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Batalha Jenipapo Berinjela

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Luis Otávio Vieira AURÉLIO, Bernardo; OLIVEIRA, Caio.

Graduando em História pela Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo.


Universidade de São Paulo (FFLCH/ Teresina: Núcleo de Quadrinhos do Piauí, 2009. 202p.
USP – São Paulo/Brasil)
e-mail: luis_vieira_mail@yahoo.com.br PESTANA, Maurício.
Dois de Julho: a Bahia na Independência do Brasil.
Salvador: FPC/SecultBa, 2013. 34p.

A Independência em quadrinhos: formas de se contar história(s)

A leitura em conjunto e a comparação entre as obras de Bernardo Aurélio e


Caio Oliveira e de Maurício Pestana levantam, de forma enfática, a questão
da adaptação da historiografia brasileira para uma linguagem ainda pouco
convencional na abordagem da história da Independência do Brasil: a das
Histórias em Quadrinhos. Ambas possuem propostas semelhantes, ou seja,
enaltecer, preservar e trazer à tona episódios de lutas locais ocorridos du-
rante o processo de Independência – o ‘Dois de Julho baiano’ e a piauiense
‘Batalha do Jenipapo’ –, com pouca afirmação no imaginário histórico
fora de seus estados de origem. Os governos dos dois estados figuram nas
duas produções, tendo a Secretaria da Cultura baiana publicado e editado
Dois de Julho: A Bahia na Independência do Brasil, e a Fundação Cultural
do Estado Piauí patrocinado Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo. Neste
último, inclusive, há um prefácio de Wellington Dias, governador do Piauí à
época do lançamento. No entanto, enquanto em Dois de Julho percebe-se a
intenção de uma leitura rápida e de extremo didatismo, Foices e Facões se
destaca como um trabalho mais denso e de liberdade autoral.
Esse tipo de adaptação não é algo novo. Da Colônia ao Império –
um Brasil para inglês ver (1983), de Lilia Schwarcz em parceria com o
cartunista Miguel Paiva, se tornou obra referencial neste campo. Mais
recentemente, Schwarcz voltou a explorar essa linguagem em D. João
carioca: a corte portuguesa chega ao Brasil (2008), em colaboração com
o ilustrador Spacca, e em História do Brasil em Quadrinhos: chegada da
Família Real – Dia do Fico – Independência (2008), roteirizada por Jota
Silvestre e Edson Rossato, e ilustrada por Laudo, a Independência foi
novamente quadrinizada. Evidente que propostas, formas e conteúdos
diferem bastante de uma obra acadêmica para um enredo de HQ. Este
último, geralmente, tende a enfocar essencialmente tramas e conflitos
entre personagens, situando o seu desenvolvimento em um tempo curto,
como o dos eventos. Uma narrativa dramatizada baseada em indivíduos.
Algo que na ciência histórica se assemelha a mais tradicional história po-
lítica em sua roupagem oitocentista. O rigor científico tende a ser muito
menor, havendo bastante liberdade criativa na construção de um enredo
funcional, compromisso primordial da HQ.
No entanto, essa linguagem, caracteristicamente mais artística e
ficcional, não deve ser tida como completamente descompassada e incon-
gruente com a produção acadêmica. É possível constatar, numa aparente-
mente descompromissada dramatização em quadrinhos, maneiras de expor
ou levar o leitor a intuir sobre questões atuais na historiografia, havendo
assim um potencial de divulgação considerável nesse tipo de adaptação.
Vale a pena, portanto, uma discussão acerca das soluções narrativas utili-

DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320130611
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zadas pelos autores para a adaptação de conteúdos mais frequentemente
trabalhados pela historiografia, neste caso, a Independência.
Em Dois de Julho, Maurício Pestana – jornalista e cartunista – desen-
volve sua obra em trinta e quatro páginas, o que sugere certa compactação
do conteúdo quando comparada com as mais de duzentas páginas de Foi-
ces e Facões, produzidas pelo roteirista – e também historiador – Bernardo
Aurélio e pelo desenhista Caio Oliveira. A solução narrativa apresentada
por Pestana consiste na utilização de uma personagem narradora, a garota
Hamalli, como interlocutora entre os eventos passados e o leitor. Dessa
maneira, existem duas linhas temporais distintas na obra: o presente, onde
a presença e voz de Hamalli norteiam e expõem os acontecimentos que
culminam no ‘Dois de Julho’ baiano, sobreposto ao passado mudo das ilus-
trações, que servem como acessório ao discurso da narradora. Em outras
palavras, um passado condensado por um discurso sintético do presente.
Não se trata de um recurso original, podendo ser identificado em
outros títulos, como, por exemplo, na obra de Silvestre e Rossato, acima
mencionada. O problema desse expediente é afastar o leitor da visão do
passado como um processo dinâmico, múltiplo em suas possibilidades e em
constante (re)construção. De fato, acaba por apresentar o objeto histórico
em quadros fixos e estáticos, cuja única função é ilustrar e confirmar o que
a personagem do presente, portanto, extemporânea ao passado histórico,
tem a dizer sobre ele.
Logo, na obra de Pestana, o passado é absolutamente imóvel, de-
terminado e obedece a um devir inevitável, encapsulado nesses quadros
estáticos, sem maior espaço para apresentar mais e diversas nuances de
si mesmo. A própria característica sequencial dos quadrinhos se torna
pouco efetiva, pois a única continuidade de ação é a da fala narradora, que
ambientada fora das ilustrações do passado histórico, deixam estas últimas
como uma espécie de fotografias colocadas em série, mas sem maiores
progressões de ação quadro a quadro. Configura-se, assim, um objeto his-
tórico mudo, apresentado em flashes fixos, paralisados, recortados de seu
contexto e mais aprisionados pelos enquadramentos do que se utilizando
deles para se desenvolver.
De maneira oposta, Aurélio e Oliveira aproveitam as duas centenas
de páginas para deixar a trama – o passado – , se construir por si, sem
a intervenção e tutela de uma linha temporal do presente. Não há uma
diretriz extemporânea para determinar o desenvolvimento da ação, sendo
sintomático como essa liberdade concedida ao passado, que se constrói
através de um roteiro mais denso, resulta em maior sofisticação tanto no
enredo quanto no conteúdo histórico exposto.
Foices e Facões, além de dar voz aos personagens – alguns históricos
outros ficcionais –, apresenta tramas que se desenvolvem concomitan-
temente, em diferentes núcleos, de forma semelhante a uma novela. Isso
permite, por exemplo, uma maior aproximação da ‘Batalha do Jenipapo’
com a mais conhecida progressão de eventos do centro-sul, cujo ápice é
tradicionalmente visto como sendo o grito de D. Pedro. Os dois eventos são
alinhados no início da história, dando uma ideia de complementaridade
entre eles. Ao contrário, a rigidez narrativa de Dois de Julho lida de maneira
mais conflituosa com os eventos mais próximos à Corte. Não há represen-
tação gráfica do grito, cujas menções diretas são reduzidas a passagens
textuais. “Um campo de batalha. Mortos, feridos e muita desolação. Bem
diferente da cena de um imperador gritando ‘Independência ou morte’...O

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cenário da guerra foi Salvador. Vésperas do 2 de julho de 1823, quando o
Brasil ficou, de fato, independente de Portugal” (p.5). Nota-se na passa-
gem a oposição entre as duas datas, como em uma disputa para determi-
nar qual é a mais exata ou significativa para demarcar a Independência
em perspectiva nacional. E não se torna forçoso extrair daí um ufanismo
regionalista, deslocando a primazia do cenário do Centro-Sul, mas apenas
para substituí-la pelo Nordeste. Se há na historiografia acadêmica obras
que privilegiam espacialmente os arredores da Corte, estabelecendo um elo
direto entre, por exemplo, a Inconfidência Mineira e o 7 de setembro, que
muitos historiadores das últimas décadas vêm evitado explicitamente, de
forma análoga aqui temos que, para Pestana,

Lembrar o 2 de julho, dia da Independência da Bahia, de fato, é trazer de volta a maior


vitória do povo brasileiro e pouco estudada fora da Bahia, mesmo sendo a data de
fato da Independência do Brasil, uma batalha vencida por negros, indígenas e brancos
que antes mesmo do início dos conflitos já tinham histórico de luta por liberdade. É só
analisarmos rebeliões de negros (escravos, libertos e livres), que em 1798, aliando-se
também a brancos liberais inspirados na Revolução Francesa, iniciaram em Salvador
uma luta por liberdade conhecida como a Revolta dos Búzios, reprimida violentamente.
Alguns anos depois, essa mesma população negra se juntaria a indígenas e brancos
com esses ideais libertários e se alistariam maciçamente no exército pacificador que
combateria os portugueses em solo baiano (p.6).

De forma mais sutil, Foices e Facões inicia com o convencional grito


em 1822, mas logo avança para o Piauí, em 1823, levando o leitor a intuir
que tanto a Batalha do Jenipapo quanto os acontecimentos em São Paulo
são duas eventuais cristas de uma mesma onda, ou processo. Há, desse
modo, uma aproximação com a historiografia da Independência mais atual,
pois, ao contrário de Dois de Julho – onde majoritariamente eventos são
listados um em seguida do outro, como se obedecessem a uma ordem
lógica –, a noção de um processo que se desenvolve para além da ação
individual e prenhe de possibilidades se faz presente.
Esse resultado só é possível, novamente, pela maleabilidade do
roteiro. Ao comportar subtramas, contendo diferentes núcleos de perso-
nagens de diversas origens e estratos sociais, o enredo de Foices e facões
tende a dimensionar um halo de ação que ultrapassa o indivíduo, perpas-
sando todas essas subtramas e inserindo-as num conflito numa perspectiva
mais conjuntural. A Independência não se torna uma ação sob a regência
de alguns personagens, mas pelo contrário, o soldado reinol, a família de
camponeses, o latifundiário, membros da elite favorável à Corte do Rio de
Janeiro, todos eles estão, em suas ações, em uma relação mais dialética
com esse processo. A Independência torna-se uma espécie de personagem
oculta, mas imprescindível, que se faz presente como a fonte e linha mes-
tra de todos os conflitos e ações dos indivíduos presentes na trama.
As duas obras simplificam, em determinados momentos e em maior
ou menor grau, o sentido dos confrontos que lhes dão os respectivos títulos,
apresentando-os como uma simples oposição entre portugueses e brasileiros,
sem maiores considerações acerca dessas duas categorias identitárias – mui-
to matizadas pela historiografia na última década – bem como da natureza
de suas origens. Nesse ponto, verifica-se em ambas as obras a reiteração
de um persistente lugar-comum que assume que, à época, os dois termos
estivessem profundamente consolidados, imunes a qualquer questionamento,
resultando, portanto, em identidades plenamente distintas. Sobretudo em

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Dois de Julho, o português não é apenas oposto ao brasileiro, mas frequente-
mente a outras identidades mais locais. Assim, lemos que “os cachoeiranos
venceram e aprisionaram os integrantes das escunas e todo o armamento
dos portugueses... É bom lembrar que em matéria de armamento, era brutal a
diferença entre brasileiros e portugueses” (p.13).
Em Foices e Facões, a excessiva dicotomização identitária também
se faz presente, sobretudo nos diálogos entre as personagens: “prende-
ram o padre lá na vila...prenderam ele porque era português. Vão acabar
prendendo o Januário por causa das besteira que ele anda dizendo” (p.95).
O mencionado personagem Januário é um caso em que as fronteiras entre
as duas identidades se tornam mais tênues. Trata-se de um latifundiário
estabelecido no Piauí, que apoia a manutenção do Reino Unido português
e, por conseguinte, os esforços do Major Fidié, governador geral designado
por D. João VI para uma campanha de consolidação do poder da Coroa
sobre a capitania. Ao leitor, ainda que isso não seja explícito no texto, ele
se encaixa como morador tradicional de Campo Maior, não podendo ser
chamado de português na conotação de ser um recém-chegado e estra-
nho à terra, apesar de sua origem além-mar. “Sou português, sou cidadão.
Quando me casei com você filha desta vila, tive filhos brasileiros. Exijo
proteção” (p.97). Algumas páginas antes, um membro da elite piauiense e
articulador da adesão da província a Corte do Rio de Janeiro diz:

Deixe-me lhe contar uma coisa Dr. Cândido: este navio acaba de chegar da
Inglaterra. Portugal quer a volta do pacto colonial...Meu pai, que era português,
me contou com satisfação dos acontecimentos de 1808, quando abriram os portos
para as nações amigas depois que a corte portuguesa chegou aqui. Já imaginou os
prejuízos desse retrocesso. (p.41)

Ainda que todas as passagens individualmente denotem que o “ser


português” provém essencialmente da origem europeia dos indivíduos –
concepção já desconstruída pela historiografia –, a leitura delas na sequ-
ência fragiliza essa ideia. O local de nascimento passa a dividir importância
com a orientação política e interesses no futuro incerto da união entre os
dois reinos. O pai português que defende a abertura dos portos e gera um
filho separatista contradiz a ideia de uma fidelidade ao território portu-
guês, supostamente inata aos nascidos na Europa. Por outro lado, um reinol
de nascimento, mas plenamente integrado no Piauí, vê-se dividido por
uma lógica dualista que suplanta seu pertencimento à província. Por fim,
o soldado Luis, português de nascimento, e inicialmente a serviço de Fidié,
encerra a história desertando e se estabelecendo junto a uma família de
camponeses em Campo Maior. Portanto, é possível ao leitor intuir que o
par identitário português/brasileiro não era, à época, estanque, e dependia
mais ou igualmente de uma opção política do que o local de nascimento;
também não se fazia presente em qualquer situação, mas era evocado,
sobretudo, por conjunturas específicas no interior do processo de Inde-
pendência, podendo ser agregado, entrar em confronto, ou simplesmente
coexistir com outras identidades.
Mais uma vez, essa diferença entre as duas obras perpassa a ma-
neira como seus roteiros são desenvolvidos. Em Dois de Julho, o passado
mais imobilizado pela voz de uma personagem do presente tende a não ser
mostrado como detentor de múltiplas possibilidades, mas apenas como o
que teria inevitavelmente ocorrido. E nesse escopo teleológico, a separação

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entre português e brasileiro cabe aparentemente sem maiores problemas.
No entanto, o roteiro de Foices e Facões, que permite a visualização de um
passado em construção, através da ótica e da relação entre diversos indi-
víduos, permite o questionamento dessa distinção de identidades, embora
não a sustente explicitamente.
Logo, não é necessariamente a linguagem dos quadrinhos um suporte
insuficiente ou contrário à transposição do conteúdo científico da histo-
riografia. O alcance e os limites da narrativa de uma HQ variam de acordo
com a inventividade do autor em sua capacidade, claro, de aproveitar ins-
pirações de conteúdos formais, neste caso, advindos da historiografia aca-
dêmica. Cabe a este relacionar as possibilidades de uma história desenvol-
vida através da progressão quadro a quadro com o tipo de conteúdo a ser
adaptado. No caso da historiografia, de maneira semelhante ao já citado
Da Colônia ao Imperio – um Brasil para inglês ver, Foices e Facões demonstra
ser possível apresentar conjunturas e processos através de um enredo am-
plo contendo diversas subtramas se desenvolvendo em um mesmo roteiro.
No entanto, a utilização do narrador fora do passado de que se fala, como
é notado em Dois de Julho, apresenta maior risco de um discurso teleoló-
gico. O esforço de fugir de uma transposição mecânica, explorar os limites
da composição de um roteiro, é fundamental para a descoberta de novas
maneiras de unir de modo mais eficaz HQs e historiografia.

Recebido para publicação em setembro de 2013


Aprovado em outubro de 2013

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