1 - Furyborn - Claire Legrand (Clates)
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Sumário
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Um Final e um Começo
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Elementos na Trilogia Empirium
Agradecimentos
Contracapa
Para Brittany, que conheceu Celdaria primeiro
Um Final e um Começo
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Na tarde seguinte, Eliana estava em uma varanda com vista para a forca.
Lorde Arkelion descansava no extremo leste da praça, o encosto alto do
trono talhado para se assemelhar a asas.
Eliana, observando-o, cruzou os braços sobre o peito. Mudou seu peso para
uma perna. Tentou ignorar a figura com o uniforme Invictus vermelho e preto
ao lado do trono de Sua Senhoria.
Dessa altura, Eliana não sabia dizer quem era, mas não importava. A mera
visão daquela silhueta familiar foi suficiente para revirar o estômago.
Invictus: uma companhia de assassinos que viajava pelo mundo e cumpria
as ordens do imperador. Os trabalhos mais perigosos, os trabalhos mais
sangrentos.
Era apenas uma questão de tempo antes que eles a recrutassem. Ela
imaginava isso diariamente, apenas para ver se a ideia iria parar de aterrorizá-
la.
Até agora, não tinha.
Provavelmente Rahzavel seria aquele que a procuraria. Eliana o viu em
várias festas de Sua Senhoria ao longo dos anos. Toda vez ele pedia uma
dança com ela. Toda vez, seu olhar acinzentado a desafiava a recusá-lo.
Ah, como ela desejou que pudesse.
— Uma caçadora de recompensas invencível — ele cantarolou no ouvido
dela durante a última dança juntos no verão anterior — Que curioso — ele
enfiou os dedos frios nos dela — Você será uma boa adição à nossa família
algum dia.
Quando Rahzavel a procurar, ele provavelmente nem a deixará se despedir
de seus entes queridos antes de escoltá-la para o além mar de Celdaria, o
coração do Império Imortal – e para o próprio imperador.
Bem-vinda, Eliana Ferracora, o imperador dizia em seus sonhos mais
terríveis, o sorriso dele não alcançando os olhos negros. Eu ouvi muito sobre
você.
E esse seria o fim da vida como ela conhecia agora. Ela se tornaria um dos
elites – um soldado de Invictus.
Ela se tornaria, como Rahzavel, uma nova espécie de monstro.
Hoje, no entanto, não era o dia.
Então Eliana observou, batendo os dedos contra o braço, desejando que
Sua Senhoria acabasse logo com isso. Ela estava com fome e cansada, e
Harkan estava fora de si de vergonha. E quanto mais eles ficavam lá, mais
desesperadamente ele esperava algo dela que ela não podia dar a ele:
Arrependimento.
O guarda do Império marchou com Quill e o filho mais velho até a forca.
Foi construído nas ruínas do templo de São Marzana, o reverenciado
firebrand do Velho Mundo – o mundo antes da morte da Rainha de Sangue
Rielle. Antes da ascensão do Império.
Os soldados do Império demoliram quase totalmente o templo quando
tomaram Orline. Uma vez, o templo havia sido uma grande variedade de
salões, salas de aula e santuários abobadados, abertos à brisa do rio, e pátios
envoltos em trepadeiras florescentes. Agora, restavam apenas alguns pilares
em ruínas. A estátua de São Marzana, de guarda na entrada do templo, havia
sido destruída. Uma semelhante do imperador agora estava lá – suas feições
mascaradas, seu corpo encoberto. Bandeiras douradas, preta e vermelhas
ladeavam a cabeça dele.
A praça embaixo dele estava lotada, mas silenciosa. Os cidadãos de Orline
estavam acostumados às execuções, mas Quill era popular em certos círculos,
e nem mesmo o senhorio dele abatia crianças.
Quando Eliana e Harkan lhe apresentaram as crianças capturadas, lorde
Arkelion sorriu gentilmente, inspecionou os dentes dos mais novos e os
mandou embora com uma de suas concubinas. As crianças procuraram pelo
irmão, chorando todo o caminho até a sala do trono até que alguém,
abençoadamente, fechou as portas.
Mas o filho mais velho não havia chorado. E ele não estava chorando
agora, nem mesmo enquanto observava o carrasco levantar a espada.
— O Império vai queimar!— gritou Quill, os cabelos grudados no couro
cabeludo com suor.
A espada caiu, a cabeça de Quill rolou. Uma onda de som inquietante
varreu a multidão.
Só então, com o rosto coberto de sangue fresco, o menino começou a
chorar.
— El — Harkan engasgou. Ele pegou a mão de Eliana na mão suada e
esfregou o polegar ao longo da palma da mão dela. Sua voz saiu desgastada.
Ele não dormiu.
Ela dormiu como se estivesse morta. Dormir era importante. Não se podia
caçar sem uma boa noite de sono.
— Não precisamos assistir — ela disse o mais pacientemente possível —
Nós podemos ir.
Ele soltou a mão dela: — Você pode ir se quiser. Eu tenho que assistir.
Lá estava novamente – o mesmo tom exausto, como um cão de olhos
tristes, resignado à sua próxima surra.
Para não gritar com ele, Eliana brincou com o pingente de ouro amassado
sob sua capa. Ela usava uma corrente em volta do pescoço todos os dias e
conhecia as linhas riscadas e desgastadas de cor: o arco do pescoço do
cavalo. Os intrincados detalhes de suas asas. A figura cavalgando sobre ela,
espada levantada, rosto enegrecido pelo tempo: Audric, o Portador da Luz.
Um dos reis mortos do Velho Mundo que seu irmão era obcecado por razões
que Eliana não conseguia entender. Seus pais disseram que haviam
encontrado a bugiganga na rua quando Eliana ainda era bebê e lhe deram para
acalmar o choro em uma noite sem dormir. Ela o usava desde que conseguia
se lembrar, embora não por amor ao Portador da Luz. Ela não se importava
com reis mortos.
Não, ela usava porque, em alguns dias, sentia que o peso familiar do colar
na garganta era a única coisa que a impedia de se despedaçar.
— Eu vou ficar — ela disse a Harkan levemente. Muito levemente?
Provavelmente — Eu tenho tempo.
Ele nem a repreendeu. O carrasco levantou a espada. No último momento,
a criança levantou a mão em uma saudação – um punho no coração e depois
ergueu o ar. O sinal de lealdade à rebelião, à Coroa Vermelha. Seu braço
tremia, mas ele encarava o sol com olhos sem piscar.
Ele começou a recitar a oração da Rainha do Sol: — Que a luz da rainha
me guie…
A espada caiu.
As lágrimas de Eliana a surpreenderam. Ela piscou para longe antes que
eles pudessem cair. Harkan cobriu a boca com uma mão.
— Deus nos ajude — ele sussurrou — El, o que estamos fazendo?
Ela agarrou a mão dele e o fez encará-la.
— Sobrevivendo — ela disse a ele — E isso não é nada para se
envergonhar — Ela engoliu em seco e engoliu novamente. Sua mandíbula
doía. Fingir tédio era um trabalho árduo, mas a guerra também. E se ela
desmoronasse, Harkan desmoronaria ainda mais rápido.
O Lorde de Orline levantou uma mão.
Os cidadãos que lotavam a praça abaixo entoavam as palavras que
circulavam constantemente pela mente de Eliana como pássaros carniceiros:
— Glória ao Império. Glória ao Império. Glória ao Império.
3
Rielle
“Após a queda das Sunderlands, os Sete retornaram
ao continente e ainda não puderam descansar. Seu
povo estava em guerra há décadas e almejavam um
lugar seguro para chamar de lar. Então, os santos
começaram na terra natal de Katell e usaram seu
poder para esculpir um paraíso nas montanhas
alpinas. Abrigado por altos picos, verdejantes com
florestas e terras agrícolas, este paraíso foi
nomeado me de la Terre e se tornou a capital da
Celdaria. Eles construíram a cidade da rainha no
sopé da montanha mais alta e a cercaram com um
lago de cristal que parecia ser esculpido no céu
mais claro.”
—— Uma História Resumida da Segunda Era, Volume I: As
Consequências das Guerras Angélicas de Daniel Riveret e Jeannette
d'Archambeau, da Primeira Guilda de Eruditos.
A linha de partida estava um caos.
Alguns cavaleiros competiam em nome dos templos da Igreja. Os do Pyre,
o templo de Tal, usavam escarlate e ouro. Preto e azul escuro para a Casa da
Noite, o templo dos shadowcasters e da irmã de Tal, Sloane. Ocre e verde-
claro para o Holdfast, o templo dos earthshakers.
As grandes casas Celdarianas também enviaram representantes. Rielle
passou cavaleiros de lilás e sálvia representando a Casa Riveret, marrom
russet e prata para a Casa Sauvillier. Os cavaleiros até viajaram dos distantes
reinos de Ventera e Astavar, que se estendiam pelo Grande Oceano.
Muitos cavaleiros, como Rielle, foram contratados por comerciantes
ansiosos pela bolsa vencedora. Todavia, nenhum deles fosse tão rico quanto
seu patrocinador, Odo Laroche.
E nenhum dos outros cavaleiros teve o privilégio de treinar com os
melhores cavaleiros do rei, desde que tinham idade suficiente para sentar em
uma sela.
Sorrindo, Rielle guiou sua égua sob o labirinto de camarotes de
espectadores. Seus ouvidos ecoaram pelo barulho – jogadores gritando suas
apostas, crianças correndo pela multidão e gritando de alegria. – A fumaça
das barracas de vendedores do mercado que vendiam sanduíches de carne de
porco assada e espetos de aves enegrecidas ardeu seus olhos.
Ela finalmente chegou à tenda reservada aos cavaleiros de Odo. O vestido
que ela usava era o seu favorito – verde floresta para combinar com seus
olhos, videiras iridescentes costuradas na bainha, um decote que mostrava
suas clavículas – mas o sol do meio-dia a fazia sentir vontade de rasgá-lo.
Deixando o cavalo com as espadas guardando a porta, ela entrou para trocar
de roupa.
E congelou.
Audric já estava lá, vestindo apenas calças e botas de montaria. A fina
túnica esmeralda e o casaco bordado pendiam ordenadamente das costas de
uma cadeira. Em suas mãos ele segurava uma camisa de linho simples.
Ele sorriu para ela: — Chegou na hora — disse ele e jogou uma camisa
para ela.
Ela pegou, por pouco: — A multidão é maior do que eu esperava — disse
ela, embora sua garganta tivesse ficado repentinamente seca e a surpreendeu
que ela conseguiu entender uma palavra.
Fazia muito tempo desde que ela via o príncipe de seu reino tão despido.
Crescer juntos, isso não significaria nada. Ela passara horas brincando com
ele e Ludivine nos jardins atrás do castelo. Nadaram juntos no lago que
cercava a cidade, adoraram juntos no Baths.
Mas isso foi antes.
Antes do noivado de Audric e Ludivine, um acordo que unia ainda mais as
casas Courverie e Sauvillier. Antes que Audric se transformasse de seu amigo
tímido, desajeitado e estranho em príncipe Audric, o Portador da Luz, o mais
poderoso sunspinner em séculos.
Antes de Rielle perceber que amava Audric. E que ele nunca seria dela.
Ela absorveu a visão dele – os músculos magros de seus braços, seu peito
largo, sua cintura estreita. A pele dele não era tão escura quanto a de seu pai,
nem tão pálida quanto a da mãe, a rainha. Cachos castanhos escuros, úmidos
pelo calor, emolduravam frouxamente o rosto. A luz solar manchada pela
rede da tenda caiu através sobre sua pele e o pintou radiante.
Quando ele olhou para ela, ela corou com o calor do seu olhar: — Lu está
bem, certo? — ele perguntou.
— E aproveitando a atenção, tenho certeza. E a sua mãe?
— Eu disse a ela que cuidaria de Lu e que ela deveria relaxar e aproveitar a
corrida — ele balançou a cabeça com tristeza — Ela acha que eu sou um
filho obediente…
— E, em vez disso, você está escapando para arriscar a vida e os membros
— Rielle lançou-lhe um sorriso malicioso — Sua mentira foi uma gentileza.
Ela ficaria nervosa se soubesse onde você realmente está.
Audric riu: — Minha mãe pode lidar com o medo de vez em quando. Caso
contrário, ela fica entediada e, quando fica entediada, começa a se intrometer
e, quando se intromete, começa a incomodar Lu e eu.
Sobre quando vamos nos casar. As palavras não ditas pairaram no ar, e
Rielle não podia mais olhar para ele.
Ela passou por trás da cortina que Odo havia providenciado, desabotoou o
vestido e saiu dele. Usando apenas sua roupa de baixo, ela pegou as calças
que Audric jogou para ela.
— Se eu não conhecesse você — disse ela, mantendo a voz leve — Eu
diria que você está um pouco rebelde. E eu que pensei que você não fosse do
tipo que quebra regras.
Ele riu de novo: — Você faz isso comigo.
Esta foi, ela começou a perceber, uma péssima idéia. Ela deveria ter pedido
a Odo uma tenda separada. Despir-se a um metro e meio de Audric era o tipo
de loucura deliciosa para a qual ela nunca poderia ter se preparado.
Deus a ajude, ela podia ouvir o tecido de sua túnica deslizando contra seu
torso. Ela quase podia sentir, como se ele estivesse ao lado dela, tirando o
vestido por cima da cabeça, libertando-a da última barreira que restava entre
eles.
Enquanto tentava se mexer em sua própria túnica preta, amaldiçoando a si
mesma e sua imaginação inútil, ela enfiou o braço na pesada gola bordada.
— Rielle? — veio a voz de Audric — Depressa, eles começaram a
anunciar os cavaleiros.
Droga droga droga. Rielle torceu e se contorceu, puxando sua blusa.
Do outro lado da tela, a aba da barraca se abriu. — A corrida está
começando e parece que meus dois corredores não estão em lugar nenhum —
veio a voz de barítono suave de Odo, com apenas um toque de irritação —
Preciso lembrá-los de que estou apostando um pouco de moeda em ambos,
além da minha própria cabeça, caso algum de vocês seja estúpido o suficiente
para ser descoberto? Ou pior, quebrar o pescoço?
— Estaremos lá — Rielle falou. — Eu já lhe dei motivos para duvidar de
mim?
— Em várias ocasiões, na verdade — respondeu Odo. Houve uma pausa —
Devo enumerá-las para você?
— Um momento, por favor, Odo — disse Audric, riso em sua voz.
A aba da barraca se fechou.
— Posso entrar ai? — Audric perguntou.
— Sim, mas… oh, espere — com um puxão violento, Rielle conseguiu se
libertar. Ela puxou a túnica, mexendo nas fitas douradas no decote — Sim,
tudo bem, estou decente.
Audric rodeou a tela, sua jaqueta de couro e boné na mão: — Será que
estamos prestes a entrar nesta corrida com risco de vida, e você é a
atrapalhada?
— Não importa que você tenha tentado evitar isso uma dúzia de vezes —
Rielle arrancou o boné da mão dele — Não importa que você não tenha
quebrado uma única regra em sua vida até agora.
— Mas esse é um desafio inaugural e tanto, você não concorda? — ele se
aproximou para ajudá-la a prender o fecho da túnica entre os ombros. Os
dedos dele roçaram a nuca dela — Quero dizer, eu poderia ter começado
minha série de rebeldia com algo simples. Chegar atrasado à corte da manhã,
pular minhas orações, dormir com uma criada…
Ela começou a rir. Parecia mais estridente do que ela gostaria: — Você?
Levar uma criada para a cama? Você não sabe nada sobre cortejar uma
mulher.
— É o que você acha.
— Eu não acredito nisso.
— Eu sou um caso perdido para você?
— Para começar, você deve deixar seus livros de lado de vez em quando.
— Lady Rielle — ele diz com a voz provocante — Você está se
oferecendo para me educar na arte de seduzir uma mulher?
Um silêncio terrível caiu. Rielle sentiu Audric tenso atrás dela. Um rubor
subiu por suas bochechas. Por que ela se deixou levar por essa, de todas as
conversas? Ela não sabia nada sobre namorar alguém.
O pai dela se certificou disso.
Uma vez, aos treze anos, Rielle chegou em casa depois de assistir Audric,
de quinze anos, praticar luta de espadas no quintal do quartel, se sentindo
tensa e pronta para sair de sua própria pele.
O pai dela e seus tenentes haviam conduzido Audric através de muitos
exercícios naquele dia. Magister Guillory estava sentado perto, oferecendo
conselhos sempre que quisesse. Como Grã-Magister da Casa da Luz, a velha
feroz supervisionou os estudos de sunspinner de Audric durante anos. Ela e o
pai de Rielle ajudaram Audric a concentrar o chamado, às vezes esmagador,
de seu poder, no trabalho físico e confiável de lutar com uma espada.
Rielle assistiu a muitos treinos de Audric, mas esse em particular tinha sido
diferente. Ela não foi capaz de tirá-lo da cabeça depois – como ele se movia à
luz da tarde, todos os movimentos firmes e seguros, a testa franzida em
concentração enquanto sua espada espalhava raios de sol sobre a pele dele.
Ela trazia para o pai a bebida habitual dele depois do jantar naquela noite, e
ficou tão abalada que deixou cair a xícara.
O pai dela levantou uma sobrancelha: — Você não está sendo você mesma
esta noite.
Ela não disse nada, sem saber como responder.
— Eu notei você no quintal hoje — ele observou suavemente — Você tem
aparecido com frequência ultimamente.
Rielle se agachou para limpar a bagunça, seus cabelos escondendo seu
rosto quente.
Então seu pai a colocou de pé, um aperto forte o suficiente para machucar
seu pulso.
— Eu sei o que você está pensando — ele disse a ela — E eu proíbo você.
Você pode perder o controle um dia e machucá-lo. Ele tem um dom raro,
você entende? O maior poder que alguém tão jovem já teve. É importante que
o reino veja que ele é o mestre, não o contrário. A última coisa que Audric
precisa é de alguém como você pairando sobre.
Os olhos de Rielle se encheram de lágrimas: — Alguém como eu?
O pai dela a libertou, impassível: — Uma assassina.
Lorde Comandante Dardenne não permitiu que a filha participasse dos
treinos de Audric depois disso.
Agora, aos dezoito anos, Rielle não tinha beijado uma alma, nem chegado
perto disso. Certamente ela tinha imaginado isso, e com frequência. Ela sabia
que era linda – se não no sentido convencional, então da maneira que pelo
menos fazia as pessoas olharem, e olharem de verdade. Impressionante era a
palavra que Ludivine costumava usar. Ou arrebatadora.
O pai dela apenas comentou uma vez a aparência dela: — Você tem o rosto
de uma mentirosa. Eu posso ver todas as maquinações do mundo em seus
olhos.
No entanto, Rielle cultivou essa beleza da maneira que pôde, vestindo as
roupas mais diferentes que conseguia – ousada e com vergonha de revelar,
criada com tecidos exóticos que Ludivine secretamente encomendou para ela
e que a fizeram se destacar na corte como um pavão entre pombos. Toda vez
que ousava se mostrar com uma roupa assim, sentia olhares famintos e sentia
sua própria fome secreta subir dentro de sua barriga, quente e ansiosa.
Mas, mesmo assim, as palavras de seu pai pairavam sobre seu pescoço
como um jugo de espinhos, e ela reprimia todo instinto voraz que possuía.
Além disso, ela não queria ninguém, não o suficiente para correr o risco.
Então, ela se manteve distante, suas frustrações se manifestando em sonhos
escorregadios e frenéticos, as vezes de Audric, as vezes de Ludivine ou Tal –
mas principalmente de Audric. Nessas noites, quando Audric dos sonhos a
puxava para a cama dele, ela acordava e encontrava os espelhos em seu
quarto rachados, velas já apagadas recém acesas e cintilantes.
O pai dela não estava errado. Havia um perigo para ela, uma
imprevisibilidade. Ela não levaria isso para a cama de outra pessoa.
Especialmente alguém que havia sido prometido a sua amiga.
Rielle cometeu o erro de olhar para Audric por cima do ombro, e seu olhar
sombrio se fixou no dela por um breve momento antes de ambos desviarem o
olhar.
— Nós deveríamos ir — disse ela. Ela pegou a jaqueta das mãos dele,
enrolou os cabelos no boné e saiu para montar no cavalo. Ela envolveu o véu
do boné em volta do pescoço e do rosto, enfiou a ponta do colar no colarinho.
Quando Audric se juntou a ela, vestindo seus próprios revestimentos de
proteção, eles não falaram, e ela ficou feliz.
Esta corrida não seria gentil com ela se ela permanecesse distraída.
•••
•••
Naquela noite, ela voltou para casa ao entardecer para preparar o jantar.
— Mamãe querida! — Ela deu um beijo na bochecha de sua mãe.
— O que aconteceu hoje? — perguntou Rozen Ferracora. Ela estava
sentada à mesa, partes de seu último trabalho de reparos espalhados pela
madeira gasta. Porcas e parafusos. Pregos e facas — Eu ouvi sobre o garoto –
e Quill.
— Ah, é mesmo? — Eliana deu de ombros e começou a cortar cenouras.
Ela sentiu os olhos de sua mãe nela e começou a cortar mais rápido — Bem.
O que você espera? Outro dia de shows no glorioso reino de Ventera.
Mais tarde, Remy entrou e sentou à mesa, assistindo Eliana preparar o
jantar – um pedaço de pão fresco, ensopado de legumes, um pedaço de queijo
duro – tudo de alta qualidade, comprado no Garden Quarter.
Eliana nunca esteve tão consciente de sua adorável casinha, seu estoque de
comida, a relativa segurança de seu bairro.
Tudo isso foi comprado com o sangue nas mãos dela
Ela encheu a tigela da mãe e a colocou diante dela com um floreio.
Remy quebrou o silêncio, sua voz trêmula. Seus olhos azuis brilhavam com
lágrimas não derramadas: — Você é uma covarde.
Eliana esperava isso. Ainda assim, o criticismo em sua voz foi um soco no
estômago. Ela quase deixou cair o prato.
Rozen assobiou para ele: — Pare com isso, Remy.
— Ouvi dizer que uma criança foi executada hoje e esse rebelde, Quill. O
que contrabandeava pessoas para fora da cidade. A garganta de Eliana se
apertou dolorosamente. Ela nunca tinha visto essa expressão no rosto de
Remy. Como se ele não a reconhecesse – e não quisesse.
Com gosto, ela mordeu um pedaço de pão: — Tudo verdade!
— Você fez isso — ele sussurrou.
— Fiz o que?
— Você os matou.
Ela engoliu em seco, deu um gole na água e limpou a boca: — Como eu
disse antes, minha covardia nos mantém aquecidos, alimentados e vivos.
Então, querido irmão, a menos que você prefira morrer de fome…
Remy empurrou o prato para longe: — Eu te odeio.
Rozen se sentou rígida em sua cadeira: — Não. Não diga isso.
— Deixa ele me odiar — Eliana olhou para Remy e depois rapidamente se
afastou. Ele estava olhando direto para o buraco macio dentro dela, o lugar
oco que ela não deixava ninguém além dele ver. Ardia por causa da ferida
que as palavras dele causaram — Se isso o ajuda a dormir à noite, ele pode
me odiar até o fim de seus dias.
Os olhos de Remy voaram para o pescoço dela, onde a corrente do colar
era visível. A expressão dele escureceu.
— Você usa o Rei Audric, o Portador da Luz, no pescoço, mas não merece
— O olhar dele voltou para o rosto dela — Ele teria vergonha de você se a
Rainha de Sangue não o tivesse matado. Ele teria vergonha de alguém que
ajuda o Império.
— Se a Rainha de Sangue não o tivesse matado — Eliana disse
calmamente — Então não importaria, importaria? Talvez o Império nunca
tivesse ascendido. Talvez todos nós vivêssemos em um mundo cheio de
cavalos mágicos e voadores e belos castelos construídos pelos próprios
santos.
Ela apertou as mãos, olhou o irmão com paciência exagerada: — Mas a
rainha Rielle o matou. E aqui estamos nós. E uso a imagem dele no meu
pescoço para me lembrar de que não vivemos nesse mundo. Vivemos em um
mundo onde bons reis morrem e aqueles tolos o suficiente para esperar por
algo melhor são mortos.
Ela ignorou os dois depois disso e devorou o ensopado em silêncio.
•••
Sua mãe a encontrou mais tarde naquela noite, quando Eliana estava
limpando as lâminas no quarto.
— Eliana — disse Rozen, ofegando um pouco — Você deveria descansar
— Mesmo com a prótese de perna, ela precisou de algum esforço para subir
sem ajuda. Ela se apoiou com força na bengala.
— Mãe, o que você está fazendo? — Eliana se levantou, ajudou a mãe a se
sentar. Suas adagas e granadas de fumaça caíam no chão, uma tapeçaria da
morte — Você é quem deveria estar descansando.
Rozen ficou olhando o chão por um longo momento. Então seu rosto se
enrugou e ela se virou no ombro de Eliana.
— Eu odeio ver você assim — ela sussurrou — Me desculpe por isso. Me
desculpe, eu te ensinei… Me desculpe por tudo.
Eliana a segurou, acariciando seu cabelo escuro emaranhado. Ela ouviu
Rozen sussurrar desculpas demais para contar.
— Desculpar pelo quê? — Eliana disse finalmente — Aquele avô que te
ensinou a matar? Que você me ensinou?
Rozen segurou a bochecha de Eliana com uma mão desgastada e procurou
seu rosto com olhos molhados que lembraram Eliana de Remy – curiosa,
incansável: — Você me diria se precisasse descansar? Podemos pedir tempo
a lorde Arkelion…
— Tempo para que? Assar biscoitos e pintar as paredes de uma cor clara?
— Eliana sorriu e apertou a mão da mãe — Eu não saberia o que fazer
comigo mesma.
A boca de Rozen afinou: — Eliana, não brinque comigo. Eu posso ver
através desse seu sorriso. Eu te ensinei.
— Então não se desculpe por me ensinar como nos manter vivos, certo?
Estou bem.
Eliana se levantou, espreguiçou e depois ajudou Rozen a ir para sua própria
cama. Ela fez uma xícara de chá, beijou a bochecha dela, ajudou a soltar a
perna para passar a noite – um aparelho de madeira finamente trabalhado que
custara a Eliana o salário de dois empregos.
Duas execuções. Duas almas abatidas.
Quando Eliana voltou para o quarto, encontrou Remy esperando por ela,
abraçando os joelhos no peito.
Ela se arrastou na cama ao lado dele, lutando para respirar através de um
aperto repentino no peito. A dor caiu sobre ela em ondas. Com os olhos
secos, ela as deixou arrastá-la para baixo.
Remy disse calmamente: — Eu não te odeio — e permitiu que ela o
abraçasse. Ela fechou os olhos e tentou se concentrar apenas nele – os aromas
gêmeos da farinha nas roupas dele e da tinta nas mãos. O som de sua voz
cantando “A Song for the Golden King”, era a canção de ninar favorita de
Eliana quando criança – um lamento por Audric, o Portador da Luz.
Remy’s As mãos pequenas de Remy acariciaram os cabelos de Eliana. Ela
poderia esmagá-lo se quisesse. E, no entanto, se dada a chance, seu
minúsculo irmão enfrentaria o Imperador. Mesmo que isso o matasse.
E eu tenho a força de um guerreira, ela pensou, mas o coração de uma
covarde.
Uma piada cruel. O mundo estava cheio delas.
— Eu não aguento mais — ela sussurrou, sua voz abafada contra a camisa
de Remy.
— Não aguenta o quê? — Remy perguntou calmamente.
— Você sabe o que.
Ele não disse nada. Ele faria ela dizer.
Ela suspirou: — Matar, caçar pessoas. Ser boa nisso.
— Você gosta de ser boa nisso — Remy ressaltou.
Ela não discutiu: — Está ficando pior lá fora. E ainda não tenho respostas.
— As mulheres desaparecidas?
— Quem as está levando? E para onde? E por quê? — Os dedos dela se
enroscaram nos pulsos dele. Ela imaginou puxá-lo para o mundo escuro e
seguro debaixo da cama e nunca deixá-lo sair.
— Você tem medo que possamos ser os próximos — disse ele.
— Receio que possamos ser. Qualquer um poderia ser.
— Você está certa — Remy deitou ao lado dela, com os olhos fechados —
Mas tudo o que importa agora é que você está aqui, e eu também.
Eliana levou as mãos dele ao coração dela e deixou que ele cantasse para
ela até que ela entrasse em um sono profundo.
•••
20.000 em ouro
Rielle viu os sete árbitros falsos se virando para Audric, suas espadas
brilhando. Homens de Borsvall.
Outros cavaleiros se afastaram do caminho enquanto continuavam pelo
desfiladeiro, olhos fixos no percurso e no prêmio esperando no final.
Audric olhou por cima do ombro, os soldados inimigos formando um V
atrás dele. Um deles carregava uma espada que puxava longas espirais de
escuridão do ar – um shadowcaster, lançando trevas à sua frente e cegando
Audric.
Rielle viu essas coisas, e não viu nenhuma delas.
Havia apenas Audric. Não importava o noivado, não importava Ludivine e
que se dane toda a corte real.
Ele era dela e esses homens queriam matá-lo.
Uma raiva afiada cresceu dentro dela.
Como eles ousavam?
Ela estalou as rédeas de Maliya e soltou um grito agudo. A égua a levou
correndo até eles.
Não tinha como Audric derrotar todos eles, não desarmado – e Rielle sabia
que ele estava desarmado hoje. Quando ela sugeriu que ele mantivesse pelo
menos seus receptáculos secundários e menos poderosos escondidos com ele,
ele protestou. Armas são contra as regras, Rielle. Até minhas adagas. Você
sabe disso.
Se ele tivesse Illumenor, sua espada, não haveria dúvida. Mas Audric não
conseguiria conjurar a luz do sol sem seus receptáculo. Nem os santos eram
capazes de fazer isso.
Ninguém podia, Rielle sabia, além dela.
Em um instante, anos de lições aprendendo a reprimir todos os instintos
que ela possuía desapareceram. Uma porta fechada e trancada em seu coração
se abriu.
Ela estendeu a mão como se pudesse parar os assassinos apenas com sua
fúria. Uma explosão de calor inundou seu corpo. As pontas dos dedos dela
eram dez pontos de fogo.
Chamas irromperam em ambos os lados dela, disparando em direção ao
desfiladeiro em dois caminhos ardentes.
O mundo tremeu. Um assobio quente rasgou o ar em dois. Torrões de terra
voaram. Maliya tremeu embaixo dela, soltou um grito estridente. Rielle mal
conseguia se sentar.
Ela ouviu um grito de pânico e olhou para trás por onde tinha vindo. A
terra enegrecida atrás dela parecia ter sido aberta por garras monstruosas.
Outros corredores estavam trazendo os cavalos para baixo, afastando-os do
chão trincado.
Abaixo de Rielle, os lados de Maliya se estremeceram. Ela estava forçando
muito a égua. Elas não deviam estar correndo tão rápido.
Mas Rielle se recusou a parar.
Ali, na frente dela – os assassinos de Borsvall. Eles estavam entrando no
desfiladeiro e voltando pelas montanhas para a cidade, tentando interceptar
Audric antes que ele pudesse chegar lá. Enormes pedregulhos rolavam pelas
montanhas em ambos os lados do desfiladeiro e colidiam uns com os outros,
lançando terra e pedras. Os outros corredores tentaram desviar dos
escombros, apenas alguns conseguiram. Vários corpos caíram e não se
levantaram novamente.
Rielle considerou parar para ajudar o mais próximo, mas depois viu a lança
de um assassino brilhar, lançando nós pegajosos de fogo em Audric. Um
firebrand. As chamas grudavam na capa e nas botas de Audric. Ele abaixou
quando uma rajada de fogo passou sobre a cabeça dele e virou o cavalo para a
direita. O ar ao seu redor brilhava e estalava. Seu poder de sunspinner, estaria
ansioso para entrar em erupção?
Rielle chutou Maliya com força. Rápido, mais rápido.
Se alguma coisa acontecesse com ele, se ele morresse antes que ela pudesse
lhe dizer...
O chão se abriu em ambos os lados dela. Chamas frescas saíram da terra no
lugar que ela rasgou, explodindo calor em seu rosto. Rochas voaram, uma
bateu no ombro de outro cavaleiro enquanto ele lutava para sair do caminho
dela, e ele caiu.
A culpa a atingiu, mas Maliya gritou, desorientada. Algo estava errado. Sua
marcha era irregular.
Rielle escorregou, quase caindo. Ela se puxou de volta, com força, e inalou
um bocado de fumaça.
Maliya fez outro som terrível. Ela estava bufando. As pernas de Rielle
estavam queimando. Tudo estava muito quente.
Mais a frente, Audric tinha conseguido passar.
Rielle empurrou Maliya com mais força, e elas seguiram Audric. O ar
estava cheio de fumaça, chamas, o rugido da rocha caindo. A euforia
vertiginosa do poder que varria o corpo de Rielle era tão avassaladora que ela
mal conseguia ficar na sela, pensar, respirar.
E algo, muito próximo dela, estava queimando.
Além dos assassinos, um flash de cor, o grito de um homem: Audric, fora
do alcance de seus agressores, incentivando seu cavalo mais rápido. Mas os
homens de Borsvall estavam quase em cima dele.
Rielle lambeu os lábios, tinham gosto de suor.
Ela não trouxe nenhuma arma. Por que ela não trouxe nenhuma arma?
O cavaleiro de Borsvall mais próximo dela se virou na sela e gritou de
horror. Ele jogou o machado no ar e o empurrou de volta. O cavalo de Rielle
avançou sob ela, soltou um grito agudo e tropeçou. O homem era um
metalmaster; seu poder voou de seu corpo através do receptáculo e sacudiu
Maliya para a esquerda, direita e esquerda novamente. Um cheiro metálico
azedo no ar fez Rielle querer vomitar. Ela estendeu a mão no ar e jogou tudo
o que sentiu nele.
Calor rasgou através dela, da barriga para os dedos. Um nó branco
escaldante voou na direção do cavaleiro de Borsvall e o envolveu em
dourado. Por um momento ele se assustou, delineado em luz. Então em outro
ele se contorcia no chão, seu machado se dissolvendo em cinzas a seu lado.
Rielle passou por ele. Ela engasgou com o cheiro dele, com a visão da
bagunça carbonizada que já fora um corpo.
Assim como a mãe dela.
Eles estavam em casa naquele dia, cercados por velas. Uma oração da
noite, uma discussão tola – e uma explosão.
Rielle olhou para as mãos. Suas luvas de equitação foram chamuscadas,
manchas de sangue escorriam pelas palmas das mãos dela. Ela virou uma
mão para a esquerda, para a direita. Um brilho de ouro branco piscou logo
abaixo de sua pele, depois desapareceu.
Luz solar.
Magister Guillory não teria orgulho dela? Uma verdadeira sunspinner,
alguém que poderia conjurar o sol com as próprias mãos.
Ela riu, um som estrangulado. O que estava acontecendo com ela? O corpo
dela era uma fogueira, se espalhando para fora e ela não conseguia parar.
Ela soltou as rédeas, instinto gritando para ela pegar uma arma e, embora
encontrasse apenas ar vazio, suas mãos estalavam com o calor. Cega e
desesperada, ela jogou as mãos para os atacantes de Borsvall. Uma força
invisível os jogou no chão. Seus cavalos corriam livres, enlouquecidos de
medo.
Rielle olhou em volta, atordoada. O mundo estava tremendo atrás dela,
sacudindo pelo caminho de Maliya, uma teia de fendas. Sua mente também
se rompeu, como se seu poder tivesse se soltado de todas as suas
extremidades.
Onde estava o Audric? Ela procurou loucamente através da fumaça e
poeira.
— Rielle! — Uma voz familiar.
Audric, a pé. Ela deve ter derrubado ele também, e agora ele estava
mancando. Ela forçou Maliya a se mover. Audric se afastou de sua
aproximação. Algo terrível se formou em seu rosto.
O que ele viu?
Uma espessa flecha preta passou por ela.
Rielle empurrou Maliya ao redor, girando-a com tanta força que ela podia
sentir o corte da broca em sua própria boca. Ela encarou o homem que havia
atirado nela. Ele a encarou, pegando outra flecha.
Ele encaixou a flecha no arco. Ele não mirou na direção dela, mas na de
Audric.
Rielle gritou para Audric se mover, instou Maliya a avançar para ficar entre
ele e o arqueiro.
Maliya deu alguns passos vacilantes, e então algo abaixo de Rielle cedeu.
Ela olhou para baixo. Seu cavalo era uma bagunça crua de polpa crua –
ensopada de sangue, manchas de seu casaco cinza estava carbonizado.
O horror disso atingiu Rielle no estômago. Ela largou as rédeas e recostou-
se na sela. Ela teve que se afastar dessa coisa terrível debaixo dela. De onde
veio isso?
As partes traseiras de Maliya cederam e dobraram, Rielle caiu de lado. Ela
rastejou, frenética, agarrando a terra para sair do caminho.
Outra flecha do assassino de Borsvall – mas não apontada para Rielle, nem
para Audric. A flecha perfurou Maliya entre os olhos, seus gritos se calaram.
Os destroços dela estavam lá, fumegantes.
Rielle se amontoou no chão, o cheiro da carne queimada de Maliya preso
no nariz dela. Uma parte distante de sua mente ainda procurava por Audric,
mas quando ela tentou se levantar, seu corpo não cooperou. Se esforçando,
ela se levantou e vomitou. Ela estava coberta de sujeira e sangue – dela e de
Maliya.
O barulho de metal contra metal soou no ar. Espadas.
Audric.
Frenética, Rielle procurou em sua visão sombria uma arma própria, algo
que um dos homens de Borsvall deveria ter deixado cair. Até uma pedra
serviria.
Oh, Deus a ajude, seu pobre cavalo.
O que ela havia feito?
Ela limpou as palmas das mãos sangrando na blusa. A terra ainda vibrava,
como se um exército de dez mil soldados estivesse marchando sobre a
capital.
— Pare com isso — ela sussurrou, pois sabia que tudo isso era culpa dela –
o cavalo, as pedras que caíam, as fendas na terra.
Ela perdeu o controle, depois de tudo que Tal e seu pai tentaram ensinar.
Ela só queria mostrar a eles que podiam confiar nela, que ela merecia uma
vida fora do templo e seu próprio quarto solitário.
E agora seu pai a odiaria ainda mais profundamente do que ele já odiava.
Todo mundo pelo caminho tinha visto.
O que ela era?
Ela bateu as mãos no chão, sem se importar com a dor: — Pare com isso!
Um rugido, uma rápida rajada de vento. De repente tudo estava quente.
Ela ouviu os sons distantes dos gritos vindos do local da corrida. Alguém
estava falando pelo amplificador.
Ela olhou para cima.
A caçada dela a levou ao ponto mais alto do desfiladeiro. Na frente dela,
havia uma ladeira descendente, depois a Planície. A linha de chegada, os
espectadores dos camarotes se aglomeravam em volta dela. A capital – os
telhados dos sete templos e de Baingarde, o castelo do rei, brilhando ao sol.
Duas trilhas de fogo se estendiam de suas mãos em direção à cidade como
línguas longas e famintas.
Rielle se levantou cambaleando, a exaustão a balançando. Audric gritou em
aviso. Rielle se virou para ver um dos homens restantes de Borsvall se
aproximando, a espada levantada, o fogo crepitando ao longo da lâmina. Seus
olhos estavam arregalados e brancos, seu rosto assustado. Esse assassino,
esse firebrand com sua espada flamejante, tinha medo dela.
Ela caiu de novo e rolou, a espada dele assobiou no ar onde ela estivera.
Fogo chamuscou seus cabelos. A fumaça fez suas narinas piscarem.
Audric pulou na frente dela, uma adaga brilhante em cada mão.
Rielle quase desmaiou de alívio. Afinal, ele escapou das armas.
O rosto de Audric estava duro de raiva. Quando a espada de fogo do
assassino colidiu com suas adagas iluminadas pelo sol, o golpe sacudiu os
dentes de Rielle. Faíscas voaram. Chamas cuspiram perto do rosto de Audric,
enquanto a espada do firebrand o atingia. Mas ele não vacilou. Ele
permaneceu firme diante de Rielle, as adagas jogando a luz do sol no chão.
Ele rugiu e investiu contra o assassino, deslocando sua espada. Orbes gêmeos
da luz do sol irromperam de suas adagas cruzadas e derrubaram o assassino
no chão. O assassino se pôs de pé, com o rosto e os braços queimados, e
correu para Audric com um grito desesperado e gutural.
A cabeça de Rielle vibrava a cada choque das lâminas, ela apertou as mãos
em volta do crânio. Ela tinha que se segurar. Se não conseguisse parar o fogo,
a cidade queimaria.
Audric interceptou cada uma das investidas do outro homem com as dele.
Suas adagas zumbiram, o ar estremeceu com o calor. Ele trançou de um lado
para o outro, evitando um impulso mortal. Ele se virou, atirou um escudo de
luz com suas adagas que atravessou o estômago do homem. O assassino caiu,
sua espada abruptamente apagada. Outro assassino se aproximou. Audric
girou, pegou a lâmina do segundo homem entre as suas. Este era um
windsinger, o vento soprava e uivava ao redor dele. Ele girou sua espada
como se tivesse um exército de tempestades e quase derrubou Audric.
As espadas deles brilharam, mas até Audric tinha seus limites. Este
segundo assassino era um homem enorme. Se ao menos Audric tivesse
Illumenor...
— Corra, Rielle! — Audric gritou, os cachos grudados na testa. Ele
empurrou o atacante, bloqueou um golpe selvagem da espada do homem.
Rielle olhou em volta, viu um brilho de metal na terra: uma adaga caída,
seu punho gravado com o brasão da família real de Borsvall – um dragão
voando sobre uma montanha.
Reunindo suas últimas forças, Rielle agarrou a adaga e se levantou. Suas
pernas quase dobraram, sua visão esmaeceu. Ela ignorou a dor que
atravessava seu corpo, pulou, e a lâmina encontrou o caminho de casa na
garganta do homem de Borsvall.
Rielle observou o homem cair, sentiu seu vento convocado desaparecer
quando ele deu seu último suspiro. O mundo era um zumbido fraco ao seu
redor.
Ela assistiu o incêndio correndo pela encosta em direção à cidade,
acendendo cada folha de grama que tocava.
Pare, ela pensou. Por favor, pare com isso. Não os machuque. Ela
alcançou o fogo com o que restava de seu controle devastado, tentou puxar o
inferno de volta para ela, mas a escuridão inundou sua visão.
Talvez ela não tenha causado o incêndio, afinal. Talvez tenha sido um
sonho terrível. Ela acordaria na manhã da corrida. Ludivine a ajudaria a fugir
do escritório de Tal. Eles planejaram tudo.
Ela venceria a corrida e Audric a abraçaria, rindo. Ele a parabenizaria,
radiante de orgulho, e depois a deixaria para jantar em a sós com Ludivine, e
uma parte de Rielle morreria, como sempre acontecia quando ela se lembrava
da simples e terrível verdade do noivado deles.
Rielle sentiu um cheiro no vento – cabelos chamuscados, carne de cavalo
chamuscada.
Não tinha sido um sonho.
Como ela pôde ter feito isso?
Como ela fez isso?
O pai dela estava certo. Tal estava certo. Ela deveria passar o resto de sua
vida em um quarto silencioso, entorpecida com veneno. Ela não era
confiável.
Ela caiu de joelhos, a cabeça girando, mas braços fortes a seguraram. Ela
sentiu uma mão em seus cabelos e lábios quentes contra sua testa.
— Rielle — exclamou Audric — Rielle, Deus, você está machucada. Fique
comigo. Olhe para mim, por favor.
Antes que a escuridão a levasse, ela ouviu outra voz – masculina e adorável
e tão suave quanto sombras.
Acho que é hora de dizer olá, disse a voz. Parecia um beijo e vinha de
longe e de muito perto.
Então ela não sabia de mais nada.
6
Eliana
“A capital de Ventera, Orline, é uma cidade
portuária bem situada na costa sudeste. Apesar do
calor sufocante e do fedor ocasional dos pântanos
na fronteira ocidental, sou forçado a admitir que
possui uma certa beleza única – uma cidade luxuosa
de terraços de pedra, pátios escondidos e musgo
suspenso, abraçada por um amplo rio marrom que
começa duas mil milhas ao norte nas montanhas de
Ventera.”
— Relatório inicial do Lorde Arkelion a Sua Santa Majestade, o
Imperador dos Imortais, sobre a bem-sucedida apreensão de Orline
13 de fevereiro de 1010, terceira era.
Na primeira noite de lua cheia, Eliana não dormiu. Ela vestiu a nova máscara,
pintou os lábios de vermelho e jogou a capa favorita sobre os ombros – um
pouco de teatralidade nunca machucou ninguém – e desapareceu na noite.
Ela foi para os telhados, para tabernas que cheiravam a lacrima, para os
quartos vermelhos de senhoras amigáveis. Ela passou a noite vagando pelo
Barrens.
Ela assistiu e ouviu.
Ela procurou seus informantes habituais – rebeldes assustados dispostos a
trair a Coroa Vermelha ou oportunistas que jogariam como agente duplo por
uma moeda.
Ela fez perguntas e exigiu respostas. Ela ameaçou e persuadiu.
Principalmente, ameaçou.
Mas ela não descobriu nada sobre o Lobo. Nem um vislumbre, nem um
sussurro.
•••
Na última noite de lua cheia, Eliana voltou para casa com o pânico zumbindo
sob a pele e descobriu que alguém havia invadido sua casa.
Ao trabalhar, Eliana preferia entrar e sair da casa pelo minúsculo terraço de
pedra do lado de fora da janela do terceiro andar. Dessa forma, a entrada da
frente na estrada permanecia intacta.
Hoje à noite, porém, a janela dela estava aberta. Uma fina tira de madeira
marcava onde a tinta havia sido raspada; alguém forçou a fechadura. Tinha
uma rachadura na vidraça.
Enquanto ela estava congelada, ela sentiu um cheiro no ar, assim como ela
sentiu na noite da captura de Quill – a mesma sensação desequilibrada que a
deixou se sentindo fora de alinhamento com o mundo ao seu redor. Uma
pressão azeda estava pesada contra sua língua e ombros.
Alguém estava aqui. Eles estavam aqui, aqueles sequestradores de garotas
mascarados das docas. Ela sabia disso com uma certeza interior. As únicas
vezes em que ela sentiu essa sensação foram naquela noite e nessa.
O que significa que agora sua mãe…
E Remy?
Eles só pegam mulheres, Eliana disse a si mesma, com o coração batendo
freneticamente. Eles só pegam garotas.
Suor escorria ao longo de sua linha do cabelo. Ela poderia pedir a Harkan
que a ajudasse, mas a essa altura já seria tarde demais.
Ela pulou no terraço do segundo andar do lado de fora do quarto de sua
mãe. As flores do jardim do terraço de Rozen perfumavam o ar e reviravam o
estômago de Eliana.
Ela encontrou a janela destrancada, o que era estranho. Sua mãe sempre
trancava a janela antes de dormir. Ela abriu o painel, deslizou para dentro… e
parou.
A mãe dela se foi.
A sala cheirava a qualquer coisa fantasma que os sequestradores
carregavam com eles. Os lençóis haviam sido arrancados metade do colchão.
Uma xícara de chá quebrada estava em pedaços no chão.
E a prótese de sua mãe estava apoiada na parede.
O terror enraizou Eliana no local.
Você tem medo que possamos ser os próximos,Remy havia dito na noite da
execução de Quill.
Não. Não. Não a mãe dela. Não era possível.
Quem estava por trás dos sequestros não levava mulheres do Garden
Quarter. Eles estavam protegidos neste bairro.
Mas se os sequestros eram parte de algo maior que os caprichos de Lorde
Arkelion, talvez além de seu controle…
Passos soaram no terceiro andar. No quarto dela. Quase silencioso, mas
não completamente. A casa deles era velha, o chão rangeu.
Remy, ela pensou, por favor, esteja dormindo. Por favor, ainda esteja
seguro em sua cama.
Ela desembainhou a adaga e saiu pela porta do quarto da mãe. Ela passou
pela porta fechada de Remy e subiu as escadas até o patamar do terceiro
andar.
Pressionada contra a parede ao lado da porta do quarto, ela esperou. A
porta se abriu e uma figura alta saiu nas sombras. Parado. Em direção à
escada.
Um homem.
Ao luar saindo do quarto, ela viu a máscara dele de malha e metal.
O medo a atingiu.
O Lobo.
Supostamente, ele nunca mostrou o rosto, escolhendo sempre usar uma
máscara. Mas uma senhora que Eliana conhecia, jurara ter visto O Lobo tirá-
la. Ele estava com cicatrizes, ela disse, como se fosse um arranhão de garras.
Ela disse que ele tinha olhos como o inverno – frios e impiedosos.
Bem, então,, Eliana pensou. Estaremos bem combinados.
Ela correu até ele, chutou-o com força nas costas. Ela esperava que ele
caísse da escada.
Ele não caiu.
Ele se virou, pegou a perna dela e a jogou no chão. Com a perna livre, ela
chutou a canela dele, girou e ficou de pé. Ele deixou seu punho enluvado
voar, ela se abaixou e ele bateu na parede
Isso o atrasou um pouco. Ela chutou a parte de trás do joelho dele. A perna
dele dobrou, mas ele foi rápido. Ele se virou e a empurrou com força. Ela
perdeu o equilíbrio e desceu as escadas para o segundo andar.
O Lobo a seguiu, agarrou seus braços e a empurrou sobre o corrimão.
Ela caiu dois andares no saguão, de costas. A cabeça dela bateu no chão de
azulejos e, por um momento fugaz, ela viu estrelas. Mas então ela cerrou os
dentes e ficou de pé.
O Lobo correu atrás dela, ainda pronto para atacar. Ele sabia que essa
queda não a machucaria seriamente – nem a mataria – como poderia ter outra
pessoa.
Uma nova onda de terror flutuou no fundo de sua garganta. De repente, sua
pele parecia mal ajustada sobre seus ossos inquebráveis.
Ele a estava seguindo então. Ele a viu trabalhar. Ou pelo menos ouvira os
rumores do invencível Terror de Orline e acreditava neles – por mais
ridículos que parecessem. De qualquer maneira, ele estava aqui. Ele a pegou.
Interessante. E preocupante.
Ela desviou do soco dele na base da escada, girou e chutou. Ele agarrou a
capa dela e a puxou de volta contra ele. Ela deu uma cotovelada no estômago
dele, o ouviu grunhir. Puxou Arabeth do quadril, virou-se e a apontou para o
coração dele.
Mas ele era muito rápido, Arabeth atingiu apenas o ar. Ela cambaleou,
desequilibrada. Ele a empurrou contra a parede ao lado da porta da cozinha.
Sua cabeça bateu no tijolo, e a sala afundou e balançou ao redor de Eliana.
Ele agarrou o pulso dela e torceu, forçando ela a largar Arabeth. Ele chutou
a lâmina pelo corredor, enfiou o braço no pescoço dela e a prendeu. Ela
pegou Whistler da coxa e bateu nele. Não era um corte fatal, mas ele ainda a
amaldiçoou e a soltou.
Ela arrancou Tempest da bota e olhou para cima, pronta para atacar.
O Lobo segurava um revólver, o cano da arma apontado para o rosto dela.
Tudo paralisou.
— Largue as facas — a voz dele era baixa, refinada e cortante como gelo
— Contra a parede. Lentamente.
— Isso é trapaça — ela exasperou — Você trouxe um revólver — mas ela
obedeceu, afastando-se dele até seus ombros roçarem as tábuas de madeira da
parede.
O Lobo a seguiu, seu corpo se elevando sobre o dela. Ele arrancou Nox e
Tuora do cinto de Eliana e pressionou Tuora contra a garganta dela, depois
largou a lâmina e a chutou para longe.
Ela olhou para o rosto de metal vazio pairando sobre ela, procurando pelos
olhos dele além da máscara e não encontrando nada.
—Tire sua máscara — ele ordenou.
Ela o fez, então o encarou com o sorriso mais duro que pôde.
— Terror — ele murmurou, a respiração do Lobo acariciando a bochecha
dela — É apenas um sentimento, facilmente esmagado. Mas lobos, minha
querida, têm dentes.
7
Rielle
“Cuidado, cuidado com o sorriso de Sauvillier...
Uma bela lua em uma noite mais vil
Isso vai te cortar até os ossos, embaçar os olhos
mais nítidos
É o que diz um homem do rio que nunca conta
mentiras.”
— Canto viajante Celdariano.
Sempre que Eliana se vestia para uma das festas de lorde Arkelion, ela
pensava em seu pai.
Ioseph Ferracora passou a maior parte de sua infância lutando na frente
oriental, enquanto o Império acabava com a última resistência de Ventera.
— Para cada noite que ele estiver fora, deixaremos velas nas janelas para
ele — decidira sua mãe. Naqueles dias dourados antes da invasão, antes de
Remy, a guerra distante não parecia mais real para Eliana do que uma história
de fantasma.
— Mas o que as velas farão? — Eliana perguntou.
— Elas pertencem à Rainha do Sol — explicou Rozen — E ajudarão a
trazer seu pai de volta em segurança para nós.
Então, todas as noites antes de dormir, Eliana acendeu a vela em sua janela
e sussurrou a oração da rainha do sol: — Que a luz da rainha o guie para
casa.
À medida que envelhecia, passou a temer as visitas de seu pai, pois elas se
tornavam mais curtas e sempre terminavam. Mas ela nunca deixou de esperar
o solstício de verão, quando Ioseph retornaria para o festival anual – e mais
importante, para o aparato da Rainha do Sol.
Antes da Queda, antes da morte da Rainha de Sangue Rielle e de deixar
tudo em ruínas, o mundo estava cheio de magia. Assim diziam as histórias, e
quando criança, Eliana acreditava nelas com todo o seu coração. Diziam que
as pessoas do Velho Mundo usavam escudos e espadas para invocar o vento e
o fogo. Eles adoravam poderosos santos que tinham banido a raça dos anjos
para o esquecimento, e acreditavam que um dia uma rainha iria um dia, salvar
o mundo do mal. Ela chamava-se Rainha do Sol, pois ela traria a luz para a
escuridão.
Mesmo muito tempo depois que a era do Velho Mundo terminou, e ficou
claro que anjos e magia nunca existiram – que as lendas do Velho Mundo
eram simplesmente isso, lendas – muitas pessoas ainda visitavam templos
para orar para os santos, e o mito da rainha do sol permaneceu.
E todo verão, Ioseph Ferracora voltava para casa e para a sua filha,
trazendo consigo um novo ornamento para o traje dela – uma peruca dourada
de Rinthos, uma pele de vison branca contrabandeada de Astavar.
Juntos, Eliana e seus pais se juntariam aos desfiles que lotavam a cidade.
Crianças com bochechas douradas subiram pelas estátuas em ruínas de Santa
Katell, a sunspinner, para deixar guirlandas de flores de gema em volta do
pescoço dela. Músicos tocavam baterias e suas harpas. Contadores de
histórias vestidos de branco recriavam a tão esperada vinda da Rainha do Sol.
O desfile terminava na curva alta do rio, nas colinas mais a leste, onde
ficava a estátua de Audric, o Portador da Luz. Ele estava sentado no cavalo
alado, espada na mão e olhos sombrios fixos no horizonte oriental. Era a
estátua favorita de Eliana na cidade, pois o rosto do rei condenado parecia ao
mesmo tempo corajoso e cansado. Olhá-lo fez seu coração torcer de pena.
— Sinto muito, Lightbringer — Ela sussurrou para ele, no ano passado. Ela
beijou a bota de pedra desgastada pelo tempo, apertou o colar com a
semelhança arruinada na outra. Como sempre, ela procurou o rosto dele nas
camadas de desgaste do colar, mas enquanto o cavalo alado estava limpo, a
pessoa que o montava havia sido enterrada na escuridão do tempo, por mais
que Eliana tentasse limpá-lo.
— Olhe para o horizonte — Rozen sussurrou para a filha, Remy dormindo
em seus braços — Você a vê? Você vê a rainha do sol?
— Ela virá este ano, papai? — Eliana, de sete anos, perguntou, exaltada
mesmo após a longa noite.
— Continue olhando, docinho — Ioseph respondeu, os braços tremendo ao
redor dela. — Continue procurando a luz.
Ele partiu novamente para a guerra no dia seguinte e nunca mais voltou.
•••
Dez anos depois, Eliana sentou-se diante do espelho em seu quarto enquanto
Remy terminava de torcer seus cabelos castanhos ondulados em um coque
baixo. Suas bochechas – não tão pálidas quanto as de Remy, mais próximas
aos tons quentes de azeitona de sua mãe – brilhavam com pó de prata. Kohl
escuro contornava seus olhos; diamantes brilhavam em cada orelha.
Ela terminou de aplicar um rico corante vermelho nos lábios e sorriu ao
refletir.
— Estou bem — ela declarou.
Remy revirou os olhos: — Você sempre parece bem.
— Sim, mas hoje à noite é realmente algo, não é?
— Eu vou continuar revirando os olhos até você parar de falar.
Ela sorriu para ele no espelho: — Então. Me diga mais uma vez.
Remy ficou de mau humor em sua cama: — Eu devo ficar com Harkan,
não importa o quê, e fazer exatamente o que ele me diz, não importa o quê, e
nem pensar em perguntar novamente sobre o que você fará hoje à noite. Não
importa o quê.
Eliana se levantou, o vestido cor de vinho de Lord Arkelion caiu em pregas
brilhantes sobre as pernas dela: — E se algo acontecer com Harkan?
— Espero você na ponte leste, perto da estátua do almirante.
— Mas nada vai acontecer com Harkan — disse o próprio, entrando pelo
corredor. Ele usava botas marrons altas, calça escura, um casaco comprido
que abraçava o tronco caído e uma capa com capuz. Ele abaixou uma
pequena sacola de suprimentos e bagunçou os cabelos de Remy — Harkan é
impressionante demais para isso.
Normalmente, Remy revirava os olhos e dizia a Harkan que a única coisa
impressionante que ele podia fazer era arrotar como um velho bêbado.
Mas Remy ficou em silêncio e pálido, seus lábios rachados de tanto mordê-
los. Desde o desaparecimento da mãe, ele não deixou ninguém vê-lo chorar,
tentou corajosamente acompanhar as piadas de Eliana, mas ela o conhecia
bem.
Se algo desse errado, se acontecesse algo a ele ou Harkan por causa do
acordo que ela havia feito com Simon…
Ela enfiou o colar no vestido, o pingente áspero contra a pele e transformou
suas feições em uma máscara brilhante.
— Remy — disse Harkan — Por que você não junta as suas coisas?
— Eu não sou idiota — Remy murmurou — Apenas me diga para sair para
que vocês possam conversar.
— Bem. Saia para que possamos conversar.
Quando Remy se foi, Harkan pegou a mão de Eliana.
— Me diga que você não está cometendo um erro terrível, confiando neste
homem — disse ele calmamente.
Uma emoção de nervosismo percorreu-a com a expressão grave no rosto
dele: — Você sabe que não posso lhe dizer isso.
— Bom. Porque então eu saberia que você estava mentindo.
Apesar de tudo, ela sorriu e, quando Harkan finalmente sorriu para ela, ela
segurou o rosto dele nas mãos e o puxou gentilmente para um beijo. Com as
mãos quentes contra as costas nuas, Eliana quase podia acreditar que era
apenas mais uma noite – ir a uma festa com Harkan, dançar e flertar e voltar
para casa com um emprego.
— Nós vamos encontrá-la, El — Harkan beijou sua têmpora e a soltou, os
olhos suaves em seu rosto — Mas primeiro…
— Primeiro — disse ela, tentando sorrir — Tenho uma festa para
participar.
•••
•••
— De novo!
Rielle exalou bruscamente, soprando um cacho escuro e suado dos olhos,
empurrou com força o chão e pulou — primeiro sobre uma pedra, depois
sobre uma pilha de trilhos de madeira. Então ela subiu a encosta rochosa,
passou pelos trilhos e desceu pelo lado mais íngreme.
Não perca o mastro, sela disse a si mesma. Não. Perca. O. Mastro.
Ela chegou ao chão, caiu de bruços e deslizou sob a rede para o poço de
lama. Se tocasse a rede larga que se estendia acima dela, teria que começar de
novo no início do percurso, e seu pai acrescentaria outra pedra à mochila.
Rielle chegou na metade do caminho antes que suas mãos escorregassem, a
fazendo cair de queixo na lama. Inalando um bocado, ela arfou e engasgou.
— De pé! — Latiu uma voz lá de cima.
Ela reprimiu uma maldição. Claro que ele escolheria aquele momento para
uma briga. Encontrou uma abertura na rede e rastejou através dela,
manobrando seu longo mastro de madeira bem a tempo do ataque de seu pai.
Seu próprio mastro voou rápido sobre seus ombros. Ela abaixou-se,
levantou o mastro e o girou para atacar. Os mastros se chocaram com um
estrondo de madeira que machucou os dentes de Rielle. Ela balançou, perdeu
o equilíbrio e se segurou na rede.
— Levante-se! — O mastro de seu pai balançou novamente, batendo com
força contra os nós de seus dedos.
— Droga! — Ela reprimiu lágrimas de dor e pulou de pé, balançando
loucamente. — Eu caí! — Seus pés ficaram presos na rede e ela tropeçou e
caiu com força.
— E você caiu de novo. — Seu pai emitiu um som suave de nojo e jogou o
mastro na grama do lado de fora do poço. — Você nem chegou à escalada
dessa vez. Levante-se e volte ao começo.
Rielle ficou de pé, tremendo de exaustão e raiva. Ela manteve os olhos no
chão, ignorando os guardas sempre presentes, que permaneciam em silêncio
ao lado da pista de obstáculos seu pai havia projetado. Se eles achavam que
ela parecia ridícula, bem, não estavam errados.
O percurso que Rielle descreveu para Audric e Ludivne como sua —
câmara de tortura na floresta. — ficava em uma área isolada na base de
Cibelline, a montanha mais alta de Celdaria. Os santos haviam construído o
castelo de Katell, Baingarde, em suas encostas séculos antes. Todos os dias,
durante seis dias seguidos, em preparação para o próximo julgamento, Rielle
encontrava seu pai ali. — para fortalecer seu corpo, ele disse, e melhorar sua
agilidade.
Até agora, tudo o que tinha feito foi deixá-la dolorida e brava como o canto
mais escuro das profundezas.
— Eu não sou uma atleta. — ela disse irritada ao pai, saindo do poço de
lama e jogando o mastro fora. — Nem uma guerreira.
Ele soltou uma risada aguda. — Nunca nada foi tão claro quanto isso.
— E ainda assim você insiste em me fazer passar por isso por horas! — Ela
marchou pela grama, tirando as luvas encharcadas de lama, manoplas,
caneleiras e, finalmente, o maldito e pesado pacote de pedras.
— Estamos aqui desde o amanhecer — ela murmurou. — Eu deveria estar
estudando com Tal agora, praticando com a Grã Magister Rosier. A água
sempre foi meu elemento mais fraco. Ou eu poderia estar trabalhando no meu
traje com Ludivine.
— Seu traje. — O pai dela zombou. — Sim, um uso sábio do seu tempo.
— Ideia de Ludivine, e uma ideia boa. Se eu quero que nosso povo me
ame…
Ele riu de novo, suave e cruel.
— E mostrar a eles que não tenho medo.
— Mesmo você não sendo uma boa mentirosa.
— Pare de me interromper!
Ele ficou em silêncio, olhando para ela. Ela olhou de volta, o calor subindo
pela nuca, pelos braços, enrolando-se em sua barriga.
Seu pai olhou para suas mãos, mas ela as manteve fechadas com força.
Sabia o que ele estava procurando — faíscas selvagens, o nascimento de um
incêndio que sairia do controle e consumiria tudo em seu caminho.
Enquanto lutava contra as lágrimas, os punhos cerrados ao lado do corpo,
ela desejou, não pela primeira vez, que seu pai fosse o familiar que ela matara
— e que sua mãe tivesse vivido.
— Se você tiver alguma chance de sobreviver a esses testes. — ele disse
finalmente. — Se você quiser ter mais do que força bruta e sorte estúpida do
seu lado, precisará se fortalecer e rapidamente.
— Estou estudando há anos, trabalhando no meu controle com Tal.
— E isso pode não ser suficiente!
Rielle se manteve firme enquanto ele avançava sobre ela. Ela podia sentir
sua trança deslizando, sentindo o quão desleixada, pequena e tola ela parecia
ao lado do lorde comandante Dardenne. O homem de alguma forma parecia
imperturbável, mesmo em seu uniforme de treino enlameado. Ela mordeu sua
língua com força.
— Isso não é brincadeira, Rielle. — continuou o pai. Ele voltou a amarrar
as amarras que seguravam o fino estofamento de couro em volta do torso,
ajeitou a gola dela, enfiou os cabelos soltos em sua trança com tanta força
que machucou seu couro cabeludo. — O julgamento da Terra não foi nada
comparado ao que o Conselho Magistral planejou para você a seguir. Este é
apenas o começo de um caminho longo e difícil. Sua vida como você
conhecia acabou. Você entende isso.
As bochechas de Rielle arderam. O que os guardas dela estariam pensando
do pai a repreendendo como faria com uma criança pequena? — Sim, pai. —
disse ela calmamente. — Entendo.
— Se você falhar, eles vão te matar. Eles podem me matar e a Tal também.
Rielle olhou suas botas, seus olhos cheios de lágrimas.— Eu pensei nisso.
— Pensou? Não podemos conhecer a mente do conselho, nem a do rei. São
circunstâncias extraordinárias.
— Sim, Pai.
Ele tirou uma das luvas e usou a mão nua para levantar o queixo dela. Ela
olhou para ele, olhos arregalados, até a boca dele se torcer e ele se afastar.
Sentou-se no chão, perto do poço de lama, encontrou seu cantil na grama e
tomou um gole de água.
— Sente-se. — disse ele, entregando o cantil para ela. — Beba.
Ela obedeceu, sem dizer nada. Enquanto bebia, ela olhou de relance para o
pai, notando o cinza em suas têmporas e salpicado em seus cabelos grossos e
escuros, as linhas ao redor de sua boca severa. Ela percebeu, com uma rápida
reviravolta, que não conseguia se lembrar de como ele era antes da morte de
sua mãe ter roubado seu sorriso.
— Você se lembra. — ela perguntou. — Daquela canção de ninar que
mamãe cantava para mim?
Seu pai estava olhando para a pista de obstáculos cheia de lama, o anel
sombrio de soldados ao seu redor, a densa floresta de pinheiros além dela.
Rielle o observou, examinando seu perfil. De repente, sentiu uma necessidade
de segurar a mão dele e perguntar se ele estava com tanto medo quanto ela.
Rielle enrolou os dedos na grama.
— Não me lembro de nenhuma canção de ninar. — ele respondeu sem tom.
Rielle não tinha certeza se isso era mentira ou não, mas ela assentiu de
qualquer maneira e olhou para a floresta exatamente como ele. Respirou
fundo e começou a cantar.
Pela lua, pela lua
É aí que você me encontrará
Pela lua, pela lua
Vamos dar as mãos, só você e eu
Vamos orar para as estrelas
E pedir que elas nos libertem
Pela lua, pela lua
É aí que você me encontrará
Depois de alguns momentos de silêncio insuportável, ela acrescentou: —
Nem sempre consigo me lembrar de coisas sobre ela. Como ela cheirava. A
sensação de suas mãos. Mas eu lembro da voz dela, e eu lembro dessa
música.
Assim que as palavras saíram de seus lábios, seu pai se levantou, tirou o pó
da calça, pegou seu maço de pedras e entregou a ela. Ela não conseguia ler
nada no rosto dele, exceto a mesma calma resolução que sempre usava — a
certeza do erro de Rielle e de seu próprio sofrimento nas mãos dela.
— Mais uma vez. — disse ele. — De volta ao começo.
•••
Rielle não sabia quantas pessoas estavam do lado de fora esperando para vê-
la lutar contra o oceano, mas pelo som delas, pareciam ser muitas.
Ela trocou as botas novas e lutou contra o desejo de mexer na bainha de sua
capa pesada, cujos fios ela amarrara em torno de sua garganta e tronco, para
manter sua roupa escondida até o último minuto.
O traje fora ideia de Ludivine; mantê-la escondida tinha sido de Audric.
Ludivine havia puxado Audric orgulhosamente para seus quartos na noite
passada, uma vez que seus alfaiates haviam terminado sua montagem final e
proclamado, radiante: — Ela não está impressionante, Audric?
Rielle olhou diretamente para ele. Por que ela não olharia? Não havia nada
de estranho em mostrar seu novo traje para um de seus amigos mais antigos.
Havia?
Mas suas bochechas queimaram, o coração dela bateu tão rápido que ela
pensou que poderia engasgar com isso e, em seguida, ele sugeriu: — Não
acho que você deva mostrar seu traje até o último momento.
Surpresa, ela conseguiu perguntar: — Por quê?
Ele sorriu suavemente para ela. — Porque então eles passarão o julgamento
inteiro esperando desesperadamente que você sobreviva, apenas para terem a
chance de vê-la novamente.
Rielle estremeceu ao pensar em suas palavras suaves.
Lá fora, a voz da Grã Magister Rosier ecoou sobre o amplificador Forged:
— Meus irmãos e irmãs, cidadãos de Celdaria, algumas palavras antes do
início do julgamento…
Enquanto descrevia o julgamento e suas regras e lembrava a todos que não
havia necessidade de se preocupar com sua segurança — todos os acólitos de
seu templo estavam presentes, prontos para aproveitar as ondas caso o
candidato perdesse o controle — Rielle fechou os olhos e recitou o Rito da
Água baixinho: —Ó mares e rios! Ó chuva e neve! Sacie-nos a nossa sede,
purifique-nos o nosso mal…
A aba de sua tenda se abriu. — E eu que pensei que você odiava rezar.
— Tal! — Ela se jogou nos braços dele sem pensar duas vezes, deixando
cair uma onda de lágrimas. — Eu pensei que você tinha dito que o Arconte
não deixaria você me ver sozinha.
— Sloane está do lado de fora. — Ele acariciou seus cabelos, beijou sua
sobrancelha. — Em sua infinita generosidade, ela nos permitiu dois minutos
para conversar.
— Eu ouvi isso. — Veio a voz seca de Sloane do lado de fora.
Rielle fechou os olhos, respirando profundamente. Tal cheirava a fumaça e
incenso do templo, um contraste bem-vindo ao cheiro salgado do oceano lá
fora. Ela quase podia fingir que eles estavam de volta ao escritório, prontos
para uma aula.
— Eu odeio rezar. — disse ela, afastando-se com um sorriso tenso. — Mas
agora? Vou tentar qualquer coisa.
Tal procurou cuidadosamente seu rosto. — Você está assustada.
— Assustada? Eu? — Ela deu de ombros, tentando não deixar os dentes
baterem. Por que o oceano fazia tudo parecer tão frio? — É só que um velho
magistrado me disse uma vez que rezar ajuda a minha concentração.
Tal sorriu tristemente e esfregou a mão nas bochechas. — Não acredito que
isso esteja acontecendo. Fico esperando acordar desse pesadelo.
— Não comece com os gemidos. Sou eu quem vai fazer isso, não você.
— Você está certa.— Ele cruzou as mãos dela e se curvou para olhá-la nos
olhos. — Me desculpe, amor. Eu só gostaria que tivéssemos tido mais tempo.
Uma buzina tocou do lado de fora, lembrando Rielle da linha de partida do
Boon Chase. Esse dia já parecia passado. O pensamento de que ela tinha
medo de uma corrida de cavalos foi suficiente para fazê-la querer rir – ou
talvez chorar.
— Lady Rielle? — A chefe de sua guarda pessoal, designada pelo rei, abriu
a aba da tenda. Era uma mulher sólida e de ombros largos chamada Evyline,
cujo rosto pálido exibia uma expressão severa e permanente. — Eles estão
prontos para você.
Rielle lançou um último olhar para Tal. Ela sabia o que ele estava
pensando. Ela estava se lembrando da mesma coisa:
Venha aqui, Rielle! Aqui, sob o salgueiro, onde a água é quente e
tranquila.
As mãos de Tal em volta de seu pescoço, segurando ela embaixo.
Ela estremeceu, engolindo em seco.
— Não hesite em lutar desta vez. — disse Tal suavemente. Suas mãos
flexionaram ao lado do corpo, como se ele desejasse alcançá-la. — Não se
trata de provar a si mesma. É sobre permanecer viva.
— Ninguém sabe disso melhor do que eu. — respondeu ela.
— Lady Rielle?
Sem outra palavra, ela passou por Tal e Sloane, de rosto de pedra, que a
surpreendeu agarrando sua mão e pressionando suavemente a palma.
— Tenha cuidado. — murmurou Sloane.
Então Rielle surgiu no sol.
Os espectadores sentavam-se em bancadas de madeira erguidas às pressas
ao redor da baía, estavam próximos o suficiente para que Rielle pudesse ver
claramente a curiosidade e a suspeita em seus rostos. Deveria ter centenas
deles, milhares — praticamente toda a capital e qualquer um que ouviu falar
sobre os julgamentos e conseguiu viajar para a cidade costeira de Luxitaine a
tempo.
Todos a estavam observando em silêncio.
Seguindo a guarda logo atrás, ela caminhou até a beira do píer e forçou a
cabeça sob o capuz da capa. Uma gaivota solitária gritou acima. Na beira do
píer havia dois acólitos, com as peças vazadas na mão — uma espada larga e
um disco de metal gravado com ondas.
A buzina soou uma segunda vez.
Mais uma e começaria.
Ela olhou para a água — uma ampla baía cercada por baixos penhascos
negros. A água estava calma.
Mas não ficaria assim por muito tempo.
Bem. disse Corien, Aqui estamos nós.
Ela quase pulou fora de sua pele. Corien! Eu não tenho notícias suas desde
que.... — Ela apertou a mandíbula contra a repentina e selvagem esperança de
que ele pudesse, de alguma forma, lhe dar uma saída deste dia horrível.
Eu não consigo parar com isso. Você se jogou direto nas mãos deles.
Eu não quero que você pare isso.
Ele riu levemente. Você não pode mentir para mim.
Ela afrouxou os laços de sua capa. Estou mostrando a eles que não têm
motivos para me temer. Eles vão me amar por isso.
Eles vão te matar por isso.
Se tudo o que você vai fazer é tentar me deixar com medo. Ela disse
friamente. Então fique longe de mim.
Estou tentando ajudar você a ver a verdade.
Ela deu um passo à frente e deixou a capa cair no chão.
A multidão ofegou. Murmúrios irromperam como ondas cruzando a costa.
Rielle não pôde evitar um sorriso pequeno e genuíno.
Ela sabia que a roupa era boa, um traje feito de um novo tecido elegante e
colorido que Ludivine havia encomendado a Mazabat. Isso a manteria quente
na água, mas era flexível o suficiente para nadar com facilidade. Ondas
bordadas com fios brilhantes giravam sobre o tecido nas cores dos templos —
azul ardósia e espuma do mar — e o próprio tecido se agarrava a suas curvas
como uma segunda pele. Botas de malha, leves como o ar e com dedos
levemente alongados. A gola do traje era alta nas costas e baixa na frente.
Ludivine pintou a pele com tinta cintilante e, com os cabelos presos no alto
da cabeça e presos por pentes de concha e alfinetes de pérolas, Rielle sabia
que ela se parecia com a própria Santa Nerida.
A buzina tocou pela terceira vez.
A água começou a se agitar.
Rielle respirou fundo e mergulhou.
18
Eliana
"Minha história é a mesma que todas as outras.
Todo mundo que eu amo morreu; todos os meus
pesadelos ganharam vida. Nosso mundo está
perdido, e nós também. Pronto. Isso fará uma boa
história para sua coleção?"
—Coleção de histórias escritas por refugiados em Ventera ocupada
Curadoria de Hob Cavaserra
Após o jantar, Eliana reivindicou um assento em uma das áreas comuns mais
movimentadas de Crown's Hollow e limpou suas facas.
Do banquinho perto da lareira, ela podia ver tudo na sala de teto baixo:
soldados da Coroa Vermelha trocando turnos, suprimentos sendo
computados, refugiados sendo transportados para a ala de doentes em macas
improvisadas.
Segundo Simon, eles deixariam Crown's Hollow pela manhã, assim que os
cavalos novos chegassem. Até então, seu lugar junto à lareira era o lugar
perfeito para se estabelecer e olhar tudo que merecia atenção. A maioria dos
rebeldes que passavam não a olhavam duas vezes. Talvez Simon tivesse
decidido que era melhor evitar que sua identidade se espalhasse.
Uma pena.
Suas lâminas estavam com fome.
Remy estava deitado ao lado dela, a cabeça apoiada em sua jaqueta
dobrada enquanto lia a última página em seu caderno. Patrik tinha
emprestado uma caneta, tinta fresca manchava seus dedos.
— Já podemos ir para a cama? — Ele perguntou com um bocejo.
— Não.
— Por que não?
— Muito trabalho a fazer. — Ela levantou Nox, sua lâmina em forma
crescente, e esfregou as manchas que não existiam.
Remy deixou o caderno de lado. — Você está mentindo.
Ela sorriu para ele. — Não estou.
— Você não está dizendo toda a verdade, então.
Eliana olhou para cima enquanto Navi se sentava ao lado deles.
— Eliana. — disse Navi em saudação.
— Sua Alteza. — Eliana fez uma reverência zombeteira.
Navi a ignorou e olhou para Remy. — Olá, meu amigo. Gostou do seu
jantar?
Remy assentiu e passou seu caderno para Navi. — Eu escrevi a história que
você me contou sobre Santa Tameryn e o lobo. Eu mudei algumas coisas.
— Eu apostaria que para melhor. — Navi se aproximou dele e colocou o
caderno em seu colo — Não fiz justiça à história.
Remy corou. — Eu gostei.
— Sabe, acho que estou pronta para dormir. — Eliana guardou as facas em
um pano que tinha pego em uma caixa. — Remy, vamos lá.
Ele franziu o cenho para ela. — Mas Navi vai ler minha história!
— Eu não ligo.
— Oh, Eliana. — Navi tocou a mão de Eliana. — Eu esperava que
pudéssemos nos conhecer um pouco.
Uma corda tensa dentro de Eliana se rompeu. Seus esforços de vigilância
pareciam sem importância diante de uma fúria repentina e estridente.
— Tudo bem. — Ela encarou Navi, pernas cruzadas, como se fossem
amigos trocando segredos. — Remy e eu estamos arriscando nossas vidas
para levá-la a Astavar. Que inteligência você carrega que é tão importante?
O sorriso de Navi era tão paciente quanto o de Eliana era frágil. — Você
sabe que não posso te dizer isso.
— Para onde minha mãe foi levada? O que aconteceu com ela?
Remy sentou-se. —El...
— Não sei a resposta para isso.
— E onde estava Astavar quando Ventera caiu?
Os olhos de Navi se estreitaram. — Perdão?
— Onde estava Astavar quando o Império invadiu nossas fronteiras?
Estuprou nossos homens, mulheres e crianças? Queimou nossas bibliotecas e
terras agrícolas? Executou nosso rei e rainha e seus filhos nos degraus do
templo de São Ghovan em Orline?
Seu corpo vibrou com a raiva. Ela pressionou as palmas das mãos no chão.
— Onde estava Astavar quando meu pai foi morto?
Toda a atividade na sala ficou tensa e silenciosa. Eliana sentiu os olhos de
uma dúzia de rebeldes sobre ela.
— Você estava se escondendo. — Eliana continuou, sua voz suave. —
Acumulando sua comida e suas armas. Fortalecendo suas fronteiras. Você
nos assistiu sangrar. Você nos ouviu gritar por socorro. E não fez nada.
— Não vou me desculpar pelo meu povo fazer o que fosse necessário para
se manter vivo. — disse Navi, finalmente. — Assim como você não se
desculpou pelo que fez para proteger sua família. E eu não pediria que o
fizesse.
Por um momento, Eliana não conseguiu falar. A verdade das palavras de
Navi a bateu em seu estômago.
Como você pode viver com isso?
Ela ignorou a memória da voz de Harkan, estendeu a mão para Remy e
sentiu uma emoção cruel quando ele a pegou.
— Não fale sobre minha família — Disse ela. — E fique longe do meu
irmão.
Ela cuspiu no chão aos pés de Navi. Então se virou, Remy na sua mão,
passou pelos rebeldes que estavam olhando e saiu da sala.
•••
•••
•••
•••
— Então, Eliana Ferracora. — Lorde Morbrae reclinou-se na cadeira e levou
uma taça de vinho aos lábios. Sobre a borda do copo, seus olhos a
observavam, negros e sem piscar. — Estou ouvindo.
Eliana continuou cortando sua carne de veado. Sangue derramado em seu
prato a cada pressão e sua faca. Eles a mantiveram naquela cela por duas
horas antes de a chamarem para a sala de jantar de Sua Senhoria.
Tentou não pensar na prisão cheia de gaiolas, a menina gritando com os
olhos desesperados.
Tentou não pensar em Remy ou em Simon. Ele já estava a caminho? Ou
eles assumiriam que Lorde Morbrae tinha a matado e a dariam como morta?
O que Remy pensaria? Ele ficaria feliz em se livrar dela?
E o que aconteceria com sua mãe?
Eliana imaginou raspar seus pensamentos constantes com a ponta de uma
lâmina.
— Existe um complexo da Coroa Vermelha — ela começou entediada. —
Três quilômetros a sudoeste daqui. Eles se chamam de Crown's Hollow. —
Ela levou um pedaço da carne aos lábios, mastigou e engoliu. Olhou para
Lorde Morbrae e sorriu. — Que refeição deliciosa você preparou para mim.
Estou grata. Os rebeldes não têm muito em termos de boa culinária.
A risada de Lorde Morbrae era quase inaudível. Ele estalou os dedos. Um
dos guarda-costas adatrox ao redor da sala de jantar se moveu para encher o
copo de Lorde Morbrae.
Eliana assistiu em silêncio enquanto Lorde Morbrae bebia e bebia. Estalou
os dedos mais uma vez. Outro copo recarregado. Ele engoliu como um
andarilho do deserto, depois bateu o copo sobre a mesa e torceu os lábios.
Pegou o garfo e a faca, cortou violentamente a carne de veado, mordida após
mordida na boca sem parar para respirar.
Por fim, parou, tomou outro gole de vinho e ficou olhando para o prato
com desgosto. — Mais carne. — disse ele ao adatrox mais próximo. — Isso
não. — Ele empurrou o prato de carne de veado para longe. — Algo que
realmente é bom, para variar. Você pode conseguir isso?
O adatrox curvou-se e deu um leve aceno irregular.
Depois que ele se foi, Lorde Morbrae voltou o olhar para Eliana, olhos
escuros pesados e pálidos. Vinho tinto manchava seus lábios. — Está
mentindo.
Um calafrio de medo saltou pela garganta de Eliana. Ela sorriu incrédula.
— Não estou. O que de bom poderia...
— Se houvesse um complexo rebelde a três quilômetros daqui, nós o
teríamos destruído há muito tempo.
— É subterrâneo. E bem guardado.
Lorde Morbrae piscou finalmente.
Ah. Você não sabia disso, sabia? Eliana continuou comendo, examinou a
sala de jantar alegremente. — Adorável o pequeno espaço que você tem aqui.
Boa mesa sólida. Trabalho de moldagem impressionante. Eles fizeram isso
especialmente para você? — Garfo na mão, ela apontou para a parede mais
próxima. — Eles mudam a arte de acordo com os gostos de cada general
visitante?
— Quantos? — A voz suave de Lorde Morbrae foi uma explosão no
silêncio.
— Trezentos e dezesseis refugiados. — Ela tomou um gole de seu próprio
vinho. — Cinquenta e um soldados rebeldes. Bandas pequenas de duas a oito
rebeldes, vão e vêm todos os dias. Há dez em patrulha na floresta, além do
complexo, formando um perímetro. Cinco vagam; cinco estão em persianas
que construíram nas árvores.
— Munição e suprimentos?
Eliana pegou uma maçã vermelha em uma tigela de prata brilhante na mesa
e deu uma mordida. — Desculpe meu amigo. Receio não poder oferecer mais
informações até ter uma garantia de nossa segurança. Eu, meu irmão, minha
mãe. Caso contrário — ela encolheu os ombros. — Sem acordo, receio.
O olhar de lorde Morbrae viajou através de sua boca enquanto ela lambia o
suco de maçã dos lábios, depois para a garganta enquanto engolia, depois
pelo corpo. A boca de Eliana ficou subitamente seca. Aquilo não era o desejo
em seu rosto, não o tipo que ela estava acostumada a ver.
Era fascinante, cru e voraz, como se a visão de alguém comendo uma maçã
fosse algo que ele nunca tinha visto antes.
— Eu poderia matá-la agora — disse ele, sua língua correndo para
umedecer os lábios. — Se eu quisesse.
— Mas você não vai. Sei muito mais do que lhe contei. — Ela deu outra
mordida, obrigou-se a observá-lo enquanto mastigava, apesar da apreensão
rastejando sobre sua pele. — Você não corre o risco de perder essas
informações, não agora que sabe que um complexo rebelde o ilude há tanto
tempo. Eu conheço os planos do Lobo. Uma missão secreta, além dos os
esforços da Coroa Vermelha. Poderia mudar a maré da guerra. — Ela jogou a
maçã meio comida no prato. — Deixe-me ajudá-lo, meu senhor. O que peço
em troca não é nada comparado às informações que carrego.
Lorde Morbrae levantou-se. Ele se esticou, revirou os ombros, estalou a
mandíbula como se estivesse trabalhando uma torção.
Eliana observou, seu estômago revirando. Se recostou na cadeira e cutucou
as unhas. — Está se sentindo mal esta noite, meu senhor?
Ele atravessou a sala, afundou em uma cadeira vermelha com encosto alto
ao lado do fogo crepitante e a observou. Sombras o mascaravam, desenhando
formas escuras em seu rosto.
— Continuo com fome. — Havia uma exaustão em sua voz — e uma raiva,
fina, mas fervendo. — Estou sempre com fome.
Eliana olhou para a mesa, pesada com o jantar. — Então.
— A comida não ajuda. — ele interrompeu. — Nada ajuda.
Um novo silêncio encheu a sala. Eliana resistiu ao desejo de se mover,
igualando a quietude de Lorde Morbrae.
— Venha aqui — ele disse finalmente, estendendo a mão trêmula.
Eliana soltou uma risada alegre, embora seu coração batesse com um medo
rápido e terrível. — Meu senhor, estou usando duas camadas de lama e não
tive a chance de me banhar ...
— Cale a boca — Ele me cortou — E venha aqui.
Ela esperou o tempo que ousou, depois se levantou e se aproximou dele,
mantendo o olhar no rosto dele. Que ele saiba, com uma expressão
cuidadosamente criada de desdém e tédio, que o pensamento do que ele faria
com ela naquela cadeira não a assusta.
Ela era o Terror de Orline, não era?
Mas ela nunca havia tocado em um dos homens do imperador.
Ela se sentou no colo de Lorde Morbrae e tentou dar as costas à dor no
coração onde a memória de Harkan vivia. Mas de repente tudo em que ela
conseguia pensar era na risada dele, em seu sorriso largo, no bater de botas
no terraço do lado de fora da janela dela. Como ele a tocou, pela primeira
vez, com mãos trêmulas. Como ele sempre a abraçou depois como se ela
fosse algo precioso para ser mantido seguro e quente.
Harkan, ela pensou, com medo zumbindo em seus ouvidos enquanto
colocava as palmas das mãos no peito de Lorde Morbrae. Harkan, Harkan. O
que estou fazendo aqui?
Ele fez a mesma pergunta muitas vezes, e a resposta dela sempre foi a
mesma: sobrevivendo.
As pernas de lorde Morbrae eram longas e ossudas; os botões de sua
jaqueta uniforme esticavam contra sua barriga saliente. Como ele poderia
ainda estar com fome? Parecia ter ganho dez quilos desde que se sentaram.
O homem mudou à luz do fogo. Migalhas de pão grudavam nos lábios
manchados.
— Me deitei com muitas pessoas — Ele disse finalmente, sorrindo para
ela. Pedaços de carne ensanguentados estavam presos entre os dentes; seu
hálito estava rançoso, apesar de terem acabado de comer. — Mas nunca foi
bom. Nem uma vez, Terror. Mas talvez você...
Ele traçou os dedos longos por todo o braço dela, encontrou a gola aberta e
brincou com a pele suja.
— Talvez eu o quê? — Eliana se inclinou para mais perto, mesmo quando
sua garganta se apertou com repulsa, deixou um sorriso convidativo percorrer
seu rosto.
— Talvez você possa finalmente fazê-lo.
E eu vou. Lentamente, Eliana tirou a ridícula jaqueta de babados e a deixou
cair no chão. Sob a túnica, o pingente com a imagem arruinada do rei Audric
em seu cavalo voador estava com coceira e calor no peito. Se é isso que é
preciso — para Remy, para mamãe — é isso que vou fazer.
Lorde Morbrae observou todos os movimentos, seu olhar distante e sua
boca fina de frustração, como se ele já tivesse decidido que qualquer tipo de
experiência que desejasse, não encontraria aqui.
As mãos dele, no entanto, estavam apertadas nos quadris dela. Insistente.
Eliana se inclinou sobre ele, o coração batendo forte, e deixou os olhos
fecharem. Instruiu sua mente a se separar de seu corpo e se afastar em
segurança. Foi uma excelente habilidade, uma das primeiras sua mãe a havia
ensinado, e ela não era tão ruim assim. Lorde Morbrae era uma marca, como
qualquer outra. Ela passaria por isso como havia feito muitas vezes antes.
Exceto que isso não era como as muitas vezes antes. E quando Lorde
Morbrae exalou contra sua bochecha, seu hálito podre e estranhamente frio,
Eliana não pôde evitar. Se afastou dele. Os olhos se abriram.
Dois olhos negros encontraram os seus.
Naquele momento, foi como se algo tivesse saído da mente de Lorde
Morbrae e para dentro dela. Sentiu uma carga, como um raio, alcançá-la e
agarrá-la.
Eliana estremeceu em seus braços, e ele estremeceu debaixo dela.
E de repente Eliana não estava mais no posto avançado de Venteran.
Estava na varanda de um palácio, com vista para uma vasta terra espalhada
por colinas cobertas de neve. Sua visão estava nublada; formas mudaram
diante de seus olhos como se fossem desenhadas na superfície da água em
turbilhão. Se concentrou, lutando por equilíbrio. O mundo se esclareceu um
pouco: uma cidade brilhante. Bairros distantes se espalhavam, amontoados
entre estradas sinuosas pavimentadas com pedra branca. Pináculos de marfim
subiram aos céus. O nascer do sol derramava ouro rosa sobre uma cova
enorme do tamanho de uma montanha na terra. Luzes estranhas, como
tempestades em miniatura presas, brilhavam por toda a cidade.
Tudo isso era desconhecido, mas Eliana sentiu um pequeno puxão urgente
em seu coração.
Isso não parecia familiar?
Um movimento à sua esquerda chamou sua atenção. Eliana se virou, de
alguma forma, embora seu corpo se sentisse separado de tudo ao seu redor.
Ela não conseguia sentir a pedra dessa varanda sob seus pés, mas podia ver
claramente o mundo ao seu redor, sentir um leve aroma que a lembrava de
Orline — a água do rio, suor da cidade. Mas o ar aqui estava frio, cortante.
Este lugar.... Não era um sonho ou alguma visão delirante. Pelo menos ela
não achava.
Uma figura estava no parapeito de pedra, não muito longe dela, ao lado da
estátua de um homem alcançando o céu de braços abertos. Haviam várias
estátuas na varanda. Salientes, de cada uma das costas haviam asas
magníficas em forma de vidro colorido, fino como papel e incrustadas com
pedras cor de fogo. Não emplumadas, essas asas, mas esculpidas de chamas e
sombras.
Eliana reconheceu os números dos contos de Remy sobre o Velho Mundo.
Anjos?
Ela deve ter feito barulho. Algo mudou no ar. O homem ficou
terrivelmente quieto, então virou a cabeça para encará-la.
Cabelo preto brilhante enrolado logo abaixo das orelhas. Um casaco escuro
e elegante com ombros quadrados, preso com botões de latão sobre seu
coração, caiu de pé de maneira limpa. Sua pele estava pálida, as maçãs do
rosto finas, a boca cheia. Seus olhos eram mais negros do que os de Lorde
Morbrae.
Ela o reconheceria em qualquer lugar. Suas estátuas ficavam em todas as
esquinas de Orline. Enormes retratos dele, altivos e impossivelmente bonitos,
pairavam por todo o palácio do Lorde Arkelion.
O Imperador dos Imortais.
E, de alguma forma, embora ela soubesse que ele morava a meio mundo de
distância em Celdaria, ele estava olhando de volta para ela.
21
Rielle
"Quando Audric era menino, eu poderia considerar
seu carinho pela filha de Armand Dardenne como
inofensivo. Mas agora... vejo como ele a observa
quando pensa que ninguém está olhando. Irmã,
devemos desencorajá-los. Ludivine deve ser rainha.
Ludivine será rainha."
—Carta escrita por Lord Dervin Sauvillier a sua irmã, rainha Genoveve
Courverie
Ano 994 da Segunda Era
•••
— Quem é você?
Eliana se assustou ao ouvir a voz do imperador. Já havia a imaginado antes,
entretendo fantasias selvagens de invadir seu palácio em Celdaria e cortar sua
garganta antes que ele tivesse a chance de convencê-la disso.
Conversas sussurradas no palácio de Lord Arkelion haviam lhe dito que a
voz do imperador poderia invadir sua mente e seu coração, deixando-a
impotente para resistir a fazer o que ele sugerisse. O que Eliana havia
decidido há muito tempo não fazia sentido. Uma voz não pode controlar
você; quem dissesse o contrário era um tolo.
Mas nunca, em todos os seus devaneios ensopados de sangue, Eliana
imaginou que a voz do Imperador soasse assim. Um propósito vivido ali, sob
os tons ricos - resoluto e imóvel, antigo e astuto.
Ela deu um passo para trás, tropeçou em uma imperfeição na pedra do
terraço. — Eu não quis me intrometer.
— E ainda assim você fez. — O imperador se aproximou, com as mãos
atrás das costas. — Eu não consigo te ver muito bem. Você consegue me ver?
— Um pouco. — Ela se sentiu tentada a esfregar o ar, como se quisesse
limpar uma janela embaçada.
— Que curioso.
— Eu vou só... — Ela queria se virar e correr, mas a escuridão de seus
olhos a mantinha no lugar. — Eu vou agora.
— Oh, eu acho que não...
Ele congelou. Expressões que ela não conseguia decifrar em cascata
atravessavam o rosto dele: horror, alegria, espanto.
Raiva.
— Você — Sussurrou com voz rouca, toda a beleza desapareceu de sua voz.
Em seu lugar, havia um terrível desejo esfarrapado. — É você.
Eliana encontrou a grade do terraço atrás dela. — O que?
Rapidamente ele se aproximou, alcançando-a. — Fique aí. Onde está você?
Um grande estremecimento sacudiu o terraço, jogando Eliana para o lado.
Ela apertou as mãos contra a parede do palácio para evitar cair...
E de repente, o palácio, a cidade abaixo e o Imperador, se foram.
As paredes vermelhas da sala de jantar de Lorde Morbrae se erguiam
rapidamente e se fechavam ao seu redor. Seu rosto frouxo a encarava, olhos
nublados.
Como os olhos de um adatrox.
Ela se afastou dele, caiu com força no chão e se afastou.
— Quem é você? — Lorde Morbrae perguntou, levantando-se bruscamente
da cadeira. Procurando por ela, assim como o imperador havia feito. Sua voz
havia sido cortada em duas, parte dele, parte do imperador. — Venha aqui.
Venha até mim.
Uma explosão soou do lado de fora. Eliana reconheceu isso como o
começo de um bombardeio.
Simon.
Remy havia contado tudo a ele, e agora a Coroa Vermelha destruiria esse
posto avançado, com ela dentro.
Apesar de tudo, Eliana sorriu. Que rebelde seu irmão traidor acabara
sendo!
A sala tremeu: os pratos na mesa sacudiram e Lorde Morbrae tropeçou.
Três dos quatro adatrox estacionados ao redor da sala correram para a porta,
pegando suas espadas. Um copo de vinho caiu no chão e quebrou.
Eliana pegou o maior pedaço de vidro que pôde encontrar, levantou-se e
pulou em direção a Lorde Morbrae. Ele a viu tarde demais, esquivou-se
desajeitadamente. Eliana se perguntou se o cinza que nublava seus olhos
estava confundindo sua visão, então passou a ponta afiada do fragmento por
sua garganta. O sangue jorrou quente sobre suas mãos e suas roupas. Lorde
Morbrae fez um som terrível de asfixia, depois ficou de joelhos antes de cair.
O adatrox restante correu para Eliana. Ela pegou uma faca da mesa que
encontrou ao lado do cadáver de Lorde Morbrae, dando-lhe uma joelhada a
virilha, depois enfiou a faca na barriga. Eliana passou por ele, voou para o
corredor e correu direto para o cano do revólver de Simon.
Ele usava a máscara de metal do Lobo, mas mesmo com seus traços
ocultos, ela podia sentir sua fúria no ar como a carga de um raio.
Outro bombardeiro explodiu, este mais perto. Simon a agarrou pelos braços
quando algo no teto cedeu com um gemido rangente, ele a puxou com força
contra seu peito e a protegeu entre seu corpo e a parede. Uma das vigas caiu,
derrubando pedras.
— Por aqui. — Ele murmurou, sacudindo a poeira do capuz.
Ela empurrou contra seu aperto. — Onde está Remy?
— Com Navi. Então me ajude, senão vou jogá-la por cima do ombro para
tirá-la daqui, se necessário.
— Por que não me mata? — Limpou a areia dos olhos. — Eu sou uma
traidora, não sou? Eu pensei que você explodiria o lugar nos céus — E eu
com ele.
Ele riu amargamente. — Se fosse assim tão fácil.
Gritos e tiros soaram além das paredes do posto avançado, e Remy, Eliana
supôs, estava em algum lugar no meio delas. Se ela não cooperasse, talvez
nunca o encontrasse. Lançou um olhar para Simon e engoliu sua raiva antes
de segui-lo pelo corredor.
Atrás deles, veio um grito distante, seguido por outro.
Eliana girou. Inalando, ela provou fumaça.
A prisão.
Correu em direção, mas só deu alguns passos antes de Simon agarrar seu
braço.
— Me solte — Ela rosnou.
Ele fez, mas a manteve por perto — Então não fuja novamente.
— Há pessoas lá atrás — disse ela. — Refugiados. Prisioneiros. Crianças.
Temos que libertá-los.
— Nós não podemos.
— Por quê?
“— Porque meus soldados prepararam bombardeios ao redor do prédio.
Quando o fogo os atingir, eles detonarão. Em menos de cinco minutos, este
prédio não estará mais em pé.
Eliana sentiu como se o chão tivesse caído debaixo dela. — Você está
mentindo.
— Eu não estou.
— Bem, eu vou. — Ela começou a voltar para a prisão e, desta vez, quando
Simon a deteve, ela lhe deu uma cotovelada no estômago e o bateu com o pé,
mas Simon não a soltou.
— Me solte! — Ela lutou, se debatendo violentamente. — Que diferença
faz a você se eu morrer tentando salvá-los?
— Tão emocionado quanto estou com sua repentina onda heróica — Simon
disse — Eu não tenho que me explicar para você. Agora, anda.
Outro bombardeiro detonou, mais próximo ainda. Um pedaço de gesso caiu
do teto e atingiu a cabeça de Eliana. A dor atingiu seu crânio; balançou,
tentou avançar, tropeçou.
Com uma maldição, Simon a pegou, enfiou a arma nas mãos dela e a pegou
com facilidade nos braços.
— Se alguém vier até nós — ele ordenou. — Atire neles.
Ele correu, mantendo a cabeça dobrada sobre a dela. Nuvens de poeira,
fumaça e areia embaçavam seu caminho. Eliana tossiu contra o peito de
Simon, pensou em atirar em seu estômago naquele momento.
Mas então dois adatrox saíram das sombras. Eliana virou nos braços de
Simon e atirou cinco vezes. Ela tinha uma mira ruim, mesmo sem ter sido
atingida na cabeça, mas a sorte ajudou pelo menos duas de suas balas
acertarem o alvo. Os adatrox estremeceram e caíram.
Viraram uma esquina e outra, passaram por uma sala crepitando com
chamas e outra onde um adatrox de olhos vidrados estava no limiar, o braço
estendido. Papéis marcados com estampas enlameadas de botas cobriam o
chão.
Então, um tiro atrás deles, quase os atingindo. Eliana olhou além do ombro
de Simon, e seu estômago tremeu de medo.
Lorde Morbrae.
Ele estava vivo.
Ele os perseguiu pelo corredor, um rifle na mão e, embora seu rosto,
pescoço e jaqueta brilhassem com sangue, Eliana não viu ferimentos na
garganta.
Impossível.
Ela apontou o revólver para Simon e atirou, mas nada aconteceu.
—Você usou todas as malditas balas. — Simon chutou uma porta três
vezes antes de abrir. Uma vez aberta, ele chutou de volta. Lorde Morbrae
atirou de novo; a madeira da porta lascou os calcanhares de Simon.
Ele abaixou Eliana ao chão. Estavam do lado de fora. Tinha que ter sido
perto do meio dia, mas nuvens e fumaça escureciam o céu. A parede do
perímetro do posto avançado estava em chamas. Eliana ouviu gritos,
comandos berrados. Simon a puxou desajeitadamente, o braço em volta da
cintura dela enquanto corriam.
Ah, certo, Eliana pensou, tonta, a dor em sua cabeça agora tinha
desaparecido completamente, seus membros fortes e firmes mais uma vez. Eu
deveria estar machucada. Inclinou-se no corpo de Simon, o deixando ajudá-
la.
Um coro de lamentos estridentes começou atrás deles. A porta pela qual
eles saíram se abriu. Eliana viu Lorde Morbrae procurar através da fumaça,
localizá-los e levantar a arma. Os gemidos aumentaram, estridentes e
dissonantes.
Simon empurrou Eliana à frente dele. — Abaixe-se!
Ela obedeceu, deslizando por uma ladeira molhada até um desfiladeiro
estreito e pantanoso. Simon se jogou atrás dela e cobriu o corpo dela com o
seu.
O mundo explodiu.
•••
A abertura da gaiola arremessou Rielle por uma calha lisa e sobre uma
pequena plataforma tão pequena que ela quase caiu sobre a borda.
A multidão acima soltou gritos de consternação.
Balançou e recuperou o equilíbrio. Uma explosão de calor subiu por baixo
dela. Olhando para baixo, viu uma massa agitada de metal — polias
assobiando, espadas voando e ventiladores zunindo, grandes placas de aço
batendo umas nas outras, escadas dobrando-se e se transformando num piscar
de olhos em longas rampas manchadas de óleo.
Ela não podia deixar esse lugar horrível sem as três crianças. Todo o seu
esforço nessas provações seria por nada; as pessoas se voltariam contra ela.
Mas era mais do que isso.
Rielle olhou através das barras pretas da gaiola para a multidão fervilhante
acima.
Você quer que eles a amem, Corien observou, parecendo surpreso.
Rielle jogou os braços sobre a cabeça e cruzou os antebraços, ecoando o
sigilo da Forja. Aplausos da multidão em resposta
Sim, ela pensou. Eu quero que eles me amem.
Então se virou e correu — não para o canto oposto do labirinto, onde ela
pensou ter vislumbrado uma porta que a levaria para a saída. Em vez disso,
correu para a criança mais próxima, com o rosto castanho pressionado nas
barras da gaiola.
Ela pulou sobre um abismo estreito ao lado da plataforma e desceu uma
escada. Abaixo de seus pés, cada passo ela caia um pouco, desaparecendo
enquanto corria. Rielle era quase rápida o suficiente.
Quase.
Perto do final da escada, os degraus desapareceram completamente. Rielle
deslizou pelo último trecho, caindo rapidamente na terra, de joelhos primeiro,
em um convés de grade de metal que se inclinava de um lado para o outro. A
aterrissagem enviou picos de dor pelas pernas. Apertou a grade, rangendo os
dentes enquanto seu estômago se revirava violentamente.
— Por favor! — Gritou a criança, não muito longe. — Por aqui! Por favor,
minha senhora!
Rielle fechou os olhos, tentando respirar. Ela quase podia ouvir a voz
paciente de Tal em seu ouvido: O empirium está sempre lá. Cada momento,
cada respiração, cada centímetro da vida que você toca. Esperando por
você.
Corien comentou suavemente: Seu professor não está errado.
Rielle apertou a mandíbula.
Mas o empirium não espera apenas por você, Rielle., ele continuou. Ele
anseia por você. Ninguém mais o entenderá como você pode. Anseia por
você da mesma maneira que um amante anseia por seu companheiro.
Rielle abriu os olhos. O mundo ao seu redor começou a brilhar. Os dedos
dela se curvaram. Eu também o anseio.
Querida, eu sei disso. Não resista. Estenda a mão e o pegue.
Ela estremeceu, o calor inundando seus membros.
— Pare. — Ela sussurrou, estendendo a mão para as engrenagens agitadas
como as bordas de sua mente.
O convés abaixo dela estremeceu, diminuindo a velocidade. Rielle bateu as
palmas das mãos contra a grade, sentiu o sabor de metal na língua, sentiu as
vibrações nos braços. Uma onda de energia dourada saiu de suas mãos,
ricocheteando pelo labirinto.
— Pare. — foi um comando
O convés parou bruscamente. Com um grito sufocado, Rielle perdeu o
controle, caiu e, em seguida, estava na beira do convés no último segundo
com apenas os dedos segurando.
— Aqui! — A criança gritou, abaixo e atrás dela, à direita.
Rielle olhou por cima do ombro, os pés balançando. Os fios de
concentração que ela conseguiu se romperam. Prata brilhava no canto do olho
— magia de metalmaster?
Ela seguiu a trilha até um conjunto sinuoso de escadas que se separaram
em placas de metal rodopiantes. Elas giraram direto para ela, cortando o ar
como facas giratórias. O desespero deu-lhe força; balançou o corpo uma vez
para ganhar impulso, depois se lançou no ar para a plataforma onde ficava a
gaiola da criança.
As placas de metal simplesmente passaram por ela, batendo no convés do
qual ela havia se pendurado apenas alguns segundos antes.
Tremendo, os olhos ardendo de suor e óleo, Rielle mexeu na fechadura da
gaiola da criança. O quase acidente com as placas voadoras a desestabilizara;
mal podia ver, mal podia pensar.
A criança gritou para ela, soluçando: — Depressa! Por favor, depressa!
— Estou tentando! — Disparou e então viu a razão do terror dele: sua jaula
estava encolhendo.
Em segundos, ele seria esmagado.
Se ela saísse daqui viva, rasgaria a carne do Arconte de seus ossos e
saborearia todos os seus gritos moribundos.
Empurrou a palma da mão contra a fechadura com um grito furioso. O
poder bruto chiou em seu braço e fora de seu corpo, derrubando a criança e
quebrando a fechadura. Os restos de metal voaram.
Ela abriu a porta. — Vamos!
A criança se atirou nela e passou os braços em volta de seu pescoço.
No alto, a multidão começou a aplaudir. Sob o barulho, Rielle ouviu um
rangido metálico e olhou para cima. Uma pequena porta no teto da gaiola
estava se abrindo. Dois metalmasters estavam agachados lá, estendendo os
braços para o garoto.
Mais duas. Rielle o empurrou para a segurança, sem esperar ouvir a porta
se fechar. A criança mais próxima estava gritando por ela no outro extremo
do labirinto.
Entre eles, havia uma série de corredores móveis, feitos de blocos de metal
quebrados do tamanho do corpo de Rielle, lanças que se atiravam ao acaso,
escadas que giravam e se transformavam sem pausa, caminhos que
rodopiavam em seus eixos como lanças sobre o fogo — muitos movimentos
para conseguir acompanhar. Observando-os, se sentiu totalmente pequena; o
pensamento de fazer suas orações parecia ridículo, inadequado.
Rielle seria esmagada. Não tinha o controle para deslizar por um labirinto
tão cruelmente projetado. Se ao menos tivesse mais tempo para pensar.
Apertou os olhos através do caos selvagem e cintilante, com as mãos
trêmulas.
Não se arrisque, Veio a voz de Corien – agora tensa e sem divertimento.
Você é poderosa, mas não é imortal.
Eu poderia ser, Rielle pensou. E isso a chocou, a fez se endireitar e piscar
de surpresa. Não quis dizer uma coisa dessas; a própria ideia era absurda. E,
no entanto, as palavras surgiram em seu corpo, automáticas e instintivas.
Sim, Corien respondeu pensativamente. Você poderia ser, eu acho.
Rielle se sacudiu, silenciando-o. Essa era uma conversa para mais tarde.
Afinal, ela não era imortal hoje.
A plataforma abaixo dela mudou. Respirou fundo, correu para frente no
momento em que a plataforma estremeceu e cedeu. Ela olhou para trás,
frenética.
Olhos para frente, Rielle!
A voz de Corien fez Rielle girar bem a tempo. Um pêndulo de metal
gigantesco balançou em sua direção. Estendeu o braço. Engrenagens
gritaram; soou como um baque, como um martelo atingindo uma bigorna. O
pêndulo, agora torcido e amassado, parou.
Rielle correu, esquivando-se de lanças que avançaram rapidamente em sua
direção. O caminho à frente mudou, tirando-a de seus pés e a fazendo descer
por um túnel estreito feito se redes. Ela caiu e mordeu com força a língua.
Provando sangue e tonta, ela olhou através das redes do túnel. Era um de
muitos — um nó rotativo de gaiolas em forma de túnel, longas e finas. Ela
rastejou, procurando uma saída, enquanto os nós do túnel giravam cada vez
mais rápido. Eles ataram e desataram como uma massa de cobras se
contorcendo. Um pedaço de rede à sua frente se abriu, criando uma saída.
Rielle tentou, mas não foi rápida o suficiente: a rede costurada se fechou no
espaço de um piscar de olhos. Gritou de raiva, quase bateu as mãos contra
ela, se contendo.
Pense, Rielle. Se você estilhaçar essa armadilha, cairá — e para onde?
Olhos fechados, lutando para forçar sua mente a ficar clara, Rielle
encontrou o caminho que precisava. Viu o labirinto se organizar
ordenadamente, de modo que o ninho contorcido de túneis que a prendiam se
desenrolasse e ficasse imóvel. Ela viu um caminho que saía do túnel e descia
para uma escada robusta que a levaria a segunda criança enjaulada.
A imagem se desenrolou nos olhos de sua mente como um mapa, com
bordas douradas e cintilantes, e quando abriu os olhos mais uma vez, um mar
de minúsculos grãos brilhantes piscou sob o véu instável do mundo físico.
Então o mundo se refez assim como ela instruiu.
O poder disparou de seus dedos para deslizar pela gaiola. Ela sentiu seu
progresso como um calor escorregadio sob a pele, sentiu o metal áspero sob
os tentáculos de seu poder, como se suas próprias mãos estivessem tocando
nele. Os olhos dela se fecharam de prazer. Os nós em seu corpo se soltaram e
depois desapareceram. Um calor líquido estremeceu em cascata em seus
membros e se acumulou em sua barriga, tremeu em suas coxas.
O labirinto ao seu redor mudou, gemendo como se em protesto. Os
metalmasters acima estavam lutando pelo controle.
Ela sorriu saciada. Boa tentativa.
Assim como Rielle imaginara, o túnel que a prendia se soltou, dócil. Sua
abertura parou em uma ampla plataforma que levava a um conjunto de
escadas. Rielle se arrastou para fora, parou por um momento para recuperar o
fôlego. Sentia-se cheia de energia, como se estivesse despertando do melhor
sono de sua vida.
Ohou para a multidão, para os dois picos das montanhas acima, para o sol
além.
Rielle curvou-se para baixo, com um floreio indolente de suas mãos.
A multidão explodiu em aplausos, tão alto que, mesmo da profundidade do
poço, os ouvidos de Rielle zumbiram com o barulho.
Sorrindo, ela subiu as escadas até a gaiola da segunda criança. Esta era uma
garota, pálida e de membros finos, os olhos grandes e escuros no rosto de
bochechas vazias. Espreitando por baixo de mechas de cabelo castanho
emaranhado, soluçava incontrolavelmente.
Rielle levou sua mão à fechadura da gaiola, sentiu o poder eufórico de
alguns momentos antes de penetrar no metal como uma droga.
Com um chiado silencioso, a fechadura desmoronou, derreteu e pingou
prata nas escadas.
Rielle olhou para a garota, os olhos arregalados.
— Está tudo bem. — disse ela, sem fôlego. — Estou aqui para salvá-la.
A garota ficou boquiaberta para ela. — Você é a Rainha do Sol, minha
senhora?
Rielle estendeu a mão para ela. — Eu serei em breve.
A garota pulou de seu esconderijo e disparou aos braços abertos de Rielle.
Mas então, com um grande gemido, a gaiola inteira balançou embaixo
delas. Rielle balançou, apertou ainda mais a criança.
Uma onda de gritos horrorizados soou da multidão acima.
— Minha senhora — sussurrou a criança. Ela levantou a mão trêmula para
apontar para o labirinto abaixo deles. — Está caindo.
Ela estava certa. Rielle olhou, seu terror subindo rapidamente quando a
gaiola começou a se mover — do canto inferior ao canto superior.
Rapidamente desabou, dobrando-se sobre si mesma. A horrível raquete de
trituração soou como todos os eixos do mundo colidindo um contra o outro.
E a terceira criança ainda estava presa bem abaixo.
Acima, o rangido de uma porta. Rielle empurrou a garota na direção dela
sem pensar. — Escale!
A criança agarrou-se a ela. — Você morrerá! Venha comigo, por favor!
Rielle pegou o rosto da criança em uma mão. — Você realmente acha que
eu, a Rainha do Sol, deixarei uma jaula tão insignificante ser o meu fim?
Com um sorriso trêmulo, a garota balançou a cabeça.
Rielle devolveu o sorriso e a empurrou por uma escada longa e magra para
os metalmasters à espera. Depois que eles tiveram a criança na mão, o chão
embaixo de Rielle cedeu.
A queda sufocou seu grito. Caiu quinze metros e bateu em um dos vários
postes rotativos. Eles giravam a partir de um mecanismo central como raios
de uma roda de carruagem. Agarrou-se ao poste que havia quebrado sua
queda. Rielle mal conseguia respirar; seu estômago estava machucado pelo
impacto.
Mas de repente, mesmo com sua exaustão, Rielle teve uma ideia.
Ela fechou os olhos. Eu consigo fazer isso.
Corien respondeu com firmeza: Você consegue.
Soltou o poste, caindo sobre uma placa de metal que estava zunindo no ar
apenas alguns segundos antes. Ao bater nas botas de Rielle, a placa parou
congelada no ar.
Ela levantou as mãos, sentiu a energia quente fervendo entre ela e aqueles
postes giratórios e os fez voar.
Eles giraram em todas as direções, tão rápido que qualquer um deles
poderia ter cortado um homem pela metade. Rielle torceu os pulsos
bruscamente no ar. Os postes bateram até parar, enfiando-se nos quatro
cantos da gaiola.
A gaiola estremeceu, seu colapso parou. Cada pedaço de metal tremia no
lugar, rangendo terrivelmente.
Isso não duraria por muito tempo.
Rielle correu pelo ar, convocando placas de metal das paredes enquanto
corria. Eles voaram para levá-la ao andar, as escadas, os labirínticos
caminhos cruzando o cubo. Ela jogou cada prato à sua frente, pisou
levemente, empurrou e seguiu em frente.
Corien soltou uma risada admirada. Maravilhoso, Rielle. Impressionante.
O orgulho floresceu no peito de Rielle. A cada passo em seu caminho
flutuante de metal, ela sentia o poder se reunir a seus pés. Quando ela
aterrissou ao lado da gaiola da terceira criança, ela se desfez ao seu toque,
deixando a criança em pé, tremendo, em suas ruínas.
— Venha aqui. — Rielle ofereceu sua mão com impaciência. Cada
centímetro de sua pele formigava. Distantemente, ela sentiu a dor gritante de
seus músculos. — Está quase acabando.
— Como você fez isso? — A criança perguntou, boquiaberta. — Você
estava voando.
Uma série de colossais colisões metálicas explodiram em torno deles.
Rielle olhou para cima e viu os postes nos cantos cedendo.
Mas a gaiola não continuou com seu colapso.
Em vez disso, levantou-se no ar, o metal gemendo. Rielle agarrou a
criança, observou a base móvel da gaiola em busca de uma abertura e depois
pulou através dela até o chão. Ela e a criança caíram com força; a criança
gritou, encolhendo o pé. foot. Acima deles pairava a gaiola, girando
lentamente.
TEntão se rearranjou, o labirinto de metal se partindo, reformando,
afiando…
Uma tempestade de lâminas, dez mil, girou como uma e correu em direção
ao local solitário na terra onde Rielle e a criança estavam agachadas.
Rielle olhou, o pânico percorrendo sua garganta. O tempo diminuiu e
acelerou, ambos ao mesmo tempo. Ela podia ouvir Corien gritando para ela
fazer algo, se defender, se mover.
Mas milhares de espadas? Isso era muito mais. Manipular alguns pedaços
do labirinto era uma coisa. Mas isso — elas escureceram o céu. Elas
assobiavam e rugiam. Elas a cortariam em pedaços — e a criança também.
A criança agarrou seu pulso. — Que a luz da Rainha nos guie para casa —
ele sussurrou para ela, o sorriso no rosto não de resignação, mas de crença.
A oração da Rainha do Sol. A luz da Rainha do Sol.
Sua luz.
Seu poder.
Sim, Corien sussurrou. Sim, Rielle.
Rielle puxou a criança para perto, depois se virou para as espadas, fechou
os olhos e levantou os braços.
Não.
Ela recusava esse destino.
Não.
Tinha provas para completar, amigos esperando por ela, o mistério do
assassinato de uma princesa estrangeira a resolver.
Não.
Ela ainda tinha palavras de amor para falar.
E uma voz em sua cabeça.
E uma fome, um desejo, de responder o despertar do seu sangue.
Não.
Não ainda.
Ela esperou em silêncio, seu corpo tremendo. O poder se estendia de seus
dedos, das curvas agudas de seus ombros, das pontas de seus cabelos.
Teria sido suficiente?
Respirou fundo algumas vezes no silencioso toque, depois se atreveu a
abrir os olhos.
Uma lâmina pairava diante de seu rosto. Mais duas, apontando para cada
um dos olhos. Centenas. Milhares, todas mantidas no lugar por seu comando
silencioso. Elas enchiam o poço, tremendo, negaram a sua matança. O ar
zumbiu metálico.
Rielle soltou um suspiro incrédulo e choroso.
Então deixou seus braços caírem.
As espadas caíram no chão, formando um círculo perfeito ao redor da terra
onde Rielle se ajoelhou com a criança. Sua queda sacudiu o chão. As lâminas
apontavam para longe dela; estava sentada no centro de um sol de metal
chamuscado.
Lentamente, o mundo voltou para ela. Rielle piscou, limpou os olhos. Uma
crescente onda de vozes a fez erguer os olhos.
O povo de Celdaria estava de pé. Eles estavam gritando o nome dela — um
canto, uma oração.
Rielle! Rielle! Rielle!
Ela levantou o rosto para o céu e mostrou-lhes o seu sorriso.
24
Eliana
"Algo está errado com Lorde Arkelion. Ele me levou
para sua cama, ordenou que eu o machucasse
enquanto ele estava nu diante de mim. Eu o fiz
alegremente, mas suas feridas se fecharam quase
imediatamente. Ele rugiu, se contorceu e chorou.
Está doente, talvez louco. Acredito que todos os
homens do imperador estejam loucos. Cada um
deles."
—Mensagem codificada escrita pela princesa Navana Amaruk de
Astavar, entregue ao subterrâneo da Coroa Vermelha
•••
•••
•••
Eliana fechou os olhos, cansada. — Remy, por favor, não comece com essa
bobagem novamente.
— Será que os humanos se parecem com eles? — Remy insistiu.
— Ele tem essas teorias de estimação, você vê. — disse Eliana a Navi.
— Seus olhos negros — continuou ele. — Todos falam sobre eles. Você
mal consegue ver o branco ao seu redor, é o que eu ouvi.
Eliana acenou com a mão com desdém. — Quem sabe a que tipos de
drogas os generais do imperador têm acesso?
— Então explique as visões que você e Navi tiveram quando estavam perto
deles. Os anjos usavam a telepatia. Todas as histórias antigas dizem isso.
— E as histórias antigas —, disse Eliana, — são exatamente isso. Histórias
de um mundo tão distante no passado que ninguém consegue se lembrar, e a
maioria das pessoas inteligentes acreditam que nunca existiram, exatamente
como dizem essas histórias. — Ela respirou fundo, mais instável do que
gostaria. — As pessoas procuram conforto em qualquer lugar em tempos
como o nosso, Remy. Acredite no que quiser, em um mundo de anjos, magia,
telepatia e viajantes que podem se deslocar de uma ponta a outra no tempo,
mas prometa-me que se lembrará que é simplesmente isso. Uma crença. Não
é verdade, não está provado...
— E a maneira como seu corpo pode se curar? — Remy interrompeu. —
Isso é crença? Ou é um fato?
Eliana olhou para ele, mas não disse nada. Mas é claro que ele estava certo.
Ela não podia ignorar a simples verdade de seu próprio corpo.
— Por que você não acredita em mim? — finalmente veio a voz de Remy,
mais suave agora. — É a única coisa que faz sentido depois do que você viu,
não é?
— Porque se os anjos estão vivos e são reais, então estamos bem e
verdadeiramente fodidos, e não há sentido em nada disso — Eliana retrucou,
levantando-se. — Não há sentido em estar nesta sala, não há sentido em
procurar a mãe.
— Não faz sentido as pessoas que você matou e traiu. — concluiu Navi.
Eliana se virou para encará-la. — E não faz sentido os anos que você
desperdiçou como prostituta do Império.
— El, pare com isso! — Remy sibilou.
— Espiã é a palavra que eu — disse Navi suavemente. — Isso me ajuda a
afastar os pesadelos.
Eliana se afastou alguns passos com os braços cruzados. De repente, ela
ansiava que Simon aparecesse, apenas para poder atirar suas facas em algo
que pudesse revidar e não lhe mostrar misericórdia.
— Sinto muito — ela murmurou, recusando-se a olhar para Navi. — Eu
não deveria ter dito isso.
— Não, você não deveria — disse Navi. — Mas eu aceito suas desculpas.
— Eles podem não ser anjos — Remy admitiu, depois de um momento. —
Eu nunca li histórias sobre anjos com olhos negros sólidos. Mas então,
aquelas visões que você viu... isso não pode ser nada.
— Se eles não são anjos, o que são? — Eliana fechou os olhos. — O que
eu sou?
— Talvez — disse Navi, depois de um momento — Você possa ser uma
marques?
— Parte humana, parte anjo? — Eliana voltou-se para ela vociferando uma
risada áspera — Ah, que bom. Isso é melhor. Estou totalmente tranquila.
— Não, acho que não — Remy refletiu, mordendo o lábio. Excitação
iluminou seus olhos, aquecendo de má vontade o coração negro de Eliana.
Logo ele estaria andando, dando-lhes sermões como um erudito em miniatura
de um templo. — Marques tinham marcas nas costas onde as asas poderiam
estar. E a maioria deles morreram durante as Guerras Angélicas, antes mesmo
da rainha Rielle nascer. Eu acho que se El fosse uma marques, haveria algum
sinal nela.
Uma batida forte na porta fez todos pularem.
Navi virou-se imediatamente onde estava sentada. — Simon.
— Nem uma palavra para ele — alertou Eliana. — Ou juro que vou
rasgar...
— Eliana, você poderia parar de me ameaçar a cada cinco minutos? Eu
disse que não contaria a ninguém, e eu estava falando sério. — Navi hesitou,
depois se aproximou lentamente, com uma mão estendida. Na palma dela
estava Arabeth. — Pegue. Por favor.
Eliana obedeceu, arrancando a faca antes que Navi pudesse mudar de idéia.
Com Arabeth segura em seus dedos, alguns dos nós agitados em seu peito
afrouxaram seu aperto.
— Eu gostaria — disse Navi com um pequeno sorriso, — que as coisas não
fossem assim entre nós. Eu gostaria que fôssemos amigas. Para nós
confiarmos uma na outra. — Ela fez uma pausa e olhou para Remy. — Se
realmente existem anjos no mundo, como seu irmão acha que pode ser o
caso... precisamos manter por perto todos os amigos que encontrarmos. Você
não concorda?
Outra batida mais aguda na porta. — Ignore-me por sua conta e risco —
veio a voz de Simon.
— Você é um idiota! — Eliana gritou por cima do ombro.
— Eu nunca afirmei não ser — respondeu ele.
Navi riu baixinho. — Então? O que você acha?
Eliana balançou a cabeça. — Eu não sou boa em ter amigos.
— Eu também perdi a prática. Vamos tentar lembrar como se faz, juntas?
— Não, não se preocupe, fico feliz em esperar aqui fora para sempre —
veio a voz irritada de Simon.
Remy começou a rir, parecendo mais uma criança do que parecera em
longos meses. Derreteu o último resquício de cautela que havia em Eliana.
— Vou tentar — disse ela finalmente e apertou a mão de Navi. — É tudo o
que posso prometer.
Navi sorriu calorosamente para ela. — Isso é um presente. Agradeço-lhe
por isso. Agora — Ela levantou as sobrancelhas para a porta. — Devo deixá-
lo entrar?
— Oh, por favor, permita-me. — Com isso, Eliana marchou até a porta do
banheiro e a abriu com um sorriso—o que rapidamente saiu do rosto dela
quando viu Simon parado ali. As calças de linho estavam baixas nos quadris,
e ele não usava mais nada, exceto uma toalha azul escura pendurada no
ombro. Seu cabelo loiro acinzentado estava despenteado e desarrumado, e
sua pele arruinada… Eliana não conseguiu parar de olhar para ele. Além da
camada de terra que o cobria, finas linhas prateadas e finas manchas de pele
cintilantes com cicatrizes de queimadura serpenteavam por seu peito e pelo
abdômen, deslizando sob a cintura das calças.
Por um momento, Eliana se viu realmente imaginando o que havia
acontecido com ele—o que o queimara, quem o havia cortado—e como ele
era quando criança, antes que os horrores do mundo o encontrassem.
— Minha nossa —, ele murmurou, seus olhos azuis brilhando com alegria
desenfreada. — Nunca vi o Terror ficar tão sem palavras. Você sabe como
fazer um homem se sentir bem, devo dizer.
A boca de Eliana se abriu e fechou, suas bochechas em chamas.
Esforçando-se para pensar em algo inteligente para dizer, sua mente confusa
não poderia ter pensando em nada melhor do que — Veio me espiar nua, não
é?
Ela estremeceu.
Mas Simon apenas sorriu. — Oh, Eliana — ele murmurou, sua voz não
mais brincalhona — eu quero muito mais do que apenas uma espiada.
Com um último olhar, demorado, ele passou por ela no banheiro, e Eliana
foi deixada em pé na porta, sozinha e instável, sua mão formigando do roçar
dos dedos dele contra os dela.
Foi uma coisa estranha que a desequilibrara tanto, além da reação de seu
corpo solitário ao dele. Uma sensação que às vezes lhe ocorria quando Simon
estava perto, e que ela não conseguia explicar. Uma sensação de algo
familiar.
Como ela se sentira quando estava no terraço com vista para Celdaria
durante sua visão do Imperador—um sentimento irracional de pertencimento
e retidão.
Uma sensação, ela pensou, atordoada e levemente irritada, de casa.
29
Rielle
"Eu não sei o que vocês dois estavam pensando, e
Deus sabe que eu não quero que vocês me
expliquem. Mas, se você precisar de um lugar para
se esconder ou fugir, saiba que sempre pode vir até
mim. Nem mesmo Sua Santidade conhece todos os
lugares secretos desta cidade e quantos deles
pertencem a mim."
—Mensagem de Odo Laroche para Lady Rielle Dardenne
24 de maio do ano 998 da Segunda Era
•••
Mais tarde naquela noite, Eliana esperou até ouvir a ligeira batida de Camille
na porta do quarto, depois saiu de baixo do braço de Remy, arrancou as
adagas do chão e entrou no corredor.
Camille esperou, com o rosto carregado e tenso. — Você está pronta?
— Estou aqui, não estou? Lidere o caminho.
Elas se moveram silenciosamente em direção à entrada da frente. Eliana
colocou Arabeth no coldre do quadril, enfiou Whistler no que estava debaixo
da manga esquerda e Nox na bota esquerda, depois enfiou Tuora e Tempest
nos bolsos internos de sua jaqueta.
Na porta que dava para o Santuário, Camille a deteve. — Não posso dar-
me o luxo de perder mais alguém do meu pessoal. Se te meteres em
problemas por aí esta noite, estás por tua conta a risco.
Eliana assentiu uma vez. — E se eu não voltar?
A expressão de Camille suavizou um pouco. — Vou dar ao seu irmão sua
mensagem. Não se preocupe, Terror.
— Eu nunca me preocupo se posso evitar — respondeu Eliana suavemente,
então saiu pela porta e ouviu Camille fechá-la e trancá-la atrás dela.
Ela rastejou pelo corredor atapetado e entrou no amplo mezanino do
terceiro andar do Santuário. Imediatamente, o fedor do mundo fora dos
apartamentos de Camille tomou conta de Eliana—o fedor quente de corpos
sujos, cerveja derramada, pratos de comida deixados para azedar. Às nove e
meia, o Santuário se arrastava com centenas de almas buscando distração do
mundo lá em cima, e a noite apenas começara.
Duas mulheres brigavam em uma das gaiolas de combate. Um barulhento
jogo de cartas ocupava metade do segundo andar, os espectadores gritando
suas apostas enquanto os jogadores jogavam dados em nuvens de fumaça.
Entre dois pilares em um canto escuro, duas figuras seminuas se contorciam
contra a parede.
Eliana passou por todo o terceiro andar, que abrigava dezenas de outros
apartamentos além dos de Camille. No quarto andar, portas com cortinas
vermelhas e franjas de contas abriam caminho para um bordel, do qual
flutuavam sons de música estridente e risadas desenfreadas. A bílis de Eliana
subiu ao receber olhares tímidos dos meninos com coleiras em volta do
pescoço, os gritos distantes e lamentosos que delimitavam a linha entre
prazer e dor.
Ela correu pelo quinto nível, depois voltou ao segundo e ao primeiro. Lá, o
barulho das lutas de boxe—socos, aplausos e gritos de obscenidades—abafou
todas as conversas mais silenciosas. Eliana não podia se mover sem esbarrar
contra um estranho. Gotas quentes de suor das gaiolas e dos espectadores
gritando espalharam-se por seus braços.
Se Fidelia quer arrebatar garotas invisíveis, Eliana pensou, este é o lugar
para fazê-lo.
Ela foi direto para o bar e colocou três moedas de cobre no balcão. — A
melhor cerveja que você tem.
O barman torceu os lábios. — Não temos nenhuma cerveja boa.
Eliana sorriu, jogando o casaco de lado para mostrar a lâmina brilhante de
Tuora. — Encontre-me um pouco. Rapidamente.
O barman suspirou e revirou os olhos. Mas ele fez o que ela pediu,
deslizando uma caneca de cerveja suja sobre a bancada com um toque de
desdém no pulso. Ela pegou a caneca, jogou outro cobre para ele porque
estava se sentindo generosa e se afastou.
Eliana levou a caneca aos lábios enquanto caminhava. Após o primeiro
gole, sua boca ficou tensa de nojo. O barman não mentiu; a bebida tinha
gosto de mijo.
Ela deslizou em uma cabine estreita de madeira contra a parede oposta, as
costas das bancadas altas e privadas.
Já havia se passado uma hora desde que ela deixara os apartamentos de
Camille e, apesar de toda conversa sobre o medo de Fidelia correr solta em
Rinthos, Eliana não viu nada digno de atenção. A cabine sombreada era um
lugar tão bom quanto qualquer outro para se sentar e observar, normal e
despercebida, até que ela se tornou parte da sala tanto quanto os móveis
antigos e sujos.
Às vezes, ela pensou, o caçador não deve rondar, mas sim esperar. E
assistir.
Ela deslizou para baixo em seu assento, apoiando as botas em cima da
mesa. Era bom trabalhar de novo, instalar-se e observar as engrenagens sujas
do Santuário girarem ao seu redor. Desde seu bombardeio, ela se sentiu
diferente de si mesma, sacudida e desequilibrada. Mas isso... isso era
familiar.
Era um bom local: ela ainda podia ver o bar, as lutas de boxes e pelo menos
uma das entradas do Santuário, embora não fosse a que eles haviam passado
dois dias antes. Ela imaginou que deveria haver todo tipo de buraco de rato
para entrar e sair de um ninho tão vil. Há 20 metros de distância, uma mulher
de pele marrom meditava sobre a caneca. Há duas mesas adiante e à
esquerda, um grupo de homens e uma mulher pálida com tranças negras
selvagens uivavam de tanto rir.
À direita de Eliana: um homem de pele de ébano e uma mulher sardenta,
estavam terminando tigelas de ensopado. Uma das brigas terminou. Uma
multidão cantando levantou o vencedor sangrento até os ombros e começou
um desfile improvisado.
Eliana tomou outro gole de sua bebida, os olhos vagando pela sala escura e
cheia de gente sobre a borda da caneca—e então congelou.
Ela piscou algumas vezes, como se tentasse clarear a visão de um pontinho.
Uma pressão repentina e pesada a prendeu no banco, fazendo a cabeça girar.
Uma sensação de injustiça encheu o ar, um leve cheiro azedo, como se
alguém tivesse estalado um chicote de má intenção através da sala.
Um calafrio percorreu seu corpo.
Lembrou-se daquele sentimento, daquele perfume, de Orline — da noite
em que tentara salvar a criança sequestrada e da noite em que sua mãe
desapareceu. Era mais violento agora, o sentimento. Mais perto. Urgente. Ela
agarrou a borda da mesa, lutando contra o desejo de deitar a cabeça na
madeira. O mundo oscilou, torto.
Debaixo da mesa, Eliana encontrou Arabeth e se sentiu um pouco melhor
quando seus dedos envolveram o punho da adaga.
O frio em seus ombros se tornou uma pontada aguda de aviso.
Ela forçou o olhar.
A mulher que estava sentada sozinha, franzindo a testa por causa de sua
bebida, se foi. Sua cerveja estava derramada sobre a mesa, pingando no chão.
Sua caneca rolou até parar debaixo da cadeira em que ela estava sentada.
Mas ela poderia simplesmente ter deixado a mesa.
Com a boca seca, o coração batendo forte, Eliana rapidamente correu de
volta pelo caminho das pessoas que observara apenas alguns segundos antes,
antes que o mundo mudasse.
A mulher de tranças negras se fora. O homem que estava sentado ao lado
dela deu um tapa na cadeira vazia, enxugando lágrimas dos olhos enquanto
um dos bêbados vomitava.
E o homem e a mulher que estavam terminando o ensopado—o homem
agora estava sentado sozinho, com a cabeça na tigela enquanto bebia as
últimas gotas da refeição. A tigela da mulher bateu no chão e quebrou; o
homem olhou para ela, franzindo a testa, confuso, depois esticou o pescoço
para espiar pela multidão.
Três mulheres, todas desaparecidas em questão de segundos.
Três mulheres se foram como sua mãe.
Eliana lambeu os lábios, seu sangue quente estava zumbindo. Ela
desembainhou Arabeth e levantou-se.
Eles estavam aqui. Fidelia.
Eles vêm à noite. Eles vêm a cada sete dias.
Eliana se levantou, deslizou pela multidão o mais rápido possível, sem
chamar a atenção, examinou a sala. Ela deixou seus olhos desfocarem.
Lá.
À sua direita, uma figura sombria e encapuzada se movia rapidamente pela
sala. Eliana pensou ter visto outra pessoa ao seu lado. A mulher que bebia
sozinha? Mas assim que Eliana tentou se concentrar nessa forma específica,
sua visão se inclinou.
Ela se apoiou com força contra um pilar próximo—pegajoso e coberto de
sujeira—quando uma onda de náusea a atravessou. Ela rangeu os dentes,
empurrando o enjoo. A figura estava se movendo em direção à parede
oriental. Se ela não se mexesse rapidamente, perderia a pista.
Uma mão agarrou seu pulso. — Indo para algum lugar?
Eliana virou-se para encarar Simon. — Deixe-me ir, ou vou perdê-los.
— Quem? — Ao lado de Simon, Navi espiou por baixo do capuz. — O que
está acontecendo?
— Em um momento atrás essas mulheres estavam lá, bem na minha frente,
e no próximo... — Eliana cambaleou contra Simon quando o sentimento de
mal-estar voltou. Ele a pegou pela cintura, impediu-a de cair. — Deus, isso é
irritante —, ela reclamou, com lágrimas nos olhos. — Não consigo pensar
por dois segundos sem me sentir mal. O que essas pessoas estão fazendo
comigo?
Simon olhou atentamente para o rosto dela. — Quem? Alguém está te
machucando?
— Fidelia. — Ela se inclinou contra o comprimento sólido de seu peito, de
repente feliz por ele estar lá. Se ele não tivesse vindo, ela teria caído igual
uma pilha no chão. — Camille disse que eles levam mulheres, e meninas,
assim como as pessoas em Orline. Pelo menos, eu acho que eles são todos os
mesmos. Adoradores de anjos, disse Camille. A cada sete dias. Eu ia ajudá-la
a encontrar essa garota que trabalhava para ela. Depois, eles vieram. Eles
estão aqui. Eles levaram três mulheres em questão de segundos. Eu não
entendo.
O olhar azul penetrante de Simon estava focado em seu rosto. — Você
disse que eles estão fazendo algo para você. Explique.O olhar azul penetrante
de Simon estava focado em seu rosto. — Você disse que eles estão fazendo
algo para você. Explique.
Ela lutou fracamente para se libertar dele. — É muita coisa para explicar,
tenho que encontrá-los.
— Negativo. Vamos voltar para a casa da Camille, e depois de a
desmembrar por te ter mandado para cá, vou te trancar no quarto mais seguro
que encontrar, possivelmente para sempre.
— Toque nela — murmurou ela — e eu vou desmembrar você. — Estava
ficando cada vez mais difícil organizar seus pensamentos. — O que vocês
dois estão fazendo aqui juntos, mesmo? — Ela deu um passo instável após
outro passo instável, franzindo a testa para o chão.
— Navi e eu nos encontramos fora do seu quarto — disse Simon. —
Descobrimos que você se foi, e ela insistiu em vir comigo para encontrá-la.
— Por que vocês dois estavam lá? — Eliana trouxe uma mão para o seu
templo latejante. — Isso é bastante estranho, não é?
— Bem, eu queria dar uma olhada em você, ter certeza de que você
conseguiu dormir, — Navi disse, com sua voz clara. — Simon? — Ela olhou
sem culpa para ele. — Por que você estava na porta de Eliana no meio da
noite?
A boca de Simon afinou. — Este não é o momento para–
— Não há uma chance no Abismo de que eu esteja saindo daqui sem
encontrar Fidelia — Eliana murmurou — e cortando garganta após garganta
até que eles me digam onde minha mãe está.
— Uma imagem encantadora. Agora, ande.
Eliana pisou firme para se manter e se libertou do aperto de Simon. Sem
ele segurando-a, o mundo virou de cabeça para baixo. Ela desmaiou
imediatamente, mas Simon a pegou antes que ela pudesse bater no chão.
— O que há de errado com ela? — veio a voz preocupada de Navi.
— Eliana? — A mão de Simon apertou a bochecha dela. — Qual é o
problema, o que está acontecendo com você? Se você não me disser, eu não
posso ajudá-la.
Ela tomou três longas e rasas respirações para acalmar a sensação doentia
subindo em sua garganta, em seguida, olhou para ele com olhos
lacrimejantes. — Esta é a primeira pista que tenho desde que saí de Orline —
disse ela com os dentes cerrados. — Não vou desistir. Não me faça te
machucar, Simon. Não estou interessada em fazê-lo.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Não está?
— Meu Deus, você nunca cala a boca? — Ela tentou passar por ele, mas
foi Navi que a impediu dessa vez.
— Eliana, pare com isso — ela disse calmamente. — Vamos voltar. Não é
seguro aqui fora.
— Mas eu posso encontrar minha mãe — Eliana insistiu — e todos os
outros que foram levados. — Ela olhou para Simon. — Incluindo pessoas da
Coroa Vermelha.
— Sem importância — disse Simon. — Nossa prioridade é levar Navi para
Astavar. Uma vez feito isso, vou ajudá-la a encontrar sua mãe. Como
combinamos.
— Ou eu poderia ir encontrá-la agora. Quando chegarmos a Astavar, pode
ser tarde demais.
— Um risco que você sabia quando aceitou minha oferta.
— Por que você se importa que eu fique com você? Se é um lutador que
você quer, Camille tem dezenas de mercenários para escolher.
Uma vez que as palavras foram ditas, a mente de Eliana começou a clarear,
cortando seus sentidos confusos. Por que ele se importa de fato? Quando ela
olhou para Simon, seu rosto cuidadosamente implacável lhe disse a verdade:
ela tinha atingido um ponto.
— O que é que se passa comigo — ela disse calmamente, dando um passo
em direção a ele, depois outro — que faz você querer me manter por perto?
Navi olhou curiosamente entre eles. Simon abriu a boca, hesitante.
Então, uma voz ressoou das sombras sob a escada próxima: — Porque você
é especial, Eliana Ferracora. E ele quer você para si próprio. Assim como eu.
A boca de Eliana ficou seca ao som dessa voz. Ela sabia disso, embora
agora ele arranhasse ao invés de ronronar.
Uma figura esbelta veio à luz, vestindo um uniforme preto esfarrapado e
um manto carmesim desgastado, quase irreconhecível pela lama e manchas
de sangue que rasgavam o tecido outrora fino.
— Rahzavel — sussurrou Eliana em horror. Até Simon parecia estupefato.
— Você está vivo.
O assassino sorriu, seu rosto pálido marcado com uma cicatriz longa e
inchada que escorria de sua têmpora, dividindo seu rosto ao meio, e
desaparecendo em seu colarinho. Seus cabelos brancos estavam bagunçados
em forma de cachos emaranhados.
— Vivo — ele concordou — e tão animado para matá-la.
Então ele arrancou sua espada da bainha em sua cintura, levantou-a com
um grito faminto horrível, e avançou para o pescoço de Eliana.
33
Rielle
"Eu esperava que as notícias recentes não
chegassem até você por mais alguns dias. É
verdade, no entanto, sobre o Príncipe Audric e a
garota Dardenne. Lamento não ter podido dizer-lhe
pessoalmente. Fique em Belbrion, proteja o norte.
Paciência, meu filho. Tudo será como deve ser, e em
breve."
—Carta do Lorde Dervin Sauvillier a seu filho, Merovec
•••
Fazia muito frio, onde quer que tivessem ido. Um frio uivante.
Mãos fortes prenderam os braços de Rielle atrás das costas. Os dentes dela
estavam batendo; ua camisola não era nada contra o vento. Sob os pés
descalços, o chão era gelado e rochoso.
Pelo amor de Deus, Rielle, acorde!
— Estou acordada — ela conseguiu murmurar.
— Não por muito tempo. — Uma voz fina e próxima sussurrou: —
Lamento dizer que você não poderá se salvar desta vez.
A venda foi arrancada de seus olhos e sua mente explodiu de medo. Ela
piscou olhando para algo branco brilhante: montanhas cobertas de neve. Céu
e uma fina névoa de nuvens. A beira de um penhasco.
Oh, Deus.
— Todos saúdam a Rainha do Sol — sussurrou aquela voz zombeteira, e
então as mãos que seguravam seus braços a lançaram da montanha para a
morte dela.
•••
O mundo era uma caixa cinza plana, e Eliana morava dentro dela.
Um piso, uma parede, um teto. Sem janelas. Uma porta de metal com uma
ranhura fina cortando perto do fundo—e uma estreita faixa de luz, debaixo
dela a única fonte de luz.
O ar se encheu de gritos fracos e distantes.
Lentamente, ela se sentou e percebeu que estava usando calças brancas
lisas com uma túnica combinando. Os pés dela estavam descalços; o chão
estava frio e duro. Suas facas... suas facas se foram. Assim como o colar dela.
Uma cela. Ela estava em uma cela.
Ela apoiou os joelhos no peito e segurou a cabeça dolorida nas mãos.
Lembranças voltaram para ela: Rahzavel sorrindo para ela, as vigas
sombrias do Santuário arqueando-se no alto. Simon caiu da escada. Correndo
com Navi, o mundo balançando ao seu redor a cada passo. Remy. Ela
precisava chegar a Remy.
Sua respiração ficou fina e rápida. Ela lembrou, lembrou...
Uma mão sobre a boca, fumaça venenosa subindo pelo nariz.
Três mulheres se foram em três segundos.
Fidelia.
Com um grito selvagem, ela se levantou e bateu contra a porta—
repetidamente, jogando o lado esquerdo do corpo em cada golpe até que sua
cabeça girou e seus dentes doíam. Ela ficaria machucada, mas apenas por um
tempo. É melhor continuar, certo?
— Quem é você? — Ela bateu os punhos com força, deu um pontapé na
porta com os dedos dos pés ensanguentados. — Liberte-me! Mostre-me a
porra de sua cara!
E então, lembrou-se de uma última coisa: sua mãe. A mãe dela poderia
estar neste lugar.
Ela se jogou contra a porta com renovado fervor. — Mãe? Mãe, eu estou
aqui! Alguém me responda! Me responda!
Mas até o corpo dela tinha limites. Ela gritou até sua voz ceder. Ela caiu no
chão, bateu com as palmas exaustas contra a porta até não poder mais segurar
os braços, depois se arrastou para o canto da cela e dobrou o corpo em
posição oval.
Com os olhos fixos na linha branca brilhante abaixo da porta, ela esperou.
•••
•••
O pégaso não parou até que Rielle começou a se agitar em suas costas.
Eles pousaram em um pequeno penhasco pontilhado com tufos de grama e
abrigados por rochas tão grandes quanto a carruagem do rei Bastien. Rielle
deslizou para o chão e conseguiu se afastar alguns passos antes de esvaziar
violentamente o estômago.
Depois de vomitar, ela se arrastou em direção às rochas, buscando abrigo
contra o vento. Cada movimento enviou choques de dor através de seu corpo.
O veneno tinha feito um bom trabalho; ela sentiu como se tivesse sido
martelada em todos os músculos e ossos. Ela esperava ter conseguido colocar
tudo para fora—e não tarde demais.
Então, cascos pesados se aproximaram.
Ela olhou para cima. O pégaso se aproximara. Maior ainda do que os
maiores cavalos de guerra de seu pai, com um elegante pescoço arqueado,
uma crina preta longa e despenteada e olhos brilhantes e inteligentes, ele se
comportou como um cavalo—e, no entanto, não. Suas narinas queimaram
quando cheirou o ar ao seu redor; suas orelhas se ergueram curiosamente.
Mas então inclinou a cabeça para o lado, como um ser humano ao tentar
entender algo novo. Havia um peso antigo em sua presença que Rielle nunca
sentira ao redor de outra criatura viva.
— Olá. — Ela estendeu a mão fracamente com um braço trêmulo. — Você
sempre foi meu favorito.
Uma forte rajada de vento da montanha bateu nela. Ela caiu, tremendo.
Além das pálpebras fechadas, a luz mudou. Então, ao som do movimento,
ela abriu os olhos e observou, turva, o pégaso se abaixar no chão entre o seu
corpo e o céu aberto. Ele estendeu uma de suas enormes asas emplumadas—
devia ter pelo menos seis metros de comprimento—e gentilmente a puxou
para perto de seu corpo.
Enfiada entre uma concha de penas cinzentas de ponta preta e o calor
quente da barriga do pégaso, Rielle respirou. A pelagem da besta era
impossivelmente macia, manchada de cinza como um céu tempestuoso.
— Você é real? — ela sussurrou, colocando a mão contra o estômago. —
De onde você veio?
Em resposta, o pégaso acomodou sua asa com mais segurança ao redor do
corpo de Rielle, depois enfiou a cabeça embaixo da asa. Rielle sentiu a
pressão quente de seu focinho contra suas costas, seguida por um sopro
quente de ar enquanto soltava um grunhido contente.
Era um ninho estranho, mas aconchegante demais para resistir; Rielle caiu
em um meio sono profundo. Seus sonhos disformes em tons de preto.
•••
•••
Ao contrário de quando ela viu o Imperador, essa visão era muito mais clara.
Não havia neblina bloqueando sua visão. Ela sentiu o chão duro e
fumegante sob os pés dela. O ar estava próximo, ondulando com o calor; suas
narinas queimavam das cinzas que escureciam o ar.
Um movimento no canto do olho a fez se virar. Uma mulher ficou
observando-a, alta e de pele de ébano, vestindo uma armadura de platina
manchada. Seus grossos cabelos brancos caíam em tranças pelos quadris e
tinta dourada contornou seus olhos escuros. Asas maciças de luz e sombra se
deslocavam para fora de suas costas.
— Zahra? — Eliana sussurrou.
Até o pequeno aceno de Zahra era magnífico. — Tal como eu fui durante
as Guerras Angélicas. Antes do Portão. Antes da longa maldição do abismo e
da perda de meu corpo. — Então ela apontou. — Olhe, Eliana.
Eliana olhou de soslaio pela planície com faixas de fogo e as imagens
correram para ela como os horrores de um pesadelo:
Uma mulher estava em um pedestal distante e plano. Ela levantou os
braços e esculpiu um portal ofuscante no céu.
Um castelo brilhou em branco, depois caiu, e do abismo ao seu redor
correu uma onda de ruína. Houve um grito de dor e medo, um coro de
milhares—milhões—e depois silêncio.
Os gritos de uma mulher em uma cama ensanguentada.
Um bebê, segurado firmemente nos braços de um menino. Eliana espiou
por cima do ombro do menino, e ela sabia quando ela olhou para a criança
que o rosto olhando para ela era o dela. Então ela se virou para ver o garoto e
—
Uma vastidão de sombras, cheio de gritos estranhos demais para pertencer
a qualquer um, humano ou animal. Havia uma luz no horizonte e uma figura
em pé ao lado. Eliana gritou, esmagada pelo peso solitário deste lugar, e
correu em direção à luz–
Ela estava de volta à planície iluminada pelo fogo, vendo uma mulher se
ajoelhar ao lado de um cadáver desmembrado e ensopado de sangue. A
mulher estava de costas para Eliana. Ela usava uma armadura preta e uma
capa vermelha. A mulher moveu as mãos pálidas sobre o cadáver, apalpando
no crânio e na clavícula, no peito e através dos quadris cortados. O ar ao
redor do cadáver brilhava, mudava e então a mulher sentou-se calma e o
cadáver estremeceu, ofegou e cambaleou para seus pés. Ele não era mais um
cadáver. Sua pele estava inteira e nova, seus membros intactos. Ele deu
alguns passos instáveis antes de cair de joelhos. Ele olhou para o corpo e
depois estendeu os braços e gritou para o céu—com alegria, com alívio, com
fúria.
A mulher levantou-se, suave e silenciosa, aos seus pés.
— Você está trabalhando mais rápido agora — disse o homem ao lado
dela, a quem Eliana não tinha notado antes. — Bem feito. — Ele puxou a
mulher para um abraço e Eliana ficou paralisada de horror quando seus rostos
apareceram.
A mulher era morena e indescritivelmente bonita, com um rosto tão pálido
e sem falhas, que poderia ter sido esculpido em porcelana—exceto pelas
sombras se esticando escuras sob seus olhos verdes e o pequeno sorriso
faminto curvando em sua boca.
Eliana levou dedos trêmulos aos próprios lábios.
Minha boca, ela pensou e depois tocou suas próprias pontas quebradiças
dos cabelos escuros emaranhados. Meu cabelo.
E o homem parado ao lado dessa mulher — de olhos azuis em vez de preto,
mas com o mesmo rosto pálido e adorável e postura despreocupada que
adornava a pintura, como retratos no palácio do Lorde Arkelion. Cabelo
preto, manto coberto de lama, uma espada manchada de sangue em seu cinto.
Ele guiou a boca da mulher até a dele e ela se agarrou a ele como se o beijo
deles fosse a única razão pela qual ela permaneceu de pé.
O Imperador.
Eliana recuou freneticamente, tropeçou em outro cadáver e caiu no chão
duro.
O mundo mudou, escureceu.
Ela piscou.
Ela retornou a sua cela e Zahra pairou silenciosamente na frente dela—uma
mera distorção do ar mais uma vez, efêmera e sem asas.
— Por favor, respire, Eliana — Zahra insistiu gentilmente. — Eu sei que é
muito para entender.
Eliana ofegou, com lágrimas escorrendo pelo rosto. O crânio dela também
parecia pesado para seu corpo. Sua pele ainda estava vermelha das chamas do
campo de batalha.
— Era ele — ela resmungou. — Esse era o Imperador. Mas...
— Esse era o Imperador antes de se chamar Imperador. Quando o seu
nome era simplesmente Corien. Ele foi o primeiro de nós a escapar. E eu
lamento que ele tenha conseguido.
Remy estava certo. O pensamento continuou circulando pela mente de
Eliana. Eles eram anjos. O Imperador, seus generais, Lorde Arkelion, Lorde
Morbrae. Remy estava certo.
— E a mulher — ela sussurrou. — Eu conheço o rosto dela.
— Eu imagino que sim. — Zahra tocou as mãos de Eliana, e Eliana não
sentiu nada. — Pois é o seu, não é?
— Parcialmente. Mais bonito. Mais...
— Mais cruel. — Zahra deu um pequeno sorriso. — Você tem um rosto
gentil, Eliana, embora você tente não aparentar.
Eliana cruzou os braços e fechou os olhos. — É por isso que ele
reconheceu a mim. O Imperador Corien.
Zahra ficou calada.
— O que eles estavam fazendo? —Eliana perguntou. — Aquele corpo.
— O que ele falhou em realizar com sua mãe antes da Queda dela arruinar
todo o trabalho deles — disse Zahra — e o que ele espera terminar com você.
Ressurreição. Nosso retorno — e nossa vingança.
— Nosso. Os anjos?
— Sim, Eliana.
Quando Eliana abriu os olhos mais uma vez, seu corpo sentiu-se preso em
um ponto alto, em um vento quente—flutuando, sem amarras.
— Espero que você esteja mentindo para mim — disse ela finalmente. —
Por favor, diga-me que você é uma alucinação. Eu não vou ficar com raiva,
eu juro.
Zahra inclinou a cabeça. — Eu queria poder dizer isso.
— Eu sou a filha da Rainha de Sangue. — Sua voz saiu oca, pesada. —
Filha da Kingsbane.
— Você é.
— Eu não acredito em você.
— Isso é compreensível. No entanto, isso não muda a verdade.
Eliana olhou para o chão através de uma furiosa névoa de lágrimas. —
Como eu consegui chegar aqui então? Se eu nasci naquela época, dela, e
agora estou aqui... Como?
— Receio que essa não seja minha história para contar.
Eliana riu cansada. — Claro.
— Eliana, eu não estou sendo reservada...
Eliana acenou para Zahra em silêncio. Ela esperou até que suas lágrimas
secassem, até que sentiu que podia suportar, até quase acreditar na história
que contou a si mesma—que isso era realmente uma alucinação, algum sonho
horrível trazido por qualquer coisa que Fidelia tenha usado para deixá-la
inconsciente.
Zahra disse calmamente à porta: — É hora de sair.
Eliana levantou-se, limpou o rosto na manga e disse a Zahra: — Então me
tire daqui. Eu tenho coisas para fazer.
39
Rielle
“Eu me preocupo com Tal. Eu sempre me preocupei
com ele por razões pelas quais não sabia citar e
agora entendo o motivo: porque ele vive mentindo
há anos, por causa dessa garota, e agora está
sofrendo por isso. Eu nunca diria isso para ele, mas
eu escrevo aqui ou então irá explodir pela minha
boca: eu a odeio por fazer isso com ele. Sim, ela era
apenas uma criança quando tudo começou. Mas
depois disso, enquanto ela cresceu e aprendeu? O
que então? O que segurou a língua dela? Medo? Ou
malícia?"
—Diário de Miren Ballastier, Grã-Magister do Forge
8 de Junho, Ano 998 da Segunda Era
•••
•••
Três dias. Rielle se arrastou para seu quarto muito tempo depois que o sol se
pôs. Três dias até o julgamento do fogo.
E então... o que?
— Minha senhora — repreendeu Evyline da porta — você deveria tentar
dormir mais, pelo menos até que os ensaios terminem.
— Você está certa, Evyline — respondeu Rielle. — É só que, quando você
estiver prestes a ser jogada em um poço de chamas mortais, irá querer estudar
suas orações o máximo que puder.
— As orações são boas, minha senhora, mas dormir é melhor. Você não
pode orar nem combater o fogo se estiver exausta.
Rielle, bocejando, desamarrou a trança e sacudiu os cabelos. — Estou
inclinada a concordar. Meu pai, no entanto, não.
Depois de verificar se Atheria ocupara seu posto noturno habitual no
terraço, Rielle tropeçou para seu quarto de banho.
E congelou, de repente e completamente acordada.
Audric estava sentado em um sofá perto da janela oposta. Seu cabelo era
uma bagunça de cachos, como se ele estivesse passando os dedos por ele há
horas. Ele se levantou para encará-la, as mãos cerradas ao lado do corpo.
Ele deu um sorriso tenso. — Olá — ele disse calmamente.
Rielle voltou para o quarto. — Evyline — ela chamou por cima do ombro
— espero que você não se importe, mas me pergunto se você pode me dar
algum tempo sozinha.
— Minha senhora, não é seguro...
— Estou bastante segura com Atheria no meu terraço.
Como se fosse uma sugestão, o pégaso bufou além das cortinas.
— Conceda-me esse desejo, você poderia?
— Só essa noite — disse Evyline severamente, depois de um momento. —
O mínimo que posso fazer, suponho, depois de tudo o que você passou.
— Está certo. — Rielle conduziu-a o mais gentilmente que pôde. — Boa
noite, Evyline, e obrigada por sua vigilância.
— Claro, minha senhora.
Rielle fechou a porta, trancou-a e respirou fundo para se preparar. Quando
ela se virou, Audric estava parado no meio da sala, parecendo um pouco
envergonhado.
— Desculpa por ter rastejado até aqui — disse ele — mas queria vê-la. Não
vou criar um hábito, prometo.
— Talvez você devesse — Rielle brincou, mas sua voz saiu trêmula.
O olhar escuro de Audric procurou o seu, depois foi para baixo.
Uma onda de nervos dançou em seu esterno. — Você quer falar comigo
sobre alguma coisa?
— Sim, é... — Agora sua voz era instável. Ele limpou a garganta. —
Receio, no entanto, que não devo. Que sou um tolo por vir aqui hoje à noite.
— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa.
— Eu sei.
— Então fale comigo. — Ela o alcançou. — O que foi?
Ele levou a mão dela aos lábios. — Rielle — ele sussurrou contra a pele
dela — Rielle, Rielle...
— Você está me assustando. Diga algo diferente do meu nome. Diga algo
real.
— Algo real. — Ele riu um pouco e se afastou dela. — É que...
Quando ele se calou novamente, Rielle pensou que poderia gritar. —
Audric, se você não começar a falar neste instante...
— Você entende o que tudo isso significa, não é? — Ele apontou para o
castelo ao redor deles. — Eu serei rei algum dia e você será a Rainha do Sol.
— Bem, não se o julgamento de fogo...
— Oh, Rielle. Você vencerá esse desafio como todos os outros. Você será
gloriosa, e então... — Ele passou a mão pelos cabelos, virou-se e voltou a ela.
— Então você me servirá, e se eu tiver que enviá-la para a batalha para salvar
o reino, eu o farei. Esse é o objetivo predito da Rainha do Sol: defender e
proteger. E não posso me afastar disso simplesmente porque amo você.
Sua voz captou as últimas palavras.
Rielle se aproximou lentamente, seu coração batendo forte. Ela tocou o
braço dele, e quando ele a olhou, seus olhos calorosos e perturbados, ela
aninhou a bochecha dele na mão.
Ele se inclinou para o toque, colocou sua mão na dela e beijou a palma. —
Eu sei que não devo tocar em você — disse ele, sua voz rouca. — Nós
decidimos isso. Tínhamos boas razões. Mas, Deus me ajude, mal consigo
pensar desde aquele dia nos jardins.
Rielle se aproximou mais, puxando sua mão até a cintura dela. — Lembre-
se, Ludivine não se importa. Ela quer que a gente faça.
— Não é Lu e nem a família dela. Não mais. Agora estou pensando... —
Ele encostou a testa na dela e fechou os olhos. — Se ao menos eu pudesse
parar de te amar.
— O que você está dizendo?
— Como rainha do sol, você será sagrada para o nosso povo, Rielle. Um
símbolo ansiado e orado desde o início de nossa era.
— Não vamos me chamar assim, a menos que isso realmente aconteça. Já
estou nervosa o suficiente.
— O Arconte irá abençoá-la na frente de toda a cidade. Eu não posso
interferir nisso. Não posso manchar isso.
Ela se afastou dele. — Você está dizendo que me levar para sua cama me
mancharia de alguma forma?
Ele olhou para ela, impotente. — Não sei como amar você e ser a pessoa
que a envia para a guerra.
Ela cruzou os braços sobre o peito. — Só agora você percebe que isso
poderia acontecer? Para o que você acha que servem os testes exatamente?
Ele se virou, os olhos brilhando.
Ela o seguiu. — Audric, eu quero que você ouça isso, pois só direi uma
vez.
Ele virou com a mudança na voz dela.
— Se você me enviasse para a batalha — ela disse — eu ficaria feliz e
queimaria nossos inimigos em cinzas. Mas eu não faria isso por você... ou por
causa da profecia. Eu faria isso porque esta é a minha casa também. E se você
tentasse me manter perto de você por amor a mim, você falharia.
Ele olhou para ela, o ar entre eles estalando tenso e furioso. Ela levantou o
queixo e o convidou silenciosamente para desafiá-la.
Mas ele não o fez. Em vez disso, ele caminhou na direção dela e pegou sua
boca faminta com a dele.
Ela ofegou com o beijo, tropeçando para trás com a força do toque. Ele a
firmou, as mãos nos quadris, e se moveu com ela até que ficasse pressionada
entre a parede e o corpo dele. Ela abriu a boca para ele, passou os dedos por
seu cabelo.
As mãos dele estavam por toda parte—primeiro aninhando o rosto dela,
depois segurando seus quadris para puxá-la para mais perto. Quando ele
arrastou os lábios pelo pescoço dela, e na clavícula, beijando ao longo do
decote do vestido, Rielle arqueou o corpo contra o dele.
O fogo estalou e assobiou.
— Sim — ela sussurrou, puxando a camisa dele para encontrar a pele nua.
— Sim.
Sua voz era baixa. — Sim o que, querida? Diga-me onde tocar você.
— Onde você tocou antes. Por favor, Audric.
Ele voltou para a boca dela enquanto levantava suas saias, depois deslizou
a palma da mão por suas coxas. Ao primeiro toque de sua mão na barriga
dela, Rielle se empurrou contra ele com um suspiro.
— Abra suas pernas para mim, Rielle — ele murmurou, sua voz tremendo
em seu ouvido. — Eu entendi você.
Ela obedeceu, e quando a mão dele a encontrou, acariciando suavemente
entre as pernas, ela gritou e apertou a camisa dele nos punhos.
A parede atrás dela tremia.
Ele deslizou um dedo dentro dela, seu polegar ainda acariciando-a. —
Todas as noites desde aquele dia — ele sussurrou contra a boca dela — eu
sonhei com isso. Eu acordo com o seu nome nos meus lábios.
Não importava como Rielle se movia, ela não conseguia se cansar dele. Ela
enfiou as unhas nas costas dele, puxando-o para mais perto. — Mais rápido,
Audric. Mais forte, por favor.
Ele obedeceu. — Assim?
— Sim, sim. — Ela sentiu-se esticar em torno de seus dedos; ele
acrescentou outro, empurrando mais rápido. — Assim, ah, Deus... — Ela
soltou um som que nunca tinha feito, um gemido baixo e gutural que a
balançou na ponta dos pés.
— Assim mesmo. — Audric beijou sua têmpora, seus cabelos. Sua voz
estava cheia de admiração. — Assim mesmo, Rielle.
Ela se agarrou a ele, apertou os quadris contra a mão dele até que a onda de
formigamento que se formava profundamente dentro de seu ser, varresse sua
pele e sua espinha. Ela empurrou contra ele, deu um grito agudo e estilhaçou.
A sala tremeu ao redor deles.
As velas acesas do outro lado da sala acenderam chamas irregulares
saltando centímetros no ar. O fogo da lareira estalou; brasas espalhadas pelo
tapete. As paredes tremeram por alguns segundos, como se estivessem em um
pequeno terremoto, depois ficaram em silêncio.
— O que foi isso? — sussurrou.
— Fui eu. — Rielle fechou os olhos, as bochechas em chamas. — Eu sinto
muito.
— Você?
— Não deveríamos ter feito isso. Deixe-me ir, por favor.
Ele a soltou, e ela se afastou instável, ajeitando o vestido. Ela só conseguia
pensar na voz do pai, há tantos anos:
Você pode perder o controle um dia, machucá-lo.
A última coisa que Audric precisa é de alguém como você.
— Você deveria ir — disse ela, cruzando os braços sobre o peito.
Audric ficou quieto por um momento. — Claro que sim, se é isso que você
deseja. Mas primeiro, você pode me contar o que aconteceu?
— Quatro desafios, e eu estava bem. Eu consegui; eu me senti mais forte
do que nunca. E agora? Alguns momentos com você, e eu faço o quarto
desmoronar.
Nada desmoronou. Rielle, foi apenas um pequeno tremor.
Ela girou para ele. — Apenas um pequeno tremor? E se continuássemos? E
se eu tivesse perdido o controle? E se o chão tivesse se aberto sob nossos
pés? Meu pai estava certo. Ele podia ver antes de mim.
— O que ele viu?
— Que eu te amo! — ela explodiu, lágrimas cortando sua voz. — Que
todos os meus anos de trabalho, todas as noites sozinha, todas as orações...
Isso é desfeito quando estou com você. Você me toca e eu queimo, e eu posso
levar tudo queimando comigo!
— Rielle, olhe para mim. — Audric segurou suas mãos com tanta
delicadeza que ela começou a chorar de verdade.
— Eu vou te machucar — ela sussurrou.
— Eu vou te machucar — ela sussurrou.
— Se alguma coisa acontecesse com você por minha causa, eu não
aguentaria, Audric. Eu não vou fazer isso. Ficarei sozinha para sempre se for
preciso.
— Não, não, você não. — Ele virou o rosto dela para o dele com ternura,
beijos suaves como penas em suas bochechas. — Você merece apenas
felicidade. Não uma cama fria e um quarto vazio.
Ela fechou os olhos com o toque dele. — Eu sou muito perigosa.
— Você é o meu tipo de perigo.
— Isso não é uma piada, Audric. Esta é a sua vida... e a minha.
— E minha vida não tem cor sem você. — As mãos dele seguraram o rosto
dela. — Eu não tenho medo de você, Rielle. Eu confio em você e quero você.
Rielle se inclinou em seu peito, inspirou-o—sua pele aquecida pelo sol, o
algodão de sua túnica.
— E se eu te pedisse — ela disse finalmente — para me beijar de novo?
— Eu te beijaria a noite toda e nunca me cansaria disso.
Ela se afastou para olhá-lo. — E se eu pedisse para você me levar para a
cama?
— Então eu levaria você até lá — disse ele — e não descansaria até que
você estivesse preenchida por mim.
— É exatamente isso que eu quero. — Ela beijou o triângulo de pele acima
do colarinho e sussurrou: — Quero que você me preencha.
Ela se esticou na ponta dos pés para beijá-lo antes que ele pudesse
responder, e quando seus braços a envolveram febrilmente, ela sorriu contra a
boca dele e soltou uma risada encantada.
— Cama — ela sussurrou, puxando-o cegamente em direção a ela.
Ele a apoiou contra uma das colunas da cama, sua boca nunca deixando a
dela. Ele a beijou como se o ar dentro dela fosse o que precisava para
sobreviver. Ela colocou as mãos atrás dela, contra o poste para se preparar, e
arqueou em direção a ele.
— Sim — ele disse sem fôlego, mexendo na linha de botões na frente do
vestido. Ele deslizou o corpete pelo torso dela, para que ele se juntasse à
cintura. Os seios dela se soltaram e ele baixou a boca para eles de uma vez,
gemendo contra a pele dela.
Rielle torceu embaixo dele até que ela não aguentou mais a dor entre as
pernas. — Eu preciso de você — ela ofegou, segurando os ombros dele. —
Por favor, Audric.
Ele puxou a túnica por cima da cabeça, depois desabotoou o cinto e tirou as
botas. Ele a moveu em direção à cama, chupando suavemente o lábio inferior.
Juntos, puxaram o vestido dela até cair no chão.
Audric murmurou: — Meu Deus, Rielle, você é linda — e a ajudou a deitar
sobre a pilha de cobertores espalhados pela cama. As mãos dele traçaram as
curvas de seus seios, cintura, quadris. Ele beijou cada uma das contusões do
julgamento das sombras, murmurando o nome dela contra a pele com mais
amor do que qualquer oração.
Quando os quadris dele pousaram nos dela, Rielle mal conseguiu conter o
grito. Ele passou os dedos entre os dela e pressionou as mãos gentilmente
contra os travesseiros. A cada movimento de seus quadris, uma nova onda de
prazer surgia dentro dela.
Tremendo sob as linhas duras e quentes de seu corpo, ela disse
desesperadamente: — Audric, por favor.
— Espere. — Ele beijou a curva de seu queixo e se afastou um pouco. —
Espere um momento.
— Não, agora.
— Antes de fazermos isso...
Ela ouviu a nota cautelosa na voz dele e entendeu. — Estou tomando um
tônico para isso. — Ela tocou ternamente o rosto dele. — Por favor, não se
preocupe.
Ele assentiu, abaixou a boca na dela e murmurou: — Eu te amo, Rielle — e
a penetrou em um movimento suave.
Ela gritou, resistindo contra ele. Ela se sentiu impossivelmente,
deliciosamente cheia e tocou seu rosto com uma risada sem fôlego.
— Você está bem? — ele sussurrou.
— Estou. — Ela apertou os braços dele, sorrindo. — Não vá.
— Nunca. Eu sinto muito...
— Não. Não se desculpe. Estou bem. — Ela tocou dois dedos nos lábios
dele e soltou uma risada trêmula. — Estou mais do que bem.
Ele sorriu, beijou a pele macia sob seus olhos e começou a se mover dentro
dela. Rielle ofegou, arqueando-se contra ele.
— Olhe para mim — ele a pediu calmamente, e quando ela trancou os
olhos com ele, a devoção concentrada em seu rosto fez seu coração inchar. —
Estou bem aqui, e amo você. Eu te amo, eu te amo.
— Beije-me — ela sussurrou, tremendo.
Ele obedeceu, sua boca quente e lenta na dela, ecoando os movimentos
suaves de seus quadris.
— Devo parar? — Ele beijou sua mandíbula. O arranhar suave de seus
dentes enviou calafrios delicados através de sua pele. Ela fechou os olhos e se
mexeu embaixo dele. O prazer inchou lentamente em seu corpo, quente e sem
pressa.
— Não pare — ela murmurou. — Nunca.
— Rielle. Rielle. — Ele se moveu um pouco mais contra ela, sua voz
escurecendo. — Diga-me o que você quer, e eu farei.
Ela torceu em seu aperto suave com um suspiro. — Eu quero ouvir o que
você quer, é o que eu desejo.
— Quero fazer você desmoronar em meus braços. Quero que esqueça seu
medo, suas preocupações, qualquer que seja a escuridão que assombra seus
pensamentos. — Ele deslizou uma mão pelo corpo dela até os quadris unidos,
acariciando entre as pernas dela.
Ela amaldiçoou, bateu a palma da mão contra a cama, procurando por uma
âncora. A mão dele encontrou a dela, firmou-a na sua.
— O que mais você quer? — ela murmurou, olhando para ele. Ela moveu
os quadris contra os dele.
— Eu... — Sua voz falhou. Ele balançou a cabeça, estremecendo quando
ela deslizou a mão pelo braço dele. Ela levou a mão dele à boca e beijou a
palma da mão.
— Você quer me fazer gritar.
Ele fez um som pequeno e sufocado. Seus quadris estremeceram
bruscamente.
— Deus, sim — ele gemeu.
— Mais rápido, então. — Ela tocou os lábios dele com o polegar. Quando
ele o pegou na boca, seus olhos se fecharam, ela estremeceu, sorriu e passou
a perna em volta da dele. Ela poderia olha-lo assim para sempre—perdendo-
se nela, desmoronando em seus braços. — Por favor, Audric.
Mesmo quando ele obedeceu, sua gentileza a surpreendeu. A mão dele
soltou a dela para aninhar seu rosto, depois deslizou para acariciar seus seios.
O doce prazer dele dentro dela provocou ondas trêmulas em sua pele. Ela
arqueou em seu toque, apertou os cobertores em seus punhos.
Ela soltou um soluço frenético. — Audric, por favor...
Ele murmurou contra o pescoço dela, suas mãos tremendo ao seu redor. —
Sim, Rielle, sim, é isso. — O desejo áspero em sua voz a incendiou. Quando
ela deslizou as mãos nos cabelos dele e puxou com força os cachos, ele gritou
contra seu pescoço, e o som desesperado e totalmente masculino foi sua
ruína, enviando-a em espiral para cima e para cima, até que ela caiu contra a
cama, pulsando dourado com prazer. Ela se agarrou a ele, impotente e mole,
sua visão uma névoa zunindo, e acariciou seus cabelos enquanto seus quadris
diminuíram a velocidade.
E com o peso sólido de Audric sobre ela—seus lábios em seus cabelos e
sua voz rouca de amor, seu próprio corpo sentindo-se alegremente
despreocupado—Rielle observou as chamas faiscantes em torno de seu
quarto sem medo no coração e não pensou em Corien.
42
Eliana
“Você já viu o lobo? Conversou com ele? O homem
tem uma luz ruim nos olhos. Você olha para o rosto
dele por meio minuto, vê que ele foi destruído e
costurado novamente mais vezes do que qualquer
um deveria ter sido.”
—Registro sem nome de um desertor da Coroa Vermelha, precedendo a
execução.
•••
Zahra chegou duas horas depois, aparecendo sem aviso ao lado de Eliana.
Eliana cuspiu uma maldição e pulou do tronco de árvore em que estava
sentada.
O sorriso negro do espectro mal era visível nas árvores sombreadas. —
Olá, minha rainha. Quero dizer... Eliana.
— Da próxima vez — Eliana sussurrou, voltando ao seu lugar — me dê um
aviso antes de você aparecer no ar assim.
— Estou muito feliz em vê-la também, especialmente desde que nos
separamos em um momento tão terrível.
Eliana suspirou profundamente. — Sim. Obrigado por isso.
— Pelo o quê?
Apesar de sua irritação, Eliana sorriu. — Você vai me fazer dizer isso, não
é?
— Eu arrisquei muito distraindo Semyaza — ressaltou Zahra. — Embora
eu faça isso de novo, e felizmente, para atendê-la.
— Obrigada, Zahra — disse Eliana com um movimento da mão — por
lutar contra Semyaza para que Navi e eu pudéssemos escapar. Sua lealdade e
bravura devem ser elogiadas.
A forma de Zahra brilhava de prazer. — Você soou como a realeza por um
momento, Eliana. O sangue chama, como eles dizem.
— Eu não quero falar sobre meu sangue. — Eliana retrucou.
— Como quiser. — Zahra fez uma pausa. — Isso, de qualquer forma, terá
que ser discutido eventualmente.
Eliana desviou o olhar para as árvores. — E se talvez eu não acredite no
que diz?
— Você esquece que eu estava em sua mente, durante a prisão — disse
Zahra gentilmente. — Acho que você já sabia há algum tempo que algo
estava desalinhado no seu passado. Que você não é como aqueles ao seu
redor. Há a questão da capacidade do seu corpo de se curar, por exemplo.
Eliana virou para ela. — Ouça-me agora, fantasma. Você pode ter o poder
de entrar em minha mente, mas não o fará novamente, a menos que em algum
momento no futuro eu exija isso de você. E até então, você nem sequer
mencionará a Rainha Sangrenta, o Portador da Luz ou qualquer outra pessoa
que pensa que eu sou. Isso está entendido?
Zahra inclinou a cabeça. — Claro, Eliana. Eu respeitarei seus desejos.
— Obrigada.
Elas ficaram em silêncio por um longo tempo, a floresta silenciosa e escura
ao seu redor.
— Você sabe o que eles fizeram com Navi? — Eliana perguntou
finalmente.
— Eu gostaria de não saber — respondeu Zahra. — Durante os longos
anos desde a queda da Rainha Sangrenta, o imperador realizou muitos
experimentos na tentativa de alcançar a ressurreição sem ela. Medicamentos,
drogas, procedimentos cirúrgicos, manipulação do que ele chama de genética.
— O que é isso?
— Simplificando, é a estrutura básica da vida de qualquer criatura viva.
Nem o Empirium—nem mesmo o Imperador pode tocar nisso, para seu
desespero—mas é eficaz, no entanto.
Eliana balançou a cabeça. — E ele usa para... o quê?
Ele está criando coisas — Zahra murmurou — com a ajuda de curandeiros
que trocam suas habilidades pela segurança de suas famílias. Ele está criando
criaturas que não são nem humanas ou animais. Eles são chamados de
rastreadores. Eles são monstros, Eliana. Mutações é a palavra que ouvi usada
pelos médicos do Império. E um exército deles está destinado a Astavar.
Eliana olhou para Zahra, com a boca seca. — Eu não entendo. Eles têm
todo um exército de adatrox, um exército que devorou o mundo. Por que isso
também?
— Existem muitas maneiras de provocar medo nos corações daqueles que
você conquistou — disse Zahra gravemente. — A existência continuada da
Coroa Vermelha destrói o Imperador, assim como a resistência de Astavar.
Ele é criativo. Ele pensará em novos horrores enquanto qualquer humano
estiver livre, até que não haja mais resistência.
— E apenas mulheres, apenas meninas? — O estômago de Eliana se
revirou. — Por quê? Se é um exército que ele quer, por que não seqüestrar
um bando de brutamontes?
— Isso eu não sei.
— E foi o que aconteceu com Navi? Ela estava sendo transformada em...
— Ela não conseguiu terminar a pergunta.
— Pelo estado dela, me parece que ela apenas passou pelos estágios
iniciais. Não transformação, mas isso virá em breve...
Zahra ficou em silêncio, depois sussurrou: — Simon está perto.
Eliana ficou tensa. — Ele está sozinho?
— Sim.— O ar ao redor de Zahra de repente pareceu carregado. — Ele
entrou em conflito com os anjos.
Eliana puxou Arabeth e ficou de pé. — Você disse que ele estava sozinho.
— Ele está. Mas... — E então Zahra fechou os olhos, estremeceu e emitiu
um som baixo de dor. — Como ele suporta isso? Eu nunca soube...
— Como ele suporta o quê? — Eliana examinou as árvores.
— A mente dele tem muitas cicatrizes — Zahra sussurrou, os olhos ainda
fechados. — Profundas. Como elas devem machucá-lo.
— Que tipo de cicatrizes? Explique-me, com palavras reais e comuns.
— Alguém o machucou. Seriamente. De novo e de novo. Eu posso sentir
quando ele se aproxima. Não estou tentando invadir seus pensamentos,
Eliana. Mas quando a mente de alguém é abusada tão completamente, um
espectro não pode deixar de senti-la.
Zahra correu para pairar atrás de Eliana.
— Cuidado com ele — ela sussurrou. — Ele está quase aqui. Eu posso te
esconder, se você desejar. Recuperei força suficiente por alguns segundos.
— Cuidado com ele, por quê?
— Um homem com essas cicatrizes não pode ser totalmente confiável, pois
essas feridas escondem toda a sua verdade, mesmo de uma criatura como eu.
Eliana estreitou os olhos. — Quer dizer que você não consegue ler os
pensamentos dele?
Zahra balançou a cabeça. — Eu sei que ele está próximo, que ele vive com
dor que não compartilha com ninguém. Mas não vejo mais que isso. Eliana,
eu não fazia ideia de que Simon era um homem assim. Eu nunca teria
confiado na palavra dele... Oh, por favor, deixe-me esconder você dele.
— Não. — Eliana percebeu um movimento nas árvores. Seu coração
chutou loucamente. — Eu vou falar com ele.
— Ele não poderá me ver — sussurrou Zahra. — Você é o única humana
que pode.
Isso a surpreendeu. — Por quê?
— Ninguém mais tem poder suficiente para isso. Desde o outono, todos os
olhos estão fechados para o Empirium...
— O que você está fazendo aqui fora? — Simon emergiu das árvores,
abaixou o capuz e tirou a máscara. — Você deveria estar descansando.
Abalando os nervos do medo que pairava de Zahra, Eliana seguiu em sua
direção. — Eu estava esperando por você.
Ele parou, observando-a se aproximar. — Ah? A que devo o prazer de uma
reunião privada com o Terror de Orline?
Ela passou por ele entre as árvores. Quando o ombro dela roçou o braço
dele, o toque a atingiu, ombro a barriga, como uma flecha quente. — Venha
comigo.
— Um encontro ilícito na floresta escura e sombria — ele murmurou,
seguindo-a. — Meus sonhos mais secretos ganharam vida.
Ela ficou em silêncio até que eles se afastaram algumas centenas de metros
da casa segura. Então ela parou, de costas para ele, braços rígidos ao lado do
corpo.
— O prédio onde eu fui mantida em cativeiro por Fidelia — ela começou,
com a voz tensa. — O que era?
— Laboratórios. — ele respondeu imediatamente.
Ela se virou, preparando-se. — Para experimentos nas mulheres
capturadas.
— Sim.
— Onde elas são transformadas em rastreadores, graças ao estudo de
genética do Imperador.
Um lampejo de surpresa passou pelo rosto de Simon. — Você falou com
alguém. Quem?
Ao lado de Eliana, Zahra murmurou baixo: — Alguém que a protegerá a
todo custo.
Simon desembainhou a espada em seu cinto. — Quem está aí? Afaste-se
dela, ou eu vou estripa-lo.
Então Zahra estava certa. Ele não podia ver o espectro, mas podia ouvi-la.
— Eu falei com alguém — respondeu Eliana. — Alguém que me disse que
você sabia sobre Fidelia o tempo todo. Você sabia quem eles eram, o que
estavam fazendo. Você sabia que eles levaram minha mãe e sabia onde
procurá-la. Ela não estava nos laboratórios onde eu estava guardada, mas está
em outro lugar—e tenho certeza que você sabe, sendo o poderoso Lobo,
exatamente onde Fidelia pode ser encontrada em todo o país. E, no entanto,
em vez de me contar isso, você me arrastou pela floresta e me manteve no
escuro, sabendo o tempo todo o que estava acontecendo com ela.
Simon ficou congelado, sua espada ainda no ar.
— Seu silêncio — disse Eliana, a fúria subindo rapidamente em seu peito
— é toda a confirmação de que preciso.
— Fiz o que me foi ordenado — disse ele, sua voz feita de pedra.
Ela deixou escapar um som desdenhoso. — As poderosas ordens do
Profeta, suponho.
— O Profeta vê muito e guia todos os meus passos.
Ela se virou, zangada demais para falar.
— Se você o cortar — disse Zahra em voz baixa — não tentarei impedi-la.
Certificarei-me de esconder o barulho dos outros.
— Não quero machucá-lo — disse Eliana. — Ainda não.
A voz de Simon estava tensa de frustração. — Com quem você está
falando?
Zahra o rodeou, um eco de um metro e oitenta de altura da mulher que ela
já fora. —Se você continuar incomodando minha rainha — ela explodiu,
vibrando de raiva — eu vou bater em você onde você estiver.
— Quem é? — Simon cuspiu. — Mostre-se.
— Seus olhos não são dignos de mim, Lobo.
Simon parou, sua expressão clara. — Zahra. O espectro que espiona para
nós.
Zahra soltou uma risada aguda. — Eu não espio para você, mas para minha
rainha.
— Ela continua me chamando assim — Eliana sussurrou. — Ela diz... —
Ela soltou uma gargalhada trêmula.
Atrás dela, Simon embainhou sua espada. Ela ouviu ele se aproximar dela,
lentamente.
— Ela diz que você é a Rainha do Sol. — disse ele, sua voz muito baixa.
Ela olhou para ele. As sombras atraíram novas cicatrizes pelo rosto dele,
mas seus olhos eram claros e nítidos, mesmo na penumbra, e neles, ela viu
uma faísca de alguma coisa—pena, pensou ela, e uma convicção ardente.
— Ela diz que você é a pessoa que se levanta — continuou ele — a
Criança Furyborn. Ela diz que você é filha do Portador da Luz e que ela fará
qualquer coisa para protegê-la. — Ele hesitou, os músculos de sua mandíbula
agitando. — Ela não é a única.
— Diga-me a verdade, então, se você se importa tanto comigo. — A voz de
Eliana saiu num sussurro duro. — Não me diga mais mentiras.
— Há alguns meses — ele disse, movendo-se através das árvores — ouvi
falar de um caçador de recompensas chamado Terror de Orline. Uma menina,
disseram os rumores, que havia acumulado um número impressionante de
mortes. Um dos mais altos do Império, de fato. — Ele parou, voltou-se para
Eliana. — Uma garota que era invencível.
Eliana o observou, esperando. Seu corpo estava tão tenso que ela temia que
pudesse estalar.
— Um boato tolo o suficiente para descartar, a princípio — continuou ele
— mas eu continuava ouvindo isso de novo e de novo, e quando contei ao
Profeta, fui instruído a investigar. Eu iria a Orline, encontraria esse Terror e a
observaria. E se não fosse nada, eu traria a princesa Navana para o norte,
como era minha missão original. Mas os rumores eram realmente
verdadeiros. Eu te reconheci, Eliana, assim que vi seu rosto.
Sua voz assumiu uma qualidade áspera que encheu Eliana com um medo
lento. O que ele estava dizendo... fosse loucura ou não, ele acreditava.
— Como você poderia ter me reconhecido? — ela perguntou. — Nós
nunca nos vimos antes daquela noite em Orline e...
— Eu conhecia seus pais — Simon interrompeu em voz baixa. — Eu os
vejo no seu rosto tão claramente quanto vejo o sol nascer ao amanhecer.
Ela se afastou dele, a verdade se estabelecendo lentamente em sua mente.
— Nunca foi sobre eu ajudá-lo a trazer Navi para Astavar. Você não
precisava de mim para isso.
— Não. Quando te encontrei, minha missão de levar Navi para casa
tornou-se secundária para mantê-la segura. Tudo — ele disse, movendo-se
urgentemente em sua direção — é secundário para mantê-la segura. A vida de
Navi. Minha vida. A Coroa vermelha.
Ela olhou para ele horrorizada. Zahra murmurou perto do ouvido dela: —
Ele não está errado nisso, Eliana. Podemos não confiar nele completamente,
mas isso, pelo menos, é a verdadeira verdade.
Simon lançou um olhar irritado para Zahra.
— Não é minha culpa que seus olhos humanos não sejam fortes o
suficiente para me ver — disse Zahra maliciosamente. — Não há necessidade
de fazer uma careta.
— Eu não entendo — Eliana sussurrou. — Isso é ridículo.
Simon parou de tocá-la. — Por que você acha que seu corpo pode fazer o
que faz? Você está mentindo sobre isso há anos, e eu entendo o porquê, mas é
hora de encarar a verdade.
Ela levantou o queixo, procurando por palavras. — Eu só tive sorte, é tudo.
— Você não acredita nisso. — Ele a alcançou então, seu toque em sua
bochecha tão gentil que era um mero sussurro de calor. — É o seu poder,
Eliana. O poder que você herdou de sua mãe. Está lutando para finalmente
despertar. E quando acontecer...
Um grito atravessou a noite, seguido pela voz de Remy: — El, ele está
aqui!
Vidro bateu contra pedra.
Uma luz laranja brilhou em vida através das árvores, iluminando a terrível
verdade:
A casa segura estava em chamas.
Uma figura familiar estava parada diante dela, olhando para as árvores com
uma tocha flamejante na mão.
Simon xingou.
— Tic toc, tic toc! — Rahzavel cantou. — Estamos todos esperando por
você, Terror! Venha para fora e brinque!
43
Rielle
“Marzana vagou pela tundra Kirvayan, fria e
amarga, em busca de consolo. Ela não se atreveu a
tocar em ninguém por medo de queimá-los e vagou
sozinha por longos meses até tropeçar em uma
floresta verde e fresca escondida dentro de um
cânion de gelo. Um fogo ardia em seu coração e,
quando Marzana aqueceu os pés, um pássaro de
fogo de olhos vermelhos emergiu brilhando das
chamas, e Marzana não teve medo.”
—O Livro dos Santos
Depois que os acólitos de Tal removeram sua venda, Rielle saiu de sua
barraca e entrou em uma plataforma de pedra, com uma capa de penas em
volta dos ombros.
Uma parede de som bateu nela – aplausos, gritos de seu nome, sinos
tocando. Para o traje final de Rielle, Ludivine se inspirou no pássaro de fogo
de Santa Marzana. Um macacão escarlate bordado com chamas douradas
grudava em suas curvas. De seus ombros, uma dramática capa de três metros
de comprimento, feita para parecer asas rastejantes. Penas de violeta,
escarlate e âmbar brilhantes cobriam a capa do fecho à bainha. Ludivine
juntou os cabelos em um nó emplumado, polvilhou com ouro e pintou as
bochechas com redemoinhos vermelhos.
Rielle respirou fundo, examinando o ambiente.
Eles a trouxeram para um vale estreito entre o sopé gramado do norte do
Monte Sorenne e o leste da cidade. Estandes para espectadores foram
erguidos ao longo das cordilheiras rochosas que circundavam as encostas,
mas a maioria da multidão estava de pé, aglomerando-se atrás dos trilhos de
segurança para ter uma visão melhor. Flashes de ouro piscavam para ela de
todos os lados: faixas da Rainha do Sol, pingentes, peças de teatro em forma
de sol encenadas por crianças gritando.
No final da plataforma, escadas levavam a um enorme labirinto circular de
madeira e pedra. O Arconte estava no topo da escada – assim como Sloane,
com olhos vermelhos e tremendo.
E segurando o escudo de bronze de Tal.
O terror varreu Rielle como uma força física. — Sloane? Por que você tem
o receptáculo de Tal?
— Ele está no labirinto — respondeu Sloane, com a voz rouca. —
Amarrado... e esperando por você.
— Antes que você me acuse de qualquer coisa — disse o Arconte — foi
idéia de Magister Belounnon, não minha.
Rielle sentiu-se repentinamente e impossivelmente pequena sob sua capa
pesada. — Eu não entendo.
Ele pensou que isso iria ajudá-la — disse Sloane — se você fosse forçada a
enfrentar a morte pelo fogo mais uma vez, como fez no dia em que sua mãe
morreu. Você poderia salvá-lo, como você não pôde salvá-la. — As lágrimas
de Sloane transbordaram. — Ele disse, diga a ela que não há problema em ter
medo, mas o medo dela não triunfará desta vez. Diga a ela que ela é mais
forte do que qualquer chama que arde.
As portas no pé da escada se abriram, revelando um caminho estreito de
terra entre paredes de madeira de dois metros e meio.
Rielle olhou para o caminho, consternada, os gritos da multidão ecoando
em seus ouvidos.
— Você encontrará Magister Belounnon no coração do labirinto —
explicou o Arconte, apontando para uma estrutura no centro distante do
labirinto. — Cada beco sem saída que você encontrar resultará em seus
acólitos incendiando uma seção do labirinto que o rodeia.
O mundo caiu, deixando Rielle à deriva. Ela olhou para o arconte. —
Como você pôde deixar isso acontecer?
O rosto do Arconte estava sério. — Magister Belounnon insistiu nisso.
— Então você deveria ter parado ele!
Uma buzina tocou em uma das arquibancadas acima.
Rielle quase se lançou contra o homem. — Pelo menos, deixe-me trazer o
receptáculo dele!
— Ele pediu que o receptáculo permanecesse com a irmã. — respondeu o
Arconte.
A buzina tocou uma segunda vez. Do outro lado do labirinto, cobras
sibilantes de fogo ganharam vida ao longo de trechos aleatórios da parede.
Rielle arrancou a capa e a jogou no chão. Penas voaram; as palmas das
mãos ardiam quando ela avançou no Arconte.
— Se ele morrer — ela resmungou — vou arrancar cada centímetro de pele
do seu corpo.
O Arconte não vacilou. — Se ele morrer, Lady Rielle, você não terá
ninguém para culpar além de si mesma. O labirinto queimará rapidamente.
Eu sugiro que você corra.
Uma terceira buzina. Rielle lançou um olhar desesperado para Sloane,
depois desceu correndo as escadas e entrou no labirinto.
44
Eliana
“Eles a chamavam de Terror, sem saber que, sob a
máscara, a capa e o sorriso pintado, ela era
simplesmente uma garota. Uma garota com um
coração que ardia por sangue.”
—O Terrível Conto do Mortal Terror Sombrio por Remy Ferracora
Eliana agarrou Arabeth e Whistler, depois pulou para frente apenas para ser
puxada de volta pelo braço esquerdo.
Ela virou-se para Simon. — Solte-me!
— Não. — Ele a abraçou com força. — Deixe-os.
— Você está louco? Este é meu irmão!
— E a vida dele não é nada comparada à sua. — Simon olhou uma vez
para a casa segura. Eliana pensou ter visto o fantasma do arrependimento em
seus olhos. — Vamos lá.
liana se contorceu violentamente em suas garras. — Eu vou matar você!
— Eu não acho que você vá. — Ele a puxou para mais perto. — Você está
intrigada com o que eu disse. Você quer saber mais.
Ela cuspiu na cara dele. Simon riu.
— Você é tão parecida com ela — ele murmurou sombriamente.
— Eu sou como eu — ela sussurrou — e mais ninguém.
Ela chutou o joelho dele, bateu com Whistler no estômago, mas ele se
esquivou rápido o suficiente para perder o pior. Ela se libertou e correu; ele a
pegou mais uma vez. O pânico a estava deixando desleixada. Ela ouviu gritos
aterrorizados do esconderijo e gritou uma maldição furiosa.
— É isso aí. — Simon lutou para segurá-la, rindo sem fôlego. — Fique
com raiva, Eliana. Lute comigo. Estou impedindo você de ir até seu irmão.
Estou mantendo-o com dor.
— Me deixe ir!
— Você não pode ignorar seu destino para sempre. Deixe crescer, deixe a
raiva chegar.
Ela rosnou: — Eu avisei você — em seguida, deu-lhe uma joelhada cruel
na virilha.
Ele a deixou cair, cambaleando.
Ela se virou e correu.
— Zahra! — ela chamou.
— Bem aqui — respondeu Zahra, correndo pelas árvores ao seu lado. Sua
forma tremulou, vacilante. — Vou escondê-la dele o máximo que puder.
Juntas, elas correram para fora das árvores e passaram por Rahzavel, que
ficava olhando a floresta com olhos selvagens. Eliana congelou na porta do
esconderijo. Chamas subiram pelo telhado; as árvores de ambos os lados
crepitavam com fogo. Ela arrancou a jaqueta, enrolou-a na mão e alcançou a
porta da frente no momento em que as vigas no alto desmoronaram. Ela
pulou para trás, tossindo.
— Aqui! — Zahra acenou a alguns metros de distância. Uma porta de
madeira foi colocada no chão, coberta de musgo e coberta de pilhas de pedras
—um porão tão bem bloqueado que Remy e os outros não seriam capazes de
sair de dentro.
Eliana correu e começou a empurrar freneticamente as pedras. — Diga-me
o que está acontecendo!
Zahra espiou pela casa. — Simon está mantendo ocupado seu agressor.
Quem é esse homem?
— Rahzavel. — Eliana arrancou uma folha de musgo das dobradiças da
porta.
Zahra cantarolou em desaprovação. — Ele é Invicto.
— Sim. — A porta estava emperrada. Ela apoiou o pé contra a moldura e
puxou com força. — Não consigo abrir!
— El? — Uma voz soou do outro lado da porta. — É você?
— Estou aqui! A porta está presa! — Eliana puxou com força, cada
músculo de seu corpo esticando. — Empurre por dentro, quando disser, você
e Hob. Pronto?
A voz de Hob veio fracamente. — Pronto!
— Um... dois... três!
Ela puxou a porta com toda sua força, e finalmente cedeu. Ela a jogou de
lado, estendeu a mão para Remy. Hob o empurrou para cima e Navi logo
depois—todos tossindo, os rostos manchados de preto pela fumaça. Remy se
agarrou ao lado de Eliana; Hob ergueu Navi por cima do ombro, sua
expressão sombria.
Ele olhou para Eliana. — E agora?
— Devemos ir imediatamente — Zahra avisou, sua forma brilhando. —
Simon está quase terminando, e então Rahzavel nos encontrará. Minha força
falhará a qualquer momento.
Os olhos de Hob se arregalaram. — Quem disse isso?
Eliana se virou, apertando os olhos através da fumaça. Zahra estava certa:
Simon estava gravemente ferido, segurando o seu lado. Rahzavel arrancou a
espada e chutou a ferida. Simon gritou em agonia, joelhos dobrando e caiu.
Rahzavel estava de pé sobre ele, um sorriso enlouquecido dividindo suas
bochechas.
Eliana apertou a mandíbula contra a onda quente de vergonha em seu
coração e se virou. — Então vamos para o norte, em direção ao mar estreito.
— Mas não podemos! — Remy puxou seu braço. — Ele matará Simon!
— E ele não vai nos matar. — Eliana olhou para Hob, que assentiu uma
vez.
— Vamos lá — disse ela e correu para a floresta, segurando Remy
firmemente pela mão. Ela o viu olhar para trás uma vez, os olhos brilhando
de lágrimas, mas não se permitiu fazer o mesmo.
45
Rielle
“Meus alunos, por favor, saibam isso: eu escolhi
desistir do meu receptáculo e me prender dentro do
meu próprio labirinto. Fiz isso por dois motivos
simples: confio em Rielle Dardenne e a amo.”
—Carta escrita pelo Grande Magister Taliesin Belounnon aos acólitos de
Pyre
19 de junho de 998 da segunda era
Eles se moveram pela floresta fria por horas—durante toda a noite e no dia
seguinte.
O chão ficou mais rochoso quanto mais ao norte eles foram, terra macia
dando lugar a areia pálida. As árvores eram estranhas aqui, curtas e finas,
com folhas quebradiças que assobiavam maldosamente ao vento. Carrinhos
de mão compridos e deformados, coroados com pedras em ruínas
serpenteavam pela floresta como veias.
— Essas árvores cheiram a morte — Hob sussurrou enquanto se agachava
perto de um desses montes. — Ficarei feliz em deixá-las para trás.
Eliana concordou—mas para onde ir depois disso? O contato de Simon,
seu caminho através do Mar Estreito, agora estava perdido para eles.
Finalmente pararam para descansar, aconchegando-se sob uma saliência
coberta de musgo ao lado de uma ligeira colina. Navi havia perdido muito de
sua cor, sua pele escorregadia de suor. Eles a colocaram no chão, espalhando
folhas sobre seu corpo trêmulo.
Ela levantou uma mão fraca. — Eliana?
Eliana pegou, sentou-se ao lado dela. — Estou aqui. Você está bem. Nós
vamos ficar bem agora.
Navi sorriu fracamente. — Não minta para mim.
— Bem. Provavelmente estamos todos condenados.
— Isso é melhor.
Remy se encostou no outro lado de Eliana, os braços cruzados sobre o
peito. Ele não falou uma palavra desde que deixaram Simon para trás.
Eliana olhou para Hob. — Você sabe com quem Simon poderia estar
falando? O contato que ele foi encontrar.
Hob tirou alguns pedaços de comida dos bolsos—carne seca, pãezinhos,
tudo o que ele havia conseguido pegar antes de fugir do fogo—e passou para
eles. — Não. De acordo com Simon, eu não sou um aliado de alto escalão o
suficiente para ter acesso a essas informações.
— Deve haver contrabandistas que cruzam o Mar Estreito.
— Um pouco. Mas não temos dinheiro para isso. — Hob arrancou uma
baga de um arbusto próximo, mastigou e cuspiu. — Rotberries. Essa floresta
é inútil.
— Podemos voltar para Rinthos? Pedir ajuda a Camille?
— Eu não acho que Navi sobreviveria à viagem. Se pudermos chegar ao
porto de Skoszia sem que alguém nos veja e nos mate no local, posso enviar
uma mensagem para Camille de um lugar lá, mas isso levará tempo.
— Essa é a hora que não temos.
— Nós o deixamos. — Remy mudou para olhar para Eliana. — Nós o
deixamos morrer com Rahzavel.
— Sim, nós deixamos — disse Eliana, recusando-se a encontrar seus olhos.
— Ele gostaria que nós fizéssemos.
— Isso não está certo.
— Ei, você sabe o que? — Ela passou o braço pelos ombros de Remy. —
Eu tenho algo para te dizer. Eu gostaria de poder mostrar a você, mas não
posso. Você também, Hob.
Hob levantou uma sobrancelha. — Não fale comigo como se eu fosse
criança.
— Eu conheci uma amiga — disse Eliana — nos laboratórios onde eles
mantinham eu e Navi. O nome dela é Zahra e... ela está aqui conosco. Agora
mesmo.
Um pouco da tristeza deixou o rosto de Remy. — Realmente? Como?
Onde?
Hob estava olhando para ela. — Você perdeu a cabeça?
— Isso não é brincadeira, Hob. — disse Zahra.
O braço de Hob disparou para proteger Eliana e Remy. — Quem está aí?
Quem disse isso?
— Quem é você? — Remy olhou em volta, maravilhado. — Você pode me
mostrar como você é?
— Meu nome é Zahra, pequenino. — Zahra desceu ao nível dos olhos de
Remy, com o queixo nas mãos. — Que coisa querida você é. Sua mente está
tão aberta quanto o céu.
Remy cautelosamente acenou com a mão. — Você está muito perto, não é?
— De fato.
— Eliana — murmurou Hob — o que é isso?
Remy abraçou os joelhos no peito. — Você é um espectro?
Zahra piscou surpresa. — O que é essa criança, que conhece muito do
mundo? — Sua expressão ficou terna. — Oh, docinho. Você é um sonhador,
um contador de histórias. Eu vejo isso agora. Você anseia por magia e por
todos aqueles gigantes dourados do passado.
Remy corou de prazer. — Antes da invasão — ele disse ansiosamente —
as pessoas roubavam livros dos templos, para que não fossem destruídos.
Compro-os sempre que posso e leio todos.
— Espere. — Eliana se afastou para franzir a testa para ele. — Você quer
dizer que costumava esgueirar-se por Orline comprando livros no mercado
subterrâneo?
— Você acha que eu aprendi tudo o que sei apenas rolando massa na
padaria?
— Bem, eu… — Ela balançou a cabeça, surpresa.
— Oh, eu gosto de você. — Zahra passou um braço pelos ombros de Remy
com um sorriso. — Uma mente curiosa e um coração puro, ambos em um.
Hob jogou as luvas no chão. — Alguém pode me dizer o que é um
espectro?
— Não se mexam — uma voz masculina advertiu das sombras diante
deles. — Ou direi aos meus arqueiros para deixarem suas flechas voarem.
Eliana congelou quando as formas mudaram na vegetação rasteira—cinco
soldados, dez, aproximando-se com arcos levantados e flechas prontas.
Zahra disparou até sua altura total, olhos escuros brilhando. — Eliana, me
perdoe. Eu estava distraída; Eu não os ouvi!
Um dos arqueiros apontou a flecha para o lado, procurando Zahra—e, é
claro, não encontrando nada.
— Você tem um quinto no seu grupo? — perguntou o primeiro homem.
Ele se aproximou de Eliana, sem arco na mão, mas uma espada longa e curva
no quadril. O capuz escondia o rosto da vista.
— Você vê cinco pessoas aqui? — Eliana olhou para ele. — Seus olhos
falham com você, eu tenho medo.
— Mas meus ouvidos não. — O homem parou, considerando a cabeça
cortada de Navi. — Você escapou de Fidelia.
Eliana ficou tensa. — Possivelmente.
— Malik? — Navi gemeu, lutando para se levantar. — É você?
— Navi? — O homem tirou o capuz e caiu de joelhos aos pés dela. —
Doces Santos. — Ele juntou Navi contra seu peito antes que Eliana pudesse
detê-lo, deu um beijo carinhoso na cabeça dela. — Simon disse que você
estava viva, mas eu não acreditei. Eu não podia me deixar.
Navi se agarrou a ele, seu rosto magro livre de dor pela primeira vez desde
que escaparam dos laboratórios. — Eliana — ela murmurou — por favor, não
tenha medo. Estamos seguros agora.
— Eu serei a juíza disso. — Eliana se moveu na frente de Remy e estendeu
a mão por baixo de sua jaqueta chamuscada para Arabeth. — Quem é você?
Malik se virou, as bochechas marrons molhadas de lágrimas, os olhos
grandes e escuros, a mandíbula forte. A semelhança, agora que Eliana sabia
procurá-la, era óbvia.
— Eu sou Malik Amaruk — disse ele, limpando o rosto. — Eu sou o irmão
de Navi e um príncipe de Astavar.
•••
Mais tarde naquela tarde, depois que Malik e seus batedores compartilharam
uma refeição adequada com eles, Eliana ficou com Malik na beira de um
penhasco com vista para o Mar Estreito. Do outro lado do canal preto havia
uma linha de falésias brancas: Astavar—e liberdade.
Eliana deu uma olhada e imaginou o país verde fresco além da fronteira,
mesmo que isso abrisse velhas feridas em seu coração.
Harkan, ela pensou, você deveria estar aqui.
— Então, existem monstros nesses barcos — Malik murmurou. No
horizonte distante, manchas negras moviam-se firmemente para oeste contra
o céu escuro. A frota do Império.
— Eles são chamados de rastreadores. — disse Eliana.
Ao longo da costa, uma pequena frota de navios de guerra do Império
esperava no porto de Skoszia. As formas fracas de adatrox se agitavam de um
lado para o outro nas docas, transportando suprimentos e armas. Pendurados
no alto dos mastros dos navios de guerra, as cores preto, vermelho e dourado
do imperador se agitavam ao vento.
O Imperador. Corien, Zahra o havia chamado.
A boca de Eliana se afinou. Isso não era algo que ela se permitiria pensar
ainda. — Portanto, temos que atravessar o mar sem que ninguém nos navios
nos veja.
— Sim. — Malik apontou para trás, mais a oeste ao longo da costa. — Há
um pequeno navio contrabandista a três quilômetros de distância, em uma
pequena enseada abandonada pelo Império. O navio cruza ao anoitecer e sua
tripulação nos leva com eles. Simon e eu arranjamos isso antes… — Mais
uma vez Malik olhou para ela. — Bem.
— Antes de eu o abandonar para salvar minha própria bunda?
— Eu não diria isso assim.
— Não há necessidade de segurar sua língua em volta de mim, príncipe. —
Eliana olhou para a água, tentando não se lembrar dos gritos de dor de
Simon. — Eu sei o que fiz.
— Eu faria o mesmo, você sabe.
— Não há necessidade de me confortar também.
Malik inclinou a cabeça. — Quando atravessarmos, você será levada para a
capital. Existem túneis abaixo do palácio. Meus pais esconderão todos vocês
lá, e eu me juntarei ao exército na praia.
— Para lutar? — Eliana não conseguiu esconder o desprezo em sua voz.
Malik disse suavemente: — Você acha que não podemos vencer.
— Eu sei que não podem.
— E o que devemos fazer? Sentar nas margens do nosso país e deixar o
Império nos massacrar sem levantar uma única espada?
— Seu pessoal se destaca por sentar e não levantar uma única espada.
Malik olhou para Eliana calmamente. — Todos em Astavar sofreram com
você no dia em que Ventera caiu.
— Sua dor não significa nada para mim.
— Nós salvamos nossas próprias bundas. Não foi assim que você disse?
Como somos tão diferentes, então?
— Simon é um assassino. Um soldado. Ele sabia no que estava se metendo
quando se juntou à Coroa Vermelha. Um país, no entanto, é cheio de
inocentes — Eliana olhou para o mar. — Não tente se comparar a mim ou
seu país ao meu. Você vai perder.
— Meu Senhor! — Um batedor correu pelo caminho do penhasco para
sussurrar algo no ouvido de Malik.
Malik virou-se para Eliana, sobrancelhas levantadas. — Parece que Simon
está vivo.
O mundo sob seus pés flutuou para longe. — O que? Mas Rahzavel...
— O levou cativo, aparentemente. Eles estão em um dos navios de guerra
com destino a Astavar.
— Qual? — Quando o batedor hesitou, Eliana agarrou seu braço. — Qual?
— Não sei — respondeu o escoteiro. — Nosso contato no navio do
contrabandista os viu embarcar, mas não conseguia se lembrar de qual navio.
Todos parecem iguais, ele disse.
Eliana bufou. — E essas são as pessoas às quais confiamos nossas vidas?
— Não restam muitos contrabandistas que ousam atravessar o Mar Estreito
— apontou Malik. —Temos sorte de encontrar alguém.
— O que você está pensando, minha rainha? — Zahra murmurou ao
ouvido de Eliana.
Eliana olhou fixamente para os navios ao longo da costa.
— Estou pensando — disse ela lentamente — que não iremos com os
outros quando eles partirem.
Zahra assentiu. — Você está pensando que devemos salvar Simon.
Uma onda quente de alívio varreu o corpo de Eliana. — Sim.
— Porque você se sente culpada por deixá-lo?
Sim. Porque nem ele merece a morte nas mãos de Rahzavel. Porque ele
deu a vida para nos permitir escapar.
Porque não pude salvar Harkan. Mas eu posso, talvez, salvar Simon.
— Porque ele tem respostas que eu quero — respondeu ela.
Zahra lançou um olhar aguçado e bateu em sua própria têmpora. —
Lembre-se... anjo.
— Não mais, você não é. — Eliana virou-se para encarar Malik. —Você
levará meu irmão para Astavar... e Hob também. — Ela olhou para Hob. —
A menos que você queira voltar para Patrik?
— Não vou deixar Navi, nem o garoto — disse Hob calmamente, com os
olhos brilhantes, mas o queixo fixo. — Encontrarei Patrik mais tarde. Às
vezes, nosso trabalho para a rebelião exige que vivamos separados. Ele vai
entender.
Uma dor inchou sob as costelas de Eliana.
Às vezes, Rozen Ferracora havia dito a ela, quando o treinamento começou,
seu trabalho a levará longe de casa por dias seguidos. Lembre-se disso: eu
sempre vou te amar quando você voltar. Não importa o que você tenha feito.
Ela apertou o colar com tanta força que a borda corroída mordeu a palma
da mão. — Bem, Malik?
— Para a garota que salvou minha irmã e mostrou a ela tanta gentileza? —
Malik inclinou a cabeça. — Eu faria qualquer coisa.
— Remy não vai me perdoar por sair sem se despedir.
— Sim, eu vou.
Eliana se virou e encontrou Remy parado atrás dela, com o rosto
comprimido e grave. — Se você pode salvá-lo, El — ele disse calmamente —
você deve fazê-lo.
Uma buzina soou da costa; através dos navios de guerra reunidos, tochas
brilhavam.
— A noite vem — Zahra murmurou. — Nós devemos ir.
— E nós também. — Malik virou-se, assobiou baixinho. Seus batedores se
reuniram, abrindo caminho em um silêncio eficiente.
Eliana puxou Remy para ela, e juntos eles encontraram Hob ajudando Navi
a se levantar na beira das árvores. — Você cuidará dele?
— Ele não vai deixar o meu lado — disse Hob. — Nenhum deles vai.
— Eliana — sussurrou Navi, alcançando-a. — Você o salvará. Eu sei
disso.
Eliana se aproximou dela, Remy ainda ao seu lado e beijou sua
sobrancelha. — Eu vou tentar.
— Eu sei o que você é. O espectro pensou que me confortaria saber.
“— O que? — Eliana olhou para Zahra.
— Não fique com raiva dela. Foi uma gentileza — Navi beijou a mão de
Eliana, pressionou-a na bochecha. — Se alguém pode salvá-lo, esse alguém é
você.
Remy olhou. — Sobre o que ela está falando?
— Navi — disse Eliana rapidamente — tudo isso é um absurdo infantil…
mentiras que as pessoas que desejam conforto dizem a si mesmas.
— Você não acredita nisso. — Navi murmurou.
O colar de Eliana ficou subitamente pesado demais em volta do pescoço.
— Eu não sei em que acreditar.
Zahra sorriu. — Então você está no caminho certo.
Eliana se abaixou para beijar a bochecha de Remy, sussurrou: — Eu te amo
— e segurou o rosto dele nas mãos dela, memorizando cada linha e curva.
— Salve-o — ele disse, sua voz vacilante, e antes que Eliana pudesse
mudar de idéia, ela se virou e correu pelo penhasco em direção ao mar que
escurecia.
47
Rielle
“Meus sonhos são estranhos ultimamente. Eu tenho
medo... Minha querida filha, por favor, me perdoe.
Sinto muito. Eu sinto muitíssimo.”
—Carta de Lord Dervin Sauvillier a Lady Ludivine Sauvillier
19 de junho do ano 998 da segunda era
•••
Nem o vento, nem a terra ou as sombras que revestiam a sala.
Esse poder era mais do que isso e tudo isso e nada disso.
Simplesmente, era isso:
O empirium, cru e ofuscante.
Aos pés de Rielle, o tecido invisível do mundo se abriu e detonou. Uma
onda de luz, um arrepio selvagem.
Não longe, mas longe o suficiente.
•••
Quando o tremor diminuiu, Rielle estava no chão. A cabeça dela girou. Ela
olhou para as palmas das mãos; elas estavam cobertos de sangue.
Dela própria?
Ela piscou.
Sim. A dor emergiu em ondas agudas e irregulares.
E Corien?
tonta, ouviu um som horrível e estridente, e o encontrou rastejando para
longe dela, suas roupas queimadas em cinzas e seu corpo...
A explosão o havia queimado.
Ele era uma criatura desfeita, vermelha, devastada e cintilante. Ele uivou
de dor, arrastando-se pelo chão da caverna em direção a uma abertura que
levava de volta às colinas.
— Não olhe para mim! — ele gritou com ela, suas palavras estremecendo.
— Assim não! Assim não...
Ela não viu um único traço reconhecível no rosto dele. Mas sua agonia, sua
vergonha—sua raiva—vibraram em sua mente.
Quando ela olhou para cima novamente, ele se foi.
Então, um grito baixo soou do outro lado da caverna—seu pai, lutando para
respirar. E além dele, o rei Bastien, lorde Dervin...
Imóvel, imóvel ambos imóveis. Não queimados, como Corien havia sido,
mas rígidos. A luz desapareceu de seus olhos vidrados, seus rostos
congelados em choque.
Rielle tentou se levantar, caiu de joelhos. — Papa? — Ela rastejou para ele,
virou o rosto para ela.
Ele tragou o ar, com os olhos turvos.
— Estou aqui. — Ela tocou o rosto dele; suas bochechas estavam molhadas
de lágrimas. — Está tudo bem. Ele se foi e eu estou aqui. Nós só
precisamos... Oh, Deus. — Ela se virou para a passagem da caverna por onde
tinha vindo, gritou sua voz bruta. — Eu preciso de um curandeiro! Alguém,
por favor, nos ajude! Garver!
— Eu... lembro.
— Papai? O que é? — Ela segurou as mãos dele contra sua bochecha. —
Você se lembra do que?
— “Pela... lua…” — Ele tragou com empatia o ar. — “Pela…”
— Canção de ninar da mamãe?
Ele deu um sorriso trêmulo. — “Pela...”
— “Pela lua” — ela terminou, cantando instável. — “Pela lua, é onde você
me encontrará.”
Ele assentiu e fechou os olhos. Lágrimas escorreram por suas bochechas e
em sua barba bem aparada. Um fantasma de sorriso tocou sua boca.
— “Vamos rezar para as estrelas” — continuou ela, um mero sussurro —
“e pedir que elas nos libertem. Pela lua...”
Ele estremeceu uma vez, suas mãos frouxas nas dela.
Ela fechou os olhos, pressionou o rosto contra os dedos dele. Se ela
terminou a canção de ninar, se não olhou, não estava realmente acontecendo.
— “Pela lua” — ela sussurrou — “Pela lua, é onde você me encontrará.
Vamos dar as mãos, só você e eu...”
Ela não conseguia mais falar. Se encolheu ao lado dele, pressionou o rosto
contra o lado dele e ficou lá, tremendo e sozinha.
•••
•••
•••
•••
Por um momento—breve, mas selvagem e impossível de entender—Eliana
viu tudo:
O gelo, o céu e a água brilharam e ela viu tudo pelo que era: um véu, nada
mais. Uma cobertura escondendo algo incrível e divino.
O tempo ficou mais lento.
Ela se viu, e Simon, os dois tremendo e ensanguentados. Ela viu a praia
sendo invadida por monstros e as proas da frota do Império esculpindo o
gelo. Ela ouviu os soldados de Astavari gritarem por ajuda e pensou ter
ouvido o príncipe Malik Amaruk gritando ordens para aqueles que lutavam
na praia. Ela pensou ter ouvido Remy, escondido no castelo de Navi,
sussurrar: — Eliana, por favor, esteja bem.
E ela pensou ter ouvido uma voz atravessar o oceano para lhe dizer, eu
senti isso, Eliana. Você não pode se esconder de mim agora.
Cega e que tudo vê, Eliana olhou para o mundo gelado e explosivo ao seu
redor.
Dedos gelados de dor se fecharam em torno de sua garganta.
Vai consumir você. A voz da mãe dela. Uma lembrança agora e nada mais.
Ela caiu de joelhos. Afastou as mãos de Simon e proferiu um protesto sem
palavras.
Eu não serei consumida.
Então ela bateu os punhos com força contra o gelo e se curvou, lutando
para respirar.
Os barulhos da batalha ao seu redor desapareceram. Ela existia em um
casulo—a água lambendo o gelo, o gelo quente com o sangue da mãe, o
sangue escorregadio nas palmas das mãos cerradas.
A água retumbou, mudando. O gelo se abriu. O corpo de Rozen deslizou na
água e desapareceu. Um ruído percussivo escuro atingiu o ar. Luzes
brilhantes piscaram—raivosas e muitas.
Um grito abafado a tirou de qualquer lugar que ela tivesse ido.
Ela piscou. Pestanejou novamente.
Simon a levantou. — Você está queimando. Vamos lá, vamos seguir em
frente. Deus, Eliana, o que você fez?
Ela não respondeu, não sabia a resposta. Um sentimento carregado puxou
suas mãos, beliscou sua pele.
Eles estavam mergulhados na água gelada até os joelhos. Ela viu seus pés
percorrerem um oceano negro denso com pedaços de gelo, sentiu suas botas
deslizarem na lama.
— Eliana, pare!
Ela ficou na estava na areia molhada, a água lambendo os dedos dos pés. A
costa.
— Olhe para mim! — Simon estava gritando com ela, mas o campo de luz
além dos olhos dela era muito brilhante, muito terrível. Ela fechou os olhos e
se virou para ele. Seu corpo não podia mais se sustentar. Ela caiu no chão, e
Simon foi com ela, segurando-a em seus braços. O vento uivava ao redor
deles, açoitando gelo e areia contra sua pele.
— O que está acontecendo? — ela murmurou. Um ataque de tosse brutal
tomou conta dela. Todo osso em seu corpo doía, todo músculo queimava.
Uma mão fria alisou os cabelos da testa. — Veja o que você está fazendo,
Eliana. Eu preciso que você abra seus olhos para mim, vamos lá.
Ela forçou os olhos a abrirem e olhou para o mar.
Relâmpagos brilhavam, três novos ataques a cada segundo, pintando o
campo de batalha em prata febril. Eles despedaçaram os rastreadores ainda
nadando para a praia; icebergs explodiram em chamas. Ondas escuras e
agitadas batiam contra a frota do Império. Um vento selvagem chicoteou
velas de seus mastros, agitou o mar em banheiras de hidromassagem que
sugaram os navios de guerra debaixo d'água e os quebraram em dois.
— Você tem que parar com isso — gritou Simon sobre o vento.
— Eu estou fazendo isso? — ela murmurou, depois percebeu que não
estava respirando, que a tempestade havia sugado todo o ar de seus pulmões.
Seu suspiro doeu, quebrou o peito em dois.
As mãos de Simon seguraram seu rosto, firmando-a. — Por favor, Eliana,
olhe para mim, olhe nos meus olhos.
Ela olhou, soluços, que não pretendia liberar rasgando sua garganta. — Eu
matei ela. Eu não pude salvá-la!
— Eu sei. — Ele limpou a areia do rosto dela. — E me desculpe. Mas você
precisa parar com isso agora ou vai matar todos nós.
Ela balançou a cabeça, percebendo através do rugido frenético de seu
desespero que de alguma forma ela estava fazendo isso, que o mundo estava
ecoando sua própria raiva. Zahra estava certa, e Simon também. Havia uma
coisa impossível vivendo dentro dela. Ela sempre pensou que era um monstro
de sua própria criação, forjada pela violência que ela havia praticado para
sobreviver.
Mas a verdade era esta: era uma monstruosidade dada a ela por sua mãe. A
Rainha de Sangue. A Kingsbane. Uma traidora e mentirosa.
E Eliana decidiu, naquele momento, que a odiava.
— Eu não sei como parar — ela chorou. Seus dedos ardiam junto com a
tempestade; o sentimento a revoltava. Ela viu navios sendo despedaçados,
soldados nadando por suas vidas. Ondas negras surgiram em direção à costa.
— Apenas me segure, — Simon sussurrou, segurando-a contra seu peito.
— Me segure e pense em Remy. Pense em Navi. — Ele pressionou sua
bochecha fria na testa dela. — Pense em casa.
Casa. E o que era casa para ela agora? Orline? Ou Celdaria?
Com a tempestade furiosa, ela não conseguia se lembrar de nenhum lugar.
Em vez disso, ela ouviu os batimentos cardíacos selvagens de Simon,
imaginou a voz de Remy lendo uma história para ela antes de dormir e
respirou.
51
Rielle
“Vento e água
Fogo e sombra
Metal, terra e luz acima—
Ouça nossa oração neste dia da morte
Pegue na mão nosso amigo caído
Nascer de novo, através de você
E começar de novo
Aos olhos dos Sete, oramos.”
—Rito fúnebre tradicional celdariano
•••
Há quatorze anos atrás, eu tive uma ideia para um livro e decidi que queria
ser uma escritora.
Quatorze anos é um longo tempo, e há muitas pessoas que eu preciso
agradecer por me ajudar a realizar meu sonho e ajudar Furyborn a se tornar o
livro que ele é hoje.
Primeiramente, a Diana Fox, que pegou minha carta de proposta original de
Furyborn da pilha, generosamente (e gentilmente) explicou para mim quanto
trabalho eu precisava fazer, e me ajudou a começar nessa indústria. A você,
Diana, eu sou eternamente grata.
À minha editora, Annie Berger, com quem é uma delícia trabalhar—
paciente, perspicaz, destemida. Obrigada por ir nessa jornada comigo.
À minha agente, Victoria Marini: Seu entusiasmo me mantém inspirada;
sua pura ferocidade me mantém sentindo segura e sã. Me sinto honrada por
chamar você de minha agente—e minha amiga.
À equipe inteira da Sourcebooks Fire—incluindo a produtora editorial
Elizabeth Boyer, gerente editorial Annette Pollert-Morgan, revisores Diane
Dannenfeldt, Alex Yeadon, Katy Lynch, Beth Oleniczak, Margaret Coffee,
Sarah Kasman, Kate Prosswimmer, Heidi Weiland, Valerie Pierce, e
Stephanie Graham—obrigada a todos por aceitarem a mim e Furyborn com
tanta paixão e entusiasmo.
A Michelle McAvoy, Nicole Hower, e David Curtis, que fizeram Furyborn
parecer tão belo, por dentro e por fora. Obrigada.
Esse livro costumava ser três vezes mais longo e ocupava dois enormes
cadernos. Há pessoas na minha vida que, de fato, leram a coisa toda e
continuam falando comigo. Obrigada a Erica Kaufman, Beth Keswani, Starr
Hoffman, Ashley Cox, e Cheryl Cicero. Mais agradecimentos a outras
pessoas que leram várias partes cruciais desse livro ao longo dos anos: Kait
Nolan, Susan Bischoff, Justin Parente, Kendra Highley, Gabi Estes, Britney
Cossey, e Amy Gideon.
A Jonathan Thompson—o Lysol para minha Monica, o Simon (Tam, não
Randell) para minha River, o Brit-Brit para minha Cate: obrigada por sempre
acreditar em mim.
À minha doce meia-irmã, Ashley Mitchell, que montou a primeira lista
oficial do elenco de fantasia para esse livro, anos e anos atrás. Eu ainda tenho
aquele documento do Word, e nunca deixarei de amá-lo (ou você!).
A Brittany Cicero: Você leu o primeiro esboço da primeira versão de
Furyborn, semana após semana, capítulo por capítulo, enquanto eu pairava
sobre seu ombro, observando seu rosto para cada minúscula reação. Eu te
amo. Esse livro não existiria sem você.
A Michelle Schusterman: Você leu o primeiro esboço dessa versão de
Furyborn enquanto eu o escrevia, dia após dia, capítulo por capítulo. Eu não
conseguiria ter dominado esse monstro selvagem sem você ao meu lado.
Obrigada, para sempre.
A Diya Mishra: Eu não tenho certeza se alguma outra pessoa nesse mundo
entende esse livro por completo como você. Você é minha brilhante rainha
das bruxas da Sonserina, minha companheira shipper, my alma gêmea, e eu
sou tão feliz por Winterspell ter nos unido.
A Alison Cherry, cujo maravilhoso cérebro fez esse livro muito melhor do
que ele, e que acalmou de momentos de ansiedade e dúvida demais para
contar—obrigada, amiga, por ser minha.
A Lindsay Eagar (por constantemente me inspirar, e por seu coração
selvagem e imparável), Heidi Schulz (por Marky Mark e por ser um dos
melhores seres humanos que eu conheço), Lindsay Ribar (por aquela
caminhada na floresta), Sarah Maas (pelo balé e Alien(s) e seus comentários
generosos), Sara Raasch (pela nossa festa invernal dupla de lançamento e por
seus comentários generosos), Lauren Magaziner (por seu amor e apoio e
encontros para escrita), Isaiah Campbell (idem!), Ally Watkins (por sempre
checar como eu estava, e por seu coração gentil), Katie Locke (por seus
comentários, perspicácia, encontros para escrita, e encorajamento), Mackenzi
Lee (por sua poderosa amizade), e Kayla Olson (por Cheez-Its, por nossos
lugares naquela mesa perfeita, por sempre torcer por mim)—obrigada.
Mais agradecimentos enormes e abraços de longe: Emma Trevayne, Kat
Catmull, Stefan Bachmann, Megan McCafferty, Sammy Bina, Anna-Marie
McLemore, Sarah Enni, Caitie Flum, Adam Silvera, Leigh Bardugo, Corey
Ann Haydu, Nova Ren Suma, Anne Ursu, Phoebe North, Serena Lawless,
Shveta Thakrar, Laini Taylor, Sarah Fine, Amie Kaufman, Brooks Sherman,
Anica Rissi, Navah Wolfe, Cat Scully, Shannon Messenger, Nikki Loftin, CJ
Redwine, Eugene Meyers, Ellen Wright, Jay Kristoff, Zoraida Cordova—
todos vocês me apoiaram e me inspiraram de incontáveis maneiras ao longo
dos anos, e eu mal posso esperar para ver o que o futuro reserva para cada um
de vocês.
À minha família: Todos vocês suportaram muitas coisas vindas de mim ao
longo dos anos. Vocês leram aqueles cadernos gigantes. Vocês ouviram
minhas lamúrias sobre arranjar um agente. Vocês não pararam uma única vez
de me dizer que eu conseguiria realizar meus sonhos. Anna, Drew, Pai, Mãe
—Eu amo muito todos vocês.
Por fim, eu agradecerei vocês, leitores intrépidos, por acolherem esse livro
—e esses personagens que eu amo tanto—em seus corações.