Lepidus, O Ser Humano No Transumanismo
Lepidus, O Ser Humano No Transumanismo
Lepidus, O Ser Humano No Transumanismo
Introdução
O movimento transumanista propõe uma concepção de homem
como interventor na evolução de sua própria espécie. A proposta de que
a espécie humana se automanipule não é nova, mas os atuais avanços
tecno-científicos possibilitam que essa ideia alcance resultados práticos
como jamais se viu. Com ventos tão favoráveis, o movimento cresce em
adeptos e em importância diante da sociedade. Suas ideias têm atraído
não apenas a atenção de curiosos e cientistas, mas também de investido-
res milionários dispostos a gastar as suas fortunas na aquisição de novas
técnicas de manipulação. Então, conhecer o movimento e sua proposta
antropológica torna-se algo necessário, sobretudo para as ciências hu-
manas que possuem como um de seus objetivos dialogar com tecnólogos
e cientistas, escutando e propondo princípios e critérios que deem um
sentido autenticamente humano aos novos desenvolvimentos científicos.
Dentro desse cenário, existem os debates entre bioconservadores e
bioprogressistas. Outra discussão gira em torno dos limites da realidade
virtual e o uso da Inteligência Artificial, que poderá gerar uma massa sem
1
Como literatura brasileira e no plano teológico, Érico Hammes faz um bom levanta-
mento da discussão. No âmbito da bioética, cita-se Leo Pessini; cf. HAMMES, Érico.
Transumanismo e Pós-humanismo: uma aproximação ético-teológica. Perspectiva
Teológica, Belo Horizonte, v. 50, n. 3, p. 431-452, 2018. PESSINI, Leo. Bioética e o
futuro pós-humano: Ideologia ou utopia, ameaça ou esperança? Encontros Teológicos,
Florianópolis, n. 67, p. 107-130, 2014.
2
FERRY, Luc. A Revolução transumanista: entrevista concedida a Jorge Forbes para
o prefácio da edição brasileira do livro A Revolução transumanista. In: Instituto da
Psicanálise Lacaniana, 2018. Disponível em: http://www.ipla.com.br/conteudos/
artigos/a-revolucao-transumanista/.
3
Para uma maior explicitação do transumanismo como parte integrante dos humanis-
mos modernos, ver: ANTONIO, K. F. Transhumanismo e suas oscilações prometeico-
-faústicas: tecnoapoteose na era da tecnociência demiúrgica. Natal: PPGFIL, 2018.
p. 104. Disponível em: https://issuu.com/j00kun/docs/keoma_ferreira_antonio_-_
transhumanismo_e_suas_osc. Acesso em: 5 jul. 2020.
4
BOSTRON, N. A History of Transhumanity Thought. 2011, p. 1 e 2. Disponível em:
https://www.nickbostrom.com/papers/history.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020.
5
Cf. HAMMES E. Transumanismo e pós-humanismo: uma aproximação ético-teológica.
Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 50, n. 3, p. 431-452, Set.-Dez. 2018.
6
Cf. LIGHTHALL, W. D. The Law of Cosmic Evolutionary Adaptation: An Interpretation
of Recent Thought. Ottawa: Royal Society of Canada, 1940.
7
HUXLEY, J. New Bottles for New Wine. London: Chatto and Windus, 1957.
8
“A dimensão do sagrado e da religiosidade encontra-se muitas vezes presente nas
esferas laica e profana, cumprindo nelas uma função simbólica e de significação.
Por seu lado, as ciências sociais veem com cautela o uso desta constatação como
método para a compreensão desta outra faceta dos fenômenos científicos, políticos e
14
O Pós-Humanismo possui uma trajetória conceitual na literatura diferente da Tran-
sumanista e, por isso, merece um estudo em separado, ao qual não nos propomos
neste ensaio. Erico Hammes afirma a existência de no mínimo duas vertentes de
significado pós-humanista: o cultural-filosófico e o tecnocientífico; cf. HAMMES E.,
2018, p. 437; ver também RANISCH, Robert; SORGNER, S. Lorenz (org.). Post – and
Transhumanism: an introduction. [S. l.]: Peter Lang Edition, 2014.
15
O conceito de “natureza humana”, concebido de modo estático, não se sustenta
segundo a dinâmica das ciências modernas, como a Neurociência, a Genética, a
Antropologia Cultural, saberes que embasam o transumanismo. Na própria teologia
existem autores que tem procurado explicitar um uso do conceito de “natureza” que
seja mais dinâmico, como, por exemplo Karl Rahner e, ultimamente, a Comissão
Teológica Internacional; ver HAMMES E., 2018, p. 440; RAHNER, K. Sämtliche
Werke: Verantwortung der Theologie. Im Dialog mit Naturwissenschaften und
Gesellschaftstheorie: BD 15. Freiburg: Verlag Herder, 2020. V. 15; COMISSÃO TEO-
LÓGICA INTERNACIONAL. Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a lei
natural. n. 64-75. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/
cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20090520_legge-naturale_po.html. Acesso
em: 12 jul. 2020. Quanto ao conceito de “pessoa”, esse apresenta-se ainda mais
difícil de ser explicitado em uma cultura plural e pós-moderna que vivemos hoje.
16
PICO DELLA MIRANDOLA, G. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. de Maria
de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001.
17
HARARI, Yuval N. Sapiens: uma breve história da humanidade. 38. ed. Porto Alegre:
L&PM, 2018. p. 236-245; 315-385.
18
Tal explicitação do subjetivismo moderno com suas consequências para a pessoa
encontra-se em: COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Em busca de uma ética
universal: novo olhar sobre a lei natural. n. 71-74. Disponível em: http://www.vatican.va/
roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20090520_legge-
-naturale_po.html. Acesso em: 12 jul. 2020.
19
“Em 2002, os norte-americanos gastaram um bilhão de dólares em medicamentos
para o tratamento da calvície, em torno de dez vezes mais o total gasto com pesquisa
científica para encontrar a cura da malária, que continua matando milhares de pessoas
pelo mundo afora.” (PESSINI L., 2014, p. 126).
20
RIVAS GARCÍA, Ricardo, La crisis del humanismo: una revisión y reconstrucción de
los supuestos del humanismo cristiano, ante los desafíos del antihumanismo contem-
poráneo. Franciscanum, v. LXI, n. 172, 2019, p. 19.
21
Ver exemplos de experiências em: HARARI, Yuval N. Homo Deus: uma breve história
do amanhã, São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 294-302; 332.
22
“Sim, os pós-humanistas, nesse caso podemos chamá-los assim, são materialistas,
filosoficamente falando [...]. Eles são monistas e materialistas, e dizem: é isso aí,
não tem de um lado o pensamento e de outro o corpo, é a mesma coisa” (FERRY
L., 2018. Disponível em: http://www.ipla.com.br/conteudos/artigos/a-revolucao-
-transumanista/).
23
PEARCE, David. As cinco razões pelas quais o transumanismo é capaz de eliminar
o sofrimento. 2011. Artigo disponível em: https://www.hedweb.com/transhumanism/
cinco-razoes.html. Acesso em: 20 out. 2019.
24
FERRY, 2018. Disponível em: http://www.ipla.com.br/conteudos/artigos/a-revolucao-
-transumanista/.
25
O gnosticismo, corrente filosófica surgida nos séculos I e II da era cristã, entende o
mundo como falho ou mal em sua existência material. De outra parte, há uma realidade
de ordem espiritual ou ideal, encoberta pela aparente diversidade da matéria, que deve
ser conhecida pelo homem a fim de que ele possa ser salvo da corrupção material.
O dualismo entre matéria e espírito, na verdade, esconde um monismo idealista no
qual só o espírito realmente existe.
26
Sobretudo a partir do Vaticano II, um diálogo fértil com a modernidade, também
não pode ignorar o diálogo com a sua transformação atual, a que frequentemente
se dá o nome de pós-modernidade. O presente volume pretende ser uma proposta
de aproximação ao ambiente cultural contemporâneo. Começando por debater o
próprio conceito de pós-modernidade e nele situar a questão do regresso do religio-
so, avança algumas propostas que podem redimensionar a teologia num contexto
cultural já não tipicamente moderno. Salientam-se uma interpretação teológica de
Nietzsche, uma avaliação crítica da teologia narrativa e uma crítica teológica da
cibercultura. O que é a pós-modernidade? Que tem a teologia a ver com esse novo
ambiente cultural? Trata-se de pura fragmentação relativista, que apenas deve ser
condenada? Ou trata-se de um fenômeno bem mais complexo, lançando desafios
importantes à fé cristã? O autor parte da segunda hipótese e oferece algumas
propostas de interpretação que permitirão repensar o exercício da teologia num
ambiente cultural em que já não são aceitos certos dogmas modernos. O novo
lugar do religioso e da narrativa, o confronto criativo com Nietzsche, uma leitura da
cibercultura... Esses e outros temas são avaliados teologicamente, como contributo
para um diálogo cultural em curso. (DUQUE, João Manuel. Para o Diálogo com a
Pós-Modernidade. [S. l.]: Paulus, 2016. p. 209, 212. [Coleção Teologia em Saída]).
Ver também MARTINS, Hermínio. Experimentum Humanum Civilização Tecnológica
e Condição Humana. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
27
LACROIX, Xavier. O corpo reencontrado. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 46,
n. 129, 2014, p. 4-5.
28
Ver PESSINI, L., 2014, p.114-116.
29
“[...] a distinção parece ser útil, ao distinguir entre a obrigação central e mandatória
da medicina (curar os doentes), e suas práticas extracurriculares, como por exemplo,
as injeções de Botox e outros procedimentos cirúrgicos meramente cosméticos.”
(PESSINI L., 2014, p. 115).
30
PESSINI L., 2014, p. 115-116.
31
“A aparência do discurso transumano traz a sensação de empoderamento (aperfei-
çoamento pessoal, maximização da felicidade, erradicação de sofrimentos, etc.), que
pode obscurecer a conscientização frente ao impacto das tecnologias emergentes.
Posto isso, deve-se, sobretudo, pensar em como nossos valores serão alterados
pela influência de novas tecnologias. Neste êxtase das promessas de emancipação e
liberdade, convém recordar que ciência e tecnologia não são neutras ou objetivas, e,
muito pelo contrário, mostram valores e interesses comerciais, assim como toda uma
lógica de poder, própria de nosso contexto social e temporal. Criaremos um mundo
voltado à função social da tecnologia, onde todos terão oportunidades e consciência
das próprias capacidades de escolha? Difícil acreditar. Não nos deixemos levar pela
fantasia. Deixemos essa para os livros.” (FIORO, Germano Rigotti. Bem-vindos à
nova eugenia: o transhumanismo. Empório do Direito: 2019. Disponível em: https://
emporiododireito.com.br/leitura/bem-vindos-a-nova-eugenia-o-transhumanismo).
32
“Com o propósito de aplicar os pressupostos da teoria da seleção natural ao ser
humano, Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin, em 1883, reunindo duas
expressões gregas, cunhou o termo ‘eugenia’ ou ‘bem nascido’ [Black, 2003, p.
56]. A partir desse momento, eugenia passou a indicar as pretensões galtonianas
de desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse,
através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores membros
– como se fazia com cavalos, porcos, cães ou qualquer animal –, portadores das
melhores características, e estimular a sua reprodução, bem como encontrar os que
representavam características degenerativas e, da mesma forma, evitar que se repro-
duzissem [cf. Stepan, 1991, p. 1].” (DEL CONT, Valdeir. Francis Galton: Eugenia e
hereditariedade. Scientiae Studia. São Paulo, 2008, v. 6, n. 2, abr./jun. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-31662008000200004&script=sci_arttext.
Acesso em: 7 jul. 2020).
33
“O aprimoramento científico traz consigo um dilema moral: devemos ou não o levar
adiante? Nas vias de um governo democrático, é de imaginar que, em tese, o Estado
exerça seu papel como agente regulador na inserção das tecnologias emergentes no
meio social, prezando pela segurança, precaução e extensão dos benefícios obtidos a
todos os indivíduos – evitando, assim, a armadilha de uma eugenia liberal destinada
à minoria.” (FIORO, 2019, Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/
bem-vindos-a-nova-eugenia-o-transhumanismo).
34
SALVETTI, Ésio Francisco. Em busca de normatizações políticas e jurídicas que
limitem a eugenia liberal: um estudo a partir do pensamento habermasiano. Filofazer
Revista do Instituto Superior de Filosofia Berthier, Passo Fundo, n. 33, 2008, p. 80.
35
SALVETTI É. F., 2008, p. 82-83.
36
“Com a decisão irreversível que uma pessoa toma em relação a constituição ‘natural’
de outra, surge uma relação interpessoal desconhecida até o presente momento. Esse
novo tipo de relação fere nossa sensibilidade moral, pois forma um corpo estranho nas
relações de reconhecimento legalmente institucionalizadas nas sociedades modernas.
Na medida em que um indivíduo toma, no lugar de outro uma decisão irreversível,
39
Luís Ladaria apresenta um breve histórico dessa tensão antropológica a partir da
leitura bíblica de imago Dei; LADARIA, L. F. Antropologia teologica. 2. ed. Roma:
Gregorian & Biblical Press, 2012. p. 151-158. Para Balthasar, o homem, pelo seu
espírito, encontra-se como o mediador entre a natureza e o divino; BALTHASAR, H.
U. von, 2006, p. 333-339.
40
Em Gn 2,7 o Criador sopra seu hálito (nefesh) sobre o homem modelado do barro,
concedendo-lhe vida. Esse gesto divino remete a compreensão da vida como dom,
e não como posse.
41
Foi K. Barth quem desenvolveu a teoria que vê a imagem de Deus na relação entre
os homens: de alguma maneira, a comunhão vivida pelos seres humanos repete a
relação existente entre as pessoas divinas; cf. BARTH, K. Kirchliche Dogmatik, v. III/1,
Zürich, 1947, p. 204-206, apud LADARIA, L. F., 2012, p. 148.
42
Como constatou Jean Pierre Dupuy, nas pesquisas que desenvolvem a inteligência
artificial e que diminuem as fronteiras entre máquina e cérebro: “A cibernética não
é a antropomorfização da máquina, é, antes de tudo, a mecanização do humano”
(DUPUY, J.P. L’esprit mécanise par lui-même. Le Débat, Paris, n. 109, p. 163, mar./
avr. 2000).
43
Cf. BALTHASAR, H. U. von, 2006, p. 175-309.
Considerações finais
Conforme as palavras da Declaração Transumanista que afirma
“todo progresso seja mudança, mas nem toda mudança seja progresso”,45
constatou-se que o futuro da humanidade está inexoravelmente marcado
pelas mudanças das NBIC e que o sucesso delas, em um sentido integral,
dependerá de uma profunda prudência, cautela e administração respon-
sável, virtudes essas visibilizadas em políticas sociais de segurança. Será
também necessário que as mudanças aconteçam em um plano econômico
e social, com respeito à natureza e sentido de inclusão tecnológica das
populações desprovidas de condições econômicas.
Quanto aos aspectos antropológicos que permeiam o transumanis-
mo, constatou-se que a diversidade de concepções sobre o ser humano
existentes ao interno desse movimento, não permite fazer uma avaliação
moral uniforme, boa ou má sobre suas ideias. Contudo, a tendência
comum, entre os seus ideólogos, na direção de uma radicalização do
pensamento iluminista – e até o rompimento com esse – faz-nos realizar
um diagnóstico de crise do humano ao interno do movimento. Não é à
toa que discursos entusiasmados sobre as novas possibilidades do NBIC
44
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apos-
tólico com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2004. p. 180
45
BAILY et al., 1998, Disponível em: https://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-
-declaration/.
Referências
ANTONIO, K. F. Transhumanismo e suas oscilações prometeico-
-faústicas: tecnoapoteose na era da tecnociência demiúrgica. Natal:
PPGFIL, 2018. p. 139-283. Disponível em: https://issuu.com/j00kun/
docs/keoma_ferreira_antonio_-_transhumanismo_e_suas_osc. Acesso
em: 5 jul. 2020.
BAILY, Doug. Transhumanist Declaration, 1998. Disponível em: https://
humanityplus.org/philosophy/transhumanist-declaration/.
BALTHASAR, H. U. von. Teodramática: Las personas del drama: El
hombre en Dios. Vol. II. Trad.: Eloy Bueno de La Fuente e Jesús Cama-
rero. Madrid: Encuentro, 2006.
BOSTROM, Nick. Valores Transhumanistas. Instituto Ética, Racionali-
dade e Futuro da Humanidade: 2005, p. 8-9. Disponível em: http://www.
ierfh.org/br.txt/ValoresTranshumanistas2005.pdf.
BOSTRON, N. A History of Transhumanity Thought. 2011, p. 30. Dis-
ponível em: https://www.nickbostrom.com/papers/history.pdf. Acesso
em: 5 jul. 2020.
CAMURÇA, Marcelo. ‘Religiosidades científicas’ hoje: entre o secular
e o religioso. In: CRUZ, Eduardo R. da. Teologia e Ciências Naturais: