Coracao Azedo - Contos - Jenny Zhang
Coracao Azedo - Contos - Jenny Zhang
Coracao Azedo - Contos - Jenny Zhang
Sumário
Mesmo que minha mãe fosse a soma de tudo que você espera de uma
pessoa, meu pai já nasceu secando as mulheres e ia morrer revirando os
globos oculares, sempre numa procura frenética por mulheres bonitas, ou
pelo menos foi isso que minha mãe me falou. Logo depois que fomos
despejados do apartamento de Flatbush e encontramos o apartamento de
alto padrão de bosta de Bushwick, meu pai começou a sair com uma
mulher que conheceu num dos bicos de garçom que fazia num restaurante
de noodle onde pegava o turno da madrugada nos fins de semana e
feriados.
O nome dela era Lisa e ela era de Taiwan. Não era bonita, não igual à
minha mãe, que tinha olhos que refletiam a lua mesmo na luz do dia, não
igual à minha mãe, que tinha braços finos e usava vestido o tempo todo, até
no inverno, e não igual à minha mãe, que tinha um pescoço comprido e
alto que a fazia parecer inacessível; a namorada do meu pai era baixinha,
tipo um tronco de árvore cortado ao meio, e tinha um peitão, e era só isso
que ela tinha a seu favor. Usava um perfume forte que a fazia cheirar como
o sovaco mal lavado de uma pessoa que correu a meia maratona e depois
caiu na bobeira de esfregar um ramalhete de flores nas axilas para mascarar
o fedor, mas é como minha mãe sempre dizia: “Não dá para lavar um cocô
com sabão e esperar que fique cheiroso”.
Da primeira vez que ela veio à nossa casa, eu não parava de espirrar
porque o perfume dela era muito forte e eu era alérgica a odores artificiais
e a piriguetes malucas que não tinham nada que andar por aí com o meu
pai. Ele a apresentou para mim como “sua tia Lisa”.
— Ela não é minha tia, pai. — Olhei para a Lisa; aqueles peitões
ridículos eram muito caídos e eu queria chutá-los de volta para perto da
cara dela. — E não vou me dirigir a ela, muito obrigada.
Ela aparecia às vezes, sempre quando minha mãe não estava em casa,
embora minha mãe soubesse e não fosse nenhum segredo, era só um
daqueles arranjos em que uma pessoa faz o que quer às custas de todo
mundo. É claro que a Lisa não dava a mínima para mim ou para minha
mãe e provavelmente nem para o meu pai, era só uma pessoa
absurdamente solitária que precisava invadir a vida dos outros. Ela fingia
que era legal comigo quando vinha em casa, às vezes me oferecia um
sanduíche e uma vez trouxe um liquidificador e perguntou se eu queria
milk-shake e eu disse que era chata para comer, e ela perguntou como
assim, e eu disse é que só gosto da comida que a minha mãe faz e odeio a
comida que as pessoas que eu odeio fazem, e ela disse ah, então tá, e eu
disse esse seu perfume me faz espirrar, sabia?, e ela disse desculpe, mas não
posso fazer nada.
Pode sim, sua puta, eu resmunguei.
O que você disse?, ela falou, e depois ficamos em silêncio.
Todas as noites eu rezava para que ela fosse atacada e mutilada no
caminho para o nosso apartamento de Bushwick, mas ela sempre chegava
sã e salva, arruinando minha tarde quando eu voltava da escola e ela já
estava em casa, esperando meu pai aparecer, sentada no sofá de almofada
que a gente fingia que era um sofá normal e não só um monte de
almofadas jogadas no chão, zapeando os programas de TV e fazendo
parecer que queria que eu escolhesse o programa, mas, no mesmo minuto
em que eu levantava para comer alguma coisa, ela imediatamente trocava
de canal e, quando eu voltava, dizia:
— Pensei que você não queria mais ver aquele programa, então mudei.
Falei para o meu pai que eu detestava ver a Lisa em casa, mas o que eu
queria dizer é que detestava a Lisa, ponto final, e ele me disse para fazer
um esforço por ele, e eu disse mas por que a Lisa não pode fazer um
esforço por mim? Por que eu preciso fazer um esforço por ela?, e meu pai
disse não por ela, por mim, e ela bem que tentou, bala azedinha. Ela te
trouxe a bicicleta, não foi?
Minha mãe não reclamava da namorada do meu pai. Ele sempre teve
namorada, no fim das contas, e eu é que nunca soube das outras porque
não sabia de tudo que acontecia entre minha mãe e meu pai, mas minha
mãe sabia e aceitava e me disse para não me desgastar com essas coisas,
porque tínhamos uns aos outros, ele sempre voltava para casa, ainda nos
amava mais do que ninguém, ainda éramos suas meninas número um.
A namorada do meu pai apareceu em nossas vidas no pior momento
possível: eu tinha começado o terceiro ano e andávamos totalmente falidos
depois que a escola do meu pai fechou e meu pai resolveu que nunca mais
ia dar aula e minha mãe perdeu o emprego de recepcionista, isso sem falar
na nossa mudança para Bushwick depois que perdemos a fiança do
apartamento de East Flatbush graças ao proprietário doido que nos puniu
injustamente por não pagar três meses de aluguel porque a mãe da minha
mãe na China teve câncer e minha mãe precisou gastar três salários para
viajar de avião para ver a mãe nas últimas.
No dia em que nos mudamos de lá, o proprietário ficou o tempo todo
espiando pela janela (ele morava no terceiro andar, bem em cima da
gente), e eu mostrei o dedo do meio e gritei “tenha um pouco de
compaixão, seu pau mole. Nunca conheceu alguém que tenha morrido?”,
enquanto meus pais amarravam nossos dois colchões no capô do
Oldsmobile vinho.
— Deixa essa minhoca seca pra lá — minha mãe me disse, ajeitando
meu cabelo e esticando meus dedos deformados de raiva.
— Odeio ele.
— A gente também, minha maçã azedinha. A gente também. Mas o que
passou, passou, azedume. Entendeu? Tudo tem motivo para acontecer.
Tudo tem motivo, e a gente precisa ter paciência para descobrir qual é o
motivo. Entendeu?
Eu entendia. Mas não sabia o que meus pais sentiam a respeito daquelas
mudanças tão frequentes. Chegamos a morar em quatro ou cinco lugares
num intervalo de poucos meses. A mudança consistia naquilo que desse
para enfiar no carro e amarrar na lataria, mas mesmo assim eu não
conseguia evitar a empolgação que surgia toda vez que saíamos de um
lugar, como se fosse o primeiro dia da escola e eu ainda tivesse a chance de
não ser uma tonta, e como se essa chance só existisse no curto intervalo
entre minha chegada na nova sala e o momento em que a professora se
apresentava e passava a primeira tarefa do ano — era assim toda vez que a
gente enchia o carro e começava a dirigir para a próxima casa e para a
outra e a outra, e de certa forma não era tão ruim, era um lembrete de que
não existe aquilo que chamam de fracasso, só existe começar de novo um
milhão de vezes e mais um pouco.
— As pessoas sempre vão saber que você é minha filha por alguns
motivos — minha mãe costumava dizer.
— Conta um?
— Um deles é que nós duas adoramos comer coisas azedas.
— O.k., qual é o próximo?
— Não, espera. Não faça pouco caso desse. A gente adora coisas azedas.
Uva azeda, ameixa azeda, pêssego azedo, maçã azeda, cereja azeda,
morango azedo, mirtilo azedo, nectarina azeda, bala azeda, sopa azeda,
molho azedo, tudo azedo azedo azedo azedo. A maioria das pessoas gosta
de uva doce e pêssego doce e maçã doce e fruta doce.
— Parece verdade — eu disse.
— Não é tão comum, sabe? A gente também gosta de frutas bem duras.
— É. Verdade. A gente detesta pêssego mole. Detestamos pêssego mole
e doce e adoramos ameixa dura e azeda.
— Isso mesmo — minha mãe disse. — A gente é diferente. Lembra de
ontem? O cara estava vendendo uva no metrô. Lembra disso?
— É, ele ficava repetindo “a uva mais doce que você vai encontrar no
Brooklyn. Não vão querer provar uma uva doce, minhas duas doçuras?”.
— Aí fomos olhar as uvas dele e eu disse “então é doce mesmo?”.
— E ele disse “doce pra caramba”.
— E eu disse “tem certeza que tá doce? Muito doce mesmo? Não tá
mentindo pra mim?”.
— E ele disse “digamos que nessa caixa não tem nenhuma uva azeda”.
— E eu balancei a cabeça e disse “bem, então você perdeu negócio,
porque minha filha e eu só gostamos de fruta azeda”.
— E o cara começou a gritar na nossa direção algo do tipo “ei, ei, ei, EI,
vocês, EI, EI, vocês duas. Olha só, essa uva tá doce e ácida. Olha, tô com a
boca travada de tão ácida”.
Demos risada da nossa própria sagacidade, dos pequenos sinais que
comprovavam que controlávamos nossas próprias vidas, de que, na verdade,
o que havia tornado aquele dia significativo era o fato de termos sido mais
espertas que o cara do ei EI, e não o fato de que a minha mãe tinha perdido
o emprego de recepcionista numa empresa de confecção de roupa, e não o
fato de isso ter acontecido no mesmo mês em que a escola do meu pai
finalmente fechou as portas e que ele desistiu de lecionar porque estava
cansado de separar brigas e de ter o carro arrombado durante a aula e de se
sentir um assistente social quando na verdade nem simpatizava com a
humanidade e de se sentir fracassado todas as tardes e de muitas vezes
vomitar de manhã por pura ansiedade diante do dia que começava. Esse
dia foi significativo não por ter sido também a mesma noite em que meu
pai não voltou para casa para jantar porque estava com a namorada, ou
seja, minha mãe e eu não tínhamos nada para comer porque meu pai
estava com todo o dinheiro que tinha sobrado e tinha ficado de voltar com
comida para todos. Aquela noite nós duas passamos fome, nossos estômagos
doíam de fome, depois de tanto dar risada, depois de fome de novo, e
depois quando fomos dormir deu para ouvir as duas fungando, mas era o
tipo de noite em que nenhuma de nós tinha força para consolar a outra, e
foi aí que o grande vazio da depressão se abriu entre nós e continuou assim
até o fim da noite e só diminuiu um pouquinho quando acordamos com
meu pai de pé na nossa frente perguntando se ele podia ser o pão de cima
e se minha mãe podia ser o de baixo e se eu podia ser o queijo e o picles e a
carne de hambúrguer e o ketchup e a mostarda e a cebola e todas as coisas
que fazem de um cheesebúrguer a comida mais deliciosa do mundo
inteiro.
***
Meu pai escreveu para o pai e a mãe dele pedindo ajuda seis semanas
depois que nosso apartamento em Bushwick desmoronou. Demoramos
demais para encontrar outro lugar para morar e precisamos sair de Long
Island porque era muito longe e muito caro chegar aos vários lugares em
Manhattan e Queens e Brooklyn em que meus pais iam para conseguir
empregos melhores, então levamos nossas coisas para Flushing e
acampamos na sala do amigo do meu pai, Xiang Bo, e sua esposa, que
disseram que podíamos ficar com eles se pagássemos um terço do aluguel e
contribuíssemos com as compras de mercado e fizéssemos toda a limpeza.
Dez dias depois, recebemos um convite dos meus avós para que eu fosse
morar com eles em Xangai por um ano enquanto meus pais se reerguiam.
“Uma criança é uma grande despesa”, eles escreveram, “e não é natural
que os avós paternos de uma criança morram sem vê-la crescer. Uma
criança deve ir a uma boa escola e tirar notas altas, e uma criança precisa
voltar para casa e encontrar adultos que já tenham preparado uma refeição
quente, e uma criança deve jantar às seis em ponto toda tarde, e uma
criança precisa ser levada para a cama por adultos que a amam antes das
nove e meia toda noite, e uma criança deve acordar e encontrar uma
família que ainda esteja em casa quando for à escola, e uma criança deve
ter vários amigos bonitos e saudáveis.” Minha mãe leu a carta em voz alta
em chinês e meu pai traduziu os trechos que eu não conseguia entender,
mas ninguém nunca vai saber o que ele inventou e o que deixou de fora e
o que nem ele sabia.
— Não — eu disse.
— Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não,
não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não
— eu disse para os meus pais, socando o chão.
— Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não,
não, não, não, não, não — eu disse, jogando pela janela da sala de Xiang
Bo o urso de pelúcia que meus pais compraram para mim em
Williamsburg.
— Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não —
eu disse enquanto minha mãe me explicava os benefícios de morar fora por
um ano, talvez menos.
— Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não — eu
disse enquanto meu pai me chamava de todos os apelidos doces de coisas
azedas que eu tanto adorava.
— Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não — eu disse
quando meus pais prometeram que eu podia faltar à aula uma semana
inteira se me acalmasse só um pouquinho agora.
— Não, não, não, não, não, não, não — eu disse enquanto minha mãe
implorava para que eu parasse de me estapear.
— Não, não, não, não, não, não — eu disse quando tanto meu pai como
minha mãe agarraram e prenderam meus braços ao lado do meu corpo.
— Não, não, não, não, não — eu disse quando meu pai se ajoelhou e
ficou parado na minha frente e me implorou para parar de chorar porque
eu ia partir seu coração.
— Não, não, não, não, não — eu disse enquanto chorava até ficar
terrivelmente fraca, e então meu pai me pegou no colo e me carregou da
cozinha à sala.
— Não, não, não, não, não, não, não, não — eu disse enquanto minha
mãe segurava minha mão e meu pai me carregava dizendo que por
enquanto nada estava certo, que ainda havia muita reflexão pela frente e só
faríamos o que fosse melhor para nossa família.
— Não, não, não, não, não, não, não — eu disse quando meu pai
estendeu um cobertor no chão.
— Não, não, não, não, não, não — eu disse quando ele foi ao banheiro e
minha mãe tirou minha roupa.
— Não, não, não, não, não — eu disse quando minha mãe colocou o
pijama em mim e meu pai voltou e deitou do nosso lado.
— Não, não, não, não.
— Boa noite — minha mãe disse.
— Não, não, não.
— Boa noite — meu pai disse.
Tentei voltar a respirar normalmente no escuro. Falamos baixinho
nossos eu te amos e, na manhã seguinte, acordei pensando que nasci triste.
[Francine] SEI
[Eu] beleza
[Francine] HAHA! te peguei!
[Francine] e?
[Eu] ok
[Francine] ok
[Francine] eca
Depois da aula, o céu ficou escuro e eu não sabia se o dia tinha virado
noite ou se a noite tinha virado dia, aí decidi que o dia tinha virado noite
tipo nos meus pesadelos que me faziam acreditar que eu vivia num mundo
sem dia e, sob ameaça de tempestade, a Francine, a Frangie e eu corremos
para casa de mãos dadas, a Frangie no meio como se fosse nossa filha. Falei
para o Jason cronometrar dez minutos e só começar a ir na direção da
minha casa depois do alarme, porque tínhamos preparado uma surpresa
para ele e porque a Frangie ficava estranha perto de meninos e nós
tínhamos que levá-la para casa antes. O único menino com quem vi a
Frangie falando foi o Eddie.
Quando a campainha tocou, o Eddie abriu a porta.
— Quem é você, maluco? — ele disse, medindo o Jason, que estava
com um casacão verde com estampa de folha e vinha carregando sua
mochila de rodinhas e sua jaqueta de preta.
— Sai daí — eu disse, descendo as escadas correndo. — É o meu amigo
da escola.
— Você quer dizer namorado — a Francine gritou, alguns metros atrás
de mim.
Meu irmão olhou para mim e olhou para o Jason e caiu na risada.
— Qual é a graça? — eu perguntei e virei para o Jason. — Vem cá,
Jason, ignora ele. Ele precisa ir num médico de cabeça.
— Você tem namorado? — meu irmão me perguntou.
— Tenho, e daí?
— Você ao menos sabe o que é um namorado? É óbvio que não sabe —
ele disse, balançando a cabeça. — Olha, não tenho nenhum interesse em
você e nos seus amiguinhos estranhos.
Ele foi para a cozinha esquentar umas pizzas congeladas para ele e a
namorada, e Francine e eu levamos Jason para o meu quarto, onde a
Frangie estava esperando.
Quando chegamos, dez minutos antes, mandamos a Frangie deitar na
minha cama e tiramos sua roupa. Enfiei tudo no armário enquanto a
Francine amarrava a Frangie na cama com os lenços da minha mãe.
— Finalmente vamos deixar você brincar com a gente — a Francine
disse. — Tá feliz? Você não vai mais precisar esperar lá fora.
A Frangie não disse nada. Pelo que eu conhecia dela talvez ela estivesse
imaginando que era uma água-viva. Quando vi a força com que a Francine
tinha amarrado os lenços nos pulsos da Frangie, falei para ela ir com
calma.
— Não tô sentindo nada — a Frangie disse.
— Sério? — eu disse, analisando os nós que a Francine tinha feito e
afrouxando um deles um pouquinho.
— É disso que vocês brincam aqui? — a Frangie perguntou.
— Isso — a Francine disse. — Todo santo dia, e agora você vai poder
brincar.
Quando trouxemos o Jason para o quarto, ele imediatamente virou de
costas e foi em direção à maçaneta da porta, mas eu e a Francine
chegamos mais rápido. Bloqueamos a saída com os nossos corpos — eu
encostada na porta com os braços abertos como se fossem asas e a Francine
na minha frente com a mesma postura.
— Camarones — a Francine disse, sorrindo. — Você não tá com medo,
né?
— Não — o Jason disse. — Claro que não.
— Por que sua cara tá toda vermelha, então? — eu disse.
— Camarãozinho, você sabe que tem vontade. Se não fosse isso, por que
teria melado a cueca?
— É, ué — eu disse. — Por quê, hein?
O Jason se encolheu.
— Isso é fofoca.
— Sei não — a Francine disse. — Não te falaram na educação sexual
que não precisa ter vergonha?
— É — eu disse, me sentindo o eco da Francine. — Não te falaram?
— Acho que sim.
A Francine juntou as mãos em posição de oração, e eu fiz a mesma
coisa.
— Por favor, Jason — a Francine disse. — Promete que não vai tentar
fugir, ou a gente vai contar pra todo mundo que você tem medo de fazer.
— Fazer o quê?
— Fala que você promete — a Francine disse.
— Por favor, Jason, só promete.
— Tá bom — ele disse.
— Fala que você promete — a Francine disse.
— Tá — o Jason disse.
— Fala “eu prometo” — a Francine insistiu.
— Ele disse que tudo bem — a Frangie disse. O som da voz dela me
assustou.
— Isso é meio idiota — eu disse.
— Você diz isso pra tudo — a Frangie disse da cama.
Botei a cabeça por cima do ombro da Francine e olhei para ela. Ela
tinha se soltado daquele único lenço que eu afrouxei e tinha colocado a
mão na barriga. Me perguntei como seria se minha mãe morresse igual à
mãe da Frangie, se meu pai fosse inapto igual ao pai da Frangie, se o Eddie
se mudasse para morar com a namorada. Aonde eu iria depois da aula?
Quem ia tomar conta de mim? Senti uma profunda decepção comigo
mesma; quando olhava para a Frangie na minha cama, só conseguia
imaginar eu mesma. Por um instante senti que ia vomitar, mas aí a
Francine voltou ao comando e as coisas começaram a acontecer bem
rápido.
— Senta — a Francine levou o Jason à minha cadeira. — E você — ela
disse para mim —, ajoelha de frente para ele.
Fiquei de joelhos e abri o zíper da calça dele.
— Põe pra fora. Ele é seu namorado.
Não consegui achar logo de cara. Nem tinha certeza do que estava
procurando.
— Argh — a Francine disse, se ajoelhando ao meu lado. — Vou precisar
fazer tudo sozinha?
— Ei — o Jason disse, dando um tapa na mão dela e fechando o zíper
da calça. — Quem disse que você podia colocar a mão?
Fiquei em pé e percebi que tudo que era novidade para mim já era
carne de vaca para a Francine. A breve visão que tive do pinto do Jason foi
mais insignificante do que chocante. Era uma coisinha murcha, e não
consegui nem imaginar que aquilo fosse capaz de todas as coisas que
tínhamos discutido na educação sexual.
— Eu sou a namorada dele, Francine.
— Então faça a sua parte — ela aproximou a cabeça da minha.
— Vou pra casa.
O Jason começou a se levantar, mas sem muito esforço a Francine
imobilizou seus braços bizarramente musculosos de tanto jogar softbol
todo fim de semana. Ela balançou a cabeça com aquele olhar que já tinha
funcionado comigo. Era um olhar que dizia só eu sei o que vai acontecer
agora.
— Ainda não — ela disse, e depois olhou para mim. — A gente tem que
deixar duro. É fácil. Você só tem que colocar a boca ou esfregar desse jeito.
Ela se ajoelhou de novo e passou os dedos pelo zíper da calça dele. Lá
fora o dia estava quase um breu total. Os relâmpagos tinham parado, mas
eu sabia o que vinha pela frente.
— Não vou fazer isso.
— Que porra é essa? Primeiro você diz que tá a fim, depois diz que ele
também tá a fim, aí ele diz que não tá a fim e agora você também diz que
não. O que vocês têm na cabeça? — Ela revirou os olhos e, antes que
qualquer um de nós esboçasse uma reação, abriu o zíper, agarrou o pênis
dele e colocou aquela coisinha molenga inteira na boca.
— Hmmm — ela disse.
— Francine — eu disse, sentindo nojo.
— Hmmm hmmm hmm.
— Francine — eu gritei. — Não. Para com isso!
Tentei agarrá-la pelo ombro e empurrá-la para longe, mas ela era muito,
muito forte. Ela afastou a boca do pênis do Jason, que parecia menor do
que nunca mas não era mais uma coisa da qual eu conseguiria rir — agora
ele era parte do meu pesadelo. Novamente de pé, ela conseguiu segurar
meus pulsos com uma mão e cobrir minha boca com a outra. Agora os
relâmpagos tinham começado, e a chuva também.
— Shhh — ela disse. — Quer que o seu irmão escute?
Ouvi os passos do meu irmão na escada, e cada um deles emanava
vibrações direto para o meu coração.
— Lucy, será que você e os seus amigos podem parar de gritar? Fico
puto da vida e, de verdade, não posso mais me irritar. Você consegue
entender que estou tentando estudar? Com minha namorada de verdade?
Percebe que as outras pessoas têm uma vida de verdade? Olha, essa é a
última vez que vou pedir para vocês calarem a boca. Daqui pra frente, você
não existe mais. Não me incomoda que eu não te incomodo e todo mundo
fica feliz.
Mas eu existo, falei para ele em pensamento. Estou aqui, Eddie. “E se
eu precisar que você saiba que estou aqui?”, eu disse com a voz mais baixa
possível.
— Tá na hora — a Francine disse. — Jason, sobe na cama.
Ela tinha me explicado naquele dia que a gente precisava fazer isso, e só
tinha um jeito de fazer, e precisava ser assim porque o Jason precisava
aprender o jeito certo para que nossa primeira vez fosse perfeita, e tinha
cobaia melhor que a Frangie? Eu precisava me guardar para quando o
Jason fosse mais experiente, porque aí ia ser bom de verdade. Ela também
me disse que eu precisava prestar muita atenção, porque nem todo mundo
nasce sabendo fazer sexo — ela com certeza não tinha nascido, e eu
provavelmente também não —, tinha gente que precisava treinar muito,
tipo como se fosse matemática, tipo aquelas equações que a Francine e eu
errávamos toda vez, então era por isso que tudo era como era.
O Jason subiu na minha cama e uma das suas pernas tremia sem parar.
A Francine abaixou as calças dele, que ficaram emboladas na altura do
joelho.
— Por que você usa calça tão justa, Camarones? Você não é gayzão, né?
Ele ficou tentando montar na região dos joelhos da Frangie, e a
Francine disse que ele precisava subir um pouco mais para chegar perto da
vagina. A Frangie ficou mirando o teto com seus olhos fundos. Fiquei
esperando ela piscar, emitir algum som, dizer que queria ir para casa, mas
ela ficou lá deitada, com uma mão amarrada na cabeceira da minha cama.
— Frangie — eu disse. — Frangie, minha mãe disse que você pode ficar
para o jantar.
— Jason — a Francine disse. — Chega mais perto, seu retardado.
— Frangie — eu disse. — Ainda quero ser uma água-viva com você.
— Mais perto. Ainda tá muito longe.
— Frangie — eu disse. — Guardei um refrigerante pra você. Vou fazer o
Eddie colocar seu nome nele pra eu não esquecer e beber sem querer.
— Isso. — A Francine se inclinou do lado da cama e agarrou o pênis do
Jason, todo nojento e brilhante por causa da saliva dela, mas ainda bem
pequeno e mole. — Agora você abre — a Francine disse para mim. — Faz
como a gente costuma fazer.
— Frangie — eu disse, colocando os dedos nos lábios da vagina dela e os
separando com o dedão e o indicador. — Frangie, minha mãe disse que vai
levar a gente ao shopping esse fim de semana.
— Merda, por que não tá funcionando? — a Francine disse, parecendo
genuinamente preocupada pela primeira vez no dia todo. Ela mordeu as
pontinhas dos dedos. — Talvez o seu namorado seja gayzão.
— Frangie — eu disse. — Precisa de alguma coisa? Quer aquele
refrigerante? Salgadinho?
— Olha a cara do Jason. Olha isso, Lucy. Parece que ele tá precisando
fazer cocô.
— Frangie, fecha o olho — eu disse, tentando empurrar as pálpebras
dela com a mão, mas chegavam a estar duras de tão abertas, tipo a tampa
de uma lata de sardinha. — Frangie, por favor. Por favor, fecha o olho.
No andar de baixo, meu irmão cantava junto com o rádio, salpicando
grãos de pimenta no dedo e lambendo-o enquanto as pizzas giravam no
micro-ondas; lá fora, minha mãe contava para alguém que tinha acolhido a
Frangie como se fosse sua filha e não, não deixava que ela se sentisse
inferior aos seus filhos de sangue; em algum lugar mais longe ainda, meu
pai pedalava por Manhattan inteira em sua bicicleta com uma sacola de
plástico pendurada na cara, ultrapassando as luzes dos semáforos como se
ele fosse a própria luz, aceitando moedas de vinte e cinco centavos de
gorjeta, forçando um sorriso depois de cada entrega; e, quanto a mim, eu
esperava aquele primeiro estrondo de trovão, o momento em que poderia
me desconectar de mim mesma de novo, em que poderia pairar naquele
espaço acima da realidade para onde às vezes eu viajava e onde eu podia
me ver como de fato era, só que dessa vez, em vez disso, eu ia deixar rolar,
não ia tentar lutar, ia me permitir observar o que estava acontecendo de
verdade ali embaixo.
As mães antes das nossas
JULHO DE 1966
FEVEREIRO-MARÇO DE 1996
AGOSTO DE 1966
ABRIL-MAIO DE 1996
No dia em que meu tio chegaria em Nova York, minha família se
amontoou no Nissan Sentra 88 prateado do meu pai, e eu agarrava a mão
do Sammy toda vez que pensava que tinha ouvido um barulho estranho
vindo do motor ou que pensava que tinha visto alguma fumacinha subindo
do capô. Imaginava nosso carro pegando fogo e explodindo igual nas fitas
de ação que eu via com meu pai nos fins de semana.
— Será que a gente ia sobreviver? — perguntei ao meu pai quando vi o
Jean-Claude Van Damme ressurgindo de dentro de um carro em situação
de perda total, que tinha capotado por cima de três caminhões, batido
numa biblioteca e explodido em chamas depois de derrapar num rastro de
óleo.
— Não — ele disse. — Teríamos morrido faz tempo.
Assim que meu pai pegou o tíquete de estacionamento da máquina do
aeroporto, minha mãe cobriu o rosto com as mãos.
— Já começou a chorar? — meu irmão perguntou.
— Se você não visse sua irmã há seis anos, também estaria chorando —
minha mãe disse entre suspiros.
— Duvido. — Ele arrancou a mão da minha. — Você precisa mesmo
fazer isso neste momento?
— Desculpe — eu disse.
— Guarde suas mãos para você.
Depois que estacionamos, meu irmão ficou com remorso e foi comprar
uma Sprite e uma Fanta pra mim e minha mãe pra compensar o seu mau
humor.
— Não precisa me dar dinheiro.
Ele colocou a lata de Fanta da minha mãe no meio das pernas porque
ela não podia beber nada muito gelado. Minha garganta fica parecendo
um leão preso num iceberg, ela disse uma vez.
— Continua muito gelada — minha mãe disse quando o Sammy lhe
ofereceu seu refrigerante.
— Deixa que eu resolvo. — Peguei a lata da mão do Sammy e enfiei por
dentro das calças. — Aqui é sempre quentinho.
Olhei para ele e dei minha piscadinha clássica com-os-dois-olhos que o
Sammy dizia que era só uma fechada de olho mais demorada que o
normal.
— Que nojo! — minha mãe disse. — Aí quem vai querer beber?
Acabei bebendo os dois refrigerantes e pedindo para o Sammy me levar
ao banheiro três vezes. Quando voltamos da terceira ida ao banheiro, as
pessoas do voo de Xangai tinham começado a inundar o portão de
chegada. Reconheci meu tio imediatamente, embora não fosse exatamente
um grande feito mediúnico, já que minha mãe me mostrava fotos dele
todos os dias durante horas até que eu tivesse vontade de atacar qualquer
pessoa mais vulnerável do que eu mesma. Ele tinha o cabelo armado e
frisado, e depois eu soube que era permanente, e era muitos centímetros
mais alto que a maioria dos outros chineses no terminal. Eu não consegui
parar de olhar para sua boca, sem saber se o que eu via era mesmo o que
eu via — que todos os dentes dele eram tortos e tinham raízes pretas. Mais
tarde em nossas vidas, quando todos que cuidavam de mim quando eu era
criança começaram a se perguntar quem ia cuidar deles, minha mãe me
ligou no meio da noite para me contar que o tio Chunguang tinha perdido
o último dente em seu aniversário de cinquenta anos, e eu fiquei triste
como se ele tivesse também perdido os braços e as pernas, me acabei de
chorar, sozinha no meu quarto do alojamento da faculdade, batendo o
punho no meu próprio peito até não conseguir mais respirar e me jogando
na cama e respirando ofegante lá deitada de barriga para cima, percebendo
que minha mãe afinal de contas tinha me atingido. Sua histeria não ia
acabar quando ela morresse, porque já tinha sido passada pra mim.
Ele veio primeiro até mim, me pegou no colo e me ergueu o mais alto
que seus braços conseguiam. Essa é a primeira memória que tenho de uma
vista aérea que enquadrasse tantas pessoas — senti como se fôssemos
desconhecidos se encontrando numa sala de estar gigantesca. Ele me
colocou no chão e se curvou para ficar da minha altura.
— Lembra de mim?
Concordei timidamente, me permitindo uma mentirinha, algo que
antes eu só tinha feito pela minha mãe.
— É bom mesmo — ele disse. — Você me deu um banho de xixi antes
de entrar no voo de volta para os Estados Unidos com a tia Cheng Fang.
Todo mundo riu, menos eu. Meu tio deu um tapinha nas costas do meu
irmão e depois resolveu puxá-lo para um abraço.
— Sabia que a idade não oficial para consumo de álcool na China é a
hora em que der na telha, né?
Meu irmão sorriu, e eu olhei para o meu pai e tentei imaginar a cara do
Sammy ficando tão vermelha quanto a dele tinha ficado em todas as festas
do ano. Meu tio fez um gesto pedindo para me colocar nos ombros.
— Posso?
Eu fiz que sim com a cabeça.
— Guoqiang, nihaonihaonihaonihaonihaonihaonihao — meu tio disse,
embalando as mãos do meu pai e chacoalhando-as vigorosamente. — Feliz
aniversário de dezoito anos atrasado, irmão!
— Dito por um homem com a energia de um menino — meu pai disse.
Tínhamos comemorado seu aniversário de quarenta e quatro anos na
semana anterior, com o Chen shu shu e a turma de sempre. Meu presente
para o meu pai foi ficar escondida no banheiro na última hora da festa para
evitar a pergunta sobre o ranking do meu amor.
Meu tio abraçou minha mãe comigo ainda empoleirada nos seus
ombros. Senti meu tênis roçando na clavícula dela. Pela primeira vez na
vida ela chorou em silêncio, sem fazer show, sem anunciar que tinha se
partido ao meio, sem nos imbuir da responsabilidade de mantê-la em pé,
de segurá-la. Agora me constrange dizer isso, mas acho que aquela foi a
primeira vez que acreditei que ela estava chorando por algo que merecia
mesmo o volume e a intensidade de sempre.
— Não vai acreditar no que a mamãe me fez trazer na mala.
Minha mãe se apoiou nos ombros do Sammy, ainda incapaz de falar.
— Cana-de-açúcar.
Uma nova corrente de lágrimas caiu pelo seu rosto.
— Por acaso — meu tio perguntou ao Sammy — você já viu alguém
que fique tão sensível por causa de cana-de-açúcar?
O Sammy balançou a cabeça.
— Prepare-se.
— Ah, já me preparei.
Era lindo ficar lá, em cima de tudo e, quando meu pai sugeriu que
fôssemos embora, senti prazer e pânico diante das portas que antes
pareciam impossíveis de alcançar e agora se materializavam bem perto de
mim. Tive certeza de que estava perto de alguma coisa maravilhosa. Quis
subir mais e chegar até ela e cumprimentá-la com um aperto de mão e
dizer estou pronta estou pronta estou pronta estou pronta.
De início, pareceu que nada ia mudar. Perto do meu tio eu ficava tímida
e o Sammy ficava prestativo. O Sammy lhe mostrou o sistema de transporte
público, lhe ensinou a usar cartão em vez de dinheiro trocado, o caminho
para o McDonald’s mais próximo e o truque de pedir a promoção secreta
de dois cheesebúrgueres que era só quarenta e nove centavos mais cara do
que a oferta normal. Levou meu tio à biblioteca e lhe mostrou a seleção de
livros, fitas cassete e vídeos chineses. Explicou que nas máquinas self-
service de refrigerante como da 7-Eleven o melhor era encher o copo só de
refrigerante, sem gelo, assim você pegava o dobro de bebida e, quando
chegasse em casa e o refrigerante já estivesse quente, era só colocar gelo.
Dois pelo preço de um!, ele disse.
Meu pai conseguiu um emprego de delivery de comida chinesa para o
meu tio por meio de um velho amigo que ele tinha conhecido naquela
época em que vendia guarda-chuvas na rua. Agora o amigo era dono de um
restaurante cantonês na rua Bayard, embora fosse de Jinan.
— O pessoal daqui não sabe a diferença? — meu tio perguntou.
Meu pai bufou.
— Essa gente não sabe o que é Japão e o que é China. Você vai ver.
Aqui tudo é restaurante do Jardim de Hunan ou da Grande Muralha e
nenhum tem nada a ver com nada. Os lao wai só sabem pedir três coisas:
frango agridoce, carne com brócolis e macarrão lao mian, mas pronunciam
“low may-en”.
Meu tio ficou curioso.
— Agridoce? Então os lao wai daqui pegaram gosto pelo estilo de
Xangai.
— Se é que dá para chamar assim…
— Lembra — minha mãe interrompeu — de quando a mamãe trocou
um talo de cana que ela tinha roubado daquela fazenda por tíquetes de
ração de farinha?
— Ah, sim, trocou com aquele cara esquisitão que se juntou com a
canadense de cabelo comprido que deu aula de inglês na nossa escola por
um mês antes de ele desaparecer. Ele não tinha escondido a cana-de-
açúcar dentro de uma árvore oca uma vez?
— Acho que depois disseram que era tudo mentira.
— Bem, enfim, lembra como ficamos animados quando chegamos em
casa para comer aquelas bolotas de farinha frita e mergulhamos elas num
molho de soja vencido todo gosmento? Parecia outra coisa.
— Ah, vá. Você está exagerando.
— Não é exatamente igual à outra coisa — meu pai disse —, mas bem
que poderia ser. Você tira sorte grande se encontra um pedacinho de carne
no meio daquela massaroca frita.
Quando levamos meu tio ao supermercado pela primeira vez, ele
começou a gargalhar quando entendeu que os supermercados ali não
vendiam comida.
— Cadê a comida? — ele perguntava. — Onde fica a comida nesse
estabelecimento de comida?
— É aqui mesmo — eu disse, gesticulando em direção às prateleiras de
cereal.
— E aqui — o Sammy disse, apontando para a seção de salgadinhos.
— Aqui só tem caixa — meu tio disse. — E ali só tem saco.
— Vamos levar você até a comida — meu pai disse.
Levamos meu tio ao hortifrúti, que de fato parecia meio triste —
verduras murchas e toda sorte de alface recebendo jatos de água gelada.
Normalmente nunca íamos às mercearias americanas; estávamos
acostumados a ir aos supermercados chineses em Flushing ou Elmhurst,
mas, de vez em quando, na volta do trabalho, meu pai passava no Key
Food ou no College Point Boulevard para conferir se a oferta do coentro de
três-por-um-dólar ainda estava de pé. Assim que lembrei disso, disse que
meu tio não precisava se preocupar porque só fazíamos compras onde os
chineses iam. Ele ia ver — havia outros supermercados com seções
enormes de verduras que nem nome em inglês tinham, onde você
encontrava cabeças de peixe por um dólar e uma sacola de um quilo e
meio de osso de porco por dois.
— Então os americanos não comem comida — ele disse, ainda incapaz
de se recuperar da ausência de comida nos supermercados.
Meu pai concordou.
— Eles só comem caixa, irmão.
Minha mãe queria fazer uma festa de boas-vindas para o meu tio o
quanto antes, mas não deu tempo. Ele demorou algumas semanas para se
acostumar ao novo emprego — confundiu chow mein com lo mein várias
vezes e precisou fazer hora extra para pagar pelos erros.
— Ninguém vai falar a verdade para esses lao wai? — meu tio reclamou
depois de algumas semanas.
— Frango lo mein é a comida preferida da Sarah e rolinhos de ovo, a da
Alexi — eu disse.
— Viu? — o Sammy disse. — Tem que adotar o jeito americano de
pensar.
— Aquilo não é rolinho de ovo — meu tio disse. — É um rolinho
borrachudo de farinha frita com amido de milho e glutamato
monossódico.
Quando meu tio finalmente se acostumou com o trabalho, teve um
problema com seu visto de estudante e precisou pegar um ônibus até
Washington D.C. para resolver as coisas e voltou de lá com uma doença
misteriosa que durou dez dias.
— Já entendi o que aconteceu — ele disse. — Aqui é tudo muito
higiênico. Não tem germes! Se um dia eu voltar para Xangai serei um
homem morto.
— Não entendi — eu disse.
— A China é imunda — o Sammy traduziu. — Se bem que você deve
ser imune porque estava lá quando era bebê.
— Não entendi — eu disse.
— Ninguém entende. Apenas aceite e bola pra frente.
— Seu qing jiu jiu vai explicar tudo, Annie — meu tio prometeu,
usando uma palavra que eu não conhecia, e quando não entendia uma
palavra eu imaginava um buraco no lugar onde a palavra deveria estar.
O Sammy era quem mais dava atenção aos meus surtos de
esvaziamento, mas nem sempre estava a fim de fazer alguma coisa para me
ajudar. Meu tio, por outro lado, era parecido com a minha mãe em sua
capacidade de falar por horas a fio e também não tinha necessidade de
ficar sozinho como o Sammy, mas, ao contrário da minha mãe, quando
meu tio falava longamente, eu não me sentia sufocada.
— Sabe, em Xangai você tinha tios até demais.
— Não lembro de nenhum.
— Nem o papai — meu pai brincou. — E eles são meus irmãos!
— Bem, e eu não podia aceitar ser só mais um tio. Eu queria ser seu
melhor tio, o tio que você mais adora. Aí eu perguntei “sou só mais um jiu
jiu ou sou seu qing jiu jiu?”, e você disse qing jiu jiu. E foi assim que você
me chamou dali em diante. “Qing” significa uma coisa que você gosta de
coração. Você concordou que eu era o tio mais querido de todos os seus
tios e aí eu virei o qing jiu jiu.
Num acontecimento sem precedentes, minha mãe, mesmo não estando
envolvida, ficou eufórica ao ouvir essa história sobre meus tempos em
Xangai, e o que era mais absurdo ainda era que aquela era uma história em
que eu amava outra pessoa mais do que a amava.
— É por isso que precisamos fazer uma festa. Para o qing jiu jiu — ela
disse.
— O aniversário da minha sobrinha favorita está chegando?
— Dez de maio — meu irmão confirmou.
— Bem, então a festa deve ser para a Annie — meu tio disse.
Minha mãe ficou estranhamente animada para celebrar o meu
aniversário e nem tentou roubar a cena.
— Oito bolos! Oito presentes! Oito vestidos de aniversário diferentes!
— Oito dias de Annie — meu tio disse.
— Posso ficar com oito dias só para mim? Esse vai ser meu presente para
você — o Sammy disse, já exausto da nossa companhia. — Ou pelo menos
oito horas.
— Oito dias e meu bebê não vai mais ser bebê — meu pai disse. —
Passa rápido demais.
— No caso dela talvez demore um pouco mais — o Sammy disse.
— Não tem problema nenhum em continuar pequena — meu tio disse.
— Desde que seja o que a Annie quer.
— Posso escolher? — perguntei. Nunca tinha tido opção antes.
— É a sua vida, mocinha — meu tio disse.
— Olha o que acontece quando você é grande — minha mãe disse,
apontando para a cabeça do meu tio.
— Oi? — o Sammy disse.
— É verdade — meu tio explicou. — Eu tinha uma cabeça enorme
desde o útero.
— Você conhece essa história — minha mãe me disse, apesar de eu não
saber. — Sua avó não conseguia expeli-lo nos momentos finais do parto.
Não foi brincadeira.
— Sua mãe saiu e chamou o cara que estava limpando o sangue do
chão daquele hospital rural. Ela o levou até sua avó pensando que ele
poderia ajudar.
— A mamãe gritava. Gritava de verdade, sabe? Pedindo que Deus lhe
desse forças.
— E xingando nosso pai — meu tio completou. — Ela não deixou
barato.
— A mamãe dizia coisas do tipo “se você chegar perto de mim de novo
para fazer outro desses, eu corto o seu fora”.
— Foi aí que sua mãe saiu e chamou aquele cara que era basicamente o
chefe da limpeza e voltou dizendo “atenção! Eu trouxe ajuda”. Mas não
esqueça que isso aconteceu lá atrás. Não havia médicos especialistas na
zona rural. Só meia dúzia de adolescentes que tinham feito um mês de
treinamento para poder fazer todos aqueles partos. Era normal que as
crianças…
— E as mães…
— Morressem no parto.
— Então, a essa altura, seu tio estava com metade do corpo para fora,
mas ao contrário do que deveria. A cabeça ainda estava presa dentro da sua
avó. Faltava mais ou menos um minuto para que ele sufocasse e acabasse
natimorto.
Morto, eu compreendi, natimorto é morto.
— O cara chegou e não perdeu a calma. Instruiu seu avô a segurar sua
avó pelos ombros. Ele falou algo do tipo “está segurando bem?”.
— E aí ele agarrou as perninhas do seu tio e puxou de uma vez. O parto
do seu tio foi feito por um faxineiro camponês — minha mãe disse, rindo.
— É por isso que as crianças te chamavam de Cabeção? — eu
perguntei.
— Bem, isso veio depois — meu tio disse.
AGOSTO DE 1966
MAIO DE 1996
AGOSTO DE 1966
Meu tio ficou puto porque minha avó o obrigou a destruir a casa de
ranho. Perguntou para a minha avó se ela ficaria feliz caso ele a mandasse
quebrar todas as suas tigelas ou rasgar sua melhor blusa.
Não, não ficaria, ela disse. Simplesmente porque não é seu papel dizer
esse tipo de coisa à sua mãe.
Então eu não posso dizer nada? E você pode dizer o que tiver vontade
para mim?
Se eu disser para você se curvar aos meus pés e limpar meu sapato com a
língua, você precisa obedecer. Se eu disser para você se enfiar na selva e
capturar com suas próprias mãos uma serpente que seja capaz de botar
ovos de ouro, é melhor que você não apareça antes de me trazer os tais
ovos. Se eu disser para você arrancar sua pele para fazer luvas de couro
para me aquecer, você deve começar a afiar a faca imediatamente e
escolher a parte mais quente do seu corpo. E você, sendo meu filho, não
pode sequer me dizer o que devo fazer de jantar numa noite qualquer. Deu
pra entender?
Meu tio ficou revoltado de pensar que estava condenado a uma posição
tão inferior só porque havia nascido filho da minha avó e seguiria sendo
seu filho pelo resto da vida. Ele se enfurecia com a ausência de cerimônia
ou de culpa com a qual minha avó saía lhe dando ordens, com a certeza
dela de que sua única tarefa como ser humano era obedecê-la, com a
invalidação de sua individualidade e de seu arbítrio.
Vou colar tudo de novo, ele disse, depois que a professora Liu se foi.
Hoje à noite vou enfiar o dedo no nariz até não poder mais e vou colar
tudo de novo. E, se você não deixar, vou contar pra todo mundo que ela
veio aqui. Vamos ver se você vai gostar quando destruírem as suas coisas.
Vou tirar cada bolinha de ranho da parede e vou enfiar de volta no seu
nariz. Se contar para uma vivalma que ela estava aqui, eu mesma vou
enforcar você e vou deixar seu corpo jogado na rua cheio de marcas da
minha mão no seu pescoço, assim ninguém vai se atrever a chegar perto
desta família.
Não tenho medo de você, meu tio disse. Não sou sua propriedade. Vou
fugir. Um dia você vai acordar e eu terei ido embora e você não vai
conseguir me encontrar.
Então é assim? Está falando sério, Chuanguang? Vai honrar o que disse?
Que não é minha propriedade?
É, isso mesmo, ele disse, fungando alto. Não sou sua propriedade e
odeio você e não vou fazer nada do que você manda. Você pensa que pode
me maltratar. Não pode. Sou livre. Sou eu mesmo.
Vou perguntar de novo. Você vai honrar o que disse? Que quer se livrar
de mim? Que não vai viver amarrado a mim?
Sim, meu tio disse. Já disse que sim, não disse? Eu já disse.
Então me passe essas meias, minha avó disse, apontando para os pés
dele. Não vai precisar disso, já que fui eu quem tricotou para você.
Tudo bem, meu tio disse, tirando as meias.
E a camisa e as calças e, pensando bem, toda a sua roupa.
Então meu tio tirou a camisa e as calças e a regata de baixo e ficou em
pé só de cueca.
Não fique tímido perto da sua mãe. Se você vai ser livre, não faça isso
pela metade. Devolva tudo que lhe dei até hoje e você está livre. Simples
assim. Você não é mais meu filho. Não sou mais sua mãe. Não devo nada a
você. Você não me deve nada. Vamos. Tira tudo.
Sem problema, meu tio disse. Pode pegar. Essas roupas são um lixo
mesmo.
Não fique aí parado como se aqui ainda fosse sua casa. Já que você não é
mais meu filho e eu não sou mais sua mãe, você também não mora mais
aqui. Ficou claro? Você não pode dizer que não vai mais ouvir sua mãe e
ainda se dar ao luxo de comer a comida que eu comprei e preparei e
dormir na cama que comprei com o dinheiro que ganhei e se enfiar nos
cobertores que eu costurei. Agora, se quer ser livre de verdade, seja livre de
verdade. Vá morar lá fora, onde os pombos podem bicar sua cara até a
morte quando estiver dormindo e, caso não seja até a sua morte, ao menos
vão levar seu pênis e sua bunda e sua boca e seus dedos da mão e do pé e,
quando isso acontecer, você não vai voltar para cá. Você vai procurar os
outros meninos que não precisam de mãe. Vá e faça o que eles fazem e
veja quantos anos você vai ter pela frente. O que posso adiantar é que você
nem vai precisar de todos os dedos da mão para fazer essa conta. Mas vá
descobrir por si só. Agora você está livre e eu estou livre de você. Não sou
mais responsável por você e você não precisa mais me ouvir. Esse é o
acordo que você escolheu. Nunca mais vou abrir esta porta para você.
Então xô. Sai daqui. Você não é bem-vindo neste lugar. Você não tem nada
a ver comigo e eu não tenho nada a ver com você. Esta casa não é mais a
sua casa. Saia da minha frente. Adeus.
JUNHO DE 1996
AGOSTO DE 1966
Minha mãe foi a pessoa que subiu no telhado depois de algumas horas,
quando as crianças da comunidade Nanchang, cansadas e famintas e
desconfortáveis por terem sido consagradas guardiãs da anarquia,
assombradas pelos boatos sobre os lugares aonde iriam no outono e sobre
quanto tempo passariam lá, começaram a fazer a viagem de volta para casa,
na esperança de que essa fosse a noite em que haveria um pouco de
gordura de porco para o jantar. Foi minha mãe que encontrou meu tio,
com seu corpinho pelado de menino tremendo sob a luz fraca, seu rosto
inchado e longos fios de catarro caindo das narinas até a barriga. Ela foi a
pessoa que levou um lençol para que ele se cobrisse e a pessoa que limpou
seu nariz com um lenço e o convenceu a descer as escadas. Ela foi a pessoa
que o levou até minha avó e disse perdoe-o. Ele está arrependido. Ela lhe
trouxe uma tigela de arroz temperado com algumas gotinhas de molho de
soja e, como depois ele ainda continuou com fome, ela foi à cozinha e
pediu à minha avó com a voz mais doce que tinha você pode colocar um
pouco de picles de rabanete na minha tigela? Vou dizer a ele que roubei
um pouco. Nós duas sabemos que ele não vai comer se achar que pedi para
você. Tudo bem, mãe, ele aprendeu a lição e está morrendo de fome.
Lembra do que a gente dizia? Não deixamos ninguém passar fome nesta
casa.
Foi minha mãe que o abraçou e disse que existe um tipo de amor no
mundo que só sobrevive se ninguém expressá-lo, e por isso ele não devia se
preocupar se minha avó nunca fosse ser o tipo de mãe que pega os filhos
no colo e diz que são espertos e lindos e talentosos. Ela só repreenderia
seus filhos, faria com que se sentissem inferiores, faria com que nunca se
sentissem bons o bastante, garantiria que soubessem que o mundo não ia
facilitar. Ela não permitiria que outra pessoa fosse melhor que ela na tarefa
de fazer os filhos sentirem dor ou medo e, para ela, essa era uma forma de
proteção.
É assim que seremos com nossos próprios filhos, minha mãe disse ao
meu tio, orgulhosa de ter chegado a esse entendimento. Porque
aprenderemos com nossa mãe, que aprendeu com a mãe dela, que
aprendeu com a mãe dela, que aprendeu com a mãe dela e todas as mães
que vieram antes. É assim que imagino que seremos, minha mãe disse,
vendo a boca do meu tio abrir um pouco, permitindo que um fio de baba
escapasse — seu ritual noturno antes de pegar no sono.
AGOSTO DE 1996
Minha mãe insistiu em fazer uma festa de despedida para o meu tio
antes de sua partida para o Tennessee, onde ele ia começar o mestrado em
engenharia química. Meu tio se mostrou relutante, mas todos
concordamos que a situação pedia um bota-fora oficial.
Nas semanas que antecederam a viagem, minha mãe tinha regredido e
voltado a ter seus colapsos duas vezes por dia.
— Você pode faltar no primeiro mês, não pode?
Mas meu tio não ia cair nesse papo e ignorou todas as tentativas de
chantagem da minha mãe.
— Para quê? Continuar entregando comida chinesa? Você não quer de
verdade que eu estrague tudo, quer? Você precisa passar por cima dessa
primeira camada de sentimento, isso é só uma reação, uma tentativa de
driblar seu sofrimento. Lá no fundo você quer que eu vá. Sei que você
quer.
Eu também tive dificuldade de aceitar.
— Você vai voltar logo?
— Ele vai voltar para o Natal — meu pai disse. — Já compramos a
passagem.
— Por quê por quê por quê por quê por quê por quê? — eu resmunguei,
escalando o corpo do meu pai e batendo nas partes ossudas de seu corpo.
— Ele veio aqui para isso. Era o plano dele, minha macaquinha.
Eu tinha oito anos, mas ainda carregava um corpinho magro e
desajeitado como o de um macaco, um corpo indefeso e perfeito para ser
balançado como um objeto.
— É verdade — meu tio disse. — Faça o favor de continuar pequena e
fofa para seu qing jiu jiu. Brincadeira, quero que você cresça se esses seus
ossos quiserem esticar. Não esqueça: você pode ser o que quiser, tá? — ele
continuou, agora olhando para o Sammy. — Você vai precisar ser o
homem da casa, porque esse aqui — ele apontou para o meu pai — logo
precisa se aposentar. E Sammy: não se engane. Você já virou um homem
de bem. Você é cinco vezes o homem que eu era na sua idade.
O Chen shu shu e a Xiao Ming a-yi foram os primeiros a chegar, e no
mesmo instante ele e meu pai desafiaram um ao outro a tomar três doses
em homenagem ao meu tio. Aí o Chen shu shu me mandou sentar em seu
colo e declarou para todo mundo que, se a Xiao Ming a-yi finalmente
caísse na real e o abandonasse e ele estivesse solteiro quando eu fizesse
dezoito anos, ele se casaria comigo. Meus pais deram risada e colocaram as
mãos na barriga, e eu pensei que bom, daqui a dez anos vou me casar com
um tarado. As pessoas estavam bebendo rápido, exatamente como o
Sammy tinha dito que ia acontecer quando apareceu no meu quarto e disse
para eu me preparar.
— Quando os adultos ficam tristes, eles afogam as mágoas com bebida.
— Só não entendo o que o álcool tem de tão bom — eu disse.
— Vamos torcer para que nenhum de nós nunca entenda.
Alguns dos convidados beberam demais e começaram a falar sobre os
velhos tempos, e a conversa acabou virando fulano que apanhou e sicrano
que perdeu a cabeça.
— Estamos comemorando — meu pai disse, subindo no sofá e
interrompendo a conversa sombria. — Todos temos cabeça boa, não
temos?
Alguns convidados concordaram e os bêbados ficaram se cutucando,
acusando uns aos outros de insanidade.
— Estamos todos aqui, não estamos? — meu pai disse. — Todos
chegamos a este país sem um tostão no bolso, não chegamos?
— Pai, me ajuda com o gás hélio? Não está bombeando direito — o
Sammy pediu, oferecendo ao meu pai uma saída digna do sofá.
— Alguns aqui estão na pior. Mas não o meu cunhado. Ele… ele…
ele…
— Tudo bem, tudo bem — minha mãe interveio. — Já chega.
— Annie — meu pai disse, se jogando de novo no sofá e dando um
tapinha na almofada ao lado. — Venha aqui com o papai.
— Está bem.
— O papai está bêbado.
— Eu sei. Quer café?
— Você sabe fazer café?
— O qing jiu jiu me ensinou.
— Você é um milagre de filha. De verdade. Dei sorte com você e o
Sammy. Vou fazer tudo que estiver ao meu alcance para dar a vocês a vida
que não tive. O papai está velho, sabe. Mas, Annie, você ainda é jovem.
— Se sou tão jovem — eu disse —, você ainda não pode ser tão velho.
Enquanto eu ainda for pequena, você não pode dizer que é velho.
Meu pai me puxou para tão perto que eu não conseguia respirar. Tentei
escapar, mas ele não deixava.
— Só mais um segundo. Deixa o papai te abraçar.
Uma lágrima caiu pelo meu rosto, a primeira de sabe-se lá quantas por
ele, e apenas por ele.
O Chen shu shu apareceu e acabou com o nosso abraço para me fazer a
tão temida pergunta.
— Lembra do que perguntei na sua festa de aniversário? Você disse que
precisava pensar e eu disse que tudo bem, mas vou precisar de uma
resposta antes de seu tio ir embora.
Olhei para ele com ódio puro.
— Não.
— Vamos — ele disse. — Você já fugiu por muito tempo. Todo mundo
quer saber a resposta. Todos ficamos esperando, e agora você teve muito
tempo para refletir. Quem você ama mais? Sua mãe ou seu pai?
Eu balancei a cabeça.
— Tudo bem, tudo bem — meu tio disse. — É melhor deixar pra lá. Ela
não quer responder agora.
— É só escolher um! Sei que você já sabe a resposta. Conta para o
Chen shu shu. É só cochichar no meu ouvido.
Houve algumas risadas seguidas de silêncio quando minha mãe passou
pela porta. Àquela altura da minha vida, o barulho da minha mãe batendo
a porta da frente era tão chocante que só devia ser comparável ao barulho
de uma chave dando partida no motor do carro ou o barulho da persiana
rangendo quando meu pai a abria de manhã ou talvez o barulho do meu
irmão arrastando o copo de suco de laranja de um lado para o outro na
mesa da cozinha quando ficava ansioso para a prova, mas devia haver um
fiapo de esperança em mim e da qual eu não ousava abrir mão que
impedia que o barulho da porta batendo se tornasse um barulho familiar,
então isso me dava arrepios, como sempre tinha sido e como sempre seria.
Não importava o intervalo que separava um ataque do outro, o fim do
descanso continuava sendo um choque.
Dessa vez eu corri para fora atrás dela. Ela estava em pé, encostada no
nosso Nissan Sentra, cobrindo o rosto com as mãos.
— Você está bem, mamãe? — eu perguntei.
Ela balançou a cabeça e me ergueu e me colocou sentada no capô do
carro.
— Ele é um homem horrível — ela disse.
— O papai?
— Não. O Chen shu shu. Odeio que ele te faça essa pergunta idiota em
todas as festas na frente de todo mundo. Você não deveria precisar dar uma
resposta. Criança nenhuma deveria. Ele é um homem horrível, péssimo. É
um bêbado, Annie. Não vou permitir que ele maltrate minha filha.
Meu tio surgiu para nos fazer companhia debaixo das estrelas.
— Tudo certo por aqui?
Minha mãe fez que sim com a cabeça.
— Não suporto aquele cara.
— Quer que eu volte lá e chute a bunda dele até ele voltar para Hunan?
Minha mãe riu e depois caiu no choro.
— É uma pergunta cruel para se fazer a uma criança.
— Ele é um idiota — meu tio disse. — Depois de umas doses ele
esquece do próprio nome.
— Por favor, para de chorar — eu disse. — Eu sinto vontade de chorar
quando você chora.
— É mesmo? — ela disse, separando meu cabelo em três partes e
fazendo uma trança bagunçada, do jeito que ela disse para o Sammy fazer
quando eu não conseguia dormir e ela não estava por perto para me
acalmar.
Eu nem precisei responder. Já estava chorando.
A porta da frente abriu de novo e dessa vez era o Sammy.
— Sério, gente? O pai começou a falar de Leonardo da Vinci. Daqui a
pouco as pessoas vão começar a jogar tomate nele.
— Sammy! — minha mãe disse, e sua voz recuperava aos poucos a
vivacidade. — Meu filho mais velho! Meu menino brilhante! Será que
entramos lá e salvamos os convidados do seu pai?
— Ahm, sim — ele disse. — Eu diria que a situação é desastrosa.
Minha mãe me levantou do capô do carro.
— Estou muito pesada? — eu perguntei.
— Um pouco — ela disse, mas não me colocou no chão até chegarmos
à porta.
— Não gosto de chamar atenção — o Sammy disse.
— Então eu e você podemos entrar pelos fundos — meu tio disse.
— Annie e eu não vemos problema em entrar pela frente. Certo, Annie?
— Certo!
Nós quatro nos dividimos em dois grupos e acabamos no mesmo lugar.
— A festa não acabou! — minha mãe anunciou quando reencontramos
os convidados. — O microfone está ligado, Sammy?
Ele foi conferir e mostrou o polegar para minha mãe.
— Pode colocar “He Ri Jun Zai Lai”?
— Lai lai lai — o Chen shu shu festejou, sem ter a mínima noção de
tudo que havia gerado.
Minha mãe começou a cantar:
— “Lindas flores não vivem por muito tempo.”
Meu pai falava aos gritos sobre os cadernos de Da Vinci para Xiao Ming
a-yi, que balançava a cabeça educadamente.
Meu tio notou que eu tentava acompanhar a minha mãe mas perdia o
fio da meada.
— “Depois que você se for esta noite” — ele disse em inglês. —
“Quando vai voltar?”
— Cantem comigo — minha mãe disse. — Pelo meu irmão!
— “Ren sheng nande ji hui zui.”
— “Bu huan gen he dai.”
Percebi que meu irmão sabia cantar o refrão. Ele tinha prestado atenção
o tempo todo, tinha aprendido as palavras que perdi. Os convidados
secaram suas bebidas e apontaram para a comida que estava na mesa
enquanto minha mãe cantava um dos versos.
Meu tio continuou traduzindo para mim:
— Ela está dizendo que existem poucas oportunidades para ser feliz
neste mundo, Annie. Então você precisa agarrar todas. Quando elas
aparecem, você agarra.
— E bebe bastante! — o Chen shu shu entrou no meio. — Não precisa
se censurar por causa da pequena. É isso que sua mãe está cantando: não
espere ficar infeliz para beber! He wan le zai shuo ba!
— Venham, venham, venham — minha mãe falou no microfone,
chamando meu tio e eu. Ela cantava com uma voz suave de menina.
Continuou falando mesmo quando a música voltou. — Venham todos,
façam um círculo. Brindem por mim e meu filho gênio Sammy e meu
irmãozinho brilhante e minha filha linda e querida. Eles vivem lá no céu e
todos nós estamos condenados a viver na terra. Façamos um brinde a eles!
Àqueles que escolhem ficar no céu. Um brinde!
— Um brinde! — todos concordaram, erguendo as cervejas e os copos
de uísque.
Às vezes ela era uma poeta, minha mãe.
— E eu? — meu pai perguntou, no instante em que a música parou.
Todo mundo riu.
— Ao Guoqiang! — as pessoas disseram.
Dessa vez, minha mãe ergueu seu copo de refrigerante de laranja mais
alto do que todo mundo e, quando o brinde acabou, deixou o copo de lado,
tirou os grampos do cabelo e deixou-o solto. Por um segundo não consegui
vê-la — seu rosto estava coberto pela cabeleira volumosa —, mas tive
certeza de que não demoraria muito para que ela aparecesse novamente.
— E ao meu qing jiu jiu! — eu gritei bem alto.
— Ao qing jiu jiu! — todo mundo repetiu, erguendo os copos pela
terceira vez.
Meu tio me pegou no colo e o Sammy soltou os balões de gás hélio que
ele tinha enchido sozinho, sem a ajuda de ninguém. Ele me ergueu até o
teto e cruzei as pernas e abri os braços bem abertos como se eu fosse um
avião e os balões vermelhos e azuis e roxos e verdes e prateados que tirava
da frente fossem as nuvens se abrindo para mim no momento da minha
ascensão ao território desconhecido dos céus.
A evolução do meu irmão
I.
***
Quando voltei da Califórnia, estava tão cansada por não dormir durante
três semanas seguidas que dois comissários de bordo diferentes precisaram
me acordar depois que o avião pousou e taxiou. Continuei dormindo no
carro até chegar em casa e, quando entramos na garagem, meu irmão
puxou meu braço com força e perguntou se eu ia brincar com ele.
— Agora? Eu ia dormir.
— Mas agora nem é noite — ele disse, com o lábio inferior tremendo.
— Ele esperou três semanas para brincar com você — minha mãe disse.
— Está bem — eu disse. — Vamos jogar Banco Imobiliário. Deixo você
ser o carro.
A próxima coisa de que me lembro é que eram quatro da tarde do dia
seguinte e eu estava na minha cama.
Chamei minha família e imediatamente minha porta se abriu, o que
mostrou que meu irmão tinha ficado esperando do lado de fora.
— O que aconteceu? — eu perguntei.
— No meio do Banco Imobiliário você disse que precisava deitar um
minuto e aí você dormiu.
— Por que não me acordou?
— Eu tentei. Joguei água em você. E programei o despertador e
coloquei no travesseiro perto da sua orelha. Fiquei respirando bem forte no
seu nariz e tentei abrir os seus olhos, mas eles fechavam sozinhos.
— E?
— Você não parava de dormir — ele disse com a voz falhada. — Só deu
para brincar cinco minutos.
— Ah — eu disse, esfregando os olhos. — Desculpa. Prometo que
vamos brincar hoje à noite depois de eu enviar um e-mail para um amigo,
tá?
— E se for agora?
— Acabei de falar que preciso fazer uma coisa antes.
— Está bem, Jenny.
Demorei horas para escrever o e-mail e, quando finalmente terminei,
era tarde demais para jogar Banco Imobiliário. Chamei meu irmão para o
meu quarto para ficarmos conversando antes de dormir.
— Você sentiu tanta falta assim de mim?
— Chorei todos os dias. Numa das vezes, por três horas e vinte e dois
minutos — ele disse, preciso como sempre. — Nem tive tempo de brincar.
— De tanto chorar? Sem chance.
— Tem chance.
— E aquela vez que você me ligou e todos os seus amigos estavam
jogando beisebol com você? Daquela vez você não chorou, né?
— Sim.
— Sim, você chorou?
— É.
Eu queria escrever outro e-mail para o menino de camisa cor-de-rosa
que me puxou para o quarto dele uma noite quando seu roommate estava
comprando sorvete e tirou umas fotos de mim. Eu sentia falta da
Califórnia, sentia falta da doçura e da novidade que qualquer menino
trazia me dizendo que toda bochecha é feita para ser cor-de-rosa, por isso
eu fui feita para este mundo. Mas eu tinha voltado para minha vida de
antes. Não podia mais nem fantasiar direito que era interrompida pela
imagem do meu irmão chorando sozinho enquanto os amigos corriam no
nosso quintal. Como ele conseguia? Como ele conseguia se enfiar em
todos os meus pensamentos sempre? Mesmo nas minhas memórias mais
íntimas, aquelas que eu não contava para ninguém, mais cedo ou mais
tarde ele aparecia, o invasor perpétuo e sua carinha me perguntando se eu
queria ficar assistindo o seu jogo de video game de terror para esconder os
fantasmas quando eles aparecessem.
Meu irmão queria ligar o PlayStation na minha TV bem na única tarde
em que eu tinha convidado uma amiga da escola para ver três filmes em
seis horas, então peguei uma das fitas que tinha planejado assistir e
arremessei na sala.
— Você sempre faz isso. Preciso passar todos os dias com você. Todo
santo dia e toda hora. Não aguento mais.
— E daí? — ele disse. — O que que tem? Posso brincar aqui mesmo
assim, porque a mamãe deixou.
— A mamãe deixou porcaria nenhuma. Sai daqui antes que eu te jogue
pra fora. — Ele estava sentado no chão e o agarrei pelos tornozelos. Ele
arrancou uns fiapos brancos do meu tapete enquanto eu o arrastava para o
corredor.
— Aqui você não entra nunca mais — eu berrei, depois de bater a porta
contra suas mãos abertas. Um segundo depois, ele estava colocando suas
mãozinhas minúsculas por baixo da porta trancada. Peguei meu chinelo e
bati nas pontas dos seus dedos como se fossem insetos. Deu para ouvi-lo
chorando do outro lado. Seus dedos voltaram a tocar meu tapete. Peguei
um copo de água gelada de cima da escrivaninha e joguei nos dedos dele.
Ouvi o barulho dos passos da minha mãe subindo as escadas do porão.
Fiz uma ameaça:
— Não vou parar se você não parar.
— Não vou parar primeiro, não vou parar primeiro — ele repetiu. Me
joguei perto da porta e procurei uma de suas mãos para fazer carinho nos
dedinhos molhados, mas elas tinham sumido. Os passos sumiram. Ouvi
minha mãe pegando meu irmão e batendo na minha porta.
— Peça desculpa.
Peguei meu chinelo e comecei a bater nos meus próprios dedos o mais
forte que consegui.
— Peça desculpa — minha mãe falou mais alto. — Pode até se matar se
quiser, mas primeiro precisa pedir desculpa para o seu irmão.
Peguei o dicionário da estante e joguei no chão.
— Não ouse fazer isso — minha mãe disse, batendo o cotovelo na
minha porta.
— É-é, mi-mãe va-vai te-te deixar de castigo mi-mi-mi-mi-minha Jenny.
***
No dia em que fizemos uma festa do pijama, uma hora minha mãe
entrou no meu quarto — meu irmão estava no chão e eu, na frente do
computador — e gritou bem alto:
— Vai dormir ou você nunca mais vai poder dormir no quarto da sua
irmã.
Me senti parcialmente responsável porque, se eu não tivesse peidado o
refrão inteiro de “Atirei o pau no gato” e feito meu irmão dar tanta risada a
ponto da nossa mãe conseguir ouvir através da parede que separava o meu
quarto do dela, ele nunca teria levado bronca. Ajoelhei no chão e
perguntei se ele estava bem.
— Está com sede? Com fome? — Ele fez que sim com a cabeça. — Já
volto — eu disse. — Não dorme.
Voltei com um sanduíche de peito de peru e um copo d’água cheio até a
boca. Enquanto ele comia, lembrei da vez em que voltei de um dia ruim
na escola e me tranquei no meu quarto e fiquei vendo reprises do Late
Night with Conan O’Brien por três horas. Quando percebi que não tinha
ouvido meu irmão emitir nenhum som durante horas, desci as escadas e o
encontrei sentado a poucos centímetros da TV, vendo Um Maluco no
Pedaço e comendo manteiga de amendoim com uma colherzinha de
plástico. “Ah”, murmurei quando olhei para dentro do pote de manteiga de
amendoim: tinha um buraco bem no meio.
Ainda hoje me pergunto se fiz a coisa certa ao colocar as mãos embaixo
de seu queixo para limpar os restos.
II.
Ele tinha três e eu tinha doze anos quando nossos pais compraram nossa
casa em Glen Cove. Éramos um exemplo de sucesso de algo que as pessoas
costumavam estudar nos livros acadêmicos — tínhamos ascendido
socialmente. Nos mudamos de um bairro majoritariamente operário de
porto-riquenhos e coreanos no Queens para um condomínio fechado
batizado de J. P. Morgan, nome do magnata para quem meu pai trabalhava
doze horas por dia e por isso nunca o víamos por lá, num bairro branco de
classe média-alta em Long Island. Por onde íamos ou olhávamos havia
espaço de sobra, espaço suficiente para que duas pessoas nunca
precisassem se encostar ou respirar o mesmo ar. Havia silêncio a
preencher, grama que nunca tinha sido pisoteada, árvores com teias de
aranha intocadas. Entre os doze e os dezessete anos, eu sempre era a
primeira pessoa a voltar para casa nas tardes dos dias de semana. Eu tinha
cerca de quarenta e cinco minutos só para mim antes que meu irmão
chegasse, cinco horas até ter que apagar todos os rastros de tudo que
acontecia na nossa casa antes de a nossa mãe voltar do trabalho, e oito ou
nove ou dez horas antes de o nosso pai voltar para casa e dar uma
espiadinha na gente. Esperávamos a chegada dele de pijama, depois de ter
feito tudo o que precisávamos fazer naquele dia a não ser vê-lo. Às vezes eu
estava mais egoísta e fingia que já tinha dormido para evitar os cinco
minutos e meio que tinha com meu pai no fim do dia — aqueles cinco
minutos nunca seriam suficientes para que eu o conhecesse direito. Mas,
ainda assim, adicionar mais um dia à pilha de dias em que perdi a chance
de conhecer o meu pai era algo grave e acabava me causando um peso do
tamanho de um moinho de contos de fadas. De certa forma, vivíamos
mesmo num conto de fadas — todas aquelas horas que meu irmão e eu
passávamos sozinhos numa casa vazia, todas as vezes que tentei convencer
meu irmão de que nossos pais tinham morrido, de que eu tinha acabado de
falar por telefone com o policial que os encontrou mutilados e sem vida,
cobertos pelos destroços sangrentos de um acidente de carro fatal.
— Agora somos só nós dois — eu dizia a ele. — Quem você pensa que
vai cuidar da gente?
— Nossa tia e nosso tio — meu irmão soluçava. — Vamos para a China
morar com a vovó e o vovô.
— É nada. Eles já disseram que não vão ficar com a gente. Está no
testamento. Se a mamãe e o papai morrem, ficamos por conta própria.
Já estávamos por conta própria. Já ficávamos quase sempre sozinhos.
Morávamos numa casa com janelas em todos os andares, com portas de
correr na cozinha que davam numa pequena varanda, com duas claraboias
e janelas do chão ao teto na sala de estar, quatro conjuntos de janelas na
sala de jantar, duas janelas em cada quarto. A regra era que deixássemos
todas as persianas e cortinas fechadas. “Para ninguém saber que estão
sozinhos em casa”, nossa mãe explicou. Só que às vezes eu abria as
persianas mesmo assim. Escancarava as cortinas e deixava a luz entrar. E
daí se nos vissem? E daí se nosso segredo fosse revelado? Qual o problema
se alguém me visse em casa, comendo bolo e tomando café, esquentando
pizza congelada no micro-ondas e cortando em pedacinhos para o meu
irmão? Por que alguém não deveria me ver levantando um atiçador de
lareira no ar, mirando na testa do meu irmão sem motivo nenhum a não
ser o fato de que ele me irritava e quando tudo que ele tinha para se
defender de mim era um bastão de plástico inútil — por que alguém não
deveria ver e intervir? Nunca fui uma adulta tão ruim como quando ainda
era criança.
— Vão levar a gente para longe — meu irmão perguntou para os nossos
pais — se nos virem?
— Sim, vão — nossa mãe disse.
— Jenny — meu irmão disse, tentando argumentar comigo numa das
tardes em que contei que nossos pais tinham morrido num acidente de
carro. Ele puxava meu braço para me impedir de erguer as persianas. —
Ninguém pode ver a gente.
— Seu idiota — eu disse. — Todo mundo já sabe.
III.
Vim passar uma semana em casa e visitar minha família antes de voltar à
vida na Califórnia. Assim que entro pela porta da frente, lembro do meu eu
do passado — inquieto, temperamental, solitário, revoltado. Mexendo no
meu armário, encontro meu velho notebook da época do ensino médio
que de vez em quando meu irmão usava, nas tardes em que ele queria ficar
perto de mim e eu não queria interagir, então o deixava com o meu
notebook. Não tinha nenhum joguinho instalado. Ele geralmente fazia
desenhos no Paint e tentava me mostrar, mas eu sempre dizia “depois,
quando eu tiver com tempo”. Quando fui embora para a faculdade, ele
usou meu notebook mais algumas vezes para escrever poemas para a
escola. Um deles era sobre mim, e ele me leu em voz alta pelo telefone:
À noite, depois que todo mundo dormiu, entrei escondida no quarto dele
como fazia quando ele era pequeno. Havia noites em que eu sentia
saudade, em que ficava acordada até tarde depois de insistir que ele não
podia dormir na minha cama comigo, depois de insistir que ele precisava
aprender a dormir várias noites seguidas na cama dele, depois de empurrá-
lo para fora do meu quarto como se ele fosse uma estátua num pedestal de
rodinhas que eu precisava tirar do meu jardim com urgência, noites em
que eu ficava acordada tentando ser minha versão mais romântica, quando
ficava olhando para o espelho do meu quarto, flertando comigo mesma,
me seduzindo, rindo das minhas piadas, simulando as amizades que
sonhava ter quando não morasse mais nessa casa. Naquelas noites, muitas
vezes havia um momento em que eu de repente sentia tanta falta do meu
irmão que isso ficava fisicamente insuportável, e eu rastejava até o quarto
dele e o observava dormindo, seu corpinho e sua carinha e seus joelhinhos
grudados no cercado que meus pais instalaram para que ele não caísse da
cama. Meu irmão nunca dormia no meio das coisas — estava sempre
encostado em alguma barreira. Eu ajoelhava perto dele e beijava suas
bochechas de almofadinha e passava os dedos por seus cílios compridos e
curvados que, quando molhavam, ficavam tão angelicais e pesados. Passava
a mão no seu cabelo, começando pelo pequeno redemoinho que ficava
bem no cocuruto, onde tudo parecia ter se originado. Pegava seus dedos e
colocava em volta do meu mindinho. Queria que ele acordasse e me
fizesse companhia e, percebendo que isso não ia acontecer, eu puxava suas
pálpebras e via o branco dos seus olhos sonolentos. “Consegue me ver?”
Eu batia palma bem alto perto de seu ouvido. Às vezes o levantava como se
ele fosse uma marionete e eu, um ventríloquo. Mas, mesmo fazendo tudo
isso, ele só dormia, dormia, dormia, até nas poucas vezes em que o arrastei
completamente para fora da cama e o fiz se levantar na pontinha dos pés e,
vendo que não seria o bastante para acordá-lo, eu agarrei seus braços e os
levantei por cima da cabeça e depois os soltei deixando que batessem com
força nas pernas e fazendo uma espécie de polichinelo com ele. Algumas
vezes ele abria os olhos, embora ainda assim na manhã seguinte não se
lembrasse de ter me visto. Era impossível atiçá-lo.
Depois que fui para a faculdade, ele sentiu medo de dormir sozinho
durante anos. Nos primeiros meses dormiu na minha cama, mas, depois
que minha mãe resolveu lavar os lençóis, ele já não se sentia mais
acolhido. Passou a dormir na cama dos nossos pais durante um tempo e,
depois, quando ficou velho demais para dormir com eles mas continuou
com muito medo de dormir sozinho, nossos pais deixaram um colchão de
solteiro no chão, perto da cama deles. O colchão ficava posicionado de
forma a que a pessoa que olhasse para dentro do quarto dos meus pais não
conseguisse vê-lo.
— O colchão fica no chão — minha mãe disse —, então ele não tem
como cair! Tem sido ótimo.
— Você faz questão de sempre ter um bebê em casa — acusei minha
mãe, no ano em que ele começou o ensino fundamental. — Você não se
reconhece se não tiver um bebê, né?
— E você — ela disse —, você não sabe de nada.
No ano passado, ajudei meu pai a levar o colchão para a garagem e
cobri-lo com um plástico.
— Está chorando? — Olhei para minha mãe mas logo em seguida
mudei o foco.
— Você podia ter deixado lá — ela disse para o meu pai. — É escolha
dele querer dormir lá ou não. E agora ele não tem mais escolha.
Embora eu tentasse me distanciar, me senti cúmplice daquelas lágrimas.
Eu também não queria que meu irmão crescesse, assim como minha mãe
não queria que eu crescesse nove anos atrás. Eu era igual a ela — alguém
que alimentava a própria dor como se a dor pudesse impedir que as coisas
mudassem. Não importava quantas vezes eu tivesse visto os olhos
lacrimejantes da minha mãe na soleira da porta no verão antes de ir para a
faculdade, nada impedia o que já estava em movimento: eu ia sair de casa,
e não ia esperar até os trinta anos.
No ano que vem meu irmão vai começar o ensino médio, e, quando eu
estava no ensino médio, tinha um irmãozinho que agarrava minhas pernas
e andava pela casa abraçado nelas quando fazia frio, e quando fazia calor
subia nos meus ombros para chegar mais perto do ventilador de teto, e
dormia na minha cama quando sentia saudade, ou seja, o tempo todo.
Ajoelho perto da cama dele e beijo sua bochecha, que já não é aquela
bochecha de almofadinha de que me lembro de anos atrás, é uma versão
ossuda e salpicada de espinhas aqui e ali. Seguro sua mão no ar como se
ele fosse meu rei e eu, sua serva mais leal, e a beijo, aproximo do meu
coração, deixo ali por um tempo e digo “os meus melhores
cumprimentos”.
Não solto sua mão tão cedo. “Não esqueça de mim”, eu digo. Ele se
mexe e eu me pergunto, pela primeira vez, por que é tão importante que
ele lembre de mim, que ele lembre de tudo? “Ou pode esquecer”, eu
completo, devolvendo sua mão para baixo do cobertor. “Ou esqueça só
umas partes. Ou lembre de mim. Tanto faz. A vida é sua.”
Deixo vinte dólares na mesa, para garantir um tempo da nossa próxima
ligação. Quero que a gente possa compartilhar o mesmo lar de novo, mas
em uma semana terei ido embora desta casa, e ele talvez conte para nossa
mãe que teve um sonho em que espantava uma abelha gigante de perto da
bochecha, e no fim a abelha vinha de novo em sua direção, e, por mais
que ele desviasse ou sacudisse a cabeça, a abelha não saía de perto, e
quando finalmente ela o picou foi só uma picadinha, não foi tão ruim, e
depois veio o próximo sonho.
Meus dias e noites de terror
Sempre digo que todo mundo, ao menos todo mundo que um dia foi à
escola, já conheceu um grude, uma peste, um mosquito que nunca sai de
perto, um stalker que seria capaz de chegar ao cúmulo de pedir
pessoalmente a Deus para entrar na sua corrente sanguínea se Ele
pudesse… se Ele concordasse. Alguém que nunca desistiria de te infectar,
de destruir cada defesa do seu corpo até você se resignar e aceitar viver essa
doença lenta e excruciante, até vocês chegarem à máxima fusão venenosa
que duas pessoas podem alcançar — sendo uma a hospedeira (você) e a
outra, a parasita (ela) —, de forma que a cada dia que passa você (a
hospedeira) é arrastada para mais perto da morte, e ela (a parasita) vai
engordando com seu sangue e sua carne e chegando cada vez mais perto
da glória!!!
Se você não sabe do que estou falando, considere-se uma pessoa de
sorte, porque nunca ninguém foi tão longe tentando parasitar sua vida. Já
eu…? Muito indefesa, muito saborosa e suculenta para me enturmar, para
não ser notada, para não ser a presa de alguém. E esse alguém? Esse
alguém que arruinou minha saúde e cuja própria existência me diminuía, a
menina que literalmente me perseguiu como uma caçadora desesperada
por presas de marfim ou como um lobo esfomeado prestes a avançar sobre
um pobre coelhinho, para mim essa pessoa, esse câncer fatal, esse lobo
sanguinário, essa caçadora sem escrúpulos, era a Fanpin Hsieh.
De manhã eu a observava de canto de olho durante o juramento à
bandeira. Eu fazia como me ensinaram e colocava a mão direita no
coração sem muito entusiasmo quando recitávamos a Promessa-de-Lustrar-
o-Sapato-dos-Estados-Unidos-com-A-Língua-Mesmo-Estando-Sujo-Só-para-
Declarar-que-Os-Estados-Unidos-São-Maravilhosos-e-Tolerantes-Só-que-
Não-São, mas a Fanpin não. Ela sempre parecia apertar de leve o peito, o
esquerdo, aquele que quando tínhamos nove anos já tinha virado algo
substancial que até dava para pegar com a mão.
Ela parecia um alien. (Mas até aí eu também era um alien, era essa a
opção que eu assinalava em todos os questionários. Será que os aliens
tinham direitos inalienáveis? Podíamos reivindicar liberdade e justiça?)
Alien ou não, a Fanpin mexia o corpo como se morasse nele por muito
mais tempo que todos nós. Ela não só conhecia todos os palavrões como
sabia usá-los corretamente. Era o tipo de pessoa que não aceitava um não.
Ela pensava que “não” poderia significar “sim”, o que, para ser sincera, eu
também pensava, mas no caso dela isso não parava por aí, ela também
acreditava que existia um “sim” escondido num “sem chance”, num “sai da
minha frente”, num “vai ver se tô na esquina” e também num “só que não”
e num “você tem cheiro de merda, vai embora” e também num “nããããão”
e também num “cala a boca” e num “sabe de uma coisa? Te odeio”. Nada
podia impedi-la, especialmente eu. Ela me considerava sua melhor amiga,
e eu a considerava meu pior pesadelo da vida real. No recreio,
aparentemente nunca lhe faltavam ideias de coisas para fazermos juntas:
— Mande, vamos tirar a calça e descer o escorregador de bunda de fora!
— Ahm, não, obrigada.
— Vamos ver quem consegue arrancar o olho da outra primeiro com
essa caneta que minha mãe me trouxe de Taiwan?
— Pode arrancar seu próprio olho e me deixar em paz.
— Você pode ficar parada pra eu praticar o chute circular que aprendi
na sua cabeça?
— Hum, deixa eu sair de perto de você o mais rápido possível.
Eu rezava para alguém intervir e tirar a atenção da Fanpin de mim. No
começo do quarto ano pensei que minhas preces tinham sido atendidas
quando algumas crianças mais extrovertidas começaram a tirar sarro dela,
mas ela era incomparável na habilidade de driblar os insultos.
A Natalia Diaz, que tinha as madeixas mais bonitas e cheirosas da nossa
sala, um dia disse “a Fanpin tem que colocar ‘grampin’ no cabelo!” (uma
piada simplista e boba demais para atingi-la). O palhaço da turma, Min-ho
So, disse “Fanpin, quero ver você soletrar ‘mijo’. Certeza que não sabe”
(ela apontou para a virilha dele e disse “essa eu passo, apesar de já ter visto
você se mijando na calça”). Jason Lam, o menino franzino que sempre se
antecipava em tudo para que ninguém o atacasse por causa de seu
tamanho, disse “olha, Fanpin! Os Boyz II Men acabaram de atravessar a
rua” (ela lhe deu um soco no braço e disse “por acaso você acha que
pareço um gayzão?”).
A Yasmine Williams convenceu várias amigas a cantarem “A Fanpin é
ho-oo-ooo-mem. A Fanpin é ho-oo-ooo-mem” (ela foi até as cantoras
maldosas e jogou todas no chão com um só movimento rápido de braço).
Outra vez uns meninos vietnamitas chegaram perto da Fanpin e
disseram “eeeeeca, falaram que você gosta de encostar nas meninas” (ela
ergueu o punho e disse “nada a ver, mas vou gostar de encostar em você, e
com ‘encostar’ quero dizer te dar uma surra”).
Continuou assim por um tempo até todo mundo desistir e migrar para
alvos mais fáceis. Quanto a mim, eu nem me dei ao trabalho de tentar,
porque, número um, ao contrário das crianças da minha sala, eu também
precisava lidar com a Fanpin fora da escola e, número dois, eu tendia a
evitar qualquer coisa que me obrigasse a falar na frente dos outros. Eu
tinha começado a aprender inglês só dois anos antes e, embora tivesse
dominado a língua já no primeiro ano, ainda tinha dificuldade de
pronunciar certas palavras. Às vezes eu modulava as frases de um jeito que
acabava me entregando e revelando minha alma alien, minha verdadeira
origem estrangeira: eu era uma imigrante pobretona que tinha um cu
manchado de bosta no lugar do cu e que adicionava a palavra “nééééée?”
no final de todas as frases. “A Minhee é tão fofa, nééééée? O kimbap da
casa da Kay é bem melhor do que o da mãe do Jun, nééééée?”
Eu me preocupava com a imagem que tinham de mim, com as
companhias com quem era vista e com o tipo de criatura abissal que as
outras pessoas pensavam que eu era — esses medos me desfiguravam, mas
o dano era invisível para os meus pais, com quem eu nunca poderia
competir porque estavam sempre cem vezes mais preocupados, mais
cautelosos, mais ocupados do que eu jamais estaria. Eles se preocupavam
comigo crescendo nesse bairro e frequentando uma escola de ensino
fundamental que o conselho escolar tinha obrigado a oferecer educação
sexual no quarto ano porque tínhamos sido categorizados como população
de alto risco. Eles ouviam os boatos e repetiam todos para mim. Se
apegavam de forma especial àqueles que falavam sobre alguma menina
infeliz que partiu da nota dez no boletim para um mergulho de cabeça no
submundo das drogas — e que tinha feito de tudo, desde roubar dinheiro
dos pais até vender o corpo para injetar mais e mais, passando por idas para
a prisão e uma gravidez indesejada e um namorado que também era noia
além de HIV positivo, e finalmente culminando em uma overdose com
direito a engasgos de sangue e vômito e manchas de merda numa sarjeta
qualquer, deixando ao Deus-dará o destino de seu inocente bebê que ainda
não tinha nascido. Todas essas histórias envolviam doses cavalares de
desgraça, baldes de sangue coagulado, um tipo de homem-predador-meio-
velho que de alguma forma conseguia convencer até a menina mais caxias
a fazer qualquer coisa e referências frequentes à “questão dos Estados
Unidos”, que, até onde eu conseguia entender do que meus pais discutiam,
tinha tudo a ver com o fenômeno perturbador de que os pais americanos
não amavam seus filhos nem um pouco e, mesmo sabendo disso e apesar
disso, ainda insistiam em criar filhos e ter mais filhos, dando origem a
gerações e mais gerações de crianças que nunca foram amadas, não são
amadas nem serão amadas.
— Por que eles fazem isso? — minha mãe perguntou um dia, quando
levei um bilhete da escola para ela e meu pai assinarem para que eu
passasse o dia no Museu de História Natural. — Por que assinam isso e
abrem mão do direito dos seus filhos de aprenderem em escola?
Em casa, falávamos chinês. Nenhum de nós sabia com que frequência e
com que gravidade o outro cometia erros falando inglês. Nenhum de nós
conhecia as humilhações pelas quais o outro passava.
— Minha professora disse que é um outro — comecei a falar e hesitei e
depois soltei uma frase em inglês — componente de aprendizado.
— Co-que-que do quê? — minha mãe disse.
— Eles acham que sair é tão importante quanto estudar matemática e
ciências na escola — meu pai explicou. — De qualquer forma, parece que
querem que a gente assine para você passar um dia não na escola.
Minha mãe ainda não estava satisfeita.
— Por que essa gente tem filho se nunca vai amar o filho?
Às vezes, eu encarava as perguntas retóricas dos meus pais como desafio
e tentava responder.
— Talvez seja porque muitos pais são drogados — comecei a falar, mas
assim que pronunciei a palavra “drogados” em chinês eles piraram e me
perguntaram que tipo de informações sobre vício em drogas eu tinha, e se
eu sabia o que eu sabia porque algum chefão nefasto do tráfico tinha me
atraído até seu covil, ou se era porque alguma menina idiota tinha me
convencido a usar drogas, era por isso então que eu tinha parado de me
encolher quando o médico dizia que eu precisava tomar vacina? Porque
andava espetando agulhas cheias de heroína nas veias? Era por isso que
uma vez eu tinha caído do nada vendo Looney Tunes de manhã, porque o
efeito do crack tinha passado e meu corpo caminhava para a falência dos
órgãos e o colapso total? Era por isso que eu queria comprar roupa nova,
porque um trombadinha tinha me falado que eu era uma novinha gostosa
e qualquer hora devia dar um pulo na van dele? Será que eu sabia que
trezentos e quarenta e quatro assassinatos tinham sido cometidos no nosso
bairro no ano passado? Será que eu sabia que ainda dava tempo de
completar trezentos e quarenta e cinco? Será que eu tinha vontade de ser a
trecentésima quadragésima quinta pessoa assassinada no Queens? Será?
Será?
Não, eu disse, e depois não de novo e não de novo e não de novo para
todas as outras perguntas. Ainda não, eu disse, e ainda não de novo. No fim
do interrogatório eu já estava cansada demais para reagir, e aí eles
encaravam minha postura como um sinal de que eu de fato andava
escondendo alguma coisa. Que eu não percebia como a situação era
terrível. Quanto mais meus pais se descabelavam pela minha
sobrevivência, mais parecia um milagre que eu continuasse viva. Se de
alguma forma eu escapasse das drogas, da gravidez, da prostituição e das
gangues, ainda teria que lidar com meus pais descarregando seus temores o
tempo todo, o que me impedia de temer as coisas temíveis por si mesmas,
já que todo o meu tempo era preenchido pelo temor dos meus pais, que
nunca paravam de temer.
Me mudei de Xangai, na China, para Flushing, no Queens, no meio do
segundo ano para voltar a morar com meus pais, que tinham imigrado para
os Estados Unidos alguns anos antes. No voo, fui mantida sob a custódia de
um “amigo da família” que eu nunca tinha visto na vida, embora ele
jurasse que tinha estado presente no meu nascimento, o que eu não podia
questionar porque ninguém consegue lembrar do próprio nascimento,
então essa era uma mentira perfeita que nunca poderia ser refutada. A
viagem me deixou agitada e aterrorizada. Acordei várias vezes durante o
voo jogada no chão do corredor com todo mundo me olhando, sem
entender como tinha ido parar ali. Foi uma situação abjeta, e aí de repente
eu estava nos Estados Unidos.
Quase imediatamente à minha chegada meu pai começou a se lamentar
por todos aqueles meses que tinha passado nas filas no consulado
americano, preenchendo formulários para liberar minha permissão para vir
aos Estados Unidos. Ele examinava meus braços em busca de marcas de
injeção e tinha um kit caseiro para medir minha pressão e eliminar a
possibilidade de hipertensão, sintoma número um de um viciado em
drogas, de acordo com a literatura atualizada. Minha mãe examinava
minha vagina uma semana sim, uma semana não, para ter certeza de que
ninguém tinha me coagido a participar de orgias com homens mais velhos.
Os Estados Unidos estavam infestados de estupradores e drogados, de
enfermeiras loucas que nas clínicas gratuitas te davam uma dose ativa de
HIV no lugar da vacina contra sarampo só porque não tinham gostado do
formato dos seus olhos, ou porque não tinham gostado do jeito que seus
óculos escorregavam pelo seu nariz de septo baixo, ou do jeito que sua
cabeça era curva na parte de trás enquanto seu rosto era tão chato quanto
uma pista de hóquei no gelo.
— Não seja idiota — meu pai costumava me dizer em chinês.
— Como? — eu perguntava.
— De acabar morta por aí.
— Ah, sim.
— Esses meninos daqui têm vontade de morrer. São sempre aqueles que
nascem com o direito de viver que querem morrer. Essas pessoas nunca
foram obrigadas a sofrer, e é por isso que procuram o sofrimento por
vontade própria. Você sabe como é fácil acabar entrando para a turma
errada? Sabe como é fácil jogar sua vida fora? Entende que a
autodestruição parece legal à primeira vista?
Eu fazia que sim com a cabeça furiosamente. Eu já sabia, já sabia de
tudo, ele e a minha mãe tinham me dito um milhão de vezes.
— Você está ensinando nossa filha como faz pra ser uma drogada
ninfomaníaca? — minha mãe lhe perguntou em shanghaihua. — Vai dar a
ela todas as instruções? Passo a passo?
— Muito pelo contrário.
Minha mãe e meu pai usavam o dialeto de Xangai na minha frente
quando discutiam coisas de que eu não deveria tomar conhecimento. Por
muito tempo pensaram que eu não conseguia entender, porque na época
em que morávamos em Xangai nenhum de nós falava shanghaihua; a
família do meu pai era de Shandong e a família da minha mãe era de
Wenzhou. Lembro de ouvir as cadências estranhas do dialeto de Wenzhou
toda vez que ia visitar a casa da mãe da minha mãe, lembro que ele soava
como uma briga entre pessoas que se amavam muito. Meus outros avós
falavam um mandarim com sotaque forte de Shandong, usando “za men”
em vez de “wo men” e “loo” em vez de “lü”. Também comecei a falar
daquele jeito, mas zombaram de mim e me disseram que eu estava falando
igual a uma menininha caipira, e eu disse então a gente é tudo caipira! O
dialeto de Xangai estava em toda parte na casa da minha avó, a casa em
que nós três moramos, num quartinho minúsculo e iluminado que dava
para o jardim. Dormíamos numa cama tão pequena e estreita que minha
mãe e meu pai precisavam dormir de lado. Geralmente ficavam de frente
para mim, porque assim conseguiam conversar de manhã enquanto eu
fingia estar dormindo entre os dois, mas às vezes ficávamos virados para o
mesmo lado, tipo tacos empilhados uns nos outros — e esses eram os
tempos de que eles achavam que eu tinha esquecido ou de que nunca
tinha sequer lembrado.
Naquela época, esse era o segredo para que eu conseguisse ser eu: se
você nunca diz nada, as pessoas pensam que você não sabe de nada, e,
quando pensam que você não sabe de nada, as pessoas falam tudo na sua
frente e você acaba sabendo de tudo. Por dentro, eu era imensa. Mas, por
fora, era uma verdadeira idiota. Nada que saía de mim tinha qualquer
semelhança com o que eu acreditava ter por dentro. Meus pais falavam
comigo como se eu fosse o tipo de pessoa que entraria numa van sem placa
cheia de homens estranhos me comendo com os olhos só porque alguém
me disse que lá dentro tinha doce. Meus professores falavam comigo como
se eu ainda colorisse para fora das bordas e não conseguisse somar dois
mais dois sem a ajuda daqueles brinquedos educativos de plástico
vermelho e amarelo.
— Minha esposa — meu pai sempre dizia em shanghaihua —, você
sabe que, se dependesse de mim, eu mandaria essas crianças e seus pais
para Manchúria para passarem dez anos fazendo trabalho braçal. Aí a
gente ia descobrir se eles realmente gostam de correr por aí com as calças
arreadas e a camisa aberta.
— Ah, sim — minha mãe dizia. — Sim, sim.
Pelo menos meus pais sempre concordavam no final, o que eu
interpretava como um sinal singelo e casual do amor entre eles. Eu torcia
muito para que tudo continuasse assim, mas nunca durava muito. Parecia
que eles não aguentavam ficar muito tempo sem brigar por causa das
mesmas coisas — ela o irritava e ele a decepcionava e, graças a inúmeros
erros de cálculo de que um acusava o outro de ter cometido, e por culpa de
um ou do outro, meu futuro parecia precipitadamente definido: estava
destruído. Não havia resposta para a pergunta sobre de quem era a culpa.
Por que ele tinha batalhado por uma boa formação lá em Xangai? Por que
tinha demorado tanto para terminar a universidade? Por que tinha
resolvido fazer doutorado em literatura inglesa entre tantas outras opções,
mesmo sabendo que estaria em desvantagem por ter um sotaque forte? Por
que ele não tinha aguentado mais uns anos? Assim pelo menos ele
conseguiria o diploma que tinha vindo conquistar aqui, e as pessoas lá da
China não o veriam como um fracasso total. Ela fazia essas perguntas a ele
milhares de vezes até que as coisas começavam a voar pela casa e a quebrar
pelos cantos, e, em troca, ele perguntava que merda ela pensava que ele
estava fazendo hoje em dia e, além do mais, de onde ela pensava que eles
tinham vindo? Será que ela tinha crescido num universo paralelo em que
as escolas não tinham ficado fechadas durante anos? Será que ela tinha
vivido num país onde eles não tinham sido sujeitos aos caprichos doentes e
genocidas de um demagogo? Será que ela conhecia alguém — qualquer
pessoa! — que tinha tido oportunidade de fazer uma escolha? Não era ela
quem tinha tido um ataque quando ele considerou ficar na China e aceitar
o cargo no governo que tinham lhe oferecido? Não era ela quem insistia
tanto que só alguém que teve o cérebro substituído pelo ânus numa
operação cirúrgica não veria que ir para os Estados Unidos para fazer
doutorado na NYU obviamente era a melhor oportunidade? Não era ela
quem reclamava sem parar que ele não sonhava alto o bastante para ela?
Se todo mundo tinha ido para os Estados Unidos e dado certo, por que não
daríamos? Nem todo mundo tinha vivido num casulo protegido como ela
viveu em Xangai, ele revidou; nem todo mundo se sentia no direito de
sonhar tão alto como ela sonhava.
Eles brigavam até o dia seguinte e eu acordava pensando que tudo
aquilo tinha sido um sonho: minha mãe gritando que podia ter virado
intérprete das Nações Unidas e meu pai dando risada da cara dela, dizendo
que não iam querer contratá-la nem como faxineira. Os insultos trocados
até que meu pai acabasse com aquilo e lhe desse um tapa na cara ou
agarrasse seu braço com tanta força que ela começava a rir igual a uma
louca. Vá em frente, ela dizia, desafio você a quebrar meu braço. Desafio
você a ir até o fim com alguma coisa. Seja o homem que você pensa que é.
Era muito tarde e a coisa era bem feia e eles com toda certeza não
tentavam evitar que eu ouvisse, então a cada noite aparecia mais um grito
que eu não podia não ouvir, mais uma risada histérica que culminava nas
coisas se despedaçando, mais uma discussão que eu não podia esquecer.
Eu tinha minha própria merda, meus próprios medos. E a única coisa que
me ajudava era poder dividir um pouco disso com meus pais, quando eles
me escutavam e me abraçavam e me agradavam sem deixar aquele nervoso
deles gravado em mim. Eu precisava de apoio e queria tranquilidade, mas
não sobrava espaço para nada disso, então acabei me aproximando de
Deus. Toda noite antes de dormir eu subia na cama, olhava para o teto e
rezava:
Querido Deus, nunca permita que eu fique igual àquelas meninas
coreanas da minha sala que têm maçãs do rosto horríveis e cheiram mal e
não sabem pronunciar as palavras direito. Ontem, quando a Minhee leu
Ponte para Terabítia em voz alta, ela se esforçou muito para acertar cada
palavra, e deu para entender por que ela ficou com uma babinha no canto
da boca e foi nojento e depois ela fingiu que nem estava quase chorando
quando a professora substituta disse “Jesus, será que voltamos para o
primeiro ano? Ninguém aqui sabe ler uma frase? Não entendo como o
conselho escolar achou que seria uma boa ideia recomendar esse livro que
obviamente é muita areia para o caminhãozinho de vocês. Meu Deus, como
deixaram vocês passarem do terceiro ano? Vocês fizeram o teste de inglês
estadual com esse nível de leitura e escrita? Inacreditável. Nunca vi coisa
igual, galera. É o fundo do poço” e continuou olhando para a gente e
suspirando e fechando o livro e levantando da cadeira como se estivesse
prestes a ir embora, o que provavelmente motivou a Minhee a sair andando
pelo pátio no recreio e perguntando para todo mundo se alguém queria uma
“massagem coreana”, e se você ignorasse ou perguntasse “ahm, mas o que é
uma massagem coreana?”, ela batia nas suas costas com bastante força, e ela
ficou tão maluca com isso que fez o Eric Cho engasgar de verdade. A gente
ficou dando risada e gritando “o Eric Cho-rou! O Eric Cho-rou!”.
Então, por favor, Deus, tenha misericórdia de mim para que as pessoas
nunca pensem que sou igual à Minhee Kim, porque ela é uma degenerada e
tenho certeza de que ela vai entrar numa gangue coreana quando estiver no
ensino médio, e eu nunca vou fazer isso, e isso já mostra que sou uma pessoa
bem melhor que ela, e por favor também, se você lembrar, faça eu ter peito
antes do sexto ano e faça minha menstruação descer antes do sétimo, apesar
de eu ter ouvido falar que agora a maioria das meninas já tem peito no
quinto e carocinho no quarto e a menstruação vem no sexto, mas, enfim,
essas meninas são quase todas supergordas e ficam falando que eu sou
anoréxica, e eu não sou. Aliás, Deus, também dá para fazer essas meninas
pararem de me chamar de anoréxica? Não posso mudar o jeito que sou e não
saio por aí me gabando tipo aquela tal de Lucy que fica falando umas coisas
tipo “ai! Sou tão minúscula que o vento vai me levar!” quando começa a
ventar muito. Eu só faço muito cocô e a minha mãe diz que o meu avô era do
mesmo jeito. Ele passava muito tempo no banheiro. Parece que ele era
igualzinho a mim, precisava fazer cocô imediatamente depois de comer, e por
isso minha avó dizia que ele era só pele e osso, porque pesava tão pouco.
Então é isso, seria ótimo se você pudesse me dar uma ajuda. Obrigada,
Deus. Boa noite.
Ah, se também puder proteger a minha mãe e o meu pai e os meus avós na
China e também os meus primos e minhas tias e meus tios e as famílias deles
cheias de primos e tios e tias e também os amigos da minha mãe e os amigos
do meu pai e também as famílias dos meus amigos e também os amigos deles
e todo o resto que esqueci mas que tudo bem afinal… você é Deus, lembra?
Já que você é Deus (e por que eu estaria rezando para alguém que não fosse
Deus e como eu saberia rezar para alguém que só estivesse fingindo que era
Deus, não faria sentido), você já deve conhecer todo mundo em que pensei
agora, mesmo que eu não fale exatamente cada uma das pessoas que quero
que você proteja porque não quero que ninguém fique triste e tudo bem se
você não puder me proteger igual a todo mundo porque não é tão ruim assim
se eu ficar triste de vez em quando. Só queria que as pessoas não tivessem que
morrer na vida real e nos filmes e nos livros e nos sonhos e na minha
imaginação. Às vezes imagino que morri e depois não consigo dormir, mas
não se preocupe comigo. Vou ficar bem. Boa noite.
***
***
A Fanpin não dava a mínima para nada que me importava. Ela tinha
essa aura em volta dela, parecia ser capaz de desintegrar um aluno do sexto
ano com um simples golpe de caratê e seu cabelo preto e comprido, ao
contrário das outras meninas, a fazia parecer durona, tipo aqueles caras que
usavam jaquetas surradas e xingavam e fumavam e andavam de moto na
estrada, rindo à toa das pessoas que passavam — as de cabelo arrumadinho
que dirigiam seus carros seguros com as janelas bem fechadas —, e isso nos
intimidava e confundia, o fato de que ela tinha esse jeito e a gente, feito
idiota, ainda ficava ouvindo o que nos diziam sobre sermos meninas e
meninos que um dia se tornariam mulheres e homens adultos.
Mesmo que eu respeitasse a Fanpin um pouquinho, nossa
pseudoamizade estava condenada. Eu sabia disso mesmo sem saber quem
era Deus. Claro, eu queria ser amada e aceita, mas por que tinha que ser
por ela? Ela me constrangia quando insistia em segurar minha mão no
corredor ou quando se fazia de brava sempre que um menino aparecia.
Uma vez, ela deu um soco na cara do Jason Lam porque ele apareceu do
nada e puxou a parte de trás da minha camiseta para ver se eu estava de
sutiã.
— Nem vem encostar a mão na minha amiga, Camarãozinho — ela
disse.
— Que merda é essa? — ele disse dando um passo para trás. — Nem
vem você bater nas pessoas.
— Nem vem você com sexismo.
— Sexo o quê? — eu disse.
— Sexismo, idiota — a Fanpin repetiu. — Não sabia que a gente vive
numa sociedade sexista?
— Não precisa me dar aula — eu disse. Mas ela precisava. Ela precisava
falar e falar e falar, sempre dando um jeito de estar por perto.
Na véspera do Dia dos Namorados, a Fanpin me puxou para o banheiro
feminino e exigiu que eu colocasse a mão no peito dela, dentro da cabine
que ficava mais perto da porta. Ela pressionou minha mão contra seu peito
como se eu estivesse fazendo um juramento:
Juro solenemente que, de verdade, não sou lésbica, mas você, Fanpin,
minha amiga não querida, é. E já que você também é medonha e faz caratê
(sozinha ou aplicado em mim) e já é faixa roxa (uma cor bem gay.
Coincidência? Olha, DUVIDO MUITO) e já que corro um grande risco de
você espantar meus peitos que ainda nem nasceram, vou fazer o que você
pediu. Mas, cá entre nós, por que seus peitos parecem duas pedras? Acho de
verdade que isso não é normal. Amém.
Depois ela disse “é melhor você não lavar a mão se tiver carinho por sua
vida” ao me ver chegando perto da torneira. Levantou a mão como se fosse
me bater. Aquele era um gesto muito familiar e eu apenas me encolhi.
Naquela época eu tinha reações automáticas a determinadas ações, pessoas
que levantavam os braços de certos jeitos me faziam estremecer, deixavam
minha pele arrepiada como se eu tivesse encostado num cubo de gelo.
— Não vou — eu disse. A mão dela ainda estava no ar. — Uhm, e se eu
só lavar com água? Não vou usar sabão. Não vale se você não usar sabão.
Minha mãe que disse.
— Meu Deus, que bebezão. Ainda falando “mamãe”? Você é muito
fracassada. É muito certinha. É muito coitada.
— Não falei “mamãe”.
— Eu escutei.
— Não falei.
— Falou, sim, mentirosa.
— Não sou.
— Aposto que você nem sabe o que é uma boceta.
— Claro que sei — eu disse, embora fosse a primeira vez que ouvia essa
palavra e embora aquilo pudesse significar literalmente qualquer coisa para
mim e embora saber que nunca mais ouviria essa palavra pela primeira vez
de novo me deixasse assustada e exultante.
Naqueles tempos eu estava sempre aprendendo. Aprendia a pronunciar
tudo e ficava repetindo repetindo repetindo repetindo as palavras até
ninguém me encher o saco, e fiz a mesma coisa com “boceta”. Ia para casa
repetindo a palavra até pensar só naquilo, até chegar ao ponto em que toda
vez que pronunciava a palavra eu pronunciava tão perfeita e lindamente
quanto qualquer ser humano que já existiu. E nesse momento, e só nesse
momento, eu me sentia perto de ser livre. Mas eu estava tão longe. Mas
todo mundo ainda me enchia o saco.
Não tinha como ser livre nesse mundo.
Não tinha como ser livre nesse mundo.
Não tinha mesmo como ser livre nesse mundo.
Não tinha como.
Simplesmente não tinha como.
E viver sem medo? Esquece. Ninguém na Terra vivia sem medo.
— Então tá, beleza. Acho que você parece uma boceta. Você — ela
desenhou um sinal de igual no ar — boceta. Tá feliz de ser uma boceta?
Ou tá se sentindo humilhada?
— Humilhada, ué — eu disse.
— Por quê? — ela perguntou.
— Porquê.
— Porque o quê?
— Por que eu deveria te falar? — eu estava com as mãos no quadril e a
cabeça virada na direção dela.
— Por causa disso. — Ela levantou a mão de novo.
— E daí?
— E daí que você tem medo de mim.
— Não, não tenho.
— Tem, sim — a Fanpin disse. — Você sempre faz tudo que eu digo.
— Não — eu tinha começado a gritar. — Mentirosa. Por que eu teria
medo de você? Você ainda nem é faixa preta.
— Vou virar nesse ano. Meu sensei falou.
— Seu senso não disse merda nenhuma.
— Haha — a Fanpin riu. — Você fica tão boba tentando falar desse
jeito.
— Não tão boba quanto você.
— Você vai levar um soco se não me falar o que é uma boceta.
— Vai me socar com o quê?
— Com o que você acha? Com a minha mão. Agora deixa eu ver se
você limpou a bunda.
— Claro que limpei. Quem não limpa?
— Sou eu que vou decidir.
— Dessa vez não — eu disse. Cruzei os braços na frente do quadril e
agarrei o elástico da minha calça de moletom.
— O que você está fazendo?
— Qualquer coisa — eu disse. — Tô fazendo qualquer coisa. Esse é um
país livre, lembra?
— Por que você tá falando desse jeito? Não tá fazendo sentido nenhum.
— A Fanpin esticou a mão e tentou fazer com que eu soltasse a calça. Me
empurrou na direção da pia e abaixou minha calça até o joelho. — Jesus,
sabia que estou te fazendo um favor? Sua bunda é nojenta. Você nem sabe
se limpar direito.
— Sai daqui — eu disse, puxando a calça de volta. — Quem disse que
você pode olhar minha bunda?
— Quem disse que você manda em mim?
Eu não sabia por que eu era tão mole o tempo todo, por que não
conseguia tirar qualquer elegância ou força de algum lugar. Por que eu era
tão vulnerável? Não havia qualquer barreira que me separasse dos perigos
das outras pessoas desse mundo? Antes de eu sair de Xangai e chegar a
Nova York, meu avô por parte de mãe me contou que o meu tataravô tinha
sido diplomata durante o reinado da dinastia Qing.
— Ele era o embaixador oficial da Grã-Bretanha, Bélgica, Alemanha e
Itália. Falava oito línguas. Alternava as línguas no meio da conversa. As
moças ficavam loucas, ainda mais quando ele falava italiano. Fizeram uma
estátua em homenagem a ele num pequeno parque público em Wenzhou.
É claro que todas essas estátuas foram destruídas, mas nosso orgulho é
indestrutível. Essas são as nossas origens. Nosso povo cruzou o planeta.
Viveu pela aventura. Quando estavam longe era quando mais se sentiam
em casa. Conseguiam construir um lar em qualquer lugar. Isso está no
nosso sangue, compreende?
Esse foi o único discurso motivacional que ouvi na minha vida que de
fato fez com que eu me sentisse mais forte. Voltava a essas palavras sempre
que me sentia um nada e precisava me reconectar com essa parte de mim
que, apesar de estar enterrada bem lá no fundo, ainda se sentia um pouco
grandiosa e talvez um dia, quem sabe, fosse capaz de fazer coisas
brilhantes. Mas a cada dia o discurso do meu avô ficava mais apagado na
minha memória. Sim, eu tinha muito a dizer, mas nada do que eu sentia
por dentro era visível por fora — eu era maria-vai-com-as-outras, covarde,
muda e isso era tudo. Se eu era descendente de pessoas que conseguiam
fazer parte de qualquer lugar, não dava para ver. Se vinha de uma
linhagem de aventureiros e poetas que viveram segundo as próprias leis e
resistiram à prisão, essas qualidades não chegaram até mim. Eu era uma
vergonha para minha genealogia. Eu não conseguia nem mesmo impedir
que a Fanpin me obrigasse a participar das brincadeiras que ela inventava,
como aquela em que ela resolveu fingir que éramos marido e mulher para
saber como era a vida dos nossos pais. Essa brincadeira me deixou
constrangida, mas brinquei do mesmo jeito, mesmo não gostando de ficar
deitada de lado nem do jeito como ela deitou do meu lado e grudou em
mim como se fosse um papel celofane e eu fosse um docinho de festa ou
ela fosse um guardanapo e eu fosse um cheesebúrguer. Para falar a
verdade, eu já não deixava nem a minha mãe me abraçar assim na cama,
mesmo tendo feito ela chorar da primeira vez que falei que não era para
colocar a perna em volta de mim, em uma das noites em que ela me falou
que precisava disso para conseguir dormir depois de uma briga feia com o
meu pai, isso ela nunca disse de forma explícita, mas eu sabia que era esse
o motivo. Eu não gostava de acordar no meio da noite e ver o reflexo da lua
no olho inchado ou no lábio machucado da minha mãe. Isso me deixava
doente. E era pior ainda quando eu sentia que precisava dar as costas. A
única coisa que eu podia evitar era que eu ficasse doente. Tudo que me
restava era rezar. Para dormir, para não ter mais consciência, para repousar,
para ter alguns dias de paz.
— Me deixa, sua monga — eu disse à Fanpin. — Você me dá nojo e
agora sou eu que vou te socar se você tentar me levar para o banheiro de
novo. — Eu andava de lado em paralelo à pia para tentar escapar dela. —
E não adianta puxar meu saco na sua casa depois porque no último
domingo me deu nojo de olhar para os pôsteres na sua parede, e não pense
que já não contei para a Minhee e a Yun Hee sobre aquele pôster e sobre o
que você fez com ele. Sim, você sabe qual é e sabe o que você fez. Aquilo
me fez vomitar e você sabia e ainda sabe que qualquer um que souber vai
vomitar também e pode ter certeza de que nunca mais vou pisar na sua
casa. — Levantei o punho e dei um soco no peito dela. Não foi um soco
memorável nem nada que se aproxime disso, mas foi o suficiente para
sentir aquele seu peito molengo sendo esmagado pelos meus dedos
ossudos.
Juro por Deus que a Fanpin me olhou nos olhos com o que quase me
pareceu respeito e depois despencou no chão. Enquanto corria para a porta
ouvi algo — um choro baixinho que gelou meu coração e me lembrou da
vez em que ouvi meu pai chorar, a única vez na vida que o ouvi chorando.
Foi depois de uma briga com a minha mãe. Consegui vê-lo por uma fresta
na porta do quarto dele. Estava encolhido no chão com as mãos na cabeça.
Vi o meu pai arrancando tufos do próprio cabelo e jogando no chão, e
depois, depois de muitas horas, quando aquilo tudo já tinha acabado,
ninguém lembrou de mim, ninguém lembrou de me explicar o que tinha
acontecido; só ficou o silêncio. No fim daquela noite, peguei o aspirador de
pó no armário e limpei os tufos de cabelo que meu pai tinha deixado no
carpete. Eu não queria vestígios desse tipo na nossa casa.
Não olhei para trás depois de dar um soco no peito da Fanpin, mas
demorei dias, talvez ainda mais tempo, para esquecer dela chorando, e é
por isso que até hoje digo que, se tem alguém que ficou traumatizado, esse
alguém sou eu, a coelhinha inocente que se defendeu do lobo predador, e
naquele dia, depois que dei o soco nela, meus olhos ficaram vermelhos e
marejados, mas não por tristeza ou arrependimento, apenas porque minhas
alergias tinham atacado de novo… o que eu podia fazer?
Descobri que usar amarelo e preto para ir à escola era a mesma coisa
que carregar uma placa dizendo “CHUTA A MINHA BUNDA POR FAVOR” quando
um menino qualquer, entre o oitavo e o último período de aula, apareceu
no corredor e fez um movimento com o punho fechado como se fosse me
dar um soco na vagina, mas depois esticou o dedo indicador e o apontou
para a minha camiseta — um achado que comprei num brechó um dia
com a Fanpin. Tinha custado cinquenta centavos e ela pagou para mim
porque “melhores amigas fazem essas coisas”. Quando voltamos para a casa
dela, deixei que ela me abraçasse por trás como forma de agradecimento,
mas nunca usei a camiseta na frente dela — não queria que ela pensasse
que de alguma forma eu correspondia ao flerte. Agora que estava no sétimo
ano e já tinha os primeiros esboços de algo que quase parecia um peito, eu
queria ser menos tímida, queria ser notada pela pessoa certa. Se eu quisesse
ser gostosa e deliciosa de verdade, precisava me expor um pouquinho, fosse
mostrando uma faixa de barriga ou abrindo a boca para falar. Meu plano
era desenterrar todas as camisetas velhas do ensino fundamental I e usá-las
como baby look, mas na primeira semana de aula amarelei e acabei me
escondendo debaixo de uns casacos enormes que iam até os joelhos. Eu
era tão invisível que os alunos passavam através de mim como se eu fosse
ar. Depois de enfrentar muitos dias de uma onda bizarra de calor em
setembro, finalmente consegui me convencer a deixar o casaco de lado e,
por algum motivo misterioso, resolvi usar o presente da Fanpin — uma
camiseta amarela com a gola colorida e a frase “MEU PEQUENO É UM
SUPERSTAR” escrita em preto.
— Que foi? — perguntei para o menino que apontava o dedo para mim.
— Você está implorando para ser zoada. Chega a ser engraçado.
Fui a última a saber, mas no fim acabei descobrindo: eu estava usando
cores que eram proibidas para toda e qualquer pessoa que não fosse a Soo-
Jin. Quase tudo podia transformar alguém em alvo da raiva da Soo-Jin,
como: ficar do lado dela, passar por ela muito rápido, passar por ela muito
devagar, balançar as mãos perto dela, falar muito alto ou muito baixo perto
dela, olhar para ela, ter a audácia de usar uma camiseta que parecia ter só a
função de não te deixar pelada, mas que, na verdade, era algo que a irritava
profundamente e isso faria com que você levasse uma surra depois da aula.
Estavam espalhando uma história para assustar os novos alunos (que eu,
é claro, fui a última a ouvir porque fui transferida no começo do sétimo)
sobre uma aluna do sexto ano que tinha feito a besteira de olhar do jeito
errado para a Soo-Jin e a Soo-Jin agarrou seu pescoço e disse:
— Acha que pode me olhar desse jeito e sair andando, sua merda sem
peito?
A menina ficou pedindo desculpa um tempão, mas a Soo-Jin continuou
irritada, então depois da aula ela e sua gangue seguiram a aluna pela rua e
amarraram suas mãos e pés em uma corda grossa (a essa altura, qualquer
pessoa que ouvisse essa história pela primeira vez já teria medo, afinal, o
que os alunos do nono ano andavam fazendo por aí carregando uma corda
que seria capaz de laçar uma pessoa?).
Elas perguntaram para a menina:
— Quer que a gente te solte, sua vadia? Já se arrependeu o bastante e
quer sair?
E a menina disse:
— Sim, por favor. Por favor. Me arrependo muito. Me arrependo muito,
muito. Por favor, me solta.
A Soo-Jin respondeu:
— Tá, mas primeiro tem algumas coisas.
E a menina disse “que coisas? Que coisas? Que coisas?” com tanto
desespero e tantas vezes que a Soo-Jin calou sua boca com um soco que
arrancou seus dentes da frente. A Soo-Jin e suas meninas arrastaram essa
menina do sexto ano num Honda Accord de algum aluno do ensino médio
que tinha se apaixonado pela Soo-Jin e lhe dado as chaves do carro para
tentar conquistá-la sem saber que ela tinha outros planos. Elas ficaram no
carro ouvindo rádio até escurecer. Uma das meninas da Soo-Jin recebeu
ordens de avisar quando o terreno estivesse livre, e ela levou a missão a
sério e ficou escondida atrás de umas caçambas de lixo até que todas as
luzes do prédio da escola se apagassem.
— Vi o zelador trancar a porta principal e sair de carro — ela reportou à
Soo-Jin, que virou para a aluna do sexto ano e perguntou “você já foi ali
alguma vez depois de escurecer?”, apontando para o estacionamento vazio
de concreto cercado por arame farpado onde os professores de música
paravam o carro porque ficava mais perto das salas da banda e do coral. A
aluna do sexto ano balançou a cabeça.
A Soo-Jin chutou a menina para fora do carro e disse “se prepara”. E,
nesse momento da história, a pessoa que estivesse ouvindo o relato poderia
se perguntar: qual seria a pior coisa que uma aluna do nono ano poderia
fazer com uma aluna do sexto ano? Será que um dos marcos importantes
da vida adulta era quando nos tornávamos capazes de imaginar o
verdadeiro horror? Mesmo assim, se a pior coisa possível de imaginar já
tinha acontecido com alguém não muito diferente de nós, quem poderia
estar a salvo? E se existisse coisa pior do que aquilo que a gente conseguia
imaginar?
Existia. Existia coisa muito, muito pior.
A Soo-Jin subiu na cerca de arame farpado usando luvas de jardinagem
bem grossas, desenrolou o arame de lá, desceu e colocou-o no chão. Fez as
meninas tirarem a roupa da aluna do sexto ano e depois ficarem olhando
ela bater na cara da garota com o arame. Depois a Soo-Jin começou a
assobiar e envolveu a aluna do sexto ano com o arame farpado como se ela
fosse uma decoração de árvore de Natal. Quando terminou, deu um passo
para trás e perguntou para a garota:
— Você ainda pretende me olhar daquele jeito?
As outras meninas deram risada junto com a Soo-Jin quando a aluna
caiu no chão. De acordo com algumas versões, uma delas disse: “beleza,
agora vamos para casa, já acabamos com essa vadia”, mas a Soo-Jin
respondeu “não, ainda não, tem mais uma coisa que a gente precisa fazer”.
Que coisa? Ah, a coisa! A gente sempre torce pelo final feliz, pelo
momento do filme em que o impossível de repente se torna possível, em
que os personagens dignos de pena finalmente obtêm alguma compaixão.
A coisa era a seguinte: enquanto a aluna do sexto ano se contorcia de
dor, a Soo-Jin fez com que quatro meninas a segurassem e uma outra a
enforcasse com sua camiseta, que tinham tirado antes, e depois a Soo-Jin,
bem devagarinho, arrancou o arame farpado do corpo da tal menina
levando junto pedaços da sua carne que tinham ficado presos nas pontas
afiadas do arame e que agora pareciam bandeirinhas balançando ao vento.
No final de tudo, a aluna do sexto ano estava parecendo um docinho de
festa colorido feito do próprio sangue e já tinha tentado arrancar a própria
língua duas vezes por causa da dor. Algumas das meninas da Soo-Jin
tremiam de nervoso, outras sorriam, mas mais em nome da performance
do que naturalmente, e a Soo-Jin deu uma risadinha fofa, como se tivesse
feito uma pegadinha muito meiga, como colocar uma casca de banana no
caminho de um personagem de desenho animado, ou como se tivesse
cometido a transgressão mais insignificante do mundo, tipo fazer xixi na
tampa da privada sem querer e não limpar depois. Era por isso que ela era
uma fera — por isso e porque sabe-se lá como ela era capaz de pegar a
menina-que-tinha-olhado-errado-pra-ela no colo sem a ajuda de ninguém e
jogá-la dentro do lixão atrás das salas em que a banda e o coral ensaiavam.
***
Na quarta e última vez que minha avó veio morar com a gente, eu tinha
dezessete anos. Meu irmão tinha esquecido dela naqueles dois anos de
intervalo. Eu e ele estávamos próximos de novo. Ele dormia no chão do
meu quarto ou na minha cama quando eu deixava e jogava computador
com fones de ouvido enquanto eu fazia os trabalhos da escola. Ele me
pedia para sentar ao lado dele quando ia praticar violino, e ele era terrível,
mas ficava magoado se eu desse risada. Quando meus amigos vinham em
casa, ficava andando pelos cantos, fingindo que caçava insetos. Eu uma vez
disse que ele não podia viver estando sempre apegado a alguém, embora eu
gostasse. Eu gostava do seu corpinho apoiado no meu nas mesas dos
restaurantes e do jeito com que, em casa, ele puxava sua cadeira para perto
da minha e sentava com metade do corpo em cada uma delas, e quando
ele falava que queria que eu não tivesse tarefas nem amigos e pudesse
passar o tempo todo com ele.
Minha avó tentou fazê-lo dormir com ela de novo, mas ele só queria
dormir no meu quarto. Às vezes ele a provocava, como num dia em que ela
perguntou se ele queria entrar debaixo do vestido dela como nos velhos
tempos e ele foi, deu uns tapas nas pernas dela e depois saiu correndo para
o meu quarto. Essa foi uma das muitas ocasiões em que ela se sentou na
beira da minha cama esperando que meu irmão viesse pedir desculpa e
dissesse que a amava e que nunca quis machucá-la, mas ele nunca fez nada
disso.
Dessa vez ela estava mais surda do que nunca e usava aparelho nos dois
ouvidos, um modelo novo que meu pai tinha comprado na Costco, mas
que funcionava mal do mesmo jeito porque ela só colocava baterias que já
tinham cinco anos de uso. Às vezes eu a via no quarto tirando as baterias
velhas e colocando novas baterias velhas. Ela tinha criado novos interesses
e começou a estudar caligrafia e a história dos índios americanos por conta
própria.
— A América pertence aos chineses — ela dizia. — Fomos os primeiros
a chegar à América do Norte.
— Achei que os ameríndios tinham vindo antes.
— Os índios são chineses. Cristóvão Colombo viu os chineses e os
chamou de índios. Inventamos os temperos e o chiclete e o papel, a
pintura de blocos em madeira e a prensa móvel, o dinheiro em cédula, a
pólvora, os fogos de artifício, o chá, a técnica de desenrolar o fio da seda, a
alquimia, que mais tarde se tornou a química moderna, ferramentas de
navegação para a exploração marítima, armas de guerra e armas de paz. É
por isso que a China fica bem no centro do mapa.
— Não nas salas de aula americanas.
— Você devia ter orgulho de ser chinesa.
— Nainai, os chineses não são índios.
— Os primeiros africanos eram chineses. Os primeiros sul-americanos
eram chineses. Durante muito tempo, não havia ninguém na Austrália. Lá
a civilização é e sempre foi atrasada. Mas pensa só. Toda a América do
Norte e do Sul, toda a África e boa parte do leste da Europa, toda a Rússia,
a Sibéria, tudo isso pertenceu primeiro aos chineses.
Foi nesse momento que ela se revelou por completo para mim — eu
pude vê-la. Ela era só uma velhinha criada no campo, sem educação e sem
nenhuma das coisas básicas que depois ela ofereceu à minha mãe e aos
irmãos da minha mãe, uma pessoa que tinha escutado desde que era
menina que as mulheres foram trazidas ao mundo para gerar a vida e criar
os filhos sem dar muito trabalho, vivendo como os criados viviam, de forma
produtiva, sem sentir cansaço ou fazer muitas exigências, mas de algum
jeito ela tinha tido a habilidade e a esperteza de se erguer por meio do
movimento feminista que Mao idealizou para tirar as mulheres de casa e
levá-las aos campos e fábricas, ela tinha conquistado mais poder do que
qualquer outra mulher de sua classe e gostava de mencionar as pessoas que
tinha “salvado”, mas nunca citava as pessoas que tinha dedurado durante a
Revolução Cultural, ela era uma pessoa cuja deficiência auditiva tinha
alimentado seus medos de se tornar inútil, se tornar alguém com quem os
outros não se importam, e, para enfrentar esses medos, teve que se imbuir
de uma confiança que chegava a constranger, teve que manter uma
autoimagem positiva tão exagerada que beirava o delírio. Tentou contornar
a própria obsolescência levando os filhos a acreditarem que sem ela
sucumbiriam e, quando eles caíram na real, tentou fazer o mesmo com os
netos. Mas nós também estávamos crescendo e faltavam alguns anos até
termos nossos filhos, e a essa altura ela já estaria morta. Enterrada ou
cremada, a não ser que aquele alho que mastigava de fato a fizesse viver até
os cento e dezessete. Eu já tinha idade para entender que um dos possíveis
efeitos de um trauma era tornar a pessoa traumatizada alguém
insuportável, e que a insistência da minha avó em se ver como vítima era
ao mesmo tempo patética e admirável e a tornava merecedora de pelo
menos um pouco de compaixão, mas, caralho, por que forçar a barra
daquele jeito? Por que ela demandava tanto? Por que exigia aquela devoção
total? Me dava repulsa pensar que ela queria que eu e meu irmão a
amássemos mais do que amávamos nossos pais, mais do que amávamos um
ao outro, mais do que amávamos até nós mesmos.
Então eu a provocava. Eu a ignorava. Dizia que ela falava chinês igual a
um agricultor, e essa era a pior maldade que poderia fazer. “Lá vem o Lago
de Lágrimas”, eu e meu irmão comentávamos toda vez que a ouvíamos
soluçando e fungando. Algumas vezes apostávamos quanto tempo ela
aguentaria sentada na beira da minha cama, ignorada pelos dois, até
resolver descer para praticar caligrafia. Ela só tinha estudado até o terceiro
ano e estava aprendendo os caracteres sozinha com a intenção de escrever
um livro sobre seus netos.
— O mundo precisa conhecer vocês dois — ela disse. Por um momento
fiquei comovida. Mas eu sabia que, se algum de nós dois tinha mesmo
chance de crescer e virar aquele tipo de pessoa que os outros têm vontade
de conhecer, precisávamos deixá-la para trás.
— Você devia escrever sobre a sua vida, nainai — eu disse. — As pessoas
também precisam conhecer você.
— Você e seu irmão são a minha vida — ela insistiu e, embora não fosse
a primeira vez que dizia aquilo, fiquei genuinamente triste por ela não só
saber tão pouco sobre a gente, mas por nós sabermos menos ainda sobre
ela.
Depois que me formei no ensino médio, meus pais levaram eu e meu
irmão para um cruzeiro pelo Canadá com umas outras famílias chinesas.
Na véspera da viagem, meu irmão começou a chorar e não queria contar o
motivo para os meus pais.
— Está preocupado com a vovó sozinha em casa chorando um Lago de
Lágrimas? — perguntei para ele quando ficamos sozinhos.
Ele fez que sim.
— E se ela sentir medo de ficar sem ninguém?
— São só alguns dias, Allen. Ela já passou por coisa bem pior.
— E se ela precisar de ajuda?
— Aí ela pode ligar para o celular do papai e a gente corre para casa na
hora.
— E se a gente estiver no meio do mar?
— Aí ela vai ter que esperar algumas horas, enquanto a gente volta para
a terra e pega um avião.
— E se ela não puder esperar tanto assim?
— Aí ligamos para um vizinho vir aqui.
— E se o vizinho não atender o telefone?
— Aí ela liga para o 911, igual a mamãe e o papai ensinaram, e não me
pergunte agora “e se eles não entenderem nada”, porque sei que com
certeza eles têm atendentes que falam chinês.
— Mas e se nesse dia não tiverem?
— Allen.
— Quê?
— Você sabe o quê — eu disse.
— Você não pensa na vovó, Stacey?
— Sei lá, sim, é um saco ficar sozinha em casa, mas ela dá conta. Eu
tenho certeza. Ela precisa dar conta. A vida é assim. Nem todo mundo tem
tudo o que quer.
— Mas a vovó não tem nada do que ela quer.
— Não é verdade. Ela conseguiu vir para a América nada menos que
quatro vezes e morou com a gente todas as vezes. Era isso que ela queria.
Não é pouca coisa. Tem gente que não pode vir nem uma vez. Já pensou
nisso? — A boca do Allen voltou a tremer. — Olha, por que a gente não
procura alguma coisa bem legal para trazer do cruzeiro para ela. Topa?
— Aham.
— Lembra quando você deu para ela aquela escova de dente que a
gente ganhou de brinde no avião? Ela ainda segura aquilo toda noite como
se fosse um diamante precioso.
— É mesmo — o Allen deu risada. — Ela disse que queria ser enterrada
com a escova quando morresse.
— Eu acredito.
O cruzeiro foi tão legal que esquecemos completamente de comprar um
presente para ela. No carro, voltando para casa, revirei minha mochila e
achei uma minilatinha de Coca vazia, levemente amassada e ainda com o
canudinho usado. Jogamos o canudo fora e embrulhamos a lata
toscamente com um panfleto meio sujo de comida sobre segurança a
bordo.
— Trouxemos um presente, nainai — o Allen disse.
— É uma lembrancinha que trouxemos de Ontario — eu completei.
— Desculpa, a gente já bebeu.
— Ah, meus dois baobai queridos. Me trouxeram um presente digno de
um rei. — Ela abraçou o Allen, depois me abraçou, depois nos envolveu
com um abraço tão apertado que nós três começamos a chorar por motivos
diferentes. Meu pai nos interrompeu para perguntar se alguém tinha
tocado a campainha enquanto estivemos fora e minha avó disse que na
verdade não, a não ser um dia em que um policial apareceu e ela acabou
abrindo uma fresta da porta e falou com ele segurando uma faca atrás das
costas.
— Uma faca? — meu pai repetiu horrorizado. — Você segurou uma
faca para falar com um policial armado?
— Como eu ia saber se o uniforme e o distintivo eram de verdade? Eu
tinha todo o direito de usar uma arma.
— Se o policial visse a faca, podia te prender — meu pai disse. — Então
ele ia descobrir que seu visto já venceu e isso daria problema para todos
nós.
— Ele podia… matar a vovó? — o Allen perguntou para o meu pai em
inglês.
Ele balançou a cabeça rapidamente e continuou repreendendo minha
avó.
— E com esses policiais nunca se sabe. Você mexe com o cara errado na
hora errada e vai saber. Agora você podia estar no centro de detenção,
pronta para ser deportada. Foi por isso que falei para não atender a porta de
jeito nenhum.
— Bem, não, ele não ia fazer nada, porque eu teria batido nele sem dó
se ele resolvesse tentar botar um pé para dentro da porta.
Meu pai balançou a cabeça e desceu as escadas para contar o que tinha
acontecido à minha mãe. No dia seguinte, descobrimos que o policial na
verdade tinha vindo dizer para a minha vó parar de ligar o sistema de
irrigação do jardim às terças e quintas por causa das novas regras da
vizinhança. Ela vinha ligando os irrigadores todos os dias, pensando que
nossa grama andava necessitada de água extra, e algum vizinho mais
intrometido do que a média deve ter reclamado com a polícia.
— Andaram reclamando de você — eu disse à minha avó. — Não
gostaram que você usou mais água do que é permitido.
— A sua nainai sabe lutas marciais. Se um bandido entrasse em casa,
sua avó só ia precisar olhar para ele e pronto. Eu ia jogá-lo pelos cantos da
casa e depois para o lado de fora da porta e tudo isso só com os meus olhos.
Agora imagina se a sua avó usasse as mãos. Ele estaria morto em cinco
minutos. Por isso luto só com os olhos. É mais humano.
— Que massa, nainai — eu disse. — Você tem talento.
— Tenho. Por isso vou ficar com vocês para sempre e vocês não
precisam ter medo enquanto a nainai estiver em casa.
Ela foi embora naquele verão. A lesão que tinha na cabeça havia três
anos não tinha melhorado completamente. Ela tinha dor de cabeça e
voltou a ter sonambulismo. Meu avô escreveu mais uma vez e contou que
estava prestes a ser diagnosticado com um câncer linfático. Dessa vez era
verdade, ele escreveu, e ela precisava ir para casa ficar com ele.
— Ele é mentiroso, vocês sabem.
— A gente sabe, nainai.
— Ele tem ciúmes de mim porque essa já é a quarta vez que venho para
a América, e ele é muito cagão e convencido e por isso não veio sequer
uma vez. Quer me tirar tudo que eu amo. Por que vou abandonar meus
netos e minha casa de verdade por aquele monte de osso? Não vou deixar
vocês dois crescerem sem a pessoa que mais importa para vocês.
Ela voltou para Xangai logo depois que fui para a faculdade. Minha mãe
perguntou várias vezes para o Allen se ele tinha certeza de que queria ficar
em casa comigo em vez de ir junto com ela para o aeroporto. No último
minuto, quando meu pai estava arrastando a última mala da minha avó
para o carro, eu disse que queria ir com eles.
— Não tem espaço para os dois — meu pai disse.
— Quem disse que eu quero ir? — o Allen disse.
— Você não pode ficar sozinho — minha mãe disse. — Acho que o
papai pode ficar com o Allen.
— Esquece — eu disse. — É muito complicado e ela — Minha avó
estava ajoelhada no chão perto do Allen, que estava no sofá jogando Super
Smash Bros., e ela tentava virar o corpo dele em sua direção, mas ele fugia
toda vez que ela tentava agarrá-lo, irritado cada vez que perdia o jogo por
causa dela. — não vai ficar satisfeita se só eu for. Todos sabemos quem é o
neto anjinho amado dela. Ela ia preferir arrancar o canal auditivo fora a
me deixar ocupar esse lugar.
Ela não soltava o Allen, e já estava ficando tão tarde que tivemos que
dizer a ela que o Allen ia junto, e isso o deixou tão revoltado que ele se
recusou a olhá-la nos olhos.
— Meu próprio neto não me olha nos olhos porque eu o decepcionei
demais — ela disse. — Que vergonha. Preferia morrer ao lado dele a viver
uma longa vida sem ele na China.
— Ele não dá a mínima — murmurei em inglês.
Quando colocamos minha avó no banco de trás, ela ficou insistindo
para o Allen sentar no seu colo enquanto meu pai ligava o carro.
— Eu disse que não queria ir — o Allen disse e começou a chorar perto
da porta aberta.
— Ah — minha avó gemeu. — E agora ele está chorando por minha
causa.
Ela agarrou o braço do Allen até encostar o cotovelo dele em seu joelho,
mas o resto do corpo dele se mantinha o mais longe possível dela. Meu pai
fez um sinal para mim e eu entrei no meio deles, tentando com toda a
minha força soltar os dedos dela do braço do meu irmão.
— Ele vai ficar muito triste, nainai — eu disse rapidamente. — A gente
te ama, tenha uma boa viagem, até a próxima.
Assim que o Allen se soltou da minha avó, ele correu para dentro de casa
sem olhar para trás ou dar tchau para ela. Eu bati a porta do carro e vi meu
pai acionar a trava de segurança. Minha avó ficou tentando abrir a porta e
batendo na janela com as mãos como se fosse um animal selvagem que
viveu a vida toda em liberdade. Meu pai saiu da garagem e foi em direção à
subida em forma de C, saindo do meu campo de visão. Ouvi um
barulhinho familiar vindo de perto e, quando olhei para baixo, vi um dos
aparelhos de surdez da minha avó no chão.
— Parece que você não vai embora nunca — eu disse e chutei o
aparelho para longe, mas depois corri para pegá-lo e o acariciei para tirar a
poeira, exatamente como eu tinha feito três anos antes quando encontrei
minha avó caída no asfalto com a cabeça sangrando.
Na noite em que minha avó veio me dizer que ia embora pela terceira
vez, senti uma coisa estranha. Fiquei na cama até todo mundo dormir e
depois rastejei pelas escadas e saí escondida de casa, como sempre fazia
naquela época. Fiquei andando pela vizinhança debaixo de um fio de lua e
imaginei como seria ter nascido numa família diferente. Na volta, parei em
frente à casa roxa, depois segui por um caminho de pedras malcuidadas até
o quintal.
Intuí que ela estaria lá e ela estava, agachada perto da cerca, de frente
para a cama elástica roxa.
— Nainai — eu chamei, mesmo sabendo que ela não conseguia me
ouvir.
Tive vontade de pular com ela. Eu ia esquecer aquela sensação dentro
de alguns dias, toda minha resistência em relação a ela voltaria da próxima
e última vez em que viesse nos visitar, mas, naquele momento, senti sua
solidão e isso me assustou.
Ela deu um passo adiante e de repente começou a correr tão rápido que
parecia uma menininha, não era mais uma senhora flácida ou
arredondada. Ela parecia uma linha reta — algo que eu entendia,
conseguia me identificar. Fechei os olhos com medo de que ela tropeçasse.
Quando voltei a abri-los, ela estava lá no alto, seu vestido voava. Eu soube
naquele momento que talvez ainda haveria uma época da minha vida em
que eu teria vontade de dormir com ela de novo, voltar para perto dela
depois que a parte incerta e disforme da minha vida acabasse, quando
ninguém mais me confundisse com uma criança, só ela. Seus filhos e os
filhos de seus filhos eram crianças para sempre — era assim que ela
planejava virar Deus e arrastar a gente para a sua eternidade.
Eu estava prestes a correr para encontrá-la, a me revelar, quando percebi
que ela não estava acordada.
— Mãe — ela disse, pulando na cama elástica. — Mãe, eu não queria te
deixar, mas tive que ir com o pai para as montanhas. Mãe, você me disse
para cuidar do meu irmão e eu deixei que ele lutasse e ele perdeu as
pernas. Mãe, te decepcionei. Mãe, você disse que queria morrer nos meus
braços, mas eu vi nossa casa queimando com você dentro quando fugi para
as montanhas. Falei para o pai que queria descer do cavalo e morrer com
você e ele me apertou firme e não me deixou descer. Mãe, eu queria
morrer com você, mas você me disse para ir. Eu não devia ter ido.
Cheguei mais perto dela. Seus olhos estavam abertos, mas não me viam.
Ali no escuro, pensei que me lembraria para sempre dessa noite e que seria
profundamente afetada pela experiência de ter visto minha avó desse jeito,
mas tudo acabou sendo igual a esses sonhos em que você pensa durante o
sonho que precisa lembrar do sonho quando acordar. Que, se você
conseguir lembrar, esse sonho vai transformar você, revelar segredos da sua
vida que do contrário continuariam obscuros para sempre. Mas, quando
você acorda, a única coisa de que consegue se lembrar é de pensar que
precisava lembrar. Depois de tentar evocar detalhes e imagens e não
conseguir, você pensa ah, deve ser bobagem, e você segue a vida e não
aprende coisa nenhuma e nunca muda.
Você caiu no rio e eu te salvei!
REUNIÃO Nº 1
REUNIÃO Nº 2
REUNIÃO Nº 4
Quando eu tinha dez anos, minha mãe me levou para Xangai. Era para
ser uma coisa boa, mas eu não conseguia achar isso.
— Você vai ver quando voltar. Tudo vai ser diferente. Vamos viver igual
à princesinha gorda — ela me prometeu.
— Não acredito em mais nada do que você diz — eu respondi. Ela
estava grávida de seis semanas e eu tinha sido a última a saber. Tudo que
eu sabia é que ela tinha sido encarregada pela mãe do meu pai de me levar
para Xangai para morar com os meus avós enquanto meus pais se
recuperavam financeiramente. Eles tinham pagado nossas passagens de
avião e até mandaram um par de meias tricotadas a mão com vinte dólares
enfiados em cada meia para que comprássemos um lanchinho antes de
embarcar. Anos depois, quando eu já era adulta, minha mãe admitiu que
tinha implorado à mãe do meu pai para que pudesse me levar, embora
fizesse mais sentido que meu pai fosse e visse os pais.
— Esse é o seu jeito de me dizer que você não ia suportar ficar longe de
mim?
Ela sorriu daquele jeito que só tinha começado a se permitir fazer
quando eu já tinha crescido, desde que eu passei a não ficar mais tão
magoada a cada ocasião em que ela agia não só como minha mãe, mas
como um indivíduo com necessidades próprias e medos e sonhos.
— Foi por isso que você passou um mês inteiro comigo em Xangai?
Porque queria tornar a transição mais fácil para mim?
Ela sorriu de novo.
— Vamos — eu pressionei. — Qual era o motivo real?
— Esse era um dos motivos.
— E o que mais?
— O que você acha?
— Porque você queria fugir do papai?
— Ding ding ding ding ding.
Nas semanas que antecederam a viagem, eu tinha voltado a me coçar
até ficar em carne viva, e a coceira ficou mais exacerbada ainda quando
cheguei à China e descobri que tudo, inclusive os lençóis da cama e as
almofadas do sofá, era áspero e desconfortável e tinha um leve cheiro de
mofo, mijo e merda. Fiquei melancólica e chocada por não reconhecer o
lugar de onde eu vinha. Quando saía na rua todo mundo ficava me
olhando. Garçons e comerciantes perguntavam para a minha mãe se eu
era surda ou burra ou muda ou só idiota mesmo quando eu demorava
muito tempo para responder as coisas que me perguntavam.
Eu passava as tardes sentada na casa dos meus avós, esperando e
comendo laranjas e uvas enquanto os adultos cozinhavam coisas que eu
não queria comer e pediam desculpa por não terem hambúrguer ou batata
fita ou frango frito ou cachorro-quente disponível. Eu queria dizer que
nem gostava tanto assim de hambúrguer ou de frango frito ou de cachorro-
quente e que na verdade minha comida preferida era comida chinesa, só
que não a comida chinesa da China. Depois do jantar, todos conversavam
uns com os outros e interrompiam uns aos outros como se o dia fosse curto
demais e por isso tudo precisava acontecer ao mesmo tempo: ouvir, falar e
rir eram ações que não podiam acontecer uma após a outra, tinham que se
amalgamar todas ao mesmo tempo formando uma gigantesca nuvem de
barulho. Meu silêncio não passava despercebido, ele simbolizava alguma
coisa e todo mundo queria analisá-lo e transformá-lo numa situação de
emergência. Eu ficava quieta não porque não tinha nada a dizer, mas
porque me sentia sobrecarregada por aquilo tudo e não queria que
ninguém tivesse pena de mim ou desse risada de mim ou jogasse as mãos
para o céu diante do disparate que era uma pessoa chinesa que não falava
chinês. Eu não queria prometer a ninguém que aprenderia a falar um
chinês perfeito porque ainda necessitava que as pessoas da América
continuassem me olhando e percebendo na mesma hora que eu falava um
inglês perfeito, em vez de deduzirem que eu não sabia só porque era mais
quieta. Levei meus pais a sério quando me disseram que minha estada na
China seria temporária, e, portanto, se ela era mesmo apenas temporária,
eu não ia me comprometer a ser chinesa na China, já era difícil demais ser
chinesa onde eu morava.
Meus parentes em Xangai interpretavam meu silêncio como sinal de
solidão ou tristeza ou de que eu não gostava de Xangai ou não gostava da
comida ou ficava entediada com os programas da TV ou estava insatisfeita
com os banheiros, e todas essas suposições eram meio que reais,
especialmente minha decepção com os banheiros, já que o da casa da
minha avó realmente cheirava a matéria fecal. O cheiro era tão repulsivo
que eu não aguentava ficar no banheiro o tempo que precisava para expelir
a bosta do meu próprio corpo e, ao fim da primeira semana em Xangai,
fiquei tão constipada e enfezada que fui parar no hospital, o que seria
apenas constrangedor se eu já não tivesse me constrangido chorando na
privada na noite anterior, quando pensei que finalmente ia conseguir fazer
cocô, mas o cocô se revelou nada mais do que um peido bem alto. Tirando
isso, no entanto, eu estava bem. Na verdade, estava bem melhor do que
nas semanas antes de sair de Nova York. Eu estava segurando a barra como
uma campeã da porra toda, como a Darling me dizia toda vez que eu
aparecia na sala do meu pai.
— A campeã da porra toda chegou — ela dizia, fingindo que esfregava o
topo da minha cabeça como quem lustra um troféu que vai ficar em
exibição.
Depois que voltei do hospital, já tendo expelido toda aquela bosta que
tinha ficado presa dentro de mim, decidi tentar fazer aquilo que os meus
pais queriam que eu tivesse feito há tanto tempo: ser menos apegada a eles.
Durante anos, quando me estimulavam a sair sozinha, eu pensava comigo
mesma: “Comecem vocês. Sejam menos dedicados, então. Não me amem
tanto de modo que essa seja a única coisa de que tenho certeza”.
Como eu ia adivinhar que eles topariam meu desafio? Que me
afastariam de verdade?
— Você precisa endurecer o coração — minha mãe ficava me dizendo.
— Quer você queira, quer não, vai chegar uma hora em que você vai
precisar. Nos iludimos acreditando que há um jeito de se preparar, como
naquele mito que diz que o melhor jeito de arrancar o dente de leite de
uma criança é puxando-o um pouco todo dia até que de repente você
encosta nele sem fazer pressão e ele cai de forma indolor, como num passe
de mágica.
Depois de meses de choro e súplica e briga e chantagem e planos e
atrasos, de repente aconteceu. Recebemos duas passagens de avião e um
par de meias pelo correio numa semana e na outra eu estava no aeroporto
com a minha mãe, segurando firme na mão dela e soltando-a e segurando-
a e soltando-a de novo e por fim esmagando minhas próprias mãos como se
estivesse prestes a sacar uma bola de vôlei. Nem dei tchau para o meu pai
quando passamos pelo portão de segurança. Eu não tinha ideia de que ele
passaria o verão pintando casas e se transformando no homem que nós não
só merecíamos, mas com o qual sonhávamos. Todo mundo que eu
conhecia concordava. Nunca era tarde demais para mudar. Então a gente
mudou. A família que eu não conhecia o suficiente para me importar de
verdade passaria a ser minha família assim que eu chegasse a Xangai, e a
família da qual eu nunca quis me separar, a família em que baseei toda a
minha identidade e cujo amor era a única coisa de que eu tinha certeza,
precisaria se transformar em outra coisa.
Eu tinha três anos e meio quando nos mudamos para Nova York. Minha
mãe contratou uma linha de telefone logo que chegamos, embora nos
invernos só pudéssemos pagar algumas horas de calefação por mês. No
começo ela ligava para Xangai quase toda semana. Minha mãe me
colocava num banquinho para que eu alcançasse o telefone, que ficava
pendurado na parede, e falasse em chinês: “Te amo, vovô; te amo, vovó; te
amo, titia mais velha; te amo, titia do meio; te amo, titia mais nova; te amo,
tio; te amo, primo; te amo, tio favorito; te amo, tia que acabou de casar
com o tio; te amo, primo que não conheço; te amo, vovó por parte de mãe;
te amo, bisavó, e também as manchas na sua cabeça que ficam verdes na
foto; te amo, tia-avó; te amo, tio-avô; te amo, sobrinho que é mais velho
que eu e que não conheço e que vai vir visitar a gente; amo vocês todos e
desejo que gozem de boa saúde no ano que vai chegar”. Minha mãe
ensaiava o discurso comigo milhares de vezes antes de ligar e, mesmo
sabendo exatamente o que precisava dizer ao telefone, eu nunca dizia nem
uma palavra. Minha mãe pegava o telefone de volta e dizia meio sem
graça:
— Deu para ouvir? É que ela fala muito baixinho.
De algum jeito eu sabia que tinha falhado, embora na época não
entendesse o que havia de tão urgente no ato de declarar seu amor a
alguém pelo telefone. O que poderia tornar esse amor mais significativo e
profundo do que a consciência de que você o sentia — aquele amor
caloroso e apaziguador que nos aquecia por dentro e se enfiava nos nossos
sonhos à noite? Eu revisitava essa pergunta toda vez que meus parentes me
pressionavam, esperando que eu dissesse alguma coisa capaz de aliviar seus
medos de que eu continuasse distante para sempre, de que sempre ficasse
escondida.
Uma semana depois de chegarmos a Xangai, minha mãe foi encontrar
suas colegas do ensino médio e, assim que ela saiu pela porta, meus
familiares me cercaram e me fizeram perguntas como: “Todas essas casas
em que vocês moraram… Não ficou cansativo depois de um tempo?”.
— Sim — eu disse solenemente. — Foi uma provação — isso foi o que
pensei que disse em chinês, mas na verdade disse “foi um homem”.
— Homem? Pensei que fosse mulher — eles disseram, se referindo à
namorada do meu pai naquela fase. — Você quer dizer que era um
homem?
— Sim, um homem — eu disse.
Poucos dias depois de ir para o hospital e tomar tanto laxante a ponto de
não conseguir ficar sentada sem minha bunda se abrir pensando que eu ia
cagar, minha prima Fang sentou do meu lado depois do jantar (em que eu
tinha comido de forma voraz, para a satisfação das minhas tias, tios e avós)
e me perguntou que tipo de música eu curtia. Ela era quatro anos mais
velha que eu, tínhamos crescido juntas na casa dos meus avós antes de eu
me mudar para Nova York. Agora eu não a conhecia mais. Ela ficou
falando de uma boy band famosa cujo sexto membro era um macaco de
verdade e, enquanto ela falava, eu percebi que ela pensou que eu pensei
que ela era chata, e percebi que ela queria que eu sentisse uma conexão
com ela, e percebi que ela tinha percebido que eu não lembrava de ter
crescido com ela e precisado dela o tempo todo quando era bebê, e percebi
que ela pensava que a necessidade era a base de todo relacionamento
familiar, e percebi que ela ficava chateada toda vez que a minha avó falava
da vez em que minha prima desenhou meu rosto na areia depois que fui
embora para a América com os meus pais, porque, quando a minha avó
contava essa história, eu nunca ficava comovida do jeito que a minha avó
ficava, e ela sempre chorava, porque acabava lembrando de todas as vezes
em que as pessoas partiram durante sua vida, e, quanto a mim, nada me
impactava tanto assim, pelo menos não de um jeito que fosse facilmente
perceptível para os outros, e eu sabia que a minha indiferença perturbava a
minha prima.
— Sabe — ela me disse, após um longo silêncio em que comemos
melancia (eu engoli todas as sementes, ela tirou até as branquinhas, que
eram macias e boas de mastigar) —, quando você tinha três anos, logo
antes de você e seus pais se mudarem para a América, pegamos um trem e
fizemos um piquenique no campo. Você queria muito entrar numa
caverna que tinha lá. Sei lá por quê, naquele dia seus pais me deram
permissão para te levar. Era uma caverna bem pequena, mas enfim.
Consegue imaginar? Nós duas, com três e sete anos, sozinhas numa
caverna. Você ficou radiante. Também fiquei muito feliz. Foi legal sair
explorando sem um adulto. A certa altura, encontramos um riacho que
corria por dentro da caverna. Você queria dar um pulo por cima da água
igual ao Sun Wukong. Lembra daquela história em quadrinhos do macaco
que tem um monte de poderes mágicos e anda com um monge bem
certinho? Você ficou obcecada. Eu te dizia para nunca tentar imitá-lo. Eu
disse: “Você sabe que o Sun Wukong não é de verdade, né? Sabe que
pessoas de verdade não conseguem voar nem cortar árvores com o dedo,
né?”. Você me perguntou por que não e aí, de repente, ouvi um barulho e
você tinha entrado na água. Eu sabia que você ia dar um chilique assim
que percebesse onde estava, então pulei e te tirei de lá.
— Existe rio dentro das cavernas?
— Existe. Nessa caverna tinha.
— E eu caí?
— Caiu.
— E você me salvou?
— Exatamente.
— É mesmo?
— É mesmo.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Você acabou de lembrar disso?
— Não, eu sempre soube.
— Nunca esqueceu?
— Não — ela disse. — Como eu ia esquecer?
— Não acredito que você me salvou.
— Sério. Você caiu no rio e eu te salvei!
Nós duas rimos pensando que uma coisa dessas tinha acontecido, e
depois disso eu parei de olhar para ela e de me perguntar como teria sido
conhecê-la em vez de só saber que ela era minha prima e eu era prima dela
porque nossas mães tinham falado. Tínhamos encarado um desafio juntas.
Agora éramos família.
— Acho que tenho uma obsessão por pular em rios — contei para a
minha prima.
— Ah, é?
— Pulei num rio lá em Nova York umas semanas atrás. Era muito
nojento. Tinha cocô humano boiando por todo lado. Talvez eu tenha até
engolido alguns.
— Não! — minha prima berrou e nós duas ríamos tanto que quase
gritávamos só de pensar naquela merda humana borbulhando enquanto eu
atravessava o rio nadando de peito. Não contei a ela que minha família
tinha tentado afundar nosso Oldsmobile vinho, que eu tinha sentido uma
espécie de medo que nunca tinha vivido antes, um medo de nunca mais
conseguir voltar, e que eu não sabia se era de não conseguir voltar para a
terra firme ou para os meus pais ou para a nossa casa ou alguma coisa pior
ainda, como se daquele momento em diante eu não pudesse mais voltar a
ser a pessoa que era. O que quer que fosse, senti que aquilo estava me
esmagando cada vez mais e que eu precisava nadar bem rápido para
escapar. Não contei nada disso para a minha prima e, pelo contrário, me
gabei de ter atravessado aquele mar de fezes apodrecidas e quase ter
chegado em Nova Jersey.
— Sua louquinha! Você ainda pensa que é um macaco mágico que
pode voar e fazer o impossível — minha prima disse, quase sem conseguir
pronunciar as palavras de tanto rir.
— Eu mesma. Macaquinha louca chegando na área. — Criei um
lembrete mental para reler minhas revistas antigas do Sun Wukong e assim
conseguir captar as referências da minha prima.
Mais tarde, antes de escovar os dentes, eu disse para a minha mãe:
— Na verdade não acho tão ruim aqui.
Ao que ela respondeu:
— Fico tão aliviada de ouvir isso, azedinha. Ah, você não imagina como
me faz feliz dizendo isso. Eu sabia que essa hora ia chegar.
Daquele momento em diante, eu e minha prima ficamos juntas todos os
minutos de todos os dias dos seis meses seguintes, até que minha mãe quis
me fazer uma surpresa e me ligou no meio da noite, toda empolgada:
— Azedinha, essa é a melhor notícia que eu vou dar na minha vida —
ela disse pelo telefone. — Seu pai, seu papai maravilhoso, finalmente
conseguiu.
— O quê? — eu disse, sem muito interesse. — O que ele fez agora?
E o que ele tinha feito era a nobre façanha de guardar dinheiro e
encontrar um apartamento decente em que poderíamos morar até que ele
guardasse mais dinheiro ainda para pagar uma casa mais decente ainda.
Ele finalmente tinha virado um herói. Tinha feito o que não conseguiu
fazer na noite em que pulei no rio Harlem. Finalmente tinha entendido
como cuidar da gente. Algum tempo depois, descobri que meus avós
tinham nos presenteado com cinco mil dólares tirados das próprias
economias porque meu pai não parava de escrever a eles implorando que
considerassem tomar alguma atitude que não me obrigasse a morar do
outro lado do mundo, ainda mais com outro bebê a caminho.
Da próxima vez que voltei a Xangai com meus pais e minha irmã bebê,
minha prima e eu tínhamos nos tornado estranhas novamente — me senti
tão íntima dela quanto um peixe se sente íntimo de um lago congelado, e
tentei me lembrar da sensação de dois verões antes, quando tínhamos
redescoberto uma a outra, e tentei me lembrar de que ela me salvou de um
afogamento e que por isso sempre seríamos próximas, mas não adiantou.
Minha prima e eu tínhamos começado a entender por que a nossa avó
chorava com tanta frequência e como havia tão poucas opções para superar
os ressurgimentos e desaparecimentos que continuaríamos fazendo na vida
uma da outra.
REUNIÃO Nº 5
— Você deu muita sorte, Emmy — eu disse para a minha irmã quando
ela mostrou seu novo apartamento no Brooklyn para mim e os nossos pais.
— Certo — ela disse, olhando para o celular. — Dei muuuuuita sorte
porque pago mil e trezentos dólares por mês para morar num armário de
luxo em Williamsburg.
— Não é — minha mãe fez uma pausa para escolher as palavras — o
que eu teria escolhido. Mas não sou você.
— Lembra daquele nosso apartamento em Williamsburg, mãe? — eu
perguntei.
— Vou lembrar daquele apartamento para sempre — ela disse. — Tinha
banheira!
— E aquele urso de pelúcia maior do que eu. Ficava abraçada com ele
todo dia depois da aula. — Fingi que ia chorar. — Porque não tinha
ninguém em casa para me abraçar, buáááá.
Meus pais deram risada.
— Era humilde igual a esse? — a Emily perguntou.
— Ah, parecia o palácio do rei — meu pai disse.
Tirei o celular da mão da Emily.
— Não, sua escrota, era dez mil vezes pior. Nosso apartamento inteiro
era do tamanho do seu quarto.
Ela agarrou o celular de volta.
— Vou fazer um snap.
— Sua irmã é azeda — minha mãe disse. — O apartamento era ótimo.
Um dos melhores da nossa vida.
— Deixa eu adivinhar — a Emily disse, tentando fazer um vídeo da
gente com o celular, mas eu e minha mãe cobrimos a cara na mesma hora.
— Vocês pagavam tipo quinhentos dólares de aluguel?
— Menos — meu pai disse.
— Menos?
— Menos.
— Sério, vou chorar se você disser quatrocentos.
— Acho que era mais ou menos cento e oitenta dólares por mês —
minha mãe disse.
— Como é possível? — a Emily disse. Eu também não sabia como nada
daquilo tinha sido possível. Uma coisa era ter sobrevivido àquela época,
outra era relembrá-la.
— Pagávamos menos ainda quando moramos em East Flatbush — meu
pai disse.
— Adoro que vocês moraram em todos esses lugares e nunca fizeram
amizade com nenhuma pessoa negra — a Emily disse.
— Como você pode ter tanta certeza? — eu disse.
— Usando meus olhos, que funcionam perfeitamente…?
— Vamos dar uma volta pela vizinhança — minha mãe sugeriu. — Eu
não vinha aqui há mais de dez anos.
Saímos de lá e passamos por um quiosque de suco natural, um café
fundado por surfistas australianos, um lounge especializado em coquetéis
feitos com absinto e um restaurante de culinária fusion que misturava tapas
e dim sum.
— Era assim que vocês lembravam do bairro? — a Emily perguntou.
— De jeito nenhum — meu pai disse. — A gente costumava tropeçar
em vários poloneses bêbados desmaiados no meio da rua e na galera porto-
riquenha que vendia droga na esquina.
— Você acha que todo latino é traficante, pai — a Emily disse.
— Acha mesmo — concordei.
Minha mãe foi andando na frente e virou na esquina com a Driggs.
— É aqui — ela disse. — Nosso apartamento ficava aqui. Continua no
mesmo lugar.
Alcançamos minha mãe e ficamos parados na frente de um prédio
capenga de três andares com um revestimento de verniz vermelho.
— Meu Deus, é meio fofo — a Emily disse. — É tipo Williamsburg top.
— Que merda a gente fez para conseguir esse apartamento? — eu
perguntei.
— O senhorio ficou com pena da gente.
— Porque a gente era… — fiquei procurando a palavra certa.
— Porque naquela época vocês eram muito esfarrapados? — a Emily
tentou adivinhar.
— A gente era bem esfarrapado — eu confirmei.
— Não — minha mãe disse. — Na verdade foi por causa de
Tiananmen.
— Quando fomos conhecer o lugar, o proprietário fez um interrogatório
sobre a nossa vida na China — meu pai disse. — Sua mãe não falou quase
nada.
— Meu inglês não era muito bom.
— O cara ficou falando coisas do tipo “tá com medo de falar? Tem
medo de ser rastreada pelo governo, não é isso? Acha que eles estão
ouvindo, não acha?”. Quando descobriu que éramos chineses, ele
começou a falar sussurrando.
Minha mãe deu risada.
— Ele pensou de verdade que éramos dissidentes ou alguma coisa do
tipo.
— E aquilo era idiota, porque, se fôssemos líderes do movimento
estudantil, como já teríamos chegado aos Estados Unidos, oras?
Tiananmen tinha sido só dois dias antes.
— Ele devia se achar uma espécie de defensor da democracia
americana. Ficava falando “vocês estão a salvo aqui, isso eu garanto”.
— Puta bobagem — meu pai disse. — O cara era o maior trambiqueiro.
— Caralho — a Emily disse. — Adoro quando desmascaram racista
enrustido.
Meu pai pareceu meio ofendido com essa ideia.
— Ele não era racista. Só extremamente ignorante.
— Seu pai tem talento para se beneficiar da ignorância das pessoas —
minha mãe acrescentou.
— Nossa — eu disse. — Não lembro de nada disso.
— Não sei, acho que ele tinha algum motivo para pensar que éramos
dissidentes. Tínhamos vindo direto da manifestação. Você ainda estava
com o cartaz que a sua mãe fez. Não queria devolver. Aí, de um jeito
irônico, esse timing nos beneficiou.
— A gente participou de um protesto? — Eu estava muito chocada.
— Você não lembra? — a Emily disse. — Tem um vídeo disso.
— Tem? Como é que você sabe disso?
— Eu assisti. A mamãe e o papai tinham cara de malucos.
— A Emily digitalizou os nossos vídeos e fotos velhas — minha mãe
explicou.
— Falei que eles precisavam sair do período paleolítico.
— Onde a gente arranjou uma filmadora?
— Ah — minha mãe sorriu. — Seu pai roubou.
— Eu não lembro mesmo disso.
— É, sua mãe tinha ficado brava comigo e eu fui de carro até uma loja,
pensando em comprar alguma coisa para ela, — Eu sabia que ele estava
querendo dizer “surrupiar alguma coisa”, mas não quis corrigir. — Tinha
acabado de estacionar e, sabe-se lá por quê, olhei para baixo e encontrei
um recibo no chão. Era de uma câmera bem bacana. Claro que entrei na
loja e achei o mesmo modelo e tentei devolver. Era muito dinheiro! Falei
para a mulher do serviço ao consumidor que tinham roubado meu cartão
de crédito e ela foi muito legal. Disse que não podia fazer a devolução
porque eu não tinha mais o cartão, mas eu podia trocar por outra coisa.
Não consegui pensar em outra coisa, aí peguei um modelo um pouco mais
porcaria e convenci a mulher a pagar a diferença em dinheiro.
— Claro que convenceu — minha mãe disse.
— Tá, isso já é demais pra mim — a Emily disse. — Eu volto para a loja
e devolvo se um atendente me dá troco a mais por engano.
Meu pai ficou horrorizado.
— Por que você faria isso?
— Esses lugares descontam do salário do funcionário se a conta não
bate. Sou uma cidadã consciente, pai.
— Só ficamos com a câmera por um ano, mais ou menos — minha mãe
disse.
— Tivemos que usar de garantia para comprar a passagem da sua mãe
para a China quando seu avô morreu.
— A filmagem é muito massa — a Emily disse. — Fiquei pensando em
usar num vídeo.
— Vai fazer um vídeo de um vídeo? — meu pai perguntou.
— É para a — dobrei meus dedos para fazer um gesto de aspas — “arte”
dela.
— A mamãe e o papai aparecem usando tiras brancas na cabeça com
uma espécie de sangue de mentira.
— A gente cortou uma camiseta velha do seu pai e amarrou na cabeça.
Acho que pintamos com canetinha vermelha para representar o sangue dos
estudantes assassinados.
— Você implorou para a sua mãe te deixar usar também, porque todos
os adultos usavam, mas sua mãe disse que não, que era muito mórbido.
— Eu não ia deixar minha filha usar um trapo com sangue na cabeça.
— Era simbólico — meu pai disse.
— Era vida real.
— Caramba — a Emily disse. — Vocês não deixavam barato.
Minha mãe voltou a andar.
— Vamos indo.
— Não querem tirar uma foto na frente do apartamento? — a Emily
perguntou.
Minha mãe balançou a cabeça.
— Não estou muito fotogênica hoje. — Andamos em silêncio por um
tempo, passando por outra loja de sucos e uma loja de queijos.
— E passei esse tempo todo pensando que a gente tinha dado sorte uma
vez na vida — eu finalmente disse.
— A gente deu sorte — meu pai disse. — A gente deu sorte de achar
uma pessoa ingênua que por algum motivo estava com a consciência
pesada e por isso aprovou nossa proposta mesmo sem crédito ou garantia.
Estávamos chegando na Sexta Norte e minha mãe parou na frente de
um brechó.
— Heping. Ainda existe.
— Vocês vinham aqui? — a Emily perguntou.
Minha mãe balançou a cabeça.
— O mundo dá voltas, mesmo — meu pai disse.
— Não sei se isso me dá total depressão ou total inspiração — a Emily
disse.
— Nem eu — eu disse, sentindo um pouco do que meus pais deviam
estar sentindo, velhos e inflados pela familiaridade do que um dia fomos.
REUNIÃO Nº 6
No dia em que o meu pai pediu demissão e prometeu que nunca mais ia
dar aula depois de descobrir que a escola ia ser fechada pelo Departamento
de Educação e todos os professores iam ser transferidos para distritos ainda
piores, ele voltou para casa com um mapa-múndi e uma lata de tachinhas
prateadas.
— Com tanta coisa que poderia ter trazido, você escolheu isso? —
minha mãe perguntou, levantando a cabeça enquanto picava legumes na
cozinha.
— Primeiro, prefiro ter minha sanidade de volta a qualquer objeto
material e, segundo, quero mostrar uma coisa importante para a nossa
azedinha. — Ele estendeu o mapa no chão e me chamou. — A mamãe
nasceu bem aqui. — Ele colocou uma tachinha perto de uma parte do
mapa que não tinha nome, perto do mar do Leste da China. — Ela se
mudou para Xangai aos três anos.
Eu entrei na brincadeira na hora.
— Igual eu, mas ao contrário.
— Exato. E aqui foi onde o seu avô, pai da mamãe, nasceu, e nessa
cidade aqui ele encontrou petróleo e começou o próprio negócio. Sua tia
mais velha foi chamada para trabalhar nesse vilarejo aos catorze anos e
acabou ficando dez anos lá. Sua tia do meio morou nessa ilha por alguns
anos. Ela tinha um trabalho que era considerado bom. A ilha ficava a só
meio dia de barco de Xangai, então eu a via mais vezes do que a sua tia
mais velha. Ela foi pra lá pra ajudar a construir moinhos, mas acabou
casando com o prefeito do vilarejo depois que a esposa dele morreu.
— Por isso ela é gorda daquele jeito — minha mãe acrescentou. —
Nunca precisou trabalhar.
— Sua tia mais nova ficou dois anos morando aqui.
— Na Rússia?
— Não, bem do lado da fronteira com a Sibéria. Ela era parteira. Odiava
o trabalho. Ela me contou que sempre vomitava antes, durante e depois.
Não tinha muita coisa para comer, então acabou destruindo seu estômago
e a garganta.
— Coitadinha — minha mãe disse. — Ela se recusou a casar quando
voltou. Rejeitou todos os caras que a gente tentava arranjar. Ela dizia que
não gostava de nenhum, mas eu acho que tinha ficado traumatizada e não
queria ter filhos.
— Pode ser — meu pai disse, colocando duas tachinhas numa ilha
comprida em forma de lagarto. — E a gente tem família até na Malásia,
aqui e aqui, e um tio distante no Paquistão. Fugiram durante a guerra civil.
— Fugiram como?
— Atravessaram as montanhas a pé.
— Escalaram as montanhas?
— Não era fácil. Era preciso ter muita resistência. Tinha gente que ia de
barco para Hong Kong se desse sorte. Os desesperados tentavam ir
nadando. Por falar em Hong Kong, sua mãe tem dois primos por lá.
— Nunca nem vi — minha mãe disse.
— Eles nadaram ou foram de barco? — perguntei.
— Acho que de barco — minha mãe respondeu.
— Foi bem aqui que o seu tio desembarcou — meu pai continuou.
— Atlanta?
— Atlanta, na Geórgia. Na China ele era um prodígio. Número um de
Xangai e número três do país na área dele.
Minha mãe se aproximou e ficou de pé ao nosso lado.
— A gente tinha tanto orgulho. Ele fazia parte da primeira geração de
estudantes. Era aprovado em tudo. As universidades brigavam por ele.
— É por isso que a casa dele é tão bonita?
— Pode ser — meu pai disse. — E foi ótimo, porque ele protocolou a
nossa petição do visto.
— A gente deu muita sorte — minha mãe disse. — Era difícil uma
petição feita por irmãos ser aprovada.
— E por que a gente não foi morar em Atlanta?
Minha mãe se levantou.
— Essa é uma história trágica — ela disse e voltou para a cozinha para
terminar o jantar.
— Ele conseguiu um emprego temporário em Nova York depois de se
formar — meu pai explicou. — Acho que se adaptou bem, mas aí a
primeira esposa dele bateu num caminhão na Canal Street no caminho
para o trabalho e morreu na hora. Ele conheceu sua tia Janet no ano em
que aprovaram nossos vistos. Ela ia começar a faculdade na UNC, então ele
se mudou para lá com ela.
— Não quero que ninguém bata num caminhão e morra — eu disse.
— Ninguém vai morrer, azedume — meu pai me confortou. — O papai
está aqui para cuidar disso.
— E se um carro atropelar você ou a mamãe?
— Não vai. Porque a gente sempre olha para os dois lados, não é
mesmo?
— Às vezes você sai andando sem olhar — eu disse, me jogando no colo
dele.
— Nunca mais vou fazer isso. O.k. Essa é a nossa última parada. Aqui
fica a cidade onde a sua avó nasceu e, bem aqui do lado, a que seu avô
nasceu. Minha mãe e meu pai. Foi aqui que tudo começou.
Voltei a me sentar e olhar o mapa.
— Um montão de lugares.
— Acho que chegou a hora de fazermos uma viagem de carro. O que
você acha, azeda?
— Pode ser amanhã?
Meu pai deu risada.
— Quem sabe, se a sua mãe concordar… Quer perguntar para ela?
Chamei a minha mãe e ela sentou com a gente para ver nossa obra.
— Não seria legal se em vez de tudo isso — e ela foi seguindo com os
dedos as tachinhas que tínhamos colocado em todos os lugares onde
tínhamos família —, em vez de ter que considerar o mundo inteiro, não
seria legal se isso tudo fosse nosso continente particular?
Meu pai refletiu e deu uma ideia melhor ainda.
— E se a gente pensar nesse mapa como uma planta da nossa futura
casa com um quintal bem grande e…
— Uma piscina! — eu sugeri.
— E uma piscina para a azedinha, claro — meu pai apoiou.
Minha mãe soltou um suspiro.
— Seria tão mais fácil.
Enxuguei uma lágrima do rosto dela.
— Que foi, mamãe?
— Tudo bem — ela disse, encostando a bochecha úmida na minha. —
Só sinto saudade da minha família. — Era chocante para mim que ela
chamasse de família outras pessoas que não fossem eu e o meu pai.
Meu pai tentou consolar minha mãe.
— A gente só precisa ficar rico e alugar uma casa enorme e mandar
buscar todo mundo de avião.
— Claro — ela disse, demonstrando uma raiva que tinha surgido de
repente. — Claro que isso vai acontecer. E aí a gente também pode
construir uma ala especial para quem quer que seja sua amante.
— Sem chance — eu disse imediatamente e comecei a embolar as
palavras. — Nada dessas putas. — Mas naquele momento meus pais só
ouviam um ao outro. Os dois foram para a cozinha e me deixaram sozinha
com o mapa por um tempo. Ficaram batendo boca, meu pai prometendo
que ia ficar rico e a minha mãe prometendo que ia ficar mais rica ainda
para não precisar depender das promessas absurdas dele, que nunca
passavam de mentiras. Meu pai continuou falando que ia tomar conta da
nossa família e perguntando por que ela nunca acreditava, e a minha mãe
continuou falando que só ia acreditar vendo, ou seja, ela acrescentou, só
quando estivesse morta, então, a não ser que fosse verdade que os
fantasmas vagam pela Terra, ela nunca ia ver ou acreditar em nada daquilo.
Depois de um bom tempo, eles finalmente voltaram da cozinha e me
falaram que a gente ia jantar no McDonald’s.
Quando estávamos colocando nossos sapatos, meu pai disse:
— Tá bem, lá vai uma promessa que eu sei que vou cumprir. Prometo
que, se o meu pai viver até os cem anos, vou reunir todo mundo para uma
festa inesquecível. Todas as pessoas da nossa família. Custe o que custar.
Vou fazer acontecer. E aí podemos ir satisfeitos para o túmulo. Que acha?
— Que ideia ridícula, Heping. Falei para você parar.
— A gente pode fazer as pazes? — eu disse, puxando a manga da jaqueta
da minha mãe. — Por favor?
— Tá bom — minha mãe cedeu. — Tá, vamos fazer as pazes.
Na manhã seguinte fui a primeira a acordar e vi que alguém tinha
pendurado nosso mapa na parede junto com todas as tachinhas e tinha
feito um círculo bem grande em volta de Nova York e escrito o número
2024 de caneta preta ali do lado.
Voltei para a cama e acordei os meus pais.
— O que é 2024? — Meu pai ainda estava com olhos fechados e a
minha mãe, aninhada no ombro dele. Eles tentaram me puxar para a
cama, mas não deixei. — Por que escreveram 2024 no mapa? — perguntei
de novo.
— Ah — meu pai disse, me puxando devagar, ainda meio dormindo. —
É o ano da nossa festa.
— Que ideia ridícula. — A postura da minha mãe não tinha mudado,
embora dessa vez eu jurasse que sua voz tinha um rastro de esperança.
— É um estímulo — meu pai disse, e era mesmo, e eu entendia, mesmo
depois de o nosso apartamento ter desabado e de termos sido obrigados a
viver um dia de cada vez, sempre preocupados com o dia seguinte, e
mesmo depois de termos vivido uma hora de cada vez, um minuto de cada
vez, eu ainda acreditava no meu pai, que insistia que sempre haveria
alguma coisa, qualquer coisa, que poderia nos estimular.
REUNIÃO Nº 7
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Título original
Sour Heart: Stories
Capa
Claudia Espínola de Carvalho
Ilustração de capa
Laura Montserrat
Preparação
Mell Brites
Revisão
Marise Leal
Renata Lopes Del Nero
ISBN 978-85-545-1227-9