Impulso, v. 13, N. 32

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book Page 1 Thursday, September 18, 2003 9:52 AM

IMPULSO ISSN 0103-7676 • PIRACICABA/SP • Volume 13 • Número 32 • P 1-189 • 2002


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Revista de Ciências Sociais e Humanas


Journal of Social Sciences and Humanities

Universidade Metodista de Piracicaba Gráfica UNIMEP


Coordenação: CARLOS TERRA
Capa: MARIA MACHADO LEÃO
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Apoio administrativo: ALTAIR ALVES DA SILVA ISSN 0103-7676
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Edição de texto: MILENA DE CASTRO CDU – 3 (05)
Revisão em inglês: CRISTINA PAIXÃO LOPES
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Editorial

(Con)viver com HIV e aids:


da morte à vida

De acordo com as mais recentes estimativas, apresentadas em


eventos internacionais sobre o impacto atual da pandemia de HIV/
aids, corre-se o risco de que 45 milhões de pessoas sejam infectadas
pelo vírus HIV e de que, muitas delas, desenvolvam os sintomas da
aids, levando, por sua vez, a milhões de mortes – a menos que inicia-
tivas drásticas de prevenção e tratamento sejam efetivamente toma-
das. A infecção em cerca de 29 milhões dessas pessoas poderia ser evi-
tada, trazendo-as da pena de morte à promessa de vida e à convivência
social – desde que a sociedade desperte para tal realidade, liberte-se de
preconceitos, envolva-se em proposições práticas e comprometa-se,
sobretudo, a discutir aberta e claramente essa questão, tendo o res-
paldo de uma base científica e da sensibilidade solidária.
Também no Brasil os números são alarmantes, embora realiza-
ções em educação, prevenção, apoio médico e social, pesquisa e ava-
liação de ações concretas nessa área tenham crescido bastante. Na ver-
dade, o País ocupa hoje lugar de destaque por suas iniciativas tanto
por meio de políticas públicas, que granjearam o reconhecimento in-
ternacional, como por meio de empreendimentos específicos, levados
a cabo por organizações não-governamentais, igrejas e associações
voltadas para a saúde pública.
Por sua vez, a política editorial da Impulso tem sido sempre a de
colocar, a cada número, suas temáticas atreladas aos interesses e dinâ-
micas dos debates acadêmicos mais relevantes nos âmbitos local, na-
cional e internacional. Não há surpresa, portanto, que as siglas HIV e
aids também ganhem as páginas desta publicação. Assim, em sua 32.a
edição, a revista se abre a tal discussão – não simplesmente com o
olhar médico e epidemiológico, que muitas vezes orienta e domina os
debates sobre o tema, mas sim para trazê-la para a área das ciências
humanas e sociais. Aqui, cabe-nos dizer: HIV/aids é um assunto a ser
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ainda mais discutido, permanentemente debatido. É uma questão de


informação e discussão. É, portanto, uma questão discursiva!
Como as demais propostas que marcam os temas da revista, esse
número também tem um histórico que remete a iniciativas práticas que
progressivamente ganharam espaço no debate e científico-acadêmico
unimepiano. E, como tal, devem retornar à sociedade na forma de novo
conhecimento. As primeiras ações voltadas para a questão do HIV e da
aids na Universidade Metodista de Piracicaba podem ser caracterizadas
como a associação de moléculas, inicialmente isoladas.
Isso se deu com base no processo de reflexão sobre o sentido da
vida, a partir da sistemática de doação de sangue, que ocorre periodi-
camente na universidade. Afora o que, nos últimos anos um grupo de
pesquisadores vem desenvolvendo esforços no sentido de inserir as
questões relativas ao HIV/aids em outras esferas do cotidiano acadê-
mico e, desse modo, buscar parcerias para viabilizar práticas que per-
mitam ampliar a reflexão sobre o tema para além das cercanias da re-
lação médico/paciente.
A partir de tais iniciativas, a Faculdade de Ciências da Religião li-
derou esforços para a constituição do Fórum de Reflexão e Parceria
para Projetos em HIV/aids, o que levou à composição de uma rede para
fomentar pesquisas nessa área, à elaboração de projetos de capacitação
e de extensão, bem como à realização de atividades culturais, campa-
nhas de prevenção e debates envolvendo a comunidade em geral. Aci-
ma de tudo, procurou-se a associação com instituições que assumem
essa temática como prioridade de ação pública em âmbito nacional. E,
por fim, justamente por reconhecer a dimensão global da discussão so-
bre o HIV e a aids, a discussão se ampliou também ao nível internacio-
nal, especialmente ao buscar a interlocução com agentes e pesquisado-
ras de outros países que, por meio de publicações e palestras, têm com-
partilhado sua experiência. Desse modo, deu-se a construção efetiva de
uma abordagem transdisciplinar, na qual se garante um atravessamento
entre diversas práticas e conhecimentos, com uma fecundação recípro-
ca dos diferentes campos do saber e do fazer.
Esse breve histórico, orienta e fundamenta esse número da Im-
pulso: seu objetivo não é mais se deter em uma suposta vítima, fadada
a viver com a aids – expressão de um vírus que contradiz e motiva a
busca pelo sentido da vida – e a ser segregada devido ao risco de
contaminação. Mas sim o de nos levar a todos, enquanto sociedade,
a aprender a (con)viver com a aids e o HIV, e somente assim conse-
guirmos ficar imunes ao vírus da indiferença e da ignorância.
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.
Esta edição segue, de maneira inversa, a linha que apresentamos
nesse editorial, pois parte do contexto local, ampliando-se para as dis-
cussões ao plano nacional, para depois chegar a tópicos no âmbito in-
ternacional.
Ela é aberta pelo artigo de Márcio Aparecido Mariguela & Edson
Olivari Castro. Psicanalistas e professores da UNIMEP, eles tomam
por base a noção de discurso proposta por Michel Foucault para sus-
tentar que a noção de grupo de risco foi responsável pela representação
subjetiva, social e negativa da aids, prestando-se a transformá-la em
epidemia. Mas indicam que, presentemente, sua designação como
infecção crônica controlável pode servir como estratégia de prevenção
e pesquisas transdisciplinares. Já Tânia Mara Vieira Sampaio, também
da UNIMEP, destaca que a questão requer um olhar atento que con-
temple os aspectos religiosos significativos, ao indagar criticamente
sobre o olhar religioso que associa a doença a castigo divino, e não à
contingência da experiência humana. Seu artigo contribui para o de-
bate a partir de uma “visão teológica marcada pelo propósito de revi-
são dos discursos normativos e culpabilizadores”.
Os estigmas da epidemia também são objeto do texto de Rosa-
na de Lima Soares, da USP, que vale-se da análise de textos jornalísti-
cos e campanhas de prevenção governamentais para discutir as figu-
rações e configurações da aids, no que identifica o desafio maior dessa
problemática: o aprendizado da (con)vivência com ela. A partir da
ação governamental brasileira no combate à aids, de repercussão in-
ternacional, Cristina Câmara, do Ministério da Saúde, discute as ne-
cessárias articulações com a sociedade civil, em particular no trato
com as organizações atuantes no combate à aids, destacando, na área
da saúde, as articulações, conflitos e alianças constituidores do movi-
mento social em luta contra a aids e suas interfaces com o setor go-
vernamental.
Marclei Silva Guimararães e Juan Carlos Raxach, ambos da As-
sociação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), apresentam quatro
pesquisas brasileiras pioneiras sobre adesão aos anti-retrovirais, tecen-
do uma reflexão sobre alguns desafios impostos por essa terapia ao
governo e aos profissionais na área da saúde, bem como aos diversos
segmentos sociais envolvidos com pessoas vivendo com HIV/aids. Já
Larissa Maués Pelúcio Silva, da Universidade Federal de São Carlos,
resgata o surgimento da aids no Brasil, ao analisar a construção de iden-
tidade em um espaço comunicativo, valendo-se, para tanto, da teoria da
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ação comunicativa de Habermas e tendo como pano de fundo a ex-


periência do Grupo Pela Vidda, do Rio de Janeiro.
Vera Vital Brasil, do Instituto de Assistência aos Servidores do
Estado do Rio de Janeiro e do Equipe Clínico Grupal Tortura Nunca
Mais, trata o tema da natureza e da morte sob o prisma filosófico pa-
ra, em seguida, tomá-lo em sua dimensão subjetiva, histórica e ope-
rativa. A morte fora do tempo, a morte fantasmática são, a seu ver,
configurações subjetivas dominantes em torno da epidemia da aids.
Larissa Polejack, do Projeto Com-Vivência/Hospital Universitário de
Brasília, e Liana Fortunato Costa, da Universidade Católica de Brasí-
lia, tratam do tema “aids e conjugalidade: o desafio de com(viver)”.
Descrevem novas formas de composição conjugal, como os casais so-
rodiferentes, e discutem o impacto da aids para a conjugalidade, para
enfim propor os conceitos de sorodiferente em lugar de sorodiscordan-
te, a partir da literatura francesa sobre o tema.
Rosemary Feltham, da Unidade Hospitalar de Pesquisa, Ensino
e Cuidados sobre Aids de Montreal/Canadá, e Sylvie Savard, do Mi-
nistério de Saúde e Serviços Sociais do Quebec/Canadá, estudam a
contratransferência dos interventores e voluntários que atuam junto
a pessoas vivendo com HIV ou aids. Inicialmente, estabelecem vín-
culos entre as reações contratransferenciais e as emoções, para depois
discutir as motivações em jogo nessas relações. Tal discussão é im-
portante para avaliar, sob o ponto de vista psicológico, a qualidade dos
cuidados, serviços e do bem-estar das pessoas ligadas direta ou indi-
retamente às angústias originadas pela aids.
Por fim, algumas comunicações complementam essa edição.
Luiz Mott, da Universidade Federal da Bahia e do Grupo Gay da
Bahia, analisa um dos aspectos mais delicados e polêmicos decorren-
tes da epidemia da aids: a suposta transmissão intencional do HIV por
pessoas portadoras dessa síndrome, e o faz com base em meia centena
de notícias divulgadas na imprensa. Seu objetivo, com esta análise, é
auxiliar legisladores, entidades governamentais e organizações não-
governamentais a encontrar soluções mais justas e adequadas para en-
frentar as preocupantes e dramáticas situações relatadas pela mídia.
Mauro Mendes Dias, da Escola de Psicanálise de Campinas, sustenta,
a partir da prática psicanalítica, que o reconhecimento do desejo in-
consciente revelado pelo portador do vírus HIV é um fator importante
no avanço da doença. Assim, considera que seja também dada igual
importância a essa dimensão nos processos clínicos e terapêuticos re-
lacionados à presença da aids, especialmente no que se refere à indis-
sociabilidade da morte com a vida.
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Sumário
A Palha das Palavras e o Grão das Coisas
The Straw of Words and the Grain of Things
MÁRCIO APARECIDO MARIGUELA & EDSON OLIVARI CASTRO 9

Aids e Religião: aproximações ao tema


Aids and Religion: approaches to the theme
TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO 21

Estigmas da Aids: em busca da cura


The stigmas of Aids: in search of a cure
ROSANA DE LIMA SOARES 41

Articulações entre Governo e Sociedade Civil:


um diferencial na resposta brasileira à aids
Relationship Between the Government and the
Civil Society: a differential in the
Brazilian response to aids
CRISTINA CÂMARA 57

A Questão da Adesão: os desafios impostos


pela aids no Brasil e as respostas do governo,
de pessoas e da sociedade
Challenges Imposed by the Aids Epidemic in Brazil,
and Responses from the Government, PLWA
(people living with HIV/aids) and Society: the issue
of adherence to HIV Treatment
MARCLEI DA SILVA GUIMARÃES & JUAN CARLOS RAXACH 69

Construção de Identidade em um Espaço


Comunicativo: a experiência
do Grupo Pela Vidda
Identity Construction in a Communicative Space:
the Grupo Pela Vidda’s experience
LARISSA MAUÉS PELÚCIO SILVA 91

Uma Experiência de Desnaturalização da Morte


no Contexto da Aids: a clínica do acontecimento
An Experience of Denaturalization of Death in the
Context of Aids: the clinic of an event
VERA VITAL BRASIL 109

Aids e Conjugalidade: o desafio de con(viver)


Aids and Conjugality: the challenge of living together
LARISSA POLEJACK & LIANA FORTUNATO COSTA 131
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Sumário Reflexões sobre a Contratransferência


dos Interventores e dos Voluntários que
Trabalham com Pessoas Vivendo com HIV ou Aids
Reflections on the Countertransference of
Caretakers and Volunteers who Work with

...............................
Comunicações
People Living with HIV or Aids
ROSEMARY FELTHAM & SYLVIE SAVARD 141

A Transmissão Dolosa do HIV -Aids:


relatos na imprensa brasileira
The Criminal Transmission of HIV-Aids:
accounts from the Brazilian press
LUIZ MOTT 157

AIDS
/
Aids/
MAURO MENDES DIAS 175

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 181

NÚMEROS ANTERIORES 187

NOSSOS CONSULTORES 2002 189


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A Palha das Palavras


e o Grão das Coisas
THE STRAW OF WORDS AND
THE GRAIN OF THINGS
Resumo Partindo da noção de discurso apresentada por Michel Foucault, procu-
rou-se demonstrar a construção da aids pelo discurso médico que, de fatores mul-
ticausais, passou a designar o vírus HIV como agente etiológico. Buscou-se avaliar
a extensão dessa mudança nas categorias nosográficas que definiram os conceitos
de grupo de risco, comportamento de risco e vulnerabilidade. O artigo sustenta que
a noção de grupo de risco foi responsável pela representação subjetiva e social da EDSON OLIVARI
aids e serviu para transformá-la em epidemia. Argumenta a potência de tal repre- DE CASTRO
sentação como impedimento para a eficácia nas campanhas de prevenção, dadas Faculdade de Psicologia
as particularidades de nossa cultura. Conclui apontando que a designação atual da da UNIMEP
aids como infecção crônica controlável pode servir como estratégia de prevenção [email protected]
e pesquisas transdisciplinares.

Palavras-chave FATORES MULTICAUSAIS – GRUPO DE RISCO – REPRESENTAÇÃO MÁRCIO APARECIDO


SOCIAL – TRANSDISCIPLINARIDADE.
MARIGUELA
Faculdade de Filosofia,
História e Letras da UNIMEP
Abstract Based on the notion of discourse presented by Michel Foucault, this paper [email protected]
attempts to demonstrate the construction of aids through the medical discourse that
began to designate the HIV virus as an ethiological agent, instead of coming from mul-
ticausal factors. It sought to evaluate the extension of such change in the nosographic
categories that defined the concepts of risk group, risk behavior and vulnerability. The
article sustains that the notion of risk group was responsible for the subjective and so-
cial representation of aids and for its changing into an epidemic. It pleads that the po-
wer of such representation was an impediment for the prevention campaigns’ effec-
tiveness, due to the particularities of the Brazilian culture. It concludes by pointing
out that the present designation of aids as a controllable chronic infection can serve
as a prevention strategy and also to the transdisciplinary researches.

Keywords MULTICAUSAL FACTORS – RISK GROUP – SOCIAL REPRESENTATION –


TRANSDISCIPLINARITY.

impulso nº 32 9
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Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a palavra que marca e significa a


coisa: não faz parte dela, a ela não se incorpora; é um acessório que se
acresce, por fora.
MICHEL DE MONTAIGNE

A
ids é a sigla, em inglês, que corresponde a síndrome da imu-
nodeficiência adquirida, em português. O termo foi se in-
corporando numa realidade nosográfica e passou a designar
doença, epidemia, morte, culpa, castigo, servindo como es-
teira para a edificação de preconceitos, que identificam para
discriminar, estigmatizar, segregar, perseguir, excluir.
Como sigla, aids passou por um processo de condensa-
ção, tornando-se, talvez, um conceito, em todo caso
igualmente produtor de discursos. Michel Foucault, em
sua aula inaugural no Collège de France, apresentou a hipótese de que
“em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo contro-
lada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de proce-
dimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialida-
de”.1 Máquina que põe em movimento discursos e estratégias de inter-
venção políticas, econômicas, sociológicas, psicológicas, religiosas, esté-
ticas, médicas etc., produzindo conexões inusitadas nunca antes tão visí-
veis.
Não estamos, portanto, no campo do apolítico e da neutralidade
asséptica. Basta lembrarmos as peripécias mais estapafúrdias que já se dis-
se e se fez em nome de tal neutralidade que, por ter surgido desafiando
nosso saber disciplinar, foi na qualidade de “estranheza”, de algo da or-
dem do “sinistro” – como diria Freud, o Outro da razão –, que sobreveio.
E surgiu colocando à mostra nossa miséria ética – o “narcisismo das pe-
quenas diferenças” sempre em voga –, bem como nosso apego desmedi-
do e mesquinho a crenças que nos servem de escudo para encararmos a
vida no que ela tem de imprevisível, incontrolável e contagiante!2
Procuraremos mostrar que as referências históricas da emergência
da aids como epidemia foram determinantes para o estado atual da ques-
tão na nossa cultura. Partindo da distinção estabelecida por Foucault en-
tre palavra e coisa, argumentaremos que a construção de uma etiologia de

1 FOUCAULT, 1996, pp. 8-9.


2 Sem querer esgotá-las, arrolemos algumas dessas peripécias: 1. as primeiras hipóteses, no início da década de 80,
de que a aids teria surgido na África, proveniente do intercurso sexual de um negro com um macaco! Coisa de
degenerado, preto, pobre, sujo e anormal... Enfim, um verdadeiro hardcore terceiro-mundista; 2. como ocorreu
com a cólera, a varíola e as demais epidemias dos séculos passados, associou-se a doença a “castigo” de Deus e a
“vingança” da natureza, conseqüência da decadência moral (“peste gay”) e licenciosidade geral que discriminava
populações transgressoras (drogadictos, viciados, homossexuais) e que, além de tudo, ainda tornava “vítimas”
pessoas inocentemente fracas (os hemofílicos); 3. com isso, além de espalhar-se um moralismo etnocêntrico-
naturalista-normalizador e obrigar a hipocrisia oficial a reconhecer na mídia o problema da drogadicção e do des-
cuido do serviço público de saúde, o individualismo exacerbou-se, já que alguns passaram a armazenar o próprio
sangue, e os doadores escafederam-se com medo do teste e das desnecessárias conseqüências que dele advinham:
não bastasse a infecção, ainda se perdia o emprego, os amigos etc.; 4. e, o pior de tudo isso, é que enquanto se des-
perdiçavam vidas, tempo e dinheiro, a obtusidade do raciocínio predominante deixou de questionar a cultura, o
preconceito, e expôs uma parte da população que ela considerava imune: mulheres e crianças.

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base causalista fechou acordos científicos, defi- segundo, ao fator etiológico. O nome aids foi um
nindo um discurso hegemônico que vigora até dos termos adotado numa longa linha, que vai da
hoje. pneumonia por pneumocystis carinii, em homos-
sexuais previamente saudáveis, até a infecção pelo
II HIV. Essa linha pode ser demarcada no ano de
Como nome, aids designa um conjunto de 1981, quando um órgão governamental america-
elementos que se estruturam em níveis distintos. no anunciou uma nova doença – sem nome ainda
Na literatura médica, nomeia uma constelação – que atacava homens que tinham em comum a
patológica na órbita de ação de um vírus identi- prática de relações sexuais com outros homens
ficado pela sigla HIV. A estrutura do discurso mé- ou o uso contínuo de drogas injetáveis. A nova
dico sustenta-se na lógica da causalidade, sendo doença debilitava o sistema imunológico de tal
justamente esse aspecto o que lhe confere o grau forma que levava o paciente a óbito em curto pe-
de cientificidade. Através do mapeamento dos ríodo de tempo. Os sintomas de imunodepressão
sintomas relacionados à deficiência do sistema foram identificados pelo modelo triangular:
imunológico, buscou-se identificar o agente agente-hospedeiro-meio ambiente. Inicialmente
etiológico que serviria como modelo explicativo o discurso médico apontava para fatores multi-
de todo quadro clínico e das possíveis intervenções causais, posteriormente substituídos pela identi-
no campo do discurso higienista.3 ficação de um único fator etiológico: o vírus HIV.
Mas uma história bem sistematizada da Agosto de 1982 pode ser considerado um
construção do discurso etiológico sobre a aids marco histórico, pois a revista americana Science
pode ser conhecida através da pesquisa realizada, publica a seguinte manchete: “Nova doença deixa
em 1994, por Kenneth Camargo Jr.4 Trata-se de perplexa a comunidade médica”. Com tal notícia,
um importante registro histórico que tem como a aids ganhou acesso aos meios de comunicação.
objetivo descrever o processo de construção, Até então, era um assunto veiculado apenas pelas
pelo saber médico, de categorias diagnósticas. revistas especializadas. Começa a construção de
Para o autor, aids é uma construção do discurso tabelas para diagnosticar as fases de evolução da
médico e desvelar os acordos conceituais e meto- doença, empregadas desde o aparecimento do
dológicos dessa construção é uma tarefa necessá- sarcoma de Kaposi e da pneumocistose, até as
ria para a compreensão das representações sociais chamadas infecções oportunistas. Essa tabela ini-
em torno da síndrome. cial definia o quadro nosográfico da aids. Serviu,
Da obra citada, recortamos dois argumen- por um lado, como instrumento do trabalho clí-
tos que consideramos de grande relevância: o pri- nico e, por outro, com ele buscava-se demarcar a
meiro diz respeito à matriz histórica da doença; o hipótese, que virá predominar, da etiologia viral.
No final de 1983, o Centro de Controle e
3 É sempre bom lembrar que, muito embora o discurso hegemônico
atual seja da causalidade do vírus HIV como agente etiológico da aids,
Diagnóstico, órgão governamental americano,
há vozes dissonantes: Peter Duesberg, biólogo molecular da Universi- informa que a etiologia da aids permanecia des-
dade da Califórnia, em Berkeley, EUA, sustenta desde 1987 que a rela-
ção HIV/aids está totalmente equivocada. Duesberg tornou-se uma
conhecida, mas que as evidências epidemiológi-
espécie de porta-voz do Grupo para a Reavaliação Científica da Hipó- cas sugeriam uma causa infecciosa. Se a imuno-
tese HIV/Aids. Denominados pela mídia como “os rebeldes da aids”, o
grupo conta atualmente com mais de 600 pesquisadores da área de bio-
deficiência é adquirida, seu agente causador só
logia molecular. Especialistas em virologia, esses pesquisadores afir- poderia ser “contraído”. Sabia-se, até então, que
mam que não há evidências suficientes para atribuir a síndrome ao
vírus HIV. Essas vozes ganharam força na 14.ª Conferência Internacio-
os sintomas dessa síndrome estavam relaciona-
nal sobre Aids, realizada em Durban, na África do Sul (jul./00). Na dos aos aspectos comportamentais. E isso levou à
época, o presidente sul africano Thabo Mbeki afirmou que seu país
não iria fornecer o coquetel anti-HIV porque concordava com a hipó-
caracterização da aids como doença dos quatro
tese de não causalidade entre HIV/aids. A reação da comunidade cientí- Hs: homossexuais, hemofílicos, haitianos e hero-
fica internacional foi imediata: uma declaração assinada por mais de 5
mil cientistas de 80 países reafirmando a tese de que o HIV causa a aids.
inômanos. Camargo Jr. chama a atenção para o
4 Col. História Social da Aids. fato de que alguns ainda acrescentavam um quin-

impulso nº 32 11
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to H: hookers (prostitutas). Contudo, mesmo as- transdisciplinar pudesse ocorrer desde o início e
sim, a hipótese da etiologia infecciosa viral adqui- com maior eficácia.
riu predominância sobre a dos fatores multicausais Resgatar o significante síndrome que está
e tem início a caçada ao vírus causador da aids. contido no nome aids pode ser uma estratégia de
Em maio do ano seguinte, a revista Science combate aos discursos universalizantes e totalitá-
publica cinco artigos que convergiam para sus- rios que insistem em designar uma substância
tentar a hipótese do agente viral. Com argumen- pelo nome e denegam a máxima do filósofo re-
tos derivados da microbiologia celular e com nascentista, em epígrafe, insistentemente a nos
técnicas laboratoriais avançadas, identifica-se um lembrar que o nome é um agregado que marca e
tipo de vírus pertencente à classe dos retrovírus: significa a coisa: é, portanto, uma construção do
HTLV-III (Human T-Leukemia Virus). A classe discurso. Se abordarmos a aids como síndrome,
dos “retrovírus tem esse nome porque seu código poderemos apreender as múltiplas relações que
genético estaria contido numa molécula de RNA, atravessam os sujeitos, de tal modo que a questão
que geraria cópias de DNA após infectar um hos- da infecção viral e a da destruição do sistema imu-
nológico possam ser recolocadas juntamente e a
pedeiro, num processo inverso ao que ocorreria
partir dos fatores psíquicos, das condições sociais
com todos os outros seres vivos, em que o RNA
e do regime de valores morais, nos quais estamos
seria gerado a partir do DNA; daí o prefixo retro”.5
todos inseridos.
Em resumo, no Cecil Textbook of Medicine
Nos dias atuais há uma tendência a desig-
– considerado uma espécie de bíblia dos médicos nar a aids como infecção crônica controlável.
– de 1985 aparece, pela primeira vez, a definição Isso certamente implica uma nova abordagem,
de aids como uma doença causada por um agente ainda não avaliada em toda sua extensão no âm-
viral (HTLV-III) que segue um curso inexorável e bito da representação subjetiva. Mas tem-se bus-
fatal. De lá para cá, o processo de construção dis- cado fazer frente aos discursos estigmatizantes,
cursiva sobre ela seguiu “duas direções que se in- inserindo o paciente de aids nas séries de outros
fluenciam mutuamente: a caracterização clínico- pacientes crônicos. Essa estratégia pode ser eficaz
epidemiológica e os estudos biológicos sobre o para proporcionar novas formas de subjetivação
vírus”.6 da síndrome.
Entretanto, devemos estar atentos ao mo-
III mento em que ela surge, para que sua potência de
Pelo exposto, podemos reconhecer que o enfrentamento não seja neutralizada: nós vive-
discurso médico possui matrizes históricas e per- mos um período cultural ímpar, no qual também
corre um campo epistemológico no qual os cha- a experiência do corpo está transformada. Se até
mados múltiplos fatores causais foram sendo subs- pouco tempo atrás o corpo era vivenciado como
tituídos por uma única causa: a infecção pelo ví- marca da finitude e lugar do desejo, trazendo em
rus HIV. Assim, se não podemos negar a relação si a experiência da necessidade – e nada disso de-
de causalidade única que sustentou a história so- pendia de nossa ação, pelo contrário, isso é que
cial da aids, também não podemos deixar de determinava tal ação –, hoje o corpo começa a ha-
constatar que a designação do quadro sintomato- bitar o campo de nossa liberdade.
lógico como síndrome foi rechaçada: dos fatores As tecnologias biomédicas alteraram nossa
multicausais que permitiam uma abordagem mais experiência subjetiva: pensemos nos transplantes,
ampla, passou-se para uma relação unívoca HIV/ nas próteses, nas cirurgias plásticas, na engenha-
ria genética! Para ficarmos apenas com um exem-
aids, o que, a nosso ver, impediu que o trabalho
plo, lembremos que anteriormente, um sujeito
5 CAMARGO JR., 1994, p. 174.
com inclinações homoeróticas se perguntava so-
6 Ibid., p. 82. bre a verdade de seu desejo e, de quebra, questio-

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nava o modelo binário naturalizado de identidade Além disso, também é verdade, num outro
(homem/mulher) e gênero (masculino/femini- nível, que passamos do capitalismo de produção,
no) – ou seja, o desejo encarnado no corpo produ- no qual o corpo entrava como força de trabalho,
zia pensamento; atualmente, o “transexual” adap- para um capitalismo de superprodução, para o
ta seu corpo – recorrendo à biotecnologia – à qual o corpo conta, no mercado, como capacida-
identidade que o pensamento predominante pro- de de consumir e ser consumido – haja vista as
duziu.7 imagens de belo e jovem a que tentamos nos
De outro lado, essa nova abordagem está comparar, bem como os fenômenos de “barriga
servindo para explicar o aumento de infecção en- de aluguel”, “banco de órgãos” etc.
tre jovens que praticam sexo com parceiros do Assim, se o consumo deve ser pensado
mesmo sexo e sobretudo entre os adolescentes como algo que causa prazer, e não que preencha
em geral. O argumento é o seguinte: o período uma necessidade,8 vende-se, o tempo todo, a pos-
catastrófico já passou. A nova geração sexual- sibilidade de se permanecer vivo e belo por mais
mente ativa não viveu o tempo em que não havia tempo (não por acaso as indústrias que mais cres-
medicamentos disponíveis e no qual o quadro clí- ceram nos últimos tempos foram a farmacêutica
nico do paciente de aids apresentava os sinais vi- e a cosmética). E tudo isso envolto numa certa
síveis de definhamento progressivo. Aceitar a aura que faz com que o sujeito se sinta “natural”,
premissa de que a aids é uma infecção crônica como um corpo que consome o suficiente duran-
controlável implicaria um relaxamento nas práti- te muitos anos, já que, chamado a querer mais vi-
cas de prevenção, pois a crença nos medicamen- da, o indivíduo é convocado a aderir a uma dívida
tos anti-retrovirais deixaria o sujeito mais livre infinita porque deve, por exemplo, estar em “for-
dos fantasmas da morte. mação permanente” e alcançar uma vida com
Contudo, na forma de contágio pelo HIV “qualidade total”, a não ser que se lhe sobrevenha
sempre houve uma condição muito particular: o o infortúnio de uma “morte prematura” (!?) –
contágio existe, mas a pessoa não está necessaria- designação mais do que conveniente para uma
mente doente e poderá levar anos até descobrir- cultura que leva o corpo a habitar o tal espaço de
se infectada, o que poderá fazê-la, aí sim, viver liberdade que apontamos acima.
cada dia com a consciência – já que se está diante
de um saber – de que o risco foi assumido e de IV
que cada passo tem conseqüências. A utilização do coquetel anti-retroviral inau-
Por isso, convém avaliar o alcance daquele gurou uma nova fase. Seu anúncio público ocorreu
raciocínio simplificado que explicaria equivoca- na 11.ª Conferência Mundial de Aids, realizada em
damente o crescimento numérico de infecções Vancouver (Canadá), em 1996. Na época, a im-
por uma nova hipótese designativa. Não nos pa- prensa divulgava diariamente notícias informan-
rece que o relaxamento dos cuidados com a pre- do o aparecimento de uma forma de controle e
servação esteja ligado à nova forma de conceber a administração da aids: um coquetel de medica-
aids – embora seja fato que não vemos mais aque- mentos era capaz de bloquear a multiplicação do
las imagens angustiantes dos pacientes em estado vírus e inibir seus efeitos de destruição do sistema
de decomposição orgânica –, mas sim à ilusão de imunológico. Abriram-se novas esperanças: a
que podemos fazer qualquer coisa com nosso aids passou a ser designada como uma infecção
corpo. crônica controlável. Na ocasião o jornal Folha de
S.Paulo publicou extensa matéria sobre os cha-
7 O caso mais extremo dessa prática foi noticiado há algum tempo pela
mídia: uma mulher lutou na justiça americana para tornar-se homem, 8 O que só recentemente parece ter sido percebido pela Associação
pois não gostava de mulheres e, portanto, do seu corpo de mulher – Psiquiátrica Americana, com a postulação da “descoberta” de uma
queria tornar-se homem para continuar a ter relações sexuais e amoro- “nova doença” denominada “credit card addiction”, para a qual, inclu-
sas com homens! sive, já há medicamento disponível no mercado (!?).

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mados “ressuscitados”: pacientes em estado ter- No Brasil, há duas linhas centrais que de-
minal que reanimaram-se e retomaram o cotidia- marcam o cenário atual das políticas públicas para
no de suas vidas. O objetivo era caracterizar a enfrentar a epidemia da aids: as campanhas de
nova realidade da aids e das pessoas que convi- prevenção à infecção pelo vírus HIV, por um lado,
vem com a infecção pelo HIV. e, por outro, a estratégia adotada pelo governo
Se, na mesma Conferência, a Organização para combater a aids através de distribuição gra-
Mundial de Saúde (OMS) previa que no ano 2000 tuita de medicamentos aos pacientes soropositi-
44 milhões de pessoas no planeta estariam conta- vos.
minadas pelo vírus HIV, os dados atuais são ainda Quanto à primeira, os dados revelam que
mais sombrios. No relatório de julho de 2002 da não está havendo eficácia nos propósitos. Se é
UNAIDS (Joint United Nations Programme on verdade que as campanhas públicas para preven-
HIV/Aids), programa da ONU, divulgado na 14.ª ção são muito tímidas, restringindo-se, por
Conferência Internacional de Aids em Barcelona, exemplo, apenas aos períodos de carnaval e Dia
encontram-se as seguintes informações: as doen- Mundial de Luta contra Aids, elas também não
ças relacionadas à aids mataram um número re- conseguem enlaçar definitivamente os sujeitos
corde de 3 milhões de pessoas em 2001 – 2,2 mi- nas mensagens que veiculam, de modo a tê-lo
lhões das quais somente na África –, estando ou- usando preservativo em todas as relações sexuais.
Certamente não é por falta de informação que al-
tras 5 milhões infectadas pelo vírus HIV. Desde
guém, nos dias de hoje, mantém relações sexuais
sua identificação em 1981, a aids fez mais de 20
sem preservativo. Há uma série de elementos
milhões de vítimas fatais e já deixou 14 milhões
simbólicos que precisariam ser considerados.
de órfãos. Atualmente, dos 40 milhões de infec-
Não se trata, então, apenas de fazer a informação
tados, 3 milhões são crianças. Com um diag-
chegar até à população. É preciso também inter-
nóstico numérico tão grave, é ainda mais preocu-
rogar-se sobre as singularidades na recepção da
pante ouvir dos representantes da ONU que a epi-
mensagem. Cada sujeito, cada grupo social escuta
demia de aids está apenas começando!9
de um modo e interpreta segundo suas condições
Como podemos observar pelos dados re- existenciais.
centes, a epidemia se alastra de maneira assom- Para compreender esse aspecto é preciso
brosa e as campanhas de prevenção não estão resgatar alguns elementos históricos que não po-
atingindo seus objetivos. Há certamente diferen- dem ser relegados ao passado. Como vimos, a
tes modos de avaliar a ineficácia de tais campa- emergência da aids no início dos anos 80 foi re-
nhas se levarmos em conta que, atualmente, a lacionada aos fatores comportamentais dos quais
forma maior de transmissão tem sido as relações forjou-se a expressão grupo de risco, de modo a
heterossexuais sem uso do preservativo. Um as- designar que a doença estava restrita a um grupo
pecto, porém, permanece inalterado e nos parece determinado de pessoas com comportamento
um obstáculo, que tem demonstrado ser intrans- moralmente condenáveis: homossexuais e usuá-
ponível para que as mensagens de preservação rios de drogas injetáveis. Essa designação ganhou
possam chegar ao público-alvo: a noção de grupo terreno na mídia e foi determinante e incrivel-
de risco ou comportamento de risco. mente pregnante na construção subjetiva da aids.
A conseqüência tem sido arrasadora: todos
9 Para Peter Piot, diretor executivo da UNAIDS, a aids é uma epidemia
sem precedentes na história da humanidade e ameaça eliminar uma
aqueles que não se reconhecem como pertencen-
geração na África e desestabilizar todo o continente: “De um problema tes a determinado grupo sentem-se imunizados
estritamente médico, a aids transformou-se em um tema relacionado ao
desenvolvimento econômico e social e até mesmo à segurança. O
por antecipação. O raciocínio seria o seguinte:
mundo não pode permitir que um continente inteiro seja desestabili- “como não sou homossexual nem usuário de
zado pela aids. Haverá implicações para todo os demais continentes”,
disse ele em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo (12/jul./2002, Geral/
drogas injetáveis, logo, a aids não me atinge, es-
Saúde, p. A-9). tou imune”. Outro aspecto nefasto que o termo

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grupo de risco produziu foi o preconceito, que, norma na Revolução Industrial, passou-se para a
como uma erva daninha, esparrama-se por todo administração do risco na sociedade globalizada.
campo social, contagiando as relações e criando a A estatística inicia o estudo do desvio à
discriminação e agressividade perversas. norma. Percebeu-se haver regularidade no desvio
No entanto, no início dos anos 90 as esta- de comportamento: ali onde imperava a vontade
tísticas começam a apontar que o vírus da imu- desregrada, aparecia o regular. Começou-se, as-
nodeficiência humana (HIV) não obedece barrei- sim, a pesquisar a freqüência dos divórcios, por
ras morais e o número de mulheres contaminadas exemplo, e a se produzir para os “regularmente
por seus parceiros passou a questionar a expres- desviados”: moda gay, punk etc. A mídia presta-se,
são grupo de risco, que tornou a aids uma doença então, a divulgar pesquisas sobre como, por exem-
dos outros, não comprometendo o sujeito com a plo, “solidão e doenças cardíacas” estão vinculadas:
necessária prática da prevenção.10 A saída foi ten- isto é, passa a importar um hábito e sua conseqüên-
tar substituir grupo de risco por comportamento cia futura, o jogo entre prazer e futuro. Assim, se o
de risco. A ênfase nessa nova expressão passou a futuro, na forma de risco, é o que orienta nossas
ser dada nas campanhas de prevenção que alerta- escolhas, o incerto, o surpreendente e o imprevisível
vam a população em geral, recomendando o uso pareceriam derivar da própria ação humana, não
de preservativo em todas as relações sexuais. O mais do caráter intempestivo próprio da vida!
risco agora foi deslocado para o uso ou não do E como o futuro agora depende da ação,
preservativo. que depende de um ideal a ser alcançado e este,
O estrago, porém, já estava feito: a represen- por sua vez, da própria informação (da mídia,
tação social e, portanto, subjetiva construída pela portanto), a questão passa a ser a gestão do coti-
expressão grupo de risco tinha deixado suas marcas diano, tendo-se em vista os hábitos de vida e os
na maneira de conceber a aids como uma doença riscos que se corre – de poder, ou não, se ver res-
do outro. A noção de comportamento de risco trito em sua capacidade de ter prazer, de consu-
não conseguiu superar o preconceito produzido mir, de atingir o ideal. Some-se a esse individua-
no imaginário social e, o que é pior, criou uma su- lismo o apego ao funcionamento identitário de
posta proteção para aqueles que não se identificam nossa cultura e temos, então, a designação “por-
como homossexual ou usuário de drogas. tador”, exercendo aí um papel coadjuvante, na
medida em que tem servido tanto ao discurso
Isso não nos parece sem razão, pois, para
médico quanto ao da mídia para a promoção de
além daquele diagnóstico estatístico de pro-
diversos outros agrupamentos contemporâneos
porções catastróficas, note-se ainda que temos
que garantem uma certa abrangência às notícias,
aqui uma outra questão de base a ser mencionada,
aos produtos, ao consumível.11
para que possamos situar apropriadamente o pro-
blema. Os parâmetros historicamente delimita-
dores de nossa ação humana, e que assim lhe dão
V
sentido, mudaram: da administração da natureza Os conceitos grupo de risco e comporta-
e do pecado na Idade Média, da disciplina e da mento de risco surgiram, no discurso médico, do
cruzamento entre o diagnóstico clínico de infec-
10 Uma pesquisa realizada pelo psicanalista Jurandir Freire Costa (cf. ções oportunistas – aquelas que aparecem em de-
1992) revelou que apenas o grupo de homens homoeroticamente incli- corrência da falência do sistema imunológico – e
nados, que vive suas relações amorosas clandestinamente (porque a
maioria é casada), expõe-se ao risco do contágio: aqueles que, como se
costuma dizer, são “assumidos” e ainda os que militam nos movimen- 11 Já se tratava a obesidade, por exemplo, como uma “doença”, por
tos das minorias identitárias têm uma atitude bem mais consciente e portar maiores riscos de enfarto – na verdade, um estado durável de
cuidadosa. Já a pesquisa de COSTA com adolescentes e adultos jovens quase doença implicando a necessidade de cuidado infinito. Assim,
heteroeroticamente inclinados (cf. 1995) concluiu que estes persistem teens, diabéticos, obesos, fumantes, sedentários etc., já eram, cada um a
desaprovando, reprovando e condenando as práticas sexuais minoritá- seu modo, grupos portadores de risco que, submetidos ao regime do
rias, em nome de uma vaga “normalidade natural”, baseada no que é “narcisismo das pequenas diferenças”, não se reconhecem solidários de
socialmente tido como desejável. um mesmo destino.

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da categorização de comportamentos sociais se- tos Magic anônimos existem no cotidiano? Qual
gundo os parâmetros culturais delineados acima. a representação que fazem da aids? Responder a
Como ocorreu a passagem de um conceito essas perguntas é mapear a representação social
ao outro? Estatisticamente, pelo crescente núme- da aids e condição necessária para políticas públi-
ro de mulheres infectadas que começaram a cons- cas de prevenção. O trabalho educativo com ado-
tar dos dados epidemiológicos. Mas há um outro lescentes e jovens tem revelado que a questão é
aspecto que diz respeito à representação social da deveras oportuna pois, ainda hoje, vigora com
aids. Trata-se do anúncio público feito pelo ex-jo- uma potência assustadora a expressão de grupo
gador de basquete norte-americano Magic Jonh- de risco.
son no final de 1991. Numa frase, o atleta revelou Como Freud demonstrou, a sexualidade
o significante do discurso médico sobre aids na está fundada numa identidade imaginária das di-
década de 80: “Agora estamos falando sobre a ferenças. Os conceitos hetero, homo ou bissexua-
vida e a morte... para mim, a aids era uma doença lidade são representações lingüísticas de práticas
de gays e usuários de drogas, não de uma pessoa sexuais definidas segundo modelos padronizados
como eu”.12 A revelação pública de ídolo ameri- de normalidade, numa dada cultura, num deter-
cano mostrou que o vírus HIV havia atingido minado momento da história. Fundada no co-
aqueles que se reconhecem como heterossexuais. nhecimento científico de “natureza” humana, a
Ao revelar-se infectado pelo vírus HIV, Ma- sociedade moderna erigiu um código normativo
gic Johnson dá início a um processo que rompe para o comportamento dos seres humanos, se-
os consensos no discurso médico e midiático. De gundo modelos extraídos da observação dos ani-
tal modo que a história social da aids pode ser di- mais – diga-se de passagem, muito pouco aguça-
vidida entre antes e depois do anúncio público da, como bem prova a etologia contemporânea.
do ídolo americano.13 O que aconteceu depois As categorias de normal e patológico foram
desse fato? A primeira saída foi identificar os construídas segundo esses modelos. A biologia
indivíduos que tinham comportamento bissexual, tornou-se progressivamente o paradigma dos có-
pois o contágio poderia ter ocorrido pela relação digos normativos que fixaram padrões de com-
com o grupo de risco. Novamente o que está em portamento sexual, de disciplina corporal, cons-
jogo são as categorias normativas do comporta- truindo, assim, as identidades homem e mulher.
mento sexual.14 Como indicado por Foucault, a importân-
Qual a representação contida na afirmação cia assumida pelas identidades sexuais relaciona-
do atleta, para quem a aids seria “uma doença de se a um campo de disputa política, pois visam à
gays e de usuários de drogas”, não de uma pessoa domesticação dos corpos. Tal posição implica re-
como ele? Não pertencendo ao grupo de risco, ele conhecer que, de um lado, o sexo “faz parte das
sentia-se imune à infecção pelo vírus HIV. Quan- disciplinas do corpo: adestramento, intensifica-
ção e distribuição das forças, ajustamento e eco-
12 Publicada no Brasil pelo jornal Folha de S.Paulo, 24/nov./91. nomia das energias. Do outro, o sexo pertence à
13 Na época, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, esteve no pro-
grama de entrevistas do Jô Soares e expressou seu contentamento pela
regulação das populações, por todos os efeitos
coragem que o atleta americano teve ao revelar sua condição, reconhe- globais que a induz”.15
cendo a grande contribuição que estava sendo dada para se descons-
truir a noção de grupo de risco. Betinho afirmou que gostaria de enviar Com esse argumento, o autor sustenta que
uma corbelha de flores a Magic, em sinal de gratidão por seu gesto; desde o século XVIII a sociedade ocidental assistiu
segundo ele, a história da aids seria contada de outra maneira a partir de
então. Bem sabemos que, entre nós, Betinho foi um incansável guer- a uma explosão discursiva sobre as práticas sexuais,
reiro na luta contra os estigmas e os preconceitos.
14 Vale registrar que a mídia começou a especular sobre a vida sexual
construindo sexualidades modelares (identidades
do atleta: “Seria Magic um homossexual enrustido?”, “Teria uma prá- acima referidas). O sexo passou a ser regulado
tica bissexual?” e “Seria ele usuário de drogas injetáveis?”. Só então por discursos de diferentes matizes: médico-psi-
outras categorias de identidade sexual – bissexuais e heterossexuais –
foram incluídas nos gráficos estatísticos que serviam como indicadores
do avanço da aids. 15 FOUCAULT, 1984, p. 136.

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quiátrico, higienista, econômico etc. Tornou-se vidade, pois há muito a cultura ocidental abomina
um problema de saúde pública: converteu-se em o caos, a falta de absoluto controle, o desamparo
problema político. O Estado adotou práticas de radical a que está, inelutavelmente, exposta a hu-
vigilância sanitária, de controle populacional: en- manidade.
tre o Estado e o indivíduo, o sexo passou a ser Uma nova tentativa de superação dos im-
objeto de disputa, de análise e o investiram de passes produzidos pelo conceito grupo de risco
injunções. Assim, conclui Foucault:
foi lançada para o século XXI: vulnerabilidade.
Insere-se [o sexo], simultaneamente, nos Com tal palavra, pretende-se despertar a atenção
dois registros; dá lugar a vigilâncias infinite- da população em geral, e dos jovens em particu-
simais, a controles constantes, a ordenações lar, para o fato de que todos – independentemen-
espaciais de extrema meticulosidade, a exa- te de sua pertença identitária, sua condição social
mes médicos ou psicológicos infinitos, a to-
e suas práticas sexuais – estão vulneráveis à infec-
dos um micropoder sobre o corpo; mas,
também, dá margem a medidas maciças, a
ção pelo HIV. A vulnerabilidade é a situação que
estimativas estatísticas, a intervenções que requer e convoca para práticas de prevenção e
visam todo o corpo social ou grupos toma- permite, assim, que todos sejam incluídos nos
dos globalmente. O sexo é acesso, ao mes- problemas que a epidemia de aids trouxe para a
mo tempo, à vida do corpo e à vida da es- vida amorosa. As questões, porém, permanecem:
pécie. Servimo-nos dele como matriz das um novo nome pode superar a representação
disciplinas e como princípio das regula-
subjetiva que a noção grupo de risco estabeleceu?
ções.16
Como incluir, efetivamente, o tema da vulnerabi-
lidade nas campanhas de educação pública que vi-
VI sam incentivar o uso de preservativo em todas as
O fenômeno da epidemia de aids tornou-se relações sexuais?
o lugar privilegiado de controle e vigilância dos
Um instigante trabalho de pesquisa foi rea-
corpos sexuados. Comentando os artigos publi-
lizado por Rosana de Lima Soares com o objetivo
cados em revistas médicas de 1987, Camargo Jr.
demonstrou que a normalização da sexualidade de investigar a construção do discurso sobre a
continuava deixando marcas em vários traba- aids pelo jornal Folha de S.Paulo. A questão dos
lhos.17 Os acordos silenciosos nos dispositivos equívocos que o conceito grupo de risco produziu
de saber que foram sendo edificados em torno da no controle efetivo da aids mereceu atenção da
aids permaneceram solidários com o discurso bio- autora ao constatar a emergência do pânico que a
lógico que explica os comportamentos sexuais mídia criou em torno do binômio aids/morte.
pelas identidades normativas.18
18 Tomemos uma tendência atual para ilustrar tais acordos silenciosos.
A representação social da aids como uma Hoje em dia tenta-se tornar “politicamente correta” e freqüente, em
doença que leva à morte aqueles que têm uma textos e apresentações em congressos sobre DST/aids, a expressão HSH
– homens que fazem sexo com homens. A intenção parece ser fugir ao
vida desregrada, desordenada na esfera da sexua- preconceito que vem junto da denominação homossexual. Temos,
lidade, tem servido para edificar discursos morais porém, a impressão de que se ilude a questão, pois qual é a noção de
sexo implícita numa formulação que discrimina a homossexualidade
pautados em argumentos científicos. Há uma masculina da feminina? Seria aquela apregoada pelo ex-presidente
síndrome sexual representada pela aids. Na de- americano, seu charuto e sua estagiária, ou seja, “só há relação sexual se
houver penetração”? Será por isso que a expressão MSM – mulheres
sordem afetiva dos corpos criou-se um represen- que fazem sexo com mulheres – não aparece? Ou o argumento é, de
tante da morte para ordenar as práticas sexuais – novo, apenas estatístico: a freqüência de contaminações via fluidos
femininos é nula, não significativa, improvável ou não registrada? De
o que, rigorosamente, nem chega a ser uma no- todo modo, sabemos que a homossexualidade feminina, historica-
mente, não foi alvo de tantas injunções quanto a masculina. Eis, então,
16 Ibid., pp. 136-137. um viés “naturalizante” que se insinua no discurso e que colabora para
17 CAMARGO JR., 1994. a manutenção do “estado das coisas” em relação à sexualidade humana.

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Como sinônimo de medo, vergonha e pecado, a pesquisas internacionais: aids é uma infecção
infecção pelo vírus HIV condenou em vida milha- crônica controlável. Essa premissa abre inúmeras
res de pessoas a viverem à margem. possibilidades que ainda não foram apreendidas
Como mencionamos, o número de mu- pela mídia e nem apareceram nas campanhas de
lheres e adolescentes infectados pelo vírus in- prevenção.
troduziu a aids no cotidiano familiar: “No início As crescentes opções de tratamento, atra-
dos anos 90, era difícil não conhecer alguém que vés de múltiplas combinações com os medica-
não conhecesse alguém com aids. A doença foi mentos existentes, permitem resgatar o sentido
se aproximando, as pessoas começaram a se dar etimológico da palavra síndrome. A aids é uma
conta de que poderia ser com elas”.19 É justa- síndrome, o nome de um estado em que diferen-
mente nesse aspecto que a questão se reveste de tes fatores concorrem para debilitar o sistema de
importância: a aids ainda hoje é representada
defesa do organismo e assim lançar o indivíduo
como doença do outro. O sujeito não se inclui
num quadro patológico. O rompimento dos la-
como passível de contrair o vírus HIV e, conse-
ços que mantêm a saúde e instauram a doença é
qüentemente, de desenvolver a Síndrome. Essa
não inclusão traz determinantes fundamentais ocasionado por múltiplas causas. O vírus HIV é
na forma como tem ocorrido a expansão do ví- apenas uma delas. Se é possível, através de medi-
rus. camentos, controlar sua reprodução e destruição
Soares observou que das células de defesa, isso torna a aids uma infec-
ção crônica controlável.
é interessante notar que as mídias não divul- Romper o binômio aids/MORTE, permitin-
garam os conceitos de “comportamento de do-nos superar a mediocridade des-subjetivada
risco” e “vulnerabilidade” com a mesma in-
que de início se espalhou, é o desafio que se apre-
tensidade como divulgaram o conceito
“grupo de risco”, e nem a própria sociedade senta para o trabalho educativo de prevenção e a
os incorporou tão largamente. Ainda hoje, aposta nas diferentes formas de (con)viver com a
quando se pensa em prevenção, parece que infecção pelo vírus HIV. Tal ruptura também pos-
a maioria das pessoas se coloca como não sibilita resgatar a hipótese de fatores multicausais
estando inseridas nos chamados “grupos de e assim realizar um trabalho transdisciplinar que
risco” – o que as isentaria de qualquer rela- torne possível a convergência e o entrelaçamento
ção com a aids. Parece ser mais cômodo ex-
cluir-se da história da aids do que incorporá-
de diferentes discursos na abordagem da epide-
la.20 mia da aids e da cultura da qual ela emerge.
Uma das lições que podemos aprender
Para finalizar, a outra estratégia para com- com a aids é justamente sua realidade multiface-
bater a epidemia de aids adotada pelo governo tada e risomática que requer diversas entradas e,
brasileiro, qual seja, a distribuição gratuita de mais, que os olhares se transformem mutuamen-
medicamentos, tem demonstrado resultados
te, se deixem contaminar! Pois, se associamos
mais satisfatórios. A queda de braço que o Mi-
aids/VIDA é porque sabemos que, além de soli-
nistério da Saúde venceu, no caso das leis de pa-
dariedade, essa conjunção tem criado linguagem,
tentes, só foi possível graças ao apoio que rece-
beu dos organismos internacionais. A política de literatura, arte;21 tem inoculado um engajamento
distribuição de medicamentos é, reconhecida- essencial e múltiplas e raras formas de trocar,
mente, um grande marco na história da aids. O contagiar, mobilizar, soerguer...
governo levou a sério as perspectivas atuais das
21 Cf., para ficarmos apenas com alguns exemplos, os livros de Her-
bert Daniel, Anotações à Margem de Viver com Aids, Jean-Claude Ber-
19 SOARES, R.L., 2001, p. 86. nardet, A Doença – uma experiência, e de Susan Sontag, Assim Vivemos
20 Ibid., p. 82. Agora, assim como os CDs de Rita Lee, Paulinho Moska etc.

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SONTAG, S. A Aids e suas Metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Dados dos autores


EDSON OLIVARI CASTRO
Professor, doutor em Psicologia Clínica pela
PUC-SP, psicanalista do núcleo fundador da
Associação Livre – Instituto de Cultura e
Psicanálise – Piracicaba/SP

MARCIO APARECIDO MARIGUELA


Professor, analista membro da
Escola de Psicanálise de Campinas/SP

Recebimento artigo: 17/jul./02


Consultoria: 18/jul./02 a 30/jul./02
Revisão dos autores: 12/ago./02 a 19/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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Aids e Religião:
aproximações ao tema
AIDS AND RELIGION:
APPROACHES TO THE THEME
Resumo O diálogo é o eixo central da presente reflexão. Admitimos que vivemos um
tempo em que os desafios sobre do HIV/aids, em nosso cotidiano, superam as pos-
sibilidades das teologias em acompanhá-los e propor mudanças. As perguntas novas
feitas pela urgência da vida, nos corpos que vivem a companhia da doença e da expe-
riência da soropositividade, exigem um olhar atento que contemple os aspectos reli-
giosos significativos. O caminho percorrido no texto foi o de indagar criticamente so-
bre uma visão religiosa que associa a doença a um castigo divino, e não como uma
contingência da experiência humana. Também tratamos criticamente as concepções
de sexualidade que não acolhem a diversidade de percepções das relações humanas ou
que contemplam relações não hedonistas. A visão teológica, marcada pelo propósito
de revisão dos discursos normativos e culpabilizadores, entrou no debate da temática
contrapondo-se às lógicas de exclusão e sacrifício, projetadas pelo atual sistema de
mercado. Ao enfrentar teologicamente a discussão da aids, o texto problematizou a
visão de uma teologia estagnada e alicerçada em verdades imutáveis, propondo iniciar
algumas revisões, abrindo as portas ao diálogo e recusando-se a afirmar certezas ina-
TÂNIA MARA VIEIRA
baláveis.
SAMPAIO
Palavras-chave CORPO – DOENÇA – SEXUALIDADE – GÊNERO – SISTEMA DE Faculdade de Ciências da
MERCADO – TEOLOGIA. Religião/UNIMEP
[email protected]

Abstract Dialogue is the central focus of the present reflection. We admit that we live
in a time in which the daily challenges of HIV/aids have surpassed the possibilities
offered by theologies to accompany and suggest changes. The new questions that
emerge from the urgency of life within the bodies that live with the disease and the
experience of seropositivity demand an attentive look that contemplates the signifi-
cant religious aspects. The text critically investigates the religious vision that associa-
tes the disease to a divine punishment and not to a contingency of the human expe-
rience. It critically approaches the conceptions of sexuality that do not accept the di-
versity of perceptions of the human relationships, or contemplate non-hedonistic re-
lationships. The theological vision marked by the purpose of reviewing normative
and blaming discourses entered this debate as an opposition to the logic of exclusion
and sacrifice, designed by the present market system. By theologically confronting
the discussion on aids, the text problematizes the vision of a stagnated theology foun-
ded on unchangeable truths and proposes to initiate revisions, thus opening doors to
dialogue and refusing to affirm unshakable certainties.

Keywords BODY – DISEASE – SEXUALITY – GENDER – MARKET SYSTEM – THEOLOGY.

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INTRODUÇÃO

O
compromisso desta reflexão é com o diálogo entre
pessoas que desejam construir suas ações cotidianas
como respostas às exigências e urgências dos corpos
para viverem uma vida digna. Alicerçado no propó-
sito de que todas as pessoas, sem exclusão das pes-
soas soropositivas, não tenham que renunciar ao de-
sejo e ao prazer de viver, é fundamental assumir esse
espaço de diálogo sobre a realidade da aids e seus de-
safios para a religião. O desejado para esse momento é que, antes de pro-
nunciar a palavra, haja a escuta; antes de repreender as reclamações e exi-
gências, haja a acolhida em silêncio; antes de rejeitar tecendo julgamentos,
haja aproximação e carinho. Inaugurem-se: tempos de desejo e desejo de
tempos para aprender com a outra pessoa, para sonhar novos sentidos
para a existência, para afirmar a vida!1
Trata-se de um convite a re-pensar e re-inventar tanto as nossas re-
lações através de sensibilidades e gestos de compromisso solidário, como
também re-pensar e re-inventar a teologia (como discurso humano, so-
bre Deus, que é. Portanto, ato segundo, organizado posteriormente à ex-
periência religiosa vivenciada pelas pessoas em suas distintas histórias de
vida). A tarefa que se apresenta para a teologia é a de enfrentar um diá-
logo acadêmico, no que diz respeito à sua construção de saber nos as-
pectos que refletem diretamente na abordagem do HIV/aids.
Admitindo que a teologia é um conhecimento sistematizado atra-
vés dos códigos de linguagens disponíveis nas culturas, pode-se compre-
ender a pertinência de que esse saber realize processos de re-significação
de suas concepções. Propõe-se, como pressuposto, uma dimensão de
provisoriedade e precariedade nas verdades teológicas como elemento
constitutivo de seu processo histórico-contextual.
A teologia tem diante de si revisões a empreender no diálogo com
outros saberes humanos. As construções de saber são datadas, contex-
tualizadas, sexuadas, racificadas, socialmente classificadas e implicam re-
lações de poder que precisam ser identificadas para desencadear proces-
sos de des-construção e construção. “Produção do saber e exercício do
poder, longe de se constituírem em esferas estanques e separadas, apare-
cem historicamente indissociadas.”2 A correlação evidente entre poder e
saber trará consigo, portanto, a pergunta pelo método de construção do
conhecimento e seus pressupostos básicos.

1 “A teologia desejada, neste contexto concreto, é aquela que, antes de pronunciar a palavra, escuta; antes
de repreender as reclamações e exigências, acolhe em silêncio; antes de rejeitar tecendo julgamentos,
aproxima-se e cala-se. Trata-se de um convite a rever nossos discursos teológicos, marcados pelos dog-
mas e doutrinas, que suprimem, por vezes, a capacidade de fazer novas experiências de Deus, pronunciar
palavras e experimentar gestos de ternura em relação ao outro. Cf. aids: Desafio Pastoral e Solidarie-
dade”. Colégio Episcopal da Igreja Metodista, 1996.
2 NUNES, 1995, p. 10.

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O movimento dinâmico pensado para a plexidade do mundo real, uma ciência que permi-
produção teológica pode ser animado pela tran- te que se viva a criatividade humana como a ex-
sitoriedade que marca diversas problematizações pressão singular de um traço fundamental co-
que começam a surgir no interior de várias ciên- mum a todos os níveis da natureza”.3
cias. Por curioso que possa parecer, não invoco as As noções de instabilidade e caos na obra
novidades em ciências humanas e sociais como de Prigogine apontam para uma nova formulação
balizadoras dessa intenção teórico-metodológica. das leis da natureza “que não mais se assenta em
Agrada-me a desestabilização que ocorre nas úl- certezas, como as leis deterministas, mas avança
timas décadas nas ciências denominadas exatas sobre possibilidades”.4 Na busca de mudanças na
ou da natureza. Suas verdades, construídas e sus- elaboração teológica, com a finalidade de consi-
tentadas no mundo do saber como afirmações derar as atuais questões que o HIV e a aids pro-
imutáveis e absolutas, entraram em processo de põem à nossa contemporaneidade, a expressão
profunda revisão e provisoriedade. do autor “avançar sobre possibilidades” sobressai
As verdades e certezas estão sob “suspeita”, de seu texto e apresenta-se como símbolo propi-
passíveis de interrogações. Não há como afirmar ciador de horizontes. Um tempo de possibilidades
senão provisórias e incertas certezas. A teologia, acolhe o desejo que temos de instaurar perguntas
sendo analisada como organização de saber, terá para a teologia que ajudem a encarar alguns dos
de localizar histórica e culturalmente seus funda- aspectos relevantes ao cotidiano da aids. Selecio-
mentos. Imprescindíveis serão as revisões para namos do universo de questões teológicas perti-
empreender o diálogo com outros saberes huma- nentes ao tema algumas como o imaginário social
nos e responder às questões contemporâneas. da doença e a teologia cristã, as lógicas de exclu-
Pode ajudar à reflexão reconhecer que essa são e sacrifício no mercado mundializado, as ma-
trajetória de construção já é conhecida na história trizes de gênero e suas implicações ao tema e a
da teologia e da formulação de seus dogmas (por própria visão de sexualidade no âmbito religioso
exemplo, eucaristia, cristologia... não foram o que e do imaginário constituído.
são hoje desde sempre, ad-eterno; são constru-
ções datadas, contextualizadas, sexuadas, racifica- AIDS E DOENÇA
das, socialmente classificadas, portanto, histori- O imaginário social da doença
camente demarcadas). na cosmovisão religiosa
Dessa maneira, atuar na prevenção da aids é A aids em seu princípio histórico, a partir
uma possibilidade que desafia todas as pessoas e de 1983, trouxe à luz um repertório de precon-
a sociedade a um processo de denúncia, des-ins- ceitos e estigmatizações que estavam ou adorme-
talação, des-construção daqueles discursos nor- cidas na consciência de muitas pessoas ou silen-
mativos e culpabilizadores do corpo. No âmbito ciadas propositalmente por outras. A constatação
tanto das relações como no da construção do sa- do aparecimento do vírus fez emergir não apenas
ber teológico, a re-visita é necessária. as questões de ordem da saúde, mas trouxe à tona
Entre outros exemplos, destaco o instigan- questões de cunho moral e religioso que pronta-
te título da obra do físico Ilya Prigogine, O Fim mente se organizaram em um discurso normati-
das Certezas. Tempo, caos e as leis da natureza. Tal vo culpabilizador do corpo e suas relações.
proposição assume, no campo do debate trans-
disciplinar, a força interpelativa às ciências (e, en- A aids foi marcada como uma doença
moral, adjetivando a morte do portador
tre elas, a própria teologia) para reverem sua pro-
do HIV por meio de códigos socialmente
clamação de verdades universais irreversíveis. Em
constituídos. Em consonância com as
suas palavras, “assistimos ao surgimento de uma
ciência que não mais se limita a situações simpli- 3 PRIGOGINE, 1996, p. 14.
ficadas, idealizadas, mas nos põe diante da com- 4 Ibid., pp. 14-31.

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próprias expectativas da sociedade, a ciên- castigo de Deus. A despeito de não ser essa a úni-
cia identificava anticorpos do vírus HIV ca concepção teológica veiculada na Bíblia sobre
no organismo de pessoas que podiam fa- saúde e doença, foi essa a que prevaleceu em sin-
cilmente ser delimitadas dentro de um
tonia com outros simbolismos culturais e religio-
“grupo” com determinados códigos de
comportamento. Estavam firmados o
sos de outras matrizes. Há que se constatar uma
preconceito, o terror e o isolamento, es- expressiva e predominante visão do cristianismo,
quecendo-se que, no entanto, grupos hu- explícita e fortemente propagada na Idade Média,
manos não vivem isolados, nem são imó- que vinculava a concepção de pecado com a pu-
veis. Dava-se muito mais importância, nição divina e, em correlação, a doença a um cas-
por exemplo, ao contágio pelo HIV via tigo divino. Seja na perspectiva de uma punição/
drogas intravenosas ou relações homosse- castigo com fins restauradores pelo sofrimento,
xuais. Esqueceu-se que um modo tam-
seja na perspectiva de que a possibilidade de cura
bém comum de transmissão, a transfusão
de sangue contaminado, poderia afetar dependia do arrependimento humano ou do mi-
qualquer pessoa, muitas vezes sem que lagre divino. No fundo, essa perspectiva de que
esta nem ao menos soubesse (já que o ví- doença e pecado se articulam – assim como cura
rus pode ficar latente vários anos).5 e perdão –, prevaleceu no imaginário social du-
rante muito tempo na história e não se ausentou
O imaginário social, povoado de compreensões totalmente na atualidade.
quanto a determinadas doenças graves estarem
Independentemente de concordarmos ou
relacionadas ao mal que advém sobre uma socie-
não com tal associação – e, particularmente, pen-
dade e intimamente relacionadas à culpa de suas
so que temos de confrontá-la duramente –, é de
“vítimas”,6 teve no advento da aids a oportunida-
de de substituir doenças como a lepra7 na Idade se constatar que nesse aspecto residem tramas de
Média e a tuberculose no século XIX pela aids no poder do discurso religioso hegemônico. Há me-
final do século XX, todas marcadas por um con- canismos de controle social que normatizam a
junto simbólico negativo que de tempos em tem- vida cotidiana e, portanto, têm reflexos econômi-
pos reincidem nessa construção simbólica que as- cos e políticos fundamentais.
socia doença e cura a processos de bem e mal, O imaginário social possui papel significa-
com contornos religiosos também. tivo na construção da coesão social e é resultante
A busca de explicações da saúde e da doen- não apenas de decisões do âmbito racional. O
ça em causas sobrenaturais ou como manifesta- imaginário social,
ção da vontade dos deuses é uma realidade obser-
como um sistema simbólico, reflete prá-
vada em diferentes civilizações já desde a Anti-
ticas sociais em que se dialetizam proces-
guidade. Cada sociedade com maior ou menor
sos de entendimento e de fabulação, de
intensidade recorre às tradições religiosas dispo- crenças e de ritualizações. (...) o imaginá-
níveis para ler e enfrentar sua cotidianidade.8 rio social, enquanto produções discursi-
Na tradição judaico-cristã, uma das matri- vas, se organiza sob a forma de mitos, re-
zes religiosas predominantes na realidade brasilei- ligiões e ideologias políticas. São formas
ra, prevaleceu uma concepção teológica sacerdo- de dizer o mundo dos homens e dos deu-
tal oriunda do século IV a.C., na qual as purezas ses. São produções de sentidos que cir-
e impurezas do corpo manifestavam a bênção ou culam na distribuição de papéis sociais.
Isso é vivido de tal modo pelos indivíduos
5 SOARES, 2001, p. 84. que passa a representar para o grupo o
6 SONTAG, S. 1989, pp. 20-21, apud SOARES, 2001, p. 87.
7
sentido de verdadeiro.9
Empregamos aqui o termo lepra, e não hanseníase, em virtude de ele
ser utilizado no período ao qual estamos nos referindo.
8 MONTEIRO, 1999. 9 TEVES, 2000, p. 190.

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Historiadores como Delumeau e Le Goff, para outras facetas da vida cotidiana. A identifi-
que contribuíram para o conhecimento sobre a cação da aids nos anos 80 como doença extrema-
Idade Média, no que diz respeito à sua constru- mente grave e sem perspectivas de cura em curto
ção do pensamento e das marcas profundas sobre prazo histórico encontrou morada nesse ima-
a concepção ocidental de mundo, apontam para o ginário povoado pela crença de que as bênçãos e
fato de que as pestes, as doenças graves sem pers- castigos das divindades repousam sobre a corpo-
pectivas de curas eram atribuídas a pecados indi- reidade humana na forma de saúde ou doenças. A
viduais ou coletivos.10 Esse fato gerou ao longo da correlação estabelecida entre o comportamento
história inúmeros processos de exclusão social, de das pessoas e sua culpabilidade sobre o mal que
rituais de sepultamento de pessoas vivas e incon- acontece em seu corpo parece ser uma necessida-
táveis condenações à morte, como mecanismos de humana de explicar seus impasses diante da
de proteção e “salvação” da coletividade. morte.
A profunda aproximação dos binômios No âmbito do debate da teologia (em seu
saúde/doença e vida/morte com a vontade divina marco ocidental judaico-cristão) não é tão dife-
foi eixo da construção do imaginário social puni- rente. Pode-se afirmar que há uma profunda
tivo às pessoas portadoras de doenças graves. contribuição de determinadas correntes teológi-
Isso se pode observar no caso da “lepra”, ao lon- cas advindas das leituras feitas do texto bíblico
go da Idade Média. O combate não era à doença, que reforçam essa perspectiva. Contudo, é im-
mas à pessoa doente. A pessoa perdia sua identi- portante reconhecer que há na Bíblia momentos
dade civil e religiosa. Ou se praticava o extermí- de profunda tensão teológica quando se deseja
nio dessas pessoas ou sua exclusão da comunida- afirmar o sofrimento humano, as dores que so-
de era precedida por rituais civis (de julgamento, brevêm ao corpo como castigo de Deus. Há que
em alguns casos) e rituais religiosos, nos quais a se constatar que a teologia, enquanto sistemati-
pessoa doente era declarada morta, com possibi- zação de um conhecimento sobre Deus e a expe-
lidade de ressurreição após a morte segundo a riência religiosa, está marcada por profundas
vontade de Deus. Em distintas partes da Europa questões de poder. Compreender alguns dos as-
se instaurou a acusação e a perseguição às pessoas pectos dessa tensão teológica pode nos ajudar a
consideradas “leprosas”. “A participação do po- resgatar elementos importantes no debate hodier-
der público e de autoridades eclesiásticas pode ser no da aids e as religiões de matriz cristã quando
verificada, em especial através da instauração, tra- invocam esse imaginário culpabilizador do corpo
mitação de processos e dos julgamentos. A aná- por suas doenças.
lise dos documentos demonstra que estas autori- O livro de Jó, no Primeiro Testamento da
dades, e dentre elas figuravam também represen- Bíblia, é exemplar nesse tipo de contenda teoló-
tantes do alto clero, também partilhavam da pos- gica. A tradição religiosa de seu tempo, dominada
tura e dos medos que assolavam a população”.11 pelos sacerdotes e pela estrutura sacrificial do
O que chama a atenção é que esse imaginá- templo, organizava o cotidiano “distribuindo
rio social coletivo presente no mundo medieval e atestados” de pureza e impureza aos corpos das
europeu em relação à hanseníase atravessou a his- pessoas: e essas condições diziam respeito às do-
tória, marcando o modo de se encarar outras do- enças, aos sangues, às comidas ingeridas etc.13 O
enças, como a já mencionada tuberculose, que foi personagem, Jó, ao ter seu corpo duramente atin-
“associada a comportamentos boêmios e desre- gido pela doença, vai afirmar que seu sofrimento
grados, a artistas, escritores e poetas”,12 seguindo é inocente e não tem de que se arrepender. Sua
com seus reflexos nos dias atuais e irradiando-se confissão de que a experiência humana é lugar das
10
contradições – nas quais o corpo experimenta
Apud MONTEIRO, 1999.
11 MONTEIRO, 1999.
12 SOARES, 2001, p. 88. 13 Cf. Levítico, capítulos 4 a 25.

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prazeres e dores como contingências de sua hu- rão acrescentados e regulamentados pelo segun-
manidade, socialmente construída – é também do templo, conforme consta no livro da Bíblia
sua confissão em um Deus que o acompanha Levítico, capítulos 4 e 5. O rito celebrativo desses
solidário, em seu sofrimento, mas não o sobre- sacrifícios deixa claro as situações que impõem a
carrega com culpas e castigo. um corpo sua condição de impureza, exigindo a
O grande drama dessa história de Jó é que passagem pelos ritos sacrificiais de purificação.
ele vive o sofrimento profundo das chagas de seu “Hemorragia, parto, lepra, cadáver tocado, algo
corpo sem negar a existência de Deus e sem res- dito falando por falar... tudo isso é motivo de sa-
ponsabilizá-lo pelo que lhe acontece, e ademais crifício, de pagamento (Lv 5,1-5)”.14 Na depen-
disso desfere profundas críticas à perversa teolo- dência do tamanho da impureza estavam também
gia oficial de seu tempo – uma teologia acreditada a espécie e a quantidade de animais ou de farinha
e ensinada pelos líderes religiosos da sua época, que se tinha de depositar no altar (para uso e con-
que diziam que o corpo sofrido era conseqüência trole da classe sacerdotal), a fim de ter restabele-
do pecado e sinal do castigo de Deus. Acontece cida a sanidade/pureza ao corpo como condição
que essa teologia não só justificava o sofrimento única para participação na bênção de Deus. As ví-
(pela doença, pela pobreza, pela marginalização timas oferecidas no ritual de sacrifício eram ali-
social), mas legitimava a prosperidade dos injus- mento dos sacerdotes, com exceção do sacrifício
tos e violentos que acumulavam bens e poder à feito para purificar seus próprios pecados. O
custa da opressão desses grupos sociais. A con- povo não participava dessa comida. Igualmente
dição de cura/salvação desse corpo passava pela com a farinha que ficava de posse dos sacerdotes,
obrigatoriedade dos ritos de purificação sob o procedia-se o armazenamento em vista de ser alta
controle sacerdotal e implicava pagar pelos sacri- a quantidade exigida por cada impureza “cometi-
fícios necessários no templo (espaço econômico da” no cotidiano da vida das pessoas.
e religioso dominado pelas famílias sacerdotais). Essa construção teológica que lê as relações
Buscando contextualizar o debate teológi- do cotidiano com o trabalho, com as lidas da casa,
co apresentado acima, é importante mencionar com as ocorrências do corpo em suas doenças e ex-
que o período de repatriamento dos israelitas pe- pressões essenciais de existência (como sangue da
los persas organizou-se através da reconstrução menstruação e parto, o sêmen e demais excreções, a
do templo em Jerusalém (em torno do século IV morte...) como passíveis de conferir impureza ao
a.C), o que funcionou como elemento importan- corpo coloca esse corpo sob controle religioso e
te de re-organização da identidade política, cultu- revela uma sacralização de uma economia de
ral e econômica desse povo. Ocorre que aspectos subordinação dos enfraquecidos em tal ordem de
do conflito entre o grupo que estava regressando coisas. Nesse contexto, é preciso considerar o
e aquele que havia permanecido na terra ficaram tenso diálogo de Jó e seus “amigos”. Está em pau-
encobertos pela construção de uma teologia re- ta a discussão desse modelo estrutural sacralizado
tributiva, altamente sacrificial. Não há como ne- pela visão de Deus propagada. Um corpo doente
gar que a classe sacerdotal e os que estavam ao evoca no imaginário coletivo todos os medos de
seu redor em Jerusalém se beneficiaram tanto dos que não apenas a pessoa mas toda a comunidade
dízimos cobrados aos trabalhadores do campo pode ser vitimada pela doença desconhecida e,
para a sustentação desse projeto de reconstrução nesses casos, os mediadores da realidade e das
quanto dos resultados acumulados pelos sacerdo- ações divinas ganham espaço com suas lógicas ex-
tes, frutos dos sacrifícios de reparação e pecados plicativas da condição do corpo pouco sabida. O
que se estabeleceram como novidades na experiên- que outrora acontecera com o corpo de Jó e com
cia religiosa do povo. os corpos doentes da Idade Média e do século
Aos antigos sacrifícios, já conhecidos na
história de Israel, os dois acima mencionados se- 14 GALLAZZI, 1991, p. 51.

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XIX passou a acontecer com os corpos surpreen- ma sua inocência e nessa sua fé em Deus, mesmo
didos pela aids nos anos 80. conhecendo as tradições teológicas de seu tempo
A lógica da retribuição individual apresen- “que afirmavam Deus como um ser supremo dis-
tada no ritual de purificação sacrificial, na qual tribuidor de castigos e bênçãos às pessoas, e ao
Deus apenas manifesta sua bênção após o reco- povo em geral, à medida de sua fidelidade às leis”
nhecimento de pecado desse corpo, aprisiona os ele busca “a experiência do sagrado no sentido de
pobres, as mulheres e os doentes a esse círculo ultrapassar essa lógica de méritos (prêmios) e
eterno de estar na maior parte de sua vida e coti- castigos. Ou seja, ultrapassar essa lógica de um
diano atingidos pela “mal-dição” de Deus. Essa Deus retribuidor”.16 Sua afirmação de fé em
anti-teologia – esse discurso sobre Deus que pro- Deus vai de encontro à teologia professada por
fere o mal sobre a vida e a corporeidade das pes- seus “amigos”, se é que podemos assim chamá-
soas em seus sofrimentos e prazeres – precisa ser los. Eles estão convencidos teologicamente de
denunciada. Embora corra na contramão das ló- que há em Jó faltas graves para que Deus o cas-
gicas religiosas predominantes no imaginário so- tigue com a pobreza, com a perda da família e
cial, será fundamental identificar as esferas de po- com a doença que lhe dilacera o corpo.
der favorecidas por esse discurso disponível na Esse homem, do corpo marcado pela doen-
cultura que, constituindo o imaginário coletivo, ça, vivendo sua fé em um Deus da companhia
servem aos processos de coesão e coerção social, solidária e que com ele se relaciona por pura gra-
os quais favorecem aos setores dominantes em tuidade e não por meio de retribuição, pode viver
detrimento de uma condição de vida digna e pra- tempos de dignidade, a despeito do sofrimento.
zerosa das pessoas em geral. Essa sua possibilidade de vida digna a despeito de
sua contingência humana não é obra de mereci-
É contra essa teologia – essa má teologia mento, nem de castigo, ou retribuição por qual-
– que Jó vai perder a paciência paciente- quer arrependimento, mas, isso sim, acontece
mente. Jó vai reivindicar legitimidade. Ou como fruto de sua fé na graça de Deus. Ação de
seja, o direito de, a partir de seu corpo do-
Deus acreditada como ato de amor que se ante-
ente, sofrido, desfigurado, discutir o sa-
cipa a nós por pura gratuidade, por solidariedade,
grado, discutir as imposições da “Teologia
da retribuição”, a teologia oficial de sua
e não por exigência de trocas.
época. A partir de seu corpo, Jó vai frag- Os amigos, que vão fazer companhia a Jó
mentar e discutir a pastoral da justificação em seu sofrimento, dispõem da teologia predo-
das distorções da realidade. Jó vai exigir, a minante como arcabouço explicativo da realida-
partir de seu corpo, uma nova espirituali- de. Fazem companhia solidária em seu entendi-
dade que se alimente das materialidades, mento honesto de que essa é a maneira de enten-
dos corpos humanos – com suas lutas e der a realidade, não desconfiam nem duvidam de
prazeres (...). Se entendemos a paciência que essa formulação sobre Deus pode estar ocul-
de Jó na impaciência de seu corpo doente tando a Deus mais do que reverenciando-o. Ao
e sofrido, doente e maldito, exigindo par-
sentar-se ao lado de Jó quase não podem pronun-
ticipar da experiência do sagrado... talvez
ciar qualquer palavra, tal a exigência de justiça e
assim possamos nos aproximar mais des-
sa paciência revolucionária e renovadora misericórdia desse corpo ante tanto sofrimento.
de Jó.15 O silêncio marca o primeiro tempo. E nele não
reside o problema, ao contrário. Em muitos mo-
Nesse livro de Jó temos a expressão da mentos, a companhia em silêncio é o melhor
complexidade da experiência de viver e buscar as conforto. A questão se apresenta problemática
explicações para o sofrimento que se vive. Jó afir- quando Jó começa a desafiar o Deus aprisionado/

15 PEREIRA, 1990, pp. 11-19. 16 Ibid., pp. 17-18

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veiculado nessa teologia da retribuição, dizendo desses vivem prosperamente; igualmente contes-
que não havia nele pecado nem culpa a reparar. ta a afirmação de que Deus usa o sofrimento e a
Sofria o sofrimento inocente, fruto das contin- dor para ensinar, dizendo que essa ação não é jus-
gências da experiência humana em sociedade e, ta. Nos discursos em contraposição aparecem as
portanto, não tinha do que se arrepender.17 tramas de poder das relações humanas e sociais
Naqueles amigos que fazem o primeiro para as quais também cooperam as construções
movimento do silêncio não havia ouvidos para teológicas.
escutar, desse corpo doente, o que lhes parecia O livro bíblico finaliza de forma muito sur-
uma blasfêmia. Seu imaginário social estava po- preendente, pois aquele que faz profundos ques-
voado dos sentidos e interpretações daquele tionamentos a Deus é reconhecido como quem
evento simbólico: um corpo marcado pelas cha- professa a verdadeira fé e tem maior clareza sobre
gas, pela pobreza e pela miséria generalizada... a ação de Deus na história.
tudo parecia indicar o abandono de Deus. O si-
lêncio é veementemente trocado pelos muitos Depois do diálogo com Jó, das respostas
e das novas compreensões (capítulos 38-
discursos teológicos proferidos pelos amigos.
42.6), Deus se dirige a um dos pastores e
Eles têm necessidade de fazer calar a voz de Jó e
dispara: “A minha ira se acendeu contra ti,
levá-lo com urgência à compreensão de seus pe- e contra os teus dois amigos, porque não
cados e impurezas para que aquele corpo tivesse disseste de mim o que era reto, como o
ainda alguma alternativa de “salvação”. meu servo Jó”. (42.7)
O corpo sofrido de Jó é exigente, pede ex- Que coisa!!! Os três amigos pastores pas-
plicações, in/con-voca a Deus para ouvir suas re- sam o tempo todo numa discussão sem
clamações. Na contramão da tradição religiosa fim, defendendo a Deus, buscando meios
predominante Jó arrisca uma nova teologia, fala de justificar aquilo que acreditavam ser as
razões de Deus, buscando argumentos
de um Deus da graça que em nada se parece com
que sustentassem a supremacia e o poder
esse Deus distribuidor de castigos defendido em
divinos para aplacar as inquietações de
seu tempo. Em sua teologia ele acusa as lideran- Jó... e agora ouvem do próprio Deus que
ças religiosas de inventar mentiras para defender eles não disseram o que era reto! E Jó...
a Deus (Jó 13.1-8), acusa esse Deus de ser o cau- que passa todo o tempo da discussão acu-
sador de seu sofrimento (Jó 16.6-12), recusa-se a sando e questionando o Deus “oficial” da
discutir com os mediadores, quer falar direta- tradição religiosa de seu tempo... é cha-
mente com Deus, este defendido pela teologia da mado de justo!
retribuição (Jó 23.1-17).18 Mais ainda... Nos versículos seguintes
A teologia sistematizada na fala de seus Deus exige que os amigos pastores se con-
vertam e se tornem sensíveis à experiência
amigos anuncia que não há possibilidades de
vivida “na pele e nos ossos” de seu amigo
questionamentos, só de subordinação; Jó confes- Jó: “Tomai, pois, sete novilhos e sete car-
sa sua fé em um Deus tão distinto da concepção neiros e ide ao meu servo Jó e oferecei
predominante que provoca a indignação de seus holocaustos por vós. O meu servo Jó ora-
amigos. Eles vão insistir que Deus cuida e salva o rá por vós; porque dele aceitarei interces-
justo, ao que Jó contra argumenta dizendo ser são, para que eu não vos trate segundo a
mentira, pois o justo vive sofrimentos também; vossa loucura”. (42.8)19
dizem que Deus julga e castiga aos opressores e
injustos e Jó responde ser essa outra mentira, na Essa teologia, a qual afirma a graça e amor
medida em que a realidade demonstra que muitos de Deus como companhia às pessoas que vivem
o sofrimento inocente, fruto das realidades histó-
17 GUTIERREZ, 1987.
18 PEREIRA, 1990, p. 29. 19 Ibid., pp. 35-36.

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rico-sociais que os cercam, é elemento importan- perativo nos leva a compreender como
te para o diálogo atual das igrejas com as pessoas muitas vezes são acobertadas as situações
soropositivas e vivendo com aids. Não há mais de injustiça e opressão com o manto reli-
como seguirmos afirmando teologias abstratas, gioso. Então o que ocorre aos seres hu-
manos passa a ser considerado como algo
como “a morte é da vontade de Deus”, sem nos
do destino, fatal. Em torno das coisas
depararmos com números absurdos de mortali-
humanas fabrica-se um mistério para
dade infantil causada pela fome, ou de mortes por que os problemas históricos não sejam
desabamentos, entre várias outras situações que tocados, para evitar que sejam transfor-
recaem sobre as pessoas empobrecidas de nossa mados. É assim que surgem os ídolos.20
sociedade. Não há também como não ouvir o cla-
mor exigente dos corpos como o de Jó, o qual faz Uma concepção de sagrado que exige dor,
uma contra-teologia ao tirar o véu que encobre sofrimento, sacrifício do corpo para aplacar a ira
poderes que não deixam a vida viver, ainda com divina causada pelo pecado humano (embora
seus limites, em condições de dignidade. também encontrada em uma das tradições teoló-
As teologias condenatórias aos comporta- gicas da Bíblia) precisa ser identificada no campo
mentos assumidos pelos diferentes grupos sociais religioso com os ídolos, e não com Deus (no caso
como arcabouço de compreensão do fenômeno de estarmos nos referindo ao Deus da gratuidade
da aids comprometem a percepção da realidade confessado por Jó). Os ídolos, sim, é que se ali-
da doença ainda incontrolável e a propagação do mentam da vida humana e são obras das próprias
HIV no cotidiano das pessoas. Há muitos corpos mãos humanas. Feitos com a finalidade de con-
“inocentes”, se quisermos considerá-los ainda trolar o corpo e a vida de muitas pessoas para sus-
nessa nefasta concepção teológica (refiro-me às tentar poderes que sobrevivem econômica e po-
pessoas hemofílicas, às mulheres casadas que acre- liticamente de tais processos de subordinação.
ditam que sua relação é de fidelidade conjugal, às Esses ídolos, anunciados como Deus retribuidor
crianças nascidas dessas relações, às pessoas aci- e castigador urge que sejam desmascarados, toca-
dentadas nos serviços de atendimento à saúde, sem dos, desinstalados.
falar nos demais que precisam de outros referen- A teologia que se espera esteja na base das
ciais de análise e não os moralistas disponíveis). ações educativas, preventivas e de acompanha-
Isso porque essa teologia apresenta um Deus mui- mento solidário das igrejas em relação às pessoas
to injusto, egoísta e sádico. É preciso dizer que portadoras do HIV e aids é a teologia da gratuida-
essa é uma anti-teologia. Ela é sinalizadora da mor- de, e não da retribuição. Busca-se uma concepção
te de Deus, como bem nos disse Nietzsche. Essa de Deus comprometido com a vida e com a com-
teologia serve aos poderes dominantes que visam panhia constante no cotidiano humano marcado
seus próprios interesses e formulam discursos por contradições e limitações. A imagem punitiva
normativos que aprisionam o cotidiano das pes- e retributiva do transcendente não permite uma
soas em rituais ora profanos, ora sagrados de ce- ação, de fato, solidária para com as pessoas. O en-
lebração da morte. frentamento dessa questão deve fundar-se na
perspectiva de um Deus identificado com a vida,
A análise de conjuntura permite-nos e vida digna para todas as pessoas. Essa máxima
compreender de que maneira a realidade da tradição judaico-cristã precisa ser afirmada a
humana está tecida através de conflitos,
fim de que a negação de imagens de Deus con-
lutas e contradições. Se no passado sua
explicação era dada freqüentemente atra-
denatórias seja possível.
vés de representações religiosas, hoje te- Fica evidente, pelo debate histórico da for-
mos que enfrentar a exigência de explicar mação de um imaginário social que vincula a saú-
nossas lutas em termos concretos, bem
humanos. Não obstante, esse mesmo im- 20 SANTA, 1989, p. 34 (grifos acrescidos).

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de/doença de uma pessoa a questões de ordem debate da aids e religião através da construção de
religiosa, que essa esfera de concepções precisa novos sentidos que venham a alimentar o ima-
ser des-construída sob pena de não avançarmos ginário social de modo crítico a essa concepção
nos processos de dignidade nas relações humanas que associa sexualidade ao pecado e, por conse-
e sociais exigidas pelo corpo soropositivo. qüência, traz a impureza e a ausência da bênção
Aspectos como a sexualidade, o próprio sa- divina.
crifício em sua atual apropriação pela lógica da Os corpos que anunciavam o bem sobre a
economia de mercado, como as questões de gê- vida estavam em um tempo, no qual o controle
nero, entram na seqüência da reflexão no intuito dos sacerdotes, para a reconstrução do templo e
de compor um quadro de contribuições teológi- de Israel, após o domínio persa, exigia das pessoas
cas ao debate que se tem travado nas igrejas e so- inúmeros e caros sacrifícios para purificar o cor-
ciedade no que concerne à aids e seu enfrenta- po e ter acesso à bênção de Deus. Naquela época,
mento. aproximadamente século 4.o a.C., o corpo das pes-
soas era impuro por todos os líquidos que saíam e
AIDS E SEXUALIDADE entravam nele (a menstruação, o sangue pós-par-
Na esteira da teologia que formula as con- to, o sêmen, determinadas comidas, as doenças
cepções de pureza e impureza, a questão da sexua- etc.) E é nesse contexto que o livro de Cantares
lidade se nos apresenta à reflexão. O corpo, a ter- anuncia corpos que vivem a sexualidade sem
ra, a vida estão sob controle. Códigos de pureza águas dos rituais para purificação.
e impureza decretam aproximações ou distancia- O lugar do texto – seu tempo e espaço. En-
mentos de Deus. Dizem do poder e do não po- tre orações e profecias o pequeno livro está abri-
der dos corpos na relação de uns com os outros gado na Bíblia. A força revolucionária do corpo
e com tudo o que os cerca... Nesse jogo de poder que sente/crê/faz acontecer o amor tem contor-
o texto de Cantares21 diz o bem sobre a vida, sus- nos novos de enfrentamento de conflitos. Um
pendendo as concepções normativas e aprisiona- texto sem dúvida subversivo! Erótico! Está no
doras dos corpos. A poesia/A palavra apresenta- meio do período de domínio dos sacerdotes,
se como mediadora do encontro da amada e do como senhores do templo, da lei e da pureza ri-
amado. Com imagens de seu cotidiano de traba- tual, da religião e da política. Nessa época desen-
lho, de descanso e de conflitos a vida é descrita cadeia uma profunda segregação dos estrangei-
com simplicidade. ros, das mulheres e dos empobrecidos. Cantares
Cantares anuncia, na poesia cotidiana do atravessa os projetos de reconstrução nacional do
encontro e desencontro dos corpos da amada e pós-exílio que está articulado em paralelo com a
do amado, o jeito distinto de enfrentar conflitos. dominação de grandes impérios (persa, depois
O texto traz discursos fortes de denúncias e grego). Era um tempo de controle sobre o corpo!
anúncios. O conflito do momento é pano de fun- Suores, odores, aromas, líquidos, vontades... es-
do que dá maior contundência às palavras ditas. tão sob controle dos rígidos códigos de pureza.
Existem outras sabedorias a aprender. Nesse li- Os sacerdotes do segundo templo serão
vro, há um movimento novo, uma espiritualidade responsáveis por desencadear um sistema políti-
inusitada. Trata-se da dimensão de gratuidade das co e econômico em consonância com os interes-
relações amorosas como contraponto ao tempo ses de uma elite nacional e dos impérios em exer-
em que as liberdades para o corpo estavam cer- cício através de mecanismos religiosos legitima-
ceadas. Re-visitar Cantares pode nos ajudar no dores de suas ações. A teologia estava marcada
pelos códigos de pureza e impureza ritual os
21 O texto bíblico é conhecido na tradição católico-romana como quais controlavam o corpo em sua sexualidade,
Cântico dos Cânticos e, na tradição protestante, como Cantares de
Salomão; isso porque essa última segue a tradução da Bíblia Hebraica,
em sua classe social, em sua etnia, em seu gênero,
ao passo que a primeira segue a tradução grega da Septuaginta. em suas doenças. Fica evidente, em um período

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que ruma para uma organização escravista do tra- O significativo conjunto de poemas, com
balho, que o corpo é o lugar do poder. Sobre ele sua força de vida, não pode seguir como segredo,
todo o controle e a mal-dição. O discurso nor- muito menos ser reduzido a alegorizações, como
mativo conhecido em nossos dias deriva dessa se fez ao longo da história da interpretação.
concepção teológica – entendê-la é condição ne- Quebrar o silêncio do texto, frente às amarras
cessária para a sua des-construção. teológicas, talvez se constitua em movimento
Uma teologia que dissesse o bem-sobre-a- aprendente – do dizer o bem sobre a vida por in-
vida ficava na dependência dos ritos de passagem termédio de uma postura de abertura para com-
da impureza para a pureza. Um deslocamento preender a sexualidade em sua dimensão de gra-
não possível a qualquer corpo. Os sacerdotes es- tuidade, re-significando as relações em suas dis-
tavam nesse caminho. O sistema não era mera- tintas esferas.
mente religioso, mas econômico. Ofertas e sacri- O discurso em Cantares é sexuado. A afir-
fícios precisavam ser pagos para devolver ao cor- mação do corpo da mulher e do homem é uma
po sua condição de pureza (e proximidade de constante. Os corpos posicionam-se. Não por-
Deus – talvez por isso os poemas de Cânticos se- que querem ser provocativos, mas porque, na-
jam tão econômicos em sua menção a Deus). Sa- quela época, o controle sobre a vida passava pelo
crifícios que promovem prisão aos corpos, anun- corpo. Esse é o lugar do poder. Em Cantares tam-
ciam dívidas ao cotidiano do trabalho, retiram das bém está explícito um outro olhar e sentir diante
mulheres a maior parte dos dias de sua vida como da natureza. Descrevendo o saltitar das gazelas se
tempos e espaços de beleza (cf. Lv 12 e 15, em es- pode falar do amor e dizer das belezas do corpo
pecial pelo sangue da menstruação e parto). Tu- que estava sob suspeita e controle dos códigos de
do, ou quase tudo, na vida é impureza. É dívida. pureza.
É escravidão. É religião e economia e política. No Em um tempo em que se legislava sobre o
advento da aids esses símbolos culturais-religio- corpo23 buscando controlá-lo, a mulher ao pro-
sos foram acionados pelo imaginário social cole- nunciar palavras cheias de cotidiano parece fazer
tivo, trazendo culpabilização aos corpos. vistas grossas às regras de seu tempo. Faz que não
Em Cantares, o contraste com a visão teo- vê. Diz e sai em busca do que pronuncia. Cons-
lógica predominante é profundo. Os poemas em trói as pontes entre as palavras e os corpos, pre-
uma dinâmica própria da vida anunciam do corpo para o leito do encontro. Diante da ousadia des-
suas belezas e possibilidades de viver o momento ses poemas que exaltam a beleza dos muitos cor-
presente como espaços de amor e sem as águas da pos humanos e do ecossistema, não é de surpre-
purificação a ameaçá-lo (Ct 7.12). Seu caráter ende-se que Cantares estivesse vestido de
contestatório à teologia legitimadora do poder interpretações poderosas para “domar” o amor e
revela por que não foram poucas as tentativas de direcioná-lo para o matrimônio e, na seqüência,
explicar a pertença de Cantares ao canon bíblico. para as analogias religiosas.
Muitas possibilidades e contendas envolveram A fala amorosa é aproximativa. É exercício
essas explicações. As variações cobriram uma de muitos dizeres, compõe-se de palavras inexa-
gama enorme de interpretações espiritualizantes, tas, imprecisas. A fala amorosa faz uso de media-
outras alegóricas e místicas, e muito pouco houve ções, transfigurando tudo o que está à sua volta.
de interpretações históricas. Era preciso desviar, Sons, cheiros, sabores, texturas, cores tornam-se
preciso desqualificar sua força crítica ao sistema mediações para falar do corpo do amado e da
de controle da vida cotidiana. Entre judeus, do amada, para anunciar a conexidade intrínseca en-
primeiro século, foi considerado texto sagrado e
usado liturgicamente por ocasião da Páscoa e, en- 22MESTERS, 1993; e ANDIÑACH, 1998.
23 Para entender essa questão seria importante ler Cântico dos
tre cristãos, reconhecido em seu alcance metafó- Cânticos em paralelo ao Levítico. Um exemplo pode ser percebido ao
rico-religioso.22 comparar Lv 15:18 e Ct 7.12.

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tre seres humanos e ecossistema, para se interpe- vida e afirma vivendo o que pensa de si mesmo.
netrarem, se dizerem com beleza e poesia o que O caminho de cuidado de si e cuidado do outro
as palavras não conseguem captar dos sentidos. na experiência da soropositividade e da sorodis-
“O discurso amoroso é produção de conheci- cordância nas relações será fundamental para re-
mento a partir dos sentidos do corpo. Olho não lações marcadas pela dignidade e prazerosidade
tem garras, um umbigo não pode ser taça, lábios do viver.
não têm gosto de mel”,24 no entanto, criam ima- Os muitos dogmas e resistências no que
gens da relação transcendendo as palavras, trans- concerne à concepção teológica sobre sexualida-
gredindo as regras. No contexto da aids as rela- de podem trazer a noção de que não se pode “vi-
ções amorosas são interpeladas à criatividade para ver de Cantares” todos os dias. Nesse caso, po-
construir belezas afirmando a vida: a própria e a demos lembrar que é preciso não confundir Can-
do outro. tares com sonho paradisíaco em que tudo dá cer-
Recolhe-se da atitude de atenção e uso dos to. Encontros e desencontros, possibilidades e
sentidos do corpo a mediação para superar os impossibilidades, paixão e controle, acolhida e a
mecanismos de aprisionamento do corpo (com violência contra o corpo são realidades constan-
seus líquidos, seus cheiros, seus gostos, seus to- tes. Simultâneas. A vida está marcada pelas
ques, seus sons e imagens) ditados pelos códigos contradições, adversidades e fragilidades que in-
de pureza e impureza manifestos nas relações de terpõem suas perguntas exigentes ao já vivido.
aproximação dos corpos. Os corpos que aqui se O olhar, a sensibilidade, a percepção de vi-
olham e se dizem belos, os corpos que se cheiram ver a vida sem abdicar do amor, do descanso, do
e se tocam anunciam em sua ação a resistência, ain- dizer das belezas, da festa, ainda que se tenha de
da que não discursiva, perante os poderes opresso- resistir a diversas formas de opressão, podem ser
res da vida. O jeito de dizer o bem sobre a vida é uma novidade que nos ajude hoje a enfrentar as
um convite fecundo a dizer a novidade teológica ausências de sentido e de amor próprio que a ex-
sobre a sexualidade. periência da soropositividade traz ao cotidiano
A amada e o amado, ambos são desejados. das pessoas.
Compartilham o desejo na forma de descrever as As muitas formas de militância, por vezes,
belezas um do outro. Relações de amor, de tra- nos endurecem e nos fazem perder a ternura e o
balho, de desejo e de perenidade acompanham as brilho no olhar, nos fazem não nos alegrarmos
horas do descanso; “não desperteis o amor até com a festa e não dedicar tempo para preparar a
que ele o queira” (1.7). O amor proibido pelos boa comida para receber amigos e família, nos
dogmas é enfrentado pelo movimento da vida. fazem abandonar o cuidado de brincar com as
Os sentidos do corpo se apresentam fortes na crianças seus jogos infantis, suas fantasias e faz-de-
mediação dos sentimentos e pensamentos: ouvir, conta, nos fazem adiar o namoro com as pessoas
ver, cheirar, saborear e tocar alternam-se como queridas (há tempo companheiros e companheiras
metáforas apropriadas para o amor. de muitos amores, paixões, tarefas, dívidas, preo-
O movimento de perder-se do amor e tor- cupações, labutas comuns...), nos fazem esquecer
nar a achá-lo rompe com o ideal do amor das ho- de oferecer flores, de escrever o cartão, de convidar
ras previsíveis. Nas horas de descanso, no inter- para o passeio, enfim, nos fazem esquecer de pre-
valo do trabalho é possível buscar o amor e estar parar o lugar do amor...
sujeito a não encontrá-lo. O corpo que busca o Dessa maneira, reinventar os debates sobre
encontro com o amado se reconhece belo. Sem o a sexualidade não é um desafio menor, contudo
cuidado de si, sem o dizer-se de si a beleza, não há complexo e lento. Pensar a sexualidade para além
luta que resista. Tem poder o corpo que afirma a dos esteriótipos de pecado, de ato unicamente
procriativo e entrar em diálogo com a experiência
24 PEREIRA, 1993, p. 55. atual das pessoas vai exigir escuta e respeito, no

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mínimo. Esse é outro desafio às revisões teológi- Enquanto os segmentos econômicos, so-
cas no contexto do debate da aids. ciais e políticos, assim como diversas áreas de co-
No intuito de apontar possibilidades para nhecimento, entre elas a teologia, não assumirem
uma outra construção teológica sobre sexualida- enfrentar a contundência dos novos tempos, dos
de, cabe recordar que as igrejas cristãs (e aqui me desafios de uma sexualidade vivida em outros
refiro à Igreja Católica Romana e às igrejas pro- moldes e padrões, da urgência em superar lógicas
testantes) fizeram re-visões teológicas ao longo de exclusão e sacrificiais, entre outros aspectos,
de sua história. Por exemplo, houve tempos em seguiremos presenciando, sucessivamente, a per-
que selecionaram, da própria Bíblia, textos que le- da e a morte de amigos e amigas soropositivas no
gitimaram a escravidão conhecida em nosso con- âmbito das igrejas e da sociedade em geral. Para
tinente e em outros. Muito embora soubessem aquelas pessoas para quem a palavra teológica e a
que no Primeiro Testamento o eixo fundamental ação pastoral são relevantes, o espaço de solidão
e abandono às vezes prevalece. O descompasso
de organização de Israel como povo de Deus se
revelado na experiência de vida de homens e mu-
deu através da negação e do combate à escravi-
lheres, jovens e adultos, para os quais as informa-
dão, a teologia dominante do período recorreu
ções de prevenção colidem com seus aprendiza-
aos textos que favoreciam a conjuntura escravis-
dos da teologia e da tradição de fé de sua deno-
ta. Esqueceram ou colocaram de lado o dado fun-
minação, testemunha o aumento da soropositivi-
damental da origem desse povo, isto é, o fato de
dade no âmbito das igrejas também. Atingem
que era fruto de vários grupos sociais empobre-
leigos e leigas, mas também suas lideranças como
cidos, escravizados pelo sistema econômico e po- pastores, pastoras, religiosos, religiosas, sacerdo-
lítico da época, e que se juntaram para formar o tes que ora têm sido tragados pela morte (e pelo
que se amalgamou historicamente como povo de decreto de morte que o silêncio sobre a questão
Israel do Primeiro Testamento. O elemento co- no âmbito das igrejas e teologias tem sido res-
mum a todos esses grupos sociais era a saída/ ponsável) ora têm amargado no silêncio.
fuga/êxodo da escravidão para construir um Não assumir que a sexualidade, hoje em
novo espaço de liberdade. Isto é, buscava-se a dia, traz novas perguntas, novas exigências, cria
construção de uma sociedade socioigualitária que vazios no diálogo, cria desesperança, cria rupturas
deveria empenhar-se permanentemente em não com tradições de fé outrora importantes na vida
reproduzir a escravidão no seu meio. das pessoas, cria conflitos e intolerâncias, é fe-
Consideramos, analogamente, que o ocor- char-se ao clamor de vida de muitas pessoas.
rido com a teologia referente à escravidão pode se Constata-se, na seqüência de observação
dar com a teologia sobre a sexualidade. De fato, dos textos bíblicos anteriormente analisados, que
pensamos que se as igrejas cristãs, em outros o discurso teológico na Bíblia não é único e está
tempos históricos, foram capazes de construir marcado pelas questões de poder de seu tempo.
um discurso teológico legitimador da escravidão O discurso teológico confere poder de legitimar
e, 500 anos depois, de pedir perdão, terão de fazer ou des-estabilizar poderes de ordem econômica,
algo semelhante no que concerne à sua constru- social e política. Nesse momento, precisamos nos
ção do discurso teológico sobre a sexualidade, perguntar ao que queremos conferir poder com
uma vez que algumas dessas concepções criam nosso discurso teológico? Que revisões teológi-
dificuldades tanto para enfrentar os diversos as- cas nos ajudariam a dialogar, a acompanhar, a
pectos relativos às relações humanas responsáveis “pastorear” a vida, com suas novas e complexas
pela contaminação do HIV como para o uso das realidades no âmbito da sexualidade humana?
noções de prevenção veiculadas pelos estudos e Há sem dúvida muitas questões de poder
avanços da ciência como possibilidades de segu- em jogo na resistência às revisões teológicas acer-
rança para a não infecção. ca da sexualidade. Não é apenas “rabugice“, “ca-

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duquice” ou anacronismo teológico. É poder momento da vida mais adequada, da segurança e


econômico, político e estruturas androcêntricas e da afirmação da dignidade da vida!
patriarcais, que atravessam séculos de história no Dessa maneira é importante não universa-
ocidente, que precisariam ser tocadas. E não po- lizar uma igreja e sua tradição como se fosse a
demos imaginar que isso se dará com facilidade e única. A pluralidade de concepções teológicas so-
em tempos muito próximos. bre essa temática é um dado de realidade. O uni-
Talvez a metáfora nos ajude aqui: preciso verso protestante histórico se move diferente-
plantar nogueiras (árvores que dão seus primei- mente nessas questões, em comparação ao uni-
ros frutos depois de cem anos) e acreditar que va- verso católico romano e outros evangélicos. Há
leu a pena, ainda que não desfrutemos nem de sua muitos aspectos de unidade de fé, mas há diver-
sombra, nem de seus frutos. Mas que nos alegre- sidade em outros, por isso, estamos permanente-
mos com a possibilidade de construir a sustenta- mente buscando um diálogo ecumênico.
bilidade do mundo, das relações e do ecossistema
para as gerações futuras viverem com dignidade. AIDS E MERCADO
Nesse sentido, os dogmas e suas constru- Atuar na prevenção da aids, na perspectiva
ções históricas e sociais, as relações de poder ne- de ações das igrejas em parceria com a sociedade,
les implicadas precisam nos ajudar como memó- implica denunciar, des-instalar, des-construir dis-
ria para redesenhar a teologia no que diz respeito cursos normativos culpabilizadores do corpo. E
à sexualidade. É a vida que clama por mudanças. não será necessário fazê-lo apenas no âmbito do
Contra os dogmatismos... o movimento da vida! religioso, mas no da economia e da política. A
– afirma a teóloga Ivone Gebara, quando nos ritualização cotidiana exigida pela atual economia
alerta a arrumarmos os sentidos de nossa teologia de mercado sacraliza a liberdade desse mercado
de outro jeito. Na construção desse caminho ela economia em detrimento da vida das pessoas.
propõe não deixar adormecer a energia inquirido- Postula uma atitude de fé nessa economia, como
ra de nossas mentes.25 se pode observar na concepção do economista
Galbraith, que denomina a ideologia neoliberal
Cabe ressaltar ainda que, nas tradições cris-
de “teologia do laissez-faire”, na qual a defesa do
tãs, não há uma homogeneidade no tratamento
neoliberalismo tem por base “fundamentos teo-
dessa questão da sexualidade. Há posições muito
lógicos mais profundos. Assim como é preciso
distintas quanto à sexualidade dentro e fora do ter fé em Deus, é preciso ter fé no sistema; em
casamento, à concepção de planejamento familiar certo sentido ambos são idênticos”.26 A par des-
e do uso de métodos contraceptivos, ao uso de sas considerações encontram-se outras como a
preservativos, à hetero e à homosexualidade... en- perspectiva de que o desenvolvimento tecnológi-
fim, há muitas tradições de fé cristã do âmbito co-científico é capaz de salvar os países subdesen-
protestante/evangélico que trazem sintonias aos volvidos de seu atraso e conduzi-los ao paraíso da
processos de prevenção que se vem adotando no modernidade.
caso da aids, porém, há outras tradições em que
tais aspectos não estão em discussão. É nesse horizonte de esperança utópica, de
A abertura a essas questões – pelas pasto- esperança mítico-religiosa, que Fukuya-
ma afirma que “as boas novas chegaram”.
rais sobre sexualidade e aids, por exemplo – é
Com a derrocada do bloco socialista, se-
uma demonstração do desejo dessas igrejas em gundo Fukuyama, está definitivamente
dialogar sobre a experiência da sexualidade, na provado que o sistema de mercado capi-
perspectiva do respeito a si e ao outro, da respon- talista é o ápice da evolução da história
sabilidade pessoal e social, da identificação do humana e estamos a um passo de adentrar

25 GEBARA, 1997, p. 35. 26 GALBRAITH, 1992, p. 53.

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na “Terra Prometida”. Por isso ele diz que mundial, para quem não há trabalho projetado no
chegamos ao “fim da história”. Não o fim atual desenvolvimento tecnológico-científico em
dos acontecimentos históricos, mas sim o operação no mercado globalizado.
fim da sua evolução.27
É importante ressaltar que nesse rito de
Anunciando-se o mercado como messias morte vão para o “altar do sacrifício” as pessoas
dos novos tempos diversos pensadores da área mais enfraquecidas por esse discurso normativo
econômica e política, estão atribuindo um caráter sobre os corpos: a exemplo dos empobrecidos, dos
sagrado a esse sistema, capaz de legitimar diver- negros, dos indígenas, das mulheres, das crianças,
sos reflexos para as relações humanas, sociais e dos velhos, dos doentes de aids, dos soropositi-
ecossistêmicas, bem como legitimar os sofrimen- vos, das pessoas portadoras de necessidades es-
tos e as mortes. Nesse contexto, indicar que o sa- peciais... enfim, os integrantes dos grupos sociais
crifício de todos é necessário para chegarmos ao que se encontram na rota da descartabilidade e
desenvolvimento tecnológico e científico apre- exclusão social.
senta-se como proposta irrecusável, sob pena de A teologia da retribuição alicerçada nos ri-
comprometer a modernidade e inserção no pro- tos sacrificiais, que balizaram a análise do ima-
cesso de mundialização da economia. Depositar ginário social da doença e da concepção de con-
essa fé na salvação que a economia de mercado trole da sexualidade no âmbito religioso, tem sua
propõe exige das pessoas uma submissão a essa representação moderna na lógica cumulativa da
lógica de morte necessária aos “enfraquecidos” economia mundial de mercado, que se nutre da
pelo sistema: da mesma forma que um boi fraco/ morte daquelas pessoas enfraquecidas por essa
magro é entregue às piranhas em um rio para que, lógica sistêmica. Não há como dissociar o discur-
ao lado, passe ileso o gado gordo, assim se pratica so religioso presente na articulação dos pronun-
a entrega ritual dos empobrecidos, dos doentes ciamentos econômicos do que ocorre no mundo
de aids e tantos outros cotidianamente no altar com a vida, ou melhor, com a morte que assola
secular do sacrifício. O sacrifício que outrora ali- muitos grupos sociais. Se temos, no caso do tra-
mentava a classe sacerdotal no templo agora ali- tamento da aids no Brasil, uma possibilidade de
menta os sacerdotes da modernidade, que se be- pensá-la como uma doença controlável e possível
neficiam e gerenciam as aplicações financeiras no de conviver-se com ela pelo acesso gratuito aos
mercado virtual, recusando-se progressivamente medicamentos, o mesmo não se pode dizer de
a investir em tecnologia propiciadora de mais tra- vários países ao redor do mundo, nos quais as po-
balho real às pessoas. líticas de ajuste econômico impostas pelo merca-
Quando os políticos e economistas, em do financeiro mundial impossibilita ações de saú-
seus discursos, pedem ou apelam à sociedade, de pública de tal envergadura. Precisamos, no
convocando a todos para que cada um faça sua caso de nosso país, considerar que o que se atin-
parcela de sacrifício para que se alcance o pro- giu com o tratamento da aids, infelizmente, não
gresso científico e tecnológico, próprio da mo- é o padrão da saúde pública em geral.
dernidade, fica obscurecida a carga religiosa dessa Dessa maneira, um debate sobre religião e
convocatória. Esse discurso, aparentemente não aids precisa comprometer-se em desmascarar
religioso, alimenta o mito do progresso que jus- essa religião moderna marcada por uma lógica
tifica a morte e traz boa consciência àquelas pes- perversa que justifica a miséria/morte de muitos
soas que se beneficiam da lógica atual. E, funda- em nome de uma eficácia do sistema de mercado,
mentalmente, mascara que o sacrifício pedido de que trará posteriormente uma tal condição de de-
todos é morte real de alguns (muitos) – é morte senvolvimento que resultará em acúmulo de ri-
real, projetada para um quarto da população quezas capaz de propiciar a solidariedade do mer-
cado com as pessoas enfraquecidas. Notem bem,
27 MO SUNG, 1998, pp. 24-25. a ação solidária proposta não é mais das pessoas

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com as pessoas, mas do mercado com as pessoas dos que articulam a descartabilidade e a exclusão
– conforme se pode observar no pronunciamen- daqueles empobrecidos, das minorias étnicas, das
to de Michel Camdessus do FMI, que estabelece pessoas portadoras de doenças...
uma profunda relação entre eficácia do mercado Em síntese, a reflexão crítica a essa lógica
e solidariedade: “O Fundo Monetário foi criado do mercado globalizado nos permite uma postu-
para pôr a solidariedade internacional ao serviço ra crítica diante dos discursos normativos que
dos países em crise que se esforçam para tornar pautam nosso cotidiano; ao controle de nossa
suas economias mais eficazes. A busca da eficácia corporeidade; à perda de autonomia das decisões
no e pelo mercado, e vocês sabem tanto quanto sobre nossas vontades e desejos; à redução de
eu quão relacionadas estão a eficácia e solidarie- nossos desejos ao consumo de mercadorias; à fi-
dade”.28 xidade dos padrões de beleza, de moda, de corpo,
O processo de retirada das ações ético-soli- de áreas de atuação; à violência gerada nas rela-
dárias das relações humanas as desumaniza, con- ções sociais; à imposição de regras que arreben-
ferindo a condição de humanidade ao sistema, sa- tam as relações humanas; aos tabus obrigatórios
cralizando-o. Confirmando, com isso, a conce- das grifes; ao mimetismo cultural que subjuga
pção de que por mãos humanas são os ídolos nossos signos comunicativos transportando pala-
construídos. Nele se deposita o melhor do suor, vras e imaginários sociais para nossa linguagem
da vida, do trabalho e das esperanças das pessoas cotidiana; a uma postura educativa meramente
e curiosamente esse círculo de alimentar-se da reprodutiva e pouco criativa e proativa; a uma in-
vida humana não cessa nunca. Os ídolos, feitos sensibilidade social que descarta a solidariedade
por mãos humanas (como é o caso do mercado), das relações entre as pessoas; à substituição de
constituem-se em sagrado antropofágico que de- nossas experiências religiosas por uma religião de
vora cotidianamente quem os constrói. O sagra- mercado; a uma compreensão de sociedade em
do alimenta-se da morte e dos decretos de morte, que não cabe o direito à dignidade de vida para
feitos às vítimas – que são, por esse mesmo siste- todas as pessoas.
ma, tornados “boi de piranha” ou “bodes expiató- A essa lógica perversa de exclusão e morte
rios” e culpabilizados (transformando seu fracas- é preciso dar um basta! Essa “teologia econômi-
so em responsabilidade pessoal eximindo a or- ca” que atravessa as muitas esferas da realidade
dem sistêmica), legitimando o processo como cotidiana precisa ser enfrentada no contexto do
inevitável. presente diálogo que se organiza para tratar a
Nesse debate, penso estar o desafio de fa- questão da religião e aids. Ao indicarmos a neces-
zermos revisões epistemológicas para que se pos- sidade de enfrentar a lógica sacrificial, a lógica de
sa afirmar vida digna para todas as pessoas, para exclusão, de controle da corporeidade, de morte
todos os seres vivos e para o ecossistema em sua projetada para os seres humanos e o ecossistema,
complexa teia de relações. Afirmar a vida em sua não podemos fazê-lo com ingenuidades de nega-
dignidade plena, teologicamente, significa afirmar ção da existência do mercado. Mas, sim, repudiar
um Deus, um transcendente contrário a todas as a sua idolatria.
formas de sacrifício pedido dos corpos no mun- Será necessário re-desenhar o desenvolvi-
do atual. Será preciso perceber o humano em suas mento tecnológico e científico; intervir em sua
limitações e transcendência para construir uma dinâmica com seus próprios instrumentos para
ação solidária. Uma ação que ao invés do decreto pensar o trabalho e não a exclusão para as pesso-
de morte, da legitimação do sacrifício necessário, as. Será necessário enfrentar a lógica da exclusão
do bode expiatório que limpa a culpa da socieda- com a afirmação de um mundo em que caibam
de, afirme a vida e denuncie sistemas mundializa- todos; será necessário rever o desperdício; reor-
ganizar o uso das energias disponíveis; perceber
28 CAMDESSUS, M. apud MO SUNG, 1998, p. 34. as redes de conexões do universo que se manifes-

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tam na contramão dos desequilíbrios ambien- senhar o desenvolvimento tecnológico e cientí-


tais... Assim, a corporeidade (de todas as pessoas, fico, intervir em sua dinâmica com seus próprios
soropositivas e soronegativas) passa a ser fonte instrumentos, para pensar trabalho e não exclu-
de critérios para uma Ética Solidária. Trata-se de são para as pessoas; será necessário enfrentar a ló-
afirmar a dignidade inviolável da corporeidade gica da exclusão com a afirmação de um mundo
pois, é nesta, que se objetiva a vida. em que caibam todos; será necessário rever o des-
Essa reflexão crítica ao mercado muda con- perdício, reorganizar o uso das energias disponí-
sideravelmente a teologia. Não será possível se- veis, perceber as redes de conexões do universo
guir afirmando uma teologia sacrificial, uma cris- que se manifestam na contramão dos desequilí-
tologia que reforce o martírio dos inocentes brios ambientais...
como sementes de um futuro de justiça. Será pre- A corporeidade (de todos, portadores do
ciso enfrentar uma concepção de teologia que se HIV e não-portadores) passa a ser fonte de crité-
alicerça na concepção de retribuição, na qual o rios para uma Ética Solidária. Segundo Hugo
castigo ou a bênção de Deus é mérito pessoal. Assmann, é preciso afirmar a dignidade inviolável
Em contraposição, será fundamental afirmar uma da corporeidade em que se objetiva a vida, e sem
teologia que apresenta a graça de Deus como a qual não faz sentido falar do espiritual. Para
dom gratuito, e não como recompensa, como fundamentar uma crítica séria ao mito do supos-
parte de relações de troca. O discurso aparente- to autônomo benfazejo chamado mercado, e para
mente “consolador” de que a morte é fruto da reinstaurar de novo o princípio da solidariedade,
vontade de Deus precisará dar lugar à concepção precisamos algo mais concreto que o conceito
de morte como ato humano, contingência do jei- genérico de afirmação de vida. Precisamos de
to de organizarmos o mundo e as relações, e não uma sociedade na qual haja lugar para a vida cor-
como intervenção divina. A dimensão de proces- poral de todos, porque o que chamamos vida nos
so histórico possibilitará olhar para a morte de Je- acontece corporalmente, mesmo a mais espiritual
sus, para a morte das crianças do Nordeste (que das experiências.29
morrem de fome, e não pela vontade de Deus), Enfim, será necessário rediscutir a ética
para as vítimas de guerras e atos de terrorismo... solidária nos tempos atuais. Para isso Umberto
como um processo histórico construído pelas es- Eco pode nos ajudar a fazer teologia, quando diz
truturas de poder econômico-político-sociais e, que para ser tolerante é preciso fixar antes o limi-
sem dúvida religiosas das sociedades. te do intolerável. E isso não significa ser dono da
Muito já se caminhou nas ações pastorais verdade, porque não se apela à verdade ou a ab-
solidárias das igrejas para superar o decreto de solutos; basta estabelecer que coisas são deveras
morte às pessoas portadoras do HIV, a vinculação preferíveis, por nelas estar em jogo minha vida e
dessa realidade a um castigo divino, contudo, esse a de outras pessoas. A posse da verdade pode le-
decreto continua sendo dado como recado às var à tentação de matar por ela. Mas, lutando pelo
pessoas no seu dia-a-dia pela globalização. Será que é preferível, é possível ser tolerante e, ao mes-
fundamental, superar ingenuidades e radicalis- mo tempo, rejeitar o intolerável. A afirmação de
mos proféticos para propor uma ética solidária que existe o intolerável e não verdades absolutas
em um mundo de mercado. Não se poderá negar baseia-se no
o mercado globalizado como realidade das soci-
respeito pelo corpo. É possível constituir
edades humanas. Mas será preciso declarar a hu- uma ética sobre o respeito pelas atividades
manidade desse ente feito quase divino. Será pre- do corpo: comer, beber, urinar, defecar,
ciso tocá-lo e reordená-lo. Pensar uma planificação dormir, fazer amor, falar, escutar etc. (...)
social em que a maior parte do capital do mundo Obrigar alguém a viver de cabeça abaixada
seja convocado a entrar na produção e sair do
mercado financeiro virtual. Será necessário re-de- 29 ASSMANN, 1998.

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é uma forma de tortura intolerável. (...) O que reconhecer a dignidade de vida como direito
estupro não respeita o corpo do outro. inalienável de todas as pessoas constitui-se em
Todas as formas de racismo e exclusão eixo fundamental e em sintonia com uma conce-
constituem, em última análise, maneiras pção de teologia da gratuidade que se contrapõe
de se negar o corpo do outro.30
explicitamente a uma concepção retributiva.
No debate teológico será fundamental en- Uma concepção de Deus comprometido com a
contrar elementos propiciadores de diálogo, de vida e companhia constante no cotidiano huma-
modo a contribuir para as ações educativas, pre- no com suas contradições e limitações foi o eixo
ventivas e de acompanhamento solidário das pes- desta reflexão, que se apresenta como convite ao
soas que estão vivendo e as que estão convivendo diálogo e não como postulados definitivos. No
com o HIV e a aids. Dessa maneira, afirmamos marco da construção e provisoriedade buscamos
sintonia na produção do saber e do sabor que
30 ECO, U. apud ASSMANN, 1998, p. 209. tempere as nossas vidas.

Referências Bibliográficas
ANDIÑACH, P. Cântico dos Cânticos. O fogo e a ternura. Petrópolis:Vozes/Sinodal, 1998.
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GALBRAITH, J.K. A Cultura do Contentamento. São Paulo: Pioneira, 1992.
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___________. Igrejas e Aids (2): perspectivas bíblicas e pastorais. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião (ISER), 1990.
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Esportivo no início de um novo milênio.Piracicaba: Editora UNIMEP, 2000.

Dados da autora
TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO
Doutora em Ciências da Religião (UMESP),
diretora da Faculdade de Ciências da

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Religião/UNIMEP e membro da Comissão


Nacional de Aids do Ministério da Saúde

Recebimento artigo: 15/ago./02


Consultoria: 15/ago./02 a 16/ago./02
Revisão da autora: 16/ago./02 a 21/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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Estigmas da Aids:
em busca da cura
THE STIGMAS OF AIDS:
IN SEARCH OF A CURE
Resumo Este artigo objetiva realizar um balanço crítico das figurações e configura-
ções da aids em textos jornalísticos e campanhas de prevenção governamentais, con-
frontando-as com os avanços conquistados na área médico-científica e com as mu-
danças ocorridas em termos socioculturais, que muitas vezes parecem não ter acom-
panhado os discursos sobre essa síndrome. Tal fato será destacado por meio da análise
da crônica “O dia da cura” (1994), de Herbert de Souza, a partir de aspectos narra-
tivos e discursivos. Apesar de, atualmente, ser oferecida aos portadores do HIV a pos-
sibilidade de viver mais e melhor, notamos – não sem incômodo – uma persistência
e reforço de estigmas sociais em relação à aids. Dizemos estigmas, e não simplesmente ROSANA DE LIMA
preconceitos, em razão das peculiaridades que cercam a aids e as pessoas por ela afeta- SOARES
das (especialmente os portadores do HIV, sintomáticos ou assintomáticos), carateri- Escola de Comunicações e
zando-a como estigmatizada pela sociedade e, ao mesmo tempo, estigmatizante da- Artes (ECA/USP)
queles que com ela (con)vivem. O artigo pretende, portanto, discutir as perspectivas [email protected]
em relação à doença num momento em que, mais do que morrer com aids, percebe-
mos um desafio para aprender, verdadeiramente, a (con)viver com aids.
Palavras-chave AIDS – MÍDIAS – ESTIGMAS SOCIAIS – CIÊNCIAS DA LINGUAGEM.

Abstract This paper aims at evaluating and accomplishing a critical balance of the aids
configurations, especially in the press and governmental prevention campaigns. It
confronts them with the medical and scientific advances, and also with the social and
cultural changes that often seem not to have followed the discourses about such syn-
drome. That can be analyzed through Herbert de Souza’s chronicle “O dia da cura”
[The day of healing]. Although the people living with Aids are given the possibility
of living more and better, we notice – not without some discomfort – the persistence
and reinforcement of social stigmas regarding aids. We say stigma, and not prejudice,
due to the peculiarities involving aids and the people affected by it (with or without
symptoms), which characterize them as people stigmatized by society and, at the
same time, people who stigmatize those who live with them. Therefore, the paper in-
tends to discuss the perspectives regarding the disease in a time when more than dying
with aids we face the challenge of learning to live with it.
Keywords AIDS – MEDIA – SOCIAL STIGMAS – LANGUAGE SCIENCES.

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O melhor remédio é manter o horizonte da esperança.


HERBERT DE SOUZA (BETINHO)

O
s estigmas da aids, como a própria síndrome, andam
em busca de cura. Os avanços propiciados pelos tra-
tamentos médicos configuram uma nova realidade: é
possível, hoje em dia, (con)viver com a aids como
não seria possível imaginar apenas alguns anos atrás.
Os desafios sociais que tal (con)vivência nos coloca,
entretanto, não são poucos, nem fáceis de ser enfren-
tados. A aids transcende em muito os aspectos orgânicos de seus sinto-
mas e, ao fazê-lo, coloca-se como sinal de uma síndrome ainda mais di-
fícil de ser curada: a estigmatização social, que persiste apesar de todas as
transformações já ocorridas em termos científicos.
Surgida no início da década de 80, a aids – talvez a primeira doença
infecto-contagiosa de dimensões globais, mais do que uma epidemia uma
pandemia – passou a ocupar a cena social de forma efetiva em 1983, a par-
tir do isolamento de seu agente causador, o Human Immunodeficiency
Virus, ou simplesmente HIV. O próprio nome da doença – aids – constitui
uma sigla para a chamada “Síndrome da Imunodefiência Adquirida”.
Síndrome, e não doença, pois a ela são associados inúmeros fatores que,
em conjunto, convergem para o seu desenvolvimento. Imunodeficiente
porque, ao atacar o sistema imunológico do doente, torna-o frágil para li-
dar com as doenças oportunistas, ou seja, aquelas que se valem dessa de-
ficiência para levá-lo ao óbito (por isso, tecnicamente, não se pode dizer
que alguém morre de aids, e sim de outras doenças desenvolvidas em fun-
ção da deficiência imunológica dos portadores do HIV). Finalmente, a aids
é adquirida por um agente transmissor externo – o retrovírus HIV –, e
não desenvolvida pelo próprio organismo, como no caso do câncer. Em
razão das peculiaridades que a envolvem, a começar por suas caracterís-
ticas médico-científicas, a aids tornou-se também uma síndrome extre-
mamente complexa do ponto de vista sociocultural.
Mais de vinte anos se passaram e o tema da aids ainda se apresenta
como fascinante e multifacetado: quanto mais pensamos e pesquisamos
sobre ele, mais encontramos perguntas e novos caminhos, sempre intrin-
cados, relacionando sexo, morte, doença, moral, comportamentos e, cla-
ro, estigmas, preconceitos, discriminações, omissões e silêncios. Engen-
drando sobretudo relações entre o sexo e a morte, desde o seu apareci-
mento, a aids tem se revestido de aspectos obscuros, sombrios, proibidos.
Some-se a isso o fato de que ainda não foram descobertos sequer uma va-
cina preventiva ou medicamento para a sua cura, e tem-se uma doença sin-
gular. Claro que os tratamentos e as perspectivas de uma vida com qua-
lidade modificaram-se radicalmente, em particular nos últimos cinco

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anos, aproximando a aids de doenças tidas como síndrome (especialmente no que diz respeito aos
crônicas (ou seja, que exigem tratamento cons- chamados “grupos de risco”: gays, usuários de
tante, mas não causam a morte do paciente, desde drogas, artistas), favorece a manutenção e o refor-
que seu tratamento seja rigorosamente seguido).1 ço de inúmeros estigmas sociais relacionados à
Desde 1996, a utilização de medicamentos aids, refletidos particularmente no isolamento e
combinados para tornar mais eficaz o tratamento no anonimato que cerca muitos de seus portado-
da aids (já que o HIV apresenta, como uma de res.
suas características, a adaptabilidade e resistência A despeito dos inúmeros avanços nos tra-
aos remédios usados isoladamente) revolucionou tamentos e terapias – garantindo atualmente aos
as formas de convívio com a doença, em termos soropositivos uma vida com qualidade e fazendo,
tanto médicos como sociais. Ativos em diferen- notadamente, despencar o número de mortes
tes estágios de desenvolvimento da síndrome, es- causadas pela síndrome –, um fantasma insiste
ses medicamentos atuam, basicamente, no senti- em rondar as pessoas por ela afetadas: a estigma-
do de equilibrar a proporção entre o número de tização que cerca a doença e, desse modo, reveste
cópias de HIV presentes no sangue e o número de seus portadores de imagens estigmatizantes.
células de defesa do organismo (as chamadas cé- Como já foi dito, referimo-nos aos estigmas da
lulas CD4) – quanto maior o número de vírus, aids, e não simplesmente aos preconceitos que a
menor o número de células CD4 e, portanto, maior cercam, por acreditar que, na definição desse con-
a probabilidade de a pessoa sofrer alguma infec- ceito, encontra-se uma das chaves para entender
ção em virtude da sua baixa imunidade. Com os a síndrome. A aids passou a ocupar tal lugar – ao
medicamentos, a quantidade de HIV tende a di- mesmo tempo estigmatizado e estigmatizador –
minuir; ao mesmo tempo, sua utilização reflete- com primazia, constituindo um dos melhores
se de forma positiva na saúde do paciente, pois exemplos para tratar de estigmas, adjetivados
permite ao organismo recuperar-se, fortalecendo agora de sociais.
seu sistema imunológico. A palavra estigma não nos era desconheci-
Dessa maneira, com o advento dos “coque- da, no entanto, nunca havíamos refletido sobre
téis”,2 constatamos maior inserção social dos ela de forma sistematizada, antes de relacioná-la à
portadores do HIV, que passaram a ter lugar e no- aids.3 Talvez, por isso, nem suspeitássemos de
me, nas mídias em geral. Entretanto, os estigmas suas estranhezas, que levaram a inúmeras desco-
da aids persistiram mesmo com o aumento da so- bertas. Num primeiro momento, esforçamo-nos
brevida do paciente e de suas atividades quanto à por distingui-la de outras que lhe são próximas,
sociabilidade. É duvidoso, por exemplo, que um muitas vezes empregadas como sinônimos – pre-
soropositivo declarando-se em tratamento seja conceito, estereótipo, discriminação, exclusão,
contratado como funcionário regular de uma em- minoria, dominação – com base nas definições do
presa. O desconhecimento científico, aliado ao dicionário Aurélio.4 Estigma (do latim stígma, de-
imaginário que, desde o início, acompanha a rivado do grego stígma) é definido como cicatriz,
marca, sinal visível (como os estigmas da varíola),
1 Não iremos tratar essa questão, mas gostaríamos de mencionar que, levando-nos já a uma aproximação com a aids,
no caso da aids, uma das dificuldades apontadas pelos médicos é a também ela portadora de marcas e sinais inscritos
manutenção constante e ininterrupta do tratamento, por eles denomi-
nada adesão. Muitas vezes, os pacientes se descuidam dos medicamen- no corpo de seus portadores, seja de forma direta
tos, que exigem rotina rigorosa de horários e controle do seu uso, (nas fases mais críticas da doença ou certas carac-
especialmente aos primeiros sinais de melhora.
2 Atentemos um momento para o uso, amplamente difundido, da
palavra coquetel em referência aos medicamentos empregados no trata- 3 Nossa primeira sistematização dessa relação foi feita no curso “Dis-
mento da aids. A peculiaridade do nome remete a celebração e festa – o cursos jornalísticos e estigmas sociais”, ministrado aos alunos de gra-
que não deixa de ser verdade, por tratar-se de uma boa notícia aos duação em jornalismo, no Departamento de Jornalismo e Editoração
soropositivos –, mas camufla seus efeitos colaterais e as dificuldades de da ECA/USP, no segundo semestre de 2000.
ter de lidar, várias vezes ao dia, com a ingestão de um número elevadís- 4 BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, A. Rio de Janeiro:
simo de comprimidos. Nova Fronteira, 1986, p. 721.

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terísticas associadas aos grupos de risco) seja de das, procedimento comum quando pensamos na
maneira indireta (o próprio vírus HIV colocando- aids. Em relação aos estigmas, diríamos que os es-
se como uma inscrição física, registrada no san- tereótipos funcionam como reforço e manuten-
gue do soropositivo). ção de um sistema já instaurado – por meio da-
Os estigmas, na condição de marca, podem queles – como diferenciador de grupos determi-
ser um sinal tanto infamante ou vergonhoso nados.
como natural do corpo, assinalando, nos dois ca- Valendo-nos dessas operações discursivas e
sos, uma diferença, uma distinção, isolando e, ao sociais – estigmas, preconceitos, estereótipos –,
mesmo tempo, reunindo e identificando os pos- chegamos aos atos cotidianos de discriminação,
suidores de um mesmo estigma. Em sua origem que isolam e segregam aqueles que carregam as
religiosa, associam-se às cinco chagas de Cristo: marcas (os estigmas) de sua condição, excluindo-
sua presença atesta não apenas a santidade, mas os, afastando-os, desviando-os, tornando-os in-
também o pertencimento a um grupo especial. compatíveis, abandonando-os, privando-os, des-
Essa escolha, longe de ser um privilégio, carrega pojando-os e, no limite, eliminando-os de fato do
em si sofrimentos e obrigações. convívio social. Das relações de discriminação,
Os preconceitos, diferentemente dos estig- exclusão e dominação constituem-se as minorias,
mas, operam como julgamentos a priori realiza- ou seja, aqueles que, menos numerosos, susten-
dos sobre um grupo ou um indivíduo. Podemos tam idéias contrárias às majoritárias. No caso do
dizer que os estigmas, mais abrangentes, se en- Brasil, é interessante notar que o estabelecimento
contram na base dos preconceitos; estes, por sua de minorias não se faz tanto em termos numéri-
vez, depois de instituídos socialmente e interna- cos, mas de poder, como quando nos referimos
lizados individualmente, passam a existir inde- aos negros e às mulheres como “minorias”. Ain-
pendentemente dos estigmas que possam tê-los da que não representem o menor número de pes-
originado. Definidos como “conceito ou opinião soas, as relações de dominação que as submetem
formados antecipadamente, sem maior pondera- são mantidas por uma suposta maioria detentora
ção ou conhecimento dos fatos; julgamento ou de mais poder.
opinião formada sem se levar em conta o fato que Esse contraponto amplia a definição de mi-
os conteste; superstição, crendice; suspeita, into- noria, recuperando um sentido presente na ex-
lerância”,5 os preconceitos podem gerar ódio irra- pressão latina minus caput, ou seja, alguém “priva-
cional ou aversão a outras raças, credos, religiões, do de seus direitos civis”.7 Dessa expressão latina
como percebemos freqüentemente em diversas provavelmente se formou minuscapare (menos-
relações sociais. prezo, descrédito, menosprezar, menosprezado,
Na esteira dessas intolerâncias surgem os minoritário), apontando o descaso com as “mi-
estereótipos, “forma compacta obtida pelo proces- norias” manifestado em tantos momentos. A do-
so estereotípico”,6 espécie de clichê (gravação, re- minação de um grupo sobre outro indica, portan-
produção) tornada lugar-comum, chavão utiliza- to, poder, influência, domínio, repressão, prepon-
do sem que nos perguntemos sobre suas signifi- derância, ocupação, alcance, prevalência. O jogo
cações. Os discursos jornalísticos, em geral, en- entre essas palavras se faz de forma dinâmica e
contram-se repletos desses chavões, que carecem não-hierárquica, ainda que possamos estabelecer
de explicação. No caso dos estereótipos, ao iden- uma ordem lógica – dos estigmas à dominação,
tificar certas posturas ou comportamentos, auto- passando pelos preconceitos, estereótipos, discri-
maticamente enquadramos as pessoas que os minação e exclusão das minorias. Exemplo vivo
possuem em determinadas categorias já defini- dessas relações encontramos nos conflitos anti-
gos e recentes no Oriente Médio, sobretudo en-
5 Ibid., p. 1.380.
6 Ibid., p. 720. 7 Ibid., p. 1.138.

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tre palestinos e israelenses, e todas as nuanças que ápice, culminou com o questionamento sobre a
os envolvem: religião, política, economia, poder, possibilidade mesma de campanhas de prevenção
fanatismos e nacionalismos de ambos os lados, eficazes e, mais ainda, a validade de tais ações in-
sem que, com isso, se apaguem as relações de do- tervencionistas num campo em que a ação públi-
minação construídas sobre fortes e visíveis estig- ca parecia querer interferir por demasiado em
mas. questões privadas, íntimas até. Dessa forma, a
É dos estigmas, portanto, que partimos questão das campanhas de prevenção deslocou-
para pensar as tematizações da aids, percorrendo se, buscando tematizar o trabalho das mídias em
suas trajetórias narrativas nos jornais, nas campa- relação à aids e seus discursos. Quanto às campa-
nhas de prevenção e nas relações sociais, sem es- nhas, ainda que apresentem um limite que nunca
quecer os entrelaçamentos que relacionam tais será transposto (o hiato entre prevenção e infor-
narrativas entre si e também com as do discurso mação carrega em seus interstícios muito mais
médico-científico. abismos do que podemos imaginar), fazem-se
necessárias e imprescindíveis em se tratando de
uma epidemia como a aids. Tal caráter epidêmico
TEMATIZAÇÕES NARRATIVAS NAS
justificaria, a princípio, uma suposta interferência
MÍDIAS em assuntos de âmbito individual.
Nossas preocupações com a relação entre
A aids passou a ocupar espaço nos jornais
aids e estigmas sociais – antes ainda de ser assim
no início da década de 80, com o aparecimento
nomeada – remontam a 1993, ano em que come-
dos primeiros casos clínicos. O destaque nessas
çamos a desenvolver um projeto de pesquisa de
primeiras matérias é que, apesar de o desconhe-
mestrado sobre o tema da aids nas mídias. Como cimento científico na época ser ainda grande em
todo projeto em seu início, ele também carregou relação à aids como doença, alguns elementos
uma grande ambição e, aos poucos, foi se ajus- simbólicos que permaneceriam até recentemente
tando a um período limitado de tempo e possi- começam já a cristalizar-se. Entre eles, destacam-
bilidades. Em 1994 nasceu um projeto embrioná- se as referências aos homossexuais e aos usuários
rio com a pretensão de discutir a ineficácia das de drogas, o tom alarmista das matérias, demons-
campanhas de prevenção à aids voltadas a jovens trando o desconhecimento da ciência quanto à
e, assim, contribuir para apontar suas fragilidades doença e a idéia de que a aids alastrava-se pelo
e lançar diretrizes ou propostas de campanhas mundo.9 Em sua trajetória pelas mídias, a aids foi
mais eficientes. Esse empreendimento surgia de narrada, primeiramente, como uma doença que
um incômodo: por que, a despeito de todas as afetava apenas homossexuais masculinos, ou seja,
campanhas realizadas (algumas até notadamente pessoas de vida sexual tida como desregrada e
boas, em termos qualitativos), a informação não promíscua, em comparação com os padrões so-
se refletia no aumento da prevenção à aids entre ciais vigentes.
os jovens?8 A pergunta procurava (e já carregava
Num segundo momento, os comporta-
em si) uma resposta que parecia simples. Doce
mentos “desviantes” não pareciam mais tão dis-
ilusão, descobriríamos depois, ao tentar encon-
tantes: surgem nas mídias inúmeros casos de pes-
trar a tal “fórmula mágica” para as campanhas de
soas famosas – personalidades públicas, atletas,
prevenção.
atores, cantores, artistas em geral – portadoras do
Durante a pesquisa de mestrado, iniciada HIV. Um dos casos mais notáveis foi o jogador
em 1995, começamos a rever os pressupostos do norte-americano de basquete Magic Johnson,
projeto e enfrentamos grande crise, que, em seu que veio a público em 1991 falar da sua condição.
8 A prevenção, não apenas entre os jovens, continua um sério pro-
Antes dele, o ator de cinema Rock Hudson, mor-
blema até hoje, de acordo com o suplemento “A aids mudou de cara”,
Folha de S.Paulo, Revista da Folha, 28/nov./2001. 9 SOARES, 2001.

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to em 1985, havia declarado ser soropositivo. Os aids engendra mesmo um grande enigma, mais
anúncios não paravam de se suceder e as mortes tarde percebido como estigma, para além do pre-
aconteciam rapidamente, já que a ciência não ti- conceito ou da discriminação.
nha ainda encontrado um meio de controlar a A pesquisa sobre o tema da aids foi, poste-
epidemia. Para ficar entre personalidades conhe- riormente, estendida a outros jornais.12 Apenas
cidas, Henfil morreu em 1988, Lauro Corona em nesse breve intervalo de tempo, foram percebidas
1989, Cazuza em 1990 (todos lembramos da capa variações e deslocamentos nas narrativas da aids,
de uma revista estampando sua “agonia em praça demonstrando a complexidade da síndrome em
pública”), Freddie Mercury em 1991, Renato termos socioculturais. Em linhas gerais, pode-se
Russo em 1994, Betinho em 1995. Todos morre- apontar, para o primeiro período (1994-1995), a
ram antes do advento do uso combinado de me- configuração de três grupos temáticos indicativos
dicamentos anti-aids. das tendências da imprensa quanto à questão da
Apenas num terceiro momento, no final da aids: Estado, Ciência e Homossexualidade. No se-
década de 90, as mídias passaram a tratar a aids em gundo período (1997-1998), tem-se a formação
âmbito mais geral, estendendo seus relatos aos ci- de quatro grupos temáticos: Estado, Ciência, Pes-
dadãos comuns, antes anônimos, e às relações co- soas e Sociedade civil. Os dois períodos apresen-
tidianas. Tal deslocamento, observado nas mídias, tam entre si convergências e dissonâncias.
encontra paralelo na própria transformação da Uma constante é a recorrência de matérias
configuração da aids em termos epidemiológicos na editoria de Ciência, relacionadas geralmente à
e socioculturais. A trajetória da transformação do boa notícia representada pelos avanços científicos
conceito de risco, próprio dos anos 80, em vulne- e descobertas de medicamentos. Particularmente
rabilidade, característico da década de 90, revela no segundo período, em que os medicamentos
uma abordagem interessante para pensar as nar- passam a ser combinados para tratamento dos
rativas midiáticas da aids, num processo que ca- portadores, é grande a euforia das mídias em tor-
minha do estranhamento de grupos e comporta- no dessa nova possibilidade de controle e supe-
mentos de risco ao reconhecimento das pessoas ração da doença. Tal possibilidade de cura, acre-
em geral, recheando seus relatos com histórias de ditamos, gerou deslocamentos na relação dos so-
vida, entrevistas, depoimentos e experiências de ropositivos com a sociedade em geral: aqueles
familiares e amigos. que antes não podiam dizer-se portadores do HIV
No desenvolvimento do trabalho percebe- começam a se manifestar e a aparecer, ganham
mos que, mais do que uma síndrome clínica, ou nome e voz nas mídias, explicando talvez o au-
uma epidemia médica, a aids carrega em si tam- mento significativo do número de matérias sobre
bém uma síndrome cultural, ou epidemia social,
percebida na enorme carga de preconceito e dis- 11 “Imagens Veladas, imagens re-veladas: narrativas da aids nos escritos

criminação que cerca a doença e as pessoas por do jornal Folha de S.Paulo” (São Paulo, ECA-USP, 1997), em que são
apresentadas as construções narrativas e discursivas sobre a aids em
ela afetadas, muito maior do que em outras pato- matérias diversas publicadas na Folha de S.Paulo, em 1994 e 1995. A
logias. Ainda hoje nos surpreendemos com o bai- dissertação foi posteriormente editada em forma de livro. Cf. SOA-
RES, 2001.
xo grau de simpatia e a falta de solidariedade em 12 Em 1997 e 1998, desenvolvemos um trabalho em colaboração ao

torno dos chamados “aidéticos”.10 Em nossa dis- Projeto de Pesquisa Alfa-Educom, da Comunidade Européia. O pro-
jeto analisa as estratégias de prevenção à aids adotadas em diversos paí-
sertação de mestrado,11 as narrativas da imprensa ses e envolveu pesquisadores e universidades da França, Espanha,
lidas no jornal Folha de S.Paulo confirmaram: a Argentina e Brasil. No Brasil, a pesquisa foi coordenada pela profa.
dra. Silvia Helena Simões Borelli, do Programa de Estudos Pós-Gra-
duados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica da São
10 O próprio nome aidético já é depreciativo; o câncer, outra doença Paulo (PUC-SP, Departamento de Antropologia). O texto integra o
letal, nem mesmo tem um nome específico para seus doentes e des- relatório final da pesquisa “Aids e prevenção: balanços e perspectivas
perta nos outros sentimentos supostamente mais nobres. A primeira das estratégias de comunicação” (1998). Além das campanhas gover-
pergunta, ao ouvir que alguém foi infectado pelo HIV, é se houve namentais, foram analisadas matérias dos jornais Folha de S.Paulo, O
contaminação, alimentada pelo imaginário que se segue: sexo, drogas Estado de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Correio
ou homossexualidade. Braziliense e Gazeta Mercantil, entre 1994 e 1998.

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pessoas em geral e suas experiências com a aids.13 ticulares, como os jovens e as mulheres. As pri-
Essas relações serão melhor exploradas na análise meiras campanhas veiculadas no Brasil possuíam
da crônica de Betinho, nos entrelaçamentos esta- apenas caráter informativo, na linha do “Saiba
belecidos entre a cura física e a cura social. como se pega aids”; num segundo momento, sur-
Em trabalho anterior,14 apontávamos que a giram campanhas com enfoque testemunhal, por
ordenação dos grupos temáticos marca a grande meio de depoimentos de personalidades famosas;
diferença entre as leituras de 1994-1995 e as de num terceiro momento, o tom interpelativo das
1997-1998. No primeiro período, a questão dos campanhas pretende convocar e mobilizar as pes-
portadores do vírus associava-se à forma como soas a uma ação efetiva em relação à aids.
haviam contraído a doença, tornando constantes Exemplos dessa trajetória podem ser loca-
as referências à homossexualidade e às drogas. As lizados em campanhas voltadas especificamente
matérias distinguiam claramente os chamados para mulheres, como “Quem se ama se cuida:
grupos de risco (homossexuais e drogados) das DSTs” (1995), “Direitos” (1996), “Canções de
pessoas fora de risco (todas as outras), revelando a Carnaval: viver sem aids só depende de você”
presença de poucos atores sociais envolvidos nas (1999). A primeira traz um informe, em que a
narrativas e reforçando o preconceito em relação apresentadora Hebe Camargo fala da aids de for-
a grupos sociais específicos, distanciados das pes- ma impessoal e distanciada, restringindo-se a
soas em geral. No segundo período, o eixo temá- conselhos e informações sobre a prevenção da
tico revela uma tendência à personalização dos doença (como se dissesse “Isso não me diz res-
portadores, com o aparecimento de fotos, no- peito. Sei que isso existe e é um sério problema,
mes, idade e profissão, entre outros dados. Da mas a solução está nas mãos de vocês”). A segun-
preocupação com o contágio e a doença, as ma- da aproxima-se um pouco mais do público, mos-
térias passam a privilegiar aqueles que (con)vivem trando a atriz Sandra Bréa em um depoimento so-
com aids – provavelmente em razão do forte im- bre a sua condição de soropositiva e, conseqüen-
pacto causado pela descoberta de novos medica- temente, seus direitos (como dizendo “Isso
mentos, como já foi dito –, deixando de enfatizar aconteceu comigo e pode acontecer com você;
a que grupo de risco pertenciam os portadores, sou testemunha disso”). A terceira campanha, es-
aproximando-os, assim, das pessoas em geral. pécie de convocação em tom mais informal e di-
Tais medicamentos ampliaram a qualidade e a vertido, traz a atriz Regina Casé cantando mar-
perspectiva de vida dos portadores, desassocian- chinhas de carnaval, aproximando-se do público
do, ao menos no plano clínico, o par aids/morte. e interpelando-o a assumir a aids como um pro-
É interessante notar que o mesmo desloca- blema de todos (como se dissesse “Em relação à
mento – do isso não me diz respeito a isso me in- aids, estamos todos sujeitos aos mesmos ris-
terpela, do imobilismo à mobilização, do distan- cos”).15
ciamento à proximidade, do falar para ao falar No início do século XXI, confirma-se a mu-
com – pode ser percebido nas campanhas de pre- dança observada nas mídias (jornais impressos e
venção governamentais veiculadas entre os anos campanhas de prevenção) ao longo dos anos 90:
de 1994 e 1999. Elas obedecem a uma lógica sa- a aids mudou de cara, aproximando-se das pesso-
zonal (notadamente o carnaval e o Dia Mundial as em geral. É esse o título do suplemento publi-
de Luta contra a Aids) e desenvolvem-se com
base em dois eixos fundamentais: campanhas ge- 15 Cf., a esse respeito, o relatório Aids e Prevenção: balanços e perspecti-
vas das estratégias de comunicação (BORELLI & SOARES, 1998) e o
néricas voltadas à população como um todo e artigo “Aids, feminino plural: trajetos de uma epidemia” (SOARES,
campanhas específicas dirigidas a segmentos par- 2000), apontando as trajetórias das três campanhas como uma possível
síntese da aids nas mídias, na sociedade e na epidemiologia: informar,
testemunhar, interpelar, movimento que vai dos grupos e dos compor-
13 BORELLI & SOARES, 1998. tamentos de risco (“eles” e “você”) à vulnerabilidade de cada um
14 SOARES, 2000. (“nós”), da impessoalidade à humanização.

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cado no jornal Folha de S.Paulo, em 28 de novem- escritas para pensar a aids em termos sociais e
bro de 2001, com a seguinte chamada de capa: culturais. A fim de estabelecer as perspectivas
“Vinte anos depois, a doença mata menos e com desse traçado, acompanhemos agora a leitura da
menor estardalhaço, mas a contaminação e o pre- crônica a partir de seus aspectos narrativos e dis-
conceito continuam”. Ainda que as narrativas te- cursivos.
nham se deslocado dos outros para todos nós, os
avanços médico-científicos não se refletiram nos TEMATIZAÇÕES NARRATIVAS
planos socioculturais – nem se poderia esperar tal NA SOCIEDADE
transposição automática. A aids perdeu muitos
Uma das características mais interessantes
de seus aspectos aterrorizantes e já não é sinôni-
da crônica “O dia da cura”, originalmente publi-
mo de morte. Mesmo assim, para os que (con)vi-
cada no Jornal do Brasil, em 1992, é o fato de se
vem com a doença – sejam portadores sejam pes-
tratar de um texto narrado em primeira pessoa
soas a eles relacionadas –, as histórias de estigma-
por um protagonista, na época, ligado diretamen-
tização – em forma de preconceito ou de discri-
te à problemática da aids: o sociólogo Herbert de
minação – perduram, embora com pequenas
Souza, o Betinho.17 Algumas indicações no texto
variações.
levam a perceber que a história, embora fictícia,
Apesar de as narrativas terem se deslocado não trata de outro personagem senão dele mes-
do falar para ao falar com, os soropositivos não mo. Ao mencionar Maria, sua esposa, a (ABIA) e
foram alçados à categoria de cidadãos comuns – o Instituto Brasileiro de Análises Associação Bra-
aceitos pela sociedade por não se diferenciar das sileira Interdisciplinar de Aids Socioeconômicas
outras pessoas por qualquer razão que seja –, pois (Ibase), instituições nas quais trabalha, Henfil e
neles há traços e vestígios das marcas impressas Chico, seus irmãos, e a própria idade, o autor/
pela doença. Segundo a matéria da Folha de narrador identifica-se ele mesmo como o sujeito/
S.Paulo, o antigo slogan da campanha de preven- personagem da história criada.
ção de 1994 – “Quem vê cara não vê aids” – con- O fato de a história ser contada no tempo
tinua valendo. “A diferença é que, naquela época, passado, como se tivesse já acontecido, apesar de
a aids acabava mostrando a sua cara: o paciente se referir à realidade presente – a descoberta da
emagrecia muito, a pele acinzentava, o cabelo fi- cura da aids –, confere ao texto outra de suas pe-
cava ralo, o corpo manchado. Com o coquetel, os culiaridades. Até o momento (agosto de 2002),
soropositivos parecem saudáveis, mas isso não tal descoberta insere-se no universo do tempo fu-
espantou o preconceito”.16 Estigmatizados, ante- turo, pois ainda não foi encontrado um medica-
riormente, pelas marcas físicas e, hoje em dia, pe- mento capaz de curar a aids, criando uma espécie
las marcas simbólicas, os portadores do HIV pare- de estranhamento onírico em relação ao texto
cem não ter nome mais adequado: eles são de narrado, como se “o não-acontecido já houvera
fato depositários dos estigmas que ainda constitu- acontecido”, parafraseando o filme Marvada
em a aids, mesmo que em sinais não-revelados. Carne, de André Klotzel (1985).
Na crônica publicada em 1994, Betinho já Não bastasse seu valor literário, a crônica
intuíra tais desafios, de forma poética, ao relacio- trata ainda de pelo menos dois temas extrema-
nar a cura do corpo – que a medicina pode pro- mente importantes quando se fala da aids: o de-
piciar via ciência – e a cura da sociedade – que só sejo de que chegue mesmo o dia da cura concreta,
pode advir da superação de estigmas sociais. A por intermédio de medicamentos, e a mensagem
metáfora entre a vida/morte do corpo e a vida/ de que a ênfase na solidariedade e na vida já é uma
morte da sociedade é uma das mais belas jamais
17 O sociólogo Betinho, portador do HIV e uma das principais perso-
16Cf. suplemento “A aids mudou de cara”, Folha de S.Paulo, Revista da nalidades nas discussões e nos avanços relativos à aids e a outras ques-
Folha, 28/nov./2001. tões sociais, morreu em 1995.

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forma de cura, senão física, ao menos social. O morte em vida por apresentar uma doença letal, a
autor demonstra, assim, seu talento: para tratar aids). O texto afirma primeiro a morte, com o
de um tema considerado por ele primordial – não enunciado “Afinal me havia preparado tanto para
se deixar morrer em vida por ser soropositivo, a morte que a vida agora era um problema”,19 en-
construindo relações solidárias e plenas com as tre outros, para negá-la, em seguida, com a repo-
pessoas, soropositivas ou não –, recobre-o com sição do estado de vida proporcionado pela des-
outro, o da própria descoberta científica da cura coberta de uma vacina contra a doença, tornando
da aids por meio de uma vacina, sobrepondo, o sujeito “uma pessoa de novo condenada a vi-
desse modo, a cura científica à cura social. A crô- ver”.20 A alternância morte-vida não está inserida
nica começa com a leitura de uma notícia bom- no texto cronologicamente, mas em sentido ló-
bástica, em um jornal diário: gico, sendo a morte demarcada pela fase que vai
do diagnóstico da doença ao cotidiano com ela,
Numa manhã comum, como qualquer anterior à descoberta da cura, e a vida assinalada
outra, abri o jornal e li a manchete: “Des- pela etapa iniciada com a descoberta da vacina.
coberta a cura da aids!”. A princípio fiquei Pressupõe-se, portanto, que antes do diagnóstico
deslocado na cama, como se a terra tivesse
da doença havia também um estado de vida –
saído do lugar e meu quarto estivesse
mais à esquerda do que de costume.
“Casados há 21 anos, os últimos tinham sido um
Fiquei por um tempo parado, sem saber tempo de tensão”21 – podendo, então, ser apre-
qual deveria ser o primeiro ato de uma sentado o seguinte percurso de relações orienta-
pessoa de novo condenada a viver. Pri- das: vida (anterior ao estado de “doente”) –>
meiro, certificar-se. Telefonei para o meu não-vida (ser diagnosticado com uma doença
médico. Realmente, a notícia era sólida, mortal) –> morte (dada como certa, inevitável) –>
(...) um eficiente viricida fora descoberto. vida (após a descoberta da cura).
As outras notícias seguiam o mesmo cur- Note-se que, ao final do percurso, o estado
so. (...) Telefonei para o meu analista. Dei inicial de conjunção com a vida é restabelecido.
a notícia sobre a cura da aids e decidi que
Inicialmente, havia por parte do sujeito uma
só iria enfrentar a felicidade nas próximas
sessões. Afinal me havia preparado tanto
disjunção em relação à vida – em função do diag-
para a morte que a vida agora era um pro- nóstico da doença mortal – e uma conjunção
blema.18 com a morte – pois ele já estaria se preparando
para ela. É importante ressaltar, entretanto, que
Uma aproximação à crônica apoiada em al- essa conjunção (antecipada) com a morte carac-
guns elementos da semiótica narrativa e discursi- teriza-se como crítica à própria maneira com que
va pode apontar sua articulação em três níveis as pessoas e a sociedade em geral encaram os so-
distintos: o das estruturas fundamentais, o narra- ropositivos, ou seja, considerando-os já irremedia-
tivo e o discursivo. O nível das estruturas funda- velmente condenados a morrer, verdadeiros mor-
mentais determina o mínimo de sentido com tos em vida.
base no qual o discurso se constrói mediante uma Mediante elementos sutis, espalhados pela
relação de oposição entre dois termos. Na crôni- crônica, tal perspectiva crítica é explicitada, por
ca, identificamos o par principal vida versus morte exemplo, na frase “uma pessoa de novo condena-
e suas negações, não-vida e não-morte. da a viver”.22 Essa afirmação indica que antes do
Além da oposição vida/morte, aparecem na estado de disjunção com a vida, em que o texto
crônica relações orientadas, como a passagem da insere-se efetivamente desde o início – uma vez
morte à vida (ainda que o sujeito não estivesse
19 Ibid., p. 44 (grifo acrescido).
efetivamente morto, mas apenas condenado à 20 Ibid., p. 43 (grifo acrescido).
21 Ibid., p. 44 (grifo acrescido).
18 SOUZA, 1994, p. 43. 22 Ibid., p. 43 (grifo acrescido).

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que o narrador começa seu relato como soropo- As primeiras palavras da narrativa, no en-
sitivo –, havia um estado prévio de conjunção tanto, já partem de uma transformação desse es-
com a vida, como foi visto no percurso das rela- tado: “Numa manhã comum, como qualquer ou-
ções orientadas. Depois da notícia da descoberta tra, abri o jornal e li a manchete: ‘Descoberta a
da cura da aids, ou seja, da possibilidade de não cura da aids!’”.24 Ora, para alguém portador de
mais estar condenado a morrer – ou, nas palavras um vírus considerado mortal até o momento des-
do autor, podendo “morrer de causas mais ba- sa descoberta científica, tal notícia, por si só, de-
nais” e “como todos os mortais”23 –, o sujeito sencadeia um processo de transformação, descri-
volta a apresentar um estado de conjunção com a to pelo sujeito ao longo de sua narrativa. O con-
vida e disjunção com a morte, como antes da su- trato firmado pelo sujeito-doente com a morte,
posta contaminação. O tempo em que o sujeito por causa da infecção pelo vírus, pode enfim tor-
esteve, ainda que vivo, condenado a morrer, apesar nar-se um contrato que restabelece como objeto-
de não representar conjunção com a morte con- valor a vida. Mediante dessa descoberta o sujeito-
cretamente, reproduzia tal conjunção em sentido doente poderá percorrer a ação da narrativa, qual
figurado. Daí a opção por caracterizá-lo no per- seja, sair de um estado de conjunção com a morte
curso de relações orientadas como não-vida, e e passar a estar em conjunção com a vida. Para
não simplesmente como morte. executar essa ação (ou performance), o sujeito-
doente deverá desvencilhar-se de antigas posturas
Quanto às relações de conformidade ou
e valores – que o haviam acostumado à idéia da
desconformidade (em termos semióticos, euforia
morte –, saindo de seu estado inicial de desloca-
e disforia) do sujeito com os elementos no texto,
mento e imobilidade.
a vida é apresentada como “conforme” ou eufó-
rica, já que é o maior valor buscado por ele. Por A realização da performance é indicada de
outro lado, a morte é encarada como “desconfor- várias formas no percurso do sujeito-doente: ele
procura qual deveria ser o primeiro ato de uma
me” ou disfórica. A partir do momento em que a
pessoa “de novo condenada a viver”; checa a ve-
cura da doença é descoberta, o sujeito volta a es-
racidade da notícia (para certificar-se de que, além
tar em conjunção com a vida, e a narrativa con-
de “parecer” verdadeira, ela realmente o “era”, le-
clui-se de forma eufórica, conjugando os valores
vando o sujeito-doente a nela crer); telefona para
do sujeito aos elementos apresentados na crôni-
o médico e o analista, alegando ao segundo ainda
ca. Tem-se, aqui, o ponto de partida da geração
não estar preparado para a vida, depois de tanta
do discurso, que já engendra a reviravolta de seu
convivência com a morte; prepara uma explicação
desfecho.
para a família, que também sofreria uma transfor-
Passemos, então, ao âmbito das estruturas mação (a mulher não seria mais “viúva da aids”,
narrativas. A crônica descreve sucintamente, e não nem os filhos “órfãos” por conta da doença).
necessariamente nessa ordem, o estado inicial vi-
vido pelo sujeito (que chamaremos agora sujeito- Do meu lado, Maria ainda dormia e não
doente): preparando-se para a morte, desacostu- sabia que nossa vida havia mudado. Casa-
mado à vida, privado de pequenos prazeres como dos há 21 anos, os últimos tinham sido
um tempo de tensão a cada gripe, mancha
beber cerveja e impossibilitado de manter com a
na pele, febre sem explicação. O amor fei-
mulher uma vida sexual regular. Tal estado do su-
to durante tanto tempo e que havia sido
jeito-doente, caracterizado como de disjunção interrompido por medo do contágio, do
com a vida, deve-se ao fato de ser ele portador do descuido, do imponderável, estava agora
HIV, vírus da síndrome da imunodeficiência ad- ao alcance da vida como um milagre, ape-
quirida, a aids. sar de meus 56 anos, como costuma insis-

23 Ibid., p. 44 (grifo acrescido). 24 Ibid., p. 43.

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tir um jornal paulista. (...) Ela não mais se- dade que nem a morte enterra? Por que
ria a viúva da aids. Grandes avanços. Ti- logo eles haviam morrido, se eram meus
nha os filhos para avisar. Não seriam mais irmãos, a quem telefonava com a certeza
órfãos da aids. O pai agora tinha algo de de quem acreditava poder fazer isso sécu-
imortal ou podia morrer como todos os los e séculos seguidos? De repente, nin-
mortais.25 guém do outro lado da linha. Números
riscados numa agenda sem remédio. (...)
Outras ações sucedem: ele pensa em con- Não há remédio para a morte de meus ir-
vocar os amigos de trabalho para comemorar a mãos, que são tantos.27
boa notícia, compartilhando-a, e espera que as
mídias o procurem para entrevistas – ele, que, por Essa oscilação é marcada especificamente
tanto tempo, representou para a imprensa uma pela lembrança do enterro de um dos irmãos e
espécie de “trindade aidética” (hemofílico, soro- pelo inconformismo com sua morte. Nesse mo-
positivo e sociólogo), era perfeito para ser entre- mento, o sujeito-doente estende sua dor a todos
vistado sobre a aids. “Iam querer saber o que sen- os pacientes soropositivos já mortos por causa da
tia, o que faria, meus primeiros atos, minhas aids, chamando-os “meus irmãos”, e retoma as
emoções, minhas reações diante da vida e da nor- implicações da notícia que acabara de ler para a
malidade. Imaginava as perguntas: como você se vida de tantos outros “irmãos”, ainda vivos. A
sente agora que é de novo um ser normal? O que dor pela morte de muitos torna-se alegria pela
vai fazer agora de sua vida? O que você aprendeu vida de tantos outros. É interessante notar como
com a aids? Você continua a ter raiva do gover- se dá essa passagem na crônica. Após estender a
no?”.26 dor pela morte de seus irmãos a todos os soro-
positivos, o sujeito-doente, já disposto a finalizar
Esse percurso de ação, traçado pelo sujeito-
sua performance, passa a descrever o contato
doente a partir da mudança em relação à aids –
com outros sujeitos-doentes, anônimos, que, ao
que deixou de ser uma doença mortal –, mostra a
tomar conhecimento da cura da aids, passam a se
realização de sua performance, que o levará a uma
identificar e recuperar a esperança de novamente
mudança de estado da não-vida à vida – essa úl-
entrar em conjunção com a vida, como visto an-
tima apresentado-se como o valor por ele alme-
teriormente nas trajetórias das mídias:
jado. Entretanto, tal percurso é entrecortado por
uma hesitação, marcada no texto pela lembrança De repente me dou conta de que houve
de seus irmãos, Henfil e Chico, mortos em razão realmente remédio para a aids. É hora de
da doença. O sujeito-doente interrompe sua tra- levantar, atender os telefonemas, reunir o
jetória em direção à vida, representada pelas pro- pessoal da ABIA. Festejar com o pessoal
vidências práticas que já deveria tomar para ter do Ibase. Abrir um champanhe, ou uma
efetivamente acesso à descoberta e comemorar a cerveja. Telefonar para saber onde estava
cura, e mostra-se entristecido. o tal remédio, como comprá-lo, o preço,
o prazo da chegada. Estaria disponível
Ainda na cama, onde de manhã gosto de quando, a que preço? Quem poderia
ficar, tive saudades do Henfil e do Chico, comprá-lo?
e, em meio à alegria que já me contagiava, Algo inusitado acontecia em paralelo.
chorei. Por que haviam sofrido tanto e Amigos e amigas, que não suspeitava, me
morrido tão fora de hora? Quanto sofri- chamavam para dizer que eles também
mento inútil, quanta dor que palavras não eram soropositivos, porque agora havia
descrevem. O olhar parado de quem ex- cura. Uns diziam que suas vidas sexuais
pira. O abandono sem remédio. A fatali- eram um caos, mas que agora havia cura.
Alguns me chamavam para dizer que iri-
25 Ibid., p. 44.
26 Ibid., p. 45. 27 Ibid., p. 45.

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am começar o tratamento, o controle e a tada apenas por um remédio – e passa a revestir-


pensar na vida, porque agora havia cura. se da possibilidade concreta de viver.
E, finalmente, outros me diziam que ago-
ra poderiam revelar à imprensa sua condi- De repente, dei-me conta de que tudo ha-
ção de soropositivos, para servir de exem- via mudado porque havia cura. Que a
plo, porque agora havia cura.28 idéia da morte inevitável paralisa. Que a
idéia da vida mobiliza... mesmo que a
A possibilidade de cura, valor tornado morte seja inevitável, como sabemos.
acessível ao sujeito, leva-o a buscar certas coisas Acordar sabendo que se vai viver faz tudo
que antes não lhe eram oferecidas, implicando ter sentido de vida. Acordar pensando
mudanças de comportamento motivadas por esse que se vai morrer faz tudo perder o sen-
tido. A idéia da morte é a própria morte
querer-fazer e viabilizadas, acima de tudo, pelo
instalada.
atual poder-fazer. Na crônica, alguns atores se co- De repente, dei-me conta de que a cura da
locam como aqueles que oferecem valores posi- aids existia, antes mesmo de existir, e de
tivos ao sujeito, direcionando-a para a vida: o pre- que seu nome era vida. Foi de repente,
sidente americano dando credibilidade à notícia, como tudo acontece.29
o depoimento de cientistas dos laboratórios ame-
ricano e francês (essa duplicidade referindo-se à Por situar-se no campo do sonho e do fu-
época em que o HIV foi isolado pela primeira vez turo, já que efetivamente a cura clínica da aids
e os dois laboratórios disputaram sua descoberta) ainda não foi encontrada, a crônica abre novas
e o próprio médico do sujeito-doente confirman- possibilidades de reflexão: por meio da solidarie-
do a notícia. dade, do respeito humano e da própria exaltação
à vida, a morte, mesmo que cruel, perde seu sen-
O fazer persuasivo exercido por aqueles
tido e sua força. A vida é a cura.
que oferecem ao sujeito a possibilidade de cura
transforma-se em um fazer interpretativo, toma-
do como verídico com base em seus próprios va- DA VIDA À VIDA
lores e, portanto, passível de crença. Primeira- As estruturas narrativas acima descritas
mente, a notícia da cura da aids caracterizou-se convertem-se em estruturas discursivas quando
como mentirosa, parecendo mas não sendo, neces- assumidas pelo sujeito da enunciação (não como
sitando confirmação; depois, mostrou que mes- um autor externo, mas nos mecanismos e estra-
mo não parecendo era, precisando de conprova- tégias internos utilizados na construção da narra-
ção para, finalmente, estabelecer-se como verda- tiva) em suas diversas escolhas. Os valores apre-
deira, parecendo e sendo. O valor vida só pôde ser sentados no nível narrativo tornam-se temas no
adquirido graças à descoberta dos cientistas e à nível discursivo,30 e os papéis por eles desempe-
confirmação de que era verdadeira (na figura de nhados (do poder-fazer, entre outros) tornam-se
um medicamento específico). Como nas narrati- temáticos (de pessoa sadia, por exemplo). Vários
vas tradicionais, a recompensa atribuída ao sujei- temas podem ser identificados na crônica aqui
to que cumpre a tarefa a ele designada manifesta- tratada: vida, morte, cura, aids, saúde, doença, so-
ropositividade, preconceito, discriminação e soli-
se, no caso da crônica, por meio do restabeleci-
dariedade. No plano discursivo, as escolhas nar-
mento de seu estado de conjunção com a vida.
rativas são analisadas segundo seus efeitos de sen-
Portanto, apenas mediante a ação efetiva do su-
tido e procedimentos enunciativos, colocados em
jeito a aquisição do valor vida será efetivada.
operação a fim de convencer o leitor de sua ver-
No final do texto, a possibilidade de cura dade (ou falsidade). Entre os efeitos do discurso,
amplia-se ainda mais – deixando de ser represen-
29 Ibid., p. 47.
28 Ibid., p. 46. 30 BARROS, 1988.

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podemos citar o de proximidade ou distancia- longo do texto (como o nome da esposa e dos ir-
mento da enunciação, e o de realidade ou refe- mãos). O texto constrói-se como uma espécie de
rente.31 ficção sobre a realidade, embaçando e mesclando
No texto analisado, escrito em primeira as fronteiras entre o documental e o ficcional, re-
pessoa, cria-se um efeito de proximidade e de vestindo o discurso de pessoas, espaços, datas e
subjetividade na visão dos fatos vividos e narrados dados reconhecíveis pelo leitor, no caso, as men-
por quem os viveu, mostrando-se, assim, impreg- ções ao presidente americano, ao Instituto Pas-
nado de parcialidade e do olhar do próprio nar- teur, à idade de Betinho, ao cantor Chico Buar-
rador. Não há um observador externo, tampouco que, ao apresentador Jô Soares, aos irmãos Henfil
a criação de um estado de objetividade e impar- e Chico, às ONGs ABIA e Ibase.
cialidade, como nas estratégias enunciativas pre- Ainda no que se refere à esfera do discurso,
sentes nos textos jornalísticos. Conhecemos os cabe apontar alguns mecanismos de comunicação
fatos e os julgamos segundo a própria figura do e persuasão ligados à enunciação ou às formas
narrador, que vai apresentado o desenrolar de com as quais a narrativa é construída. Todo dis-
suas ações/reações a partir da leitura de uma no- curso carrega em si valores que pretende estabe-
tícia em um jornal, numa manhã qualquer. Não lecer por meio da crença e da ação daquele que
há, no interior da crônica, nenhuma outra voz deve interpretá-los. Persuasão e interpretação rea-
nos falando diretamente, o que não exclui sua po- lizam-se no e pelo discurso.33 Desse modo, é pre-
lifonia de vozes, usada para criar sentidos múlti- ciso encontrar na crônica as marcas espalhadas
plos no texto (por exemplo, o salto entre a “cura” pelo narrador (aquele que tenta persuadir) a se-
encontrada no remédio convencional e a “cura” rem interpretadas pelo leitor (aquele ao qual cabe
figurada que representaria a própria vida, em sua interpretar) segundo suas próprias convicções e
acepção maior de disposição, solidariedade, atua- conhecimentos e, só então, assumidas ou não por
ção). Esse “jogo de vozes” é próprio de textos ele como verdadeiras. Note-se que, ao falar de
que, em suas características básicas, se apresen- narrador e leitor, estamos nos referindo a papéis
tam como não-autoritários ou poéticos, isto é, e funções desempenhados por certas categorias
não instauram uma verdade absoluta ou única, enunciativas, e não a personagens ou sujeitos
mas várias possibilidades de leitura, ainda que específicos; diferentes atores podem vir a ocupar
numa mesma linha temática. esses lugares sem que isso interfira na estrutura
Quanto ao efeito de realidade ou de refe- narrativa ali delineada.
rente, nessa crônica, a palavra não é cedida de for- O texto, da maneira como foi produzido,
ma direta a nenhum dos interlocutores mencio- procura instalar sua verdade, qual seja, a de que a
nados (médico, presidente, cientistas, analista, es- cura da aids, além de depender fundamentalmen-
posa, filhos, amigos e colegas de trabalho). É em- te da descoberta de um medicamento – fruto de
pregado, no entanto, o recurso de ancoragem32 investigações científicas –, deriva sobretudo da
em elementos externos para produzir efeitos de mudança das próprias relações sociais e de um
realidade, buscando dar veracidade e credibilidade novo modo de encarar a síndrome – da perspec-
ao texto não tanto pela informação ou pelo as- tiva da vida, e não da morte. Tal verdade, com vis-
sunto tratado, mas como indicadores de que de- tas a ser discursivamente instaurada, partiu da
terminada coisa, fato ou pessoa existe realmente. (fictícia) descoberta científica da cura para, ao co-
Entre eles, a própria figura do narrador, identifi- locar elementos relativos a outras pessoas infec-
cado com uma pessoa concreta – no caso o autor, tadas (os irmãos já mortos e outros soropositi-
Betinho – por meio de elementos espalhados ao vos), fazer parecer-verdadeira sua mensagem e,
portanto, ser positivamente interpretada.
31 Ibid.
32 Ibid. 33 Ibid.

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Quanto às estratégias discursivas emprega- a valorização da vida como transformadora de re-


das na persuasão e na interpretação, podemos lações sociais). Cada tema é recoberto por figuras,
identificar o recurso de implicitar conteúdos, va- como se verá a seguir.35
lendo-se de pressupostos (que aprisionam o leitor O percurso temático do espanto da cura é
em determinada rede de valores e relações, de recoberto pela figura da cama que parece fora de
modo a persuadi-lo de sua positividade e impor- lugar, representando o deslocamento do próprio
tância) e de subentendidos (que fazem o leitor en- indivíduo; o percurso da descoberta do medica-
tender o que o narrador quer dizer sem que ele o mento reveste-se de figuras como o telefonema
tenha dito, como no caso da verdade instaurada ao médico, o presidente americano na TV, os no-
de que talvez os males de que padecem os pacien- mes fictícios dos remédios, o laboratório francês;
tes da aids sejam mais sociais e culturais do que o percurso da retomada da vida recobre-se de fi-
físicos). Betinho poderia ter escrito, como faze- guras como as que se referem à mulher, que mu-
mos nesse momento, mais um texto teórico-ar- daria de status, e aos filhos; o percurso da morte
gumentativo sobre as mazelas e tristezas da aids, recobre-se da figura dos irmãos, já mortos, e do
a necessidade de solidariedade aos doentes, o pre- enterro de um deles; o percurso da solidariedade
conceito e a discriminação sempre presentes, o reveste-se da figura dos outros soropositivos; o
quanto seria bom se realmente fosse descoberta percurso da alegria reveste-se da vontade de co-
uma vacina contra o vírus (preventiva ou curati- municar o fato aos amigos e com eles comemo-
va). Entretanto, o narrador cria uma fábula – uma rar; o percurso da imprensa recobre-se das figuras
ficção, ainda que fundada em dados da realidade dos jornalistas, por meio de suas entrevistas, e do
–, recobrindo-a de figuras, imagens e sentidos programa de TV do apresentador Jô Soares. Na
múltiplos e diferenciados. Trataremos agora esses figurativização, percebe-se, por conseguinte, a fi-
dois procedimentos discursivos: a tematização e a guração (que instala figuras, como as já citadas) e
figurativização.34 a iconização (produzindo efeitos de realidade, re-
Os valores, como foi apontado anterior- feridos anteriormente). O narrador utiliza as fi-
mente, são organizados em percursos temáticos guras do discurso para levar o leitor a reconhecer
que tornam o discurso coerente mediante a repe- imagens do mundo (persuadindo-o) e a acreditar
tição de alguns traços. Há, por exemplo, o per- em sua verdade. O estabelecimento da crença
curso narrativo do sujeito-doente transforman- (convencimento) depende, em grande parte, do
do-se em percurso temático da cura, ou da volta reconhecimento dessas imagens, espalhadas nos
à vida, marcado no texto pela idéia de reação, bus- temas a serem recobertos pelas figuras.
ca do remédio, compartilhamento da notícia com A reiteração dos temas e a recorrência das
os outros. Existe também o percurso temático da figuras são denominadas isotopias.36 A isotopia te-
aids como doença com profundas repercussões mática decorre da repetição de unidades semân-
sociais e psicológicas, modificando comporta- ticas abstratas no percurso temático da vida, cos-
mentos e formas de interação entre as pessoas. E, turando os diversos fragmentos da narrativa e,
ainda, o percurso temático da dor pela morte de em sua leitura inversa, no percurso temático da
pessoas queridas, indicado pela referência à lem- morte – presente efetivamente nas atuais relações
brança dos irmãos. Cada um dos temas tratados sociais e humanas com respeito à aids (uma vez
desenvolve, assim, percursos temáticos especí- que, sabemos, não há ainda a sua cura). A isotopia
ficos, podendo um único valor (a vida) gerar di- figurativa, segundo a redundância de traços figu-
ferentes percursos temáticos (a vida normal, a rativos associados aos percursos temáticos por fi-
vida na condição de doente, a vida recoberta de guras semelhantes, cria uma imagem completa e
morte, a vida como valor máximo a ser buscado,
35 Ibid.
34 Ibid. 36 Ibid.

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organizada da realidade mostrada no discurso. combinados, aproximam-se disso – há de fato


Assim, no texto, a figura dos medicamentos re- cada vez mais pessoas (con)vivendo com aids –,
cobre o tema da cura, a do presidente americano mas, paradoxalmente, tão difícil quanto morrer
reveste a da veracidade da descoberta científica, a com aids parece ser viver com aids. Como nas
do enterro o tema da morte, a das entrevistas para narrativas dos jornais ou nas tematizações das
jornalistas o tema da relevância social, a da come- campanhas, no sonho da crônica uma aproxima-
moração com os amigos de trabalho o tema da ção é percebida: a aids, doença do outro, do es-
alegria, a dos telefonemas de pessoas conhecidas tranho, do diferente – portanto, distante de mim
e desconhecidas o tema do alívio pela descoberta. – passa a ser vista como doença de todos nós, do
Alguns elementos implícitos na crônica, familiar, do semelhante – conseqüentemente,
entre eles, a idéia (re)corrente de que os pacientes próxima a cada um de nós. Não seria esse o me-
da aids devem comportar-se como pessoas con- lhor remédio para os estigmas sociais que ainda
denadas a morrer, deixando, assim, de viver e sen- revestem as imagens da aids e de seus portadores?
tir-se vivas, funciona como um desencadeador de
Da imagem de alguém morrendo com aids
isotopias,37 ou seja, algo que leva à idéia de novas
chega-se àquela de alguém vivendo com aids. Be-
leituras, extrapolando o tema mais evidente da
tinho, num texto visionário, pois anterior aos
crônica: a descoberta de uma vacina capaz de
curar a aids. Por intermédio desses desencadea- medicamentos combinados, intuíra que, em rela-
dores, percebe-se que os males e a cura da doença ção à aids, o importante é superar os estigmas e
vão muito além da mera possibilidade da desco- chegar à cura, passando do preconceito à solida-
berta de um medicamento. riedade. Como não podia contar com os avanços
Os dados da realidade (notícias em jornal, médico-científicos, ele propõe um coquetel socio-
médicos, nomes dos remédios, declarações, família, cultural para afirmar a cura da aids antes mesmo
amigos, pessoas famosas) indicam o percurso regu- da existência da própria cura: seu nome é vida.
lar no caso de descoberta da cura de uma doença Essa crônica foi escrita há dez anos e, de lá para
antes mortal, funcionando como conectores des- cá, não lemos ainda a notícia da cura clínica da
sas diferentes isotopias, por apresentar múltiplas aids, tampouco sua desestigmatização social. Por
acepções e poder ser lidos em várias isotopias. isso, retomamos o sonho de Betinho, infelizmen-
Trata-se, dessa perspectiva, de um texto pluri-iso- te ainda atual e, talvez por isso, ainda mais neces-
tópico,38 por apresentar a possibilidade de mais de sário.
uma leitura temático-figurativa – a cura física do O caminho em direção à solidariedade pa-
doente e a cura comportamental da sociedade rece ser ainda longo. Mas gostaríamos de acredi-
apresentando-se como as principais leituras suge- tar, como Betinho, que para além das descobertas
ridas, ambas opondo a vida à morte. médico-científicas a cura da aids está ao alcance
O trecho final da crônica retoma o ponto de nossas mãos e mais próxima do que pensamos,
central enunciado neste artigo: embora tenha ha- e que seu nome é mesmo vida. Seja nos planos
vido enormes avanços médico-científicos (como médico e científico, seja nos níveis sociais e cul-
apontam notícias recentes divulgadas na impren- turais, os estigmas da aids – as chagas, as feridas
sa), o mesmo não se faz perceber no âmbito so- – estão ainda em busca da cura – o remédio, o an-
cial (como a ausência de notícias que não sejam tídoto. Que a solidariedade seja seu nome, supe-
sobre medicamentos quer demonstrar). O gran- rando os preconceitos. Que o trajeto da vida à
de sonho de Betinho, e também um dos nossos,
morte seja substituído por um outro, que, sem
é a cura da aids; os medicamentos atuais, ao ser
negar a possibilidade da morte (afinal, mortais
37 Ibid.
somos todos), conduza-nos pelos trilhos da vida
38 Ibid. à vida, com muita esperança.

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Dados da autora
ROSANA DE LIMA SOARES
Mestre e doutoranda em Ciências da
Comunicação pela Escola de Comunicações e
Artes (USP), membro do Núcleo Permanente de
Estudos Jornalismo e Linguagem (ECA/USP) e
pesquisadora-bolsista pela Fapesp

Recebimento artigo: 18/jun./02


Consultoria: 5/jul./02 a 31/jul./02
Revisão da autora: 12/ago./02 a 19/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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Articulações entre Governo


e Sociedade Civil: um
diferencial na resposta
brasileira à aids
RELATIONSHIP BETWEEN THE
GOVERNMENT AND THE CIVIL SOCIETY:
A DIFFERENTIAL IN THE BRAZILIAN
RESPONSE TO AIDS
Resumo A resposta brasileira à epidemia de aids é reconhecida internacionalmente.
Questões prementes como direitos humanos, qualidade de vida e propriedade inte-
lectual são exemplos de problemáticas imprescindíveis ao entendimento da epidemia,
simultaneamente modificadas por ela. Nesse cenário social, as articulações entre go-
verno e sociedade civil estão em evidência. Este artigo destaca o apoio e o reconhe-
cimento governamental às organizações da sociedade civil que atuam no campo da CRISTINA CÂMARA
aids e os desafios na dinâmica de cooperação existente. A noção de campo, de Pierre Coordenação Nacional de
Bourdieu, é utilizada para evidenciar as articulações, os conflitos e as alianças que ali- DST/Aids, Ministério da Saúde
mentam o movimento social de luta contra a aids e suas interfaces com o setor go- [email protected]
vernamental, na área da saúde. Por fim, procura apontar por que a aids ainda não tem
destaque como um problema de desenvolvimento social.

Palavras-chave AIDS – ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL – MOVIMENTO


SOCIAL – POLÍTICAS PÚBLICAS.

Abstract The Brazilian response to the aids epidemic is internationally recognized.


Prime issues such as human rights, quality of life and intellectual property are exam-
ples of problematics which are vital to approach the epidemic, while modified by it.
Within this social scenery, the relationship between the Government and the civil so-
ciety is in evidence. This article points out the Government’s support and recognition
to the Civil Society Organizations that work within the aids field. It also points out
the challenges faced by such cooporation. Pierre Bourdieu’s notion of field is used to
give evidence to the articulations, conflicts and alliances which nourish the social mo-
vement against aids and their interfaces with the governmental sector in the health
area. Finally, It emphasizes why aids does not stand out as a social development pro-
blem.

Keywords AIDS – CIVIL SOCIETY ORGANIZATIONS – SOCIAL MOVEMENT – PUBLIC


POLICIES.

impulso nº 32 57
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INTRODUÇÃO

A
epidemia de aids denota desigualdades sociais referidas
pelas condições materiais de existência, mas, também,
torna inevitável admitir que as desigualdades sociais são
marcadas simultaneamente pelo estigma, pela intolerân-
cia e pelo desrespeito à diversidade cultural.
Nos últimos anos, a repercussão do Programa Brasileiro
de DST/Aids tem crescido internacionalmente. Fala-se em
um modelo brasileiro cujas respostas não estão somente
baseadas no modelo universal de atenção médica, mas numa conjunção de
fatores reunindo compromisso governamental aliado a uma intensa parti-
cipação da sociedade civil, inclusive nas decisões governamentais.
As ações desenvolvidas pela Coordenação Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis e Aids (CN-DST/Aids), do Ministério da
Saúde, referenciam-se em três eixos indissociáveis: prevenção, assistência
e direitos humanos. A concepção de direitos humanos carrega uma am-
plitude que subjaz a atuação da CN-DST/Aids e norteia suas ações. Abor-
dar as articulações entre governo e sociedade civil nesse campo, significa
considerar o movimento social de luta contra a aids como possuidor de
uma trajetória própria e tais articulações como um diferencial na resposta
brasileira à epidemia.
Este artigo pretende pontuar algumas referências sobre as organiza-
ções da sociedade civil (OSCs) que atuam no enfrentamento da epidemia
da aids no Brasil, o apoio e o reconhecimento governamental a essas
organizações e os atuais desafios na dinâmica de cooperação governo-so-
ciedade civil.

UM CAMPO EM CONSTANTE MUDANÇA


Não podemos esquecer que a grande visibilidade e os avanços no
campo da aids contam com a presença de pessoas que aparecem publi-
camente afirmando sua soropositividade, contribuindo para mudanças
significativas nos investimentos em pesquisas, mas, particularmente, para
a superação de preconceitos, o questionamento de valores e que a aids se
torne gradativamente um tema de debate público. Também não há como
deixar de mencionar que os “malditos”, os “marginais”, em meio aos que
demarcaram publicamente sua experiência com a aids, são os engajados
incansáveis nas ações de prevenção, na maioria das vezes atingindo além
de seus pares. Refiro-me a gays, lésbicas, travestis, profissionais do sexo,
usuários de drogas injetáveis, que ousam se apresentar publicamente na
defesa de suas vidas e de condições de saúde pública mais dignas. Na pre-
servação do acesso à saúde para todos, ainda que diferentes, mas nem por
isso naturalmente desiguais. Desiguais, isso sim, em razão de normas que
os alijaram durante muito tempo, pelos costumes que exitamos em mu-
dar. Pelos imperativos morais que definem constantemente o certo e o
errado, não deixando espaços para erros e acertos de seres humanos,
mortais, iguais.

58 impulso nº 32
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Inegavelmente, as pessoas vivendo com HIV/ O MOVIMENTO SOCIAL


aids lutam para se “reapropriar de sua doença”. Di- DE LUTA CONTRA A AIDS
ferentemente de indivíduos vinculados de alguma Os grupos organizados na luta contra a aids
forma a outras doenças, as ONGs/aids e os grupos atuam num campo próprio, correlacionando ca-
de pessoas vivendo com HIV/aids são fortes e rei- racterísticas de movimentos sociais, organizações
vindicativos, particularmente nos países desenvolvi- não-governamentais (ONGs) e grupos de ajuda
dos. Esse movimento desempenha um papel mútua.2 Tomando de empréstimo as reflexões de
importantíssimo no que se refere à saúde pública. alguns autores, podemos situar os leitores quanto
Por um lado, o movimento de luta contra a às ações coletivas mencionadas.
aids distancia-se dos chamados movimentos so- No primeiro caso, seguindo o raciocínio de
ciais em saúde e das queixas, denúncias e respos- Jacobi, os movimentos sociais são vistos como su-
tas que atendem a questões como saneamento ou jeitos nos processos de construção do tecido so-
atendimento básico de saúde. Por outro lado, o cial, permeados por conflitos políticos. A presen-
fato de terem surgido mais próximas do perfil de ça mais forte dos movimentos sociais no Brasil
grupos minoritários também distanciou as são os movimentos populares, aqueles que trazem
ONGs/aids de uma atuação junto à estrutura do demandas sobre as carências urbanas e as condi-
Sistema Único de Saúde (SUS), assim como de ções de vida. Eles são muitas vezes marcados por
agendas macroestruturais que caracterizam as um ideário de transformação social, contando,
organizações não-governamentais, como desen- nos anos 70, com a colaboração de pessoas da
volvimento e exclusão social, mesmo que Her- Igreja Católica e partidos políticos de esquerda.
bert de Souza (Betinho) e Herbert Daniel te- A literatura sobre os movimentos sociais
nham procurado problematizá-las. aponta a predominância de análises estruturais,
Como reunir a história orientada por uma assinaladas pela dicotomia entre sociedade civil e
prática associada a grupos minoritários, grupos Estado, e pela idéia do político como algo que
de pressão e, ao mesmo tempo, responder a mu- deixa de ser exclusivamente partidário. Autores
dança do perfil da epidemia no Brasil, que exige como Laclau e Jacobi referem-se à politização do
atenção à pobreza e à exclusão social? Junte-se a social, à mobilização popular e à transformação
isso uma nova variável: as pessoas soropositivas das carências em direitos. Por sua vez, tudo o que
estão cada vez mais presentes e as relações sociais não corresponda a essa politização é visto como
devem considerar essa nova condição social en- tradicional ou clientelista, marcado pelo favoritis-
gendrada a partir da descoberta da soropositivi- mo ou pela caridade.
dade. Estimativas oficiais indicam que 600 mil Quanto às ONGs, a resposta social à epide-
pessoas vivem com HIV no Brasil. Apesar de ser mia da aids no Brasil coincide com o período de
um número elevado, não representa 0,5% da po- sua consolidação. Segundo Fernandes, o termo
pulação brasileira.1 Entretanto, mesmo que hou- ONG é do período pós-guerra, utilizado pela pri-
vesse uma única pessoa soropositiva no País, ela meira vez como referência aos grupos com pre-
deveria ser motivo de atenção, porque o conjunto sença considerada significativa nos encontros da
de fatores que a envolve abre precedentes. A aids Organização das Nações Unidas (ONU) e que,
nos inquieta pessoalmente e exige pensar as ques- apesar de internacionais, não representam gover-
tões estruturais sem negligenciar que a sociedade nos. Inicialmente, há muita controvérsia, graças à
é feita por indivíduos com trajetórias próprias, sua importação e por se apresentar como uma ne-
desejos, anseios e com seus investimentos pessoais 2 As afirmações contidas neste artigo estão referidas por minha traje-
e profissionais. tória política, no movimento de luta contra a aids, e acadêmica, especial-
mente marcada pela tese de doutorado em sociologia sobre os grupos
sociais organizados na luta contra a aids. Além, evidentemente, do
1 TEIXEIRA, 2002, p. 234. papel que desempenho hoje na CN-DST/Aids.

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gação ao setor governamental. Para Landim, rem atribuições diferentes das ONGs constituí-
ONG designa organizações que remontam aos das, desde os anos 70, com base nos Centros de
anos 1970, ainda no regime militar, surgidas con- Educação Popular. Seu caráter reivindicativo e, ao
comitantemente ao chamado novo sindicalismo e mesmo tempo, propositivo aproxima-se, em al-
aos movimentos populares. Essas entidades dedi- guma medida, dos movimentos sociais, em parte
cam-se, nesse momento, ao que denominam daqueles que começam a ser apontados como so-
“educação de base”, “educação popular” ou “pro- cioculturais e, seguindo a abordagem de Jacobi,
moção social”, inspiradas em grande parte pelas não se vêem necessariamente afetados pelas ca-
idéias do educador Paulo Freire. A educação po- rências nos serviços públicos, como os movimen-
pular orienta o “trabalho comunitário”, combi- tos sociais urbanos, mas no seu modo de vida,
nando-o à militância das esquerdas marxistas, e a como os movimentos feminista, ecológico e gay.
sua importância é sobretudo enfatizada pela Teo- Por sua vez, trazem questões que não estavam
logia da Libertação. presentes para esses movimentos. Viver com o ví-
Quanto aos grupos de ajuda mútua, seu rus HIV é uma situação nova e multifacetada. As
aparecimento remete ao fato de que nem todas as pessoas que se descobrem soropositivas ou com
necessidades de ajuda individual podem ser resol- aids vivenciam o estigma que acompanha a epi-
vidas pelos serviços públicos ou por serviços pro- demia. São alvos de preconceitos que, quando
fissionais. Os familiares e os amigos, por sua vez, não as excluem totalmente com a morte anuncia-
nem sempre são as pessoas mais indicadas para da, colocam-nas em desvantagem em decorrência
auxiliar alguém em crise. Trata-se da necessidade do suposto ser doente, tornando-as incapazes e
de um espaço propício para que se possa falar improdutivas para a vida social.
sem críticas ou julgamentos. Nesse sentido, se- Ainda que o surgimento da epidemia revele
gundo Romeder, os grupos de ajuda mútua pro- um grave problema de saúde pública, nesse mo-
curam responder a três necessidades, exacerbadas mento, a área da saúde aparece não como alvo das
nos momentos de crise: segurança, afeição e per- reivindicações por melhores condições de mora-
tença, e auto-estima. Propiciando o encontro en- dia, saneamento básico e mais acesso aos serviços
tre pessoas passando pela mesma experiência de públicos de saúde, de acordo com as pesquisas so-
crise (drogas, alcoolismo, violência, doenças bre o movimento popular ou sobre os movimen-
etc.), os grupos de ajuda mútua tornam-se espa- tos sociais urbanos, como prefere Jacobi. No caso
ços que levam ao restabelecimento e à manuten- da aids, a qualidade de vida não pressupõe somen-
ção da saúde pessoal. Os Alcoólicos Anônimos te as condições objetivas de vida ou mesmo uma
(AA) são considerados o grupo de ajuda mútua elaboração subjetiva das carências; ela supõe um
mais antigo, criado nos Estados Unidos em 1935. outro tipo de carência bem mais complexa, fazen-
Baseia-se sobretudo na crença e no valor tera- do com que se alie a lógica instrumental à simbó-
pêutico do apoio moral oferecido por uma pessoa lica, os significados e práticas sociais que oferecem
que viveu ou vive a mesma dificuldade com o ál- sentido às carências dos indivíduos no contexto
cool. Entretanto, a maioria dos atuais grupos de contemporâneo. Trata-se de uma percepção sobre
ajuda mútua surge nos anos 1970. si mesmo e sobre suas relações. Diferentemente
O fato de se autodenominarem ONGs/aids, daqueles movimentos cujo objetivo é influir nas
num primeiro momento, pode fazer com que es- condições materiais de vida segundo a problemá-
ses grupos sejam aproximados do modelo de tica da saúde, em que a questão central é a exclu-
ONG. Contudo, a centralidade nos indivíduos são social e o movimento aparece como sujeito
portadores de HIV, as intervenções nos significa- social, os grupos organizados em torno da epide-
dos das pesquisas médicas, as denúncias públicas mia da aids e o movimento social de luta contra a
e o seu caráter ativista nas manifestações de rua e aids norteiam-se por experiências individuais com
na capacidade de estruturar serviços lhes confe- a soropositividade ou a aids.

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Tipologia de ações coletivas


Grupos de ajuda Grupos organizados
Movimentos sociais ONGs
mútua contra a aids
Assessoria técnico-polí- Valorização da auto-
Orientação das ações Militância política Ativismo
tica estima
Solidariedade e defesa de
Objetivos Mudança social Mudança social Solidariedade
direitos
Complementar, de opo-
Identidade coletiva Assessoria e apoio Ajuda mútua Ajuda mútua
sição
Sociabilidade Acessória Acessória Opcional Opcional

Os grupos que atuam contra a aids tornam- ação coletiva, mas compõe entre eles. A atuação
se intermediários entre os indivíduos e as e a conceitualização sobre movimentos sociais,
instituições (públicas ou privadas), mas também ONGs e grupos de ajuda mútua permitem desta-
contribuem para redefinir as formas de sociabili- car características atualizadas ou redefinidas no
dade, muitas vezes resgatando a sociabilidade pri- contexto da epidemia.
mária (família, vizinhança), pois os laços de inter- O quadro abaixo reúne os grupos de aids
dependência são ameaçados ou mesmo rompidos de forma genérica, apontando características co-
pela evidência da aids. Em outras palavras, o que muns a eles que não se adequam aos modelos
os caracteriza é o fato de intervirem dando su- existentes. No primeiro item – orientação das
porte às necessidades práticas cotidianas dos por- ações –, o ativismo se aproxima da militância nos
tadores do vírus HIV. Segundo Castel, as redes movimentos sociais, mas a centralidade no indiví-
primárias de solidariedade podem ser abaladas e duo e o fato de ser marcado simultaneamente por
rompidas nas situações de demissões, abandono e uma doença e um handicap distancia-os. Os ob-
rejeição, ou ainda levar as pessoas a situações de jetivos, de modo geral, chegam perto daqueles dos
total dependência, sem interdependência, geran- grupos de ajuda mútua, mas diferenciam-se pelo
do mesmo pequenas perseguições e desprezo. Há tom do ativismo na defesa dos direitos das pes-
um processo de desfiliação.3 O fato de o enuncia- soas soropositivas ou com aids, avizinhando-os,
do ser a aids rompe linhas de contato na recipro- por sua vez, dos movimentos sociais e das ONGs.
cidade entre os indivíduos, ameaçando não só a A mudança social característica dos objetivos
qualidade de vida, mas alterando as condições nas desses dois modelos é diferente dos grupos de
quais as pessoas vivem. Os preconceitos apare- luta contra a aids, porém todos trazem certo
cem como uma ameaça externa, mas também são questionamento sobre a situação vigente. A
construções simbólicas interiorizadas pelos identidade coletiva e a sociabilidade nos grupos
indivíduos que precisam ser desconstruídas, e os de luta contra a aids são marcadas pelo compo-
grupos organizados exercem um papel importan- nente da ajuda mútua, aproximando-os dos gru-
te nesse processo. O conjunto de fatores que per- pos de ajuda mútua.
meia o cotidiano dos grupos atuantes contra a Os grupos organizados na luta contra a aids
aids não se adequa a um modelo consagrado de constroem um novo cenário associativo. Eles
precisam dar conta da luta contra os preconcei-
3 “A desfiliação, tal como a entendo, é, num primeiro sentido, uma
ruptura desse tipo em relação às redes de integração primária; um pri-
tos, mas também das novas necessidades trazidas
meiro desatrelamento com respeito às regulações dadas a partir do pelas pessoas vivendo com HIV ou aids. Nesse
encaixe na família, na linhagem, no sistema de interdependências fun-
dadas sobre o pertencimento comunitário. Há risco de desfiliação
sentido, o processo de desfiliação causado pela
quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo aids desencadeia formas de interação, cria laços
mantém a partir de sua inscrição territorial, que é também sua inscrição
familiar e social, é insuficiente para reproduzir sua existência e para
de solidariedade que não podem ser entendidos
assegurar sua proteção” (CASTEL, 1998, pp. 50-51). pelos modelos de movimentos sociais, ONGs ou

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grupos de ajuda mútua. Os grupos atuantes con- mudanças. Na atuação do movimento social de
tra a epidemia procuram responder à crise das luta contra a aids estão imbricadas uma luta po-
interações sociais gerada pela evidência da aids na lítica, baseada nos princípios de justiça social e de
vida das pessoas. O que ganha expressão no novo eqüidade de direitos, e uma luta simbólica contra
processo associativo são as mudanças de atribui- a homofobia, o racismo, a marginalidade e o
ções, muitas vezes respondendo ao embate entre medo da morte, gerando situações de conflito.
as demandas das pessoas soropositivas ou com Os grupos associam-se e constroem um movi-
aids e os objetivos das organizações. mento social influenciados pela visibilidade inter-
Observando o movimento social de luta nacional do ativismo e pelas interlocuções entre
contra a aids propriamente dito, pode-se afirmar ativistas do mundo inteiro, sem por isso se afastar
que grupos organizados surgidos em resposta às das exigências cotidianas e das interlocuções lo-
demandas decorrentes da epidemia não atendem cais.
a um movimento social de pessoas soropositivas Para o movimento social de luta contra a
ou com aids; entretanto, eles mesmos, associados aids não existe um projeto claro de transforma-
a diversos outros grupos sociais, constituem um ção da sociedade, nem há uma utopia, mas, como
movimento social peculiar. Não surgem de um assinala Zarifian, reivindicações éticas fortes mar-
movimento prévio, mas para responder à crise da cadas pelo registro de autenticidade das experiên-
aids e, mediante o estabelecimento de interlo- cias vividas. Epstein caracteriza o movimento de
cuções, constituem-se no primeiro movimento luta contra a aids como ativista e o aproxima dos
que faz as “vítimas” de uma doença passar a ati- novos movimentos sociais, argumentando que o
vistas-experts. O ponto comum orientador do caráter de classe não é enfatizado pelos ativistas,
movimento é a defesa das pessoas soropositivas mas sim o aspecto pessoal e íntimo da vida hu-
ou com aids e as redes de solidariedade são for- mana. Não no sentido privado, mas como con-
madas em prol dessas pessoas.4 Os grupos orga- dição da mobilização. Há um apelo na dimensão
nizados possuem percursos próprios, mas, tam- subjetiva e, ao mesmo tempo, um estímulo à par-
bém, constroem um campo de atuação entrela- ticipação cívica.
çando diversas redes sociais na constituição de
novas redes que dão voz aos agentes e têm sua A ARTICULAÇÃO COM A SOCIEDADE
expressão na pressão política em torno da proble- CIVIL NA CN-DST/AIDS
mática da aids. Não cabe aqui entrar nos pormenores da
O campo, como entendido por Bourdieu, criação da CN-DST/Aids, registrada por autores
espaço socialmente demarcado, movimenta-se como Parker, mas retomar alguns fatos pertinen-
por sua própria luta produzida pelas estruturas tes à articulação com a sociedade civil. Cronologi-
que o constituem e reproduzindo as suas estru- camente, após a exoneração do dr. Eduardo Cor-
turas e hierarquias. Reside nas ações e reações dos tes e a volta de parte da equipe da CN-DST/Aids em
agentes que se esforçam para manter ou melhorar atuação anteriormente ao governo Collor, inclusi-
sua posição no campo, muitas vezes gerando ve a coordenadora, dra. Lair Guerra de Macedo
constrangimentos para outros. Rodrigues, nota-se um dado importante: a abertu-
ra ao diálogo com os grupos organizados e os ati-
A noção de campo ajuda a compreender os
vistas, na esfera governamental federal.
espaços nos quais se dão as articulações, conflitos
Ainda em 1992, começam as negociações
e alianças que alimentam o movimento social de
com o Banco Mundial para um grande projeto
luta contra a aids. Esses grupos constroem um
que muda significativamente a estrutura da CN-
novo cenário associativo, revelando-se agentes de
DST/Aids e a política nacional para aids no País.
4 Segundo ZARIFIAN (1997), as formas de solidariedade se coloca- As relações entre governo e sociedade civil tor-
vam mais “contra” (o imperialismo, o colonialismo etc.) do que “para”. nam-se mais cooperativas. Ainda que defendam

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seus interesses, os grupos organizados passam, de pos de pressão comprometidos, antes de mais na-
certa forma, a investir num projeto comum. da, com a defesa dos direitos das pessoas vivendo
Note-se que desde a elaboração do projeto envia- com HIV ou aids. Assim, as relações estabelecidas
do ao Banco Mundial, várias pessoas ligadas aos apoiadas nos financiamentos dos projetos não se
grupos que atuam contra a aids colaboraram reduzem à execução deles, mas fortalecem o in-
como consultores para etapas temáticas do gran- tercâmbio constante que modifica simultanea-
de projeto. mente os atores – ONGs e governos – e as rela-
Desde 1992, a CN-DST/Aids assume uma ções entre eles.
política de articulação com a sociedade civil. A A própria CN-DST/Aids vem incentivando
partir do Acordo de Empréstimo com o Banco o surgimento e/ou fortalecimento de fóruns de
Mundial, o governo brasileiro passa a destinar re- ONGs/aids, constituídos em coalizões estaduais,
cursos para as OSCs, que desenvolvem trabalhos por considerá-los espaços que passam a redefinir
originais e imprescindíveis, especialmente nas a prática das OSCs, além de fortalecer as interlo-
ações de prevenção em resposta à epidemia. Du- cuções locais com o setor público e reforçar a
rante a execução do Primeiro Acordo de Emprés- proposta de controle social nas respostas aos in-
timo – Aids I (1994-98), foram apoiados 559 vestimentos feitos para a aids no País. Esses fó-
projetos, num total de 23 milhões de reais, e, no runs cumprem papel imprescindível no processo
Aids II, até maio de 2002, esses projetos chega- de descentralização das políticas e ações em saúde
ram a 1.780, somando em torno de 70 milhões de pública. A articulação política segundo essas coa-
reais.5 As relações de parceria entre governo e so- lizões amplia a atenção para um leque diversifica-
ciedade civil, com base em convênios referentes a do de organizações, democratiza as informações
projetos aprovados, constituem uma prática iné- e os debates, amplia a participação e, notadamen-
dita na estrutura estatal brasileira, tanto nas rela- te, fortalece uma identidade coletiva entre as
ções políticas quanto na gestão administrativa. OSCs que atuam no campo da aids. Também é vi-
As negociações com o Banco Mundial am- sível a renovação de lideranças e a criação de no-
pliam o diálogo entre governo e sociedade civil e, vas formas de expressão e espaços de interlo-
com o passar dos anos, as parcerias têm ultrapas- cução entre as OSCs, como também entre elas e as
sado as formalidades dos convênios. Se, por um diversas instâncias governamentais.
lado, questiona-se a possibilidade de cooptação A presença de pessoas vivendo com HIV/
dos grupos organizados contra a aids pelo gover- aids e as parcerias entre as organizações que tra-
no, via a transferência de recursos mediante os balham com aids e os atuantes na área da saúde
projetos aprovados, ou dirigentes de organiza- têm possibilitado novas ações em saúde pública.
ções que passam a trabalhar no Ministério da Saú- As noções de justiça, dignidade, eqüidade, cida-
de, por outro, pode-se destacar a possibilidade de dania e responsabilidade modificam o caráter pa-
um acompanhamento mais próximo das políticas ternalista, muitas vezes implicitamente domina-
de aids e um envolvimento mais efetivo nas dor, que subsiste nas práticas caritativas. As
direções governamentais tomadas no âmbito da interlocuções e parcerias com as OSCs têm possi-
saúde. Além da execução de projetos financiados bilitado ao Programa Brasileiro de DST/Aids um
pelo setor governamental, especialmente pelo diferencial na resposta à epidemia. São vários os
Ministério da Saúde, abrindo um leque de ques- canais existentes:
tões formais e burocráticas relativas ao seu anda- • Comissão Nacional de Aids (cinco re-
mento, os grupos organizados vêem-se diante da presentantes de OSCs, um por região,
necessidade de resguardar o lugar por eles ocupa- eleitos pelo conjunto das organizações
do, tanto como organizações quanto como gru- que trabalham com aids);
• Comitê Nacional de Vacinas Anti-HIV
5 Dados oficiais da CN-DST/Aids, disponíveis no site <www.aids.gov.br>. (cinco representantes de OSCs, um por re-

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gião, eleitos pelo conjunto das organiza- treinamento de 40 horas, as organizações foram
ções que trabalham com aids); reunidas novamente para um monitoramento co-
• participação em diversos grupos que as- letivo, em que se discutiram propostas de proje-
sessoram as políticas governamentais tos versando sobre captação de recursos, marke-
para a aids no Brasil (homossexuais, pro- ting institucional ou temas afins. Em decorrência
fissionais do sexo, mulheres soropositi- desses treinamentos, estão em curso 120 projetos
vas etc.); com os seguintes enfoques: 31 de marketing ins-
• participação dos cinco representantes titucional, 19 de planejamento estratégico; 36 de
nacionais, mais 16 representantes de fó- captação de recursos e 34 de fortalecimento de
runs de ONGs/aids em reuniões que vêm gestão.
construindo estratégias políticas e for- As OSCs estão sendo capacitadas a gerir sua
mas de sustentabilidade do Programa estrutura organizacional, como também estimu-
Brasileiro; ladas a pensar formas de ampliar suas interlo-
• participação desses representantes nas dis- cuções e parcerias, por exemplo, incentivando
cussões sobre o processo de descentraliza- doações não somente financeiras, mas envolven-
ção da saúde, no que se refere à aids; do os doadores com as ações desenvolvidas. Cabe
• apoio a projetos de OSCs. destacar a existência de várias iniciativas locais
Atualmente, o desafio mais urgente na nessa área que também contam com o apoio da
interlocução entre a CN-DST/Aids e as OSCs é em CN-DST/Aids.
razão do final do Aids II: a sustentabilidade das Com o intuito de salientar ações bem-su-
ações executadas por OSCs e das próprias cedidas, a CN-DST/Aids promoveu o prêmio
organizações, sendo imprescindível focalizar a “Ações Sustentáveis em HIV/aids”, conferido a 11
sustentabilidade como um continuum entre as di- OSCs, durante o “I Seminário Nacional de Sus-
mensões sociopolítica, financeira e institucional. tentabilidade: aids e sociedade civil em debate”,
Qual a peculiaridade do tema sustentabilidade no em agosto de 2002, que contou com a participa-
campo da aids? Já que tem sido alvo generalizado ção de diversos especialistas envolvidos com os
de debates, sobretudo no âmbito não-governa- temas gestão e sustentabilidade.
mental. Talvez seja singular o fato de não estar- O fato de fomentar a responsabilidade so-
mos falando somente sobre fortalecimento de bre o fortalecimento institucional e as articula-
gestão, planejamento estratégico ou captação de ções entre os grupos que atuam com aids e ou-
recursos, mas, especialmente, sobre a criação de tros atores sociais, não limita as ações empreen-
laços de solidariedade social, de compartilhar va- didas pela CN-DST/Aids. Vem-se trabalhando no
lores e atribuições que nos permitem agir perante Plano de Sustentabilidade das Ações em DST/
a epidemia de aids, da superação de preconceitos Aids, orientado por três eixos: política de incen-
e, especialmente, da inserção social de pessoas vi- tivos, estrutura organizacional da CN-DST/Aids e
vendo com HIV ou aids. proposta para um novo Acordo de Empréstimo –
Antecipando-se ao final dos recursos do o Aids III. No primeiro caso, o intuito é ampliar
Aids II, a CN-DST/Aids, em parceria com a Fun- as ações do DST/Aids nos mecanismos regulares
dação Getúlio Vargas de São Paulo e duas OSCs de financiamento do SUS. Propõe-se a criação de
(o Gapa/BA e a Amazona), realizou seis treina- um programa de DST/Aids voltado para todos os
mentos nas diversas regiões do País, entre no- Estados e municípios com 50 casos de aids ou
vembro de 2000 e setembro de 2001, focalizando mais. Nas ações de garantia de direitos humanos
o tema da sustentabilidade. As 30 organizações das pessoas vivendo com HIV/aids e no apoio a
selecionadas por treinamento foram estimuladas projetos de OSCs, é imprescindível a implemen-
a indicar dirigentes ou pessoas responsáveis pela tação de medidas nos Estados e municípios onde
área de captação de recursos. Três meses após o a dimensão da epidemia tenha maior relevância

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epidemiológica. O apoio às OSCs está previsto na tões estruturais. Entretanto, o percurso histórico
transferência automática de recursos, devendo marcado pela epidemia e as inovações trazidas
atender a pelo menos 10% do total repassado às por ela não podem ser minimizados. Por isso o
unidades federadas. destaque inicial sobre os grupos sociais caracteri-
Na estrutura da CN-DST/Aids, redesenhada zados pela crise e pela urgência, e os esforços
para se institucionalizar no organograma do Mi- conjuntos entre governo e sociedade civil. Inserir
nistério da Saúde, a Unidade de Articulação com o tema aids nas questões estruturais, implica, ne-
a Sociedade Civil e de Direitos Humanos vem cessariamente, não dissociar o individual do co-
sendo reconhecida no seu papel estratégico. letivo e valorizar a presença de grupos tradicio-
Quanto a um possível Aids III, foi aprova- nalmente postos à margem, mas que depois da
da uma carta consulta pelos setores competentes aids tornam-se visíveis e fortalecidos.
do Ministério da Saúde. A continuidade do apoio Embora de forma preliminar, indicamos al-
às OSCs e a atenção aos direitos humanos das pes- guns desafios que entrelaçam velhas e novas
soas vivendo com HIV/aids e das populações pri- agendas. A aids vem relembrar que infecções pe-
oritárias às ações de prevenção (homossexuais, rigosas estão longe de ser eliminadas e que novas
profissionais do sexo e usuários de drogas injetá- doenças virais podem ameaçar a saúde no mun-
veis) são entendidas como imprescindíveis ao do. Verificam-se, no Brasil, fenômenos associa-
prosseguimento das respostas à epidemia no Bra- dos à aids conhecidos internacionalmente, como
sil. Reunidos em setembro de 2001, os represen- o incremento da pobreza, a heterossexualização, a
tantes das OSCs na Comissão Nacional de Aids feminização e também a interiorização da epide-
(CNAIDS) e dos fóruns de ONGs/aids colabora- mia, já que 3.340 municípios brasileiros apresen-
ram no desenho do documento e vêm acompa- tam registros de pelo menos um caso de aids.6
nhando os seus desdobramentos. Em agosto de A pauperização ampliou a necessidade de
2002 iniciou-se a elaboração do projeto. A pri- pensar a aids como um fato peculiar no cenário
meira reunião contou com quase 80 pessoas, en- global. De que maneira a aids pode e deve ser to-
tre representantes de outros ministérios, diversos mada como uma questão de desenvolvimento, e
programas do Ministério da Saúde (saúde da fa- por que, apesar disso, ela ainda permanece sem
mília, saúde mental, tuberculose, hepatites etc.), destaque? Com o intuito de problematizar a
coordenações estaduais e municipais de DST/aids, questão, destacamos alguns pontos:
organismos internacionais, representantes de fó- • no campo da aids, os mesmos conceitos
runs de ONGs/aids e da RNP+, grupos que atuam adquirem novos significados e a leitura
com profissionais do sexo, com homens que fa- tradicional nem sempre responde às in-
zem sexo com homens, com redução de danos, dagações atuais. As interlocuções e par-
com trabalhadores e setor privado, entre outros. cerias entre governo e sociedade civil
Como responder aos novos desafios a par- não podem ser vistas sob a falsa dicoto-
tir de dinâmicas que começam a ser desenhadas mia “ONG só faz reclamar” e “vamos ser
segundo a política de incentivos, do Aids III e da cooptados”, ou tendo-se uma visão uti-
estrutura da CN-DST/Aids? Eis a questão a ser as- litarista dos recursos, sem a dimensão de
sumida em conjunto pelos diversos atores envol- seu papel público;
vidos no enfrentamento da epidemia de aids no • valorizar o campo da aids na sua existên-
Brasil. cia de quase 20 anos. Não se trata do “ir-
mão mais novo” entre os movimentos
NOVOS DESAFIOS sociais, mas um “irmão” com trajetória
As lacunas existentes na resposta à epide- própria;
mia indicam a inevitabilidade de inserir definiti-
vamente a problemática da aids no leque de ques- 6 TEIXEIRA, 2002, p. 235.

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• considerar que as relações sociais de gê- orienta o enfrentamento da epidemia da aids e


nero são um complicador para a prática oferece indícios de que não há uma única saída,
do sexo seguro (entre parceiros hetero um único saber, uma única visão de mundo e de
ou homossexuais). Esse é um dado im- que tudo precisa ser conjugado.
prescindível para trabalhar a aids; Certamente, uma das razões pelas quais o
• admitir que a questão multiétnica tam- Programa Brasileiro se destaca em relação aos
bém é um fator complicador, porque programas de países desenvolvidos é a existência
cria inúmeras interseções entre valores de um sistema único de saúde. A articulação entre
culturais diversos;
governo e sociedade civil no enfrentamento da
• considerar as várias mudanças da epide-
epidemia da aids, no Brasil, resgata o movimento
mia, mas, talvez, estar mais atento à in-
sanitarista consagrado com a Constituição de
teriorização, pois ela traz à tona inúme-
1988, quando foi estabelecido o SUS. A aids reco-
ras mazelas, como preconceitos, precarie-
loca em destaque os princípios da eqüidade, uni-
dade dos serviços de saúde e de acesso a
eles, entre outros; versalidade e integralidade. Essa articulação tem
• reputar como desafio atual a criação de aberto precedentes que podem trazer contri-
políticas de inclusão para atender a pre- buições para outros campos de atuação.
sença de pessoas soropositivas. Elas vi- Sinalizando a trajetória dos grupos sociais
vem mais e denotam uma gama de novas organizados na luta contra a aids e suas relações
necessidades e carências. com a esfera governamental, nas três instâncias
de governo, talvez tenhamos condições de vis-
EM SÍNTESE... lumbrar alternativas que fortaleçam as estruturas
As ações de prevenção, a atenção aos cui- existentes e, simultaneamente, possam se valer
dados de que os cidadãos necessitam e os direitos dos precedentes abertos ao longo da história da
humanos desses cidadãos formam um tripé que aids.

Referências Bibliográficas
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Dados da autora
CRISTINA CÂMARA
Socióloga, consultora técnica responsável pela
Unidade de Articulação com a Sociedade Civil e
de Direitos Humanos – Coordenação Nacional de
DST/Aids (Ministério da Saúde)

Recebimento artigo: 25/jul./02


Consultoria: 29/jul./02 a 30/jul./02
Revisão da autora: 15/ago./02 a 26/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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A Questão da Adesão:
os desafios impostos pela
aids no Brasil e as respostas
do governo, de pessoas
e da sociedade
CHALLENGES IMPOSED BY THE AIDS
EPIDEMIC IN BRAZIL, AND RESPONSES
FROM THE GOVERNMENT, PLWA (PEOPLE
LIVING WITH HIV/AIDS) AND SOCIETY: THE
ISSUE OF ADHERENCE TO HIV TREATMENT
MARCLEI DA SILVA GUIMARÃES*
Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA)
[email protected]

JUAN CARLOS RAXACH


Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA)
[email protected]

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*Agradecimentos ao National Institutes Mental Health (NIMH/EUA) pelo apoio, à parceria com o HIV
Center for Clinical and Behavioral Studies da Universidade de Columbia, Nova York (EUA), e a Ivia
Maksud (assessora de projetos da ABIA), pela revisão carinhosa e cuidadosa.

Resumo Este artigo traz uma reflexão sobre os problemas e as questões suscitados
pela adesão aos anti-retrovirais no Brasil e sobre as respostas de pessoas, do governo
e da sociedade à epidemia de aids.
Palavras-chave ADESÃO – ANTI-RETROVIRAL – ONGS – AIDS – HIV – SOCIAL.

Abstract The article is a reflexion on the problems and issues related to the adherence
to antiretroviral therapy in Brazil, and on the responses from Government, PLWA
(people living with HIV/aids) and society to the aids epidemic.
Keywords ADHERENCE – ANTIRETROVIRAL – NGOS – AIDS – HIV – SOCIAL.
Desde meados de 1981, quando o Centro de Controle de Doenças
(CDC) de Atlanta (EUA) publicou um informe chamando a atenção para
uma enfermidade até então desconhecida, posteriormente denominada
síndrome da imunodeficiência adquirida (aids), causada pelo vírus da
imunodeficiência humana (HIV, em inglês), a humanidade começou a es-
tabelecer estratégias de combate de modo a impedir a expansão da nova
doença. Em 1987, a Organização Mundial de Saúde (OMS) iniciou a pri-
meira campanha mundial de informação pública sobre HIV/aids, reconhe-
cendo que a doença não só se desenvolvia no organismo, mas também
progredia em virtude da ignorância, do medo e da resistência das pessoas
às mudanças de comportamentos.1
Até hoje, nada tem impedido a expansão do HIV em escala mundial,
apesar dos esforços da comunidade internacional para controlar a epide-
mia. A aids, também conhecida como Sida, tem custado a vida de mais
de 25 milhões de pessoas. Segundo a Joint United Nations Programme
on HIV/AIDS (UNAIDS), ou, em português, Programa Conjunto das
Nações Unidas para HIV/AIDS, no final de 1999, existiam no mundo 34,3
milhões de pessoas, entre adultos e crianças, infectadas com o HIV e, des-
se total, 5,9 milhões doentes de aids e 13,2 milhões crianças que perderam
os pais em razão da doença (por isso, conhecidas como “órfãos da
aids”).2
As características sociodemográficas dos afetados pela epidemia
têm se modificado drasticamente desde 1981. Hoje em dia, as novas
infecções pelo HIV resultam sobretudo do uso de drogas injetáveis e da
relação sexual entre heterossexuais, com proporção bastante elevada em

1 ROCH, 1997.
2 Outros dados (até dezembro de 2000) são referidos por GALVÃO, 2002. Segundo a autora, estimati-
vas da UNAIDS/WHO reportam-se a 36,1 milhões de infectados no mundo, levando a ONU a reconhecer a
aids como uma questão de segurança mundial.

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meio às consideradas minorias sociais.3 De fato, a são a luta e a busca pela afirmação e positivação
expansão da aids no Brasil se traduz nos fenôme- da vida diante da epidemia de aids e da condição
nos de pauperização, feminização e heterossexuali- de soropositividade para o HIV. Tal afirmação e
zação, ou seja, após atingir inicialmente hemofí- positivação da vida objetiva combater a morte ci-
licos, homossexuais e prostitutas, a doença co- vil, ou seja, a negação e a retirada da cidadania –
meça afetar amplamente pobres, mulheres e ho- concebida como direito e dever – do portador de
mens heterossexuais (e também bissexuais), HIV. Tem ainda por finalidade contrastar com
aumentando o risco de infecção nos recém-nas- uma visão de mundo e filosofia de vida (“religio-
cidos, caso não sejam adotadas as medidas pre- sas”) que pregam a existência de vida após a mor-
ventivas recomendadas pelo programa de preven- te, podendo, segundo Daniel, representar um ca-
ção do governo contra a transmissão do HIV de minho fértil ao fomento da resignação e do con-
mãe para filho. formismo das pessoas à dominação e opressão
Antes de a ciência iniciar a tentativa de pro- social, política e econômica, bem como a uma
duzir uma realidade em forma de cura biológica e compreensão parcial e equivocada da epidemia e
médica para o HIV, das atuais respostas da socie- da soropositividade.
dade na luta pela cidadania dos portadores, pelos Diante de tais idéias, a solidariedade emerge
direitos humanos, pelos direitos à vida e à saúde como uma das formas possíveis de afirmação da
garantidos na Constituição, e das ações bem-su- existência do soropositivo. Uma compreensão
cedidas do governo, no tocante à prevenção e ao mais detalhada sobre os significados da solidarie-
tratamento anti-retroviral, alguns brasileiros, en- dade, no final da década de 80 e início da seguin-
gajados em movimentos sociais pioneiros em ai- te, pode ser obtida na leitura do livro de Herbert
ds, já imaginavam e criavam outro tipo de cura, no Daniel. Nele, a solidariedade é concebida como
final dos anos 80 e início e meados de 90, denomi- um remédio contra o preconceito, a discriminação
nada cura psicológica e social. Dois expoentes, Her- e a morte civil (ou mesmo física). É também defi-
bert Daniel e Herbert de Souza, tiveram importân- nida como uma força política de participação social
cia crucial no desenvolvimento das primeiras res- – a única capaz de transformar o mundo –, um hu-
postas de combate à epidemia no País. manismo igualitário entre forças e poderes, uma
Herbert Daniel foi um dos fundadores e o luta tendo por arma o amor e uma criatividade
primeiro presidente do grupo Pela Vidda, no Rio bela da vida que nos contagia.
de Janeiro (até a sua morte, em 1992, em decor- Portanto, antes do aparecimento de resul-
rência da aids) e Herbert de Souza, um dos fun- tados positivos de esforços por uma cura bioló-
dadores e o primeiro presidente da Associação gica e de medicamentos eficazes no combate ao
Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), até fa- HIV, a solidariedade já era concebida como remé-
lecer em 1997. Criadas respectivamente em 1986 dio na luta contra a epidemia e a doença. Porém,
e 1989, a ABIA e o Grupo Pela Vidda (significan- não se deve considerar essa “solidariedade” – tão
do Valorização, Integração e Dignidade do Do- pregada, ainda hoje, pelo movimento social –
ente de Aids) são duas das primeiras ONGs/aids como uma idéia religiosa ou de compaixão, e sim
fundadas no Brasil. uma ação política de cooperação, ativismo e
Homossexual, soropositivo, ex-militante manifestação coletiva. Em outras palavras, uma
no período da ditadura militar brasileira, entre mobilização da sociedade civil cobrando respon-
outras identificações, Herbert Daniel escreveu, sabilidades dos governos e de outros segmentos
da sociedade ou, ainda, uma atitude no sentido de
em 1989, um dos primeiros livros sobre aids no
partilhar e compartilhar questões e problemas re-
País, Vida Antes da Morte,4 cujas idéias centrais
lacionados à aids. Em suma, era por meio da so-
3 FAUCI, 2002.
lidariedade que alguns brasileiros buscavam mini-
4 DANIEL, 1994. mizar os efeitos da aids e enfrentar seus desafios.

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Herbert de Souza, mais conhecido como Creio que podemos transformar a tragé-
Betinho, escreveu A Cura da Aids,5 com a mesma dia da aids, da enfermidade e da doença
linha de raciocínio de Daniel, embora seja identi- num desafio, numa oportunidade, numa
possibilidade de recuperar nossa socieda-
ficado pela sociedade como diferente deste, por
de, em nós mesmos, em cada um de nós
conta da orientação sexual e da via de contamina- e em todos nós, o sentido da vida e da
ção. Heterossexual, infectado pelo HIV e pelo ví- dignidade. E, com esse sentido da vida e
rus da hepatite C em decorrência da hemofilia, da dignidade, seremos capazes de lutar
Betinho aborda temas como respeito à diferença, pela construção de uma sociedade demo-
direitos humanos, cidadania, democracia, saúde crática, de uma sociedade justa e fraterna.6
pública e solidariedade, contra a discriminação da
Na tentativa de construir essa nova socie-
sociedade ao homossexual, ao drogado, ao negro,
dade, Betinho critica as desigualdades existentes
ao direito de existir, ao direito à relação sexual etc.
no País, afirmando que viver ou morrer de HIV/
Nesse sentido, o livro leva a uma reflexão sobre a
aids depende do tratamento médico, como tam-
forma como a sociedade ocidental, hoje em dia,
bém da classe social. No caso da aids, ser rico ou
concebe a vida, a morte e o sexo.
pobre significa viver mais, ou menos, tempo. Ele
Uma das idéias centrais de Betinho é que a critica ainda as atitudes de pessoas, autoridades,
sociedade deve parar de internalizar e incorporar governos, pesquisadores e profissionais diante da
tais discriminações e preconceitos geradores de aids, por basearem-se no medo, na impotência,
culpa, medo, vergonha, vitimização do HIV posi- na fuga, na clandestinidade, na omissão, no terror
tivo e de estigmas em relação à pessoa vivendo e no abandono, reações essas produzidas pelo
com HIV/aids, que passa a ser identificada como preconceito e pela discriminação:
“pecadora”, “doente”, “criminosa” e/ou “desvi-
ante”. Sair da clandestinidade, denunciar todo As pessoas afetadas pelo vírus viram-se
diante do trágico, e não de uma doença.
tipo de diferenciação discriminatória e preconcei-
Os cientistas viram-se diante da impotên-
tuosa, fomentar a solidariedade, traduzida em
cia da cura, e não do desafio da descoberta
convívio, e não em segregação, isolamento ou que tem que inventar caminhos. Os go-
discriminação, configuram-se como grandes ob- vernos praticaram o terrorismo e incor-
jetivos e desafios para Betinho e para todos nós, poraram todos os preconceitos que a so-
ainda hoje. É digno ressaltar que a solidariedade, ciedade inspirava, decretando na maioria
como era para Betinho e Herbert Daniel, conti- dos casos a morte civil dos portadores do
nua sendo entendida como o único remédio vírus fatal. Diante de uma epidemia fatal,
que atacava homossexuais, drogados e
contra a aids (ao lado das campanhas de preven-
hemofílicos, os governos optaram por
ção), no final dos anos 80 e início dos 90, apesar
proteger – através de campanhas terroris-
do surgimento das primeiras drogas eficazes no tas – aqueles que não tinham sido conta-
controle do HIV, como o AZT e o DDI, do acú- minados e deixar no abandono as “mino-
mulo do conhecimento médico-clínico sobre o rias” que já haviam sido tocadas pela fata-
manejo das infecções oportunistas e do próprio lidade, cuja via era o sexo promíscuo ou o
HIV, além dos estudos de vacinas a partir da dé- sangue contaminado, e cujo destino era a
cada de 90. Segundo Betinho, a solidariedade morte.7
também é concebida como antítese da passivida- Para Betinho, a aids encontrava-se, já em
de e do pessimismo, e constituída de uma di- 1994, em processo de controle e a caminho da
mensão positiva e do desafio da construção de cura, apesar da “indiferença” do poder público.
uma outra sociedade:
6 Ibid., p. 20.
5 SOUZA, 1994. 7 Ibid., p. 38.

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Sua idéia de cura não está centrada apenas nos mente, terapia anti-retroviral altamente ativa
avanços médico-científicos, mas sobretudo na (HAART, em inglês).
idéia da afirmação social da vida, mediante a soli- O mês de julho, de 1996, representou o mo-
dariedade. A crença na cura, de acordo com ele, mento em que a comunidade científica foi capaz
seria uma forma de combate ao mito da fatalidade de proporcionar um controle parcial da doença e
da aids e, por conseguinte, uma maneira de mo- oferecer novas esperanças aos infectados. Em al-
dificar as atitudes de pessoas e governos em rela- guma medida, os médicos já podiam contar com
ção à síndrome. medicamentos capazes de controlar a replicação
Em resumo, já no início dos anos 90, Beti- viral. Realmente, na conferência de Vancouver os
nho pregava a aids como uma doença controlável, resultados das pesquisas com uso da combinação
colocando-se contra a crença de morte imediata e de vários anti-retrovirais mostraram-se bastante
inelutável, e contra a cultura do terror e fatalismo. promissores, sendo rapidamente interpretados
Tal cultura era fomentada, na época, pelo gover- por muitos como a tão prometida cura.
no, por meio de suas campanhas de prevenção, e Apesar de a expectativa de cura por meio
incorporada pelas pessoas por conta da falta de dessa terapia ter sido refutada em curto espaço de
informação sobre as formas de contaminação e tempo, o tratamento resultou positivo em todos
de enfrentamento da condição de soropositivida- os países onde as pessoas infectadas pelo HIV ti-
de para o HIV. veram acesso a esse tipo de terapêutica.8 Nessa
conjuntura, a inexorável, inapelável e irreversível
Comparadas as idéias de Betinho com as de
condenação à morte tornou-se realidade passada
Herbert Daniel, compreende-se que, no final dos
àqueles com possibilidades de acesso aos medica-
anos 80 e início dos 90, o mais importante era –
mentos anti-HIV. É indiscutível que o uso ade-
e ainda hoje continua sendo – saber viver e redu-
quado da terapia anti-retroviral tornou a infecção
zir o vírus da aids à sua real dimensão: um desa-
por HIV uma condição de evolução crônica, ape-
fio, a ser vencido pela solidariedade e por outras
sar de gerar outros efeitos, como novas morbida-
ações. Betinho e Daniel lembram, com grande
des (efeitos adversos) e interações medicamento-
propriedade, que o HIV não é 100% fatal; em
sas, além de problemas na aderência9 ao coquetel.
contrapartida, mortais somos todos nós, pois a
Observa-se uma melhoria da qualidade de
morte é parte certa e inelutável da vida. vida de muitas pessoas com HIV/aids, traduzida
em melhor condição física e emocional. Além
TERAPIA TRIPLA COMBINADA disso, a terapia combinada tripla potente reduziu
DE ANTI-RETROVIRAIS o número tanto de internações por infecções
Seguindo-se à construção dos primeiros la- oportunistas quanto de mortes. Segundo An-
ços de solidariedade no Brasil e no mundo, o ad- thony S. Fauci, nos Estados Unidos e nos países
vento da terapia tripla combinada de anti-retro- em desenvolvimento que disponibilizaram a tera-
virais tornou a aids um desafio mais perto de ser pia anti-HIV, a taxa de mortalidade causada por
vencido, quer pelo seu controle quer pela cura, aids, ajustada por idade, diminuiu em torno de
criando, assim, uma nova era e realidade no com- 48%, entre 1996 e 1997. Redução semelhante foi
bate à síndrome, na segunda metade da década de notada na Europa Ocidental e na Austrália, tam-
90. Em 1996, na XI Conferência Mundial de bém possibilitada pela terapia anti-retroviral
Aids, em Vancouver (Canadá), foram divulgados combinada de alta potência.10
os primeiros resultados positivos e alentadores Por outro lado, de acordo com Peter Lamp-
sobre o tratamento específico contra o HIV, uti- tey, apesar de todos os esforços, a aids será a pior
lizando-se a combinação de várias drogas anti-re-
8 CHEQUER et al., s/d.
trovirais, comumente denominada pela popula- 9 Utilizamos aqui o termo aderência como sinônimo de adesão.
ção e pela mídia de coquetel anti-aids e, atual- 10 FAUCI, 2002.

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pandemia da história, em número de mortes (a nados ao tratamento de adultos, de crianças e à


estimativa é de 65 milhões de óbitos, 25 milhões prevenção da transmissão vertical (de mãe para fi-
a mais que os causados pela peste negra, na Eu- lho).13
ropa e na Ásia, no século XIV). Isso se, em dez ou A política adotada pelo Estado brasileiro,
15 anos, os agentes engajados na cooperação in- em construção conjunta com a sociedade civil,
ternacional não conseguirem facilitar o acesso ao está produzindo resultados positivos e permitin-
tratamento de infecções oportunistas e à terapia do a obtenção, no País, de impactos no combate
anti-retroviral para a população dos países pobres à epidemia semelhantes aos alcançados pelos pa-
e em desenvolvimento.11 íses desenvolvidos. De modo geral, os resultados
O advento da terapia anti-retroviral combi- brasileiros se traduzem na redução da mortalida-
nada de alta potência colocou o movimento or- de causada por aids em 49% no Estado do Rio de
ganizado da sociedade nessa nova frente de luta Janeiro e em 48% no Estado de São Paulo.14 Nes-
pelo acesso universal ao novo tratamento, fora ses dois estados concentram-se 36% dos casos
dos países desenvolvidos, além de, atualmente, notificados no País. Mas, apesar desses avanços, o
revigorar a luta pelo acesso ao necessário e fun- impacto da terapia anti-retroviral combinada, re-
damental tratamento das infecções oportunistas, duzindo morbidades, infecções oportunistas,
imprescindível ao prolongamento da vida do HIV internações, demandas por serviços de emergên-
positivo, seja uma pessoa vivendo em país pobre cia e quantidade de mortes, ainda é motivo de crí-
ou rico. tica por parte da sociedade brasileira.
Alguns brasileiros sem doenças graves ou
A EXPERIÊNCIA DO BRASIL com enfermidades sérias e crônicas dizem que o
NO COMBATE À EPIDEMIA tratamento de aids, especificamente a terapia
O impacto da epidemia e da terapia anti-re- anti-retroviral, é um gasto enorme para os gover-
troviral não é só analisado atualmente em função nos, além de deslocar recursos que poderiam ser
do número de pessoas infectadas e de óbitos, destinados ao tratamento de outras doenças e/ou
nem apenas da redução do número de infecções ao financiamento de outros projetos sociais. Do
oportunistas e de mortes, respectivamente, mas ponto de vista governamental e das ONGs, essa
também em seus aspectos políticos e econômi- idéia não se sustenta, pois a disponibilidade dos
cos, interligados às questões sociais e individuais. anti-retrovirais e os gastos relativos a eles, na cifra
de milhões de reais, representam ainda assim uma
Com relação aos países em desenvolvimen-
economia para a União, além de representar uma
to, podemos citar a experiência do Brasil, que, em
ação ética de manutenção da cidadania e do direi-
novembro de 1996, passou a garantir a distri-
to à vida e à saúde, garantidos na Constituição.
buição gratuita de medicamentos para HIV/aids,
por meio da Lei 9.313. Essa lei possibilitou o de- O governo federal economiza com a redu-
senvolvimento de um programa nacional de aces- ção das internações (cujos gastos são computa-
so universal aos anti-retrovirais, com logística dos por diária), com a diminuição da incidência
própria de distribuição, apoiada pelos governos das doenças oportunistas e da compra de medi-
estaduais e municipais. No mesmo ano, foi cria- camentos para tais tratamentos (que, em algumas
do o primeiro documento oficial brasileiro sobre infecções, são bem caros) e com a redução da
terapia anti-retroviral, conhecido como “o con- 12 CHEQUER et al., 1999 (o livro trata as respostas do Brasil ao HIV/
senso”, produzido, e atualizado anualmente, por aids e foi publicado também em francês, inglês e espanhol).
um conjunto de especialistas e experientes médi- 13 Esses documentos oficiais podem ser encontrados na internet, no
site da Coordenação Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde:
cos dedicados à luta contra a aids.12 Existem, hoje <www.aids.gov.br>.
em dia, três principais tipos de consenso, desti- 14 CHEQUER et al., s/d, apud GALVÃO (2002). Dados do Ministé-
rio da Saúde sugerem redução do número de óbitos em 54% na cidade
de São Paulo e em 73% no município do Rio de Janeiro, entre 1995 e
11 LAMPTEY, 2002. 2000.

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procura pela previdência social, por meio do me- problema, tanto para as pessoas, por conta da fa-
nor número de pedidos de auxílio-doença e apo- lha terapêutica, quanto para a saúde pública, em
sentadoria. Na verdade, a economia com a redu- função do risco de disseminação de vírus resis-
ção do tratamento de doenças oportunistas (es- tentes em novas infecções na população. O baixo
timada, pelo Ministério da Saúde, em 677 mi- nível escolar e cultural da população de países em
lhões de dólares, no período 1997-2000) é dos desenvolvimento é colocado como obstáculo
estados e municípios, pois a eles compete tal res- fundamental ao alcance de uma boa aderência aos
ponsabilidade, graças à regulamentação, feita em anti-retrovirais e, por conseguinte, fator funda-
1998, sobre a divisão de gastos do tratamento de mental de fracasso no tratamento individual e nas
aids entre União, estados e municípios. políticas públicas de saúde contra o HIV. Surgiu
Esses fatos podem ser reconhecidos como daí a crescente preocupação do governo brasilei-
alguns dos impactos e das respostas do Brasil à ro, de profissionais de saúde, de pessoas vivendo
aids, nos âmbitos político e econômico, molda- com HIV e aids e de membros de ONGs com o
dos pela política de distribuição gratuita de anti- tema da adesão.
retrovirais. Tais bem-sucedidas respostas contra- A justificativa, tanto econômica (falta de
dizem a idéia do Banco Mundial sobre prevenção dinheiro para o sustento de um programa de tra-
e tratamento de aids nos países em desenvolvi- tamento de aids por longo prazo) quanto social
mento. No final dos anos 90, essa instituição as- (baixo nível de conscientização e instrução da po-
segurava que o mais viável, para os países em de- pulação), revelou-se pouco válida para a nossa rea-
senvolvimento, não seria oferecer o tratamento lidade social, pois, como demonstra a bibliografia
anti-retroviral, mas dedicar-se apenas às campa- consultada sobre as investigações realizadas no
nhas de prevenção.15 Esse órgão parte da noção contexto brasileiro (discutidas adiante neste arti-
de que os países em desenvolvimento possuem go), os índices de adesão aos anti-retrovirais no
renda per capita muito baixa, não cobrindo, na Brasil assemelham-se aos níveis de aderência da
maioria das vezes, os gastos com os serviços de população dos países desenvolvidos. A vontade
saúde em geral. Conseqüentemente, eles não te- política, a mobilização da sociedade civil, o com-
riam recursos suficientes para manter, por longo promisso dos setores públicos e privados e as
prazo, a compra dos anti-retrovirais para trata- ações conjuntas de muitas pessoas possibilitaram
mento da aids, nem para adquirir medicações efetivas respostas contra a aids no âmbito do tra-
para doenças oportunistas, necessitando, portan- tamento, assim como no da prevenção, minimi-
to, de subsídios internacionais para o abasteci- zando, neste início de século XXI, o impacto de-
mento desses remédios. vastador da epidemia projetado por órgãos inter-
Outro questionamento do Banco Mundial, nacionais.
já não só do ponto de vista econômico, mas in- Segundo o Ministério da Saúde, na década
cluindo a questão social, é sobre a capacidade das de 80, o Banco Mundial estimava, por exemplo,
populações – e talvez dos governos e profissio- em 1,2 milhão o número de brasileiros infectados
nais – dos países em desenvolvimento para lidar na virada do século. No entanto, estão atualmen-
com a complexidade do tratamento de aids, en- te contabilizadas 597 mil infecções por HIV (ex-
fatizando a incompetência dessas sociedades no cluindo os óbitos e considerados os 215.810 ca-
alcance de altos e satisfatórios níveis de adesão ao sos já notificados de aids). A Coordenação Na-
tratamento anti-retroviral. Cabe destacar que a cional afirma que, observando-se as novas infec-
preocupação com a baixa adesão decorre do risco ções por ano, percebe-se que, no período 1996-
de desenvolvimento de resistência viral aos medi- 1999, após o advento da terapia tripla potente, o
camentos anti-HIV existentes, o que vem a ser um número de casos girou em torno de 20 mil a cada
12 meses, reduzindo-se para 15 mil no ano de
15 BELOQUI, 1998a. 2000.

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A mobilização de alguns segmentos da so- e cultural de combate à epidemia com as idéias


ciedade brasileira na construção de respostas efe- das agências internacionais sobre o tratamento
tivas e não discriminatórias, combatendo estig- contra a aids nos países em desenvolvimento.
mas e preconceitos, e o sucesso das políticas pú- Desde 1996, a adesão aos anti-retrovirais com as
blicas de aids e do tratamento anti-retroviral foi terapias triplas potentes era, para os países desen-
decorrente de parcerias entre profissionais de volvidos, um problema médico-biológico e social
saúde, pesquisadores, ONGs e os governos fede- (de saúde pública), portanto, uma questão políti-
ral, estaduais e municipais. O objetivo das parce- co-econômica, chegando alguns pesquisadores a
rias foi alcançar uma melhor compreensão dos reconhecê-la como o “calcanhar de Aquiles” da
aspectos relacionados ao tratamento de aids no terapia anti-retroviral combinada altamente ativa.
contexto de um país em desenvolvimento: acesso E quais seriam os problemas de adesão nos países
a medicamentos, acompanhamento clínico e la- em desenvolvimento como o Brasil?
boratorial, resistência viral, falência terapêutica,16 É interessante notar que o conhecimento
aderência aos anti-retrovirais (tomar a medicação sobre a síndrome da imunodeficiência adquirida
na dose certa, no horário correto e com alimen- tem se modificado com enorme velocidade nos
tação ou jejum adequados, todos os dias). Tais últimos 20 anos e o avanço do saber científico so-
parcerias desdobram-se também na elaboração de bre tal doença transformou o próprio significado
materiais informativos sobre adesão e na capa- biológico, social e psicológico da condição de so-
citação de profissionais de saúde e membros de ropositividade para o HIV: a aids deixou de ser
ONGs, com o propósito de torná-los agentes
uma doença fatal e irreversível, tornando-se uma
multiplicadores sobre a importância da aderência condição crônica potencialmente controlável.
aos anti-retrovirais.
Nesse contexto, as primeiras pesquisas bra-
O desejo de melhor compreender a epide- sileiras sobre adesão foram realizadas visando a
mia e o tratamento de aids no Brasil, particular- refutar as idéias das agências internacionais sobre
mente a questão da adesão, foi movido também tratamento nos países em desenvolvimento, bem
pelo desejo de nossa sociedade em responder de
como a contribuir para a superação dos próprios
modo competente aos desafios impostos pela
desafios políticos, sociais, econômicos, biológi-
epidemia e pela vontade política e social de con-
cos e individuais impostos pela soropositividade
frontar nossa realidade política, social, econômica
e pela epidemia.
16 Falência terapêutica ocorre quando o organismo faz resistência às
drogas, indicando que o medicamento não está mais tendo efeito. PESQUISAS BRASILEIRAS SOBRE
Pode resultar também de intolerância às drogas em função dos efeitos
adversos. É importante ressaltar que o grande problema da aderência é, ADESÃO AO TRATAMENTO COM
de fato, a falência terapêutica: se as pessoas não conseguem utilizar a
atual geração de medicamentos de forma correta, novos remédios a
ANTI-RETROVIRAIS
serem desenvolvidos no futuro, potencialmente mais eficazes, podem A primeira pesquisa brasileira sobre adesão
não surtir efeito em virtude da produção e circulação de vírus resisten-
tes aos anti-retrovirais hoje disponíveis. Isso engendra questionamen- aos anti-retrovirais17 foi realizada por uma jorna-
tos sobre o momento de se iniciar o uso da terapia anti-retroviral lista especializada em saúde, que entrevistou cem
combinada. Nesse ponto, verificamos posições divergentes. Por um
lado, a indústria farmacêutica está incentivando o seu uso, o mais pacientes de serviços públicos e privados do Rio
rápido possível, e, por outro, determinadas linhas terapêuticas estão de Janeiro e de São Paulo, além de ouvir 40 mé-
questionando essa adoção imediata dos anti-retrovirais logo após o
diagnóstico da soropositividade para o HIV e à queda do CD4 (células dicos especialistas. Os resultados apontam os
de defesa) para abaixo de 500 e, mais recentemente, para níveis inferio- principais motivos, categorizados pela pesquisa-
res a 350 (até 200) por mililitro cúbico de sangue – idéia do consenso
brasileiro –, uma vez que o mau uso da medicação pode prejudicar as dora, para a perda de doses:
pessoas e a saúde pública. Por conseguinte, talvez, seja mais indicado
que algumas pessoas esperem por novas gerações de medicamentos • 38%: esquecimento (preocupação com
com administração e posologia mais simplificadas e com menos efeitos trabalho e filhos, por exemplo);
adversos, caso estejam, é claro, bem clínica e laboratorialmente (exa-
mes de CD4 e carga viral, que é a medição da quantidade de vírus no
sangue). 17 LEMES, 1998.

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• 20%: efeitos colaterais (vômitos, náuseas, trevista (informação do próprio paciente). E con-
diarréia, formigamento no corpo, dor- cluiu que é “baixa a fidelidade (adesão) total aos
mência na boca e enjôo); coquetéis”; 92% dos entrevistados compartilham
• 18%: ausência de remédio à mão (esque- a soropositividade com apenas um círculo muito
cimento, procura de emprego, engarra- restrito de pessoas; e na semana anterior à entre-
famento, prisão e internação); vista, 59% deixaram de tomar pelo menos uma
• 17%: falta de ambiente (dificuldade para dose, ao passo que, nos 30 dias anteriores à pes-
tomar os remédios em reuniões de tra- quisa, esse número subiu para 73%.
balho, na frente de amigos, dos pais e de Outra pesquisa brasileira,18 publicada pelo
visitas dentro da própria casa); Ministério da Saúde, trabalhou com a adesão re-
• 15%: perda de hora (despertador não portada pelos pacientes nos três dias que antece-
funcionou por falta de luz, adormeci- deram a entrevista e considerou aderente ao tra-
mento, embaraço com mudança de fu- tamento quem tomou 80% ou mais dos compri-
so); midos prescritos, obtendo prevalência de adesão
• 8%: percepção errada (sentir-se bem, de 69% entre os 1.141 pacientes entrevistados. É
não ter nada, entender como boa a con- justamente essa pesquisa que constata um grau
tagem de CD4); semelhante de adesão entre as populações de paí-
• 8%: feriado da medicação (viagens, fi- ses ricos e as de países em desenvolvimento, no
nais de semana, para tomar cerveja ou caso, o Brasil. Conseqüentemente, refuta a idéia
limpar o organismo); de agências internacionais identificando o baixo
• 6%: festas; nível escolar e de instrução da população de paí-
• 6%: ausência do remédio (falta de di- ses em desenvolvimento como grande obstáculo
nheiro para pegar medicação, falta de re- ao sucesso da terapia anti-retroviral, por conta de
ceita e de carimbo e adiamento de con- falhas na adesão. Apesar desses índices, vale men-
sulta); cionar que, no Brasil, os serviços de saúde, por
• 5%: religião (“Só Deus e Jesus curam”); meio de farmacêuticos contratados para esse fim,
• 3%: outros motivos (medicação suspen- fornecem medicamentos, orientam e acompa-
sa por hepatite medicamentosa ou por nham o paciente, com vistas a racionalizar o tra-
excesso de bebida). tamento (trata-se de imposição legal). Todavia,
• Segundo a jornalista, a pesquisa revela al- isso não acontece em todo o País.
guns aspectos, entre eles: Não obstante, a parte quantitativa dessa
quem não se cuida direito não é simples- pesquisa mostrou alguns fatores socioeconô-
mente porque não quer; micos de risco para a não aderência: escolaridade
entre os mais carentes, há quem faça o menor que quatro anos e ausência de renda pes-
tratamento rigorosamente; soal, independentemente da combinação de anti-
do mesmo modo, entre os de nível retrovirais utilizada, do tipo de unidade de saúde,
universitário, existem aqueles que se tra- de faltas ao segmento médico e das demais variá-
tam de forma irregular; veis analisadas. Em suma, observou-se uma asso-
o que mais dificulta a adesão é a baixa ciação significativa entre não aderência e históri-
escolaridade, o uso de drogas, os distúr- co de faltas às consultas médicas, unidade de saú-
bios psiquiátricos e as dificuldades emo- de, renda pessoal (trabalho) e escolaridade. E um
cionais. grande nível de não aderência entre pacientes no
Essa primeira investigação definiu a aderên- início do tratamento, ressaltando a relação entre
cia com base na quantidade de comprimidos (ou esquema terapêutico e aderência como, provavel-
cápsulas) e de doses (horários) prescritos e toma-
dos durante os sete e os 30 dias anteriores à en- 18 NEMES et al., 2000.

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mente, mais complexa do que a sua caracteriza- 4. serviço de saúde: a relação médico-pacien-
ção em número de drogas, comprimidos, efeitos te e os aspectos de acessibilidade são os
adversos etc. destaques. De acordo com os pesquisado-
Um terceiro estudo realizado no País19 res, alguns trabalhos têm confirmado a re-
concebe a aderência aos anti-retrovirais como a lação positiva entre aderência e boa quali-
principal variável na qual os serviços de saúde po- dade do cuidado, destacando-se a relação
dem intervir. Segundo seus autores, tal interven- com os profissionais de saúde (percepção
ção objetiva aumentar a eficácia da medicação, da competência do profissional, qualidade
mas também diminuir as possibilidades de surgi- e clareza na comunicação, percepção do
mento da resistência do HIV aos anti-retrovirais. sentimento de compaixão, disposição dos
Eles se referem a quatro grandes fatores influen- profissionais em envolver os pacientes em
tes na adesão relacionados a: decisões referentes ao tratamento, senti-
mento de apoio, satisfação com a equipe,
1. doença: a ocorrência de sintomas, o “sen-
informações adequadas do que se esperar
tir-se bem” ou “sentir-se doente”, em al-
com relação à duração e à severidade dos
guns estudos, segundo os pesquisadores,
efeitos adversos) e a conveniência dos
são apontados como variáveis dependen- agendamentos e procedimentos hospitala-
tes para uma não adesão. Já o aumento dos res e ambulatoriais.
níveis de CD4 pode associar-se positiva-
Esses autores também discutem os princi-
mente com a aderência (pensamento dife-
pais métodos de aferição da aderência, salientan-
rente do resultado da pesquisa de Lemes);
do as entrevistas ou auto-informação, a conta-
2. tipo de tratamento: um maior tempo de gem manual ou eletrônica, a aferição de marca-
tratamento e a presença de efeitos adver- dores biológicos (carga viral, por exemplo) ou de
sos ou tóxicos podem se associar com bai- metabólitos das drogas prescritas (na urina ou no
xa adesão. Já o regime terapêutico comple- sangue). Eles concluem que, embora possam su-
xo (número de doses, via de aplicação, nú- perestimar a o grau de aderência, as entrevistas
mero de drogas e condições alimentares), são muito utilizadas e podem ser bons indicado-
no caso do tratamento anti-retroviral, se- res da adesão real. Concluem também que uma
gundo os autores, produz resultados con- boa adesão é definida, classicamente, pelo seu
troversos – mais de três doses, tamanho do contrário, ou seja, considera-se não aderência
comprimido, condições alimentares tor- uma ou mais das seguintes condições: não tomar
nam-se variáveis para a não aderência em ou interromper a medicação prescrita, tomar me-
alguns estudos, no entanto, em outros, o nos ou mais da dosagem recomendada, alterar in-
número de drogas e doses não influenciou tervalos de tempo prescritos ou omitir doses, e
a aderência; não seguir as recomendações alimentares ou ou-
3. pessoa: nas pesquisas em aids, segundo os tras que acompanham a medicação.
pesquisadores, os resultados são controver- Em resumo, segundo os autores, não há
sos quanto ao perfil socioeconômico – a como aplicar satisfatoriamente o conhecimento
maioria das pesquisas não encontra depen- sobre a adesão em outros tratamentos de doenças
dência significativa entre idade (mais comu- crônicas à aderência aos anti-retrovirais, por con-
mente), uso de drogas (em menor escala) e ta da especificidade desse tratamento e da com-
adesão. Mas há estudos sugerindo graus va- plexidade dos significados sociais e psicológicos
riáveis de não adesão entre os usuários de da aids. De fato, uma das teses dos pesquisadores
drogas, conforme seus estilos de vida; é que a adesão aos anti-retrovirais – por conse-
guinte, os motivos e razões para perdas de doses
19 TEIXEIRA et al., 2000. – são diferentes na aids, se comparados a outras

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doenças crônicas. A adesão, na prática, é concebi- tratamento da aids e ONGs/aids na cidade do Rio
da pelos autores como um processo interativo, de Janeiro. Foram incluídas algumas pessoas que,
gradual e demorado de se lidar com dificuldades ao saberem da pesquisa pelo rádio ou por materiais
de várias ordens, ou ainda, como uma prevenção informativos, procuraram a ONG, como voluntá-
que evita a progressão para a aids, contribuindo rios. Realizaram-se, no total, 200 entrevistas, estru-
para diminuir o aparecimento de cepas HIV resis- turadas na forma de questionário.
tentes. A parte qualitativa do trabalho consistiu em
entrevistas semi-estruturadas e em profundidade
A história dos aderentes é uma história de
com 14 pessoas em terapia anti-retroviral e nove
superação de dificuldades, relacionadas
não apenas às características complexas
médicos. Elas foram escolhidas por representa-
dos esquemas medicamentosos, mas, so- rem tipos bem definidos de pacientes: com boa
bretudo, às dificuldades relacionadas ao ou baixa adesão (e com comportamento sexual
estilo de vida e ao estigma da doença. Essa de risco ou não). A investigação, de forma seme-
história passa por momentos cruciais, sen- lhante a outras pesquisas brasileiras, definiu a
do um deles, certamente, o início do tra- adesão aos anti-retrovirais segundo a ingestão de
tamento, no qual aparece com maior niti- uma porcentagem mínima de medicamentos
dez a necessidade de aceitação da doença e prescritos nos três dias anteriores à entrevista,
de estabelecimento de relação confiável utilizando a auto-informação das pessoas.
com o médico e o serviço de saúde.20
Adesão é um processo dinâmico, interati-
A análise quantitativa inicial estabeleceu,
vo e contínuo que envolve o profissional como referência, dois níveis de adesão: 80%, por
e o paciente. Para que a aderência seja efe- ter sido um índice utilizado inicialmente pela li-
tiva, o paciente precisa confiar em seu teratura brasileira,22 e 90%, pelo fato de ser mais
médico, estabelecer com ele uma relação adotado atualmente na literatura internacional,23
de cumplicidade e adequar sua rotina ao em decorrência do insucesso em baixar a carga vi-
esquema de tratamento. Até chegar à ral, da emergência de variantes de vírus resisten-
aceitação de sua realidade e aderir ao tra- tes e de quadros de falência terapêutica em paci-
tamento, ele precisa vencer os estágios de entes com níveis de adesão de 80%.
negação e isolamento, raiva, barganha e
Na análise bivariada da adesão a 90%, o
depressão.21
maior risco de não adesão foi para quem tem di-
Realizada pela ABIA em parceria com o HIV ficuldade de adequar a medicação à rotina de vida,
Center for Clinical and Behavioral Studies, da para pessoas cuja perda de apetite, cansaço e falta
Universidade de Columbia, em Nova York (EUA), de energia incomodam, para quem percebe a falta
a quarta pesquisa denomina-se “Terapias Combina- de apetite como efeito adverso dos anti-retrovi-
das em Países em Desenvolvimento: experiências rais, para os que faltam às consultas e para aqueles
com adesão aos anti-retrovirais no Brasil”. Seus que compreendem que o médico não se concen-
objetivos foram: medir a adesão às terapias com- tra sempre na sua saúde.
binadas, identificar os fatores associados à aderên- Na análise bivariada da adesão a 80%, o
cia, examinar a relação entre terapias combinadas e maior risco de não adesão foi para quem não pos-
comportamento sexual mais seguro, e descrever o sui religião alguma, para quem tem dificuldade de
impacto das terapias combinadas na vida das pes- adequar os remédios à rotina de vida, para quem
soas vivendo com HIV e aids. A parte quantitativa percebe a falta de apetite como efeito adverso das
contou com uma amostra de conveniência (não medicações e como “incômodo”. Faltas às con-
aleatória) recrutada em hospitais de referência no sultas, pessimismo, possíveis alterações na vida

20 Ibid., p. 20. 22 Cf. NEMES et al., 2000.


21 KÜBLER-ROSS apud TEIXEIRA, 2000, p. 132. 23 PATERSON, 2001.

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sexual, comparecimento ao setor de emergência e assistência e políticas públicas nacionais e inter-


tratamento para infecções oportunistas nos três nacionais de saúde.
meses anteriores à entrevista também foram as- É oportuno também ressaltar que a amos-
sociados a uma baixa adesão. tra é representativa dela mesma, portanto, não se
A análise multivariada – que faz desapare- pode aplicar satisfatoriamente os resultados dessa
cer certas associações – da adesão a 90% revela os investigação a outras populações. Como foi de-
heterossexuais como menos aderentes, compara- monstrado, muitas das pessoas entrevistadas par-
dos aos homossexuais e bissexuais. E demonstra ticipam de eventos e grupos em ONGs/aids, o que
que os entrevistados com dificuldade de encaixar também pode explicar os altos índices de adesão
a medicação à rotina e que percebem a perda de encontrados, comparados aos índices de outras
apetite como efeito adverso dos anti-retrovirais pesquisas brasileiras e internacionais.
têm mais risco de não adesão. A análise multiva-
riada da adesão a 80% indica risco de maior não INDIVIDUALIZAÇÃO DO TRATAMENTO
adesão a quem não possui religião, falta às con- Em primeiro lugar, as pesquisas aqui apre-
sultas, esteve no setor de emergência e utilizou sentadas definem o conceito de adesão de forma
remédios para infecções oportunistas. reducionista e simplificada, de modo a não abar-
Resumindo, considerado o nível de inges- car as suas múltiplas perspectivas, havendo um
tão de 80% das doses, 88% das pessoas (do total distanciamento da realidade do fenômeno. Elas
de 192, que estavam tomando anti-retrovirais) definem e avaliam a adesão pelo cumprimento de
foram consideradas aderentes. Para o nível de certa porcentagem da prescrição médica, que va-
90% das doses, foram tidas como aderentes ria entre 80% e 90%, no mínimo. Ou seja, deter-
81,5% das pessoas. De fato, muitos disseram não minam a aderência pela quantidade de comprimi-
ter perdido nenhuma dose, embora os efeitos ad- dos (ou cápsulas) e de doses (horários) tomados,
versos e a dificuldade de adequação dos remédios especialmente, nos três últimos dias anteriores às
à rotina de vida sejam grandes desafios, maiores entrevistas e às auto-informações do próprio pa-
até que a complexidade das combinações (núme- ciente. Algumas literaturas seguem essa linha de
ro de doses e comprimidos, por exemplo). raciocínio, mas acrescentam outras condições
Já a parte qualitativa da pesquisa confirma para dimensionar o conceito de adesão, entre
os efeitos adversos como um dos piores obstácu- elas, recomendações alimentares (jejum, alimen-
los à adesão, segundo as próprias pessoas vivendo tos gordurosos, alimentação especial ou alterna-
com HIV e aids. Por exemplo, um dos mais temi- tiva) na definição e avaliação do fenômeno.24
dos efeitos adversos é a lipodistrofia – aumento Outras concepções ideais de autores e
dos níveis de colesterol, triglicerídeos e/ou redis- instituições colocam a relação médico-paciente,
tribuição irregular de gordura pelo corpo, com ou melhor, paciente e profissionais de saúde em
acúmulo nos seios, barriga e pescoço, e diminui- geral, como parte integrante dessa definição.25 Tal
ção nas pernas, braços e nádegas. A análise dessa concepção de adesão, considerando a relação en-
parte mostrou que os médicos compreendem a tre paciente e profissionais de saúde, enfatiza o
adesão como um problema complexo e desafian- estabelecimento de um relacionamento seguro,
te, associando seus baixos índices ao pequeno íntimo, respeitoso, flexível e de confiança, além
grau de educação dos portadores de HIV e, por da confecção de um plano de tratamento adapta-
conseguinte, responsabilizando apenas os pacien- do à rotina de vida das pessoas que devem ter
tes soropositivos pela não adesão. Concluímos uma participação mais ativa no tratamento. Ou
que tais profissionais de saúde não possuem uma
24BELOQUI, 1998b.
visão mais estrutural da questão, o que englobaria 25 ÁVILA VITÓRIA, s/d; CREMESP, 2001; e TEIXEIRA et al.,
eles mesmos, famílias, comunidades, serviços de 2000.

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seja, mais do que o simples cumprimento de or- raça, sexo, idade, gênero, ocupação, nível de ins-
dens e prescrições médicas, espera-se maior au- trução e salarial (ou renda pessoal), história pas-
tonomia e liberdade do paciente, de modo que ele sada de uso de drogas, situação conjugal e habi-
possa conduzir o próprio tratamento, com o tacional, orientação sexual e etnia. Segundo essa
acompanhamento do profissional, é claro. produção, algumas pesquisas mostram resultados
Em resumo, as críticas ao conceito de ade- controversos quanto ao perfil socioeconômico,
são focalizam outros pontos dos seus múltiplos por exemplo, ao estudar pessoas com transtornos
aspectos, como recomendações alimentares, in- psiquiátricos (depressão) e aquelas socialmente
tervalos entre as doses e definição da porcenta- isoladas (morando sozinhas).
gem exata de doses e pílulas, efetivos para o con- Porém, o aspecto mais relevante a destacar
trole da carga viral, bem como para o sucesso da nesses e em outros resultados controversos
terapia, incluindo melhora clínica e das contagens quanto ao perfil socioeconômico dos pesquisa-
de células de defesa.26 Para se avaliar a adesão, en- dos é que tais dados devem reforçar, e não afrou-
tendemos ser importante incluir outros parâme- xar, o compromisso da saúde pública para com
tros: a ocorrência de infecções oportunistas, o essas populações (usuários de drogas e pessoas
aumento da carga viral e a queda do CD4. A uti- com baixa escolaridade, sofrimento mental ou di-
lização de serviços de emergência (e remédios ficuldades emocionais, entre outros), colocando
para infecções oportunistas) não é necessaria- a possibilidade de oferecimento de terapia anti-
mente um indicador absoluto de baixa ou falta de retroviral a todos sem distinção. Isso porque os
adesão, pois a complexidade da síndrome é tal programas de intervenção mostram melhoria dos
que permite esse acontecimento. níveis de adesão em algumas dessas populações
Uma definição mais contemporânea sobre estigmatizadas, equiparando-os aos índices da
o termo aderência, considerado aqui mais perti- população em geral, como afirmam os especialis-
nente à nossa realidade, é a do fenômeno como tas. Essa idéia é muito importante para o Brasil,
um comportamento humano complexo, afetado em razão da sua política de acesso universal e gra-
pela personalidade e pelo caráter do paciente, tuito aos anti-retrovirais, garantido por lei. No
pelo relacionamento com profissionais de saúde, entanto, a ausência de renda pessoal como fator
pelas experiências culturais, pela comunidade e dificultador da adesão já é uma situação mais di-
familiares e, pode-se dizer, pelas políticas de saú- fícil de ser revertida, pois necessita da colabora-
de e pelo bom ou mau funcionamento rotineiro ção de outras áreas da sociedade diferentes do se-
dos serviços. tor da saúde.
Além das dificuldades na definição do ter- Os obstáculos, as razões e os motivos para
mo adesão, as pesquisas nacionais e internacionais uma não adesão, surgidos como dados nas pes-
também encaram problemas para operacionalizá- quisas, associam-se intrinsecamente à metodolo-
lo, bem como para estabelecer métodos de avalia- gia empregada e ao tipo de população investigada,
ção da aderência mais fidedignos, totalizantes e levando a resultados controversos. Entretanto,
integrais em relação à realidade. Assim, um estu- quais dessas razões, motivos e obstáculos para a
do brasileiro27 entende que, para uma maior com- não aderência satisfatória dependem única e exclu-
preensão de outras pesquisas, é importante a sivamente do indivíduo-paciente? A individualiza-
explicitação da metodologia, da definição e opera- ção do tratamento28 é tema de crescente preocu-
cionalização do termo adesão, como também das pação entre profissionais e autores que trabalham
características da população investigada. Incluam-
se nessas características o perfil socioeconômico: 28 Consenso Brasileiro, 2001. Documento disponível na página da
Coordenação Nacional de DST/Aids (<www.aids.gov.br>), entitulado
“Recomendações para terapia anti-retroviral em adultos e adolescentes
26 TEIXEIRA et al., 2000; STEURER, 1999. infectados pelo HIV”. Cf. também BELOQUI, 2000; e ÁVILA
27 TEIXEIRA et al., 2000. VITÓRIA, s/d.

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com aids. Tal expressão pode ser interpretada de quisas brasileiras: falta de adesão gerando resis-
duas diferentes formas. A primeira coloca toda a tência viral, que leva à falha terapêutica.
responsabilidade do tratamento no paciente, en- Não se está aqui retirando a condição da
tendendo a adesão ou a falta dela como um pro- adesão como assunto biológico-médico-psicoló-
blema exclusivo de força ou fraqueza de vontade, gico-científico, nem como pilar essencial da tera-
ou de poder e liberdade de escolha ou decisão do pia anti-retroviral, nem como um dos fatores que
portador-indivíduo-paciente-autônomo. Mas cabe realmente levam à resistência viral e à falha do tra-
lembrar, por exemplo, que a primeira pesquisa bra- tamento. Mas deve-se entender que a adesão
sileira sobre adesão (mencionada anteriormente também é um problema político-econômico e de
neste artigo)29 entende que quem não se cuida saúde pública para os governos, e uma questão a
não o faz por não querer, ou seja, o descuido não ser melhor enfrentada pelos profissionais, labora-
é por falta ou fraqueza de desejo ou de vontade, tórios – que precisam melhorar os preços e as
nem por escolha e decisão própria apenas. formas de administração dos remédios – e pela
A segunda forma de interpretação da sociedade, e não apenas uma questão de força ou
individualização do tratamento refere-se às toma- fraqueza de vontade do paciente-indivíduo. Por
das de decisão sobre o início, a mudança e a in- outro lado, a complexidade (ou será simplicida-
terrupção da terapia anti-retroviral. Ela vem ga- de?) da vida – com suas alegrias, dores, tristezas
nhando cada vez mais força, tanto que, no último e diversos sentidos – é que molda o comporta-
consenso brasileiro, já são pregados os esquemas mento de adesão de cada pessoa, assim como a
alternativos para as pessoas com dificuldades de sua relação com os profissionais de saúde e a so-
adesão, entre outras, concretizando a idéia de in- ciedade. Nesse sentido, a própria noção de suces-
dividualizar o tratamento, conforme o desejo e a so terapêutico e do tratamento pode ser indivi-
motivação do paciente em aderir, e outras neces- dualizada, sem desconsiderar o conhecimento
sidades. O novo consenso brasileiro traz não só médico-científico e os demais aspectos apresen-
as avaliações clínicas e laboratoriais, mas também tados.
a adesão, ou melhor, a capacidade, a motivação e A individualização do sucesso terapêutico
o desejo do paciente em aderir como elementos deve abarcar os aspectos imunológicos, clínicos e
primordiais na avaliação para o oferecimento ini- virológicos. Ou melhor, pode ser definida de
cial de terapia anti-retroviral, pelo menos em cer- modo a considerar as contagens de CD4 abaixo
tos casos: soropositivos assintomáticos com con- de 500 ou 350 (e também o aumento rápido ou
tagem de CD4 entre 200 e 350. lento dos seus níveis), a carga viral acima dos ní-
Cabe considerar a existência de uma série veis indetectáveis (ou sua redução para 30 mil có-
de fatores e razões impeditivos à adesão e ao su- pias ou menos) e ainda os sinais clínicos menores
cesso da terapia, fomentadores do rebote e resis- de imunodeficiência que podem ser interpretados
tência viral, que dependem não só do paciente- como não tão significativos diante do bem-estar
indivíduo, mas também de características bioló- geral, da boa qualidade de vida e do funciona-
gicas do vírus e do portador (hospedeiro), aspec- mento satisfatório social e laborativo das pessoas
tos sociais e culturais da interação de outras pes- HIV+. O importante, enfim, é o controle sobre
soas e profissionais de saúde com o paciente, de- tais aspectos.
terminantes políticos e econômicos que disponi- Essa é uma idéia defendida pelos autores
bilizam recursos para saúde, educação e trabalho, deste texto, e não necessariamente pela institui-
e particularidades da própria doença, das medica- ção da que fazemos parte, ou pelos profissionais
ções e do tratamento. Isso exige avaliar exausti- de saúde, médicos e especialistas. Mesmo assim,
vamente a equação que sempre aparece nas pes- para que ela seja realizável e benéfica às pessoas
HIV+, é preciso antes haver uma consulta médi-
29 Cf. LEMES, 1998. ca detalhada investigativa de toda a história de

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doenças e de tomada de anti-retrovirais, de ma- minação, por uma sociedade apaixonada pelo
neira a afastar eventuais enganos de conduta mé- belo e pela perfeição (incluindo-se a do corpo e a
dica e terapêutica. da saúde), temente às diferenças a ponto de ter
verdadeira ojeriza em reconhecer as peculiarida-
O IMPACTO DA SOROPOSITIVIDADE des –, especialmente as extremadas –, de cada um.
Segundo dados do Ministério da Saúde, Nesse sentido, tais sentimentos nos recém-
desde 1988, eram distribuídos gratuitamente re- diagnosticados podem ser combatidos com a aju-
médios contras as infecções oportunistas e, a par- da de pessoas e profissionais que buscam uma
tir de 1991 e de 1992, o AZT e o DDI, respectiva- nova sociedade, menos excludente, estigmatizan-
mente, primeiros anti-retrovirais que, mesmo te, discriminatória e desigual.30 Além do mais, é
combinados, e apesar da potência, não beneficia- necessário combater essas respostas iniciais de
vam muitas pessoas por longo prazo, quer pelos pessoas soropositivas, pois elas podem levá-las li-
efeitos adversos quer pela falha terapêutica. Por- teralmente à morte. A depressão, por exemplo,
tanto, até o surgimento, em 1996, da terapia anti- pode diminuir as defesas e aumentar o risco de
retroviral potente como tratamento eficaz na luta progressão para aids; por sua vez, a raiva é conhe-
contra a aids, as pessoas simplesmente sentiam cidamente um importante fator no desenvolvi-
imenso pavor em fazer o teste anti-HIV. A justi- mento de algumas doenças psicossomáticas, po-
ficativa para tal sentimento – e ação – levava em dendo agravar o quadro de aids. Juntas ou sepa-
consideração o fato de não haver tratamento efi- radas, elas podem levar à morte, assim como ou-
caz, nem cura, para a síndrome, bem como o tras reações iniciais, como o medo, a vergonha, o
medo da conscientização da morte como proces- isolamento e a culpa. Todas elas podem impedir
so da vida. Atualmente, o medo e o pavor de fa- de se procurar ajuda especializada e/ou solidária.
zer o teste ainda persistem, mas os motivos que Em outras palavras, ao saber da soropositividade,
aparecem em primeiro plano são outros: receio as pessoas são arrastadas para o enfrentamento de
da rejeição e da discriminação social, de amigos, uma série de situações. Os sentimentos iniciais
colegas de trabalho, familiares, profissionais e dos após o diagnóstico –, baixa auto-estima, repres-
amores. Essa situação configura-se como campo são de si próprio e da afetividade, medo da reve-
fértil para o crescimento da ignorância em relação lação da soropositividade e da discriminação,
à aids, como já alertava Betinho. pressão dos preconceitos e sentimentos cotidia-
Tal ignorância reflete-se no diagnóstico da nos, como dúvidas, ameaças, luto, incertezas –,
soropositividade para o HIV. Nesse momento, as podem levar ao isolamento, ao silêncio, e à não
reações psicológicas mais comuns são: isolamen- procura por ajuda e tratamento.31
to em relação aos outros; mau humor, irritação e Para combater essas situações, a procura de
ansiedade; medo do futuro e da morte; sensação ajuda especializada em psicologia, nutrição (que
de perda de controle; padrões sexuais alterados; deve ser individualizada), medicina alternativa e
depressão; negação da finitude da existência e do enfermagem, entre outras, além da medicina tra-
diagnóstico; culpa, raiva e vergonha por ter sido dicional, deve ser avaliada. A participação em mo-
contaminado via prática proibida ou condenada vimentos sociais organizados – instrumentos de
etc. Esses sentimentos, isolados ou misturados negociação com o governo e com outros seg-
entre si, podem levar a pessoa a sentir-se vítima e, mentos da sociedade –, é outro caminho a ser
ao mesmo tempo, vilã; criminosa, pecadora, do- considerado, assim como o desafio da mudança
ente ou desviante. Todos esses estigmas são in- no estilo de vida. Realizadas tais procuras ou mu-
corporados num duplo movimento: de força in-
dividual e de pressão social. Estigmas aplicados 30 Para um estudo mais aprofundado sobre estigma e discriminação,
concebidos como processos sociais de poder, dominação e controle,
nas pessoas por uma sociedade amante da rique- cf. PARKER & AGGLETON, 2001.
za, do consumo, do poder, do controle e da do- 31 TERTO JÚNIOR, 1996.

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danças, essas pessoas não devem achar-se doentes encontros regionais e nacionais de ONGs, criação
ou especiais, pois isso traria uma discriminação às de fóruns estaduais (fóruns de ONGs/aids em vá-
avessas. rios Estados, por exemplo), comissões junto a re-
Como encaixar o HIV+ no ideal de saúde presentantes do governo e comitês (entre eles, o
pregado pela sociedade e pela medicina? Qual se- de vacinas), de ativismo, batalhas jurídicas, criação
ria o conceito médico de saúde para o soroposi- de redes (de pessoas vivendo com HIV e aids, ou
tivo? Como ilustração, pergunte a um portador não, mas todas com fins políticos) e de negocia-
se ele se sente doente ou não. Além disso, a ânsia ções com instituições privadas (laboratórios) e
de diferenciação do soropositivo e a luta pela ci- públicas interessadas no tema da aids.32
dadania podem gerar atitudes perversas contra o Os grupos, trabalhando o tema da adesão e
governo e a sociedade. Em relação às questões outras questões do cotidiano, e as atividades de
trabalhistas, por exemplo, a busca de aposentado- convivência, dentro ou fora de ONGs, são reco-
ria e auxílio-doença pode configurar uma nova nhecidos como estratégias de enfrentamento da
diferenciação, denominada discriminação positi- aids graças às suas características de troca de in-
va. A forma mais ética de lidar com essa realidade formações, experiências e sentimentos. Há críti-
complexa é cada qual saber até que ponto o re- cas sobre o grande volume de informação repas-
querimento desses e de outros benefícios garan- sado em alguns desses grupos, considerando que
tidos por lei, e daqueles que vierem a ser assegu- isso pode dificultar, mais do que facilitar, a vida
rados pela legislação, refletem a real condição de do HIV+. Porém, por outro lado, muitos não
existência da pessoa vivendo com HIV e aids. Em querem nem ouvir falar de aids, preferindo, ao
que medida os benefícios da previdência social contrário do ditado popular, remediar a prevenir.
são um direito adquirido ou uma forma de gan- Muita gente ainda prefere se informar acerca dos
ho secundário, em que a doença é usada como sintomas ou doenças só depois de afetada por
desculpa para se sugar recursos do Estado e da eles.
sociedade.
Ainda assim, importa ressaltar que, apesar VARIÁVEIS NA ADESÃO AO TRATAMENTO
do mapeamento de algumas reações ao diag- A despeito de todos os dados e conclusões
nóstico de HIV+, não se está aqui abarcando com- das pesquisas brasileiras, a não adesão em algum
pletamente as atitudes de toda a população brasi- grau é considerada fenômeno universal, tanto em
leira, estigmatizadas e discriminadas ou não. Ad- doenças crônicas quanto na aids. Essa concepção
mitimos que as experiências subjetivas particula- acaba sendo o pano de fundo de todas as pesqui-
res de usuários de drogas, homossexuais, crianças, sas no País. Mesmo a pesquisa feita por Lemes,33
bissexuais, hemofílicos, portadores de sofrimen- particularmente, embora admita divergir dessa
to mental ou de conflitos emocionais, entre ou- idéia, parece concordar com ela, pois conclui ser
tros, não estão exaustivamente representadas nas baixo o nível de adesão entre os brasileiros. Em
idéias expostas anteriormente. nosso entender, a pesquisadora chegou a tal con-
A ajuda solidária, por sua vez, reflete-se ba- clusão porque tinha em mente o nível ideal de
sicamente na inserção dessas pessoas em movi- 100% de adesão, ou um índice muito próximo a
mentos sociais organizados (ONGs), grupos de ele.
auto-ajuda ou de apoio. No intuito de contribuir
No entanto, se for estabelecido como corte
com as respostas do governo na prevenção e no
os níveis de 80% ou 90% de ingestão das doses
tratamento contra a aids, algumas ONGs/aids de-
prescritas, encontraremos os seguintes índices de
senvolveram uma série de ações internas, reconhe-
aderência em sua pesquisa: para adesão a 80% nos
cidas como atividades de convivência e/ou grupos.
Além disso, essas instituições dirigiram suas res- 32 BELOQUI, 1997.
postas de combate à epidemia para a realização de 33 Cf. LEMES, 1998.

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sete dias anteriores à entrevista, 82% das pessoas por conta das diferenças individuais e dos resul-
seriam aderentes e, para a adesão a 90%, 77% das tados de pesquisas realizadas. Em contrapartida,
pessoas seriam aderentes. Nos 30 dias anteriores deve ressaltar também que, por conta das mes-
à entrevista, para uma adesão a 90%, 81% das mas diferenças individuais, índices de 80% a 90%
pessoas seriam aderentes e, para adesão a 80%, podem não ser satisfatórios à concretização dos
não há como precisar a porcentagem, uma vez efeitos da terapia tripla. Além disso, como atesta
que a pesquisadora afirma apenas que 19% per- a pesquisa de Teixeira,34 a quantidade mínima de
deram dez doses ou mais. doses para o efeito terapêutico positivo não tem
Considerando três ingestões ao dia, ao final sido bem determinada.
de um mês, o limite de perdas seria de 18 doses. O procedimento mais indicado é incentivar
Pode-se, então, afirmar que certamente 81% das o máximo de ingestão das doses, até porque, sa-
pessoas foram aderentes em um nível de 80%, bendo de antemão da possibilidade e da permis-
mas não dá para precisar que porcentagem seria são de perda de doses, alguns pacientes podem
anexada a esses 81%, considerando-se quem per- planejar e prever tais perdas. Como sabemos que
deu entre 11 e 18 doses. Entretanto, em razão de a vida nos reserva surpresas, uma pessoa já no li-
tal fato não ser considerado, é possível imaginar mite de sua cota de perda, por conta de um pla-
que o nível real de adesão a 80% possa chegar nejamento racional e prévio, pode ser obrigada a
bem próximo aos 100%. Em resumo, os índices perder mais uma dose, extrapolando o limite, o
de 77%, 81%, 82% ou mais poderiam representar que pode gerar ansiedade e mesmo falha no tra-
uma baixa fidelidade às medicações? Ou, em vez tamento.
disso, seriam equiparáveis aos níveis obtidos em O mérito das pesquisas brasileiras e inter-
pesquisas internacionais e aos graus de adesão re- nacionais não foi tanto determinar aproximada-
latados em investigações nacionais posteriores a mente o nível de adesão mais confiável (80% a
esse estudo? 90%) para o sucesso terapêutico, mas identificar
Quanto a essa questão, cabe aqui outra re- os fatores tanto dificultadores quanto facilitado-
flexão muito importante. As pesquisas e os estu- res à aderência, dependendo das diferenças entre
dos nacionais sobre adesão preocuparam-se cen- grupos e pessoas. A ocorrência de sintomas e/ou
tralmente em definir certo grau de aderência, em o aumento da contagem de CD4, por exemplo,
torno de 80% ou 90%. Porém, a nosso ver, a re- podem contribuir para uma boa adesão em algu-
lação desse nível com o sucesso terapêutico (leia- mas pessoas35 e dificultar a aderência em outras.36
se queda de carga viral, aumento de CD4 e ausên- Sentir-se bem e/ou estar bem (virológica, imuno-
cia de doenças) não está clara. Em virtude das di- lógica e clinicamente) são capazes de incentivar a
ferenças individuais – que, por exemplo, podem adesão em alguns e relaxá-la em outros. Igual-
alterar o padrão de absorção e metabolismo dos mente, um tempo maior de soropositividade
anti-retrovirais –, a prática médica ou de outro pode dificultar ou facilitar a adesão.
profissional não deve enfocar, nem valorizar, Diante de tais controvérsias, importa defi-
como verdade absoluta as informações decodifi- nir a adesão, na prática, como um processo em
cadas em torno da porcentagem, que não deve ser construção. Nesse sentido, não se deve esperar,
endeusada como único critério para conhecer a logo no início da terapia anti-retroviral, uma boa
adesão real. e satisfatória aderência por parte de todos. Pelo
Seria mais produtivo para o profissional in- fato de não ser natural, mas construído, esse
centivar a pessoa vivendo com HIV e aids a tomar comportamento de aderência precisa ser acompa-
o máximo possível de seus medicamentos. Ao nhando por profissionais, não só no início, mas
fazê-lo, o profissional deve informar que índices
34 Cf. TEIXEIRA, 2000.
acima de 80-90% são mais confiáveis para produ- 35 Ibid.
zir um efeito terapêutico do que níveis menores, 36 Cf. LEMES, 1998.

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em todo o tempo de terapia. É sabido que, quan- tros com os portadores do HIV, esses profissio-
do se está cansado da vida, por esforço físico ou, nais devem tratar de quaisquer temas do cotidia-
particularmente, problemas existenciais e afeti- no, que interferem positiva ou negativamente
vos, abandonar a terapia anti-retroviral é um dos não apenas na adesão aos anti-retrovirais, mas
primeiros pensamentos que vêm à cabeça do pa- também em todos os aspectos do tratamento de
ciente. Por isso, um simples teste com jujubas aids. Faltas às consultas, por exemplo, talvez es-
para avaliar a capacidade de adesão, antes do iní- tejam relacionadas com dificuldades na relação
cio da medicação, ou mesmo o suporte restrito médico-paciente, sendo, porém, da responsabili-
aos que se recusam a tomar os remédios prescri- dade do paciente, do médico, de ambos, do ser-
tos não são as únicas ações de cuidado necessárias. viço de saúde etc. Quando não funcionam regu-
O acompanhamento contínuo por profissionais larmente, ou estão indisponíveis, o acompanha-
revela-se estratégia fundamental ao tratamento. mento dos exames de carga viral e de CD4, o
Nesse esforço contínuo, os efeitos adver- agendamento de consultas em outras especialida-
sos (tóxicos, colaterais e reações alérgicas, entre des fora da infectologia e a marcação de procedi-
outros) tornam-se um desafio para as pessoas vi- mentos e de outros exames, todos da responsa-
vendo com HIV/aids, e também para os médicos, bilidades do serviço de saúde, podem enfraquecer
as equipes particulares e públicas de saúde e ou- e até mesmo eliminar a motivação ao tratamento.
tros segmentos da sociedade (laboratórios, por Apesar dos esforços do governo e da socie-
exemplo), uma vez que se apresentam como um dade, o sistema de saúde brasileiro, em particular
dos principais obstáculos à adesão aos anti-retro- o público, ainda recebe muitas críticas de profis-
virais, de acordo com as pesquisas aqui resumi- sionais e de usuários. Nesse contexto, a relação
das. Diante desse problema, uma primeira atitude entre o médico e o paciente não foge à crítica:
oportuna é identificar se os sintomas relatados muitas pessoas vivendo com HIV e aids reclamam
são sinais de outras doenças não relacionadas ao da imperícia e insensibilidade dos médicos, mes-
HIV, de infecções oportunistas ocasionadas pela mo em visitas prolongadas (pois consulta longa
síndrome da imunodeficiência adquirida, ou se não é sinônimo de atendimento de qualidade).
efeitos adversos dos anti-retrovirais, dos remédios Alguns médicos chegam ao absurdo de prescre-
para as infecções oportunistas, de medicamentos ver combinações erradas de anti-retrovirais (em
contra doenças não relacionadas à aids, ou, ainda, torno de 6% do total das prescrições, segundo o
efeitos da própria infecção por HIV. Cabe lembrar Consenso brasileiro de 2001). A qualidade do
que muitos efeitos adversos surgidos no início da atendimento e da relação médico-paciente deve
terapia anti-retroviral são passageiros, durando ser uma preocupação constante dos profissionais
poucas semanas, e, mesmo que persistam, podem e pacientes, não cabendo apenas ao paciente tra-
ser minimizados ou extintos por meio de alimen- zer as informações importantes ao tratamento,
tação, ações físicas antagônicas ou outros medi- por exemplo, o relato dos sintomas, as solicita-
camentos. O medo de vivenciar efeitos adversos, ções de exames e outros encaminhamentos. O
e mesmo a presença deles, caso não sejam graves profissional de saúde precisa buscar ativamente,
nem apresentem risco de morte, não devem im- nas consultas ou fora delas, independentemente
pedir de se tomar os anti-retrovirais. do tempo transcorrido, as informações necessá-
Segundo Teixeira,37 o trabalho da equipe rias ao tratamento da doença e à sua boa relação
multidisciplinar de saúde auxilia o paciente no com o paciente.
manejo dos efeitos adversos, mas, a nosso ver, o Por conta de todas essas dificuldades, como
papel dela não deve se restringir à busca de estra- já foi dito, a individualização do tratamento é
tégias para a melhoria da adesão. Em seus encon- uma noção cada vez mais defendida entre os en-
volvidos na questão, incluindo adequação dos es-
37 TEIXEIRA, 2000. quemas de tratamento à rotina das pessoas como

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essencial ao sucesso da adesão, além da informa- sentavam alta carga viral no sangue, mesmo na
ção do profissional e da relação primordial médi- ausência de infecções oportunistas graves. Diante
co-paciente. De acordo com especialistas, embo- disso, cabe a questão: até que ponto uma carga vi-
ra o foco do tratamento seja o paciente, a melho- ral detectável (acima de 80 ou 400 cópias por mi-
ria da adesão e do tratamento deve incluir a par- lilitro cúbico de sangue, variável conforme a sen-
ceria com médicos e outros profissionais de sibilidade da tecnologia) significa que todos os ví-
saúde. O problema é que, assim como acontece rus são resistentes? O que significa resistência vi-
com a prevenção à aids, o seu tratamento não está ral na sua relação com a elevação da carga viral?
disponível no País de maneira uniforme, em ra- Tal questionamento se deve ao fato de conside-
zão das diferenças regionais e culturais – além das rarmos que a ideologia vigente refere-se à carga
individuais –, bem como das dificuldades de pe- viral detectável como igual à população de vírus
resistentes ou a grandes possibilidades de surgi-
netração das campanhas e ações governamentais
mento de resistência. Porém, nem todos os vírus
(ou do movimento social organizado) em certas
de uma carga viral detectável são resistentes ao
regiões.
mesmo tempo a todos os anti-retrovirais utiliza-
Outro artifício a ser usado para a melhoria dos, conforme atesta Markowitz.38
do nível de adesão, segundo muitos autores, é a
simplificação dos regimes das medicações, redu-
DESAFIOS E POSSIBILIDADES
zindo o número de doses e de comprimidos. No
entanto, tal prática nem sempre funciona, pois Finalmente, como afirma Teixeira,39 a ade-
pessoas que tomam um comprimido ao dia tam- são está vinculada ao sucesso (ou fracasso) das
bém podem relaxar na sua ingestão, confirmando políticas públicas de saúde e da política brasileira
a idéia defendida por Nemes e Teixeira, sobre a de distribuição universal e gratuita de anti-retro-
relação entre esquema terapêutico e adesão como virais. Além disso, esse trabalho configura-se
um fenômeno mais complexo do que a sua carac- como uma política de inclusão social e contribui
terização em número de drogas e comprimidos. para a efetivação do processo de construção e
As estratégias para a melhoria da adesão devem exercício da cidadania de 98 mil infectados (de
avaliar cuidadosamente o esquecimento como acordo com a estimativa do Ministério da Saúde,
um dos motivos da perda de doses, pois ele pode sobre pessoas recebendo terapia anti-retroviral).
significar tanto uma resistência inconsciente à te- Segundo Galvão,40 desde 2001, a medicação anti-
rapia medicamentosa, ou a determinado anti-re- HIV é considerada, pela Comissão dos Direitos
troviral, quanto problemas relacionados ao HIV Humanos da ONU, direito humano à saúde. E di-
e/ou à ação produzida pela competição entre in- ante do poderio das indústrias farmacêuticas,
formações e experiências. Mas talvez o “Foi sem cabe aos governos, à sociedade civil organizada,
querer”, repetido por muitos pacientes para justifi- ao setor privado, às agências de fomento e aos ór-
car as perdas das doses, possa ser apenas assim gãos de cooperação internacional a busca de no-
compreendido. vas respostas à epidemia, mediante novas estraté-
gias e parcerias.
No esforço para melhorar a adesão, o feria-
do, ou descanso das medicações em festas e finais Apesar da luta do governo brasileiro e de
de semana merece também a atenção do profis- membros de ONGs contra os altos preços dos
sional de saúde, que deve verificar a existência de anti-retrovirais e pela quebra de patentes – refle-
outros motivos para o cansaço das drogas. tida na produção estatal nacional de sete anti-re-
trovirais dos 13 utilizados na rede pública – e do
Apesar de toda a preocupação aqui de-
monstrada com a adesão, ela não é a única causa ativismo transnacional (com o estabelecimento
do aumento da carga viral e de possíveis falhas no 38 MARKOWITZ, 1997.
tratamento. De acordo com Lemes, embora se- 39 TEIXEIRA, 2000.
guindo à risca o tratamento, muitas pessoas apre- 40 GALVÃO, 2002.

impulso nº 32 87
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de redes internacionais),41 ainda há muitos desa- gos, vizinhos, colegas de trabalho e o público em
fios a serem enfrentados. Embora reconhecido geral.
internacionalmente como modelo no tratamento A vacina continua sendo um desafio e uma
da infecção por HIV, o Brasil ainda precisa avançar possibilidade, pois já existem produtos em fase III
em relação ao acesso e à qualidade dos serviços de de testes. Alguns pesquisadores projetam para
saúde em geral e de combate ao HIV nas diferen- 2010 a disponibilidade de uma vacina preventiva
tes regiões brasileiras. com certa eficácia que não de 100%. Atualmente,
Atendimento ambulatorial e hospitaliza- a produção de uma vacina terapêutica ganha mais
ções de maior qualidade e eficácia; disponibilida- investimentos e pesquisas. O caminho da cura
de efetiva de medicamentos contra infecções pela vacina terapêutica (ou outras vias) é uma rea-
oportunistas e efeitos adversos dos anti-retrovi- lidade possível e um processo em andamento,
rais, e de novos anti-retrovirais aprovados inter- como nos fazia acreditar Betinho. Os grandes de-
nacionalmente; acesso real e contínuo a exames safios são a descoberta de novos anti-retrovirais
de CD4 e carga viral, entre outros procedimentos mais potentes que atinjam os santuários (partes do
médico-hospitalares de diagnóstico e tratamento; corpo não atingidas pelos medicamentos atuais) e
construção de redes de solidariedade contra o que impeçam a replicação viral em outras fases
preconceito, o estigma e a discriminação: esses (inibidores de fusão e de integrase, entre outros)
itens constituem desafios a serem encarados pelo não inibidas pelos remédios disponíveis, e com
governo, por entidades privadas (como as indús- menos efeitos adversos.
trias farmacêuticas), profissionais de saúde, Realidade dura? Talvez ainda seja. Por ou-
membros de ONGs, pessoas vivendo com HIV e tro lado, tivemos muitas e boas conquistas. Fina-
aids e pela sociedade, incluindo familiares, ami- lizamos este artigo com uma saudação comum
no movimento social e nas ONGs/aids, ao térmi-
41 Ibid., p. 218. no de encontros e discussões: viva a vida!

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Dados dos autores


MARCLEI DA SILVA GUIMARÃES
Mestre em psicologia social pela UERJ (2001).
Assistente de assessor de projetos da ABIA e
facilitador do grupo“Entendendo os
Tratamentos”
JUAN CARLOS RAXACH
Formado em medicina pela Universidade de
Havana. Assessor de projetos da ABIA/RJ e
coordenador do grupo“Entendendo os
Tratamentos”

Recebimento artigo: 10/maio/02


Consultoria: 29/maio/02 a 29/jul./02
Revisão dos autores: 13/ago./02 a 21/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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Construção de Identidade
em um Espaço
Comunicativo: a experiência
do Grupo Pela Vidda
IDENTITY CONSTRUCTION IN A
COMMUNICATIVE SPACE: THE GRUPO
PELA VIDDA’S EXPERIENCE
Resumo Partindo da teoria dos novos movimentos sociais, tendo como alicerce teó-
rico a teoria da ação comunicativa de Habermas, o texto trata, de forma geral, o sur- LARISSA MAUÉS
gimento da aids no Brasil. Elementos da teoria habermasiana são usados para abordar, PELÚCIO SILVA
especificamente, o cotidiano do Grupo Pela Vidda, organização não-governamental Universidade Federal de
sediada na cidade do Rio de Janeiro, vista como espaço comunicativo em que o diá- São Carlos
logo e a veiculação de informações têm possibilitado o fortalecimento de pessoas vi- [email protected]
vendo com HIV e aids, transformando-as em sujeitos políticos. Isso vem contribuindo
para melhorar a competência comunicativa de tais pessoas, além de ampliar o diálogo
entre as várias instâncias da sociedade civil, o movimento de luta contra a aids e a es-
fera estatal.
Palavras-chave ONGS/AIDS – GRUPO PELA VIDDA – MUNDO DA VIDA – AÇÃO
COMUNICATIVA – IDENTIDADE – NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS.

Abstract Based on Habermas’s communicative action theory, and the new social mo-
vements, this paper deals (in a general way) with the emergence of aids in Brazil. Ele-
ments of Habermas’ theory are used to approach specifically the daily routine of
Grupo Pela Vidda, a non-governmental organization with headquarters in Rio de Ja-
neiro, Brazil. The organization is known as a space in which communicative dialog
and the dissemination of information have enabled the strengthening of people living
with HIV and aids, transforming them into political subjects. This has contributed to
improve their “communicative competence” and expand the dialogue between the
various spheres of the civil society and the movement against aids and the State.
Keywords NGOS/AIDS – GRUPO PELA VIDDA – LIFE-WORLD – COMMUNICATIVE
ACTION – IDENTITY – NEW SOCIAL MOVEMENTS.

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APRESENTAÇÃO
Estou convencido de que a aids é uma doença revolucionária. Ela recoloca
de forma radical para a nossa sociedade, tanto brasileira quanto internacio-
nal, uma série de problemas vitais que durante muito tempo tentamos
ignorar.
HERBERT DE SOUZA (BETINHO)

E
ste ensaio pretende discutir o surgimento da aids1 no
Brasil do prisma das ciências sociais, mais especificamen-
te, do enfoque dos novos movimentos sociais, tratando
as respostas encetadas como fruto de articulações soli-
dárias e políticas ocorridas entre grupos organizados da
sociedade civil e o Estado brasileiro. A inserção desses
grupos no debate público sobre a doença tem possibili-
tado o surgimento de uma esfera pública politicamente
ativa e autônoma, no sentido habermasiano, isto é, capaz de reformular
o discurso sobre a aids, especialmente no que se refere à construção da
noção indivíduo/pessoa dos soropositivos.
Pretendemos abordar o surgimento do que chamamos movimento
de luta contra a aids, localizando este estudo no eixo Rio-São Paulo, entre
os anos de 1995 e 2000. O objetivo é estudar a formação de grupos or-
ganizados da sociedade civil, autodenominados ONGs/aids, na condição
de espaços comunicativos capazes de ampliar os canais de participação na
esfera pública, compondo esferas autônomas que possibilitam a institu-
cionalização de vontades políticas. Concentramo-nos especificamente
em um deles – o Grupo Pela Vidda (Valorização, Integração e Dignidade
do Doente de Aids, ou GPV), sediado na cidade do Rio de Janeiro.
A referida ONG é um espaço político e comunicativo capaz de pro-
porcionar a seus ativistas a conquista de um canal de discussão pública
com base na politização da aids e das diversas questões a ela implicadas.
Essas organizações, particularmente o GPV, têm proporcionado a formu-
lação de um discurso político emancipatório, capaz de alterar a imagem
que o portador tem de si e, muitas vezes, influenciar na formulação de
políticas públicas para uma melhor qualidade de vida às pessoas vivendo
com HIV ou aids. Elas também colaboram para o trabalho no sentido de
mudar a imagem que grande parcela da sociedade ainda possui sobre o
portador do vírus. Valendo-se de categorias discursivas como viver com
aids, ao invés de morrer de aids, os ativistas do GPV reformulam seu pró-

1 A sigla aids é usada aqui em minúscula, seguindo as orientações de CASTILHO (1997), citadas por
SILVA (2000), em sua tese de doutoramento. Para Castilho, “a palavra aids passou a ser, do ponto de
vista gramatical, equivalente a sífilis, coqueluche, conjutivite; nomes de doenças são substantivos comuns,
grafados com minúscula”. Como não há uma uniformidade na grafia da referida palavra, nas citações
reproduzidas ao longo deste trabalho, respeitaremos a forma escolhida por cada autor.

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prio entendimento sobre a síndrome,2 adquirin- individual). À ação comunicativa cabe reproduzir
do autoconhecimento crítico, que o leva a resig- as estruturas simbólicas do mundo da vida, trans-
nificar sua condição de portador do HIV e passar mitindo e renovando o saber cultural, propician-
da condição de civilmente morto para a de politi- do a integração social e formando a personalidade
camente vivo. Engajado no grupo, o soropositivo individual. Desse modo, o mundo da vida opõe-
pode alcançar um conhecimento emancipatório se ao mundo sistêmico, no qual impera outra ra-
que lhe possibilita desenvolver o processo de for- cionalidade, a instrumental, orientada por nor-
mação da pessoa/indivíduo, a ser abordado mais mas técnicas e limitadora das decisões voluntárias
à frente neste texto. dos agentes. Habermas vê nessa distinção de
Embasa essa discussão a teoria habermasia- mundos a separação entre público e privado.
na da ação comunicativa, entendida aqui como a De acordo com Jardim, a teoria da ação co-
busca expressa de cooperação entre atores em co- municativa “privilegia a perspectiva dos atores na
municação, numa relação sujeito-outro sujeito, compreensão dos processos culturais, sociais e
em que, pela via do entendimento, ocorre a inte- políticos”.4 Em Faktiztät und Geltung (Facticida-
ração, que tem lugar no espaço específico do de e Validade), publicado em 1992, Habermas
mundo da vida (lebenswelt). É nesse espaço que o aprofunda essa leitura, aplicando-a ao campo do
agir comunicativo se desenvolve. direito. Sua aposta é numa democracia radical
Habermas chama de mundo da vida o con- promovida por esse agir comunicativo como ga-
junto de objetos formador de uma realidade sim- rantidor dos direitos humanos.5 A utopia de Ha-
bolicamente estruturada pelos sujeitos e agentes bermas pareceu-nos possível quando deste estu-
falantes. Eles criam o contexto social da vida do do GPV; daí, a relação que aqui se busca esta-
direta e indiretamente, produzindo objetos belecer entre a atuação dessa ONG/aids e a teoria
simbólicos que corporificam estruturas de habermasiana.
conhecimento pré-teórico: 1. sob forma de Especificamente na discussão do movimen-
expressões imediatas: atos-de-fala, ativida- to de luta contra a aids, procuramos situá-lo no
des dirigidas a metas e ações cooperativas; campo dos novos movimentos sociais (NMSs),
2. sob forma de sedimentação dessas ex-
chamando a atenção, porém, a algumas peculiari-
pressões imediatas: textos, tradições, do-
dades de grande parte dos grupos que lutam con-
cumentos, obras de arte, objetos de cultura
material, bens, técnicas etc.; 3. e finalmen- tra aids: 1. eles se autodenominam organizações
te, no nível de maior complexidade, sob não-governamentais (ONGs); 2. ao mesmo tem-
forma de configurações geradas indireta- po, vêem-se como movimentos sociais; 3. atuam
mente: as instituições, os sistemas sociais e como grupos de ajuda mútua.6 Eles são, como
as estruturas de personalidade.3 define Cristina Câmara da Silva, portadores de
um novo modelo de luta, criando um campo pró-
Nesse espaço, em que a tradição cultural é
prio, em que as características dos movimentos
compartilhada e uma certa visão de mundo (wel-
sociais, das ONGs e dos grupos de ajuda mútua se
tanschaung) é comungada, desenvolve-se o agir
encontram correlacionadas.
comunicativo.
O mundo da vida articula três componen- Ao trabalhar tais conceitos, este artigo bus-
tes que o estruturam: cultura (conhecimento), ca relacionar esse espaço de luta com a proposta
sociedade (ordem legítima) e pessoa (identidade de Habermas sobre o agir comunicativo. A poli-
tização de questões privadas traria ao mundo dos
2 A aids não é tida pela área médica como doença, mas como sistemas7 (no caso, o subsistema político) a racio-
síndrome, isto é, um conjunto de sintomas e sinais que aparece quando nalidade comunicativa, própria do mundo da vi-
o sistema imunológico de uma pessoa infectada pelo HIV está enfra-
quecido. Neste artigo ela é chamada de “síndrome” e, por vezes, de
“doença”, pois é assim que é tida pelo imaginário social. 4 JARDIM, 24/jul./00.
3 ARAGÃO, 1992, p. 33. 5 HABERMAS, 1992, apud HERMANN, 24/jul./00.

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da. Como registra Araújo, “esses movimentos tal como Habermas a entende, isto é, uma arena
surgem para organizar a sociedade e estabelecer de debates para além da vida doméstica, da igreja
formas de relação entre ele e os subsistemas [eco- e do governo, em que idéias são debatidas, argu-
nômico, administrativo]. Formas estas contrárias mentadas e examinadas.10
à colonização do mundo da vida (...). Os movi-
mentos sociais assumem a defesa da restauração QUEM TEM MEDO DO HIV?
das formas de solidariedade e identidade postas O conhecimento inicial sobre a aids definiu uma teoria
em risco pela racionalidade do sistema”.8 Essa que não havia possibilidade de cura (...). Esse nascimento
abordagem sobre os movimentos sociais clássi- trágico determinou até agora as atitudes básicas diante
cos pode ser estendida aos NMSs e, no âmbito de- da aids: o medo, a impotência, o terror, o abandono. Na
les, às ONGs/aids. contramão vieram os que lutaram contra o preconceito e
o pânico e pregaram a solidariedade como único remé-
Surgidas no processo de busca e consolida- dio disponível para curar os terrores de tal epidemia.
ção de respostas à aids no Brasil, as ONGs/aids es- BETINHO
tabeleceram canais de comunicação com diferen-
tes instâncias da sociedade civil e do Estado, pro-
vocando em muitos segmentos sociais reflexões A aids surge num cenário marcado pelo fim
menos discriminatórias acerca da síndrome e de da Guerra Fria, pela globalização e pelo neolibe-
suas implicações relativas ao comportamento das ralismo, que pautam uma série de discussões e
pessoas vivendo com HIV e/ou aids. Isso permi- transformações políticas internacionais. Em nível
tiu a construção de respostas mais solidárias para nacional, vivia-se o processo de abertura, a rear-
o problema e acabou levando (ainda leva) a ques- ticulação das oposições ao regime militar e a con-
tionamentos que tendem a melhorar a qualidade quista de maior liberdade de participação política.
da nossa competência comunicativa,9 ampliando- Analisar, portanto, o surgimento dos grupos da
se (ou resgatando-se) o espaço da esfera pública sociedade civil que procuram dar respostas à aids
exige uma visão histórica que considere o mo-
6 De acordo com Silva, grupos de ajuda mútua são espaços de encon- mento de redemocratização do País, a reestrutu-
tro entre pares, nos quais cria-se um ambiente propício à verbalização ração dos serviços públicos e, até mesmo, a rea-
dos problemas específicos do grupo por cada pessoa que dele se acerca.
“Os grupos de ajuda mútua tornam-se espaço que levam ao restabele- lidade do capitalismo internacional a partir dos
cimento e à manutenção da saúde pessoal. (...) Assim, os grupos de
ajuda mútua levam a um fenômeno mais amplo, ajuda mútua enten-
anos 80, pregando um modelo de Estado neoli-
dida como ‘l’instict de solidariéte humaine’ [instinto de solidariedade beral.
humana] (RODOMER et al., 1989, p. 139). (...) Um dos passos carac-
terísticos dos grupos de ajuda mútua é a ausência de rupturas entre No final da década de 70 e início da de 80,
quem presta serviços e quem os recebe, assim como há uma recusa da essa doença misteriosa e ligada, ao que tudo in-
superioridade que a competência profissional poderia conferir (GOD-
BOULT, 1999). (...) A ajuda mútua é entendida aqui como o encontro
entre pessoas que se aproximam e se associam com objetivos comuns, 9 Como ressalta Nadja Hermann, na teoria hermenêutica de Haber-
visando a uma interação e buscando resolver suas questões individuais mas, a competência comunicativa não se reduz a produzir falas grama-
a partir das relações de interdependência estabelecidas. Um grupo de ticalmente corretas, mas vincula-se a três mundos com suas respectivas
ajuda mútua propicia ajuda individual, mas também atualiza sua pró- pretensões de validade: mundo objetivo (pretensão de verdade do
pria dinâmica. Segundo Rodomer (1989, p. 130), os grupos de ajuda enunciado), mundo social (pretensão de justiça) e mundo subjetivo
mútua se diferenciam dos grupos de auto-ajuda” (SILVA, 1999, p. 66). (particular ao sujeito e com pretensão de veracidade. A intenção
7 Para Habermas, “o sistema incluiria os domínios das organizações expressa pelo falante coincide com o que ele pensa). Essas pretensões
econômica e político-administrativa, respectivamente através do mer- de validade têm caráter universal, possibilitam o entendimento e asso-
cado e da burocracia, que se oporiam às esferas socioculturais contidas ciam-se diretamente à racionalidade. A prática comunicativa tem, de
no âmbito do mundo da vida. Enquanto os primeiros se caracterizam forma imanente, a possibilidade de que os participantes entrem em um
por serem movidos por medias direcionadoras (steering media) e ‘des- processo argumentativo, apresentem boas razões e examinem critica-
lingüistificadas’ – como o dinheiro no caso do mercado e o poder no mente a verdade dos enunciados, a retidão das ações e normas e a
contexto da burocracia –, as esferas do mundo da vida se constituem e autenticidade das manifestações expressivas (ver fontes primárias, ao
se reproduzem através de processos de comunicação simbólica. Da final deste trabalho).
mesma forma, enquanto o universo do sistema está marcado pelo 10 SILVA, 24/jul./00. Sintetiza, dessa forma, a discussão sobre o con-
desenvolvimento, o mundo da vida está calcado em significados e/ou ceito de esfera pública: “a reunião de um público, formado por pessoas
representações compartilhadas intersubjetivamente” (OLIVEIRA, privadas, que constroem uma opinião pública com base na racionali-
1993). dade do melhor argumento, e fora da influência do poder político e
8 ARAÚJO, 2001. econômico, e da ação estratégica” (HABERMAS, 1984).

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dicava, ao comportamento homossexual mascu- Os estudos caminharam rapidamente, mas


lino, assustou a comunidade científica, que não não apontavam a cura. Em 1984, já era possível
teve como explicá-la. Em 1981 a “peste gay” ga- fazer teste sorológico para reconhecer a presença
nha o nome de aids (Aquired Immune Deficiency do vírus; logo, outros testes mais sofisticados
Syndrome). O vírus responsável por ela, conclui- surgiriam. Percebeu-se que o vírus nem sempre
se depois de muitas pesquisas, é o HIV (Humam se manifestava em curto prazo, surgiam medica-
Immunodeficiency Virus), ou vírus da imunodefi- mentos paliativos até chegar, na década de 90, ao
ciência humana. Desde então, as siglas aids e HIV coquetel de medicamentos. A aids está deixando
passaram a encerrar um mundo de questiona- de ser mortal para se tornar crônica. É esse o ca-
mentos, medos e tabus milenares de epidemia, minho da doença, mesmo que a sua associação
homossexualidade e morte. “Suas vias de trans- com a morte ainda esteja muito presente no ima-
missão pelo sangue e pelo esperma são carregadas ginário social.
de ligações com as idéias de impureza, procriação No Brasil, o primeiro caso público de aids
e reprodução social. Ainda pouco dominada pela data de 1982, embora não se possa dizer ao certo
medicina, essa doença muito grave vem além do quando a doença surge por essas paragens.
mais se opor duramente ao saber médico, que
As reações imediatas da sociedade brasi-
nossa sociedade moderna, científica e técnica jul- leira ao surgimento da nova doença – que
gava ilimitado.”11 iria adquirir rapidamente as características
Fomos confrontados, no início dos anos 80, de uma epidemia e, em seguida, de uma
com sentimentos e realidades que pareciam re- pandemia, já que se alastrou vertiginosa-
montar ao século XIV: peste, morte e vítimas que mente para países do mundo todo – fo-
se tornam vilões. Com isso, deflagrou-se uma es- ram condicionadas pelas circunstâncias
culturais, socioeconômicas e políticas que
pécie de caça às bruxas. Voltávamos a ser pequenos
vivíamos naquele momento. Uma das pri-
diante de um deus que parecia querer nos castigar.
meiras repostas, de conotação moral, foi
“O passado nos interpela”, diria o hermeneuta Ga- o descaso para com os doentes, por serem
damer, obviamente em outro contexto. O fato é pessoas que ousavam manter práticas se-
que os problemas e questionamentos trazidos por xuais tidas como condenáveis. A esta in-
uma doença nova, e aparentemente sem cura, nos diferença surgiu uma reação de menos-
confrontava com um universo simbólico obscuro, prezo à prevenção contra a doença, fruto
reascendendo medos atávicos e exigindo reformula- do desencanto político da sociedade com
ção dos discursos. os rumos sombrios que a recessão traçava
para o País.13
Quando o HIV foi identificado e a aids ga-
nhou nome, sua referência tornou-se a morte e a Segundo Parker e Daniel, não há resposta,
dor. Para as pessoas atingidas pelo vírus, a reali- governamental ou não-governamental, para a aids
dade torna-se mais do que nunca a da exclusão, dissociada de um cenário mais amplo, no Brasil,
da culpa e da incurabilidade levando à morte. “Se- marcado pela realidade político-econômica da dé-
rá sempre inesquecível o sofrimento de tantos cada de 80. “Cada cultura constrói a sua aids pró-
que, ao adoecer, eram duplamente discriminados: pria e específica. Bem como as respostas a ela.”14
pela doença e pela orientação sexual. Até mesmo Comungando esse ponto de vista, Galvão desen-
os que tinham se infectado por transfusões de volve a tese da existência de uma aids brasileira.
sangue ou por contato heterossexual eram vistos Isso significa defender que o “HIV não possui
com reprovação, porque ‘com certeza estavam apenas uma ‘história natural’”, mas tem seus per-
ocultando alguma coisa’.”12 cursos marcados por fatores políticos e econômi-

11 POLLAK, 1990, p. 11. 13 Ibid., p. 23.


12 PINEL & INGLESI, 1996, p. 9. 14 PARKER, apud GALVÃO, 2000, pp. 18-19.

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cos, “assim como pelas relações sociossexuais garantir uma certa ‘excepcionalidade’ na
presentes em diferentes sociedades”.15 condução de ações frente à epidemia. Se
um contexto de acusação com os seus
E as respostas precisaram ser dadas, uma
mecanismos de acusação foi formado (...)
vez que a síndrome se transformou rapidamente também houve uma forte reação dos ‘acu-
em pandemia,16 fragilizando e assustando os con- sados’, o que faz a aids diferir de outras
fiantes homens do final do século XX. Junto com enfermidades igualmente estigmatizantes,
o medo, surgiram os preconceitos e, com eles, a como a hanseníase, ou de expressão pelo
indiferença de boa parte da sociedade em relação número de doentes, como a Doença de
às pessoas atingidas pela doença. Se a proliferação Chagas.19
do HIV marca uma primeira fase da epidemia, e a A urgência exigida pela aids mexeu com os
manifestação da doença (a aids, propriamente di- órgãos gestores de políticas públicas, com os pro-
ta) assinala uma segunda, “a terceira epidemia”17 fissionais de saúde e sua expertise, além de grupos
é a do preconceito e da exclusão. já atuantes, como os gays, profissionais do sexo e
Durante esses 20 anos seguintes à cataloga- hemofílicos. O privado, tornado tema de investi-
ção da aids, passou-se do “pânico moral”18 e da gação científica, passou a ser publicizado pelos
exclusão dos doentes a atitudes mais solidárias e primeiros grupos que se organizam na tentativa
esperançosas. Tal mudança de atitude não foi gra- de combater o estigma e fazer valer seus diretos
tuita, mas construída pela luta de pessoas direta e civis. Transforma-se, assim, em discurso político,
indiretamente atingidas pela aids. Da sentença de revitalizando o espaço daquilo que Habermas
morte decretada pela ignorância médica à auto- chama de esfera pública, isto é, um espaço fora da
vida doméstica, da igreja e do governo, em que as
exclusão e à morte solitária, passou-se a posturas
pessoas discutem sobre a vida e (re)formulam
altivas e de enfrentamento público da questão.
discursos, agindo de maneira comunicativa, livre
Jane Galvão considera que a fobia social de- dos domínios dos sistemas.
sencadeada pela aids serviu não só para reforçar o Apesar do contexto inicial marcado por in-
preconceito e a discriminação, como também certezas, medo, culpa e perplexidade, os primei-
para ros ativistas do movimento de luta contra a aids
se organizam, procurando sobreviver e se prote-
15 Ibid., p. 17.
16 “Em 1985, quatro anos após a identificação da doença, eram regis- ger da morte civil. Nessa busca pela cura ou, de
trados casos de aids em todos os continentes habitados do mundo” maneira mais realista, por um fim menos cruel e
(SILVA, 1999, p. 332).
17 Esse termo foi introduzido pelo dr. Jonathan Mann, quando na solitário, formam-se os primeiros grupos com o
coordenação do Programa Global de Aids, da Organização Mundial objetivo de dar apoio médico, emocional e jurí-
de Saúde (OMS). Utilizou-o pela primeira vez num discurso, na
Assembléia Geral da ONU, em 20 de outubro de 1987. De acordo com
dico aos soropositivos. Assim, nessa interação,
DANIEL & PARKER (1991, p. 13): “A primeira é a pandemia da buscam um espaço de expressão e questionamen-
infecção pelo HIV, que silenciosamente penetra na comunidade e passa
muitas vezes despercebida. A segunda pandemia, que ocorre alguns
to do novo papel que lhes foi legado. Nesse mo-
anos depois da primeira, é a pandemia da própria aids: a síndrome de vimento, articulam categorias discursivas capazes
doenças infecciosas que se instalam em decorrência da imunodeficiên-
cia provocada pela infecção pelo HIV. Finalmente, a terceira epidemia
de transformar a si mesmos e à sociedade que os
(talvez, potencialmente, a mais explosiva) é a pandemia de reações exclui.
sociais, culturais, econômicas e políticas à aids, reações que, nas pala-
vras do dr. Mann, são ‘tão fundamentais para o desafio global da aids
quanto a própria doença’”.
18 Essa expressão foi cunhada fora da questão da aids, mas adotada por
ONG/AIDS, MOVIMENTO
autores que trabalharam com o tema (a exemplo de WATNEY, S. SOCIAL E A ESFERA PÚBLICA
Aids, ‘moral panic’ theory, and homophobia. In Practicies of Freedom:
selecte writing on HIV/Aids. London: Rivers Oram Press, 1986), asso- O GPV se reconhece como uma ONG inse-
ciando essa atitude notadamente à a aids e ao homossexualismo nos rida no movimento social de luta contra a aids, se
países do Hemisfério Norte. A expressão nos remete à associação
feita, no início da década de 80, entre peste negra e a aids, esta última
uma espécie de “praga do final do século XX”. 19 GALVÃO, 2000, p. 181.

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autodenominando, portanto, ONG/aids. Como públicas autônomas e democráticas, segundo


tal, se encontra naquela parcela da sociedade re- Habermas, não lutariam por dinheiro ou poder,
conhecida como sociedade civil. Ela é entendida como àquela a qual se opõem, mas por defi-
aqui segundo a definição de Bobbio: nições,22 construindo um discurso contra-
hegemônico. Como exemplo, o autor cita movi-
A esfera das relações entre indivíduos, en-
tre grupos, entre classes sociais, que se de-
mentos regionais, feministas e ecologistas.
senvolvem à margem das relações de po- Essa visão parece sintonizar com o concei-
der que caracterizam as instituições esta- to de movimento social neste ensaio. Segundo
tais (...). Como terreno dos conflitos eco- Hartmut Kärner, os movimentos sociais são “um
nômicos, ideológicos, sociais e religiosos processo coletivo e comunicativo de protesto,
que o Estado tem a seu cargo resolver, in- conduzido por indivíduos, contra relações sociais
tervindo como mediador ou suprimindo- existentes, e que afetam um grande número de
os; com base na qual partem as solicita-
pessoas”.23 Ele observa ainda que elas não preci-
ções às quais o sistema político está cha-
mado a responder; como campo das várias
sam reproduzir a mesma estrutura organizativa
formas de mobilização, de associação e de dos partidos políticos, procurando, aliás, manter
organização das forças sociais que impe- certa autonomia em relação a eles.
lem à conquista do poder político.20 Para Scherren-Waren, quatro componentes
são considerados na constituição de um movi-
Os movimentos sociais, especificamente os
mento social: práxis, traduzida na ação grupal
NMSs, e, no interior deles, as ONGs/aids, atuaram
para a transformação, projeto, objetivo comum do
nesse espaço, cumprindo, como já foi dito, nú-
referido grupo, ideologia, princípios valorativos
cleos de resistência à colonização que o mundo
motivadores da práxis e orientadores do projeto,
sistêmico tende a instituir ao mundo da vida. Es-
e organização e direção, ainda que fluida em al-
ses seriam esferas públicas autênticas, autogeradas
guns movimentos, existe e deve orientar a ação e
no mundo da vida (lebenswelt), impondo à esfera
pública manipulada um discurso crítico. comandar as estratégias.24
Apesar de considerar difícil definir a com- A práxis do movimento de aids estaria con-
posição dos grupos que formam essa nova esfera, centrada não só na transformação de uma ima-
Habermas enumera alguns desses segmentos: gem segregativa e estigmatizante, que inicialmen-
“velhos, jovens, feministas e homossexuais, defi- te privava os seus ativistas de direitos de assistên-
cientes e desempregados ativos, profissionais ra- cia, entre outros, como também na reação à falta
dicais, donas-de-casa suburbanas etc.”. Não há de respostas governamentais para o drama que os
por que deixar de incluir nesse rol as pessoas vi- atingia direta ou indiretamente. Quanto às ações,
vendo com HIV e/ou aids. O pensador alemão vê elas se centraram no enfrentamento com o poder
esses grupos como resistentes, opondo-os aos res- público e na ajuda mútua entre os membros do
secados, ou seja, aqueles que compõem os setores movimento. O projeto não é transformar a socie-
oficiais da esfera pública burguesa.21 Essas esferas dade, mas “mudar a vida”.25 Como princípios va-
lorativos, citam-se as noções de solidariedade26 e
20 BOBBIO et al., 1983, p. 1.210. ativismo.27
21 HABERMAS, 1987. Como define Almeida, “a esfera pública bur-
guesa ‘pode ser entendida inicialmente como a esfera de pessoas priva-
22 Ibid.
das reunidas em um público’ (Habermas, 1984) para defender a sua
23 KÄRNER, 1987, p. 24.
liberdade econômica e atacar o próprio princípio de dominação
24 SCHERREN-WAREN, 1987.
vigente, ou seja, torná-lo racional: não baseado numa superioridade
determinada por uma origem hereditariamente nobre, mas no melhor 25 TOURAINE, A. Podemos Viver? Juntos – iguais e diferentes. Lisboa:

argumento racionalmente submetido à opinião pública. A esfera Instituto Piaget, 1997, apud SILVA, 1999, p. 72.
pública burguesa surge em ‘espaços culturais tornados públicos’ num 26 Solidariedade entendida como pressuposto à tolerância e ao reco-
campo tensional entre Estado e sociedade civil, ou seja, como uma nhecimento da diferença (SILVA, 1999). GALVÃO (2000) ressalta
ponte entre a sociedade decadente representada pela corte e a nova que a palavra foi muito usada no sentido constituir um método de
sociedade emergente” (ALMEIDA, 25/ago./2002). intervenção nas políticas de aids.

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Assim, valendo-se do agir comunicativo, tervenção política que não as tradicionalmente


esse movimento procura resistir ao discurso pro- reconhecidas (partidos e sindicatos, por exem-
veniente das esferas públicas ressecadas, formula- plo).
do nas esferas sistêmicas. Desde o final dos anos No Brasil, “a ECO-92 foi um marco impor-
60, com os movimentos de contracultura e os tante para a visibilidade das ONGs. Com a reali-
questionamentos do modelo socialista soviético, zação do Fórum Global, as ONGs foram desco-
cogitam-se outros tipos de atuação política que bertas pela mídia, pelo governo brasileiro e tam-
trabalhem com a perspectiva de mudança com- bém por grande parte da população”.30 A citação
portamental, de valores, e não apenas do modo é extraída do artigo publicado no 18.º Boletim
de produção. Entram em cena os novos movi- Pela Vidda, em que a antropóloga Regina Novaes
mentos sociais. De acordo com Renon, “de ma- levanta a questão sobre o caráter das ONGs/aids.
neira ampla, esses movimentos formam uma rede Movimento social ou organização não-governa-
informal de contestação e de estilos de vida alter- mental? Qual seria a especificidade de ser ONG?
nativos, mas também entram na política oficial”.28 E a de ser movimento social?
Como discute Terto Jr., o movimento so- Primeiramente, pode-se afirmar que é ONG
cial de luta contra à aids resume-se quase exclu- quem não é governo. Mas no caso das ONGs/
sivamente às ONGs/aids, sendo escasso o envol- aids, o vínculo com o poder público é notório –
vimento de outros setores sociais. Câmara e Lima embora tenso, ele existe e funciona. Ao longo do
registram que seu artigo, Novaes assume o termo ONG como
as ONGs/aids não atendem a um movi- adequado ao movimento de luta contra a aids,
mento social de pessoas com aids, entre- questionando a atuação das ONGs/aids junto
tanto, elas mesmas, associadas a diversos com o Estado e/ou a iniciativa privada. Para ela,
outros atores sociais que atuam no en- “rejeitar, por princípio, essas parecerias seria um
frentamento da epidemia de aids, consti- contra-senso”, uma vez que o objetivo dessas en-
tuem um movimento próprio, tecendo tidades é garantir informação e qualidade de vida,
uma rede de intercâmbios (...), que, por além de assegurar os diretos daqueles atingidos
meio de um processo cumulativo, consti-
pela aids.
tui-se na agenda do movimento social de
luta contra a aids.29 A questão de ser ou não ONG não estaria,
portanto, centrada no fato de manter autonomia
Resta agora a discussão sobre o conceito de em relação ao Estado, mas de não se confundir
ONG. Desde o seu surgimento, no final dos anos com seus parceiros de luta, sejam eles fundações
70 e início dos 80, as organizações não-governa- internacionais, agências financiadoras, governos
mentais têm sido alvo de inúmeros estudos. O municipais, estaduais e federal, partidos políticos,
espraiamento desse fenômeno no Brasil coincide, sejam outros grupos organizados da sociedade ci-
e provavelmente deriva, com o momento de vil. “Manter um discurso e uma prática que é so-
abertura política, quando a sociedade civil encon- cialmente reconhecida como de ONG torna-se
tra mais espaço contestatório e reivindicatório. E elemento imprescindível, em situações de suces-
também com a falência do socialismo real e toda so ou de fracasso das parcerias (...). A ONG terá
a crise ideológica decorrente desse processo, mantido sua identidade se pôde permanecer coe-
abrindo o debate sobre outras formas de luta e in- rente com suas características e propósitos”,31
acredita Novaes.
27 Na sua tipologia das ações coletivas, Silva diferencia ativismo de
militância, relacionado esta última aos movimentos sociais e à atuação O que realmente importa, especialmente
dos grupos de esquerda. “Na militância, as questões coletivas orientam no caso das ONGs/aids, parece ser o autodenomi-
a luta, ao passo que no ativismo há uma centralidade do indivíduo mar-
cando a atuação no plano político” (SILVA, 2000, pp. 83-84).
28 RENON, 1996, p. 502. 30 NOVAES, 1994, p. 8.
29 CÂMARA & LIMA, 2000, pp. 45-46. 31 Ibid.

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nar-se e o fazer-se reconhecer como organização O privado “também é político” nas ONGs/
não-governamental. A legitimação do termo aids e, especificamente, no que interessa discutir
ONGs/aids materializa-se em diversas publicações aqui, no GPV. Dessa maneira, a racionalidade co-
dessas entidades e também naquelas elaboradas municativa, própria do mundo da vida, se faz pre-
pela Coordenação Nacional de Doenças Sexual- sente no mundo sistêmico da política. Assim, a
mente Transmissíveis e Aids, do Ministério da colonização do mundo da vida pelo mundo sis-
Saúde (CN-DST/Aids), isto é, pelo próprio gover- têmico encontraria nos movimentos sociais uma
no. De acordo com Galvão, o termo ONGs/aids força anticolonizadora.
foi consagrado e legitimado no próprio movi-
Esses movimentos surgem para organizar
mento de luta contra a aids, durante o II Encon-
a sociedade e estabelecer novas formas de
tro da Rede Brasileira de Solidariedade,32 em
relação entre os subsistemas. Formas
1989, em Porto Alegre. contrárias à colonização do mundo da vi-
As ONGs/aids são percebidas aqui como da. A sociedade, portanto, assume a esfera
promotoras de um movimento na sociedade re- pública e política. Ou seja, os movimen-
ferido por uma ética-prática. tos sociais assumem a defesa da restaura-
ção das formas de solidariedade e identi-
Os movimentos ético-práticos, segundo dade postas em risco pela racionalidade
Zarifian, são aqueles que não desassociam instrumental do sistema.35
o trabalho individual sobre si dos movi-
mentos coletivos, não estão reduzidos a No intuito de corroborar a tese apresenta-
pequenos grupos, mas envolvem um “po- da acima, e trabalhar a relação entre os NMSs (en-
vo” inteiro devido seu potencial de uni- tre eles, as ONGs/aids) e a teoria da ação comu-
versalidade (...). Neste sentido, a proble- nicativa, procuramos, a seguir, aplicar a teoria à
mática da aids propicia a criação de novos observação empírica no trabalho com o GPV. Ini-
laços sociais, de uma solidariedade social cialmente, ele é apresentado, bem como a sua ori-
marcada simultaneamente pelo desconhe-
gem e seus princípios norteadores, para, em se-
cido e pela manutenção da existência hu-
guida, partirmos para a definição das categorias
mana.33
habermasianas que se aplicam aos propósitos des-
Para Durham, as carências surgidas dessas e te estudo.
nessas transformações históricas motivam a for-
mação de movimentos sociais. “Como as carên- PELA VIDDA: CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO
cias podem ser definidas de diferentes modos, em PAUTADO NA AÇÃO COMUNICATIVA
diferentes níveis, os movimentos sociais consti- O que eu sou para mim mesmo só pode ser atingindo
tuem formas muito flexíveis de mobilização, que através das objetificações de minha própria vida. O
operam ‘cortes’ muito diversos uns dos outros, conhecimento de mim mesmo já é uma interpretação
definindo coletividades de tipos muito diferentes que não é mais fácil que a dos outros; provavelmente é
mais difícil, porque só me compreendo a mim mesmo
(desde ‘as mulheres’, ‘os homossexuais’ ou ‘os pelos sinais que dou de minha própria vida e que me são
negros’).”34 Acrescenta-se aí as pessoas vivendo enviados pelos outros.
com HIV/aids, cujas carências aglutinadoras trou- RICOUER
xeram para o espaço público questões tabus
como homossexualidade, morte, comércio de
sangue, prostituição e drogas. O Grupo Pela Vidda/RJ (GPV) foi fundado
por Herbert Daniel, em 24 de maio de 1989. Ele
32 A Rede não se efetivou por motivos que serão vistos mais à frente também fundara, em 1986, a Associação Brasilei-
no texto; a essa altura, importa registrar que tal evento marcou a fase ra Interdisciplinar de Aids (ABIA), juntamente
embrionária dos encontros nacionais.
33 SILVA, 1998, p. 3.
34 DURHAM, 1984, p. 27. 35 ARAÚJO, 2001.

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com outro Herbert, o Betinho. Daniel buscou a postura de Daniel aqui ilustrada vincula, em ter-
com a fundação do GPV um canal de expressão mos habermasianos, a ação política não ao mun-
dentro do que chamou “uma lógica própria do vi- do sistêmico, mas ao próprio mundo da vida, e
ver com HIV/aids”.36 essa maneira de agir político está expressa na atua-
ção do GPV.
Herbert Eustáquio de Carvalho nasceu
em 14 de dezembro de 1946; Daniel é um
Como expõe Pereira, o conceito ação polí-
dos codinomes da vida clandestina que tica refere-se ao termo habermasiano agir comu-
acaba utilizando como nome próprio. É nicativo, no qual “as ações orientadas para o en-
ele mesmo quem se apresenta. tendimento mútuo opõem-se de certa maneira ao
“Meu nome é Herbert. Este ganhei no re- agir estratégico”.39 Nesse sentido, “no interior
gistro, que me indicava brasileiro, branco (...) [da] teoria crítica, o conceito agir comunica-
e do sexo masculino. Depois, mais tarde, tivo corresponde a ‘ações orientadas para o en-
passei a ser conhecido como Daniel. Este tendimento mútuo’, em que o ator social inicia o
ganhei como nome de guerra, no final dos
processo circular da comunicação e é produto
anos 60, quando participei da luta armada,
que me registrava entre uma minoria que
dos processos de socialização que o formam, em
queria combater a ditadura com armas, vista da compreensão mútua e consensual”.40 É
porque tínhamos então certas idéias (nem por esse prisma que procuramos situar o GPV
todas tão certas) de política e liberdade. como um espaço que estimula e propicia a ação
Vivi anos clandestino no País. Depois da comunicativa.
derrota, saí para o exílio, donde voltei em A luta contra a aids tornou-se uma questão
1981. Pensei muito na derrota, principal- política dentro do GPV, e esse discurso permeou
mente porque vivi anos duplamente clan-
outros grupos, propiciando um processo de de-
destino: uma das clandestinidades me re-
gistrava numa minoria que parecia afron-
mocratização habemasiano, se o aceitarmos
tar o sexo com que fui registrado. Ser ho- como a institucionalização no sistema político
mossexual, o que é isto? Na época da dos princípios normativos da racionalidade co-
guerrilha, sexo era assunto “pessoal”, não municativa.
era “político”. A separação entre pessoal e Os canais estabelecidos pelo GPV com a so-
político, entre público e privado, é uma ciedade civil permitiram a construção de um dis-
das bases da ética de toda política conser- curso menos discriminatório, sendo, ao contrá-
vadora. A esquerda, adotando essa ética
rio, movido por um interesse emancipatório.
conservadora, pensando de uma certa for-
ma o poder, pensou um corpo abstrato,
Como esclarece Aragão, em seu estudo sobre
“socialista”, onde o sexo era uma tecno- Habermas, o interesse emancipatório se “orienta
logia a serviço da procriação, ou só pro- pela crítica das formas de poder hipostasiadas, vi-
criação de um prazer conformado a pre- sando à liberação de todas as formas de coerções,
conceitos.37 externas e internas, uma vez que denuncia aquelas
formas de dominação objetivamente supérfluas,
Esse breve fragmento biográfico dá uma
idéia da forma de atuação política que norteariam 38 Daniel volta do exílio trazendo na bagagem discussões políticas que

as ações de Daniel e, por conseguinte, do GPV, mesclam ecologia, diretos civis, homossexualidade e cultura. Publica
livros e trabalha como assessor parlamentar do deputado estadual Litz
quando este assume a luta pelos diretos civis das Vieira (PT). Mais tarde, candidata-se a deputado estadual pelo PV/RJ
pessoas vivendo com HIV e aids.38 Nesse aspecto, (1986). Uma breve, mas completa, biografia de Daniel se encontra na
tese de doutoramento de SILVA (1999), no capítulo intitulado “As
figuras emblemáticas da responsabilidade”.
36 LEONARDO, apud SILVA, 1999, p. 141. Depoimento de um 39 “O conceito de agir estratégico compreende as práticas individualis-
amigo de Daniel à pesquisadora Cristina Luci Câmara da Silva, com o tas em certas condições sociais, ou a utilização política de uma força,
pseudônimo de Leonardo. ou as ‘ações orientadas pelo interesse para o sucesso’” (PEREIRA, 14/
37 Deixa Aflorar. Plataforma Herbert Daniel – deputado estadual PT/ maio/2002).
PV, Rio de Janeiro, 1986, 8p. DANIEL, apud SILVA, 1999. 40 Ibid.

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ancoradas no quadro social de uma determinada bros. O que, como registra Silva, “significa de-
sociedade”.41 nunciar as situações discriminatórias das quais
Essa motivação trouxe significativas con- são alvo e promover informações que possibili-
quistas a todos os portadores do vírus e, ousamos tem a estas pessoas tomar decisões, sentindo-se
dizer, para a sociedade em geral, pois provocou inseridas na sociedade como cidadãs”.44 Promo-
uma dolorosa reflexão que acabou levando a ve-se, dessa maneira, o que Habermas chama de
questionamentos com tendência a melhorar a conhecimento emancipatório, como já comentado
qualidade da nossa competência comunicativa, anteriormente.
uma vez que pauta, na agenda pública, discussões
Habermas chama atenção para a impor-
envolvendo tabus como sexualidade, morte,
tância do engajamento do ser humano em
prostituição e drogas, entre outros assuntos
processos de socialização como condição
igualmente delicados. para a individuação, ou para que tenha iní-
A importância de destacar aqui o GPV deve- cio e se desenvolva o processo de forma-
se ao fato de o grupo ter, como um de seus mar- ção da pessoa/indivíduo. É através desse
cos, o discurso propondo reverter a idéia, impe- processo que a identidade é construída, e
rante no início da epidemia, da fatalidade da do- esta estaria marcada por fragilidades e
ença. Fatalidade essa que gerava inação e fomen- inseguranças crônicas, cuja suavização se-
tava o preconceito. O GPV buscou trocar o dis- ria uma tarefa precípua da moralidade. A
curso de morrer de aids pelo de viver com HIV ou moralidade atuaria então em dois planos:
aids. A segunda noção torna-se um fator agrega- 1. na postulação do respeito à igualdade
de diretos entre todos os indivíduos e/ou
tivo e, por isso, formulador de identidade.42 Essas
na modernidade, no respeito à liberdade
duas concepções tornam-se, portanto, categorias subjetiva da individualidade inalienável,
discursivas centrais na estruturação do GPV. vinculado ao princípio de justiça; 2. na
Para as pessoas que contraíram o vírus da proteção da ‘rede de relações intersubjeti-
aids no início dos anos 80, o simples fato de se vas de reconhecimento mútuo através das
declarar vivas já era, como gostava de afirmar quais os indivíduos sobrevivem como
Herbet Daniel, um ato de insubordinação. Esta- membros de uma comunidade’, onde
vam todas civilmente mortas, logo, isoladas do compartilham o mesmo mundo da vida e
mundo dos vivos. Lutar pelos direitos humanos e os mesmos valores, e que está vinculado
civis dessas pessoas tornou-se, assim, uma ban- ao princípio de solidariedade.45
deira política. A idéia de criação do Grupo Pela Vidda
A pandemia da aids é pensada por essa (GPV) assenta-se em três pontos: 1. as pessoas
ONG/aids como uma crise social e um problema podem viver com aids; 2. sob um aspecto social,
de direitos humanos. Sua abordagem se pretende todos estão vivendo com aids, uma vez que são
universalizante, política e apartidária. Seu princi- atingidos pelos efeitos sociais da pandemia; 3. ga-
pal objetivo é dar voz às pessoas vivendo com rantir um espaço seguro para as pessoas falarem,
HIV ou aids, denunciando situações discriminató- preservando-se o sigilo, sem que ele se confunda
rias, garantindo seus direitos civis e, nesse proces- com clandestinidade. É preciso romper o silêncio
so, trabalhar o fortalecimento43 de seus mem- e estimular o diálogo, reforçando a idéia discutida
neste texto de desenvolvimento da ação comuni-
41 ARAGÃO, 1992, p. 57.
42 CÂMARA & LIMA, 2000, p. 50. cativa, promovendo seus membros à condição de
43 O termo fortalecimento é tomado do inglês empowerment, muito
sujeitos-atores dotados de linguagem.46
utilizado pela psicologia e largamente na luta contra a aids, algumas
vezes traduzido também como empoderamento. Trata-se de conferir
44 SILVA, 1999, p. 150.
força e trabalhar a auto-estima dos soropositivos e dos doentes, confe-
rindo-lhes cidadania. Ao assumir o papel de sujeitos de seu corpo, e 45 HABERMAS, J. apud SOUZA, 1998.
lutar por seus diretos, eles se fortalecem, empoderam-se. 46 Carta de Princípios do GPV, apud SILVA, 1999, p. 151.

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A busca da formulação de um enunciado sendo impingida à pessoa vivendo com HIV ou


capaz de criar novos espaços de diálogo e cons- aids. Ela precisa tomar as rédeas da construção
trução de solidariedade está clara na Carta de desse novo papel, e não simplesmente aceitar o
Princípios da instituição: “Somos formados por estigma ao qual a submetem. Ser sujeito: esse é o
pessoas vivendo com aids, independentemente pilar para o fortalecimento. Como propõe Ha-
de condição sorológica, sexo, orientação político- bermas,
partidária, sexual ou religiosa. Garantimos a par-
ticipação de todas as pessoas em torno de um es- O uso performático do pronome pessoal
da primeira pessoa não implica apenas a
forço coletivo que busca mostrar que a luta con-
auto-interpretação do falante detentor de
tra a pandemia é um compromisso de toda a hu- vontade livre, mas também de uma auto-
manidade”.47 compreensão por parte dele, como um
Seu discurso é inclusivo e procura organi- indivíduo que se distingue de todos os
zar formas de interação entre os indivíduos, e de- outros. O significado performático do
les com a coletividade. Dessa maneira, pessoas vi- “Eu” interpreta, além disso, o papel do fa-
vendo com HIV ou aids encontram um meio de lante em relação à própria posição insubs-
recriar antigos laços de sociabilidade e criar no- tituível no tecido das relações sociais.50
vos. É um espaço político, pois nele as pessoas
No número 18 do Boletim Pela Vidda (jan.-
atuam como grupo de pressão, discutindo políticas mar./94), uma pequena nota chama atenção para
públicas e direitos humanos. É um espaço dialógico a formação de mais um espaço de encontro, com
e polifônico, em que todos falam, escutam e se fa- caráter informal, onde se conversa, trocam-se in-
zem ouvir. formações e é estimulada a convivência: o Café
Vejamos o exemplo da Tribuna Livre, reu- Positivo. Segundo o texto, esse café, realizado to-
nião na qual se vota um tema ligado à aids a ser das às segundas-feiras à noite, vinha sendo tão
discutido: “O coordenador da reunião deve atuar freqüentado que chegava a rivalizar em público
como um mediador, controlando o tempo e per- com o espaço da Tribuna Livre.
mitindo a participação de todos. Em geral, é nesta É fácil entender por que esses dois espaços
reunião que os presentes se colocam na primeira foram tão procurados pelos soropositivos. Nesse
pessoa, opinando a respeito do tema e muitas ve- ambiente de “iguais”, em que se estimula o uso
zes expondo detalhes de sua vida e intimidade”.48 do pronome pessoal eu para narrativa de experiên-
Há, ainda, as Reuniões de Convivência. Elas cias, se adquire confiança e se aprende entre pares,
procuram o fortalecimento, institucionalizando renova-se a vida que parecia condenada, instiga-
confiança, amizade e respeito: “Nos espaços de se a formação de uma nova identidade. Não mais
convivência produz-se voz própria a respeito da o doente, o coitado, o relapso, a bicha, o droga-
transmissão, tratamento, prevenção e impacto do, e sim a pessoa que vive uma realidade nova e
social e psicológico aos quais são submetidas as precisa aprender a conviver com ela, sem deixar
pessoas vivendo com HIV ou aids. Supõe-se que de ser cidadã, sem deixar de exigir ser tratada
os espaços de convivência permitam aos indiví- como tal.
duos a auto-reflexão e, conseqüentemente, a pos-
sibilidade de romper o silêncio, tornando pública 49 Ibid., p. 154. Silva faz aqui um registro importante: a partir de 1997,

a experiência com a soropositividade”.49 utilizando-se da dinâmica de Tribuna Livre, inicia-se o projeto Viva
Voz, orientando os palestrantes que irão usar a tribuna a falar na pri-
Falar na primeira pessoa é criar, entre ou- meira pessoa. Chama atenção essa nota, porque faz lembrar a herme-
nêutica habermasiana e sua recomendação da psicanálise como
tras coisas, a possibilidade de ser sujeito, de pen- paradigma metodológico para a reflexão crítica. “O ego é como o ator
sar a nova identidade que, queira-se ou não, está de um drama, lutando para alcançar sua plena identidade moral, auto-
nomia e autocompreensão. A integração reflexiva de motivos ocultos
quebra o vínculo patológico entre as causas reprimidas e uma conduta
47 Ibid. particular” (INGRAM, 1994, p. 34).
48 SILVA, 1999, p. 153. 50 HABERMAS, J. apud FERREIRA, 2000, p. 87.

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Segundo o Dicionário do Pensamento Social mundo compartilhada, por meio da qual estrutu-
do Século XX (1996), a palavra identidade só en- ram também uma identidade.
trou no uso popular no século XX, especialmente A identificação de si foi para muitos rom-
reforçada depois dos anos 50, com as discussões pida quando receberam o resultado do exame po-
sobre a sociedade de massa. Procurava-se saber sitivo de HIV. Tornaram-se aidéticos, diferentes
quem realmente a pessoa é, na sua solidão, em dos saudáveis e corretos cidadãos que não irão
meio à multidão. O psicohistoriador Erik Erik- morrer. Como escreveram Peter Berger e Erving
son encara a identidade como “um processo ‘lo- Goffmann, a identidade é socialmente outorgada
calizado’ no cerne do indivíduo e, contudo, tam- e socialmente sustentada, mas é transformada
bém no cerne da cultura comunal, um processo também nessa esfera. Para tanto, no caso das pes-
que estabelece, na verdade, a identidade dessas soas vivendo com HIV ou aids, foi necessário criar
duas entidades”.51 Erikson também cunha a ex- um espaço para que a transformação ocorresse.
pressão crise de identidade para identificar um Para ilustrar essa abordagem, nos valemos dos
problema que atinge alguns de seus pacientes, du- comentários de Ferreira:
rante a 2.ª Guerra Mundial. Num momento de
Dessa maneira, pode-se dizer que Haber-
grandes rupturas e perdas, muitos haviam “perdi-
mas procura traçar uma linha de raciocí-
do o senso de igualdade pessoal e de continuida- nio sintonizada com o pensamento de
de histórica”.52 Mead, atacando o modelo da filosofia da
A definição parece adequada para descrever consciência centrado única e exclusiva-
o que se passou, num primeiro momento, com mente no sujeito-objeto, no intuito de
várias pessoas atingidas pela aids. A confusão ini- demonstrar a impossibilidade ou a falácia
cial gerada pela iminência da morte, as rupturas da individuação a partir de um saber-se
meramente reflexivo, intuitivo ou intros-
de laços sociais e a desestruturação do cotidiano
pectivo; mostrando que esse caminho
deixam os soropositivos perdidos dentro de si e
para pensar a autoconstituição deixa de
diante da sociedade. “Encontrar-se” exige dessas ter validez científica, uma vez que o saber
pessoas o que Herbert Mead chama de construção a si mesmo é gerado intersubjetivamente,
do eu, definido como o “sabedor interior, subje- através de interações comunicativas.56
tivo, criativo, determinante e inescrutável”, e do
eu mesmo: “a face mais conhecida, exterior, deter- É no espaço de encontro do GPV que os
minada e social”.53 Esse conjunto de atitudes or- portadores do vírus da aids refazem sua identida-
ganizadas exteriormente e interiorizadas pelas de, procurando transformar o olhar que têm de
pessoas seria o eu mesmo. si, deixando de se ver como pessoas que irão mor-
rer de aids para pessoas vivendo com aids. Assim,
Habermas propõe uma abordagem que vai
muitos se tornam mais do que membros do gru-
além da de Mead, enxergando um movimento di-
po, passam a se ver como ativistas de uma causa,
alético na formação da individuação: o social in-
engajam-se num trabalho envolvendo reflexão
fluencia o individual, e esse influi no primeiro
sobre sua nova condição (a de soropositivos),
mediante o medium linguagem.54 Para Haber-
ajuda outros que se encontram em situação se-
mas, Mead deixou de considerar a linguagem
melhante e intervenções políticas no âmbito do
como medium em que “os sujeitos chegam a se
Estado e da opinião pública. As reivindicações
entender”,55 e, assim, a criar toda uma visão de
transformadas em luta por direitos civis e apelo à
51 ERIKSON, E.H. Identity: youth and crisis, 1968, apud PLUMMER,
solidariedade acabam permitindo construir aqui-
1996, p. 369. lo que Castells chama de identidade de projeto,
52 ERIKSON, apud PLUMMER, 1996, p. 369.
53 Ibid., p. 370.
isto é, “quando os atores sociais, utilizando-se de
54 FERREIRA, 2000, p. 50.
55 Ibid., p. 59. 56 Ibid., p. 59.

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qualquer tipo de material ao seu alcance, constro- cial do GPV é o fato de ser uma ONG/aids forma-
em uma nova identidade capaz de redefinir sua da por soropositivos, e não por pessoas que os re-
posição na sociedade e, ao fazê-lo, passam a bus- presentam.
car a transformação de toda a estrutura social”.57 O fato de ser soropositivo levou William
Transformada em questão política, a princí- Amaral, 34 anos, secretário geral do GPV,59 a se
pio no Rio de Janeiro, a luta das pessoas vivendo engajar em uma ONG: “Eu queria resolver a mi-
com HIV e aids passa a ser também a história da nha questão diante da aids”.60 Mas essa postura
construção da mencionada identidade de projeto. individualizada mudou no prazo de quatro anos.
Nessa medida, a identidade soropositiva cresce William, sem qualquer militância política anterior,
integrada à identidade do ativista de ONG, que assumindo-se “apenas simpatizante do PT” e com
exigem respeito, acesso a tratamento, dignidade atividade política resumida a algumas bocas-de-
em vida, além de elaborar uma nova categoria de urna, tornou-se secretário geral da instituição.
discurso centrada na idéia de solidariedade, incluin- Essa mudança foi gradativa e marcada por episó-
do respeito à diversidade e às orientações sexuais, dios que o colocaram em face de uma realidade
entre outras posturas de tolerância. Voltamos mais ampla do que aquela que inicialmente o ha-
aqui à idéia de esfera pública autônoma, como foi via levado ao GPV. Ali ele passa a exercitar seu agir
discutido anteriormente. comunicativo e a construir para si uma nova iden-
tidade.
EU, SENHOR DE MIM, TENHO O DIRETO Amaral conta que, em 1992, foi diagnosti-
cado como HIV positivo. Junto com o resultado
DE ESTAR VIVO NUMA SOCIEDADE QUE
do exame, veio a sentença de morte decretada
ME VÊ MORTO
pelo médico: dois anos de vida.
Eu tenho aids e estou vivo! (...). Existe, no caso da aids,
uma espécie de jogo sujo, porque não é da morte que Esse prazo passou; eu não tinha absoluta-
estamos falando, é da morte civil, é da ausência de todos mente nada. Quando chegou 1996 (...) eu
os direitos, porque o morto não tem direitos. O morto é estava desempregado, pensando uma sé-
aquele que acabou. (...). Sou um cadáver que atrapalha, rie de questões da minha vida. Resolvi tra-
porque não morre. (...) Estamos vivos! balhar essa questão do HIV. Eu não mor-
HERBERT DANIEL ria, não me acontecia absolutamente nada
e eu estava parado. Foi quando assisti ao
documentário E Por Falar de Vida, pro-
Um dos marcos do GPV assenta-se no viver duzido pela ABIA e pelo Grupo Pela Vid-
com HIV ou aids, e não no morrer de aids. Faz par- da, no Centro Cultural Banco do Brasil.
te do processo de formação pessoa/indivíduo A coordenadora do Grupo de Mulheres
esse conhecimento emancipatório, “que o capa- do Grupo Pela Vidda, Daise Agra, veio fa-
cita para tomar parte nos processos de entendi- lando dessa proposta, de as pessoas vive-
mento e para afirmar e garantir neles a sua pró- rem com aids, e não morrerem de aids.
pria identidade”.58 Os ativistas do GPV passam a Achei muito interessante. No final desse
se identificar como pessoas vivendo com aids. curta-metragem, vinham os créditos do
Como já foi dito, o uso das palavras aqui é essen- Grupo Pela Vidda e da ABIA, e eu me lem-
brei que essa era uma instituição em fren-
cial para marcar a posição política do grupo. En-
te aonde eu trabalhava e que distribuía ca-
tre essas posições, a mais destacada é a luta pelos misinha. Mas nunca tinha me dado conta
direitos civis dos soropositivos, concretizada na
assessoria e orientação jurídica às pessoas vivendo 59 Amaral ocupava o cargo de secretário geral do GPV quando da entre-
com HIV ou aids. Mas o que dá o caráter diferen- vista à autora deste artigo, em 31 de maio de 2000, na sede da entidade,
na cidade do Rio de Janeiro.
60 Todos os depoimentos de William Amaral, presentes a seguir neste
57 CASTELLS, 1999, p. 24. trabalho, foram extraídos de entrevista concedida à autora, na sede do
58 Ibid., p. 98. GPV, no Rio de Janeiro, em 31 de maio de 2000.

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de que trabalhava com aids. E assim uma Tornar-se um ativista significou, para William,
coisa até... totalmente ignorante da ques- ter uma vida melhor, transformar quase todos os
tão, de tudo. seus pontos de vista.
Antes daquele momento, William não ti- Antes eu tinha uma visão muito passiva.
nha qualquer conhecimento da existência de Acreditava que o Estado é que tinha de
organizações com propostas positivas para os so- fazer. Hoje, acredito que as próprias pes-
ropositivos, trocando a morte em vida pela vida soas como cidadãs podem estar fazendo
com HIV. Desconhecia toda forma de organização alguma coisa, modificando a realidade que
política que não fossem os partidos políticos. estamos vivendo. Podem ser solidárias a
qualquer momento, independentemente
Nos primeiros tempos seus no GPV, William as-
de ter uma instituição forte por detrás, de
sistiu às manifestações políticas reivindicando ter aids ou trabalhar com aids. Você pode
distribuição regular e gratuita de medicamentos trabalhar com outras questões tão urgen-
aos soropositivos. “Fiquei fascinado com a ques- tes quanto esta e ser solidário.
tão política, com o ato político que significava as
pessoas estarem ali mostrando a cara, gritando A experiência de William é emblemática,
pelos seus diretos. Aquilo me tocou muito e eu mas não se apresenta como um caso isolado; ao
fiquei tomado por essa questão”. contrário, simboliza um sem-número de outras
Sua militância conferiu-lhe um outro olhar vivências nas quais o exercício comunicativo
sobre si mesmo e sobre a maneira de interferir na mostra-se fundamental para a reelaboração do
sociedade, alterando o seu discurso. Hoje em dia, discurso pessoal e do diálogo de cada indivíduo
sua fala é carregada de jargões próprios de quem com o todo social. A dimensão política desse
atua na vida pública. Fez cursos, participou de processo de reconhecer-se “pessoa vivendo com
discussões, engajou-se numa disputa política in- aids” é a de ser “cidadão”. Assim, o conhecimen-
terna. Enfim, William está vivo, ressuscitado pelo to emancipatório transforma a pessoa, que se in-
ativismo. “Eu me considero um militante, um ati- dividuou “através de uma história de vida auto-
vista de aids, mas não um profissional de aids. consciente, viabilizada por um processo lingüis-
Acredito que minha maior inserção é a de ser ticamente mediado com os outros no mundo so-
uma pessoa vivendo com aids”. Mesmo com o dis- cial”.61
curso modificado, ele admite que precisa traba- As palavras de Habermas são bastante elu-
lhar ainda muitas questões dentro de si. cidativas do processo que buscamos enfatizar até
aqui.
Politicamente, tenho dificuldades que
preciso trabalhar. Possuo uma visão mui- Eu não posso manter o Eu por mim mes-
to pontual das minhas necessidades como mo, apoiando-me nas próprias forças. O
“pessoa com aids”: preciso de tratamento que aparentemente me foi dado em mi-
e de acesso aos medicamentos de forma nha autoconsciência como o Eu pura e
muito rápida, preciso que a saúde pública simplesmente próprio – esse Eu não me
tenha qualidade. Mas sei que tudo isso é “pertence”. Esse Eu contém um núcleo
gradativo e tem de ser construído. Ainda intersubjetivo, porque o processo de
tenho muita dificuldade de trabalhar essas individuação, do qual ele surge, corre
coisas, especialmente com “interlocuções através da rede de interações mediadas
com outras pessoas e organizações”. Meu pela linguagem.62
pessoal ainda se sobrepõe ao institucional,
e isso gera conflitos. Mas é uma questão 61 FERREIRA, 2000, p. 86.
de amadurecimento. 62 HABERMAS, J. apud FERREIRA, 2000, p. 86.

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A METALIGUAGEM DO DISCURSO São sujeitos que se relacionam, criando um


DA AIDS espaço comunicativo em que questões, até então
privadas e individuais, são articuladas pelo uso pú-
Na composição deste ensaio, procuramos
blico de categorias discursivas pondo em prática
nos valer da literatura disponível sobre o tema da
um agir comunicativo promotor da construção da
aids no Brasil, a fim de traçar uma brevíssima his-
noção indivíduo/pessoa. Ampliando-se a esfera pú-
tória social aids, bem como delimitar conceitos
blica e, mais que isso, proporcionando um discur-
que pudessem ajudar na compreensão do movi-
so crítico e emancipatório capaz de ir além do dis-
mento político articulado com base no surgimen-
curso hegemônico estabelecido na esfera ressecada.
to da epidemia do HIV/aids. Tentamos fazer uso
de algumas idéias da teoria da comunicação, de Integrando-se os três tipos de proposições
Habermas, pois vejo nela preocupações sociopo- comunicativas habermasianas – referentes ao
líticas e um compromisso com “a formulação de mundo objetivo das coisas, ao mundo social das
uma ciência social que possa ajudar a libertar uma normas e ao mundo subjetivo das vivências e
prática social reprimida”.63 emoções –, procuramos demonstrar a possibili-
dade de obter um entendimento mútuo gerador
Ainda numa perspectiva habermasiana, a
de novos caminhos e respostas a velhas questões,
problemática da aids tem proporcionado uma co-
como as ligadas a orientação sexual, prostituição
municação inusitada e, até há pouco, impensável
e uso de drogas (para citar apenas as mais salien-
entre o mundo vivido e a esfera sistêmica do sa-
tes), travestidas agora pelas demandas da aids.
ber científico. As respostas exigidas pela pande-
mia mexeram com os órgãos gestores de políticas Finalmente, em visita à sede do GPV, no Rio
públicas. Nunca, na era contemporânea, uma do- de Janeiro, pudemos observar que não se trata de
ença havia requerido respostas tão rápidas e ações espaço onírico, sem conflitos, tampouco uma ilha
casadas entre esfera pública, iniciativa privada e de utopia possível. Pelo que pudemos observar, o
grupos organizados da sociedade civil. GPV constitui um novo espaço de luta, um mo-
delo de interferência social capaz de gerar discur-
Foi preciso, então, elaborar esse saber que
sos igualmente novos. Mais do que isso, busca-se
nasce de múltiplas experiências. Saber gerado em
produzir, no referido espaço, enunciados eman-
meios impensados e desprezados até então,
como determinados grupos muitas vezes margi- cipatórios com base em categorias discursivas
nalizados e/ou estigmatizados, sejam trabalhado- como viver com aids e nas idéias de ativismo político
res do sexo e/ou homossexuais e/ou hemofílicos. e solidariedade como instrumentos de ação. Nes-
Mas também nos grandes centros de referência se processo de individuação, muitos dos mem-
científica. Na construção das respostas médicas e bros desse grupo engajam-se no movimento so-
sociais para a aids – aliás, a simples percepção de cial, reconhecido aqui como um novo movimen-
que elas não podem vir dissociadas já aponta uma to, atuando como núcleo de resistência à coloni-
novidade –, o mundo da vida invade o mundo dos zação do mundo da vida pelo mundo sistêmico.
sistemas, numa tensa, mas frutífera relação. Tudo isso parece estar de acordo com a
Há uma alteração nas políticas públicas pro- proposta da hermenêutica profunda, de Haber-
vocadas pela articulação dos ativistas do movimen- mas, pela qual se procura a mediação entre a ob-
to ligado à aids com as instâncias do Estado. Entre jetividade das forças históricas e as subjetividades
os militantes, muitos deles soropositivos, ocorre a dos agentes, liberando, assim, o potencial de
afirmação de sua nova condição, contribuindo emancipação deles por meio da reconstrução de
para a construção de uma identidade que os torna processos de representação. A aids como doença
cidadãos e senhores de si. Esse processo se dá den- passa, no interior do GPV, a constituir um discur-
tro do espaço das ONGs/aids, com o fortalecimen- so político capaz de reorganizar o espaço público
to da sua condição de sujeito.64 64 Tomamos aqui a definição de TOURAINE, 1997 (apud SILVA,
1999), segundo o qual as noções de sujeito e ator são inseparáveis e não
63 BLEICHER, 1996, p. 352. devem ser confundidas com individualismo.

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de maneira crítica e diferenciada daquelas já ins- da, como normas e legitimidade, e dinamiza a es-
titucionalizadas no âmbito da esfera pública bur- fera pública, buscando inserir-se nela de modo
guesa. Dessa forma, o GPV coloca em questão a crítico, autônomo e construtivo.
validade dos padrões existentes do mundo da vi-

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Dados da autora
LARISSA MAUÉS PELÚCIO SILVA
Mestre em Sociologia Política. Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFSCar).
Centro de Educação e Ciências Humanas.
Bolsista Fapesp até maio de 2002 (artigo escrito
durante a vigência da bolsa)

Recebimento artigo: 20/maio/02


Consultoria: 28/jun./02 a 12/ago./02
Revisão da autora: 22/ago./02 a 28/ago./02
Aprovado: 28/ago./02

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Uma Experiência de
Desnaturalização da Morte
no Contexto da Aids:
a clínica do acontecimento
AN EXPERIENCE OF DENATURALIZATION
OF DEATH IN THE CONTEXT OF AIDS:
THE CLINIC OF AN EVENT
Resumo Inicialmente este trabalho trata o tema da natureza pelo prisma filosófico pa-
ra, em seguida, tomá-lo em sua dimensão histórico-operativa. A noção de natureza VERA VITAL BRASIL
Instituto de Assistência aos
como duplo do real, produtora de ilusão, abre caminho à crítica ao modo de pensar
Servidores do Estado do Rio
a realidade, descolando o real de sua duplicação e redimensionando-o no tempo do
de Janeiro (IASERJ).
acontecimento. O tema da morte é abordado do ponto de vista das transformações
Equipe Clínico-Grupal Tortura
subjetivas ao longo da história, apontando o modo predominante de vivenciá-la na so- Nunca Mais/RJ
ciedade contemporânea: a morte fora do tempo, a morte fantasmática. As configura- [email protected]
ções subjetivas dominantes em torno da epidemia da aids são também tratadas e, pos-
teriormente, tomando por base a situação clínica, discute-se a aplicabilidade do con-
ceito de desnaturalização.

Palavras-chave CLÍNICA – DESNATURALIZAÇÃO – MORTE – AIDS.

Abstract This work begins with a philosophical view of nature and then approaches
it in its historical and operational dimension. The notion of nature as a double-real
and as an illusion producer allows a critique to the way reality is considered, displacing
what is real from its duplication and redimensioning it in the time of the event. Death
is approached from the view of subjective changes that happened alongside History,
pointing out the predominant way of experiencing it in the contemporary society:
death displaced in time, phantasmatic death. Then it takes the dominant frameworks
around aids epidemics and – through a clinical case – discusses the use of the dena-
turalization concept in the equation aids = death.

Keywords CLINIC – DENATURALIZATION – DEATH – AIDS.

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INTRODUÇÃO

E
ste trabalho1 insere-se em uma perspectiva da filosofia
experimental por se colocar na interface entre conceito
teórico e prática clínica. O poder de impacto dos con-
ceitos teóricos evidencia uma aposta clínica que poderia
ser designada filosofia experimental. Trata-se de uma prá-
tica filosófica, na medida em que articula no campo da
clínica a força dos conceitos. Experimentalmente busca
realizar o deslocamento transversal dos conceitos, assu-
mindo o risco de uma clínica do acontecimento em direção aos processos
de desnaturalização, de desmontagem de certos domínios e fronteiras rí-
gidas nos quais a subjetividade é aprisionada. Como todo experimento,
guarda um caráter inevitável de provisoriedade, sem pretensões a consti-
tuir um modelo de clínica.
Iniciamos com o tema da natureza, enfocando-o sob o olhar filosó-
fico para, em seguida, tomá-lo em sua dimensão histórico-operativa. Tra-
balhando a noção de natureza como duplo do real, produtora de ilusão,
o objetivo é abrir caminho para a crítica ao modo predominante de pen-
sar a realidade, ao descolar o real de sua duplicação fantasmática para re-
dimensioná-lo no tempo do acontecimento. Em seguida, abordamos o
tema da morte do ponto de vista das transformações subjetivas ao longo
da história, destacando a morte na Idade Média em contraste com o modo
predominante de vivenciá-la na sociedade moderna e contemporânea: a
morte fora do tempo, a morte fantasmática. Num terceiro movimento,
o acontecimento aids e as configurações subjetivas dominantes em torno
da morte na aids são tratados e, finalmente, é discutida a aplicabilidade do
conceito de desnaturalização segundo uma intervenção na clínica do
acontecimento.
Ao falar de subjetividade, nos referimos a processos de subjetivação,
modos variados de viver, sentir, pensar, perceber e agir no mundo, em per-
manente movimento de mutação. A subjetividade é produzida e modelada
no registro do social por processos históricos e resulta de entrecruzamen-
tos, de conexões entre produções de coletividades de várias espécies sociais,
econômicas, tecnológicas e midiáticas, em permanente circulação nos con-
juntos sociais. Ainda que a noção de subjetividade encontre-se firmemente
associada à de indivíduo, configurando o modo hegemônico de entendê-la
na sociedade contemporânea, pensamos ser esse um dos modos, entre tan-
tos contornos adquiridos ao longo da história.
A noção de acontecimento será aqui tomada como dimensão real e
temporal da existência. Menos como fato, ou acidente, como é costu-
meiramente empregada, e sim algo produtor de rupturas, que interrompe

1 Versão modificada e adaptada para a Revista Impulso da monografia apresentada em 1995 como con-
clusão do curso de especialização em Teorias e Práticas Psicológicas em Instituições Públicas (área II)
Clínica Transdisciplinar, do Departamento de Psicologia da UFF, cujo resumo consta na Revista do
Departamento de Psicologia da UFF, 7 (1), jan.-abr./95.

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abruptamente o fluxo naturalizado da história, do de uma duplicidade que contamina as


criando outro sentido, outras possibilidades de aparências da natureza com o duplo cará-
ser, outras problemáticas a serem enfrentadas. O ter da duplicação de imagens (a natureza
acontecimento não é o que acontece, ele é no que nunca se mostra sozinha) e da cumplici-
acontece. dade ideológica (a idéia da natureza sem-
Nossa intenção tem sido a de nos colocar pre serve à instância não natural que
acompanha sua aparição).3
como dispositivos de passagem para outros mo-
dos de existência-em-nós, com quem quer que O tema da natureza tem permanecido na
estejamos em nossos encontros na clínica. Sabe- história das idéias como um marco. Alvo de va-
mos que a escolha desse lugar envolve riscos, à di- riadas interrogações, essa idéia tem adquirido ao
ferença dos que se situam como técnicos-especia-
longo do tempo contornos múltiplos. Justamen-
listas, imbuídos na atividade de azeitar e fazer
te em um momento histórico em que a morte de
funcionar as engrenagens e formas já existentes.
Deus se instaura no pensamento ocidental, a na-
tureza passa a ser considerada princípio. Como
NATUREZA E OPERAÇÃO HISTÓRICA princípio, tem funcionado para tornar divina a
No cotidiano da atividade clínica, defronta- existência e permanecido como uma das princi-
mos freqüentemente percepções, idéias, senti- pais sombras de Deus no pensamento das socie-
mentos, modos de existência vividos como cons- dades contemporâneas.
titutivos da natureza humana. As assertivas “Eu
Motivo de debates, de antigas discussões
sou assim” e “Isso só pode ser dessa maneira”, a
insistência na busca de uma “identidade” ou mes- entre filósofos, que opõem a existência de dois
mo expectativas estereotipadas em relação ao tra- mundos, o da natureza e o do artifício, a idéia de
balho clínico ilustram o quanto certos modos de natureza tem sido tomada como princípio – aqui-
funcionamento nas relações são, muitas vezes, vi- lo que se faz sem a ação do homem – e, como for-
vidos como exclusivas e únicas maneiras de exis- ça – força estranha e natural, efetuada de modo
tência, ou seja, remetidos à ordem da natureza silencioso, invisível e... impensável. Por mais que
das pessoas, daquela pessoa ou daquela situação. se interrogue a respeito, essa idéia de tem manti-
O interesse pelas produções de subjetividade e do o silêncio acerca das características próprias da
seus efeitos políticos na clínica colocam, na or- natureza e produzido efeitos de naturalização nos
dem do dia, uma maior atenção ao tema da natu- modos de pensar, sentir, agir...
reza como duplo do real. Assim, partindo daquilo Se a idéia de natureza tem ocupado “lugar”
que na clínica se apresenta como um discurso na- especial nas práticas sociais é porque nunca se
turalizado, uma demanda naturalizada, formula-se abandonou, nunca se rompeu definitivamente
a pergunta: que posição assumir diante dessa de- com a formulação platônica e aristotélica que a
manda? Como entender o sentido dessa natureza desenvolveu e mantém sua marcante e indiscutí-
que se apresenta na forma da situação clínica? vel presença no pensamento do mundo ociden-
A primeira providência será elucidar o sen- tal. Seu lugar especial se deve ao fato de que tem
tido da noção de natureza, expondo os procedi- funcionado como uma idéia de base, fornecendo
mentos com base nos quais a natureza se consti- um “ponto de apoio necessário e eficaz a todos
tui como uma duplicação ilusória, ficcional e his-
tórica do acontecimento, entendido aqui como 2 Buscaremos no pensamento de Clément Rosset, com quem estare-
dimensão real da existência.2 mos em diálogo permanente nesse momento do trabalho, por meio
das publicações O Real e seu Duplo: ensaio sobre a ilusão (1988) e A
Anti-Natureza: elementos para uma filosofia trágica (1989), o esclareci-
Acerca da natureza como duplo mento acerca da relação entre o real e seu duplo, a natureza. Com a
história, tentaremos entender a relação entre esse mecanismo de dupli-
A comparação da idéia de natureza a uma cação do real e o tempo.
miragem pode ser determinada no senti- 3 ROSSET, 1989, p. 19.

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os temas metafísicos cujo reconhecimento de- A natureza nunca se mostra sozinha: natu-
pende do reconhecimento de uma natureza”.4 reza-sociedade, natureza-história, natureza-cul-
Platão e Aristóteles foram os primeiros a tura... Ocupa geralmente o primeiro lugar dos pa-
defini-la pelo negativo – pelo que ela não era. Na res que estabelece e as distinções entre os termos
tentativa de sua definição, colocaram-na em con- a ela associados são feitas por oposição a ela e a
traposição a dois outros tipos de efeitos, o acaso partir dela. Incapaz de uma definição própria, é,
– considerado matéria, modo de existência indi- porém, capaz de fornecer uma referência, um
ferente a todo princípio e a toda lei e, portanto, ponto de apoio a todos os temas que dela se des-
dimensão independente das produções humanas tacam. Dada a impossibilidade de manifestar-se
– e o artifício – visto como arte, aquilo produzido por si mesma, mostra-se sempre sob o “disfarce”
e fabricado pelo homem. Dessa forma, esses pen- da máscara da ocasião e, ao mesmo tempo, torna-
sadores criaram os alicerces para o preconceito se cúmplice de outros temas não naturais que a
naturalista predominante nos modos de pensar a acompanham, fornecendo-lhes ingredientes na
natureza. A natureza não sendo nem matéria confecção de suas máscaras.
nem arte, seria aquilo que existe independente da O silêncio sobre o conceito de natureza
atividade humana, mas, ao mesmo tempo e em produz efeitos: tornando-a prolixa, imprime-lhe
certa medida, responsável pela arte que, extensão um caráter de invencibilidade. A força e a vitória
da natureza humana, deve a esta, na verdade, a da idéia de natureza advém justamente do fato de
origem de sua existência. tratar-se de um conceito vazio, silencioso, impre-
Muitos outros pensadores opuseram-se a ciso, prestando-se à aplicação do conteúdo que
essa concepção; porém, ainda hoje, mantém-se o interessa imprimir-lhe no momento. Além disso,
preconceito naturalista quando se estabelece uma por ser uma crença, simplesmente acredita-se que
invisível diferença entre o que se faz por si mesmo exista, porém, sem saber em que se acredita. Por
– a natureza – e o que se produz, se fabrica pelo ser imprecisa, funciona como ponto de apoio a
homem – o artifício. outras idéias a ela entrelaçadas em uma rede ima-
ginária. Por ser silenciosa, presta-se à miragem, à
Da ideologia naturalista: “ilusão”.
instauração e efeitos A ilusão distingue-se do erro porque, para
Aí está a eficácia da idéia de natureza: por ser falso, é necessário primeiramente ser, e a idéia
ser “um nada”, ela é uma inesgotável fonte para a de natureza não é, ou melhor, é um nada. No pro-
ideologia naturalista, nada mais que a crença na cesso de ilusão, manifesta-se um fenômeno que
existência da natureza. É fundamental no natura- lhe é típico: produz surpresa no momento da efe-
lismo a sua busca por neutralizar a atuação do tivação da experiência, no ato de confirmação da-
acaso na gênese das existências. quilo que existia como crença. A crença pode ser
Ao não ser possível uma definição de natu- então considerada, pelo prisma intelectual, pouco
reza, ao não ser possível fazer com que a natureza importante, mas, em contrapartida, extremamen-
“pense”, disfarces se apresentam. Por que, então, te poderosa do ponto de vista da produção.
não imprimi-la aos seres, encarná-la aos homens,
tal qual a imagem do sentimento? Foi o que os Da produção da ilusão
educadores e filósofos do século XVIII tentaram A ilusão naturalista é impulsionada, ganha
fazer, valorizando e incentivando o encontro do força no mito, na idéia de que a repetição repete,
homem com a natureza. No bojo desse movi- reproduz no presente aquilo que foi no passado.
mento, forjava-se e se consolidava... o encontro Envolve uma certa noção de temporalidade que,
da natureza no homem. ao apoiar-se na semelhança da imagem do passa-
do, evita o presente, o real atual, deslocando-o
4 Ibid., p. 19. para outro lugar, desdobrando-o e produzindo,

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dessa maneira, um efeito de duplicação do real. nossas existências até os tempos atuais, adquirin-
Mas como se forja tal duplicação do real caracte- do coloridos especiais na clínica.
rística da ilusão? A característica marcante e paradoxal da li-
A recusa do real pode tomar formas muito teratura oracular é surpreender pela própria rea-
variadas, desde a negação mais radical – ao consi- lização. O oráculo anuncia o acontecimento com
derá-la não existente, como no suicídio, na lou- devida antecedência, de modo que aquele a quem
cura – às formas mais flexíveis, em que o olhar se o acontecimento é anunciado tenha tempo de se
localiza entre a aceitação e a expulsão. preparar e, se for o caso, tentar impedi-lo.
A ilusão é a arte de perceber com clareza, Vários percursos podem tomar o pensa-
porém, de ignorar as conseqüências. É o que faz mento sobre a literatura oracular. Um deles, e o
o mágico, o ilusionista, com a habilidade, a arte de mais clássico, é considerar os desígnios do desti-
deslocar o olhar do espectador para outro lugar, no como algo inelutável, implacável e definitivo:
para um lugar onde nada acontece. não há como dele fugir, esquivar-se. A realidade
se impõe tal qual prescrita pelo oráculo. Mas tan-
O iludido transforma o acontecimento to no sentido determinístico impresso à idéia de
único que percebe em dois acontecimen-
destino quanto no aleatório da ocorrência do
tos que não coincidem, de tal modo que a
coisa que percebe é posta em outro lugar
acontecimento, as tentativas de esquivar-se são
e, portanto, se torna incapaz de se con- infrutíferas. Perdura a impressão de que se foi en-
fundir consigo mesma. Tudo se passa ganado pelo destino. A um só tempo, o aconte-
como se o acontecimento fosse magica- cimento surpreende e confirma o previsto.
mente cindido em dois, ou melhor, como A surpresa, o inesperado, consiste em refu-
se dois aspectos do mesmo acontecimen- tar o acontecimento real em nome de outro que
to viessem a assumir uma existência autô- jamais foi, não é nada. Aqui se impôs nada mais
noma.5 do que o efeito da ilusão, verificado na sensação
O tema da ilusão encontra-se, pois, intima- de o acontecimento real ter tomado o lugar de
mente associado ao da duplicação, ao do duplo: outro. Porém, na sensação de estar enganado, a
um acontecimento desdobra-se em dois diferen- sensação é que é enganosa, ilusória. A ambigüida-
tes, uma idéia transforma-se em duas distintas. de da palavra profética não consiste no desdobra-
Para ilustrar o tema da constituição do duplo, ca- mento em dois sentidos possíveis, dos dois acon-
racterística de toda ilusão, será elucidativo recor- tecimentos, o esperado e o real, mas, ao contrá-
rer à literatura oracular – ligada à tragédia grega e rio, na coincidência dos dois sentidos. São dois
envolvendo a noção de destino – em que aquilo em aparência, mas um em realidade.
que se desdobra e se duplica é o acontecimento. A duplicação do real constitutiva da estru-
tura oracular do acontecimento é a mesma que
O destino e suas vicissitudes persiste no projeto filosófico hegemônico.6 Sob
Se o tema da ilusão nos interessa, por ser essa mirada, o real oferecido no imediato do
uma dimensão com a qual nos defrontamos acontecimento não é senão um substituto, um
constantemente na atividade clínica, outro a ele duplo, uma réplica do acontecimento real. Tal in-
articulado e com a mesma intensidade adquire versão de lugares, recusa do imediato, da efetua-
presença forte nos discursos sobre a existência é ção, tem como efeito fundamental alijar, descon-
o destino. A idéia de destino encontra-se ilustrada
na tragédia grega pela presença dos oráculos com 6 Esse projeto apóia-se na concepção platônica da existência de dois
mundos – o das idéias, do inteligível, do modelo, em oposição ao do
capacidade de prever o futuro, ou seja, o destino sensível, da matéria, das cópias – e o real só pode ser admitido como
dos homens. É uma idéia antiga, que atravessa expressão de outro real. O mundo em que vivemos e morremos, mis-
terioso, enganador e sem sentido, recebe a sua significação, a chave da
explicação de sua existência com base no mundo das idéias, aquele que
5 Idem, 1988, p. 17. o duplica.

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siderar, tornar invisível o presente. O passado e o mera projeção no tempo daquilo que o aguarda
futuro lá estão, mas o presente, tal qual a fugaci- no presente. Seja o acontecimento alegre seja tris-
dade do tempo que o constitui, torna-se imperce- te, defrontamo-nos com isso: não há duplo, não
ptível, insuportável. se escapa ao destino, ao imprevisível, ao acaso,
No entanto, nem todo pensamento meta- pois não se escapa ao real-atual, ao singular do
físico é do “outro” e o tema da duplicação não acontecimento.
está necessariamente ligado a esse enfraqueci- Do duplo natureza-cultura
mento, ou mesmo anulação, do real. Há outras
Por ser vazio, o conceito de natureza colo-
concepções que afirmam a multiplicidade. Ao in-
ca-se à disposição dos conteúdos convenientes às
vés da cisão e do deslocamento a outro lugar e do
composições sociopolíticas engendradas nos
abandono do presente, uma outra concepção de
mais variados momentos históricos. Mergulhada
duplicidade conduz a uma convergência da mul-
no projeto metafísico que a constitui como aqui-
tiplicidade de todos os outros lugares, de todas as
lo que se faz por si mesmo, a idéia de natureza tem
outras realidades para o aqui, o presente. Essa
funcionado em oposição a algo: a outra idéia, a fa-
noção se aproxima da de Deleuze, a respetio de
tos, a atitudes, a acontecimentos. Como apoio
distinguir o acontecimento em seu devir do acon-
aos temas que dela se destacam, a natureza é, “an-
tecimento em sua efetuação em estado de coisa,
tes de tudo, a expressão de um desagrado, não de
ou seja, em sua dimensão história. É na dimensão
uma idéia, permitindo o deslize intelectual ao
devir do acontecimento que está a multiplicidade
qual se chega a afirmar que ‘Transgride a natureza
de todos os seus componentes ou singularidades,
tudo o que de fato se opõe ao desejo’”.8
ao mesmo tempo. Há na simultaneidade própria
Assim como um acontecimento desdobra-
do devir a co-existência não apenas dos opostos,
se em dois diferentes, uma idéia – aqui, a de na-
mas da diversidade, do múltiplo, do ilimitado.
tureza – transforma-se em duas distintas e opos-
Embora o acontecimento em seu devir, em sua
tas: natureza e cultura. Ou ainda, a idéia de natu-
experimentação, escape à história, que capta do
reza em sua função ideológica desdobra-se em
acontecimento apenas a sua efetuação em estado
um duplo e se reforça “com uma eminente fun-
de coisa, delineada pela dimensão – finita, ainda
ção de ordem moral: permite não somente pensar
que fugaz – do presente.
uma metafísica, mas também, e talvez principal-
Pode-se dizer que, de certa maneira, a te- mente, a culpabilidade”.9 Dessa segunda opera-
mática do duplo é extensiva para além da previsão ção de duplicação, efeito da primeira, a oposição
oracular e toda realidade possui uma estrutura natureza-cultura se oferece como domínio meta-
oracular. Todo acontecimento, previsto ou não físico, no qual uma certa noção de desejo se con-
por um oráculo, é surpreendente e singular. Em figura. O desejo encontra-se intrinsecamente li-
função justamente da característica surpreenden- gado à idéia de natureza, operando a constituição
te, inesperada do acontecimento, a noção de des- de seu duplo oposto cultural, e se manifesta com
tino sugerida pelos oráculos ganha dimensão real: a determinação infligida pela transgressão da lei
“há realmente algo que existe e que se chama des- moral: a culpa.
tino: este designa não o caráter inevitável do que
A culpabilidade e seus efeitos de paralisia –
acontece, mas seu caráter imprevisível”.7 A litera-
a qual a atividade clínica defronta no cotidiano –
tura oracular fala exatamente da certeza da “im-
se vê reforçada e multiplicada ao tomarmos o du-
previsibilidade do acontecimento”.
plo natureza-cultura como oposição. A pergunta
Desse modo, a palavra oracular volta-se é se outros efeitos clínicos poderão advir do rom-
menos para predizer o futuro do que para expri- pimento com essa dissociação entre os termos,
mir a necessidade do presente, pois a predição é
8 Idem, 1989, p. 23.
7 Ibid., p. 37. 9 Idem, 1988, p. 23.

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remetendo-a, pela operação desnaturalizadora, à Como instrumento auxiliar de outros campos de


sua dimensão processual imanente: natureza e saber, a história será aqui tomada como uma ala-
cultura como uma mesma e única realidade, a da vanca implicando a tarefa da desnaturalização de
produção. conceitos, idéias, sensibilidades e modos de exis-
Tal produção histórica opôs a idéia de na- tência apresentados na atividade clínica.
tureza à de cultura, estabelecendo entre elas uma O modo como a história se apresenta é re-
relação de transcendência, fazendo esquecer que lativo a um lugar e a um tempo, devendo-se ao
a natureza é um nada e a cultura é o outro de coi- fato de que os meios por ela utilizados na con-
sa nenhuma e excluindo o fato de ambas deverem fecção dessas perspectivas são também próprios
a existência a um certo modo de pensar, inventa- de um lugar e de um tempo. Na relação da socie-
do pelo próprio homem em determinado mo- dade com ela própria combina-se o devir da natu-
mento de sua produção de existência. Produção reza, que pode ser pensado como, simultanea-
histórica de uma certa noção de desejo, aprisiona- mente, um “dado”, algo já construído, e um “tra-
da à de natureza e, da mesma forma, a uma moral balho”, algo a ser feito, a ser criado. Portanto, na
social temerosa da potência da produção do de- fronteira móvel entre o dado, o “natural”, e o criado,
sejo. Produção histórica da noção de isolamento o “artificial”, ou ainda, na fronteira “móvel” entre
humano, de indivíduo, de unidade e de totalida- natureza e cultura, inscreve-se a investigação his-
de, que acompanham a clínica numa produção in- tórica.
cessante de certo tipo de subjetividade: a indivi- O trabalho histórico opera uma mutação
duada. naquilo considerado, até então, da ordem da na-
Que efeitos uma clínica do acontecimento tureza, reunindo de outro modo a humanidade à
poderá construir ao romper com as tradicionais matéria, construindo outras relações entre os
oposições criadas pela duplicação do real e colo- grupos sociais. “Deste modo, ‘a ordem social ins-
car em cena a produção do real atual – em que o creve-se como forma da ordem natural, e não
tempo presente do acontecimento seja garantido como uma entidade oposta à ela’”.12 O trabalho
e o destino esteja remetido não mais ao inelutá- histórico na operação que lhe é própria tem, por
vel, e sim à imprevisibilidade do acontecimento? conseguinte, a capacidade de intervir na articula-
ção entre natureza e cultura, rompendo com a
ACERCA DA HISTÓRIA E SUA dissociação historicamente submetida a esses ter-
RELAÇÃO COM O PROCESSO mos.
DE DESNATURALIZAÇÃO Nesse processo de transformação da natu-
Se a natureza deve ser definida por contras- reza em cultura, que poderia ser chamado
te com o que no tempo se dá como acontecimen- “desnaturalização”, a história tende a evidenciar
to, a importância do tema da história destaca-se os “limites de significabilidade” de modelos ou
na abordagem que desejamos realizar da situação linguagens. Estabelece, assim, um “limite” relati-
clínica. Ao implementar uma perspectiva desna- vo a modelos. “A partir daí, parece, a história é fiel
turalizadora na clínica, faz-se operar a clínica do a seu propósito fundamental que continua sem
acontecimento, que trabalha com a dimensão dúvida por definir, mas do qual já se pode dizer
temporal da experiência. Em que medida a clínica que a liga simultaneamente ao real e à morte.”.13
do acontecimento, a clínica desnaturalizadora se Na intervenção crítica sobre a natureza, a
articula com o trabalho da história? história em sua função desviante produz mutação
Buscaremos, então, avaliar as contribuições de sentido, sendo, sem dúvida, criadora de real.
tanto da historiografia contemporânea10 quanto
de uma reflexão filosófica acerca do devir.11 11 Acerca do devir, cf. DELEUZE, em Conversações e Lógica do Sen-
tido.
12 CERTEAU, 1979, p. 28.
10 No campo da história, a referência será a proposta de Certeau. 13 Ibid., p. 33.

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Esse real se fabrica a partir do limite, do corte, da Se os acontecimentos já estabilizados po-


ruptura que a operação história é capaz de engen- dem vir a constituir um inventário de fatos his-
drar. Tomando uma formalização presente, a ope- tóricos nos quais os homens pensam sobre seu
ração crítica da história – por meio do recurso ao passado, mesmo recente, a história tem também
passado sob a forma do desvio, da diferença – incluída a capacidade de operar desvios, diferen-
produz simultaneamente um distanciamento ças, singularidades. Ambas dimensões se apresen-
desse presente, faz eclodir o passado e, na libera- tam como possibilidades na intervenção clínica.
ção de outros sentidos, de outros modos de exis- Enquanto a história capta aquilo que restou da
tência, dá lugar ao futuro. experimentação – os dejetos dos acontecimentos
A história funciona como campo de conhe- –, constituindo-os em estados substantivos, em
cimento auxiliar de outros saberes-práticas, por- territórios fixados à existência como uma nature-
que tem a capacidade de produção de diferenças. za estabilizada, a via operativa da história se ocu-
O que especifica a intervenção da história nada pa da processualidade, da experimentação do
mais é do que a tática do desvio, da produção da acontecimento no tempo, em seu devir. Em sua
diferença, e a temporalidade aqui manifestada o dimensão operativa, no devir história, a clínica
faz em todas as suas dimensões – presente, pas- desnaturalizadora poderá se aliar num movimen-
sado, futuro –, tal qual o movimento da vida. to infinito e incessante de desmanchamento de
territórios existenciais naturalizados, produzindo
Assim, uma aliança entre a clínica e a histó-
diferenças e abrindo possibilidades de novos
ria parece indispensável a uma prática que se pre-
agenciamentos e de constituição de outros terri-
tenda desnaturalizadora na teoria, na ética e na
tórios.
política. As práticas clínicas têm funcionado
como instrumento ativo na produção – ou mes- Esse é o fundamental desafio colocado pela
mo como poderoso reforço na consolidação – de clínica: desnaturalizar a caminho de novas produ-
um tipo de subjetividade, a individuada. Esse ções de subjetividade, de singularizações, de pro-
modo de subjetivação circunscreve-se numa duções de diferença. Caminho em que possamos
noção de indivíduo/sujeito, aprisionada na rede romper com o modo hegemônico de pensar a rea-
da culpabilidade – já que norteada pela moral – e lidade para que, mergulhando no devir-aconteci-
despotencializadora da ação política. mento-clínica, possam ser produzidas diferenças-
em-nós.
Tais práticas clínicas se deixam atravessar,
de forma naturalizada, pelo modo hegemônico O indivíduo e a morte:
de pensar a realidade que dá exclusividade às produções históricas
oposições, recortando a relação entre os homens, A clínica se alia à história, tomando-a como
definindo-os com base nas posições sujeito-obje- instrumento auxiliar para operar o processo de
to e desenhando-os como indivíduos isolados. desnaturalização das formas subjetivas estabiliza-
Inquietando-nos com esse tipo de captura, temos das. Nesse processo de desnaturalização, há rom-
nos perguntado: que efeitos poderão ser produ- pimento, corte, limite, morte, ao mesmo tempo
zidos na clínica com a implementação do instru- que criação de real, de outros sentidos de existên-
mental desnaturalizador? De que maneira uma cia. Dessa maneira, o tema da morte não é um a
prática clínica desnaturalizadora poderá desman- mais a ser pensado; ele está, desde já, incluído na
char territórios fixados à existência pela ação da clínica que se propõe a articular a dimensão tem-
própria história? Se o acontecimento em seu de- po-experiência. Nesse domínio, a morte apresen-
vir escapa à história, a qual, por sua vez, o capta ta-se como antítese da natureza, natureza negati-
em estado de coisa, seria possível desmontar as va, ou ainda, morte fantasmática, desdobrada em
engrenagens dos territórios fixos, como a idéia de duas figuras mantendo entre si uma relação de si-
natureza? metria ou complementaridade. Figuras que pro-

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jetam a morte no tempo, no presente e no futuro, isso definitivamente presos ao tempo imobiliza-
esquivando-se do tempo real do acontecimento. do.”14
Figuras cuja força motora está voltada para o cen- Em Vigiar e Punir, Foucault mostra a noção
tro, o centro do indivíduo. A imagem atual da de indivíduo como um artefato ideológico, cons-
morte mantém uma relação com a noção de truída e consolidada pelo poder disciplinar inau-
indivíduo como natureza isolada. gurado por volta do século XVII. As técnicas dis-
Ainda que a morte dos tempos atuais este- ciplinares, produtoras de um tipo de subjetivida-
ja, de modo privilegiado, referenciada pelo nega- de, a individuada, afinada com as ordens sociais,
tivo, em oposição à vida, podemos, mediante a são pouco a pouco implementadas e, no bojo do
desnaturalização, tentar inseri-la no tempo real mesmo processo, a morte sofre mutações,15 tor-
do acontecimento, tomando-a como contranatu- nando-se dissociada, isolada, opondo-se à vida.
reza, como limite inexpugnável da existência. Em contraste às formas subjetivas hoje pre-
O tema da morte manifesta-se nas mais va- dominantes, na Idade Média, a vida e a morte li-
riadas situações na Clínica Psi. Em se tratando de gavam-se intimamente. A morte medieval era um
um serviço de atenção à saúde aos funcionários acontecimento marcado pela aglutinação social,
públicos estaduais e municipais, esse tema apare- com caráter eminentemente público. Em todos
ce freqüentemente articulado às situações institu- os seus momentos, do ato de morrer aos fune-
cionais envolvendo as políticas de desmantela- rais, a comunidade estava presente. Os rituais do
mento do setor, por meio da degradação crescen- funeral celebravam-se em clima de festa, familia-
te da qualidade dos serviços. ridade e sensualidade. Vizinhos dos vivos, os ca-
Com o advento da aids, começa a se apre- dáveres não inspiravam medo ou repulsa; esta-
sentar uma crescente demanda ao atendimento vam ali ao alcance de todos, no meio da cidade,
de pessoas soropositivas e/ou com a síndrome já no centro da praça, esperando o despertar do
instalada. A aids tem colocado em xeque – com grande sono. Produzia-se, na época, uma sólida
toda a força e intensidade que nos chega a epide- junção dos vivos com os mortos, expressando o
mia – os modos atualmente vigentes de relações, quanto a morte era vivida como parte integrante
tidos até agora como naturais, com algumas te- da vida, como passagem de uma vida à outra, a ca-
máticas exigindo outros posicionamentos, outras minho da ressurreição.
abordagens. Entre elas, destacam-se a sexualidade Num movimento lento, a estreita e insepa-
– por ser a via sexual a principal forma de trans- rável relação entre vivos e mortos vai sofrendo
missão do vírus – e a morte, já que a associação mudanças. No conjunto das mutações econômi-
entre aids e morte manifesta-se no imaginário so- cas, sociais e políticas operadas a partir do século
cial na forma do binômio aids = morte, equiva- XII, dá-se aos poucos um processo de transfor-
lência que tem produzido efeitos de decretação mação, estabelecendo, simultaneamente, a sepa-
de morte antecipada naqueles por ela afetados di- ração entre mortos e vivos, individualizado-os
reta ou indiretamente. Além disso, esse tema re- tanto em sua condição de vivos quanto de mor-
acende a discussão sobre a mortalidade, justa- tos, numa ruptura que persiste até os dias de hoje.
mente no momento em que o homem se acredi- A morte, à diferença dos tempos medievais,
tou imortal. passa a ser temida. Controlada pelos preceitos re-
ligiosos do bem e do mal, a vida é, em seu mo-
O PROCESSO DE INDIVIDUALIZAÇÃO mento limite, novamente e definitivamente julga-
E SEUS EFEITOS da. O medo de não ser eleito por Deus e da con-
“No fundo desse silêncio coletivo, os fan-
tasmas individuais fazem suas danças macabras, 14RODRIGUES, 1983, p. 202.
15 A respeito das diversas configurações históricas sobre a subjetivi-
roubando aos homens a consciência de seus limi- dade acerca da morte e sua relação com a noção de indivíduo, cf.
tes, fazendo com que se acreditem imortais, por RODRIGUES, 1983.

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denação ao inferno produz a angústia de morte. A congelá-lo. Foi, pois, silenciando sobre a morte,
morte adquire um sentido dramático. Desenca- enaltecendo a vida como valor supremo e a bio-
deia manifestações expressivas de dor e de horror grafia individual como referência da vida que o
naqueles que nela pensam, naqueles que, em al- homem inventou uma morte não-tempo.
guma situação inesperada, se vêem por ela amea- Essa morte não-tempo, morte fora do tem-
çados. Produz-se uma interiorização do inferno, o po real do acontecimento, projetada para o futuro,
qual, nos últimos tempos, passa a ser considera- cria a ilusão de creditar a imortalidade à vida. O
do, por força da ciência, da ordem do psicológico. desrespeito à morte como limite conduz sua
Outra configuração importante que perdu- inserção no campo da experiência de forma mui-
ra até os tempos atuais surge também nessa oca- to especial e típica, impondo-se, pois, o modo
sião: a biografia particular. Em um permanente fantasmático de vivenciá-la. Assim, a morte dos
exercício de exame sobre a própria vida, avaliando homens no tempo, cujo limite é inexpugnável,
e reavaliando os atos, construindo uma biografia passa a ser abolida. O suicida, não suportando a
particular, o homem se prepara para o derradeiro morte como limite, tenta forçar o impossível:
julgamento. A vida passa, então, a ser vivida precipitar a morte em vida. Na tentativa de expe-
como um encadeamento de eventos, à imagem rimentar a morte, estendê-la ao campo da expe-
do tempo dos relógios, divisível e cronológico, riência da vida, entender como ela se processa,
cuja seqüência a morte ameaça romper. como no mito de Sísifo, a experiência é também
Ainda que suas origens evoquem os movi- uma só: a morte se impõe sem que haja lugar para
mentos do século XVIII, quando da separação en- o relato dessa experiência. No movimento de en-
tre corpo e alma e da delegação ao corpo da con- golfar a morte em vida, a morte poderá tornar-se
dição de natureza, é sob a égide do potencial de- soberana.
senvolvimentista e tecnológico que surge o mito Os efeitos da morte fora do tempo se des-
da imortalidade do homem. Mas é também na dobram. Desse modo, no mesmo movimento de
onda consumista, característica do capitalismo tentativa de abolição do limite do tempo – em
contemporâneo, que a morte se faz presente nas que a morte passa a ser vivida de modo fantasmá-
coisas: a produção incessante de mercadorias tico –, os mitos da imortalidade e da decretação
evoca uma corrida desenfreada para a morte, que antecipada da morte convivem. No empreendi-
passa a estar inscrita como constitutiva das coisas. mento de dissociar a morte do tempo, na engre-
Porém, desse aparente paradoxo – a imortalidade nagem para eliminar a dimensão tempo-experiên-
dos homens e a mortalidade das coisas do mun- cia, deriva-se o esforço em subordiná-la ao tempo
do, relacionadas diretamente ao modo como o da vontade, em busca da imortalidade, como
homem se apropria das dimensões do real e do também será no esforço de submetê-la à dimen-
tempo na sociedade contemporânea –, o efeito é são da vida que se produzirá uma precipitação da
um só: o esfumaçamento do finito. morte em vida, uma decretação antecipada da
Acreditou-se que o poder tecnológico po- morte. A morte fantasmática desdobra-se em
deria, à semelhança dos deuses medievais, ressus- duas faces simétricas: a do futuro sempre adiado,
citar a morte e paralisar a história. No esforço de associado à idéia de imortalidade, e a do presente
reter a imagem dos corpos (vivos) – por meio não efetivado, vinculado à figura do suicida. Isso
dos registros fotográficos – e da alma – mediante porque a negação do tempo da morte dissemina-
a fixação da lembrança na memória dos que ainda a nas coisas da vida e a própria diferença entre
estão vivos –, os homens modificaram a relação morte e vida se esfumaça...
com a morte. Fomentando o interesse em pes- Será, pois, na dimensão morte-fantasmáti-
quisas dirigidas para o congelamento dos corpos, ca, modo dominante e naturalizado de subjetiva-
na aposta do prolongamento da vida num mundo ção da morte, que a intervenção clínica irá incidir.
futuro, a tentativa é uma só: fazer parar o tempo, Quer em sua faceta de futuro sempre adiado quer

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na de presente não efetivado, a vida está sob se- cipitação da morte em vida, a decretação anteci-
qüestro da morte como fantasma. A clínica des- pada da morte. Esses efeitos serão examinados
naturalizadora, ao enfocar a temática da morte, segundo a sua articulação – dada a sua potencia-
busca intervir justamente na rede de aprisiona- lização em nossos dias – com o acontecimento
mentos, na qual se encontra seqüestrada a pulsa- aids.17
ção da vida, a fim de liberar a potência da vida e
a dimensão real da morte como limite inexpug- Aids, a doença do “outro” ou
de como os seres se transformam
nável no tempo do acontecimento.
em “patogênicos”
As epidemias de origens e formas desco-
DESNATURALIZANDO AS PRODUÇÕES nhecidas, ao despontar no horizonte social, de-
DA MORTE NA AIDS sencadeiam manifestações diversas de medo, pâ-
No fundo, eu acreditava no convencional: nico, arrastando consigo noções e idéias devasta-
é muito duro, é barra pesada demais, é um doras de descontrole, morte e extermínio em
choque dificilmente suportável, é um ter- massa. O que hoje entendemos por aids, síndro-
remoto, é uma viagem de um começo me da imunodeficência adquirida, provocada por
sem volta. Ninguém, de fato – é o que eu um retrovírus, o HIV, não teve sorte diferente.
acreditava – está preparado para receber No início da década de 80, antes mesmo de haver
uma notícia dessas. Pelo menos, é o que no País algum registro clínico, circulavam já con-
eu pensava até receber essa notícia: você cepções complexas e contraditórias sobre a doen-
está com aids. Recebi e foi assim mesmo: ça, em que se misturavam preconceitos e teorias
o começo de uma viagem. Só que entendi,
científicas, concepções reforçadas mutuamente e
não sem ironia, que nenhuma viagem da
repercutentes no modo como a sociedade tem
vida tem volta e a vida é exatamente isto:
a possibilidade de uma eterna volta por ci- respondido à pandemia.
ma, sempre para frente. O melhor lugar Com a aids precipitaram-se vários estigmas
do mundo é aqui. E agora. já socialmente vividos em face de outras enfermi-
Não que eu estivesse preparado. Nin- dades, como a lepra, a tuberculose, a sífilis e o
guém nunca está. Fui me preparando, câncer. No processo de recorte do social, ocor-
como todo mundo se prepara, para viver reu, inicialmente, uma colagem da imagem da
uma nova condição de vida. Condição de aids à figura do homossexual masculino e, em se-
vida, digo de novo, para deixar bem claro
guida, à das prostitutas, crianças de rua, usuários
que não estou falando de circunstâncias
de drogas, arrastando, no decorrer da história da
da morte anunciada e imposta. Aprendi
logo de cara, na crise de saúde que levou epidemia, os preconceitos existentes em torno
ao diagnóstico severo de aids, que não sou desses setores, deslocando-os para aqueles que
“aidético”. Apenas estou com aids. Ser, passaram a ser atingidos por ela. Além desses
continuo sendo o que não era nem fui, efeitos de deslocamento, novas misturas se pro-
por ser agora a continuação do pode ser cessaram quando outros personagens – mulheres
que eu, como todos, sou dia a dia.16 e crianças – passam a integrar o cenário da epide-
mia, colocando em evidência que o problema é
Ao inventar a morte fora do tempo, ao ali- do conjunto da sociedade, rompendo com a idéia
já-la do mundo dos vivos, deslocando-a para um de doença dos “outros”, afirmando e confirmando
mundo fantasmático, afirmaram-se modos natu- que o problema da aids é de todos nós.
ralizados de vivenciá-la coabitadores na sociedade
contemporânea. A ilusória idéia da imortalidade 17 Num primeiro momento, estaremos em diálogo com Herbert

do homem é tão fortemente vigente quanto a pre- Daniel, em especial no que se refere à sua experiência como portador
do HIV. Posteriormente, valendo-nos da experiência clínica com uma
mulher portadora do vírus, apresentaremos desenhos de uma interven-
16 DANIEL, 1989, p. 15. ção de desnaturalização da morte anunciada.

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No transcorrer desses anos da existência da “aidético”. De tal maneira que muitos me


epidemia entre nós, algumas mudanças ocorre- comunicam que eu “assumi” minha aids.
ram. A visão catastrófica da epidemia começou a Eu acho engraçado, isso de assumir – esse
dar lugar a outras formas de percebê-la e enfren- ato de vontade que implica admitir a exis-
tá-la. A idéia de bomba-relógio prestes a explodir tência de certa coisa. De fato, o que tenho
feito é assomar à porta do mundo e dizer:
a vida em tempo marcado faz seus ensaios de de-
estou vivo, é tudo mentira o que dizem
sativação. Hoje em dia sabe-se que parte dessa por aí, que morri. Na verdade, o doente
versão predominante apoiava-se na análise de ca- de aids tem de aparecer para desfazer os
sos já avançados da infecção do HIV num mo- equívocos criados por uma ideologia corro-
mento em que a medicina se confrontava com siva de condenação e, conseqüente, apieda-
suas limitações e o conhecimento sobre o desen- mento, que constrói um melodrama ali
volvimento da síndrome, os recursos medica- onde se desenrola uma tragédia. Inegavel-
mentosos e a análise social eram muito mais pre- mente, a aids é uma tragédia moderna. Ela
cários. Pela experiência, hoje é sabido que as in- desmonta, de forma aguda, os pressupos-
formações sobre o mecanismo da infecção pri- tos médicos e morais da racionalidade
mária e do impacto imunológico provocados burguesa. Lembra que a dor, o sofrimento
e a morte são partes integrantes do mun-
pelo HIV são insuficientes, e não se pode afirmar
do, assim como o prazer – e não há prazer
que todos os casos de soropositividade tenham
que sobreviva longe da sombra da dor.19
de se desdobrar em aids.18
Nesse período, as conquistas se deram com Herbert Daniel, tomando a epidemia como
muitas lutas e com o pesar de muitas perdas no uma doença de nossos tempos – a aids de “nossos
campo dos direitos das pessoas vivendo com HIV. dias”, ele dizia –, implicou-se com as questões
No entanto, está distante o cenário em que a subjetivas dela decorrentes, desconstruindo as
retenção do avanço da epidemia esteja garantida, naturalizações e construindo, pela crítica, uma
bem como a prevenção e assistência asseguradas, ação política voltada à solidariedade. Ao compar-
em que os portadores do HIV e os doentes de aids tilhar com Mann a noção de terceira epidemia20 –
deixem de ser alvo de ataques preconceituosos e a a ideológica –, esta impôs-se nas relações sociais
aids não mais seja considerada uma ameaça à vida. com impacto tão forte e grave quanto a da epi-
Como conviver com o HIV, retrovírus mu- demia de imunodeficiência. Destaca-se, então, a
tante cuja única potência é multiplicar-se – sem importância da epidemia ideológica no impacto
qualquer compromisso de ordem moral –, mas social da aids, responsável pela produção da
que, por sua vez, ao habitar entre os homens, tor- síndrome de culpabilização e acusação, tão mere-
na-se um dos mais fortes catalizadores do mora- cedora e digna de atenção quanto a síndrome de
lismo conservador? Como coabitar com uma imunodeficiência.
pandemia que reacende e vitaliza no imaginário Daniel assinala, na história da epidemia ideoló-
social antigas idéias acerca de doenças, entre elas, gica, três dimensões associadas como um amálga-
a lepra, a peste, processando uma operação de as- ma constitutivo da aids: o contágio, a incurabili-
sociação imediata da relação doença-morte? dade e a morte.21 Vista como doença incurável,
desdobra-se, num efeito imediato, em fatal; o
UMA INTERVENÇÃO DESNATURALIZANTE simples diagnóstico de HIV positivo transforma-
AMPLIADA: HD EM CENA se em sentença de morte. Uma vez instalada a
Sub-repticiamente, a doença criou uma equivalência aids = morte, o convívio social é co-
mitologia tão complexa que o doente pas-
19 DANIEL & PARKER, 1990, p. 25.
sou a ser visto como um ser especial, um 20 A primeira epidemia seria aquela em que o HIV se difunde no
mundo, de forma silenciosa e invisível; a segunda, em que a síndrome
18 PARKER et al., 1994. se manifesta em decorrência da imunodeficiência provocada pelo HIV.

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locado em questão – pelo medo da contaminação Desde que se soube portadora do vírus,
– e a cidadania é posta entre parênteses – ao se de- pela primeira vez M. expôs sua condição de so-
cretar a morte civil. Acrescidos à desinformação ropositiva. Recentemente, foi acometida de uma
sobre a doença, o pânico, o pavor, o preconceito pneumonia e rompeu o silêncio sobre a sua con-
e a discriminação passam a exercer um efeito de dição, mantido por três anos. Seu último compa-
silenciamento, de isolamento social, ou melhor, nheiro faleceu, em 1992, com diagnóstico de aids,
da vivência clandestina dos HIV positivos. ocasião em que M. fez o teste anti-HIV. Relata
Depois de estabelecida a captura na rede de lembranças penosas do período de adoecimento
acusações culpabilizantes, nada mais resta senão a do marido, bem como da vida conjugal, afirman-
entrega solitária à condenação de morte e, nesse do ter tolerado um turbulento convívio, dado o
processo instalado de culpabilização individuali- forte vínculo entre sua filha e o pai.
zante, despotencializa-se a ação política. Outro M. tem 40 anos e dois filhos de diferentes
efeito dessa definição é o delineamento de uma pais, trabalha como auxiliar de enfermagem em
fronteira imaginária entre os homens, passando hospitais da rede pública. Manifesta enorme pre-
se dividir em “mortais” – aqueles que, “condena- ocupação e desagrado de que seus companheiros
dos” pela doença, seriam decretados à morte em de trabalho e de que sua família venham a saber
vida – e “imortais” – os que, “puros” e “apieda- de sua soropositividade. Desse segredo, mantido
dos”, alcançariam supostamente a vida eterna... a duras penas, só compartilham as pessoas mais
Uma microintervenção desnaturalizante próximas: o filho mais velho, as irmãs e os cunha-
ou efeitos de uma clínica do dos, sua chefe imediata e algumas poucas amigas.
acontecimento Declara ter horror à doença, inclusive em nomeá-
O acontecimento aids produz efeitos, atua- la, afastando-se quando, nos noticiários televisi-
lizando-se de modos variados na vida cotidiana. vos, são anunciadas ou divulgadas informações
Partindo do acontecimento clínica, serão aqui sobre a epidemia.23
examinadas as produções subjetivas relativas à M. fala de “herança” e que seu marido “fez
morte,22 em um atendimento atual a uma mulher, muita besteira”. Após a sua morte, sua ex-mulher,
no serviço de psicologia de um ambulatório do com quem foi casado por pouco tempo, entrou
Instituto de Assistência aos Servidores do Estado com processo e conseguiu receber 50% de seu sa-
do Rio de Janeiro (iaserj) lário, sendo o restante distribuído entre os três fi-
M. é encaminhada por indicação do serviço lhos de M. A filha recebe atualmente por volta de
de clínica médica. A médica que a recebeu me 16% do salário do pai. M. havia reivindicado sua
procura, avisando tratar-se de uma mulher soro- parte, pois vivera com ele mais de cinco anos; no
positiva em estado de depressão e necessitada de entanto, o juiz disse que nada podia fazer, uma
informações acerca de centros de referência para o vez apresentada pela ex-mulher a documentação
tratamento das doenças sexualmente transmissí- do casamento e o registro dos filhos mais velhos
veis, DST/aids. como dele e da esposa oficial. A “herança”, então,
21 A essa tríplice associação – referida como definição mínima operacio-
que ele lhe havia deixado era o vírus, levando-a,
nal da aids –, atribui o principal fantasma que ronda a doença. A noção em muitos momentos, a pensar em se matar, de
de contágio associada, privilegiadamente, à de transgressão perigosa – modo a terminar logo com a agonia.
ligada a práticas proibidas de sexo e uso de drogas – convivem com
idéias, por sua vez, também vinculadas a agentes de contaminação típi-
cos de outras epidemias, como o mosquito, agente de transmissão do 23 Na infância e adolescência, a vida de M. foi marcada pelas condições
dengue e da malária. Colam-se, dessa maneira, concepções confusas mais duras de pobreza. O pai trabalhava como auxiliar de pedreiro e a
acerca das vias de contaminação. mãe, doméstica, foi acometida por surtos psicóticos. Aos dez anos de
22 Serão analisados os movimentos relacionados, fundamentalmente, idade, quando da internação psiquiátrica da mãe e da separação dos
ao plano-morte na aids, ainda que outros complexos integrem a paisa- pais, M. passa a morar com a avó materna, de quem guarda lembranças
gem do atendimento, interpenetrando planos como o da pobreza, da afetuosas. Seu acesso à escola se fez, pela primeira vez, ao completar 16
condição feminina, da relação de gênero e da assistência pública, per- anos e, desde então, prosseguiu os estudos até completar o segundo
manentemente presentes no processo analítico. grau.

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A “herança” revelou-se uma referência im- tes de amigas e situações envolvendo outras rela-
portante do modo como M. se relacionava com a ções, diferentemente daquela vivida com a
doença da aids. Ao ser-lhe subtraído – como re- temática da aids.
sultado da manobra da esposa oficial e do juiz – A inquietação quanto à cadeia de transmis-
o direito à herança material, nada mais lhe restava são do vírus foi abordada nos primeiros encon-
do que a herança do HIV, legado indesejável e em tros, num contexto em que ela se colocara como
relação ao qual, imediata e passivamente, associava possível agente na transmissão ao marido, apesar
ao suicídio. A herança desejada e meritória, por de saber de outras relações dele, evidência mani-
ser ela a legítima mulher, quando inviabilizada festada pela reincidência das DSTs. Dias mais tar-
pelo representante da lei, a remetia passivamente de, M. introduziu sua dificuldade em se aproxi-
à morte. Duas questões encontram-se aí intrinca- mar de outros homens, temerosa da possibilidade
das: a passividade da condição feminina e a passi- de ter relações sexuais. Em sua recusa de encon-
vidade diante da condição de soropositiva, em tros amorosos, tampouco via a possibilidade de
que a equação aids = morte se impunha. um convívio social mais ampliado. Nesse encon-
M. relata ter procurado por diversas vezes o tro, M. expôs os preconceitos dos colegas, pro-
serviço de ginecologia e se submetido a constan- fissionais de saúde, em relação à doença, relatan-
tes tratamentos. Seu companheiro relutava em do situações em que pacientes acometidos pela
tratar-se, atribuindo as DSTs (doenças sexualmen- doença e em tratamento tornaram-se alvo de co-
te transmissíveis) às relações que ela teria tido an- mentários e de assédio curioso. M. tem horror de
tes de encontrá-lo. Numa ocasião, perguntou-lhe
falar de sua doença com aqueles que a cercam no
“com quem havia pegado a doença, com um ho-
trabalho e na família.
mem ou uma mulher” e, segundo M., “ele deu de
ombros”. Em outra sessão, emocionou-se logo no
início, contando sua intenção de pôr fim à vida.
Digo-lhe que hoje já não é mais possível
Ao falar de sua renúncia aos contatos sociais, si-
obter tal resposta, por conta do falecimento do
nalizamos que ela estava decretando antecipada-
marido, e questiono a relevância de se saber quem
mente sua morte em vida. Tal intervenção, pon-
transmitiu o vírus a quem, pois percebo que essa
pergunta sem resposta desgasta suas energias. tuando a relação aids-morte-antecipada-suicídio
Essa primeira intervenção sobre as fabulações em produziu efeitos. Sensibilizada, M. relatou o epi-
torno da cadeia de transmissão do HIV, em que sódio de que uma nutricionista havia comentado
M., de alguma maneira, se encontrava implicada, com ela que fulano estava com aids e iria morrer,
produziu uma subversão do esquema, que até en- ao que ela, indignada, respondeu: “E você, por
tão a sustentava, em uma posição desconfortável acaso pensa que não vai morrer?”. A interlocutora
na síndrome de culpabilização/condenação. As po- retirou-se incomodada e, mais tarde, admitiu que
sições do casal eram intercambiáveis: ora o mari- M. tinha toda a razão: todos nós morreremos.
do era o culpado e ela a vítima, ora ela se colocava Com essa lembrança pontuando a ilusão da
como possível agente da contaminação do com- imortalidade e, por isso mesmo, produtiva em di-
panheiro, culpabilizando-se pelo fato de ter tido reção à vida, comentamos que, em razão de tan-
outras relações anteriores. tos preconceitos em torno da doença, as pessoas
Ao definir um limite – a ausência do marido tinham uma tendência a deixar de viver, anteci-
– para essa cadeia infinita de interrogações sem pando e decretando a morte antes mesmo que ela
resposta, nossa intervenção produziu efeitos de ocorresse. M. saiu recomposta do encontro, dis-
mudança. Da posição de passividade, de paralisa- posta a ir à perícia médica para a renovação da li-
ção em que M. se encontrava, processos mais ati- cença, pois precisava fazer exames, e, no mesmo
vos de ligação com a vida começaram a se engen- dia, buscar atendimento no Centro de Referência
drar por meio de lembranças, relatos mais recen- de DSTs.

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Na sessão seguinte, mostrou-se surpresa e nidade, tornar público, bem como estar bem e
emocionada, porque, no dia anterior, havia en- morrer com dignidade foi estabelecida. Dias de-
contrado casualmente uma colega, que, preocu- pois, contou que tinha sido solicitada por amigos
pada, contou-lhe estar saindo com um rapaz mui- da comunidade onde vivia para fazer bolos de
to bonito e atraente, o qual, certo dia, desespera- aniversário, quitute que agrada a todos.
do, lhe comunicara que estava com “a doença”. A
amiga demonstrou não ter receio da situação e, CRUZAMENTOS
tentando ajudá-lo, perguntou a M. se conhecia al- Numa abordagem clínica tradicional, os
gum serviço que pudesse recebê-lo. M. surpreen- acontecimentos são tomados como fatos exterio-
deu-se ao mesmo tempo com o relato da amiga, res e, por esse motivo, desconsiderados. Privile-
associado à questão tratada no nosso encontro gia-se a interpretação e o assinalamento de
anterior – a relação amorosa com um portador do conteúdos, remetendo-os à ordem do privado,
vírus–, e com o fato de ter sido solicitada a ajudar, do íntimo, do “interior”, ou se escuta o que é “da
justamente ela, que está na mesma condição. Não ordem da estrutura do sujeito”. Com isso, o te-
pareceu assustada, e sim atônita, ao perceber que rapeuta se põe, ilusoriamente, na “neutralidade”.
essa não era exclusividade da sua vida e que a ami- Em contrapartida, numa clínica que se pretenda
ga tratava a relação amorosa sem maiores temo- desnaturalizante, trabalha-se no sentido de fazer
res. Acrescentamos, então, que certamente ela funcionar a conexão dos acontecimentos. Impli-
também tinha muito a dizer à amiga. camo-nos com questões/afetos trazidos por
Outro dia M. contou ter ido a um dos hos- aqueles com quem criamos um campo de inter-
pitais em que trabalha para tramitar sua licença e cessão. As questões, os temas, os sentimentos
não se sentira bem. Em conversa com a chefe, fi- eclodidos, nesse espaço/tempo, como afecção24
cou sabendo que outros funcionários pergunta- em nossos corpos reacendem e intensificam as
vam por ela e associavam sua ausência à morte do experiências por meio da memória, produzem
marido. Esse fato a abalou e abateu. Essa questão pontos de bifurcação segundo linhas de fuga/
a incomodava e desgastava suas energias, mas pa- deriva. Linhas que abrem a possibilidade de ou-
recia impossível evitar que as pessoas conversas- tros tipos de possíveis, rompendo com uma si-
sem sobre ela. Lembrei-lhe que ela mesma admiti- tuação aparentemente predeterminada e definida.
ra esse assunto como despertando muita curiosi- Vimos como as conexões feitas por M. com
dade nas pessoas com quem convivia no hospital. alguns acontecimentos podem deslanchar outras
M. associou-o, em seguida, a um episódio possibilidades de viver a condição de soropositi-
ocorrido anos antes. Na igreja que freqüentava, vidade de modo mais ativo. O encontro com a
havia uma mulher contaminada pelo HIV, que, amiga, que falava do namorado doente de aids,
durante uma reunião religiosa, viveu de perto o evidenciou a possibilidade de falar com amigos
preconceito. Uma das participantes recusou ali- sobre relações amorosas com pessoas HIV positi-
mentar-se caso a comida fosse preparada pela vas. A lembrança do episódio discriminatório em
portadora do vírus. M. afirmou ter se sentido relação à mulher soropositiva que cozinhava na
chocada com o comentário, mas calou-se. A si- igreja abriu um veio, o de poder tornar pública a
tuação foi contornada, mudando-se a indicação condição de soropositividade, de constatar, pela
de quem se responsabilizaria pelos alimentos. experiência da companheira, que a morte não é
M. guardava da mulher uma lembrança: ela necessariamente degradante. Além disso, abriu-
não escondera sua condição de soropositiva e se a possibilidade de fazer bolos para amigos, co-
mantivera boa aparência até a morte. Comenta- nhecidos e parentes, sem que eles a rejeitem. A
mos sobre os enormes preconceitos em relação lembrança do diálogo com a nutricionista con-
aos doentes de aids, a desinformação e a curiosi-
dade. A conexão entre falar, retirar da clandesti- 24 DELEUZE, 1984.

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frontou, de modo ativo, a ilusória idéia da imor- motivo, do atendimento clínico à prima, e procu-
talidade dos seres. rava também ser por mim recebida? Na recepção,
A seguir, serão destacados dois outros cruza- me informaram sobre a insistência dela em ser
mentos, bifurcações envolvendo outros encontros, atendida por mim. Lembrei que, numa ocasião,
outras implicações e outros tipos de possíveis. queixando-se das “fofocas” no ambiente hospita-
lar, M. havia citado uma prima de quem guardava
Cruzamento I mágoa por ter comentado sobre a sua condição
O acontecimento clínica traz surpresas, de soropositiva – M. nem sequer tinha lhe reve-
convoca a analisar os lugares ocupados, as impli- lado seu “segredo” e considerava a iniciativa da
cações em jogo, e a tecer novas matérias de ex- prima inoportuna e invasora. No entanto, a pos-
pressão. Certo dia, recebi uma paciente que dis- sibilidade do acaso ganhou corpo. Apostei, pois,
correu sobre seu tratamento e sintomas25 – con- na casualidade de nosso encontro.
vulsão, ausências, depressão e duas tentativas de
Percebi, em seguida, que a questão do pri-
suicídio –, ressaltando o medo de que as pessoas
vado foi introduzida ao saber que as duas mulhe-
a quem confia seus problemas os divulguem. O
res eram primas e vizinhas, e falavam de suas vi-
pai de S. se suicidara quando ela era adolescente e
das particulares, garantidas pela privacidade da
a mãe – com história psiquiátrica – ameaçava fre-
atividade clínica. Entrava inesperadamente em
qüentemente fazê-lo. Ao final da entrevista, ela
cena a problemática, imbricada e fundadora da
disse que a prima era atendida por mim. A infor-
instituição clínica: a compartimentalização entre
mação muito me surpreendeu: M. era sua prima.
os domínios do público e do privado. Minha im-
Além do parentesco, trabalhavam na mes- plicação com a clínica desnaturalizante conduzia
ma unidade, mas S. estava em licença médica ha- a uma tentativa de desconstrução também dessas
via um ano e dois meses. Perguntei qual o tipo de fronteiras. Por sua vez, tanto M. como S. expu-
relação entre ela e a prima e o que achava de ser nham, intensamente, duas questões que atraves-
atendida por uma profissional que também rece- sam a vida de ambas: o receio de suas vidas par-
bia a prima, já que tinha admitido sua angústia so- ticulares serem devassadas e a vivência da morte
bre possíveis comentários acerca de seus proble- antecipada – uma delas, pela herança do HIV, a
mas. S. afirmou viverem mais ou menos próxi- outra, pela herança psiquiátrica familiar.
mas, mas que não se freqüentavam; para ela, não
A experiência de M. e de S. em uma comuni-
havia problema, pois sabia “que havia uma ética
dade atravessava as suas existências e potencializava
médica”. Eu disse que, da mesma forma que a es-
em seus discursos a preocupação de que seus se-
tava consultando, o faria com relação a M. e, as-
gredos pudessem ser revelados, de que suas vidas
sim que fosse possível, voltaria a contatá-la.
fossem devassadas – invadidas e descobertas –, ao
O encontro com S. produziu surpresa, per-
tornar público o que era vivido como privado. Te-
plexidade. Ela havia me sensibilizado pelas situa-
miam manifestar-se com terceiros, falar de assun-
ções que vivia. Uma turbulência de pensamentos
tos dolorosos e “horríveis”, que lhes pareciam ser
e sentimentos se apossou de mim. Surgiu o te-
exclusivos e próprios de sua existência, sua pes-
mor de que M. se afastasse, pois nossa relação era
soa, ou seja, sua natureza. Natureza em que o
recente e seu vínculo, ainda frágil. A procura de
“devasso”, o “desregrado”, o não aceito social-
atendimento, por parte de S., especificamente a
mente deveria ser confinado como segredo de si
mim, se devia à sua determinação ou ao acaso?
mesmas e em si mesmas.
Teria ela sabido, de alguma forma e por algum
Nesse silenciamento que se duplica, do-
25 Essa paciente foi encaminhada ao ambulatório para psicoterapia
brando-se sobre o si mesmo, enclausura-se a idéia
pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, onde faz tratamento medicamen- da morte vivida antecipadamente, projetada no
toso. Na semana anterior, havia estado no ambulatório e feito uma
entrevista com uma colega, que não pode auxiliá-la por estar concen-
presente. A morte fantasmática não é exclusiva
trada no atendimento infantil. das produções subjetivas em torno da aids; ela se

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potencializa e organiza o espaço de vida, fazendo por que passam é o que decorre do pre-
sua dinâmica. Na situação de M., enganchava-se conceito. É não poder ser apenas um do-
no acontecimento aids, tomando como definitiva ente, é ter que ser estigmatizado, um
a equação morte = aids. Na de S., a problemática “aidético”. É o medo das, muito freqüen-
da morte parecia se dar valendo-se da verticalida- temente, invisíveis pressões sociais (o
pior preconceito nem sempre é a discri-
de suicídio do pai/ameaça da mãe “doente men-
minação direta). É o pânico de não ter
tal” – destino da filha. O suicídio, tema comum às mais vida sexual e afetiva. É a constante
duas primas, falava da desesperança na vida e da presença de pessoas que parecem estar se-
morte anunciada. gurando a alça de seu caixão. É a invisível
A dor e o sofrimento, encerrados no âmbi- rede de opressões criadas pelo círculo fa-
to do privado e remetidos ao campo da natureza, miliar, às vezes por médicos, padres, até
envenenavam a vida, impedidos de conectar-se amigos. Diante disso, a opção mais fre-
com o real social para ganhar formas, outras li- qüente é a clandestinização, um modo de
nhas de expressão e dar passagem à alegria, ao fugir para morrer, já que a morte é a única
forma de vida que a sociedade oferece ao
prazer. O envenenamento e o enfraquecimento
doente. A questão não é, nunca, oferecer
da potência da vida dificultavam a apropriação do
melhores circunstâncias para o doente
sofrimento como produção social. As paisagens morrer em paz. É encontrar junto com
do social, do econômico e do histórico, engan- eles as melhores condições de vida.26
chadas na existência, passavam desapercebidas, ao
largo da vida. No alheamento do coletivo preva- Das marcas visíveis da doença no corpo às
lecia o negativo, o não fazer, o não conhecer, ou invisíveis que exercem pressões e projetam sob o
seja, o não poder, a impotência. Os assuntos co- corpo em vida a morte antecipada, da versão
letivos eram borrados, considerados inatingíveis mortífera naturalizada em torno da enfermidade
e/ou atribuídos ao domínio “do outro”. A força da aids às estratégias positivas de maquinação
da vida em movimento centrípeto se sobrepunha para a vida, Daniel nos remete à necessária e fun-
despoticamente ao centrífugo, enfraquecendo a damental articulação em mão dupla entre as pro-
articulação com o socius e fazendo o sofrimento duções macro e micro. Nessa operação, a versão
– aprisionado na forma de natureza e dissociado mortífera e despolitizada das produções domi-
da conjuntura que o produz – despojar-se de sua nantes dá lugar ao engajamento no real do acon-
dimensão política. tecimento, na ligação com a vida e pela vida. Na
Por mais variadas que sejam as expressões e potência, não mais na impotência/onipotência da
atualizações, a “herança” é uma só: a das produ- morte fantasmática. Na conexão dos aconteci-
ções históricas de uma subjetividade individuada/ mentos, potencializando a vida, cuja processuali-
totalizadora e da morte fantasmática, aqui na fi- dade – efeito micro, modos de constituição do
gura da morte antecipada. Centrada na idéia de real – ganha forma de produção de sentido em
uma natureza própria, íntima, particular, forma uma correlação de forças.
de sofrimento, a morte se precipita no presente, Daniel faz implodir a morte fantasmática
quer do ângulo das produções subjetivas em tor- na aids, desnaturalizando a idéia de imortalidade,
no das heranças familiares, totalizadas na imagem ilusão projetada imaginariamente aos soronegati-
da “doente mental”, quer daquelas que circulam vos para o HIV, e a de morte antecipada, atribuída
em redor da aids, totalizadas na imagem da “aidé- com quase total exclusividade aos portadores do
tica”. vírus. Bradou: “Esse vírus não é mortal, é apenas
um desafio a ser vencido! Mortais somos todos
Cruzamento II
nós!” Coloca, pois, a morte em seu devido lugar
Tenho conhecido muitos doentes. Ho-
mossexuais ou não, o maior sofrimento 26 DANIEL, 1989, p. 26.

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– porque no tempo o acontecimento –, o do li- sociação, M. conclui: “Tenho uma tendência a ‘an-
mite inexpugnável. Assim o faz, abrindo a porta tecipar’ as coisas. Fico imaginando e, às vezes, não
para o mundo e dizendo: “Estou vivo!” Rompe, é nada daquilo!”. O caráter pesado que havia mar-
dessa forma, com outro par naturalizado, engen- cado a sessão desvaneceu-se quando, após essa in-
drado pelos tempos e efetivado em certas práticas tervenção, M. encontrou uma linha de deriva.
clínicas: o das fronteiras demarcadas e bem estabe- Colocava-se aí em cena o tema do destino.
lecidas entre o público e o privado, mundo externo M. começou a perceber que pode imaginar coisas
e interno, falando-nos clara e abertamente de sua sem que elas aconteçam da mesma forma e no
experiência na condição de pessoa com HIV. mesmo lugar. E mais: nada garante que elas irão
No conjunto de pontos de encontro com realmente acontecer. O desmanchamento da idéia
seu pensamento, nos perguntamos: isso que Da- e do sentimento de morte antecipada se processa
niel faz é clínica, ou o que nos propõe em seu dis- agora em direção a outra via, a de que aquilo que
curso específico nos ajuda a ampliar a terapêutica? julgamos ser nosso destino é fruto do exercício de
Recentemente, M. compareceu mais abati- nossa imaginação. A morte imposta e anunciada
da, cansada, queixosa de si mesma, das dores nas recebe mais um golpe e a imagem totalizadora de
pernas, das iniciativas que “deveria” ter tido e não si como “aidética” começa a se descolar, abrindo
teve. Contida e dissimulada, deu a entender do caminhos às diferenças, ao inexplorado, ao “es-
que se trata: o temor do emagrecimento, associa- trangeiro”, ou seja, a outras possibilidades de ser.
do ao avanço da doença. Teme defrontar a neces- A versão do destino na aids como equiva-
sidade de tomar AZT. Estava, naquele dia, mais lente a dor, sofrimento, degradação, desintegra-
desanimada, desesperançada, mas apresentava-se ção do corpo e morte imediata começa a ser rom-
corada e com boa aparência. Auscultava dores e pida para a elaboração de outra linha de experi-
mudanças em seu corpo e culpava-se por não ter mentação: de que, com relação ao destino, como
feito coisas, como também por tê-las feito. Pre- lembra Rosset, só temos como garantia o impre-
dominava o tom pesado e tenso de cobrança so- visível, o acaso do acontecimento. O real é aqui,
bre suas ações, impondo-se o “dever ser” de ou- é agora. É aqui que vivemos “e o melhor lugar do
tro jeito. mundo é aqui. E agora”.
Tentando implementar outro movimento,
investigou nos acontecimentos dos últimos dias POSFÁCIO
o que poderia ter causado o “baixo-astral”. Li-
nhas associativas se apresentaram até que apon- Talvez o mais importante neste momento
tou uma situação perturbadora: havia, recente- não seja descobrir, mas recusar aquilo que
mente, encontrado uma amiga e conversado so- somos. Precisamos imaginar e construir o
bre sua situação de soropositiva. Destacou o aco- que poderemos ser para nos livrarmos
lhimento da amiga, mas algo a perturbou naquele desta sorte de “duplo impasse” político
encontro: em data próxima, a amiga iria visitá-la. constituído pela individualização e pela
totalização simultaneamente perpetradas
M. incomodou-se com a situação, não por ter
pelas modernas estruturas de poder.27
conversado com a amiga, de quem gosta e confia,
mas pelo fato de ela, prontamente, ter dito que Foucault mostra o indivíduo como produ-
iria à sua casa. O temor é de que fale sobre esse ção e produto do tipo de poder e saber instaura-
assunto na presença dos filhos. dos a partir do século XVII e que, sob a força e o
Digo-lhe, então, que, se não há problema efeito da norma e da regulamentação, promove-
na visita da amiga, a não ser pela suposição de se ram, com razoável eficácia no imaginário, o pro-
tocar no assunto na presença das crianças, ela jeto de homogeneizar, igualar as diferenças, me-
bem poderia estar com a amiga sem, no entanto,
abordar a questão. Risonha e surpresa com a as- 27 FOUCAULT, 1995.

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diante as notáveis hierarquizações e desigualda- te, a não ser por artifício de certo pensamento,
des sociais e de poder. Ao falar da construção da em oposição à natureza. Ela é uma invenção ca-
sociedade disciplinar, das noções que nela foram racterística do ser humano, e é exatamente a par-
inventadas, refere-se tanto aos modos de produ- tir dela que se insere a noção de natureza.
ção do real, efeitos micro, de constituição do real, Dessa maneira, por ser a cultura uma
como às formas que ganharam estabilidade num invenção histórica e política, a noção de desejo
cenário marcado pela égide da razão. As produ- tem sido remetida não só à idéia de natureza hu-
ções no campo dos saberes, das sensibilidades fo- mana, como também à da ausência, do negativo,
ram, pouco a pouco, contribuindo para delinear a da busca incessante por encontrar na realidade
face do indivíduo e seus modos dominantes de um objeto alucinado e irredutivelmente perdido.
estar no mundo, nas sociedades moderna e No entanto, exatamente por ser uma invenção,
contemporânea. segundo Deleuze e Guattari, o desejo é produ-
Fundamental, nos parece, tomar na ativida- ção, produção imanente ao desejo, produção de
de clínica a noção de subjetividade com base na coisas novas, de devir em ato. O desejo, assim,
sua produção histórica, desnaturalizando as cate- nada tem a ver com a falta, com a natureza, pois
gorias que a ciência, em seu momento positivista, a natureza é um nada.
tentou impregná-la, das intenções universalistas, Nas mais variadas formas que tenha sido
neutralistas e totalizantes que rondam o pensa- adotada, a idéia de natureza funciona como uma
mento. espécie de “porto seguro”, uma instância cons-
Como afirmam Guattari e Rolnik, a subje- truída historicamente e da qual o homem tem re-
tividade está em permanente circulação nos con- corrido ao se ver diante daquilo que não conse-
juntos sociais e não se esgota nos indivíduos. gue definir – e quando o faz, a definição resulta
Tampouco é sinônimo de personalidade; não é do negativo – e/ou daquilo com que reluta em se
propriedade dos indivíduos, mas vivida por eles defrontar: a dimensão caótica da existência. De
em suas existências particulares, em duas formas: posse da idéia de natureza, qualquer que seja a sua
numa relação de alienação, passividade e opres- configuração no horizonte histórico, o homem
são, num modo naturalizado de vivência das re- vê-se assegurado de um conforto, um aconchego
lações, e numa relação de expressão e de criação, tranqüilizador, mas provisório, tanto quanto ilu-
em que há produções de singularização, proces- sório.
sos de ruptura permitindo a afirmação de outras Cultura e natureza, assim como vida e mor-
maneiras de sentir, perceber, pensar e agir. te, andam, pois, de mãos dadas, numa relação de
Trabalhar o pensamento incluindo a dimen- agonismo, simultaneamente de incitação e de luta,
são da diferença é romper com as idéias de iden- de provocação permanente. Essas duplas, pensa-
tidade de objetos, com a idéia de universais, que, das em sua faceta de oposição, não conseguem
desde o pensamento platônico conecta-se aos sa- disfarçar o golpe de tal artifício ilusório: produ-
beres dos tempos modernos e norteia uma traje- zem de qualquer maneira naturalizações e efeitos
tória afirmativa da noção de indivíduo como uni- políticos nas relações. Efeitos, produtos da ilusão
dade, identidade, totalidade fechada e isolada. É duplicadora do real, tal qual a morte fantasmática
desfazer as dualidades, as polarizações entre pen- se duplica nas figuras simétricas da morte anun-
samento e sentimento, indivíduo e grupo, sujeito ciada, decretada, projetada no presente para os
e objeto, natureza e cultura, mente e corpo, vida soropositivos e doentes de aids, e morte projeta-
e morte, que acompanham o modo hegemônico da para o futuro, no sentido da imortalidade, para
de estar em sociedade. os “outros”, os não infectados pelo HIV. Efeitos
Na história da morte no Ocidente, o ho- naturalizados da epidemia da aids, promotores de
mem a opôs à vida, como a cultura à natureza hu- capturas individualizantes, despotencializando a
mana. A cultura humana não está necessariamen- ação política, uma vez instalada a dupla rede de

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acusação-condenação. Efeitos que, segundo a tri- analista-especialista, e efeitos de aprisionamento a


logia indissociável, contagiosa-incurável-mortal, uma individualidade, uma “identidade”, a do “psi-
servem para encobrir a calamitosa situação da analista”, a do “aidético”, em que as pessoas se re-
saúde pública do País, para esvaziar o problema conhecem e são reconhecidas. Daí a importância
social e político posto em cena pela epidemia, e de, como ensina Foucault, colocar em evidência
para atribuir ao enigma e mistério aquilo da or- as relações de poder, de analisá-las mediante o
dem da concretude dos problemas humanos. confronto de estratégias, das formas de resistên-
Daí a importância, como diz Rosset, de to- cia, de luta.
mar o acontecimento em sua dimensão tempo Não é fácil nem simples conviver com a tra-
real da experiência, de romper com as ilusões gédia instaurada com o advento da aids. Tampou-
acerca da idéia de natureza – porque a natureza é co é fácil defrontar-se com aquilo do que o ho-
um nada – e de fazer implodir a idéia de destino mem foi inventado. Afinal, estamos mergulhados
implacável, inelutável – pois, do destino, a única em nosso tempo. Mas é, exatamente, no exercício
certeza é a da imprevisibilidade do acontecimento. da desnaturalização-em-nós que serão inventadas
Efeitos de assujeitamento a outros, por controle e outras sensibilidades, outras temporalidades, ou-
dependência, como na relação entre paciente e tra história.

Referências Bibliográficas
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Dados da autora
VERA VITAL BRASIL
Curso de especialização em Teorias e Práticas
Psicológicas em Instituições Públicas – Clínica
Transdisciplinar (Universidade Federal
Fluminense); psicóloga clínica do Instituto de
Assistência aos Servidores do Estado do Rio de
Janeiro, membro da Equipe Clínico-Grupal
Tortura Nunca Mais/RJ, membro do Banco de
Horas

Recebimento artigo: 25/jun./02


Consultoria: 8/jul./02 a 30/jul./02
Revisão da autora: 13/ago./02 a 21/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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Aids e Conjugalidade: o
desafio de con(viver)
AIDS AND CONJUGALITY: THE
CHALLENGE OF LIVING TOGETHER
Resumo Desde a sua descoberta, com a detecção do HIV, a aids vem apresentando
inúmeros desafios aos profissionais de saúde na compreensão de suas várias implica-
ções. Diante disso, o presente trabalho visa descrever novas formas de composição
conjugal, como os casais sorodiferentes, e discutir o impacto da aids na conjugalidade.
Para tanto, utiliza como referencial teórico a teoria sistêmica e adota o conceito soro-
diferente em lugar de sorodiscordante, conforme encontrado em literatura francesa,
por esse conceito traduzir mais fielmente as dinâmicas vivenciadas pelos casais que
convivem com a diferença sorológica relacionada ao HIV. O conhecimento cons-
truído aponta para temas comuns à realidade dos casais sorodiferentes, como a rela-
ção com os serviços de saúde, com as famílias de origem e com a soropositividade.
Pode-se ainda destacar que a convivência com a sorodiferença traz impactos para a re-
lação conjugal e os casais desenvolvem estratégias distintas de enfrentamento dessa
realidade. Cabe uma reavaliação da prática apresentada pelos profissionais de saúde,
de modo a se desenvolver um pensamento inclusivo acerca da diferença. Há também
a carência de um espaço de saúde para escuta e atendimento de tais casais, bem como
LARISSA POLEJACK
de atividades específicas que contemplem a realidade apresentada pela sorodiferença.
Projeto Com-Vivência/
Palavras-chave HIV/AIDS – CONJUGALIDADE – CASAIS SORODIFERENTES – Hospital Universitário de
TEORIA SISTÊMICA. Brasília (HUB)
[email protected]

Abstract Since aids was discovered through the detection of HIV, it has presented
countless challenges for the health professionals to understand its several implicati- LIANA FORTUNATO
COSTA
ons. In such respect, the present paper attempts to discuss new kinds of marital com-
Universidade Católica de
position, such as the serodifferent couples, and discuss the impact of aids in conju-
Brasília (UCB)
gality. For such, it uses the Systemic Theory as a theoretical referential and adopts the [email protected]
concept of serodifference, instead of serodiscordance, as found in the French litera-
ture. This concept faithfully translates the dynamics lived by couples with a different
HIV serology. The knowledge which was built points out to themes that are common
to the reality of serodifferent couples, like the relationship with the health services
and the original families and seropositivity. We may also say that the coexistence with
serodifference impacts the couple’s relationship and they develop different strategies
to face such reality. The health professionals’ practice should be reevaluated in order
to develop an inclusive thought of the difference. It is noticed the lack of a space for
the listening and the attendance of these couples in health services, and the need of
specific activities that are able to contemplate the reality presented by serodifference.

Keywords HIV/AIDS – CONJUGALITY – SERODIFFERENT COUPLES – SYSTEMIC


THEORY.

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O amor faz comunicar e une aquilo que, de outro modo, nunca se encon-
traria; a comunicação faz amar aquilo que, de outro modo, nunca se
conheceria.
EDGAR MORIN1

INTRODUÇÃO

N
o início dos anos 80, começaram a ser identificados os
primeiros casos de síndrome da imunodeficiência ad-
quirida (aids) e, após duas décadas da identificação do
vírus da imunodeficiência humana (HIV) como causa-
dor da doença, deparamo-nos ainda com desafios rela-
tivos à compreensão dos vários aspectos suscitados por
essa epidemia.
Um deles é a sua própria disseminação. O HIV espa-
lhou-se rapidamente por todo o planeta, sem estabelecendo distinção de
raça, sexo ou classe econômica. Se, no começo, a aids estava relacionada
aos chamados grupos de risco (homossexuais, usuários de drogas injetá-
veis e profissionais do sexo), atualmente a disseminação do HIV ocorre
em todos os segmentos da população.
As tendências epidemiológicas, hoje em dia, apontam para a hete-
rossexualização, pauperização, interiorização, juvenilização e feminização
da pandemia.2 Isso significa que cada vez mais mulheres jovens, heteros-
sexuais, de níveis educacional e econômico baixos e de pequenos centros
urbanos estão mais vulneráveis à contaminação pelo HIV e, conseqüente-
mente, podem estar aumentando a incidência de transmissão vertical do
HIV sem o acompanhamento de pré-natal, parto e pós-parto adequados.
Acredita-se que a tendência de diminuição dos óbitos por aids no Brasil
coincide com a adoção da terapia combinada de anti-retrovirais (o coquetel)
e a sua distribuição universal e gratuita pela rede pública de saúde, garantida
pelo Ministério da Saúde. Entretanto, cabe ressaltar que “a tendência de que-
da da mortalidade não é homogênea, variando segundo áreas geográficas, se-
xo, grau de escolaridade e categoria de exposição”,3 e tal declínio é percebido
mais claramente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do País.
Diante dessa situação epidemiológica, como deixar de perguntar
sobre o impacto da aids na sociedade, nas relações familiares e conjugais
e no indivíduo?

AIDS, DOENÇA DO OUTRO?


A contaminação pelo HIV pode acarretar uma série de conseqüên-
cias sociais e individuais aos seus portadores, por exemplo, o preconceito,

1 Citado por VASCONCELOS, 1995, Prefácio.


2 Isso segundo dados do Ministério da Saúde, em 2000.
3 DHALIA, BARREIRA & CASTILHO, 2000, p. 10.

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relacionado com a forma de contaminação e com que significa compreender a aids como doença
o medo de ser contaminado, podendo gerar iso- crônica? O que muda na realidade das pessoas que
lamento social; os problemas com a família, que convivem com HIV/aids? Qual o impacto do tra-
pode apoiar ou não o paciente; os problemas com tamento e da disponibilização universal de medi-
o trabalho, sendo favorecido pela aposentaria camentos aos casais que lidam com essa realidade?
precoce; e ainda as angústias do próprio paciente, Apesar de as tendências apontarem para
como a solidão, a culpa por ter se contaminado e uma heterossexualização, uma “familiarização”
o medo da morte.4 Acrescentaríamos a esses fa- da pandemia, assistimos ainda a campanhas de
tores o impacto nos projetos de vida, na auto-es- prevenção e serviços de assistência com o foco
tima, nos relacionamentos afetivos e nos papéis apenas no indivíduo, no soropositivo, como se,
sociais desempenhados pelo indivíduo. junto com o diagnóstico de HIV positivo, o sujei-
Paiva e Alonso afirmam que só recentemen- to passasse a ser assexuado ou tivesse excluído de
te começamos a neutralizar o efeito pernicioso seu projeto de vida as relações afetivas ou o pró-
dos primeiros trabalhos científicos que origina- prio desejo de maternidade. Uma abordagem
ram a idéia de a aids ser uma doença do “outro”, centrada somente no indivíduo restringe muito a
dos “grupos de risco”, divididos entre vítimas compreensão das diversas e complexas questões
(hemofílicos) e culpados (homossexuais, profis- levantadas pela aids, particularmente em seus as-
sionais do sexo e usuários de drogas). “Falava-se pectos relacionados à dinâmica conjugal.
muito mais em doente do que na doença. (...) a Recorramos, então, à abordagem sistêmica
construção social da aids em nosso mundo (...) é da terapia familiar para algumas reflexões. Um
baseada na idéia de morte e promiscuidade”.5 dos seus conceitos mais importantes é que o
Hoje sabemos que a aids é um problema de to- membro sintomático da família aparece como re-
dos; ela deixa de ser uma questão individual para presentante circunstancial de alguma disfunção
assumir um local de destaque nas famílias, na so- no sistema familiar, o qual, por sua vez, funciona
ciedade e na política, em virtude do seu impacto em inter-relação (globalidade). Nesse sentido,
e da sua dimensão. qualquer mudança em um dos seus membros afeta
É importante, segundo Stover e Way,6 con- todo o sistema. Somando a esse conceito funda-
siderar as transformações dramáticas na distri- mental a idéia de circularidade trazida pela ciberné-
buição de idade em diferentes populações, em de- tica, ou seja, de que não existe uma causalidade li-
corrência da aids e de suas conseqüências, pois, ao near do problema, de que não há o conceito de cul-
contrário de outras doenças, o HIV atinge usual- pa ou causa, percebe-se a família como um sistema
mente adultos em idade produtiva e reprodutiva, dinâmico que se retroalimenta e procura manter o
gerando um impacto na expectativa de vida em vá- equilíbrio interno ou a homeostase.7 Desse modo,
rios países. Somados a isso, há os sérios efeitos psi- o sintoma é visto como denunciador do que ocor-
cossociais e econômicos no indivíduo e na família. re no sistema, e não como causa do problema. En-
Por causa do avanço nas pesquisas e de maio- tretanto, se pensarmos a sociedade como um sis-
res recursos de tratamentos, compreende-se que tema ampliado, qual seria o papel da aids? Seria
a aids caminha no sentido de tornar-se uma do- causa ou sintoma de problemas?
ença crônica, com significativo aumento na ex- Acreditamos que a aids cumpre os dois pa-
pectativa e na qualidade de vida do portador do péis. É causa de problemas no sentido das mu-
HIV/aids, alterando aos poucos a realidade dos
danças e adaptações que traz à vida do portador
casais e das famílias e trazendo novos desafios de HIV (e às suas relações significativas), entre
para a sua compreensão e o seu enfrentamento. O elas rotinas de tratamento, exames, remédios,
4
projeto de vida etc. Por outro lado, ela exerce o
LEGO, 1996, p. 59.
5 PAIVA & ALONSO, 1992, p. 8.
6 STOVER & WAY, 1998. 7 CALIL, 1987.

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papel de sintoma, na medida em que denuncia a Nesse sentido, cabe refletir sobre as rela-
necessidade de falar sobre tabus, como sexo, in- ções conjugais em tempos de aids. Como os ca-
fidelidade, drogas, morte, medo, preconceito, se- sais lidam com essa realidade? Que situações per-
xualidade, vulnerabilidades, políticas sociais etc., meiam os relacionamentos? Analisemos separa-
colocando-nos diante de nossas próprias ques- damente casais previamente constituídos e casais
tões, dificuldades e necessidades de mudança para que se formaram após o diagnóstico do HIV, por
o enfrentamento da nova realidade. A aids não é acreditar que há singularidades.
mais “doença do outro”; faz parte da realidade da
sociedade, da realidade de cada um e da relação O IMPACTO DO HIV/AIDS EM CASAIS
com o outro. PREVIAMENTE CONSTITUÍDOS
Em vista desse panorama, e de nossa expe- No Hospital Universitário de Brasília, mui-
riência no atendimento a portadores de HIV/aids e tas vezes deparamos casais em busca de aconse-
seus familiares, acreditamos que várias reflexões lhamento para a realização do teste anti-HIV e, na
merecem ser aprofundadas, mas nos deteremos em maioria dos casos, existe uma desconfiança de
um dos aspectos que chamam a atenção: o caráter contaminação por parte de um dos parceiros ou
crônico da aids e seu impacto e do HIV nas relações o diagnóstico já foi feito na enfermaria, durante a
conjugais, pelo prisma da abordagem sistêmica. internação hospitalar.
O diagnóstico de uma doença crônica é uma
AIDS COMO DOENÇA CRÔNICA crise vital, significativa, para as famílias, que ten-
Entende-se por doença crônica “qualquer dem a experenciar perdas e mudanças estruturais.9
estado patológico que apresente uma ou mais das Apesar dos avanços rumo à cronificação da
seguintes características: que seja permanente, aids, junto com o diagnóstico, surge uma série de
que deixe incapacidade residual, que produza al- medos e receios, e, talvez, uma das primeiras ques-
terações patológicas não reversíveis, que requeira tões levantadas é: “Mas como isso aconteceu co-
reabilitação ou que necessite períodos longos de nosco?”. Nesse momento, às vezes, o casal pode
observação, controle e cuidados (...). O indivíduo deparar problemas como a desconfiança, o receio
é considerado paciente crônico se for portador de da infidelidade e o segredo. Recordemos a história
uma doença incurável”.8 Assim, embora as pes- de um casal que recebeu nosso acompanhamento.
quisas avancem na busca da cura da aids, o seu P., 35 anos, é casado com M., 34 anos; eles têm
tratamento ainda é o de uma doença crônica, re- um casal de filhos de 14 e 10 anos. P. descobriu-se
querendo um investimento do paciente e de suas infectado pelo HIV em uma internação por várias
redes de apoio para melhor adesão a ele e enfren- doenças oportunistas (tuberculose, neurotoxoplas-
tamento da doença. mose), caracterizando-o como doente de aids. Du-
Outro ponto importante relativo à cronici- rante todo o período de internação (40 dias), M. es-
dade da aids é a possibilidade de desconstrução da teve ao lado do marido e, num primeiro momento,
idéia de morte iminente, ou seja, ao receber o reagiu à revelação do diagnóstico, demonstrando
diagnóstico o portador sabe que há tratamento. grande preocupação com seu estado de saúde e re-
Para os profissionais que lidam com essa cliente- ceio quanto às formas de contaminação. Informa-
la, há também uma mudança, uma vez que o foco da dos riscos, concordou em realizar teste anti-
deixa de ser a morte (preparar o paciente, os fa- HIV, cujo resultado foi negativo.
miliares e a própria equipe para o futuro certo), Aguardou-se a janela imunológica (tempo
passando a ser a vida (trabalhar questões como o necessário, desde a última situação de risco, para
tratamento, projeto de vida, sexualidade, afetivi- detecção dos anticorpos reagentes ao HIV) e repe-
dade, trabalho, relacionamentos etc.). tiu-se o exame, confirmando o resultado anterior.

8 ZOZAYA, 1995, apud CAMON, 1996. 9 McDANIEL, 1994.

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Após alguns meses, P. solicitou atendimento de ca- direto das opiniões sociais estigmatizantes do pa-
sal, queixando-se de que M. não queria mais ter re- ciente infectado. Entretanto, o casal convive com
lações sexuais com ele, por medo de contaminar- mais um evento estressor e, ao mesmo tempo
se. O casal foi atendido e, além do medo de con- que o segredo pode ter um caráter protetor, tam-
taminar-se, M. demonstrou estar com muita raiva bém é capaz de gerar um afastamento progressi-
do marido, porque ele a havia traído. Argumentava vo da família, na medida em que há uma divisão
que, enquanto ele não lhe contasse em detalhes o entre os que sabem e os que não sabem.
que ocorrera, ela não aceitaria ter relações. Tais questões necessitam ser colocadas e
Um segundo caso é o de A., 56 anos, con- discutidas entre os casais e, para tanto, precisa ha-
taminada pelo marido. Ela relata não se importar ver espaço de conversação e diálogo na relação.
tanto de ter sido contaminada; o que mais lhe dói Nesse momento, muitas vezes o profissional é
é saber que o esposo a traiu com outra pessoa e, importante no auxílio para a criação conjunta
para ela, maior traição ainda tinha sido a mentira. desse espaço e no comprometimento com a ética.
Esses são exemplos ilustrativos do que tem Mais uma vez ressalta-se aqui a importância da vi-
sido por nós observado. Às vezes, os casais trazem são sistêmica para a compreensão da relação e das
como queixa principal a traição, e não a contamina- questões nela implicadas. Cabe dizer também
ção pelo HIV. A descoberta da traição, segundo que o profissional passa a ser mais um membro
Dicks, é um dos fatores com maior impacto nega- desse sistema, deixando, assim, o papel de obser-
tivo no casamento, pois abala a confiança e traz a vador neutro e externo à situação.
sensação de “retirada do que estava garantido”.10
Seria, portanto, interpretada pelo outro como uma
violência, gerando dor e rompendo com as idealiza- CASAIS SORODIFERENTES: O DESAFIO
ções e a confiança na relação. DE VIVER E CON(VIVER) COM O HIV
A concepção da monogamia pode trazer A mudança na epidemia e na possibilidade
uma falsa sensação de segurança, colocada por de sua cronificação aponta também a tendência
terra quando do diagnóstico de HIV positivo. In- em se encontrar cada vez mais a formação de ca-
dependentemente da forma de contaminação do sais com sorologias diferentes para HIV/aids. O
HIV, surge no casal a fantasia da traição, que não termo casal sorodiscordante ou discordante é uti-
precisa ser necessariamente sexual, e sim a traição lizado na literatura para designar casais heteros-
da confiança, que leva à pergunta: “Por que não sexuais ou homossexuais, nos quais um dos par-
me contou?!”.11 O segredo do diagnóstico para o ceiros é portador do HIV/aids e o outro não.13
parceiro pode vir acompanhado do medo da Sherr defende que a utilização do termo so-
recriminação e do abandono, uma vez que o uso rodiscordante traz já implícita a idéia de conflito,
de drogas ou a atividade sexual extraconjugal são antagonismo, desarmonia e disputa.14 Para Delor,
freqüentemente mantidos em sigilo em relação esse termo não é capaz de abarcar o contexto re-
ao parceiro, tornando a revelação da condição de lacional, o projeto conjunto estabelecido na rela-
portador do vírus duplamente difícil.12 ção amorosa e as dinâmicas operantes na relação
Outra situação é quando o casal faz a opção conjugal.15 Conseqüentemente, consideramos
de manter segredo sobre o diagnóstico para as fa- mais apropriado o termo casais sorodiferentes,
mílias de origem ou mesmo para os filhos. Im- como propõe esse último autor, por trazer a idéia
ber-Black salienta que o segredo na aids possui de diferença, diversidade e a possibilidade de
natureza singular, em vista dos múltiplos níveis compor em conjunto. Este texto, então, adota o
em que ocorre a sua guarda, pois seria um reflexo
13 REMIEN et al., 1995; SHERR, 1993; KENNEDY et al., 1993;
10 DICKS, 1967, p. 96. WHITE et al., 1997; e VAN DER STRATEN et al., 1998.
11 BAYÉS, 1995. 14 SHERR, 1993.
12 IMBER-BLACK, 1994. 15 DELOR, 1999, p. 86.

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termo sorodiferente referindo-se aos casais que trazer a público questões presentes na convivên-
convivem com a diferença sorológica para o HIV. cia com o HIV, sendo pioneiro no falar sobre a so-
Sherr questiona a identificação de casais so- rodiscordância. A seguir, um trecho dessa carta,
rodiferentes como grupo específico, uma vez que elucidativa das questões apontadas pela literatura:
eles não têm propósitos comuns, não se auto- “Um dos maiores problemas da aids é o sexo. Ter
identificam ou reconhecem-se como tal. Sua úni- relações com todos os cuidados ou não ter? To-
ca característica comum é o fato de que um dos dos os cuidados são suficientes ou não se deve
parceiros não se infectou pelo HIV em um uni- correr riscos com a pessoa amada? Passamos por
verso de pessoas convivendo com o HIV e em um todas as fases, desde o sexo com uma ou duas ca-
universo ainda maior de casais. Cabe ainda desta- misinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a
car a importância de pesquisas com essa popula- segurança total ao mínimo risco”.18
ção, dado que os casais concordantes já foram, Surgem ainda situações singulares, como a
em algum momento de suas histórias, discordan- de B., 32 anos, esposa de J., 38 anos, soropositivo.
tes, e a compreensão dessa dinâmica pode auxiliar J. foi usuário de drogas injetáveis e diagnosticado
na prevenção da transmissão do próprio HIV. durante internação hospitalar. B. foi encaminhada
Um dos maiores desafios é compreender para testagem e o resultado foi negativo. A reação
por que alguns parceiros, apesar de terem tido dela chamou a atenção: começou a chorar, mos-
contato com o vírus, não se contaminaram. Vários trando-se muito triste por não ver sentido no fato
fatores podem estar associados à possibilidade de do seu parceiro estar doente e ela não. Segundo
contaminação por relações sexuais desprotegidas, suas palavras: “Quando casei, prometi a Deus que
por exemplo, quantidade e características do vírus, viveria com ele na alegria e na tristeza, na saúde e
circunstâncias e tempo de exposição a ele, presen- na doença, e não acho justo J. ter de passar por isso
ça de lesões em áreas de exposição ao risco, pre- sozinho. Por que só ele ficou doente?!”.
sença do sangue nas relações, estágio da infecção Outros casais se estabelecem com o conhe-
do parceiro e variáveis individuais ainda pouco co- cimento prévio do diagnóstico. De acordo com
nhecidas. Tais riscos podem ser acrescidos se exis- Delor, o anúncio da soropositividade cria condi-
tem associadas a eles outras formas de exposição ções de uma sorodiscordância potencial, poden-
ao vírus, como o compartilhamento de seringas.16 do gerar inicialmente no casal o medo do aban-
Com base no diagnóstico de soropositivi- dono e preocupações relativas à condição soroló-
dade, os casais precisam desenvolver estratégias gica.19 Delor acrescenta que, a partir do instante
de enfrentamento do risco sexual para procurar de confirmação da sorologia negativa, o casal pas-
diminuir a tensão entre a preocupação com uma sa por um processo de adaptação à diferença,
possível contaminação e o desejo de permanecer num clima de tensão e emoção, no qual precisam
sexualmente ativos. Tais estratégias compreen- lidar com resistências, interesses e negociações
dem desde a negação e racionalização (acreditar- acerca da relação e dos riscos de contaminação
se imunes ao vírus) até o estabelecimento de re- pelo HIV. Nesse momento, são avaliados os cri-
gras de comportamento muito rígidas (utilizar térios de escolha do parceiro.
mais que um preservativo, luvas e roupas durante Andolfi, Angelo e Saccu20 afirmam que a
a relação sexual), podendo mesmo chegar à abs- escolha do parceiro baseia-se num jogo de vazios
tinência total.17 e cheios, que permitem, justamente por meio de
Um exemplo é o relato do sociólogo Her- sua interação dinâmica, o relacionamento prosse-
bert Souza, o Betinho, em carta à esposa sorone- guir e evoluir, ou interromper-se. Nesse sentido,
gativa e lida após seu falecimento. Betinho desta-
cou-se como um dos primeiros soropositivos a 18 Uma Carta para Maria foi escrita por Herbert de Souza, o Betinho,
para a sua mulher Maria, e lida pelo ator Jonas Bloch, durante cerimô-
nia de um ano da morte do sociólogo, no Centro Cultural do Banco
16 KENNEDY et al.,1993; FOLEY et al., 1994; KAMENGA et al., do Brasil (CCBB/RJ).
1991; SHERR, 1993; REMIEN et al., 1995. 19 DELOR, 1999.
17 VAN DER STRATEN et al., 1998 20 ANDOLFI et al., 1993.

136 impulso nº 32
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é preciso conhecer os elementos que admitem re- CONCLUSÃO


conhecer o futuro parceiro, dando origem à ten- Não se pretende aqui, com essas reflexões,
tativa de se aproximar dele, e os elementos que,
esgotar o assunto. Muito pelo contrário, a inten-
feita a escolha, contribuem para manter o vínculo
e parecem ligar-se, pelo menos em parte, ao pro- ção é refletir sobre o impacto da aids não só na
blema de senso de pertencimento e separação. sociedade e nos casais, mas também no dia-a-dia,
Esses autores defendem também que, quanto propondo-se, assim, a criação de um espaço de
mais uma relação tiver de preencher exigências conversação não apenas entre os casais, mas tam-
fundamentais de proteção e segurança, tanto bém interno aos serviços de saúde e entre os seus
mais forte será a ligação desenvolvida e tanto profissionais. De modo nós, profissionais, lida-
maior a ameaça potencial introduzida por qual- mos com essas questões? O que a aids nos mo-
quer situação que a coloque em discussão. biliza como pessoas? Quais as nossas concepções
Esse é, sem dúvida, um dos aspectos que e os nossos valores e qual a influência deles em
mais chamam a atenção em nossa prática, tornan- nossos atendimentos, ao nos reconhecermos
do-se, portanto, objeto de estudo no mestrado, como co-participantes desse sistema, co-constru-
na Universidade de Brasília. Quando os critérios
tores dessa realidade, não mais como observado-
de escolha perpassam pela admiração de caracte-
rísticas pessoais, afinidades, encaixando-se nesse res neutros?
“jogo de vazios e cheios” descrito por Andolfi, o A aids cumpre ainda o papel de denúncia
HIV aparece como pano de fundo na relação, e das questões do sistema terapêutico e só conse-
não como seu foco principal. guiremos lidar melhor com os seus desafios se
Em alguns casos, ocorre a participação ativa nos propusermos a falar de nossos medos, a dis-
de parceiros soronegativos no acompanhamento cutir valores e reconhecer as vulnerabilidades.
e tratamento de seus parceiros. Não apenas no Assim, é essencial ao profissional de saúde não
sentido de dar suporte ao outro, como também ser apenas um transmissor de informações
de adotar uma estratégia de melhor enfrentamen- técnicas, mas estar disponível para criar contextos
to dessa realidade. Por outro lado, percebe-se, em
de diálogo, de trocas e de construção conjunta de
entrevistas com casais, que alguns deles estabele-
formas de compreensão e enfrentamento das
ceram claramente um contrato não-verbal de ne-
gação da soropositividade. questões suscitadas pela aids.
Num desses casos, o parceiro soronegativo Poderemos auxiliar melhor as pessoas por-
afirmava: “Escolhemos viver como um casal nor- tadoras do HIV e os casais reconhecendo o caráter
mal, então, não falamos nisso”. Se, por um lado, relacional da aids. Poderemos ajudar essas pessoas
esse contrato possibilita um alívio das tensões ge- a lidar com suas questões e melhorar a qualidade
radas pela soropositividade, por outro, dificulta o de vida do portador do HIV/aids quando nos pro-
compartilhamento de receios, medos, angústias pusermos a uma maior reflexão sobre nossas prá-
ou mesmo um projeto comum da relação. Em ca- ticas, valores e sentimentos, voltando o olhar para
sais em que há esse contrato de negação com re- a dinâmica desse sistema do qual fazemos parte:
lação ao HIV, o impacto gerado por qualquer piora
a humanidade. Lembrando a afirmação de Eliza-
do estado de saúde do parceiro é imenso para a
relação, trazendo à tona vários conflitos, e todos beth Küber-Ross: “A aids representa uma ameaça
os sentimentos, que não tiveram espaço na rela- peculiar para a humanidade, mas, ao contrário das
ção, surgem com mais força. Talvez esse seja um guerras, é uma batalha que vem de dentro (...).
dos maiores desafios encontrados pelos terapeu- Será que vamos optar pelo ódio e pela discrimi-
tas. Saber reconhecer o momento da relação e, ao nação, ou teremos a coragem de escolher o amor
mesmo tempo, poder propiciar a criação de um es- e a dedicação?”.21
paço de comunicação e de compartilhamento, ten-
do sempre em vista o compromisso ético. 21 KÜBER-ROSS, 1998, p. 263.

impulso nº 32 137
0000_Impulso_32.book Page 138 Thursday, September 18, 2003 9:52 AM

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Dados das autoras


LARISSA POLEJACK
Mestre em Psicologia Clínica pela UnB,
formação em Psicodrama pela Associação
Brasiliense de Psicodrama e Sociodrama (ABP),

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psicóloga do Projeto Com-Vivência/HUB


e assessora técnica da Unidade de Treinamento da CN-DST/Aids
LIANA FORTUNATO COSTA
Doutora em Psicologia Clínica/USP, professora da UCB,
terapeuta familiar e psicodramatista

Recebimento: 15/maio/02
Consultoria: 29/maio/02 a 29/jul./02
Revisão das autoras: 13/ago./02 a 19/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

impulso nº 32 139
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Reflexões sobre a
Contratransferência dos
Interventores e dos
Voluntários que Trabalham
com Pessoas Vivendo
com HIV ou Aids
REFLECTIONS ON THE
COUNTERTRANSFERENCE OF CARETAKERS
AND THE VOLUNTEERS WHO WORK
WITH PEOPLE LIVING WITH HIV OR AIDS
Resumo Este artigo1 aborda os aspectos contratransferenciais dos interventores e dos
voluntários que trabalham com pessoas vivendo com HIV/aids. Num primeiro mo-
mento, são estabelecidos vínculos entre as reações contratransferenciais e as emoções
suscitadoras dos temas ligados à doença e à morte, ao envolvimento e às perdas, assim
como à imagem de si como interventor. Em seguida, discutem-se os fatores ativos na
relação, como as motivações e o quadro de ação, a idade e o nível de experiência. A
preocupação com a qualidade dos cuidados e serviços e com o bem-estar dos inter-
ventores leva a propor elementos de ação relevantes no domínio da psicologia, no que
se refere à compreensão das angústias relacionadas à aids. ROSEMARY FELTHAM
Unidade Hospitalar de
Palavras-chave CONTRATRANSFERÊNCIA – INTERVENTORES – VOLUNTÁRIOS – Pesquisa, Ensino e Cuidados
HIV/AIDS.
sobre Aids (UHREES), Hôtel-
Dieu, Montreal (Canadá)
Abstract The article approaches the countertransferencial aspects of caretakers and
volunteers who work with people living with HIV or aids. In a first moment, we es-
SYLVIE SAVARD
tablish the bonds between the countertransferencial reactions and the emotions that
Rede FRQS – Aids e Doenças
raise themes linked to disease and death, to involvement and loss, as well as to the ca-
Infecciosas do Quebec
retakers’ personal image. Then we discuss the active factors present in the relati-
(Canadá)
onship, as well as the motivations and the frame of action, the age and the experience
[email protected]
level. The concern with the service quality and with the caretakers’ well being leads us
to suggest important action elements in the domain of Psychology, regarding the un-
derstanding of the anxieties linked to aids.

Keywords COUNTERTRANSFERENCE – CARETAKERS – VOLUNTEERS – HIV/AIDS.

1 1 Versão publicada pela CN-DST/Aids, do Ministério da Saúde, no Boletim da Rede de Direitos Humanos
em HIV/Aids, ano 4, edição especial, 2000. Tradução do francês: Cristina Câmara. Artigo publicado origi-
nalmente na Revue québécoise de psychologie, 17 (3): 1996 (Réflexions sur le contre-transfert des interve-
nants et des bénévoles oeuvrant auprès des personnes vivant avec le VIH ou le sida).
N.T.: Em geral, no Brasil, tem-se denominado intervenção a ação de pessoas que desenvolvem trabalhos de
prevenção à aids junto à população-alvo (distribuição de panfletos informativos em boates e bares, palestras
em postos de saúde, escolas etc.). As pessoas que se ocupam da intervenção passam a ser denominadas e se
auto-denominam de interventores. Entretanto, esse termo pode ser interpretado sob a conotação pejorativa
de “ingerência” ou “interrupção”. Para o presente artigo, a tradução é literal. Em francês, o termo interve-
nant significa “aquele que intervém num processo, que modifica seu curso”. Nesse sentido, os interventores
podem ser pessoas que trabalham numa organização não-governamental ou no serviço público.

impulso nº 32 141
0000_Impulso_32.book Page 142 Thursday, September 18, 2003 9:52 AM

A
aids como objeto de construção social possui uma carga
emotiva importante. Ela nos confronta com o que há de
mais profundo em nós. Sua natureza pandêmica lhe con-
fere um caráter que abre um espaço ao medo do quem
será o próximo e do talvez eu. Na medida em que o es-
pectro da doença atinge o grupo ao qual pertencemos,
ele se torna uma épée de Damoclès.2 Quando atinge vá-
rios grupos-alvo, o medo aumenta. Encontramo-nos
aqui no domínio da experiência subjetiva e, mediante o reconhecimento
do possível, ligado particularmente às atividades sexuais, instala-se a con-
tratransferência.3 A identificação do possível, no sentido mais amplo,
provoca um questionamento sobre tudo. O possível é a morte, a nossa.
Este artigo discute a experiência dos interventores e dos voluntá-
rios que trabalham com pessoas vivendo com HIV ou aids, assim como
o impacto de suas emoções e reações sobre o trabalho. Primeiramente,
ressalta algumas considerações gerais ligadas ao contexto no qual os cui-
dados e serviços são oferecidos às pessoas vivendo com HIV/aids. Em se-
gundo lugar, aborda os aspectos contratransferenciais relevados nos es-
tudos de observação sobre interventores.4 Na terceira parte, fala dos fa-
tores ativos no processo terapêutico: a motivação, o quadro de ação, a
idade e a experiência. Não faz mais do que mencionar os elementos as-
sociados à toxicomania, às mulheres, às crianças e aos grupos etnocultu-
rais, porque eles merecem ser objetos de análises precisas e distintas. A
soropositividade do interventor é abordada quando pertinente. Final-
mente, propõe ações para formar, envolver e ajudar os interventores e os
voluntários.

SERVIÇOS OFERECIDOS ÀS PESSOAS VIVENDO


COM HIV/AIDS: CONTEXTO ATUAL
A identificação da aids na América do Norte data de 1981 e a do
HIV como o vírus causador da aids, de 1983.5 Passaram-se 15 anos e, mal-
grado as campanhas de informação e de educação, a aids continua alta-
mente carregada de emoções e significações negativas, associadas a sexua-
lidade, drogas, incurabilidade e morte. Sendo essa doença carregada de
emoções para os indivíduos atingidos, afetados em todas as esferas de
suas vidas, observar as experiências as quais eles vêm a se integrar é uma
necessidade óbvia. São inúmeras as perdas e a estigmatização social que,
vinculadas à rejeição resultante da soropositividade, provocam freqüen-

2 N.T.: a expressão significa um perigo eminente e constante. A alusão mitológica pode ser encontrada em
Horácio e Cícero, mas só figura como expressão no começo do século XIX, na obra “A Comédia do
Diabo”, de Balzac, in: Romanos e Contos Filosóficos (1837). Cf. REY, A. & CHANTREAU, S. Diction-
naire des Expressions et Locutions. Les usuels du Robert (poche). Paris, 1997.
3 O termo contratransferência é empregado aqui no sentido mais amplo da terapia, e não no estritamente
psicanalítico.
4 As palavras interventores e voluntários designam, ao mesmo tempo, o feminino e o masculino, visando a
tornar o texto mais leve.
5 Cf. OLIVIER & THOMAS, 1995.

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0000_Impulso_32.book Page 143 Thursday, September 18, 2003 9:52 AM

temente um isolamento, aumentando os sofri- como uma repetição de “múltiplos lutos”. De fa-
mentos ligados à doença propriamente dita.6 to, como para outras clientelas, a qualidade dos
No curso da evolução da doença, a pessoa cuidados oferecidos importa, na medida em que é
vivendo com HIV/aids é acompanhada por uma necessária a intervenção de recursos especializa-
equipe multidisciplinar composta de diferentes dos ou de um mínimo de indivíduos formados
membros do corpo médico ou enfermeiro, ou- para acolher as pessoas vivendo com HIV/aids.
tros profissionais (psicólogo, trabalhador social, No quadro de cortes orçamentários e da
nutricionista, farmacêutico, ergoterapeuta etc.) e mudança ambulatorial da rede de saúde em Que-
voluntários e ajudantes naturais (família, próxi- bec, é preciso questionar o futuro dos recursos
mos). Isso pode se dar nos meios hospitalares, especializados e como eles poderão conter a
comunitários e no Centro Local de Serviço Co- grande demanda de clientes apresentando a mes-
munitário (CLSC).7 Ela está sempre em contato ma situação. Ressalta-se o impacto sobre o real e
com os interventores, mesmo no período assin- o imaginário daqueles que cuidam, referente à
tomático e, especialmente, quando o seu estado carga emotiva que terá de ser assumida se eles não
imunitário debilitado leva às complicações que forem preparados e inseridos adequadamente.
necessitam de múltiplas intervenções especializa- Não se deve negligenciar essa realidade numa ci-
das.8 A pessoa vivendo com HIV/aids recebe cui- dade como Montreal, onde há certos recursos es-
dados e serviços de interventores que conhecem pecializados que, em razão das mudanças na rede,
seu estatuto imunitário, sem que ela tenha esco- são colocados diante do aumento cotidiano de
lhido revelá-lo, estando exposta a todo um con- clientes a serem atendidos.
junto de atitudes e reações.
Os interventores da saúde e os voluntários O IMPACTO SOBRE OS INTERVENTORES:
têm seus próprios conflitos e não estão livres de EMOÇÕES E REAÇÕES
preconceitos, nem são polpados das angústias in- CONTRATRANSFERENCIAIS
dividuais e coletivas ligadas ao espectro do HIV e No domínio da psicoterapia é sabido, há
da aids.9 De maneira voluntária ou involuntária, muito tempo, que a contratransferência10 exerce
estão suscetíveis de comunicar suas questões in- papel fundamental no processo e no resultado do
dividuais à pessoa infectada pelo HIV e, assim, vir tratamento. Em outros domínios de intervenções
a expressar preconceitos sociais ou angústias biopsicossociais ou voluntárias, a dimensão con-
existenciais particulares, que não fazem mais do tratransferencial não é considerada com tanta im-
que aumentar o peso da doença para as pessoas portância, mas não deve ser menosprezada. Por
por eles atendidas. exemplo, quando uma enfermeira ou um fisiote-
Parece ainda mais pertinente considerar a rapeuta precisa administrar um tratamento a uma
experiência vivida pelo interventor no contexto pessoa soropositiva ou com aids, o contato vai
atual, em que o número de clientes está em cres- muito além do nível técnico. A administração do
cimento e o de interventores é limitado. Essa si- tratamento pode ser feita na mais exata precisão,
tuação leva o interventor a viver a experiência do mas a atitude é capaz de refletir amplamente as
trabalho com pessoas vivendo com HIV/aids emoções conscientes e inconscientes experimen-
tadas pelo interventor no contato com a pessoa
6 Cf. CHESNEY & FOLKMAN, 1994; VEILLEUX, 1991; e
soropositiva ou com aids. Tais emoções podem
ZEGANS et al., 1994.
7 N.T.: os CLSCs de Quebec datam de 1972, são locais de implantação ser ressentidas, interpretadas e integradas pela
de serviços sociais e de saúde e contam com a participação da comuni- pessoa tratada e causar impacto sobre a significa-
dade e do setor público, com vistas ao desenvolvimento comunitário e
à prevenção social. ção atribuída por ela à sua doença. Os interven-
8 Várias pessoas vivendo com HIV estão há dez ou 15 anos sem sintomas
tores, assim, acabam influenciando a qualidade
indicando infecções oportunistas. Estima-se, atualmente, um período de
pelo menos seis anos entre a infecção e a aparição da doença.
9 Cf. WINIARSKI, 1991. 10 Cf. LAPLANCHE & PONTALIS, 1967.

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dos cuidados e serviços oferecidos aos pacientes há mais ou menos dez anos, em inúmeros artigos,
nos diversos domínios da saúde. freqüentemente nas áreas das ciências da enfer-
Outro fator da qualidade dos cuidados aos magem15 e do trabalho social.16 O domínio dos
pacientes, uma razão a mais no interesse pelos in- médicos e residentes em medicina é também re-
terventores, reside no fato de suas atitudes e presentado,17 além daqueles da psicologia e da
emoções modificarem suas experiências do es- psicoterapia.18 Vários textos tratam de grupos de
tresse vivido no trabalho. Mesmo os fatores con- interventores na saúde.19 Mesmo pertinentes, es-
textuais tendo um papel importante no fenôme- ses estudos consistem freqüentemente em refle-
no da perda de qualidade profissional,11 também xões clínicas ou de relações de pesquisa por ques-
a experiência do estresse é influenciada pela per- tionários. Exceto o de Bennett et al.20 – compara-
cepção dos acontecimentos estressantes.12 Pode- tivo da experiência das enfermeiras que trabalham
se, então, esperar do interventor atitudes ou rea- com aids com as que atuam na oncologia –, ne-
ções emocionais conflituosas com relação a cer- nhum outro utiliza o termo grupo controle.
tos pacientes, experimentando mais estresse no No estudo de Bennett et al., os resultados
trabalho e mostrando-se mais suscetível a desen- demonstram que as enfermeiras da oncologia so-
volver sintomas de esgotamento profissional. friam de estresse profissional com mais freqüên-
Esse esgotamento demonstra que, havendo cia, ao passo que aquelas trabalhando com aids o
interesse pela qualidade dos cuidados oferecidos, sentiam com mais intensidade. Segundo esses au-
é preciso também se interessar por seus realizado- tores, a pouca idade, o nível mais elevado de de-
res. A relação é evidente quando considerados os pendência dos pacientes de aids e o investimento
resultados de Gardener e Hall13 sobre o esgota- emocional das enfermeiras seriam fatores expli-
mento estar associado a carência afetiva, tolerân- cativos das diferenças entre os dois grupos.
cia reduzida pela frustração e alto nível de com-
Tendo por base os estudos realizados até
portamentos de risco. São fatores que colocam o
interventor e o cliente numa relação difícil, quan- hoje, é difícil concluir se os seus resultados estão
do não perigosa. Considerar o esgotamento pro- ligados unicamente à especificidade da clientela
HIV/aids, e não a outros fatores, como a morta-
fissional é essencial, pois a qualidade dos cuidados
às pessoas vivendo com HIV/aids e a segurança lidade incontornável dos pacientes ou a rigidez da
dos interventores arriscam ser comprometidas. carga de trabalho em geral. Reconhecendo os li-
No contexto de cortes orçamentários na mites metodológicos, os autores descrevem
rede de saúde de Quebec, em que já há poucos re- constatações comuns, às quais é preciso oferecer
cursos especializados, a fragilidade dos interven- uma atenção particular. Eles acreditam que traba-
tores que trabalham com pessoas vivendo com lhar com pessoas atingidas pelo HIV/aids suscita,
HIV/aids é mais importante ainda. Parece que o aos que cuidam delas, emoções normalmente in-
número de dificuldades aumenta na proporção do tensas e complexas, manifestadas por reações às
número de pacientes.14 Além do mais, paralela-
15 Cf. BENNETT et al., 1991; DRIEDGER & COX, 1991;
mente à complexidade da doença, as pessoas afli- GALLOP et al., 1992; HUERTA & ODDI, 1992; SERVELLEN &
tas requerem cuidados múltiplos, complexos e, às LEAKE, 1994; SCHERER et al., 1989; e TAGGART et al., 1992.
16 Cf. DUNKEL & HATFIELD, 1986; EGAN, 1993; MACKS,
vezes, difíceis de prever e controlar, só aumentan- 1988; OKTAY, 1992; e ROBERTS et al., 1992.
do o estresse vivido pelos interventores. 17 Cf. HAYWARD & WEISSFELD, 1993; e SHAPIRO et al., 1992.
18 Cf. FELDMAN, 1993; FISHMAN, 1994, pp. 497-516; FORS-
O impacto psicológico sobre os interven- TEIN, 1994, pp. 185-202; GABRIEL, 1991; JOURDAN-
tores no domínio do HIV/aids tem sido tratado LONESCU & LA ROBERTIE, 1989; STEVENS & MUSKIN,
1987; e WINIARSKI, 1991.
19 Cf. HALPERN et al., 1993; KRASNICK et al., 1990; LANDAU-
11 Cf. MASLACH, 1982. STANTON & CLEMENTS, 1993; MCKUSICK, 1988; PLECK et
12 Cf. LAZARUS & FOLKMAN, 1984. al., 1988; SHERNOFF & SPRINGER, 1992; SILVERMAN, 1993;
13 Cf. GARDENER & HALL, 1981. SWICK, 1993; TAERK et al., 1993; e ZEGANS et al., 1994.
14 Cf. SERVELLEN & LEAKE, 1994. 20 Cf. BENNETT et al., 1991.

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vezes negativas aos seus pacientes. Essas reações Como apresentado no quadro 1, o medo, a
vão até a expressão da recusa em atendê-los.21 angústia, a vulnerabilidade e a tristeza encon-
A classificação dos estudos sobre as emoções tram-se ao lado da decepção, da cólera e da raiva.
e as reações contratransferenciais dos interventores A culpabilidade, a impotência, a perda de contro-
que trabalham com pessoas vivendo com HIV/aids le, a desesperança e os sentimentos de futilidade,
permite produzir aqui um balanço das emoções en- de incompetência e de fracasso são também
contradas nos interventores (quadro 1). enunciados. Não se pode fazer a correspondência
entre cada emoção e uma dimensão particular,
EMOÇÕES EXPRESSAS pois a expressão das emoções e a associação às
suas origens são únicas, pessoais e complexas.
As emoções expressas nos textos consulta-
dos são, sobretudo, reações humanas do interven-
tor sentidas em intensidades variáveis, com todos
DIMENSÕES REFERIDAS
os tipos de clientela. A expressão das emoções Do balanço das experiências relacionadas
pode se referir aos domínios gerais ou específicos. como conflituosas, três grandes dimensões estão
presentes na intervenção junto às pessoas viven-
do com HIV/aids. Parece que essas dimensões são
Quadro 1. Síntese das emoções na intervenção junto às também onipresentes na experiência dessas pes-
pessoas vivendo com HIV ou aids. soas, de acordo com o conceito de processo para-
Emoções Expressas lelo (parallel processing), apresentado por Winiar-
Medo Desesperança ski,22 em que o interventor integra a experiência
Angústia Futilidade de maneira paralela ao cliente.
Vulnerabilidade Impotência O quadro 2 traz as três dimensões em tor-
no dos temas doença e morte, relações humanas e
Tristeza Perda de controle
a imagem de si. Primeiramente, tudo o que se re-
Frustração Incompetência fere a doença e morte se expressa por preocupa-
Cólera Fracasso ções ligadas a contágio, manifestações da doença
Raiva Culpabilidade propriamente dita, sofrimento físico e psicológi-
Decepção
co, deterioração física e dependência. De fato,
essa dimensão se organiza em torno do processo
da morte do outro e, por associação, em torno do
Quadro 2. Síntese das dimensões referidas na intervenção interventor como indivíduo.
junto às pessoas vivendo com HIV ou aids. A segunda dimensão se aproxima muito da
Dimensões Referidas primeira, pois a doença e a morte evocam parti-
Doença e morte Relações humanas cularmente a qualidade das relações humanas. Os
Contágio Envolvimento temas encontrados foram envolvimento, as perdas
e abandono. Produz-se nos interventores uma
Doença Perdas
atenção potencial de traumatismos e conflitos re-
Deterioração física Abandono lacionados às dinâmicas pessoais e familiares liga-
Sofrimento Sexualidade das à separação. O interventor como testemunha
Dependência Prazer e os interditos do que vive o outro é levado a se perguntar sobre
Própria morte Morte do outro
as atividades vinculadas à aids enquanto tal, nota-
damente o modo da infecção, o que leva à sexua-
Imagem de si lidade ou à utilização de drogas. O trabalho fan-
Competência profissional Potência pessoal tasioso do interventor se organiza, então, em tor-
no da relação dele com o prazer e os interditos23
e, por extensão, com a marginalidade.

21 Cf. HUERTA & ODDI, 1992; e SHAPIRO et al., 1992. 22 WINIARSKI, 1991.

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A última dimensão – a imagem de si – diz REAÇÕES CONTRATRANSFERENCIAIS


respeito ao papel do interventor e, mais especifi- As reações contratransferenciais organi-
camente, à sua expectativa diante do enfrenta- zam-se em torno de duas tendências enumeradas
mento do outro. A competência profissional re- no quadro 3. Se as angústias não são identificadas
laciona-se com o saber agir numa situação precisa. e integradas, podem cristalizar-se num pólo ou
Isso pode tomar formas diferentes segundo os alternar-se entre dois pólos – o distanciamento
grupos de interventores. Quando se trata de tomar ou a perda face à pessoa vivendo com HIV/aids.
atitudes concretas, por exemplo, administrar trata- O distanciamento pode tomar várias for-
mentos a um paciente em fase paliativa, a atitude mas: evitar a pessoa, fugir e racionalizar constitu-
pode ser sentida como inútil ou fútil se o interven- em um primeiro grupo. Evitar é uma maneira de
tor visa a um objetivo puramente curativo. Ela não se aproximar do outro, por exemplo, atrasan-
pode traduzir-se num sentimento de impotência do as respostas aos chamados, cancelando um en-
ou incompetência. contro ou insistindo sobre o fato de o outro po-
Ainda que concreta, a situação é passível de der cancelar seus encontros se desejar. A fuga é o
aplicar-se a todo interventor, qualquer que seja seu começo do processo de luto que chega ao inter-
papel. Na psicologia, significa a importância dada ventor: ele deixa o outro por antecipação, pois,
às intervenções com vistas ao encargo ativo das si- no seu entender, ele já está morto. Os sentimen-
tuações versus aquelas focando o luto e a integra- tos expressos pelo interventor diante da dificul-
ção das perdas. Para todas, trata-se de ser teste- dade de continuar a agir junto a alguém na fase
munha da irreversibilidade da situação do outro, avançada da doença podem também ser raciona-
mas não é por menos que o papel do interventor lizados ao se afirmar que não há mais nada a fazer.
visa à diminuição do sofrimento físico e psicoló- A racionalização pode também se manifestar na
gico. Quanto mais ele é um indivíduo com neces- culpabilização do outro: “É sua culpa, pois ele fez
isso ou aquilo”. A impotência e a pena podem
sidade de se sentir potente na vida, mais a inter-
ainda estar presentes nesse tipo de racionalização.
venção em tal situação é confrontante para ele. Ele
Um segundo grupo de reações contratrans-
vive os sentimentos menos intensos de impotên-
ferenciais organiza-se em torno do medo do ou-
cia se a potência relativa é um elemento integrado.
tro, inscrevendo-se na rejeição, na homofobia, na
hostilidade e na culpabilização do outro. Essas úl-
Quadro 3. Síntese das reações contratransferenciais na in- timas são as expressões da rejeição do indivíduo,
tervenção junto às pessoas vivendo com HIV ou ou do grupo a que pertence, pelo interventor, que
aids. procura evitar reconhecer seus próprios senti-
Reações Contratransferenciais mentos. Elas podem ser uma projeção do mal so-
Distanciamento Perda da distância bre o outro. O interventor oculta seus sentimen-
Evitar o outro Superidentificação tos pela rejeição. O pólo oposto do distancia-
Fuga Culpabilização de si mento o leva a uma reação de maior proximidade.
A perda da distância pode adotar formas diferen-
Racionalização Minimização ou negação do
risco pessoal tes, notadamente a superidentificação, havendo
Medo do outro
confusão entre si e o outro, chegando o interven-
Rejeição tor até a tomar o lugar do outro. Nesta situação,
Homofobia o interventor ocupa um lugar maior na vida do
Hostilidade paciente, não o dirige mais para outros recursos,
Culpabilização do outro decide no seu lugar ou intervém nas situações que
não lhe concernem.
23 Cf. STEVENS & MUNSKIN, 1987; e JOURDAN-IONESCU & No extremo, tal reação pode levar o inter-
LA ROBERTIE, 1989. ventor a se culpabilizar parcial ou totalmente por

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sua incapacidade de gerir os elementos incontorná- FATORES QUE INFLUENCIAM AS


veis da evolução da doença. Num nível menos in- AÇÕES E AS REAÇÕES JUNTO ÀS
tenso, a identificação pode levá-lo a simpatizar, no PESSOAS VIVENDO COM HIV OU AIDS
lugar de empatizar. Ele pode viver emoções mais in- Colocamos como premissa às reações con-
tensas com essa pessoa do que com a maioria de tratransferenciais a definição do quadro de inter-
seus pacientes. Ou também se preocupar com ela venção como elemento estruturante na qualidade
fora dos limites habituais. Mesmo que presente a de uma intervenção. Entretanto, sentimos, desde
todos, num certo momento e com intensidades va- já, que as motivações dos interventores ou dos
riáveis, a persistência dessas reações constitui um voluntários muitas vezes influenciam os mecanis-
entrave ao trabalho com o paciente em questão e mos de identificação no quadro de ação e os fa-
com os outros. tores ligados às reações contratransferenciais.
Outra manifestação da perda da distância é Partimos, antes de mais nada, de dois grandes ei-
a minimização ou a negação do risco para si. Na xos de análise que permitem identificar mais ni-
vida pessoal do interventor, a defesa se apresenta tidamente as reações contratransferenciais: pri-
pela perda da proteção e pela existência dos riscos meiro, as motivações para trabalhar com pessoas
sexuais ou outros. No nível profissional, certos vivendo com HIV/aids e, segundo, o quadro de
interventores podem se expor a riscos, não ob- ação dos interventores remunerados e dos volun-
servando as medidas de precaução universais no tários. As características individuais do interven-
trabalho cotidiano. Expressão da perda do distan- tor, como idade e experiência, constituem um
ciamento, esse mecanismo é capaz também de terceiro eixo de análise. Por fim, estão as diferen-
constituir uma defesa do interventor contra a fo- ças nas características ligadas aos grupos aos quais
bia da infecção ou a culpabilidade dos sobrevi- pertencem o interventor e a pessoa vivendo com
ventes da aids. Esse mecanismo toca igualmente HIV/aids.
no sentimento de potência, pois trata-se de uma O interesse dos interventores em trabalhar
dificuldade em discernir o que está sob controle com pessoas vivendo com HIV/aids se polariza
do que não está. entre os não interessados em trabalhar com essa
Para certos interventores identificados com clientela e os que têm uma atração por ela. Para os
primeiros, a não-vontade se exprime num conti-
os grupos mais afetados pela aids, em particular os
nuum, indo da simples expressão da hesitação em
homens gays, apenas o fato de não ser também
trabalhar com essa clientela até a afirmação do di-
soropositivos pode levá-los a se perceber como
reito de recusar atendê-la.24 No segundo grupo,
sobreviventes e conduzi-los à culpabilidade por
dos interventores interessados, a vontade se ma-
estar vivos, ao passo que tantos outros estão mor-
nifesta num continuum, desde a aquiescência à
tos. Para atenuar essa confrontação, a angústia
demanda até a expressão ativa de uma vontade de
pode conduzi-los a se defender, seja por um gran-
intervir junto à clientela.
de distanciamento seja pela perda da distância na
Não dispomos de nenhum estudo explica-
relação terapêutica.
tivo das motivações dos interventores para traba-
Em suma, as emoções identificadas pelos lhar com HIV/aids, mas propomos uma reflexão
autores dos textos consultados são normais, em dois níveis. Primeiro, todo interventor tem
quando um indivíduo testemunha o processo vi- inicialmente definida certa motivação para ajudar
vido por uma pessoa doente. Essas emoções es- os outros. O desejo de ajudar, em geral, dá con-
tão ligadas às dimensões da doença e da morte, tinuidade a um papel familiar prestativo. Esteja o
do envolvimento e das perdas, assim como do de- interventor consciente ou não, essa motivação se
sejo de potência. As reações contratransferenciais faz presente na escolha do papel profissional.
seriam tentativas de gerir a angústia associada a
tais dimensões. 24 Cf. HUERTA & ODDI, 1992; e SHAPIRO et al., 1992.

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A opção por trabalhar com pessoas vivendo atividades não tenham objetivo psicoterapêutico,
com HIV/aids representa um segundo nível de não resta dúvida de que é preciso se interessar por
motivação. Pode-se interpretar a escolha do in- suas motivações, pois elas influenciam a qualida-
terventor como atração por uma clientela especí- de dos serviços oferecidos e até mesmo o próprio
fica referida pela necessidade de aproximar a bem-estar dos atendidos
angústia. Para os interventores soropositivos, pa- Tradicionalmente, convencionou-se que os
rece existir a tentativa de domar e integrar as per- voluntários são guiados por um desejo de
das e a deterioração antecipadas à evolução da do- altruísmo e uma vontade de generosidade com os
ença. Para os interventores com uma pessoa pró- menos favorecidos. As estruturas de apoio desses
xima soropositiva, ela seria uma tentativa de in- indivíduos estão ou não associadas a fundamen-
tegrar a angústia ligada à doença e à morte de um tos religiosos. Ainda que potencialmente presen-
próximo. Para os outros, uma tentativa de con- te, o altruísmo não é mais considerado o único fa-
trolar a angústia associada às situações intensas tor na motivação da ajuda mútua. As valorizações
ou extremas da doença, da morte ou de outros suplementares são de várias ordens, internas ou
traumatismos e perdas. Para todos, a angústia externas, concretas ou psicológicas.25 Os concei-
pode provir do passado ou do futuro antecipado. tos de motivações extrínsecas e intrínsecas são ge-
Neste sentido, é possível que a escolha de ralmente admitidos. Como o sublinham Gartner
trabalhar com essa clientela constitua uma repe- e Riessman, e também Schram,26 existem dife-
tição de angústias passadas ou um controle sobre rentes motivações. As distinções organizam-se
as angústias antecipadas, conscientes ou não. A em torno do pertencimento e da identificação de-
recusa em trabalhar com HIV/aids pode também correntes dos tipos de grupos ou organismos.
estar associada às angústias ligadas à morte ou a Efetivamente, pode-se distinguir dois tipos
outros traumatismos e perdas. Logo, é primordial de organizações segundo suas modalidades de
o interesse sobre essa recusa e suas razões subja- funcionamento: as de ajuda mútua entre pares e as
centes, sem interpretá-la como um simples pre- de serviço à comunidade. Indivíduos engajados
conceito. Os preconceitos expressam uma falta como voluntários nas organizações de ajuda mú-
de conhecimento, mas também a evocação de tua entre pares identificam-se com a clientela e
angústias individuais profundas. Nesse caso, há o partilham suas condições gerais ou suas proble-
desejo de não se aproximar da angústia para não máticas específicas.27 Nota-se ainda que, com fre-
sofrer. Não seria, então, justificável impor ao in- qüência, os voluntários são pessoas soropositivas
terventor trabalhar com essa clientela sem prepa- ou com aids.28 As organizações de ajuda mútua
rá-lo e ajudá-lo, pois não há como saber o que a entre pares funcionam geralmente segundo uma
escolha representa para ele, nem os seus mecanis- gestão participativa horizontal.
mos de defesa para compor com a angústia sus- Já as de serviço à comunidade possuem nor-
citada. malmente uma gestão vertical e recrutam volun-
tários que se percebem diferentes dos clientes aos
MOTIVAÇÕES DOS VOLUNTÁRIOS quais atendem. Os voluntários inscrevem-se
Em Quebec, como em toda a América do numa démarche mais tradicional de serviços de
Norte, a disseminação da aids gerou um movi- cuidados de saúde. Entretanto, os dois grupos de
mento da comunidade e das organizações comu- voluntários são similares no que se refere ao pri-
nitárias cujos membros foram atingidos. A estru- meiro nível de motivação, a expressão do
tura dessas organizações é de voluntariado e,
25 Cf. WALSTER et al., 1978.
mesmo que a coordenação dos voluntários seja, 26 Cf. GARTNER & RIESSMAN, 1977; e SCHRAM, 1985.
em geral, efetuada por pessoal remunerado, o 27 Cf. GARTNER & RIESSMAN, 1977.
28 Certas organizações compõem-se de 50% de pessoas soropositivas
apoio cotidiano das pessoas vivendo com HIV/ ou com aids e inúmeras delas fazem a discriminação positiva para os
aids é realizado pelos primeiros. Embora as suas empregados remunerados.

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altruísmo, realmente uma motivação extrínseca, seqüência dos tratamentos médicos. Realmente,
pois consagrada pelo reconhecimento social exte- o interventor deve ser capaz de entender as pos-
rior, mesmo não se limitando a ele. No caso par- sibilidades reais associadas aos tratamentos ofere-
ticular dos grupos de ajuda mútua entre pares, a cidos. Com a chegada dos novos medicamentos,
motivação interna dos voluntários está ligada à ex- fornecidos em combinação anti-retroviral (AZT,
periência comum à das pessoas que ajudam e são 3TC, Saquinavir), as possibilidades de tratamento
identificadas como pares. A motivação intrínseca mudam constantemente, exigindo atualização per-
é um elemento central de suas próprias démarches. manente. As esperanças suscitando a chegada de
O fato de que as motivações dos indivíduos novas alternativas têm, às vezes, impactos maio-
sejam diferentes segundo o tipo de organizações res na démarche terapêutica. A importância de es-
nas quais eles intervêm gera a necessidade de de- tar com os conhecimentos em dia é fundamental
finir claramente o seu papel, assim como os limi- para se distinguir as possibilidades realistas das
tes da intervenção. A compreensão sobre como o fantasiosas, que provêm da esperança do cliente
indivíduo define seu projeto de ajuda mútua e ou do desejo de potência do terapeuta.
suas motivações pode ajudar os responsáveis das Se existe um quadro formal determinante
organizações e os encarregados de envolver os dos papéis e limites da ação cotidiana dos interven-
voluntários a determinar a ação do interventor. A tores, a situação se apresenta de maneira diferente
validação das motivações dos voluntários permite aos voluntários. A experiência sobre o campo de-
verificar se o quadro da ação é coerente para to- monstra que os voluntários são formados e envol-
dos, tornando-se um elemento primordial no vidos de modo variável, conforme a organização à
apoio, pois decide a ação. qual pertencem. Para as razões estruturais da orga-
nização e da formação, os papéis dos voluntários
O QUADRO DA INTERVENÇÃO não são sempre claramente enunciados. Os peri-
A primeira motivação do interventor está gos de um quadro de ação mal definido situam-se
ligada ao desejo de ajudar ao outro. Esse desejo nas dificuldades de os voluntários identificarem
pode ser dirigido, canalizado e, se absorvido, pos- até aonde podem chegar na sua intervenção. Em-
sibilita ao interventor efetuar um trabalho muitas bora animado por um grande desejo de ajudar, o
vezes terapêutico para seu cliente e satisfatório voluntário mal instruído pode fazer gestos que ve-
para si mesmo. Ao contrário, se essa vontade é nham a enfraquecer ou impedir a autonomia da
mal absorvida, o interventor demonstra-se susce- pessoa assistida. Os laços estabelecidos entre os
tível a fraquejar. A noção da perda da qualidade meios institucionais, comunitários e as estruturas
profissional relaciona-se estreitamente à capacida- intermediárias (a CLSC, por exemplo) criam um lu-
de de definir e respeitar um quadro terapêutico, gar comum que suscita uma melhor definição dos
sobretudo quando a escolha do trabalho repre- papéis de cada um, com tendência ao reconheci-
senta a priori um investimento emotivo maior. mento da contribuição dos voluntários.
Para os interventores com trabalho psicote-
rapêutico, o quadro é definido por seu papel pro- IDADE E EXPERIÊNCIA
fissional. É importante estar sensível ao fato de DOS INTERVENTORES
que esse quadro pode ser flexível segundo o esta-
Os escritos sobre o limite profissional dos
do físico do cliente, uma situação de fadiga extre-
interventores que trabalham com pessoas vivendo
ma ou reações aos medicamentos. Entretanto, o
com HIV/aids destacam os efeitos da idade e da ex-
interventor deve ficar atento e compreender se as
periência dos primeiros. Estudos sobre enfermei-
suas reações contratransferenciais influenciam as
ros(as),29 trabalhadores sociais30 e interventores
modificações associadas ao quadro terapêutico.
Da mesma maneira, o quadro pode ser per- 29 Cf. DRIEDGER & COX, 1991; BENNETT et al., 1991; e SERVE-
turbado pelos elementos ligados às escolhas e à LLEN & LEAKE, 1994.

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hospitalares mistos31 trazem referências à idade jo- PROPOSIÇÕES PARA A FORMAÇÃO E O


vem dos interventores como um elemento propí- ENVOLVIMENTO DOS INTERVENTORES
cio à fragilidade profissional, ou mesmo à inexpe- E DOS VOLUNTÁRIOS
riência. Outros fatores vinculados à fragilidade A primeira intenção aqui foi demonstrar a
profissional dos trabalhadores sociais são a perce- relevância de assegurar às pessoas vivendo com
pção da perda de autonomia32 e o sentimento de HIV/aids a qualidade dos cuidados que elas exi-
incapacidade de efetuar o trabalho.33 gem. Destacou-se a importância da relação entre
as emoções e reações expressas inconsciente e
CARACTERÍSTICAS DA PESSOA conscientemente sobre a qualidade dos cuidados
VIVENDO COM HIV OU AIDS e serviços. Propôs-se várias pistas de ações para a
Tudo o que foi enunciado anteriormente formação e o envolvimento dos interventores e
refere-se ao interventor. Entretanto, seu papel o dos voluntários, segundo os eixos apresentados
coloca em relação com um outro, ou seja, com a na parte precedente. Antes de tudo, toda prepa-
pessoa vivendo com HIV/aids. Certas caracterís- ração deve ter por base um conhecimento míni-
ticas dessa pessoa constituem, também, elemen- mo sobre os modos de transmissão do HIV, a evo-
tos que se articulam. Efetivamente, os fatores lução da doença, as medidas de precaução univer-
culturais considerados num sentido amplo – liga- sais e as informações referentes a cultura, etnici-
dos a etnicidade, orientação sexual (bissexualida- dade, nível socioeconômico, sexo, orientação
de, transsexualidade, heterossexualidade, homos- sexual e cultura sexual.
sexualidade) e nível socioeconômico – represen- No nível psicológico, é essencial preparar o
tam influências importantes sobre a relação entre interventor com base na avaliação de suas
o interventor e a pessoa por ele assistida. angústias e medos, assim como suas resistências
Reunimos a essa lista as especificidades das em virtude de experiências passadas, presentes e
mulheres com ou sem filhos, das crianças ou dos antecipadas. Trata-se de examinar os dois níveis
homens com crianças ou que desejam tê-las. de motivação discutidos anteriormente, ou seja,
Apesar de não ter abordado tais elementos no aquele gerador do desejo de ser interventor e
presente artigo, acreditamos que eles merecem aquele causador do interesse em trabalhar com
uma análise aprofundada. Gostaríamos de frisar, uma clientela atingida pela aids. Assim, pode ser
para os fins desta discussão, que não restam dú- interessante utilizar um instrumento de medida
vidas de que todos esses componentes podem nas motivações dos voluntários dispostos a tra-
suscitar conflitos particulares para os intervento- balhar com pessoas atingidas pela aids. Inicial-
res. Se eles não possuem conhecimento das espe- mente, é possível ter como medida o instrumen-
cificidades e características da clientela, nem to desenvolvido por Schondel et al.34
consciência dos seus conflitos interiores, esses No que diz respeito ao quadro de interven-
elementos podem perturbar ou comprometer a ção, cabe definir as responsabilidades e os limites
qualidade da intervenção. Ao contrário, quando do interventor de acordo com o papel profissio-
possuem bons conhecimentos e têm claros os li- nal ou voluntário e a missão do estabelecimento
mites e medos, são capazes de maior lucidez e de ou da organização. Isso implica o conhecimento
implementar uma nova dinâmica ao trabalho. das responsabilidades e tarefas de cada um e o en-
Isso lhes permitirá retirar beneficios pessoais do gajamento claro ao código de deontologia. A
fato de ajudar e oferecer uma melhor qualidade existência de um quadro na ação voluntária deve
de ajuda. ser suficientemente fluida para permitir a discus-
são dos parâmetros abertos às compreensões fle-
30 Cf. OKTAY, 1992; e EGAN, 1993.
31
xíveis do papel de cada um. As situações excep-
Cf. KRASNICK et al., 1990.
32 Cf. OKTAY, 1992.
33 Cf. EGAN, 1993. 34 Cf. Social Work in Health Care, 17(2), pp. 53-71, 1992.

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cionais precisam ser avaliadas em equipe, a fim de integrante da experiência do indivíduo, logo, do
se verificar se as modificações do quadro relevam interventor ou do voluntário. O trabalho com
ou não as reações contratransferenciais. pessoas vivendo com HIV/aids pode acentuar a
A preparação do interventor para trabalhar angústia e levar a reações contratransferenciais
com indivíduos pertencentes a grupos com dife- dos interventores engajados numa relação de aju-
renças culturais deve se apoiar na reflexão sobre da. É na ótica da tomada de consciência das rea-
seus valores pessoais, de modo a fazer com que ele ções e de seu impacto, tanto sobre o interventor
identifique crenças e resistências ligadas às diferen- quanto sobre a pessoa assistida, que propomos
ças. Quando as emoções, os valores e as resistên- algumas pistas para a reflexão e a ação. Quanto ao
cias estão claramente identificados, e os interven- psicólogo, ele pode ajudar os interventores e os
tores têm a ocasião de exprimi-los e integrá-los, a
voluntários a identificar as reações contratransfe-
qualidade do contato é enriquecida, pois a carga
renciais e a integrar a angústia inerente ao apoio
emotiva associada ao conflito é abandonada.
às pessoas vivendo com HIV/aids. Assim, o as-
Uma boa preparação deve ser feita constan-
pecto compassional pode ocupar o seu lugar.
temente e atribuída atenção particular aos inter-
ventores jovens e aos com pouca experiência, de Um questionamento surge de nossa análise
modo a prevenir a fragilidade profissional das quanto à aplicação das considerações enunciadas
pessoas particularmente sensíveis. Quando o vo- nos meios que apresentam certas particularida-
luntário ou o interventor adquire experiência, des. Os meios em que há poucos recursos, ou
mudam sua motivação e suas emoções e se adap- mesmo poucos recursos especializados (áreas ru-
tam os seus mecanismos de defesa. Nessa medi- rais ou isoladas geograficamente), e os meios
da, deve-se reconhecer e validar os mecanismos com circulação limitada, tanto para os interven-
de defesa dos interventores e dos voluntários tores quanto para os clientes (cárceres e centros
para sensibilizá-los aos sadios e flexíveis. O apoio de desintoxicação), ilustram bem o problema do
dos interventores e dos voluntários precisa, evi- isolamento dos interventores.
dentemente, incluir a reflexão contínua das espe- Essa constatação leva a reafirmar a impor-
cificidades dos diferentes grupos de clientelas. tância de se ocupar de cada interventor ou volun-
Várias escolhas são possíveis quanto à forma tário que atende pessoas vivendo com HIV/aids e
tomada pelos encontros de preparação, formação e
assegurar-lhe uma verdadeira integração da expe-
apoio. Eles são individuais ou em grupo, assim
riência ligada à proximidade da morte. Essa inte-
como efetuados como apoio moral de um inter-
gração dá aos indivíduos a possibilidade de atingir
ventor ou de um voluntário experiente. As formas
e modalidades devem ser flexíveis e adaptadas ao a maturação individual. Numa ótica mais ampla,
meio. Considerando a formação, os conhecimen- se permitimos aos grupos de indivíduos chegar a
tos e a capacidade para operar no mundo das emo- tal estágio, favorecemos também uma maturação
ções, os psicólogos oferecem recursos privilegia- em escala coletiva.
dos para ajudar os interventores e os voluntários Concluindo, somente por intermédio de
no trabalho com pessoas vivendo com HIV/aids. uma preocupação em face da experiência indivi-
dual da realidade do HIV e da aids é que chegare-
CONCLUSÕES mos a oferecer às pessoas tomadas por essa do-
Considera-se a priori que a angústia associa- ença uma melhor qualidade dos cuidados, dos
da aos conflitos individuais ou coletivos é parte serviços e de vida.

impulso nº 32 151
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Dados das autoras


ROSEMARY FELTHAM
Psicóloga (Ph.D.) da Unidade Hospitalar de
Pesquisa, Ensino e Cuidados sobre Aids
(UHREES) no Hôtel-Dieu, Montreal/Canadá.
Trabalha também em clínica privada.

SYLVIE SAVARD
Psicóloga (M.Ps.) atualmente é a coordenadora de Pesquisa do
Institut Nationale de Santé Publique (Unité de
Recherche en Hémovigilance) – Ministère de la
Santé et des Services Sociales (Québec/Canadá).
Trabalha também em clínica privada.

Recebimento artigo: 25/jun./02


Consultoria: 1.o/jul./02 a 14/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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A Transmissão Dolosa
do HIV-Aids: relatos na
imprensa brasileira
THE CRIMINAL TRANSMISSION OF HIV-AIDS:
ACCOUNTS FROM THE BRAZILIAN PRESS
Resumo O objetivo deste ensaio1 é analisar um dos aspectos mais delicados e polê-
micos decorrentes da epidemia da aids: a suposta transmissão intencional do HIV por
pessoas portadoras dessa síndrome. Com base em meia centena de notícias divulgadas
na imprensa nacional, discutimos a utilização do sangue com HIV como arma para a
consecução de atos delituosos, a contaminação sexual proposital, a transmissão do
HIV por usuários de drogas e as opiniões e a reação dos donos do poder em face dessa
problemática. Conclui-se que, no mais das vezes, as acusações de transmissão dolosa
do HIV registradas na mídia não passam de vil calúnia contra uma minoria social
cruelmente estigmatizada. O escopo deste artigo é auxiliar legisladores, entidades go-
vernamentais e organizações não-governamentais (ONGs) a encontrar soluções mais
justas e adequadas para enfrentar as preocupantes e dramáticas situações aqui relata-
das, garantindo a todos, independentemente da situação sorológica, o respeito a seus LUIZ MOTT
direitos humanos e à plena cidadania. Universidade Federal
da Bahia e
Palavras-chave AIDS – TRANSMISSÃO DOLOSA – DISCRIMINAÇÃO. Grupo Gay da Bahia
[email protected]
Abstract The aim of this essay is to analyze one of the most delicate and controversial
aspects of the aids epidemic at the current moment: the supposed intentional trans-
mission of the HIV virus by carriers of this syndrome. Based on reports published in
the national press, we discuss the use of HIV blood as a weapon for the perpetration
of criminal acts, intentional sexual contamination, the transmission of HIV by drug
users, and the opinions and reactions of governmental power regarding this problem.
We conclude that in most cases the accusations of willful transmission of HIV regis-
tered in the media are nothing else than despicable slander directed against a cruelly
stigmatized social minority. The intention of this essay is to assist legislators, gover-
nmental entities, and non-governmental organizations in finding more just and ap-
propriate solutions to deal with the troubling and dramatic situations mentioned he-
re, guaranteeing to all people, despite their HIV status, security, respect for their hu-
man rights, and full citizenship.

Keywords AIDS –CRIMINAL TRANSMISSION – DISCRIMINATION.

1Este ensaio foi escrito especialmente para ser apresentado na reunião da Comissão Nacional de Aids,
do Ministério da Saúde, em 26 de maio de 1999. Baseia-se em notícias de jornal conservadas no Arquivo
do Grupo Gay da Bahia/Centro Baiano Anti-Aids. A digitação dessas notícias foi realizada por Aroldo
Assunção.

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A única finalidade da ciência é aliviar a miséria da existência humana.


BRECHT

´
INTRODUÇÃO

E
antiga, na história da humanidade, a acusação, verdadeira
ou não, de doentes que tentaram e/ou efetivamente con-
seguiram contaminar pessoas sadias com sua própria en-
fermidade. Desde priscas eras, os leprosos são acusados
desse crime: no filme Veridiana, Buñuel mostra um han-
seniano esfregando secretamente suas chagas na pia de
água benta de uma igreja espanhola, com a intenção de
contaminar os fiéis. No Brasil, no período colonial e até
nos finais do século XIX, há registro de tribos indígenas inteiras, no Rio
de Janeiro, Santa Catarina e Bahia, contaminadas com peças de roupa in-
fectadas com o vírus da varíola, criminosamente distribuídas pelos civili-
zados.
Com o surgimento da aids – chamada inicialmente de “peste
gay”,2 doença devastadora, considerada em suas duas primeiras décadas
incurável e mortal, alastrou-se verdadeiro pânico e terror pelos quatro
cantos do orbe, desenterrando antigos medos e reações primitivas, mui-
to semelhantes aos observados nos antigos surtos de peste e nas fami-
geradas caças às bruxas medievais. Com a aids, os primeiros bodes ex-
piatórios da epidemia foram os gays, depois os bissexuais, os usuários
de drogas e, em diferentes partes do mundo, os haitianos, africanos, la-
tino-americanos, afro-americanos etc., acusados de responsáveis ora
pela origem ora pela transmissão da “epidemia do século”. Os porta-
dores de HIV foram agrupados em duas categorias: os “culpados” (so-
bretudo gays, profissionais do sexo e drogados) e os “inocentes”
(hemofílicos, filhos de mães soropositivas, esposas de maridos com
múltiplos parceiros).
No imaginário popular, incluindo o discurso de médicos, juízes e
delegados menos informados, e sobretudo em matérias jornalísticas, es-
tabeleceu-se a fantasiosa associação entre “aidético” e “morfético”, como
se os soropositivos fossem portadores de uma perigosíssima “síndrome
assassina”, tudo fazendo para contaminar o maior número de incautos.3
Em 1985, a mídia brasileira divulgou um dos casos mais dramáticos de
“aidsfobia coletiva”: espalhou-se a notícia, em Araguari (MG), de que o

2 Já em 1984, um jornal de grande alcance no Norte e Nordeste publicava carta de minha autoria, na qual

protesto contra o uso da expressão peste gay: “a aids não se trata de uma peste e, além do mais, desenter-
rar o termo medieval peste para descrever uma síndrome moderna cheira muito mais a preconceito anti-
gay do que simples ignorância popular” (A Tarde, Salvador, 3/nov./84).
3 MOTT, 1987, pp. 4-13.

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cabeleireiro Edvaldo Marques, 35 anos, era “aidé- O USO DO SANGUE CONTAMINADO


tico”.4 Por pressão popular, o delegado da cidade COMO ARMA
mandou-o prender, levá-lo à força a um hospital Há mais de uma dezena de registros na im-
e, logo em seguida, ser banido da cidade. “Se ele prensa brasileira, quando menos a partir de 1987,
voltar, vai ser queimado vivo, como uma nova Je- e ao longo da década de 90, de portadores de HIV
anne Darc”, disse o delegado, pois espalhara-se o ou de pseudoportadores lançando mão do pró-
boato de que o acusado, bissexual, continuava prio sangue, ou do sangue alheio, como arma
mantendo alta rotatividade sexual e havia lambi- intimidatória, com os seguintes objetivos: fugir
do frutas numa feira livre, nadado na piscina pú- de hospital ou cadeia, evitar ser preso, intimidar
blica e experimentado roupas nas lojas, tudo com pessoas para roubar ou assaltar, e infectar propo-
vistas a “propagar a doença”. O próprio secretá- sitalmente outra pessoa.
rio municipal de saúde encabeçou um abaixo as- Eis como a imprensa tem noticiado a utili-
sinado, proibindo o infeliz de andar livremente zação do próprio sangue por parte de detentos
pela cidade.5 soropositivos como arma efetiva para não serem
O objetivo deste ensaio é analisar um dos agredidos ou como ardil para a fuga de hospitais
aspectos mais delicados e polêmicos decorrentes ou cadeias:
dessa epidemia: a transmissão dolosa do HIV-aids
e seus relatos na imprensa brasileira.6 Com base A Coordenadoria dos Estabelecimentos
em meia centena de notícias divulgadas na im- Penais do Estado de São Pulo autorizou a
prensa nacional e internacional, entre 1984 e 1999, imprensa a visitar o hospital da Penitenciá-
serão abordados os seguintes tópicos: o uso do ria. Alguns presos disseram que foram
sangue contaminado como arma, a contaminação muito espancados após a rebelião e que os
sexual proposital, a transmissão do HIV por usu- feridos não estão recebendo atendimento
médico. Dos 128 detentos internados, 27
ários de drogas, a opinião e reação dos donos do
são aidéticos. No momento da revista, a
poder e as ocorrências no exterior.
vistoria foi impedida pelos aidéticos, que
Gostaríamos de enfatizar que absolutamen- se cortaram para intimidá-los.7
te não comungamos nem ratificamos as acusações
de transmissão dolosa do HIV registradas na mídia, Em Brasília, o soropositivo Valdivino dos
posto que, muitas vezes, uma denúncia não passa Santos Torres, o Algafan, 28 anos, invadiu duas
de vil calúnia. Nosso escopo e esperança, ao divul- vezes uma escola de Taguatinga para chamar a
gar este material, é que ele auxilie nossos legislado- atenção sobre sua situação de rejeitado até mes-
res, entidades governamentais e ONGs a encontrar mo pelos parentes. Ele havia fugido dos hospitais
soluções mais justas e adequadas para enfrentar as outras vezes. Ameaçava as enfermeiras com seu
preocupantes e dramáticas situações aqui relatadas, sangue. O mesmo procedimento era utilizado
garantindo a todos, independentemente da situa- com os policiais que tentavam detê-lo.8
ção sorológica, o respeito a seus direitos humanos Um dos quatro menores com suspeita de
e à plena cidadania. terem contraído o vírus da aids, que estavam in-
4 Os termos aidético e drogado são empregados aqui no sentido
ternados no Centro de Recepção e Triagem da
semântico, repetidos no mesmo contexto em que foram utilizados, Fundação de Assistência ao Menor do Estado da
seja na imprensa seja pelo discurso popular, embora o autor acate o Bahia, fugiu do Hospital Roberto Santos, em Sal-
posicionamento da maioria dos próprios soropositivos e das ONGs/
aids do País, considerando ambas expressões politicamente incorretas vador, onde estava isolado e em observação. En-
e discriminatórias.
5 Veja, 26/jun./85.
fermeiras e funcionários disseram que, para fugir,
6 Entende-se por dolo a vontade conscientemente dirigida a obter um
resultado criminoso ou assumir o risco de o produzir, podendo ser 7 “Presos feridos na rebelião alegam falta de tratamento”. O Globo,
equiparado ao conceito jurídico de culpa, a violação ou inobservância Rio de Janeiro, 5/ago./87 (grifos acrescidos).
de uma regra de conduta, da qual resulta lesão do direito alheio (Dicio- 8 “Ex-presidiário com aids assusta Brasília”. O Globo, Rio de Janeiro,
nário Aurélio). 26/jul./89.

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o menor tinha se munido de uma seringa e ame- Em Salvador, “Pivetes armados com serin-
açado furar os que tentavam detê-lo. O menor,9 gas contendo um líquido vermelho, que afirmam
homossexual, declarou que agira dessa forma ex- ser sangue contaminado com o vírus da aids, es-
trema por não agüentar mais o isolamento a que tão aterrorizando estudantes” em Corredor da
estava confinado na enfermaria.10 Vitória, Graça e Campo Grande, área elegante da
Esse último registro nos leva a Minas Ge- cidade. Eles ameaçam espetar os jovens, exigindo
rais: Walter Nunes, travesti conhecido como Wal- dinheiro, bolsas e os sapatos. A.P.S., 15 anos, es-
quíria, foi acusado de ter mantido relações sexuais tudante do 1.o grau, foi cercada por pivetes. “Eles
com 11 detentos da cadeia pública de Uberaba. estavam agressivos e ameaçavam espetar a seringa
Sete deles foram transferidos para celas isoladas no meu braço. Tentei correr, mas percebi que não
para submeterem-se a exames. Walquíria e um conseguiria ir muito longe. A minha sorte foi a
outro travesti encontravam-se presos por tenta- interferência de dois rapazes que estavam perto
tivas de assalto e roubo. Reivindicando tratamen- de uma banca de jornal”, declarou a estudante.15
to médico, por mais de uma vez eles “cortaram os Em Curitiba foi noticiada uma denúncia
pulsos e ameaçaram os policiais com o próprio controversa: o travesti Jocasta, 24 anos, “amea-
sangue”.11 Repetiram o mesmo estratagema do- çou contagiar um taxista, caso ele não entregasse
cumentado por nós no início da década, antes, a carteira com dinheiro e documentos, injetando
portanto, do surgimento da aids, ao utilizar o sangue contaminado”. Jocasta recebeu violenta
sangue como habeas corpus.12 surra dos amigos da vítima e foi autuado em fla-
Segundo a imprensa, verdadeiros ou pseu- grante. Declarou, porém, que tudo não passava
doportadores de HIV, tanto no exterior quanto de invenção do motorista, com quem havia feito
no Brasil, têm utilizado sua soropositividade um programa e furtara 55 reais; como resultado,
como arma em roubos e assaltos. Manchetes de o motorista agora estaria se vingando. O taxista,
jornais falam por si só do receio da população pe- por sua vez, negou qualquer relacionamento com
rante tal risco: “Aidético ameaça passageiros”, o profissional do sexo.16
“Ameaça mortal”, “Pivetes usam seringas com O caso de maior notoriedade nacional
sangue para roubar”, “Travesti usa seringa para ocorreu em São Paulo: três assaltantes invadiram
roubar”, “Ladrões fazem roubo com ameaça de o apartamento do advogado Benedito Luiz Fran-
HIV”. co, 54 anos, ameaçaram infectar os reféns com o
Em São Paulo, o ultra-sensacionalista pro- vírus HIV e levaram 45 mil dólares e cerca de 20
grama Aqui Agora anunciou a prisão de um ladrão mil reais em jóias. A polícia suspeitou que os cri-
“aidético” que tinha invadido um ônibus da Pe- minosos fossem os mesmos que roubaram o de-
nha, seqüestrado um refém de dois anos de idade putado Erasmo Dias. Dois deles disseram ser
e “ameaçado contaminar passageiros”.13 No ele- portadores do vírus HIV. Um ano depois, Fran-
gante bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, a cisco Luiz Ferreira Picerini, 19 anos, ex-detento
vendedora de uma loja de lingeries “foi ameaçada da Febem, foi preso e identificado como líder
por um assaltante com uma seringa que, segundo dessa gangue que ameaçava as vítimas com san-
ele, continha sangue com HIV. Por sorte, ele fugiu gue contaminado. Foi também acusado de ame-
ao saber que havia mais gente no local”.14 açar estuprar uma moça para contaminá-la com
HIV e reconhecido por quatro vítimas. Quando
9 Tivemos a oportunidade de visitar esse rapaz nesse mesmo hospital. mais jovem, já tinha sido acusado de fazer roleta
10 “Foge menor com suspeita de aids”. O Globo, Rio de Janeiro, 5/ russa com as vítimas e ateado fogo em duas delas.
set./87.
11 “Travesti contamina 11 detentos”. O Globo, Rio de Janeiro, 18/jan./
88. 15 “Pivetes usam seringas com sangue para roubar”. A Tarde, Salvador,
12 MOTT & ASSUNÇÃO, 1987, pp. 47-56. 5/abr./97.
13 “Aidético ameaça passageiros”. Aqui Agora, SBT, 14/abr./92. 16 “Travesti usa seringa para roubar”. Gazeta do Povo, Curitiba, 29/
14 “Ameaça Mortal”. Correio da Bahia, Salvador, 23/maio/95. maio/97.

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Picerini negou as acusações. Foi decretada sua contaminadas com sangue HIV+. Em Salvador,
prisão temporária.17 Recentemente Ana Mary Li- Pedro Augusto Borges Lima, 36 anos, geólogo
no, 70 anos, membro da Comissão de Direitos com pós-graduação no exterior, portando uma
Humanos da OAB do Rio de Janeiro, foi assaltada seringa com cocaína diluída em água, depois de
por três travestis e um deles, dizendo-se portador aplicar uma dose da droga no próprio braço, pi-
de HIV, cortou-se, ameaçando-a com seu próprio cou pelo menos dez passageiros num ponto de
sangue. Mesmo presos, essa magnânima senhora ônibus. Confessou ter por objetivo a contamina-
não quis registrar queixa.18 ção do maior número possível de pessoas.22
Há notícia de alguns delinqüentes soropo- O juiz José Antônio de Paula Santos Neto
sitivos executados pela Polícia durante assaltos concluiu que Celso Donizete Ferreira dos San-
frustrados. Em Mossoró (RN), o assaltante co- tos, o Fumaça, de São Paulo, sabendo-se porta-
nhecido por Falconi foi morto com um tiro nas dor do vírus desde 1991, “cometeu tentativa de
costas por policiais, na tentativa de assalto a um homicídio ao espetar uma menina de 12 anos
banco. Ele se dizia “aidético” e, com uma seringa com uma seringa infectada com o próprio san-
com sangue, ameaçou contaminar os reféns, caso gue”. A perícia provou a existência de perfuração
suas reivindicações não fossem atendidas. 19 Em
por agulha na perna da criança, mas os testes até
Mogi das Cruzes (SP), o preso Ayrton do Araújo,
então realizados deram resultado negativo.23
24 anos, soropositivo, foi morto a tiros na dele-
gacia pelo titular Fábio Marconi. Araújo manti- Na Paraíba, Almir Souza de Araújo, 20
nha como refém o carcereiro Jorge Siqueira. Sua anos, Marcelo Alves de Souza, 18 anos, e Gildá-
morte provocou duas rebeliões na cadeia.20 sio Souza de Araújo, 23 anos, foram presos na ci-
dade de Araçagi, acusados de disseminar o vírus
Ainda com relação a episódios envolvendo
presidiários soropositivos, registram-se quando da aids. Antônia Pequena da Conceição, 56 anos,
menos dois registros em que policiais foram in- feirante, foi ferida no braço com uma seringa. Os
fectados pelo HIV por conta de acidentes no exer- rapazes negaram as acusações. A população ten-
cício de suas funções: o carcereiro da Delegacia tou invadir a cadeia local para linchá-los.24 Em
de Osasco, R.G.S., 34 anos, chora sempre que Cataguases (MG), moradores receberam telefo-
olha para os filhos. “Peguei a doença quando pro- nemas anônimos afirmando que a “gangue do
curava socorrer um preso. Até hoje nunca senti urubu ia infectar as pessoas com seringas no car-
nada. Fiz o exame e deu positivo. Agora não te- naval”. A PM colocou policiais à paisana para in-
nho idéia do que posso fazer. Não sei por que sofri vestigar e se infiltrar nos blocos.25 Não foram di-
esse castigo.” Em um simpósio sobre aids, realiza- vulgados os resultados da investigação.
do no Rio de Janeiro, em dezembro de 1989, foi Há notícia de que, em Belo Horizonte
comprovado que um cabo da PM contaminou-se (MG), M.C.G., 18 anos, comerciário, teria sido
depois de lavar uma viatura em que havia sangue deliberadamente infectado, pelo amante Antônio
de um acidentado portador do vírus.21 Erasmo Goulart Monteiro, com sangue retirado
Mais grave ainda é o caso de alguns porta- de um soropositivo numa seringa.26
dores acusados de efetivamente terem espetado
vítimas indefesas com agulhas supostamente 22 “Geólogo que diz ter aids tenta contaminar passageiros de ônibus”.
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7/jun./89.
23 “Transmitir vírus da aids dá até 30 anos de reclusão. Problema chega
17 “Ladrões fazem roubo com ameaça de HIV”. Folha de S.Paulo, 27/ aos tribunais com caso que envolve menina de 12 Anos”. Folha de
nov./97 e 11/mar./98. S.Paulo, 25/set./94.
18 “Travesti usa sangue para fazer ameaça”. O Dia, Rio de Janeiro, 11/ 24 “Aidéticos levam pânico a paraibanos”. Diário de Pernambuco,
abr./99. Recife, 18/jun./95.
19 “Polícia mata ladrão aidético”. O Globo, Rio de Janeiro, 4/maio/88. 25 “Gangue ameaça infectar foliões com HIV em Minas Gerais”. Folha
20 “Delegado mata preso com aids e causa rebelião”. Folha de S.Paulo, de S.Paulo, 22/fev./95.
16/ago./93. 26 “Contaminou amante com aids”. Notícias Populares, São Paulo, 14/
21 O Globo, Rio de Janeiro, 7/maio/89. mar./99.

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A CONTAMINAÇÃO SEXUAL PROPOSITAL nais notícias anunciando algum remédio


novo, um tratamento inovador.28
Essa manchete de um jornal baiano, de
1992, sintetiza bastante bem a opinião dominante Inúmeros depoimentos de soropositivos
no imaginário popular em relação ao tema: “Ai- revelam a manutenção da mesma intensidade de
déticos querem matar: estão doentes, sabem que práticas sexuais de risco, alguns profissionais do
podem contaminar e contaminam”.27 Conside- sexo cobrando mais caro quando o cliente recusa
rando que, também no Brasil, desde o início da o uso do preservativo, e, mais preocupante ainda,
epidemia, predominou sua transmissão por via a intencionalidade de alguns em contaminar in-
sexual, espalhou-se na população em geral, sobre- discriminadamente o maior número de parceiros.
tudo entre os freqüentadores de profissionais do Eis alguns relatos: Carlos, 25 anos, paulista, ficou
sexo, o temor da transmissão proposital do HIV desesperado com o resultado positivo de seu tes-
por meio de relações sexuais. te HIV e, sabendo não ter mais o que fazer “tomou
Esse florilégio extraído de manchetes de al- a decisão de continuar se relacionando normal-
guns jornais de diversas cidades confirma o quão mente e passou o vírus para mais duas pessoas”;
forte pesa no imaginário popular o temor da M., 23 anos, fez o mesmo: manteve um romance
contaminação intencional da aids por parte dos de dois anos com um homossexual canadense até
portadores: “Doença do pânico e da vingança”, que, um dia, o amigo, já de volta ao seu país, te-
“Vampiros de Pelotas: grupo espalha aids na cida- lefonou e deu a notícia: teste positivo. Disse “ter-
de de propósito”, “A caça aos vampiros: psicólo- se relacionado alucinadamente com quem lhe
gos denunciam que prostitutas e travestis espa- apareceu pela frente. Infectei muitas pessoas. Até
lham o vírus da aids”, “Portadores espalham HIV perdi a conta”. Hoje, Carlos e M. estão arrepen-
de propósito”, “Predadores sexuais: médicos re- didos, mas é tarde demais para suas vítimas.29
velam o perfil dos homens com HIV que seduzem Brenda Lee, famoso travesti, proprietário
e contaminam as mulheres”. de um pensionato para travestis, em São Paulo, e
Matéria publicada no tradicional jornal O mais tarde presidente de uma casa de apoio, las-
Estado de S.Paulo sugere que o stress emocional timavelmente assassinado, em 1996, por seu
causado pelo HIV explicaria as supostas tendências amante militar, declarou: “Se a sociedade nos tor-
anti-sociais e deletérias dos portadores: tura, agride, suborna, dá facadas e tiros, por que
haveríamos de preservar essa sociedade? Por isso
Detectada, a aids instala no paciente um
verdadeiro mundo de horrores, uma ses-
é que não vamos parar de transar ou vamos usar
são contínua de tortura. O doente, por camisinha. É preferível morrer a acabar com o
vezes, acaba sentindo-se como o assassi- nosso prazer”. Felizmente, após conviver com
no que cai em si diante da violência que técnicos da secretaria de saúde de São Paulo e
cometeu. Os homossexuais começam a com militantes de outras ONGs/aids, Brenda Lee
rastear os erros de sua vida, flagelam-se assumiu postura menos irresponsável, tornando-
espiritualmente e chegam até a renegar a se divulgador do safe sex aos travestis.30
opção que fizeram. Com os bissexuais o Outro travesti de São Paulo, Marcela, 21
calvário é semelhante, mas eles têm mu-
anos, cabeleireiro, disse transar de seis a dez vezes
lher e filhos, o que torna o drama muito
maior: o teste positivo indica que a esposa
por noite, só utilizando preservativo se “o cliente
fatalmente foi contaminada. (...) o que di- tiver”. Como uma verdadeira roleta russa, não
zer numa sociedade que reprime e não sabe se tem ou não o vírus da aids. Prefere acre-
aceita o homossexualismo? Seu equilíbrio
28 O Estado de S.Paulo, 12/ago./87.
emocional desaba. Todos buscam nos jor- 29 “Doença do pânico e da vingança”. O Estado de S.Paulo, 12/ago./87.
30 MOTT, L. “A tribo dos rapazes de peito”. Folha de S.Paulo, 16/jun./
27 Jornal da Bahia, Salvador, 8/jan./92. 96.

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ditar no seu “astral altíssimo”.31 L.G., 39 anos, seus parceiros tivesse sido contaminado: “Ela me
presidiário da Casa de Detenção de São Paulo, contou que pediu a ele para usar camisinha.
declarou: “Assim que descobri que estava com Como ele não quis, ela fez de tudo para passar a
aids, cheguei à conclusão de que não tinha nada a doença para ele”. Outra moça confessou ter con-
perder. Escondi o fato de meus parceiros e au- taminado a própria irmã numa roda de drogas
mentei o círculo de relações sexuais”.32 José Mar- injetáveis: “Não vou morrer sozinha. Morro, mas
tins, 27 anos, morador em Esperança (PB), casa- minha irmã vai junto”.36
do, três filhos, foi preso porque, após ter-se em- Incontáveis profissionais do sexo, soropo-
briagado, “confessou seu propósito de contami- sitivos para HIV – prostitutas, travestis, rapazes
nar a cidade com o vírus da aids. José começou a
de programa –, não dispondo de atividades alter-
executar sua vingança com a ex-noiva, M.A.S., 22
nativas, em que possam obter sua subsistência,
anos, com quem reatou o namoro. Depois disse
não têm outra saída senão continuar na prestação
ter se relacionado com quatro prostitutas. Ao de-
de serviços sexuais, embora saibam que o preser-
legado, confessou sua intenção de prosseguir a
vativo pode furar, transmitindo acidentalmente o
inoculação através de seringas nas festas da pas-
HIV a seus clientes ou recebendo nova carga viral,
sagem de ano”.33
no caso de o parceiro também ser positivo.37
Em Campinas (SP), Edna Alves da Silva, 31
Cláudia, 25 anos, prostituta em São Paulo, decla-
anos, prostituta, descobriu que tinha o vírus. Se-
rou: “Só aqui na região conheci duas meninas
gundo a família, a doença lhe trouxe uma deca-
que, mesmo depois de doentes, tiveram de con-
dência que, aos poucos, se transformou em revol-
tinuar trabalhando, provavelmente passando o ví-
ta. “Vou morrer, mas vou levar muita gente co-
migo”, prometeu Edna. O delegado Eduardo rus para os clientes”.38
Eustáquio declarou: “ela transa com clientes sem Os travestis P.F.G., 24 anos, F.A.X., 25
camisinha para lhes transmitir aids”.34 C.M.S., 21 anos, e C.F.S., mesmo com o conhecimento de
anos, soropositiva, faxineira do Banco do Brasil, serem portadores do vírus da aids, continuaram
em Brasília (DF), teria disseminado premeditada- por um ano a manter relações sexuais sem o uso
mente o vírus da aids em 12 funcionários da ins- de preservativos. “Sabemos que estamos transmi-
tituição. C.M.S. foi demitida do banco e sujeitou- tindo o vírus, mas não temos outra forma de so-
se à prisão, com base no artigo 267 do Código breviver”. Para tentar diminuir os riscos, os três
Penal, por “causar epidemia, mediante a propaga- travestis garantem que pedem o uso de preserva-
ção de germes patogênicos”.35 tivos aos clientes. Quase nenhum deles, porém,
Novamente na Bahia, a freira Neli Lori aceita. “Eles não gostam e chegam até a querer
Egewarth, que abriga meninos e meninas de rua pagar mais para fazer sem camisinha.”39 Em Pe-
de Salvador, disse que já cansou de ouvir e acom- lotas, o travesti Jéferson de Souza, 25 anos, inter-
panhar casos de garotas infectadas que partem à nado com pneumonia num pronto-socorro, disse
procura de parceiros sexuais só para transmitir a ter mantido relações sexuais depois de saber que
doença. Citou o caso de uma mulher de 25 anos,
que sabia estar doente e torceu para que um de 36 “Aidéticos querem matar: estão doentes, sabem que podem conta-
minar e contaminam”. Jornal da Bahia, Salvador, 8/jan./92.
37 Em 1988, protestamos contra a ameaça da polícia de Salvador de
31 “Doença do pânico e da vingança”. O Estado de S.Paulo, 12/ago./87. prender oito prostitutas soropositivas na área do Pelourinho, em
Sobre a rotatividade sexual dos travestis”, cf. MOTT & CER- tempo que sugeríamos, como medida extrema, que essas profissionais
QUEIRA, 97. do sexo recebessem aposentadoria como alternativa de subsistência, de
32 “Estados se mobilizam contra aids em presos”. O Globo, Rio de modo a evitar o risco de infecção dos clientes. “Aids detectada em oito
Janeiro, 7/maio/89. prostitutas e travestis do Pelourinho”. Tribuna da Bahia, Salvador, 10/
33 “Contaminação de HIV”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30/dez./ abr./88.
89. 38 “Aidéticos querem matar: estão doentes, sabem que podem conta-
34 “Delegado faz alerta.: uma mulher está espalhando aids”. Diário da minar e contaminam”. Jornal da Bahia, Salvador, 8/jan./92.
Manhã, Campinas, 23/jul./98. 39 “Aidéticos querem matar: estão doentes, sabem que podem conta-
35 “Faxineira contamina colegas com HIV”. IstoÉ, 6/fev./91. minar e contaminam”. Jornal da Bahia, Salvador, 8/jan./92.

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era portador da doença: “Muita gente me pagava deles, individualmente, em razão da indignação
o dobro para não usar camisinha”.40 com o fato de estar contaminados. “Só houve um
Desde o surgimento dessa epidemia, notí- caso em que dois desses rapazes combinaram de
cias alarmantes de contaminadores intencionais transmitir a doença.” Disse mais: “Recebi a visita
abalaram a população de diversas cidades brasilei- de três rapazes que tiveram a confirmação da
ras, sendo impossível, em muitos casos, saber ao existência do vírus e dois deles estavam revolta-
certo se tinham base em fatos reais ou não pas- dos. Expliquei por que não poderiam manter re-
savam de meros boatos. Por várias vezes, os pró- lações sexuais e os cuidados que deveriam ter,
prios órgãos públicos de saúde ou da justiça con- mas os dois me disseram que estavam decididos a
tribuíram negativamente para o aumento da aids- continuar contaminando as pessoas”.43
fobia e a discriminação contra os portadores: em Em 1997, um jornal de Sergipe trazia a se-
Guaratingetá (SP), a diretora de um centro de guinte matéria: “Aidético leva pânico aos marui-
saúde, Elisa Maria Jordão Guimarães, alertou que nenses. Homem teria mantido relação sexual
uma menor de 16 anos, tendo contraído o vírus com vários moradores sem revelar que é portador
da aids por relações sexuais, e ainda sem apresen- do HIV”.44 A notícia afirma que os moradores de
tar sintomas, “estaria agindo deliberadamente Maruim (SE) acusavam o diretor do Hospital
para disseminação do vírus”, recusando-se, con- Nossa Senhora da Boa Hora, Luís Henrique, de
tudo, a revelar as iniciais do nome da menor.41 ter provocado pânico ao divulgar uma lista com o
Em cidades do interior, mulheres e homos- nome de 12 pessoas, a maioria menores, que te-
riam sido contaminadas pelo HIV, mantendo re-
sexuais com vida sexual muito ativa sofreram gra-
lações com um homem de 50 anos, cuja identi-
ves constrangimentos por conta da suspeita de
dade era mantida em sigilo, e que estava interna-
transmitir aids aos parceiros, intencionalmente
do por decisão judicial. “Quis garantir a integri-
ou por negligência: em Paraguaçu Paulista, Selma
dade física do doente e promover a ordem na
Regina de Jesus, 36 anos, foi presa, acusada de
cidade. Não tomei nenhuma ação discriminató-
transmitir o vírus da aids. Disse ter contraído o
ria”, declarou o promotor Celso Luiz Dórea Leo.
HIV usando drogas injetáveis, em 1981, quando
O homem teria contraído a doença no Rio de Ja-
morava em Salvador, garantiu usar preservativo
neiro, onde vivera. Retornou a Maruim e come-
nas relações sexuais e rejeitou a acusação de ser
çou a prostituir alguns menores, tendo anotado
prostituta. “Ninguém sabia que ela tinha aids e
em uma lista os nomes de todos os parceiros se-
acho que uns 50 homens, metade da população
xuais.
local, transaram com a moça”, diz um jovem que
A paranóica “aidsfobia” transformou-se,
assegura não ter freqüentado o Bordel da Cigana,
em alguns lugares, em verdadeira “aidsteria cole-
como é conhecida a boate de Eva, mãe de Sel-
tiva”: em Itabuna (BA), Irisvan da Cruz Souza, 21
ma.42
anos, ficou detido por 45 dias após acusação de
O médico Augusto César Régis de Olivei- atentado violento ao pudor, ao abusar sexual-
ra, hematologista da Comissão Estadual de mente do sobrinho, de 2 anos de idade. A polícia
Combate à Aids, em Cuiabá (MT), afirmou que declarou ter investigado se ele estaria contamina-
um grupo de dez rapazes portadores do vírus da do pelo vírus da aids. De acordo com informa-
aids, com idades entre 18 e 20 anos, estavam con- ções, o acusado mantivera relações sexuais com
taminando parceiros sexuais na cidade. A decisão outros detentos.45 No episódio seguinte, assim
de transmitir a doença teria partido de cada um
43 “Em Cuiabá, hematologista diz que rapazes estão propagando a
40 “A caça aos vampiros: psicólogos denunciam que prostitutas e tra- aids”. Folha de S.Paulo, 26/nov./87.
vestis de Pelotas espalham o vírus da aids”. Veja, 21/jul./93. 44 “Aidético leva pânico aos maruinenses”. Jornal da Cidade, Aracaju,
41 “Menor dissemina HIV”. Folha de S.Paulo, 2/dez./87. 1.o/8/97.
42 “Acusada de transmitir HIV nega prostituição”. Folha de S.Paulo, 27/ 45 “Homem pode ter contaminado com aids o sobrinho”. A Tarde, Sal-
fev./95. vador, 20/jan./99.

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como em muitos dos relatos mencionados neste dos “vampiros” deveu-se a uma fase vivida pelo
texto, é impossível saber ao certo se a denúncia portador do vírus, a da vingança. Dalva, travesti,
de contaminação dolosa é verdadeira ou calunio- que tem o rosto inchado de silicone, reclamou
sa: em janeiro de 1993, em Salvador, uma carta en- que a secretaria de saúde não distribui preserva-
viada aos jornais e emissoras de TV trazia ameaça tivos para que os homossexuais usem em suas re-
de disseminação do vírus da aids pela cidade. As- lações: “Ninguém é homicida para ficar passando
sinada por quatro prostitutas, a carta registrava: a outros o vírus da aids”. Como Dalva, os demais
“Vamos levar conosco um bando de miserá- travestis estavam revoltados com a suposição de
veis”.46 que estaria havendo contágio intencional.48
“Vampiros da morte”, ou “vampiros de Pe- Diferentemente dos travestis pelotenses, al-
lotas” foi como ficaram conhecidos, em 1993, os guns portadores e portadoras de HIV declararam
envolvidos em um dos episódios relacionados à abertamente sua intenção criminosa de contami-
suposta transmissão sexual dolosa do HIV, que nar indiscriminadamente os parceiros sexuais:
ganhou maior repercussão na mídia nacional:
O procurador de justiça de Brasília, An-
A polícia de Pelotas está caçando os
tônio Gomes, pediu a abertura de inqué-
“vampiros da morte”, como se autodeno-
rito contra a prostituta identificada por
mina um grupo de 27 aidéticos, entre ho-
mossexuais e prostitutas, que está propo- Jéssica, 18 anos, de Santos. Numa entre-
sitadamente transmitindo a aids a outras vista, ela teria declarado que transmite
pessoas. A denúncia foi feita pelos psicó- aids para os clientes, faz programas sem
logos Afonso Langove e Nara Vieira, do camisinha, infectando os clientes que a
Grupo Amor à Vida (GAV). O promotor abordam na região do cais do porto de
Wilson Farias ainda não decidiu se o en- Santos. “Para a maioria eu passo aids”, de-
quadramento seria por homicídio doloso, clarou Jéssica. Segundo o promotor, a
mas pretende conseguir confinamento conduta pode ser enquadrada no artigo
dos vampiros. O delegado Stahs Laerte 131 do Código Penal.49
Tomasi tinha iniciado investigações sigilo-
sas após a divulgação da notícia. Já conse- Novamente em Pelotas, seis anos após o fa-
guiu identificar um dos 27 “vampiros”, migerado episódio dos “vampiros da morte”, o
que confirmou a iniciativa do grupo e está promotor José Olavo Paz decidiu que Carlos
ajudando a polícia a identificar todos os Colvara, 29 anos, militar reformado, iria a júri po-
outros. O auge da ação teria sido no Car- pular por tentativa de homicídio. Isso porque,
naval, mas suspeita-se que eles consegui- mesmo sabendo ser portador de HIV, teria por
ram manter uma média de 25 relações se- três anos mantido relações sexuais, sem preserva-
xuais diárias com clientes, desde o come-
tivos, e contaminado a amante. A justiça enten-
ço do ano. A cidade ficou em pânico.
“Muitos clientes são da zona rural e levam
deu haver dolo, pois ele tinha consciência de sua
a aids para dentro de suas famílias”, afir- condição e assumiu o risco de causar dano à par-
mou o delegado Stahs.47 ceira. O advogado do acusado, Jorge Cavalcanti,
negou a intenção de contaminar, pois o acusado
O coordenador do setor de prevenção à mantinha relacionamento antes de saber-se por-
aids, da secretaria de saúde de Pelotas, Antônio tador do HIV.50
Carlos Guarienti, disse que a provável existência
48 “Portadores espalham HIV de propósito no Sul”. Folha de S.Paulo,
46 “A caça aos vampiros: psicólogos denunciam que prostitutas e tra- 15/jul./93; “Promotor quer internar vampiros da morte”. Folha de
vestis de Pelotas espalham o vírus da aids”. Veja, 21/jul./93. S.Paulo, 16/jul./93. Segundo Sandro Eduardo Sardá, advogado da ONG
47 “Vampiros de Pelotas: grupo espalha aids na cidade de propósito”. Faça, em Florianópolis, nada se comprovou posteriormente a respeito
Diário Popular, Pelotas, 11/jul./93; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14/ dessas denúncias. Cf. SARDÁ, 1999, p. 50.
jul./93; Correio da Bahia, Salvador, 14/jul./93; Tribuna da Bahia, Salva- 49 “Prostituta de SP pode responder inquérito”. Folha de S.Paulo, 29/
dor, 14/jul./93; e Veja, 21/jul./93. jul./94.

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Nesse outro caso, as próprias colegas de “predadores”, artista plástico de 30 anos,


um travesti de Brasília – Simone, 20 anos – de- abandonou o tratamento e iniciou um na-
nunciaram-no como contaminador proposital do moro com uma garota com a qual veio a
vírus da aids entre seus clientes. Ele estava sendo se casar. Posteriormente, apresentou sin-
procurado pela polícia do Distrito Federal. Ou- tomas e sua parceira testou soropositiva.
tros homossexuais afirmaram que ele induzia os Os médicos não revelaram à parceira que
o artista tinha HIV. Argumentaram que
clientes a transar sem camisinha. Com base nes-
“Somos como sacerdotes. Não podemos
sas informações, o delegado Antônio Coelho
ser responsáveis pela dissolução dos laços
Neto determinou a prisão de Simone. Um laudo entre os casais. Essa estabilidade emocio-
médico, fornecido pelo Posto de Saúde da 514 nal e afetiva é importante para a reação do
Sul, assegurou que o travesti era mesmo soropo- organismo à doença. Se for preciso, nega-
sitivo. mos que sabíamos que ele era portador do
Segundo a notícia, existia um sentimento vírus”, conta o dr. Dario Signorini. Segun-
de revolta entre os próprios travestis com relação do esse estudo, o predador geralmente
à irresponsabilidade de Simone. Por isso, eles re- teve uma infância com violência em casa
solveram denunciá-lo: ao saber-se soropositivo, ou com separações traumáticas, foi hipe-
Simone tratou de adotar os cuidados para prote- rativo na adolescência, tem baixo nível de
ger os clientes. Porém, quando a doença come- escolaridade e baixo poder aquisitivo. A
çou a se manifestar, ele ficou inconformado. O falta de estrutura familiar o tornou ina-
delegado pretendia tirá-lo de circulação e interná- daptado às regras sociais: é alguém que
foge às responsabilidades. Há também o
lo num hospital, sob escolta policial. Também afir-
serial killer: são pessoas revoltadas, que
mou ter informações de que a maioria dos clientes
contaminam por vingança. Relatam os
eram homens casados.51 Em Alagoas, José Joa- médicos também o caso de um agente de
quim de Araújo Filho, 43 anos, vigia, soropositi- saúde, homossexual promíscuo que con-
vo, confessou manter relações sexuais desprote- verteu-se evangélico, acreditou-se curado
gidas com prostitutas do mercado da produção, e disse ao médico que fez um novo teste
em Maceió (AL).52 com resultado negativo. Casou-se com
Embora com base em amostra muito limita- uma moça da igreja, para quem transmitiu
da, uma pesquisa realizada num hospital do Rio de o vírus e também ao filho que os dois ti-
Janeiro sugere algumas pistas sobre o perfil dos veram juntos. Dramas de uma epidemia
portadores dessa temida “síndrome assassina”: contemporânea!53

Médicos do Hospital Universitário Ga- No bojo desse preocupante rol de acusa-


ffrée Guinle identificaram o perfil dos ho- ções e confissões de infecção dolosa do vírus da
mens que transmitem deliberadamente aids, verdadeiras ou supostas, há alguns portado-
HIV para suas parceiras sexuais. Cerca de
res exemplares, que primam pela responsabilida-
90% são do sexo masculino e heterosse-
de e solidariedade humana, da maneira como
xuais. Sabem de sua condição de portado-
res, mas mantêm relações sexuais sem in-
nortearam suas vidas após a confirmação da so-
formar suas parceiras, declara o médico roprevalência para o HIV. Muitos portadores de
Dario Hart Signorini. O estudo identifi- HIV declaram ter modificado totalmente sua vi-
cou 12 casos de homens que infectaram vência sexual, alguns mais radicais chegando mes-
outras pessoas deliberadamente. Um dos mo a interromper as relações. Antônio Leonel de

50 “Militar no RS é acusado de passar HIV”. Folha de S.Paulo, 19/mar./ 53 “Predadores Sexuais. Médicos revelam o perfil dos homens com
99. HIV que seduzem e contaminam as mulheres”. O Globo, Rio de
51 “Travesti contaminava parceiros”. Jornal de Brasília, 26/fev./95. Janeiro, 7/dez./97. Essa matéria recebeu uma crítica contundente de
52 “Lei não pune transmissor do vírus da aids”. Jornal da Bahia, Salva- Marcelo Secron Bessa, em “Cuidado: Poison Hivys à solta”, divulgada
dor, 3/set./97. no Informe Abia, Rio de Janeiro, 16/dez./98.

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Alencar Sampaio, 22 anos, pernambucano, Então, por que você me tirou do serviço?” E
universitário, disse que, ao descobrir estar com a completou: “Guarda o dinheiro, que você vai gas-
doença, suspendeu suas relações sexuais e passou tar com a doença que eu passei para você. Estou
a liderar um grupo de jovens ensinando como com aids!”.56
evitar o mal nos subúrbios e favelas da Grande
Recife: “Sou um cigano contra a aids!” O bancá- A TRANSMISSÃO DO HIV POR
rio C., 24 anos, também não quis descarregar sua USUÁRIOS DE DROGAS
revolta contra a má sorte em se descobrir soro- Nos últimos anos, segundo o Boletim Epi-
positivo; ao contrário, tentou isolar-se para não demiológico do Ministério da Saúde, aumentou
contaminar ninguém. M.S.O, 33 anos, carioca, significativamente no Brasil a transmissão do HIV
mendigo, revelou: “Tenho até medo de passar um entre os usuários de drogas injetáveis.57 Popula-
troço desses para outras pessoas”. D.A.N., 17 ção dispersa, carente de assistência psicológica e
anos, usuário de drogas, declarou que “O receio de difícil acesso por parte dos agentes de saúde,
da transmissão me fez romper o namoro e nunca os usuários de drogas injetáveis (UDI) são igual-
mais procurar mulheres. Apenas continuo me mente acusados de serem grandes transmissores
drogando, pois não há como vencer o vício”. Si- da aids, em virtude tanto da irresponsabilidade no
mone, 28 anos, gerente de uma sauna em Cam- uso coletivo de seringas quanto de forma inten-
pinas, disse punir com multa as funcionárias que cional.
não usam preservativo. Segundo ela, a preocupa- Na Bahia, uma usuária de drogas confessou
ção não se deve tanto aos riscos da aids, e sim ter contaminado a própria irmã numa roda de
com atrair de volta a clientela reduzida.54 drogas: “Não vou morrer sozinha. Morro, mas
A imprensa brasileira registra pelo menos minha irmã vai junto”.58 Também em Salvador,
dois episódios em que profissionais do sexo so- R., um adolescente de rua, 17 anos, foi acusado
ropositivas foram assassinadas por seus amantes, de transmitir aids aos colegas de roda de droga
como vingança por atribuir a elas sua suposta havia pelo menos oito meses. “Passaram aids para
contaminação pelo vírus da aids. Em Porto Ale- mim, eu peguei e ninguém se preocupou. Eu
gre (RS), Ricardo Gimenes Pires, professor de in- também não vou ligar se estou passando ou não”,
glês, matou Elaine Teresinha Guterres Sobé, 31 disse. R. estava muito assustado com as informa-
anos, prostituta, porque, após duas relações sexuais, ções que começou a receber sobre a doença. Se-
nas quais ele não usara preservativo, ela lhe disse gundo um dos adolescente da turma do baque,
ser portadora do vírus HIV.55 Por sua vez, em São como são chamados os menores usuários de dro-
Paulo, Roberto Custódio Júnior, 21 anos, disse ga injetável, a aids seria capaz de matar em menos
ter matado a prostituta Sheila, num momento de de duas semanas. Outros meninos do grupo dis-
descontrole, quando ela revelou que lhe havia seram não estar assim tão preocupados com o ris-
transmitido o vírus HIV. Ele afirmou que a atirou co de infecção. Alguns sabiam que R. era positi-
ao chão e passou com o carro sobre a sua cabeça, vo, mas usavam seringa coletiva. “Eles já estão
gritando: “Eu te matei, filha da puta!”. Roberto acostumados. Ninguém aqui tem medo de mor-
mantinha relações sexuais com Sheila sem usar rer”, admitiu um deles.59
camisinha, pois se sentia seguro com ela. Num Manchete da revista Veja alertava, em 1987,
dos encontros, ele propôs sexo oral, acertando o sobre o clima de terror observado em Santa Ca-
preço em 10 reais. Porém, ela quis aumentar o
preço para 20 reais. Como ele não tinha essa 56 “Vítima teria dito que tinha aids”. Folha de S.Paulo, 23/maio/98.
quantia, a prostituta reagiu: “Não tem dinheiro? 57 O uso de drogas injetáveis é responsável direto por 21% dos
145.327 casos de aids já registrados no País. Cf. “Pesquisa revela o per-
fil dos UDI no Brasil”. Notas da Rede de Direitos Humanos, Ministé-
54O Estado de S.Paulo, 12/ago./87. rio da Saúde (38), mar./99.
55 .
“Matou prostituta por causa da aids”. Jornal da Bahia, Salvador, 7/ 58 Jornal da Bahia, Salvador, 8/jan./92.

nov./94. 59 Jornal da Bahia, Salvador, 8/jan./92.

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tarina, em decorrência da transmissão do HIV pe- dra. Zenaide Medeiros, psiquiatra do Instituto
los UDI: “Viagem de alto risco: em Florianópolis, Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro, desabafa:
a polícia denuncia que um casal de viciados fez “Meu medo são os extremos [por parte dos so-
um pacto para disseminar a aids”. Foi a jovem ropositivos] que desejam transmitir a doença”.61
Márcia Correia da Silveira, 18 anos, que também Essas acusações de contaminação intencio-
havia participado dos embalos, quem denunciou nal do vírus da aids não passam, em muitos casos,
o casal: João Machado da Silva Neto, 30 anos, e de meras suspeitas e ameaças. As atitudes de de-
Rosângela Corrêa da Silva, 24 anos, pais de três legados de polícia, policiais militares, juízes, mé-
filhos, os quais, segundo consta, sabiam ter con- dicos, diretores de hospitais e outras autoridades
traído o vírus da aids e estavam contaminando variam da cautela, passam pela condenação moral
outras pessoas. “São dois verdadeiros assassinos”,
e chegam à prisão sumária dos acusados, alegan-
afirmou o delegado Elói Gonçalves de Azevedo,
do diversos e contraditórios artigos do Código
chefe do Departamento de Investigações Crimi-
Penal para justificar tais ações repressivas, no
nais. Apesar dos dois viciados negarem a intenção
mais das vezes, refletindo abuso de autoridade e
de transmitir a doença, o delegado não teve dú-
desnecessário excesso de zelo motivado pela
vidas quanto ao pacto denunciado por Márcia. As
sessões de pico quase sempre reuniam de seis a “aidsfobia”.
oito pessoas e não havia mais que quatro seringas. O coronel Tedesco, comandante do 2.o Ba-
“Já que essa doença me destruiu, por que eu tam- talhão da PM de Brasília, disse não permitir ao so-
bém não posso destruir os outros?”, perguntava- ropositivo Algafan, que ameaçava as enfermeiras
se Márcia. “Agora quero mais é tomar brilho (co- com seu sangue, retornar ao convívio social. Se-
caína) dia e noite”, completou.60 gundo o coronel, ele podia ser enquadrado no ar-
tigo 131 do Código Penal, que prevê detenção de
OPINIÕES E REAÇÃO DOS DONOS quem ameaça a comunidade com doença conta-
DO PODER giosa. O juiz José Antônio de Paula Santos Neto,
de São Paulo, concluiu que Fumaça, que sabia ser
Por meio da leitura dessas dezenas de notí-
portador do vírus desde 1991, cometeu tentativa
cias, publicadas na imprensa brasileira, entre 1984
de homicídio ao espetar um menino de 12 anos
e 1999, nota-se que as opiniões das “autoridades”
de idade com uma seringa infectada com o pró-
variam enormemente em relação à responsabili-
dade criminal dos portadores de HIV/aids pela prio sangue, podendo ser condenado até 30 anos
prática do sexo com risco, seja pela utilização da de reclusão.62 O promotor Wilson Farias, de Pe-
mesma seringa por parte dos usuários de drogas lotas, ainda não tinha decidido se o enquadra-
injetáveis seja pelo uso do sangue contaminado mento dos “vampiros da morte” seria por
como arma defensiva ou agressiva contra tercei- homicídio doloso, mas pretendia conseguir con-
ros. Vejamos, inicialmente, as opiniões de alguns finamento dos suspeitos.
psiquiatras e psicólogos. O promotor José Olavo Paz, do Tribunal
O dr. Ronaldo Pamplona, psiquiatra, autor de Justiça de Pelotas (RS), decidiu que Carlos
de Os 12 Sexos, explica: “Quem o doente de aids Colvara, militar reformado iria a júri popular por
quer atingir são os algozes do passado, seus algo- tentativa de homicídio (caso descrito anteriore-
zes sociais. As pessoas o rejeitaram e o agrediram. mente). O procurador de justiça de Brasília, An-
Ele, então, transa indiscriminadamente e acaba se tônio Gomes, pediu a abertura de inquérito con-
autodestruindo, porque se expõe à recontamina- tra a já citada prostituta identificada como Jéssica,
ção, com novas cargas do vírus”. Por sua vez, a por ela ter declarado fazer programas sem o uso

60 Veja, 28/out./87. Segundo SARDÁ (1999), nada se comprovou 61 O Estado de S.Paulo, 12/ago./87.
quanto à denúncia. 62 Folha de S.Paulo, 25/set./94.

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da camisinha, infectando os clientes na região do Pelotas, a polícia andou caçando os “vampiros da


cais do porto de Santos. morte” e o delegado Stahs Laerte Tomasi tinha
O delegado Elói Gonçalves de Azevedo, iniciado investigações sigilosas após a divulgação
chefe do Departamento de Investigações Crimi- da notícia; o travesti Simone, acusado de dissemi-
nais de Florianópolis, declarou que o casal acusa- nar o vírus da aids, passou a ser procurado pela
do de contaminar propositadamente outras pes- polícia de Brasília e sua prisão foi determinada
soas “são dois verdadeiros assassinos”. Apesar pelo delegado Antônio Coelho Neto, que pre-
dos dois viciados negarem a intenção de transmi- tendia tirá-lo de circulação e interná-lo num hos-
tir a doença, ele não teve dúvidas quanto ao pac- pital com escolta policial. Em vários desses epi-
to, tanto que o dr. Luís Carlos dos Santos, dele- sódios, foram acintosamente desrespeitados os
gado da Divisão de Tóxicos, estudava a possibili- direitos elementares destes supostos infratores.
dade de enquadrá-los no artigo 131 do Código Algumas poucas autoridades demonstram
Penal.63 Em Brasília, a faxineira soropositiva foi maior cautela e até preocupação com a integrida-
demitida do banco em que trabalhava e estava su- de física e moral das pessoas acusadas de condu-
jeita à prisão, com base no artigo 267 do Código tas supostamente ilícitas, relacionadas à transmis-
Penal.64 Em Paraguaçu Paulista, Selma Regina de são dolosa do HIV. O delegado Eduardo Eustá-
Jesus, foi presa por ser acusada de transmitir o ví- quio, de Campinas (SP), declarou que esperava
rus da aids. uma ordem judicial para prender a prostituta so-
Diversas vezes, as próprias autoridades sa- ropositiva Edna A. Silva, por transar sem camisi-
nitárias, infringindo o código de ética médica, es- nha, e pedia urgência na decisão, pois, segundo
palham o pânico na população, provocando atos ele, a mulher poderia ser linchada a qualquer mo-
discriminatórios contra supostos portadores do mento. A juíza Maria das Graças Carneiro Requi,
vírus da aids. A já citada diretora do Centro de de Campinas, negou pedido para a internação
Saúde 1, de Guaratinguetá, deu o alerta que uma compulsória de Edna, ressaltando que a aplicação
menor de 16 anos estaria disseminando delibera- da medida, prevista no artigo 97 do Código Pe-
damente HIV; em Cuiabá, o hematologista da nal, é cabível apenas aos inimputáveis (menores
Comissão de Combate à Aids afirmou que um ou doentes mentais) e semi-imputáveis (que não
grupo de dez rapazes portadores do vírus da aids podem ser responsabilizados por seus atos), exi-
estavam contaminando parceiros sexuais, o dire- gindo provas do crime, não bastando a mera
tor do Hospital Nossa Senhora da Boa Hora pro- suposição.65 Segundo o secretário de saúde de
vocou pânico em uma cidade de Sergipe, ao di- Mato Grosso, Ney Moreira da Silva, é muito di-
vulgar uma lista com o nome de menores conta- fícil caracterizar a ação de transmissão intencional
minados pelo HIV por manter relações com um do HIV como criminosa, pois não existe meio le-
homem de 50 anos. E, após a denúncia dos psi- gal para um flagrante: “[Os portadores] têm de
cólogos do Grupo Amor à Vida, a polícia de Pe- ser vistos como vítimas da doença, e não apenas
lotas passou a caçar os “vampiros da morte”. como transmissores, sujeitos a medidas puniti-
vas”.66
A paranóica “aidsfobia” da polícia, em algu-
mas cidades, transformou-se em verdadeira Raras vezes a imprensa colocou em dúvida
“aidsteria coletiva”, com grave constrangimento e a justeza das prisões motivadas pela suposta
violação dos direitos humanos dos suspeitos: a transmissão sexual dolosa do vírus da aids, como
polícia de Itabuna (BA) investiga se Irisvan da ocorreu em Alagoas, onde José Joaquim de Araújo
Cruz Souza, que violentou o sobrinho de 2 anos Filho, 43 anos, vigia, soropositivo, mesmo cons-
de idade, está contaminado pelo vírus da aids; em 65 “Delegado faz alerta: uma mulher está espalhando aids”. Diário da
Manhã, Campinas, s/d.
63 “Viagens de alto risco”. Veja, 28/out./87. 66 “Em Cuiabá, hematologista diz que rapazes estão propagando a
64 “Faxineira contamina colegas com HIV”. IstoÉ, 6/fev./91. aids”. Folha de S.Paulo, 26/nov./87.

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ciente de estar disseminando o vírus da doença, vogado Márcio Thomás Bastos acredita que, em
levantou a controvertida questão da falta de uma se tratando de aids, mesmo que o agente não te-
legislação específica aplicável ao caso. “A culpabi- nha a intenção de transmitir a doença, mas apenas
lidade do portador do HIV, através de relações se- assuma o risco de produzir esse resultado (dolo
xuais sem uso de preservativos para o parceiro, eventual), não seria desproposital pensar em
ainda não é figura específica no Direito. Os juris- homicídio. Marcelo Fontes Barbosa, desembar-
tas procuram, assim, leis que sejam mais adequa- gador do Tribunal de Justiça de São Paulo, defen-
das à conduta.”67 de que, havendo contaminação, é possível falar
Em 1994, o jornal Folha de S.Paulo debate a em homicídio culposo se a pessoa age com “culpa
polêmica questão da transmissão dolosa, na ma- consciente”, mas não tem a intenção de produzir
téria “Transmitir aids de propósito pode virar o resultado, acreditando sinceramente que o con-
novo crime. Comissão que revê o Código Penal tágio não vai ocorrer. Se, nesse meio tempo, a
estuda incluir contágio de moléstia letal”. Segun- ciência descobrir a cura da doença, o crime se tor-
do essa reportagem, o Código Penal em vigor na impossível.
não define, expressamente, o delito de contágio Segundo o Código Penal, homicídio sim-
de doença mortal. Os especialistas afirmam que, ples dá prisão de seis a 20 anos; homicídio quali-
havendo a intenção de matar, por meio da trans- ficado, se cometido com emprego de veneno, fo-
missão do vírus, fica caracterizado o crime de go, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insi-
homicídio, ou de tentativa de homicídio se o con- dioso e cruel, dá prisão de 12 a 30 anos; e homicí-
tágio não ocorrer. dio culposo, prisão de um a três anos. Perigo de
O Código Penal define, nos artigos 130 e contágio venéreo, exposição de alguém por meio
131, respectivamente, os crimes de “perigo de de relação sexual, ou qualquer outro ato libidino-
contágio venéreo” e de “perigo de contágio de so, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou
moléstia grave”. Como a aids não é considerada, deve saber que está contaminando dá prisão de
propriamente, uma doença venérea, pois pode ser três meses a um ano, ou multa. A pena aumenta
transmitida por outras vias que não a sexual, o ar- se é intenção do agente transmitir a doença:
tigo 130 é de difícil aplicação. O crime de perigo prisão de um a quatro anos e multa. O perigo de
de contágio consuma-se na prática de um ato ca- contágio de moléstia grave, prática com o fim de
paz de produzir contaminação, independente- transmitir a outrem moléstia grave de que está
mente de resultado positivo ou negativo, e de contaminado, ato capaz de produzir o contágio
suas conseqüências, pressupondo a intenção da dá prisão de um a quatro anos e multa. Perigo
pessoa de transmitir a doença. Segundo Sylvia para a vida ou saúde de outrem, exposição da vida
Steiner, procuradora da República, ainda que o ou da saúde de outrem a perigo direto e iminente
ato resulte em morte, se não houver a intenção de dá prisão de três meses a um ano, se o fato não
matar, trata-se do crime de perigo de contágio de constitui crime mais grave.68
moléstia grave, que, de acordo com o Código Pe- Mais recentemente, a Comissão Especial
nal, não é agravado pelo resultado, como aconte- do Ministério da Justiça que estudou a
ce, por exemplo, no caso de lesão corporal segui- reformulação do Código Penal aprovou unani-
da de morte. memente como crime a transmissão voluntária e
Luís Antônio Marrey, procurador da Justi- involuntária do HIV, com pena de três meses a
ça, considera que se alguém tem a intenção de dois anos de prisão.69 Segundo O Globo, “porta-
transmitir uma doença grave, hoje incurável, di- dor de aids que fizer sexo sem preservativo cor-
ficilmente vai deixar de ter o dolo de matar. O ad-
68 “Transmitir aids de propósito pode virar novo crime”. Folha de
67 “Lei não pune transmissor do vírus da aids” (matéria de jornal sem S.Paulo, 13/mar./94.
identificação da fonte). Hemeroteca do Arquivo do Grupo Gay da 69 “Transmissão de HIV como crime”. A Ponte – informativo GIV, São
Bahia, set./97. Paulo, mar./98.

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rerá risco de ser punido”. O projeto do novo Có- “Violador aidético é condenado nos Esta-
digo Penal decidiu considerar crime um soropo- dos Unidos” – o vírus HIV foi considerado arma
sitivo manter relações sexuais sem camisinha, as- letal no julgamento de um homem que seqües-
sumindo o risco de transmitir a doença. O trou e violentou um garoto de 11 anos, em Mia-
portador poderá ser condenado pelo crime de pe- mi. Ele foi condenado por tentativa de homicídio
rigo de contágio de moléstia grave ou dano à saú- por ser portador do vírus da aids. Grupos de de-
de. O crime existirá mesmo se o parceiro não for fesa protestaram, argumentando que o processo,
contaminado.70 inédito no país, criminaliza uma doença. Na Ba-
O coordenador do Grupo Pela Vidda viera (Alemanha), o crime é classificado de
(GPV/RJ), Ézio Távora dos Santos, afirma temer homicídio doloso premeditado. Na Rússia, a lei
que o projeto acabe alimentando a discriminação prevê oito anos de prisão para o contaminador
aos portadores do HIV, que serão vistos como al- doloso.73
gozes. Ele explica que a maioria dos HIV+ ignora “Aids dá cadeia nos Estados Unidos” – a
ser portador da doença e, numa relação consen- justiça condenou a 10 anos de prisão um homem
tida entre dois parceiros, não há razão para se res- que havia transmitido deliberadamente o vírus da
ponsabilizar somente um deles pelo contágio. aids para a namorada, em Louisiania (EUA). Sal-
Santos promete atuar no Congresso pela rejeição vatore Gamberela, 28 anos, afirmou ter informa-
da proposta. Na medida em que não utilizam prá- do a namorada D.T., 21 anos, de ser portador do
ticas seguras na relação, ambos os parceiros são vírus. Eles tiveram um filho que não foi contami-
responsáveis. Ronaldo Mussauer, coordenador nado. A defesa pretende recorrer à decisão judi-
dessa ONG, acredita que a Justiça dificilmente cial.74
conseguirá punir alguém com o dispositivo pro- “Estripador faz sétima vítima em Portugal”
posto: numa relação a dois, como será compro- – um psicopata, que supostamente já teria mata-
vado que um ou outro recusou a camisinha? Será do seis prostitutas, ligou para o jornal Correio da
palavra contra a palavra. A advogada Denise Do- Manhã, anunciando ter feito a sétima vítima. Ele
ra, do Grupo Themis, do Paraná, defende que o vem matando mulheres para se vingar de ter con-
Estado não poder interferir na vida íntima das traído o vírus da aids. A maioria das mortes ocor-
pessoas, na mesma linha de argumentação do ci- reu em Lisboa e nos corpos das vítimas havia
tado artigo de Marcelo S. Bessa.71 marcas de tortura.75
“Ladrões de Paris usam seringas como ar-
OCORRÊNCIAS NO EXTERIOR ma” – a polícia francesa recebeu oito queixas de
Arrolamos, a seguir, algumas notícias sobre assaltos aparentemente cometidos por usuários
a transmissão dolosa do vírus da aids no estran- de drogas e munidos de seringas hipodérmicas.
geiro, mostrando como a justiça tem variado na Num dos casos, uma mulher foi ferida com a se-
aplicação da pena em diferentes países. ringa, quando a agressora ficou impaciente, por
“Médico condenado a 50 anos nos Estados conta da demora para entregar o dinheiro.76
Unidos” – o médico Richard Shmidt, que conta- “Aidéticos italianos roubam bancos cientes
minou sua amante com o HIV quando ela amea- da impunidade” – uma gangue de assaltantes de
çou romper a relação, foi condenado a 50 anos de bancos ameaçou realizar novos assaltos, a menos
prisão.72 que recebam assistência do Estado. A prisão dos

70 O Globo, Rio de Janeiro, 27/jan./99. O interessante artigo “Aspec- 73 “Violador aidético é condenado nos Estados Unidos”. Folha de

tos Penais e Político-criminais relacionados com a aids”, de Paulo S.Paulo, 13/mar./94.


Souza Queiroz, discute o tema. 74 “Aids dá cadeia nos Estados Unidos”. A Tarde, Salvador, 16/dez./92.
71 “ONGs rejeitam punição para quem transmitir aids na relação 75 “Estripador faz sétima vítima em Portugal”. Correio da Manhã,
sexual”. O Globo, Rio de Janeiro, 31/jan./99. Campinas, 19/mar./93.
72 “Médico condenado a 50 anos nos Estados Unidos”. Folha de 76 “Ladrões de Paris usam seringas como arma”. Folha de S.Paulo, 25/
S.Paulo, 19/fev./99. set./94.

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assaltantes é impossível, pois uma lei de 1993 as- “Relação sexual desprotegida não é crime
segura a liberdade dos detentos comprovada- na Colômbia Britânica” – o Tribunal da Relação
mente “aidéticos”. Sérgio Magnis, 29 anos, líder da Colômbia Britânica (Canadá) decretou que os
da gangue, declarou: “Todas as vezes que entra- soropositivos que mantêm relações sexuais sem
mos num banco, sabemos que estamos arriscan- revelar o fato aos parceiros não cometem crime.
do a vida. Um policial me disse que estava cansa- Henry Cuerrier foi absolvido por ter tido rela-
do de me prender e ameaçou matar-me com um ções não protegidas com duas mulheres que des-
tiro na cabeça da próxima vez. Eu disse a ele que conheciam a sua situação. Segundo o tribunal, o
agradeceria. Morrer rapidamente com um tiro é direito penal não pode ser usado para obrigar a um
melhor que continuar a viver”.77 comportamento sexual responsável: as pessoas de-
“Ladrão israelense ameaça vítimas com vem proteger a si mesmas.81
aids” – a polícia israelense prendeu um ladrão de “Bissexual é condenado por infectar parcei-
arte que ameaçou infectar os trabalhadores de um ros na Austrália” – um bissexual australiano foi
galeria com HIV. Usuário de drogas, 38 anos, com condenado, em Melbourne, a oito anos de prisão
uma seringa que devia conter sangue com o vírus, por haver mantido relações sexuais com três ho-
o preso confessou o crime, dizendo que não ti- mens sem proteção. Dois deles foram contami-
nha o vírus; era só para assustar as vítimas.78 nados. O acusado tem 52 anos de idade, é pai de
“Homem é acusado de infectar nove com quatro filhos e admitiu saber do risco de trans-
HIV nos Estados Unidos. Vítimas são moças en- missão aos parceiros.82
tre 12 e 13 anos” – Nushawn Williams, 20 anos, “Pai é condenado a prisão perpétua por con-
teve no mínimo 28 amantes, mas calcula-se que taminar filho nos Estados Unidos” – Brian
cem pessoas possam ter contraído o vírus da aids Stewart, 31 anos, funcionário hospitalar, foi con-
por sua causa. As autoridades apelam para que as denado à prisão perpétua por ter injetado sangue
pessoas que tiveram relação com o acusado se contaminado no filho de 11 meses, com o objetivo
submetam a testes, em Nova York. No país existe de não pagar pensão alimentícia à mãe da criança.
jurisprudência de condenação por transmissão do O garoto foi diagnosticado soropositivo em 1996,
HIV. Outro caso recente foi registrado em St. ao ser internado com problemas respiratórios no
Louis (Missouri/EUA), onde Darnel McGee teve hospital onde o pai trabalhava. Agora com sete
sexo com pelo menos cem pessoas depois de sa- anos de idade, ele continua vivo, graças ao trata-
ber que era soropositivo. Cerca de 30 mulheres e mento contra a doença.83
homens foram infectados. McGee foi assassina-
do em um assalto.79 CONCLUSÃO
“Finlândia condena soropositivo à prisão” – A imprensa brasileira vem registrando, des-
o cantor negro norte-americano Steven Thomas de que a aids surgiu no País, não apenas os pro-
foi condenado a 14 anos de prisão, por tentativa de blemas sociais e de saúde pública decorrentes
assassinato, ter mantido relação com cem mulhe- dessa nova e complexa doença. Também vem re-
res e contaminado 17 finlandesas em relações se- fletindo os medos, as angústias e as inseguranças
xuais sem preservativo. O americano sabia ser por- de que todos nós, cidadãos comuns, nos torna-
tador do HIV e deverá pagar multa às vítimas.80 mos a um só tempo vítimas e partícipes, na me-
77
dida em que a síndrome deixou de ser a “peste
“Aidéticos italianos roubam bancos cientes da impunidade”. A
Tarde, Salvador, 14/ago./95.
78 “Ladrão israelense ameaça vítimas com aids”. Reuters, Rio de 81 “Relação sexual desprotegida não é crime na Colômbia Britânica”
Janeiro, 15/ago./95. (matéria de jornal sem indicação da fonte), 10/abr./97.
79 “Homem é acusado de infectar nove com HIV nos Estados Uni- 82 “Bissexual é condenado por infectar parceiros na Austrália”. O
dos”. Folha de S.Paulo, 28/out./97. Estado de S.Paulo, 8/mar./98.
80 “Finlândia condena soropositivo à prisão”. Folha de S.Paulo, 14/jul./ 83 “Pai é condenado a prisão perpétua por contaminar filho nos Esta-
97. dos Unidos”. Folha de S.Paulo, 24/abr./98 e 9/jan./99.

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gay” para se tornar a “epidemia do século”, amea- leitmotiv unificador de todos esses grupos, ONGs
çando senão a cada um de nós em particular, e entidades da sociedade civil nascidos com a aids
quando menos atingindo pessoas próximas – co- tem sido um dos sentimentos que mais dignifi-
legas, amigos e familiares. A desinformação dos cam a espécie humana: a solidariedade.
jornalistas, o uso de termos preconceituosos re- Nunca se falou e se praticou tanto a solida-
jeitados pelos portadores do HIV ou pessoas vi- riedade como depois do surgimento dessa pande-
vendo com aids, a indiscrição na maneira de di- mia. Nenhuma doença, como a aids, mobilizou
vulgar nomes, locais de residência e particularida- tanto e os mais diversos setores de nossa socieda-
des de supostos soropositivos: todas essas con- de, da academia às igrejas, dos ministérios gover-
dutas antiéticas foram fartamente observadas em namentais às ONGs, da imprensa às artes. Campa-
nhas governamentais e a celebração anual do Dia
diversas reportagens que nos serviram de matéria
Mundial de Luta contra Aids, seminários e con-
prima para este ensaio.
gressos têm sido promovidos como estratégia de
Mais grave ainda é o sensacionalismo como luta, com vistas ao controle da epidemia, à defesa
muitos repórteres noticiaram simples suspeitas dos direitos humanos e da cidadania dos portado-
de contágio acidental, como se fossem casos res desse vírus e ao apoio aos seus familiares.
comprovados de contaminação intencional, pro- Nesse sentido, após a leitura de todos esses
vocando algumas vezes pânico e cruéis lincha- episódios relativos à suposta ou efetiva transmis-
mentos psicológicos e sociais em vítimas inocen- são dolosa do HIV, consideramos urgente que as
tes ou já extremamente vulnerabilizadas pelo ví- ONGs/aids, sobretudo as que trabalham direta-
rus. Com o passar dos anos e a “banalização” da mente com os soropositivos, desenvolvam traba-
aids, tornada uma doença cada vez mais epidemi- lho sistemático e dirigido de conscientização des-
ologicamente controlável e individualmente tra- sa população-alvo, no sentido de despertar-lhe
tável, todo o escândalo e sensacionalismo dos pri- sentimentos e compromisso de responsabilidade
meiros anos evoluiu felizmente para um trata- e solidariedade em relação ao resto da sociedade,
mento mais profissional e ético por parte dos jor- de modo a jamais tornar-se transmissora aciden-
nalistas e formadores de opinião. Isso, apesar de tal, e muito menos proposital, do HIV.
algumas reportagens e colunas de opinião, inclu- Urge que seja discutida e implementada
uma ética relacional e normas de conduta entre
sive nos principais jornais do País, insistirem ain-
os soropositivos, no sentido de que também eles
da hoje no uso politicamente incorreto do termo
façam da solidariedade a inspiração de seu conví-
aidético, quando os próprios membros dessa mi- vio com as demais pessoas, evitando situações
noria social querem ser chamados de soropositivos que ponham em risco a incolumidade alheia. E
ou pessoas vivendo com aids. nos casos em que houver provas robustas da
Doença nova, transmitida sobretudo por transmissão intencional do HIV, que os agentes da
meio de relações sexuais, inicialmente mais ho- polícia e da justiça ajam igualmente dentro da éti-
mossexual, mas hoje em dia completamente he- ca profissional, evitando agravar tais ocorrências
terossexualizada, a aids foi responsável pelo sur- delituosas com condenáveis manifestações de
gimento de um dos movimentos sociais mais sig- preconceito e discriminação.
nificativos das últimas décadas: as chamadas Esperamos, com este artigo, ter trazido à
ONGs/aids. Várias centenas só no Brasil, algumas discussão e chamado a atenção de nossos legisla-
direcionadas à prevenção junto à população em dores, órgãos públicos e ONGs para a importância
geral ou a grupos específicos (usuários de drogas, de encontrar soluções mais justas e adequadas
gays, profissionais do sexo etc.), outras voltadas com vistas a enfrentar as preocupantes e dramá-
para apoio e assistência aos soropositivos e pes- ticas situações aqui relatadas, garantindo a todos,
soas vivendo com aids (casas de apoio a crianças independentemente da situação sorológica, o res-
com HIV, a portadores sem teto, grupos religio- peito a seus direitos humanos e jurídicos e à plena
sos e psicológicos de suporte emocional etc.). O cidadania.

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Rerências Bibliográficas
MOTT, L. Aids e os médicos no Brasil.Ciência e Cultura, 39, (1) 4-13, 1987.
MOTT, L. & ASSUNÇÃO, A. Gilete na carne: etnografia das automulitações dos travestis da Bahia.Temas do IMESC, (4), 47-
56, 1987.
MOTT, L. & CERQUEIRA, M.As Travestis da Bahia e a Aids. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia/Ministério da Saúde, 1997.
SARDÁ, E.S. A transmissão dolosa do HIV e o atual Código Penal. In: RUDNICK, D. Aids e Direito: papel do Estado e da socie-
dade na prevenção da doença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

Dados do autor
LUIZ MOTT
Universidade Federal da Bahia, Grupo Gay da Bahia.

Recebimento artigo: 27/mar./02


Consultoria: 1.º/abr./02 a 17/maio/02
Revisão do autor: 22/maio/02 a 07/jun./02
Aprovado: 26/ago./02

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AIDS/
AIDS/ MAURO MENDES DIAS
Escola de Psicanálise de
Resumo O presente artigo sustenta, a partir da prática psicanalítica, que o reconheci- Campinas
mento do desejo inconsciente que habita o sujeito portador do vírus HIV é um fator [email protected]
decisivo no desenrolar do avanço da doença, permitindo, em muitos casos, a remissão
da gravidade dos sintomas. Estabelece-se, também, que o tipo de lugar conferido à
medicação pode constituir um elemento responsável pela interrupção da melhora clí-
nica. Uma retomada do sentido do que está em jogo com a presença da aids recoloca
a indissociabilidade da morte com a vida, de um modo que permite ao sujeito quali-
ficar sua existência de uma forma diferenciada.

Palavras-chave AIDS – DESEJO INCONSCIENTE.

Abstract Grounded on the psychoanalytical practice, the current work develops the
idea that the recognition of the unconscious wish existing in HIV carriers is a decisive
factor in the progress of the disease. Indeed, in many cases such will even reduces the
seriousness of the symptoms. It is also established that the kind of place ascribed to
medication may become an element responsible for the interruption of the clinical
improvement. By recapturing the meaning of that which is at stake with the presence
of aids, the indissociability of life and death is restored so as to allow subjects to qua-
lify their experience in a different way.

Keywords AIDS – UNCONSCIOUS WISH.

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A
abordagem psicanalítica do paciente portador do vírus
do HIV distingue-se dos demais tipos de tratamento, na
medida em que se orienta pela forma segundo a qual
cada sujeito é afetado subjetivamente. Significa admitir,
por exemplo, que uma pessoa pode ter sido contaminada
pelo vírus, ter conhecimento disso, e procurar um psica-
nalista, sem privilegiar tal condição como motivo da
consulta. Nesse sentido, a escuta do psicanalista se reno-
va, pela aids, como sendo orientada pelas questões que o sujeito dirige ao
psicanalista, e não mais em função da realidade, que pode ter deixado suas
marcas para além da fala.
A descoberta freudiana do inconsciente se define por duas conse-
qüências:
1. o sentido da fala é decidido por aquele que escuta. Tal condição ilus-
tra o descentramento que é próprio ao conceito de inconsciente. Isso
porque aquele que fala não é coincidente com aquele de quem se fa-
la. O que significa afirmar que aquele que fala perde, com o incons-
ciente, o lugar de comando e decisão sobre a verdade do que diz.
Por isso mesmo a descoberta do inconsciente e suas leis de funcio-
namento dão origem à noção de sujeito dividido (notado no ‘S’, de
sujeito, com uma barra que o divide, no título do artigo), ou seja, di-
vidido, descentrado pelo inconsciente que fala mais além da vontade
do sujeito, mais além de suas intenções, nos sonhos, nos atos falhos,
nos chistes etc.;
2. a existência de uma sincronia entre inconsciente e desejo. Ela se rea-
liza a cada vez que uma manifestação do inconsciente tem lugar.
Nesse momento efetiva-se o retorno de uma questão do sujeito, re-
lativa a um desejo que insiste em se fazer presente, a despeito de
qualquer explicação que se pretenda realizar. Por isso mesmo é ne-
cessário não sobrepor um significado imediato sobre o que retor-
nou no discurso, posto que essa é uma forma de fazer com que as
possibilidades de conexão se percam e se desviem do que interessa
tratar. Sendo assim, tal sincronia introduz a necessidade de levar o
sujeito que diz a procurar, através de associação, as diferentes aber-
turas que se efetuam para seu desejo, a partir da manifestação do in-
consciente. O que leva a concluir que, na experiência psicanalítica, o
saber se encontra do lado analisante.
Tendo em vista que, para a psicanálise, há uma demanda de sujeitos
portadores do vírus do HIV interessados em realizar uma análise, cabe
perguntar: uma afecção considerada durante muito tempo como um fla-
gelo da humanidade, para a qual não existe cura prevista e cuja estabili-
zação e remissão da ação do vírus deve ser mantida em vigilância cons-
tante, por que gera nos sujeitos um tal interesse?
Questão que merece ser realçada, posto que, desde seu surgimento,
a aids tem sido, em termos de tratamento, associada ao campo médico.
Contudo, como foi notado no início deste artigo, o homem é portado

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pelo inconsciente. O que significa que quanto cunas, de esquecimentos, que situam as diferen-
mais se faz questão de silenciar tal condição, re- tes conexões com as questões do sujeito, tendo
duzindo-o a um corpo que merece cuidados, em vista o privilégio outorgado ao inconsciente.
mais os efeitos esperados da medicação deixam Sendo assim, para considerar o sujeito portador
de fazer efeito. É o que podemos notar, em nossa do vírus do HIV como alguém que participa dos
experiência clínica, com sujeitos que, após terem efeitos do inconsciente será preciso fazer bascu-
começado uma análise, obtiveram uma melhora lar o lugar imperativo conferido à doença. Nesse
significativa do quadro de comprometimento sentido, um dos desafios que a aids produz para
que haviam atingido. Considero que essa mudan- um psicanalista é o de ter que decantar sua posi-
ça se deveu a uma possibilidade de reconheci- ção em defesa da terapêutica, tão-somente, uma
mento de desejo em tais sujeitos, a partir das vez que é confrontado com os sujeitos que vêm,
questões que começavam a elaborar. E esse reco- sem sabê-lo, marcados pelo voto de anulação da
nhecimento abarca uma condição totalmente dis- condição desejante, que a passagem pelo discurso
tinta daquela pela qual o sujeito é considerado no científico determina.
discurso médico. Trata-se aqui da distinção exis- Se o reconhecimento do desejo pode ser
tente entre o ser de desejo e o ser de cuidados. Ou responsável pela agilização de condições diferen-
ainda, da distinção entre o corpo erógeno e o corpo ciadas promovidas pela afecção, é preciso insistir
biológico. que elas não se sustentarão, caso o psicanalista
Afirmar que o reconhecimento do desejo queira, com isso, negligenciar o lugar do trata-
num sujeito pode ser responsável por uma mento médico. Isso porque, falar de reconheci-
transmutação no grau de comprometimento que mento de desejo, através da presença do incons-
a doença impunha exige que se possa explicitar, ciente, implica ter de poder sustentar tais desejos
de saída, que a operação de reconhecimento não que comparecem, de forma inédita. Fica assim
é sinônima de conforto psicológico, com nuances definida uma responsabilidade com os desejos
mais ou menos acentuadas em torno da intensi- que advêm no decurso do tratamento psicanalíti-
dade afetiva dispensada. A noção de reconheci- co, pelo analisante. Condição tão mais embaraço-
mento encontra, pela psicanálise, em primeiro lu- sa quanto mais o analisante se dá conta de que sua
gar, um comprometimento daquele que escuta, dificuldade em sustentar posições diferenciadas
ou seja, do psicanalista. Para tanto, é preciso que não pode ser justificada pela aids. São os momen-
o psicanalista possa aceder a uma condição em tos de risco para o tratamento analítico, uma vez
que sua práxis se distingue, na medida em que ele que o sujeito vacila entre querer abandonar o tra-
é capaz de fazer agir um lugar diferenciado. O tamento, ao lado de uma outra posição, mais
psicanalista se compromete para além do parceiro complexa a nosso ver, que consiste no desencade-
imaginário, promotor do conforto reparatório amento de uma série de sintomas, que anterior-
que lhe é demandado. mente haviam encontrado uma remissão e que
Para que o reconhecimento de desejo possa agora retornam, sem qualquer tipo de explicação
advir na experiência analítica, será preciso que, a aparente.
partir do lugar terceiro ocupado pelo psicanalista, Uma vez que nos referimos, pela experiên-
seja agenciada a condição de reconhecer um além cia de retorno de sintomas, à ligação entre in-
do que é dito. Trata-se da dimensão do mais além, consciente e corpo, vale marcar que a dificuldade
como sinônimo da presença do inconsciente. In- estabelecida para alguns sujeitos em reconhecer
siste-se aqui que afirmar um mais além do que é suas limitações com a vida reforça-se, devido à
dito não significa encontrar um sentido escondi- identidade que adquirem, sob o rótulo de porta-
do por detrás daquilo que se fala. Não há atrás da dores do HIV, ou então, como aidéticos. Depen-
fala. O que existe são diferentes pontos de clau- dendo do tipo de história de vida, ao lado de seu
dicação, de hesitação, de falha no discurso, de la- tipo clínico, o sujeito poderá optar em preferir

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ser tratado como um doente terminal a ter que se da interpretação que o psicanalista realiza em mo-
deparar com sérias limitações subjetivas. O que mentos de impasse, para além do reconhecimen-
implica admitir, pelo que a clínica nos ensina, que to da aids como questão principal. Nesse caso,
um sujeito pode optar em se manter na doença, contaminar todos que estão à volta, desprezando
quando se sente ameaçado em se confrontar com qualquer tipo de cuidado, caracteriza-se como
um outro aspecto de sua existência, acobertado um acting-out, ou seja, como uma ação que o su-
pelos diferentes cuidados que sempre lhe foram jeito vai realizar fora do circuito da elaboração,
promovidos enquanto corpo biológico, e não en- enquanto uma maneira de fazer constar, de modo
quanto corpo erógeno, ou seja, corpo marcado denegatório, que sua capacidade de enfrentar di-
por sexualidade desejante, que nada mais é do que ficuldades está para além do que pode ter sido su-
o outro nome da subjetividade em psicanálise. gerido. Tanto é assim que ele se encontra reali-
Constatamos que, não somente um sujeito zando ações muito mais difíceis do que as men-
pode preferir se refugiar na doença, produzindo cionadas, arriscando-se a morrer, ao lado de tor-
sintomas, mas também que, quando confrontado nar sensível o caráter agressivo da ação dirigida ao
com limitações relativas a seu desejo, à sua exis- psicanalista.
tência, tende a surgir uma prática de vida inteira- A posição de contaminar os que estão à
mente desleixada quanto aos cuidados relativos à volta conserva íntima relação com o tipo de dis-
sua própria condição, assim como à de terceiros. curso que se mantém sobre a aids, numa dada so-
Encontramos, nesse caso, uma saída distinta da ciedade. Isso porque o que o sujeito procura reali-
que foi indicada antes. Isso porque o sujeito não zar com tal gesto é colocar todo o seu mundo sob
apenas se afunda na doença. Mais do que isso, faz uma égide mortífera. Acentuar, potencializar, dis-
questão de que aqueles que estão à sua volta sejam seminar a extensão da possibilidade de morrer.
tragados por ela também. É o caso de sujeitos que, Como não reconhecer aqui, pelo avesso, o retor-
ao saber que estão contaminados, praticam sexo no de um discurso que insiste na possibilidade de
com o maior número possível de parceiros, fazen- sobrevivência, apenas para aqueles que se manti-
do questão de transmitir a doença. Condição na verem dentro das condições ideais de vida? Todos
qual não apenas o sujeito responsabiliza os outros aqueles que se mantêm fora disso estão condena-
por seu estado como, mais do que isso, encontra- dos à extinção. Portanto, disseminar a doença é
mos uma reação narcísica, regida pelo princípio de uma forma de protestar contra as condições
que a vida acaba para todos, uma vez que ela se co- assépticas de viver. Condições essas que são cada
loca em risco para ele. Tal posição merece, ao me- vez mais proclamadas, quanto mais se faz questão
nos, uma tríplice consideração. de se afirmar que a aids pode ser evitada apenas
As reações narcísicas são esperadas quando usando camisinha. Como se o uso da camisinha
a vida é colocada em risco. Significa afirmar que o pudesse ser erigido em condição ideal para o se-
sujeito tende a procurar desenvolver recursos que xo, desfazendo qualquer tipo de mal-estar. En-
lhe garantam a sustentação da própria imagem, quanto as campanhas de prevenção continuarem
mesmo em condições em que a vida se revela a negligenciar que o uso da camisinha provoca
próxima à extinção. É o caso de pacientes termi- desgaste, objeções, continuaremos a assistir a um
nais que fazem questão de se vestir com as roupas tipo de campanha que, em nome de evitar a do-
de suas preferências, ou seja, aquelas em que eles ença, promove paralelamente o flagelo.
melhor se vêem. Pela experiência analítica, podemos consta-
O desencadeamento de reações, como a ci- tar que o tipo de reconhecimento dispensado ao
tada anteriormente, contaminando os que estão à sujeito do inconsciente é capaz de promover efei-
volta, deve ser considerada de forma distinta tos no curso da doença. Contudo, o manejo de
quando o sujeito está em análise. Isso porque tal tal prática não se desenrola de maneira linear. Por
condição pode ser deflagrada pelo tipo de manejo isso mesmo, é necessário considerar um outro fa-

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tor acoplado ao desejo. Trata-se de um compo- O que nos leva a considerar que a insistên-
nente de fundamental importância, nomeado cia para manter o tratamento encontra funda-
como gozo, que se define pelas diferentes relações mento em um lugar distinto daquele no qual em
com a satisfação que um sujeito pode experimen- geral é indicado, ou seja, no poder eficiente da
tar, no uso de um objeto desejado. Portanto, ao medicação. Trata-se de considerar que aquilo que
tratar da economia do gozo, haveremos de nos tem sido designado como sucesso do tratamento
confrontar com uma tendência que se encaminha mantém íntima relação com a forma pela qual se
na direção contrária à do prazer, uma vez que esse prescreve a medicação, ou ainda, com o lugar
último mantém, como objetivo, a consecução do ocupado pelo objeto remédio para aquele que o
menor dispêndio de energia. Nesse sentido, a prescreve.
economia do gozo caminha na direção de um Sabe-se, desde sempre, do efeito placebo
tensionamento que é efeito da tentativa de reen- como responsável por melhoras que sequer po-
contro com um objeto considerado como sendo deriam ser atribuídas à composição química do
de satisfação. remédio. Portanto, mais do que acreditar que
Na perspectiva do gozo, podemos situar os uma medicação possa fazer efeito direto sobre o
diferentes sacrifícios que os sujeitos se dispõem a problema visado, precisamos considerar que tal
cumprir, em nome de encontrar a satisfação es- idéia é solidária de um delírio, qual seja, que há
perada. Por isso mesmo é preciso intervir no sen- uma ligação estreita entre o que a medicação se
tido de fazer emergir a questão do desejo do su- propõe a tratar e o órgão, ou sistema do corpo.
jeito, de forma que ele possa escolher uma via que Essa idéia de uma ação direta da medicação sobre
se apresente como digna de sustentar sua existên- o corpo é o fundamento da redução do ser falante
cia. Sendo assim, é de fundamental importância a um conjunto de órgãos a serem cuidados. Tal
que os praticantes da psicanálise possam estar em observação em nada desautoriza ou mesmo inva-
condições de se desembaraçar do fascínio dos lida o poder eficaz da medicação. Considera-se
ideais, a partir dos quais um sujeito pode modelar aqui a necessidade de investigar o sujeito a quem
sua vida. O que há de problemático na economia se prescreve, no que diz respeito a suas fantasias
do gozo são os diferentes tipos de agenciamentos de ação do remédio. Isso porque, quanto mais ele
discursivos presentes na base da vida social, respon- estiver convencido de uma ação direta e eficiente
sáveis pela instrumentalização da vida. E um sujeito da medicação, mais ele se constitui como candi-
poderá se objetificar, recusando qualquer particula- dato a que a medicação deixe de cumprir seu efei-
ridade que as manifestações do inconsciente con- to em pouco tempo. E o curioso é que não há
ferem, uma vez que se coloque no lugar de objeto exame clínico que esclareça os motivos da inter-
do discurso, que lhe promete o encontro com a rupção.
satisfação esperada. Uma vez que se considera que o objeto re-
Um dos efeitos do discurso da ciência ca- médio participa da crença do sujeito em restituir
racteriza-se pela condição de rasurar a presença um estado suposto de ter existido, ou almejado
do inconsciente. Em nome da cura, são validados de ser conquistado em sua integralidade, podere-
todos os tipos de procedimentos que permitam mos admitir que a instrumentalização do sujeito
alcançar o fim desejado. Por isso mesmo o aban- é co-extensiva de sua abdicação como desejante.
dono do tratamento modaliza-se como um dos Contudo, de modo não menos surpreendente, a
efeitos que o sujeito encontra como alternativa, clínica psicanalítica nos ensina que tudo aquilo
dizendo não, recusando a se tratar, como um úl- que um dia foi expulso da possibilidade de ser ad-
timo refúgio a partir do qual poderia encontrar mitido retorna para o próprio sujeito, seja sob
alguma opção. O problema desse tipo de escolha forma de acesso possível de elaboração, seja sob a
se verifica pelo preço implicado. de assombro, através do exterior que, nesse caso,

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se torna íntimo. Nessa direção, o que reencontra- tudo, resta admitir que o que reencontramos pela
mos através da aids? aids não é justamente o fator que sempre esteve
Diferentes respostas foram formuladas. presente na sexualidade e, por isso mesmo, se
Preço pela devassidão, acidente de laboratório, manteve evitado: a ligação com a morte. Se agora
vida desregrada dos africanos com os símios, en- somos obrigados a nos confrontar com esse fa-
fim, numa palavra, castigo. Não nos parece que tor, abre-se então a possibilidade de, pela psica-
uma tal concepção esteja afastada de seu objeto, a nálise, fazer da morte o termo indissociável da vi-
sexualidade. Se é preciso relembrar sempre a liga- da. Nessa direção, vale considerar que a barra que
ção do sexo com a culpa, o castigo parece ser um divide o sujeito é a condição que o alinha com o
ônus esperado. Resposta que certamente conso- desejo, comprometendo-o com a morte, pela cas-
laria os moralistas, assim como os devotos. Con- tração.

Referências Bibliográficas
DIAS, M.M. Clínica do psicanalista, ciência e capitalismo.Revista do Centro de Estudos Freudianos do Recife.Recife, 2002.
FREUD, S. Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago, 2.a ed., v. XVII, 1987.
LACAN, J. O Seminário. Livro VII: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
___________. O Seminário. Livro XVII: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

Dados do autor
MAURO MENDES DIAS
Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise de Campinas

Recebimento artigo: 18/jun./02


Consultoria: 1.o/jul./02 a 5/ago./02
Revisão das autoras: 13/ago./02 a 19/ago./02
Aprovado: 26/ago./02

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REVISTA IMPULSO

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO


PRINCÍPIOS GERAIS
1 A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e rese-
nhas nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte central do
espaço de cada edição a um tema principal.
2 Os temas podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de artigo:
• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre deter-
minado tema;
• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em anda-
mento;
• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da biblio-
grafia disponível;
• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;
• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou teses.
Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.
3 Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.
4 Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o autor
informado do andamento do processo de seleção:
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• qualidade científica, atestada pela Comissão Editorial e por processo anônimo de avaliação
por pares (peer review), com consultores não remunerados, especialmente convidados, cujos
nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;
• cumprimento das presentes Normas para Publicação.
5 Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.
6 Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gra-
maticais, adequações estilísticas e editoriais).
7 Não há remuneração pelos trabalhos. O(s) autor(es) recebe(m) 10 (dez) separatas do seu
artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista com desconto de 30% sobre o preço
de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, a preço de custo equivalente ao
número de páginas e de cópias delas.
8 Os artigos devem ser encaminhados ao editor da Impulso, em três cópias, sendo uma com os
dados do autor e as outras duas apenas com o título do artigo (portanto, sem identificação de
autoria), acompanhadas de ofício, do qual constem:
• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;
• concordância com as presentes normatizações;
• informações sobre o autor: titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua, endereço
para correspondência, telefone fax e e-mail.

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ESTRUTURA
9 Elementos do artigo (em folhas separadas):
a)IDENTIFICAÇÃO
• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente o
conteúdo do texto;
• nome do AUTOR, titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;
• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;
• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.
b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE
• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denomi-
nado ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;
• para fins de indexação, o autor deve indicar os termos-chave (mínimo de três e máximo de
seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).
c)TEXTO
• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao autor criar os entretítu-
los para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;
• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro
comentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano;
total de páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de TESES, segue-se o mesmo
princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituição na qual foi produzida.
d)ANEXOS
• Ilustrações (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).
e)DOCUMENTAÇÃO
NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no corpo do
texto.1
CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico), após
as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOME do autor,
ano da publicação e página em que se encontra a citação.2
CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatro
centímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posterior por
uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indicando o SO-
BRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3
Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de publi-
cação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o padrão abaixo.
A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer no
fim do artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o seguinte
padrão:

LIVROS
SOBRENOME, N.A. (nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; nomes de até dois autores, separar por
“&”; quando houver mais de dois, registrar o primeiro deles seguido da expressão“et al.”).Título: subtítulo. Cidade:
Editora, ano completo, volume). [Não deve constar o número total de páginas].Ex.:

1 Esta numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como o empre-
gado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiúscula, seguido
do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.
2 FARACO & GIL, 1997, pp. 74-75.
3 FARIA, 1996, p. 102.

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FARACO, C.E. & MOURA, F.M.Língua Portuguesa e Literatura. São Paulo: Ática, 1997, v. 3.
FARIA, J. A Tragédia da Consciência: ética, psicologia, identidade humana.Piracicaba: Editora Unimep, 1996.
GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.
GIL, A.C.Técnicas de Pesquisa em Economia. São Paulo: Atlas, 1991.
• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM mesmo autor: após a primeira citação completa, introduzir a nova
obra da seguinte forma:
• _________. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.
• OBRAS sem autor definido:
• Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2.ª ed. São Paulo, 1987.

PERIÓDICOS
NOME DO PERIÓDICO. Cidade. Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.:
REFLEXÃO. Campinas. Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.
• ARTIGOS DE revista:
SOBRENOME, N.A.Título do artigo.Título da revista, Cidade, volume (número/fascículo): páginas incursivas, ano.Ex.:
FERRAZ,T.S.Curva de demanda,tautologia e lógica da ciência.Ciências Econômicas e Sociais,Osasco,6 (1):97-105,1971.
• ARTIGOS DE jornal:
SOBRENOME, N.A.Título do artigo,Título do jornal, Cidade, data, seção, páginas, coluna.Ex.:
PINTO, J.N. Programa explora tema raro na TV,O Estado de S.Paulo, 8/fev./1975, p. 7, c. 2.

FONTES ELETRÔNICAS
A documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:
• sobrenome e nome do autor;
• título completo do documento (entre aspas);
• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);
• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;
• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares);
• data de acesso (entre parênteses).
Exemplos:
Site genérico
LANCASHIRE, I. Home page. Sept. 13, 1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html> (10/dez./98).
Artigo de origem impressa
COSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5.O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br> (6/dez./98).
Dados/textos retirados de CD-rom
ENCICLOPÉDIA ENCARTA 99. São Paulo: Microsoft, 1999.Verbete“Abolicionistas”.CD-rom.
Artigo de origem eletrônica
CRUZ, U.B. “The Cranberries: discography”. The Cranberries: images. Feb./97. <http://www.ufpel.tche.br/~ bira/
cranber/cranb_04.html> (12/jul./97) .
OITICICA FILHO, F.“Fotojornalismo, ilustração e retórica”.<http://www.transmidia.al.org.br/retoric.htm> (6/dez./98).
Livro de origem impressa
LOCKE, J. A Letter Concerning Toleration. Translated by William Popple. 1689. <http://www. constitution.org/jl/
tolerati.htm>.

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0000_Impulso_32.book Page 184 Thursday, September 18, 2003 9:52 AM

Livro de origem eletrônica


GUAY, T. A Brief Look at McLuhan’s Theories. Web Publishing Paradigms. <http://hoshi.cic.sfu. ca/~guay/Para-
digm/McLuhan.html> (10/dez./98).
KRISTOL, I. Keeping Up With Ourselves. 30/jun/96. <http://www.english.upenn.edu/~afilreis/50s/kristol-
endofi.html> (7/ago./98).
Verbete
ZIEGER, H.E.“Aldehyde”.The Software Toolworks Multimedia Encyclopedia. Vers. 1.5. Software Toolworks. Boston:
Grolier, 1992.
“Fresco”.Britannica Online.Vers. 97.1.1. Mar./97.Encyclopaedia Britannica. 29/mar./97. http://www. eb.com:180.
E-mail
BARTSCH, R. <[email protected]>“Normas técnicas ABNT - Internet”.13/nov./98. Comunicação pessoal.
Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.)
ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br> (2/set./97).
Lista de discussão
SEABROOK, R.H.C. <[email protected]> “Community and Progress”. 22/jan./94. <cybermind@jefferson.
village.virginia.edu> (22/jan./94).
FTP (File Transfer Protocol)
BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. <ftp://ftp. media.mit.edu/
pub/asb/papers/deviance-chi-94> (4/dez./94).
Telnet
GOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3 May 1992. telnet
lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13 (5/dec./94).
Gopher
QUITTNER, J. “Far Out: Welcome to Their World Built of MUD”. Newsday, 7/nov./93. gopher University of Koeln/
About MUDs, MOOs, and MUSEs in Education/Selected Papers/newsday (5/dec./94).
Newsgroup (Usenet)
SLADE, R. <[email protected]>“UNIX Made Easy”.26 Mar.1996. <alt.books.reviews> (31/mar./96).
10 Os artigos devem ser escritos em português, podendo, contudo, a critério da Comissão Edito-
rial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.
11 Os textos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papel
branco, não transparente e de um lado só da folha.
12 As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão
do texto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de
modo a garantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em
letras minúsculas. As TABELAS devem ser editadas na versão Word.6 ou 7, com formatação
necessariamente de acordo com as dimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos
de suas apresentações ao longo do texto; não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais
para separar colunas. As FOTOGRAFIAS devem ser em preto e branco, sobre papel brilhante,
oferecendo bom contraste e foco bem nítido. GRÁFICOS e DESENHOS devem ser incluídos nos
locais exatos do texto. No caso de aprovação para publicação, eles precisarão ser enviados em
disquete, e necessariamente em seus arquivos originais (p. ex., em Excel, CorelDraw, Pho-

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toShop, PaintBrush etc.) em separado. As figuras, gráficos e mapas, caso sejam enviados para
digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As convenções precisam aparecer
em sua área interna.
13 ETAPAS de encaminhamento dos artigos: 1. apresentação de três cópias impressas do artigo para
submissão à Comissão Editorial da Revista e aos consultores, juntamente com brevíssimo currí-
culo do autor. Os pareceres, sigilosos, são encaminhados aos autores para as eventuais mudan-
ças; 2. se aprovado para publicação, o artigo deve ser reapresentado à Editora, já com as devidas
alterações eventualmente sugeridas pela Comissão Editorial, em uma via em papel e outra em
disquete, com arquivo gravado no formato Word. Devem acompanhar eventuais gráficos e
desenhos suas respectivas cópias eletrônicas em linguagem original. Após a editoração final, o
autor recebe uma prova para análise e autorização de impressão.

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NÚMEROS ANTERIORES
Adquira os números da Impulso ou separatas dos artigos neles publicados.

Impulso 31 – vol. 13 – 2002 Impulso 30 – vol. 13 – 2002


“Integração Regional – novos blocos econômicos “Ecologia & Economia”
continentais”

Impulso 29 – vol. 12 – 2001 Impulso 28 – vol. 12 – 2001


“Modernidade & Pós-Moderniade” “Friedrich Nietzsche”

impulso nº 32 187
0000_Impulso_32.book Page 188 Thursday, September 18, 2003 9:52 AM

Impulso 27 – vol. 12 – 2000 Impulso 26 – vol. 11 – 1999


“Brasil” “100 anos de A Interpretação dos Sonhos”

Impulso 25 – vol. 11 – 1999 Impulso 24 – vol. 11 – 1999


“Indicadores de Exclusão” “Impressionismo”

Editora UNIMEP
<www.unimep.br/editora>
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2002
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ELIAS BOAVENTURA REGINA CÉLIA F. SIMÕES
ELISABETE STRADIOTTO SIQUEIRA ROSA GITANA KROB MENEGHETTI
ERCÍLIO ANTONIO DENY ROSELI PACHECO SCHNETZLER
FRANCISCO KRUG RUI DE SOUZA JOSGRILBERG
FRASER G. MACHAFFIE RUI DÉCIO MARTINS
GABRIELE CORNELLI SEBASTIÃO NETO R. GUEDES
JEZIEL DE PAULA SILVIO DONIZETTI DE O. GALLO
JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR STELA POJUCI F. DE MORAIS
JORGE LUÍS MIALHE SUELI MAZZILLI
JORGE PAULO DOS SANTOS S. WATRIN TÂNIA MARA VIEIRA SAMPAIO
JOSÉ LIMA JÚNIOR UWE HERPIN
JOSÉ LUÍS CORRÊA NOVAES VALDEMIR APARECIDO PIRES
JOSÉ MARIA PAIVA VICTOR HUGO TEJERINA VELÁZQUEZ
JOSIANE MARIA DE SOUZA WAGNER WEY MOREIRA
JUAN CARLOS BERCHANSKY WALTER DE FRANCISCO
KARINA L. PASQUARIELLO MARIANO ZILDO GALLO

impulso nº 32 189

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