 1981.
à realização de reuniões musicais domésticas – os saraus – e de encontros musicais RODRIGUES, 1982. BORGES, 1998) e mais especificamente sobre a mulher goiana
nas ruas – as serestas –, assim como à aprendizagem de um instrumento, em especial o (BITTAR, 1997. BRITTO, 1982). A pesquisa documental, por sua vez, remeteu a fontes
piano, ou do canto para as filhas dessa classe. iconográficas: fotos de músicos e de instrumentos da época, além de programas de
Os saraus consistiam em um tipo de reunião que era realizada constantemente saraus.
em residências ou palácios no século XIX e no início do século XX, que primavam pela Este capítulo se justifica pelo fato de abordar a música e a prática musical cente-
leitura de novos textos e “apresentações artísticas que compreendiam o teatro, a dança nária de Goiás, desconhecida, em geral, dos próprios goianos, e que pode dizer muito
e a música” (BORGES, 1998: 29). Segundo Borges (1998: 48), “no salão se recebiam todas de seus processos identitários. Além de poder contribuir para o incremento de uma
as visitas, de cerimônia ou de intimidade, davam-se bailes, reuniões dançantes e concer- biblio-grafia muito escassa e cheia de reticências, investe em uma pesquisa na qual o
tos. Conversava-se ao som da música, conferenciava-se a dois no meio de muita gente”. objeto central é a mulher, na contramão dos estudos musicológicos.
O capítulo está estruturado em dois momentos, mais as considerações finais. O
pri-meiro deles – “A cidade de Goiás” – traz a contextualização da cidade, do período
1
Título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e de como a música e a mulher estão inseridos na sociedade. Está dividido em duas
em 2001. subseções: “A música na cidade de Goiás” e “A mulher na sociedade vilaboense: final do

334 335
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

século XIX e início do século XX”. O segundo momento – “A mulher nos saraus e serestas era o elemento miscigenador que mais atuava naquele período e local, mas também
vilaboenses” – trata dos eventos musicais e da presença feminina neles. Divide-se em havia a presença de negras e, de forma mais rara, de mulheres brancas.
três subseções, sendo: “Saraus”; “Serestas”; e “A presença da mulher nos saraus e nas
serestas”. A mulher branca não veio com os primeiros colonizadores e se a negra
Espera-se comprovar o fato de que os saraus e as serestas aconteciam com frequ- foi trazida em número reduzido, a índia foi o forte elemento miscige-
nador. Os viajantes, historiadores e naturalistas que escreveram sobre
ência e, também, escrutinar a presença feminina nesses eventos, assim como seu a província de Goiás não ressaltaram o importante papel da índia na
papel, relacionando-o à sociedade da época. Conjunto de ações que buscam “fazer genealogia de muitas e muitas famílias vilaboenses que se iniciaram
reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, com a “índia pega a laço” [...] Como observou Saint-Hilare, o orgulho
significar simbo-licamente um estatuto e uma posição” (CHARTIER, 1998: 23), dos aventureiros não permitiu que desposassem negras ou índias, tor-
nando assim o concubinato um hábito bastante comum (RODRIGUES,
mediante o encontro das ações da mulher nesse recorte.
1982: 18).

2. A cidade de Goiás
A história da cidade de Goiás está registrada a partir da época colonial do Brasil, quan- Os indígenas habitavam a região que se tornaria a cidade de Goiás, e, apesar da
do a região passou a ser rota de muitas expedições. De acordo com Assis (2019: 13), as “pouca ou nenhuma menção aos grupos indígenas que aqui viviam” (ASSIS, 2019:24),
expedições podem ser separadas em bandeiras, entradas e descidas. As bandeiras eram sabemos estar presentes, pois os bandeirantes foram à terra para conseguir mão de
expedições organizadas e financiadas por particulares, mas autorizadas pela Coroa, já obra. Contudo, as mulheres indígenas eram recolhidas para os bandeirantes, assumindo,
as entradas eram expedições oficiais formadas às custas da própria Coroa; e as descidas por vezes, papel como de “esposa” (RODRIGUES, 1982: 18). De acordo com Bittar (1997:
eram as expedições fluviais. 21), isso ocorreu devido à miscigenação dos povos nativos na costa e às dificuldades de
As expedições e as bandeiras possuíram caráter comercial, com o objetivo de per- importação de negros da África.
correr o sertão em busca de ouro e de aprisionar índios para a mão de obra pesada. O A mulher negra chega ao Arraial através das bandeiras. Veio em pequena quan-
primeiro bandeirante que provou a existência de ouro em território goiano foi Bartolo- tidade e na condição de escravizada, sendo, na concepção de Bittar (1997), uma des-
meu Bueno da Silva, em 1682, que retornou a São Paulo com o metal precioso e indíge- bravadora, pois percorreu o trajeto junto com os bandeirantes, tendo sofrido todas as
nas (MENDONÇA, 1981: 11). Em seguida, o seu filho, de mesmo nome, realizou bandeiras intempéries que os aventureiros passaram.
na tentativa de voltar à região goiana. Obteve êxito em 1725 e ocupou a região do Por conta da condição da viagem, a mulher branca vem em menor quantidade.
Rio Vermelho, onde fundou, em 1727, o Arraial de Sant’Anna (IBGE, 2017). E, a partir de Rodrigues (1982: 17), citando Saint-Hilare, observa que a mulher se “assustaria com a
então, o local “atraiu pessoas com o imaginário e a exploração do ouro, tornando-se o distância que separa os portos de mar dessa região central, ou com as fadigas de uma
maior centro cultural e econômico da Capitania de Goyaz” (BARBOSA, 2015: 30). viagem de vários meses através dos sertões onde as vezes faltam as coisas mais neces-
Acerca da índole dos ocupantes do arraial, Assis (2019) constata que os moradores sárias”. Poucas enfrentaram essas dificuldades, como se pode constatar nos documentos
preferiam a aventura ao trabalho, que, sendo aventureiros, primavam pela coragem, pela que fazem menção às famílias de personagens importantes, como de Bartolomeu Bue-
audácia e pela obstinação. Os corajosos que se dirigiam até à região enfrentavam todo no da Silva Filho, que tem sua esposa citada em uma penhora de joias realizada.
tipo de intempéries, acostumavam-se à miséria e à má sorte, tentando a vida na terra,
sendo-lhes necessário apenas a água e o ouro, pois o que queriam era obter o ganho Raros são aqueles que trazem suas famílias e suas mulheres brancas.
financeiro e voltar para seus locais de origem (BITTAR, 1997). Nas fontes que trabalhamos, encontramos menções feitas à família do
Anhanguera. Saint-Hilaire assim se refere a ela: “Bartolomeu não soube
Habitantes por tempo indeterminado, preocupados com seu próprio enriqueci- conservar as imensas riquezas que chegou a possuir [...] foi obrigado a
mento, não se preocupavam com o desenvolvimento da cidade, nem em constituir fa- vender em hasta pública sua casa, seus escravos e as jóias de sua mu-
mília. Muitos abandonavam as suas famílias de origem e iam à nova terra, onde arran- lher” (BITTAR, 1997: 27).
javam mulheres para se “relacionar” enquanto no território estivessem. Assim, o “branco
introduz, em terras goianas, através de relações não legalizadas com índias e negras, a Os fatos históricos narrados darão à mulher “uma condição de extrema subalterni-
prática do concubinato” (BITTAR, 1997: 28). dade em relação ao homem, propiciando o surgimento de sua identidade caracteristica-
Não se pode atestar a etnia das concubinas, mas, com a documentação presente, é mente sexual - simples fêmea” (BITTAR, 1997: 28).
possível ver a presença de três. Rodrigues (1982: 28) informa que a principal, a indígena,

336 337
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

O arraial se desenvolveu e foi nomeado vila em 1739, passando a se chamar Vila decadência, o atraso serão as marcas do Estado no interminável século
XIX. [...] Sertão bravio, amansado pelos séculos, mais tarde transforma-
Boa de Goiás, cujo nome, segundo Soares (2018: 24), tem origem em “Bueno”, sobrenome do em metrópole e celeiro agrícola do país (ASSIS, 2019: 6).
de Bartolomeu, o bandeirante que iniciou a colonização do estado.
A população de Vila Boa de Goiás começa a se fixar na terra e, com isso, surgem as
primeiras construções das repartições públicas com “arquitetura extremamente simples, O acesso ao local era difícil, e a chegada à cidade se transformava “num magnífico
à maneira paulista, com construções de taipa de pilão” (RODRIGUES, 1982: 18). Nesse testemunho de capacidade de subsistência e sobrevivência, diante das mais adversas
período, a vila pertencia à capitania de São Paulo. Em 1744, houve uma divisão de terras condições de vida” (BITTAR, 1997: 23). Por esse motivo, os homens que romperam mar-
para o melhor controle do ouro extraído, momento em que ocorre a criação da capitania cha da região para lidar com a atividade pecuarista não logravam êxito em retornar para
de Goiás (BARBOSA, 2015). suas mulheres ou se ausentavam por longos períodos (BITTAR, 1997).
As primeiras famílias goianas que se enraizaram em terras vilaboenses, de ori- A ausência de mercado interno tornou o modo de vida urbano subordinado ao rural
gens portuguesa, paulista e nordestina, compreendem, conforme Rodrigues (1982), os (SOUZA, 2001). Na situação de estar sozinha, a mulher desenvolveu uma maneira de se
seguintes nomes: manter e de tomar conta de tudo ao seu redor, garantindo a sobrevivência da família pelo
exercício dos trabalhos domésticos e pela agricultura de subsistência (BITTAR, 1997).
Dentre os primeiros, contamos: Rodrigues Jardim, Vieira, Veiga, Caiado e A agricultura de subsistência faz com que a estrutura da casa vilaboense seja de
Guedes Amorim; já no final do século XIX chegaram os italianos Perillo,
acordo com as necessidades de vida e de consumo. A propósito, Rodrigues descreve o
Viggiano e Rizzo e também o suíço-francês Henrique Alfred Peclat. As fa-
mílias nordestinas também construíram troncos vilaboenses, como os ce- quintal dessas casas:
arenses Rocha Lima e os pernambucanos Loyola (RODRIGUES, 1982: 18).
o quintal possuía três repartições: a varanda dava para o primeiro quin-
tal que era um jardim, [...] depois deste a cozinha passava ao segundo
Por volta de 1750, começa o declínio da produção do ouro, com um rápido esgota-
quintal onde estava a horta e algumas vezes tinha o poço d’agua e
mento das minas (ASSIS, 2019: 24). O decaimento foi causado pela “falta de experiência também um tanque de pedra [...] no terceiro quintal, o pomar, onde
dos mineiros, pela pilhagem da antiga Metrópole [...] pelas leis inadequadas, processos também criavam galinhas e suínos (sendo que alguns tinham uma vaca
irregulares de extração, ambição em demasia dos mineiros etc.” (SANDES; ARRAIS, 2013: para suprir de leite a casa) e o pequeno pasto para os animais de sela
852). Apesar do início do esgotamento do metal precioso, a vila é elevada à cidade em (RODRIGUES, 1982: 20).
1818, agora com o nome de Goiás (BARBOSA, 2015: 30); segue a fase de declínio da
produção de ouro até o esgotamento das minas, em 1822 (ASSIS, 2019: 24). Conforme Bittar (1997), é no gerir da casa e da sobrevivência da família que a
Conforme Sandes e Arrais (2013), a crise da mineração levou a cidade de Goiás mulher vilaboense possui uma certa voz. As viúvas das classes dominantes (mulheres
a um quadro de ruralização e de empobrecimento. Parte da população migrou para brancas), que são matriarcas empobrecidas, “vão para a cozinha fazer quitandas e empa-
outras capitanias ou voltou para seus locais de origem. Os aventureiros que buscavam dões de Goiás, que são vendidos pelas ruas em tabuleiros cobertos por alvas e bordadas
ouro levaram consigo seus escravos, permanecendo poucos negros e negras na região toalhas brancas, para obter o sustento do diploma de seus filhos” (RODRIGUES, 1982:
(RODRIGUES, 1982). Na cidade, permanecem “os funcionários públicos, os que querem 36). E as mulheres das camadas sociais mais baixas têm como ofício ser lavadeiras e/
permanecer devido a laços estabelecidos e que se mantêm economicamente, ou os que ou carregadoras d’água (andando com potes d’água sobre a cabeça) para o sustento da
não conseguem sair por falta absoluta de recursos” (BITTAR, 1997: 34). casa (BITTAR, 1997).
A economia pós-ciclo do ouro baseia-se na pecuária, a única atividade econômica Em 1822, a capitania de Goiás é elevada à categoria de província (BARBOSA, 2015),
viável no longínquo sertão (ASSIS, 2019: 6). O homem vai aonde exista a possibilidade mas tal fato não altera a realidade da cidade de Goiás, que ainda enfrenta um quadro
de trabalho, “através de viagens ao norte do Estado ou mesmo ao Pará [...] passando de pobreza e isolamento geográfico, totalmente desarticulada do circuito econômico
por todo tipo de dificuldades, na esperança de se estabelecer uma atividade comercial nacional (ASSIS, 2019). “Para além da decadência vivida pela cidade, algumas áreas se
rentável” (BITTAR, 1997: 37). mantinham, na medida em que já havia habitantes estabelecidos e que procuravam
progredir em alguma área” (SOARES, 2018: 25).
O sertão e o sertanejo abandonados após a febre do ouro, carregados Alguns dos habitantes que buscaram progresso estão presentes na parte abastada
no lombo de mulas pelas estradas difíceis e infindáveis que conduziam
dessa comunidade, muito formada por servidores públicos, ou se encontra nas viúvas
as tropas, eram o retrato da região pós ciclo do ouro. [...] o isolamento, a

338 339
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

das classes dominantes que enviam “seus filhos [para] estudar na Europa ou em bons Lapa, e, até 1997, a Banda Phil’harmônica era encarregada da parte musical. A partir
colégios da Corte, de onde regressavam trazendo maneiras elegantes e fidalgas” (MEN- desse ano, a Banda do 20° Batalhão passou a ser a responsável (RODRIGUES, 1982).
DONÇA, 1981: 19). A primeira banda a ser criada na cidade, em 1870, teria sido a Banda Phil’harmônica,
a primeira a também a ser responsável pelo Teatro (ALENCAR, 2010: 46), muito embora
Explica-se, assim, a europeização que permeia a cidade de Goiás a par- Rodrigues (1982: 52) faça menção a uma banda anterior: a Banda de Guarda Nacional,
tir da segunda metade do século XIX, dando início a uma vida social
de 1864. A sua sucessora, a Banda do 20° Batalhão, conhecida como a Banda do 20, de
diferenciada em relação à que até então se apresentava, isto é, baseada
em relações sociais quase que exclusivamente no âmbito do privado. A acordo com Dias (2017), foi a responsável por participar de parte da Guerra do Paraguai,
europeização manifesta-se, também, na maneira de as pessoas se ves- animando as tropas na fronteira de Mato Grosso. Também se tem o registro de que ela
tirem. No calor de quase sempre 40 graus (BITTAR, 1997: 46). se apresentou na missa celebrada pela passagem do século XIX para o XX.
O movimento de bandas foi crescente na cidade, e, em 1893, vemos a criação da
É nesse período, no qual era totalmente improvável se ter um ambiente rico em Banda da Polícia Militar sob a direção do maestro Joaquim Santana Marques (ALENCAR,
música, que encontramos “o anseio de progredir, de desenvolver-se e crescer no plano 2010: 46). Como afirmado, Rodrigues (1982) relata a existência da Banda da Guarda Na-
cultural” (MENDONÇA, 1981: 19). Graças aos esforços de sua população, a cidade de cional, de 1864; da Sociedade Phil’harmônica, de 1870; da Banda do 20° Batalhão; da
Goiás torna-se polo de cultura e civilização no Centro-Oeste e permite o aparecer de um Banda Polícia; da Banda Aliança Goiana; da Banda de Música União Goyana; e da Banda
ambiente requintado, ainda que, paradoxalmente, esse mesmo ambiente se encontrasse do Quartel de Menores. Ainda informa que nos eventos “sempre havia duas bandas para
fechado, preconceituoso e avesso às mudanças (BITTAR, 1997: 51). não se interromperem as danças. Além dos dobrados, marchas, valsas, polkas etc. ofere-
ciam um repertório erudito” (RODRIGUES, 1982).
2.1 A música na cidade de Goiás
Se continuássemos expondo a sucessão de eventos históricos da cidade de Goi- A partir da segunda metade do século XIX, as bandas de música passa-
ram a ser a principal atração musical das cidades do interior do Brasil.
ás, chegaríamos à perda do título de capital do estado de Goiás para Goiânia em 1935
Afastada das comodidades sociais e culturais dos grandes centros –
(SOARES, 2018: 25). Entretanto, não continuaremos essa linha cronológica, pois o pre- casas de ópera, teatros, orquestras sinfônicas profissionais – a boa so-
sente capítulo trata, como já foi mencionado, do período em que se encontra o auge ciedade interiorana via na prática musical doméstica dos saraus e nas
cultural da cidade até a mudança da capital, que compreende o final do século XIX e apresentações das bandas de música um paliativo para seu isolamento
o início do século XX. em relação ao resto do mundo. E a Província de Goyaz não era exceção.
As bandas, civis ou militares, tocavam de tudo e em todo lugar: no core-
A música, nesse período, pode ser encontrada nas reuniões musicais em casas, nas to, no baile, no teatro, na procissão, na igreja, nas festas das irmandades
ruas e nos mais diversos ambientes públicos, como igrejas, praças e teatro. (DIAS, 2017: 1).

Nas praças, nos salões, nas serestas, nas escolas, em todo lugar se ou- Mendonça (1981) complementa que as bandas movimentavam a cidade fazendo
via música. Na igreja, a música sacra; na escola os cânticos religiosos,
momentos musicais nas praças, iniciando com a formação da Banda da Polícia, que se
cívicos e a tabuada cantada; em família, a música profana tocada nas
reuniões, bailes e saraus; na corporação militar e no teatro, a executada apresentava, e continuando, após o término de suas atividades, com a Banda do Exérci-
pela banda e orquestra (BORGES, 1998: 31). to, que realizava retretas, às quintas e domingos às 17 horas em frente ao quartel, e a
Banda da Polícia, à noite, no coreto do jardim.
Nas ambiências domésticas, aconteciam os saraus, reuniões que tinham por ob- Existiram ainda, de acordo com Mendonça (1981), a Banda Lira Musical, a Banda
jetivo apresentações artísticas de teatro, dança e música e a leitura de novos textos. Já Club Esperança e a Banda do Senhor dos Passos, que se dissolveu em 1938.
nas ruas, aconteciam as serestas, que eram o encontro de músicos que andavam pelas Além das bandas, “o coro das igrejas teve papel de grande relevância na época, já
cidades, em geral entoando modinhas, em diversos locais, como janelas de donzelas e que, assim como a vida social, a vida musical se desenvolvia paralelamente ao calendá-
de amigos ou até pontos previamente estabelecidos. rio litúrgico” (BORGES, 1998: 21). “A vida girava em torno da igreja e a música pelo nosso
Quanto aos locais públicos, há a presença do Teatro São Joaquim, construído em sertão quase que se desenvolvia em função da liturgia, dada aí a forte inspiração sacra
1857 pelo capitão Joaquim da Chagas Artiaga e, posteriormente, doado à província em dos nossos compositores” (RODRIGUES, 1982: 50).
1875, vindo a ser demolido em 1928. Possuía estilo colonial; situava-se no Beco da

340 341
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

A Semana Santa da Cidade de Goiás é uma das mais exuberantes e O piano foi muito utilizado, dada a “função polivalente que desempenha: é solis-
tradicionais festas religiosas do Brasil. A festa começa à meia noite da
quarta-feira da Semana Santa, de acordo com o calendário católico, ta, é acompanhador de outros instrumentos e do canto, é capaz de realizar reduções
quando as encenações sobre a Paixão de Cristo movimentam a comu- orquestrais, e é excelente meio para a aprendizagem musical” (ROSA, 2020: 213). Jun-
nidade, que acompanha o ritual com devoção e curiosidade. Pelas ruas tamente com o piano, aparece o canto, e era utilizada a “voz colocada, clara e natural,
da cidade, é feita a encenação das principais passagens bíblicas que rejeitando a impostação sofisticada, tanto que quando tentavam introduzir uma nova
antecedem a crucificação de Cristo (LIMA, 2012: 124).
técnica, houve desaprovação” (RODRIGUES, 1982: 67).
Em relação ao canto, na Igreja da Boa Morte, existia um coro bem-ensaiado que
A Semana Santa é a festa mais comemorada e a preferida dos vilaboenses. Se- interpretava missas de Perose, Caetano Fosckini e diversos outros compositores en-
gundo Rodrigues (1982: 47), no início das comemorações, em 1870, o coro era formado saiados cuidadosamente. E na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de 1929 a 1936,
por vozes masculinas; passados dez anos, José do Patrocínio Marques Tocantins passa as obras eram acompanhadas por harmônio, flautas, violinos e saxofone (MENDONÇA,
a dirigir o Coro da Boa Morte, momento em que se tem a presença feminina no coral. 1981). Mendonça expõe a fala de Dr. Jesus de Aquino Jayme, no jornal O Popular, de 15
Mendonça (1981) registra que o coro era bem-ensaiado, com a interpretação de peças de junho de 1969, em que revela o modo de fazer musical:
de difícil aprendizagem; que teve um período dirigido ensaiado por Adelaide Sócrates,
que faleceu em 1925, sendo substituída por Darcília Amorim. Ao cerimonial religioso eram introduzidos, comumente, trechos de mú-
sica profana, em geral ópera, os quais, após passarem pelos necessários
José do Patrocínio Marques Tocantins teve grande influência na vida musical dos
cortes e burilamentos, perdiam todo aquele caráter de música secular
vilaboenses, e, por seu intermédio, em 1882 foi aprovado, na Assembleia Provincial, o e pecaminosa, adquirindo uma fisionomia hipócrita de contrito carolis-
plano para o ensino de música no Liceu que impunha duas lições de música por semana mo, que só o ouvido muito bem treinado conseguiria identificar
(BORGES, 1998: 23). De acordo com Rodrigues (1982: 61), citando a Tribuna Livre (1881: (JAYME apud MENDONÇA, 1981: 77).
4) “é rara a família que não tem um mestre de música para as suas filhas, e de fato, é
também rara a rua da cidade em que não se ouve os sons de vozes femininas e de al- Encontramos a música presente em todos os cantos da cidade, seja na praça em
guns instrumentos de teclas ou violão”. eventos sociais, seja nas casas e escolas. “Foi importante fator de evolução cultural, de
As aulas de música aconteciam “nas casas dos próprios pais por mestre por eles refinamento e integração, além de proporcionar à monotonia do sertão goiano [...] pra-
estipendiados” (ABREU, 2006: 108) e possuía os mais variados instrumentos, com a pre- zer e bálsamo” (BORGES, 1998: 31), com a presença da modinha e das músicas sacras no
sença marcante do piano, que “além de ser um instrumento musical, era um móvel cotidiano da sociedade goiana.
cobiçado pela sociedade, pois era forte a sua representação como símbolo de status e
de poder econômico, dado o seu alto valor aquisitivo” (ROSA, 2020: 213). “Na sociedade 2.2 A mulher na sociedade vilaboense: final do século XIX e início do século XX
goiana, a importância social atribuída ao piano [...] tornou-se uma prática incorporada As considerações feitas nos subitens anteriores abordaram a sociedade goiana até
pelas famílias das elites, haja vista as constantes referências às apresentações musicais o período de transição do Brasil Imperial para o Brasil Republicano. Aqui, ocorre interes-
ao som do piano nas noites goianas” (SANT’ANNA, 2010: 74). sante paradoxo: muito embora essa sociedade tenha se encontrado isolada, manteve-se
culturalmente desenvolvida. Ao fazer o levantamento sociocultural da cidade de Goiás,
Tal como na Corte, tocar piano revelava distinção, justamente por ser deparamo-nos com uma classe altamente intelectualizada, constituída predominante-
instrumento – decorativo e funcional – considerado indispensável no
mente de funcionários públicos, na qual pode ser observada a importância da mulher
processo de adoção de hábitos europeus [...] Além disto, a referência
à solidariedade de Maria Nazareth, reconhecida como notável, ao se (RODRIGUES, 1982).
dispor aceder e transportar seu “magnífico piano Pleyel”, remete-nos
à raridade do instrumento naquela província e à importância que se Tais considerações levam à constatação da necessidade de se resgatar
dava a ele na época, sinal de status e distinção para as famílias que o papel da mulher na história da cidade de Goiás, uma vez que ao falar
o possuíam e particularmente da liberalidade de sua proprietária em dos costumes, da tradição e da cultura vilaboense, falamos, obrigato-
cedê-lo (SANT’ANNA, 2010: 73). riamente da mulher, já que ela é o cimento do social, o ponto nodal da
sociabilidade (BITTAR, 1997: 52).

342 343
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

Como se sabe, dentro da vida social, se pressupõem expectativas de comporta- Apesar de José Rodrigues Jardim, em 1835, quando governador, ter determinado que
mentos entre os indivíduos e dos indivíduos consigo mesmos, com funções e padrões a instrução do primeiro grau fosse obrigatória (BRITTO, 1982) e já haver educação, ela
de comportamento que variam de acordo com classe social, relações no mundo do tra- ainda não se fazia presente de forma plena para todas as mulheres (SANTOS; CLÍMACO,
balho, grau de instrução, religião, sexo. 2018).
Dessa forma, as questões de gênero dizem respeito às relações sociais e aos pa- É na família que as mulheres se apoiam. E é sobretudo nas famílias tradicionais,
peis sociais desempenhados conforme o sexo do indivíduo, tratando-se de uma cons- por ter maior documentação disponível, que iremos encontrá-las desempenhando gran-
trução cultural, fruto da vida em sociedade. “O século XIX levou a divisão das tarefas des papeis. As famílias tradicionais formaram oligarquias em Goiás, sendo a primeira a
e a segregação sexual dos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou dos Menezes, seguida pela dos Bulhões e a dos Caiado (RODRIGUES, 1982). Os Bulhões
definir estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a Maternidade e a Casa” têm um papel especial nesse período por estimularem, mediante seus jornais, a defesa
(PERROT, 2006: 186). dos direitos femininos e por protestarem contra preconceitos (BITTAR, 1997).

O século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão sexu- Os Bulhões estimulam esse costume através de seus jornais, defenden-
al. Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, do os direitos femininos e protestando “contra os inveterados e ridícu-
seu lugar quase predeterminados, até em seus detalhes. Paralelamente, los preconceitos, tão prejudiciais à mulher... Entre esses “preconceitos
existe um discurso dos ofícios que faz a linguagem do trabalho uma tão prejudiciais à mulher” encontra-se o hábito de as senhoras e moças
das mais sexuadas possíveis. “Ao homem, a madeira e os metais. À mu- das famílias tradicionais não saírem às ruas, costume que, pela força
lher, a família e os tecidos”, declara um delegado operários da exposi- da tradição, continua a existir ao lado das novas conquistas femininas
ção mundial de 1867 (PERROT, 2006: 178). (BITTAR, 1997: 135).

Esse tipo de visão, baseada em uma crença de que a mulher seria dotada biolo- Com um grande investimento na pecuária e na agricultura, algumas famílias rees-
gicamente para os papeis de submissão, visto que a sua atuação estaria circunscrita à truturaram-se financeiramente, o que propiciou uma busca maior pela atividade cultu-
esfera do lar, foi amplamente divulgada no cotidiano (ROSA, 2020). A luta pela cidadania ral, inclusive pela música (SANTOS; CLÍMACO, 2018).
feminina não tem sido nada fácil, arrastando-se por anos. Mesmo com alguns avanços Assim, às mulheres que viviam em um regime de quase clausura, foi possibilitado
durante o século XX, ainda é notório o predomínio de uma organização social patriarcal, o acesso à educação musical e, principalmente, o destaque social que teriam pelo fato
na qual a figura feminina está em segundo plano. de tocarem piano (ROSA, 2020). É nesse contexto que a mulher veio a desempenhar
A sociedade vilaboense manifesta, frequentemente, seu caráter ambíguo. Ora com importante papel com sua prática musical, principalmente na ambiência do sarau, como
as mulheres reclusas, desconhecedoras, portanto, de hábitos da vida social; ora dando- será visto logo em seguida.
-lhes liberdade e independência para gerir a casa sozinhas. Vale a pena destacar que
a mulher desenvolvia tal atividade enquanto o homem cuidava da parte financeira, 3. A mulher nos saraus e serestas vilaboenses
relacionada à economia pecuária, e era comum sua ausência para fazer o transporte do
gado (BITTAR, 1997). 3.1 Saraus
Em relação aos direitos das mulheres, conseguimos consultar jornais da época que Os saraus são eventos literomusicais, e é na ambiência do salão que ele ocorre.
tentavam incutir nas jovens leitoras ideais românticos de que deveriam servir de forma Rosa (2020) observa que esse era um espaço eclético, utilizado para conversas amenas,
incondicional ao marido. Como exemplo, temos o texto da Tribuna Livre, no qual se tem para declamação de poemas, além de para a dança e o canto, que sempre estavam
“Conselhos para mulher casada ou por casar-se”, em que se desdobram doze conselhos acompanhados do piano. Acima de tudo, no ambiente, imperava um certo espírito de
para as mulheres, nos quais se encontram, dentre outros, que ela não deve contradizer cordialidade e refinamento, de que a beleza feminina era o grande destaque.
o marido, não ser curiosa com seus negócios e não se mostrar mais inteligente que ele Segundo Bittar (1997), torna-se hábito generalizado, no final do século XIX e início
(CLÍMACO; GUILARDI, 2018: 4). do século XX, as famílias oferecerem saraus animados por conjuntos musicais orga-
Ao mesmo tempo, podemos consultar o mesmo jornal, Tribuna Livre, colocando-se nizados entre seus próprios membros, “numa intensa atividade intelectual que leva a
a favor da educação feminina, perguntando quando a mulher poderá competir com os cidade a viver, através de sua elite” (BITTAR, 1997: 134). Essa atividade intelectual e os
homens em todos os cargos, profissões e posições sociais (SANTOS; CLÍMACO, 2018). conjuntos formados visavam à agilidade de raciocínio, pois, de acordo com Rodrigues,

344 345
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

famílias numerosas formavam conjuntos musicais e improvisavam as portas e janelas àqueles que pudessem os apreciar da rua, a exemplo de “excedentes
sempre saraus e tertúlias, onde os pais eram os mais interessados no
convívio das filhas com os amigos dos irmãos, para tornarem-se de- e transeuntes, apelidados de sereno [...]. Estando as salas repletas, os assistentes iam tra-
sembaraçadas e de raciocínio ágil, podendo expressar seu pensamento zendo de casa suas cadeiras para apreciá-las da rua mesmo” (RODRIGUES, 1982: 97-98).
adquirido através da leitura (RODRIGUES, 1982: 34). Pela fala de Bittar (1997: 134), podemos ver que se forma, entre os membros da
elite, um tom otimista de pessoas comunicativas, no qual “torna-se hábito generalizado
Em Goiás, como já informado, encontramos os saraus acontecendo nas casas e as famílias oferecerem saraus animados por conjuntos musicais, organizados entre seus
nos palácios. Segundo Clímaco e Guilardi (2021: 164), os saraus realizados nas casas próprios membros”. As pessoas reuniam-se em casas, à noite, em horas de devaneio, nas
eram mais comuns, e os realizados nos palácios foram “considerados por terem sido casas de amigos, sendo estes: Virginia da Luz Vieira, Don’Anna Tocantins, Leonor Iracema
realizados praticamente pelas mesmas pessoas e por não perder o espírito dos primei- de Barros de Camargo (D. Sinhá), Joaquin de Sant’Anna, Moises Lopes Zedes (RODRI-
ros”. Rodrigues conta que os saraus realizados em casas utilizavam a sala de visitas. As GUES, 1982: 97).
casas geralmente obedeciam a um tipo de distribuição de cômodos: enorme corredor Essas pessoas fazem parte das famílias tradicionais que dominam a cidade de
incumbido de ventilação interior, que vai da porta da rua à varanda (sala de jantar); à Goiás (BITTAR, 1997: 144). Aqueles que tiveram grande destaque, segundo Rodrigues
esquerda, salão de visitas e uma sala própria para negócios; e à direita, camarinhas (RO- (1982: 63), foram os Bulhões, com exemplos de Inácio Bulhões, que promovia saraus, e
DRIGUES, 1982), conforme se pode observar na figura 1, a seguir: Josephina de Bulhões (1858-1896), que organizava recitais e saraus no Palácio Conde
dos Arcos (sede do então governo), no Teatro São Joaquim e no solar dos Bulhões.
Nas famílias tradicionais, há presença marcante da família Tocantins, a exemplo
de José Rodrigues Jardim Tocantis que, enquanto governador do estado, tornou obriga-
tória a instrução da matéria de música nas escolas públicas. Sua neta, Anna Francisca
Xavier de Barros Tocantins, mais conhecida como Donana, realizava saraus em sua resi-
dência, reunindo “a elite intelectual e política de Vila Boa para as atividades da época”
(BRITTO, 1982: 194).

Donana e sua família eram preciosas à sociedade. À sua mesa de chá,


hábito rotineiro dos lares da cidade naquele tempo, em agradáveis noi-
tes, sentavam-se pessoas destacadamente inteligentes e cultas. Dentre
elas: Chiquinho Xavier de Almeida e filhos, residentes também no Largo
do Rosário, Humberto Martins Ribeiro, Luiz do Couto, Heitor de Morais
Fleury, Rosita Godinho, Luiz Monteiro, Rodolfo Marques, Luiz Donizetti
Martins de Araújo, além dos casais Luiz de Camargo e D. Siná, Joaquim
Augusto de Sant’Ana e D. Barbara Augusta (meus avós) e seus filhos
Josias Lucas, poeta, e Joaquim Augusto de Sant’Anna, compositor. Ainda:
Moisés Lopes Zedes, Theodoro Oeckinghgaus e Dona Cornélia, sua es-
posa, Desembargador Olímpio Costa, Desembargador Matias Joaquim
da Gama e Silva, ilustre avô do ex-Ministro da Justiça Luiz Antônio da
Gama e Silva (BRITTO, 1982: 198).

Também aparece a família Fleury como promotora da vida musical goiana, que, em
Fig. 1: Distribuição dos cômodos de uma casa colonial em Goiás. Fonte: Rodrigues (1982: 210).
1853, traz o primeiro piano para a cidade de Goiás (BORGES, 1998: 77). Sobre Rosa Augus-
ta Fleury Curado (Rosita) que teve 13 filhos, Britto (1982: 248) faz o seguinte comentário:
Possuindo estrutura para receber, mas ainda assim não comportando a quantidade “mesmo com a numerosa descendência e os inúmeros trabalhos, a admirável senhora
de pessoas que chegavam aos saraus, era necessário que se abrisse lugar para que um nunca se distanciou de seu piano. Executava, compunha e acompanhava em qualquer tom
maior número de interessados conseguisse participar, pois, estando a sala cheia, abriam e ritmo. Possuía bom repertório de músicas. Sempre renovado” (BRITTO, 1982: 248).

346 347
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

A seguir, apresentamos as figuras 2 e 3, que mostram programas de saraus realiza-


dos em 1909. Esses programas foram cedidos a Mendonça (1981) pela pianista Hebe do
Couto Alvarenga e são importantes para constatar gêneros musicais, apontar músicos
atuantes no período, além de contribuir para o desenvolvimento de pesquisas.

Fig. 3: Sarau de 1909 em residência. Fonte: Mendonça (1981: 78).

As figuras antes expostas exemplificam os dois tipos de saraus, os que ocorriam


em palácio e os que sucediam em casas. A figura 2 apresenta o programa do sarau que
Celuta Gouvêa, filha do governador Urbano Gouvêa, ofereceu às suas amigas no Palácio
Fig. 2: Soirée concerto de 1909 em palácio. Fonte: Mendonça (1981: 79). Conde dos Arcos; e a figura 3 exibe o programa do sarau ocorrido na casa de Manuel
do Couto pelas amigas de Celuta, em agradecimento pela homenagem recebida (MEN-
DONÇA, 1981).

348 349
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

Clímaco e Guilardi (2018: 166), ao analisar os dois programas, constataram que


os instrumentos mais executados “foram violino, violão, bandolim, flauta transversal
e piano, embora tenham predominado formações como canto e piano”. Com a análise,
chegam à convicção de que o gênero mais apreciado, tanto nas casas familiares quanto
no palácio, foi a ópera. No entanto, discorrem que a modinha também aparece como
parte do repertório.

O interessante é que, se a historiografia local cita sempre o cultivo


da modinha nos saraus goianos (MENDONÇA, 1981, p. 97-98), não foi
encontrada referência alguma a esse gênero de música popular urbana
brasileira nos programas acessíveis. Possivelmente por ser mais comum
esse cultivo acontecer nas reuniões em casas, de maneira mais informal.
[...]. Por outro lado, o fato dos saraus terem acontecido em proporção
maior nas residências, cotidianamente, leva a considerar também que
estavam aí as condições propícias para a prática constante da modinha.
[...] os “saraus”, chamados de “tocatas” em que a execução de “modinhas”
se tornou uma constante. Fornecendo mais dados sobre esse gênero
musical e prática dos goianos, observou que “nessas tocatas nasceram
e viveram as modinhas. Versos daqueles poetas, musicados pelos com-
panheiros que, mesmo intelectualizados, não rebuscavam a linha me-
Fig. 4: Orquestra Ideal da cidade de Goiás: violinos, flautas, clarinetas. Fonte: Mendonça (1981: 72).
lódica, conservando seu caráter popular” (RODRIGUES 1982, p. 97-98)
Mendonça (1981, p. 358) também menciona que as modinhas “constitu-
íam a delícia das reuniões familiares” (CLÍMACO; GUILARDI, 2018: 68).
3.2 Serestas
Rodrigues (1982: 97-98) corrobora o posicionamento, apontando que “reunindo- Castro (2018) expõe que as serestas estão entre as mais antigas formas de expres-
-se à noite em horas de devaneio nas casas de amigos [...], buscavam ouvir e cantar são musical popular brasileira e que apresenta a finalidade de homenagear donzelas
as lânguidas modinhas”. Em outro excerto, afirma que “a ária de ópera foi constante na ou pessoas consideradas queridas e/ou ilustres perante a sociedade através de músicas
programação dos concertos, tanto em residências como a de Inácio S. Bulhões, como em tocadas à porta da casa do condecorado. Durante a pesquisa, pôde ser constatado, nas
palácio” (RODRIGUES, 1982: 67). referências encontradas sobre a temática, que os autores goianos se utilizam da palavra
O hábito de realizar saraus estava relacionado à ideia de “bom gosto” europeu “serenata” como outra nomenclatura para descrever o mesmo evento que as serestas,
e era imitado pelo povo goiano, uma europeização que permeava a cidade de Goiás entretanto, em outras regiões, temos uma diferenciação, sendo dois eventos distintos.
a partir da segunda metade do século XIX (BITTAR, 1997). Vemos a sociedade goiana A propósito, no movimento seresteiro em Conservatória, cidade do Rio de Janeiro,
realizando eventos influenciada por ideais de fora; assim, imitava o que acontecia na em uma palestra, em 1988, houve uma convenção de que as serestas eram diferentes
Capital da época, o Rio de Janeiro, numa tentativa de se modernizar, e realizava “reuni- das serenatas, designando assim:
ões domésticas literomusicais, sempre ao som de piano e regado a reduções de árias de
ópera [...] uma demonstração de poder, dado o alto valor aquisitivo de um piano” (ROSA, A serenata é um concerto ao sereno. Esse mesmo tipo de concerto den-
tro de casa era o sarau. [...] A seresta é uma mistura do sarau com a
2020: 214).
serenata [...] Serenata deriva “do latim serenus, que tanto podia querer
A utilização do conjunto piano e canto tinha preferência nos saraus, mas também dizer céu sem nuvens, quanto calma e tranquilidade” [...] Daí resultou
apareciam outras formações, como é possível ver na foto a seguir (figura 4), que mostra os nomes seresteiros, serenateiros, serenatistas e sereneiros, para inti-
a Orquestra Ideal da cidade de Goiás, formada toda por nomes que se faziam presentes tular os cantores de modinhas [...]. Assim, a serenata é a manifestação
nos saraus, nos quais se pode inferir a presença de outros instrumentos. que ocorre nas ruas, com um seresteiro ou um grupo de seresteiros, em
geral tocando violão e cantando canções românticas. Já a seresta é um
termo moderno, que se refere às cantorias realizadas em ambientes fe-
chados: salões de clubes, hotéis, pousadas, bares, restaurantes – e pode

350 351
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

exibir músicas com ritmos mais rápidos, como sambas-canções. Sendo aparecimento da modinha seresteira, o que se daria através do casa-
realizadas em locais que não necessita de locomoção, possibilita o uso mento da linguagem rebuscada dos grandes poetas, nas letras, com a
de instrumento musicais maiores e até amplificação sonora (CASTRO, sonoridade mestiça dos choros que traduziam para as camadas médias
2018: 44). os novos ritmos dançantes importados pela Europa, na música (TINHO-
RÃO, 1998: 129).
As serestas e serenatas goianas não trazem essa diferenciação, sendo praticadas
“por grupos de músicos que saíam pela cidade com seus instrumentos, entoando ‘modi- Rodrigues (1982) nos conta que os mesmos músicos que estavam nas serestas se
nhas’ sob o luar, debaixo das janelas de moças, de amigos, ou mesmo em determinados faziam presentes nos saraus; que aqueles eventos também eram chamados de tocatas,
pontos costumeiros da cidade” (RODRIGUES, 1982: 98). Rodrigues indica uma relação em que a execução de modinhas era uma constante; e que os músicos (intelectuais da
entre a modinha e as serestas, sendo o gênero mais citado no tocante a essa manifes- época) levaram a modinha (de dentro de casa para as ruas e praças), dos saraus para as
tação musical na referência utilizada durante a pesquisa. serestas. Dessa maneira, a autora mostra-nos uma relação entre os eventos privados e
Na instrumentação das serestas, temos a presença do violão e do bandolim, como públicos dos saraus que, segundo Dias (2017), se tornavam parte das atividades obriga-
podemos visualizar na foto do conjunto de serenata (figura 5) a seguir na qual se pode tórias da elite, que se reunia, ora na casa de um, ora de outro, ao som do violão, da flauta,
identificar a presença de violão, violinos, flauta transversal e trompete, mostrando que do bandolim e, mais tarde, do piano, ouvindo-se um repertório bastante diversificado
havia também a presença de instrumentos do naipe dos metais. que incluía modinhas, lundus e até árias e canções italianas.
A aproximação dos participantes dos intelectuais e músicos levou, conforme Ro-
drigues (1982: 99), a um evento denominado “serenatas em piqueniques”, que possui ca-
racterísticas tanto das serestas quanto dos saraus. Eram reuniões na Cachoeira Grande
em que as famílias goianas se encontravam, levando consigo alimentos para fazerem
piqueniques e instrumentos para as práticas musicais. Guarda as mesmas características
dos saraus e das serestas, a saber: a) a instrumentação, a mesma utilizada pela facilida-
de do transporte, como violão, bandolim, violino e flauta; b) a presença de comida; c) o
fato de ser uma reunião; e d) o gênero musical mais cultivado ter sido a modinha.
Nesses eventos, as famílias acampavam com seus instrumentos, cada qual numa
margem do rio e, à noite, desafiavam-se com modinhas. Quando um lado terminava, o
outro respondia com modinha mais bonita (RODRIGUES, 1982).
A prática do piquenique musical revela-nos a presença da mulher nesses eventos,
assim como acontecia nos saraus, que também eram regados a comida e cultivavam a
modinha (CLÍMACO; GUILARDI, 2018). Já nas serestas, as mulheres eram o centro das
atenções, mas apenas para serem homenageadas pelos seresteiros sem, contudo, pode-
rem participar da parte musical.

3.3 A presença da mulher nos saraus e nas serestas


As figuras 2 e 3 evidenciaram programas utilizados em saraus e expõem-nos algu-
Fig. 5: Conjunto de serenata da cidade de Goiás. Fonte: Rodrigues (1982: 108). mas das mulheres que participavam de suas organizações, sendo elas: Deborah Tocan-
tins, Aurora Tocantins, Emma Fleury, Mariana Fleury, mademoiselle Bulhões de Gouvêa,
mademoiselles Ascendina d’Azevedo, Candida d’Azevedo e Annita de Souza Moraes, ma-
Castro confirma que a modinha está ligada às serestas, expondo que esse gênero dame Couto Brandão, D. Maria Angelica da Costa Brandão, Marianninha Curado e Maria
musical ao se integrar às serestas, passava a se chamar “modinhas seresteiras”, uma Loyola (MENDONÇA, 1981).
forma diferenciada, pois se utilizava de outros instrumentos que não o piano (CASTRO, Apesar de a mulher ter formação musical e poder participar dos saraus, tal “auto-
2018). De acordo com Tinhorão (1998: 129), essa atualização resultou no rização” possuía uma motivação social clara: o casamento. Como antes exposto em refe-

352 353
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

rência a Rodrigues (1982), os pais eram grandes interessados na socialização das filhas, Mediante consulta à historiografia local, foi possível constatar a presença de mú-
pois utilizavam do momento para mostrar o que consideravam dotes, como raciocínio sicos que participaram tanto de saraus quanto de serestas. No entanto, não há nenhuma
ágil e habilidades ao piano, para que fossem vistas e conseguissem conquistar bons representante feminina nesses documentos, especialmente no que tange às serestas, o
pretendentes para o matrimônio. que conforma o nosso raciocínio2 (CLÍMACO; SANTOS 2018).
Na sociedade, havia a percepção de que quanto mais habilidosas e prendadas eram
as moças, melhores esposas seriam. Ao tocar um instrumento, a mulher se destacaria 4. Considerações finais
das demais, garantindo melhores propostas. Rosa (2020: 223) confirma tal assertiva: Muito embora a sociedade goiana se encontrasse isolada, ela manteve-se culturalmente
desenvolvida. Ao fazer um levantamento sociocultural da cidade de Goiás, deparamo-
as moças, ao demonstrar alguma habilidade ao piano, mais do que sim- -nos com uma classe altamente intelectualizada, constituída predominantemente de
plesmente fazer música, desempenhavam uma função social clara, ou
funcionários públicos, que dá espaço e importância para a mulher, dando-lhe acesso ao
seja, elas revelavam que eram prendadas garantia de bom casamento
– e, dessa forma, poderiam atrair as atenções de um futuro cônjuge estudo e à música.
(ROSA, 2020: 223). A sociedade goiana forjou um cenário cultural em que famílias bem-sucedidas
investiam no cultivo de saraus nos quais as mulheres se faziam presentes e atuantes
Ainda conforme Rosa (2020), esse contexto era parte de um teatro social, com como participantes e como promotoras. Nas serestas, elas recebiam as músicas que lhes
uma política matrimonial bem-organizada, justificada e vista como necessária, no qual eram dedicadas, mas não participavam; compareciam apenas em passeios pós-jantares,
as damas se apresentavam ao piano em saraus na ambiência doméstica do salão. Fun- nos quais, às vezes, havia música. Com o decorrer do tempo, a mulher viria a participar
cionava efetivamente como uma mostra para que pretendentes em potencial as vissem. da seresta, mas não durante o recorte temporal do presente capítulo.
Era a oportunidade para a mulher se livrar do jugo paternal, ainda que caminhasse para Importante ressaltar que, na elite goiana, os eventos musicais ocorriam com frequ-
o jugo do marido. ência e que as mulheres, de algum modo, estavam neles presentes. Os dados analisados
A mulher também aparece como promotora desses eventos literomusicais, uma vez e interpretados revelam peculiaridades locais, que apontam para o cultivo de gêneros e
que se torna “hábito generalizado as famílias oferecerem saraus animados por conjuntos de instrumentos musicais que dizem muito da sociedade goiana da época em questão,
musicais, organizados entre seus próprios membros” (BITTAR, 1997: 135). Da família Bu- assim como indicam elementos de um posterior desenvolvimento da vida musical no
lhões, Josephina foi uma das que mais teve representatividade em relação aos saraus: “ta- estado de Goiás.
lentosa pianista e grande incentivadora da cultura musical, promovendo recitais e saraus
musicais em palácio, Teatro S. Joaquim e no solar dos Bulhões” (RODRIGUES, 1982: 63). Referências
Como foi visto, uma característica das mulheres nesse período é estarem reclusas
em suas casas. Conseguem participar e promover saraus exatamente pelo fato de esses ABREU, Sandra Elaine Aires de. A instrução primária na província de Goiás no século XIX.
eventos ocorrerem no local do qual não poderiam se afastar. Conforme Rosa (2020: Tese (Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade) – Universidade Católica de
223), as mulheres têm a conquista de poder aprender a tocar um instrumento musical, o São Paulo, São Paulo, 2006.
piano, por ele estar dentro de casa, mas, sobretudo, por ele ser demonstrativo de dotes
artísticos para o casamento. ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Bandas ou “furiosas”: tradição, memória e a forma-
Enquanto os saraus eram realizados nos salões, nas casas, nos espaços em que as ção do músico popular em Goiânia – GO. Música em contexto – Revista eletrônica da
mulheres estavam presentes, as serestas ocorriam justamente no local oposto, nas ruas Universidade de Brasília, Brasília, v. 4, n. 1, p. 43-56, 2010.
da cidade de Goiás, onde elas não estavam. Rodrigues (1982: 99-100) afirma que
ASSIS, Wilson Rocha Fernandes. Estudos de história de Goiás. 3 ed. Goiânia: Palavrear,
a mulher não participava das serenatas, mas era constante sua pre- 2019.
sença nos costumeiros passeios de após o jantar até pontos pitorescos
como o alto da Santa Bárbara, a fonte Carioca, as praias de Areião e Ba-
calhau. Levavam consigo seus instrumentos musicais e cantando mo-
dinhas contemplavam o entardecer. [...] Hoje a presença feminina em
serenatas é marcante, em decorrência talvez do costume dos passeios. 2
Apenas homens aparecem, a exemplo de Eládio Amorim, Júlio Alencastro Veiga, Manoel Macedo, Arman-
do Esteves, Ovídio Martins, Luiz Martins Araújo e Ataíde Siqueira (CLÍMACO; SANTOS, 2018: 171).

354 355
A mulher nos saraus e serestas da cidade de Goiás: do final do século XIX ao início do século XX Robervaldo Linhares Rosa; Ludmylla Cristina Guilardi

BARBOSA, Filipe Augusto Couto. Dos usos turísticos do patrimônio alimentar: formação LIMA, Luana Nunes Martins de. A procissão do fogaréu na cidade de Goiás - identidade,
cultural e os mercadores de comida típica na Cidade de Goiás. Dissertação (Mestrado cultura e território: O turismo e as novas tendências. Boletim Goiano de Geografia, v. 32,
em Antropologia Social) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015. n. 1, p. 121-133, Universidade Federal de Goiás, 2012.

BITTAR, Maria José Goulart. As Três Faces de Eva na Cidade de Goiás. 1997. Dissertação MEDEIROS, Kenia Gusmão; REGIANI, Álvaro Ribeiro. Ensino de história e gênero: a
(Mestrado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997. consciência histórica voltada para a democracia. In: BUENO, André; ESTACHESKI, Dul-
celi; CREMA, Everton; ZARBATO, Jaqueline (org.). Aprendendo história: ensino. União da
BORGES, Maria Helena Jayme. A música e o piano na sociedade goiana (1805-1972). Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019.
Goiânia: FUNAPE, 1998.
MENDONÇA, Belkiss S. Carneiro de. A música em Goiás. Goiânia: Editora UFG, 1981.
BRITTO, Célia Coutinho Seixo de. A Mulher, a história e Goiás. 2 ed. Goiânia: UNIGRAF,
1982. PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2006.
CASTRO, Maria Gorett de Oliveira Silva de. Conservatória: A construção das serenatas
como patrimônio cultural. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de RODRIGUES, Maria Augusta Calado de S. A modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia: Edi-
Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio tora UFG, 1982.
de Janeiro, 2018.
ROSA, Robervaldo Linhares. Como é bom poder tocar um instrumento: pianeiros na cena
CLÍMACO, Magda de Miranda; GUILARDI, Ludmylla Cristina. Lundu canção e choro: im- urbana brasileira. Goiânia: Cânone Editorial, 2014.
plicações com a sociedade goiana que cultivou saraus e serestas. Revista Música Hodie,
Goiânia, v. 17, n. 2, p. 178, 2018. ROSA, Robervaldo Linhares. História e gênero em capas e contracapas de partituras para
piano. Revista Eletrônica História em Reflexão, Dourados, v. 14, n. 28, p. 209-231, 2020.
CLÍMACO, Magda de Miranda; SANTOS, Noemi Ferreira dos. O protagonismo da mulher
vilaboense e sua atuação no cenário musical: registros em periódicos e cruzamento de SANDES, Noé Freire; ARRAIS, Cristiano Alencar. História e memória em Goiás no século
representações. In: XXVIII Congresso da ANPPOM-Manaus/AM. 2018. XI: uma consciência da mágoa e da esperança. Varia Hist., Belo Horizonte, v. 29, n. 51, p.
847-861, 2013.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: DI-
FEL, 1998. SANT’ANNA, T. Noites Abolicionistas: As mulheres encenam o Teatro e abusam do
piano na Cidade de Goiás (1870-1888). OPSIS - Revista do Núcleo Interdisciplinar de
DIAS, Ângelo. A Furiosa vai à forra! Revista UFG, [S. 1.], v. 8, n. 2, 2017. Disponível em: Pesquisas e Estudos Culturais, Catalão, v. 6, n. 1, p. 68-78, 2010.
https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48107. Acesso em: 18 set. 2021.
SOARES, Sônia Helena Batista de Souza. A produção artística das mulheres Coralinas: uma
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Goiás: histórias e fotos. identidade em cerâmica. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Artes Visuais) –
IBGE, 2017. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/historico. Acesso em: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Cidade de Goiás, 2018.
25 mar. 2022.
SOUZA, Miliandre Garcia de. História social da música popular brasileira. História:
JARDIM, José Leopoldo de Bulhões. Secção de Notícias: Aulas de Música. A Tribuna Livre, Questões & Debates, Editora da UFPR, Curitiba, n. 34, p. 299-303, 2001.
Goiás, n. 51, p. 4, 1881. Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/tribuna-
-livre/717592. Acesso em: 18 mar. 2022. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora
34, 1998.

356 357
Mato Grosso: um Estado de muitas festas

Mato Grosso: um Estado


de muitas festas*

Silbene Corrêa Perassolo da Silva


Universidade Federal de Mato Grosso

358
*
Este capítulo foi baseado nas pesquisas de mestrado
(2014) e doutorado (2019) da autora que abordam a
história cultural de Mato Grosso, principalmente, a Fes-
ta de São Benedito e o Rasqueado Cuiabano. 11 como citar
SILVA, Silbene Corrêa Perassolo da. Mato Grosso: um Estado
de muitas festas. In: SOUZA, Ana Guiomar Rêgo; CRUVINEL,
Flavia Maria (ed.). Centro-Oeste. Vitória: Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2023. p. 358-394.
(Histórias das Músicas no Brasil).
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

1. Introdução Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá noticiadas pelos jornais da época como de muita
A maioria dos estudos sobre a historiografia de Mato Grosso, sobretudo os que tratam pompa (JESUS, 2003)2.
da questão da cultura, tem focado suas pesquisas, principalmente, nas questões da pre- Na segunda parte, mostraremos uma pequena reflexão sobre a história da música de
servação do patrimônio cultural, geralmente ligadas ao espaço urbano e à religiosidade Mato Grosso no período imperial brasileiro, fazendo surgir a necessidade de reestruturação
dos habitantes desse vasto território, e muito menos ainda, sobre o patrimônio imate- das vilas, num crescente distanciamento entre o público/privado nos eventos culturais, re-
rial e para entender o sentido mais amplo “teríamos, antes de mais nada, de conhecer sultando na continuação da tradição aos santos católicos mais conhecidos no Mato Grosso.
a cidade [...] desempenha um papel fundamental para o resguardo de sua unidade e
continuidade” (CAMPELLO, 1994: 125). A área territorial desse estado é de 903.207km², 2. Mato Grosso: dos rios às circunstâncias
sua população estimada é de 3.567.234 habitantes; sua economia tem destaque in- A historiografia mato-grossense teve início com as tentativas dos homens da primeira
ternacional com agronegócio, baixo índice de escolaridade e infraestrutura deficitária. metade do século XVIII, ansiosos por descobrir e conquistar o lado meridional do Brasil,
Geograficamente, o Mato Grosso é formado por três grandes biomas: Amazônia, Cerrado de penetrar a densa mata, por meio dos cursos naturais dos rios, e chegar ao extremo
e Pantanal, onde está localizada o ponto central da América do Sul (IBGE, 2012). oeste brasileiro. E assim o fizeram, sofrendo com os ataques das comunidades indígenas
Desde sua formação até os tempos atuais, foram amalgamadas suas diversida- locais e com os acidentes geográficos; portugueses e brasileiros adentraram o território
des sociais e culturais, com toda sorte de dificuldades para a manutenção de seus durante o ciclo das monções, iniciando um pequeno núcleo de habitantes onde hoje se
povoamentos, assim como em outras localidades brasileiras, com falta de água potá- encontra a capital do estado do Mato Grosso, Cuiabá.
vel e de iluminação pública, calor intenso, entre outras, que acabaram por incutir no De São Paulo a Cuiabá, a comitiva partia de Porto Feliz-SP, passando pelos grandes
inconsciente coletivo a ideia de distanciamento dos grandes centros econômicos e rios Paraná e Paraguai, até chegar no Rio Cuiabá ou no Rio Coxipó, onde havia abun-
culturais do Brasil. dância de ouro. Por volta de 1717 e 1718, o garimpo tornou-se mais intenso, iniciando a
Sua capital nasceu como Arraial do Senhor Bom Jesus de Cuiabá1, em 1719, com corrida pelo metal precioso, ocasionando grande êxodo de outras partes do Brasil para
todos os desafios de se viver num meio ambiente hostil, cercado de perigos e clima o novo arraial, onde se descobriu, em 1719, um dos maiores auríferos do ciclo da mine-
tropical com períodos de chuva e umidade, além de intenso calor – aspectos estes re- ração. A descoberta foi de tamanha importância que, para lá, se dirigiu o governador e
latados por viajantes e visitantes, que descreviam a cidade como atrasada em todos os capitão-general da capitania de São Paulo, D. Rodrigo César de Menezes, instalando, em
sentidos, sem opção de lazer, passeio público, ópera ou teatro. Mas esses aspectos, entre janeiro de 1727, a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
outros, oportunizaram outras opções de lazer como a agenda de festividades de santos Em 1729, o ouro esgotou-se, causando sensível decadência da vila, que passou a
católicos, os bailes e os saraus em residências particulares e em piqueniques, que ti- contar apenas com alguns habitantes. Somente em 1748, a capitania foi desmembrada
nham lugar nas aprazíveis chácaras localizadas às margens dos rios Coxipó ou Cuiabá de São Paulo, com a posse do governo de Rolim de Moura, que fundou a nova capital de
(RIOS; VOLPATO, 1993: 38). Mato Grosso em outro lugar, Vila Bela da Santíssima Trindade. Em 1750, o governador
Para efeito deste trabalho, vamos dividir o texto em partes, com vistas à compre- recebe ordens expressas de Lisboa para delimitar o território com os domínios da Coroa
ensão de uma pequena história musical e cultural do estado de Mato Grosso, sem a espanhola, por meio de um tratado, que foi anulado e retomado em 1777. Em 1821, com
pretensão de esgotar a temática, mas, sim, de fomentar discussões futuras. A primeira a queda do regime colonial, instala-se um governo provisório, novamente em Cuiabá,
parte inicia-se em 1719, com o início do povoamento do Arraial de Cuiabá, que, assim que volta ser a capital de Mato Grosso. Nessa época, para se chegar à região, já havia
como em outras cidades brasileiras do século XVIII, tiveram muitas dificuldades para três caminhos diferentes: o fluvial saindo de Porto Feliz-SP; o terrestre, passando por
a solidificação administrativa e militar, até a metade do século XIX, com o término da Goiás; e o mais movimentado, o marítimo, que vinha do Rio de Janeiro até a Bacia do
guerra do Paraguai, que trouxe a peste que dizimou parte dos mato-grossenses, na re- Prata, entrando no Rio Paraguai até a sede do governo provincial.
tomada do território ocupado. A vida musical e cultural foi marcada pela necessidade de Foi por esse caminho marítimo que viajava Carneiro de Campos quando para assu-
evangelizar os naturais da terra e pela religiosidade, com diversas festividades na Vila mir a presidência do estado, o que nunca aconteceu, pois, seu navio foi aprisionado e re-

1
A primeira povoação do estado foi chamada de Arraial da Forquilha, hoje o Bairro do Coxipó Mirim, no 2
Nauk Maria de Jesus exemplifica as festas do nascimento da princesa da Beira: o Senado da Câmara
início do século XVIII. Com a descoberta do Ouro e crescimento populacional no entorno do Córrego da ordenou a publicação de um edital para, logo em seguida, iniciar as comemorações que contava com
Prainha, criou-se ali a sede administrativa do Arraial de Cuiabá. Silva (2014: 121). “missa, pompa, sermão e Senhor exposto”. Essas comemorações e festejos duraram, aproximadamente, 4
meses. Ver mais em: JESUS (2003: 105-106).

360 361
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

bocado para terras paraguaias, dando o primeiro passo para o início da guerra do Brasil Essa elasticidade foi fundamental para a concretude dos processos civilizatórios
com o Paraguai. Além disso, invadiram a parte sul de Mato Grosso até o Forte Coimbra, em Cuiabá, uma “estratégia” adotada pelos portugueses, que a trouxeram de suas ex-
encontrando resistência de poucos mato-grossenses, que, sem poder contar com a ajuda periências de colonização de outras localidades. Esses colonizadores eram homens de
de outros brasileiros, resistiram a guerra como lhes foi possível (LEITE, 1945-1946). negócios, senhores de engenho com noção de economia, experiência agrária na cons-
Eis um breve relato para a compreensão da vida dos habitantes desse estado entre trução de engenhos, sítios e casas comerciais e, sobretudo, amor pelo reino de Portugal.
os séculos XVII a meados do século XIX. Para formar o núcleo setecentista o primeiro arraial de Mato Grosso, vieram, muitos
deles, do Norte de Portugal, principalmente da região do Minho e Douro4.
3. Cuiabá: o maior arraial do extremo oeste brasileiro
A cidade Cuiabá surgiu em 1719, com a descoberta do ouro na região da Prainha, hoje Embora tenha sido alcançado a partir dos caminhos internos, o espaço
do Mato Grosso construiu-se, mentalmente, de fora para dentro, a partir
Centro de Cuiabá, pelos portugueses e paulistas que adentraram para conquistar e man- da fronteira. É ela quem o define. É ela quem o informa. O Mato Grosso
ter a soberania portuguesa na parte mais a oeste do Brasil. Aos poucos, deu-se a for- não foi verdadeiramente conquistado, ou descoberto, foi desenhado5. E
mação do núcleo urbano com a hibridação dos brancos, africanos escravizados pela não só se desenhou ao mesmo tempo que a fronteira, mas desenhou-
comitiva e os naturais da terra, tornando-se os primeiros “cuiabanos”. Na vinda, passando -se, em si, como fronteira. Não se trata de um mero jogo de palavras. O
que queremos dizer é que aquela região só passou a existir para Portu-
pelo sertão brasileiro até o Rio Paraguai, ainda encontraram “seis povoações de gente
gal quando resolveu pensar, em sua fronteira, ou foi obrigado a pensar
castelhana, brancos, índios e mestiços com Igrejas, casas de talhas oficinas” (BARBOZA a fronteira de maneira diferente da que até então vigorava (ARAÚJO,
DE SÁ, 1975: 9-11). Eram estes os motivos dos conflitos futuros pela demarcação de 2015: 1-2).
terras – e se não fosse assim, hoje, essa parte do Brasil seria domínio da Espanha.
Essa história ainda é contada, atualmente, na música e na arte, criando um sen- A fronteira foi essencial para a invenção do espaço e para os processos de hibridi-
timento de dualidade entre duas culturas europeias, a portuguesa e a espanhola, na zação da futura cultura local, que
América do Sul, sendo que o único país de língua portuguesa da região continua sendo
o Brasil; os demais, com exceção de Guiana, Guiana Francesa e Suriname, falam espa- colocou para o Mato Grosso [...] a materialização do território. A capita-
nia foi deliberadamente criada para ser o ante-mural do Brasil. O espa-
nhol ou castelhano.
ço do Brasil e o espaço da capitania são por isso indissociáveis. O Mato
Foi dessa forma que o núcleo urbano se desenvolveu, como uma pequena exten- Grosso desenhou-se como fecho do Brasil e neste sentido (re)desenhou
são do governo lusitano, a partir do século XVII e XVIII; uma região de “permanência” o Brasil (ARAÚJO, 2015: 2).
para uns e de “passagem” para outros, ambiente propício de trocas e convívio que aca-
baram por forjar, nos primeiros habitantes, o dever de colonizar e desbravar e, ainda, O território, aqui, tem outro significado além do processo de ir e vir e oferece ou-
povoar essa região que foi, na verdade, um “processo civilizatório” dos indígenas em tras possibilidades de identificar o hibridismo cultural implícito na cultura cuiabana.
nome da Cruz (ELIAS, 1994: 67). Para o compreender, é preciso explicitar que a ideia de fronteira se sustentará em Leo-
Dando continuidade aos processos civilizatórios, a Igreja Católica detinha o poder nan Lauro Nunes da Silva, que apresenta a fronteira,
administrativo no século XVIII, com duas funções: catequizar e unir toda a sorte de bran-
cos, negros e índios primeiramente para se comunicarem pela língua portuguesa. Esse como uma linha que divide, separa grupos, sociedades e domínios po-
lítico-administrativos. É tomada como limite, isto é, fim do espaço por
foi o legado cultural e social, até mesmo psicológico, o qual, mais tarde, foi enriquecido
onde podemos transitar e sobre o qual temos domínio. Define a posse
com o contato com as línguas de matrizes africanas e indígenas, entre outras, através de um território, processo que subentende, muitas vezes, disputas e
de uma certa elasticidade da cultura portuguesa, pois se observou que seria um grande
erro a imposição de uma só língua3. 4
Os troncos raciais das primeiras famílias mato-grossenses foram pesquisados por José de Mesquita, que
localizou a origem dos minhotos e dos douros na fase que chamou de “sedimentação” do povo cuiabano,
trazendo suas feições calmas e profundamente religiosas, com características de poder de resistência
3
Gilberto Freyre (1940: 39-40 e 43-44) defendeu que foi a pluralidade da cultura de origem o fator frente ao ambiente hostil (MESQUITA, 1941-1945: 3-6).
predominantemente português e cristão, em cujo seio se formou e se integrou a nossa sociedade, o
fator que favoreceu o desenvolvimento da cultura brasileira, ainda que um aspecto seja completamente 5
Araújo (2015) faz análise da representação geográfica da construção do Estado de Mato Grosso por
negativo, trazer africanos como escravos, o contato se deu e foi estimulado pela ausência ou escassez de meio de mapas que traçaram as rotas e rios desse estado, concluindo que essa cartografia foi, em si,
mulheres brancas. O autor afirma que, no Brasil, esse contato agiu como uma força de atuação social e instrumento de fixação, elemento básico de sua constituição. Uma leitura imperdível para os estudiosos
psicológica mais “larga” e mais profunda que a escravidão. de Mato Grosso e imites no século XVII e XVIII.

362 363
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

lutas armadas para conquistá-lo. Porém, a fronteira também pode ser habitantes que seguiram em procissão até a Igreja Matriz, no centro da vila. Em seguida,
compreendida como elemento de aproximação, de integração entre
foram apresentadas “duas comédias, banquetes e fogos durante três dias” (BARBOZA DE
distintas culturas. Ela propicia contatos espontâneos e naturais, res-
ponsáveis pelo surgimento da solidariedade e de interesse socioeco- SÁ, 1975: 26-27).
nômicos e culturais comuns (SILVA, 2009: 22). Por volta de década de 1790, há notícias que atestam o desenvolvimento mu-
sical da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá com orquestras no paço da câma-
Tornou-se necessário recorrer ao conceito de “longa duração” de Braudel (1990) ra e noites iluminadas, ainda seguindo os padrões europeus, após a superação das
para iniciarmos o caminho a partir da chegada dos primeiros habitantes que seguiram a dificuldades de comunicação e de manutenção da fronteira do estado pelo governo
imposição de uma cultura “mais evoluída” sobre as outras que se fizeram presentes, mas português (SIQUEIRA, 2002: 5-6).
em menor escala, com projetos de povoação lusitanos, construindo igrejas e repartindo
terras entre eles. Domingo, 29 (1790):- Representou-se a tragédia de Zaira, acompanhada
com o mais jocoso entremez que jamais vi representado. Esta noite foi
Participando ativamente da vida cotidiana, vieram os religiosos, grandes respon-
certamente muito plausível, a tragédia bôa de si mesma por ser mui-
sáveis pela religiosidade e pelas mudanças do tempo habitual, pois logo que se instala- to terna e commover muito os afectos, supposto que a versificação é
vam, já procuravam evangelizar os naturais da terra e construíam igrejas para oferecer um pouco frouxa por defeito do traductor; os heróes escolhidos, pois
os ofícios aos habitantes (COMETTI, 1996). Assim se deu, por meio da devoção, a incor- representou o papel de Osman o incomparável João Francisco, e o de
poração dos elementos dos negros e índios pelos novos habitantes, que já poderiam ser Zaira, Silverio José da Silva; o aceio e o adorno das damas; a proprieda-
de, aceio e riqueza dos vestidos dos ottomanos, distinguindo-se sobre
chamados de mato-grossenses: todos os de Osman, a quem até encarnaram a cara, braços e pernas; o
asseio do que vestia à francesa; a abundância de árias e recitados, can-
Graças a esta mistura, valores que tinham influência africana e amerín- tados com feliz execução pelo mesmo João Francisco, e alguns duettos
dia não foram identificados como sincretismo, mas integrando a crença por outros, com lettra propria da tragédia (ainda que é imprópria nesta
local. Isso causou ainda mais dificuldades para que as autoridades reli- a cantoria); as bellas sonatas que frequentemente executou a orches-
giosas distinguissem o profano do sagrado (SILVA, 2001: 108). tra, que teve de mais a mais a singularidade nunca vista, ao menos no
meu tempo, em Cuyabá, de possuir uma trompa; a boa iluminação, a
Surgem, nesses momentos, o cenário e o palco para a continuação das velhas tra- bem executada ação das duas mortes e, finalmente, o sobredito en-
dições agora hibridizadas, conferindo-lhes um novo papel, a fixação dos habitantes que tremez, que não fez um instante a toda a platteia cessar de rir e bater
palmas (porque ali estava João Francisco de velho enamorado), tudo
aceitaram o desafio de viver em Cuiabá, produzindo-as com ou sem solidariedade, as
isto deu um lustre e gosto muito grande a esta funcção. Os mesmos que
teias da nova cultura, a do cuiabano nascido de “Tchápa e Cruz” (que significa: aqui nasci a executaram foram os que m’a offereceram; o mestre regio foi quem
e aqui morrerei), usado até hoje para descrever quem ama e cuida do estado de Mato os ensinou e na sua casa se vestiram as duas damas, e o major Gabriel
Grosso e sua capital, Cuiabá. foi quem o protegeu. No princípio e no fim da tragédia cantaram uma
Tudo que foi exposto até agora foi para situar o leitor no contexto para o ajudar a lettra em forma de côro em meu louvor, e no fim do entremez dançaram
A Tyranna em meu louvor, como dizia o velho, o qual fez maravilhas na
compreender a música e refletir sobre como foi o crescimento dos folguedos na ordem mesma dança (ORDONHES, 1898/1899: 240).
social, do processo colonizador do governo português, iniciado com a construção de
Cuiabá como uma pequena corte imperial. Em Mato Grosso, estabeleceram-se duas prá- A leitura dessa passagem e de outras encontradas pela pesquisa, sobre as ativi-
ticas que, juntas, percorreram os séculos XVII e XVIII, amenizando o viver nesse estado: dades musicais que aconteciam nas festividades oficiais e religiosas, assim as demais
os eventos religiosos oficiais do governo português e as festas, as óperas, os divertimen- festas deixaria, qualquer músico da atualidade sem fôlego e, de antemão, fatigado, por-
tos em geral que aconteciam, um após o outro, em todas as festividades. que, mesmo com todas as facilidades de tecnologia e comunicação, entre outras, a re-
produzir seria uma tarefa impensável. Ressalta-se, aqui, além da variedade de estilos
4. O roteiro inicial: cotidiano musical de Cuiabá musicais, a montagem dos figurinos; os personagens em cena chamam a atenção pela
O fato é que, já de 1730, temos notícia de uma missa “cantada”, realizada graças a dois grandiosidade de uma cidade atualizada e alinhada com as teatralizações tanto do Bra-
fazendeiros que custearam toda a festividade em honra à chegada da Imagem do Se- sil quanto da Europa.
nhor Bom Jesus, vinda de Sorocaba, guardada em Camapuã, hoje Mato Grosso do Sul, De toda forma, as distâncias geográficas de Cuiabá a outras cidades agiram em
de onde foi levada por índios e negros até o Porto Geral da Vila, sendo recebidos pelos favor da efervescência de sua vida cultural, de forma positiva, numa via de mão dupla,

364 365
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

trazendo, de um lado, o anseio que a cidade tinha de receber bem todos e todas – uma cio das festividades: era preciso arrumar a cidade e deixá-la pronta para tanto. Assim,
estratégia social para atrair novos habitantes –; e de outro, o tempo do viver e supor- os moradores precisavam deixar as fachadas de suas casas bem-arrumadas, além de
tar as adversidades ambientais em Cuiabá, de forma calma e simples, em contato com acender suas luminárias nas janelas ou deixar em estacas de bambu, onde se colocava
os outros habitantes, nos eventos e locais públicos, baseado na troca de experiências pequenas “vasilhas de barro queimado com portinholas para passar a luz”, e deixar o
culturais, que não os impediu de se deleitarem com as apresentações e com aparente espaço muito iluminado na praça central, em frente à Catedral do Senhor Bom Jesus
“qualidade”, esmero e capricho para um lugar tão distante, no “fim do mundo”. de Cuiabá; o local ficava tão iluminado que mais parecia dia (RODRIGUES, 1945/1946:
Pensar que tão rapidamente Cuiabá estaria nesse patamar de desenvolvimento 48-50).
cultural é de causar admiração, até mesmo para outras cidades, como São Paulo e Rio de Mas não só os festejos religiosos eram motivo de tanta organização e preparo: a
Janeiro, pelos que se fixaram quer seja na área rural, quer seja na área urbana, sendo que agenda das grandes festas da Coroa portuguesa, como os aniversários dos monarcas e
foi a cidade quem mais ganhou com essa movimentação, adquirindo traçado “estreita- de seus filhos, nascimentos de filhos da família real e recepções dos capitães-generais
mente vinculado aos acampamentos originais dos mineradores de ouro e de diamantes. ou presidentes também mereciam o mesmo esmero por parte dos habitantes. O pro-
Isso teria sido determinante para a criação de uma burguesia, cujo isolamento forçou grama oficial para esse tipo de evento era similar ao dos festejos religiosos, anunciados
uma autossuficiência razoável em muitos setores da vida cotidiana”(MARIZ, 2000: 41). pelo bando de mascarados, cidade iluminada e grande júbilo dos moradores, que ti-
Ainda na fase inicial de povoação, Cuiabá recebeu os primeiros padres que vieram nham muitas oportunidades de divertimento nos bailes, nas apresentações teatrais, nas
para ensinar português, catequese e música, assim como a arte de construir instrumen- cavalhadas e nas touradas. As festas eram encerradas à noite com grande fogueteiro,
tos musicais, que seriam utilizados na vida cotidiana. O fascínio entre os naturais da que iluminava o céu, uma encenação de combate militar e muita bombinha no chão,
terra pela música trazida pelos portugueses e paulistas foi grande, principalmente, por fazendo a alegria da criançada, continuando com o baile em casa de festeiros durante
um instrumento: a viola portuguesa. No Brasil, inspirados pela viola de origem árabe ou 15 dias, com jogos, muita comida e muita bebida (RODRIGUES, 1945/1946).
moura, os amantes da música europeia passaram a construir suas próprias violas, que, Era nas festividades que alfaiates, pedreiros, carpinteiros, lavadeiras, costureiras,
em Mato Grosso, ficou conhecida como “viola de cocho”6, a primeira marca cultural que engomadeiras e funcionários públicos passaram a compartilhar, muitas vezes, a mesma
ofereceu o suporte de traços comuns para os divertimentos, como danças e outras mú- habitação, integrando-se com as matas e os rios, de onde tiravam parte de sua alimen-
sicas, nos ambientes ao ar livre ou nas manifestações do coletivo. Importa que a viola tação, o palco propício para novas elaborações e releituras de todas as ordens: “Essa era
de cocho participou e foi legitimada como um bem cultural pelos sujeitos à margem da uma forma que encontravam para enfrentar a pobreza e as dificuldades urbanas”(CRUZ,
configuração econômica e social (TINHORÃO, 2013: 16-18). 2004: 96-97).
Chegando no final do século XVIII, já eram conhecidos e compartilhados os prin- A primeira fase de Mato Grosso foi marcada pelas realizações de diversas festivi-
cipais festejos religiosos em honra, principalmente, do Divino Espírito Santo, de Nossa dades setecentista noticiadas, que, na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, sempre
Senhora do Rosário, de São Gonçalo e de São Benedito. Essas celebrações seguiam um eram realizadas com muita pompa:
calendário católico com datas previstas, mas que, em Mato Grosso, necessitaram de
ajustes e adaptações devido ao clima da região, passando para antes ou depois das chu- As festas religiosas, em seus dias mais importantes, tornam-se um gran-
de acontecimento e tomam conta dos povoados e cidades. O calendário
vas. Tudo dependia da vontade popular e do interesse crescente de cada comunidade
cristão passa a ser estritamente observado, chegando-se, muitas vezes,
em oferecer uma festa melhor que a outra. Cada festejo religioso era seguido de vários a identificar as pessoas pelos hábitos religiosos, é o essencial entre as
dias de entretenimento, com um programa definido e com participação massiva da po- datas rituais e as maneiras de fazer. As festas criam espaços de conví-
pulação. Para começar, um grande grupo, o Bando saía às ruas, declamando em voz alta, vio especiais, além de trazer a esperança para quebrar a monotonia da
a programação das festividades, no pequeno Arraial que em 1729, passou a ser chamada vida, permitindo diversas festanças e a possibilidade dos encontros. As
organizações festivas, de caráter religioso ou não – sem que seja pos-
de Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá. sível delimitar tais fronteiras – têm o poder de funcionar como força
Geralmente, como na Festa do Divino, do Pentecoste, de São Benedito, cerca de aglutinadora das práticas sociais e, por isso, são fundamentais à teia da
200 homens mascarados, em bando, andando ou a cavalo, “corriam” todos os lugares construção da memória coletiva, abrindo fecundas possibilidades de
para não deixar ninguém de fora, e o tempo mudava com muitas atividades até o iní- abordagem do passado: Os cultos, com seus cerimoniais, com as suas
festas [...] realizavam continuamente a fusão entre esses dois mate-
riais da memória (passado individual e passado coletivo) (GUIMARÃES
NETO, 2006: 218-220).
6
Ver: Andrade (1981), Anjos Filho (2002), IPHAN (2009) e Vilela (2010: 223-347).

366 367
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

As representações cênicas fazem parte da história cultural e musical de Mato Gros- que foi representada a Inês de Castro e algumas outras peças mais
ou menos interessantes. O fim da festa foi assinalado por uma grande
so, que merece ser contada, embora não caiba neste espaço. Pesquisadores e cronistas representação, de que fez parte, entre outras coisas dignas de nota,
registraram sua presença constante na Cuiabá do século XVII e parte do século XVIII, uma pantomima em que Caim desancava Abel a cacetadas, invocando,
sendo os primeiros cronistas que trataram destes registros, Barboza de Sá, Joaquim da contudo, a cada momento[,] o nome de Nosso Senhor (CASTELNAU,
Costa Siqueira, depois revisados por Toledo de Lara Ordenhes (1898/1899) em “Crítica 1949: 35).
das Festas”. Esses autores dedicaram algumas linhas sobre esses divertimentos trazidos
pelo teatro encenado e/ou cantado em Cuiabá, entre outras cidades da província. Os fatores ambientais e a localização da capital no extremo oeste brasileiro im-
Pelos registros é possível localizar as várias igrejas construídas na Vila que pode- punham uma série de dificuldades para se viver em Cuiabá e mesmo assim, driblando
mos citar, em 1720: Nossa Senhora da Penha de França, no distrito do Coxipó do Ouro7, a as condições orientadas pela estação das chuvas, sempre que podia a população local
primeira igreja matriz, coberta de palha, onde foi celebrada a primeira missa pelo padre encontrava meios para extravasar suas necessidades de convívio e lazer, proporcionan-
Francisco dos Anjos, do hábito de São Francisco; e a Capelinha de São Benedito, feita do um “escape” da rotina imposta no núcleo urbano.
pelos negros com pau a pique, que logo ruiu. A Matriz foi reconstruída em final de 1729;
assim que recebeu a cobertura, desabou, só restando a madeira e parte do telhado. No 5. Os folguedos mato-grossenses
início de 1730, os trabalhos foram retomados (COMETTI, 1996). A reflexão dos indícios encontrados dos folguedos mato-grossenses, como uma tradição
A Matriz de Cuiabá foi reconstruída várias vezes, mudando a paisagem da praça “inventada”, conceito preconizado por Eric Hobsbawm, e formada através de um longo
principal, hoje Praça da República, acompanhando o crescimento da cidade, rumo à “mo- processo de “hibridação” cultural, conceito defendido por Néstor Canclini (2013), como
dernidade”. Mas nada se compara, para a cultura mato-grossense, à reforma da segunda resultado da relação entre homem e natureza, forjaram a tradição e o orgulho de ser
metade do século XX, que fez cair a igreja, o que deixou uma marca no coletivo desse mato-grossense, num estado que, antes, era verde; hoje, não mais o espírito religioso no
estado até hoje. coração da América do Sul.
Os pesquisadores do teatro em Mato Grosso na atualidade, Alcides Moura Lott Não cabe, pois, nessa perspectiva, a pretensão de mostrar identidades chamadas
(1986) e Carlos Rosa (1976), e, depois, Rogério Budasz (2008), mostram que a época de de “puras” ou “autênticas”, nem mesmo os aspectos de “autoctonia”, para as práticas cul-
ouro do teatro mato-grossense se deu no século XVIII8. turais e musicais mato-grossenses como abstração de traços como a língua, as tradições
e outras, desvinculando suas práticas da história, já que a mistura foi essencial na for-
1729 – [...] fez-se-lhes festa de missa cantada e sermão, que pregou o mação de uma ideia de “identidade” local (CANCLINI, 2013: xxii-xxiii).
padre-mestre Fr. José Angola, religioso franciscano; representaram-se
As terminologias correntes nas pesquisas historiográficas, como “mestiçagem”,
duas comedias, houve banquetes e fogos, e durou o aplauso quatro
dias, tudo a custa das pessoas principais e especialmente de Baltazar “sincretismo” e “crioulização”, para falar de raças e costumes, não consegue abarcar todo
de Sampaio Couto e Antônio Corrêa de Oliveira, que liberalmente des- o processo intercultural dos fenômenos de divergências; também não cabe aqui nesta
penderam de suas fazendas com esta festividade (SIQUEIRA, 2002: 36). análise apresentar um caminho metodológico para falar de problemas como “cultura e
identidade, desigualdade e multiculturalismo” (CANCLINI, 2013: xvii-xix). Desde o “des-
Francis Castelnau (1949) apontou que, em sua viagem por Mato Grosso, durante cobrimento” da América Latina, ocorreu um processo cultural no qual vários conceitos
sua visita à cidade de Vila Maria, hoje a cidade de Cáceres, acontecia a Festa do Pente- de mestiçagem, afrodescendentes ou afro-americanos etc. que não conseguiram, ainda,
coste, com celebrações religiosas, onde assistiu a algumas representações cênicas: dar conta dos fenômenos de interculturalismo criados pelas matrizes espanholas e por-
tuguesas aditadas com a presença indígena e africana9.
Quando passamos por Vila Maria estavam sendo celebradas as festas Em Mato Grosso, surgem os folguedos populares de maior aceitação entre as classes
do Pentecoste. Afora as cerimônias religiosas[,] houve espetáculo, em
sociais consideradas inferiores naquele período, ligados aos aspectos religioso e profano,
o cururu e o siriri, que geraram outras leituras, acompanhados pela viola de cocho.
7
Ver mais em: Silva, 2019: 121-125.
8
De todo modo, as pesquisas demonstraram que algumas das peças musicais e ópera seguiam o padrão 9
As reflexões sobre as diversas disciplinas para revelar o modusoperandi de cada cultura resolve suas
europeu, uma representação saudosista do lusitano que, em Mato Grosso, tomou outras proporções pela dificuldades e acertos; não cabem somente em termos opositores e fechados, é necessária uma escavação
produção local para o teatro e as óperas com toda a “pompa e circunstância”. Ver mais em: Lott(1986), profunda para entender como cada processo foi hibridado na América Latina. Aqui, amparamo-nos no
Moura (1976), Alamíno (2005) e Budasz (2008). conceito de “hibridismo cultural” de Néstor Canclini (CANCLINI, 2013).

368 369
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

6. Hibridação do homem, natureza e música:a viola de cocho, o curu- são musical, a partir da segunda corda, afinando as outras de duas formas: de “canotio
ru e o siriri solto” e de “canotio preso”, baseadas nas notas abaixo, que produzem uma sonoridade
que lembra a afinação de um violão, mas nunca é exatamente igual a ela; ainda assim,
A viola de cocho é um instrumento musical criado pela releitura das violas portuguesas:
não se pode dizer que a viola de cocho é “desafinada”, mas, sim, “temperada” pelos arte-
provavelmente, a “braguesa” do norte de Portugal e a “beiroa” da região central, ambas
de origens árabe, presentes na Península Ibérica desde o século XV, nominadas, na Es- sãos/músicos, a seu bel-prazer.
panha, de “vihuelas”, e, em Portugal, “viola”10. Foi essa viola portuguesa que trazida pelas A partir de 1988, foi-se desenvolvendo pesquisas que resultaram no reconheci-
mãos de portugueses e paulistas, sendo muito difundida e utilizada para tornar as lon- mento - pelo saber de caráter de práticas e vivências culturais da forma artesanal, única
gas viagens menos fatigantes e relembrar a terra natal (VILELA, 2010). e especial, de se produzir o instrumento - da viola de cocho como patrimônio cultural do
Geralmente, cada viola de cocho de Mato Grosso é tocada pela própria pessoa que Brasil (IPHAN, 2009: 15, 19 e 84), em 2004, pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional
a produziu. Quando muito, o artesão produz para seus amigos de cantoria. Sua consti- (IPHAN). Esse reconhecimento foi iniciado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura
tuição é feita a partir de um bloco de madeira maciça com formato igual ao dos cochos Popular, à época vinculado à Fundação Nacional de Artes (FUNARTE).
usados no manejo de animais, o principal responsável pela ampliação do som, motivo A viola de cocho é presença obrigatória nas festividades dos santos católicos e
plausível para sua nomenclatura. festas das camadas populares de Mato Grosso, mais significativamente acompanhando
Foram encontrados outros dois instrumentos na América Latina muito similares, as danças tradicionais, tais como o cururu, o siriri, a dança de São Gonçalo e o rasqueado
mas não idênticos, à viola de cocho, no Panamá: uma viola chamada “mejorana” e outra cuiabano, entre outras, que guardam a memória cultural dos primórdios do núcleo ur-
chamada “sacavón” (ATLAS, 2022). Com formato e sonoridade única, a viola de cocho é bano. E foi por meio desse instrumento, até os dias de hoje, que se manteve o elo entre
encontrada no Centro-Oeste brasileiro, mais precisamente em Mato Grosso, nos mu- as principais manifestações culturais do cuiabano, notadamente o cururu e o siriri, e
nicípios de Santo Antônio do Leverger, Cuiabá, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, futuramente o Rasqueado Cuiabano.
Jangada, Nobres, Rosário Oeste, Diamantino e Várzea Grande.
Da classe dos instrumentos de cordas, é um cordofone, que usa a técnica de ponte- 7. No (des)compasso do cururu e no (com)passado do siriri11
ar ou rasguear (rasquear) as cordas e é produzida originalmente a partir de uma madeira O Cururu e o Siriri são danças tradicionais de Mato Grosso, que resistem a passagem
especificamente chamada “sarã”, com quatro cordas de tripa de macaco. Sendo uma do tempo e ainda hoje são folguedos realizados nas festas de santos católicos, sendo
releitura, possui todos os traços de sua origem portuguesa: cavalete, espelho, paiêta, o primeiro de caráter sacro e o segundo, o lado profano da festa. São ritmos de difícil
rastilho e cravelas. Para colar as peças entre si, utilizava-se a cola da batata sumaré ou o notação musical dada as variações que ocorrem nos momentos de dançar, que se traduz
grude da bexiga da piranha, conhecido como “poca”. O processo de produção é artesanal, por uma sinergia com o público presente, que a devolvem em variação de andamento
com algumas pequenas diferenciações no braço e a forma do cocho, somente reconhe- da dança, ora mais lento (o des-compasso do cururu), ora mais rápido (o com-passo do
cidas entre os tocadores da viola (IPHAN, 2009). siriri). O cururu é realizado somente pelos homens, já o siriri todos podem participar,
A viola de cocho nunca está sozinha, pois sempre vem acompanhada pelo ganzá homens, mulheres e crianças.
produzido pela taquara, com cortes transversais para soar friccionada por um pequeno pe- As primeiras notícias do cururu em Mato Grosso vieram dos relatos de viajantes
daço de osso, e pelo mocho, uma espécie de banco do couro percutido com dois pequenos que estiveram na região para conhecer a flora e a fauna brasileira e escreveram algumas
pedaços de madeira. Guapo (2010), Arruda (2007), Dunga Rodrigues (1995) apresentam al- linhas sobre os divertimentos que aconteciam por lá.12 Para falar do modo de festejar
gumas variações neste grupo musical com o adufe, um pandeiro de couro de veado ou de dos habitantes, os viajantes sempre o descreviam como sendo um fator negativo para a
carneiro, rodeado por chapinhas de metal encontradas nas ruas pelos próprios artesãos.
A afinação depende da quantidade de cordas que o instrumento possui, sendo a
mais utilizada a viola de cocho de cinco cordas, que são afinadas sem auxílio de diapa-
11
Cururu é uma espécie de sapo, mas também pode significar “rouco”, “som que se tira da garganta”. Também
pode oferecer variação de curú-rúb, “que faz dar sarna”. O siriri é uma ave pequena, e seu nome deve-se ao
seu chilrar. A palavra apresenta variações na língua guarani: uitiri, suiriri (GARCIA, 1942: 68, 71 e 102).
12
Milton Pereira de Pinho, o Guapo, afirma que a origem do cururu é incerta e ainda muito discutida,
10
Rossini Tavares de Lima ([s.d.]) destaca a presença da viola na Europa pelas composições de Luiz Milan, mas que provavelmente teria vindo do bacururu, a dança ritual e funerária dos indígenas Bororo, e é
de 1535, e do Cônego Alonso Mudarra, de 1528 e 1516, escritas de pavanas, vilancicos e até mesmo apresentada com o acompanhamento de dois violeiros que fazem a primeira voz (mais fina/aguda) e a
fantasias polifônicas, além de outros compositores. Nos séculos XVI e XVII, já se encontraram partituras segunda voz (mais grossa/grave) e o ganzá. Já sobre o siriri, Guapo afirma que o termo vem da palavra
musicais notadas no sistema de escrita musical italiano com a ordem das cordas e marcações de trastes; otiriri, um tipo de entremez do século XVIII, de Portugal, mas pode ser também devido a um tipo de
na parte superior das linhas, eram colocadas as figuras musicais de ritmo e duração do som. formigão que anda rodeando, num movimento semelhante a esse folguedo (GUAPO, 2005).

370 371
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

capital, sinônimo de confusão e baderna, pois a bebida alcoólica era ingrediente neces- Esse cururu tem muitas similaridades com o que é dançado nos dias de hoje, so-
sário para a animação geral, e isso acabava mal. Mas os dados são imprecisos. mente por homens, sem participação feminina, e cantado exaustivamente pelos músi-
Musicalmente, não se pode afirmar que o cururu tenha um compasso fixo com cos e cururueiros, tocador e puxador das rezas, em devoção a um santo católico14.
uma pulsação previsível, nem se pode fechar a tonalidade em uma só; tudo depende
do momento e das percepções do cururueiros quando se unem para puxar uma função. São doze os cantadores: seis na viola, seis no ganzá, ou vice-versa, por-
que com raras exceções o cururueiro é homem de dois instrumentos.
A pulsação é mantida somente nas terminações de versos e como passagem rápida
São doze, como os apóstolos. Doze é número ideal: mais do que isso um
para os versos seguintes, sendo mantida normalmente pelo cururueiro mais antigo, o estorva o outro. Pode ser menos, mas passou disso, dá confusão na roda.
personagem mantenedor das características da paisagem que engloba rasquear a viola Os cantadores temperam as violas e combinam as duplas, seus versos e
de cocho, manter o pulso das canções, a afinação do grupo, a animação das rodas e as toadas. [...] O cururu começa com a afinação relativamente baixa, mas
funções do cururu mato-grossense. vai subindo de tom à medida que as cordas da viola vão dilatando.
Quanto mais se sova a viola, mais afina a zoada (RAMOS; DRUMMOND,
Por função, entende-se uma dança de arrodear algo – um mastro, um santo –, 1978: 12, grifo dos autores).
seguindo o ritmo de dar um passo e parar, depois dar dois passos e brevíssima pausa,
encerrando com três passos e uma paradinha, sequência repetida inúmeras vezes com Na vida privada, o cururu era dançado nas festas de casamento, após a cerimônia re-
acompanhamento dos instrumentos musicais do cururu. Nos momentos animados, faz- ligiosa, quando os convidados se reuniam na casa onde acontecia a festa, onde um grupo
-se um sapateado, rodando da esquerda para a direita. de cururueiros ficava esperando os noivos para dar início à função. Em seguida, dançava-
-se o cururu, que se fazia em roda, girando ao som da viola; os versos não tinham rima e
Parece fácil, mas é preciso muita experiencia para se participar de uma quase sempre apresentavam temas extravagantes. Como forma de mostrar alegria, alguns
função. Um simples erro de passos interrompe a corrente: todos depen-
cantores atiravam-se sobre aqueles que tinham competência para participar do jogo mu-
dem do bom desempenho de cada um. O mesmo em relação à viola e o
ganzá: um repique mal-dado compromete todo o grupo. A cada final de sical, sempre em verso, com motivos engraçados e espirituosos (L. Y. Z., Nota a lápis, 1910).
dupla, faz-se uma pequena pausa no cantar, mas continua-se rodando- As passagens sobre o folguedo do cururu, e depois do siriri, reforçam a ideia de uma
-mais lentamente. Depois recomeça-se, aumentando a velocidade do dança com o nome de “batuque”, devido à presença de sons percutidos em instrumentos
giro (RAMOS; DRUMMOND, 1978: 16). rítmicos. Sem conhecimentos para discernir as diferenças do cururu, houve muito pre-
conceito na época, ainda mais pela sonoridade considerada “insípida” ao estilo europeu,
Joaquim Ferreira Moutinho13, português que morou durante 18 anos em Cuiabá, acompanhando uma melodia simples, típica de danças de roda, de fácil assimilação, incul-
relata esses momentos de diversão apresentando-os como aspecto denotativo da vida cando o sentimento de inferioridade que se credita a esse tipo de manifestação.
urbana da cidade. Do crescimento do cururu, surge outra dança, o siriri: uma manifestação da cultura
com a participação feminina e crianças, com o objetivo de diversão pura recheada de sen-
Quanto ao gosto pela música entre as classes mais baixas e a gente timentos de pertencimento pelos habitantes. Para Moutinho (1869: 18-19), existia “outra
do campo, resume-se ele no uso de um instrumento a que dão o nome
dança popular com o nome de batuque, que tem tanto de alegre quanto a primeira tem de
de “côcho”, que não é mais do que uma viola grosseira, do adufo e do
tambor que é feito de um pedaço de pau ôco, coberto com couro de boi insípida. No Batuque o velho remoça, e o rapaz excede-se a si mesmo no delírio de prazer”.
ao calor do fogo. Ao som d’estes instrumentos danção o “cururu”, o mais Essa descrição apresenta alguns pontos de ligação com as danças europeias, mas
insipido e extravagante divertimento a que temos assistido, depois da não completamente com o siriri em que cavalheiro “tira” a dama para dançar com passos
dança dos bugres. Formão uma roda composta de homens, um dos qua- engraçados, e ambos partem para uma chula (uma visão deturpada de Moutinho, 1869),
es toca o afamado Côcho, e volteando burlescamente, cantão á porfia
n’uma toadas assaz desagradáveis versos improvisados. (MOUTINHO, mas que difere, devido aos muitos requebrados e movimentos do corpo a seu bel-prazer.
1869: 18, grifo nosso). Em nossa compreensão, parece plausível afirmar que já eram os passos do siriri, uma
leitura da valsa pelos habitantes da capital, já que na atualidade observamos a inexis-
13
Joaquim Moutinho viveu em Cuiabá no período da Guerra do Paraguai e da peste que assolou a cidade
e lhe tirou três filhos. Seus relatos demostram, em alguns momentos, tristeza, em outros, revolta pela
perda dos entes queridos; mas mostram também a cidade que lhe deu algumas lembranças boas. No caso 14
O relato de Joaquim Ferreira Moutinho mostra que havia momentos em que as mulheres participavam,
do cururu, ele conta que o divertimento sempre vinha acompanhado de cachaça e terminava com total mas logo deixavam a reunião e tudo terminava com extrema bebedeira geral e cantoria a pleno
estado de embriaguez. Seus apontamentos foram importantes para a reconstrução da vida em Cuiabá, pulmões. Essa versão, com a participação feminina, representa o início do processo de hibridação do siriri
mas devem ser analisados como relatos de um indivíduo do seu tempo e que sofreu os horrores da guerra. (MOUTINHO, 1869).
Ver mais em: Moutinho (1869).

372 373
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

tência de danças folguedos com essas características no Mato Grosso: “Na vertigem do A forma responsorial faz parte da paisagem sonora do siriri desde os tempos ime-
batuque, o entusiasmo que se comunicava a todos apagava, ao menos por momentos, a moriais, atestada pelo relato de Joaquim Ferreira Moutinho (1869), quando registra ver-
lembrança dos males da vida (MOUTINHO, 1869: 18-22). sos que ouviu nesses divertimentos, com rima e resposta pelo coro das vozes, bem ao
Portanto, o siriri é o parceiro oficial do cururu, aquele com a participação femini- gosto popular.
na, com um andamento musical muito mais sequenciado e ligeiro, com uma dança que Em cima d’aqulle morro,
pode ser coreografada ou não, entre meninas e meninos, que portam diversos adereços Siá dona.
e figurino que o caracterizam (saias muito rodadas, ora seguras pelas mãos, ora soltas, Tem um pé de jatobá;
sempre com tecidos coloridos ou pintados à mão com signos da cultura mato-grossen- Não há nada mais pió
Ai, siá dona
se, tais como araras azuis, Chapada dos Guimarães, peixes, rios e florestas). Do que um home se casá.
A dança do siriri tem momentos que lembram as quadrilhas, ora em círculo, ora em filo (MOUTINHO, 1869: 19)
ou espalhada, e por isso a necessidade de se ter um preparo físico bom para a suportar por
um longo período, que só acaba após a exaustão muscular. Embora o siriri tenha diferenças O texto do siriri mencionado por Moutinho (1869) e apresentado a seguir guarda
rítmicas do cururu, uma vez que este tem momentos de suspensão do ritmo e do andamen- essa configuração com o texto do siriri “Nandaia”, que se tornou uma referência para os
to enquanto aquele tem um ritmo sequenciado, ambos precisam da sonoridade da técnica cuiabanos e, atualmente, é reproduzida em televisão, nas escolas e assim por diante. En-
de rasquear a viola de cocho com os tempos estruturados em torno de uma pulsação. quanto o siriri utiliza o formato responsorial, o cururu ainda mantém a função com trovas.
Para nossa análise e reflexão, importa que o crescimento do cururu com o siriri
trouxe a inclusão da presença feminina nos encontros sociais e divertimentos, posto Nandaia17
Nandaiá, nandaia, vamos todos nandaiar;
que a figura da mulher não é aceita, até hoje, no cururu. Nos dias atuais, o siriri tem
Meu pád’Santo Antonio, venha m’ínsiná dançá
realizado um movimento de acréscimo no tempo histórico, com incorporação de instru- Põe essa perna [perna direita]
mentos musicais no seu acompanhamento, como violão, contrabaixo e bateria elétrica, Si não sirvi essa
mantendo ainda os instrumentos originais – a base rasqueada na viola de cocho, a bati- Põe essa outra [perna esquerda]
da do ritmo do siriri no mocho e o colorido timbre produzido pelo ganzá. Prá senhora moça
Arrodeia, arrodeira, arrodeia [giro completo]
O processo de crescimento do siriri passa, agora, pelo crivo do Festival de Cururu
Fica de joelho [ajoelhado sobre uma perna]
e Siriri, que, em 2010, pela primeira vez, foi idealizado e organizado pela Federação Põe a mão cintura [com graça, coloca as mãos na cintura]
Mato-grossense de Cururu e Siriri, reunindo 38 grupos oriundos de 15 municípios mato- Prá fazer misura [leve balanceio das ancas]
-grossenses, os quais se dedicam a manter viva essa tradição (9º Festival de Cururu e [palmas no tempo musical].
Siriri de Mato Grosso O maior festival da cultura mato-grossense. De 23 a 26 de setem- Nandaia. Domínio Público. Disponível em: https://
ia803103.us.archive.org/8/items/qrcodecuiabanodechapae-cruz/
bro na Arena da Acrimat. Cuiabá - Mato Grosso. Fonte: Festival de Cururu e Siriri 2010: arquivo%20sonoro%205%2010-%20Siriris_Nhadaia%20e%20 Gar%
n.p.). Atualmente, o siriri passou a ter reconhecimento internacional graças ao esforço C3%A7a%20Branca.mp3.
do Grupo de Siriri Flor Ribeirinha15, de sua líder e idealizadora, D. Domingas Leonor da
Silva (doctor honoris causa pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT), de seu A letra do siriri “Nandaia”mostra a acentuação nas leituras das frases, o que nos leva
neto, Avinner Augusto e de Jeferson Guimarães, juntos na criação das coreografias. As- a colocar o acento sempre no tempo forte na penúltima sílaba de cada palavra. A leitura,
sim, gradualmente, esse gênero tem sido cada vez mais aceito nos eventos culturais, nas obedecendo a ordem métrica, faz o pulso bater com dois tempos, o compasso binário;
mídias sociais e em meio aos habitantes da cidade16. sendo assim, dificilmente poder-se-ia colocar uma divisão por três tempos, o compasso
ternário. Musicalmente falando, o siriri apresenta elementos musicais próximos do cururu,
sem nenhum traço da cultura africana, nem na parte interna nem na externa.
15
Além de representar o estado de Mato Grosso em eventos nacionais e internacionais, o grupo mantém
oficinas e ensaios semanais abertos ao público na região do bairro de São Gonçalo, Coxipó da Ponte.
Disponível em: http://www.florribeirinha.com.br/. Acesso em: dez. 2021. 17
Registro aqui a letra do siriri de roda mais conhecido pela população local, tal qual aprendi durante
16
Cleber Alves Pereira Júnior (2009, 2012), historiador e pesquisador do cururu, procura demonstrar que a infância, na casa de minha Tia Tânia, que morava no antigo Bairro Quebra-Pote, hoje São Francisco,
o gênero era um instrumento de conflito entre os indivíduos, sendo necessário ser normatizado a sua localizado na saída Sul de Cuiabá. Essa mesma letra foi utilizada na apresentação enquanto aluna do
prática no Código de Postura, que, segundo ele, significa um movimento de resistência frente ao branco. Curso de Educação Artística com habilitação em Música, em setembro de 1992.

374 375
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

O único resquício da cultura africana que permaneceu foi a Festa de São Benedito, Em Cuiabá, não houve o crescimento no tempo na configuração do siriri para o
festa religiosa católica que aceita a diversidade cultural dos habitantes, assim como samba, nem o rasqueado cuiabano buscou essa trajetória rítmica. De toda forma, não
religiões africanas e afro-brasileiras durante a realização dos festejos em honra ao seu temos nenhuma manifestação cultural de origem exclusivamente africana.
orago, que fez surgir, em Vila Bela da Santíssima Trindade, a Dança do Congo e, em Po- Ao viver as batidas do samba, no contratempo entre as duas mãos, com a presen-
coné, a Cavalhada de São Benedito (SILVA, 2014). ça de síncopes e notas do acorde espalhadas, temos a paisagem sonora que oferece o
Tudo indica que, durante o século XIX, a sociedade cuiabana se organizou para sentimento de estar numa batucada, não recria a sensação de estar num siriri mato-
não aceitar as influências oriundas de escravos, lavradores, pobres etc. que faziam parte -grossense
da classe “baixa”, principalmente as que mostrassem sem virtudes morais, tidas como Maria Deschamps Rodrigues, conhecida como Dunga Rodrigues, professora e pia-
barbárie e anticivilidade. nista em Cuiabá, relembra suas tentativas de executar o ritmo de samba ao piano para
Portanto, acreditamos que o siriri tenha sido originado pelos habitantes do século fazer bailar suas amigas e arranjar namorados, pois seu repertório constava apenas de
XVIII, em sua grande maioria resultado da mistura de portugueses e índios, com forte três valsinhas, as quais repetia sem parar. Ainda criança, dizia que tocar era seu prazer:
predominância do branco, como pode ser observado na parte externa da coreografia, “Logo pelejei para conseguir acertar o compasso de samba, incorporando o ‘Que sodade’
nos figurinos e adereços. E é difícil imaginar que o siriri tenha surgido das batidas do ao repertório tão parco” (MÜLLER; RODRIGUES, 1994: 50).
batuque de origem africana, visto as diferenças substanciais entre “batuque” e “siriri”, Dunga vivenciou no início do século XX, a concretização de outro ritmo: o Rasque-
como podemos perceber na composição de Zulmira Canavarros, compositora cuiabana ado Cuiabano, sua experiência com o samba mostrou que ele não apresentava indícios
do século XX, conhecedora de ritmos variados (Figura 1). rítmicos do siriri, mas infelizmente, não houve registro dessa descoberta.

8. A música no Mato Grosso imperial


No século XIX, a Província de Mato Grosso já apresentava uma divisão administrativa
bem delineada para seus núcleos urbanos, que guardada as devidas proporções, são as
mesmas dos dias atuais, graças à evolução ao redor da Vila do Cuiabá. Mas duas cidades
se destacaram: Cuiabá� e Mato Grosso. A cidade de Mato Grosso nasceu em 1752 com
o nome de Vila Bela por D. Antônio Rolim de Moura e foi a primeira sede da capitania
sendo a sede revertida em 1820 para Cuiabá, Vila Bela passou a ter o título de cidade
com o nome de Matto Grosso (FERREIRA, 2018).
A presença da atividade musical no século XIX foi registrada por Luiz D’Alincourt
(1881), sargento-mor e engenheiro responsável que apresentou em seu relatório da
Estatística da Província de Mato Grosso realizado em 1820. De acordo com seus regis-
tros, a região era composta por 35.535 habitantes, sendo 21.319 livres e 19.715 escra-
vos, 5.445 casas, uma sociedade formada pelo clero, por proprietários rurais e urbanos,
advogados, cirurgiões, professor de gramática e física, mestres de letras, mineradores,
comerciante, jornaleiros (387), trabalhadores naturalizados (121) e não naturalizados
(32). D’Alincourt (1881) classificou as divisões de classes socioeconômicas, numa visão
europeia, com modo de viver de ricos e pobres, mas teve o cuidado de mostrar que exis-
tia dentro da Província a atividade musical e artística (D’ALINCOURT, 1881).

Esta arte (música) hé cultivada por hum suficiente numero de indiví-


duos, tanto no Cuyabá como em Mato-Grosso, e em ambas estas Ci-
dades mostra-se o genio dos Mancebos bem disposto para levar-se á
perfeição; todavia faltão os meios, isto hé boas peças de Muzica que
Fig. 1: Trecho da obra musical de Zulmira Canavarros “No Batuque” (samba). Fonte: Dorileo (1995: 83). fizessem desenvolver o gosto moderno, bons instrumentos, e união

376 377
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

entre os muzicos, pois que, no Cuyabá achçai-se divididos em turmas, para invadir o lado brasileiro. O ataque paraguaio, com combatentes em “vinte canoas
seguindo cada huma o seu Mestre, [...] Alguns Professores, e aaté Com-
pozitores há na Província, que só lhes falta o apuro do bom gosto, para de papaguas” avançaram aos gritos para que os brasileiros entregassem o Forte de
serem completos; poucos, mas excelentes flautistas e bons rabequistas Coimbra. Mas a empreitada não deu certo e foi um fracasso, suas armas não funciona-
(D’ALINCOURT, 1881: 65, grifo nosso). ram e, com apenas sete tiros, os brasileiros afastaram as canoas dos inimigos. Contudo.
prevendo outro assalto ao forte, o tenente-coronel Ricardo Franco de Almeida Serra,
As festas, tanto religiosas como profanas, eram realizadas com toda pompa de comandante em chefe da fronteira com o Paraguai, mandou ofício pedindo auxílio da
sempre, principalmente em Cuiabá, regadas de muita comida e vinho de qualidade. Nas capital (SUZUKI, 2007: 164-167).
mais opulentas, os bailes eram realizados no palácio presidencial, com danças como ril, Mesmo com os problemas de fronteira com o Paraguai, a vida musical continuava
gavota e minueto. Entretanto, sobre as festas das classes sociais mais baixas, D’Alincourt no mesmo ritmo do século anterior. Assim, de 1859, há registros de festas realizadas no
(1881: 102) registra que “usam umas danças que chamam de cururu, e batuque, danças mesmo formato que as do século XVIII, com o bando de mascarados anunciando a Festa
sem gosto, e o mesmo acontece com as cantigas, que as acompanham, entregam-se a do Espírito Santo na Freguesia de São Gonçalo de Pedro II, com iluminação, programas,
elas toda noite, e só acabam depois que o dia nasce”. bailes de máscara e música no coreto do porto de Cuiabá, pela Banda do 2º Batalhão
Castelnau (1949) registrou que a maioria dos músicos faziam parte das tropas mi- de Artilharia. Celebrou-se também a Festividade do Divino, com procissão, orações do
litares e eram obrigados a tocar em todas as funções públicas, sendo que, na cidade de evangelho pelo padre Manoel Pereira Mendes e reverendo vigário Antônio Joaquim de
Mato Grosso, também cumpriam outros papéis como cuidar praça por falta de pessoal; Camargo. Nesse mesmo ano, solenizou-se, pela sociedade cuiabana, a comemoração da
somente em Cuiabá, já que havia somente seis guarnições militares para manter a se- independência, com um baile de gala.
gurança da região (CASTELNAU, 1949).
DIVERTIMENTO – A avidez de divertimento é tal em nossa capital, que a
A guarnição da cidade compõe-se de: 1º) duas companhias de soldados população se presta a expectação das mais insignificantes bagatelas. Há
de infantaria, uma de caçadores e outra de artilheiros, com um quadro dias um bumba meu boi, entretenimento do tempo dos Afonsinhos, per-
de duzentos homens cada uma, mas com um efetivo que não excede corre as ruas da cidade com grande acompanhamento de povo, e ainda
à metade; 2º) de um corpo de cavalaria, somando setenta homens; 3º) no dia 3 do corrente a Presidência mesmo teve de apreciar esse folguedo,
uma guarda policial de quarenta soldados de infantaria (CASTELNAU, porque os actores forão dançar em frente do Palácio por algum tempo, e
1949: 163). dahi sairão a percorrer as ruas. (IMPRENSA DE CUYABÁ, 1859: 2).

Não havia muito incentivo do governo para melhorar a situação. Havia somente Dois fatores foram importantes para a cultura local nesse período: a fundação de
a presença de professores de música com pouca formação, alguns compositores e dois uma tipografia (ZARAMELLA, 2004)19; e o surgimento de salas para teatro, onde pelo
excelentes flautistas e rabequistas. Infelizmente, os nomes desses músicos não foram menos 80 peças foram representadas, o que era um anseio cultural do povo cuiabano,
registrados, nem mesmo o de um professor de dança vindo do Rio de Janeiro em 1826, que, além das festas, encontrava no teatro seu maior prazer. (DORILEO, 1976).
que tinha noções e, por isso, desenvolveu o gosto pela dança na província18. A música Este estado passou inúmeras reformas administrativas, primeiro como parte da
de coral era destinada ao serviço religioso, considerado medíocre; e só havia um piano Capitania de São Paulo até chegar em1892, elevado à categoria de província, com a
na cidade de Cuiabá, mas ninguém sabia tocar este que foi o primeiro instrumento visto posse do 1º presidente de Mato Grosso. Com uma pequena população de pouco mais
desde o surgimento de Mato Grosso (D’ALINCOURT, 1828). de nove mil habitantes, marcada pela guerra, com doenças endêmicas e o reforço do
O período imperial traz outras preocupações para Mato Grosso devido à falta de discurso de “isolamento” da cidade, pelos políticos e habitantes da cidade de Cuiabá,
pessoal para fazer a segurança dos moradores, enchentes e a falta de comunicação com vivenciou a chegada dos veículos automotivos e as necessidades dos melhoramentos
o restante do país e do mundo. Mas a pior notícia foi trazida pelos índios guaicurus
constatando a presença castelhana/paraguaia na fronteira sul do estado. Eles observa-
ram a movimentação no Forte Bourbon, onde o governador de Assunção se preparava
19
Sônia Zaramella (2004) informa que “foi o jurista Antônio José Pimenta Bueno, depois Marques de
São Vicente, quem mostrou, por meio de Relatório Presidencial lido perante a Assembleia Legislativa
Provincial em 1º de março de 1837, a necessidade de implantar uma tipografia na Província de Mato
Grosso”. Ela estudou os jornais impressos que circulavam em Mato Grosso no século XIX e confirma que
a chegada da tipografia se deu em 1839, destacando que a participação popular foi importante nesse
18
Passou a ser estado a partir de 1892, com a posse do 1º presidente de Mato Grosso. Ver mais em: Silva, processo, fazendo com que as dificuldades de comunicação e de transporte não comprometessem as
2014: 69. práticas culturais em Cuiabá.

378 379
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

das vias urbanas para ajustar habitantes, comércio, carros etc., como um vislumbre da A vida social é o lado agradável de Cuiabá. Uma festa resgata a outra,
e em toda parte se é bem acolhido. Ao fazer uma visita, pela manhã,
modernidade da capital (SILVA, 2014). recebe-se, como oferta, um cálice de licor, geralmente preparado em
A mobilidade era feita, até então, com a utilização de bondes puxados por tra- casa e muito bom, ou guaraná, de sabor inocente, ou ainda pura aguar-
ção animal, principalmente entre o primeiro distrito, Cuiabá, e o segundo distrito, São dente caseira, feita de açúcar. Convidam para almoçar por toda a par-
Gonçalo de Pedro II. De outro jeito, a chegada de novos habitantes era via fluvial parti- te, o arranjo doméstico é simples. Reflita-se que longo caminho cada
móvel percorre para chegar até aqui! Entretanto, é raro faltar piano. Na
cipando ativamente do crescimento urbano da cidade, desembarcando no Porto Geral,
época havia 60 pianos na pequena localidade, enquanto na ocasião da
às margens do rio Cuiabá (PINHO, 2007): “Por essa época, foi também se constituindo chegada do sr. Carlos só existiam cinco. Na rua mais esconsa, poder-
em Cuiabá uma nascente classe média composta por profissionais liberais: médicos, -se-ia ouvir, todas as noites, os “sinos do mosteiro” ou a “Prece de uma
dentistas, advogados e mais tarde agrimensores, que através de anúncios nos jornais Virgem” (No original La Prière d’une Viérge de Tekla Bądarzewska), [...]
as visitas que fazíamos à noite passava-se sempre num ambiente fran-
ofereciam seus serviços à comunidade” (RIOS; VOLPATO, 1993: 98).
co e agradável. Abundância de cerveja e muita música (STEINEN, 1942:
Nesse período, foram inaugurados a Sociedade Carnavalesca, em 1861; a Socieda- 85, grifo nosso).
de Dramática Amor à Arte, em 1877; o Clube Literário, em 1882; a Sociedade Instrução
e Recreio, em 1883; a Sociedade Beneficente dos Artistas e a Sociedade Internacional Mesmo com a abundância de atividades, ainda se reclamava muito da cidade de
de Estudos Científicos, em 1899; o Clube de Leitura Tiradentes, em 1907; a Liga Mato- Cuiabá, por falta de estruturas urbanas e pela “insipidez” dos eventos e festejos, mas os
-grossense de Livres Pensadores; e a Biblioteca Pública do Estado, em 1912 (DORILEO, habitantes locais nem se importavam com essas opiniões, afinal
1976: 39).
não é possível que haja uma outra cidade no mundo onde se toque
Vejamos o que ainda havia [de] mais digno de nota em Cuiabá. Temos mais música, se dance mais, se jogue mais baralho do que aqui... é im-
a Sociedade “Amor à Arte”, dedicada, somente, aos interesses da arte possível, também, que em algum lugar se alteiem mais frequentemente
dramática, sendo, portanto, ponto neutro para ambos os partidos exis- os estandartes da procissão e se saiba associar melhor as missas com
tentes. Assistimos a uma festa de caridade, que aliás, era em benefício os prazeres sociais (STEINEN, 1942: 68).
da própria Sociedade. O teatro, construído por um tenente da Marinha,
pretendia assemelhar-se a um navio. Tratava-se de simples construção As festas do calendário religioso cumpriam dois papéis importantes para a so-
de madeira, de galerias, divididas por pilares e vigas horizontais, que ciedade local, de reforçar a fé e de proporcionar um degrau para inserção social dos
constituíam os lugares a serem ocupados. Em frente à cena, ficava o
camarote do presidente. Os camarotes eram ocupados principalmente habitantes como partícipes da elite cuiabana. As festas de santos católicos promoveram
por senhoras [;] ao longo das paredes acocoravam-se, por trás, os escra- e mantiveram os laços sociais no decorrer da historiografia de Mato Grosso, pois
vos (STEINEN, 1942: 79-80).
Os festejos religiosos (elementos estruturantes dessa cultura) dedica-
dos aos padroeiros (procissões, missas, folias e representações religio-
Steinen (1942) relata outras agremiações, tais como o Clube Família Terpsícore,
sas) reforçavam os laços de solidariedade entre os moradores da Vila
com sede num sobrado no Largo da Matriz, com salão pequeno, tipo auditório, com [,] dando mais força ao conjunto da prática destes rituais e ao con-
uma tribuna, uma mesa para a diretoria, um piano e uma galeria para as senhoras. O junto simbólico envolvido nesse ritual quando os crentes admitiam a
programa da reunião dividiu-se em três partes, sendo o primeiro momento de discurso existência desses seres tutelares (santos) sobre suas vidas (NOLASCO,
e debates, seguido de arte, canto e piano, terminando com as danças. A Sociedade Ins- 2002: 111).
trução e Recreio reunia as famílias do partido conservador e seus bailes, aconteciam na
residência do chefe do partido, onde era possível coexistir uma mistura de raças, pre- A seguir, veremos dois exemplos de festejos religiosos que ainda hoje participam
dominando os pardos e negros. Também não seguiam os roteiros praticados em outros do viver em Mato Grosso.
bailes de Cuiabá, geralmente invertiam começando o programa na parte prevista para a
terceira parte do programa, ou seja, as danças, a parte mais animadas20.

20
Do período de D’Alincourt ao da expedição de Steinen, vê-se demonstrada a importância que o piano
passou a ter nos eventos culturais, passando de um piano que ninguém sabia tocar para 60 desses
instrumentos, que trouxeram para o século XX os saraus cuiabanos (STEINEN, 1942).

380 381
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

9. São Benedito de Cuiabá: participação no crescimento de Mato Foi nesse ambiente, onde as vidas pública e privada se misturavam, que a fé se
Grosso manteve graças às forças das irmandades religiosas. Na Cuiabá colonial, três capelas
A primeira menção ao santo negro na historiografia de Mato Grosso encontrada remon- foram erguidas, as quais perduram até hoje: a do padroeiro da cidade, Senhor Bom
ta a 1722, em Apontamentos da história eclesiástica de Mato Grosso (COMETTI, 1996), Jesus de Cuiabá, a de Nossa Senhora do Rosário e a de Nossa Senhora do Bom Despa-
texto baseado nos relatos de José Barbosa de Sá, o primeiro dos cronistas que registrou cho, consequentemente, temos ali constituídas as respectivas irmandades (CORBALAN,
o início do povoamento do Arraial de Cuiabá, em 1719.21 2006). Mas para efeito do nosso trabalho, vamos priorizar a irmandade do rosário pela
proximidade espacial e espiritual com a devoção a São Benedito.
Neste mesmo ano levantou o Capitão Mor Jacinto Barbosa Lopes uma Encontramos na pesquisa de Cristiane dos Santos Silva (2001) alguns aspectos so-
igreja à sua causa, coberta de palha, que logo serviu de freguesia no
bre a irmandade do rosário na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá e sobre como se
mesmo lugar em que se ache a que existe atualmente, dando-lhe o tí-
tulo de IGREJA DO SENHOR BOM JESUS DE CUIABÁ. Neste lugar foi ce- deu sua composição político-religiosa, reconhecendo, assim, sua atuação, que ela chama
lebrada a primeira Missa pelo seu irmão, Padre Frei Pacífico dos Anjos, de Irmãos de Fé no espaço urbano da vila. Segundo Silva, foram os franciscanos quem
religioso franciscano. Consequentemente levantaram os pretos uma trouxe e incentivou a devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, juntamente
Capelinha a São Benedito no lugar que depois seria chamado “Rua do com a São Francisco de Paula, porém, mesmo com a existência de um compromisso, sem
Sebo”. Tal construção caiu em pouco tempo e não foi mais levantada
(COMETTI, 1996: 12). data, da irmandade franciscana, sua devoção não é reconhecida pelos irmãos do rosário,
que, atualmente, detêm a maior festa religiosa da paróquia (SILVA, 2001).
Sabe-se que desse período poucos vestígios resistiram e muito se perdeu. A capela Em todo o Brasil, as festas religiosas23 foram marcantes na formação da cultura.
ao santo negro ruiu, passando a funcionar na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que Aqui não foi diferente: podemos verificar em Silva (2001) que a Vila de Cuiabá observa-
aceitou os devotos de São Benedito. Esses devotos, saudosos de sua terra natal, de suas va suas festas, sendo controladas pelo Governo português, que incentivava, com isso, a
raízes, encontraram no culto religioso e na sociabilização proporcionada pelas Confra- catequização e o lazer na colônia.
rias/Irmandades o convívio social perdido. O certo é que, em 1745, quando a região já
se chamava “Mato Grosso”, São Benedito já tinha sua confraria constituída, sendo que a A Vila havia se preparado também para o festejo do Divino Espírito Santo
e os pretos cuidavam também para festejar Nossa Senhora do Rosário e
autorização para o louvor ao santo morto em 1589 se deu em 1743, e, desde 1722, já se
São Benedito. A menção à confraria negra não acontece sem propósito.
o cultuava em Cuiabá. O temor de revoltas e turbas provocadas pelos negros na América Por-
Podemos afirmar que as comemorações em louvor ao “Glorioso São Benedito” sur- tuguesa era constante. Durante o governo Real de D. Maria I, houve um
giram em Cuiabá, sob a organização do governo português, chamado de padroado, jun- período de auge nas manifestações de fé, por parte das irmandades. [...] o
tamente com a concessão para o funcionamento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário governo de Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres [...] incentiva-
dor de festas e procissões no espaço urbano influenciando no aumento
no Brasil.22 de demonstração das devoções de fé. A festividade [,] mesmo quando in-
No guia de visitação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, padre centivada pelas autoridades, causava certa preocupação no que respeita
José de Moura e Silva observa que: às manifestações sagradas, misturando-se estas com as práticas pagãs, a
exemplo do batuque e do cururu (SILVA, 2001: 47).
A alma Católica cuiabana foi formada num ambiente de cristandade,
dependente fortemente da tradição popular, pouco influenciada pelo
A preocupação das autoridades dava-se pelo ambiente de desordem, associado
clero. Mas no convívio de Estado e Religião Católica, o Estado prevale-
ceu. No regime do padroado, a igreja era algo frágil, sem força estrutu- aos negros, com brigas e excessos de todo tipo, que culminou com algumas regras no
ral própria, pois dependia do rei de Portugal e, depois, do imperador do Código de Postura. Ao citar o caso de Vila Bela da Santíssima Trindade, Rosa (1976) nos
Brasil (SILVA, 2006: 10-11).

23
A leitura da pesquisa de Rita de Cássia Amaral (1998) foi importante para nossa pesquisa, principalmente
para a contextualização teórica sobre a festa e a reflexão sobre vários aspectos. A autora alega e defende
a ideia da existência de um modelo “brasileiro de festa”. Ela aponta que o primeiro ponto a chamar a
nossa atenção é a sua forma: “Em geral, tanto as festas de massa como as locais, de grupos menores,
21
Ver mais em: Barbosa de Sá, 1975 são festas processionais, em que os valores, religiosos ou profanos, tornados signos e símbolos desfilam
pelas avenidas das cidades, na forma de andores, berlindas, alegorias, carros de som, seguidos pelos que
22
Ver mais em: Silva, 2014. festejam, ligados uns aos outros, compartilhando-os”(AMARAL, 1998: 274-275).

382 383
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

mostra que os negros que para lá foram cultuavam São Benedito desde 1730. Quando a A solução do caso foi ministrada pelo bispo diocesano, o padre Manoel Pereira
capital da capitania foi transferida, os negros persistiram e mantiveram-lhe a devoção, Mendes, estabelecendo os direitos recíprocos das referidas irmandades, de forma oficial:
inclusive, com a pretensão de lá formar a irmandade de São Benedito. Segundo esse au-
tor, os negros de Vila Bela tiveram muitas dificuldades, pois, em 4 de dezembro de 1753, Art. 5º - Ficam pertencendo a confraria de N. Sra. do Rosário, os rendi-
mentos que houver, ou seja provenientes de dobres de sinos ou de cera
a câmara aprovou seus Estatutos ou Posturas (ROSA, 1976).
que ficar por ocasião de Festas, e enterros. Art. 6º - A chave da porta
Rosa (1976) aponta que era no eixo Mandioca/Igreja do Rosário em Cuiabá que principal da Capela fica a cargo da Confraria de Nossa Senhora do Ro-
a presença negra era mais acentuada, dominada pelas famílias negras forras e os es- sário, ficando, porém, está obrigada a ter a mesma porta aberta todas
cravizados da cidade: “Havia grande número de domicílios encabeçados por mulheres as vezes e sempre que a confraria de São Benedito tenha de celebrar
negras, na rua denominada ‘das Pretas’” (ROSA, 1976: 24). Costumeiramente, o entorno qualquer de seus atos religiosos (MENDES apud SILVA, 2014: 106).
da Igreja do Rosário passou-se a ser chamado de lugar dos pretos na Vila Real, um lugar
de lutas e de resistências. Este autor afirma que, até 1751, só existia a Matriz, o oratório Essas combinações de ordem social, religiosa e política foram essenciais para a
de Nossa Senhora do Rosário, a capela de Nossa Senhora do Bom Despacho e uma ca- manutenção e o crescimento da devoção ao santo negro na vila. Aqui, longe de sua terra,
pelinha no Bairro do Porto (ROSA, 1976). os negros escravizados encontraram em São Benedito uma figura que traduzia a sua
A religião cristã difundiu o culto aos santos negros ou de pele morena como forma cultura africana. Aqui, passaram a cultuar São Benedito mesclando elementos de sua
de conseguir a adesão de ameríndios e africanos, que se identificavam com eles. Sendo terra natal, adaptando-os ao novo cenário, promovendo, assim, um intercâmbio religio-
irmãos de fé, a irmandade do Rosário demonstra necessidade de garantir a presença da so, com empréstimos de ambos os lados (CARNEIRO, 1964).
imagem de São Benedito na igreja de Nossa Senhora do Rosário em Cuiabá; ficou a car- Sempre crescendo, a devoção ao santo, no século XIX, estava presente em prati-
go da irmandade de São Bendito edificar anexa à Igreja, a capela para santo negro, que camente todo núcleo urbano de Mato Grosso, mas, principalmente, na capital do esta-
se destaca pela devoção e pela difusão da religiosidade entre os não brancos. do, que, com dificuldades, realizava as festividades em sua honra, com muita “pompa”,
Quanto às irmandades de São Benedito em Cuiabá do século XVIII, Carlos Rosa (1976) tornando-as esses momentos, num meio de controle social, um espaço de poder. Por-
afirma que já existiam em 1745, inclusive aponta que eram meio de preservação de alguns tanto, afirmamos que não existia “somente” a Festa de São Beneditode Cuiabá; outras
padrões culturais dos africanos ou mesmo da compra da liberdade dos irmãos escravizados. localidades festejavam o santo negro, contudo sem a mesma visibilidade (SILVA, 2014).
Percorrendo todo o século XIX, até o século XX, a Festa de São Benedito, passo a
Além dessas, outras funções como a “ascensão social” obtenível através passo, foi consolidando o seu espaço na lateral da Igreja de Nossa Senhora do Rosário,
da ocupação de cargos nas Irmandades, ou a simples garantia de um
que, apesar de ser pequena, em alguns momentos, suplantou as irmandades e os santos
enterro e de uma sepultura “dignos”, faziam-se presentes tantos nas
Irmandades negras como nas dos Pardos. Mas não há que concluir-se, cultuados nessa igreja, inclusive causando conflitos entre as duas principais irmandades
desde já, que a criação de Irmandades por negros e pardos fosse obra ali eretas, de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário.
de fácil consecução. [...] Só mesmo nos “meios urbanos” da época, onde A Festa de São Benedito da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Cuiabá, capi-
os “negros de ganho”, os “negros de aluguel”, os artesãos e milicianos tal do estado de Mato Grosso, nasceu dos negros e pobres, depois somou-se a elite da
puderem acumular algum capital, é que as Irmandades negras e pardas
puderam nascer e sobreviver (ROSA, 1976: 6-7). sociedade cuiabana, teve momentos de negritude e embranquecimento (ROSA, 1976),
resistiu ao tempo e hoje é atual/revolucionária/moderna, comblog e página no Face-
Não encontramos explicação, mas a irmandade de São Benedito firmou-se, mas a book25. Atualmente, há concurso para escolher o logotipo da festa anual; tem plano
irmandade de São Francisco de Paula, não conseguiu se estabelecer na Igreja de Nossa de cota para veicular sua propaganda num canal de televisão; tem panfleto, cartazes,
Senhora do Rosário24, somente a de São Benedito recebeu autorização para a constru- filipetas, mensagens de texto e outros meios de divulgação; e a festa já foi apresentada
ção da capela em honra ao seu orago. Foi possível observar que essa concessão não foi mundialmente pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro,
somente na questão espacial. Silva mostra um conflito que encontrou em documentos no desfile que teve como enredo “Cuiabá, um paraíso da América” (GLOBO, 2013).
sobre um protesto por falta de pagamento da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
para a Irmandade de São Benedito (SILVA, 2014)

25
Facebook da Festa de São Benedito de Cuiabá. Disponível em: https://www.facebook.com/pages/Festa-
24
Carlos Rosa (1976) afirma que a igreja de Nossa Senhora do Rosário não é referida antes de 1754. de-S%C3%A3o-Benedito-Cuiab%C3%A1/489576601113540. Acesso em: 20 jan. 2013.

384 385
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

10. A Festa do Divino: o protetor de Cuiabá o programa de como fazer as festas. Geralmente, pertencem à sociedade cuiabana pelo
A Festa do Divino é uma comemoração religiosa que acontece em Cuiabá e faz parte do seu nome de família; hoje, nem sempre a escolha segue o padrão econômico, mas a
calendário católico, com data móvel, mas celebrada em torno de cinquenta dias após a primazia ainda é dos habitantes mais antigos. Antes da festa, muitas atividades acon-
Páscoa. Sua origem vem da passagem bíblica do Pentecostes e festeja a vinda do Espí- tecem para angariar fundos, como jantar dançante, leilões de prendas, livro de ouro e
rito Santo sobre a terra depois da morte de Jesus Cristo na cruz, a qual foi fundamental qualquer nova proposta do líder. Obrigatório, o cortejo de pedição de esmola é liderado
no movimento evangelizador do Brasil Colônia até hoje. Em expedição por Mato Grosso pela rainha com o cetro e a coroa, acompanhada de parte dos festeiros, que lentamente
em 1884, Karl von den Steinen presenciou essa tradição, tal como é hoje: adentram lares e comércios da cidade, passando por gabinetes de prefeito e governador,
retirando as esmolas para realizar a festa.
Certo dia encontramos num quarto da casa desse colega um enorme Dunga Rodrigues, musicista e professora de piano, descreve a festa no início do
altar, sobre o qual se achavam um cetro e uma coroa. É que ele fora
século XX, em detalhes:
eleito “Imperador” para a “Festa das Esmolas”. [...] Enfrentamos a “Festa
das Esmolas”, que constituía, o “Prelúdio” para Pentecostes, celebrada
logo depois da Páscoa. Elege-se, por sorte, um senhor, que fica com a Uma semana ou 15 dias antes da programação, às 4h da tarde, da ci-
obrigação de realizar os festejos em sua própria casa. A Hospitalidade dade ao Porto às vezes até o Lava-pés (Hoje final da Getúlio Vargas)
é ilimitada, porém, em troca, todos têm que contribuir com “ESMOLA”. quando a casa dos festeiros fica por essas bandas, saia o Bando, rapa-
[...] O senhor escolhido toma o nome de “Imperador” e, acompanhado zes uniformizados, primeiro grupo com máscaras, todos a cavalo, dis-
de uma grande comitiva, segue de porta em porta, para colher contri- tribuindo programas da festa e às vezes distribuíam também versos
buições. Além disso são remetidas para a “casa da festa”. Donativos de políticos criticando algum personagem em evidência. O pessoal do pri-
toda espécie e que, mais tarde, aumentam ainda. Mesmo os mais pobres meiro grupo vestia o uniforme, com calças brancas de linho e blusão de
contribuem com alguma coisa. (STEINEN, 1942: 86-88). cetim azul ou vermelho. O 2° grupo já tinha um uniforme mais simples,
porém com blusa de cetim e no 3° vinham os avulsos vestindo-se à
Steinen (1942), seu primo Claus e Wilhelm, o desenhista, comoveram-se tanto com vontade. Porém sempre estavam em minoria, eram bem poucos. A festa
tantas atividades que eram feitas para se realizar a festa que decidiram doar algo para se iniciava 01 ou 02 semanas após o Bando (RODRIGUES, [s.d.]).
o leilão, assim o desenhista fez um desenho de anjo voando sobre Cuiabá.

Na noite designada para isso, fomos ao “leilão”. Subindo a escada, viam- Considerações finais
-se um quarto à esquerda e outro à direita e, atrás de ambos, a varanda.
Este texto buscou apresentar o desenvolvimento da cultura e da música no estado de
À Direita via-se o altar iluminado e à esquerda eram recebidas as visi-
tas, na varanda, [...] A função durou das 8h15min às 10h45min. Duran- Mato Grosso, desde a fundação do seu primeiro arraial, até algumas décadas do século
te todo esse tempo as senhoras permanecem imóveis. Nos bazares de XX para registrar a história construída ao longo de mais de 300 anos. Aqui, práticas e
caridade, as senhoras têm um papel, certamente, mais agradável. Os experiências foram adquiridas e adaptadas formando um conjunto de valores e com-
alegres compradores faziam suas combinações. [...] Após o leilão, as portamentos que só poderiam ter sobrevivido graças à relação homem e natureza nessa
senhoras, já fatigadas, ainda tinham que dançar. Embora dar seja mais
piedoso que tomar, o número delas era superior ao dos cavalheiros...à parte mais meridional do Brasil, território conquistado e desenhado pela Coroa portu-
meia-noite muitos já começavam a se retirar (STEINEN, 1942: 87-88). guesa. As festas mato-grossenses são significativas da cultura de origem popular, entre-
meadas por elementos tradicionais nas festividades tanto religiosas quanto profanas, o
Andando nas ruas apertadas da parte central da capital de Mato Grosso, pode-se amálgama da sociedade mato-grossense, que movimenta as cidades, reafirma os laços
ouvir, de longe, uma pequena banda musical, um surdo, um trompete, uma rabeca e re- sociais e resgata, sempre que necessário, a memória do passado cultural dos habitantes.
conhecer o “Hino do Senhor Divino Espírito Santo”, e ver uma bandeira, insígnias sendo Os estudos sobre a historiografia musical de Mato Grosso apresentam algumas la-
beijadas e devotos recebendo a imposição da coroa sobre a cabeça, significando pedido, cunas sobre o movimento e sua importância, por isso mostrar uma parte de sua história
agradecimento e benção. Nesse caso, a festa não é em honra a nenhum santo de devo- para futuras histórias, apresentando os indícios de formação dos principais folguedos
ção, pois é uma festa em comemoração à terceira pessoa da Santíssima Trindade. cururu e siriri, do único instrumento regional, a viola de cocho, além das festas dos
De um ano para o outro, todos os cargos das festas são escolhidos, geralmente no santos católicos, culminando na “época de ouro” da música mato-grossense, na primeira
último dia das festividades, um novo imperador e uma nova rainha ficam responsáveis metade do século XX, e o cenário musical da atualidade de Mato Grosso, com efetiva
pela coordenação e devem seguir a tradição escrita num pequeno livro da irmandade, participação feminina no século XX, nos saraus e eventos culturais, e a força da cultura

386 387
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

afrodiaspórica no estado com a Cavalhada e a Festa do Congo, o Lambadão de Poconé AMARAL, Rita de Cassia de Mello Peixoto. Festa a Brasileira: significados do festejar, no
e a efervescência cultural trazida pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). país que “não é sério”. Tese (Doutorado em Antropologia) – Departamento de Antropo-
A música apresenta, no cenário cultural do estado no início do século XX, a par- logia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
ticipação feminina nos espaços tanto públicos como privados, como responsáveis pela São Paulo: 1998.
vida social e pelo ensino de artes, como teatro e instrumentos musicais, entre outros,
com a compositora e pianista Zulmira Canavarros e a musicista Dunga Rodrigues, que ANDRADE, Julieta. Viola de Cochô: o alude mato-grossense. São Paulo: Escola de Folclo-
agitou a capital com sua criatividade e musicalidade, uma liderança nos movimentos re, 1981
culturais do seu tempo. Ainda nesse período, foi embrionada a futura Universidade da
Selva (UNISELVA), criada em 1970 como Universidade Federal de Mato (UFMT). Mas foi ANJOS FILHO, Abel Santos. Uma melodia histórica: eco, cocho, cocho-viola, viola-de-cocho.
somente no século XXI que o ensino da música galgou o patamar e adentrou na acade- Cuiabá: A. S. Anjos Filho, 2002.
mia como ciência.
Atualmente, a UFMT oferece dois cursos de graduação em Música, bacharelado e ARAÚJO, Renata. Os Mapas do Mato Grosso. Terra Brasilis: Revista da Rede Brasileira de
licenciatura com habilitação em regência, composição, canto, clarineta, violão e violino. História da Geografía e Geografía Histórica, [s. l.], v. 4, 2015, n.p. Disponível em: http://
A licenciatura tem por objetivo a formação de futuros professores de música e arte para terrabrasilis.revues.org/1230; DOI: 10.4000/terrabrasilis.1230. Acesso em: 1 out. 2016.
a rede estadual e municipal de educação, e o bacharelado, a formação de músicos tanto
para performance como para criação de músicas em cada área ofertada. Como forma de ATLAS of Plucked Instruments - Central América – Seção Panamá. Acesso em: 20 ago.
atingir o público-alvo, o ingresso só ocorre após o Teste de Habilidade Específica (THE), 2022.
necessário para se receber a Certificação de Habilidades Específicas, documento exigido
para se matricular nos cursos de Música. BARBOZA DE SÁ, Joseph. Relação das povoaçoens do Cuyaba e Mato Grosso de seos
Além do curso de graduação em Música, a UFMT mantém e congrega os principais principio thé os presentes. Cuiabá: Edições UFMT, 1975.
patrimônios imateriais e culturais desse estado, ligados administrativamente à Pró-Rei-
toria de Cultura, Extensão e Vivências e à Coordenação de Cultura da UFMT. São eles: o BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique Pedro Carlos de. Dicionário de Vocábulos Brasileiros.
Coral, a Orquestra Sinfônica, o Cineclube Coxiponés, o Museu de Arte e Cultura Popular, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
o Ateliê Livre de Artes e o Teatro Universitário. Mas essas são outras histórias que devem
ser contadas sobre a música... BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade:uma abordagem da educação como
prática social. Cuiabá: EdUFMT, 1997.
Referências
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
9º Festival de Cururu e Siriri de Mato Grosso O maior festival da cultura mato-grossense.
De 23 a 26 de setembro na Arena da Acrimat. Cuiabá - Mato Grosso. Fonte: Festival de BUDASZ, Rogério. Teatro e música na américa portuguesa: convenções, repertório, raça,
Cururu e Siriri 2010. gênero e poder. Curitiba: Ed. UFPR, 2008.

A IMPRENSA DE CUYABÁ, 1859, Edições 03, 05 e 07. CAMPELLO, Glauco. Patrimônio e Cidade, Cidade e Patrimônio. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional.
ALAMÍNIO, Beth. A música num ambiente urbano colonial: A Vila Real do senhor Bom
Jesus do Cuiabá (1778-1817). Monografia (Licenciatura e Bacharelado em História) – CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da moderni-
Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá: dade. São Paulo: Edusp, 2013.
2005.
CARNEIRO, Edson. Ladinos e crioulos: estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1964

388 389
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

CASTELNAU, Francis. Expedição às Regiões Centrais da América do Sul. Biblioteca GLOBO. Mangueira pega o tren da história. G1. Rio de Janeiro: 2013. Disponível em
Pedagógica Brasileira Brasiliana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949. Tomo II. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2013/noticia/2013/01/mangueira-pega-
Série 5. -o-trem-da-historia-e-descobre-cuiaba.html. Acesso em: set. 2013.

COMETTI, Pe. Pedro. Apontamentos da História Eclesiástica de Mato Grosso: paróquia e GUAPO, Milton Pereira de Pinho. Remedeia Co Que Tem. Cuiabá: Edição do Autor, 2010.
prelazia. Cuiabá: Instituto Histórico geográfico do Mato Grosso; Academia Mato-gros-
sense de Letras, 1996. v. 1. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração: memória e práticas: Mato Gros-
so na primeira metade do século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato,/EDUFMT, 2006.
CORBALAN, Kleber Roberto Lopes. A Igreja Católica na Cuiabá Colonial: da primeira Ca-
pela à chegada do primeiro Bispo (1722 - 1808). Dissertação (Mestrado em História) – HOBSBAWM, Eric; TERENCE, Ranger (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz
Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, e Terra, 1997. (Pensamento Crítico, 55).
2006.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.Censo 2012. Mato Gros-
CRUZ, Samoel Felisberto. A Igreja e a realidade do Mato Grosso no século XVIII. Disserta- so. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
tio ad Licentiam – Pontificiam Universitat em Gregorianam, Roma, 2004.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Modo de
D’ALINCOURT, Luiz. Rezultado dos trabalhos e indagações staticas da província de fazer viola-de-cocho. Brasília: Iphan, Ministério da Cultura, 2009: Dossiê 8.
Matto-Grosso. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typogra-
phia Nacional, 1881. v. 8: 1880-1881. JESUS, Nauk Maria de. A “Cabeça da República” e as festividades na fronteira Oeste da
América. In: ROSA, Carlos Alberto (org.) A Terra da Conquista: história colonial de Mato
DORILEO, Benedito Pedro. Centenário da Egéria Cuiabana. Cuiabá: 1995. Grosso. Cuiabá: Ed. Adriana, 2003.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: L. Y. Z. Notas a lápis. In: O COMÉRCIO. Mato Grosso: Anno I, n. 3, 17 de março de 1910.
Jorge Zahar Ed., 1994. Vários Redatores.

FACEBOOK. Festa de São Benedito de Cuiabá. Disponível em: https://www.facebook. LACERDA, Leilla Borges. De Matriz a Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá:
com/pages/Festa-de-S%C3%A3o-Benedito-Cuiab%C3%A1/489576601113540 . Acesso territorialidade, poder e memória – séculos XVIII-XX. Cuiabá: Instituto de Ciências Hu-
em: 20 jan. 2013. manas e Sociais, 2001.

FLOR RIBEIRINHA. Site. Disponível em: http://www.florribeirinha.com.br/. Acesso em: LIMA, Rossini Tavares de. Estudo sobre a viola. [s.d.]
dez. 2021.
LOTT, Alcides Moura. Teatro em Mato Grosso: veículo da dominação colonial. São Paulo:
FREYRE, Gilberto. O mundo que o Português criou: Aspectos das relações sociais e de EdUFMT, 1986.
cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1940. (Documentos Brasileiros, 28) MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 2000: 5ª Ed.

GARCIA, Rodolfo. Exotismos franceses originados da Língua Tupi/ Nomes de parentes- MESQUITA, José de. Troncos raciais da família mato-grossense (ensaio). Revista Mensal
co na Língua Tupi. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impren- de Estudos Brasileiros. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda, 1941-
sa Nacional, 1942. v. 64. 1945.

390 391
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

MOREIRA, Jean Benedito dos Santos. O Siriri de dança de gente da beira do rio à patri- RODRIGUES, Dunga. Caderno de Anotações. Arquivo da Academia de Letras Matogros-
mônio Imaterial Mato-grossense. Artigo Científico (Bacharelado e Licenciatura em Histó- sense. Cuiabá, s/d.
ria) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Mato Grosso,
Cuiabá, 2013. RODRIGUES, Dunga. Mestre de Música.Revista do Instituto Histórico de Mato-Grosso. Cuia-
bá: 1995.
MOURA, Carlos Francisco. O Teatro em Mato Grosso do Século XVIII. Cuiabá: EdUFMT;
SUDAM: 1976. RODRIGUES, Dunga. Roteiro musical da cuiabania. Caderno Quatro. Cuiabá: UFMT/NDI-
RH, 1979. (Coleção Memória Social da Cuiabania)
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia sobre a provincia de Matto Grosso seguida d’um
roteiro da sua capital a S. Paulo. São Paulo: Typografia de Henrique Schroeder, 1869. RODRIGUES, Firmo. As Luminárias. Revista do Instituto Histórico de Mato-Grosso. Cuia-
bá:1995.
MÜLLER, Maria de Arruda; RODRIGUES, Dunga. Cuiabá ao longo de 100 anos. Cuiabá,
1994. ROSA, Carlos Alberto. Almanaque de São Benedito 1976: Festa do Glorioso São Benedi-
to. Coxipó da Ponte, julho de 1976.
NOLASCO, Simone Ribeiro. As devoções na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá – o
culto aos padroeiros – 1723 a 1808. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de SAHLINS, Marshall. História e Cultura: Apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2002. Ed., 2006.

ORDONHES, Toledo de Lara. Notas sobre festas em Cuyabá no século passado/Crítica SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé, Irmão no Poder:a Irmandade de Nossa Se-
dessas festas. In: REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SÃO PAULO. nhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-
São Paulo: 1898/1899, v. 4. 1819).2001. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Gros-
PEREIRA JR, Cleber Alves. O código de posturas e os futuros cururus oitocentistas. In: so, Cuiabá, 2001.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, 25. Fortaleza: ANPUH, Anais..., 2009.
SILVA, Leonam Lauro Nunes da. Relações na Tríplice Fronteira: A Bolívia no contexto da
PEREIRA JR, Cleber Alves. O cururu como fonte de resistência escrava em Cuiabá Im- “Grande Guerra” (1865-1868). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
perial.In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA CULTURAL, 6.: Escritas da História: Ver- -Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal
-Sentir-Narrar. Teresina: UFPI, Anais, 2012. de Mato Grosso, Cuiabá, 2009.

PINHO, Raquel Tergon de. Cidade e Loucura. Cuiabá: Central de Texto; EdUFMT, 2007. SILVA, Octhayde Jorge da. Cuiabá-São Benedito. Revista do Instituto Histórico e Geográfi-
co de Mato Grosso, Ano L. Acervo do NDIHR: localizador 2144/2157/NDIHR.
PREISS, Jorge Hirt. A música nas missões jesuíticas nos séculos XVII e XVIII. Porto Alegre:
Martins Livreiros Ed., 1988. SILVA, Silbene Corrêa Perassolo da. A Festa de São Benedito: Estudo sobre a “invenção”
de uma tradição cuiabana. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
RAMOS, Otávio; DRUMMOND, Arnaldo F. Função do Cururu. Cadernos cuiabanos. 8. ed. -Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal
São Paulo: Planimpress, 1978. do Mato Grosso, Cuiabá, 2014.

RIOS, Luiza; VOLPATO, Ricci. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em SILVA, SJ, José de Moura e. Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito: Guia de
1850-1888. São Paulo: Editora Marco Zero; EdUFMT, 1993. visitação. Cuiabá: Entrelinhas, 2006.

392 393
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

SIQUEIRA, Joaquim da Costa. Crônicas do Cuiabá. Cuiabá: Instituto Histórico e Geografi-


co de Mato Grosso, 2002.

STEINEN, Karl von den. O Brasil Central: expedição em 1884 para a exploração do Rio
Xingu. Trad. Catarina Baratz Canabrava. São Paulo: Brasiliana Biblioteca Pedagógica
Brasileira, 1942. v. 3. Disponível em: http://brasilianadigital.com.br/brasiliana/colecao/
obras/158/o-brasil-central-expedicao-em-1884-para-a-exploracao-do-rio-xingu. Aces-
so em: 19 mar. 2014.

SUZUKI, Yumiko Takamoto (org.). Annaes do Sennado da Camara do Cuyabá: 1719-1830.


Cuiabá: Entrelinhas; Arquivo Público de Mato Grosso, 2007.

TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular-segundo seus gêneros. 7. ed.
São Paulo: Editora 34, 2013.

VILELA, Ivan. Vem viola, vem cantando. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, 2010.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

ZARAMELLA, Sônia. Jornal em Mato Grosso - no começo de tudo, a participação popu-


lar. In: ENCONTRO NACIONAL DA REDE ALFREDO DE CARVALHO, 2., 2004, Florianópo-
lis. Anais […]. Florianópolis: GT História das Mídia Impressa; Prof. Luís Guilherme Tava-
res (coord.) (NEHIB), 2004.

394 395
Mato Grosso: um Estado de muitas festas Silbene Corrêa Perassolo da Silva

sobre os autores

Histórias das
Músicas no Brasil

Centro-Oeste

396 397
Ana Guiomar Rêgo Souza (Ed.) Universidade Federal da Bahia. Realizou entre 2019-2020 o estágio de doutorado san-
Doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Música, es- duíche na Universidade de Aveiro. Exerceu o cargo de coordenador do “Ponto de Cultura
pecialista e Bacharel em Música – Piano, pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Pro- Tocando Arte do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura” (MINC) (2011-2015). É
fessora Associada da UFG, lotada na Escola de Música e Artes Cênicas (EMAC), da qual foi professor efetivo de música na Secretaria de Estado da Educação de Goiás, onde exerce
diretora, de 2010 a 2018. Coordena o “Laboratório de Musicologia Braz Wilson Pompeu o cargo de regente de banda e coordenador Técnico Artístico do Centro de Educação de
de Pina Filho” da EMAC-UFG. Preside o Simpósio Internacional de Musicologia em par- Período em Tempo Integral Ismael Silva de Jesus. Publica artigos em revistas científicas
ceria com o Núcleo Caravelas da Universidade Nova de Lisboa. É membro da Comissão e Anais de congressos. Publicou em 2023 o livro “Ansiedade na Preparação da Perfor-
para Cooperação Arquivística Institucional da UFG. Integra o Grupo de Pesquisa “Núcleo mance no Ensino de Instrumentos de Banda”.
Interdisciplinar de Patrimônios, Artes, Memórias, Habitar e Expressões Culturais da UFG” [email protected]
(NIPAM)). Publicou como organizadora os livros “Musicologia e Diversidade”, a série “O
Grande Governador da Ilha dos Lagartos” e “Musicologia em Interpelações Contemporâ- Beatriz Magalhães Castro
neas”. Recebeu vários prêmios do governo do Estado de Goiás, do Conselho Estadual de Obteve o Premier Prix na Classe de Flauta - Conservatoire National Supérieur de Musique
Cultura, da Academia Goiana de Artes e Letras do Estado de Goiás, da Câmara Municipal de Paris, e graduação nas Classes de História da Música e Análise naquele conservatório,
de Goiânia. Recebeu a Comenda Colemar Natal e Silva. Mestrado em Música - The Juilliard School of Music e doutorado em Música - The Juilliard
[email protected] School of Music. Pós-doutoramento na Universidade Nova de Lisboa. É professora da
Universidade de Brasília. Foi editora da Revista «Música em Contexto» e coordenadora
Flavia Maria Cruvinel (Ed.) do Programa de Pós-Graduação Música em Contexto da UnB. É coordenadora do Co-
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre e especialista mitê RILM-Brasil, membro dos Comitês RISM-Brasil e RIdIM-DF. Foi presidente da As-
pela UFG. É vice-líder do Grupo de Pesquisa “Músicas e Processos Formativos da EMAC/ sociação Brasileira de Musicologia (ABMUS), presidente da Seção Brasil da Associação
UFG” e membro dos Grupos de Pesquisa Núcleo Interdisciplinar de Patrimônios, Artes, Internacional de Bibliotecas, Arquivos e Centros de Documentação Musical. Membro da
Memórias, Habitar e Expressões Culturais/UFG. É integrante do History Standing Com- Sociedade Internacional de Musicologia (IMS) e da Associação Internacional de Biblio-
mittee e da Community Music Activity Commission ligadas a Internacional Society for Music tecas, Arquivos e Centros de Documentação Musical. É membro da Comission Mixte do
Education e do Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira RISM Internacional. Coordena o Projeto Historiografia da Música Brasileira e desenvolve
ligado à Universidade Nova de Lisboa. Autora de inúmeras publicações, como Educa- mapeamento de ferramentas musicológicas para a pesquisa em música por meio de
ção Musical e Transformação Social: uma experiência com Ensino Coletivo de Cordas tecnologias da informação e comunicação.
e Música e Poder: o habitus cortesão bragantino nos trópicos. Foi pró-reitora adjunta de [email protected]
Extensão e Cultura da UFG (2014-2022). Coordena o ENECIM – Encontro Nacional de
Ensino Coletivo de Instrumento Musical.Foi membro titular da Comissão Nacional de Consuelo Quireze Rosa
Incentivo à Cultura do Ministério de Cultura – MinC. É gestora e produtora cultural, com Especialista em Didática do Piano e Interpretação Musical. Mestra em Música/Perfor-
destaque ao Projeto Música no Câmpus, SBPC Cultural/2011 e Brazilian Kaleidoscope mance pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É professora da Escola de Música e
(ISME-Grécia 2012). Atualmente, é coordenadora da Rede de Cultura IPES-GO, membro Artes Cênicas. Como pianista participou de concertos, congressos, simpósios e festivais
da diretoria da Internacional Society for Music Education (2020-2024), diretora de Artes em renomados centros do Brasil e do exterior (Canadá, França, Portugal, Inglaterra).
e Culturas do Centro de Educação, Trabalho e Tecnologia – CETT-UFG e vice-diretora da Como camerista, destaca-se o concerto na Embaixada de Portugal, em 1998, quando
Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. da homenagem ao Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, a apresentação no Royal
[email protected] Albert Hall em Londres e apresentação em Paris, na Embaixada da França. Integra o Duo
Terra Brasilis com Fernando Cupertino e Duos de Piano a quatro mãos. Apresentou-se
Aurélio Nogueira de Sousa com várias orquestras. Participou da trilha sonora de documentário sobre a historiadora
Graduado em Educação Musical pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Especia- e folclorista Regina Lacerda, de autoria do compositor Fernando Cupertino. Registrou
lista em Gestão Escolar pela Faculdade Tecnológica Darwin. É mestre em música pelo em CDs obras pianísticas e de câmara de Cupertino e Fugas de J. S. Bach. É Coordena-
PPG em Música da Universidade Federal de Goiás e Doutor em Educação Musical pela dora de Programação de Artes e Cênicas do Centro Cultural UFG, do Núcleo de Piano

398 399
da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, dos projetos PianoForte, Medicina em em Filosofia - Bacharelado pela Universidade Federal de Goiás (UFG-GO) em 2015. É
Concerto, Allegro Concertos CCUFG/SICOOB. É Membro titular da Academia Nacional de graduando em Pedagogia - Licenciatura pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Música e da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. Agraciada com o título de (PUC-GO) em sistema EAD. É Professor efetivo (P-IV) da Secretaria do Estado da Educa-
cidadã Villaboense. ção de Goiás (SEDUCE-GO).
[email protected] [email protected]

Evandro Rodrigues Higa Giulia Leal Reis Pinho


É pianista e docente no curso de música da Universidade Federal de Mato Grosso do Professora de Música licenciada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde
Sul, mestre em musicologia pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São foi bolsista e monitora de coros e aulas de piano para a comunidade. Além disso, pes-
Paulo e doutor em música pelo Instituto de Artes da Unesp. É autor dos livros “Polca quisou sobre a vida e obra do compositor sul-mato-grossense Genaro Marsiglia, tema
paraguaia, guarânia e chamamé – estudos sobre três gêneros musicais em Campo de seu trabalho de conclusão de curso. Atualmente estuda Medicina Veterinária pela
Grande, MS” e “‘Para fazer chorar as pedras’: guarânias e rasqueados em um Brasil mesma instituição e continua trabalhando com Música.
fronteiriço”, tendo também publicado capítulos nos livros “Los linguajes del território [email protected]
platino” (Editora da Universidade de Buenos Aires), “Uma vereda tropical: a presença da
canção hispânica no Brasil” (Editora Letra e Voz) e “The Routledge companion to the Lucas Manasses
study of local musicking” (Routledge) e verbetes na Bloomsbury Encyclopedia of Popular Compositor e pesquisador de Goiânia. Possui graduação em Composição pela Univer-
Music of the World, volume IX, Genres: Caribbean and Latin America. sidade Federal de Goiás (UFG) e mestrado em música pela Universidade de Brasília
[email protected] (UnB), sob a orientação da professora Tatiana Catanzaro. Seu trabalho composicional
busca explorar as possibilidades cênicas da performance musical, tendo desenvolvido
Fernando Passos Cupertino de Barros sua pesquisa de mestrado com o enfoque em obras cênicas dos compositores Mauricio
Médico com especialização em Ginecologia e Obstetrícia, é mestre em Saúde Coletiva Kagel e Estercio Marquez Cunha. Como criador e produtor cultural, participou de vários
pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, mestre em Música projetos de criação e divulgação da música de concerto contemporânea goiana, desta-
pela Universidade Federal de Goiás e doutor em Ciências da Saúde (Saúde Coletiva) pela cando sua participação no Música Íntima.
Universidade de Brasília. É professor da cadeira de Saúde Coletiva, da Fac. de Medicina [email protected]
da UFG, servidor aposentado da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás e consultor em
sistemas e organização de serviços de saúde. É assessor técnico do Conselho Nacional Ludmylla Cristina Guilardi
dos Secretários de Saúde (CONASS), que presidiu por duas vezes (2000-2003). Coordena Goiana, clarinetista, formada em Licenciatura em Educação Musical pela Universidade
a Comissão Temática da Saúde, Segurança Alimentar e Nutricional da Comunidade de Federal de Goiás (UFG), com formação técnica em instrumento musical integrado ao en-
Países de Língua Portuguesa desde 2015. É ainda compositor de música erudita com sino médio pelo Instituto Federal de Goiás (IFG). Compondo o desenvolvimento de três
várias obras gravadas. Fundou com a pianista Consuelo Quireze o Duo Terra Brasilis (voz projetos como bolsista junto ao CNPQ, com artigos publicados na Revista Música Hodie;
e piano), em atuação desde 2003, que se dedica à divulgação da música brasileira de na Revista Brasileira de Estudos de Segurança Pública (REBESP) e participação no livro
concerto. É também pesquisador de músicas e tradições goianas. Fenomenologia e Cultura: Identidades e Representações Sociais 3, da Editora Atena.
[email protected] Com formação complementar no Curso técnico/profissionalizante em Superior Sequen-
cial em Gestão de Segurança Pública, pela Faculdade Cambury de Goiânia, atuando
Geraldo Marcio da Silva profissionalmente como Soldado da Polícia Militar de Goiás e Lecionando no Curso de
Mestre em Educação, Linguagem e Tecnologias pela Universidade Estadual de Goiás Formação de Praças da PMGO (2023).
(UEG). Especialista em Filosofia “O conhecimento humano” pela Universidade Estadual
de Maringá (UEM-PR) em 2010. Graduado em Filosofia - Licenciatura pela Pontifícia Luiz Gonçalves
Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) em 2012. Graduado em Educação Musical Li- Nascido em Goiânia em 1986, é doutorando em música pela UDESC, na linha de pes-
cenciatura Canto pela Universidade Federal de Goiás (UFG-GO) em 2007. É graduado quisa processos criativos sob orientação do Prof. Luigi Antônio Irlandini. É mestre em

400 401
música pela Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, sob Robervaldo Linhares Rosa
orientação da Profa. Ana Guiomar Rêgo Souza, na linha de pesquisa Música, Cultura e Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Música pela Univer-
Sociedade. É bacharel em composição musical pela UFG sob orientação do compositor sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Coordenador do curso de Licen-
Prof. Paulo Guicheney. É professor colaborador no projeto de extensão Oficinas de Músi- ciatura em Música (2012-2015). Desenvolve pesquisas sobre a prática musicológica em
ca da UFG onde ministra cursos livres de composição. É colaborador da série permanen- diálogo com a performance. Intérprete e divulgador do repertório para piano dos sécu-
te de concertos de música contemporânea Música Íntima. É professor efetivo da área de los XX e XXI no Brasil. Destaca-se por sua atividade camerística no Duo Limiares, cujo
linguagem musical na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. CD “Flauta e Piano na Belle Époque Brasileira” foi lançado em 2016. Em 2014, publicou
[email protected] Como é bom poder tocar um instrumento: pianeiros na cena urbana brasileira, livro contem-
plado com o Prêmio Funarte de Produção Crítica em Música 2013. Em 2017, em turnê
Magda de Miranda Clímaco europeia, apresentou-se em Portugal, Espanha e Alemanha. Prêmio Funarte de Produ-
É doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB); mestre em Música ção Crítica em Música – Brasil (2013), 1º Prêmio Concurso Nacional de Piano Art-Livre,
pela Universidade Federal de Goiás (UFG); bacharel em Piano pela UFG e licenciada São Paulo (2002) e 1º Prêmio Concurso Nacional de Piano do Instituto Brasil-Estados-
em Música pela mesma instituição. Professora associada e pesquisadora da Escola -Unidos, Rio de Janeiro (1997). Organizou o livro Musicologia e Diversidade (Editora Ap-
de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (EMAC/UFG). Integra a pris), com Ana Guiomar Rêgo Souza (EMAC/UFG) e David Cranmer (CESEM/FCSH-UNL).
coordenação do Laboratório de Musicologia Braz Wilson Pompeu de Pina da EMAC/ [email protected]
UFG e o Caravelas – Centro de Pesquisas em História da Música Luso Brasileira/CESEM/
Universidade Nova de Lisboa. Tem vários trabalhos publicados em revistas científicas Silbene Corrêa Perassolo da Silva
qualificadas, anais de congressos e capítulos de livros. Recebeu da Câmara Municipal de Historiadora e musicista, nasceu em Cuiabá-MT, onde iniciou seus estudos como pia-
Goiânia o “Diploma de Honra ao Mérito pelos serviços prestados à Cultura Goiana”. Uma nista e regente. Foi aluna da Profa. Márcia Vialôgo Cunha (In memorian), Vilson Gaval-
das criadoras e coordenadoras do Simpósio Internacional de Musicologia promovido dão e Dorit Kolling. Toda sua formação foi realizada na Universidade Federal de Mato
anualmente desde 2011 nas cidades de Pirenópolis/GO e Goiânia pela Escola de Música Grosso onde fez graduação em Licenciatura em Educação Artística - Hab. Música (1994),
e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. especializou-se em Semiótica da Cultura (1995) e Música Brasileira (1997). Nesta ins-
[email protected] tituição, passou a ser servidora a partir de 1992 como cantora do Coral UFMT, atuando
em diversas áreas da educação e da cultura, iniciando suas pesquisas nas áreas de
Marcos Botelho história e patrimônio desenvolvidos em diversos cursos e laboratórios de extensão, lo-
Bacharel e Mestre em Música pela UFRJ e Doutor em Música pela UFBA. É professor de cal onde se aposentou em 2020. Desde 2011, passou a ser aluna regular do Programa
trombone e música de câmara na Universidade Federal de Goiás. Coordena o Labora- de Pós-graduação em História da UFMT, tornando-se Mestre em História (2014) sob a
tório BandaLab e o grupo Trombones Goianos. É autor de três métodos desenvolvidos orientação do Prof. Dr, Renilson Rosa Ribeiro e Doutorado em História sob orientação da
pelo projeto de pesquisa Bel-Bone. Suas pesquisas são voltadas às bandas de música Professora Doutora Kátia Abud (USP-SP). Sua área de pesquisa concentra-se em Histó-
e a pedagogia do trombone. Atua em música de câmara, integrando o duo Martins- ria Cultural e Cultura de Mato Grosso, festas religiosa, Festa São Benedito e folguedos
-Botelho (junto com a pianista Dra. Martha Martins), o Quinteto Metais do Cerrado e culturais cuiabanos.
o Quinteto BR5. Já apresentou performances musicais, trabalhos de pesquisa e master [email protected]
classes em importantes universidades brasileiras, assim como em outros países como
Portugal, Peru, Argentina e Estados Unidos, incluindo no International Trombone Festival
(EUA). É convidado regularmente para importantes festivais no Brasil. Foi presidente da
Comissão Cientifica da ABT (2017-2019). Recentemente tornou-se editor do Brazilian
Trombone Association Journal. É idealizador e coordenador da Boneweek-Goiânia.
[email protected]

402 403
Mato Grosso: um Estado de muitas festas

A série Histórias das Músicas no Brasil, organizada pela Anppom – Associação Na-
cional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, foi concebida com o propósito de dar
visibilidade à reflexão sobre a história do vasto e plural cenário da música no Brasil. Ela

Sobre a série
compreende cinco volumes, cada um deles dedicado a uma região do país, e se constitui
de capítulos sobre o processo histórico de todos os tipos de música, particularmente
dos repertórios e práticas que têm recebido menos atenção da academia, com vários
tipos de abordagem, das mais consolidadas às mais inovadoras.
Cada um dos volumes foi editado por um par de pesquisadoras(es) convidadas(os)
a partir do rigor e excelência de sua produção acadêmica:

Região Norte
Editores: Fernando Lacerda (UFPA) e José Jarbas Pinheiro Ruas Junior (UFT)

Histórias das Região Nordeste


Editoras: Inez Martins (UECE) e Thais Rabelo (UFS)
Região Sudeste

Músicas no Brasil Editoras: Virgínia de Almeida Bessa (Unicamp) e Juliana Pérez González
Região Sul
Editores: André Acastro Egg (UNESPAR) e Márcia Ramos de Oliveira (UDESC)
Região Centro-Oeste
Editoras: Ana Guiomar Rêgo Souza (UFG) e Flavia Maria Cruvinel (UFG)

Estamos imensamente satisfeitos com o resultado do trabalho dedicado das(os)


editoras(es) e autoras(es) destes volumes e os entregamos à comunidade cientes de
que se trata de uma primeira e inicial contribuição para uma ampla reflexão sobre a
música no Brasil e para dar visibilidade aos promissores trabalhos das novas gerações
de pesquisadoras(es).

Mónica Vermes (ANPPOM/UFES)


Marcos Holler (UDESC)
Organização geral da série Histórias das Músicas no Brasil

Vitória/Florianópolis, outubro de 2023

404 405

Você também pode gostar