Genero Religiao e Poder Na Antiguidade

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Gênero, reliGião e

poder na antiGuidade
contribuições interdisciplinares
Leni RibeiRo Leite
GiLvan ventuRa da SiLva
Raimundo CaRvaLho
organizadores

Gênero, reliGião e
poder na antiGuidade
contribuições interdisciplinares

vitória, eS
2012
 2012 Gm editora
todos os direitos reservados. a reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio,
sem autorização da editora, constitui violação da Lda n° 9.610/98

Conselho Editorial
Adriana Pereira Campos (Ufes)
Antônia de Lourdes Colbari (Ufes)
Gilvan Ventura da Silva (Ufes)
João Fragoso (UFRJ)
Keila Grinberg (UNIRIO)
Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ)
Manolo Garcia Florentino (UFRJ)
Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca)
Norma Musco Mendes (UFRJ)
Surama Conde Sá Pinto (UFFRJ)
Wilberth Clayton F. Salgueiro (Ufes)

Capa, projeto gráico e editoração eletrônica


Edson Maltez Heringer | 27 8113-1826 | [email protected]

Revisão
Os autores

Impressão
Gm Gráica e editora | [email protected] / 27 3323-2900

dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CiP)


(biblioteca Central da universidade Federal do espírito Santo, eS, brasil)

F477 Gênero, religião e poder na antiguidade : contribuições interdisciplinares / Leni Ribeiro Leite
... [et all], organizadores. – vitória : Gm editora, 2012.
212 p. : il. ; 23 cm.
iSbn: 978-85-8087-096-1
1. Civilização Clássica - discurso, ensaios, conferências. 2. mulheres - antiguidade
Clássica. 3. mulheres - Condições sociais. 3. Poder (Ciências sociais). i. Leite, Leni Ribeiro.
ii. Silva, Gilvan ventura da; iii. Carvalho, Raimundo.
Cdu: 94 (37+38)

Ilustração da capa
Joyce Cavalcanti do Carmo
SumárIo

aPReSentaÇÃo ...................................................................................................................................7

entRe matÉRia e PRivaÇÃo: aLGumaS ConSideRaÇÕeS


SobRe o Feminino no PenSamento de aRiStÓteLeS....................................................9
Carla Francalanci

“teCendo” o Feminino na atenaS CLÁSSiCa: a muLheR aRanha.......................19


Fábio de Souza Lessa

aS muLheReS e oS PeRiGoS da Cidade: CaSamento eSPiRituaL,


viRGindade e PRoStituiÇÃo SeGundo JoÃo CRiSÓStomo .....................................31
Gilvan Ventura da Silva

o mito de PRometeu e PandoRa e oS PRinCÍPioS


maSCuLino e Feminino noS PRimÓRdioS .........................................................................50
Izabela Bocayuva

tRoCando de SeXo: uma ReFLeXÃo SobRe


GÊneRo naS METAMORFOSES de ovÍdio ..............................................................................58
Raimundo Carvalho

aS eFÍGieS FemininaS em CataCumbaS RomanaS:


uma anÁLiSe da FiGuRaÇÃo PaLeoCRiStÃ........................................................................71
Silvia M. A. Siqueira

deuSeS e ORDO no LivRo iv daS ODES ..................................................................................89


Alexandre Pinheiro Hasegawa

o LECTISTERNIUM e a PLACATIO DEORUM: um eStudo


de CaSo em tito LÍvio, AB URBE CONDITA, 22, 9-10. ......................................................111
Claudia Beltrão da Rosa

Rito e ComemoRaÇÃo na tRaGÉdia ALCESTE de euRÍPideS. ................................129


Jaa Torrano

CeLebRaÇÃo e RetÓRiCa em eStÁCio .................................................................................140


Leni Ribeiro Leite
o RituaL do CaSamento em Roma e a PoeSia Latina ............................................152
Zelia de Almeida Cardoso

PoeSia amoRoSa e inFÂmia:


eu PoÉtiCo e autoR emPÍRiCo na Roma antiGa .......................................................168
Paulo Sérgio de Vasconcellos

o  (“GLÓRia” ou “Fama”?) de odiSSeu na ODISSEIA ..............................................187


Teodoro Rennó Assunção

SobRe oS autoReS.........................................................................................................................207
APrESENTAÇÃo

este livro é composto por um conjunto de conferências apresentadas


no decorrer das três últimas edições da Jornada de estudos Clássicos da
universidade Federal do espírito Santo (ufes) ocorridas em 2010, 2011 e
2012. o evento, organizado pelos Programas de Pós-Graduação em Filosoia,
história e Letras revela, na sua dinâmica interna, a vocação interdisciplinar
própria dos estudos Clássicos, um amplo campo de investigação sobre os
usos, fazeres e concepções de gregos e romanos que se deine na interseção
entre a história, a Filosoia, a Literatura, a arqueologia, a antropologia
e a Filologia, apenas para citar as disciplinas mais conhecidas. embora
em outras partes do mundo, notadamente no continente europeu e nos
estados unidos, os estudos Clássicos já constituam um domínio autônomo
e altamente especializado de conhecimento desde pelo menos o século
XiX, em solo pátrio somente a partir de meados da década de 1980
observamos um movimento contínuo de expansão e proissionalização da
área, mediante iniciativas pioneiras como a criação da Sociedade brasileira
de estudos Clássicos (SbeC), com quase trinta anos de existência, e do
Grupo de trabalho em história antiga vinculado à associação nacional
de história (anPuh), cuja fundação data de 1999. Realizações como essas
resultaram do anseio dos pesquisadores brasileiros dedicados ao estudo da
antiguidade, incluindo a oriental, é bom que se diga, em reunir-se em foros
capazes de fomentar o intercâmbio cientíico, num esforço de superação
das barreiras acadêmicas que mantinham em certo isolamento a história
antiga, a Filosoia antiga, a arqueologia e as Letras Clássicas, disciplinas
que, no brasil, sempre se distinguiram por uma departamentalização por
vezes intransponível.
na ufes, assim como na maioria dos estados da Federação, a quantidade
de proissionais envolvidos com o estudo das sociedades e culturas antigas é
ainda reduzido, o que, todavia, não tem representado empecilho maior para o
desenvolvimento da área. de fato, é notável, na última década, o aumento do
interesse pelos estudos greco-romanos, como é possível constatar mediante o
número crescente de alunos de iniciação Cientíica, mestrado e doutorado
envolvidos com projetos de investigação sobre o passado de Grécia e Roma, o
que motivou os organizadores desta coletânea a instituir e manter a Jornada
de estudos Clássicos como um “laboratório” para a exposição das pesquisas
executadas na ufes e para o fomento do intercâmbio cientíico com outros
especialistas do brasil e do exterior.
o livro que o leitor ora tem em mãos recolhe apenas uma amostra, mas
sem dúvida bastante qualiicada, do conhecimento socializado na Jornada
de estudos Clássicos da ufes entre 2010 e 2012. nesse ínterim, pudemos
constatar que os assuntos mais atraentes aos pesquisadores têm girado em
torno de três grandes eixos: gênero, religião e poder, o que parece sugerir
certa tendência da área a se ocupar, nos últimos tempos, com objetos que
acompanham mutatis mutandis as linhas de força daquilo que vem sendo
tratado no domínio das Ciências humanas, ao menos no brasil. nesse sentido,
é visível o interesse, no âmbito das sociedades clássicas, pela condição social
feminina, pelas manifestações religiosas (quer do ponto de vista da práxis,
do ritual, quer do ponto de vista das concepções cosmogônicas) e pelas
modalidades de exercício do poder, incluindo as representações literárias e
imagéticas dos titulares da autoridade pública (reis, tiranos, magistrados),
de maneira que esses temas emergem como dominantes, iluminando uma
pletora de possibilidades de “leitura” de realidades tão distantes da nossa, mas
que apesar disso (ou exatamente por isso) nos suscitam tanta curiosidade
e tantas indagações. a essa altura, é impossível não evocar aqui as lições de
Paul veyne na sua célebre aula inaugural no Collége de France, pois se nos
interessamos pelo estudo das sociedades do passado, isso se explica muito
mais pela diferença do que pela semelhança entre “nós” e “eles”. de fato, é
na condição de iguras de alteridade, de “estranhos” que, por meio do labor
intelectual, se convertem em “amigos de longa data”, que gregos e romanos,
celtas e gauleses, continuam a exercer sobre nós, homens e mulheres do
terceiro milênio, tão poderoso fascínio.

vitória, novembro de 2012


Os organizadores
ENTrE mATÉrIA E PrIVAÇÃo: ALGumAS
CoNSIDErAÇÕES SoBrE o FEmININo No
PENSAmENTo DE ArISTÓTELES

Carla Francalanci

no primeiro livro da Física, temos a airmação da necessidade da matéria


(hýlê), como princípio de sustentação aos contrários, condição para que
a geração tenha lugar. É a postulação de um suporte servindo de base aos
contrários que permite recusar o problema da geração como dilema entre o
ser e o não ser; segundo aristóteles, dilema insolúvel para os ilósofos que lhe
antecederam nessa investigação. a im de enfatizar a positividade e necessidade
da matéria como princípio, cumpre distingui-la, no movimento em direção
à forma característico da geração, da privação (stérêsis). Podendo ambas
inscrever-se na ordem do não ser, a matéria é airmada um não ser apenas em
caráter coincidente (katà symbebêkós), enquanto a privação é dita um não ser
por si (kath’autên); estando a matéria próxima da ousía, devendo mesmo ser
considerada de certo modo como tal, a outra não pode de maneira alguma
receber essa denominação1. nessa passagem, e a im de enfatizar a distinção em
questão, aristóteles lança mão de analogias entre a matéria e o feminino: assim,
enquanto concausa subsistente para a forma (hypoménousa synaitia tê morphê),
a matéria é dita ser “como uma mãe” (hôsper mêtêr). e ainda, dado algo que
se apresenta como divino, bom e ao qual se tende, a matéria é caracterizada
por, segundo sua própria natureza, tender para ele e desejá-lo (ephíesthai kaì
orégesthai), tal como a fêmea (tende) para o macho e o feio para o belo, não
sendo, contudo, feia ou fêmea em si mesma, mas apenas de modo coincidente2.

1 aristotle. Physique. i-iv. texte établi et traduit par henry Carteron. Paris: Les belles Lettres, 2000, 192a 3-6.
2 id., ibid., 192a 13-25.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 9


a questão que este trabalho busca aclarar tem início a partir dessa
última airmação: o que quer dizer, em termos aristotélicos, esse desejo ou
tendência da fêmea em direção ao macho? em que medida o feminino na
geração animal pode ser identiicado à matéria e em que medida a noção de
matéria, por outro lado, recusa tal identiicação?
em seu estudo Da geração dos animais, aristóteles investiga, entre outras
questões, a da diferença sexual, bem como o papel correspondente a cada
sexo para que a procriação se realize.
uma vez que alguns animais procriam através da cópula de macho e
fêmea – enquanto outros advêm por outras causas, como a putrefação do
solo e outros resíduos –, macho e fêmea podem, nesses casos, ser apontados
como princípios (arkhás) da geração. macho e fêmea diferem de saída quanto
à causa própria a cada um, o masculino conferindo ao embrião o princípio
do movimento (tês kinêseôs), enquanto o feminino contribui com a matéria
(hýlê) para esse3. a explicação para essa diferença quanto à causa reside em
uma diferença quanto ao logos4, consistindo em um poder (dýnamis) presente
no macho de levar o seu sêmen a um estado consumado, como o resíduo
inal do processo de nutrição, enquanto a fêmea se caracteriza precisamente
por uma impotência (adynamía) quanto a essa consumação.
Caracterizando o sêmen (spérma) como um resíduo corporal, formado a
partir da porção útil do processo nutritivo, sendo nesse sentido como o sangue
(haimatikês), ambos os sexos são ditos possuir um tal resíduo, esse sendo, na
fêmea, o luido menstrual (katamênia), dito ser análogo à secreção masculina,
uma vez que ambos ocorrem pela primeira vez no mesmo período de vida,
operam as mesmas mudanças nos corpos, bem como diminuem e cessam do
mesmo modo na velhice5. Contudo, devido à natureza mais quente do macho,
esse possui o poder (dýnamis) de elaborar o resíduo em seu estado inal e
mais concentrado, o sêmen, enquanto a fêmea apresenta certa impotência
(adynamía) quanto a essa elaboração, sendo assim o seu luido mais próximo

3 id., ibid., 716a 7-8.


4 aristotle, Generation of animals. translated by a. L. Peck.Cambridge & London: harvard university
Press, 2000, 716a 19.
5 id., ibid., 727a 6-10.

10 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


do sangue. isso leva aristóteles a airmar, já no primeiro livro desse estudo, que,
a forma da mulher sendo semelhante à do menino, a mulher é, pelo motivo
apresentado, como que um homem infértil6.
não sendo sêmen e não se encontrando em estado completo de
elaboração, ica patente para o ilósofo nesse ponto de sua investigação que
a mulher não contribui para a geração com nenhum sêmen; sendo assim, a
cria não deve ser pensada como algo formado pela mistura de ambos, mas
sim pela atuação do sêmen masculino sobre o luido menstrual; esse último
provê, dessa maneira, o suporte para o desenvolvimento do embrião7.
apesar de o luido menstrual, à continuação de sua investigação, ganhar
o direito de receber a denominação de sêmen por aristóteles, por apresentar-
se como um dos princípios para o advento do embrião, ele precisa contudo
ser considerado algo que não se encontra em estado puro, necessitando que
haja atuação (deómenon ergasías) de algum tipo sobre ele para que a geração
possa ter lugar8. essa atuação é realizada pelo macho ou pelo princípio
masculino, ainda que não de maneira direta e sem que haja a mistura de
ambos. o sêmen masculino opera conferindo não apenas o princípio de
movimento ao feminino, que serve, então, como matéria ou suporte (hýlê),
mas ainda ao imprimir nele a sua coniguração (eidos)9. É pelo seu calor, em
comparação com a natureza mais fria do princípio feminino, que o sêmen
masculino age, conferindo por seu contato movimento ao luido menstrual
e imprimindo nele a sua coniguração. em virtude da dýnamis contida em
seu sêmen, ele faz com que a matéria e a fonte de nutrição presentes na
fêmea assumam um determinado modo, um caráter particular, isto é, ele a
conigura de certa maneira (poián tiná)10.

6 id., ibid., 728a 17-18.


7 em 727b 14-30, aristóteles fornece uma explicação para a concepção dar-se sobre o luido menstrual e,
simultaneamente, não poder ocorrer durante a eliminação do mesmo. a fêmea é incapaz de conceber
na completa ausência do luido menstrual, visto que nesse momento ela não possui nutrição (trophê)
nem matéria (hýlê) para a dýnamis fornecida pelo macho; tampouco é capaz de fazê-lo se ele se encontra
presente e a sua descarga está em andamento, pois o sêmen é aí levado embora, devido ao volume do
luxo menstrual. assim, a concepção apenas pode ocorrer após a evacuação do luxo, mas enquanto
algum luido ainda permanece na fêmea.
8 id., ibid., 728a 26-28.
9 id., ibid., 729a 10-11.
10 id., ibid., 730a 14-16.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 11


o ilósofo assemelha a operação do masculino sobre o feminino à ação
do agente de movimento em uma realização técnica: assim como na relação
macho-fêmea, nada proveniente do carpinteiro passa para o pedaço de
madeira, bem como não há nenhuma parte da arte da carpintaria enquanto tal
presente no que ela efetivamente produz. São apenas a forma e a coniguração
(he morphê kaì ho eidos) que provêm do carpinteiro, e elas vêm a ser através
do movimento que ele imprime sobre a matéria. É a sua alma, na qual estão
presentes sua coniguração e seu conhecimento, que move suas mãos de um
modo particular; suas mãos por seu turno movem os instrumentos e esses
movem a matéria11. Semelhantemente, a natureza age sobre os machos dotados
de sêmen, empregando esse último como um instrumento (hôs orgánô), como
algo que tem movimento para a atualização (energeía).
essa divisão na geração animal pode ser explicada ainda em termos
universais: em todo vir-a-ser, é necessário (anánkê) haver o que gera (to
gennôn), assim como o a partir de que (ex hou) algo é gerado. ainda que eles
se encontrem no mesmo indivíduo – o embrião –, por operar diferentemente,
eles se distinguem em espécie e coniguração (eidei), e assim por isso que
torna o logos de cada um distinto12.
o Livro ii dessa obra tem início com a pergunta acerca de por que algo
é formado, e assim é, macho ou fêmea. aristóteles aponta uma dupla direção
que deverá ser tomada para resolver essa questão: por um lado, a divisão
sexual será mostrada como advindo por necessidade (ex anánkê), a partir
do movente próximo e de certa qualidade de matéria; por outro lado, essa
distinção deverá ser pensada através do melhor (dia tò béltion) e da causa em
vista de que algo se dá (tên aitían ten héneká tinos)13. É importante marcar
que o problema da diferença sexual ocorre tendo como pano de fundo um
problema maior no horizonte das investigações aristotélicas acerca da phýsis,
o da distinção e, em determinadas instâncias, da complementaridade entre
anánkê e télos, ou entre, de um lado, a necessidade, e de outro a causa que
direciona cada ente para o melhor, para sua realização mais plena. a essa

11 id., ibid., 730b 12-19.


12 id., ibid., 729 a 24-28.
13 id., ibid., 731b 18-28.

12 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


questão, central para a compreensão das opções tomadas por aristóteles em
sua interpretação da diferença sexual, retornarei mais adiante.
nesse ponto da investigação, aristóteles parece excluir simplesmente a
necessidade, optando por tomar como causa principal o télos. diz ele que,
havendo uma classe de entes eterna e divina, e uma outra que admite tanto
ser quanto não ser, a primeira classe atua sobre a segunda como a causa que
a direciona para o melhor. Como ser é melhor do que não ser, assim como a
alma é melhor do que o corpo, e viver melhor do que não viver, essa é a causa
que promove a geração dos animais. Como a sua natureza, por comportar
simultaneamente ser e não ser, é incompatível com o eterno enquanto tal,
o modo de eternidade facultado à classe dos viventes é a da eternidade em
espécie (eídei), em contraposição à eternidade numérica ou individual,
propriedade dos entes que são em si mesmos eternos. Por esse motivo, há
sempre um gênero de homens, de animais e de plantas. Sendo os princípios
para esses gêneros o masculino e o feminino, é no sentido da e em direção
à geração (héneka tês genéseôs) que a diferença sexual acontece. e ainda,
como o princípio que instaura o movimento, no qual subsistem o logos e o
eidos, é melhor (béltion) do que a matéria, é assim melhor que o superior
se encontre separado do inferior. É por isso que, na natureza, sempre que
possível o macho se encontra em um indivíduo separado da fêmea14.
Retornando aos elementos constituintes da geração, elencados
anteriormente – todo gerado se gera a partir de algo (ek tinos) e por algo
(hypó tinos) – o ilósofo se detém de modo mais esmiuçado na questão de
como os animais se formam pelo sêmen, uma vez já assentado que o seu “a
partir de que” é a matéria15. Como algo, tanto na natureza quanto na arte,
somente chega a ser por um movimento que imprime, nele, o seu logos, que
podemos compreender aqui como o seu princípio intrínseco de individuação,
enquanto na arte esse movimento pertence ao artíice e é externo ao que por
ela é gerado, na natureza ele é, ao contrário, interno, e deriva de outro ente
natural que possui essa coniguração (to eidos) em atualidade (energéia)16.

14 id., ibid., 731b28-732a 12.


15 id., ibid., 733b24-34.
16 id., ibid., 735a 1-5.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 13


esse movimento, proveniente do pai, é impresso na matéria materna pelo
sêmen, que deve, então, possuí-lo em caráter potencial17. e o nome desse
princípio intrínseco de movimento e de coniguração para o vivente é,
segundo aristóteles, alma (psykhê). assim, uma vez impresso na matéria
esse princípio de movimento, ela passa a ser animada e, desse modo, a
desenvolver-se por si. Contudo, o autor sente a necessidade de marcar: a
potência pertencente ao sêmen difere da que pertence à matéria, no sentido
de, como potência ativa, encontrar-se mais próxima de sua atualização do que
a que possui o poder de receber esse movimento. Como o próprio ilósofo
enfatiza nessa passagem, algo pode ser e estar em estado potencial de modos
diferentes, mais perto ou mais longe de passar ao estado de atualização da
mesma – exemplos disso são o geômetra dormindo com relação ao geômetra
desperto e o desperto com relação ao que está realizando seus estudos18.
e ainda, a alma precisa ser pensada, por seu turno, como um princípio
de realização não apenas de todo vivente, mas ainda de cada uma de suas
partes, de modo a ser possível airmar que uma parte do corpo morto não
compartilha mais do que o nome com relação à parte correspondente do
corpo animado19. a razão para isso se encontra no fato de que os animais
são caracterizados pela sensação (aísthêsis); assim, qualquer parte do corpo
somente será se estiver provida de alma sensível (aisthêtikês psykhês), ainda
que somente em potência20.
desse modo, na geração, o feminino comparece com a matéria, enquanto
o masculino provê isso que a confecciona (dêmiourgoûn). esse parece ser o
poder ou faculdade própria (dýnamis) de cada um dos sexos. nesse sentido,
deve-se dizer que, no gerado, o corpo vem da fêmea, enquanto a alma vem
do macho, e essa última é compreendida como a substância (ousía) do corpo,
por ser aquilo que dá a cada animal sua determinação e lhe permite existir
como indivíduo autônomo21. Precisamente por essa divisão, a fêmea deve

17 id., ibid., 735a 8-9.


18 id., ibid., 735a 9-12.
19 id., ibid., 735 a 6-8.
20 id., ibid., 741a 10-12.
21 id., ibid., 738b 20-28.

14 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


ser dita como o que precisa (prosdeítai) do macho, porque, estando nele o
princípio constituidor da alma e existindo ambos em separado, é impossível
para a fêmea gerar por si mesma um vivente completo22. mas aqui há uma
consideração: a fêmea pode, contudo, prover o embrião com um tipo de
alma; contudo, essa não é alma sensível, mas apenas a alma em seu tipo mais
básico e imperfeito, a alma nutritiva. esse é o motivo pelo qual os ovos não
fecundados dos animais ovíparos possuem, de certo modo, vida, ainda que
apenas em potência23.
uma vez explicado o processo pelo qual acontece a geração, bem como
o que é fornecido por cada um dos pais, o ilósofo pode começar a aclarar a
origem da diferença entre os sexos: se a fêmea contribui com o corpo do que
vem a ser gerado, o seu luido menstrual deve conter potencialmente todas
as partes do que será formado pelo encontro sexual, incluindo aquelas que
marcam o sexo do futuro vivente. “Como acontece muitas vezes que pais
mutilados (pepêrôménôn) gerem por vezes crias mutiladas e por vezes não,
assim as crias das fêmeas são por vezes fêmeas, outras vezes machos. a razão
para isso é que a fêmea é como um macho mutilado”24.
a partir desse momento, ica claro o que já havia sido insinuado,
na imagem da mulher como um homem infértil: pode-se agora airmar
com segurança que não há, propriamente falando, nas definições
explícitas de aristóteles acerca do feminino, diferença sexual. não se trata
verdadeiramente de um outro; o “outro” só é assim considerado devido a
uma falta, uma privação no mesmo princípio de constituição, o que equivale
a dizer: a fêmea só é fêmea pelo que lhe falta, pelo que ela não pode ser nem
realizar. talvez possamos pensar um motivo para essa divisão por hierarquia
residindo precisamente em sua compreensão universal do direcionamento
teleológico. Se existe um sentido único em cada espécie em direção a seu
máximo de perfeição, as diferenças entre os indivíduos de uma mesma
espécie somente poderão ser consideradas como graus distintos em uma
escala ascendente.

22 id., ibid. 741a 5-6; 15-


23 id., ibid., 741a 18-28.
24 id., ibid., 737 a 23-28.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 15


Contudo, não é intenção desse trabalho acusar aristóteles de “sexismo”
ou algo do gênero, o que seria, no mínimo, filosoficamente estéril. É
interessante, a meu ver, marcar a identiicação do feminino com a privação
(stérêsis), em questão no desenrolar de suas explicações, para que se possa
também procurar onde ocorrem as aproximações realizadas entre o papel
do feminino e o lugar positivo por ele conferido para a matéria.
no Livro iv desse tratado, o ilósofo prossegue investigando a razão
dessa distinção sexual. Quando o princípio que confere a forma falha em
dominar a matéria, por deiciência de calor, e não consegue assim conduzi-la
ao seu próprio eidos, mas gera, nessa tentativa, algo pior, a matéria muda no
sentido contrário ao da forma, isto é, no sentido da privação da mesma. o
contrário do macho nesse sentido é a fêmea, contrário com respeito a isso
devido ao qual um é macho (sua dýnamis) e o outro fêmea (sua adynamía)25.
e como diferem em potência, diferem também quanto ao instrumento que
cada um possui, essa sendo a condição pela qual a matéria se transforma.
dependendo da parte do animal que recebe modiicação, toda a ordenação
(sýstasis) do animal mudará, devido ao fato de que algumas partes do corpo
funcionam também como princípios; quando um princípio se transforma,
muitas das partes que o seguem por necessidade também sofrerão
transformação26. isso explica as demais distinções presentes na fêmea, como
decorrentes da modiicação do órgão sexual.
Quando o princípio masculino domina, ele conduz a matéria para
si e imprime nela sua coniguração; ao contrário, se ele é dominado, ele
se transforma, seja em seu oposto, seja no sentido de sua destruição. os
que não se parecem com os seus genitores em espécie são de certa forma
monstros, pois nesses casos a natureza desviou-se, de algum modo, do
gênero e da linhagem (génos). o princípio desse desvio ocorre precisamente
quando a fêmea é gerada em lugar do macho, pois esse é o primeiro caso
de desvio e, assim, de mudança na coniguração27. Segundo o princípio de
que a transformação de algo por perda de sua força de coniguração não se
processa aleatoriamente, mas sim no sentido do seu contrário, se a perda

25 id., ibid., 766 a 14-23.


26 id., ibid., 766 a 25-30.
27 id., ibid., 767b 7-8.

16 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


ocorrer no poder de gerar um macho, a cria será fêmea; se ocorrer no poder
pelo qual algo é determinado indivíduo, a cria não se parecerá com o seu pai,
mas sim com sua mãe; uma vez que “mãe” é, em sentido geral (tô hólôs), o
contrário de “pai”; da mesma maneira, cada mãe será o contrário de cada pai
individualmente considerado. assim a perda de dominação vai afastando a
cria cada vez mais de sua coniguração primeira, cuja impressão é sempre
tentada pelo princípio masculino; quando esse movimento proveniente do
macho se dissolve e a matéria falha em ser dominada, o que persiste não
é mais o individual, mas sim o universal como o seu contrário, e esse é o
animal; esse é o motivo que gera as monstruosidades e os seres polimorfos28.
Se a geração da fêmea deve ser apontada como o início do processo que
culmina na monstruosidade, cabe no entanto a aristóteles fazer uma ressalva
crucial: a diferença entre a mulher e outra modalidade de desvio reside em
que a geração da fêmea é um desvio imposto por necessidade pela própria
natureza, a im de (héneká) preservar a separação entre os sexos, que, como
vimos, ocorre a partir do princípio direcionado pelo melhor. ao contrário,
as demais modalidades de desvio são apenas coincidentemente necessárias
(katà symbebêkòs anankaion)29, uma vez que seu desvio poderia não ter sido
produzido, sendo, contudo, a origem desse desvio a necessidade da divisão
sexual.
a partir do exposto, torna-se possível compreender tanto a comparação
do feminino com a matéria quanto a sua recusa. em sentido mais forte,
vemos a segunda: se o característico do feminino está em sua adynamía, sua
impotência em levar seu sêmen ao estado completo de elaboração e assim de
empregá-lo como princípio de movimento e de coniguração, a aproxima,
com relação ao seu logos, muito mais da privação – sendo mesmo airmada o
contrário da coniguração representada pelo masculino – do que da matéria.
no entanto, seu ser constitutivamente privativo lhe permite desempenhar
a função positiva característica da matéria, qual seja, servir de suporte à
geração, recebendo a coniguração e o movimento advindos do macho.

28 id., ibid., 769b 7-10.


29 id., ibid., 767b 15.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 17


Podemos ainda compreender como o feminino é pensado na
complementaridade, antes do que na contraposição, entre necessidade e
inalidade, a diferença entre ambos aparecendo para aristóteles antes como
uma diferença quanto ao tipo de causa que se põe em questão. o necessário
seria como o princípio de movimento ou causa instrumental, enquanto o
sentido em direção a algo (héneká tinos) atua como o princípio em direção
ao melhor, contado, esse, como a razão ou fator explicativo primeiro. o
exemplo fornecido para essa questão seria: é como se disséssemos que a
água é removida de um paciente com hidropisia devido ao estilete ou bisturi,
ou devido à recuperação de sua saúde, sendo no sentido dessa última (hou
héneka), evidentemente, que a incisão é feita pelo bisturi30.

referências

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Paris: Les belles Lettres, 2000.
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London: harvard university Press, 2000

30 id., ibid., 789b 3-15.

18 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


“TECENDo” o FEmININo NA
ATENAS CLáSSICA: A muLHEr ArANHA

Fábio de Souza Lessa

há um consenso na historiograia contemporânea, construído a partir


das informações dos textos antigos gregos – literários e imagéticos, que o
ideal de esposa para os helenos é a mélissa1 – a mulher abelha. uma das
atividades exclusivamente femininas no mundo antigo grego é a arte de tecer.
a tecelagem, além de necessária à prosperidade do grupo doméstico, possui
outra conotação: a de ser um meio de se comunicar essencialmente feminino.
nesse texto, defenderemos a existência de um vínculo entre o ato de tecer e
a expressão feminina, falada ou igurativa. e é justamente a existência desse
vínculo que pode explicar a associação que faremos com base nas colocações
de aristóteles, por exemplo, entre as mulheres gregas e a descrição da aranha
– e não a da abelha (aRiStÓteLeS. História dos Animais. iX, 39, 623a).
as questões com as quais vamos nos deparar na presente análise
aparecem intimamente vinculadas a duas narrativas míticas, a saber: o mito
de Filomela e de sua irmã Procne e o da aracne, que disputa a habilidade
do tecer com a deusa athená.
o mito de Filomela, irmã de Procne e cunhada de tereu, rei da trácia,
pode ser sintetizado da seguinte forma: Procne foi dada em casamento a tereu,
depois de este ter ajudado Pandion, rei de atenas, na guerra contra Labidaco,
rei de tebas. Com a ajuda de tereu, atenas saiu vitoriosa do conlito, que

1 a partir da análise da documentação textual, organizamos um modelo contendo as características mais


frequentes de uma esposa “bem-nascida”/mélissa de acordo com os signos recorrentes. Com base neste
modelo, podemos dizer que as mulheres administram o oîkos (as ocupações domésticas são de sua
responsabilidade), se casam quando muito jovens, se dedicam à iação e à tecelagem, possuem como
função primordial a concepção de ilhos (preferencialmente do sexo masculino), atuam no espaço interno
(enquanto o homem, no externo), participam das hesmophórias (festa em homenagem a deméter) e
das Panathéneias (cerimônia religiosa em homenagem à deusa athená), permanecem em silêncio, são
débeis e frágeis, apresentam a cor da pele clara (um indício de vida longe do ambiente exterior ao oîkos),
são inferiores frente aos homens e apresentam uma atividade sexual contida (LeSSa, 2001, p. 17).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 19


fora desencadeado por uma questão de fronteira. Posteriormente, Filomela
acaba sendo violentada por tereu, seu cunhado. este, para que a violação
não fosse revelada, corta a língua de Filomela. Resta-lhe, então, a arte de
tecer para narrar à sua irmã o que havia acontecido. ela tece um tapete com
a narrativa do ocorrido. Procne – como forma de punição, pois tereu havia
transgredido uma das regras de relações de intimidade entre os que viviam
no interior do oîkos – mata o próprio ilho, itis, e o oferece como refeição ao
marido. após descobrir, ele as persegue. elas fogem e são transformadas em
pássaros: Procne num rouxinol2 e Filomela em uma andorinha (bRandÃo,
2000, v. ii, p. 41 e v. iii, p. 150 e 236; FRontiSi-duCRouX, 2006, p. 226;
buXton, 1996, p. 141; haRveY, 1998, p. 235)3.
Já aracne, uma jovem da Lídia e órfã de mãe, desaia athená na arte
da tecelagem. Seu pai, idmón, era tintureiro, um artesão de múltiplos
recursos. de acordo com o próprio mito, aracne, vaidosa e hábil na
tecelagem, não aceitava que se atribuíssem seus méritos aos ensinamentos
da deusa e a desaiou a um concurso. Frente ao desrespeito de aracne
para com as divindades, athená resolve oferecer-lhe uma oportunidade,
aparecendo a ela como uma anciã que lhe recomenda moderação e respeito
aos deuses. aracne, irritada, a expulsa com insultos. athená representa a
si mesma vencendo Poseidon na disputa para converter-se em protetora
de atenas, enquanto aracne descreve com entusiasmo os ardis, o erotismo
e as metamorfoses que utilizavam os deuses masculinos. um trabalho tão
perfeito que athená não encontrou qualquer coisa para objetar. aracne
ganha a competição e a deusa irada a transforma em uma aranha para que
permaneça compulsivamente a tecer (FRontiSi-duCRouX, 2006, p. 251-
2; hoRnbLoWeR; SPaWFoRth, 2003, p. 135).
na descrição de ambos os mitos, a tecelagem se constitui numa atividade
exclusivamente feminina, explicitando uma linguagem que somente era
decodiicada pelos diversos grupos de mulheres. nesse momento, julgamos

2 no caso especíico do rouxinol, aristóteles o associa ao canto. “Já se viu mesmo um rouxinol ensinar
os ilhos a cantar, o que signiica que a linguagem e a voz não são da mesma natureza, e que aquela é
suscetível de ser educada” (aRiStÓteLeS. História dos Animais. iv, 9, 536a).
3 ver referências ao mito em: aRiStÓFaneS. As Aves, vv. 203-214.

20 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


ser pertinente fazermos referência à voz da lançadeira mencionada por
aristóteles na Poética (Xvi, 34-36). outro fator a ser salientado é que,
segundo buxton, os mitos selecionam aspectos da experiência social, neste
caso a feminina, e colocam em relevo um cotidiano não oicial (buXton,
1996, p. 149).
trabalharemos a tecelagem como um tipo de comunicação indireta.
Guy achard conceitua comunicação indireta como consistindo em um
jogo complexo de signos, de símbolos, que agem sobre aqueles que os
vêem e que chamam por uma resposta de sua parte (aChaRd, 1994, p.
15). enfatizamos mais uma vez a existência de um vínculo entre o ato de
tecer e a expressão feminina, falada ou igurativa (buXton, 1996, p. 143;
PRieto, 1991, p. 451).
e é justamente a existência desse vínculo que pode explicar a associação,
feita por a. Prieto, entre as mulheres gregas e a descrição aristotélica da
aranha – e não da abelha – conforme o predominante na historiograia
contemporânea e na própria documentação produzida pelos gregos antigos.
Comecemos por reletir acerca da proximidade entre as esposas e a abelha
– mélissa, cujos seguintes traços nos são apresentados por marcel detienne:
tipo de vida puro e casto, ou seja, uma atividade sexual bastante discreta;
hostilidade aos odores, à sedução; idelidade conjugal (detienne,1976, p.
55-56; LeSSa, 2001, p. 58).
essa associação também pode ser atestada no poema Iambos do poeta
Semônides de amorgos. este poeta lírico compara a mulher a vários animais,
tais como: porca, raposa, cadela, mula, égua, macaca e, por im, a abelha. o
seu objetivo é o de descrever melhor a phýsis feminina (LeSSa, 2010, p. 55).
vejamos o que ele nos diz da mulher que descende da abelha:

a ela – qualquer é feliz – conquistando:


pois só a ela censura não se liga,
lorescem por sua causa e crescem os bens da casa.
amiga (phíle), com o que a ama envelhece, com o esposo,
gerando uma bela (kalón) e célebre prole (génos).
notável entre as mulheres torna-se,
entre todas; divina em torno corre-lhe a graça (vv. 83-89).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 21


no poema de Semônides de amorgos, o bom é deinido fundamentalmente
a partir do signiicado de ruim. observamos, por exemplo, que algumas das
descrições positivas da mulher abelha são expressas em termos negativos.
vejamos, nesse sentido, o verso 84: “...pois só a ela censura não se liga,...”.
outra ressalva a ser feita é o fato de que nada é dito acerca do que a mulher
sente no poema de Semônides, com exceção do verso 86: “amiga, com o
que a ama envelhece – gyráskei – com o esposo,...” (LeFKoWitZ, 1983, p.
32; LeSSa, 2001, p.)4.
na História dos Animais de aristóteles (iX, 40, 623a) encontramos
algumas características das abelhas que foram associadas pelos atenienses ao
modelo ideal de esposa. da mesma forma que as esposas, as abelhas são as
responsáveis por prepararem o seu alimento: o mel – méli. os zangões dividem
com as abelhas o mesmo alvéolo, mas não produzem a sua alimentação. outro
aspecto que aproxima as abelhas do comportamento esperado para uma
esposa legítima é a preocupação em armazenar o seu excedente de alimentos.
Sabemos que para os atenienses a prosperidade do oîkos está vinculada ao êxito
da esposa na sua tarefa de administração doméstica. as esposas legítimas são
associadas pelos atenienses às abelhas-rainhas (XenoFonte. Econômico.vii,
32; LeSSa, 2001, p.), que não voam para fora da colméia, salvo acompanhadas
de todo o enxame, “...elas não saem nem para ir buscar de comer nem para
nada” (aRiStÓteLeS. História dos Animais. iX. 40, 624a-625a).
este comportamento da abelha-rainha é idêntico àquele que a sociedade
ateniense impõe às esposas legítimas. estas só devem deixar o gineceu em
ocasiões especíicas e acompanhadas. Porém, veriicamos que a produção do
mel obriga as abelhas a deixarem suas colméias (aRiStÓteLeS. História dos
Animais. iX. 40, 624a). Semelhante situação também se adapta à rotina das
esposas, que necessitam atuar no espaço externo do oîkos para conseguirem
administrá-lo. outra característica das abelhas é a aversão aos maus odores
e aos perfumes (aRiStÓteLeS. História dos Animais. iX. 40, 626a). os
perfumes nos inserem no universo da sedução. esta informação contraria
as conclusões que obtivemos a partir da veriicação da frequência com que

4 essa associação entre a mulher ideal e a abelha também está presente no Econômico de Xenofonte (vii,
32-37).

22 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


aparecem frascos de perfumes nas cenas ambientadas no interior do oîkos e
mesmo na arqueologia, com os artefatos femininos.
Já a aranha – arachníõn – nos remete ao papel reservado às mulheres na
arte da tecelagem, mas também é capaz de revelar uma postura mais ativa
por parte dos grupos de mulheres, pois a mulher-aranha pratica a caça. o
caráter mais ativo presente na mulher-aranha evidencia um homem mais
passivo (aRiStÓteLeS. História dos Animais. iX. 39, 623 a 23-24; PRieto:
1991, p. 450). talvez a principal contribuição dessa associação, entre esposas
atenienses e a aranha, resida na possibilidade de se fazer uma distinção
entre a representação ideológica das mulheres atenienses, ou gregas em um
contexto mais amplo, e a realidade à qual elas eram confrontadas (PRieto,
1991, p. 449; LeSSa, 2004, p. 72).
a tessitura se faz presente no universo da aranha desde o nascimento. o
próprio aristóteles observa isso ao airmar que após nascerem elas começam
logo a mover-se e a fazer uma teia (aRiStÓteLeS. História dos Animais.
v.23, 555b; viii (iX). 39, 623a). a teia é usada ainda pelas aranhas para
prenderem as suas presas (aRiStÓteLeS. História dos Animais. viii (iX).
39, 623a); elas permanecem no seu interior e taticamente se apropriam de
suas presas. talvez pudéssemos fazer a seguinte associação: teia – tecelagem
– trama. o signiicado metafórico da ação feminina de tramar os ios de
lã na tecelagem pode ser associado à métis (astúcia), que caracteriza a sua
phýsis. isto é, as esposas tecem tramas e através delas se fazem presentes na
dinâmica social políade.
assim sendo, mais do que tecer tramas e intrigas, as esposas podiam
lançar mão da tecelagem como um meio de comunicação entre si. elas
podiam informar através da arte de tecer, e neste sentido esta atividade
feminina podia ser entendida como uma tática das esposas para manterem
sua coesão enquanto grupo.
interessante nesse momento é resgatar a colocação de Frontisi-ducroux
de que “a atividade de tecer é por duas razões o espaço de voz feminina”.
Primeiro, porque a arte de tecer pressupõe a convivência em grupo, isto
porque as esposas, exercendo tal atividade em conjunto, formavam uma
equipe eiciente, e com isso produziam mais e bem melhor do que se
estivessem atuando em separado (baRbeR, 1992, p. 108; LeSSa, 2004, p.
44). e o mais signiicativo para nós é que juntas mãe, ilhas, amas, cunhadas,

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 23


amigas estabeleciam um lugar de fala, de trocas de informações. Segundo,
porque é um dos espaços de transmissão da tradição helênica. ao tecer as
mulheres cantam as canções e as narrativas importantes para a formação,
principalmente dos ilhos homens que permanecem junto delas até os sete
anos de idade. Recuperando a fala de Frontisi-ducroux:

em resumo, o tear é o instrumento através do qual se transmite o patrimônio


cultural aos futuros cidadãos, o qual os marcará para sempre. e esta transmissão
se realiza por meio da voz das mulheres, muito antes que os poetas coloquem
em relevo esta função educativa. uma formação audiovisual na qual as palavras
e as imagens tecidas se entrelaçam e se conjugam (FRontiSi-duCRouX,
2004, p. 240).

Retornemos à articulação entre a tecelagem e a comunicação através dos


mitos de Filomela e de aracne. Comecemos com as implicações da atitude
de tereu ao cortar a língua de Filomela. Se a palavra é própria do humano,
a sua exclusão é como uma desumanização da personagem. o silêncio que
é esperado como virtude essencial em uma esposa e exaltado nos textos
literários não implica na interdição total da fala. apenas a título de exemplo,
podemos recuperar a tragédia Ájax de Sófocles onde o silêncio é concebido
como o maior ornamento das mulheres (SÓFoCLeS. Ájax, vv. 405-408).
voltamos à mutilação sofrida por Filomela, ela evoca, antes de tudo, o trauma
da violação e o mutismo que se imprime a ela, incapaz de verbalizar o que
aconteceu (FRontiSi-duCRouX, 2004, p. 236-7).
através da tecelagem, a personagem mítica revela para a sua irmã
(Procne) um relato de violação e de incesto. a linguagem do tecer, que é
silenciosa, pode ser um indício dos segredos femininos que os homens
não conseguem decodiicar. decifrar a mensagem do bordado de Filomela
requer do receptor um saber especíico que os grupos masculinos não
possuem acesso. até mesmo porque, a tecelagem é uma linguagem silenciosa
que substitui a sonora. e para os grupos de homens, a linguagem sem a
sonoridade é uma anomalia com a própria ideia de publicidade da pólis.
até mesmo porque a leitura sonora era vista como uma prática de vida em
sociedade (CavaLLo; ChaRtieR, 1998, p. 11) e propiciadora de uma
integração da comunidade.

24 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


o ato de tecer pode ser analisado também como uma metáfora à
união sexual. o entrelaçamento, em especial quando o ato sexual tem uma
função geradora ou engendradora, implica em dois indivíduos sexualmente
diferentes. Frontisi-ducroux airma que:

tecer se descreve como cruzar dois ios de diferente gênero; o io da urdidura,


cujo nome, stémon, é masculino, e é grosso e sólido; e a króke, palavra feminina,
a trama, mais ina e mais lexível. estes dois ios saem das mãos da iandeira, que
faz girar entre seus dedos umedecidos com saliva, ou sobre a sua coxa, o copo de
lã que deverá ainar, estirar e solidiicar. Gesto não isento de contornos eróticos
e cuja inalidade também é geradora (FRontiSi-duCRouX, 2004, p. 237-8).

a tecelagem possibilita às mulheres um poder de controle sobre o tempo.


o ato cíclico de tecer e de destecer permite que o tempo pare na Odisséia de
homero. vejamos para tal o caso de Penélope:

Passa ela, então, a tecer uma tela mui grande, de dia:


À luz dos fachos, porém, pela noite destece o trabalho.
três anos isso; com dolo consegue embair os aquivos.
(homeRo. odisséia. ii, 104-106).

Penélope faz uso dessa artimanha para retardar a sua decisão frente a
um novo casamento e para aguardar o retorno de odisseu, que ela acredita
irá acontecer. não importando as razões que a move, a personagem de
homero consegue o controle por mais de três anos sobre o tempo. Poder
esse assegurado pela sua métis e pela sua sophía acerca de uma atividade,
conforme já mencionamos, essencialmente do universo das mulheres. Pela
tecelagem as mulheres podiam se realizar e angariar o reconhecimento
coletivo de uma de suas competências. a arte de tecer se constituía em uma
das formas de garantia de acesso das mulheres à cultura, pois tecer é próprio
da vida civilizada. a habilidade nas atividades manuais é tida como uma
das principais virtudes que se esperam das mulheres; porém, essas mesmas
atividades tão nobres para as mulheres também são objetos de desmedida,
hýbris. nesse sentido, o exemplo mais contundente é o mito de aracne. a sua
desmedida se caracteriza pelo excesso de orgulho que os deuses não toleram.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 25


ao desaiar athená, aracne se excede e deixa de lado o respeito aos
deuses, rebaixando a fronteira que existe entre os humanos e as divindades.
o mito vinculado à athená está centrado na forma de seu nascimento e nos
seus variados atributos: guerreira, aversa ao casamento e à maternidade,
vinculada à téchne, às artes urbanas, e principalmente à produção têxtil
(ReedeR, 1995, p. 239; LeSSa, 2004, p. 128).
mas o desrespeito à autoridade de athená pode ter explicações no fato de
aracne ter sido educada sem a presença feminina. nesse sentido, ela rejeita
a tutela de uma mulher, mesmo que deusa. educada exclusivamente por seu
pai, ela ignora a autoridade e a experiência da deusa, se esquivando de aceitar
a “transmissão cultural e religiosa que une a deusa às mulheres, as quais ela
ensina os labores femininos” (FRontiSi-duCRouX, 2004, p. 256).
enquanto no mito de aracne o respeito ao pai é constante e explica a
afronta à athená, no caso de Filomela vemos uma situação oposta. ao optar
por matar o ilho e dá-lo como refeição ao próprio marido e pai da criança,
Procne se vale do fato da sociedade grega antiga considerar a participação
feminina na geração de ilhos como passiva, garantindo aos homens a
condição de ativos e de detentores exclusivos de paternidade. vale ressaltar
que a presença masculina nos dois mitos é fundamental, mas no de Filomela
a hýbris é desencadeada pelo masculino. tereu assume o comportamento de
um bárbaro quando violenta Filomela.
o êxito de aracne é desencadeado pela cólera de athená. aracne se
iguala ou até mesmo supera a deusa no trabalho da lã, campo mais feminino
de suas atividades artesanais. mais uma vez recorremos a Frontisi-ducroux,
que aponta duas razões para a cólera da deusa:

1. o conlito acontece no campo da beleza estética. as atividades


manuais ensinadas por athená às mulheres são obras de beleza
estética e aracne ao tecer um tapete esteticamente perfeito, ameaça
a deusa;
2. o tema desenvolvido por aracne abarca a intensa atividade sexual.
Seu tapete respira desejo e prazer, representando a felicidade dos
deuses. athená é uma deusa que se mantém virgem, rejeitando
a esfera dos desejos envolvidos na sexualidade (FRontiSi-
duCRouX, 2004, p. 264).

26 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


antes já havíamos dito que tecer signiica entrelaçar dois ios de gêneros
diferentes. a linguagem da tecelagem é a que reproduz metaforicamente o
entrelaçamento do masculino e do feminino através do entrecruzamento
da trama (króke) e da urdidura (stémon), nos permitindo reletir acerca das
relações de gênero.
a categoria gênero procura evidenciar que a construção do feminino
e do masculino aparece interligada; isto porque, cada um dos gêneros é
deinido em função do outro. o principal pressuposto da categoria gênero é,
de acordo com P.S. Pantel, entender a diferença entre masculino e feminino
como resultado da organização cultural da relação social entre os sexos, logo
distanciada do determinismo biológico (PanteL, 1998, p. 101).
além de relacional e historicamente construído, o gênero é plural.
Segundo maria izilda S. de matos, “existem muitos ‘femininos’ e ‘masculinos’,
e esforços vêm sendo feitos no sentido de se reconhecer diferenças dentro
da diferença, apontando que mulher e homem não constituem simples
aglomerados:...” (matoS, 2006, p. 13).
distanciando-se de pensar a categoria gênero através de um modelo
binário, Kate Gilhuly propõe a relexão a partir de uma matriz feminina.
Segundo a autora:

a matriz feminina – que conigurou o relacionamento entre a prostituta, a


esposa e a sacerdotisa ou agente ritual – foi um princípio organizacional utili-
zado pelos atenienses do Período Clássico para pensar e falar de si mesmos; era
parte do imaginário social ateniense. esta estrutura opera em uma variedade
de textos e gêneros e estava, portanto, ligada a várias facetas da identidade
ateniense (GiLhuLY, 2009, p.2)

ao invés de conceber o feminino como oposto ao masculino, a matriz


feminina permite que um tipo de mulher seja deinido em relação aos
outros (GiLhuLY, 2009, p.2-3), dimensionando com maior destaque a
heterogeneidade dos grupos femininos. até mesmo porque, segundo ainda
a autora, gênero não é um campo uniicado – há diferentes estratégias para
representá-lo, e elas circulam em uma variedade de permutações. além disso,
“cada tipo feminino simboliza um domínio do masculino, e cada um desses
domínios é entendido em relação aos outros” (GiLhuLY, 2009, p.8 e 23).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 27


independente de serem personagens míticas, Filomena, Procne e
aracne revelam um comportamento feminino distanciado do modelo
idealizado pelos gregos antigos, caracterizado pela passividade, silêncio
e submissão. esse relacionamento entre representação e realidade é um
enigma inexorável para o classicista interessado em gênero; isto porque
enquanto as mulheres da vida cotidiana têm as suas vidas relegadas ao
mundo do silêncio público, da reclusão no oîkos e da passividade, as
personagens da icção exercem papéis excepcionalmente ativos (GiLhuLY,
2009, p. 5). no caso das personagens míticas que estamos abordando
observamos que elas se caracterizam pelas relações de poder, pela ausência
do silêncio, pela postura ativa, entre outras.
Retornando aos mitos de Filomela e de aracne, a título de conclusão,
podemos enfatizar que a tecelagem, elemento que os une diretamente,
pode ser concebida como expressão de defesa e de comunicação, que se
coniguram em relações de poder. Comecemos pela defesa. em ambos os
mitos, ela se faz presente. Filomela se protege ao narrar a violação à própria
irmã, evitando a repetição da mesma e permitindo a punição de tereu;
enquanto aracne defende a sua habilidade e a estética do seu tecido.
no que se refere ao aspecto da comunicação, Filomela tece para revelar
a violação; já aracne explicita a sua habilidade, além de evidenciar a sua
desobediência aos deuses e ao comando feminino, representado por athená.
as duas narrativas míticas tecem o feminino ao trazerem a público a força
da comunicação dos grupos de mulheres. elas explicitam um feminino que
enuncia um distanciamento das idealizações esperadas do comportamento
das mulheres. elas explicitam mulheres que se comunicam, que denunciam,
que se rebelam, que agem, que exercem o poder, que se emocionam, que se
encontram, na verdade, imersas nos conlitos inerentes à natureza humana
e da feminina, em especial.

referências

Documentação Textual
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30 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


AS muLHErES E oS PErIGoS DA CIDADE:
CASAmENTo ESPIrITuAL, VIrGINDADE E
ProSTITuIÇÃo SEGuNDo JoÃo CrISÓSTomo

Gilvan Ventura da Silva

a cristianização do império Romano, processo para o qual a atuação


de Constantino e de seus sucessores imediatos foi decisiva, teve como
lócus privilegiado os ambientes urbanos, nos quais as comunidades cristãs
desenvolviam, de longa data, as suas atividades missionárias e intelectuais,
com destaque para a conversão dos gentios e o confronto com os judeus e
judaizantes, além, é claro, do esforço permanente de ixação dos cânones
ortodoxos em oposição às correntes qualiicadas como apócrifas e heréticas,
sempre latentes nos primeiros séculos de formação do cristianismo. não
obstante algumas narrativas nos induzirem a supor que o amplo movimento
de cristianização delagrado após a batalha da Ponte mílvia, em 312, e a
promulgação do pseudo-edito de milão, em 313, adquiriu um caráter mais
ou menos homogêneo, exibindo assim toda a pujança de uma Ecclesia que,
outrora perseguida, despontava triunfante, o avanço das pesquisas tem nos
revelado uma realidade outra, marcada por um enfrentamento contínuo,
no tempo e no espaço, entre, por um lado, as tradições religiosas de iliação
grecorromana e judaica e, por outro, as concepções e valores cristãos.
esse enfrentamento terá como principal cenário a cidade antiga, eivada
de símbolos culturais próprios do paganismo e do judaísmo, mas que, na
passagem do século iii para o iv, começa a assumir cada vez mais uma
face cristã, como constatamos por meio da assim denominada “revolução
edilícia”, responsável por multiplicar, no perímetro urbano, os monumentos
conectados com o ethos cristão, a exemplo das igrejas, mosteiros, martyria,
nosokomia e hospitia (PeRRin, 1995, p. 585). a ação missionária da igreja
em prol da expansão da base de iéis, cujo desdobramento inevitável era
a erosão dos credos concorrentes, signiicou uma luta pelo controle do
território urbano do ponto de vista físico, arquitetônico, sendo a pedra
mobilizada como um poderoso instrumento a serviço da cristianização.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 31


no entanto, considerando que os lugares e monumentos não existem per
se, mas se encontram numa relação de estreita dependência para com os
usuários, aqueles que, ao transitarem e ocuparem os topoi são responsáveis
por envolvê-los numa rede simbólica que confere vida e movimento à fria e
inerte arquitetura, a cristianização do império Romano exigiu também um
cuidado suplementar das autoridades eclesiásticas em intervir nas relações de
sociabilidade próprias da cidade antiga, o que implicava, em última análise,
reformar o espaço urbano à luz dos princípios evangélicos.
Por esse motivo é que, nas inúmeras páginas que brotam da lavra dos
principais autores cristãos da antiguidade tardia – os assim denominados
Padres da igreja –, a preocupação com a polis, suas mazelas, vícios e perigos
representa quase uma obsessão. de fato, quando nos dedicamos à exploração
da obra de uma personagem tão influente como foi João Crisóstomo,
uma das conclusões que logo se impõem diz respeito à centralidade da
experiência cívica para esses homens da fase inal do império, razão pela
qual muitos dos argumentos formulados com o propósito de obter a adesão
das consciências à doutrina cristã giram em torno da condenação da cidade
antiga e da fundação de uma nova politeia, capaz de antecipar, sobre a terra,
as benesses prometidas quando do retorno do Cristo em sua glória. de
modo geral, podemos airmar que a concepção de João Crisóstomo acerca
da polis tal como herdada dos gregos e dos romanos é marcada por um
profundo pessimismo. muito embora reconheça que a cidade é um dom
de deus aos homens (Hom. XXXIV in I Cor, 7), João se mostra bastante
incomodado com os rumos tomados pela associação cívica sob a tutela dos
gregos, romanos e judeus, vale dizer, dos “idólatras” e dos “deicidas”, que a
teriam cumulado de opróbrio, injustiça e miséria, chamando então a si a
tarefa de liderar a reforma da polis de maneira que esta, puriicada dos seus
desvios e transgressões, pudesse recuperar o estatuto de santidade conferido
outrora pelo Criador. a cidade antiga, tal como a encontramos organizada
na antiguidade tardia, é, para João Crisóstomo, recoberta de heterotopias,
de lugares perigosos, pecaminosos, poluidores que deveriam ser a todo custo
evitados. na contracorrente do imaginário clássico, que fazia da cidade e
de suas muralhas um ambiente acolhedor diante de um entorno suspeito
e hostil, numa clara oposição entre humanitas e ferocitas que, em termos
geográicos, se traduzia por uma distinção entre a cidade e o território

32 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


circundante por ela controlado (a khora) e as zonas mais distantes, de difícil
acesso, habitadas por feras e salteadores, os cristãos irão converter a polis
num território absolutamente inóspito por se encontrar repleto de lugares
(teatros, termas sinagogas) que, postos sob o controle dos demônios e dos
seus asseclas, afrontam a ordem natural das coisas estabelecida por deus. em
virtude disso, João tenta, por todos os meios, impedir o trânsito dos cristãos
por tais lugares, como uma maneira de bloquear as relações de sociabilidade
que estimulavam o contato frequente e cotidiano entre cristãos, pagãos e
judeus. nessa empreitada, um dos principais alvos da sua pregação foram
as mulheres, pois para ele a cidade antiga, ao tolerar a presença feminina em
locais públicos, estimulava a licenciosidade e a prostituição, emblemas do
modus vivendi grecorromano e judaico, colocando assim em risco um dos
talismãs mais espetaculares de sacralização da polis, de construção de uma
nova politeia fundada nos valores cristãos: a virgem.

As ‘meretrizes’ cristãs

muito embora a reunião das virgens em uma ordo, um agrupamento


formalmente reconhecido dentro da hierarquia eclesiástica e dotado de
regras e procedimentos especíicos, não tenha surgido antes de 320, isso não
equivale a supor que o reconhecimento do valor espiritual da virgindade
feminina seja uma inovação do século iv. Como assinala Witherington
(2000, p. 203), entre 80 e 325 acompanhamos um interesse crescente das
autoridades cristãs pelo tema da virgindade de maria, alçada à condição
de modelo de conduta para todas as mulheres. aos poucos, se sedimenta
uma retórica de valorização do celibato e do ascetismo, especialmente
quando praticados pelas mulheres, multiplicando-se os tratados, discursos
e homilias dedicados a exaltar a virgindade, como aqueles elaborados por
Clemente de alexandria, tertuliano, orígenes e metódio, apenas para citar
os pioneiros. as imagens literárias responsáveis por enaltecer as virgens são
abundantes e por vezes majestosas. “noivas de Cristo”, “altares de ouro”, as
virgens são também denominadas “Filhas de Jerusalém”, traindo assim a
conexão direta entre o estatuto de virgindade e o processo de cristianização
da polis, pois enquanto o homem experimenta amiúde a rudeza do ascetismo
tendo como paisagem os desertos e as montanhas, ambientes insalubres e

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 33


pouco recomendáveis à presença feminina, a mulher, na condição de virgem
ou de viúva, se mantém circunscrita à zona urbana, que almeja puriicar
com a sua presença.1 a princípio, as virgens iniciavam-se nas práticas
ascéticas, incluindo jejuns e mortiicações, por volta dos 16 ou 17 anos,
sob a supervisão da família, que costumava reservar um cômodo da casa
onde ela pudesse se instalar sozinha ou na companhia de outras colegas
dispostas a compartilhar das mesmas privações. Reclusa no oikos, a jovem
saía à rua apenas em ocasiões especiais, como para tomar parte nos ritos da
congregação local. em algumas circunstâncias, as virgens, organizadas em
pequenos grupos, podiam repartir por conta própria acomodações modestas,
havendo ainda a possibilidade de uma cristã abastada, desejando abraçar a
vida ascética, reunir em torno de si um conjunto de 50, 70 ou mais virgens
e viúvas, que passariam a formar uma comunidade instalada nas cercanias
das igrejas ou mesmo nas villae da aristocracia, mas sem que tenhamos
ainda a fundação de ordens monásticas stricto sensu (bRoWn, 1990, p. 222).
uma outra modalidade de exercício da virgindade pelas mulheres, bastante
polêmica por sinal, era o assim denominado “casamento espiritual”, a
coabitação de ascetas masculinos e femininos, que poderiam colocar à prova,
de modo deinitivo, a sua vocação pelo celibato. as virgens que optavam
por dividir o mesmo teto com um homem que não fosse seu pai, irmão
ou marido costumavam ser denominadas subintroductae, “introduzidas
subrepticiamente”, ou syneisaktoi, “pessoas trazidas de modo ilegítimo para
a casa”, o que denunciava o desconforto da sua condição (LeYeRLe, 2001, p.
77). Já à época da redação de O pastor de Hermas – século ii, portanto – temos
registro dessa prática (WhiteRinGton, 2000, p. 203), que será mais tarde,
no século iv, alvo de severos ataques por parte dos escritores cristãos, dentre

1 as mulheres poderiam, em certos casos, optar pelo exercício da anacorese em regiões desérticas, o que,
naturalmente, signiicava um risco permanente à sua integridade física e moral. vale ressaltar, no entanto,
que tal prática nunca foi estimulada nos círculos monásticos, uma vez que os anacoretas costumavam
extrair o seu carisma exatamente das duras privações experimentadas no isolamento do deserto, um
capital simbólico que não estavam dispostos a repartir com as mulheres. a presença feminina nas regiões
próximas aos desertos é mais comum sob a forma de comunidades cenobitas, como aquelas fundadas
por Pacômio, no egito, conforme vemos descrito na História Lausíaca, de Paládio. Para uma discussão
sobre a anacorese como elemento de airmação da autoridade masculina nos círculos monásticos da
antiguidade tardia, consultar Silva (2007).

34 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


os quais um dos mais combativos é João Crisóstomo, para quem as virgines
subintroductae constituem motivo de profunda vergonha para a igreja. em
seu tratado Quod regulares feminae viris cohabitare non debeant, escrito em
antioquia ou Constantinopla, não sabemos ao certo, João apresenta diversos
argumentos no sentido de convencer as virgines subintroductae a renunciar a
um costume que, de tão repulsivo, se recusa a nomear.
Quando analisamos as reflexões de João Crisóstomo acerca do
comportamento impróprio assumido pelas subintroductae, notamos que
uma das principais estratégias discursivas empregadas pelo autor é a
equiparação entre essas “pretensas” virgens e as meretrizes, na medida em
que ambas as categorias tinham por hábito freqüentar livremente as ruas
e demais lugares públicos, socializando com os homens, expondo-se sem
reservas ao olhar e, desse modo, suscitando a luxúria na alma masculina.
a associação entre as subintroductae e as prostitutas resulta do fato de que
ambas não se submetem aos preceitos divinos segundo os quais à mulher
são reservados o recinto da casa e os afazeres domésticos, ao passo que a
circulação nos ambientes públicos e todas as atividades daí decorrentes são
uma prerrogativa masculina (Quod reg., 7). na opinião de João Crisóstomo,
a cidade é feita para o trânsito dos homens, responsáveis por garantir a
existência da polis tanto do ponto de vista da gestão política quanto do
desempenho dos ofícios necessários à vida urbana, como os de ourives,
pedreiro, carpinteiro e outros. nesse sentido, a cidade é considerada um
local perigoso para as mulheres decentes, que, ao adentrarem um espaço
regido pelos códigos e valores masculinos, são imediatamente rebaixadas
na sua dignidade, abrindo mão da honra que portam.2 independente da sua
condição social, toda mulher que se exiba, em praça pública, na companhia
de homens desconhecidos, corre o risco de ser assimilada a meretrizes, como

2 embora João Crisóstomo seja forçado a reconhecer que a praça do mercado é ocupada por mulheres que
se dedicam tão somente à comercialização das roupas que confeccionam, ou seja, por mulheres honestas
que lutam para sobreviver por meio de uma atividade desconectada com a prostituição, para ele essa é
uma situação lamentável e imprópria para as virgens (Quod reg.,5). Como assinala Giner (1997, p. 143),
João não revela, em sua obra, nenhum interesse particular pela mulher trabalhadora, uma realidade
muito comum em seu tempo, pois o ideal feminino que acalenta é o da jovem virgem reclusa no oikos
e livre dos inconvenientes do matrimônio.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 35


ocorre com as subintroductae. o eixo do argumento de João Crisóstomo é
a suposição de que a proximidade entre os sexos pelas ruas, monumentos e
praças, territórios cuja amplidão os torna difíceis de ser controlados, confere
às mulheres um falso senso de liberdade, incentivando-as a transgredir os
limites impostos pela sua condição, principalmente a discrição, o recato e a
sobriedade. Para João, se no recinto doméstico as subintroductae representam
uma ameaça permanente, não apenas à sua própria honra, mas à honra do
companheiro masculino (philopartenos) que com elas coabita, ao adentrarem
a praça pública estas se tornam ainda mais perigosas, pois o súbito ingresso
num espaço masculino por excelência assinala uma brutal degradação do
seus status, fazendo recair sobre elas o estigma da prostituição, um dos mais
infamantes à época, diga-se de passagem. Segundo João, a virgindade não é
resguardada apenas pela integridade física da jovem ou da mulher, que, ao
evitar o coito, se preserva intacta para o seu noivo espiritual, Cristo, mas por
um conjunto de comportamentos que exprimem a condição de santidade
atribuída à virgem, especialmente a contrição e o silêncio. no entanto,
quando na presença dos homens, as subintroductae simplesmente renunciam
a todas as normas da decência, pois

[…] riem na hora errada, rompem corações e lertam mais do que mulheres
treinadas em um bordel. elas lançam seus equipamentos de guerra para todos
os lados, fazendo força para caírem na falta de decoro das prostitutas como
se estivessem lutando contra elas e desejosas de disputar com elas o primeiro
lugar por uma reputação desgraçada. me digam, como, no futuro, eu seria capaz
de retirar esta virgem da categoria e sociedade das prostitutas quando ela se
comporta da mesma maneira que estas, inlamando os corações dos rapazes;
quando ela é volúvel e devassa; quando ela tritura os mesmos venenos, mistura
as mesmas taças, prepara a mesma cicuta? mas ela não diz “vamos fazer amor”,
nem diz “eu perfumei meu divã com açafrão e minha cama com canela”. Se
fosse isso, seriam apenas seu divã e sua cama, não suas roupas e corpo! as
prostitutas ocultam a isca em casa, mas vocês portam a armadilha em todos
os lugares; vocês passeiam pelo mercado abrindo as asas do prazer. dado que
vocês não entabularam conversação, vocês não pronunciaram as palavras da
prostituta: “venha, vamos fazer amor”! vocês não as pronunciaram com a lín-
gua, mas vocês o izeram com o seu comportamento. [...] ao agir desse modo,

36 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


vocês não se livraram do pecado; de fato, esta é outra forma de prostituição.
vocês permaneceram livres da lascívia – mas do corpo, não da alma. vocês
executam a façanha pecaminosa, se não por meio do intercurso, por meio do
olhar. me digam, por que vocês provocam o transeunte? e como se imaginam
livres do pecado, quando cumpriram tudo isso? de fato, vocês cometeram um
adultério perfeito com o homem enredado no seu plano (Quod reg. 1).

João atribui aqui enorme importância à disciplina corporal como um


indício capaz de revelar aos espectadores a devassidão da mulher, a despeito
inclusive do recurso à palavra, pois não é necessário, a princípio, que a
subintroducta faça qualquer solicitação explícita aos espectadores do mercado
para que estes a cortejem. basta transitar com desenvoltura em meio aos
homens, oferecendo o seu corpo aos olhares curiosos, para despertar a luxúria
que, mesmo em pensamento, representa um convite ao adultério. o cerne
da preocupação de João Crisóstomo em resguardar a reputação das virgens
reside, em nossa opinião, na capacidade que a exibição pura e simples do corpo
feminino nos ambientes públicos tem de estimular, numa audiência masculina,
a indecência, como se, ao deixarem o refúgio dos seus lares e se lançarem
sobre a rua, um território inóspito e até certo ponto incontrolável, as mulheres
colocassem em risco a sua honra, o que exigia delas um cuidado permanente
com os gestos e atitudes a im de, por um lado, não se deixarem contaminar
pelas “tentações” da cidade e, por outro, não se tornarem elas próprias agentes
dessas tentações, como ocorria com as atrizes, iguras pertencentes a lugares
saturados de infâmia e indecência, como eram os teatros, nos quais os gregos
(isto é, os pagãos), costumavam admitir, à revelia de todas as normas da
decência, mulheres nas sessões noturnas, em meio à algazarra de rapazes
embriagados (Hom. in Tit. V). Para João, assim como a subintroducta, ao
frequentar o mercado, era assimilada à prostituta, a atriz (mima), que se exibia
sobre o palco, estava sujeita ao mesmo destino, como vemos na Nova Homilia
7, também intitulada Contra os jogos e os teatros, na qual o pregador se dedica
a condenar as atividades teatrais nos seguintes termos:

e o que eu poderia dizer a respeito do teatro? na maioria das vezes, se nós


encontramos uma mulher, nós nos perturbamos. mas vocês, sentando-se na
parte mais alta [do teatro], onde há um grande incentivo para se comportarem

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 37


de maneira desgraçada, se vocês vêem uma mulher que é prostituta surgindo
sobre o palco com a cabeça descoberta e grande despudor, ornada com trajes
dourados, débil e corrupta, cantando versos indecentes, melodias degenera-
das, proferindo palavras obscenas, portando-se tão desgraçadamente (visões
que, após terem observado, vocês levam em suas mentes) – vocês inclinam
suas cabeças com vergonha? vocês ousam dizer que não sentem nenhuma
emoção humana? Seguramente seu corpo não é de pedra? Seguramente não
é de ferro? o ponto é que, mesmo que vocês não sejam íntimos da prostituta,
vocês copularam com ela por meio do desejo e cometeram o pecado em seus
pensamentos. isso não ocorre apenas nesse momento, mas quando o teatro
termina e ela se foi, a imagem dela permanece na alma de vocês – suas palavras,
sua aparência, seus olhares, seu andar, seu ritmo, sua pronúncia, suas canções
obscenas, levando consigo inúmeras feridas.

o cuidado de João em evitar que as mulheres honradas sejam


corrompidas pelos perigos que se ocultam na cidade transparece igualmente
na segunda homilia da série Adversus Iudaeos, quando, por ocasião da
proximidade do Rosh-Ha-Shanah, o festival judaico das trombetas celebrado
no início do mês de Tishri (setembro/outubro), o pregador recomenda aos
maridos que acompanhem de perto as suas esposas fora do lar, uma vez
que estas podem ser atraídas para a sinagoga, tornando-se presas fáceis da
“perfídia” dos judeus e igualando-se, portanto, às prostitutas. Segundo João,

Quando a hora estabelecida para o serviço os convoca à igreja, vocês falham em


acordar suas esposas da sua indiferença indolente. mas agora que o demônio
chama suas mulheres para a Festa das trombetas e elas prontamente voltam
os ouvidos ao seu chamado, vocês não as detêm. vocês as deixam se envolver
em acusações de profanação, vocês as deixam ser arrastadas para caminhos
licenciosos. Pois, como regra são as prostitutas, os afeminados e o coro inteiro
do teatro que corre para o festival. [...] e por que eu falo da imoralidade que
aí existe? não estão vocês apreensivos que sua esposa possa não retornar após
um demônio possuir a sua alma (Ad. Iud. ii, 860-861).

em seguida, na 4ª homilia da mesma série, João retoma o argumento


segundo o qual as mulheres devam ser mantidas em casa como uma maneira

38 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


de preservá-las da “poluição” que macula os espaços privados de deus, nos
seguintes termos:

Se vocês possuem uma serva ou uma esposa, tenham o cuidado de mantê-


-las em casa. Se vocês as proíbem de ir ao teatro, vocês devem muito mais
proibi-las de ir à sinagoga. ir à sinagoga é um crime maior do que ir ao teatro.
o que acontece no teatro é pecaminoso, mas o que acontece na sinagoga é
ímpio. Quando eu digo isso não quero dizer que vocês devam deixá-las ir ao
teatro, pois o teatro é vil. eu digo isso de modo que vocês sejam cuidadosos
em mantê-las longe da sinagoga (Ad. Iud. iv, 881).

nas três situações acima descritas, o que se extrai da pregação de João


Crisóstomo é um desconforto evidente diante da presença de mulheres em
lugares que não foram feitos, em absoluto, para elas, como o teatro, a sinagoga
e a praça do mercado, lugares que, marcados pelo contato estreito entre os
corpos, pela devassidão do olhar e pela pândega, contrastam agudamente
com a reclusão, o isolamento e a quietude dos oikoi cristãos, esses “mosteiros
domésticos” que se multiplicam no século iv e que constituem, assim como
os agrupamentos de anacoretas e cenobitas do deserto, uma nova modalidade
de politeia, um novo estilo de associação em confronto com a polis,
corrompida pela imoralidade de gregos, romanos e judeus. João estabelece
assim uma nítida oposição entre as redes de sociabilidade próprias da célula
familiar, alicerçadas na decência e no respeito mútuo entre os sexos, e a
cidade antiga, marcada por inúmeras transgressões, dentre as quais uma das
mais deploráveis é o descontrole – poderíamos mesmo dizer a hybris – das
mulheres quando na companhia dos homens. Sem dúvida, não é por mero
acaso que João Crisóstomo é um dos precursores daquilo que poderíamos
qualiicar como a Christon paideia, ou seja, um programa educacional
calcado no estudo das escrituras e voltado à formação dos “cidadãos do
céu”, os rebentos das famílias cristãs, que considera uma nova geração
predestinada a erradicar os vícios da polis, como tivemos a oportunidade de
discutir em trabalho recente (SiLva, 2010). a tarefa de supervisionar essa
nova paideia, cujos contornos começam então a ser delineados, é atribuída
por João ao chefe da casa, ao homem, que tem a responsabilidade de zelar
pela educação dos ilhos, afastando-os a todo custo das “armadilhas” da

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 39


cidade. do mesmo modo, ao homem cabe a vigilância sobre a esposa e as
servas, o que implica limitar o acesso destas aos lugares públicos, como
vimos. todas essas ações visam, em última análise, à ediicação da família
cristã como uma fortaleza diante das tentações oferecidas pela polis, até o
momento em que o novo génos, educado conforme os preceitos evangélicos,
tenha condições suicientes para subverter o tempo e o espaço urbanos,
conferindo assim à cidade um semblante genuinamente cristão.

os ‘vasos sagrados’ da polis

dentro desse “projeto” de reformulação da cidade antiga mediante o


reforço dos valores cristãos que orientam as relações familiares, as virgens
talvez desempenhem o papel de protagonistas, pois, a despeito das limitações
impostas pela sua natureza, são convocadas a praticar o ascetismo e o
abandono do mundo no coração da própria cidade. Conforme assinalamos,
as virgens, ao contrário dos monges, não têm à disposição um território
desocupado que possam moldar segundo os seus interesses e necessidades,
a exemplo do deserto e das montanhas, regiões nas quais a ruptura com o
conforto da vida urbana, ao se processar de modo radical, lança os ascetas
num ambiente hostil, é certo, mas também os coloca, à partida, ao abrigo
das “tentações” da cidade, como os espetáculos, as comemorações cívicas,
as competições esportivas, as visitas às termas e ao aniteatro, atividades
condenadas ad nauseam pelos autores cristãos. as virgens, por sua vez,
ao assumirem os votos de castidade e receberem os véus, experimentam
uma transição geográica bem menos traumática do que os homens, na
medida em que continuam amiúde a habitar o oikos paterno ou, quando
muito, se deslocam para um outro domicílio, permanecendo, todavia,
conectadas à cidade, o que representa uma ameaça constante aos votos que
izeram. integrando o cenário urbano, do qual nunca se desvencilham por
completo, as virgens possuem uma incumbência extremamente ambiciosa:
ediicar, no cotidiano, a sua cidade, puriicá-la de todos os vícios, conduzir
os compatriotas à renúncia da “impiedade” oculta nas práticas culturais
grecorromanas e judaicas. modelos de devoção, as “noivas de Cristo”, quando
solicitadas a se ausentar de seu domicilio, a transitar pelos espaços coletivos,
deveriam assumir um ar grave e solene, como marca distintiva de sua

40 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


superioridade diante do mundo. anjos sobre a terra, suas atitudes deveriam
ser estáticas, sóbrias, hieráticas, contrariando assim tudo aquilo qualiicado
como vulgar, mundano e devasso. essa “etiqueta” deveria ser observada em
todos os momentos, como uma lembrança permanente da sacralidade que a
recepção do véu (velatio) encerra. de acordo com João Crisóstomo, a virgem,
ao ingressar no mercado, deve fazê-lo de modo majestoso, o que implica

[...] assumir a verdadeira imagem de toda a ilosoia e surpreender a todos,


como se fosse um anjo recém-descido dos céus. Se um dos próprios querubins
aparecesse sobre a terra, ele atrairia todos os homens para si; da mesma maneira
a virgem deve precipitar aqueles que a vêem em maravilha e terror diante da sua
santidade. Pois quando ela anda, é como se fosse através do deserto, e quando
ela se senta na igreja, no mais profundo silêncio, seus olhos não enxergam nin-
guém na audiência, nem homem nem mulher, mas apenas o noivo, como se ele
estivesse presente e fosse visível, e tendo conversado com ele em oração, se retira
para sua residência e ouve somente a sua voz através das escrituras (Quod reg., 9).

nessa passagem, João se esmera em demonstrar que a aparição de


uma virgem em público seria o equivalente a uma autêntica epifania, à
manifestação visível do sagrado, e, como tal, capaz de produzir um impacto
extraordinário sobre os espectadores. decerto que as atrizes e prostitutas,
ao surgirem em público cobertas de maquiagem e portando vestimentas e
adornos de cores vistosas, eram capazes igualmente de comover a audiência.
no caso da virgem, no entanto, a sua exuberância advém, em primeiro lugar,
da sabedoria que exala e, em segundo lugar, do autocontrole que impõe aos
seus gestos, com destaque para a parcimônia no uso da palavra, um dos
principais recursos de renúncia ao mundo empregados pelos ascetas de
ambos os sexos. Portadora de uma centelha que a torna semelhante aos anjos,
seres sobre-humanos, portanto, a virgem caminha nesse mundo como se a
ele já não mais pertencesse, sem tomar consciência de nada nem ninguém
ao seu redor, o que a habilita a estabelecer uma relação íntima com o seu
noivo místico. um pouco depois, na seqüência do tratado Sobre a necessidade
de guardar a virgindade, João retorna ao tema da sacralidade que cerca as
autênticas virgens, aproveitando a ocasião para estabelecer um contraponto
entre estas e as subintroductae, uma vez mais comparadas às prostitutas:

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 41


Quando ela [i. é, a virgem] se esquiva tanto dos olhares do sexo masculi-
no quanto da associação com mulheres mundanas, e quando ela cuida das
necessidades da sua aparência física (e quantas mulheres o fazem!), ela faz
somente o necessário e se entrega por completo ao cuidado da alma. Quem
não se sentiria extremamente feliz vendo numa natureza feminina um modo
angelical de vida? Quem, em suma, ousaria se aproximar dela, quem, sendo
um homem, ousaria tocar sua alma brilhante? essa é precisamente a razão
pela qual todos se afastam dela, de bom-grado ou não, porque todos icariam
atônitos, como se vissem ouro lamejante e fosforescente. Pois o ouro, devido
à sua própria natureza, tem um brilho extraordinário, mas quando ele recebe
o brilho do fogo como aditivo, ele se torna uma maravilha maior e mais te-
mível. e se isso ocorre com um objeto físico, considerem o resultado quando
uma alma de ouro é afetada desse modo: isso será um espetáculo esperado
não apenas pelos humanos, mas também pelos anjos. Por que então vocês se
adornam com roupas quando vocês têm o ornamento dessa chama? de fato,
as roupas nos foram dadas não com a inalidade de que nós as exibamos, mas
para que ocultemos a vergonha da nudez. [...] mas vocês superam até mesmo
as mulheres do palco em cuidados com o vestuário, por meio dos quais vocês
exibem, num modo selvagem, artifícios para excitar os rapazes. o noivo não
deseja que vocês se enfeitem e se tornem belas; em vez disso, ele ordena que
toda a beleza seja depositada na sua alma. mas vocês negligenciam a alma e
ornam o barro e as cinzas de modos diversos (Quod reg., 9-10).

Para João, a verdadeira virgem é aquela que evita os olhares alheios


e curiosos e não a que os excita, uma vez que o seu capital simbólico é o
esplendor da alma e não a beleza física. na condição de mulher, a virgem
não poderia, naturalmente, descuidar da aparência, mas apenas num limite
indispensável para não ser acusada de desmazelo, pois o seu tempo deveria
ser consumido em jejuns e orações e não na busca da beleza, como o fazem
as atrizes e prostitutas. Por essa razão é que o pregador censura asperamente
as subintroductae, acusadas de demonstrar uma preocupação descabida com
a própria indumentária com o propósito de atrair a atenção dos rapazes,
que se esforçam por seduzir. Perante a cidade, a virgem não deveria ser
reconhecida pelas vestimentas e adornos que portasse, como as mulheres
devassas, mas pela sua alma resplandecente, capaz de deixar os transeuntes

42 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


atônitos, maravilhados e contritos. mesmo se tornando, por um momento,
o foco das atenções, uma vez que uma igura de porte angelical diicilmente
passaria despercebida em meio à multidão, a virgem conserva o recato, a
economia de gestos e palavras e, desse modo, santiica a cidade, introduzindo
uma pausa no burburinho das ruas e praças com a inalidade de anunciar,
por meio da sua presença, a existência de um outro mundo, de uma outra
realidade, alicerçada nos valores cristãos. a aparição súbita da virgem nas
ruas, em geral a caminho da igreja, constitui uma singela demonstração
da piedade cristã que confronta o estilo de vida das prostitutas e atrizes,
mulheres cuja presença ostensiva nos espaços públicos exprime a sua opção
pela futilidade, pela luxúria e pelo adultério.
ao estabelecer o paralelo entre as subintroductae e as prostitutas, João
desejava denunciar, é certo, a conduta reprovável de devotas cristãs que,
ao coabitar com companheiros masculinos estranhos à célula familiar,
transgrediam as regras responsáveis por normalizar as relações entre
os gêneros, pois, não tendo contraído matrimônio legal, se situavam no
limiar do adultério e do concubinato, práticas repulsivas do ponto de
vista eclesiástico. À primeira vista, portanto, o interesse principal de João
Crisóstomo ao elaborar o seu tratado Sobre a necessidade de guardar a
virgindade teria sido dissolver o consórcio entre homens e mulheres unidos
sob a forma do casamento espiritual, uma prática que, como vimos, era
conhecida e condenada desde pelo menos o século ii. todavia, na exposição
de seus argumentos, João Crisóstomo, como de costume, não se limita a
discutir assuntos de natureza privada, assuntos relativos à intimidade de
“casais” que compartilham a mesma unidade doméstica, mas extrapola esse
nível para incluir relexões cujo pano de fundo é a polis. ao fazer isso, retoma
a antiga distinção adotada por gregos e romanos entre as mulheres honradas,
cujo espaço de convivência e sociabilidade era o lar, e as mulheres infames,
as meretrizes e mimae, que transitavam pelos espaços coletivos controlados
pelos homens. Seria, no entanto, errôneo supor que João apenas reproduz
a opinião arcaica expressa pelos moralistas romanos acerca dos papéis
sociais reservados a homens e mulheres. Pelo contrário, o que veriicamos é
a retomada do debate acerca da posição social da mulher em outros termos,
tendo como viés o confronto e não a solidariedade entre polis e oikos. dentro
do jogo retórico que então se estabelece, as meretrizes representam uma

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 43


peça-chave, pois é por comparação a elas que João Crisóstomo traça o peril
da mulher ideal, no caso, a virgem, um dos esteios da nova ordem cristã que
busca implantar. ao fazer isso, altera por completo a compreensão de gregos
e romanos acerca do próprio ofício das meretrizes, cujo nexo com a cidade
antiga é simplesmente dissolvido.

A cidade das prostitutas

de acordo com a legislação romana, as prostitutas, sendo libertas


ou ingênuas, recaíam na categoria de humiles abiectaeque personae, ou
seja, na de pessoas infames, privadas de direitos civis, como o de contrair
matrimônio legítimo, de testar ou de herdar, estatuto que compartilhavam
com os gladiadores e os atores (FRenCh, 1998, p. 296; GonZÁLeZ,
2001, p. 115).3 isso não equivale a airmar, entretanto, que o seu ofício
fosse encarado como algo criminoso, ilegal ou nocivo à ordem pública,
como se comprova pela inexistência de um corpus legislativo destinado a
regular a matéria. mesmo no Codex heodosianus, um monumento jurídico
para o estudo dos temas que inquietavam os legisladores na fase inal do
império, já marcada pela experiência cristã, temos apenas um punhado
de leis referentes à prostituição, para desapontamento dos historiadores.4
Por outro lado, a prostituição fazia parte da lista de ofícios cadastrados
na municipalidade, cabendo aos edis a coleta do imposto devido pelas
proissionais e seus proxenetas (os lenos ou lenas). Quando os imperadores
se pronunciavam sobre o lenocínio, na maioria dos casos o faziam com o

3 vale a pena recordar que, no império Romano, a maioria das prostitutas era de condição servil. os seus
senhores, os lenos, eram ao mesmo tempo proxenetas e mercadores de escravos. a im de diversiicar
a oferta de serviços, os lenos costumavam educar jovens escravas para cantar, dançar, recitar poemas e
tocar a lira e a lauta. Possuindo uma formação como essa, a escrava poderia ser alugada como cortesã,
ou seja, como uma prostituta de categoria superior, com condições de participar dos festins e banquetes
da aristocracia. uma das maiores aspirações dessas escravas era obter a liberdade e se instalar por conta
própria, livres da exploração a que eram submetidas. Para tanto, podiam, em certas ocasiões, contar
com o auxílio de um cliente tomado de afeição por elas (GRimaL, 1991).
4 Para algumas referências jurídicas sobre o tema nos últimos anos do governo de Constantino, consultar
C.h. 3, 16, 1 e 4, 6, 3. a Nh. 18, De lenonibus, é mais especíica, embora de época tardia (dezembro de 439).

44 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


objetivo de aumentar a taxação de uma atividade que, a julgar pelas fontes
literárias, constituía uma fonte segura de rendimentos. em conformidade
com a tolerância das autoridades romanas para com o ofício das meretrizes,
estas gozaram sempre de uma acolhida favorável no recinto da Urbs, mais
não fosse pelo fato de que a própria lenda da fundação de Roma falava
de uma loba (lupa) que teria alimentado os gêmeos de Réia Sílvia. Como
se sabe, lupa, em latim, é sinônimo de meretrix, o que nos induz a supor
que, por força do imaginário, a fundação da Urbs estivesse desde o início
conectada com a prostituição. válida ou não uma interpretação como essa,
o fato é que as prostitutas não se encontravam excluídas da cidade, uma
vez que os festivais de sua padroeira, Flora, desde 173 a.C. faziam parte
do calendário oicial. Celebradas entre 28 de abril e 3 de maio, as Floralia
davam ensejo a um cortejo multicor no qual as prostitutas, encenando
mimos, se exibiam diante do público reunido no teatro (SaLLeS, 1983,
p. 197). outras festas incluídas no calendário romano eram igualmente
associadas à prostituição, como as afrodísias, em honra à vênus/afrodite
do monte Érix. mais tarde, na era imperial, Ísis passou a gozar de uma
maior popularidade entre as meretrizes, mas sem que a devoção a Flora ou
a vênus ericínia tenha sido suprimida.
tanto para os gregos quanto para os romanos, não havia nenhuma
incompatibilidade entre o meretrício e a politeia, a associação cívica. Pelo
contrário, as prostitutas eram consideradas componentes indispensáveis
à ordem social por atuarem como uma válvula de escape para os desejos
masculinos, protegendo assim as matronas e suas ilhas, que não seriam
induzidas ao adultério nem se tornariam potenciais vítimas de estupro
(SaLLeS, 1992, p. 69). desse ponto de vista, as prostitutas representavam,
antes e acima de tudo, uma defesa para a integridade da família antiga. na
condição de mulheres que ofereciam a si mesmas no mercado, alugando-se
por horas, dias ou mesmo por temporada – como nos revela a etimologia
do vocábulo meretrix, “aquela que se merece” ou que se faz digna do
dinheiro que recebe pelo serviço que presta (GonZÁLeZ, 2001, p. 112) –,
as meretrizes eram iguras familiares e, poderíamos mesmo dizer, populares
nas ruas das cidades imperiais. Por toda parte onde caminhasse, o transeunte
tinha a oportunidade de se deparar com elas: no fórum, sob os pórticos e
arcadas, nas termas, sob as arquibancadas do aniteatro, nas imediações do

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 45


hipódromo, nas tavernas e albergues, nas proximidades do templo de Ísis ou
nos lupanares propriamente ditos, compostos por um conjunto de tuguria,
de cubículos ao rés do chão nos quais prostitutas e prostitutos exerciam o
seu ofício tendo apenas uma cortina a separá-los da rua (GRimaL, 1991,
p. 145). algumas categorias de prostitutas vagavam pelas ruas, fazendo
trottoir, no que eram acompanhadas por proxenetas encarregados de aliciar
clientes (SaLLeS, 1992, 72). excetuando os cristãos, a presença de mulheres
que ofereciam abertamente o próprio corpo não parecia causar espécie
a ninguém, de maneira que, segundo os fundamentos da moral clássica,
as prostitutas não representavam, a rigor, um perigo ou uma ameaça à
decência. tanto é assim que os homens costumavam comissionar prostitutas
de elite (as cortesãs, em latim amicae ou delicatae) como acompanhantes
nos banhos, banquetes e espetáculos, introduzindo-as em círculos dos quais
muitas vezes as matronas se encontravam excluídas (GonZÁLeZ, 2005,
p. 98). as prostitutas poderiam representar, isso é verdade, uma ameaça ao
patrimônio, pois um rapaz incauto que por elas se enamorasse seria capaz
de dissipar boa parte das possessões da família com essas “aves de rapina”
e “vampiras”, como por vezes são denominadas (SaLLeS, 1992, p. 70). e,
no entanto, os ataques mais agressivos eram amiúde dirigidos contra os
lenos, que gozavam de uma péssima reputação pelo fato de extorquir os seus
clientes por intermédio das prostitutas, muitas delas escravas, empregadas
como instrumentos de sedução e prazer.
um aspecto singular da prostituição feminina em Roma muitas vezes
negligenciado diz respeito à possibilidade de mulheres honradas ou ingênuas
abraçarem a proissão como uma estratégia de emancipação diante da
autoridade patriarcal masculina, o mesmo valendo mutatis mutandis para
as atrizes, não sendo por acaso que, no vocabulário corrente da época tardia,
mima e meretrix acabaram por se confundir (PeRea YebÉneS, 2004, p.
14). nessas circunstâncias, o abandono do lar e a vida em liberdade, na
companhia de homens, mostravam-se atrativos suicientes para que essas
mulheres se arriscassem a ser julgadas como adúlteras e sentenciadas à
morte (GonZÁLeZ, 2005, p. 100). Por todos esses motivos, é importante
compreender a prostituição como uma prática cultural constituinte do ethos
da cidade antiga e não um desvio sexual sobre o qual pesaria uma mácula
primordial. embora as meretrizes, como personagens infames que eram,

46 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


apresentassem, de acordo com os padrões morais da época clássica, uma
propensão natural à torpeza, uma tibieza de caráter que aviltava o seu status
social, elas, na cidade, não constituíam motivo de medo ou repulsa. Pelo
contrário, reconhecia-se às meretrizes e mimae o direito de circular pelas
ruas oferecendo os seus serviços, o que exprimia, sob certa perspectiva, uma
concessão importante diante das normas arcaicas de reclusão das mulheres.
o discurso que reabilita e leva às últimas conseqüências a concepção
patriarcal de que o espaço da mulher era o oikos, o recinto doméstico, é
o cristão. Saturado de um arcaísmo que, em muitos aspectos, resvala no
fundamentalismo, esse discurso, por um lado, converte a cidade, com todos
os elementos que a caracterizam, num território de estranhamento, de
contaminação e de perigo, um território que deve ser afrontado e reformado
segundo os princípios evangélicos; por outro lado, reforça o princípio da
masculinização da polis, fazendo com que a mulher, uma vez mais, seja
retirada dos espaços de sociabilidade coletiva, pois a cidade não é, em
deinitivo, o seu lugar. no entanto, ao formular tal proposta, os autores
cristãos teriam de prover uma alternativa eiciente para aquelas mulheres
que, inconformadas com o jugo masculino e a rotina doméstica, desejassem
se libertar de uma sina que julgavam insuportável, mas sem colocar em risco
a sua reputação. a solução oferecida por João Crisóstomo a essas mulheres
é a prática da virgindade, por meio da qual deus lhes concede a chance de
romper com os laços de escravidão contidos no casamento (Quod reg.11),
um argumento até certo ponto surpreendente por reverter toda a retórica
clássica acerca do papel da mulher como sócia do homem na gestão do
oikos e como responsável pela geração de ilhos capazes de manter a cidade.
Recuperando o antigo discurso patriarcal de coninamento das mulheres
no recinto doméstico, João Crisóstomo ao mesmo tempo subverte esse
discurso ao propor a virgindade como uma maneira de as mulheres obterem
a independência diante dos homens, mas sem, contudo, comprometer a
sua honra. Se levado às últimas conseqüências, um pensamento como esse
resultaria no desmantelamento da cidade antiga e na instituição de uma nova
politeia, formada apenas por ascetas (CLaRK, 1979, p. 16), uma proposta
que, diga-se de passagem, nunca esteve ausente por completo da agenda de
reformas preconizadas por João Crisóstomo, embora sua realização fosse
uma miragem, como reconhecia o próprio pregador.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 47


referências

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GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 49


o mITo DE PromETEu E PANDorA E oS PrINCÍPIoS
mASCuLINo E FEmININo NoS PrImÓrDIoS

Izabela Bocayuva

a partir dos mitos de Prometeu e Pandora tal como narrados por hesíodo
e que se complementam em suas aparições tanto na Teogonia quanto em
Os Trabalhos e os dias, pretendemos compreender a concepção mítica dos
primórdios do ocidente a respeito da condição humana e considerar nesse
contexto os princípios masculino e feminino. Certamente que se a sociedade
grega desse momento histórico fosse um matriarcado, a narrativa mítica
que encontraríamos seria outra. Sendo, porém, aquela sociedade grega um
patriarcado, aquilo que é concebido como humano começa com a criatividade
do puro masculino, icando reservado para o feminino o papel sui generis de
desestabilizar. veremos, no entanto, que a desestabilidade não pertence menos
à condição humana do que a criatividade própria ao princípio masculino.
Segundo hesíodo, em Os trabalhos e os dias os homens (seres inteira e
somente masculinos) nasciam como e viviam com os deuses. tinham vida
como que paradisíaca. não experimentando qualquer tipo de sofrimento,
nem a morte percebiam:

Se queres, com outra estória esta encimarei;


bem e sabiamente lança-a em seu peito!
Como da mesma origem nasceram deuses e homens.
Primeiro de ouro a raça dos homens mortais
criaram os imortais, que mantém olímpias moradas.
eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados,
morriam como por sonhos tomados; todos os bens eram
para eles; espontânea a terra nutriz fruto

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trazia abundante e generoso a eles, contentes,
tranquilos nutriam-se de seus próprios bens.1

Compreendo esse momento da raça de ouro como a descrição da


“primeira luz, da primeira visão” propriamente humana. nessa hora o que o
humano vê são só deuses. Como dizia tales: tudo está cheio de deuses. Por
isso os homens tinham o mesmo nascimento que os deuses, um nascimento
assexuado já que se trata da descrição do fenômeno do acontecer do humano
independentemente da geração biológica. trata-se do advento ontológico do
homem. mas, homens não são deuses. assim é inevitável também descrever
o momento da separação entre deuses e homens, e então todo um conjunto
de acontecimentos decisivos entra em cena.
antes de prosseguirmos, é fundamental fazermos a seguinte observação:
se realmente atentamos para a narrativa mítica percebemos que ela não
está submetida à ordem do tempo a que estamos habituados, a saber, uma
temporalidade linear. a temporalidade mítica é bastante peculiar. Só para
mostrarmos um exemplo, o mito que aqui nos interessa explorar, a saber, o
mito de Prometeu e Pandora que “no tempo” deveria ocorrer depois daquilo
que na citação acima é descrito como “tempo da raça de ouro” aparece narrado
em versos anteriores a esses. além disso, o mito ele mesmo de Prometeu,
à medida que é desenvolvido e mostra transcorrerem acontecimentos que
parecem suceder uns aos outros, a nosso entender, quer, na verdade, dar conta
de descrever um único instante: o instante da instauração da condição humana
tal como ela se conigura para nós hoje, um “hoje” que é o mesmo desde a
época de hesíodo e que é chamado por ele “tempo da raça de ferro”:

antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,


mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.
Pois é a raça de ferro e nunca durante o dia
cessarão de labutar e penar e nem à noite de se
destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão.
entretanto a esses males bens estarão misturados.2 (...)

1 heSÍodo. Os trabalhos e os dias. trad. mary de Camargo neves Lafer. São Paulo: iluminuras, 1991. v.106-119
2 idem. v.174-179

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na verdade, a condição humana abarca mesmo a totalidade das cinco
“raças” descritas sucessivamente por hesíodo3, ainda que o poeta assuma
seu pertencimento à quinta raça, a qual, nos parece, estaria mais próxima
do “homem” tal como explicitado na altura do mito de Prometeu, isto é,
o momento em que aparece sermos nós fundamentalmente diversos dos
deuses, o momento em que sofremos (sofremos literalmente) a marca dessa
diferença a partir da partilha realizada por Prometeu das carnes de um touro
sacriicado. Zeus deve escolher a parte que achar melhor para si e deixar para
os homens a outra parte. Prometeu, deinido na Teogonia por sua métis, sua
astúcia, pretendendo beneiciar os homens com a parte comestível da carne,
oferece à escolha de Zeus um monte de ossos cobertos pela banha suculenta
e cheirosa à medida que é queimada e outro monte de carnes comestíveis
cobertas pelas horríveis vísceras do animal de tal modo que aparentemente o
monte de ossos é bem mais interessante e atraente. Zeus também é deinido
por sua suprema métis. na verdade ele sabe do golpe de Prometeu, mas sua
astúcia superior implica em levar até o im o jogo astucioso deste último.
em Os trabalhos e os dias o “mito de Prometeu” começa já supondo
o conhecimento por parte do leitor daquele malogro da divisão do touro
sacriicado, por causa do qual Zeus oculta dos homens o fogo natural do
raio, isto é, a possibilidade do alimento, do pão. Para que os homens não
sucumbam, Prometeu rouba, então, o fogo dos deuses numa oca férula e o dá
a eles, o que deixa Zeus furioso. além de aprisionar Prometeu num rochedo e
castigá-lo diariamente4, sua raiva vai inventar um “belo mal” para presentear
os homens, assim como ele mesmo teria sido enganado inicialmente com o
“belo mau monte de carnes”. Zeus, como castigo (!), presenteia os homens
com a primeira mulher (símbolo da gestação, do nascimento) criada por
hefesto e adornada por athena, segundo o texto da Teogonia. em Os
trabalhos e os dias toda a descrição do presente é bem mais elaborada.

3 não vamos desenvolver essa idéia aqui, mas ica a sugestão de que nunca deixamos de pertencer à raça
de ouro. É que aquela primeira hora da luz em que tudo o que vemos é divino somos nós ainda hoje,
mesmo que nos mantenhamos distantes e esquecidos disso.
4 outro “braço” desse mito e que aqui é somente mencionado por hesíodo. a tragédia de Ésquilo Prometeu
cadeeiro desenvolve exatamente essa parte do mito.

52 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


ali Zeus ordena a hefesto que forje a mulher a partir do barro e nela
ponha voz humana e que a deixe com aparência de uma deusa. athena e
aphrodite lhe atribuem graça, cada uma a seu modo. hermes lhe inspira
dissimulada conduta e espírito canino. ela recebe o nome Pandora que
signiica literalmente “todo presentes”. É que a ela Zeus entrega um vaso cheio
de “presentes” dos deuses para que ela os leve e dê aos homens, “presentes
de grego”, pois na verdade são males: difíceis trabalhos e terríveis doenças.
Quando Pandora estava pronta, com o vaso na mão, foi enviada ao irmão de
Prometeu, epimeteu, o sem astúcia, que apesar dos conselhos do irmão para
que não recebesse nada da parte de Zeus, icando encantado com a beleza de
Pandora, a recebe de braços abertos. assim que é recebida, Pandora libera
do vaso os males deixando icar apenas a esperança tal como ordenara Zeus
e os homens passam a viver, portanto, dia após dia entre dores e sofrimentos
e com a experiência da doença e da morte.
Prometeu, o astuto, epimeteu, o sem astúcia: irmãos gêmeos, dois
lados de uma mesma moeda. mesmo considerando que os dois são titãs,
seres divinos e, portanto, não humanos, não seria possível fazer a leitura
de que uma tal moeda pudesse fazer alusão à constituição da condição
humana – pois eles são os personagens protagonistas da coniguração da
vida humana? Por um lado, previdente, astuto utilizador do fogo, e a partir
daí forjador da arte, criador; por outro lado, desatento, desprevenido, sujeito
ao engano e a partir daí muitas vezes destruidor. e quanto a Pandora, a outra
personagem protagonista, não seria ela também elemento constitutivo da
condição humana? dissimulada conduta e espírito canino não teriam sido
exatamente as atitudes de Prometeu (“um dos lados do humano”) para com
Zeus? além disso, ela traria a marca do nascimento biológico, sexuado,
sem o qual não podemos pensar o homem na terra. ainal, nascer é o nosso
grande problema: ter que viver, nosso belo mal. a vida é sempre um belo mas
igualmente um duro, aliás duríssimo dom5. Prometeu, epimeteu e Pandora
(epimeteu e Pandora não podem ser pensados separadamente; são um casal):

5 um mito narra midas alcançando o sábio Sileno (sacerdote de dioniso) e a ele perguntando o que deveria
pedir, já que o Sileno poderia realizar um desejo seu. midas tem, então, como resposta o seguinte: o
que melhor você poderia pedir já não pode mais ser pedido: não ter nascido. mas agora que nasceu, o
melhor seria pedir para morrer o quanto antes.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 53


o começo do homem, mas também o acabamento do começo do homem no
sentido da sua plena formação. Só restou no vaso de Pandora a esperança
ou expectação, isto é, aquilo que sempre está por vir. trata-se de um modo
brilhante e sensível de compreender a natureza humana que é marcada
pelo projeto, por estar lançada no por vir que constantemente permanece
oculto, tão oculto quanto – naquela época era – o rebento que a mulher
traz guardado dentro de seu ventre. mas oculto também é para o homem
o momento da morte. a elpis, a expectação no fundo do vaso também
simboliza para os mortais a sua experiência mais radical: a impossibilidade
do controle quanto ao seu im6.
Pandora chega como parte derivada direta do presente de Prometeu
aos homens, o fogo dos deuses. o fogo dos deuses, mas não mais um fogo
natural. ela chega junto do fogo técnico, do trabalho, do esforço7. o fogo
presenteado por Prometeu precisa ser cuidado, conservado, dentro do oco
da férula, ele precisa ser continuamente reconquistado. a dor e o sofrimento
que ela vem trazendo não é senão um adendo àquele outro presente (o
fogo técnico) que, por sua vez, era um ajuste da conseqüência da hora da
separação entre deuses e homens, quando a humanidade é marcada pela
astúcia de Prometeu proporcionando a sobrevivência aos homens. Pandora,
porém, faz o esforço do trabalho se transformar em dor. Presente atrás
de presente, o homem vai se tornando um todo: Zeus e a necessidade da
separação, Prometeu (previdência), epimeteu (imprudência), Pandora/
mulher (com ela: hephesto/bela forma, hermes/ardil, athena/ensino
da tecelagem e distribuição da graça, aphrodite/graça, terrível desejo e
preocupações; com ela: trabalho, sofrimentos e a esperança guardada para
sempre no fundo de um vaso).
o homem que, segundo o mito8, antes nascia como os deuses, em
primeiro lugar, como já foi dito, não é da mesma estirpe que os deuses.
Por isso o mito de Prometeu tem lugar, para falar da separação dessas duas
naturezas, do que cabe a uma e do que cabe à outra daquilo que consistia
num só: o touro sacriicado e diferentemente destinado era um só. Por sua

6 LaFeR, mary de C. neves. Comentários aos mitos in: Os trabalhos e os dias. São Paulo: iluminuras, 1991. p. 75
7 ela mesma é forjada pela técnica e fogo de hefesto, o deus metalúrgico.
8 o mito da raça de ouro.

54 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


vez, é devido justamente a Prometeu fazer a partilha, exatamente a esse titã
que tem um irmão gêmeo, epimeteu. o Prudente e o imprudente estão
envolvidos com a tão urgente separação. Como já sugerimos, a prudência
e a imprudência são nuances, duas faces, do homem. no limite criativo
da lida com sua cotidianidade o homem traz inevitavelmente essas duas
marcas. o primeiro lance dessa criatividade traz para a cena uma astúcia
vinculada à primeira sobrevivência: a alimentação. É contra ela que o mito
mostra o deus se insurgindo. Zeus nega aos homens o fogo negando-lhes,
com isso, o pão. o fogo roubado, porém, traz no mito uma signiicação
para muito além da mera alimentação digestiva. o fogo roubado é luz agora
própria, fruto de uma conquista, conquista de Prometeu, conquista “do lado
astuto do homem”. um fogo que precisa ser constantemente reconquistado
e que, por isso, é esforço, mas que abre o horizonte da criatividade. até
aqui o mito cuida que se entenda a atuação do puro princípio masculino.
Compreendemos que isso se dê porque até aqui se trata de descrever o que faz
do humano humano, e isso consiste justamente na sua capacidade criativa.
mas, com esse horizonte aberto, deriva dele o perigo de sua ruina, de seu
desvirtuamento. Com a vidência iluminada por essa luz que então agora
é própria, nasce ao mesmo tempo a cegueira como irmã gêmea tal como
Prometeu e epimeteu. o que é esforço criativo pode se transformar em dor
e sofrimento. É quando entra em jogo o feminino na condição humana: feita
de argila, o fogo entra na composição da mulher. além disso, na verdade, o
vaso que ela carrega, também feito de argila, não é mais do que um símbolo
dela mesma9. Pandora é o vaso que ela leva. Seu nome é inclusive Pandora
por isso mesmo, por levar consigo presentes (dora) dados pelos deuses,
marcadamente hermes, athena e aphrodite. É feminino o ardil que ela traz,
a tergiversação, dissimulada conduta, ambigüidade (kalòn kakón, belo mal), é
feminina a capacidade de tecer a vida10, é feminina a gestação proporcionada
pelo sexo11, e se é feminina a gestação o é também a morte com toda a
deterioração que ela costuma trazer consigo, a deterioração e as doenças, é
feminina também a provocação do desejo ardente que gera perturbações,

9 LaFeR, mary de C. neves. Comentários aos mitos in: Os trabalhos e os dias. São Paulo: iluminuras, 1991. p. 68
10 Segundo o mito, athena ensina Pandora a arte a tecer.
11 marca de aphrodite.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 55


é feminino o ventre que traz o futuro incerto. a “pitada” de inconstância e
movimentação do desconhecido que o princípio feminino traz consigo cria
uma devassa na vida do princípio masculino, entretanto, nada que não seja
o que nos constitui desde sempre.
na verdade, não há e nunca houve homem sem os dois princípios, não
só porque sempre houve, na realidade, homens e mulheres, mas porque o
feminino e o masculino compõem necessariamente cada um dos sexos.
Sabemos pela mitologia que a métis (astúcia) de Zeus provém de métis12.
ele a teria engolido, gerando, por isso mesmo, athena. toda métis sempre
foi feminina, a de Prometeu também. o ardil, uma variação da astúcia, com
o qual hermes compõe a mulher (Pandora) já participava do começo da
humanidade através de Prometeu, antes mesmo, portanto, de ter aparecido
a primeira mulher. essa circularidade não é contraditória, ou melhor, o mito
resiste a qualquer acusação de contradição.
mas se é assim, se nunca houve o humano sem os dois princípios,
por outro lado a interpretação ocidental da constituição humana nos quer
dizer algo sobre o mais originário em nossa constituição originária. essa
interpretação quer dizer que o mais arcaico no humano é o princípio criativo:
Prometeu, aquele que é marcado pela luta pela sobrevivência – tanto a partilha
do touro quanto o fogo roubado dos deuses são marcas dessa luta. tudo o mais
que há na vida humana seria derivado disso. Porque há o criativo, o cuidado,
que é identiicado com o masculino há também o descuido, o encantamento,
a desilusão, as doenças, a morte, que é identiicado com o outro lado do
criativo, o feminino, representado por epimeteu e sua mulher. mas, mesmo
que esse mito do princípio do ocidente, de modo marcadamente patriarcal,
veja o princípio masculino como mais originário, ele não pode deixar de
tratar do princípio feminino no começo, pois o começo do homem implica
os dois princípios. Como dissemos anteriormente, todo esse mito que vai
transcorrendo numa narrativa continuada quer, na verdade, tratar de um
único momento: a irrupção do homem com o mundo. É que o homem é
igualmente cuidado e descuido, é vida e morte, é trabalho e esforço sem dor,

12 LaFeR, mary de C. neves. Comentários aos mitos in: Os trabalhos e os dias. São Paulo: iluminuras, 1991. p. 70

56 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


mas também trabalho e esforço sofridos, é criação e destruição. a própria
vida humana é um kalòn kakón, um belo mal.
o mito hesiódico de Prometeu e Pandora não está sozinho ao considerar
o princípio masculino como mais arcaico em sua co-originariedade com o
princípio feminino quando é hora de se tratar da constituição do humano.
no Gênesis também se vê acontecer o mesmo. nós ocidentais, marcados
pelo pensamento grego e pelo cristianismo proveniente do pensamento
hebreu até hoje sofremos a inluência dessa perspectiva segundo a qual
o masculino é percebido como o que vai na frente. talvez realmente seja
assim, “o masculino vai na frente”, desde que se entenda o masculino como
o criativo tal como no horóscopo chinês. o grande problema, porém, está
em se confundir o masculino com o sexo masculino.
o mito que aqui abordamos não é somente um pensamento de homens
de uma outra era. ele traz para nós hoje com toda força um grande desaio:
pensar as raízes da condição humana justamente num momento em que
as conquistas do sexo feminino mostram cada vez mais aquilo que já havia
dito Platão na República, a saber, que homens e mulheres são igualmente
aptos para realizar todas as tarefas que pode haver, da mais banal à mais
soisticada. ou seja, que ser humano não é nada que se distinga por causa do
sexo. os princípios masculino e feminino convergem para nos formar, nós
que resguardamos e sempre resguardaremos uma possibilidade inesgotável
de realizações para a construção e a destruição, para a atenção e a desatenção,
enim, para o bem e para o mal.

referências

heSÍodo. Teogonia. trad. Jaa torrano. São Paulo: iluminuras, 2003


______. Os trabalhos e os dias. trad. mary de Camargo neves Lafer. São
Paulo: iluminuras, 1991.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 57


TroCANDo DE SEXo:
umA rEFLEXÃo SoBrE GÊNEro
NAS METAMORFOSES DE oVÍDIo

Raimundo Carvalho

Para tentar abordar com algum método o enfoque que ovídio dá


às relações de gênero na sua opus magnum, resolvi destacar, dentre as
muitas metamorfoses descritas, aquelas que concernem diretamente a
uma transformação da identidade sexual. isso, contudo, não signiica que
possamos separar essas histórias do contexto narrativo em que elas se
encaixam e do qual elas extraem a sua signiicação ideológica e política.
não há como também abstrair do horizonte interpretativo a maior e mais
importantes das metamorfoses: a metamorfose do mito em poesia. e aqui,
me reiro à poesia como um artefato com consistência histórica, no qual a
voz da história se inscreve e se encenam as suas contradições. o gênero só
pode ser pensado como uma categoria da história. a forma como se dá a
sua percepção nas Metamorfoses pode nos ajudar a entender o modo como
se davam as relações entre os gêneros na sociedade romana da época. mas,
principalmente, estudar as relações de gênero ajuda a compreender os modos
de signiicação agenciados pelo poema, bem como o signiicado político da
ruptura com os modelos literários aos quais sua escrita se vincula.
daí que é importante estabelecer uma conexão com os dois signiicados
da palavra gênero, seja como representação social de identidades sexuais,
seja no sentido literário de gêneros textuais, tais como lírico, elegíaco,
épico, dramático, etc. ao escrever as Metamorfoses ovídio construiu um
objeto híbrido, um poema épico mesclado com elementos tirados de todos
os gêneros por ele praticados em suas obras anteriores. até então, um
poema épico detinha sua atenção nas façanhas de um herói central, que,
concentrava em si todas as virtudes masculinas de sua comunidade. ao lado
dele, iguravam outros heróis, cujos feitos reforçavam, pelo exemplo positivo
ou negativo, os valores tradicionais dos quais o herói era a encarnação
máxima. assim se dá com aquiles na ilíada, ulisses na odisséia e enéas na

58 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


eneida. ao perturbar os fundamentos do gênero épico com a proliferação de
personagens estranhos a esse mundo, ovídio produz uma quebra no quadro
de valores, valores tradicionais, masculinos e guerreiros, introduzindo uma
nota cômica ou sentimental mais apropriada aos gêneros menores. heróis
como Fáeton, Penteu, Ácteon, hermafrodito e narciso, dentre outros,
exempliicam muito mais uma identidade genérica problemática do que um
modelo estático e acabado de masculinidade.
não nos esqueçamos de que ovídio, antes de escrever as Metamorfoses,
escrevera uma tragédia perdida, Medeia, além de que era um célebre poeta
elegíaco, autor de obras como Amores, em que ele rivaliza com tibulo e
Propércio no uso dos vários tópoi da elegia erótica romana, de Arte de Amar
e Remédios contra o Amor, em que o poeta, praeceptor amoris, ensina e se
diverte ensinando os seus concidadãos, homens e mulheres indistintamente,
a arte de seduzir e de se livrar das paixões amorosas. ovídio escreveu também
uma importante coletânea de epístolas em versos elegíacos, Heróides, que,
em sua maioria, são cartas de mulheres míticas (heroínas) dirigidas a seus
parceiros (heróis). nestas epístolas, ovídio radicaliza o jogo de máscaras
textuais tão próprios da elegia assumindo a voz feminina como matriz
elocutória do texto. essa é a primeira vez que em literatura isso acontece
nessa escala: a iccionalização de egos femininos por um sujeito histórico
masculino. isso permitiu ao autor confrontar valores e expor diferenças.
ovídio se aproveitará do topos tradicional da lírica, que desde arquíloco
e Safo, se apresenta como um contraponto ao mundo épico e na qual
prevalecem os valores do indivíduo em detrimento dos valores do grupo,
para, de alguma maneira, confrontar os valores dos novos sujeitos sociais
em desacordo com a política austera de resgate dos valores tradicionais
promovida pelo imperador augusto.
vale a pena lembrar que a poesia de ovídio loresce num momento
de grande prosperidade. Roma, cidade de mármore, é o centro luxuoso
de um império, cujas províncias são fontes de muitas riquezas. os anos de
insegurança e guerras fratricidas já se passaram e por toda parte pode-se
ver os efeitos da pax romana. a política de severidade de augusto meio
que se mostra como um entrave legal ao gozo dos produtos que a própria
política imperial proporciona. a juventude dourada da qual ovídio é um
destacado membro não viveu a privação dos anos conturbados pelas guerras

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 59


civis e, portanto, não se sente encorajada a cerrar ileira com o imperador
na defesa de uma moralidade tradicional e tão restritiva. ao contrário,
a lógica imperialista da conquista fora internalizada e transposta para o
campo amoroso. há quem especule que ovídio, ao nomear a sua obra
como Metamorphoseon Libri, sutil e anagramaticamente introduz a temática
amorosa como uma das linhas de força do poema. a palavra metamorfose
que jamais é empregada no corpo do poema contém em si a palavra amor. e
o amor com suas tramas de contrários será o contraponto que convulsionará
o mundo imobilizado dos heróis épicos.
É a partir desse pano de fundo que eu gostaria de chamar a vossa atenção
para quatro episódios das Metamorfoses: o de tirésias (Met. iii, 316-38), o
de hermafrodito (Met. iv, 285-388), o de Íis (Met. iX, 666-797) e o de Cênis
(Met. Xii, 140-207 e 459-535).
Começo, então, fazendo um pequeno resumo do episódio que envolve
tirésias. ovídio organiza o relato em 32 versos que funcionam no poema
como um interlúdio na história de Cadmo e de seus descendentes e como um
elo que introduz a história de narciso e eco. a dicção cômica é evidente, o
que acentua o caráter dionisíaco do relato. Conta ovídio que, um dia, tendo
já assegurado o nascimento de baco, Júpiter, difusum nectare, bêbado de
néctar, num momento de relaxamento de preocupações e cuidados, curas
grauis, dirige a Juno alegres gracejos, remissos iocos: “Maior uestra profecto
est/quam quae contingit maribus (...) voluptas” (vosso gozo é, de fato, maior
do que aquele que sucede aos machos). Juno nega e eles resolvem, então,
consultar tirésias que havia passado pela experiência de ter nascido homem,
ter se transformado em mulher e voltado a ser homem novamente. os versos
324-331 narram sucintamente as transformações de tirésia:

Nam duo magnorum uiridi coeuntia silua


Corpora serpentum baculi uiolauerat ictu;
Deque uiro factus, mirabile, femina, septem
Egerat autumnos; octavo rursus eosdem
Vidit et; “”Est uestrae si tanta potentia plagae”
Dixit “ut auctoris sortem in contraria mutet,
Nunc quoque uos feriam.” Percussis anguibus isdem,
Forma prior rediit genetiuaque uenit imago.

60 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Pois com dois toques de bastão em verde relva
violara a cópula de duas grandes víboras;
e de homem fez-se fêmea, por encantamento,
durante sete outonos. no oitavo as reviu
e diz: “Se vossas chagas têm tanto poder
de mudar em contrário a sorte do agressor,
ora vos ferirei”. batendo em ditas cobras,
retorna à forma antiga e ao modo de nascença.

Como se pode perceber já numa primeira leitura, o poeta se atém a narrar


os acontecimentos sem lhes acrescentar nenhum comentário de natureza
moral sobre os efeitos dessa transformação na vida do personagem. Podemos
apenas inferir que, pela reversibilidade da transformação, o fato de ter se
tornado mulher era motivo de algum embaraço para tirésias. embaraço maior
teve, ao ser escolhido para ser o arbiter daquela lite iocosa. ao tomar o partido
de Júpiter, tirésias atrai a ira de Juno que o cega. e não podendo Júpiter reverter
o castigo lhe concede o dom divinatório. em versões mais antigas do mito, a
resposta de tirésias é bastante explícita. ele diz que se houvesse dez partes de
prazer, o homem gozaria de uma só, e a mulher de nove (bRiSSon, 1976, p.
12). Se assim é, caberia perguntar então: por que tirésias quis reverter a sua
transformação em mulher, se a mulher tem muito mais prazer que o homem no
ato sexual? o fato é que a resposta de tirésias foi compreendida por Juno, como
reairmação da superioridade do homem, causa eiciente das nove frações de
prazer feminino (bRandÃo, 1991, p. 452). aqui vale lembrar que para os
gregos como para os romanos a oposição fundamental para compreender o
comportamento sexual era entre atividade e passividade e as relações sexuais
deviam reletir o status político de seus agentes. a um homem adulto livre cabia
sempre o papel ativo, seja nas relações heterossexuais, seja nas homossexuais;
o papel passivo cabia às mulheres e escravos.
a resposta de tirésias também justiica a atividade sexual desenfreada
de Júpiter fora do casamento, motivo de muita ira por parte de Juno. estamos
ainda no livro iii das Metamorfoses e Juno já lagrou Júpiter em adultério
com io, Calisto, europa e Sêmele. após tantos aborrecimentos, ainda aparece
alguém dizendo que a mulher se beneicia da atitude predatória do macho.
isso é demais para Juno. no fundo ela concorda com tirésias e não é à toa

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 61


que ela, em vez de punir o traidor, dirige sempre sua vingança às vítimas de
Júpiter, que ela considera como rivais, por reconhecer nelas o orgulho de ter
o deus supremo como amante. além do mais, Juno é uma deusa decorosa e
a sua fúria contra tirésias é também porque ele revelou um segredo seu, a
capacidade da mulher de ter tanto e mais prazer que o homem no sexo. aqui
é bom lembrar que ovídio reescreve o mito com o estilete da galhofa. na
verdade, a sua ironia é dirigida a augusto, autor de leis punindo o adultério,
mas, ele mesmo um adúltero contumaz. a identiicação de augusto com
Júpiter autoriza uma leitura política da fábula e apresenta o desacordo de
parcela signiicativa do público com política repressiva do imperador.
o segundo mito em questão é o de hermafrodito (Met. iv, 285-388,
tradução em anexo). o mito de hermafrodito nas Metamorfoses é o último
de uma série de relatos narrados pelas ilhas de mínias que, enquanto iam,
tecem narrativas e desaiam a divindade de baco até serem transformadas
em morcegos. narrativa em mis-en-abîme, a voz feminina que a enuncia é
também a voz de uma rebelada contra o deus. elas são devotas de minerva e
aos seus trabalhos se dedicam, enquanto a orgia báquica corre solta lá fora. Para
passar o tempo, elas contam histórias, todas de amores infelizes. a primeira é
a história de Píramo e tisbe, um amor proibido pela família da moça, e vivido
às escondidas e que termina mal com a morte dos dois amantes; o segundo
bloco de histórias são o adultério de vênus e marte e os amores infelizes do
Sol. Por último, a história da ninfa Sálmace e hermafrodito.
Referindo-se alcítoe, uma das ilhas de mínias, à má fama da fonte da
ninfa Sálmace, cuja água “enerva e amolece os membros”, narra a história
de hermafrodito, ilho de mercúrio e de vênus, que, adolescente belo e
ambíguo, um dia resolve sair por aí mundo afora até chegar à citada fonte. Lá
ele é assediado pela ninfa que diante de sua negativa termina por estuprá-lo,
rogando aos deuses dele nunca separar-se, no que é prontamente atendida.
a ele, agora transformado enim num ser de natureza dupla e dúbia, como
já indiciado no seu nome próprio, só resta lançar uma maldição sobre a
fonte e sobre aqueles que nela mergulharem: a de também perderem o vigor
masculino.
esse mito subverte a ordem dos valores implicados na deinição das
categorias de gênero: aqui é o ser de sexo masculino que encarna a passividade
e o de sexo feminino a atividade. a ninfa toma a iniciativa da conquista

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amorosa. Rejeitada, ela espreita o jovem indiferente a ela. Quando ele se
despe, ela cai sobre ele. hermafrodito é um puer delicatus, um narciso, efebo
imaturo e instável, imerso no amor de si mesmo. no caso de hermafrodito
o paradoxo maior é o fato de ele ter os dois sexos e de ser, ao mesmo tempo,
um assexuado, impotente. as metamorfoses estão cheias de histórias de rapto
seguido de estupro, mas é sempre o macho o agressor e a fêmea a vítima. a
história de Sálmace e hermafrodito rompe o esquema, embora mantendo a
lógica. o ser agredido sofre um rebaixamento na escala social, principalmente
se ele for um homem livre, a qual não era permitido sofrer o papel passivo
nas relações sexuais, pois isto não correspondia ao seu status social. mesmo às
mulheres, quando o agressor era um deus, este acabava sempre promovendo
alguma reparação para que o equilíbrio fosse restabelecido, como vai acontecer
no caso emblemático da ninfa Cênis que, violada por netuno, é transformada
por ele em Ceneu, guerreiro invulnerável. tratarei deste mito mais adiante.
Passemos, antes, à história de Íis (Met. iX, 666-797). trata-se do único
caso de homossexualidade feminina, ainda que, considerando que só uma
das amantes estava a par da situação sob essa perspectiva. o mito de Íis é o
último relato do Livro iX e está em paralelo com a história anterior de bíblis
que desenvolveu um amor incestuoso pelo irmão Cauno. trata-se, enim, de
duas histórias em que se veriica a presença do mesmo na origem da paixão
amorosa (FabRe-SeRRiS, 1995, p. 203). ovídio começa a contar a história de
Íis, chamando atenção para a condição social de homem livre, mas plebeu do
pai, Ligdo, que se dirige à esposa grávida, instruindo-a para que, caso tenha
uma menina, a sacriique, porque considera caro demais criar uma ilha. a
mãe, teletusa, ao ter a criança, veriica tratar-se de uma menina e aconselhada
pela deusa Ísis a cria como um menino, sem a ciência do pai. este dá-lhe o
nome de Íis, indiferentemente aplicado a ambos os sexos, e quando ela/ele
completa treze anos a/o promete em casamento a iante, menina com quem ela
já mantém uma relação de camaradagem, pois são colegas de escola. daí pro
amor foi um passo e a paixão era recíproca, com o agravante para Íis que sabia
da impossibilidade daquele afeto, pois a sua identidade social não correspondia
à sua identidade sexual,ou seja, o seu gênero estava em desacordo com o seu
sexo. ela chega a considerar a sua situação pior que a de Pasífae. esta, ao menos,
amava um touro, um macho, e por isso, tinha chance de realizar o seu desejo,
travestindo-se de vaca. a intervenção de Ísis salvará Íis, transformando-a em

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 63


homem e a história que poderia ser mais um daqueles exemplos de destinos
trágicos termina com inal feliz, através de uma ação reparadora. a ação divina
reairma o interdito, mas ao mesmo tempo libera o indivíduo para alimentar
a realização de um desejo no nível do imaginário.
de um modo geral, a metamorfose não retira do ser metamorfoseado a
memória e a consciência de seu ser anterior, o que me leva a supor que o leitor
das Metamorfoses compreende que Íis, mesmo mudada em homem, guarda
ainda algo da ambigüidade de sua natureza de ser travestido. mas isto não é
posto em questão pelo poeta que parece mais interessado em dotar o seu relato
de um grau de verossimilhança, através da profusão de detalhes mostrando a
força dos cultos orientais que naquele momento estavam difundidos por toda
Roma. Sobre esse mundo feminino em convulsão paira a sombra de augusto,
com seu ímpeto de restauração dos antigos cultos e costumes dos romanos.
Passo então ao quarto e último relato, o de Ceneu (Met. Xii, 146-207;
459-535). o caso é contado por nestor no intervalo de um combate do qual
saíra vitorioso aquiles sobre Cisne, guerreiro invulnerável. Contrapondo-o
a este, nestor, herói vetusto, ancião longevo, apresenta Ceneu, que nascera
mulher. Chamava-se Cênis, era uma virgem da tessália, e fora violada por
netuno. este para reparar o estupro, se oferece para atender o desejo que ela
manifestar. ela então solicita ser transformada em homem, para não mais
ser vítima de estupro. netuno a atende e a transforma em Ceneu, guerreiro
invulnerável. no segundo segmento, vemos Ceneu participando da batalha
entre os Lápidas e os Centauros, e nenhuma arma pode feri-lo. então os seus
rivais tentam sufocá-lo com troncos e rochedos. não podendo respirar, ele
é transformado em pássaro e escapa assim de ser asixiado, tal como Cisne.
aqui devemos primeiramente atentar para o contexto épico da narrativa.
o gênero épico é o modo por excelência do discurso oicial e masculino. a
narrativa também em mis-en-abyme relete e põe em questão os valores da
narrativa interrompida. aquiles vem de vencer Cisne no campo de batalha,
é ele também quem insiste para que nestor conte a história de Ceneu. e,
não é sem ironia que nestor informa que Ceneu, antes de ser um guerreiro
invulnerável como Cisne, femina natus erat, o que faz imediatamente pensar
em aquiles que, para não ser convocado para guerra de tróia, foi travestido
de mulher e vivia entre meninas. Como aquiles, Ceneu era um guerreiro
tessálio e se aquiles teve como preceptor um centauro, foi por centauros

64 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


que Ceneu foi quase morto. essa natureza dupla dos centauros também
aponta para a constituição híbrida de Ceneu. outro ponto a assinalar na
transformação de Cênis em Ceneu é que se trata de uma reparação e que ela
não foi imposta, mas solicitada.

“Magnum” Caenis ait, “facit haec iniuria uotum,


Tale pati iam posse nihil; da femina ne sim,
Omnia praestiteris”.

Cênis diz: esta afronta torna grande o voto.


Jamais eu sofra nada igual; não ser mulher,
Concede-me, isso é tudo.

transformar-se em homem era o único jeito de não estar mais sujeita


ao desejo tirânico do macho. ao rebaixamento que representava a violação
da virgindade corresponde o acréscimo da invulnerabilidade corporal do
guerreiro, esse plus de masculinidade que será um traço de diferença com
os demais homens, e que acentua o seu hibridismo.
Fazendo uma breve comparação entre os quatro relatos, primeiramente
notamos que se trata de relatos de ritos de passagem para a idade adulta.
o mito de tirésias não é tão explorado pelo poeta sob esse aspecto, mas
a simples descrição das suas transformações já é suiciente para chamar
a atenção sobre o que no mito de hermafrodito está bem desenvolvido: a
identidade sexual/social do adolescente masculino em confronto com valores
da virilidade e a instabilidade da experiência entre os sexos. na história de
tirésias fala-se de gozo, de quem goza mais, se o homem ou se a mulher.
em hermafrodito, a união dos sexos, ao contrário, provoca a impotência, o
rebaixamento. hermafrodito está longe de se assemelhar aos andróginos de
que fala aristófanes no banquete de Platão. aqueles eram seres desejantes,
hermafrodito não, é um ressentido, nada deseja mais, a não ser que outros
que entrarem naquela fonte saiam dela no mesmo estado em que ele saiu.
Por outro lado, temos o mito de Íis e de Cênis. ambas na origem
mulheres que se tornaram homens, Íis por que, travestida de homem, amava
uma mulher; e Cênis por ter sido violentada por netuno. a história de Íis tem
inal feliz, a de Cênis/Ceneu nem tanto. Podemos comparar a transformação

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 65


de Íis com a de tirésias, pelo fato de ambas não representarem grande
desconforto. eles foram transformados e pronto, para o próprio bem de
Íis e mesmo a tirésias a transformação reversível foi algo que o distinguiu
positivamente. Quanto a hermafrodito e Cênis/Ceneu, a transformação foi
maléica porque para o primeiro resultou em impotência, pro segundo em
invulnerabilidade, ou seja, excesso de masculinidade, desequilíbrio. a Ceneu
não coube a honra de morrer em combate, numa bela morte, como aquiles,
quase tão invulnerável quanto ele. ele acaba por perder a sua humanidade,
ao ser transformado em pássaro. Referindo-se a Ceneu, ovídio usa o
substantivo semimarem (Xii, 506), o mesmo que utilizou para se referir a
hermafrodito (met. iv, 301), semimari. o semimas é um ser masculino cuja
masculinidade foi rebaixada. hermafrodito teve o seu status rebaixado por
ter sido a vítima e o não o autor de um estupro e Ceneu, agora homem, teria
comprado a sua masculinidade ao preço de um estupro.
ao homem adulto livre só cabe o papel social ativo, o seu corpo
é inviolável, ele pode ter tantas quantas parceiras ou parceiros queira,
desde que se mantenha numa atitude ativa; quanto às mulheres, a coniar
no que relatam os mitos ovidianos, não viviam no melhor dos mundos.
Se pertencentes à classe dos patrícios viviam sob restrições severas; se
pertencentes à classe dos escravos ou libertos estavam sempre sob a mira
dos desejos tirânicos do macho. no entanto, é preciso pensar a sociedade,
qualquer que ela seja, como um construto onde as tensões entre os elementos
díspares que a compõem tendem para o equilíbrio, ainda que esse equilíbrio
se baseie na dominação de um sobre o outro; porém, jamais se dando a
eliminação de um pelo outro. daí que possamos também pensar no reverso
da questão: nas inúmeras possibilidades de gozo que a sociedade romana
da época de ovídio proporcionava aos seus homens e mulheres, despidas as
vestes de cidadão, isto é, para além das determinações sociais de cada gênero.

referências
bRandÃo, Junito. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega.
Petrópolis, vozes, 1991. v 2.
bRiSSon, Luc. Le mythe de Tirésias: essai d’analyse structural. Leiden, brill,
1976.

66 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


duPont, F. et ÉLoi, hierry. L’érotisme masculine dans la Rome antique.
Paris, belin, 2001.
FabRe-SeRRiS, Jacqueline. Mythe et poésie dans Les Métamorfoses d’Ovide:
fonctions et signiications de la mythologie dans la Rome augustéenne.Paris,
Klincksieck, 1995.
ovide. Les Métamorfoses. texte établi par Georges Lafaye, emendé, presenté
et traduit par olivier Sers.Paris, belles Lettres, 2009.

ANEXo

Metamorfoses IV, 285-388

Por que é infame e por que com ondas pouco fortes


Sálmace enerva e os membros que toca amolece,
sabei; famosa é a força oculta desta fonte.
o ilho de mercúrio e diva Citereia,
as náiades nutriram nas grutas do ida;
na sua face os traços da mãe e do pai
se podem ver; também tomou o nome deles.
Quando fez quinze anos, deixou os paternos
montes e o ida que o nutrira e vagueou,
exultante, através de lugares e rios
ignotos; o desejo atenuando a fadiga.
Foi às cidades lícias e aos Cários, vizinhos
da Lícia. ali vê um lago de águas claras
até o fundo. Lá não há canas palustres,
juncos pontiagudos, ou ulvas estéreis;
o lago é cristalino, porém, é cingido
por terreno vivaz e relva sempre verde.
uma ninfa mora aí, mas não caça, nem o arco
dispara, nem disputa corrida e, das náiades,
somente ela a veloz diana desconhece.
Sabe-se que as irmãs sempre lhe advertiam:
“Sálmace, pega o dardo, ou a ornada alvaja,

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 67


e mistura teu ócio com a dura caça.”
ela nem dardos pega, nem ornada alvaja,
nem ao ócio mistura uma dura caça;
mas ora banha os membros formosos na fonte,
e sempre arruma os cachos com pente Citóreo,
e consulta a água, onde olha o que lhe convém;
agora, com o corpo envolto em véu translúcido,
se estende em tenras relvas ou tenras folhagens.
ou colhe lores. Quando ao acaso as colhia
viu, então, o rapaz, e ao vê-lo, o desejou.
mas não se aproximou, embora desejasse,
antes de se arrumar, de examinar a veste,
compor sua expressão e parecer formosa.
então, falou assim: “Rapaz, digno de ser
tido por deus, ou se és deus, podes ser Cupido;
se és mortal, felizes os que te geraram,
feliz é teu irmão, e afortunadas são
tua irmã e a nutriz que te deu de mamar.
mas muito mais feliz que todos a que a ti
foi prometida, se a julgares digna esposa.
Se tens alguma, seja furtivo o meu gozo;
se não, seja eu; vamos ao leito nupcial.”
ela calou-se. o rosto do rapaz corou;
pois não conhece amor. o rubor lhe convinha.
esta é a cor do fruto de árvore ao sol,
ou do tinto marim, ou da lua brilhando,
quando os bronzes ressoam em vão nos eclipses.
a ninfa pede sem im pelo menos beijos
de irmã, e abraça o seu pescoço de marim:
“me deixa”, diz, “ou fujo e deixo a ti e a fonte?”
Sálmace teme e diz: “te deixo livre o espaço,
estrangeiro, e simula dar um passo atrás;
então volvendo o olhar, oculta em selva espessa,
espia, de joelho, agachada. mas ele,
achando-se invisível na relva vazia,

68 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


anda de um lado a outro e, brincando na água,
molha a sola dos pés, da ponta ao calcanhar.
Sem demora, atraído pelas águas tépidas,
do delicado corpo as leves vestes tira.
então, atônita, deseja a forma nua,
Sálmace com ardor. e os olhos dela abrasam-se
qual quando Febo, em clara órbita brilhando,
é reletido numa imagem de um espelho.
mal suporta a espera e mal contém o gozo,
já deseja abraçar, e à loucura se entrega.
ele bate o corpo com a palma das mãos,
ágil, salta no lago, move um braço e outro,
e n’água cristalina transluz qual estátua
ebúrnea ou lírio branco envolto em claro vidro.
“venci e és meu!” exclama a náiade e, com toda
a veste longe lançada, arroja-se na água,
e agarra o resistente e, em luta beijos rouba-lhe,
subjuga-o com as mãos e o peito acaricia-lhe,
e agora por um lado e outro cerca o jovem.
enim, mesmo lutando para escapar dela,
ela o agarra, qual serpente que ave régia
no alto sustém; pendente ela a cabeça e os pés
da ave enlaça e a cauda enrola em largas asas;
ou como a hera que se enrola em grossos troncos;
e como o polvo o inimigo em mar profundo
prende, lançando em toda parte os seus tentáculos.
Resiste o atlantíade e à ninfa os prazeres
nega. ela o oprime e unida, corpo a corpo,
tal como estava, diz: “mesmo que lutes, ímprobo,
tu não me escaparás. assim, ordenai, deuses,
que ele jamais separe de mim e eu dele”.
os deuses anuíram. e os corpos mistos de ambos
se uniram e chegaram a ter aparência
de uno. assim como em casca se enxertam dois ramos,
com o tempo eles crescem juntos num só galho;

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 69


assim, quando seus membros num abraço forte
se uniram, não são dois, mas uma forma dúplex,
nem rapaz, nem mulher, e que a nenhum parece.
Logo que viu que as águas claras, onde entrou
homem, o converteram em meio-varão
de fêmeos membros, ergue as mãos hermafrodito,
já sem voz viril diz: “ dai dons a vosso ilho,
ó pai e mãe, pois eu levo o nome de ambos:
Quem quer que nessa fonte entre homem saia
semi-varão e logo, ao tocá-la, efemine-se”.
Comovidos os pais pelo ilho biforme,
misturaram à fonte incestuoso iltro.

70 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


AS EFÍGIES FEmININAS Em CATACumBAS romANAS:
umA ANáLISE DA FIGurAÇÃo PALEoCrISTÃ1

Silvia M. A. Siqueira

A imagem como evidência histórica

Constitui-se um desaio considerável analisar o masculino e o feminino


na antiguidade Clássica, categorias que têm impulsionado relevantes debates
e análises nos últimos anos, especialmente desde a inauguração dos estudos
de Gênero e da história das mulheres. há várias questões pertinentes.
em especial em relação ao próprio repertório documental existente, a
limitação tem sido perene. temos em curso a busca de superar as restrições
por meio da utilização de diferentes documentos e evidências além das
literárias. há uma diversiicação signiicativa de testemunhos úteis para a
análise histórica, por exemplo, lápides de sepulturas, inscrições públicas,
diferentes documentos, tais como acordos de divórcio, as cartas pessoais,
registros iscais, encantamentos mágicos, imagens em diferentes suportes
(pintura, escultura) etc. todos eles têm muito auxiliado na elaboração de
determinados relatos históricos que possibilitam a compreensão da ação de
homens e mulheres em seu respectivo contexto social e cultural.
a utilização de imagens como documentação na narrativa histórica,
nos últimos anos, tem aumentado substancialmente, no caso dos estudos
da antiguidade são particularmente relevantes, pois as fontes documentais
são, muitas vezes, fragmentadas e lacunares. no caso das pesquisas sobre as
igurações do gênero entendemos que diferente dos problemas inerentes aos
textos literários, especialmente em relação à ação dos copistas responsáveis

1 Com este termo referimo-nos à arte igurativa produzida no espaço de tempo compreendido entre o
inal do século iii até o vii século na Roma imperial. mesmo utilizando uma palavra especíica para
denominar a produção artística de inspiração cristã, consideramos que ela relete o tempo em que foi
produzida, portanto, apresenta características típicas da arte produzida na antiguidade tardia.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 71


pelo registro das informações escritas, as representações imagéticas podem
apresentar, em certa medida, uma vulnerabilidade menor. Se considerarmos
que algumas têm sua sobrevivência fortuita escapando mesmo que
parcialmente da intervenção particular e pessoal do autor desse suporte
documental, ou até mesmo, do aspecto intencional de preservação do
testemunho. não obstante, é necessário sempre destacar que mesmo em se
tratando de uma linguagem visual tem também suas limitações e podem
ter signiicados polissêmicos e ambíguos. assim sendo, é preciso atenção
ao utilizar o testemunho imagético, já que na imensa rede de evidências as
imagens ocupam um lugar determinado, lado a lado de textos literários.
as representações figurativas constituem um repertório passível de
compartilhar diferentes experiências não-verbais, podem ampliar conduzindo
a imaginação do passado. há nelas uma força independente da tipologia da
imagem: objeto de devoção, meio de persuasão ou informação, prazer. elas dão
testemunho de antigas formas de religião, de conhecimento, crença, etc. (...)
“embora os textos também ofereçam indícios valiosos, imagens constituem-se
no melhor guia para o poder de representações visuais nas vidas religiosa e
política de culturas passadas” (buRKe, 2004, p.17).
ao reletir sobre as raízes culturais da imagem de culto cristã, Ginzburg
(2001, p.104-121) mostra como a dimensão exterior da imagem, objeto de
culto, oferece para aquele que vê um equivalente visual de frases nominais. a
partir da observação da igura representada pode-se chegar a determinados
trechos da bíblia. temos então uma relação entre imagem e texto, no caso,
a utilização de imagens torna-se uma inovação, especialmente no uso nas
cerimônias religiosas cristãs. Segundo ele, as imagens são sempre airmativas
seja representando objetos existentes, inexistentes, ou nenhum objeto, “as
imagens são o que são” (id., ib.,p.138), e podem conduzir de modo subliminar
a inúmeras mensagens e signiicados. uma simples representação de um
objeto por meio da pintura, da estampa, do retrato etc., pode conter em si
inúmeros signiicados que tanto podem “estar no campo do concreto, quando
se manifesta por meio de suportes físicos palpáveis e visíveis, ou no campo
do abstrato, por meio das imagens mentais dos indivíduos” (RodRiGueS,
2007, p.68). É sabido que a linguagem visual há muito na história humana,
proporciona a personiicação de conceitos abstratos representados de forma
idealizada por meio de personagens.

72 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


assim sendo, a relação existente entre o testemunho visual e o
documento textual é tênue, uma igura pode representar o que não está
nas palavras. desta feita, cada vez mais estudiosos utilizam as imagens
como evidência histórica do passado, como um suplemento e suporte das
informações contidas nos documentos, já que elas são capazes de ilustrar e
iluminar as informações e inquietações não explícitas e claras. Por meio da
imagem é possível analisar as representações acerca de determinado grupo
ou determinada sociedade, as iguras transmitem mensagens especíicas
através de personagens bem deinidas e produzidas por determinado artesão,
artista em local e época.
a iconografia tem se ocupado da difícil tarefa de interpretar
detalhadamente as diferentes imagens produzidas pela pintura, pela escultura
e por outras artes plásticas. independente do suporte em que se encontram,
as imagens proporcionam uma narrativa icônica. desta feita, para chegar-se
ao signiicado de uma igura é preciso considerar todas as articulações de
seus elementos, inclusive o próprio signiicado assumido no ato de olhar,
o sentido em suas relações, particularmente o distanciamento que separa
os personagens, seus gestos, seus comportamentos e posições (FRontiSi-
duCRouX, 2003). além disso, é necessário contextualizar a iguração
nos múltiplos aspectos da qual é parte, desde as convenções artísticas, os
interesses do artista, do patrocinador original ou do cliente, e a pretendida
função da imagem, etc. (buRKe, 2004).
os estudos sobre as mulheres há muito acrescentaram ao seu arsenal
documental a utilização das imagens. homens e mulheres, masculino
e feminino são representados em seus túmulos e lápides, nos registros,
dedicatórias e inscrições, é possível perceber as práticas sociais, culturais e
religiosas. Quando se trata de mulheres é relevante considerar, “a avalanche
de imagens” desde a pré-história (PeRRot, 2007, p.24) por meio de
diferentes descrições são objetos de representação. entretanto, assim como
nos discursos, no caso das imagens o que temos de maneira predominante é
o olhar masculino sobre o feminino, vale sempre considerar que “o olhar não
é simples e a relação entre a condição das mulheres e a imagem da mulher
é menos ainda” (veYne, 2003, p.119).
Pretende-se aqui compreender as diferentes maneiras pelas quais se
constrói, a partir das igurações femininas presentes em algumas catacumbas

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 73


cristãs, na cidade de Roma, um discurso sobre a vida e a morte com suas
tensões religiosas e de gênero.

Contextualizando os monumentos funerários

a criação de lugares subterrâneos adaptados ao uso funerário foi uma


prática bastante difusa em várias civilizações do mundo antigo, por exemplo,
etruscos, sabinos, gregos, egípcios e os próprios romanos. esses locais
receberam o nome de hipogeus. no caso especíico de Roma, o hábito de
inumar difundiu-se desde a República e, também durante o império. no
subúrbio de Roma, as sepulturas mais antigas datam do séc. ii e iii, algumas
são bastante simples e, outras mais soisticadas geralmente rebocadas e
revestidas com afrescos (niCoLai, 2000, p.301-2).
os judeus e os cristãos residentes em Roma enterraram seus mortos
e denominaram o local como catacumba (deriva do grego Katá embaixo,
abaixo e Kumbes: cavidade, profundidade). além de ser o lugar das
sepulturas izeram dali ponto de encontros, celebrações litúrgicas como
os funerais, os aniversários dos mártires e dos defuntos e peregrinações.
decoraram as paredes e deixaram várias mensagens sobre a vida e a morte.
É na segunda metade do século iii que ocorreu um maior incremento visual
das catacumbas cristãs em Roma, foram construídas tumbas monumentais,
cubículos e espaços ricamente decorados com afrescos, enriquecidos com
elegantes detalhes arquitetônicos entalhados. no decorrer do século iv
houve um desenvolvimento signiicativo dos novos espaços e das novas
instalações em ambientes subterrâneos (id., ibid.).
a arte figurativa presente nas paredes das catacumbas é bastante
signiicativa, deixa evidente que as primeiras expressões artísticas cristãs
têm sua linguagem imagética caracterizada pela apropriação dos principais
elementos da arte helenística romana. os detalhes são muito signiicativos
especialmente relativos ao período paleocristão quando são registrados os
signos que transmitiam conceitos complexos e narrações articuladas, por
exemplo, os sinais marinhos: âncoras, peixes, faróis e barcos que indicavam
a navigatio vitae cristã. os pássaros, hortas, flores, motivos bucólicos
ilustrando certa festividade da passagem da vida para morte. a decoração
festiva ainda é totalmente impregnada pela atmosfera e os lazeres dos elíseos

74 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


clássicos, apenas alguns pequenos detalhes, como no caso os gestos solenes e,
uma certa aura apocalíptica remetendo ao vocabulário cristão. há também
um pouco do Jardim do Éden judaico, enim um pouco do pensamento
do ambiente múltiplo e religioso (biSConti, maZZei, 2009). Podemos
entender o sepulcro como primeiro passo para a entrada no além-túmulo.
das muitas imagens desse repertório iconográico alguns temas mitológicos
passarão a fazer parte, especialmente as narrativas cujo tema tem um
envolvimento com os ínferos, é o caso do mito de alceste e admeto, símbolo
do amor conjugal e do sacrifício da esposa em favor do esposo conforme a
igura abaixo:

(manCineLLi, 1996, p. 38)


a imagem ao lado permite a percepção de que o modo como é feita a ilustração
do local permite o envio de várias mensagens. Por meio da linguagem igu-
rativa os argumentos mitológicos e bucólicos, indicam a presença da cultura
helenística romana, assim como, uma mensagem aos esposos: o sacrifício
desinteressado, em especial a esposa devotada.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 75


assim o ambiente sepulcral apresenta não apenas uma fusão entre
diferentes abordagens artísticas, mas também uma coniguração semântica
soisticada. a presença sutil de elementos de antigas tradições voltadas para
novas exigências espirituais pregadas pela mensagem cristã. o signiicado
iconográico conduz a uma espécie de doutrinação, a imagem em si agindo
como um lembrete e um reforço da mensagem falada, não se constituindo
em uma única fonte de informação (buRKe, 2004).
as catacumbas são constituídas por ambientes amplos com galerias
em série com possibilidade para a ampliação, evidenciando a utilização
racional dos espaços. as tumbas são marcadas por certa uniformidade
tipológica, adotando, quase de modo generalizado, a tumba de lóculo.
mais raros de serem encontrados, os sepulcros monumentais, ou espaços
funerários exclusivos, como o caso dos cubículos, geralmente utilizados para
abrigar vários membros de uma mesma família. Quanto às identiicações
as epígrafes funerárias registram, em geral, apenas o nome do defunto,
raramente acompanhado pela alcunha da pessoa que dedicou o monumento.
de modo geral há a intenção de paz (biSConti, 2000, p.311). São vários
cubículos, as pinturas são ecléticas com iguras de animais, e pequenos
monstros marinhos, guirlandas que ilustram um cenário idílico e bucólico
de possível inspiração virgiliana que dialoga com motivos arquitetônicos
oriundos da moldura clássica acrescentando composições do antigo e do
novo testamento.
a propósito do desenvolvimento dos cemitérios hipogeus cristãos e o
seu respectivo sistema decorativo, nicolai (2000) destaca que inicialmente
os sepulcros eram bastante modestos, com o passar do tempo são acrescidos
alguns expedientes decorativos caracterizando individualmente as câmaras
sepulcrais. São utilizados decorações e afrescos oriundos da tradição pictórica
romana, na forma de personiicações dos animais, que gradativamente
tornam-se cada vez menores, conigurando apenas os detalhes minúsculos
do cenário. as guirlandas, monstros marinhos, ou imagens simbólicas
passam a ser ladeadas pelo aumento de imagens do repertório mítico como o
pastor, uma pessoa em posição de oração, o ilósofo, o pescador. esses ícones
passarão a ser relacionados às narrativas bíblicas. assim há um aumento
signiicativo da decoração dos ambientes de cenas bíblicas de proporção bem
maior do que a iguração clássica.

76 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


as imagens presentes nas catacumbas ilustram um contexto em
que a devoção cristã emprestava das ilustrações de natureza idílica uma
combinação entre paisagens e o ambiente sagrado (veYne, 2003, p.123),
tornando aquele local um lugar, uma espécie de santuário onde reina a
atmosfera equilibrada de paz após a morte.

Efígies: representação (em vulto) de


uma pessoa ou coisa personiicada.

todas essas questões conduzem a utilização imagética como forma de


doutrinação, a pintura das catacumbas é produto do seu tempo com todas
as características pertencentes à forma da antiguidade tardia que mantém
uma continuidade com a cultura igurativa do período helenístico com um
retorno periódico e contínuo às elaborações da arte greco-romana. estudos
concluíram que entre os documentos da pintura funerária paleocristã,
elaboradas no século iii, em alguns casos, está presente o retrato privado,
ou seja, a efígie do defunto colocada sobre a tumba (CaRRa, 2000). temos
então o simbolismo, a imagem ou o retrato que pode personiicar uma
pessoa.
o repertório imagético objeto dessa relexão é constituído por imagens
consideradas as efígies das mulheres depositadas em algumas catacumbas
da cidade de Roma. É bastante instigante uma relexão sobre a atitude
registrar a própria imagem do ocupante do cubículo. o retrato é uma forma
simbólica interessante, o modo como é apresentada a pessoa com destaque
para a postura, os gestos, as roupas, os acessórios e os próprios objetos
representados ao redor da efígie são permeadas por uma forte mensagem.
a perspectiva em que a imagem é registrada com maior ou menor distância
para ser vista, com enfoque respeitoso, preocupado, triste, compõem uma
narrativa visual bastante forte em relação à vida e à morte.
São algumas imagens tipiicadas e elaboradas com características
típicas da iconograia feminina do último quartel do iii século e, outras
do período constantiniano que estão próximas de um conjunto de retratos
do iv século. temos aqui uma preocupação em torno da tentativa de
compreender o signiicado dessas pinturas. São ilustrações parietais que
decoram quartos e pequenas salas de cemitérios, depósito de corpos sem

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 77


vida, algumas imagens são muito pequenas, outras maiores, mas nenhuma
tem uma dimensão gigantesca. o local podia ser visitado por homens e
mulheres, de modo geral em celebrações fúnebres, cultos e rituais cristãos.
desse modo, é justo considerar que as iguras ali presentes transmitem
mensagens relativas àqueles que já morreram, mas também aos visitantes
que ainda fazem parte do mundo dos vivos.

olhando as mulheres

das efígies selecionadas para a presente análise, procuramos


particularidades que possam nos conduzir à presença e quiçá à devoção
representada nas iguras. nas catacumbas em Roma dos santos Pedro e
marcelino, encontramos um detalhe de afresco com a mulher em posição
de oração, e na catacumba de domitilla no arcossólio de Ianuarius, há outro
detalhe também com uma orante (CaRRa, 2000, p.317). ambas imagens
são frontais colocadas objetivamente diante dos olhos do espectador. ver
de frente pode quebrar o caráter impessoal e distante da imagem. É possível
estabelecer uma relação de olhares entre o personagem pintado e o destinatário
da imagem. ambas as efígies parecem um vulto, os olhos voltados para os
lados e o semblante protegido pelo uso do véu. mesmo que ambas estejam
em posição frontal e os braços abertos os olhares desviados indicam também
certa impessoalidade em relação àqueles que olham para elas.

(CaRRa, 2000, p. 318)

78 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


detalhe:

a figura encontrada no Cemitério maior registrada no arcossólio,


representando a mulher orando ao lado de dois pastores com cena de ordenha,
é bastante sugestiva. a igura do bom pastor foi muito utilizada na iconograia
paleocristã, simbolicamente o pastor está relacionado à igura de Cristo.
Quando porta sobre os ombros o cordeiro, pode signiicar que carrega a alma
que salvou. aqui podemos elaborar a ilustração do que anteriormente foi
assinalado como imagem arcaica que passou a ser utilizada para transmitir a
mensagem cristã. a igura do pastor utilizada há muito na iguração artística
grega arcaica (como a famosa imagem da escola ática do séc. vi a.C.), e
depois aos poucos passou a ser utilizada também na arte romana. trata-se da
representação do Moscophoros: o pastor, que traz sobre os ombros um novilho,
tem no rosto um sorriso harmônico que expressa perfeito equilíbrio entre o
rosto, a boca e os olhos arredondados, o olhar direto e frontal para o espectador.
ele foi considerado a representação da philantropia, o amor desinteressado em
relação ao ser humano, além de ser considerado o símbolo de um além-túmulo
como um local de serenidade e paz. nas representações cristãs o bezerro é
substituído por um cordeiro, símbolo do rebanho, dos iéis e também a própria
igura de Cristo como sacrifício oferecido para a salvação do mundo.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 79


assim a igura em destaque aparece em uma seqüência de cenas, uma
onde o pastor ordenha a ovelha, seguida pela outra onde ele a carrega sobre
os ombros, conforme representação comum em outras imagens tumulares.
temos também a destacar a igura feminina com os braços abertos e as mãos
estendidas em forma de oração. a imagem tenta dar uma sequência dinâmica
na narrativa com certa continuidade. a imagem feminina com as mãos
elevadas pode ser interpretada como uma atitude de oração e a necessidade de
vínculo contínuo tanto na vida mundana quanto naquela que pode ser obtida
por meio da salvação, a vida eterna. Signiicante também é a própria vestimenta
com túnica simples, o véu, os pés descalços aliando humildade e simplicidade.
a decoração do fundo é aquela do jardim paradisíaco com o aspecto bucólico.
as plantas representam um jardim, a ordenha acontecendo em um
pequeno santuário moldado a partir do ambiente campestre, com a forte
presença do pastor, usando uma túnica diminuta, em duas imagens distintas
e sequenciais. mais na lateral é possível ver o animal em posição de descanso.
toda a representação dessa moldura pode levar-nos a interpretar o ambiente
envolto à prática do sacrifício, ou melhor, um ambiente sacriical. a imagem
como está representada indicando uma ação e o movimento sequencial nos
conduz também para um ambiente sossegado, uma espécie de templo ocupado
pelo pastor e sua ovelha, destacando no ambiente a oração e o sacrifício.
várias discussões foram elaboradas em relação à questão das iguras
apresentadas com os braços e mãos abertos, especialmente porque cada vez
mais historiadores concordam que o gesto é semelhante às representações
romanas da pietas2. assim destacando a santidade e a salvação pois graças ao
Cristo o homem foi reabilitado após o pecado original, por meio do batismo, do
martírio, da cura espiritual e física, conforme o próprio apóstolo Paulo deixou
registrado “Quero, portanto, que os homens orem em todo lugar, erguendo
mãos santas, sem ira, sem animosidade” (1timóteo, 2-8). os braços abertos

2 o conceito tão caro à religião romana exprime de modo enfático a forte virtude primitiva que airma
que o homem deve cumprir seus deveres e obrigações em relação aos seus pais, seus ilhos, da família,
da gens, da estirpe. a pietas entendida como sentimento de amor, de respeito, de desvelo em relação a
sua classe. Se exige tal comportamento em relação à família, do mesmo modo deve dirigir-se também
aos defuntos, aos parentes, efetuando-se inúmeros atos cultuais abrangendo também as gentes muito
distantes. Pois todos os deuses romanos eram considerados parentes da pátria. e a devoção à eles também
era considerada como expressão da pietas.

80 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


foram interpretados por Pais da igreja como tertuliano, agostinho, ambrósio
signiicando a cruz. mas também as mãos elevadas exprimem a tensão de todo
ser humano, quando em estado de oração. enim, se considerarmos que a
imagem deixa sua mensagem para quem a aprecia, temos então a mensagem
forte no reforço da necessidade constante de oração que não termina na
terra, mas continua após a morte. enim as posições das mãos são muito
signiicativas, no sentido da receptividade de quem olha e os olhares também,
de modo geral conduzem para uma representação da santidade, da pureza, de
um mundo diferente e distante daquele pertencente ao espectador.

(manCineLLi, 1996, p. 91)

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 81


as pinturas belíssimas das mulheres orando que estão gravadas na
Catacumba dos Jordanos são muito sugestivas. mais uma vez temos a
frontalidade da igura representada, com as mãos em detalhe. os olhos um
pouco elevados ou voltados para o lado, não demonstram a busca de uma
cumplicidade de olhares entre ela e o espectador. a posição de oração como
apresentada nas pinturas conduzem a idéia da pietas, além disso a posição
dos braços abertos em oração também indicava simbolicamente a ideia de
acolhimento, abraço e receptividade. as formas isionômicas com grandes
olhos acentuados, com sobrancelhas enrugadas e para o traço característico
da boca parecem conduzir para a percepção de que a própria defunta seria
uma igura hierática, nobre com autoridade e respeitabilidade. não temos
aqui uma igura passiva, as vestimentas, os adornos, especialmente o véu
diáfano, colocado sobre a cabeça e preso por uma espécie de tiara, destacam
sua beleza majestosa. enquanto que sua postura acrescida pela posição do
olhar dirigido para o alto, ou para o lado faz com que produza na imagem
certa mobilidade que é ao mesmo tempo conduzida para outro local.
Parecendo até uma igura santiicada que procura seu lugar
apesar de a imagem frontal constituir uma tentativa de impessoalidade
da representação figurada, quando comparamos esta pintura com as
anteriores, as mulheres em oração destacam-se pela vestimenta rica e adornos
soisticados, seria a indicação de que no século iv, as mulheres pertencentes
às classes mais abastadas estariam se convertendo ao cristianismo? Sabemos
que algumas mulheres de relevante status social e econômico, matronas
romanas, converteram-se ao cristianismo e atuaram como patrocinadoras
de renomados clérigos com doações para as igrejas e aos pobres (SiQueiRa,
2004, p.174).
nas cartas escritas por Jerônimo é possível encontrar inúmeras
mulheres, ricas e jovens herdeiras tais como Paula, Fabíola, melânia Senior
e Júnior, marcela que investiram suas vidas, e suas fortunas nas causas
cristãs, demonstrando companheirismo ao hospedar e acolher monges em
suas casas, fundando monastérios, provendo fundos para as igrejas e suas
obras de caridade. além disso, homens cultos e distintos como, por exemplo,
Jerônimo e Ruino de aquiléia encontraram em seus caminhos essas mulheres
tão cultas quanto eles, que falavam o grego e o latim, algumas vezes com
conhecimento também do hebraico e o aramaico. Pessoas que puderam viajar

82 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


e peregrinar por inúmeras localidades, desenvolvendo relações sociais que
deram subsídios para a disputa de idéias e teologias (id.,ibid.). as patronas
de Jerônimo, Ruino e João Crisóstomo, respectivamente Paula, marcela,
melânia sênior e melânia júnior, e outras que não puderam aqui ser objeto
de discussão, possibilitaram a seus mestres usufruírem de um determinado
conforto para escrever seus numerosos tratados e cartas (CLaRK, 1992,
p.25), nas quais se preocuparam também em idealizar o feminino a partir
da convivência com elas.

inúmeros conselhos para as ricas mulheres em adotar a vida ascética.


a renúncia englobava não apenas os prazeres físicos, comer e beber,
mas também renunciar às riquezas, o luxo, exemplo esse que pode ser
comprovado pelas palavras de Paula, mencionada por Jerônimo em seu
elogio fúnebre:

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 83


“tenho que enfear um rosto que, contra a vontade de deus, tantas vezes pin-
tei de vermelho, sombreado e pálido. tenho que mortiicar um corpo que se
entregou a muitos deleites. o sorriso contínuo deve ser reparado com pranto
contínuo; os tecidos inos e os vestidos de seda de luxo devem ser trocados pela
aspereza do cilício. eu que antes procurei agradar o século e o meu marido,
agora quero agradar a Cristo”. (JeRÔnimo, Epist. 108,15).

Se as efígies possibilitam a visualização de ricas mulheres, temos ainda


a considerar outra igura:

(CaRRa, 2000, p. 319).

a grande imagem de mulher orando com o véu, expressa com vivo


senso contrastante, sentada no centro do arcossólio no cubículo da Velatio
do cemitério de Priscila. a igura alude o momento da passagem e evoca
para a forte expressividade para a alma da oradora. as pinturas demonstram
por meio da construção dos rostos, da intensidade do olhar, do desenho
da boca e os seus traços, implicitamente conirmados por duas cenas que
ladeiam a igura principal, nas quais representam a mesma mulher, com os
cabelos (arrumados) penteados, segundo a moda da iconograia feminina
do período Severiano e pós-severiano. temos a representação de diferentes

84 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


fases da vida da mulher, primeiro como esposa ao lado do marido e ilhos,
depois como mãe com seu menino nos braços. Caracterizando o papel da
mulher no interior da família com esposa e mãe devotada ao lar um ideal
feminino, adequado também para a cristã.
de todas as imagens acima mencionadas é possível perceber um discurso
imagético signiicativo. nos primeiros anos do cristianismo aconselhava-se
aos cristãos homens e mulheres sobriedade, modéstia no comportamento e
na vestimenta. as mulheres, na maioria das vezes, estão representadas em
indumentária simples, na posição de oração com os braços abertos em sinal
de recepção, a maioria vestida com um modelo básico da clássica túnica com
mangas longas e uma pala que sobe para cobrir a cabeça. todas as iguras
femininas apresentam o uso do véu, sabemos do signiicado, para os cristãos
desde as cartas paulinas3. as mulheres que participavam ativamente do culto
cristão deviam se apresentar na solenidade com a cabeça coberta. Paulo
lembrou com todas as letras a posição da mulher nesses cultos, e usando
como justiicativa a tradição bíblica, segundo a qual a mulher foi criada
do homem, portanto, está a ele submissa. tertuliano também se utiliza da
epístola paulina:

Às mulheres não é permitido falar em assembléia, nem ensinar, nem batizar,


nenhuma obrigação masculina, nem mesmo reivindicar os ofícios sacerdotais
deles. Para as moças virgens, é licito essas coisas do gênero? nada disso é per-
mitido às virgens. Qualquer que sejam as circunstâncias, elas são vinculadas
às mesmas condições nas quais se encontram as mulheres e, conjuntamente,
a elas estão sujeitas à sorte de dever viver na modéstia, como explicar então
que, para as virgens, foi feita uma exceção sob um único ponto, permitindo
a elas não usarem o véu, coisa que não é permitida a qualquer que seja outra
mulher? (teRtuLiano, de virg.vel., iX, 1-4).

as efígies nos monumentos funerários, nosso objeto de análise,


são registros com mensagens relativas à memória daquelas pessoas ali

3 o véu das mulheres – (1 Cor 11,1-12).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 85


depositadas, mas também uma advertência e conselho para os visitantes do
local. mensagens iconográicas que expressam traduzem por meio de imagens
pictóricas suas relexões sobre o comportamento das mulheres cristãs. Para
as autênticas discípulas de Cristo, deveria haver o comprometimento com
a simplicidade e a modéstia, as mulheres estão sempre representadas em
indumentária simples, em posição de oração com os braços abertos, vestidas
com um modelo básico da clássica túnica com mangas longas e uma pala
que sobe para cobrir a cabeça e os pés descalços que remete à humildade e
o perene olhar devocional da piedade cristã.
temos também a representação das iguras aristocráticas e nobres
ricamente vestidas que nos mostram um discurso elaborado por meio
imagético das conversões de mulheres da elite romana. Ícones claros
de igurações femininas permeadas por um senso de majestade e luxo,
conduzindo para a interpretação hierática, como se fosse uma estátua de
culto, uma visão de um cristianismo aristocrático um pouco distante da
mensagem de pobreza e renúncia total às coisas mundanas.
a marca comum das mulheres ricas é que elas puderam, em certa
medida escolher, seu próprio caminho, a despeito de todas as pressões
sociais. tiveram a possibilidade de usar seus bens para viagens turísticas à
terra santa, estudar as escrituras, vivenciar sua espiritualidade. e as outras
mulheres? elas viveram em uma sociedade fortemente hierárquica com
barreiras sociais que assomavam uma grande gama de problemas práticos
que as impediam de criar outras possibilidades pessoais (CLaRK, 1994,
p.103). apesar de não se tratar da maioria das mulheres, um grupo expressivo
delas provoca uma reavaliação e negociação em torno dos papéis femininos,
evidenciando que as mulheres izeram parte do intrincado processo de
constituição da igreja cristã a partir do século iv.
diferentes mulheres pertencentes ao diversiicado e plural mundo
romano estão representadas nas paredes das catacumbas. não podemos
deixar de considerar que as imagens podem sim representar a feminilidade
em si, mas elas também são utilizadas como metáforas para a representação
da alma e do próprio sentimento religioso cristão, iguram a devoção em
cores e aspectos vibrantes que convidam os espectadores a se enquadrarem
na moldura da piedade cristã e desejarem o além túmulo.

86 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


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88 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


DEuSES E ORDO No LIVro IV DAS ODES

Alexandre Pinheiro Hasegawa

ao abrir o quarto e último livro lírico, horácio se dirige a vênus e,


próximo dos cinquenta anos, pede para ser poupado pela deusa do amor.
mais do que afastá-la, o poeta ordena que procure os jovens que a invocam,
em especial Paulo Fábio máximo, que vai honrá-la de maneira adequada por
ser talentoso. Por im, na terceira e última parte do poema (vv. 29-40), depois
de declarar que não lhe agradam nem rapazes, nem mulheres, confessa seu
amor por Ligurino, jovem a quem dedica uma ode do livro (carm. 4, 10)1.
antes, porém, de ver mais em detalhe o carm. 4, 1, convém situar o quarto
livro lírico na carreira horaciana, já que o poeta faz referência, de modos
diversos, à sua produção precedente2. independentemente da discussão
que se coloca hoje sobre a publicação dos três primeiros livros, se foram
publicados em conjunto ou seperadamente, os carm. 1, 1 e 3, 30 delimitam
um todo que se diferencia, de maneira clara, do quarto livro. entre estas duas
produções líricas, horácio publica seu primeiro livro de epístolas, em que
airma, já velho, ter abandonado os versos e os outros divertimentos (cf. epist.
1, 1, 10: nunc itaque et uersus et cetera ludicra pono). assim, a construção
do éthos da persona loquens nas Epístolas passa para o lírico do quarto livro,
que é mais elevado em relação aos outros, como já foi apontado pela crítica.
Portanto, não é estranho que o poeta, depois dos três primeiros livros
líricos, inicie o quarto, procurando afastar vênus. É signiicativo, porém, que
horácio, como se sabe, segue, para ordenar os poemas do primeiro livro, as
edições alexandrinas de alceu, que começavam por uma sequência de três
hinos (frr. 307 v, 308 v e 343 v)3. Sabe-se ainda que o início da edição de

1 Para relação entre carm.4, 1 e 4, 10, ver e. mitchell, “time for an emperor: old age and the future of the
empire in horace Odes4”, MD 64, 2010, pp. 43-76. há ainda importantes observações sobre as odes que
louvam o império e o imperador (cf. pp. 73-74).
2 Para mencionar o exemplo mais evidente, o v. 5: mater saeua Cupidinum é citação do v. 1 do carm. 1, 19.
3 Para este estudo, remeto a R.o.a.m Lyne, “horace odes book 1 and the alexandrian edition of alcaeus”,
CQ 55, 2005, pp. 542-558.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 89


anacreonte também era um hino (fr. 1 Gent.)4. em nenhum deles, contudo,
o poeta se dirigia a afrodite: alceu faz hino a apolo, e anacreonte a Ártemis.
mas a edição helenística de Safo se iniciava pelo hino a afrodite (fr. 1 v) que,
como já bem estudado5, horácio imita na abertura do quarto livro. Porém,
mais do que segui-la, o poeta latino a inverte: se Safo invoca a deusa, horácio
procura afastá-la, ainda que não consiga6. vênus, portanto, presente no início
e, como veremos, também no im (carm. 4, 15, 32) terá papel importante na
construção do livro horaciano.
vejamos, então, de modo mais minucioso, o carm. 4, 1:

intermissa, venus, diu


rursus bella moues? Parce precor, precor.
non sum qualis eram bonae
sub regno Cinarae. desine, dulcium

mater saeua Cupidinum, 5


circa lustra decem lectere mollibus
iam durum imperiis; abi,
quo blandae iuuenum te reuocant preces.

tempestiuius in domum
Pauli purpureis ales oloribus 10
comissabere maximi,
si torrere iecur quaeris idoneum.

4 Para tal informação, ver b. Gentili e C. Catenacci (orgs.), I poeti del canone lirico nella Grecia arcaica,
milano 2010, p. 324.
5 Citamos aqui m. Putnam, Artiices of eternity. Horace’s fourth book of Odes, ithaca-London 1986, p. 39
ss.; G. nagy, “Copies and models in horace odes 4.1 and 4.2”, CW 87, 1994, pp. 415-426; R. tarrant,
“Da Capo Structure in some odes of horace”, in S. harrison (ed.), Homage to Horace. A bimillenary
celebration, oxford 1995, pp. 32-49: 45 s.; a. Cavarzere, Sul limitare. Il «motto» e la poesia di Orazio,
bologna 1996, pp. 241-242; P. Fedeli e i. Ciccarelli (comm.), Q. Horatii Flacci, Carmina. Liber IV, Firenze
2008, p. 87. não elencamos, obviamente, todos os estudiosos que se dedicaram às relações entre o carm.
4, 1 de horácio e o fr. 1 v de Safo, mas izemos seleção dos mais importantes para nossa leitura.
6 Se Safo faz um κλητικὸς ὕμνος, horácio faz uma espécie de ἀποπομπή. Para estes termos, ver e. Fraenkel,
Horace, oxford 1957, p. 410, n. 3, que remete a fontes antigas.

90 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


namque et nobilis et decens
et pro sollicitis non tacitus reis
et centum puer artium 15
late signa feret militiae tuae,

et, quandoque potentior


largi muneribus riserit aemuli,
albanos prope te lacus
ponet marmoream sub trabe citrea. 20

illic plurima naribus


duces tura lyraque et berecyntia
delectabere tibia
mixtis carminibus non sine istula;

illic bis pueri die 25


numen cum teneris uirginibus tuum
laudantes pede candido
in morem Salium ter quatient humum.

me nec femina nec puer


iam nec spes animi credula mutui 30
nec certare iuuat mero
nec uincire nouis tempora loribus.

Sed cur, heu, Ligurine, cur


manat rara meas lacrima per genas?
Cur facunda parum decoro 35
inter uerba cadit lingua silentio?

nocturnis ego somniis


iam captum teneo, iam uolucrem sequor
te per gramina martii
Campi, te per aquas, dure, uolubilis7. 40

7 o texto é da edição de d. R. Shackleton bailey, Q. Horatius Flaccus Opera, berlin 2008.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 91


vênus, há muito interrompidas,
guerras de novo causas? Poupa-me, te imploro8.
não sou qual era sob o reino
da boa Cínara. tu cessa de dobrar-me,

cruenta mãe da Cupidez 5


doce; a mim, próximo dos dez lustros e agora
áspero à tua suave lei;
vai onde as brandas preces dos jovens te chamam.

mais a propósito, na casa


de Paulo máximo farás festa, de teus 10
cisnes brilhantes sobre as asas,
se quiseres queimar um peito a ti propício,

pois, nobre e belo, não calado


em favor de acusados inquietos, jovem
de mil talentos, portará 15
as insígnias de tua milícia bem ao longe,

e quando rir, mais poderoso


que os dons de um generoso rival, sob a viga
de um limoeiro por-te-á,
feita em mármore, perto dos albanos lagos. 20

ali muitíssimos incensos


sentirás e serás deleitada por versos
mistos à tíbia berecíntia
e à lira, sem faltar a lauta de Pã; jovens

8 desizemos a geminatio do original (precor, precor), que dá idéia de insistência. tentamos, porém,
compensar com um verbo mais forte (“implorar”) do que, por exemplo, “rogar”.

92 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


ali, com tenras moças, duas 25
vezes por dia, deidade tua enaltecendo,
com brancos pés, a terra vão
sacudir, à maneira dos Sálios, três vezes.

a mim nem jovem, nem mulher,


nem esperança crédula numa alma mútua 30
me agradam mais, nem competir
com vinho, nem com lores novas coroar-me.

mas, ai!, por quê? meu Ligurino,


por que por minha face corre rara lágrima?
Por que em um tão pouco decoroso9 35
silêncio cai loquaz minha língua, no meio

da fala? em meus sonhos noturnos,


ora cativo te mantenho, ora por relvas
do Campo márcio te persigo
alado ou por mudáveis águas, ah! Cruel10. 40

o livro começa com o particípio passado intermissa, que remete o


leitor à produção lírica precedente em que vênus o dominava e ele estava
sob o reino de Cínara. a referência à lírica dos três primeiros livros não é
apenas genérica, mas textual, pois o quinto verso (mater saeua Cupidinum)
é repetição do primeiro verso do carm. 1, 19, em que o poeta, sob domínio
da “cruenta mãe da Cupidez”, arde por Glícera, e vênus não lhe permite

9 nossa tradução alterna versos de oito e doze sílabas. o v. 35 do original latino é hipermétrico. assim,
traduzimos não por um verso de oito sílabas, mas por um de nove. É notável que a sílaba a mais se dá
justamente no verso em que aparece o adjetivo facunda (“loquaz”) que caracteriza língua, ou seja, o verso
mimetiza a loquacidade da língua com a sílaba excedente. tal efeito já fora ressaltado por m. Putnam, Op.
cit., 38, que, por sua vez, remete a S. Commager, “Some horatian vagaries”, SO 55, 1980, pp. 59-70: 65-66.
10 todas as traduções são nossas. Quando não for, indicaremos o tradutor.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 93


cantar matéria bélica, não lhe permite cantar nem os Citas nem o valente
Parto (cf. vv. 9-12: In me tota ruens Venus / Cyprum deseruit, nec patitur
Scythas / et uersis animosum equis / Parthum dicere nec quae nihil attinent)11.
assim, como observa elisa Romano12, há no carm. 1, 19 o tópos da recusatio,
como nos carm. 1, 6; 2, 12, e 4, 15. do confronto, estabelecido pelo próprio
horácio, podemos dizer que, se no primeiro livro o poeta recusa a épica
para dedicar-se à lírica erótica, no início do quarto livro procura recusar a
erótica para dedicar-se à lírica encomiástica13 que, segundo Fraenkel14, já se
anuncia com a breve descrição de Paulo Fábio maximo (vv. 9-20). Portanto,
para dedicar-se ao encômio das personagens romanas, suplica que “a mãe
cruenta da doce15 Cupidez” o poupe e se afaste dele.
outra relação que se estabelece entre os carm. 4, 1 e 1, 19 é a menção ao
culto de vênus. no primeiro, fala-se da estátua feita de mármore por Paulo
Fábio máximo que será posta perto dos lagos albanos, onde haverá incenso,
versos, música e dança em honra da divindade (vv. 19-28); no segundo, fala-
se de um altar em que há ramos, taça com vinho e uma vítima imolada para
deusa (cf. vv. 13-16: Hic uiuum mihi caespitem, hic / uerbenas, pueri, ponite
turaque / bimi cum patera meri: / mactata ueniet lenior hostia). no primeiro, a
persona loquens está ausente do culto; no segundo, ela está presente e ordena
que os jovens ali deponham os objetos para honrar vênus.

11 a referência à matéria bélica parece evidente. Confronte-se ainda com a sétima estrofe do carm. 4, 5,
25-28: quis Parthum paueat, quis gelidum Scythen, / quis Germania quos horrida parturit / fetus, incolumi
Caesar, quis ferae / bellum curet Hiberiae?
12 e. Romano, Q. Orazio Flacco. Le Opere I (le Odi, il Carme secolare, gli Epodi), tomo secondo, Roma
1991, p. 561: “ma questa non è soltanto l’ode del ritorno dell’amore: la terza strofe contiene infatti una
variazione sul tema della recusatio. Poiché è innamorato, il poeta non può dedicarsi alla poesia epica; il
che equivale a dire che la condizione dell’innamorato è tutt’uno con la scelta della poesia d’amore e, in
generale, lirica”.
13 São claramente encomiásticos os carm. 4, 4; 4, 5; 4, 14, e 4, 15, em que há, sobretudo, o elogio de augusto.
14 e. Fraenkel, Op. cit., p. 413: “he portrait of Paulus Fabius maximus is to be the irst in a series of similar
ones, and this gallery of portraits is the most distinctive element of the fourth book”.
15 É notável a inserção aqui do adjetivo dulcium (v. 4), que caracteriza Cupidinum (v. 5), criando oximoro.
além disso, por estarem as duas palavras em inal de verso, a terminação -um ecoa de uma para outra,
de um verso a outro. ainda no início, nos versos seguintes, há a antítese: mollibus (v. 6) e durum (v.7).

94 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Se, como vimos, o livro começa com olhar retrospectivo16, não só
voltado para a produção lírica precedente, mas também para a declaração
epistolográica em que a persona declara ter abandonado os versos e outros
divertimentos, a obra se fecha, referindo-se novamente a vênus, com um
olhar prospectivo (cf. carm. 4, 15, 32: progeniem Venus canemus). assim, a
deusa, que o poeta procura no início afastar, na verdade, estrutura o todo,
e passa de deusa do amor, que tenta dominar o poeta, a deusa geradora dos
romanos, que lhes concede a paz, como veremos adiante. É evidente, pois,
que há tentativa de afastá-la, mas o poeta não consegue, como mostram as
duas últimas estrofes do poema de abertura, em que se revela o amor por
Ligurino (vv. 33-40), e as odes em que a matéria erótica se faz presente: carm.
4, 10; 4, 11, e 4, 1317.

melpômene, musa do início e do im

na leitura do livro, o próximo poema dirigido a um deus é o carm. 4,


3, em que o poeta volta a utilizar o quarto asclepiadeu (dístico formado por
glicônio seguido de asclepiadeu menor). o retorno do esquema métrico
põe a ode em relação com a primeira. Se no carm. 4, 1 apersona loquens está
próxima dos cinquenta anos (cf. v. 6: circa lustra decem...), agora o poeta,
dirigindo-se a melpômene, não só a louva por lhe ter permitido estar entre
os vates (cf. vv. 13-15: Romae, principis urbium, / dignatur suboles inter
amabilis / uatum ponere me choros), mas por tê-lo visto, ao nascer, com olhar
benevolente (cf. vv. 1-2; 10-12: Quem tu, Melpomene, semel / nascentem
placido lumine uideris [...] / sed quae Tibur aquae fertile praeluunt /et spissae

16 Para o olhar retrospectivo do livro iv das Odes e a última produção lírica como chave de interpretação
para os três livros líricos precedentes, ver a. Cucchiarelli, “La tempesta e il dio (forme editoriali nei
Carmina di orazio)”, Dictynna 3, 2006, pp. 73-136: 126-128. o artigo é fundamental ainda para o estudo
dos deuses e a organização dos livros em horácio.
17 Ressalte-se, porém, que a matéria erótica no quarto livro sempre é vista pela perspectiva de um poeta
que se coloca logo no início como velho. São exemplos evidentes o carm. 4, 10, dirigido a Ligurino, em
que o poeta lembra ao destinatário que também vai envelhecer, e o carm. 4, 13, dirigido à velha Lice,
que quer parecer jovem, mas vênus há muito tempo se afastou dela.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 95


nemorum comae / ingent Aeolio carmine nobilem). assim, passamos do
momento presente (carm. 4, 1) às origens poéticas, ao nascimento presidido
por melpômene (carm. 4, 3), que o acompanhará por toda a vida.
além da relação interna no quarto livro das Odes, o carm. 4, 3, assim
como o carm. 4, 1, nos recorda poemas da produção lírica precedente. Já
bem explorada pela crítica18, a aproximação mais evidente é com o carm.
3, 30: os dois poemas são dirigidos a melpômene (cf. 4, 3, 1: Quem tu,
Melpomene, semel; 3, 30, 16: lauro cinge uolens, Melpomene, comam); em
ambos menciona-se o Capitólio (cf. 4, 3, 9: ostendet Capitolio; 3, 30, 8: crescam
laude recens, dum Capitolium); nas duas odes há referência aos modelos
eólicos (cf. 4, 3, 12: ingent Aeolio carmine nobilem; 3, 30, 13: princeps Aeolium
carmen ad Italos). Portanto, Pasquali19 disse com precisão que horácio cita a
si mesmo neste poema, que é não só elogio à musa e à poesia, mas também
ao próprio poeta; elogio a si mesmo que já izera no carm. 3, 30. Porém,
aqui, no carm. 4, 3, recorda o nascimento e faz melpômene, com seu olhar
plácido20, igurar no primeiro verso; lá, no carm. 3, 30, menciona a morte,
que conseguirá evitar por meio da poesia, e faz melpômene, com a coroa de
louros, igurar no último verso.
Sem mencionar outras alusões a odes dos três primeiros livros, importa
dizer que, depois de procurar afastar vênus da nova recolha lírica, quase
censurando-a por tentar dominá-lo, já velho, melpômene é a primeira deusa
digna de louvor, que, como vimos, estabelece também a relação entre os
carmina precedentes e os atuais. Porém, se a menção a vênus, de certa forma
negativa, indicia afastamento, sobretudo, da matéria das Odes i, o retorno

18 e. Fraenkel, Op. cit., pp. 407-408; e. Romano, Op. cit., p. 861; m. Putnam, Op. cit., p. 74, e e. nogueira,
A lírica laudatória no livro quarto das odes de Horácio, diss., São Paulo 2006, pp. 47-48.
19 G. Pasquali, Orazio lirico, Firenze 1920, pp. 145-146.
20 É notável que, embora mencione explicitamente os modelos eólicos (alceu e Safo), o poeta imite Calímaco,
poeta helenístico, que fala do olhar benévolo das musas; olhar que, se recebido quando menino, não
o abandona quando em cãs (Aetia, fr. 1, 37-38 = epigr. 21 Pf.: Μοῦσαι γάρ, ὅσους ἴδον ὄμματι παῖδας
/ μὴ λοξῷ, πολιοὺς οὐκ ἀπέθεντο φίλους). a imagem, porém, já está em hesíodo (theog. 81-84: ὅντινα
τιμήσωσι Διὸς κοῦραι μεγάλοιο, / γινόμενόν τ’ εἰσίδωσι διοτρεφέων βασιλήων, / τοῦ μὲν ἐπὶ γλώσσῃ
γλυκερὴν χεύουσιν ἐέρσην, / τοῦ δ’ ἔπε’ ἐκ στόματος ῥεῖ μείλιχα). Para o confronto com horácio, ver
m. Putnam, Op. cit. p. 72. vale ressaltar ainda que o poeta latino, pela citação a si mesmo, substitui as
musas de Calímaco e hesíodo por melpômene.

96 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


de melpômene, em chave laudatória, sugere, principalmente, aproximação
da matéria das Odes iii. Se é correto dizer que o quarto livro é mais elevado
do que os outros, é justo também airmar que, entre os três primeiros, há
diferença de um para outro. Se o primeiro começa com constante variação de
metros e o terceiro se inicia sem variação métrica, o segundo, uma espécie de
meio-termo entre dois extremos21, abre com alternância de estrofes alcaicas
e sáicas. mais do que isso, se o primeiro se conclui com a ação de beber (cf.
carm. 1, 38, 8: uite bibentem) e com louvor da simplicidade (cf. carm. 1, 38,
5: simplici myrto nihil adlabores), no segundo “o biforme vate” fecha o livro
com uma não tênue22 asa (cf. carm. 2, 20, 1-3: Non usitata nec tenui ferar /
penna biformis per liquidum aethera / uates), anunciando já o monumentum
do carm. 3, 30. Se, por im, o primeiro inaliza com ódio ao luxo pérsico,
em oposição à simplicidade (cf. carm. 1, 38, 1: Persicos odi, puer, apparatus),
o terceiro começa com sequência de longos poemas23 e com ódio do vulgo
profano (cf. carm. 3, 1, 1: Odi profanum uulgus et arceo). Portanto, se, como
dissemos, vênus em 4, 1 representa a matéria erótica, mais humilde, que se
deseja afastar, com citação do primeiro livro (carm. 1, 19, 1), melpômene, em
4, 3, transformando o poeta em cisne (cf. vv. 19-20: o mutis quoque piscibus
/ donatura cycni, si libeat, sonum), ave de apolo que representa a elevação
pindárica, mencionada na ode precedente (cf. carm. 4, 2, 25: multa Dircaeum
leuat aura cycnum), relaciona-se com o terceiro livro, mais sublime, em que
a musa, por im, recebe ordem de coroar o poeta com louro.

Louvor ao divino Augusto

Feita a retrospectiva da vida poética em odes dirigidas a duas deusas,


vênus e melpômene, no mesmo metro (o quarto asclepiadeu), horácio,
então, faz encômio a druso (carm. 4, 4) e a augusto (carm. 4, 5). embora este

21 não parece coincidência que no carm. 2, 10, metade do segundo livro, haja a expressão “mediania áurea”
(v. 5: auream quisquis mediocritatem).
22 acrescente-se que no programático carm. 1, 6 o poeta se deine como tenuis (cf. v. 9: conamur, tenues
grandia, dum pudor), termo técnico em poesia, e, portanto, muito signiicativo dizer-se “não tênue”.
23 São os carm. 3, 1; 3, 2; 3, 3; 3, 4; 3, 5, e 3, 6, conhecidos como “odes romanas”.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 97


poema se concentre nos elogios a deuses, vale assinalar, antes de passarmos
ao próximo hino do quarto livro, dedicado a apolo (carm. 4, 6), que augusto,
guardião da raça de Rômulo, é de origem divina (carm. 4, 5, 1-2: Diuis orte
bonis, optime Romulae / custos gentis), e já é cultuado como foram Castor
e hércules (carm. 4, 5, 33-36: te multa prece, te prosequitur mero / defuso
pateris, et Laribus tuum / miscent numen, uti Graecia Castoris / et magni
memor Herculis). augusto, como não poderia deixar de ser, tem lugar junto
aos deuses neste último livro lírico, louvado não só nos carm. 4, 4 e 4, 5, mas
também nos carm. 4, 2; 4, 14, e 4, 15.
na leitura sucessiva dos poemas24, é importante destacar como augusto
é associado a apolo, deus louvado no carm. 4, 6. o primeiro poema dirigido
ao imperador é a ode imediatamente anterior, carm. 4, 5, que se abre com
a origem divina do bonus dux e o pedido de retorno à pátria, trazendo de
novo luz aos romanos, na tópica helenística de identiicação do soberano
com o sol25 (vv. 1-8):

Diuis orte bonis, optime Romulae


custos gentis, abes iam nimium diu;
maturum reditum pollicitus patrum
sancto concilio, redi.

lucem redde tuae, dux bone, patriae. 5


instar ueris enim uultus ubi tuus
afulsit populo, gratior it dies
et soles melius nitent.

de deuses bons nascido, da raça romúlea


ótimo guardião, já estás há muito ausente;
tu prometeste breve retorno ao conselho
sagrado dos padres, retorna.

24 Para a importância da leitura sucessiva dos poemas, em que é fundamental, para o entendimento de
um, a leitura do seu antecedente e do seu subsequente, ver J. e. G. Zetzel, “horace’s Liber Sermonum:
he structure of ambiguity”, Arethusa 13, 1980, pp. 59-77. embora o artigo se concentre no estudo das
sátiras, o método vale para leitura de toda obra horaciana. Para retomada do artigo de Zetzel, ver K.
Freudenburg, he walking muse, Princeton 1993, pp. 198-211.
25 Para a tópica e louvor de augusto como deus antes do culto oicial, ver G. Pasquali, Op. cit., pp. 183 ss.

98 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


a luz, bom chefe, faz tornar à tua pátria. 5
Pois, desde que teu vulto, qual a primavera,
ao povo fulgurou, mais grato vai o dia
e reluzem melhor os sóis.

o retorno (reditus), enfatizado pela igura etimológica dada pelo verbo


(redire) que conclui a primeira estrofe, é não só de augusto, mas também da luz
que ele traz26. aqui, entendemos que, além da tópica helenística da identiicação
do imperador com o sol, como já ressaltamos, há também associação com Febo
(Φοῖβος)27, deus radiante (por vezes identiicado com o sol) louvado no poema
seguinte (carm. 4, 6), que, como veremos, é responsável tanto pela fundação
de Roma como pelo louvor da Vrbs e dos romanos. Portanto, não é sem razão
que Putnam28 assinale o eco de Diuisorte bonis, início do encômio a augusto
(carm. 4, 5, 1) no Diue, início do hino a apolo (carm. 4, 6, 1). e assim, horácio
canta diuos puerosque deorum, hinos e encômios, espécies líricas elevadas, que
caracterizam a última empreitada lírica do poeta.

Apolo, deus de roma e da Poesia

no hino a apolo, há claramente duas partes: a primeira (vv. 1-24), em


que o poeta se dirige ao deus como vingador e há uma longa digressão sobre
aquiles (vv. 5-24), e a segunda (vv. 25-44), em que se dirige a Febo como
deus da poesia, reconhece seu débito com a divindade e, por im, muda
bruscamente de destinatário: volta-se a moços e moças de um coro (cf. v. 31:
uirginum primae puerique claris). na estrofe inal (vv. 41-44) termina, então,
com a construção da fala de uma das moças do coro, em época posterior, já
casada, que reconhece a arte do poeta que compôs poema grato aos deuses.
vejamos, então, as partes e como o deus atua no poema e no livro. eis a
primeira parte (vv. 1-24):

26 Como nota e. Fraenkel, Op. cit., p. 442, a conclusão com redi, com a idéia de retorno, repercute no
primeiro verso da estrofe seguinte com redde.
27 É ainda mais relevante esta identiicação por ser assim mencionado o deus no hino seguinte (carm. 4,
6, 26: Phoebe, qui Xantho lauis amne crinis).
28 m. Putnam, Op. cit., p. 117.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 99


Diue, quem proles Niobaea magnae
uindicem linguae Tityosque raptor
sensit et Troiae prope victor altae
Pthius Achilles,

ceteris maior, tibi miles inpar, 5


ilius quamuis hetidis marinae
Dardanas turris quateret tremenda
cuspide pugnax –

ille, mordaci uelut icta ferro


pinus aut impulsa cupressus Euro, 10
procidit late posuitque collum in
puluere Teucro.

ille non inclusus equo Mineruae


sacra mentito male feriatos
Troas et laetam Priami choreis 15
falleret aulam,

sed palam captis grauis, heu nefas, heu


nescios fari pueros Achiuis
ureret lammis, etiam latentem
matris in aluo, 20

ni tuis lexus Venerisque gratae


uocibus diuum pater annuisset
rebus Aeneae potiore ductos
alite muros

Ó deus, a quem a niobéia prole


da audace língua vingador sentira,
e o raptor tício e o Ftio aquiles, quase
vencedor de alta tróia,

100 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


mor que os outros, soldado a ti somenos, 5
posto que ilho da marinha tétis,
dárdanas torres com a tremenda lança
guerreiro combatesse.

ele, qual pinho que o mordace ferro


fere ou cipreste de euros derribado, 10
ao largo cai, e em teucro campo o colo
reclina; ele encerrado

no cavalo falaz, que sacrifícios


inge a minerva, não enganaria
os imprudentes teucros e de Príamo 15
o paço em danças ledo,

mas, ai!, às claras aos cativos fero


queimaria, ó horror!, com as Gregas chamas
os ilhos infantis, e os inda ocultos
nas maternais entranhas, 20

se dos deuses o pai, cedendo aos rogos


de vênus grata e aos teus, não concedesse
a enéias os muros levantados
com mais feliz auspício.29

Como já observamos, depois de mostrar o deus como vingador da


prole de níobe, de tício e de aquiles, faz longa digressão sobre o maior dos
aqueus. aquiles, porém, não é maior do que Febo, embora seja ilho de tétis.
o deus o matou com a lecha pela mão de Páris. depois de ter narrado o
que aconteceu (vv. 5-8), passa o poeta a descrever o que teria ocorrido, se ele
não tivesse sido morto: aquiles, por seu caráter, jamais atacaria os troianos
de surpresa, no momento em que dançavam, alegres (vv. 9-16); aquiles não

29 tradução de elpino duriense in A lírica de Q. Horácio Flaco, poeta romano, Lisboa 1807.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 101


pouparia ninguém, nem crianças incapazes de falar, nem mesmo aquelas
que ainda estivessem no ventre materno (vv. 17-20), ou seja, se aquiles
tivesse entrado em tróia, nem mesmo enéias teria sobrevivido. o troiano só
conseguiu escapar, porque o maior dos aqueus não entrou na cidade e vênus
intercedeu junto a Júpiter que, vencido pelos rogos da ilha, lhe promete a
fundação da nova tróia, Roma30 (vv. 21-24). Portanto, mais do que enfatizar
o aspecto vingador de Febo, parece-nos que o poeta mostra a importância
do deus para a fundação da Vrbs. neste sentido, Febo merece ser louvado,
é digno de um hino do tocador da lira romana (cf. carm. 4, 3, 23: Romanae
idicen31 lyrae).
Por esta razão se opera a passagem do deus punidor e fundador do
início da ode ao deus Μουσαγέτης, guia das musas, que é deus da poesia
(vv. 25-30):

doctor argutae idicen haliae, 25


Phoebe, qui Xantho lauis amne crinis,
Dauniae defende decus Camenae
leuis Agyieu.

spiritum Phoebus mihi, Phoebus artem


carminis, nomenque dedit poetae 30

Citaredo, que ensinas a canora 25


talia, ó Febo, que no Xanto lavas
a melena, ó imberbe agieu, defende
da dâunia musa a honra.

Febo me deu a mim esp’rito; Febo,


do verso a arte e o nome de poeta.32 30

30 Para esta mudança, de tróia a Roma, ver e. Fraenkel, Op. cit., pp. 402-403.
31 veja que é a mesma palavra que aparecerá para identiicar o deus no carm. 4, 6, que citamos logo abaixo.
32 tadução de elpino duriense.

102 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Louva-se apolo, porque é deus que colabora para a fundação de Roma,
mas o louvor é feito por meio da poesia e, portanto, o deus que a preside
também merece ser elogiado. assim, há duplo louvor a Febo, como deus
protetor dos troianos / romanos e deus da ars carminis. Porém, tal hino é
realizado por um poeta, e é justo também que ele seja louvado. ora, horácio
faz o próprio elogio por meio de uma corista, em tempo futuro, já casada,
que declara ter sido dócil aos modos do vate, e assim fecha33 com a σφραγίς,
dando ao carm. 4, 6 caráter conclusivo (vv. 41-44):

nupta iam dices ‘ego dis amicum,


saeculo festas referente luces,
reddidi carmen, docilis modorum
uatis Horati.’

dirás tu já casada:
‘quando o século traga os festos dias,
dei carme grato aos deuses, aprendendo
do vate horácio os metros.’34

o hino, portanto, mais do que elogiar o deus, elogia o poeta que celebra
os deuses, Roma e os romanos, a poesia e o poeta35. Porém, deixa claro que
quem lhe deu o espírito (spiritus), a arte do canto (ars carminis) e o nome
de poeta (nomen poetae) foi Febo, de modo que é esse o deus que, no limite
do livro, volta a comparecer e determinar o que deve o vate cantar. Se aqui
o poeta se dirige a apolo, no im o deus se dirige a horácio.

33 de modo semelhante, o poeta assim conclui o epod. 16, 66: piis secunda uate me datur fuga. Para a
conclusão deste epodo, ver a. Cavarzere, “Vate me. L’ambiguo sigillo dell’epodo Xvi”, Aevum Antiquum
7, 1994, pp. 171-190, e a. Cucchiarelli, “eros e giambo. Forme editoriali negli Epodi di orazio”, MD 60,
2008, pp. 69-104: 98-99.
34 tradução de elpino duriense. Para estudo do metro desta ode (estrofe sáica), o mesmo do Carmen
saeculare, e possível entendimento da conclusão com a fala da corista, ver o recente trabalho de L.
morgan. musa Pedestris, Metre and meaning in Roman verse, oxford 2010, pp. 258-260.
35 Para conclusão semelhante, ver e. nogueira, Op. cit., pp. 69-75. Lembremos ainda que o louvor à poesia
que vence a morte e tudo eterniza é tema fundamental do livro, explorado, sobretudo nos carm. 4, 8 e 4,
9. destaque-se que o carm. 4, 8 ocupa posição importante, o centro do livro, e traz de volta o asclepiadeu
menor, metro usado apenas nos carm. 1, 1 e 3, 30, início e im da produção lírica precedente.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 103


ultrapassar limites: Apolo e Vênus

antes, porém, de chegar novamente a Febo do carm. 4, 15, devemos


voltar à ode precedente. ao concluir o carm. 4, 14, dedicado, sobretudo, a
celebrar as façanhas de tibério, o poeta faz elogio da paz e, por assim dizer,
depõe as armas (cf. v. 52: compositis uenerantur armis). ora, no poema
seguinte, carm. 4, 15, o poeta deseja, como bem se sabe, cantar as armas (cf.
carm. 4, 15, 1-2:... uolentem proelia me loqui / uictas e urbis...), mas Febo o
censura e o faz cantar a Pax Augusta. além desta transição do carm. 4, 14 ao
4, 15, ambos escritos em estrofe alcaica, no último verso do primeiro alude-se
à deusa que aparece no último verso do segundo36: vênus (cf. carm. 4, 14, 52:
compositisVENERantur armIS; carm. 4, 15, 32: progeniem Veneris canemus).
daí, se lembrarmos do início do livro, veremos que o poeta estabelece, com a
deusa, os limites de sua última obra lírica: vênus é a segunda palavra da ode
de abertura (cf. carm. 4, 1, 1: Intermissa, Venus, diu) e a penúltima palavra da
ode de conclusão (cf. carm. 4, 15, 32: progeniem Veneris canemus). Porém, a
vênus inicial é aquela das guerras eróticas e a inal é a geradora dos romanos,
a alma vênus (cf. carm. 4, 15, 31-32:... almae / progeniem Veneris...), que nos
remete ao início do De rerum natura de Lucrécio37 (cf. 1, 1-2: Aeneadum
genetrix, hominum diuomque uoluptas, / alma Venus...).
deixemos por ora vênus e voltemos atenção novamente a Febo que,
desta vez, mais que objeto do canto, é personagem que atua, que decide a
matéria desta ode. vejamos o carm. 4, 15 na íntegra:

Phoebus uolentem proelia me loqui


uictas et urbis increpuit lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
uela darem. Tua, Caesar, aetas

36 Para outra aproximação horaciana de uenerantur e Veneris, citamos ainda o Carmen saeculare, vv.
49-50: quaeque uos bobus uenerantur albis / clarus anchisae Venerisque sanguis, o que reforça ainda
mais a alusão avênus no carm. 4, 14, 52, poema que termina com elogio da paz, tema da ode seguinte.
Para a passagem do Carmen saeculare, ver a. barchiesi, he uniqueness of the Carmen saeculare and its
tradition, in t. Woodman & d. Feeney, Traditions and contexts in the poetry of Horace, Cambridge 2002,
pp. 107-123: 109-110; para a parte inal dos carm. 4, 14 e 4, 15, ver m. Putnam, Op. cit., p. 295.
37 Para o confronto das passagens de Lucrécio e horácio, ver m. Putnam, Op. cit., pp. 295 ss., e a. Cucchiarelli,
Op. cit. 2006, p. 130.

104 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


fruges et agris rettulit uberes, 5
et signa nostro restituit Ioui
derepta Parthorum superbis
postibus et uacuum duellis

Ianum Quirini clausit et ordinem


rectum evaganti frena licentiae 10
inIecit emouitque culpas
et ueteres reuocauit artis,

per quas Latinum nomen et Italae


creuere uires, famaque et imperi
porrecta maiestas ad ortum 15
solis ab Hesperio cubili.

Custode rerum Caesare non furor


ciuilis aut uis exiget otium,
non ira, quae procudit ensis
et miseras inimicat urbis. 20

non qui profundum danuuium bibunt,


edicta rumpent iulia, non Getae,
non Seres inidique Persae,
non tanain prope lumen orti;

nosque et profestis lucibus et sacris 25


inter iocosi munera Liberi
cum prole matronisque nostris
rite deos prius apprecati

uirtute functos more patrum duces


Lydis remixto carmine tibiis 30
Troiamque et Anchisen et almae
progeniem Veneris canemus.

Cantar querendo eu guerras e vencidas


cidades, me increpou cotm a lira Febo,
que pelo mar tirreno não soltasse
curtas velas. aos campos

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 105


férteis searas tua idade, ó César, 5
torna, e os pendões repõe ao nosso Jove,
arrancados dos Partos aos soberbos
portais, e já vazio

de duelos cerrou Quirinal Jano,


enfreou a licença, que vagava 10
fora da ordem; removeu os crimes;
trouxe as antigas artes,

pelas quais o Latino nome e as Ítalas


forças cresceram, e do hespério leito
té o berço do sol chegou do império 15
a majestade e a fama.

Sob a guarda de César, civil guerra


nem força, ou ira que as espadas forja
e as míseras cidades torna imigas,
fará desejar ócio. 20

nem o que bebe o alto danúbio os Júlios


editos romperá, nem Getas, Seres,
ou Persas iniéis, nem os que habitam
junto do tânais rio.

nós entre os prêmios do jocoso baco, 25


nos dias sacros e profanos, tendo
pios com nossos ilhos e matronas
primeiro orado aos deuses,

co’as Lídias frautas misturando o verso,


segundo nossos padres, cantaremos 30
os claros capitães, e tróia, e anquises,
e a prole de alma vênus.38

38 tradução de elpino duriense.

106 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


o poema é claramente dividido em duas partes39: a primeira, com
as quatro estrofes iniciais (vv. 1-16), em que se celebram, com verbos no
perfeito (cf. v. 2: increpuit; v. 5:rettulit; v. 6: restituit; v. 9: clausit; v. 11: iniecit
e emouit; v. 12: reuocauit; v. 14: creuere; v. 15: porrecta est) o retorno da paz e
a restauração dos costumes; a segunda, com outras quatro estrofes (vv. 17-
32), em que se celebra, com verbos no futuro (cf. v. 18: exiget; v. 22: rumpent;
v. 32: canemus) a paz na vida presente e futura de Roma.
ora, este louvor à paz, à Pax Augusta, é, por assim dizer, ordenado
por Febo, deus com que se identiica o imperador, já no carm. 4, 5, como
assinalamos acima. além disso, por uma série de confrontos lexicais e
pela utilização do mesmo metro, a estrofe alcaica, os carm. 4, 5 e 4, 15 se
relacionam de maneira clara, como encômios a augusto. Reforça ainda esta
relação a colocação, imediatamente anterior a essas odes dirigidas ao bonus
dux e custos rerum, de duas outras odes encomiásticas para os enteados40: o
carm. 4, 4 a druso e 4, 14 a tibério41.
assim, se se quer um altar poético42 dedicado à Pax Augusta, “guerras
e cidades vencidas” não podem ser cantadas, como queria o vate. apolo,
então, repreende o poeta com sua lira e, logo na primeira estrofe, temos uma
recusatio43 da épica, gênero que canta, nos dizeres do próprio horácio, “as
tristes guerras” (cf. ars 72-73: Res gestae regumque ducumque et tristia bella /
quo scribi possent numero, monstrauit Homerus). Portanto, o poeta não deve

39 Seguimos aqui e. Romano, Op. cit., p. 921, e P. Fedeli e i. Ciccarelli, Op. cit., pp. 601.
40 Ressalte-se que, embora haja louvor aos enteados, não se deixa de elogiar também augusto.
41 Para este paralelo, ver e. Romano, Op. cit., p. 921.
42 Para a relação do carm. 4, 15 com monumentos romanos em honra de augusto, em especial com a Ara
Pacis Augustae, ver m. Putnam, Op. cit., pp. 327-339. Para a importância de apolo no monumento, ver
m. beard. “Gli spazi degli dei, le feste”, in a. Giardina, Roma Antica, bari 2000, pp. 35-56. Para uso das
imagens por augusto, remetemos ao célebre estudo de P. Zanker, Augusto e il potere delle immagini,
torino 1989, e P. martins, Imagem e poder: considerações sobre a representação de Otávio Augusto, São
Paulo, 2012 [no prelo].
43 Para estudo das fontes de horácio (Calímaco, fr. 1, 21 ss. Pf.; virgílio, ecl. 6, 3 ss.; Propércio 3, 3, 1 ss.),
ver e. Fraenkel, Op. cit., p. 449; m. Putnam, Op. cit., pp. 265-271; a. Cavarzere Op. cit. 1996, pp. 252-253;
P. Fedeli e i. Ciccarelli, Op. cit., pp. 601-609. em horácio, além do carm. 4, 15, há recusatio nos carm.
1, 6; 1, 19; 2, 12. acrescentamos também que, diferentemente de seus predecessores, horácio não usa
o hexâmetro para a recusatio, metro usado pelos épicos desde homero, como está claro na ars, citada
acima. É diferença importante, já que os outros simulam o compor épica pelo metro e pela matéria,
enquanto horácio só pela matéria.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 107


lançar suas pequenas velas pelo mar tirreno, ou seja, o encômio, ainda que
seja espécie lírica elevada, é humilde em confronto com a sublime épica44.
os romanos, então, celebrarão a prole da alma vênus: enéias e sua
descendência, incluindo, obviamente, augusto, pertencente à gens Iulia.
assim, se o poeta inicia o último livro com um olhar retrospectivo, com o
particípio passado intermissa45, encerra sua obra, seu outro monumentum
lírico, com um olhar prospectivo, com o futuro canemus. diferentemente
da conclusão do carm. 3, 30 em que, após descrever o caráter perene de sua
poesia, deseja a coroa de louros dada pela própria melpômene, aqui, no
carm. 4, 15, a conclusão, ainda que encerre o livro, não o conclui, mas aponta
para um cantar futuro; canto de celebração das origens de Roma à idade de
augusto que já se deu nesta obra, mas que se perpetuará46, ultrapassando
assim os limites do livro. em outras palavras, a conclusão poderia fazer tudo,
projetar no futuro a perenidade da poesia, mas não poderia concluir.

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44 ou ainda, como quer Pseudo-acrão (Keller, 373, 6-7), uma matéria grande não deve ser encetada por
um engenho não adequado (magnam materiam non suicienti ingenio... non debere committi).
45 o verbo indica justamente a interrupção entre a primeira e a última produção lírica pela publicação do
primeiro livro de Epístolas.
46 de acordo com e. Romano, Op. cit., p. 925, seguida depois por outros, este inal é homenagem também
a virgílio: “non è stato abbastanza notato che, come in 1, 6 la recusatio della poesia epica conteneva una
rainata citazione omerica (...), così in questa recusatio inale, che fa da suggello alla sua produzione
lirica, orazio, mentre prende le distanze dall’epica, non può fare a meno di ricordare il poema di
virgilio. e se all’inizio della raccolta, in 1, 6, la grande epica era quella di omero, oggetto di citazione
per tecnica allusiva, qua la nuova grande epica è quella di virgilio, i nuovi eroi sono i troiani, enea e
la sua discendenza, compreso augusto. L’ultima ode di orazio si chiude sì con una lode per il princeps,
ma anche con un omaggio al grande poeta contemporaneo.” e, portanto, de novo, além do louvor a
augusto, há elogio da poesia que eterniza tudo.

108 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


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110 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


o LECTISTERNIUM E A PLACATIO DEORUM:
um ESTuDo DE CASo Em TITo LÍVIo,
AB URBE CONDITA, 22, 9-10

Claudia Beltrão da Rosa

terra mouit; in fanis publicis, ubi lectisternium erat, deorum capita,


quae in lectis erant, auerterunt se, lanxque cum integumentis, quae
Ioui apposita fuit, decidit de mensa. oleas quoque praegustasse mures
in prodigium uersum est. ad ea expianda nihil ultra, quam ut ludi
instaurarentur, actum est (Tito Lívio. Ab urbe condita, 40, 59,7)

há alguns anos, estudos sobre os discursos e as práticas religiosas


romanas vêm revelando aspectos antes insuspeitados da sociedade romana,
especialmente no período tradicionalmente intitulado “republicano”, e a
religião romana demonstrou ser um objeto de pesquisa de fundamental
importância para a compreensão da experiência romana no tempo e no
espaço. mas não apenas no que tange à religião, como também em relação a
outras manifestações culturais da antiguidade romana, é preciso ultrapassar o
enquadramento do pensamento judaico-cristão. É certo que muitos estudos
nos habituaram, nos últimos anos, à cautela contra qualquer pretensão de
objetividade radical na pesquisa histórica e à observação da alteridade.
acreditamos, contudo, que a reiteração da necessidade da observação das
categorias discursivas, religiosas e ideológicas romanas merece ser feita, posto
que o próprio desenvolvimento dos estudos sobre as práticas e os discursos
religiosos romanos ainda surge pleno de ideias fundadas em “premissas
cristianizantes” (cf. beaRd, CRaWFoRd, 1985), que agem como pano de
fundo de boa parte da pesquisa sobre a religião romana, analisando-a a partir
de categorias religiosas judaico-cristãs1.

1 cf. as discussões do tema em SCheid, 2010.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 111


desenvolvemos atualmente as atividades do projeto de pesquisa
intitulado Religio romana: uma análise das instituições religiosas romanas em
discursos tardo-republicanos, e nosso recorte temático é somente uma seção
mínima do sistema religioso romano: os sacra publica, que podemos deinir,
grosso modo, como o discurso e as práticas religiosas “oiciais” da cidade de
Roma2. acreditamos que esta religião “oicial” era um elemento central e
crucial dos sistemas religioso e institucional romanos como um todo. Com
isso, buscamos entrever algo da atmosfera religiosa na urbs e do seu papel
como fundamento de sua ordem e de sua coesão.
voltaremos nosso olhar, neste texto, para um discurso sobre uma prática
religiosa em particular, o lectisternium3, forma de banquete ritual que incluía
as divindades como comensais4 inserido num conjunto de ritos expiatórios
– piacula – no contexto da ii Guerra Púnica, tendo como premissa a
ideia de que a religio romana não era uma miscelânea de cultos e práticas,
mas um sistema religioso integrado, e que sua lógica, suas práticas e seu
desenvolvimento ainda estão por ser explorados, observando-se analogias
entre as ações e decisões da esfera religiosa e as da esfera sociopolítica como
um todo. Se a religião era parte integrante da sociedade romana, a pesquisa
sobre os fenômenos religiosos precisa, portanto, considerá-los no contexto
especíico da cultura romana, e não tomá-los como acidentes isolados.

2 uma pista para a distinção entre sacra publica e sacra priuata é fornecida por Festo: os ritos públicos são
aqueles realizados a expensas públicas em benefício do povo (...) em contraste com os ritos privados que
são realizados em benefício de indivíduos, das famílias, dos descendentes (Publica sacra, quae publico
sumptu pro populo iunt quaeque pro montibus pagis curis sacellis; at priuata, quae pro dingulis hominibus
familiis gentibus iunt. ed. Linsay, 1930:350). Sacra priuata, como podemos depreender, não eram apenas
os ritos da religio domestica, mas tudo o que não se inseria na deinição de publica sacra, ou seja, os ritos
realizados em benefício do povo romano (pro populo), por oiciantes sancionados e inanciados pelo
tesouro público, com participação ativa de magistrados e sacerdotes, diante da grande massa do público
assistente, que geralmente participava – no todo ou em parte – do banquete após o sacrifício e em outras
ações, e.g., nas grandes procissões que caracterizavam as supplicationes. a própria deinição de sacrum
é reservada para coisas e lugares consagrados oicialmente pelos pontíices (cf. Gaio. Inst. 2,5; ulpiano,
Dig. i, 8.9.). Podemos assumir que a deinição de sacra – ao menos juridicamente – seguia os mesmos
passos que deiniam o ritual público, ou seja, um objeto ou lugar que se tornava sagrado através de um
ato ritual especíico – a consecratio – que devia ser autorizado pelo Senado, presidido por sacerdotes e
magistrados e promovido com fundos públicos.
3 o nome deste ritual é derivado da expressão latina lectos sternere, indicando a disposição de lecti,
correspondentes aos klinai gregos, nos quais os comensais participavam do banquete deitados.
4 abordamos o tema do banquete ritual do tipo lectisternia em duas publicações recentes, cf. beLtRÃo,
2012; 2011.

112 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Para o tema em questão, tito Lívio é a nossa principal fonte, e rituais e
práticas religiosas ocupam um lugar central na narrativa do Ab urbe condita.
o autor, com frequência, dedica-se a temas religiosos, a notícias de fundações
de templos, a rituais, a registros de prodígios etc. Seu texto veicula imagens
de como um romano deveria cultuar os deuses, tal como era concebido em
seu tempo, e o próprio autor chama a atenção para isso em vários momentos5.
tito Lívio escreveu nos últimos anos da República tardia e nos primeiros
tempos do Principado, e é preciso ter cautela no tratamento de seus textos,
pois se referem a eventos ocorridos muitas vezes séculos antes de sua redação.
em relação à utilização da documentação literária para o estudo de
fenômenos religiosos do período republicano, invariavelmente tardios,
atualmente percebemos duas tendências da historiografia internacional
da religião romana antiga: uma tendência cética em relação à obtenção de
qualquer conhecimento seguro sobre o período arcaico romano (e.g. RÜPKe,
2009; ando, 2009) e uma tendência mais otimista que se apoia nos estudos
da etimologia e do ritual, renovando o interesse pela releitura das fontes
textuais (e.g. noRth, 1989; SCheid, 2003)6. mesmo que textos como os
de tito Lívio projetem dados e conteúdos religiosos de seu próprio tempo
no passado, acreditamos que a análise da documentação literária, mesmo
tardia, pode ser profícua para o estudo da religião romana7, observando-se
que o registro literário nos apresenta tais rituais num momento tardio de seu
desenvolvimento, ou mesmo em sua recuperação pela restauratio augustana,
ressaltando-se, contudo, que a tradição literária validava novos cultos e práticas
inovadoras com referência a antigas tradições religiosas (cf. noRth, 1989).

5 ver, e.g., seu comentário sobre a deuotio de décio mus (AVC, 8, 11) e nossos comentários sobre o suposto
“ceticismo” (uma projeção moderna) de tito Lívio em beLtRÃo, 2006.
6 Ch. Smith, por exemplo, apresenta o ritual das Parentalia, arqueologicamente invisível, mas presente
em textos, apesar de rituais funerários comporem um dos mais signiicativos elementos dos registros
arqueológicos do Lácio entre 1000 e 500 a.C (Smith, 2007: 32), além de tesse Stek ter apontado a
ausência – ao menos aparente – do registro arqueológico sobre os rituais das Compitalia em espaços
rurais (SteK, 2008); suas discussões defendem a importância da documentação textual, cotejada à
análise do registro arqueológico, para a compreensão dos rituais.
7 esses textos trazem, nitidamente, alguns elementos de fundo arcaico (cf. d. hal. 7, 70, 2-3: tas archaias
kai topicas historias), que sobreviveram não fossilizados, ou seja, num contexto dinâmico, pois cada
geração reconstituía e ressigniicava o ritual e o mito.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 113


o primeiro lectisternium em Roma de que se tem notícia ocorreu em 399
a.C., e, no século iv a.C., Roma envolveu-se em guerras com diversos povos
do Lácio e de regiões vizinhas, como os povos samnitas. interações – belicosas
ou não – com outros povos traziam então grandes transformações sociais e
institucionais à urbs, e o lectisternium de 399 a.C. foi apresentado por tito
Lívio como remedium para uma peste que dizimava os rebanhos, em meados
da guerra contra veios, que fora declarada um prodigium pelo Senado (AVC,
5. 13; beLtRÃo, 2012). os duum uiri sacris faciundis8, após consultarem
os Livros Sibilinos, recomendaram a introdução de um tipo inédito de
cerimônia na urbs: estátuas (simulacra) de divindades foram exibidas
publicamente como comensais de um banquete9, do qual participaram
senadores, sacerdotes e magistrados e, paralelamente, ocorreram vários ritos
de hospitalidade e partilha em casas particulares, envolvendo toda a urbs
num grande movimento que visava ao restabelecimento das boas relações
entre seres divinos e seres humanos, pax deorum-pax hominum, incluindo
práticas religiosas inovadoras e divindades recém-instaladas na urbs10.
Cinco lectisternia são mencionados para o século iv a.C., todos
vinculados a diiculdades para Roma. São distintos de, mas associados às
supplicationes (SCuLLaRd, 1981: 21). Segundo t. Lívio, esses lectisternia
foram idênticos ao primeiro, de 399 a.C., na forma e nas personagens
divinas e humanas (AVC, 8, 25,1), e também foram vinculados a epidemias
e a fomes, visando a minimizar as pestilentiae e favorecer o abastecimento.
no século iii a.C., contudo, um lectisternium seguiu outra lógica. não mais

8 “os dois homens para os sacrifícios”, colégio sacerdotal que atingirá o número de 15 membros, os
quindecem uiri sacris faciundis, responsáveis pela consulta aos Livros Sibilinos e questões relativas à
introdução de divindades e cultos em Roma (cf. beLtRÃo, 2006: quadro dos principais sacerdócios
públicos romanos).
9 É possível que o ritual tenha sido importado de cidades gregas, nas quais os banquetes rituais são
bem atestados, e beard, north & Price chamam a atenção para a referência a algumas divindades de
origem grega, como apolo e Latona, geralmente associadas à proteção contra pestes (beaRd, noRth,
PRiCe, 1998, 1: 63 ss; 2: 130). do mesmo modo, John Scheid depreende que os duum uiri de 399 a.C.
foram inspirados pela tradição grega da teoxenia, incluindo a disposição dos comensais em leitos, aos
pares e, paulatinamente, este ritual foi adotado em festivais e santuários diversos (SCheid, 1985; cf.
tb. FÉvRieR, 2008a).
10 Remetemos à nossa análise do lectisternium de 399 a.C, para o detalhamento das ações religiosas descritas
por tito Lívio, AVC, 5,13: beLtRÃo, 2012.

114 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


se tratava de uma pestilentia, mas da ameaça cartaginesa, no contexto da
batalha de trasímene (AVC. 22, 10, 9). dessa vez, doze deuses participaram
do banquete, nos quais entrevemos os Dii Consentes: a tríade Capitolina,
vesta, vulcano, marte, Ceres, vênus, apolo, diana, mercúrio e netuno,
num espetáculo de potências divinas que poderiam socorrer os romanos.
neste texto, observaremos o relato de tito Lívio sobre os piacula, em Ab
urbe condita, 22, 9-10, buscando ampliar a compreensão deste tipo de rituais
religiosos que promoviam importantes inovações na urbs.

Prodigia e piacula em Ab urbe condita, 22, 9-10

Podemos deinir os prodigia como signos divinos que ocorriam fora do


ritual, de modo não solicitado:

as listas de prodígios transmitidas por tito Lívio fornecem bons indícios


sobre tais fenômenos e seu papel na religio romana. desastres naturais,
fomes, pragas, epidemias, eventos meteorológicos incomuns, tempestades
violentas, nascimentos monstruosos, a irrupção de animais selvagens no
espaço urbano etc., dentre os prodigia há pouco do que hoje consideraríamos
milagroso ou sobrenatural. tais eventos, contudo, escapavam às possibili-
dades de previsão humana, ou seja, à ordem “normal” das coisas e da vida,
necessária à manutenção da comunidade enquanto tal e, para os romanos,
implicavam que algo no mundo estava “errado”, o que vinculavam a uma
ruptura das relações pax deorum-pax hominum, que garantia a ordem do
mundo (beLtRÃo, 2012: 71-72).

um prodígio, seja de ordem meteorológica, animal ou vegetal, era sempre


funesto, revelando uma ruptura da pax deorum. trata-se de uma mensagem
divina, desenvolvendo-se não somente uma exegese dos prodígios e ritos
expiatórios especíicos (bLoCh, 2002), mas também procedimentos jurídico-
religiosos para esconjurar seus efeitos (FÉvRieR, 2008b). a procuratio
prodigiorum tinha, como primeiro objetivo, expiare (eliminar; expurgar) o
perigo e, como segundo, placaredeorum (apaziguar os deuses), reconciliando os
mortais com as divindades, mediante algumas cerimônias que se constituíam
como uma forma de comunicação entre humanos e divindades. Certamente,

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 115


essa comunicação era uma troca desigual; os humanos viam-se sempre em
posição de inferioridade (veYne, 2000: 12-13).
observemos o texto de tito Lívio:

Q. Fábio máximo era então ditador pela segunda vez. no mesmo dia de sua
entrada na magistratura, convocou o senado e começou discutindo assuntos
religiosos; deixou claro aos senadores que C. Flamínio errou mais por sua
negligência em relação às cerimônias e suas obrigações religiosas do que por
sua imprudência como general, e que os próprios deuses, sustentou, deveriam
ser consultados sobre as medidas necessárias para dirimir sua ira e, assim,
decretou que os decênviros fossem chamados a consultar os Livros Sibilinos,
uma medida até então adotada somente quando os mais alarmantes portentos
eram reportados. após inspecionarem os Livros do destino11, [os sacerdotes]
informaram ao senado que o voto feito a marte devido à guerra não fora
integralmente realizado, que deveria ser renovado de modo ampliado e que
deveriam ser realizados ludi magni para Júpiter, e um templo para vênus ericina
e um para mens deveriam ser prometidos. um lectisternium e supplicationes12
deveriam ser feitos, e um uer sacrum13 deveria ser dedicado se a guerra fosse
bem sucedida e a república permanecesse como era no início da guerra. o
senado, como Fábio estaria permanentemente ocupado com as necessidades
da guerra, com a aprovação unânime do colégio dos pontíices, designou o

11 beard, north & Price chamaram a atenção para o incremento de elementos de origem grega na religião
romana nos séculos iv e iii a.C. (1998, v. 1: 63ss); os próprios Livros Sibilinos têm uma suposta origem
grega. a despeito das airmações de escritores romanos antigos, pesquisas recentes vêm insistindo na
presença de elementos etruscos nos Livros Sibilinos anteriores ao incêndio do templo de Iuppiter Optimus
Maximus no Capitólio, ocorrido em 83 a.C. (invasão de Sila), com a consequente perda dos oráculos.
em 76 a.C., uma comissão senatorial procurou refazer a coleção de oráculos, e os XVuirisacris faciundis
declararam autêntica uma coleção de livros de Samos, que foram enviados a Roma. esses “novos” Livros
Sibilinos eram, sem dúvida, gregos, mas pode ter havido correspondências entre os primeiros oráculos
e os libri ostentaria (sobre prodígios) e os libri fatales (destino) etruscos: ver esp. taKÁCS, 2008: 67-70.
12 as supplicationes, neste caso,inseriam-se nos ritos expiatórios, tratando-se de orações feitas pela população
nos templos e altares, diante das divindades, apresentadas ao público em seus puluinaria (assentos). tal
rito poderia ocorrer, igualmente, no caso de vitórias e no im de situações consideradas – pelo Senado
– ameaçadoraspara toda a urbs (e.g., Cícero, Cat. iii, 10).
13 um rito excepcional no contexto dos piacula consistia em a comunidade dedicar as primícias – animais
e vegetais – nascidas entre as Kalendae de março e de abril, do ano seguinte ao voto. no caso desta
proposta de uer sacrum, o voto se restringia a animais.

116 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


pretor m. emílio para cuidar que tudo fosse feito no tempo certo (AVC, 22, 9)14.
após essas resoluções terem sido tomadas pelo senado, o pretor consultou o
colégio [dos pontíices]; L. Cornélio Lêntulo, o pontifex maximus, aconselhou
que, em primeiro lugar, o povo deveria ser consultado sobre a questão do uer
sacrum, pois este tipo de voto não podia ser realizado sem o consentimento
do povo. (...) então, um lectisternium foi realizado durante três dias sob a
supervisão dos decênviros dos [livros] sagrados; seis leitos foram exibidos
publicamente, um para Júpiter e Juno, outro para netuno e minerva, o terceiro
para marte e vênus, o quarto para apolo e diana, o quinto para vulcano e
vesta, o sexto para mercúrio e Ceres. depois foram prometidos os templos.
Q. Fábio máximo, como ditador, prometeu o templo de vênus ericina, porque
fora determinado pelos Livros do destino que a promessa deveria ser feita por
aquele que possuísse a maior autoridade (maximum imperium) na cidade. t.
otacílio, como pretor, prometeu o templo de mens. (AVC, 22, 10)15.

14 na íntegra: Q. Fabius Maximus dictator iterum quo die magistratum iniit uocato senatu, ab dis orsus, cum
edocuisset patres plus neglegentia caerimoniarum quam temeritate atque inscitia peccatum a C. Flaminio
consule esse quaeque piacula irae deum essent ipsos deos consulendos esse, peruicit ut, quod non ferme
decernitur nisi cum taetra prodigia nuntiata sunt, decemuiri libros Sibyllinos adire iuberentur. Qui inspectis
fatalibus libris rettulerunt patribus, quod eius belli causa uotum Marti foret, id non rite factum de integro
atque amplius faciundum esse, et Ioui ludos magnos et aedes Veneri Erycinae ac Menti uouendas esse, et
supplicationem lectisterniumque habendum, et uer sacrum uouendum si bellatum prospere esset resque publica
in eodem quo ante bellum fuisset statu permansisset. Senatus, quoniam Fabium belli cura occupatura esset, M.
Aemilium praetorem, ex collegii pontiicum sententia omnia ea ut mature iant, curare iubet.(LivY, history
of Rome. books XXi-XXii. b. o. Foster (ed.). Loeb Classical Library.harvard university Press, 1929).
15 na íntegra: His senatus consultis perfectis, L. Cornelius Lentulus pontifex maximus consulente collegium
praetore omnium primum populum consulendum de uere sacro censet: iniussu populi uoueri non posse.
Rogatus in haec uerba populus: “Velitis iubeatisne haec sic ieri? Si res publica populi Romani Quiritium ad
quinquennium proximum, sicut uelim [uou]eamque, salua seruata erit hisce duellis, quod duellum populo
Romano cum Carthaginiensi est quaeque duella cum Gallis sunt qui cis Alpes sunt, tum donum duit populus
Romanus Quiritium quod uer attulerit ex suillo ouillo caprino bouillo grege quaeque profana erunt Ioui ieri,
ex qua die senatus populusque iusserit. Qui faciet, quando uolet quaque lege uolet facito; quo modo faxit probe
factum esto. Si id moritur quod ieri oportebit, profanum esto, neque scelus esto. Si quis rumpet occidetue
insciens, ne fraus esto. Si quis clepsit, ne populo scelus esto neue cui cleptum erit. Si atro die faxit insciens,
probe factum esto. Si nocte siue luce, si seruus siue liber faxit, probe factum esto. Si antidea senatus populusque
iusserit ieri ac faxitur, eo populus solutus liber esto”. Eiusdem rei causa ludi magni uoti aeris trecentis triginta
tribus milibus, [trecentis triginta tribus] triente, praeterea bubus Ioui trecentis, multis aliis diuis bubus albis
atque ceteris hostiis. Votis rite nuncupatis supplicatio edicta; supplicatumque iere cum coniugibus ac liberis
non urbana multitudo tantum sed agrestium etiam, quos in aliqua sua fortuna publica quoque contingebat
cura. Tum lectisternium per triduum habitum decemuiris sacrorum curantibus: sex puluinaria in conspectu
fuerunt, Ioui ac Iunoni unum, alterum Neptuno ac Mineruae, tertium Marti ac Veneri, quartum Apollini ac
Dianae, quintum Volcano ac Vestae, sextum Mercurio et Cereri. Tum aedes uotae. Veneri Erycinae aedem Q.
Fabius Maximus dictator uouit, quia ita ex fatalibus libris editum erat ut is uoueret cuius maximum imperium
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GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 117


um ano antes, em 218 a.C., doze prodígios foram reportados de vários
pontos da itália, incluindo a etrúria, o território dos sabinos e o Piceno, a
Sardenha e a Sicília. nesse ano, um exército romano fora arrasado em trébia
e, no início de 217 a.C., outro fora aniquilado no Lago trasímene. os remedia
desse ano incluíram, em Roma, um nouemdiale sacrum16 em resposta à
chuva de pedras no Piceno; uma lustratio urbis17; um lectisternium, além
de sacrifícios a várias divindades. Fora do território urbano, houve a oferta
de 40 libras de ouro a Juno Sospita, doação a cargo das matronas da elite
senatorial romana; uma procissão de sacerdotes e magistrados romanos ao
santuário do Lanuvium18 (SChuLtZ, 2006), um lectisternium em Caere e
uma supplicatio para Fortuna no mons Algidus. os romanos, nota bene, não
apenas teriam reconhecido prodigia em solo estrangeiro, mas também que
expiações (piacula) teriam lugar fora do solo romano (cf. oRLin, 2002).
após a derrota de trasímene, Q. Fábio máximo foi nomeado dictator e,
segundo tito Lívio, seu primeiro ato foi o de persuadir o senado de que era
necessário apaziguar os deuses, consultando-os por intermédio dos Livros
Sibilinos. essa consulta é apresentada pelo autor como extraordinária, já que
a consulta aos Livros pelos decem uiri sacris faciundis, sacerdotes responsáveis
pela guarda e pela consulta aos oráculos, ocorria em caso de prodígios, e não
após desastres militares. a consulta resultou em várias demandas: a repetição
do juramento a marte, sob a alegação de que o primeiro – realizado no início
da guerra – não fora feito apropriadamente; a realização de ludi magni para
Júpiter; a dedicação de templos a vênus ericina e a mens; uma supplicatio; um
lectisternium e a promessa de um uer sacrum no caso de Roma ser vitoriosa19.

16 este ritual era geralmente associado a prodígios meteorológicos, incluindo sacrifícios durante nove dias.
17 uma procissão solene e catártica realizada pelos colégios sacerdotais em torno do território urbano;
trata-se, portanto, de um rito expiatório (piaculum) que puriicava o solo urbano.
18 Roma assumia, assim, Juno Sospita e o santuário do Lanuvium como parte integrante da religio romana, ao
passo que, ao assumi-los, reforçava os laços com Lanuvium e, por extensão, com outros socii (SChuLtZ,
2006; oRLin, 1997, 2010).
19 no contexto da ii Guerra Púnica, os romanos lançaram mão, em ocasiões diversas, de um grande “arsenal
expiatório”: sacrifícios, um nouemdiale sacrum, lectisternia, supplicationes, promessas de templos a novas
divindades, uma promessa de uer sacrum e, mesmo, um sacrifício humano (cf. tito Lívio, AVC, 21, 62;
22, 1, 14-20; 22, 9-10; 22, 57).

118 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


a análise da documentação nos permite depreender que os romanos
eram notoriamente abertos a inluências externas e incluíam elementos
religiosos estrangeiros como parte de seu próprio sistema religioso, e
eric orlin observa como tais inovações afetavam a autodeinição romana
(oRLin, 2002). explorando a inclusão de divindades e cultos novos na urbs,
correlata às modiicações das deinições territoriais na República média
(ca. séculos iv e iii a.C.), orlin apresenta conclusões interessantes sobre a
ressigniicação das fronteiras da “romanidade” (cf. tb. oRLin, 2010).
ao longo de séculos, numerosos cultos, divindades e práticas rituais
encontraram um lugar na urbs – e o exemplo de hércules no forum Boarium
denota que essas interações religiosas confundem-se com as próprias origens
da cidade (oRLin, 1997; CoaReLLi, 1988)20. a inclusão ou a adoção de
novas divindades e novos cultos na urbs vêm sendo vistas à luz da expansão
romana, na qual os elementos e fenômenos religiosos acompanhavam a
ampliação do território e a anexação ou incorporação de novos cidadãos
(noRth, 1989: 9-11). uma grande diiculdade da pesquisa, contudo, é que
a documentação textual é tardia, não havendo textos que nos permitam
observar detalhes – mesmo individuais ou de um grupo social em particular
– de tais inclusões, no sentido de quais elementos eram importantes ou
determinantes para deinir quais cultos, divindades ou grupos humanos
seriam ou não incluídos na urbs. dispomos de documentos mais abundantes
e precisos a partir dos dois últimos séculos da República, mesmo no que
tange à documentação arqueológica. a inclusão de cultos e de divindades
trazia, certamente, diiculdades, e os métodos pelos quais os romanos
incluíam cultos, divindades, rituais e sacerdócios é um rico campo de
pesquisa. tal processo não era automático, e nem todo culto ou divindade
era integrado, bem como nem toda comunidade era admitida à cidadania.
através do relato de tito Lívio sobre as atividades religiosas dos piacula,
percebemos que o sucesso de aníbal fora, então, tomado como uma quebra
da pax deorum-pax hominum, à qual os romanos atribuíam a existência e o

20 atualmente há um relativo consenso entre historiadores da religião romana de que essa abertura religiosa
corresponde a uma abertura política, no sentido da concessão de direitos de cidadania, com ou sem
voto (SCheid, 2003; 2010; beaRd, noRth & PRiCe, 1998, v.1: 313 ss).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 119


sucesso da urbs, e depreendemos que a manutenção da unidade pró-romana
na itália era, então, algo vital para Roma.

o lectisternium dos Doze Deuses

observemos agora alguns aspectos do lectisternium em particular:


em primeiro lugar, a ligação entre o sacrifício e o banquete21. há uma
conexão reconhecida, mas não necessária, entre o sacrifício e o banquete
(RÜPKe, 2009; SCheid, 2005; 1985; beLtRÃo, 2011; 2012), e os templos
costumavam ter cozinhas (culinae) e tricliniae anexos para a preparação
do banquete22. Jörg Rüpke pergunta, em relação ao lectisternium, quem é o
anitrião e quem é o hóspede, e argumenta:

de Plauto a marcial, de 200 a.C. a 100 d.C, um convite divino feito a um ser
humano signiicava “morte” (Plauto, Rudens, 362; marcial, 9, 91). a expres-
são era irônica. Quando seres humanos convidavam os deuses, a intenção
geralmente era de que a divindade viesse “morar” em um templo que tinha
sido construído. o uso da palavra lectisternium o expressa, por isso, é melhor
traduzi-la não por “banquete dos deuses”, e sim por “disposição dos leitos”. a
palavra se refere à preparação para um banquete (lectus: leito para comer, cor-
respondente ao gr. Kliné); (...) o banquete é oferecido pelos próprios deuses (e
me reiro à representação e não à realidade, que, decerto, envolve seres humanos

21 marcel detienne e Jean-Pierre vernant, em 1979, organizaram uma obra que atualmente é referência
obrigatória para o estudo dos banquetes rituais, demonstrando que sacriicar é estabelecer relações que
organizam a sociedade e instituem o lugar de cada um de seus membros: seres humanos em relação às
divindades, cidadãos em relação a não-cidadãos, cidadãos entre si, e cidadãos em relação ao corpo social,
a partir da divisão de um alimento ou de uma vítima, “alimentando” as relações sociais e deinindo a
hierarquia cívica (detienne, veRnant, 1979).
22 J.-P. vernant já chamara a atenção para tal tipo de sacrifício, que unia seres humanos e seres divinos numa
festa alimentar, ressaltando tratar-se de um esquema simbólico nítido, que une separando (veRnant,
1981: 33). Para veyne, que segue aqui a linha de interpretação de vernant, a menos que se compreenda
comensalidade por um viés rigorosamente durkheimiano, no qual os deuses são projeções da sociedade
e a sociedade humana banqueteava consigo mesma, simbolizando sua totalidade, percebe-se que “dans
le monde gréco-romaine, il n’arrive jamais que dieux et hommes forment um tout, une seule societé;
même s’ils mangent non loin les uns des autres, ou même s’ils sont commensaux aux mêmes tables, il
y aura toujours entre eux l’abîme...” (2000: 18). Remetemos, também, à análise de John Scheid do ritual
dos sacerdotes arvais, que incluía banquetes rituais, nos quais mortais e imortais não eram reunidos
em leitos em torno do alimento, e o convite aos deuses surge como metáfora (SCheid, 1990).

120 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


conduzindo bustos ou estátuas de deuses, comida etc.). estaríamos supondo
que os seres humanos atuariam como anitriões, gerenciando o banquete em
solo sagrado com os utensílios e acessórios ali encontrados? improvável. além
disso, sabemos que além da comida, traziam a si mesmos, pessoas comiam a
carne que fora tornada sacra e “liberada” pelo toque do oiciante, tornando-a,
assim, profana (RÜPKe, 2009: 144).

a participação num banquete radicava na premissa da igualdade dos


convivas; não a igualdade jurídica, teórica, dos ciues, mas uma paridade de
nível e status social, daí que o ius publica epulandi, o direito de consumir
a carne sacriicial a expensas da comunidade, era um privilégio reservado
a magistrados, senadores e sacerdotes públicos (Suetônio, Aug. 35.2). o
sacrifício e o banquete, portanto, deiniam hierarquias. os seres divinos
“comiam” primeiro, e recebiam as exta, consideradas as partes nobres das
vítimas, pois são os órgãos vitais (uitalia: varrão, LL, 5. 112; Plínio, NH,
11. 186). os seres humanos comiam depois; dentre esses, o oiciante comia
em primeiro lugar – e não aquele que lidava diretamente com o animal
sacriicado23. Participavam também os ministri, crianças ou adolescentes
que levam a água, ou a toalha, ou caixas de incenso para o sacrifício, e
outros nobres. o público, a grande massa da população, assistia ao ritual.
Segundo Rüpke,“a noção romana de ‘público’ denota um espaço limitado no
qual apenas as classes superiores podiam comunicar-se entre seus próprios
membros” (RÜPKe, 1996: 146). no entanto, observamos que a população
romana participava ativamente das supplicationes e de outros ritos que
formavam os piacula, segundo sua responsabilidade religiosa na urbs.
o lectisternium incluía um complexo de símbolos; gestos, expressões
verbais, sons e objetos inserindo o indivíduo no mundo intersubjetivo do
conhecimento comum que resultava na ação, na prática comunal. os rituais
religiosos legitimavam as instituições sociais, garantindo-lhes um status
ontológico, localizando-as num quadro de referências cósmicas. Garantindo
uma deinição ontológica para a sociedade que, per se, é imaterial – e,
consequentemente, sua legitimação –, ligava o tempo presente, elemento

23 havia escravos especializados para tal, os uictimari e cultrarii, que surgem nas imagens carregando o
limus do açougueiro ou os cultri, as facas do sacrifício.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 121


mutável, a uma constante, ou seja, ao sistema de referencia cósmico e eterno,
sagrado. Sua inalidade última era a prosperidade da comunidade e, por
extensão, o sucesso e a manutenção do status quo. Religião e política eram,
portanto, interligadas; os cidadãos mais importantes eram também aqueles
que detinham os sacerdócios e os papeis rituais mais destacados.
a população conhecia esse sistema sacrificial, e o praticava tanto
domesticamente quanto nas cidades e nos santuários rurais24. uma restrita
participação dos cidadãos nos sacra publica, contudo, vem sendo apontada
como um limite à religio romana, entendida (cf. bendLin, 2000, numa
crítica ao conceito de religião cívica) como uma religião de elite, com pouca
penetração nas camadas populares, ou seja, a maioria da população de
Roma, mas John Scheid (2010) chama a atenção para o princípio romano
do tres faciunt collegium, ou seja, era suiciente que três pessoas devidamente
autorizadas para tal, em termos institucionais, participassem ativamente
do ritual para que um rito pro populo ocorresse e fosse bem-sucedido,
bem como observamos que as práticas da religio romana distribuíam as
responsabilidades religiosas por todo o corpo social (na domesticidade,
nos collegia, nas magistraturas etc.). desse modo, os cidadãos agiam
religiosamente segundo seu nível de responsabilidade pública (beLtRÃo,
2003); o lectisternium era um rito excepcional pro populo e, como tal,
era realizado pelos seus representantes. a religião romana é uma criação
institucional da cidade, e os cidadãos se beneiciavam dos ritos mesmo que
não estivessem isicamente presentes à sua realização.
observemos agora a própria forma do lectisternium, desta feita no que
tange à participação das divindades – ou de seus simulacra –, o que garantia
uma potente epifania, uma manifestação das divindades, não apenas por meio
de sons e outros sinais, fenômenos naturais, mas também uma presença visual
excepcional. o espaço, os elementos rituais, os simulacra e a performance se
combinavam para criar não apenas a expectativa, mas também a realização
de uma epifania, criando uma experiência afetiva para todos os participantes.

24 além de outros lectisternia já terem sido realizados, nos quais o povo romano também formava a plateia
do banquete, e apesar de muitos elementos de sua forma provavelmente terem sido resultado de interações
religiosas com cidades gregas, o lectisternium possivelmente remete a antigos rituais realizados no âmbito
da religio domestica, como o daps oferecido a Júpiter pelo paterfamilias (Iuppiter Dapalis: cf. Catão, Agr. 50,
131-32; Cícero. De or. iii, 19,73), e ao banquete oferecido a Picumnus e Pilumnus (var. de uita, 81, 82).

122 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


o poder das imagens era reforçado pela performatividade do aparato ritual,
bem como as imagens reforçavam a potência afetiva e social do ritual, posto
que os simulacra “moravam” em seus templos, longe dos olhos do público,
salvo raras vezes em que eram trazidas a público em grandes cerimônias. o
lectisternium as apresentava aos olhos de todos.
depreendemos o poder das divindades presentes ao banquete, mediado
pelo ritual religioso, no qual elementos rituais agiam sobre as sensibilidades
como mediadores da presença divina, e a experiência afetiva era potencializada
(cf. GRaF, 2004: 117-118). a percepção visual da presença da divindade em
simulacra criava, portanto, uma tensão que intensiicava os elementos espaciais
e a teatralidade da performance ritual. os simulacra realizavam a presença
da divindade, e o sacrifício manifestava a intervenção da potência divina no
mundo natural e humano (WeRtS, 2006; PLatt, 2011).
Para Stanley tambiah, a performance ritual é uma metalinguagem para
os participantes, e apresenta como exemplo as iniciações religiosas, nas
quais o iniciados aprendem conteúdos e ganham uma nova identidade e um
repertório interpretativo do ritual, e cita a repetição que reitera os elementos
do culto, criando a expectativa (tambiah, 1981: 133). o aparato e a
performance ritual são poderosos meios de se consolidare reiterar a ordem
social, vinculando seus participantes a um modo de ver e sentir as coisas, a
autoridade, as hierarquias, as distinções sociais, e Catherine bell, insistindo
sobre a importância da análise do vocabulário e das ações rituais, relevando
sua eicácia ao levar os grupos humanos a assunções sobre a “ordem das
coisas” e sobre seu “lugar” nesta ordem, chama a atenção também para
as fórmulas arcaizantes, mesmo quando há novos elementos no ritual, ou
seja quando se trata de um novo ritual, ajudando a separar o momento
do ritual de outras experiências da vida quotidiana, como ocorre no caso
em observação (beLL, 2009:160). Para ela, em rituais deste tipo, o público
é chamado a expressar publicamente sua ligação e aderência aos valores
religiosos da comunidade, através de uma comemoração hiperbólica, com
grande quantidade de comida e bebida, com o uso extravagante de riquezas:

o ritual reinvoca a mítica interdependência humano-divina, transmitindo-a às


novas gerações, e cumpre as obrigações inerentes a ela, numa representação sim-
bólica eicaz da unidade social e espiritual dos participantes (beLL, 2009: 120).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 123


observemos algumas inovações no lectisternium em questão: em
primeiro lugar, se o número de dias foi diminuído de oito para três dias, o
número de divindades foi dobrado de seis para doze. as personagens divinas
também merecem nossa atenção: se os primeiros lectisternia, segundo o
modelo do de 399 a.C., traziam os pares apolo-Latona, hércules-diana
e mercúrio-netuno, divindades com potencial para dirimir pestilentia e
garantir o abastecimento de Roma (beLtRÃo, 2012), os novos pares não
parecem mais terem sido reunidos com intenções proiláticas especíicas.
observemos as frases de tito Lívio:

então, um lectisternium foi realizado durante três dias sob a supervisão dos
decênviros dos [livros] sagrados; seis leitos foram exibidos publicamente, um
para Júpiter e Juno, outro para netuno e minerva, o terceiro para marte e
vênus, o quarto para apolo e diana, o quinto para vulcano e vesta, o sexto
para mercúrio e Ceres (avC 22,10).

trata-se de uma organização de pares na qual surge sempre uma


entidade masculina e uma feminina, sendo a masculina citada em primeiro
lugar25. Caroline Février, analisando a cena a partir das personagens, tece
alguns comentários que consideramos relevante para nossos objetivos:

Podemos supor que os leitos foram repartidos entre as iguras masculinas do


grupo dos olímpicos, citadas por ordem de importância: Júpiter, senhor dos
céus e soberano dos deuses; netuno, deus todo-poderoso do elemento líquido;
marte, deus da guerra; apolo, deus da salubridade pública, mas também, e já,
deus das vitórias militares; vulcano e mercúrio, por im, cujos papeis parecem
menos determinantes (FÉvRieR, 2008a: 152).

25 Ressalte-se que a visão androcêntrica de mundo parece ter sido preponderante; as divindades “masculinas”
são citadas sempre em primeiro lugar, e as divindades femininas não recebem as honras em lecti, e sim
em sellae, participando do banquete sentadas, como as matronae. Cf. também o futuro epulum Iouis, nos
quais a “tríade Capitolina” era formalmente convidada ao banquete, após o sacrifício, e os senadores
banqueteavam a expensas públicas, e Juno e minerva, em sendo divindades femininas, não tinham direito
a um leito: “... feminae cum uiris iubantibus sedentes cenitabant, quae consuetudo ex hominum conuictu
ad diuina penetrauit, nam iouis epulo in tectulum, iuno et minerua in sellas ad cenam inuitabantur”
(val. max. ii, 1-2); cf. beLtRÃo, 2011.

124 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


a autora aventa a possibilidade de um ritual que revela uma interpretatio
já realizada, unindo as divindades, contudo, em pares inéditos na tradição
religiosa romana, mas recorrentes na tradição grega, aproximando, e.g.,
marte de vênus, e não de bellona; apolo de diana (cuja interpretatio com
Ártemis já era lugar comum no Lácio), e não de Latona, sua mãe; minerva
com netuno, seguindo a ligação tradicional de atená/Poseidon em atenas
etc., estabelecendo uma imagem do panteão romano inexistente até então,
e que teve grande sucesso nos séculos futuros, chegando a nossos dias como
sendo o panteão romano, uma reunião não de divindades guerreiras – que a
lógica do problema em questão, ou seja, as derrotas militares, demandaria – e
sim uma reunião de divindades com potencial para inserir Roma no âmbito
das interações religiosas do mediterrâneo helenístico, granjeando o apoio das
cidades helenísticas ou helenizadas (cf. FÉvRieR, 2008a: 151-154).
o lectisternium, como um ritual expiatório visando à placatio deorum, é
uma ação excepcional e atinge toda a comunidade política; trata-se de uma
das manifestações mais características da religio romana, que rege as relações
entre seres humanos e divinos, com sua tônica na eicácia dos procedimentos.
os lectisternia instituídos, a partir de 399 a.C., como um novo modo de
procuratio prodigiorum, ressurgem com destaque no contexto da ii Guerra
Púnica, em 218 e 217 a.C, revelando-nos o papel das práticas de piacula na
inclusão de novas formas rituais e de divindades nos sacra publica e o papel
da religio romana na redeinição da identidade romana num momento
crucial para a própria existência da urbs e de sua inserção no contexto
mediterrânico; a inovação religiosa foi um dos principais mecanismos de
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rITo E ComEmorAÇÃo NA
TrAGÉDIA ALCESTE DE EurÍPIDES

Jaa Torrano

Alceste, a mais antiga das tragédias supérstites de eurípides, representada


de 438 a. C., relete sobre a condição de mortal, a distinção entre a vida dos
mortais e a vida dos deuses imortais, e as necessárias implicações dessa
distinção, sob quatro pontos de vista, a saber, dos deuses, dos numes,
dos heróis e dos homens mortais. em tão ampla e profunda investigação
do sentido dos limites inerentes à condição de mortal, os ritos funerários
revelam o seu sentido de resistência ao caráter inelutável da morte, e a
comemoração atualiza o imaginário mítico tradicional com que se evocam
os tempos míticos e se explicam as relações numinosas e o convívio heróico
entre os deuses imortais e os homens mortais, personagens deste drama, a
saber, os deuses apolo e morte, e os mortais diversamente associados a esses
deuses, a rainha alceste, o rei admeto, marido de alceste, o ancião Feres, pai
de admeto, e o semideus héracles, ilho de Zeus e hóspede de admeto; o coro
de cidadãos de Feras, cidade da tessália, a serva anônima, que assiste a rainha
moribunda, e o servo anônimo, que interpela héracles, ixam a perspectiva
estritamente humana dos meros mortais. a comemoração, ao evocar as
personagens dos tempos míticos, produz e revela a contemporaneidade (e
assim também a extemporaneidade) desses quatro diversos (ora confusos,
ora distintos) pontos de vista, a saber, dos deuses, dos numes, dos heróis e
dos homens mortais.
o prólogo (euR. Alc. 1-76), com as suas duas partes: o monólogo de
apolo (euR. Alc. 1-27) e o diálogo entre apolo e morte (euR. Alc. 28-76),
conigura uma unidade enantiológica de ambos os deuses, o luminoso
Phoîbos, vernaculizado “Febo” (Phoîbe, euR. Alc. 30) e o sombrio hánatos,
traduzido “morte”, (hánaton, euR. Alc. 24), e assim deine a ambígua
condição dos mortais no jogo inerente a essa unidade enantiológica dos
deuses apolo, dito Phoîbos, “Luminoso”, e hánatos, “morte”, ilho da noite
tenebrosa.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 129


a tragédia Alceste de eurípides e os mitos hesiódicos de Prometeu têm
em comum a mesma perplexidade perante os limites distintivos e deinitivos
dos deuses imortais e dos homens mortais. Recorrendo à imagem hesiódica,
pode-se dizer que o tema desta tragédia é a participação dos homens mortais
na partilha da opulência entre os deuses imortais. Como na Teogonia
hesiódica, nesta tragédia, a partilha é presidida por Zeus, ou, por outra, Zeus
é o princípio dessa partilha.
na primeira cena, apolo interpela a casa de admeto com o afeto de
nela ter convivido como servo, guardador dos rebanhos de seu hospedeiro,
e declara que Zeus está na origem desse exílio no qual se deu o seu convívio
com admeto, o dono da casa: por Zeus ter matado asclépio, o ilho de
apolo, apolo em fúria matou os Ciclopes fabricantes da arma de Zeus com
que Zeus matou asclépio, e por isso Zeus, em represália, obrigou apolo a
servir como guardador de rebanhos na casa de admeto (euR. Alc. 1-9). o
coro diz na segunda antístrofe do párodo a razão de Zeus matar asclépio:
este “ressuscitava” os mortos, antes de Zeus destruí-lo com o raio (euR.
Alc. 123-129). a razão de Zeus para matar asclépio é, pois, a necessidade
de distinguir entre os deuses imortais e os homens mortais; asclépio, ilho
de apolo, apagava essa distinção.
a reverente piedade de apolo, correspondente à correlata reverente
piedade de admeto, quando eram um hóspede do outro, duplica-se em
dolo, quando apolo engana Partes (Moiras, euR. Alc. 12), em favor de seu
hospitaleiro amigo admeto. apolo persuade as deusas Partes a aceitarem
outro morto em vez de admeto, se alguém se dispusesse a morrer por ele
(euR. Alc. 12-14).
na tragédia Eumênides de Ésquilo, o coro homônimo das ilhas da
noite acusa apolo de persuadir as deusas Partes (Moíras, ÉSQL. Eum. 724)
a tornarem os mortais imortais. Pode-se dizer que, nesse drama de Ésquilo,
essa acusação contra apolo cessa de ter importância, no inal do julgamento,
com a vitória da causa de apolo; mas, nesta tragédia Alceste de eurípides, ao
contrário, o dolo de apolo contra as deusas Partes em benefício de admeto
se revela tão contraproducente quanto, nos mitos hesiódicos de Prometeu,
a tentativa por Prometeu de trapacear o sentido de Zeus em benefício dos
homens mortais (heS. T. 507-616, T. D. 42-105). Pode-se dizer que ambas
as tentativas de dolo – a de apolo contra Partes e a de Prometeu contra o

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sentido de Zeus – são contraproducentes não só por não abolir a distinção
entre os deuses imortais e os homens mortais, mas ainda pela contrapartida
dos sofrimentos dos mortais.
o dolo de apolo reside em tentar ganhar dos sombrios deuses ínferos
uma participação maior nos luminosos deuses súperos para um dos mortais,
admeto, seu amigo hospitaleiro. apolo persuade Partes a preservarem
admeto, permitindo uma permuta, se alguém se dispusesse a morrer por
admeto. nem o pai, nem a mãe de admeto se dispõem a morrer por ele, mas,
sim, alceste, sua esposa. alceste assim se torna digna de honras heróicas e
de veneração devidas aos deuses ínferos. no entanto, essa mesma permuta,
proposta e defendida por apolo, a favor de admeto, implica, para admeto,
a morte em vida e o desejo de morrer.
no dia de alceste morrer, apolo sobranceiro diante da casa de admeto
não abandona a defesa da casa que lhe é cara, sem defrontar morte; e, quando
impossibilitado de persuadir morte a retroceder sem levar a mulher que
lhe fora prometida, apolo ousa afrontar morte com a predição de que um
hóspede de admeto a obrigará a fazer igualmente o que agora lhe é pedido,
sem que então por isso morte obtenha a gratidão de apolo, uma vez que ela
o fará à força e não por benevolência.
ante a ameaçadora previsão de apolo, morte permanece inabalável, em
sua resolução de levar consigo aos ínferos a vítima porque a consagrou no
rito da tonsura, quando se corta o pelo do crânio da vítima sacriicial, antes
da imolação (euR. Alc. 72-76).
o párodo (euR. Alc.77-135) reitera, em perspectiva de mortais, a
interpelação do deus apolo à casa de admeto e à presença de morte, e
assim contrasta a altivez e sobranceria do deus adivinho onisciente com a
alita expectativa, entre mortais, da morte da rainha, de quem se diz ter sido
a melhor esposa, para o seu marido (euR. Alc.77-85).
inteiramente voltado para o objeto de sua indagação, o coro não se
apresenta a si mesmo e só é identiicado como cidadãos de Feras na fala da
serva no inal do primeiro episódio (euR. Alc.212).
no párodo, o primeiro dos dois pares de estrofe e antístrofe (euR. Alc.77-
112) elenca os principais itens de rituais funerários e do comportamento
esperado perante a morte, enquanto o coro observa o palácio e os possíveis
indícios do que está acontecendo. o segundo par de estrofe e antístrofe (euR.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 131


Alc.113-130) constata a inevitabilidade da morte, de que não se conhece
nenhum sacrifício que nos possa preservar, e morto asclépio, o ilho de
apolo, que restituía a vida aos mortos, fulminado pelo raio de Zeus, todos
os sacrifícios já feitos se mostraram ineicazes, donde se conclui que para os
males da morte não há remédio.
no primeiro episódio (euR. Alc. 136-212) o coro interroga a serva do
palácio se a rainha está viva ou morta, ouve uma resposta ambígua (euR.
Alc.141), cuja duplicidade de sentido prefigura a resposta de admeto
à pergunta de héracles a respeito de alceste (euR. Alc. 518-522). essa
ambiguidade entre vivo e morto, entre ser e não ser, primeiro prenunciada
(euR. Alc.141), e depois ampliicada (euR. Alc. 518-522), conigura uma
avaliação do que possa ser, para os mortais, a condição de mortais.
Cobrada explicação, a serva diz que a rainha está prostrada e agoniza
(euR. Alc.143). ante a violência e inexorabilidade do dia fatídico, o coro
reitera o louvor da esposa moribunda e comisera o marido que será viúvo,
a serva ecoa louvor (hoías hoíos euR. Alc. 144, eukleés / aríste / aríste euR.
Alc. 150-152), e relata os preparativos, por parte dos servos e da rainha,
para as cerimônias funerárias (euR. Alc.149, 158-162). a rainha é a melhor
esposa, para o seu marido, porque – segundo a serva – nada se mostraria
como maior honra ao marido do que consentir em morrer por ele (euR.
Alc.154-155). a serva reproduz prece da moribunda rainha à deusa héstia,
e descreve o ritual de despedidas executado pela rainha (EUR. Alc. 158-195).
tendo tudo observado, a serva avalia, concluindo, com o grau de gravidade
do inesquecível, a dor de admeto, por ter fugido à sua própria vez de morrer
(euR. Alc. 197-198). Por im, a serva diz que comunicará à rainha a presença
do coro, identiicado enim como “antigo amigo” do rei (euR. Alc. 212).
um traço heróico distingue essa rainha do comum dos mortais: o
conhecimento prévio do dia em que ela mesma deve morrer, um aspecto
notável de sua participação no deus apolo, o adivinho. a dolorosa ironia
reside em que esse conhecimento prévio torna mais pungente o sentimento
da perda e mais opressiva a iminência da morte.
o primeiro estásimo (euR. Alc. 213-237) tem um só par de estrofe e
antístrofe. no párodo, coristas individuais ou semicoros alternavam suas
falas, no esforço ansioso de observar o que acontecia no palácio real e
investigar a situação da rainha; no primeiro estásimo, coristas individuais

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ou semicoros, cônscios dessa situação, agora alternam as falas, em busca de
recurso ante o impasse da morte anunciada.
a estrofe invoca Zeus, e indaga se haveria algum recurso diante da
morte, além do luto e de cerimônias fúnebres; apela ao poder maior dos
deuses; invoca apolo como rei Peã, o médico, e suplica-lhe um meio de
livrar-se de morte e de hades (euR. Alc. 213-225).
a antístrofe interpela admeto – ausente, e não só lamenta a sua dolorosa
perda da esposa, mas ainda avalia se os mais terríveis modos de morrer são
tão dolorosos, ou menos dolorosos, que essa perda da esposa; e ainda lastima
a devastadora doença que leva a melhor esposa, sob a terra, ao ctônio hades
(euR. Alc. 226-237).
o coro constata que as núpcias não alegram mais do que aligem, porque
as de admeto e alceste trouxeram a morte precoce de alceste; e prediz que o
peso dessa perda de sua esposa imporá a admeto um luto perene que tornará
a sua vida impossível (euR. Alc. 238-243).
inaugurado por essa previsão sombria do coro, o segundo episódio (euR.
Alc. 238-434) mostra o potencial destrutivo das despedidas dos esposos e do
ilho eumelo. Primeiro, alceste se despede do Sol, da terra, vê birreme barco
de Caronte e ouve-lhe a voz, admeto lamenta cada despedida e interpela a dor
“de mau nume” (ô dýsdaimon, EUR. Alc. 258); alceste invoca o transporte sob
o olhar de alado hades, admeto lastima a dor comum aos ilhos (euR. Alc.
259-265); alceste, perto de hades e da noite sombria, despede-se dos ilhos;
admeto lastima, diz-se nulo com a morte de alceste e venerar o amor dela,
isto é, o vínculo com ela (sèn gàr philían sebómestha, euR. Alc. 279); alceste
proclama o seu valor, contra a desvalia dos pais de admeto, e declara a sua
última vontade: que os ilhos não tenham madrasta (euR. Alc. 305); admeto
faz votos de ressentimento e ódio contra os pais, e votos de luto e de ilimitada
devoção pela esposa moribunda (euR. Alc. 336-368); alceste pede aos ilhos
testemunho desses votos de admeto (euR. Alc. 371-373), lega os ilhos e os
cuidados maternos a admeto, e declara que não vive mais (euR. Alc. 374-392);
o ilho eumelo e admeto lamentam (euR. Alc. 393-415); e o coro consola
argumentando com a necessidade e universalidade da morte (euR. Alc. 416-
419); admeto decreta luto comum a todos os tessálios (420-434).
o segundo estásimo (euR. Alc. 435-475) reitera a ordem das imagens
da morte, ressaltando o caráter negativo e destrutivo das despedidas do casal

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 133


real de Feras. a primeira estrofe situa a rainha perante o cenário sombrio
dos ínferos: o palácio de hades, a morada sem sol, o deus da cabeleira
negra, velho condutor de mortos, lago aqueronte, lenho birreme (euR. Alc.
435-444). a primeira antístrofe prevê que a rainha, depois de morta, será
celebrada com cantos em esparta e atenas (445-453). a segunda estrofe
manifesta o desejo (impossível) de trazê-la de volta do palácio de hades,
das águas de Cocito; exalta o valor de alceste, por ter morrido pelo esposo,
e considera horrenda a hipótese de admeto ter outra esposa (euR. Alc.
454-466). a segunda antístrofe reitera a acusação – já feita pela falecida – de
desvalia, contra os pais de admeto, em contraste com o valor de alceste.
Por morrer em vez de seu marido, a rainha exige do marido tal
reconhecimento que tornaria impossível toda a vida restante do marido,
convertida em vazia expectativa da morte, somente aliviada pela interlocução
em sonhos com a rainha morta. o coro, porque reconhece o valor conferido
à rainha pela renúncia da própria vida em favor do marido, reconhece ainda
a validade das últimas exigências da rainha, e assim a indissolubilidade da
dívida de luto absoluto contraída pelo rei admeto.
o terceiro episódio (euR. Alc. 476-567) tem três cenas, a primeira com
héracles e o coro (euR. Alc. 476-508), a segunda com admeto e os mesmos
(euR. Alc. 509-550), e a terceira com admeto e o coro, sem héracles (euR.
Alc. 551-567).
na primeira cena (euR. Alc. 476-508), héracles, a serviço de euristeu
de tirinto, passa por Feras, em busca da quadriga de diomedes da trácia. o
coro diz que o dono da quadriga é ilho de ares, e os cavalos “com voracidade
devoram varões” (euR. Alc. 494) e héracles recorda o caráter irrecusável de
sua tarefa e os seus combates anteriores contra ilhos de ares, cujos nomes
evocam animais do domínio de apolo: “Lupino” (Lykáoni, euR. Alc. 503)
e “Cisne” (Kýknoi, euR. Alc.-504). “Cisne” é o delinqüente que assaltava os
peregrinos visitantes de apolo a caminho de delfos, morto por héracles, em
missão de apolo, no poema hesiódico O Escudo de Héracles.
na segunda cena (euR. Alc. 509-550), admeto saúda héracles, “ilho
de Zeus, prole de Perseu” (Diòs paî, euR. Alc. 509); héracles nota a “tonsura
de luto” (kourâi... penthímoi, 512) e quer saber a identidade do morto, mas
admeto escamoteia a resposta. Quando héracles diz que “o pai está no
tempo, se está partindo” (patér ge mèn horaîos, eíper oíkhetai, EUR. Alc.

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516), parece regar as sementes da cizânia entre o ilho e o pai, plantadas
pelas última palavras da falecida. a ambigüidade de admeto, na resposta à
pergunta de héracles a respeito da rainha alceste, relete da ambigüidade
entre viva e morta como uma imagem da condição de mortal; admeto diz:
“morto é o moribundo, e ao ser, não é mais” (tethnekh’ ho méllon k’anthád’òn
ouk ést’ éti, euR. Alc. 527), mas o ilho de Zeus, héracles, refuta essa
confusão, assinalando clara diferença entre “ser e pensar que não é” (euR.
Alc. 528); admeto escamoteia a resposta, ocultando a morte da mulher, para
convencer héracles a aceitar sua hospitalidade.
na terceira cena (euR. Alc. 551-567), admeto justiica a recepção do
hóspede e a ocultação do luto com o argumento de que a fama de não ser
hospitaleiro não diminuiria, mas agravaria, o infortúnio.
no terceiro estásimo (euR. Alc. 568-605), a primeira estrofe interpela
o palácio do rei admeto em Feras, e evoca a hospitalidade a apolo pítio “de
bela lira” (eulýras, euR. Alc. 568), que aceitou ser pastor, tocar lauta nas
colinas e multiplicar o rebanho (euR. Alc. 568-577). a evocação dos tempos
heróicos de convívio com o deus apolo tem um caráter eminentemente
comemorativo da interlocução entre deus e mortal.
dado que essa comemoração se dá numa contemporaneidade, a primeira
antístrofe interpela Febo e evoca a alegria e a dança dos animais selvagens ao
som da cítara do deus: linces, leões e corças (euR. Alc. 579-587).
em consonância com essa contemporaneidade do deus e do herói, a
segunda estrofe descreve a riqueza do palácio e a extensão de seu domínio,
limítrofe com a sombria estrebaria do Sol, sob o céu dos molossos, e com o
litoral inóspito do monte Pélion no mar egeu (euR. Alc. 588-596).
em contraste com essa antiga contemporaneidade, a segunda antístrofe
retorna à presente situação do palácio, quando o rei oculta o luto, em respeito ao
dever de hospitalidade com héracles, e louva a atitude do rei, considerando-a
nobre sabedoria e veneração aos deuses (euR. Alc. 597-605).
o quarto episódio (euR. Alc. 606-961) tem quatro cenas que contrastam
a situação de admeto e do coro no contexto dos ritos funerários, com as
atitudes de héracles antes e depois de o servo informá-lo dos males presentes
na casa de admeto.
na primeira cena (euR. Alc. 606-613): admeto anuncia e descreve o
rito da ekphorá, a remoção do féretro da rainha e a procissão e saudações à

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 135


morta; e o coro anuncia a entrada de Feres, pai de admeto, com um adorno
funerário e aparentemente com intenção de participar dos ritos funerários.
na segunda cena (euR. Alc. 692-733): Feres louva a excelência que
alceste revela ao morrer por seu ilho admeto (euR. Alc. 692-628); agón entre
admeto, que repele o pai das honras à morta, e Feres, que repele as injúrias do
ilho, invertendo o sentido de suas acusações; a esticomitia contrapõe as razões
e as injúrias (euR. Alc. 710-729); Feres parte prevendo represália à morte de
alceste por parte do irmão dela acasto (euR. Alc. 730-733); admeto sai para
os funerais (euR. Alc. 734-740), o coro saúda alceste e menciona hermes
ctônio, hades e a noiva de hades (euR. Alc. 741-746). Saem todos, o coro e o
rei, para participar da procissão e cumprir os ritos funerários.
na terceira cena (euR. Alc. 747-860), o servo reprova o comportamento
de héracles hóspede a fazer feliz banquete em casa que guarda luto; héracles
reprova o aspecto sombrio do servo, e como antídoto à inevitabilidade da
morte aconselha que se goze cada dia, mais que isso depende da sorte (“o mais
é de sorte” tàd’álla tês týkhes, euR. Alc. 789), e que se honre a deusa Cípris,
(euR. Alc. 791), convida a beber, e sentencia que “mortais devem pensar
como mortais”, (óntas thnetoùs thnetà kaì phroneîn khreón, euR. Alc.799);
o servo revela a morte da rainha e o caráter escrupuloso da hospitalidade
de admeto; héracles se informa onde é o túmulo de alceste e propõe-se a
salvá-la de “morte, rainha negrialada dos mortos” por meio de violência, com
o plano alternativo de ir “à casa sem sol”, persuadir “a donzela e o senhor
dos ínferos” (euR. Alc.852), e trazê-la de volta ao rei em retribuição pela
escrupulosa hospitalidade. o plano alternativo revela relações amistosas do
ilho de Zeus com os deuses ínferos; e ambos os planos revelam o caráter
divino do herói semideus.
na quarta cena (euR. Alc. 861-961), feitos os funerais, ao retornar à sua
casa, admeto tem horror ao palácio de sua viuvez, inveja os inados e deseja
“morar naquele palácio” (EUR. Alc. 867), tal refém morte levou ao palácio
de hades (euR. Alc. 861-872). a propósito, Christiane Sourvinou-inwood
observa que “a expressão ritual do desejo de juntar-se ao falecido era parte
do rito funerário grego” (SouRvinou-inWood, Christiane – Tragedy
and Athenian Religion, 2003, p. 319).
Prossegue o pranto ritual cantado alternamente por admeto e o coro
(kommós, euR. Alc. 861-934): na primeira estrofe, o coro consola admeto,

136 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


que lastima a dor da perda (euR. Alc. 873-878); na primeira antístrofe, o coro
consola admeto, que lastima não estar no hades, além do lago ctônio (euR.
Alc. 879-902); na segunda estrofe, o coro consola admeto (euR. Alc. 903-
912), que contrasta os presentes funerais com a sua festa de núpcias (euR.
Alc. 913-925); na segunda antístrofe, o coro conclui o consolo, ressaltando o
valor da vida convivida que permanece no vivo e a universalidade da perda
pela morte (euR. Alc. 926-933). no fecho do quarto episódio, o rei admeto
considera que o nume da falecida teve melhor sorte que o dele mesmo,
porque a falecida está preservada da dor e está livre das fadigas, e constata que
ter morrido teria sido melhor que sobreviver à esposa. (euR. Alc. 935-961).
o quarto estásimo (euR. Alc. 962-1005) tem dois pares de estrofe e
antístrofe.a primeira estrofe (euR. Alc. 962-972) descreve como superior aos
mortais a força coerciva da morte (Anánkes, euR. Alc. 965), para a qual não se
descobriu, nos escritos trácios, antídoto oriundo de orfeu, nem se descobriram
remédios de apolo, colhidos pelos médicos, ditos ilhos de asclépio.
a primeira antístrofe (euR. Alc. 973-983) descreve a inexorabilidade
dessa deusa, que não ouve preces nem aceita sacrifícios, e associa a
inexorabilidade dessa deusa a Zeus. essa associação da deusa Anánke,
entendida como a superioridade coerciva do deus hánatos, “morte”, a Zeus
Perfectivo (teleutãi, euR. Alc. 979) tem paralelo hesiódico não só na dupla
inserção das “Partes” (Moirai) no catálogo dos ilhos da noite e no catálogo
dos ilhos de Zeus e têmis, na Teogonia de hesíodo, mas também na reiterada
conclusão de ambas as narrativas hesiódicas do mito de Prometeu, a saber:
“não se pode furtar nem transgredir o sentido de Zeus” (heS. T. 613), e
“assim não há como evitar o sentido de Zeus” (heS. T. D. 105).
na segunda estrofe (euR. Alc. 984-994), o coro consola admeto perante
a superioridade coerciva da deusa (subentendido Anánke, “Coerção”),
alegando a irreversibilidade e universalidade do fenômeno da morte. Perante
a coerciva e inelutável presença dessa deusa, o louvor da falecida como a
mais nobre de todas as esposas é o último recurso de sua participação nos
deuses súperos, perpetuada no epitáio e no epicédio pelo culto funerário.
na segunda antístrofe (euR. Alc. 995-1005), o coro recomenda honrar
alceste “como aos deuses” e prevê que preces serão dirigidas a ela como a
“venturoso nume”. Às cerimônias fúnebres e aos ritos funerários vistos como
o último recurso diante da morte, acrescenta-se o perene culto funerário, por

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 137


inclusão da rainha morta no culto dos numes e dos deuses ínferos, como a
última e extrema consolação à dor da perda pela morte.
o êxodo (euR. Alc. 1006-1163) tem um sentido misteriosamente
ambíguo: que valem as palavras de héracles a admeto a respeito da mulher
que se revela uma imagem sem voz da rainha morta? a ambiguidade reside em
que a esposa é restituída ao esposo numa efígie símil à falecida, mas sem voz,
reduzida ao silêncio; a ambiguidade inerente à imagem nesta muda efígie oscila
não somente entre a verdade e a mentira, mas também entre a vida e a morte.
o contexto da fala de héracles a admeto – a saber, as relações de
hospitalidade, presididas por Zeus hóspede – e o caráter do falante – a saber,
héracles, ilho de Zeus, e libertador de Prometeu nos poemas hesiódicos e
no drama esquiliano – recomendam que se tomem as palavras de héracles
como bem intencionadas com admeto, como condizentes com o falante e,
portanto, apresentadas, na perspectiva do drama, como verdadeiras. ora, a
verdade vista por essa perspectiva, no entanto, tem a qualidade temporal do
convívio dos heróis e dos deuses, e assim se distingue do horizonte temporal
do convívio dos homens consigo mesmos na polis.
a perspectiva do drama leva a crer que, no terceiro dia depois de ser
resgatada dos ínferos, puriicada desse contato, a rainha retorna à sua rotina
cotidiana em casa com o marido e os ilhos.
Como apolo predisse no final do prólogo, ocorre, entre o quarto
estásimo e o êxodo desta quarta tragédia da tetralogia, um jogo que
redesenha os limites deinitivos e distintivos dos deuses imortais e dos
homens mortais, e confere a esses limites um inesperado aspecto lúdico,
com a presença e intervenção de héracles.
ao sublinharem o inesperado dessa reversão da morte, as palavras inais
do coro (euR. Alc. 1059-1163) a explicam pelo comportamento dos numes,
imprevisível na perspectiva dos mortais, e assim resumem o sentido pio e
reverente da tragédia a que servem de fecho.

referências

euRiPideS – Alcestis. edited with introduction and Commentary by a. m


dale. bristol Classical, 2003 / oxforduniversity, 1954.

138 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


euRiPideS – Alcestis. With an introduction, translation and Commentary
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GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 139


CELEBrAÇÃo E rETÓrICA Em ESTáCIo

Leni Ribeiro Leite

estácio trabalha, na Silva 3.1, com a dedicação de um templo a hércules


em Sorrento, como ícone de uma mudança cultural e literária operada
durante o período laviano. neste trabalho, pretendemos apontar, no poema
3.1, momentos em que a celebração do templo de hércules é também
celebração do novo momento político imperial.
as Silvae, poemas de ocasião do poeta estácio, sofrem o estigma de
terem sido produzidas sob o governo de domiciano, considerado por um
longo tempo um imperador tirânico e paranoico, egoísta e exagerado, sob
o qual nenhuma forma artística teve a liberdade para se desenvolver de
forma plena, causador de uma plena e sofrível decadência dos costumes
e da sensibilidade artística da sociedade romana. a literatura da época,
comparada aos obeliscos e outras estruturas arquitetônicas monumentais
com as quais Roma foi povoada durante o império de domiciano, nada mais
poderia ser do que exagerada, decadente, menor. no entanto, a partir da
década de 90, um movimento de revisão do período laviano, em geral, e de
domiciano, em particular, vem causando também renovado interesse sobre
a produção literária do período, de que escassos exemplares chegaram a nós:
restam-nos, quase que exclusivamente, as obras poéticas de marcial e estácio.
dentro da obra de estácio, ainda, as Silvae receberam menos atenção
do que os dois poemas épicos do mesmo autor, a Tebaida e a inacabada
Aquileida. duas características da própria obra contribuem para esse
posicionamento reticente da crítica em relação às Silvae. Por um lado a
indeinição genérica da obra e sua caracterização pelo próprio autor como
poesia menor a torna difícil de manejar com os critérios e categorias usuais,
principalmente se comparada à “estrada batida” oferecida pelas duas demais
obras de estácio, fáceis de serem acomodadas na moldura da épica vergiliana.
Por outro lado, a temática do elogio que, segundo Coleman, é “o elemento
das Silvae mais antitético em relação ao gosto moderno”, presta-se a gerar
afastamento ou descaso. nossa intenção neste trabalho é propor uma leitura

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de um poema de estácio, o primeiro do terceiro livro das Silvae, a partir de
relexões acerca dessas duas diiculdades encontradas pelos críticos na obra.
defendemos que a causa principal das diiculdades de leitura das Silvae é
o caráter eminentemente inovador da obra, tanto do ponto de vista formal
quanto temático, que, por isso, não se molda adequadamente aos padrões
augustanos de literatura que são dela injustamente esperados.
o poema em questão aqui, Silvae 3.1, é programático em ambos os
aspectos. Primeiramente, ao comemorar a construção do templo de hércules,
ele celebra também as novas qualidades da sua poesia que ele mesmo aponta
em seus prefácios – lá, como defeitos, mas nos poemas, como virtudes.
ao mesmo tempo, porém, também ilumina defeitos de outra ordem, do
mundo extraliterário, do social, transformados em qualidades sob a égide
do império: a riqueza e luxo que este proporciona, o ingenium humano (a
própria palavra ingenium aparece textualmente em todos os livros da Silvae)
que vence a natureza bárbara.
newlands (1991:438) afirma que os trechos em que estácio fala
das Silvae como poemas “feitos às pressas”, “de ocasião”, “menores” são
um lugar comum da poesia latina; compare-se com o mesmo efeito em
Catulo e marcial, autores cujas obras já foram objeto de estudos de maior
fôlego. a ocasionalidade esconde complexidade – o leitor supostamente se
surpreenderia ao encontrar, após prefácios em que os poemas são descritos
com termos como celeritatis, in singulis diebus efusa (no prefácio ao primeiro
livro),subito natos (3, praef, 4) os poemas reinados que se seguem.

Quid quod haec serum erat continere, cum illa vos certe quorum honori data
sunt haberetis. Sed apud ceteros necesse est multum illis pereat ex venia, cum
amiserint quam solam habuerunt gratiam celeritatis. Nullum enim ex illis biduo
longius tractum, quaedam et in singulis diebus efusa.
(Silvae, 1. praef. 10-15)

além disso, era muito tarde para contê-los, pois você, certamente, e os outros
em cuja honra eles foram feitos os possuíam. mas junto ao público é necessário
que abandonem muito do que receberiam de indulgência, pois perderam o que
só tiveram graças à rapidez. de fato, nenhum deles levou mais do que dois dias
para compor, alguns foram feitos em um só dia.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 141


a questão do pertencimento genérico de estácio será tema para um
outro trabalho; vale apontar, no entanto, as frutíferas comparações que têm
sido feitas da obra de estácio com a de marcial, e das Silvae com a poesia
épica de estácio e de outros autores.
Segundo a mesma newlands (2002), a obra de estácio deve ser
compreendida como em diálogo em relação aos gêneros da antiguidade, sem
dúvida, mas também como um esforço em estabelecer uma nova maneira de
fazer poesia, mais adequada às necessidades artísticas de sua época. o principal
problema parece ser o fato de que o instrumental teórico desenvolvido pelos
estudos sobre poesia latina, pelo menos de forma mais geral, tomam como
exemplário a poesia do período de augusto. o instrumental assim gerado não
é adequado para analisar obras de outros períodos.
as Silvae são conscientemente inovadoras ao marcar em sua relação com
a poesia sua anterior mais as diferenças do que as semelhanças, e ao trabalhar
os mesmos temas sob uma nova luz. estácio rearticula e reinterpreta o
passado literário em sua própria poesia, reescrevendo-o: um processo que
Stephen hinds (1998) esclareceu para a aquileida, no quinto capítulo de
Allusion and Intertext, mas até agora pouco explorado nas Silvae.
no poema 3.1, o passado literário ao qual estácio alude é, por um
lado, o calimaqueano, por outro, o vergiliano. Richard homas (1983)
mostrou como o terceiro livro das Aetia de Calímaco e o terceiro livro das
Geórgicas, de vergílio começam com referências a hércules. assim também
o terceiro livro das Silvae se abre com um poema que pode por si mesmo
ser considerado um aetion sobre o reestabelecimento de um culto e sobre o
novo templo na propriedade de Pólio.

Intermissa tibi renovat, Tirynthie, sacra


Pollius et causas designat desidis anni,
quod coleris maiore tholo nec litora pauper
nuda tenes tectumque vagis habitabile nautis,
sed nitidos postes Graisque efulta metallis,
culmina, ceu taedis iterum lustratus honesti
ignis ab Oetaea conscenderis aethera lamma.
Vix oculis animoque ides. tune ille reclusi
liminis et parvae custos inglorius arae?

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unde haec aula recens fulgorque inopinus agresti
Alcidae? sunt fata deum, sunt fata locorum.
(Silvae, 3.1.1-11)

tiríntio, Polião renova teus ritos interruptos,


e explica os motivos para a pausa de um ano,
pois és cultuado sob um amplo domo, e não tens,
como um pobre, apenas uma choupana própria para marinheiros perdidos,
e sim marcos brilhantes e telhados suspensos sobre mármores gregos,
como se puriicado novamente pelas achas de um fogo honrado
subisses ao céu a partir das chamas etéreas do eta.
mal podem crer os olhos e a mente. És tu
o inglório guardião do umbral sem porta e do pequeno altar?
de onde vieram esse novo palácio, esse inesperado esplendor do rústico alcides?
têm seu destino os deuses, bem como os lugares.

ainda que muitos dos poemas das Silvae tenham personagens mitológicas
como ponto de referência e de comparação, em apenas dois poemas uma
personagem mitológica é o tema central. em ambos os casos, essa personagem
é hércules, visto em uma instância sob a aparência de uma estátua – no
poema 4.6, em que a estátua de hércules epitrapézios, pertencente a vindex
novius, é o tema central – e a propósito de um templo, no poema 3.1. ambos
os objetos, tão diferentes, são mote para a inclusão de novos capítulos ao
percurso lendário de hércules, e dão a ambos os proprietários e ao poeta a
oportunidade de renegociar suas próprias representações com a cultura do
passado. Já é consenso que a abordagem de estácio em ambos os poemas
é uma variante romana da êcfrase. no caso dos poemas sobre hércules, os
componentes descritivos são apresentados de forma a situar cada objeto dentro
da narrativa da carreira de hércules. no poema 3.1, que nos interessa mais de
perto, hércules auxilia o dono da villa, Pollius Felix, a reconstruir seu próprio
templo, cujo aspecto físico brilhante retoma o trabalho de construção da pira
funeral no monte eta, instrumento de sua morte e de sua apoteose.
este é o tipo de tema que interessaria a Calímaco, e a própria palavra
causas se encontra em posição de destaque após a cesura no segundo verso.
Por outro lado, a referência a vergílio é também clara: bastaria observar que

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a obscura personagem Molorchus, citada no verso 29, aparece na literatura
latina predecessora a estácio e que chegou a nós em apenas duas outras obras;
uma delas é o verso 19 do terceiro livro das Geórgicas.
no proêmio das Geórgicas, vergílio justiica uma mudança de tom,
ao passar de um tema rural, portanto menor, para um tema de maior
importância, as ações de uma igura política importante, otaviano. estácio
cria uma ligação entre as duas obras para criar quase um negativo do
caminho vergiliano: as Silvae são a obra de dicção mais humilde de um poeta
que já escrevera um poema épico de sucesso. em retrospecto, o anúncio de
vergílio vale não só para o terceiro livro das Geórgicas, mas muito mais para
sua obra seguinte, a eneida; estácio caminha na trilha inversa de vergílio.
este foi do Culex à eneida: aquele sai da tebaida para a experimentação
calimaqueana das Silvae. o estado fragmentário das Aetia não nos permite
dizer se havia um templo como tema no início do terceiro livro, mas nas
Geórgicas há. o templo de vergílio é metafórico, em honra a otaviano,
representando o poema que ele se propõe a escrever. ambos os templos se
situam na terra natal do poeta; o de vergílio é em mântua (vv.12-15), o de
estácio é na baía de nápoles (v.64). ambos os templos instituirão jogos que,
segundo os autores, superarão os famosos jogos gregos.
a relação literária entre estácio e Calímaco, por um lado, e estácio e
vergílio, por outro, está claramente estabelecida. no entanto, sendo as Silvae
claramente calimaqueanas em estilo e tema, elas também se afastam de
Calímaco em muitos aspectos, reescritos por estácio com base em vergílio
para sua poética particular. Por exemplo, estácio cita por que razão os jogos
do novo tempo de hércules serão maiores do que os jogos pan-helênicos:
porque aqueles começam sem a tristeza que marca, mitologicamente, o início
dos jogos Ístmicos e dos jogos de nemeia. ambos teriam sido iniciados
como jogos funerais. aparentemente esses mesmos mitos teriam sido parte
dos Aetia: o início dos jogos pan-helênicos fascinaram Calímaco. estácio
se refere a estes de uma forma alusiva bastante calimaqueana em si, mas
para negá-los, como no verso 142 “litat felicior infans”. Seus jogos, como
sua poesia, não deseja mais mergulhar nos horrores da guerra, ou falar
de tristezas: “nil his triste locis”(v.141). mantendo esse espírito afastado da
guerra e da infelicidade, que é um espírito poético próximo a vergílio nas
Geórgicas, ambos os poetas participam das cerimônias de seus templos, e

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ambos trazem presentes. vergílio qualiica seus presentes, os poemas sobre
agricultura, como intactos ao im do proêmio de Geórgicas 3; estácio, no
verso 67, referira-se aos poemas cultivados por ele mesmo e por Pólio como
intactaque carmina.
desta forma, estácio ao mesmo tempo aproxima-se de vergílio, ao
conformar sua nova forma poética àquela de vergílio, e afasta-se dele, uma
vez que vergílio, nas Geórgicas 3 (e, mais tarde, na eneida), despedir-se-á
deste tipo de poesia, em favor de formas mais elevadas, mais sérias, mais
bélicas. da mesma maneira, após unir-se às ileiras de Calímaco, estácio
o rejeita. no mesmo trecho, vv.55-67, lemos que a poesia intocada fora
cultivada pelo poeta e seu amigo no dia em que o culto a diana aricina era
celebrado e em lugar da celebração. Sérvio nos diz que Calímaco escreveu
sobre esse culto, mas estácio deliberadamente informa que não participou do
rito que tem origem em sacrifício humano. ou seja, apesar de evitar o ritual
para escrever poesia calimaqueana, seu espírito é vergiliano em sua pureza.
a dicção épica, porém, não está totalmente descartada: há vários
momentos épicos na poesia das Silvae, retrabalhados, porém, de forma
burlesca. no poema 3.1, o tom épico é anunciado pela invocação no verso
49: Calíope é chamada para contar como surgiu o templo. no entanto, apesar
do estilo passar a ser caracterizado como grande e tenso, o acompanhante
da musa é um hércules bufão, tocando um arremedo de música na corda
do arco. (vv. 49-51). o trecho que conta a redescoberta do templo em um
dia de chuva é recheado de alusões à eneida. esses ecos, no entanto, soam
quase engraçados: estácio mostra a vergílio que não é necessário abandonar
a dicção humilde para fazer épica.
Citemos alguns exemplos apenas dessas referências à eneida. Primeiro,
quando a tempestade força o grupo de amigos a procurar refúgio no pequeno
templo, este é comparado à caverna de dido e eneias, na eneida 4:

Delituit caelum et subitis lux candida cessit


nubibus ac tenuis graviore favonius austro
immaduit; qualem Libyae Saturnia nimbum
attulit, Iliaco dum dives Elissa marito
donatur testesque ululant per devia Nymphae.
(Silvae, 3.1.71-75)

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 145


Speluncam Dido dux et Troianus eandem
deueniunt. Prima et Tellus et pronuba Iuno
dant signum; fulsere ignes et conscius aether
conubiis summoque ulularunt uertice Nymphae.
(vergílio, eneida, 4.165-168)

uma cena de tamanha importância na eneida, comparada a um grupo


fugindo da chuva, guarda um inegável traço cômico. o mesmo tipo de
comparação é levada a cabo ao se falar do trabalho em si de reconstrução do
templo: o verso 122 de estácio, “indomitusque silex curva fornace liquescit”
repete quase literalmente o verso 446 do canto 8 da eneida, em que vulcano
derrete metal em sua forja para a armadura de Palante: “vulniicusquechalybs
vasta fornace liquescit”. vulcano, no entanto, faz um trabalho que resultará
em morticínio, e por isso, “antra Aetnaea tonant, ualidique incudibus ictus
/ auditi referunt gemitus” (vv. 419-420), enquanto que o trabalho de paz
de hércules ressoa como música: “ditesque Caprae viridesque resultant /
Taurubulae, et terris ingens redit aequoris echo.” (vv. 128-129).
desde o início de seu intermezzo épico, estácio pontuou que seu poema
falava de paz, de criatividade, de um trabalho frutífero, e o estilo épico foi
modiicado para transmitir prazer e alegria, uma profunda alteração nos
usos desse tipo de poesia.
as alusões de estácio, portanto, não são meras repetições passivas. ao
dialogar com a literatura precedente, não só latina como grega, criando uma
rede de similaridades e dissimilitudes, estácio marca uma distância poética
que os separa, ainda que parte da mesma estrada.
apesar desses aspectos literários bastante evidentes, as Silvae foram mais
lidas e debatidas pelo aspecto das informações sobre a cultura e a sociedade
romana do período de domiciano. de fato, ao descrever as villas, as estátuas,
os banquetes, a corte, as Silvae são uma fonte importante do ponto de vista
social, e revelam muito sobre um período em que o governo toma a feição
drástica de uma monarquia divina.aqui, também, portanto, os padrões já não
são os mesmos de períodos precedentes. as Silvae merecem uma investigação
cuidadosa acerca das condições de produção artística sob um governo que, se
levarmos em consideração o que diz Plínio no Panegírico (1-2), transformou
o elogio no tema literário mais perigoso.

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de forma geral, as Silvae foram lidas como simples bajulação ou como
literatura subversiva. em ambos os casos, porém, parte-se por alguma razão
do princípio que domiciano é o tema central da poesia de estácio, quando,
de fato, o imperador não é o recipiente de nenhum dos volumes das Silvae,
todos dedicados a outras iguras pouco importantes do período; e mesmo
como tema dos poemas domiciano é menos frequente do que se esperaria se
o elogio ao imperador fosse o tema central de estácio: ele está completamente
ausente dos livros dois, três e cinco. Poemas acerca de amigos e conhecidos
são muito mais comuns, em geral pessoas que haviam se retirado da vida
pública, e reletem uma variedade de posições sociais e origens; com exceção
do imperador, o único personagem de alguma importância na vida de Roma
que tem um poema de elogio nas Silvae é Rutilius Gallicus, e o poema é um
lamento por sua morte.
a visão de que qualquer obra da literatura latina do período imperial servia
à elite, em especial aos interesses do imperador, sob pena de simplesmente não
mais existir, não leva em conta os diferentes grupos sociais nem sempre em
acordo que havia na época de estácio, nem a mobilidade e conluência de
grupos, papéis e aspirações em um mundo em que a aristocracia tradicional
estava sendo superada por famílias oriundas das províncias, por libertos,
por elementos das famílias equestres, por um grupo de novos ricos que
suplantavam ou ao menos ameaçavam os poderes senatoriais.
em uma sociedade de tal forma complexa, a poesia de estácio está pronta
a mostrar o que há de novo e diferente em relação aos períodos anteriores.
hardie (1983) e Coleman (1988), entre outros, debatem a questão do
patronato imperial, comparando, por exemplo, a produção de horácio acerca
do assunto, e comparando-a com a de estácio. Sem negar a importância deste
tema para os estudos das Silvae, abordaremos aqui um outro elemento da
poesia de estácio que também parece surgir como resposta à nova ordem
social e política, mas que ocupa menos a atenção da fortuna crítica.
no início do poema, Pólio é um novo pauper Molorchus: apesar das
riquezas no entorno, a região onde se encontra o templo de hércules é pobre,
o templo em si, risível. no entanto, estácio não se entretém cantando a
dignidade da pobreza, como fariam os poetas helenísticos, e mesmo vergílio,
autores de poemas em que personagens humildes são digniicados. ao
contrário, em uma inversão dos valores tradicionais – que já não cabem em

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 147


pleno fausto imperial – um hércules bem-humorado observa a riqueza da
propriedade ao redor e repreende Pólio pela situação de abandono e pobreza
de seu templo perguntando: mihi pauper et indignus uni Pollius?
Plínio, o velho, na Historia Naturalis, é um modelo do pensamento romano
tradicional acerca do luxo e da riqueza: seus livros sobre arte são uma história
de progresso técnico e decadência moral, o segundo o produto inescapável do
primeiro. a arte é feita de materiais naturais, e por isso essencialmente bons;
esses materiais, porém, podem ser pervertidos pela ganância humana para
atender a desejos frívolos. Para Plínio, o luxo é uma corrupção do mundo
natural. a frugalitas era uma característica essencial do mos Maiorum, e os
excessos da riqueza inevitavelmente levavam ao relaxamento das virtudes –
uma ideia não de todo inexistente em nossos tempos modernos. no entanto,
como os romanos do período imperial, em especial do período laviano,
poderiam reconciliar seu cotidiano de villas luxuosas a um ideal de virtude e
moralidade que representava as suas origens?
na poesia de estácio, os valores tradicionais têm que ser atualizados para
que sejam compatíveis com as mudanças sociais. assim, a virtude, e não a
origem de uma família tradicional, é o motivo de proteção dos deuses, ou
de uma posição de prestígio; a riqueza, quando bem utilizada, é marca de
bom gosto e merecimento. a poesia de estácio mostra uma atitude muito
diferente da tradicional em relação ao luxo e ao uso do dinheiro para ins
particulares; a riqueza é apresentada como uma virtude, ou ao menos um
elemento que põe em evidência a virtude de seu possuidor. observemos as
palavras de hércules para Pólio.

‘tune,’ inquit ‘largitor opum, qui mente profusa


tecta Dicarchei pariter iuvenemque replesti
Parthenopen? Nostro qui tot fastigia monti,
tot virides lucos, tot saxa imitantia vultus
aeraque, tot scripto viventes lumine ceras,
ixisti? Quid enim ista domus, quid terra, priusquam
te gauderet, erant? Longo tu tramite nudos
texisti scopulos, fueratque ubi semita tantum,
nunc tibi distinctis stat porticus alta columnis,
ne sorderet iter. Curvi tu litoris ora,

148 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


clausisti calidas gemina testudine nymphas.
Vix opera enumerem; mihi pauper et indigus uni
Pollius? [...]
(Silvae, 3.91-103)

diz: “não és tu o distribuidor de riquezas,


que na juventude encheu igualmente as moradas de dicarco e Partênope
com prodigalidade? Que erigiu em nossa montanha tantas torres,
tantos bosques verdejantes, tantas pedras e bronzes sob a forma de rostos,
tantas formas de cera coloridas e como que vivas?
o que eram então esta casa, esta terra,
antes que se alegrassem contigo? tu cobriste
os picos desnudos com uma longa estrada, e onde antes havia só uma trilha,
agora ergue-se teu alto pórtico com colunas separadas,
para que tenha elegância o caminho. na margem do curvo litoral,
tu aprisionaste as águas termais com dois domos.
mal enumero todas as melhorias; só para mim Pólio
é um pobre indigente?

hércules apresenta Pólio não só como generoso, mas como o benfeitor


de uma região de outra forma rude e inóspita. observamos aqui como,
no novo esquema de relações, a natureza não é mais desejável, pura, mas
selvagem e rude – faz-se mister que a mão do homem venha domesticá-la,
como no momento da construção do templo. a transformação do espaço,
perpetratada pelo homem, é agora um aprimoramento do que a natureza
izera, e não uma deturpação.

[...] Coquitur pars umida terrae,


protectura hiemes atque exclusura pruinas,
indomitusque silex curva fornace liquescit.
Praecipuus sed enim labor est excindere dextra
oppositas rupes et saxa negantia ferro.
Hic pater ipse loci positis Tirynthius armis,
insudat validaque solum deforme bipenni,
cum grave nocturna caelum subtexitur umbra,

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 149


ipse fodit, ditesque Caprae viridesque resultant
Taurubulae, et terris ingens redit aequoris echo.
(Silvae, 3, 120-129)

[...]Coze-se a terra úmida,


para que proteja dos invernos e contenha as nevascas,
e a pedra indomada derrete na fornalha redonda.
mas o pior trabalho é arrancar com as mãos
as pedras e rochas que resistem ao ferro.
aqui, o próprio pai do lugar, o tiríntio, abandonadas as armas,
sua ao cavar ele mesmo o chão rugoso com a picareta
quando o céu escuro é coberto pela sombra noturna;
a rica Capri e a verdejante taurubula ressoam
e o eco imenso do mar retorna às terras

ao im do poema, hércules visita o templo durante os jogos, e homenageia


Pólio e sua esposa, Polla. assim diz hércules:
‘Macte animis opibusque meos imitate labores,
qui rigidas rupes infecundaeque pudenda
naturae deserta domas et vertis in usum
lustra habitata feris, foedeque latentia profers
numina. Quae tibi nunc meritorum praemia solvam?’
(Silvae, 3.166-170)

‘honrado por seu espírito e por sua riqueza, imitador dos meus trabalhos,
domador das pedras rudes e dos ermos, vergonhas da natureza
infecunda, e que transforma antros habitados por feras
em locais úteis, e traz à luz as deidades escondidas
pela vergonha. Que prêmios agora te oferecerei pelo seu mérito?’

as palavras de hércules não poderiam ser melhor escolhidas. o espírito


de Pólio é homenageado em paralelo a suas riquezas, como duas virtudes
iguais e mutuamente determinantes. essas duas características elogiadas
pelo deus são a razão de ser Pólio o responsável por uma mudança para
melhor na natureza deserta e infecunda do lugar; ele é o homem que, com
suas qualidades, fecunda, embeleza, aprimora a natureza.

150 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


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GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 151


o rITuAL Do CASAmENTo
Em romA E A PoESIA LATINA

Zelia de Almeida Cardoso

Levando-se em consideração o fato de que em Roma a família sempre


desempenhou papel fundamental como célula primeira da sociedade,
contribuindo para o equilíbrio da estrutura política, sendo o elemento básico
para a constituição de importantes alianças e garantindo a geração de ilhos
legítimos que continuarão os empreendimentos e trabalhos de seus pais, as
questões relativas à instituição do casamento e a suas características rituais
oferecem pretexto a muitas investigações.
tito Lívio no prefácio da História de Roma (Liv. Ab Vrbe condita
libri. Praef., 6-9)1, ao justiicar a inserção de fábulas poéticas no relato dos
primeiros tempos da Cidade, airma que, apesar de não poderem ser elas
documentadas, prestam-se a seu objetivo de historiador: o de apresentar a
história como uma série de exemplos e de modelos. Com esse intento, após
ter relatado os fatos que ocorreram durante a fundação de Roma, tito Lívio
se refere a um dos primeiros problemas enfrentados por seus habitantes:
a ausência de mulheres. “o estado romano”, diz o historiador, “já estava
suicientemente fortalecido para concorrer com as cidades limítrofes em
guerras; mas a falta de esposas para os homens reduzia essa grandeza à
duração de uma única geração uma vez que não havia esperança de lar e
de prole por meio de casamentos entre os vizinhos”2. Foi quando então se
pensou, de acordo com o relato lendário preservado provavelmente em
canções, no conhecido estratagema que a história solidiicou: convidar os
povos das imediações e suas famílias para um espetáculo de jogos e raptar-

1 tite-live. Histoire Romaine. trad. nouvelle, introd. et notes par e. LaSSeRRe. Paris: Garnier, 1944. t.
1er. p. 3 ss.
2 id. ibid., p. 27-33. Iam res Romana adeo erat ualida, ut cuilibet initimarum ciuitatum bello par esset; sed
penuria mulierum hominis aetatem duratura mgnitudo erat, quippe quibus nec domi spes prolis, nec cum
initimis connubia essent (Liv. 1, 9, 1). todas as traduções de textos latinos são de nossa responsabilidade.

152 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


lhes, no calor da animação, as jovens que ali se encontrassem. o rapto da
sabinas – tal como foi conhecido o episódio – passou a desempenhar em
Roma uma espécie de função emblemática e paradigmática no que diz
respeito à constituição da família por meio do casamento. as moças raptadas,
de acordo com a lenda, foram investidas do caráter de esposas e, como tais,
passaram a ser honradas, acarinhadas e amadas. É o que nos diz tito Lívio3.
Passada a chamada “época dos reis”, que se estendeu de meados do
século viii ao inal do século vi a.C.4, estabeleceu-se em Roma o regime
consular que durou, com esporádicas modiicações, até o im da República.
e foi em 462 a.C., depois das primeiras vitórias políticas dos plebeus sobre
os patrícios, que se pensou na redação de um texto legal, uma espécie de
constituição, que condensasse, por escrito, normas que a tradição consagrara
e que se amparavam no chamado mos maiorum. a redação dessa lei única
que delimitaria poderes, direitos e deveres dos cidadãos, estabelecendo
os princípios da organização política e social, foi proposta e promulgada
por volta de 450 a.C.5, sendo conhecida como Lei das XII Tábuas6. em que
pese o fato de aparentemente ter desagradado a patrícios e plebeus, e de ter
sido em parte abolida em pouco tempo, a Lei das XII Tábuas é a base do
direito romano7. dela decorrem as demais leis. Conhecida por citações e
comentários de Cícero, Gaio8, ulpiano9 e Justiniano10, chegou fragmentada

3 Accedebant blanditiae uirorum, factum purgantium cupiditate atque amore, quae maxime ad muliebre
ingenium eicaces preces sunt – 1, 9, 16 (“acrescentavam-se as carícias dos maridos que puriicavam o
malfeito com desejo e amor, o que, para o espírito feminino corresponde com vantagem a preces eicazes”).
4 a data real da fundação de Roma é desconhecida; tradicionalmente, a partir de varrão, considera-se
que a cidade foi fundada em 753 a.C., quando se inicia a época dos reis; a queda do último tarquínio
ocorreu entre 510 e 509 a.C.
5 a proposta da lei foi obra do tribuno Gaio terentílio arsa.
6 assim se denominou a lei por ter sido escrita em doze tabuinhas de madeira, das quais dez formaram
um primeiro bloco ao qual foram acrescidos mais dois, posteriormente.
7 Para Cícero (Leg. ii, 59) e tito Lívio (iii, 34, 6) a Lei das Doze Tábuas, que consistia numa lista de
importantes regras legais, era a principal fonte de todas as demais leis romanas, públicas e privadas.
8 Gaio (110-180 c.) viveu durante os governos de antonino Pio e marco aurélio; escreveu Institutiones,
obra que mostra a situação do direito romano em sua época.
9 ulpiano foi um jurista da época de Caracala (211-217); suas obras, como comentarista jurídico, foram
aproveitadas por Justiniano no Digesto.
10 Justiniano foi imperador romano, de 525 a 565; reorganizou o direito romano com ajuda de triboniano;
seu Corpus Iuris se compõe de: Institutiones,manual de direito para estudantes; Digestae, extratos de
escritos de juristas; Codex, atos de imperadores; e Novellae, leis promulgadas após a publicação do Codex.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 153


a nossos dias, interessando-nos, para nossas considerações sobre a família e
o casamento romanos, o que constava das tábuas iv e v, principalmente, e,
de certa forma, das tábuas vi e Xi nas quais também se toca no assunto11.
São ali estabelecidos, quase como “mandamentos”, alguns preceitos relativos
à família: restringe-se, em parte, a patria potestas, o poder do paterfamilias,
até então absoluto12; dispõe-se sobre bens e heranças13, sobre a tutela dos
menores de idade, quando órfãos, sobre a curatela, para a administração
dos bens de incapazes e de mulheres solteiras, e, ainda, sobre a situação da
mulher que vivesse em concubinato e sobre a proibição de casamento entre
patrícios e plebeus.
na legislação de épocas posteriores, a partir da Lei das Doze Tábuas, há
outras determinações que tocam a estrutura social, a família e o casamento.
aos poucos enfraquece cada vez mais a patria potestas, regularizam-se
as questões referentes à condenação à morte de membros da família e à
venda e emancipação dos ilhos, e os direitos das mulheres com relação aos
descendentes e à gerência dos bens14 passam a ser reconhecidos.
durante o final do período republicano e o início do império, o
casamento – as chamadas iustae nuptiae –, cuja inalidade primeira seria a
geração de ilhos, ainda era visto como algo que consolidava as alianças e
garantia a estabilidade dos lares e da pátria. Segundo Gaio (Inst. 1, 111-113),
jurista sabino que viveu no século ii de nossa era, possivelmente entre 110
e 180, o casamento romano, em épocas anteriores à sua, quando a mulher
passava da mão do pai à do esposo (matrimonium cum manu), poderia

11 tábuas i e ii: organização e procedimento judicial; tábua iii – normas contra os inadimplentes;
tábua iv – Pátrio poder; tábua v – Sucessões e tutela; tábua vi – Propriedade; tábua vii – Servidões;
tábua viii – dos delitos; tábua iX – direito público; tábua X – direito sagrado; tábuas Xi e Xii –
Complementares.
12 apesar de algumas restrições ao patrio poder a Ldt facultava ao paterfamilias a possibilidade de matar
o ilho que nasceu disforme e lhe conservava o direito de morte e de venda dos ilhos.
13 Quanto ao direito sucessório, dava-se preferência da sucessão testada sobre a intestada. Se a sucessão
ocorria neste último caso a lei estabelecia como primeiros herdeiros os ilhos e a mulher que tivesse
uma ilha; se não havia herdeiros necessários, herdava o parente mais próximo, depois os parentes
que contavam com um ascendente comum ao falecido. Se não houvesse herdeiros entre os parentes
consanguíneos, as pessoas com o mesmo sobrenome ou sobrenome que derivasse do mesmo gentílico
do falecido.
14 Cf. GRimaL, P. A civilização romana. trad. de i. S. aubYn. Lisboa: edições 70, 1988. p. 82 ss.

154 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


realizar-se de três formas: por uso (usus), por compra (coemptio), ou por
meio de uma cerimônia de caráter familiar e religioso, a confarreação
(confarreatio).
o casamento por usus era contemplado na Lei das XII Tábuas. assim
rezava o texto, contido na tábua vi: “a mulher que residir durante um ano
em casa de um homem, como se fora sua esposa, será adquirida por esse
homem e cairá sob seu poder, salvo se se ausentar de casa por três noites”15.
Se se consolidasse o usus, a mulher passaria a ser propriedade do homem
e seria considerada parte da família. essa forma de casamento já não mais
existia na época de Gaio.
o casamento por coemptio era simbólico e guardava vestígios de
costumes antigos; conforme Gaio, a mulher passa ao poder do marido por
mancipação (mancipatio), com anuência da família, por uma venda ictícia
e simbólica, perante cinco testemunhas16.
a confarreatio17era a forma mais antiga e solene do casamento entre os
patrícios romanos e assim se chamava por conta de um bolo de farinha de

15 Gaio faz o seguinte comentário a respeito do casamento por usus: Itaque lege duodecim tabularum
cautum est, ut si qua nollet eo modo in manum mariti convenire, ea quotannis trinoctio abesset atque
eo modo cuiusque anni usum interrumperet. Sed hoc totum ius partim legibus sublatum est, partim ipsa
desuetudine obliteratum est (“assim foi estabelecido na Lei das Xii tábuas; que se ela (a mulher) não
quisesse passar desse modo (pelo usus) à manus do marido, que saísse de casa todos os anos por três
dias e assim interromperia a contagem do tempo. mas essa disposição em parte foi suprimida pela lei,
em parte foi esquecida pela dessuetude”). GaiuS, Institutiones 1, 111.
16 Coemptione vero in manum conveniunt per mancipationem, id est per quandam imaginariam venditionem.
Nam adhibitis non minus quam V testibus civibus Romanis puberibus, item libripende, emit vir mulierem,
cuius in manum convenit (“Podem também casar-se por mancipação, por meio de compra, isto é, por uma
venda imaginária. Comparecendo ao ato não menos do que cinco testemunhas, cidadãos romanos adultos,
o homem compra, diante de um oicial público, a mulher para cuja manus ela vem”). idem, ibid., 1, 113.
17 veja-se o texto de Gaio: Farreo in manum conveniunt per quoddam genus sacriicii, quod Iovi Farreo it;
in quo farreus panis adhibetur, unde etiam confarreatio dicitur; complura praeterea huius iuris ordinandi
gratia cum certis et sollemnibus verbis praesentibus decem testibus aguntur et iunt. Quod ius etiam nostris
temporibus in usu est: Nam lamines maiores, id est Diales, Martiales, Quirinales, item reges sacrorum, nisi
ex farreatis nati non leguntur: Ac ne ipsi quidem sine confarreatione sacerdotium habere possunt (“Podem
casar-se por confarreação, por meio de uma espécie de oferenda sagrada que se faz a Júpiter Fárreo; para
essa oferenda prepara-se um pão de farinha, daí ser chamada de confarreação; além disso muitas outra
coisas são exigidas por conta dessa ordenação legal, como palavras precisas e solenes e dez testemunhas.
essa disposição legal ainda se acha em uso em nosso tempo, pois os lâmines maiores, isto é, de Júpiter,
marte e Quirino, bem como os sumos sacerdotes, não podem ser eleitos a menos que tenham nascido
de um casamento por confarreação. e eles também não podem obter o sacerdócio sem o casamento por
confarreação”). idem, ibid., 1, 112.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 155


espelta (far), que se oferecia a Júpiter Fárreo, sendo depois partilhado entre
os convidados em uma espécie de comunhão. essa modalidade de casamento
– provavelmente de origem rural – conservava costumes tradicionais, nela se
unindo a legalidade à religiosidade, e consistia no ponto culminante de uma
negociação precedente – um compromisso de aliança entre duas famílias
(sponsalia), realizada na presença de testemunhas18, que tinha caráter legal
e validade jurídica. era nesse momento que se fazia o pedido oicial, por
parte do noivo, mediante o oferecimento de presentes entre os quais o anel
de noivado, discutiam-se as questões atinentes à mancipação da noiva e ao
dote que lhe seria concedido e se assinava o contrato do casamento que se
realizaria algum tempo depois, sobretudo se os noivos não tinham ainda
atingido a idade legal.
Para Gaio, o casamento por confarreatio era comum ainda em sua época
e constava de uma cerimônia festiva, na qual se procurava manter ritos
antigos que deveriam ser respeitados e preservados. esses ritos se iniciavam
na véspera do casamento, quando a noiva oferecia seus brinquedos ao Lar
familiar, e prosseguiam no dia das bodas, com a presença de sacerdotes –
o lamen dialis e o pontifex maximus –, as orações de praxe, a tomada de
augúrios, as oferendas – entre as quais a do bolo –, a assinatura deinitiva do
contrato, perante dez testemunhas, a união das mãos dos noivos (dextrarum
iunctio), realizada pela prônuba, e a lauta refeição oferecida a familiares e
convidados. a noiva se vestia e se penteava de forma especial para a data,
de acordo com antigos ritos19. após o banquete, ao surgir de vésper, a noiva
se dirigia à casa do esposo, acompanhada de um séquito constituído de

18 Cf. PLin. min. Ep. 1, 9, 2: Nam si quem interroges ‘Hodie quid egisti?’, respondeat: ‘Oicio togae virilis
interfui, sponsalia aut nuptias frequentavi, ille me ad signandum testamentum, ille in advocationem, ille
in consilium rogavit’ (“Se perguntares a alguém – ‘Que izeste hoje?’, talvez ele responda: – ‘estive em
afazeres da toga viril, participei de um noivado ou de um casamento, um me pediu para assinar um
testamento, outro para comparecer como testemunha’”).
19 o vestido da noiva, a chamada tunica recta, era branco e de corte simples, atado à cintura por um
cinturão de lã, o cingulumherculeum; cobria-o um manto amarelo, o palla; na cabeça ela usava um véu
cor de laranja, o lammeum, que cobria os cabelos trançados, colocando-se sobre ele uma grinalda de
lores de manjerona e verbena ou de murta e lores de laranjeira; nos pés, calçava sandálias douradas,
os socci. Para maiores detalhes sobre o casamento romano, veja-se CaRCoPino, J. Roma no apogeu
do Império. trad. de R.bLoCh. São Paulo: Companhia do Livro/ Círculo do Livro, 1990. p. 99-125; e
Grimal, op. cit. p. 84.

156 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


moças e rapazes. Faziam parte do ritual as palavras de praxe pronunciadas
pela noiva20, os gestos tradicionais e passos especíicos da cerimônia, tais
como o simulado choro da moça e sua ictícia relutância em sair de seu
antigo lar, o arrebatamento da mesma para ser conduzida à casa do esposo,
com as palavras usuais21, a presença da prônuba e de duas companheiras
que levavam a roca e o fuso da nubente, a agitação das tochas levadas por
um grupo de mancebos, encabeçado pelo prônubo, a distribuição de nozes
para as crianças presentes, os cânticos nupciais e fesceninos entoados pelos
jovens, ao som de lautas, a chegada ao novo lar, quando a noiva enfeitava
a porta com lores e locos de lã e untava os batentes com azeite. após esse
gesto ocorria o erguimento da moça por membros do séquito, para que ela
entrasse na casa do esposo sem tropeçar no limiar – o que seria considerado
um mau agouro – e a condução da noiva ao quarto nupcial, tarefa exercida
pela prônuba.
muitos dos elementos simbólicos que faziam parte do casamento
romano foram aproveitados com algumas modiicações pelo matrimônio
cristão e perduram até hoje.
na poesia latina de todas as épocas, em todos os gêneros, há exemplos
de obras nas quais podemos veriicar o aproveitamento de aspectos do ritual
do casamento como tema literário.
nas comédias de Plauto e terêncio, escritores da época helenística,
cujos textos foram as primeiras obras literárias latinas a chegarem até nossos
dias praticamente na íntegra, o casamento é frequentemente focalizado.
São numerosas as referências à paixão de jovens por prostitutas e escravas
e as críticas à instituição matrimonial, às relações familiares, aos papéis
da matrona, do velho namorador, das amantes. a Aulularia de Plauto, a

20 após a realização de oferendas e a tomada de auspícios, a noiva, diante das testemunhas, dizia palavras
cujo signiicado real nos escapa, mas que selam o compromisso assumido: Vbi tu Gaius ego Gaia (“onde
tu fores Gaio eu serei Gaia”).
21 no momento em que a noiva era arrancada dos braços da mãe para ser conduzida à casa do noivo, os
jovens que a levavam gritam: Talassio! (“Para talassio!”). Segundo tito Lívio (1, 10, 12), o costume de
gritar Talassio evoca o rapto das sabinas. de acordo com sua narrativa, quando os romanos entraram
na tenda da mais bela sabina para arrebatarem-na, assim exclamaram dizendo que ela seria entregue a
talássio. Para e. Lasserre, trata-se de uma fantasia do historiador. Cf. tite-Live, op. cit. p. 349, n. 38.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 157


conhecida Comédia da panelinha22, é uma peça em que tudo gira em torno
do casamento, o assunto central23. Sintomaticamente, a comédia se abre com
o prólogo recitado pelo deus Lar – a divindade latina protetora da família,
sem correspondente no panteão helênico. o deus fala de seu empenho
em procurar resolver a situação da jovem Fédria, uma moça devota, que
sempre lhe oferecia incenso, vinho e coroas de lores, embora fosse ilha de
um homem avarento. ela fora seduzida algum tempo antes, estava grávida e
prestes a dar à luz. o deus Lar se dirige ao público, esclarecendo que preside
à lareira daquela família, onde estivera escondida durante muito tempo uma
panelinha cheia de moedas de ouro. Para mostrar seu agradecimento à moça,
ele izera com que seu pai encontrasse o tesouro; além disso, para forçar o
sedutor a desposá-la, salvando-lhe a honra, faria com que um velho rico,
tio do jovem, a pedisse em casamento, levando o rapaz à ação. a trama da
comédia explora esses pontos e, de permeio a outros tópicos, focaliza alguns
aspectos do ritual do casamento por confarreatio tais como a formalização
do pedido, a discussão sobre o dote da noiva, a oferenda de incenso e lores
aos deuses e a preparação do banquete nupcial.
na poesia lírica da época de Cícero, lembramos os dois epitalâmios
de Catulo (Cat. 61; 62), endereçados a himeneu, o deus do casamento. o
primeiro epitalâmio (Cat. 61)24 é uma peça de circunstância, na qual se celebra
a união conjugal de duas iguras reais da sociedade de então25. em que pese
certa inluência de Safo, “seguem-se passo a passo” no poema, conforme a
expressão de Lafaye (Catulle, 1974, p. 61a, n. 1)26, todos os momentos que
medeiam entre a saída da noiva do lar paterno e a chegada à casa do esposo.
dirigindo-se a himeneu que se ornamenta com adereços nupciais femininos,
o poeta alude às lores perfumadas de manjerona, que cingem a cabeça do

22 Cf. PLauto. Aulularia (A comédia da panelinha). trad. introd. e notas de aída CoSta. São Paulo:
difusão européia do Livro, 1967.
23 PLaute. Amphitryon. Asinaria. Aulularia. texte ét. et trad. par a. eRnout. Paris: Les belles Lettres, 1970.
24 o primeiro epitalâmio (Cat. 61) é formado por estrofes compostas de cinco versos – quatro glicônicos
(um espondeu, troqueu ou jambo; um coriambo; um jambo ou pirríquio) e um ferecrácio (um troqueu,
jambo ou tríbraco; um dátilo; um espondeu ou troqueu).
25 Catulo celebra as núpcias de Lúcio mânlio torquato, de antiga família patrícia, e da bela Júnia, de família
também ilustre.
26 CatuLLe. Poésies. texte ét. et trad. par G. LaFaYe. 9a. ed. Paris: Les belles Lettres, 1974.

158 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


deus e evocam as que estariam coroando a da moça27, ao lammeum, o alegre
véu cor de fogo28 usado pelas noivas, aos escarpins amarelos29, aos hinos
nupciais30, às tochas olorosas feitas de madeira de pinheiro31, aos auspícios32,
ao desatamento do cinto de lã, estando já a esposa em sua nova casa, graças ao
poder de himeneu33. há referências ainda ao fato de ser a divindade patrona
do casamento quem permite que as moças em lor sejam arrancadas dos braços
das mães para as do jovem esposo ardente34. Graças a seu poder, são gerados os
ilhos sem os quais os pais não poderiam apoiar-se numa posteridade35, nem
teria a pátria defensores de suas fronteiras36:
em seguida, o “eu narrador” que conduz o discurso se dirige à noiva
propriamente dita, aconselhando-a a escalar mais um degrau do complexo
rito matrimonial: abrir a porta da casa dos pais, ver a tochas resplandecentes
que sacodem as cabeleiras de fogo e não retardar seus passos apesar do pudor
e das lágrimas que marcam a despedida37. na sequência, ele exorta os jovens
que formarão o séquito a cantar fesceninos e sugere ao favorito do esposo,
agora abandonado, que distribua às crianças as nozes de praxe38, um dos
símbolos da fertilidade.

27 Cinge tempora loribus/ suaue olentis amaraci – cat. 61, 6-7 (“Cinge suavemente tuas têmporas/ com as
lores da perfumada manjerona”).
28 Flammeum cape laetus – 8 (“Coloca alegremente o lâmeo”).
29 ... ueni niueo gerens/ luteum pede soccum – 10 (“... vem, calçando escarpins amarelos nos níveos pés”).
30 nuptialia [...]/ carmina – 12-13 (“cantos [...] nupciais”).
31 pineam [...] taedam – 15 (“tocha de pinheiro”).
32 Nubet alite uirgo – 20 (“casa-se a virgem, conforme os auspícios”).
33 ... tibi uirgines/ zonula soluunt... – 52-53 (“... por ti as virgens desatam os cintos”).
34 Tu fero iuueni in manus/ loridam ipse puellulam/ dedis a grêmio suae/ matris – 56-59 (“És tu, em pessoa,
que às mãos do jovem ardente/ entregas a mocinha em lor, [tirada] do seio de sua mãe”). o arrebatamento
da noiva é visto como lembrança do rapto das sabinas.
35 Nulla quit sine te domus/ líberos dare, nec parens/ stirpe nitier; at potest/ te uolente – 66-69 (“nenhum lar
sem ti poderia/ gerar ilhos, nenhum pai/ apoiar-se em sua estirpe; pode, porém,/ quando tu o queres”)
36 Quae tuis careat sacris/non queat dare praesides/ terra inibus – 71-73 (“nenhuma nação que careça de
teu culto/ poderia dar defensores/ a suas fronteiras”).
37 Claustra pandite ianuae;/ virgo, ades. Vides ut faces/ splendidas quatiunt comas?[...] Tardet ingenuus pudor
[...] Flet quod ire necesse est – 76-78; 83; 85 (“abri os ferrolhos da porta;/ que entres, ó virgem. vês como
as tochas/ sacodem as esplêndidas comas? [...] Que o nobre pudor te retarde [...] ela chora porque é
necessário partir”).
38 Ne diu taceat procax/ fescennina iocatio,/ nec nuces pueris neget/ desertum domini audiens/ concubinus
amorem – 126-130 (“Que não silenciem por mais tempo/ as brincadeiras fesceninas/ que não negue
nozes aos meninos/ ouvindo dizer que seu amor foi deixado de lado/ o favorito do esposo”).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 159


ao final do poema, há nova referência aos filhos que virão e que
culminarão as alegrias e os prazeres do rito nupcial:

entregai-vos ao amor, como é vosso desejo,


e tende ilhos em breve. não seria conveniente
que um nome tão antigo permanecesse sem
ilhos, mas, sim, que continuasse gerando-os,
como sempre39.

o segundo epitalâmio (cat. 62), em que um coro feminino se alterna


em seu canto com um masculino, é construído sob forma dialogada40; há
nele referências a dois outros elementos do ritual de casamento: a saída da
noiva de seu lar paterno, marcada pelo aparecimento de vésper41, e o lauto
banquete que termina com o surgimento do astro42.
na Eneida de virgílio43, monumento épico do período de augusto, o
quarto canto – o livro de dido – é consagrado, todo ele, a um “casamento”
que, não sendo casamento propriamente dito, nem romano, apresenta
características dos ritos nupciais observados em Roma. abre-se o texto
narrativo com a descrição do lorescimento da paixão no peito da rainha de
Cartago (verg. Aen. 4, 1-5)44. tendo acolhido eneias em seu reino e ouvido
a história das vicissitudes pela quais ele passara, ela se vê tomada por um
amor ardente que a inlama e consome. ao confessar seus sentimentos à irmã,
esta a incentiva, dizendo-lhe que a concretização do amor em um casamento

39 Ludite ut lubet et breui,/ líberos date. Non decet/ tam uetus sine liberis/ nomen esse, sed indidem/ semper
ingenerari – 211-215.
40 o poema é construído com hexâmetros datílicos.
41 Vesper adest, iuuenes, consurgite – Cat. 62, 1 (“vésper aparece; erguei-vos, jovens”).
42 Surgere iam tempus, iam pinguis linquere mensas – 3 (“Já chegou o tempo de deixar as fartas mesas”).
43 viRGiLe. Oeuvres. texte publié par F. PLeSSiS et P. LeJaY. Paris: hachette, 1945.
44 At regina graui iamdudum saucia cura/ uulnus alit uenis et caeco carpitur igni./ Multa uiri uirtus animo
multusque recursat/ gentis honos; haerent inixi pectore uultus/ uerbaque nec placidam membrisdat cura
quietem – viRG. Aen. 4, 1-5 (“mas a rainha, ferida há muito por um grande cuidado/ alimenta o ferimento
nas veias e é consumida por um fogo escondido. acorre-lhe à mente o grande valor do varão/ e a glória
de sua raça; prendem-se ixados em seu peito o rosto/ e as palavras, e o cuidado não lhe permite um
plácido descanso”).

160 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


seria proveitoso para a rainha e para a cidade (6-55)45. dido dá então os
primeiros passos para cumprir o que se espera de uma noiva: dirige-se ao
templo, em companhia de ana, oferece sacrifícios aos deuses, sobretudo a
Juno que preside aos vínculos matrimoniais46, e, valendo-se de uma prática
empregada pelos arúspices romanos – o que revela a utilização de um
procedimento sincrético por parte do poeta – tenta encontrar signiicados
auspiciosos examinando as entranhas de animais sacriicados (56-64)47. a
veriicação de que nada acalma a paixão da rainha, faz Juno, a deusa protetora
de Cartago, valer-se da ocasião para atingir seu objetivo principal: frustrar as
intenções do guerreiro troiano de fundar uma nova troia, unindo-o à mulher
apaixonada (90-97). Pede, para isso, o auxílio de vênus, acenando-lhe com
o possível casamento:

mas qual será o im (disto)? Por que tanta competição (entre nós)?
Por que antes não estimulamos uma paz eterna e o combinado
himeneu? tens o que desejaste de toda a tua alma.
dido se inlama, enamorada, e alimenta a paixão em seus ossos.
Conduzamos, portanto, este povo de nós ambas com auspícios
iguais: que ela possa servir a um marido frígio
e colocar em tuas mãos os dotes tírios (98-104)48.

Juno relata então a vênus seu projeto: como dido e eneias se preparam
para uma caçada a realizar-se no dia seguinte, a rainha dos deuses planeja
fazer-lhes sobrevir uma tempestade que os obrigue a procurar guarida

45 Quam tu urbem, soror, hanc cernes, quae surgere regna/ coniugio tali! – veRG. Aen. 47-48 (“Quão grande
verás esta cidade, minha irmã, que reinos verás surgir com tal casamento1”).
46 Principio delubra adeunt pacemque per aras/ exquirunt; mactant lectas de more bidentis/ legiferae Cereri
Phoeboque patrique Lyaeo,/ Iunoni ante omnis, cui uincla iugalia curae – 56-59 (inicialmente dirigem-se
ao templo e por meio dos altares a paz/ procuram;/ imolam ovelhas escolhidas, segundo o costume,/ à
legífera Ceres, a Febo e ao pai Lieu/ e a Juno, antes de todos, a cujos cuidados estão os vínculos conjugais”).
47 ... pecudumque reclusis/ pectoribus inhians spirantia consulit exta – 63-64 (“nos corpos abertos das reses/
observando as entranhas palpitantes”).
48 Sed quis erit modus, aut quo nunc certamine tanto?/ quin potius pacem aeternam pactosque hymenaeos/
exercemus? habes tota quod mente petisti:/ ardet amans Dido traxitque per ossa furorem./ Communem
hunc ergo populum paribusque regamus/ auspiciis; liceat Phrygio seruire marito/ dotalisque tuae Tyrios
permittere dextrae – 98-104).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 161


na mesma gruta (105-125). “Lá estarei”, diz Juno, “e, se eu tiver certeza de
tua vontade, ligá-los-ei por um matrimônio estável e a consagrarei como
propriedade dele. himeneu estará presente ali” (125-127)49.
Segue-se a bela descrição do início do dia. a aurora surge, deixando
o oceano; diante do palácio os cartagineses aguardam as iguras principais,
montados em seus cavalos (129-135). “Finalmente ela se aproxima,
acompanhando-a uma grande comitiva”, dizem os versos da Eneida; “está
envolta em uma clâmide sidônia, com a fímbria bordada; sua aljava é de
ouro; seus cabelos são atados com ouro; uma ivela de ouro prende-lhe a
túnica purpúrea” (136-139)50. É como se a abundância do metal precioso
substituísse o laranja e o amarelo do lammeum das virgens e do escarpim
dourado.
Chegam à montanha para a caçada, mas “o céu, nesse meio tempo,
começa a agitar-se com grandes estrondos e sobrevém uma nuvem carregada
de granizo” (160-161)51. a narrativa prossegue. os caçadores se dispersam.
“torrentes de água precipitam-se das montanhas. dido e o chefe troiano se
refugiam na mesma gruta. a terra, em primeiro lugar, e Juno como prônuba
dão o sinal; os relâmpagos fulgiram bem como o éter, cúmplice do conúbio;
e as ninfas bradaram nos cimos das montanhas” (164-168)52.
a descrição narrativa do quadro do encontro se encaminha para o im.
“mas dido não se importa com as aparências nem com a reputação; não
julga que seu amor seja clandestino: chama-o de casamento e encobre sua
culpa sob este nome” (169-172)53.
as palavras equivalentes a casamento aparecem amiúde no livro 4,
em suas variantes, quer como coniugium (versos 48, 172, 338, 431), uincla

49 Adero et, tua si mihi certa uoluntas,/ conubio iungam stabili propriamque dicabo./ Hic Hymenaeus erit –
125-127.
50 Tandem progreditur magna stipante caterua/ Sidoniam picto chlamydem circumdata limbo;/ cui pharetra
ex auro, crines nodantur in aurum,/ aurea purpuream subnectit ibula uestem – 136-139.
51 Interea magno misceri murmure caelum/ incipit, insequitur commixta grandine nimbus – 160-161.
52 Ruunt de montibus amnes./ Speluncam Dido dux et Troianus eandem/ deueniunt. Prima et Tellus et pronuba
Iuno/ dant signum; fulsere ignes et conscius aether/ conubiis summoque ulularunt uertice Nymphae – 164-169.
53 Neque enim specie famaue mouetur/ nec iam furtiuum Dido meditatur amorem:/ coniugium uocat, hoc
praetexit nomine culpam – 170-172.

162 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


iugalia (59), conubium (126-169) ou hymenaeus (99, 127); do mesmo campo
semântico, thalamus aparece três vezes (392, 495, 550); maritus, uma vez
(103); há referências ao dote (dotalis Tyrios) (104), à pronuba – (167), à
mulher que se torna propriedade do esposo (103). não se trata, porém, de
um casamento reconhecido pelas leis e pela religião. a Fama – o monstro
descrito por virgílio (173-195) – espalha a notícia entre os povos: “a bela
dido se dignara unir-se ao troiano como a um esposo” (192)54 e “agora
passavam o inverno juntos, longo como ele é, na luxúria, esquecidos de seus
reinos, tomados por um desejo vergonhoso” (193-194)55. as consequências
não se izeram esperar. a notícia se espalhou pela terra e pelos céus. Jarbas, o
rei da numídia, declarou guerra a Cartago; e Júpiter, por meio de mercúrio,
convocou eneias para dar prosseguimento a sua missão. dido não pôde
suportar a ausência do amante e após amaldiçoá-lo se suicidou (195 ss.).
no século i de nossa era, em pleno império, durante o mando dos
príncipes Júlio-Cláudios, são compostas as tragédias de Sêneca. São
tragédias que abordam as paixões, sobretudo as que nascem do amor
proibido. e entre essas peças – que exploram tipologicamente as nuanças
dos sentimentos exacerbados –, avulta-se aquela que apresenta a catástrofe
como uma decorrência natural da destruição de um casamento por outro
casamento e a destruição do segundo por quem se apresenta como a vítima
do primeiro: medeia.
a tragédia Medeia se caracteriza por configurar-se como uma
contraposição do ritual do matrimônio. a princesa da Cólquida recita o
prólogo. e nessa recitação ela se dirige aos deuses numa prece, como se faz
nos casamentos. Começa por chamar os deuses conjugais, os Di coniugales
(Sen. Med. 1), usualmente invocados56. depois da invocação aos deuses
protetores do matrimônio, medeia chama por Lucina, atena, apolo, e passa
então a clamar pelas divindades infernais e pelos numes do mal: hécate, o
Caos, Prosérpina, as Fúrias.

54 ... cui se pulchra uiro dignetur iungere Dido – 192.


55 ... nunc hiemem inter se luxu, quam longa, fouere/ regnorum immemores turpique cupidine captos – 193-194.
56 o interessante é que a tragédia Medeia –a coniguração da impiedade absoluta – se abre e se fecha com
a palavra deus.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 163


após pedir-lhes a morte de Creúsa e Creonte, e “um mal maior que
a morte para Jasão”57, medeia amaldiçoa o esposo iniel, dispõe-se a agir
por sua conta, arrancando com as mãos o fogo do céu58, e incita sua mente
a procurar nas próprias vísceras o caminho da vingança, a recuperar o
antigo vigor, a despojar-se de medos femininos e vestir-se com a ferocidade
do Cáucaso59. a enfurecer-se totalmente, enim, para cometer os crimes
inauditos que a esperam.
Para helen Fyfe60, o prólogo de Sêneca é construído para esboçar a
motivação psicológica das ações de medeia ante o desmoronamento da
estrutura moral de seu mundo. Para Florence dupont61, o prólogo é um canto
de dolor e um anti-canto de hymen, apresentando uma “estrutura de inversão”.
a invocação às Fúrias (13-25) demonstra a entrega de medeia ao furor. as
tochas negras que tais divindades empunham e que substituem os brilhantes
fachos nupciais também caracterizam a inversão. as palavras de medeia a
levam a agir e ela se transforma na operadora das antinúpcias, em prônuba e
sacerdotisa simultaneamente, naquela que vai manipular as tochas do incêndio,
proceder ao sacrifício cruento, conforme suas próprias palavras62 e cometer o
nefas terrível, o crime hediondo para o qual não há perdão.
Reservamos ainda uma palavra para o párodo de Medeia, o alegre
epitalâmio em homenagem a Creúsa cantado pelo coro em sua entrada em
cena e oposto, termo a termo, à enlouquecida lamentação inicial contida no
prólogo. É um cântico sui generis no conjunto dos cantos corais das tragédias,
que, por conigurar-se como cântico nupcial, se inicia com uma invocação

57 ... mihi peius aliud, quod precer sponso, malum – 19 (“... algum mal pior, que eu pediria para meu esposo”).
Cf. Sénèque. Tragédies. texte ét. et trad. par L. heRRmann. 5e. tir. Paris: Les belles Lettres, 1973. t. 1.
58 Manibus excutiam faces/ caeloque lucem – 27-28 (“Com as mãos eu arrancarei o fogo e a luz do céu”).
59 Per uiscera ipsa quaere supplicio uiam,/ si uiuis, anime, si quid antiqui tibi/ remanet uigoris; pelle femineos
metus/ et inhospitalem Caucasusm mente indue – 40-43 (“Pelas próprias vísceras procura o caminho para
o suplício,/ se estás viva, ó minh´alma, se algo do antigo vigor em ti/ subsiste; expulsa o medo feminino/
e introduz em teu espírito o Cáucaso feroz”).
60 Cf. Fyfe, helen, an analysis of Seneca’s Medea. in: boYLe, a. J. (edit.).Seneca tragicus.Ramus essayson
senecan drama. victoria (australia), aureal Publications, 1983. p. 77-93.
61 Cf. dupont, Florence. Le théâtre latin. Paris: Colin, 1988. p. 77 ss.
62 Hoc restat unum, pronubam thalamo feram/ ut ipsa pinum postque sacriicas preces/ caedam dicatis uictimas
altaribus – 37-39 (“Resta ainda uma coisa: conduzir-me-ei como uma prônuba junto ao tálamo/ para
que, depois das tochas e das preces sacriiciais,/ eu própria imole as vítimas nos altares sagrados”).

164 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


aos deuses, contrastante com a que medeia faz no início do prólogo: agora
só se invocam os deuses superiores, aos quais serão oferecidos os sacrifícios
conforme a práxis. entre esses deuses são mencionados himeneu – a
divindade protetora do casamento – e vésper, a “estrela da tarde”, identiicada
com o planeta vênus e com a deusa do amor. após a invocação cantam-se,
como nos epitalâmios de Catulo, a formosura da noiva – mais bela do que as
jovens gregas de todas as partes da Grécia – e a beleza do esposo que supera a
dos mais formosos deuses e heróis. Para concluir seu canto, o coro compara
Creúsa com medeia, a esposa terrível, e convida os jovens presentes a iniciar
os folguedos próprios das festas de casamento: os cantos dialogados, sob
forma de desaios licenciosos.
o epitalâmio se fecha com mais uma invocação a himeneu, com novo
convite aos jovens para que se divirtam e entoem fesceninos63 e com votos
para que medeia se afaste de Corinto o quanto antes (114-116)64. os ritos
matrimoniais se unem aos anti-ritos para a celebração da vingança e da morte.
Para concluir nossas observações, reportamo-nos a mais um gênero
literário em que encontramos um texto a focalizar um ritual do casamento: a
sátira latina. tomamos Juvenal como exemplo, escritor latino que viveu entre
65 e 128, aproximadamente. o poeta, que na conhecida sátira 6 constrói uma
verdadeira diatribe contra os vícios comuns nas mulheres casadas, focaliza
na sátira 2 (117-130) um outro tipo de casamento: o que une dois homens65.
depois de criticar violentamente os homossexuais e seus hábitos, Juvenal
descreve a cerimônia nupcial, tal como a imagina, sem deixar de lembrar
qualquer dos elementos rituais. menciona o dote que um gladiador ofereceria
a um tocador de corneta66, as tabuinhas que seriam assinadas67, os votos

63 trata-se de um curioso sincretismo empregado por Sêneca.


64 Festa dicax fundat conuicia fescenninus,/ soluat turba iocos – tacitis eat illa tenebris,/ si qua peregrino nubit
fugitiua marito – 113-115(“Que o mordaz fescenino dê motivo a festivas zombarias, que a turba libere
as brincadeiras e que nas trevas silentes se afaste quem, na fuga, desposou um marido estrangeiro”).
65 Juvénal. Satires. texte ét. et trad. par P. LabRioLLe et P. viLLeneuve. Paris: Les belles Lettres, 1974.
p. 19-20.
66 assim se expressa o poeta: Quadringenta dedit Gracchus sestertia dotem/ cornicini, siue hic recto cantauerat
aere – 117-118 (“Graco deu quatrocentos sestércios como dote/ a um corneteiro; ou talvez ele tocasse
um instrumento reto, de bronze”).
67 ... signatae tabulae – 19 (“as tabuinhas foram assinadas”)

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 165


de felicidade que todos fariam68. descreve a ceia que ocorreria69 e a noiva
a reclinar-se sobre o peito do marido70. e o “eu-narrador” pergunta, numa
indagação indignada: “há necessidade de um censor e de um arúspice?”71
a noiva/noivo é descrita, na sequência: usa um vestido longo, enfeites
bordados e o lammeum, o véu cor de laranja das nubentes72. indignado, o
“eu-narrador” interpela Gradivo, o pai marte, fundador da raça romana.
Como pôde acontecer isso com seus ilhos?73 o deus não tomará nenhuma
providência?74 ele responde: não pode tomá-las porque tem um dever a
cumprir75. “Que dever seria esse?”76, insiste o sujeito da enunciação. a resposta
é lacônica: “um amigo se casa”, diz o deus77. “Nubit amicus”. Gradivo emprega o
verbo nubere, apenas usado quando se fala de mulheres que se casam, quando
o sujeito do enunciado é do sexo feminino; equivale ao desusado maridar-se
ou amaridar-se, em idioma vernáculo. Femina nubit se diz em latim; “a mulher
se casa”; uir ducit uxorem, “o homem conduz a desposada”, como se traduz “ao
pé da letra”, expressão equivalente a “o homem se casa”.
“tudo bem”, diz o narrador, concluindo sua exposição. “Que se viva
assim; que as coisas sejam assim; que se façam essas coisas publicamente e,
se quiserem, registradas nas atas”78. Custou um pouco para que os “votos”
sarcásticos do poeta se tornassem realidade.

68 ... dictum ‘feliciter’ – 19 (“fala-se: ‘felicidades’”).


69 ... ingens/ cena sedet – 19-20(“a grande ceia prossegue”).
70 ... gremio iacuit noua nupta mariti – 20 (“a nova esposa se reclina sobre o peito do marido”).
71 .... censore opus est an haruspice nobis?(121).
72 ... segmenta et longos habitus et lammea sumit (124).
73 O pater urbis,/ unde nefas tantum Latiis pastoribus? unde/ haec tetigit, Gradiue, tuos urtica nepotes? –
126-128 (Ó patrono de nossa cidade,/ de onde veio uma desgraça tão grande para os pastores latinos?
de onde veio esta urtiga que atingiu teus descendentes?
74 Traditur ecce uiro clarus genere atque opibus uir,/ nec galeam quassas nec terram cuspide pulsas/ nec quereris
patri. Vade ergo et cede seueri/ iugeribus campi, quem neglegis – 129-132(“eis que um homem, ilustre
pelo nascimento e pelos bens se entrega a outro homem/ e tu não agitas teu capacete, não percutes o
solo com tua lança/ não te queixas a teu pai? vai-te daqui, então, e renuncia às jeiras do campo sagrado
de que te descuidas!”)
75 Oicium cras/ primo sole mihi peragendum in ualle Quirini’ – 132-133 (“há um dever, amanhã,/ ao raiar
do sol, que deverá ser cumprido por mim no vale de Quirino”).
76 Quae causa oicii? 134 (“Qual é o motivo desse dever?”)
77 Nubit amicus – 134 (“um amigo vai ser desposado”).
78 Liceat modo uiuere, ient,/ ient ista palam, cupient et in acta referri (135-136).

166 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


e assim registramos alguns aspectos dos complexos ritos matrimoniais
romanos igurando como tema em todos os gêneros literários da poesia
latina.

referências

CaRCoPino, J. Roma no apogeu do Império. trad. de R. bloch. São Paulo:


Companhia do Livro/ Círculo do Livro, 1990.
CatuLLe. Poésies. texte ét. et trad. par G. Lafaye. 9a. ed. Paris: Les belles
Lettres, 1974.
duPont, Florence. Le théâtre latin. Paris: Colin, 1988.
FYFe, helen. an analysis of Seneca’s Medea. in: boyle, a. J. (edit.).Seneca
tragicus. Ramus essayson senecan drama. victoria (australia), aureal
Publications, 1983. pp. 77-93.
CRimaL, P. A civilização romana. trad. de i. S. aubyn. Lisboa: edições
70, 1988.
JuvenaL. Satires. texte ét. et trad. par P. Labiolle et P. villeneuve. Paris:
Les belles Lettres, 1974.
PLaute. Amphitryon. Asinaria. Aulularia. texte ét. et trad. par a. ernout.
Paris: Les belles Lettres, 1970.
PLauto. Aulularia (A comédia da panelinha). trad. introd. e notas de aída
Costa. São Paulo: difusão européia do Livro, 1967.
SeneQue. Tragédies. texte ét. et trad. par L. herrmann. 5e. tir. Paris: Les
belles Lettres, 1973. t. 1.
tite-Live. Histoire Romaine. trad. nouvelle, introd. et notes par e.
Lasserre. Paris: Garnier, 1944. t. 1er.
viRGiLe. Oeuvres. texte publié par F. Plessis et P. Lejay. Paris: hachette,
1945.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 167


PoESIA AmoroSA E INFÂmIA:
Eu PoÉTICo E AuTor EmPÍrICo NA romA ANTIGA

Paulo Sérgio de Vasconcellos

em nosso campo de estudos, estamos acostumados a distinguir, diante


de um texto poético em primeira pessoa, o autor de carne e osso e o eu
poético, a persona construída no texto. Sabemos, entretanto, que o leigo,
fora da academia, tende a confundir as duas instâncias e atribuir ao autor
empírico o que seu texto enuncia na primeira pessoa. até não muito tempo
atrás, nos estudos clássicos era forte a interpretação biograista da poesia
em primeira pessoa que, como faz muitas vezes o leigo, confundia as duas
instâncias, autor e persona. de fato, pudemos assistir, em nossa área, a uma
espécie de combate aguerrido contra leituras ingênuas que não levam em
consideração convenções genéricas e a iccionalidade do discurso poético
ao analisar a poesia dos antigos. no entanto, uma pergunta que não fazemos
com frequência é como era, na própria antiguidade, a recepção desse tipo
de poesia. aqui, para efeito prático nos deteremos na poesia amorosa em
primeira pessoa e sua recepção na Roma antiga.
não é incomum que se atribua a uma inluência do Romantismo as
leituras biograistas que um dia foram comuns nos estudos clássicos e hoje
se encontram desprestigiadas.1 a obra de Paul veyne sobre a elegia amorosa
romana, por exemplo, em alguns momentos dá a entender que os leitores
da época de produção dessa poesia estavam perfeitamente conscientes do

1 um exemplo dessa atribuição da confusão entre persona poética e autor de carne e osso a uma leitura
de tipo romântico: “tomou-se portanto este ego [o de Propércio] pela conissão de um poeta romântico”
(veYne, Paul. A elegia erótica romana. O amor, a poesia e o ocidente. São Paulo: brasiliense, 1985, p.
11). outros, expressos por maria Wyke: “a visão romântica de que a elegia amorosa de Propércio é uma
expressão verdadeira dos sentimentos de seu autor e uma representação realística de uma namorada
augustana” (maria Wyke. “Written women: Propertius’ scripta puella”. he Journal of Roman studies,
volume LXXvii, 1987, p. 47). “assim, a poesia amorosa augustana continuou a ser assombrada pela
teoria romântica de que era produzida para expressar a própria experiência amatória de seu autor” (he
Roman mistress. Ancient and modern representations. oxford, oxford university Press, 2002, p 16). Com
exceção do texto de veyne, passagens da literatura especializada transcritas neste texto são apresentadas
em tradução nossa.

168 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


caráter ictício das aventuras amorosas narradas e da brincadeira com um
ego que ninguém tomaria como expressão de sentimentos reais de um
autor empírico.2 entretanto, pesquisas recentes revelam que a categoria de
“persona” poética nunca foi teorizada pelos antigos;3 mais: a leitura de tipo
biograista era comum, embora de quando em quando, poetas, sentindo-se
pressionados em certas situações, se expressassem no sentido de distinguir
vida pessoal e poesia. muito antes do Romantismo... tomar o que se
expressava em primeira pessoa como realidade vivenciada ou sentimento
experimentado pelo autor empírico não parece ter sido nada excepcional
na Roma antiga.
Começaremos nossa incursão pela recepção da poesia amorosa entre
os antigos romanos procurando saber se um autor de carne e osso poderia
ser alvo de má fama, de infamia, pelos sentimentos que expressou ou as
aventuras amorosas que narrou em versos da poesia amorosa em primeira
pessoa, o que mostraria uma indistinção entre autor empírico e persona
poética. tomamos o latim infamia no sentido de “má reputação” e “má fama”,
os primeiros registrados no dicionário oxford para esse substantivo, e não no
sentido técnico de “desonra oicial (envolvendo a perda de certos direitos)”,
sentido 2b do mesmo léxico.
na elegia amorosa romana, uma certa situação se repete a tal ponto que
tudo leva a crer tratar-se de um topos: pelo conteúdo de suas elegias amorosas,
o poeta é apontado na Cidade como exemplo de homem imprestável, por
causa da vida dissoluta que se revela nesses versos.
em Amores iii, 1, a tragédia, personiicada, repreende o poeta elegíaco,
incitando-o a obra mais séria (incipe maius opus, v. 24) e, entre outras coisas,
pinta o que supostamente seria sua imagem em Roma:

Nequitiam uinosa tuam conuiuia narrant,


Narrant in multas conpita secta uias.
Saepe aliquis digito uatem designat euntem,
Atque ait “hic, hic est, quem ferus urit Amor”.

2 veja-se o que dizemos em “esquecer veyne?”, vol. vii, no. 1, 2011, pp. 105-118.
3 Cf. diskin Clay. “he theory of literary persona in antiquity”. Materiali e discussioni per l’analisi dei
testi classici, volume 40, 1998, pp. 14-15 e Roland G.mayer. “Persona<l> Problems. he Literary Person
in antiquity Revisited”. Materiali e discussioni per l’analisi dei testi classici, vol. 50, 2003, pp. 55-80.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 169


Fabula, nec sentis, tota iactaris in Vrbe
Dum tua praeterito facta pudore refers. (Amores, iii, 1, 17-22)4

“os banquetes regados a vinho falam de tua vileza,


Falam as encruzilhadas recortadas em muitas vias.
muitas vezes alguém com o dedo aponta o vate que lá vai
e diz: “é este, este a quem queima o fero amor”.
És, sem o sentires, o alvo da fofoca em toda a Cidade,
enquanto contas teus feitos deixando de lado o pudor.”

na passagem dos Amores, uma leitura biograista poderia fazer crer que
a tragédia aponta uma certa recepção real da poesia elegíaca ovidiana em sua
época: tomando o discurso elegíaco como confessional, as pessoas apontariam
o poeta como um “imprestável” (é difícil traduzir nequitia, a “qualidade” de
se ser um imprestável, um “homem de nenhum valor”, como se lê em aulo
Gélio, vi, 115). Como se sabe, nequitia é palavra comum na elegia romana6.
num outro trecho dos Amores (ii, 1, 2), a persona elegíaca assim se
deiniria: Ille ego nequitiae Naso poeta meae. aqui, num único verso ovídio
confunde persona e autor de carne e osso: ele é o famoso nasão, poeta de
sua própria “vileza”: note-se a ênfase do possessivo em disjunção, no im
do verso, o mesmo procedimento que encontraremos nos Tristes quando
ovídio aponta os poetas que teriam confessado suas aventuras amorosas
indecorosas; confronte-se:

ille ego nequitiae naso poeta meae


delicias uersu fassus es ipse tuas (tristes, ii, 268: sobre Calimaco)7
“no verso confessaste teus próprios deleites”.
non potuit veneris furta tacere suae, (ii, 440: sobre varrão atacino)

4 texto da edição seguinte: ovide. Les amours. texte établi et traduit par henri bornecque. Paris, Les
belles Lettres, 1995.
5 Homo nihili rei neque frugis bonae. em seu tempo, era sinônimo de “esperteza” (pro sollertia astutiaque).
6 ver PiChon, René. Index verborum amatoriorum. hildesheim, Georg olms, 1966, p. 212.
7 texto da edição seguinte: ovide. Tristes. texte établi et traduit par Jacques andré. Paris, “Les belles
Lettres”, 1968.

170 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


“não pôde calar os furtos de sua vênus”.
Cf.: Saepe suos solitus recitare Propertius ignes (iv, 10, 46)
“amiúde Propércio costumava recitar-me seus próprios ardores”.8

ovídio se define o poeta de sua nequitia, em versos que trazem


informação de tipo biográico (Hoc quoque composui Paelignis natus aquosis
– v. 1: “isto também, eu, nascido entre os pelignos abundantes em água,
compus”), no poema de abertura (programático, portanto) do livro ii.
nos Amores, ii, 17, ego diz não se importar em ser rotulado como
infamis, desde que vênus o trate melhor:

Si quis erit qui turpe putet seruire puellae,


illo conuincar iudice turpis ego;
Sim licet infamis, dum me moderatius urat
quae Paphon et luctu pulsa Cythera tenet. (amores ii, 17, v. 1-4)

Se houver alguém que julgue torpe ser escravo de uma menina,


Que sob tal juiz provem minha torpeza;
tudo bem que eu seja infame, contanto que me arda mais moderadamente
a que ocupa Pafos e o Citéron batido pela vaga”.

entretanto, na elegia do segundo livro dos Tristes, em que procura se


defender da acusação de licenciosidade usada como pretexto para seu exílio,
ovídio garante que não foi alvo de fofoca nenhuma:

Sic ego delicias et mollia carmina feci,


Strinxerit ut nomen fabula nulla meum (tristes, ii, vv. 349-350)

“eu compus deleites e versos delicados de forma tal,


Que nenhuma fofoca maculasse meu nome.”

o que signiica isso? Se crermos no testemunho de ovídio, aqui, os seus


conterrâneos não tomavam a persona poética pelo autor, ao contrário do que

8 entendemos ignes como “poemas de amor” e, ao mesmo tempo, “amores” relatados nesses poemas.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 171


diz a tragédia nos Amores; portanto, teríamos somente um motivo poético
quando ela diz que todos em Roma falam de sua “vileza” (signiicando,
metapoeticamente, que todos falam de sua poesia elegíaca, de sua persona
poética).
de fato, em Propércio encontramos a mesma imagem de um poeta
elegíaco que é alvo da fofoca:

tu loqueris, cum sis iam noto fabula libro (ii, 24, 1).9

“tu falas, ao passo que és, por teu conhecido livro, alvo de fofoca”.

mais eloquentemente, em Propércio ii, 24, vv. 5-7, lemos:

Quod si iam facilis spiraret Cynthia nobis,


non ego nequitiae dicerer esse caput
nec sic per totam infamis traducerer urbem. (Propércio ii, 24, vv. 5-7)

“e se Cíntia se mostrasse então fácil para nós,


eu não seria apontado como o suprassumo da vileza,
nem me exibiriam assim, por toda a cidade, como alguém de má fama”.

Risus eram positis inter conuiuia mensis


e de me poterat quilibet esse loquax! (iii, 25, vv. 1-2)
“eu era o riso em meio às mesas dos banquetes
e de mim todo mundo podia tagarelar”.

Que ser objeto de diz-que-diz em toda a cidade é, de fato, topos


elegíaco,10 conirmam-no, além dos passos citados, certas passagens de
tibulo; destacamos:

9 texto da edição seguinte: PRoPeRCe. Elégies. texte établi et traduit par d. Paganelli. Paris, Les belles
Lettres, 1947.
10 e se vê como Catulo lançou as bases da elegia latina não apenas em um poema como o 68: a tópica em
questão já está no poema 5: aos rumores dos velhos muito severos, Catulo contrapõe um ideal de amor
jovial que será o ponto central da elegia.

172 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Parce, puer, quaeso, ne turpis fabula iam,
Cum mea ridebunt uana magisteria. (i, 4, vv. 83-84).

“Poupa-me, rapaz, peço-te, para que eu não me torne diz-que-diz vergonhoso,


Quando zombarem de meu vão ensinamento.”

o puer márato, torturando ego, fará dele objeto de zombaria, pois o


praeceptor amoris fracassará em sua relação com o rapaz, na qual, de senhor, passa
a escravo no plano sentimental – e as pessoas zombarão dele por esse fracasso.
o código elegíaco prevê o topos de uma recepção da poesia em que as
aventuras amorosas de ego serão alvo de censura e zombaria geral por sua
nequitia... no modo como esse topos é enunciado vê-se uma indistinção
entre eu poético e autor empírico: ego se chama tibulo, Propércio, ovídio,
e os poetas mencionam um modo nada positivo em que se julgará o que se
escreveu nas elegias. brinca-se com uma recepção da obra em que Roma
inteira, baseando-se no que ego diz, apontará com desaprovação a nequitia do
poeta. É óbvio que se trata de um topos literário, a não se levar a sério, mas é
claro também que se joga com uma recepção da obra elegíaca que considera
o que vai nela narrado como verdade factual, retrato nada lisonjeiro de ego.
ambiguidades elegíacas, algo comum nesse gênero...
a elegia amorosa romana, com seu jogo semiótico típico, em que escrever
elegia signiica estar apaixonado (ego é um jovem poeta apaixonado por
uma jovem ou um jovem, escreve sobre sua paixão e será lido por jovens
apaixonados), brinca com o topos da infâmia advinda dos versos, como se o
leitor da época tomasse como realidade factual o que é expresso nesse tipo de
poesia. mas uma série de testemunhos diz-nos que uma confusão entre eu
poético e autor empírico poderia ser mais do que um simples topos sem raiz na
recepção real dos poemas. em suma, os antigos, como os modernos, podiam
tomar como expressão do autor de carne e osso o que ia dito em primeira
pessoa na poesia amorosa, e temos testemunhos de que isso ocorria. Por outro
lado, embora não houvesse teorização sobre a categoria da persona poética,
distinta do autor de carne e osso, essa distinção era feita ocasionalmente.
um texto muito interessante para discutir essa questão, é a controvérsia
vi, 8 de Sêneca o Rétor. Por ela, podemos inferir que a recepção da poesia
subjetiva poderia mesmo ser polêmica, isto é, dependendo do leitor,

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 173


distinguir ou não persona poética e autor empírico. o caso tratado pela
controvérsia é de sérias consequências, pois envolve condenar ou não uma
vestal à quebra de seu voto – e sabemos quão terrível era sua punição. tudo
parte de uma questão bem simples: uma vestal escreveu um verso em que
louva o casamento; assim, teria quebrado seu voto de castidade:

Virgo Vestalis scripsit hunc uersum: felices nuptae! moriar nisi nubere dulce est.”
Rea est incesti.11

“uma virgem vestal escreveu este verso: ‘felizes as casadas! Que eu morra se
casar não é agradável’. É acusada de incesto.”

uma das partes condena a vestal por essa declaração que soa como
quebra sacrílega do voto de castidade:

o te omni supplicio dignam cui quicquam sacerdotio felicius est! “dulce est”:
quam expressa uox, quam ex imis uisceribus emissa non expertae tantum sed
delectae! incesta est etiam sine stupro quae cupit stuprum.

“Ó digna de todo suplício, tu, a quem algo é mais feliz que o sacerdócio! “É
agradável!”: que clareza de expressão, como vem do íntimo não apenas de uma
experiente mas de quem se deleitou! infringe a castidade a que, mesmo sem
uma relação ilícita, deseja uma relação ilícita”.

depoimento sumamente interessante: a simples menção de um desejo


em primeira pessoa, num verso, faria a vestal digna da pena capital por ter
quebrado a castidade. mas, como em toda controuersia há uma réplica, o
outro lado relativiza o suposto crime, ainal “é só um verso o que se lhe objeta,
e nem mesmo inteiro” (Vnus illi versus obicitur, ne hic quidem totus). e, se
errou escrevendo verso, a vestal só merece reprovação, não punição (Multum
interest obiurges an punias). Se o corpo não foi violado, não se pode acusá-la

11 texto da edição seguinte: SeneCa, the elder. Declamations. translated by m. Winterbottom. Cambridge,
massachusetts, harvard university. Press, 1974. ao longo deste texto, porém, uniformizamos a graia
do “u” consonantal” (grafado sempre “u”) e do “u” maiúsculo, vocálico ou consonantal (grafado “v”).

174 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


de quebra da castidade (Incesti damnari nulla potest nisi cuius violatum corpus
est). e, por im, em defesa da vestal, uma declaração, em pergunta retórica:
os poetas não escrevem necessariamente o que pensam/sentem:

Quid, tu putas poetas quae sentiunt scribere?

“Quê? tu achas que os poetas escrevem o que sentem?”

uma coisa é o verso, outra a vida. a vestal em questão se comportou,


em sua vida pessoal, da maneira mais honesta:

Vixit modeste, castigate; non cultus in illa luxuriosior, non conuersatio cum uiris
licentiosior; unum crimen eius uobis coniteor: ingenium habet.

“tem vivido de forma comedida, pura; seu traje não é mais luxuoso, seu trato
com os homens não mais licencioso: seu único crime eu admito diante de vós:
tem engenho.”

na discussão do tema de que estamos tratando, é forçoso lembrar um


exemplo muito eloquente de distinção entre uita e ars que inspirou ovídio,
marcial, Plínio o Jovem e apuleio, que, todos, se apoiam nesse ilustre
predecessor para defender sua arte: falamos do poema 16 de Catulo:

Pedicabo ego uos et irrumabo,


Aureli pathice et cinaede Furi,
Qui me ex uersiculis meis putastis,
Quod sunt molliculi, parum pudicum.
Nam castum esse decet pium poetam
Ipsum, uersiculos nihil necesse est,
Qui tum denique habent salem et leporem,
Si sunt molliculi ac parum pudici
Et quod pruriat incitare possunt,
Non dico pueris, sed his pilosis
Qui duros nequeunt mouere lumbos
Vos, quei multa milia basiorum

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 175


Legistis, male me marem putatis?
Pedicabo ego uos et irrumabo.12

“enrabarei você, farei que chupem,


aurélio passivona e bicha Fúrio,
Que a mim, por meus versinhos só, julgaram,
Como são delicados, não pudico.13
Pois casto deve ser o pio poeta
ele próprio, os versinhos não é preciso,
Já que têm justamente sal e graça
Se delicados são e não pudicos
e podem incitar algum tesão
não digo nos meninos: nos peludos
Que não podem mover os duros lombos.
vocês, que muitos mil de beijos leram,
Que eu não sou muito macho estão julgando?
enrabarei vocês, farei que chupem.”

12 texto estampado em CatuLLe. Poésies. texte établi et traduit par Georges Lafaye. Quatrième édition
revue et corrigée. Paris: “Les belles Lettres”, 1958.
13 Que poema seria esse: o 48, dos beijos a Juvêncio, ou o poema 5? o fato de que a expressão milia multa
[basiorum] aparece em mesma sede métrica neste último nos faz crer que a alusão é a ele. um argumento
de outra natureza para defender que se trata dos beijos a Lésbia: quando o leitor antigo lia o conjunto
do libellus, desenrolando o uolumen, a associação só podia ser feita com os poemas anteriores – 5 e 7,
não com o muito distante 48. Fúrio e aurélio funcionam como igurações de um tipo de leitor (legistis)
que o poeta rejeita, como se no poema 16 não apenas airmasse sua virilidade mas – e sobretudo – o
controle sobre a interpretação. o leitor que tirar as conclusões que Fúrio e aurélio tiraram a partir da
leitura dos poemas dos beijos poderá se sentir colocado na mesma posição de alvo das ameaças do autor:
implicado, pois, nesse uos, que só no segundo verso recebe especiicação; em suma, estamos sempre no
terreno metapoético.

176 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Se esse poema de Catulo mostra bem a distinção entre o ethos dos versos
e o do do autor de carne e osso (v. 5-6),14 constitui também – o que não se
tem observado com a mesma frequência – um documento sobre o fato de que
então, como hoje, os leitores podiam confundir o plano da icção poética com
o plano da realidade, o ethos ou a vida pessoal do poeta empírico com o ethos
ou os elementos de uma biograia “icta” assumida por sua persona – e isso,
de fato, ocorria. ou seja, acostumamo-nos a falar da recepção que confunde
uma coisa e outra como se ela fosse apenas um resquício relativamente
recente, isto é, consequência de uma renitente inluência romântica, mas ela
já acontecia na antiguidade.
Catulo responde a uma acusação de ser um pathicus, homossexual passivo,
atribuindo a característica de pathici aos versos, distinguindo a ethos do autor
de carne e osso do caráter efeminado dos versinhos; daí ovídio e marcial
retomarem essa proissão de fé para repelirem acusação de imoralidade do
autor a partir de sua obra. em suma, aspectos da ars não podem ser invocados
para julgar o ethos do autor de carne e osso.15 além disso, o poema joga com a
capacidade da escrita em criar uma icção que pode ser tomada como realidade:

14 notemos o jogo de oposições entre o poeta e seus versos: me/ ex uersiculis meis; pium poetam ipsum.../
uersiculis; me...parum pudicum/[uersiculi] parum pudici. observemos também que chamar os versos
de molliculi e parum pudici (=impudici) equivale a admitir a pouca virilidade...dos versos, que são
caracterizados por adjetivação frequentemente associada a homens não viris. Segundo WiLLiamS
(Roman homosexuality. Ideologies of masculinity in classical antiquity. new York-London: oxford
university Press, 1999, p. 173), a acusação eufemística de impudicitia lançada contra um homem poderia
“signiicar que ele tinha sido penetrado. nesse sentido, pudicitia não representa nenhuma noção vaga
de castidade ou pureza, mas, sim, o ideal especíico de integridade corporal masculina compreendida
como impenetrabilidade.” acusar um homem de parum pudicum (v. 4) signiicava, então, acusá-lo de
ter comprometido a inviolabilidade seu corpo, deixando-se penetrar por um outro homem. o poema
16 admite que haja impudicitia, mas nos versos, não no poeta. ao dizer poetam ipsum, Catulo parece
empregar expressão próxima do nosso “autor de carne e osso”. Sobre pathicus e cinaedus: “Pathicus denota
um homem que foi penetrado pelo ânus”, segundo o mesmo autor (ibidem, p. 175); sobre cinaedus:
“um homem que falha em viver de acordo com os padrões tradicionais do comportamento masculino,
e uma das maneiras pelas quais ele chega a fazer isso é procurando ser penetrado” (idem ibidem). mas
talvez seja preferível ver em pathicus uma referência à passividade no sexo oral, o que cria uma espécie
de quiasmo apontado pelos estudiosos: Pedicabo (sexo anal)...irrumabo (oral) Aureli pathice (oral) e
cinaede (anal) Furi. os versos são, de fato, efeminados, admite Catulo, assim como na poesia elegíaca o
poeta produz um molle...uersum – Propércio, i, 17, 19, ver WYKe, maria. he Roman mistress. Ancient
and modern representations. oxford, oxford university Press, 2002, p. 168).
15 Plínio o Jovem (iv, 14), ao apresentar a um correspondente seus hendecassílabos, cita o precedente catuliano
para justiicar-se: homens da maior gravidade não só não se abstiveram de assuntos voluptuosos (lasciuia
rerum), mas nem mesmo de palavras cruas (uerbis...nudis); Catulo expressou, no poema 16, a lei do gênero
(illam esse uerisssimam legem, quam Catullus expressit). texto adotado: PLinY. Letters and panegyricus.
With an english translation by betty Radice. Cambridge, massachusetts, harvard university Press, 1989.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 177


se Fúrio e aurélio tomam por verdade tudo o que vem expresso na poesia,
ao enunciar a ameaça de pedicare e irrumare os detratores, o poeta estará
praticando esse ato contra eles.16 Se os poemas que motivaram a acusação de
pathicus (e, de fato, os versos eram pathici, admite Catulo...) transformam o
seu autor em pathicus, na leitura distorcida dos Fúrios e aurélios, o poema de
vingança criará, para seu autor, o ethos de um papel ativo na relação sexual,
em airmação de virilidade contra os leitores mal-intencionados.17 o poema
tem uma ironia e uma ambiguidade inas: Catulo só poderá se vingar pela
palavra tomando a palavra como um ato concretizador do que enuncia,
exatamente o tipo de leitura que possibilitou o equívoco de Fúrio e aurélio.18
esses leitores, a partir de versinhos efeminados, julgaram Catulo efeminado;
Catulo responde com um verso de airmação de virilidade, que, lido à maneira
daqueles intérpretes, fará deles efeminados.
mais: Fúrio e aurélio representam um tipo de leitura que qualquer
leitor do livro de Catulo poderia fazer depois de passar pelo poema v e vii,
sobretudo o primeiro, que fala dos “muitos milhares” de beijos pedidos a
Lésbia (uos qui legistis) – e contra essa postura “biograista” o poema adverte,
numa espécie de tentativa de controle da interpretação daquela poesia
amorosa que o leitor, desenrolando o uolumen, leu.19

16 Resume, com excelência batstone (apud GaiSSeR, Julia maria (ed.). Oxford readings in classical
studies. oxford, oxford university Press, 2007, p. 248): “em outras palavras, enquanto Fúrio e aurélio
continuarem suas leituras literais, eles serão literalmente ameaçados por esse poema”.
17 Como se sabe, para os romanos, submeter um outro homem ao sexo oral ou anal era uma manifestação
de virilidade. o marido que surpreendia a mulher em adultério poderia tratar assim o amante, num
ritual público de humilhação e demonstração do poder subjugador do marido que se vinga.
18 vale a pena transcrever a interpretação de Krostenko: “o primeiro verso soa simplesmente como um
xingamento idiomático (“foda-se”). mas, com o verso inal, uma vez que o poema desenvolveu a imagem
do poeta como viril, as mesmas palavras são tomadas em sentido literal (“eu foderei vocês”). o mesmo
é verdadeiro para os insultos pathicus e cinaedus, cujo sentido literal não é concretizado até o im do
poema, quando pedicabo e irrumabo, repetidos, os revigora em retrospecto. Quando Fúrio e aurélio
chegam ao verso inal do poema e percebem que o primeiro verso signiicava algo diferente do que parecia
signiicar, eles descobrem que foram forçados a ler mal, assim como leram mal os poemas catulianos
dos beijos. enquanto eles o forçaram, com seu ato de leitura, a ser parum pudicus, agora ele os força,
pelo seu ato de escrita, a ser pathicus e cinaedus. Sua incapacidade de compreender a poesia de puro
deleite signiica que eles terão de sofrer a desonra, pois o pedicatus (“fodido na bunda”) e o irrumatus
(“fodido na boca”) eram acremente estigmatizados na ideologia mesma que gerou a hermenêutica que
levou à má leitura de Fúrio e aurélio. eles são agredidos pela mesma hermenêutica que os encorajou
a agredir” (KRoStenKo, brian a. Cicero, Catullus and the language of social performance. Chicago &
London, university of Chicago Press, 2001, pp. 279-280).
19 veja-se a nota 14.

178 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Se, no poema 16, vemos Catulo brincar com o poder da palavra
poética que fará de leitores equivocados objeto passivo de sua airmação de
virilidade, num outro poema, o 37, teremos jogo semelhante com esse poder
concretizador de ameaça.

Salax taberna uosque contubernales,


A pilleatis nona fratribus pila,
Solis putatis esse mentulas uobis,
Solis licere quicquid est puellarum
Confutuere et putare ceteros hircos?
An, continenter quod sedetis insulsi
Centum an ducenti, non putatis ausurum
Me una ducentos irrumare sessores?
Atqui putate; namque totius uobis
Frontem tabernae †sopionibus† scribam.

“taberna devassa e vocês, companheiros de taberna,


nona coluna após o templo dos irmãos de barrete20.
estão achando que só vocês têm pau,
Só vocês podem foder tudo quanto é moça
e os outros são bodes?
ou, por icarem sentados um ao lado do outro,
Cem ou duzentos idiotas, estão achando que eu não ousarei
Fazer com que me chupem ao mesmo tempo duzentos sentadores?
mas podem achar! Pois que a fachada da taberna
Cobrirei toda com inscrições...”

o que traduzimos como “inscrições” é, ao que parece, sopionibus: o


texto é incerto. mas que sentido dar a essa palavra? o OLD traz, para sopio,

20 Como os edifícios não tinham número, “templos e monumentos importantes serviam de ponto de
referência” (GubeRnatiS, 1980, p. 71). aqui, Catulo localiza a taberna em referência ao templo de
Cástor e Pólux, divindades que eram representadas com o pileum, um barrete de forma cônica. Sabe-se
que o templo icava no fórum.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 179


“penis”, o que é aceito pelos estudiosos21. assim, no poema 16, ameaça-se
Fúrio e aurélio por terem tomado o ethos dos versinhos pelo ethos do autor;
a composição em anel, insistindo ao inal na ameaça, parece dizer que, pelo
poder da palavra, escrevendo que vai pedicare ou irrumare aos dois amigos,
o poeta estará concretamente realizando essa ação. em 37, Catulo ameaça os
frequentadores da salax taberna com uma ação aparentemente impossível,
irrumare duzentos deles ao mesmo tempo (una) e garante que cumprirá
a ação (Atqui putate), escrevendo na fachada da casa (frontem tabernae)
algo obsceno. Seja qual for o signiicado preciso de sopionibus, é claro que
a ação com a qual se cumprirá a ameaça é concretizada pela escrita. nos
dois poemas, pela escrita, haverá uma vingança baseada numa airmação de
virilidade que consiste na submissão de outros ao papel passivo no ato sexual.
nesse sentido, é interessante confrontar a ênfase dada ao pronome pessoal
nos dois poemas: no 16, pedicabo ego uos (vv. 1 e 14)/ no 37, me (posição
enfática no verso) una ducentos irrumare sessores (37, v. 8).22
Jogo metapoético, pois. e se aceitarmos o que diz Quinn sobre o poema
37: “Catulo ameaça com uma ação drástica, talvez o poema 37 seja essa ação
drástica”23, a semelhança se torna mais aguda, pois também o poema 16 é a
ação de vingança.
além de Catulo, poetas como ovídio e marcial, conforme já lembramos,
defendem sua reputação distinguindo arte e vida, pois certamente havia
leitores que poderiam confundir as duas instâncias. apuleio, como sabemos
por sua Apologia, teve versos amorosos seus lidos num tribunal pelos
acusadores para difamar sua reputação. assim, tentar manchar a reputação
de um escritor por meio do conteúdo de sua poesia amorosa em primeira
pessoa era uma tática de acusação empregada nos tribunais.
em Cícero, encontramos textos importantes para avaliarmos o que
pensariam os antigos a respeito da questão do eu-poético na poesia amorosa.
o arpinate trata a produção poética dos autores de poesia amorosa sem fazer

21 FoRSYth, Phyllis Young. he poems of Catullus. A teaching text. Lanhan-new York-London, Press of
america, 1986, p. 231); “a palavra obscura sopio… pode muito bem signiicar ‘pênis’” (adam, J. n.
he Latin sexual vocabulary. London, duckworth, 1982, p. 64).
22 Cf. Fitzgerald, 1995, p.66.
23 Quinn, Kenneth. Catullus. An interpretation. London: b. t. batsford, 1972, p. 96.

180 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


distinção alguma entre autor histórico e persona poética. nas Tusculanas,
ao mencionar alceu, Cícero nitidamente toma o que o eu-poético canta
por uma revelação autobiográica e aponta o caso paradoxal de um homem
de elogiável bravura em seu país, mas que cantou algo pouco sério em seus
poemas (grifo nosso):

Quid denique doctissimi et summi poetae de se ipsis et carminibus edunt et


cantibus? Fortis uir in sua re publica cognitus quae de iuuenum amore scribit
Alcaeus! (iv, 33, 71)24

“o que, em suma, os maiores e mais doutos poetas revelam a respeito de si


próprios em versos e cantos? Reconhecido como um homem de bravura em
seu país, que coisas escreve alceu sobre o amor dos jovens!”

ao lado de um juízo positivo sobre a ação de alceu (fortis uir) como


personagem histórica na vida política (re publica) de seu país, vê-se, nas
entrelinhas de uma expressão elíptica, uma apreciação negativa de sua poesia
amorosa, que revelaria algo não decoroso e infamante para quem o escreveu.
no contexto desse livro das Tusculanas, Cícero trata dos efeitos nocivos do
amor25; é signiicativo que exempliique esses efeitos com a menção – entre
outros gêneros26 – à poesia amorosa, cujos autores teriam dado a conhecer
aventuras amorosas indecorosas.
em crítica de substrato platônico, os poetas são condenados por
estimular as paixões:

24 texto estampado em CiCeRone. Le Tusculane. a cura di adolfo di virginio. milano, arnoldo


mondadori, 1996.
25 visto como o pior dos sentimentos, pelas ações que leva as pessoas a praticar (v, 32, 75).
26 Cícero perpassa alguns gêneros, para criticar o modo como os poetas exaltam um sentimento na verdade
nefasto. Por exemplo, comentando versos de Lucílio que divinizam o amor: O praeclaram emendatricem
uitae poeticam, quae amorem lagiti et leuitatis auctorem in consilio deorum conlocandum putet! (“oh!
poesia, preclara corretora da vida, que ao amor, fonte de escândalo e leviandade, julga que se deva colocar
num concílio divino”). Sobre a comédia: De comoedia loquor, quae, si haec lagitia non probaremus, nulla
esset omnino (“É da comédia que falo, a qual, se não aprovássemos esses escândalos, não existiria na sua
totalidade” – Tusculanae, iv, 32, 69).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 181


Sed uidesne, poetae quid mali adferant? lamentantis inducunt fortissimos uiros,
molliunt animos nostros, ita sunt deinde dulces, ut non legantur modo, sed
etiam ediscantur. sic ad malam domesticam disciplinam uitamque umbratilem
et delicatam cum accesserunt etiam poetae, neruos omnis uirtutis elidunt. Recte
igitur a Platone eiciuntur ex ea ciuitate, quam inxit ille, cum optimos mores et
optimum rei publicae statum exquireret. at uero nos, docti a Graecia, haec et a
pueritia legimus et ediscimus, hanc eruditionem liberalem et doctrinam putamus
(ii, 11, 27)

“mas vês que mal os poetas causam? Representam os mais bravos homens
lamentando-se, amolecem nosso ânimo, são, além disso, a tal ponto deleitosos
que não apenas são lidos, mas aprendidos de cor. assim, quando a uma disci-
plina doméstica defeituosa e a uma vida na sombra e reinada, vêm-se juntar os
poetas, esgarçam todos os nervos da virtude. Corretamente, pois, são expulsos
por Platão da cidade que ele imaginou, buscando os melhores costumes e a
melhor condição para a República. mas nós, ensinados pela Grécia, lemos e
decoramos esse tipo de coisa desde a infância; é isso que consideramos edu-
cação liberal e cultura”.

É digno de nota o poder de sedução e desibramento dos cidadãos que


Cícero atribui a certos tipos de poesia. Poemas, em Roma, não são apenas
lidos, mas, decorados, se ixam profundamente na mente (inhaerescunt
penitus in mentibus – iii, 2, 3), provocando seus efeitos deletérios.
Íbico, em seus escritos, revelaria que ardeu de paixão:

Maxume uero omnium lagrasse amore Reginum Ibycum apparet ex scriptis.


(iv, 33, 71)

“evidencia-se a partir de seus escritos que quem mais ardeu de amor foi Íbico
de Régio.”

após citar poetas de temática amorosa, Cícero conclui:

Atque horum omnium lubidinosos esse amores uidemus. (iv, 34, 71)

“e vemos que os amores de todos estes eram libidinosos”.

182 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


no entanto, sabemos, pelo testemunho de Plínio o Jovem (Epist. vii,
4), que o próprio Cícero também escreveu poesia amorosa, de caráter
pederástico. uma interpretação biograista desse paradoxo tentaria conciliar
os fatos, dizendo, por exemplo, que, ao escrever as Tusculanas, Cícero estaria
renegando essa parte de sua obra poética. entretanto, outra visão é possível: o
escritor muda de ponto de vista de acordo com o gênero de obra que pratica.
ao escrever ilosoia moral, Cícero assumiria o ethos do homem temperado
que, na busca do comportamento racional e equilibrado, renega sentimentos
como a paixão amorosa; assim, a recusa de uma poesia que exalta essa paixão
seria uma decorrência natural desse gênero de escrita. ao escrever poesia
amorosa, Cícero adota, atendendo ao decorum, a máscara do ego apaixonado.
em vez de apontar uma incoerência, ressaltemos a adequação do discurso ao
tipo de enunciação... ao praticar certo gênero de escrita, o escritor adota certa
“persona”, que pode, então, variar radicalmente de gênero a gênero. esse tema
fascinante ainda não foi estudado mais profundamente, ao que nos consta.
até mesmo a preferência por certo tema considerado indecoroso
poderia lançar sobre o escritor má reputação, mesmo quando não se tratava
de poesia em primeira pessoa. em seu famoso inventário sobre os escritores
gregos e romanos, realizado a partir de categorias genéricas, no livro X de sua
Institutio oratoria, Quintiliano cita um autor de fabulae togatae, afrânio, cuja
obra nos chegou em parcos fragmentos e que era um imitador de menandro
da época de terêncio:

Togatis excellit Afranius: utinam non inquinasset argumenta puerorum foedis


amoribus mores suos fassus. (X, 1, 100; grifo nosso)

“nas comédias togadas, destaca-se afrânio27: se ao menos não tivesse maculado


os enredos com amores vergonhosos de garotos, revelando os seus próprios
costumes!”

Mores é um desses conceitos de difícil tradução: denota ao mesmo tempo


costumes e caráter revelado nesses costumes, prática de vida revelando um

27 um contemporâneo de terêncio que os coevos acusavam de ter “tirado muito de menandro” (quod plura
sumpsisset a Menando – macróbio, Saturnais, vi, 1, 1).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 183


certo modo de ser. Por certo tema de sua obra, amores pederásticos, afrânio
revelaria seu ethos nada positivo. na passagem que destacamos, Quintiliano
fala como o mestre de retórica interessado em preparar os meninos para a
prática oratória, mas essa posição não atenua a associação que se faz entre
certo ethos demonstrado na obra poética e um ethos do autor de carne e
osso; e é interessante que o autor se reira aqui a uma obra teatral, em que a
“despersonalização” é mais evidente28, ainal falam e agem personagens, não
um “ego” que assumiria o discurso, como na poesia subjetiva de um Catulo.
Concluamos: a poesia amorosa poderia trazer má reputação – infâmia –
ao seu autor? Pelos depoimentos que vimos, os antigos leitores muitas vezes
não tinham nossos escrúpulos acadêmicos em distinguir autor de carne e
osso e eu poético ao interpretar a poesia amorosa em primeira pessoa. Catulo
se defende da acusação de ser, por seus versos efeminados, efeminado ele
próprio. Cícero nas Tusculanas lê poesia amorosa grega como os amigos
mal-intencionados que são alvo do poema 16 de Catulo. em suma, ontem
como hoje, distinguir uma instância e outra era função do leitor; ter uma
imagem moralmente negativa de determinado poeta por causa de seus versos
era sempre um tipo de recepção possível e, mostram-no as fontes, frequente.

referências

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aRiStÓteLeS. Poética. tradução de eudoro de Souza. São Paulo, ars
Poetica, 1992.
auLo GÉLio

28 Recorde-se a célebre passagem da Poética 1448 a, sobre a distinção da poesia imitativa de acordo com
o modo de imitação: “há ainda uma terceira diferença entre as espécies [de poesias] imitativas, a qual
consiste no modo como se efetua a imitação. efetivamente, com os mesmos objetos, quer na forma
narrativa (assumindo a personalidade de outros, como o faz homero, ou na própria pessoa, sem mudar
nunca), quer mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas. [...] daí o sustentarem
alguns que tais composições [as últimas citadas] se denominam dramas, pelo fato de se imitarem agentes
[dróntas].” (tradução de eudoro de Souza em aRiStÓteLeS. Poética. São Paulo: ars Poetica, 1992. na
concepção platônica, comédia e tragédia são um tipo de poesia “inteiramente imitativa” (República iii,
394 c; tradução de J. Guinsburg em GuinSbuRG, J. (org.). A República de Platão. São Paulo: Perspectiva,
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o  (“GLÓrIA” ou “FAmA”?)
DE oDISSEu NA ODISSEIA

Teodoro Rennó Assunção

o primeiro e mais genérico cuidado a ser tomado, para apreender


melhor o sentido de  em homero (isto é, na Ilíada e na Odisseia), é o
de distinguir  de outros termos gregos importantes, como  ou
, que muitas vezes são também traduzidos por “glória” (ainda que
não exatamente por “fama”), mas que, apesar da eventual proximidade com
este sentido em um contexto de guerra ou batalha, têm um outro e mais
preciso sentido:  é antes uma espécie de graça instantânea, concedida
pelos deuses, que ilumina o guerreiro no momento da vitória (ou seja: um
“talismã de supremacia” por deinição temporário e instável, segundo
o verbete “le pouvoir magique” de Émile benveniste no Vocabulaire des
institutions indo-européennes vol. II, 1969, p. 57-69), enquanto 
pode ser o triunfo do guerreiro vitorioso airmado por ele mesmo, após o
combate (ou duelo), através de um discurso eufórico em que ele se gaba
de ser melhor do que o adversário (ver a hoje reconhecida monograia
de Leonard muellner, The Meaning of Homeric   mai Through its
Formulas, 1976).
o segundo e já direto cuidado é o de distinguir dois sentidos
diferenciados, um mais genérico e outro mais restrito, e que nem sempre
podem se superpor, do próprio termo homérico : o mais genérico, de
“rumor”, “aquilo que se ouve dizer de alguém ou de algo” (de algum modo
transparente em grego, se pensada sua conexão com o radical do verbo w
“ouvir”, segundo a etimologia sugerida por Pierre Chantraine no verbete
 no Dictionnaire étymologique de la langue grecque vol. 1-2, 1984, 1ª
ed.: 1968, p. 540-541) ou – já em uma faixa de transição – o de “reputação
(em bom sentido)” ou “renome”; e o outro e mais restrito, de “fama” ou
“glória”, que é também aquele tradicionalmente associado ao canto (ajih)
e que será função privilegiada dos aedos (mas mais comumente também
dos narradores) transmitir e difundir.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 187


na esteira de Rüdiger Schmitt e Gregory nagy1, o sentido mais
restrito foi, a partir dos anos 70 do século passado, privilegiado – por sua
conexão com o sânscrito srávas e, em domínio indo-europeu, com a poesia
como meio de comunicação – como o preferencial e mais signiicativo
[Gregory nagy, por exemplo, diz: “‘o que se ouve’, kléos, acaba por signiicar
‘a glória’, porque é o próprio poeta quem utiliza a palavra para designar o
que ele ouviu da boca das musas e que em seguida ele narra a seu auditório.
a poesia confere a glória.”2 (nagy, G., he Best of the Achaeans, 1979, p. 16,
ver tb. nota 3)], quando não o (de longe) mais freqüente [anthony edwards
diz que “o último sentido (i. e., o de ‘rumor’), representando 20% de todas as
ocorrências de , difere, então, do de ‘fama, renome’, por estar privado
de uma conotação encomiástica e, assim, permanecer neutro. a maior parte
das vezes, no entanto,  como é usado em homero pode ser deinido
como uma narrativa encomiástica.” (edwards, a., “he  of odysseus”
in Achilles in the Odyssey, 1985, p. 71)].
mas S. douglas olson – no 1º capítulo (“ in the homeric
world”) de Blood & Iron: Stories & Storytelling in Homer’s odyssey,
publicado em 1995 – propôs, com muita plausibilidade, a inversão desta
relação, aproximando-se da precedência do primeiro sentido (o mais
genérico) atestada também habitualmente pelos dicionários mais comuns
(bailly, Liddell-Scott, o homérico de Cunlife e mesmo o etimológico de

1 Cf. Schmitt, R., Dichtung und Dichtersprache in indogermanischer Zeit, 1967, p. 61-102; e nagy, G.,
Comparative Studies in Greek and Indic Meter, 1974, p. 231-255.
2 todas as traduções para o português dos textos (em língua estrangeira) de comentadores ou ensaístas
citados no texto principal deste artigo são de minha autoria. Como eles são facilmente localizáveis,
evitei aqui reproduzi-los na língua original nas notas de pé de página (que poderão, no entanto, conter
citações em língua estrangeira não traduzidas). Preferi também, mais próximo aí do modo de exposição
oral, conservar sempre, juntamente com o nome do autor e o ano de publicação, o título da obra referida
ou citada (para que o entendimento seja imediato, tornando desnecessária a consulta às referências
colocadas depois do texto), cujas referências bibliográicas completas constarão sempre na bibliograia
inal. evitei também, devido ao destaque ruidoso supérluo, o uso de maiúsculas para nomes de autor.
a desobediência às regras da abnt (ou do modelo norte-americano) não impedirá, no entanto, a
localização precisa de todas as referências aqui utilizadas.

188 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


Chantraine)3: “apesar de muita coisa ter sido escrita nos anos mais recentes
sobre  como especiicamente ‘glória poética’, o signiicado essencial da
palavra nos poemas homéricos é simplesmente o de ‘relato oral’ sobre um
evento, objeto ou indivíduo, e então ‘falatório’ ou ‘notícias’. (...)  em seu
sentido mais básico é (...) a reputação de que um aqueu desfruta entre seus
contemporâneos, ou ‘o que é dito’ deste indivíduo e de seus feitos tanto no
presente quanto (potencialmente) no futuro.” (olson, S. d., Blood & Iron,
1995, p. 2-3). no entanto, olson reconhece também o sentido mais restrito
(ou marcado) de , como o resultado inal de um processo de difusão
do que é dito e ouvido de um indivíduo (que toma o mais das vezes a forma
de uma narrativa), quando diz: “a culminação deste processo de um falatório
local desenvolvendo-se gradualmente em um rumor e reputação espalhados
e mesmo universalmente conhecidos é a canção.” (olson, S. d., Blood & Iron,
1995, p. 2-3). Sendo que, segundo ele, “os cantores são, por excelência, os
contadores de estórias da sociedade homérica e o padrão pelo qual todos os
outros narradores são medidos.” (Ibidem).
diferentemente daqueles que, a partir das pesquisas de milman
Parry e albert Lord, pensaram a oralidade apenas como pressuposto
necessário do modo homérico de composição formular e por temas (ou seja:
fórmulas ou unidades narrativas recorrentes), olson tenta também pensar a
oralidade como o modo único (tal como descrito internamente nos próprios
poemas homéricos) de composição e transmissão de qualquer informação,
notícia ou estória a respeito de alguém nesta sociedade. assim, na Odisseia,
é comum que o que ocorre no palácio de odisseu (sobretudo no salão e no

3 Bailly: “ (t;) (...) i bruit, nouvelle qui se répand (...) ii p. suite: 1 en b. part, bonne renommée, d’où
gloire (...) 2 en mauv. part, mauvaise réputation (...) (R. , d’où -, -, ; v. w).” (bailly, m.
a., Dictionnaire Grec-Français. Paris: hachette, 1956, 1ª ed.: 1894, p. 1099). Liddell-Scott: “, t;
(...) – rumour, report (...) ii. good report, fame, freq. in hom., . jsqn il.5.3 (...) 2. rarely in bad sense,
sfamn . (...) (Cf. Skt. srávas ‘fame’, Slav. slovo ‘word’, ‘glory’; cogn. with w (a), w).” (Liddell,
h. G., Scott, R., Jones, h. S., A Greek-English Lexicon, 1977, 1ª ed.: 1843, p. 958). Cunlife: “, t; (...)
(1) a report or rumor (...) (2) Good report or repute, fame, glory, honour (...) (3) in reference to things,
fame, celebrity (...) (4) Something that brings fame or honour or confers distinction (...).” (Cunlife, R.
J., A Lexicon of the Homeric Dialect. norman: he university of oklahoma Press, 1988, 1ª ed.: 1924, p.
229). Chantraine: “1)  (...) « bruit qui court », mais le plus souvent « réputation, renom, gloire »
(presque toujours pris em bonne part, mais cf. h. 2, 45), parfois « actions d’éclat » (hom., ion.-att., etc.)
(...).” (Chantraine, P., Dictionnaire étymologique de la langue grecque vol. 1-2, 1984, 1ª ed.: 1968, p. 540).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 189


pátio) seja testemunhado e transmitido (e, a partir daí, retransmitido) não
só por Penélope, telêmaco e os pretendentes, mas também pelas servas e os
servos que o mais das vezes estão presentes (donde a precaução necessária
para que não vaze nenhuma informação importante que deve ser mantida em
segredo). Seriam, por sua vez, os viajantes ou estrangeiros que, na condição
de hóspedes e tradicionalmente no rito primeiro de hospitalidade que é o
compartilhamento de comida e de bebida, contariam as estórias de outras
cidades ou povos e que, por sua vez, ouviriam as dos seus anitriões para
retransmiti-las depois aos seus conterrâneos.4 Grande parte das narrativas
da Odisseia é, assim, contada em banquetes de recepção a hóspedes que por
meio delas se identiicam (sempre após ter comido e bebido), assim como
o fazem também os anitriões. o banquete, situação de sociabilidade por
excelência (permitindo a estruturação das relações entre as personagens e a
da narrativa), será também o ambiente preferencial das canções dos aedos.
Seria preciso, enim, lembrar a evidência de que nesta sociedade, em
que toda informação ou narrativa é transmitida oralmente, o que se diz ou ouve
de alguém é decisivo na deinição de uma identidade social qualquer (ou seja:
alguém só se reconheceria na imagem ou opinião que os outros têm do que
ele faz), sendo por isso tão temível um rumor ou uma opinião pública negativa
(ou o simplesmente não ser falado), assim como desejável uma positiva, já que
o reconhecimento público é critério de mera existência humana. ora, o que as
narrativas mais contadas transmitiriam seria, assim, por deinição, modelos
ou tipos possíveis de comportamento a serem seguidos ou serem evitados (ou,
talvez mais sutilmente, a serem usados para repensar a vida cotidiana).
Se fosse agora, depois desta primeira tentativa de deinição, voltar
ao título desta exposição e tentar responder à questão da tradução de
 (“glória” ou “fama”?) na Odisseia, eu diria que, em conjunto, esta
caracterização mais abarcante do  homérico por olson, que parte do

4 não é, pois, de se estranhar que o modo (se adequado às regras da boa hospitalidade) como alguém
recebe um hóspede ou como um hóspede é recebido pode também na Odisseia (diferentemente do que
ocorre na Ilíada) ser o motivo do , tal como o percebeu a. edwards: “he Odyssey does difer from
the Iliad, though, in regarding xinih [i.e. hospitality] as a source of . one can acquire  both
from entertaining as well as from being entertained. (…) he Odyssey’s extension of the sources of the
 to include xinih no doubt relects the important role of hospitality in the poem.” (edwards, a.,
Achilles in the Odyssey, 1985, p. 75).

190 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


primeiro e mais genérico sentido (que teria, pois, precedência) para chegar
ao segundo e mais restrito, nos faz preferir, em princípio, em português a
tradução por “fama” (porque mais neutra e genérica, podendo ser uma “boa”
ou “má fama”), em vez de a por “glória” (por deinição, apenas positiva,
sendo, pois, sempre um elogio ou, como sugere a. edwards, encomiástica)
que tem um sentido mais restrito.
Passemos, então, à leitura de alguns exemplos signiicativos (mas que
obviamente não esgotam o conjunto das ocorrências) do que é aqui nosso
objeto mais preciso: o  de odisseu na Odisseia, ou seja, o  do
protagonista que dá nome ao poema, objeto que (por ser central e complexo)
tentaremos apenas delinear em um primeiro esboço.5 esta primeira série de
exemplos (aos quais serão acrescentados dois outros relativos a Penélope
e a odisseu), se não segue exatamente a ordem de aparição no poema,
acompanha minimamente a seqüência da estória principal, isto é, o retorno
de odisseu a Ítaca e a retomada de seu lugar como esposo, pai e rei.
do primeiro e mais genérico e sentido de , que poderia ser
traduzido por “notícia” (“fama” sendo apenas uma opção cômoda pela
presença do adjetivo jr, “vasta”), o primeiro exemplo (que ilumina também
o bloqueio da situação em Ítaca) é o de quando telêmaco, tendo sido incitado
a isso por atena, esclarece a nestor a razão de sua viagem a Pilos:
“vim em busca de uma larga notícia (ou da vasta fama) do meu pai, se puder
[ouvir algo,
do nobre odisseu de senso paciente, que dizem um dia
contigo ter combatido para destruir a cidade dos troianos.”6
(Od. iii, 83-85)

5 o caráter de esboço próprio ao conjunto deste trabalho deve-se ao fato de ele ter sido pensado
primeiramente como texto de uma conferência para ser lida na iii Jornada de estudos Clássicos da
uFeS: “Fama e infâmia no mundo antigo” na uFeS (vitória – eS) em 28 de maio de 2012, texto que pôde
apenas ser ligeiramente ampliado e precisado para esta publicação. em razão deste caráter de esboço,
evitei também detalhar, em cada situação, uma bibliograia possível que seria sempre mais ampla, e me
restringi às limitadas referências diretamente usadas para construir minha proposição interpretativa
neste texto (apresentando explicitamente nas notas de pé de página, através de um pequeno dossiê com
citações e referências essenciais, o meu instrumental crítico básico).
6 todas as traduções das passagens citadas da Odisseia são de minha autoria. elas não visam a nenhuma
correspondência métrica em português com o hexâmetro dactílico do texto grego original, mas apenas
à precisão semântica (sendo conservada, no entanto, a unidade do verso para facilitar a localização). o
texto grego adotado é o da edição de helmut van hiel, Homeri Odyssea (1991).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 191


aqui, por um lado, é visível a conexão da “vasta” ou “bem difundida”
“fama”, o  jr de odisseu, com a sua participação na guerra de troia,
mas, por outro lado, é claro também que o que telêmaco está buscando não é
propriamente a “glória” de odisseu, mas – como bem o viu olson (cf. olson,
S. d., Blood & Iron, 1995, p. 3) – apenas uma “informação” ou “notícia” sobre
a sua possível morte ou paradeiro.
o segundo exemplo, que já permitiria uma leitura de   
(qualiicado como mga, “grande”) no sentido mais restrito de “glória”,
esclarece, por sua conexão com o túmulo enquanto memorial de quem
necessariamente já está morto, o quanto esta “fama” só seria obtida de vez
com uma morte em campo de batalha presenciada por testemunhas, assim
como o desaparecimento ajiw “sem notícias” (e sem rituais fúnebres)
poderia impedi-la.7 Logo no canto i é telêmaco quem, sem esperanças,
descreve assim a mentes (atena) o que ele supõe ser o destino de seu pai:

“agora de outro modo decidiram os deuses que planejam ruindades,


os quais izeram daquele o mais invisível de todos
os homens; e por ele, mesmo já morto, eu não sofreria assim,
se com seus companheiros fosse morto no território dos troianos,
ou entre as mãos dos amigos, uma vez que realizou a guerra.
Por isso para ele um túmulo teriam feito os Panaqueus,

7 Pensamos, juntamente com a. edwards (e por paradoxal que possa parecer), estar bem indicado aqui
textualmente o quanto uma morte obscura (tal como também a de um herói que morre afogado no
mar ou em um rio) poderia impedir a obtenção do : “early in the poem, telemachus expresses
the wish that his father had died either at troy or else peacefully at home ater he had endured the war,
and so let a  behind him (a 237-241 = x 367-371). in telemachus’ view the manner of a man’s
death is decisive for his . it is preserved through a peaceful or heroic death, but destroyed by one
which is mean or obscure.” (edwards, a., Achilles in the Odyssey, 1985, p. 74). Já Christian Werner,
em um artigo atento e inteligente sobre o tema (“a ambigüidade do kléos na Odisseia”), duvida desta
leitura desta passagem (não comentando, porém, o sentido preciso de  no verso 240 do canto i):
“uma pergunta que se impõe é a seguinte: se odisseu, caso tivesse morrido, não recebesse um túmulo,
seu  desapareceria, como se entrevê no verso 241 (...)? em primeiro lugar, a utilização de ‘sem
kleos, sem notícias’ (aja) em iv. 728, onde Penélope reclama da falta de informações do paradeiro
do ilho, e de adjetivos formados a partir de verbos de percepção em i. 242 (...) indica que, tanto em iv.
728 (aja) quanto em i. 241 (ajiw), a referência é antes à ausência de notícias que à ausência de
glória. (...) assim, (...) a passagem examinada não permite que se inira, inequivocamente, que a glória
de odisseu seria para sempre perdida, ou seja, que ele seria esquecido, caso nunca chegassem notícias
claras de sua morte.” (Werner, C., “a ambigüidade do kléos na Odisseia”, 2001, p. 102).

192 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


e também para seu ilho ele teria obtido grande fama no porvir.
mas agora as harpias o arrebataram sem deixar notícias (...).
(Od. i, 234-241)

o terceiro exemplo situa retrospectivamente (entre os Feácios, por meio


do aedo demódoco), ainda com maior nitidez, odisseu como participante
da guerra de troia e personagem, portanto, dos a ajnrwn, habitualmente
traduzido por “feitos gloriosos dos machos (ou guerreiros)”, mas que,
segundo uma sugestão de olson, poderíamos traduzir também por “estórias
populares de guerreiros”, das quais a contada por demódoco teria já então
sido muito difundida, ou seja: teria (ela, a própria estória ou o entrecho,
i[mh) uma “fama” (ou “glória”), , que “atingia o vasto céu” (jran;n
jr;n i{an)8:

“a musa incitou o aedo a cantar estórias populares de guerreiros,


uma parte do entrecho cuja fama então atingia o vasto céu,
a disputa de odisseu e de aquiles ilho de Peleu (...)”
(Od. viii, 73-75)

esta “disputa” (ni), que alegra agamêmnon como um signo


favorável anunciado por um oráculo délico de apolo, está no “começo do
sofrimento” (hmat ajrh) que será esta guerra para troianos e dânaos e,
portanto, devia fazer parte das estórias que precedem a chegada dos aqueus
em troia (ou seja, do que no Ciclo épico é chamado de Kýpria), ainda que
ela não seja contada nem na Ilíada nem nos resumos da Khrestomátheia
(“Coletânea”) de Proclo. mas se, como sugere Gregory nagy (a partir, é certo,

8 assim como jr (“vasta”, “larga”) ou mga (“grande”, “imensa”), adjetivos que qualiicam  (“fama”),
jran;n jr;n i{an (“atingia o vasto céu”) é um predicado verbal da oração que deine ou qualiica
o sujeito  (“fama”) segundo uma dimensão espacial que marca positivamente o seu alcance ou
difusão. a dimensão temporal positiva do alcance ou difusão do  é formulada pelo adjetivo a[fqitn
(“imperecível”) e pelo predicado verbal [ t jitai (“jamais morrerá”) que negam o limite elementar
e primeiro da morte. a. edwards percebeu bem estas duas dimensões, ao diferenciar dois equivalentes
métricos oracionais de a[fqitn [stai (“será imperecível”), que também qualiicam  (“fama”):
“(...) there is an obvious distinction of meaning between jran;n i{i and [ t jitai: the former
speciies spatial content and the latter duration, and again the former is present tense while the latter is
future.” (edwards, a., Achilles in the Odyssey, 1985, p. 76).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 193


de um escoliasta e de Klaus Rüter9, e não de um indício textual explícito), esta
disputa se referiria a duas formas distintas de excelência (a do herói maior da
Ilíada e a do da Odisseia) como melhor meio para a captura de troia: a força
de aquiles ou a astúcia de odisseu10, poderíamos pensar que o episódio do
cavalo de madeira, descrito como n, “dolo”, e n “emboscada” (Od.
viii, 494 e 515), pensado e conduzido por odisseu para a destruição e o
saque de troia, cantado depois por demódoco a pedido do próprio odisseu,
daria bem odisseicamente a odisseu a condição de melhor (ou mais decisivo
na vitória) guerreiro aqueu na guerra de troia.11
as canções de demódoco retomam, portanto, em uma perspectiva
odisséica, a “fama” de odisseu como o melhor guerreiro aqueu na guerra
de troia, mas servem, assim, apenas de enquadramento para a estória
subseqüente do nst (“retorno”) de odisseu, que ele mesmo começará a
contar para os Feácios (ou seja: o seu retorno de troia até à chegada à Feácia),
mas que apenas a narrativa da própria Odisseia completará em toda a sua
segunda metade passada já em Ítaca. ora, na introdução destas estórias das
viagens maravilhosas (cujo relato cabe não a um terceiro, mas àquele mesmo
que as viveu), odisseu se identiica (nomeando-se pela primeira vez) a
alcínoo da seguinte maneira:

“Sou odisseu, ilho de Laertes, que por todos os dolos


sou conhecido entre os homens, e minha fama chega ao céu.”
(Od. iX, 19-20)

9 Rüter, K., Odysseeinterpretationen: Untersuchungen zum ersten Buch und zur Phaiakis, 1969, p. 249-251.
10 “as Rüter argues, the thematic conventions of epos pitted the aristeía ‘prestige’ of achilles against that of
odysseus in the form of a quarrel over whether troy would be capture by might or artiice respectively.
he scholia to viii 75 and 77 suggest an epic tradition that has achilles advocating might and odysseus,
artiice as a means that will prove successful in capturing troy.” (nagy, G., he Best of the Achaeans, p.
24). os termos usados pelos escoliastas para distinguir as formas de excelência de aquiles e de odisseu
para a captura de troia são, mais precisamente, no comentário ao verso 75 ajnrian (“virilidade” ou
“coragem”) de aquiles e snsin (“inteligência”) de odisseu, e no comentário ao verso 75 ajnrian
(“virilidade” ou “coragem”) de aquiles e mhanh (“artifício”) e frnhsw (“sabedoria prática”) de
odisseu. (cf. dindorf, W. [ed.], Scholia Graeca in Homeri Odysseam tomus I, 1855, p. 361-362).
11 “(...) in the irst song of demodokos (...), odysseus was characterized along with achilles as ‘best of
the achaeans’ because one of these two heroes was destined to be the destroyer of troy. in the epic
composition of demodokos, odysseus is implicitly ‘best of the acaeans’ because tradition upholds his
claim to have destroyed troy.” (nagy, G., he Best of the Achaeans, 1979, p. 40).

194 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


esta declaração, como bem observou Charles Segal (em “Kleos
and its ironies in the Odyssey”, 1996, 1ª ed.: 1983), é notável não só pelo
emprego único do verbo mw na primeira pessoa do singular (“sou objeto
de interesse para”, “sou conhecido entre” “os homens”, ou – se lermos asi,
“todos”, também com “homens” – “para ou entre todos os homens”), mas
por ser praticamente a única ocorrência na Odisseia de uma personagem
falando do próprio .12
a leitura mais comum desta passagem tende a associar ainda uma vez
esta largamente difundida fama de odisseu (ou seja: uma “fama”, , que
“chega ao céu”, jran;n i{i) com seus feitos na guerra de troia, tais como
acabaram de ser cantados por demódoco, já que o que o distingue e o fez
conhecido entre os homens são “todos os dolos” (asi isin) e o cavalo
de madeira também foi deinido como “dolo”, sendo ainda a se considerar
(do ponto de vista do presente da narrativa) que os “dolos” ou “astúcias”
realizados por odisseu durante o seu retorno até a Feácia não poderiam
ainda ser conhecidos pelos Feácios, pois é apenas agora que eles o serão por
meio do relato do seu próprio protagonista. mas se o “dolo” ou a “astúcia”
( ou mhti) são também meios decisivos (e elementos textuais) para,
por exemplo, odisseu enganar o Ciclope com o vinho e o truque do nome
“ninguém” (cf. Od. iX, 406, 408 e 414), aqui a Odisseia poderia também estar
antecipando indiretamente o que será o  de odisseu (primeiramente
entre os Feácios) devido não apenas ao que ele realizou na guerra de troia,
mas também ao que ele realizou e sofreu em sua desgraçada viagem de
retorno. o que é mais signiicativo nesta leitura em dois planos é, porém, o
fato de que seja o próprio odisseu – cuja habilidade narrativa e veracidade
serão comparadas um pouco depois por alcínoo às de um aedo (cf. Od. Xi,
363-369) – o artíice do  desta primeira parte do seu retorno, sendo
não só o protagonista desta narrativa autobiográica, mas assumindo, como
narrador, o lugar que é de hábito ocupado pelo aedo e confundindo-se

12 “First, (...) this is the only place in the odyssey where a character speaks of his own kleos. it is also the
only place in homer where melo, common in the third person in this sense, ‘be a concern to’, occurs in
the irst person. (…) in using the verb in the irst person here in book 9, odysseus calls attention to the
fact that he is, in a sense, singing a kleos that normally would be recited about him in the third person.”
(Segal, Ch., “Kleos and its ironies in the Odyssey”, 1996, 1ª ed.: 1983, p. 203).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 195


também de algum modo com o próprio narrador da Odisseia (tal como o
objeto do canto em seu pedido à musa o revela logo no proêmio). do ponto
de vista maior da Odisseia, faria parte, portanto, do   do retorno’ de
odisseu (algo que jamais chega a ser nomeado assim e que para o aquiles da
Ilíada seria uma contradição nos termos) a sua habilidade como narrador,
que lhe permite obter presentes dos Feácios e a conirmação de uma viagem
segura até Ítaca.
o quinto exemplo, curioso porque retrazendo o primeiro e mais
genérico sentido de  como “notícia”, tem lugar após a matança dos
pretendentes (já no começo do canto XXiii) e faz parte de uma decisão (e
orientação da ação) de odisseu comunicada a telêmaco, visando, por meio
de um disfarce, impedir (ou retardar) a percepção pública (e transmissão
pela palavra falada) da matança de cento e oito jovens machos de famílias
nobres de Ítaca e de ilhas vizinhas que cortejavam Penélope, um dos quais
poderia então (após a prova do arco no dia da festa de apolo) estar se casando
com ela. após uma ordem para eles (telêmaco e os servos iéis) se lavarem
e vestirem, odisseu diz:

“que então o divino aedo, segurando a lira de-som-agudo,


conduza para nós uma dança que tende para o jogo,
de modo que alguém, ouvindo de fora, pense ser uma boda,
ou um que passa pelo caminho, ou os que habitam em torno;
e que pela cidade não nasça uma larga notícia da matança
dos pretendentes, antes de nós sairmos para fora
em direção aos nossos campos multi-arborejados (...)”
(Od. XXiii, 133-139)

Chama a atenção aqui, primeiramente, um sentido negativo de , já


que é uma “notícia” do “assassinato” ou “matança” (fn) dos pretendentes
– ainda que apenas para as famílias destes (mas elas são muitas) e não para a
de odisseu (ou as de seus amigos). em seguida, e mais especiicamente, nota-
se como a conjunção habitual do canto (aqui estendido também à dança) e
do  (como “fama” narrativa) é subvertida, pois o canto do aedo passa a
ser aquilo que (forjando o  ictício de uma festa de casamento) impede
ou retarda que se espalhe pela cidade o  verdadeiro da matança dos

196 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


pretendentes. mas, do ponto de vista do auditor ou leitor da Odisseia, esta
festa de casamento fake anunciará (com alguma ironia) o reencontro de
odisseu revelado e Penélope que está para acontecer, assim como a “larga
notícia” ( jr) da “matança” (fn) dos pretendentes já pode ser
interpretada como parte decisiva da “fama” de um odisseu ao im e ao cabo
vitorioso (tal como o poema, de que é o protagonista, o celebra).13
o sexto e último exemplo (desta primeira série) tem lugar na segunda
Nékyia, no começo do canto XXiv, após o diálogo entre as yai (plural de
yh, cujo sentido é menos o de “alma” do que o de “imagem inconsistente”)
de aquiles e de agamêmnon (que descreve os gloriosos funerais de aquiles
em troia), quando da chegada das yai dos pretendentes ao hades, e
do anúncio à yh de agamêmnon do acontecido em Ítaca pela yh de
animedonte. a yh de agamêmnon, que já se encontrara com odisseu na
primeira Nékyia do canto Xi, volta então a contrastar a felicidade de odisseu
e de Penélope e a desgraça dele e de Clitemnestra (contra a qual se mostra
eternamente ressentido), dizendo retoricamente a um odisseu aí ausente:

“afortunado ilho de Laertes, odisseu de-muitos-recursos,


obtiveste então com grande excelência a tua esposa:
como foi nobre o senso da irrepreensível Penélope,
ilha de icário; como se recordava bem de odisseu,
o homem marido. Por isso sua fama jamais morrerá,
devido à sua excelência, e para os terrestres um canto fabricarão
os imortais, um canto gracioso para a sensata Penélope (...).”
(Od. XXiv, 192-198)

a inclusão desta ocorrência de um  (“fama”) que “jamais morrerá”


([ t jitai) ao repertório de odisseu depende da leitura do pronome
iJ (dativo de posse: “dele” ou “dela”) que o acompanha, assim como da do

13 “it has already been noted that even where the sense of ‘rumor/report’ seems dominate for , the
meaning ‘fame/renown’ is as a rule also present. his passage is no exception. odysseus’ fear is that a
‘report’ of the suitors’ deaths will become current in the town before he is able to take measures to protect
himself from their relatives. For these this  will be in no way encomiastic, but a tale of grief which
demands revenge. (…) Yet for odysseus the report of this event is a praise, and will be received by those
sympathetic with him as a narrative of glorious deeds.” (edwards, a., Achilles in the Odyssey, 1985, p. 86).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 197


possessivo h (“sua”) que acompanha ajrth (“excelência”) e que também
pode se referir tanto a odisseu quanto a Penélope, tendo sido possível em
nossa tradução para o português (por “sua”, que pode ser “dele” ou “dela”)
manter indeterminado e aberto – sem deinição precisa de gênero gramatical
– o sentido de ambos os pronomes de terceira pessoa. mas se nos guardamos
da necessidade última da escolha exclusiva de um ou outro sentido para
os dois pronomes (“dele” ou “dela”), pensamos ser plausível a leitura de a.
edwards (ver edwards, a., Achilles in the Odyssey, 1985, p. 88, toda a nota
36) de que o sintagma s;n mgah ajrth (“com grande excelência”), sendo
necessariamente adverbial em homero e, portanto, referido a odisseu como
sujeito da ação do verbo jthsw (“obtiveste”), fornece o antecedente mais
óbvio do sintagma h ajrth (“devido à sua excelência”), determinando sua
leitura como referida a odisseu, assim como o será também a do pronome
iJ (“sua”) que especiica  (“fama”).14
mas, ainda assim, o “canto gracioso” ou “de reconhecimento” (ajih;n
arissan) fabricado pelos deuses é para a sensata Penélope (que sempre
se recordava bem de odisseu) e a grande excelência de odisseu é a com
que ele conquistou a sua esposa, estando, pois, referida de qualquer modo
a ela.15 Para a conexão habitual (ou, ao menos, iliádica) entre o  e a
morte no campo de batalha (como os funerais de aquiles contados há pouco
pela yh de agamêmnon atestam) pode parecer demasiado insólito que
a “fama” (ou “glória”) imperecível de um outrora guerreiro que agora sofre

14 “[36] it is not so certain in fact that this  does belong to Penelope, as it is generally taken. he iJ
of 196 does not specify gender, but the most recent possible antecedent is odysseus (195). Likewise h
(197), which with ajrth qualiies the  and so refers to the same person as iJ, does not specify
gender. Generally, however, this ajrth, as makes good sense, is assumed to be resumptive of the ajrth
mentioned in 193, which has been consistently attributed to Penelope. his attribution, however, is
impossible since sn phrases are always adverbial in homer, and never adjectival as this interpretation
requires (see Chantraine, Gram. ii, 136). his ajrth, then, must be odysseus’ (…), with the implication
that the ajrth of 197 is also his, and so the  of 196 as well.” (edwards, a., Achilles in the Odyssey,
1985, p. 88).
15 “as my translation shows, i ind myself interpreting this passage to mean that Penelope is the key not only
to the nóstos but also to the kléos of odysseus. i understand kléos at verse 196 as belonging primarily
to odysseus himself and that it is his areté ‘merit’ to have won a Penelope (rather than a Clytemnestra).”
(nagy, G., he Best of the Achaeans, 1979, p. 38).

198 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


muito para retornar à sua casa é a de ter adquirido (ou conquistado) uma
esposa iel e sensata, sem a qual este tão custoso retorno não teria sido bem
sucedido (como o caso da morte inglória de agamêmnon parece provar).
mas se (com a espera e a astúcia de Penélope) o retorno de odisseu é ainal
bem completado, ele não precisa renunciar de todo ao seu  troiano e
pode – de uma maneira impossível para um aquiles morto jovem em troia –
uni-lo ao  mais recente do seu atribulado retorno (ainda que o poema,
como se respeitando uma certa antinomia entre estes dois termos, jamais
explicite diretamente um  do nst16), que é justamente o que está
narrando este também poema de um longo e paciente amor que é a Odisseia.
mas ainda que a leitura de a. edwards para o pronome iJ (dativo de
posse: “dele” ou “dela”) referido a  – assim como a para o possessivo
h (“sua”) que acompanha ajrth (“excelência”) – nos pareça a mais
gramaticalmente plausível (ainda que contra uma maioria de comentadores
que, pelo contexto semântico, não hesitam em referi-los a Penélope,
antecipando a conclusão da nossa leitura deste conjunto), ela também não
deixa de pressupor a necessidade de uma escolha exclusiva do referente dos
dois pronomes: ou odisseu ou Penélope. e se, do ponto de vista gramatical
e lógico, é impossível referir simultaneamente a estes dois que formam o
casal protagonista da Odisseia os dois pronomes (traduzidos por “sua” e
referidos respectivamente à “fama” e à “excelência”), pois ambos estão no
singular, poderíamos muito bem imaginar que o poema mantenha aqui
astuciosamente aberta a possibilidade das duas leituras, tornando indecidível
(para usar um termo caro a Jacques derrida) a escolha, e desnecessária uma
escolha exclusiva. ou seja: o referente dos dois pronomes (“sua”) poderia
ser tanto odisseu quanto Penélope, ainda que não os dois simultaneamente.
a pretensa excessiva sutileza de uma tal leitura justiicaria, no entanto, no

16 “he only kleos of odysseus the Odyssey celebrates unequivocally is the one that is traditionally associated
with his name and that has become part of his royal portrait, the kleos of his mêtis and doloi, through
which he contributed to the capture and destruction of troy. (…) Yet the Odyssey is almost explicit in
denying kleos – that is, the speciically epic fame and renown – to odysseus’ return and revenge.” (Pucci,
Pietro, Odysseus polutropos – Intertextual Readings in the odyssey and the iliad, 1987, p. 217).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 199


plano gramatical e lógico, o que parece estar sendo indicado pela própria
narrativa: a sintonia afinada do casal protagonista (ainda que sem a
consciência direta de Penélope), que resulta na matança dos pretendentes e
no reencontro amoroso dos dois17, e, portanto, a indissociabilidade da “fama”
e da “excelência” de odisseu e de Penélope, ambas as quais não podem mais
ser compreendidas apenas a partir do padrão guerreiro iliádico.
um outro exemplo de  (mas desta vez não de odisseu e sim de
Penélope) que conirmaria esta leitura é aquele contido no elogio feito por
odisseu-mendigo à rainha Penélope no começo do primeiro discurso que
ele dirige a ela:

“Ó mulher, nenhum dos mortais sobre a ilimitada terra te


censuraria; pois certamente tua fama alcança o vasto céu,
como a de um rei irrepreensível, que, pio aos deuses,
reinando sobre muitos e valentes homens,
sustenta decisões justas, e a terra negra traz
trigo e cevada, as árvores se carregam de frutos,
os rebanhos continuamente parem e o mar dá peixes
devido ao bom governo, e sob aquele o povo prospera.”
(Od. XiX, 107-114)

Se a primeira airmação parece já indiretamente sugerir que a própria


Odisseia é um testemunho direto ou um meio de veiculação do 
(“fama”) de Penélope e não apenas do de odisseu, sendo que ele é muito
difundido (“alcança o vasto céu”), como o é de certo modo na Grécia arcaica
e clássica a poesia homérica, a razão desta “fama” será deinida apenas
através de um símile, que não deixa claro se o papel exercido por Penélope
na sociedade itacense seria realmente de ordem política e cósmica, a justiça

17 “odysseus and Penelope are mutually dependent upon each other for this  of revenge. he cannot
be successful in his revenge unless she remains faithful, nor can she be rescued unless he returns to ithaca
and slays the suitors. (…) he  of each is dependent upon the action of the other.” (edwards, a.,
Achilles in the Odyssey, 1985, p. 81).

200 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


assegurando tradicionalmente a fertilidade e a prosperidade18 (pois a situação
real da sociedade itacense na ausência do rei odisseu é, de algum modo, o
inverso disso).
mas chama ainda mais a atenção que, no modo do elogio, a “fama”
() muito difundida de Penélope seja comparada à de um rei pio, justo
e que torna o povo próspero como o foi precisamente odisseu.19 a surpresa
ou o insólito deste símile está em comparar – no quadro de uma sociedade
de poder masculino em que os papéis sexuais estão bem contrastados –
uma mulher a um homem, ou (mais precisamente) uma rainha (que, por
deinição, não poderia exercer diretamente o poder político monárquico e a
função da justiça) a um rei. este símile não é, no entanto, o único deste tipo
na Odisseia, pois faz parte de um grupo de símiles deinidos como “símiles
de inversão” e, mais precisamente, em um artigo já célebre de helene P.
Foley (“‘Reverse Similes’ and Sex Roles in the Odyssey”, 1978), como símiles
de inversão dos papéis sexuais. Se a função maior deste tipo de símile é a de
sugerir, pela inversão dos papéis sexuais, uma quebra da ordem social que
deve ser restaurada (como precisamente ocorre no reino de odisseu ausente
em Ítaca), neste caso, então, o símile sugere não só a ausência e a nostalgia
desta ordem sob o poder de um rei pio e justo (como era precisamente
odisseu), mas também o fato de que a “fama” () muito difundida da
mulher do rei, cujas razões não são diretamente explicitadas, se deva a um
comportamento que visa, na esfera de ação própria à mulher nesta sociedade,
à restauração desta ordem política.

18 “he portrait drawn of harmony between the natural order and the politically just civic order reminds
us of hesiod’s insistence on connecting the two throughout his poem and specially at Op. 225-37. hat
they were a commonplace of Greek and early european thought is stressed by m. nilsson, homer and
Mycenae (London, 1933), 220. (Plato refers to both the homeric and hesiodic passages together at R.
363b.) his ideal also, ironically enough, gives us from odysseus’ mouth a portrait of his own regime as
it was in the past (cf. ii 230-4 = v 8-12; iv 687-93) and as he will re-establish it.” (Russo, Joseph, “books
Xvii-XX” in Russo, J., Fernández-Galiano, m., heubeck, a., A Commentary on Homer’s Odyssey vol.
III, Books XVII-XXIV, 1992, p. 79).
19 “odysseus’ compliment, which is intended to sweeten the bitter pill of his refusal to mention his name,
takes the form of a ‘role reversal’ simile: Penelope is compared to a man, a king, in fact the kind of just and
gentle king that odysseus is himself (…). it points to what the Odyssey is about: odysseus’ homecoming
and the re-establishment of his rule, which will restore stability and peace on ithaca (…).” (de Jong,
irene, A Narratological Commentary on the Odyssey, 2001, p. 466).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 201


mas se, no contexto narrativo imediato, odisseu-mendigo (ainda não
reconhecido) visa, com este hábil elogio que introduz o seu primeiro discurso
a Penélope, não apenas a uma algo óbvia captatio benevolentiae, mas também
indireta e contrastivamente a uma crítica da atual situação social desordenada
em Ítaca, no contexto narrativo maior, o compositor da Odisseia, parece sugerir,
por meio do discurso de odisseu-mendigo, uma aproximação ou assimilação
entre a “fama” () de Penélope e a deste rei irrepreensível cujo primeiro e
evidente exemplo é o próprio odisseu, sinalizando, assim, já no canto XiX, a
indissociabilidade entre a “fama” () de Penélope e a de odisseu.
e se, como já dissemos, a indissociabilidade entre a “fama” () e
a “excelência” (ajrth) de Penélope e as de odisseu conirmam a sintonia
ainada do casal protagonista, progressivamente indicada pela própria
narrativa (e que é decisiva no desfecho bem sucedido da matança dos
pretendentes e do reencontro amoroso do casal), a própria Odisseia parece
antecipar indiretamente, muito antes do reencontro dos dois, a importância
central desta “sintonia ainada” do casal protagonista (nomeada como
Jmfrsnh, “mesma disposição mental”) para a sua própria intriga, em
uma conhecida e mais genérica fala (também muito hábil retoricamente)
de odisseu para nausícaa, em que ele faz o elogio de um bom casamento20:

“Que os deuses te dêem o quanto desejas em teu senso:


um homem e uma casa, e concedam uma mesma mente
nobre; pois não há nada mais forte e melhor do que isso,
do que quando, pensando com mesma mente, ambos sustêm a casa,
o homem e a mulher: são muitas as dores para os inimigos,
e as alegrias para os amigos; e sobretudo eles próprios ouvem isso.”
(Od. vi, 180-185)

esta fala de odisseu é não apenas um voto apropriado para uma jovem
(e princesa) em idade de se casar, ou seja: ele deseja que os deuses dêem a ela
“um homem e uma casa”, o que corresponde a um casamento (decisivo na

20 “he narratees may hear in his passionate plea for the ‘concord’ (Jmfrsnhn, Jmfrnnt) of man
and wife a wish where odysseus himself and Penelope are concerned.” (de Jong, i., A Narratological
Commentary on the Odyssey, 2001, p. 161).

202 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


deinição do estatuto da mulher nesta sociedade representada no poema),
mas também um voto para que haja uma verdadeira sintonia afetiva, moral e
mental (indicada pelo termo grego Jmfrsnh) entre o homem e a mulher
que constituem esta “casa” ou “lar” (in). este segundo ponto é conirmado
e enfatizado – em uma proposição gnômica genérica que introduz o que seria
o valor moral máximo (“não há nada mais forte e melhor do que isso”) – não
só pela retomada de Jmfrsnh (que traduzi pelo mais conciso “uma mesma
mente”) no particípio presente dual de mesma raiz Jmfrnnt (que, junto
com nhmasin, “pensamentos”, traduzi pelo mais conciso “pensando com
mesma mente”), com a marca do casal também no número (o dual), como
também pelo número dual no verbo [htn (“os dois” ou “ambos sustêm”)
que tem como objeto novamente in (“casa” não apenas no sentido físico,
mas também no de modo comum de existência de um casal) e como sujeito o
par agora explicitado concisamente, “o homem e a mulher” (ajnhr hj; gnh).
e se, enim, a Jmfrsnh (“mesma disposição moral e mental”) do casal é
pensada como valor máximo, isso é conirmado por uma deinição de valor
que parece também tradicional: “são muitas as dores para os inimigos, e as
alegrias para os amigos”, pois é ecoada pela conhecida proposição de virtude
na República de Platão (332 d): “ajudar os amigos e prejudicar os inimigos”.21
mas é a última e elíptica oração deste trecho da fala de odisseu (maista
 t [n ajti, aqui traduzida por: “e sobretudo eles próprios ouvem
isso”, o objeto “isso” no texto grego não estando expresso) que, por sua
natureza problemática e sua conexão possível com o  (“fama”) deste
casal exemplar, nos interessa mais. a compreensão mais comum desta oração
parece partir da dos escoliastas que interpretam o verbo [n (um aoristo
gnômico com o sentido literal de “ouvem”) como se seu sentido aqui fosse
o de aijsqanntai (“percebem”).22 ameis-hentze-Cauer a compreendem

21 “184-5. odysseus, it is evident, cites three aspects of perfect contentment. he irst two are commonplace;
virtue was helping one’s friends and harming one’s enemies, e.g. Pl. R. 332 d.” (hainsworth, J. b., “books
v-viii” in heubeck, a., West, S., hainsworth, J. b., A Commentary on Homer’s Odyssey vol. I, Introduction
and Books i-viii, 1990, p. 305).
22 os escoliastas e. P. Q. da Odisseia anotam: “Certamente percebem (aijsqanntai) também eles próprios
(ai; ajti) a assistência (ou utilidade: wjfwia) de um para o outro (r; ajh) e se regozijam
com isso (ajasin).” (dindorf, W. [ed.], Scholia Graeca in Homeri Odysseam tomus I, 1855, p. 310,
tradução minha).

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 203


exatamente assim: “eles próprios percebem isso” (“empinden sie es selbst”)23,
e W. b. Stanford também, ao citar a tradução de murray: “but they know it best
themselves” (“mas eles próprios o sabem melhor”) e julgá-la a mais adequada
ao contexto, apesar de reconhecer que este uso de w é excepcional.24 É
apenas J. b. hainsworth quem aproximará o sentido literal de [n ao de
, como sugere esta família de palavras, ao sugerir timidamente (em
forma de pergunta) o seguinte sentido para esta oração: “eles próprios são
altamente reputados” (“they themselves are in high repute”), a partir do
“desenvolvimento semântico ‘ouvir’ – ‘ser reputado’ – ‘ser bem reputado’”,
mesmo se não há nenhum paralelo em homero para este sentido de in.25
ora, pensamos que aqui um sentido ainda mais literal poderia ser possível
(“e sobretudo eles próprios ouvem isso”), como se sua “fama” ou “o que se
ouve deles” (), enquanto casal que tem uma ainada sintonia moral e
mental, reverberasse em sua ampla difusão e chegasse de novo a eles.

referências

ameiS, Karl Fried.; hentze, Carl; Cauer, Paul (eds.). Homers Odyssee – Erster
Band, Erster Het, Gesang I-VI. Leipzig: teubner, 1920.
baiLLY, m. a. Dictionnaire Grec-Français. Paris: hachette, 1956, 1ª ed.: 1894.

23 “185. (...) – maista ... [n ajti: vgl. N 734. Wir können dismal weder das Präteritum beibehalten,
was sonst in allgemeinen Gedanken ot möglich ist (…), noch die beziehung auf den Gehörsinn, sondern
müssen sagen: empinden sie es selbst.” (ameis, F., hentze, C., Cauer, P., eds., Homers Odyssee – Erster
Band, Erster Het, Gesang I-VI, 1920, p. 190).
24 “184-185. ‘... a great grief to their foes and a joy to their friends; but they know it best themselves’
(murray). his use of w is unparalleled, but it seems to be the meaning required by the context, cp.
maista ; ajt; ajngnw in Il. 13, 734. (…) as the text stands [n is a Gnomic Aorist and t
has its generalizing force, showing a proverbial origin.” (Stanford, W. b., “Commentary” in he Odyssey
of Homer vol. I (Books I-XII), 1987, 1ª ed.: 1947, p. 315).
25 “but what is the sense of the third colon maista  t [n ajti? Schol. gloss with aijsqanntai, as if
the phrase were a pl. of maista ; ajt; ajngnw (Il. xiii 734): they record no variants, and apparently
found no diiculty. hey are followed generally by merry-Riddel, ameis-hentze-Cauer, Stanford, et
al. no similar equation of in and aijsqansqai is quoted. (…) Can then the third colon mean not
‘they themselves perceive <their happy situation>’ but ‘they themselves are in high repute’¿ he semantic
development ‘hear’ – ‘be reputed’ – ‘be well reputed’ is widespread and well known in the adj. t
but there is no parallel to in tout court in the sense required.” (hainsworth, J. b., “books v-viii” in
heubeck, a., West, S., hainsworth, J. b., A Commentary on Homer’s Odyssey vol. I, 1990, p. 305).

204 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


benveniSte, Émile. “Le pouvoir magique” in Vocabulaire des institutions
indo-européennes vol. II. Paris: Les Éditions de minuit, 1969, p. 57-69.
ChantRaine, Pierre. “” in Dictionnaire étymologique de la langue
grecque vol. 1-2. Paris: Klincksieck, 1984, 1ª ed.: 1968, p. 540-541.
CunLiFFe, Richard John. A Lexicon of the Homeric Dialect. norman: he
university of oklahoma Press, 1988, First edition: 1924.
de JonG, irene. A Narratological Commentary on the Odyssey. Cambridge:
Cambridge university Press, 2001.
dindoRF, Wilhelm (ed.). Scholia Graeca in Homeri Odysseam tomus I.
oxonii: e typographeo academico, 1855.
edWaRdS, anthony t. “he  of odysseus” in Achilles in the odyssey.
Beiträge zur klassischen Philologie, Het 171. Königstein: verlag anton hain,
1985, p. 71-93.
FoLeY, helene P. “‘Reverse Similes’ and Sex Roles in the Odyssey”, Arethusa
vol. 11, 1-2, baltimore, 1978, p. 7-26.
hainSWoRth, J. b. “books v-viii” in heubeck, a., West, S., hainsworth,
J. b. A Commentary on Homer’s odyssey vol. I, Introduction and Books i-viii.
oxford: oxford university Press, 1990, p. 247-385.
LiddeLL, h. G., Scott, R., Jones, h. S. A Greek-English Lexicon. oxford:
oxford university Press, 1977, First edition: 1843.
mueLLneR, Leonard Charles. he Meaning of Homeric mai hrough its
Formulas. Innsbrucker Beiträge zur Sprachwissenschat, Band 13. innsbruck,
1976.
naGY, Gregory. Comparative Studies in Greek and Indic Meter. Cambridge
mass.: harvard university Press, 1974.
naGY, Gregory. he Best of the Achaeans. baltimore: he Johns hopkins
university Press, 1979.
oLSon, S. douglas. “i.  in the homeric world” in Blood & Iron: Stories
& Storytelling in Homer’s odyssey. Leiden: brill, 1995, p. 1-23.
PuCCi, Pietro. Odysseus polutropos – Intertextual Readings in the odyssey
and the iliad. ithaca: Cornell university Press, 1987.
RuSSo, Joseph, “books Xvii-XX” in Russo, J., Fernández-Galiano, m.,
heubeck, a. A Commentary on Homer’s odyssey vol. III, Books XVII-XXIV.
oxford: oxford university Press, 1992, p. 1-127.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 205


RÜteR, Klaus. Odysseeinterpretationen: Untersuchungen zum ersten Buch
und zur Phaiakis. Hypomnemata 19. Göttingen: vandenhoeck & Ruprecht,
1969.
SChmitt, Rüdiger. Dichtung und Dichtersprache in indogermanischer Zeit.
Wiesbaden: harrassowitz, 1967.
SeGaL, Charles. “Kleos and its ironies in the Odyssey” in Schein, Seth (ed.).
Reading the odyssey – Selected Interpretive Essays. Princeton: Princeton
university Press, 1996, 1ª ed.: 1983, p. 201-221.
StanFoRd, W. b., “Commentary” in he Odyssey of Homer vol. I (Books
I-XII). new York: macmillan – St. martins Press, 1987, First edition: 1947.
van thieL, helmut (ed.). Homeri Odyssea. hildesheim: olms, 1991.
WeRneR, Christian. “a ambigüidade do kléos na Odisseia”, Letras Clássicas
nº 5 (FFLCh-uSP), São Paulo, 2001, p. 99-108.

206 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


SOBRE OS AUTORES

SoBrE oS AuTorES

CArLA FrANCALANCI
Possui mestrado em Comunicação e doutorado em Filosofia pela
universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorado pelo boston College,
uSa. atualmente é professora da universidade Federal do Rio de Janeiro. tem
experiência na área de Filosoia, com ênfase em Filosoia antiga, atuando
principalmente nos seguintes temas: Platão, ilosoia, verdade, imagem, amor,
mito, linguagem e arte.

FáBIo DE SouZA LESSA


Possui bacharelado e Licenciatura em história pela universidade Federal
do Rio de Janeiro, mestrado e doutorado em história Social pela mesma
instituição. atualmente é Professor associado da universidade Federal do
Rio de Janeiro, vinculado ao Laboratório de história antiga e ao Programa de
Pós-Graduação em história Comparada (PPGhC) do instituto de história da
uFRJ. integra os seguintes Grupos de Pesquisa: Laboratório de história antiga
(uFRJ), Sport: Laboratório de história do esporte e do Lazer (uFRJ), núcleo
de estudos da antiguidade (ueRJ), núcleo de estudos de Representações e
de imagens da antiguidade (uFF) e aRChai: as origens do pensamento
ocidental (unb). É membro colaborador do Centro de estudos Clássicos
e humanísticos da universidade de Coimbra. tem experiência na área de
história, com ênfase em Grécia antiga, atuando principalmente nos seguintes
temas: história do Gênero e das Relações de Poder, feminino e masculino em
atenas, construção de identidades e alteridades na polis, práticas corporais
gregas e práticas esportivas na Grécia antiga.

GILVAN VENTurA DA SILVA


Possui doutorado em história econômica pela universidade de São Paulo
(uSP), mestrado em história antiga e medieval, bacharelado e licenciatura
em história pela universidade Federal do Rio de Janeiro (uFRJ). É Professor
associado do departamento de história, do Programa de Pós-Graduação
em história e do Programa de Pós-Graduação em Letras da universidade

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 207


SOBRE OS AUTORES

Federal do espírito Santo (uFeS). É coordenador da seção eS do Laboratório


de estudos sobre o império Romano (Leir), desenvolvendo projetos de
investigação acerca dos vínculos entre religião, identidade e poder no império.
É ainda bolsista produtividade do CnPq.

IZABELA BoCAYuVA
Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosoia pela universidade
Federal do Rio de Janeiro. atualmente é professora adjunta da universidade
do estado do Rio de Janeiro. É membro do PeC - Pólo de estudos Clássicos do
estado do Rio de Janeiro. Coordena o noeSiS - Laboratório de estudos em
Filosoia antiga da ueRJ. Faz parte do projeto CaPeS/CoFeCub atualmente
em andamento entre o Centre Léon Robin de l’université de Paris iv/
Sorbonne e o departamento de Filosoia da universidade Federal Fluminense.
Pertence ao Conselho editorial da Revista Soia (uFeS), da Revista anais
de Filosoia Clássica (Laboratório ouSia/uFRJ) e da Revista Ítaca (uFRJ).
tem experiência na área de Filosoia, sobretudo Filosoia antiga, com ênfase
em Pré-socráticos e Platão. os autores contemporâneos mais estudados são
nietzsche e heidegger.

rAImuNDo CArVALHo
Possui graduação em Letras pela universidade Federal de minas Gerais,
mestrado em Letras pela universidade Federal de minas Gerais, doutorado
em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia universidade Católica de São
Paulo e Pós-doutorado pela universidade de São Paulo. atualmente é Professor
adjunto da universidade Federal do espírito Santo. tem experiência na área
de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas:
crítica, poesia, tradução, literatura e teoria.

SILVIA m. A. SIQuEIrA
Possui graduação em Ciências Sociais pela universidade estadual Paulista
Júlio de mesquita Filho, mestrado e doutorado em história pela mesma
instituição. atualmente é Professora adjunta da universidade estadual do
Ceará. tem experiência na área de história, com ênfase em história antiga e
medieval, e seus trabalhos destacam as mulheres e os estudos de Gênero no
mundo romano.

208 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


SOBRE OS AUTORES

ALEXANDrE PINHEIro HASEGAWA


Possui graduação incompleta em latim pela FFLCh/uSP, graduação
em Jornalismo pela PuC/SP, mestrado e doutorado em Letras Clássicas pela
FFLCh/uSP, com estágio de pesquisa na università degli Studi di Roma “La
Sapienza”, mediante bolsa CaPeS (Pdee). É professor do curso de graduação
em Letras da universidade de São Paulo e membro do Classics Research
Seminar, ligado à università degli Studi di Roma “La Sapienza”, e ao verve
(verbum vertere), grupo de pesquisa sobre poética e tradução de textos latinos
e gregos, cadastrado no CnPq. tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Línguas e Literaturas Clássicas, atuando principalmente nos seguintes
temas: gêneros poéticos, bucólica, iambo/epodo, lírica, organização de livros
poéticos e tradução.

CLáuDIA BELTrÃo DA roSA


Possui graduação em história pela universidade Federal do Rio de Janeiro,
mestrado em história Social pela mesma instituição e doutorado em história
pela universidade Federal Fluminense. atualmente é Professora associada
do departamento de história e do Programa de Pós-Graduação em história
da universidade Federal do estado do Rio de Janeiro (uniRio), atuando nas
áreas de história antiga e estudos Clássicos, principalmente nos seguintes
temas: Roma republicana, religião romana, política romana, teatro grego e
romano e história das ideias Políticas. atualmente coordena o núcleo de
estudos e Referências da antiguidade e do medievo (neRo-uniRio).

JAA TorrANo
Possui graduação em Letras Clássicas (Português Latim e Grego) pela
universidade de São Paulo, mestrado em Letras (Letras Clássicas), doutorado
em Letras (Letras Clássicas) e livre docência pela mesma instituição.
atualmente é Professor titular de Língua e Literatura Grega da universidade
de São Paulo. autor de O sentido de Zesu: o mito do mundo e o modo mítico
de Ser no mundo (São Paulo: Roswitha Kempf, 1988 / iluminuras, 1996) e
A esfera e os dias. Poemas (São Paulo: annablume, 2009). Publicou ainda
os seguintes estudos e traduções: Ésquilo - tragédias (São Paulo: iluminuras,
2009); Ésquilo - Orestéia (São Paulo: iluminuras, 2004); Eurípedes - Bacas (São
Paulo: hucitec, 1995); Eurípedes - Medéia (São Paulo: hucitec, 1991); Ésquilo

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 209


SOBRE OS AUTORES

- Prometeu prisioneiro (São Paulo: Roswitha Kempf, 1985); Hesíodo - Teogonia


(São Paulo: Roswitha Kempf, 1981/iluminuras), além de artigos e estudos sobre
literatura grega clássica em livros, revistas e periódicos especializados. trabalha
com os seguintes temas: tragédia grega, pensamento mítico e ilosoia grega,
estudando e traduzindo dos seguintes autores: homero, hesíodo, Ésquilo,
eurípides e Platão.

LENI rIBEIro LEITE


Possui graduação em Letras – habilitação Português Latim – bacharelado
pela universidade do estado do Rio de Janeiro, graduação em Letras –
habilitação Português - Latim – Licenciatura e especialização em Língua
Latina pela mesma instituição, mestrado em Letras (Letras Clássicas) pela
universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Letras (Letras
Clássicas) pela mesma instituição. atualmente é Professora adjunta da
universidade Federal do espírito Santo, membro do Conselho editorial da
Códex - Revista discente de estudos Clássicos, membro do Conselho editorial
da revista Contexto (uFeS) e membro de comitê assessor da Fundação de
amparo à Pesquisa do espírito Santo (FaPeS). tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Literaturas Clássicas, atuando principalmente nos
seguintes temas: livro, história da Leitura, marcial, epigrama.

ZELIA DE ALmEIDA CArDoSo


É licenciada em Letras Clássicas, doutora em Letras (Letras Clássicas)
e Livre-docente em Literatura Latina pela universidade de São Paulo.
atualmente é Professora Sênior da uSP, tendo-se aposentado como Professora
titular de Língua e Literatura Latina do dLCv da FFLCh em 1998. tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Clássicas, atuando
principalmente nas seguintes linhas de pesquisa: teatro Greco-Latino (Sêneca
e Plauto), Poesia Épica Greco-Latina e Poesia elegíaca. É líder do Grupo de
Pesquisa Estudos sobre o Teatro Antigo, certiicado pela uSP e pelo CnPq, Sócia
honorária da Sociedade brasileira de estudos Clássicos (SbeC), da qual foi
Presidente no biênio 1995-1997, e membro honorário da Sociedade brasileira
de Retórica (SbR). tem publicado livros, capítulos de livros e artigos em
periódicos cientíicos e anais de congressos. orientou dezenas de monograias
de mestrado e teses de doutorado.

210 GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES


SOBRE OS AUTORES

PAuLo SErGIo DE VASCoNCELLoS


Possui graduação em Letras (Português Francês e Latim), mestrado
em Letras Clássicas e doutorado em Letras Clássicas pela mesma
instituição atualmente, é Professor assistente da universidade estadual de
Campinas. tem-se dedicado ao estudo da poesia latina (Catulo e virgílio),
à intertextualidade nos estudos Clássicos e à questão do biograismo na
interpretação da poesia subjetiva romana. nos últimos anos, consagrou-se
ao projeto de anotação e comentário das traduções de virgílio feitas pelo
maranhense odorico mendes, coordenando o Grupo de trabalho odorico
mendes. atualmente coordena, com Patrícia Prata, o grupo de pesquisa
Intertextualidade na literatura latina.

TEoDoro rENNÓ ASSuNÇÃo


Possui graduação em Letras pela universidade Federal de minas Gerais,
mestrado em Letras (Letras Clássicas) pela universidade de São Paulo,
doutorado em histoire et Civilisations pela École des hautes Études en Sciences
Sociales e pós-doutorado pela mesma instituição. atualmente é Professor
associado da universidade Federal de minas Gerais. tem experiência na
área de Letras Clássicas, com ênfase em poesia grega arcaica (especialmente
estudos homéricos, ou seja, Ilíada e Odisséia, mas também hesíodo e a lírica
arcaica), trabalhando principalmente com os seguintes temas: morte, fases da
vida, temporalidade, contingência, prudência, comida e banquetes.

GÊNERO, RELIGIÃO E PODER NA ANTIGUIDADE: CONTRIBUIÇÕES INTERDISCIPLINARES 211

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