Cristiane Prudenciano de Souza Travesti Recife
Cristiane Prudenciano de Souza Travesti Recife
Cristiane Prudenciano de Souza Travesti Recife
PUC-SP
RESISTÊNCIA TRANS
PRÁTICAS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DE TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS NA CIDADE DO RECIFE
São Paulo
2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
RESISTÊNCIA TRANS
PRÁTICAS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DE TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS NA CIDADE DO RECIFE
São Paulo
2017
BANCA EXAMINADORA
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À Patrícia Gomes, a travesti que me inspirou a escrever essa
dissertação. Pelo profissionalismo, pela convivência, por seu ativismo e
o sonho compartilhado de mundo mais humano, justo e solidário.
Eterna Patrícia, brilhando como purpurina, onde quer que esteja.
Este trabalho foi possível através do apoio de muitas pessoas, por isso o considero uma
construção coletiva merecedora de agradecimentos.
Agradeço às travestis e transexuais que fizeram parte dessa pesquisa, Maria Clara de Sena,
Heymilly Maynard e Luana Rodrigues, pessoas que ousaram ao questionar uma vida
repleta de violações e resistiram dentro dos movimentos, instituições que participam e,
sobretudo, na vida cotidiana.
Agradecimentos extensivos à generosidade dos membros da ONG da cidade do Recife
GTP+, Azael Cosme dos Santos Júnior, André Guedes, Ednaldo Brandão, Reinaldo Brito,
Sergio Pereira de Araújo e Wladimir Reis, sem dúvida vocês me ofertaram um privilégio
de conviver com pessoas de uma indescritível qualidade humana.
Agradeço à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Carla Cristina Garcia por sua paciência, por
seus pareceres, sua vivacidade, rebeldia inspiradora e os desafios proporcionados no
processo de construção da pesquisa.
A CAPES/PROSUP que viabilizou a continuação da pesquisa, através de bolsa
concedida.
Ao Prof. Francisco Greco e à Prof.ª Dr.ª Marisa Borin, meus agradecimentos
imensuráveis pelas contribuições no processo da qualificação da pesquisa, que foram
fundamentais para sua finalização.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, pela inquietação
provocativa que proporcionaram durante suas aulas. Também aos pesquisadores que cito
na pesquisa, pela clareza, inspiração e engajamento que me auxiliaram nessa jornada.
Aos funcionários da PUC-SP, em especial, aqueles que atuam na biblioteca, na Secretaria
do Programa de Ciências Sociais e na Secretaria de Bolsas, agradeço toda a paciência em
esclarecer meus questionamentos recorrentes e ajudarem com dicas valiosas e precisas.
Ao Núcleo NIP - NÚCLEO INANNA DE PESQUISA -, um âmbito que conta com
pesquisadores (mestrandos, doutorandos, mestres e doutores) e que proporcionou um
novo panorama na construção dessa pesquisa. Sinceros agradecimentos aos membros do
NIP, em especial à Prof.ª Dr.ª Carla Cristina Garcia e às companheiras e companheiros:
Bruna Jesus dos Santos, Chinaira Raiazac, Daniel Yago, Elisete Suely Marques, Fabio
Mariano, Franklin Marques Filho, Gabriel Battazza Lonza, Graziele Campos, Luciana
Busquets, Luciana Dantas, Maria Silvia Ribeiro, Mariana Serafim Xavier Antunes,
Natália Yukari, Nathalí Estevez, Sulamita Jesus de Assunção e Roberta Ribeiro.
Agradecimentos a Marcelo Hailer e Francisco Greco que direcionaram as ideias
principais do trabalho, oferecendo outro panorama da dissertação. Suas considerações e
companheirismo, nipianos, deram contribuições impactantes para o desenvolvimento
desse projeto.
À minha família, Ivanice Pereira de Souza, Orivaldo Prudenciano de Souza e Luciane
Prudenciano de Souza, pelo apoio.
Às amigas e aos amigos humanistas que me ampararam nos momentos de difíceis crises,
Alexandre Sammogini, Alexandre Cartes, Fernanda Pereira Mendes, Maria Cecília
Borges Leme, Maria Lourdes Silva, Margarete Teraguchi e Roberto Freire, irmãos e
irmãs que a vida me concedeu. Aos amigos Otacílio Alacran e Marcus Vinicius
Abbehausen que em tantos momentos me brindaram de felicidade com suas escutas
atentas e comentários inspiradores quando eu contava os detalhes da pesquisa.
Ao amigo e companheiro de todas as horas, Celso Luiz Barana, minha eterna gratidão.
RESUMO
The main focus of the research is the analysis of the relation between the sharing
experiences of travestis and transsexuals and the construction of the citizenship and
human rights. First, a brief genealogy of the word travesti is performed, seeking
reminiscences in mythology. Subsequently, it is approached the body as a political
territory and the contributions of feminist movements on gender subject in the present
time, considering the constitution of the travesti as a political category. In a third
moment, it is intended to make a historical cut, having as reference the 1990s up to the
present day, regarding the social travesti and transsexual movement in the Brazilian
context. The project seeks to understand the internal dynamics of the movement to the
field, highlighting the main guidelines, advances and challenges, analyzing the cross-
cutting contribution of NGOs / Aids, that work on travestis and transsexual rights in this
social organization process. Finally, it was observed the unfolding of national patterns of
social organization and their impact on local action. Thus, it will be will analyzed the
work of the Recife NGO that contributed to the emergence of travestis and transsexual
organizations in the state of Pernambuco. Methodologically, the work is characterized as
being a qualitative research, made possible through in-depth interviews.
“Não cumprirás a tua missão se não deres o teu melhor para vencer a dor e o sofrimento
daqueles que te rodeiam”
Silo
LISTA DE IMAGENS
Imagem 14 - Maria Bonita (Marcos França) e Lampião (Ednaldo Brand) ..................... 129
Imagem 16 - Foto da Oficina Minha Cidadania Meus Direitos Humanos ...................... 155
Imagem 17 - Foto 1 da confecção de cartazes após oficina de educação entre pares. .... 156
Imagem 18 - Foto 2 da confecção de cartazes após oficina de educação entre pares ..... 157
Imagem 20 - Caminhada ao Ministério Público com exibição dos cartazes ................... 159
Imagem 22 - Foto em frente ao Ministério Público com exibição dos cartazes .............. 160
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 17
TEMA, PROPÓSITO E JUSTIFICATIVA................................................................. 17
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................. 21
METODOLOGIA E CONSTRUÇÃO DA PESQUISA DE CAMPO ............................. 27
ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS ....................................................................... 32
CAPÍTULO I ............................................................................................... 34
CAPÍTULO II .............................................................................................. 47
CORPO: TERRITÓRIO POLÍTICO ....................................................... 47
2.1. O CORPO: ENTRE TEORIAS E MOVIMENTO ................................................ 48
2.2. PERSPECTIVAS FEMINISTAS ........................................................................ 50
2.3. UNIVERSO TRANS ........................................................................................ 55
INTRODUÇÃO
1
Declaração Universal dos Direitos Humanos - http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf
2
O uso do nome e sobrenome dos autores, em sua primeira aparição no texto, é uma prática intencional em
todo o decorrer dessa dissertação. Essa prática parte do intuito de reafirmar que tantas mulheres quanto
homens tem contribuído com a construção do conhecimento acadêmico. Assim como, quando a autoria da
citação for de travestis e transexuais serão igualmente mencionadas.
19
deveres da/o cidadã/o, dentro de uma sociedade democrática, com o envolvimento social,
consciência de si, senso crítico, visão sistêmica e compreensão de seus papéis sociais.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Ressaltamos que a contribuição dos estudos realizados por Foucault (1985; 1986)
pode ser considerada como um grande marco, tanto pelo desenvolvimento de eixos
norteadores para investigações sobre a sexualidade enquanto construção histórica, quanto
pelo fato de problematizar a política de controle dos corpos e os dispositivos de saberes e
práticas orientadas pelo ideário da norma, da disciplina e do controle. Várias pesquisas
que abordaremos a seguir tiveram como base teórica as ideias de Foucault.
3
Consideramos também o artigo do final dos anos 80: MOTT, Luiz e ASSUNÇÃO, Aroldo. Gilete na
carne: etnografia das automutilações dos travestis da Bahia in Revista Temas IMESC, sociedade, direitos,
saúde, São Paulo, 4 (1), julho de 1987
23
Conforme sinalizado por Peres e Toledo (2011), quanto mais atributos negativos e
de desqualificação um corpo pode receber, mais processos de estigmatização se abaterão
sobre esse corpo. Sendo assim, ao abordar a temática de travestis e transexuais são
necessárias problematizações que remetam ao cuidado de si frente à construção de seus
corpos, mas que também contribuam para uma emancipação psicossocial, política e
cultural. (PERES, TOLEDO; 2011: 265-268)
com o Estado. Mário Carvalho (2011) também analisou a organização dos movimentos
de travestis e transexuais, identificando os conflitos que revelam a emergência das
identidades coletivas e a luta pelo reconhecimento nas proposições das políticas de saúde.
O pesquisador Jorge Leite Jr. (2008) parte de uma reflexão sobre a construção das
categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico, com recortes que vão desde o
imaginário antigo com a figura do hermafrodita até as representações das travestis na
atualidade. Em sua tese de doutorado, Pelúcio (2009) aborda o fascínio e o rechaço que
marcaria a existência das travestis que se prostituem, e também a dos/das seus/suas
clientes. Não apenas as travestis teriam sua (a)normalidade certificada pelo sistema
binário dos gêneros (masculino e feminino) que sustenta a heteronormatividade, mas seus
próprios clientes que, mesmo afirmando a sua heterossexualidade, também estariam
marcados pelo estigma e pela abjeção.
4
Fonte:http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/1174-sgep-
raiz/lgbt/21885-processo-transexualizador
5
Citação de artigo. Fonte: Raimondi, Gustavo A.; Paulino, Danilo B.; Teixeira, Flávia do B. “O que
importa? As Pesquisas Brasileiras no Campo da Saúde e as (In)visibilidades das Travestis e Transexuais.”.
Saúde & Transformação Social -Health & Social Change, UFSC (SC) [online]. 2016, v.7, n. 3, pp. 133-145
26
estigma devido ao sufixo “ismo” que remetia a um olhar patologizante. Peres (2005) usa
a denominação transgênero, “que contempla todas aquelas pessoas que de alguma forma
rompem com as categorias clássicas de masculino e feminino, construindo novas formas
estéticas e relação com o mundo” e a definição do termo travesti que abarca múltiplas
experiências que permitem utilizar o termo travestilidade. (PERES, 2005). Enquanto isso,
Vasconcelos (2015) problematiza as sujeitas da pesquisa como mulheres trans,
terminologia utilizada tanto para travestis como para transexuais.
Nos estudos feitos por pesquisadores que tiveram como sujeitas de pesquisa as
travestis e transexuais do estado de Pernambuco, destacamos: o estudo de Maria Cecília
Patrício (2008), que objetiva entender o movimento da rota das travestis que se
prostituem e circulam entre o Brasil e a Europa, enquanto Denise Chagas (2006)
investiga os desafios da política de prevenção às DST/HIV e Aids na população de
mulheres e travestis. Há também a recente pesquisa na área da Psicologia de Thaíssa
Vasconcelos (2015) que explora questões sobre os percursos e transformações
empreendidas a partir de narrativas de afirmação e resistência frente ao binarismo. Apesar
de abordarem a temática a partir de problemáticas diferentes, Chagas (2006), Patrício
(2008) e Vasconcelos (2015) tratam das especificidades da cultura pernambucana.
Para tal, cabe ressaltar que trilharemos um caminho que abrange temporalidades
diferentes. Primeiramente abordaremos um recorte histórico do movimento LGBT
brasileiro, onde o marco referencial parte dos anos 1990 até 2016. A pesquisa enfatiza a
construção do movimento social travesti e transexual a partir desse recorte de referência,
pois esse percurso histórico permitirá compreender a construção das organizações locais,
mediante a conjuntura nacional e internacional.
Cabe ressaltar que o resultado desse estudo será entregue às organizações que
ofereceram seus espaços, convidaram às reuniões, encontros e seminários, assim como às
pessoas que concederam as entrevistas, disponibilizando seu tempo para a coleta de
informações. Esse procedimento, além de ser uma atitude de reciprocidade como
pesquisadora, também reforça o comprometimento acadêmico e o sentido ético da
pesquisa.
6
As ONGS AIDS atuam com direitos humanos voltados as pessoas vivendo com HIV ou Aids. O termo
ONGS AIDS pontua que existem Ongs que se dedicam a esse trabalho e, além disso, reafirma a existência
dessas pessoas que possuem necessidades, direitos e urgências.
29
Foram realizadas três viagens à cidade do Recife, duas delas possibilitadas através
de convite a seminários e encontros realizados pela ONG GTP+, que viabilizou as
passagens aéreas. As entrevistas em profundidade se alternaram ao longo de dois anos.
Algumas das entrevistas foram realizadas nas dependências da própria sede da ONG e
outras no II Seminário Regional de Profissionais do Sexo - Desafio na Prevenção das
DST’s, HIV e Aids e ao Tráfico de Pessoas Trans. Somente uma das entrevistas foi
viabilizada através de contato via whatshapp e realizada via skype com uma travesti que
atualmente reside na Espanha.
Entretanto, dias depois, tive que sair do alojamento na casa dos amigos devido a
um imprevisto: os donos da casa receberiam parentes e não havia espaço para todos. A
solução foi ficar alojada em um espaço que desenvolve um projeto de meditação, na
cidade de Igarassu, a 40 km de distância do Recife. Esse espaço, gentilmente cedido,
tinha algumas limitações logísticas. Devido à distância considerável da capital, cerca de
duas horas, havia a necessidade de duas ou três mudanças de transporte (ônibus), o que
ocasionou alguns atrasos nas entrevistas iniciais, que foram compreendidos por quase
todos os entrevistados.
Nessas ocasiões, tomei contato com narrativas que exibiam uma pluralidade de
experiências, como o uso estratégico e alternado dos termos identitários travesti ou
transexual conforme a situação ou conversa (formal ou informal). Observei narrativas de
pessoas que se identificavam como travestis e que queriam fazer o procedimento de
transgenitalização sexual e de pessoas que se identificavam como transexuais femininas e
que conviviam bem com seu pênis. Assim como observei narrativas nas quais travestis e
transexuais se situavam enquanto mulheres travestis e mulheres transexuais.
7
Uso da palavra “Reminiscências” remete a obra de João Silvério Trevisan (1986): Devassos no Paraíso. A
Homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, referente ao capítulo intitulado Reminiscências da
cena travestida, págs. 136-187.
33
CAPÍTULO I
8
Letra da música Diva da Dúvida, composta pela travesti Claudia Wonder (1955-2010) que foi atriz,
cantora, compositora, escritora e ativista do Movimento LGBT.
35
Sendo assim, o capítulo “Travesti: uma breve genealogia” não procura e nem
pretende o resgate histórico e linear dos acontecimentos em que orbitam as sujeitas desse
estudo. Trata apenas de seleções, fragmentos, resgate de mitos, percursos filosóficos e
recortes de momentos de expressão artística, tecendo considerações sobre os símbolos, o
imaginário, as relações de forças, os jogos de poder e as verdades que se produzem.
A palavra “mito” vem do grego e significa narrativa contada. Para Mircea Eliade
(1992), “o mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que
teve lugar no começo do Tempo.”. Os mitos greco-romanos nos remetem a um cenário
ancestral, onde podemos encontrar deuses e deusas, semideuses, ninfas e personagens
heroicos. Contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois os
personagens do mito não são seres humanos. (ELIADE, 1992: 50).
Entretanto, Robert Graves (1990) nos alerta que um estudo sobre a mitologia
grega deve considerar os sistemas políticos e religiosos que existiram na Europa antes da
chegada de invasores arianos do distante Norte e Leste, levando em conta a arqueologia,
a história e religião comparada. Munido de tais aspectos, o autor busca como método de
trabalho, a construção de uma narrativa harmoniosa com todos os elementos dispersos de
cada mito, apoiados por variantes pouco conhecidas que podem ajudar a determinar o
significado e responder a todas as perguntas que surgem em termos antropológicos ou
históricos. (GRAVES, 1990: 07-13)
36
9
Texto original em inglês: “Here is the procession throught the ages of votaries of Venus Castina – that
goddess suppsosed to respond with sympathy to the yearling of feminine souls locked up in males bodies. It
is a curious throng, motley and miscellaneous: gods and demigods, coeval with the lovely Castina herself;
kings and princes and heroes of old days and modern; frenzied priests and wild-eyed devotees; geniuses
and morons, mountebanks, mystics, degenerates, practical jokers and buffoons, rogues and criminals, soft-
eyed dreamers of a forbidden ineffable, warriors and poets, artists, statesmen, quacks, hoodlums and
harlequins, sinners, and occasionally a saint. Some of us fold toght ours togas about us as they pass, fearing
contamination. Many of us look on with lively curiosity. A few sit dazed and enraptured beside the shrine
of Castina, and seek to understand.” Livro disponível no link abaixo:
http://livre.immateriel.fr/fr/read_book/9781626575974/#
37
dessa vez, mata o macho, conseguindo ser novamente transformado em homem pelos
deuses.
Bulliet (1956), por sua vez, menciona que o herói Aquiles experimentou situações
de disfarces e inserção no feminino. Na pré-Tróia, Aquiles, o semideus, estava sob a
tutela do Centauro Chiron no Monte Pelion, e sua mãe, a discreta ninfa do mar, Tétis, ao
ouvir burburinhos proféticos da guerra de Tróia, fez uma visita a seu velho inimigo. Foi
Chiron que tinha ensinado a Peleu como capturar a ninfa e fazer dela a mãe de Aquiles.
Ela persuadiu o Centauro a desistir de seu filho. Levou-o através dos mares para a Ilha de
Scyros, onde ela o vestiu como uma menina e o deixou nos jardins luxuriantes do Rei
Licomedes onde ficou entre as cinquenta filhas do rei. “Foi entre donzelas, e com suas
vestes que Aquiles, enganou um olho tão astuto como o de Ulisses, o mais sábio dos
homens” (BULLIET: 1956:10).
10
Escultura em mármore, cópia romana do século II de um original grego, restaurado por Gianlorenzo
Bernini em 1620, em Paris. Atualmente é escultura do acervo do Museu do Louvre.
11
JR, LEITE (2008) apud MIGUET, Marie, Andróginos in BRUNEL, Pierre (org.), Dicionário de mitos
literários, Rio de Janeiro, José Olympio, 2005
39
A criatura andrógina era redonda: suas costas e seus lados formavam um círculo,
podia andar ereta, como os seres humanos fazem, para frente e para trás. Suas costas e
seus lados formavam um círculo e ela possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com
duas faces exatamente iguais, cada uma olhando em uma direção, pousada em um
pescoço redondo. Dotados “de uma força e robustez formidáveis, inflados de um orgulho
12
PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Cultrix, 1957. págs 39-98
40
13
ELIADE, Mircea, Mefistófeles e o Andrógino. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
41
14
MALLON, Brenda. Símbolos Místicos: Um guia completo para Símbolos e Sinais Místicos Sagrados.
São Paulo: Larousse, 2009
15
ELIADE, Mircea, Mitos, Sonhos e Mistérios. Perspectivas do Homem. Lisboa: Edições 70, 2000.
43
Essa interpretação da união física dos opostos como castigo e mau presságio foi
aprofundada na obra “Os anormais” de Michel Foucault (2001), através de um curso
realizado no Collège de France em 1975, onde apresenta a origem do conceito de
“anormal”, inicialmente identificado entre os saberes jurídico e penal até chegar a uma
abordagem psiquiátrica do desejo e da sexualidade, no final do século XIX. Foucault
analisa o aparecimento da anomalia, ou seja, do anormal, que foi de muito interesse da
psiquiatria, por meio de três personagens: o monstro humano, o indivíduo incorrigível e a
criança masturbadora. Iremos nos deter nas considerações de Foucault em relação ao
monstro humano.
Leite Jr (2012) relata que, desde a Antiguidade até pelo menos o século XVI, os
monstros no Ocidente também eram classificados entre as "maravilhas" ou os "prodígios"
do mundo e podiam evocar tanto o medo quanto a simpatia e a risada através de suas
formas exageradas, assustadoras ou ridículas. O conceito de monstro não é apenas o
terror que a figura monstruosa provoca, é o fascínio, encanto, dúvida, fonte de
curiosidade e desejo.
Para Daniel Yago (2017), nem sempre o monstro foi pensado como destituído de
potência ou como um erro da natureza. O monstro mostrava algo, uma lição ou dado
sobre o mundo a partir de sua própria imagem. Para o autor, o monstro era representado
como “um prodígio, uma criatura portadora da potência de maravilhar, um enigma que
quando decifrado poderia apresentar informações importantes da natureza e do mundo.”.
(YAGO, 2017:26).
44
Foucault (2000) aponta para o tema do controle em sua obra Vigiar e Punir
ressaltando que a construção do sujeito dócil, útil e submisso à ordem estabelecida é
possível apenas por meio de processos disciplinadores, nos quais o corpo e a mente do
sujeito são moldados de acordo com o que se pede no meio social.
16
Maiores detalhes do gênero como categoria analítica no capítulo II.
46
CAPÍTULO II
La Iglesia dice: El cuerpo es una culpa. La ciencia dice: El cuerpo es una máquina.
La publicidad dice: El cuerpo es un negocio.
El cuerpo dice: Yo soy una fiesta.
Eduardo Galeano
Maria Clara, Heymilly, Luana são algumas das pessoas que, ao tomarem a decisão
da transformação dos seus corpos, passaram a enfrentar rígidos modelos e concepções -
de identidade sexual e de gênero – evidenciando tanto a desconexão, quanto a
desatualização das normas que regem esses modelos e que excluem seus processos
subjetivos.
Neste capítulo, propomos uma incursão pelo corpo como território político. Para
isso, abordaremos gênero, considerando-o uma construção social imbuída de variadas
17
Xangô: Orixá iorubá que, no culto religioso afro-brasileiro, representa os raios e os trovões. Fonte:
Dicionário on-line de português.
48
18
LE BRETON, David. A Sociologia do Corpo. Petrópolis: Editora Vozes; 2006. O autor fala que existe
um campo para a sociologia com várias possibilidades de pesquisas investigativas sobre representações e
imaginários, no âmbito individual e coletivo, a respeito do corpo. Sendo que o desafio da sociologia é a
apreensão da dimensão que abarca as manifestações afetivas dos atores sociais e das relações de vínculo
cultural e social, idealizados e construídos por eles.
19
Termo da filosofia para designar a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como
instrumento relacional com o mundo.
49
uma delas pressupõe práticas e papéis sociais determinados. Ou seja, apoiado a essa
interpretação, sistematicamente, se erguem fronteiras entre o que é a natureza da mulher e
a natureza do homem. Legitimam-se duas formas distintas, desconexas entre si e opostas:
homem/mulher, masculino/feminino, macho/fêmea, constituindo-se papéis sociais
extremamente deterministas e embasados de forma generalizada nas diferenças
biológicas.
Ter em conta a existência dessas tais interpretações contribui para a condição para
se compreender seus desdobramentos e direcionamentos na vida prática. Como aponta
Bento (2006), antes mesmo do nascimento, o corpo já está inscrito em um campo
discursivo determinado. Ainda quando se é ‘uma promessa’, um devir, há um conjunto de
expectativas estruturadas numa complexa rede de pressuposições sobre comportamentos,
gostos e subjetividades, que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa.
(BENTO, 2006: 87).
Assim como Bento (2006), Antônio Ciampa (2004) relata que, antes mesmo do
sujeito nascer, traz consigo uma identidade pressuposta. O autor explicita as expectativas
investidas no nascituro, tratando a identidade como categoria analítica. Seja pelas
expectativas dos pais e familiares ou pelas expectativas do contexto social existe um
investimento prévio: a escolha do nome, a filiação, que só é possível a partir dos
genitores que se apropriaram de seus papéis como tais. Posteriormente, esse processo
termina na internalização desses pressupostos. (CIAMPA, 2004: 66-67).
A luta pelos direitos LGBT tem ligação com os estudos e debates promovidos
pelo movimento feminista. O questionamento da divisão dos gêneros e do patriarcado
permitiu repensar caminhos para considerar a diversidade sexual.
O mundo muda com a contracultura dos anos 1960. Surge a movimentação pela
liberação da mulher e uma crítica contestatória e conscientemente anticapitalista, que
rechaçava as formas tradicionais de fazer política da esquerda, como aponta Carla
Cristina Garcia (2011):
Em 1963, Betty Friedan lança o livro “A Mística Feminina”, que aborda o papel
da mulher na função de dona de casa e suas implicações sociais geradoras de uma
condição reducionista à vida das mulheres, que tinham os papéis sociais direcionados a
ser esposa e mãe. No livro, a autora aborda a questão de como a publicidade foi
produzindo a imagem da mulher norte-americana, branca e de classe média-alta: sadia,
bonita, educada, de aparência impecável, que se dedicava exclusivamente ao marido, aos
filhos e ao lar, encontrando assim sua verdadeira realização feminina. A educação não era
valorizada para além do âmbito do lar e, apesar de muitas mulheres terem cursos
acadêmicos, não havia a pretensão de exercer uma profissão. Consequentemente o tédio,
a frustração, a insatisfação, a inquietação, a fadiga e as enfermidades surgiam,
provocando o que a autora chamou de problema sem nome ou mística feminina. Betty
Friedan foi uma ativista feminista nos Estados Unidos e essa obra é considerada um
clássico, uma grande contribuição para reflexão sobre os determinismos dos papéis de
gênero.
Nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970, surge o feminismo radical,
buscando encontrar a “raiz” das desigualdades sociais, a dominação masculina, ou seja, o
patriarcado. As feministas radicais veem o patriarcado como um sistema de opressão
inserido nas instituições da sociedade. Para elas, a primeira transformação vivenciada é a
do espaço privado, sendo que a transformação do espaço público ocorre por
53
Destacamos Shulamith Firestone (1970) que aos 25 anos de idade escreve a obra
“A Dialética do Sexo”. Na obra, discute a origem da opressão feminina refutando as
explicações das teorias essencialistas, utilizando o método materialista-dialético de Marx.
Compreendendo os mecanismos da história para dominá-los, Firestone descreve que a
opressão feminina, entendida como uma opressão de classe, não é suficiente para explicar
a realidade nas quais as mulheres vivem. Para a autora, a desigualdade da divisão sexual
está embasada no determinismo sexual e essa é a raiz da divisão de classes e propõe
extirpá-la. Portanto, o feminismo radical almeja a derrocada do patriarcado.
O feminismo da terceira onda teve seu início na década de 1990 e conserva-se até
a atualidade. Concentra-se na análise das diferenças, da diversidade, da produção
discursiva da subjetividade e rechaça as definições essencialistas e a ênfase nas
experiências das mulheres brancas de classe média-alta, que ocultam as experiências de
outras mulheres. Tal análise abriu espaço para a reflexão sobre a interseccionalidade,
termo criado por Kimberlé Crenshaw, para abordar marcadores de diferenças como
gênero, raça, classe para capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação.
Os estudos queer emergiram nos Estados Unidos, nos fins da década de 1980, em
oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e gênero. Queer, palavra
de origem inglesa, sem tradução exata para a língua portuguesa, remete-se aos adjetivos:
54
Para Richard Miskolci (2009), o diálogo entre a Teoria Queer e a Sociologia foi
marcado pelo estranhamento, mas também pela afinidade na compreensão da sexualidade
como construção social e histórica. Até a década de 1990, as ciências sociais tratavam a
ordem social como sinônimo de heterossexualidade e os estudos sobre minorias
terminavam por manter e naturalizar a norma heterossexual.
Segundo a filósofa Judith Butler (2003), o queer tem operado como uma prática
linguística cujo propósito tem sido a degradação do sujeito ao qual se refere. Inspirada
nas ideias de Butler, Pelúcio (2007) diz que apropriar-se de termos ofensivos que foram
sempre impostos, a fim de subverter seu uso, é uma estratégia de desconstrução que
pretende colocar em xeque os valores que sustentam esses enunciados depreciativos
estreitamente associados às práticas e desejos sexuais proscritos. (PELÚCIO, 2007:35)
Judith Butler (2003) desmonta o sistema sexo gênero, abordando-o como uma
nova ótica “o ‘corpo’ é em si mesmo uma construção, assim como é a miríade de ‘corpos’
que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero”. Segundo a autora, não se
pode dizer que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca do seu
gênero; e emerge então a questão: em que medida pode o corpo vir a existir na(s)
marca(s) do gênero e por meio dela? Como conceber novamente o corpo, não mais como
um meio ou instrumento passivo à espera da capacidade vivificadora de uma vontade
caracteristicamente imaterial? (BUTLER, 2003)
Segundo Jesus (2012), são travestis as pessoas que vivenciam papéis de gênero
feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros
de um terceiro gênero ou de um não-gênero.
As travestis são pessoas que preferem ser chamadas pelo gênero feminino, por
“ela”, por “a travesti”, pois almejam uma mistura com as características estéticas
femininas. A travesti contém a multiplicidade de gêneros, mesclando o masculino e o
feminino, ao mesmo tempo em que desconstrói a lógica binária homem/mulher.
20
A terminologia “universo trans” foi usada por Benedetti (2005) e convida justamente à expandir a
reflexão “em função de sua propriedade em ampliar o leque de definições possíveis no que se refere às
possibilidades de “transformação do gênero”. (BENEDETTI, 2008:17).
56
Para Pelúcio (2006), as travestis são “pessoas que nascem com o sexo genital
masculino e que procuram inserir em seus corpos símbolos do que é socialmente
sancionado como feminino, sem, contudo, desejarem extirpar a genitália, com a qual,
geralmente, convivem sem grandes conflitos”. Enquanto Sabatine (2008) considera que:
Esse universo é composto por uma diversidade de elementos com os quais uma
travesti terá de aprender a conviver no processo de construção de sua travestilidade e
corporalidade. Quando Luana decidiu transformar seu corpo, estava na vida adulta.
Durante muitos anos trabalhou como cabeleireira. Em seu relato, é possível verificar o
processo de enquadramento aos modelos rígidos e à lógica binária:
Sou Maria Clara. Maria Clara de Sena. Sena é da minha família, parte
do meu pai que faleceu quando eu tinha 09 anos de idade. Logo na
infância eu me sentia diferente. Meu pai também que não entendia que
significava transexualidade, que era uma nomenclatura nova. Ele me
batia muito porque eu tinha um jeito feminino. Não condizia com a
perspectiva dele enquanto pai de um menino, nascido menino. Mas era
um pai presente, muito presente, mas com pouca informação para
época. Ele faleceu quando eu tinha 09 anos de idade, foi assassinado
brutalmente na esquina de casa. Foi latrocínio. A gente acha que por
que ele era de um sindicato dos arrumadores e estivadores do cais... ele
por saber demais, mas aí eu não tenho muita propriedade, porque é da
minha infância e minha mãe não toca muito no assunto. Minha mãe
teve que criar os filhos. A gente teve uma fase muito dura na época.
Minha mãe reproduzia muito que meu pai fazia, ou seja, o machismo...
acabou ela dando continuidade. E eu tive uma vida muito privada, não
podia ter muitos amigos, não podia me socializar, porque as pessoas
viam meu jeito, né. E eu também não entendia porque as pessoas me
olhavam muito, porque apontavam muito, não entendia aquilo. Nunca
tinha tido relação sexual nem nada, mas eu era violentada por todo
mundo, pelo jeito de olhar, de se expressar comigo. E, foi quando eu vi
que tinha um problema que era em relação a essa minha identidade.
(Maria Clara de Sena, entrevista em 13/11/2015)
Na adolescência, Maria Clara começou a namorar uma menina, pois não entendia
porque os meus irmãos namoravam e ela não. Era um namoro de “só tocar na mão e
visitas”, sobretudo, para cumprir os anseios de sua mãe, “para que ela me deixasse em
paz”. A essa altura, Maria Clara já tinha amigos gays, mas não compreendia o que
significava a vivência travesti, relatando que na primeira vez que viu uma travesti no
bairro em que morava, ficou chocada e teve aversão. Entretanto, em seu íntimo, foi
edificando uma trajetória que intitula como a “busca por essa mulher que tanto sofreu”:
Barbosa (2010) aponta que o uso do termo "trans" como categoria identitária é
frequente entre pessoas que poderiam ser classificadas como "travestis" ou "transexuais”.
Para Vasconcelos (2015), que investigou travestis e transexuais em Pernambuco, o uso do
termo mulheres trans é acentuado, tanto se tratando de travestis quanto de transexuais.
Hoje em dia no Recife, você vê muitas trans saindo nas ruas, mas antes
não era assim. As outras trans que eu conheço e tenho admiração e
sempre vou ter até o restante da minha vida, elas são de um tempo que
era perigoso sair na rua porque iam levar pedrada. Elas iam ao
Mercado São José e eram atacadas. Jogavam pedras no corpo delas e
isso me comoveu de tal forma, de muitas estarem aqui, e outras não
poderem mais estar. Elas que repercutiram toda uma luta para que eu
pudesse chegar onde estou agora... De enfrentar alguém que as tratou
mal dizendo: ‘Você tem que me respeitar, porque não é assim que a age
não’. Eu tenho que agradecer toda luta delas, mas eu sei qual é o peso
de levar toda essa luta constituída por elas até as futuras gerações que
possam vir... Melhores do que eu e através delas, né.
Como afirma Peres e Toledo (2011) “travesti” é um conceito muito utilizado por
personagens políticas no Brasil, o que Tathiane Araujo, ativista do movimento, também
menciona, apesar de pontuar que a adoção do termo “trans” não invisibilizaria os
diferentes sujeitos:
Algo que é percebido na fala de Maria Clara é que quando ela se refere às outras
militares usa o termo mulheres trans. Por outro lado, em determinados momentos reforça
o termo travesti. Ao ser perguntada como ela se identificava, Maria Clara respondeu “tem
gente que se incomoda de ser chamada de travesti, preferem ser chamadas por trans ou
21
Definição do termo” travesti” no Aurélio: 1 - Disfarce sob o traje de outro sexo, 2 - Papel de um ator com
vestuários usuais no outro sexo. 3 - Pessoa que pratica o travestismo.
61
mulher trans. Eu não tenho problema com isso. Sou travesti, sou trans e sou mulher
trans.”.
Para algumas ativistas a definição do termo “trans” também cumpre com outra
finalidade almejada na antiga proposta de utilização de "transgênero": a visibilidade
positiva com a eliminação do uso do termo "travesti", considerado estigmatizante, e a
abreviação do termo "transexual", que teria um caráter medicalizante, conforme relato de
algumas informantes. (CARVALHO; CARRARA; 2013).
CAPÍTULO III
Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza, e temos o direito de ser
diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza.
Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não
produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
Boaventura de Souza Santos
Contudo, apesar do aparente resgate linear dos acontecimentos, frisamos que eles
foram resultado de um processo caracterizado por conflitos, embates e fricções, pressões
nos âmbitos internos e externos, nacionais e internacionais. Além disso, resultaram de
acordos entre vários atores que, inseridos em um cenário social, apesar das relações de
disputa e interesses políticos envolvidos, lutavam por seus direitos e implantação de
políticas públicas que os assegurassem.
65
Facchini (2003) identifica que, a partir de sua análise processual demarcada por
“ondas”22, a década de 1990 abriu espaço para o “reflorescimento do Movimento
Homossexual Brasileiro”. O surgimento de novos procedimentos, estratégias, táticas,
iniciativas e acontecimentos sociais concomitantes responderam por mudanças
significativas em comparação às décadas anteriores.
22
Regina Facchini (2003) propõe, seguindo o modelo propositivo do movimento feminista, uma divisão
dos momentos importantes e significativos do movimento homossexual de uma forma periódica,
considerada por “ondas”. Na ocasião surgem as organizações Triangulo Rosa e Atobá, no Rio de Janeiro,
Grupo Gay da Bahia (GGB), em Salvador, predominantemente voltado a questões políticas e conquistas de
direitos. O GGB e o Grupo Triângulo Rosa são organizações pioneiras no que se refere a formalização
legal como associações voltadas para os direitos de homossexuais. A “terceira onda” refere-se aos anos 90
até os dias atuais.
66
Nos grupos, as reuniões tinham como mote relatos autobiográficos, com episódios
de suas vidas, em que os participantes tinham oportunidade de conversar a respeito da
sexualidade e homossexualidade. Essa dinâmica estabelecia um vínculo forte por parte
dos participantes com o grupo, que sofriam as mesmas situações de marginalização social
e sexual, podendo compartilhá-las. Houve casos de participantes que tinham assídua
frequência aos grupos no auge do Somos (1979 a 1980) e deixaram cursos e empregos
para devotar atenção integral, o chamado “casamento com o grupo”. (SIMÕES;
FACCHINI, 2009 apud MACRAE, 1990: 128-129)
23
Perlongher (1987) in “O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo” coloca a noção de "gueto",
como área de espaço de convivência ligados à boemia e ao desejo não-convencional.
67
Diário de Minas reproduziu uma nota de agência internacional que anunciava a iniciativa
de uma associação de homossexuais de Amsterdã para abrir uma entidade que atendesse
os direitos de travestis e logo depois constata a tentativa de mobilização para organização
coletiva de travestis de Belo Horizonte, em pleno período de ditadura militar:
24
Citação do jornal Diário de Minas de 1966. Fonte: MORANDO, Luiz. Por baixo dos panos: repressão a
gays e travestis em Belo Horizonte (1963-1969). In: James Green; Renan Quinalha. (Org.). Ditadura e
homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. 1ed .São Carlos: EdUFSCAR, 2014, v. 1,
p. 53-81.
25
Os autores desse artigo usam o termo “desbunde gay” que, segundo Trevisan (1986), corresponde a uma
série de acontecimentos em diversos espaços da vida social que trouxe à tona variadas expressões da
homossexualidade no Brasil.
26
Territorialidades referem-se a deslocamentos espaciais e categoriais através de agrupamentos.
68
27
O uso por parte da imprensa e da polícia do substantivo masculino “o travesti” era comum na época.
69
Imagem 5 - Revista Manchete número 1681, reportagem com Roberta Close, em 1984
28
A música Close, composta por Erasmo Carlos, trecho: “Não fosse o gogó e os pés, a minha lente entrava
na dela, no ponto da mulher nota dez dar um close nela.”. Fonte: http://www.letrasdemusicas.fm/erasmo-
carlos/close Vídeo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=xr0MjJ5PXBI
70
Cabe lembrar um episódio que revela e coloca às claras que, apesar dessas
campanhas comuns encampadas, existia um cenário interno controverso e que tentava
excluir uma parte significativa de pessoas que partilhavam da vivência homossexual.
João Antônio Mascarenhas, advogado e militante do movimento homossexual brasileiro,
discursou no plenário da Assembleia Nacional Constituinte, criticando o preconceito da
mídia, que não distinguia entre “travesti” e “homossexual”:
em busca de outros para continuar a infecção. Ter o HIV não é a mesma coisa que ter a
Aids. (BRASIL, 2016)29.
Diferente de outros vírus, o corpo humano não consegue se livrar do HIV. Isso
significa que uma vez que se contrai o HIV, a pessoa viverá com o vírus. Ainda não há
cura para a infecção com o HIV, entretanto existe o tratamento que pode evitar que a
pessoa chegue ao estágio mais avançado de presença do vírus no organismo,
desenvolvendo, portanto, a doença conhecida como Aids. Diante desse contexto, é
importante ressaltar que ninguém morre de Aids, mas, sim, por doenças oportunistas
causadas pela falha no sistema imunológico.
As pessoas que vivem com HIV ou com AIDS devem usufruir de todos seus
direitos, no qual destacamos: o acesso à saúde de qualidade, o direito à educação, ao
trabalho, ao lazer, ao transporte, assim como os direitos sexuais e reprodutivos.
29
Fonte: http://www.aids.gov.br/
30
VENTURI, Gustavo, BOKANY, Vilma (Orgs.). Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2011 apud Artigo Prevenção do HIV Aids, estigmatização e vulnerabilidade
72
A doença, que inicialmente era abordada “como ‘peste gay’, levou à necessidade
de construção de uma boa imagem pública da homossexualidade que permitisse a luta
pela garantia de direitos civis” (FACCHINI, 2003: 131). E as questões relacionadas à
sexualidade começaram a ser levantadas vividamente, em que discussões sobre a Aids
eram frequentes, e esse fato, sem dúvida, “mexeu em velhas feridas e deu origem mais
uma vez a condenações que frequentemente marcaram a política da sexualidade no
Brasil” (PARKER, 1991: 247-248).
Ao meu ver, o vírus da Aids realizou em alguns anos uma proeza que
nem o mais bem-intencionado movimento pelos direitos homossexuais
teria conseguido, em muitas décadas: deixar evidente à sociedade que
homossexual existe e não é o outro, no sentido de um continente à
parte, mas está muito próximo de qualquer cidadão comum, talvez ao
meu lado e – isto é importante! – dentro de cada um de nós pelos menos
enquanto virtualidade. (...) A sociedade passou a debater amplamente
argumentos a favor e contra sexo anal, sexo oral, perversões,
quantidade de parceiros (as), uso da camisinha, sexo seguro e doenças
venéreas, métodos anticoncepcionais, casamento entre pessoas do
mesmo sexo, conveniência ou não da adoção de crianças em famílias
não padronizadas etc. Deflagrou-se uma epidemia de informação, que
não tem retorno porque deixará marcas nas próximas gerações.
(TREVISAN, 1986:269).
73
31
Informações coletadas no site NLUCON através da matéria jornalística “Conheça Brenda Lee: o anjo da
guarda das travestis e transexuais sem abrigo e soropositivos” disponível em::
http://www.nlucon.com/2013/11/conheca-brenda-lee-o-anjo-da-guarda-das.html e no site Memória,
História MHB e MLGBT disponível em: https://memoriamhb.blogspot.com.br/2009/11/brenda-lee-e-o-seu-
palacio-das.html.
74
vários eventos com a intenção de angariar fundos. Em 1988, fundou oficialmente a Casa
de Apoio Brenda Lee. Por toda militância e solidariedade “ficou famosa, em São Paulo, a
pensão da travesti Brenda Lee, que passou a abrigar e sustentar dezenas de travestis
infectados ou doentes de aids” (TREVISAN, 1986, p. 369).
No ano de 1996, Brenda foi vítima de homicídio. Segundo o jornal Folha de São
Paulo32, Brenda havia dado queixa à polícia de que um cheque emitido por ela teria sido
adulterado, supostamente por seu ex-contador. Após receber um telefonema, Lee se
dirigiu ao encontro marcado pelo autor do telefonema com o fim de solucionar o caso do
cheque. Não foi mais vista com vida. A missa de corpo presente foi celebrada pelo padre
Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor, que veio representando o Cardeal Arcebispo de
São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.
No Brasil, esse processo nasce ainda nos anos de 1950. No início dos anos 60,
vinculadas ao trabalho de educação de base, normalmente ligado à Igreja Católica. Várias
das ONGs que emergem após os anos de 1970 possuíam financiamentos internacionais e,
32
Matéria do Jornal Folha de São Paulo de 31 de maio de 1996. Título: Morto travesti que cuidava de
aidéticos. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/5/31/cotidiano/40.html. Nessa última
matéria, novamente observamos que ainda não era utilizado gênero feminino para travestis. E em relação ao
termo “aidético”, o mesmo foi amplamente refutado pelo movimento de luta contra Aids. Através dele a
pessoa é vista como doença e não como um cidadão, associando a pessoa a uma morte anunciada. Os
termos mais utilizados e aceitos pelo movimento são: pessoa “HIV positiva”, “soropositiva” ou “pessoa
vivendo com HIV/Aids”. Esse último é o termo usado nessa dissertação.
75
também, para Maria da Glória Gohn, “o apoio de alas progressistas da Igreja Católica,
que reviu suas posições quanto à organização da população para participar de
movimentos e mobilizações conscientizadoras” (GOHN, 2000: 12). Tal apoio acontece,
principalmente, a partir do movimento inspirado pela Teologia da Libertação 33 e da
criação das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Na ditadura militar, as ONGs
adquiriram um importante papel reivindicatório, sendo que os objetivos principais eram a
defesa dos direitos humanos e políticos e luta sistemática pela democracia.
Portanto, é importante frisar a relevância do papel das ONGS nos anos 1970 e
1980 que eram instituições de apoio aos movimentos sociais e populares, organizadas
para a luta contra o regime militar e pela democratização do país (GOHN, 2013).
Foi um momento na história das ONGs que gerou uma encruzilhada, quando o
papel reivindicatório entrava em jogo de forças com a necessidade de continuidade do
projeto. As ONGs que eram um braço operacional, um aparato “pró-forma” para os
movimentos sociais, passaram a ter outro grau de importância. Esse momento teve seus
desdobramentos que influenciaram as ONGs que surgiriam depois.
33
A Teologia da Libertação nasceu em 1970, advinda da Igreja Católica, como resposta à contradição
existente na América Latina entre a pobreza extrema e a fé cristã da maioria da população.
76
Para Facchini (2005), nos anos 1990, as ONGs passam a possuir estruturas
formais de organização interna, com elaboração de projetos de trabalho em busca de
financiamentos, com necessidades de apresentação de resultados e de expressar
claramente objetivos de intervenção ou de reinvindicação de direitos. Houve a
profissionalização de militantes, surgimento de sedes, com telefone, endereço eletrônico,
computador e também a necessidade de integrar os militantes num discurso pragmático.
Para Gohn (2011), no Brasil, a relação entre a ação das ONGs e as manifestações
nas ruas inverteu-se: as ONGs tomaram a dianteira na organização da população, no lugar
dos movimentos. O processo se aprofundou quando surgiu outro ator social relevante no
cenário do associativismo nacional: as fundações e organizações do terceiro setor,
articuladas por empresas, bancos, redes do comércio e da indústria, ou por artistas
famosos, que passaram a realizar os projetos junto à população, em parcerias com o
Estado.
No campo das iniciativas da sociedade civil e da luta contra a Aids, alguns pontos
levantados por Facchini (2005) são importantes, como o surgimento de uma nova geração
de ativistas após à morte de vários outros, maior participação de outros movimentos
sociais como de mulheres e profissionais do sexo e surgimento de Ongs formadas por
pessoas vivendo com HIV em sua maioria.
Em 1999, é instituída pela lei nº 9.790/99 que deu origem uma nova qualificação
no âmbito das ONGs, o termo OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público), refere-se a título fornecida pelo Ministério da Justiça para aquelas organizações
que visam parceria e convênios com todos os níveis de governo e órgãos públicos.
34
Fonte: Cartilha “Tudo que você precisa saber antes de escrever sobre ONGs” da ABONG (Associação
Brasileira de ONGs). Disponível em:
http://portal.convenios.gov.br/images/manuais/Tudo_que_voce_precisa_saber_antes_de_escrever_sobre_O
NGs.pdf
79
Em 1994, foi firmado um empréstimo entre o Brasil e o Banco Mundial com fins
de criar o Projeto de Controle de Aids e DST, que ficou conhecido como AIDS I e trazia
35
O termo pauperização designa o empobrecimento, a pauperização da epidemia significa que ela chegou
às camadas mais pobres da população. Esse termo é bastante utilizado nos textos e materiais que abordam a
epidemia.
80
O projeto Aids I foi encerrado em 1998 e firmado novo acordo com o Banco
Mundial, nascendo o Aids II – Desafios e Propostas, que teve a duração até 2002,
possuindo como eixos norteadores a descentralização e a sustentabilidade.
36
HSH – Homens que fazem sexo com homens.
81
37
Atualmente chamado de Encontro Nacional de Travestis e Transexuais.
82
Com o passar dos anos e a permanência do ativismo das pessoas trans, outras
pautas, igualmente relevantes, entraram na agenda do movimento na construção da
83
cidadania. Educação, moradia, trabalho, segurança, lazer, ou seja, direitos que somente
quando colocados em prática permitem o exercício da cidadania. A práxis cidadã está
imbuída da luta por direitos, que não são meramente dados, mas conquistados. A garantia
de que tais direitos sejam efetivados consiste na construção de políticas públicas que os
assegurem. Os passos da construção histórica que o movimento foi concretizando são os
próximos temas a serem apontados.
ENTLAIDS
38
Os ENTLAIDS aconteceram nas seguintes cidades: Rio de Janeiro (1993, 1995, 1996, 1998, 2009),
Vitória (1994), São Paulo (1997, 2007), Fortaleza (1999), Cabo Frio (2000), Porto Alegre (2003), Campo
Grande (2004), Florianópolis (2005), Goiânia (2006), Salvador (2008), Aracaju (2010), Recife (2011),
Brasília (2012), Curitiba (2002 e 2013). Em 2014 ANTRA a realização do XXI ENTLAIDS adiou o
encontro por questões inseridas em um contexto maior (recessão econômica, mudanças políticas, entre
outras).
84
Tal reação, mencionada pela travesti Keila, somente era possível através de
militância comprometida com as demandas do movimento. Na ocasião da XVIII edição
do ENTLAIDS, Peres e Toledo (2011) relatam que, em suas plenárias finais, foi
presenciado a aprovação de propostas de reivindicações junto aos Ministérios Federais, e,
em especial, ao Ministério da Saúde. Uma delas é o apelo à capacitação de profissionais
da saúde para que tenham melhores tratos com a pessoas trans.
A partir dos anos de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu
grandes conferências internacionais40 que tratavam de temas globais como meio
ambiente, direitos humanos, gênero, desenvolvimento social, alimentação, combate ao
racismo, xenofobia entre outros. A partir das conferências, a ONU produziu uma série de
prioridades na agenda internacional. Dentro desse processo, o Brasil participou
39
40
Meio-ambiente e o Desenvolvimento (ECO-92) no Rio de Janeiro, 1992. / Direitos Humanos, Viena,
1993. / População e Desenvolvimento, Cairo, 1994. / Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social,
Copenhague, 1995. / IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, Beijing, 1996. / Habitat II, Istambul,
1996. Alimentação, Roma, 1996 / Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância,
Durban, 2001.
87
Frisamos que, pelo observado até aqui, todas as entradas de siglas identitárias no
movimento, historicamente, foram acompanhadas de embates internos. Como podemos
resgatar na entrevista da ativista travesti Jovanna Baby concedida à Carvalho e Carrara
(2013):
41
http://www.abglt.org.br/port/missao.php
89
sociais fez com que acontecesse maior participação. Cresceu o número de Paradas de
Orgulho também em outras capitais do Brasil.
Porém, mesmo com a afirmação positiva das várias identidades que celebravam o
orgulho em ser homossexual, as fronteiras ainda eram demarcadas entre gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transgêneros. Tais fronteiras emergem em situações do cotidiano,
suscitando embate e fricção. Conforme aponta França (2006), dá-se então o conflito entre
os que apoiam as travestis e usam um discurso de inclusão e união de forças e os que
raciocinam no eixo da segmentação de cada uma das identidades. Através de uma
situação que envolve a proibição de travestis em entrar em saunas a autora levanta a
problematização que aborda a dificuldade de transpor a reivindicação de igualdade para o
cotidiano, além da Parada de Orgulho. O texto indicado por França foi retirado de um
fórum da revista Mix Brasil:
Importante citar que, a partir dos anos 2000, outra forma de mobilização
homossexual apareceu, foram os "beijaços"42. Inspirados nos Kiss-in norte-americanos,
eles também aparecem como uma estratégia de inovação no país, tendo como
consequência a visibilidade.
42
O “beijaço” consiste em uma demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais em que esta
prática é coibida, buscando visibilidade para esse público.
43
Na época, a sigla usada era GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais).
44
BRASIL. Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Brasil sem Homofobia:
Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e de promoção da cidadania
homossexual. Brasília, DF, 2004.
Disponível:http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf
92
Cabe destacar que fez parte da Comissão Provisória de Trabalho, que deu origem
ao BSH, a travesti e advogada Janaína Dutra, que deu sua valiosa contribuição ao
programa. Janaína faleceu em 2004 em decorrência de um câncer no pulmão. De sua
trajetória pessoal e militante surgiu o documentário chamado “Janaína Dutra – Uma
Dama de Ferro”46. Foi a primeira travesti no Brasil que conseguiu sua carteira e filiação
junto à OAB. Em 1989, tornou-se militante dos direitos humanos dos homossexuais,
ocupando a vice-presidência do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), de Fortaleza.
É mais fácil você contratar um advogado que fale grosso, que tenha
bigode, que coce o saco, o que essa metamorfose ambulante, esse
objeto não identificado que, quando você olha diz: É um homem? É
uma mulher? É uma sereia? É um tubarão? É um macho? É uma
fêmea? E o que me faz sentir bem com a minha travestilidade é essa
androginia que passo para as pessoas, de ser uma metamorfose
ambulante de não ter um contexto, uma definição. Eu sou aquilo que
seus olhos veem. (SIMPSON, 2011: 117)
45
No "Relatório de Monitoramento das Ações do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais" (PNPCDH-LGBT), em relação à ação
1.1.22 ("Apoiar a criação de Centros de Documentação e Referência de temas relacionados à população
LGBT no Brasil") integrante do Plano Nacional LGBT, consta a seguinte informação: "a GLGBT/SDH/PR
[Coordenação Geral de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais/Secretaria de Direitos Humanos/Presidência da República] encerrou no dia 07 de maio edital
de chamamento público para 12 Centros de Referências. Totalizando em 2010 a implantação de 29
equipamentos"
46
Documentário Janaína Dutra – Uma Dama de Ferro, 2011, de Vagner de Almeida
47
Fonte: Citação retirada do Artigo de Keila Simpson (2011) Travestis: entre atração e aversão in
VENTURI, Gustavo, BOKANY, Vilma (Orgs.). Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2011.
94
'Programa Brasil sem Homofobia' (BRASIL, 2008b) e publicação do decreto que cria o
"Programa Nacional de Direitos Humanos 3" (PNDH-3), em 2009.
48
Fonte: Entidade aponta os desafios do movimento LGBT:
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/entidade-aponta-avancos-e-desafios-do-movimento-lgbt/
49
http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/gays/principios_de_yogyakarta.pdf
96
Nota-se que o teor dos princípios de Yogyakarta tem influência nas ideias
feministas e na teoria queer, conforme vimos no capítulo 2, o que se pode verificar nos
parágrafos a seguir:
50
PRINCÍPIOS: 1). Direito ao Gozo Universal dos Direitos Humanos; 2). Direito à Igualdade e a Não-
Discriminação; 3). Direito ao Reconhecimento Perante a Lei; 4). Direito à Vida ; 5). Direito à Segurança
Pessoal ; 6). Direito à Privacidade; 7). Direito de Não Sofrer Privação Arbitrária da Liberdade; 8). Direito a
um Julgamento Justo ; 9). Direito a Tratamento Humano durante a Detenção;10). Direito de Não Sofrer
Tortura e Tratamento ou Castigo Cruel, Desumano e Degradante, PRINCÍPIO 11). Direito à Proteção
Contra todas as Formas de Exploração, Venda ou Tráfico de Seres Humanos; 12). Direito ao Trabalho;13).
Direito à Seguridade Social e outras Medidas de Proteção Social, 14). Direito a um Padrão de Vida
Adequado; 15. Direito à Habitação Adequada, 16. Direito à Educação, 17). Direito ao Padrão mais Alto
Alcançável de Saúde; 18. Proteção contra Abusos Médicos;19). Direito à Liberdade de Opinião e
Expressão;20). Direito à Liberdade de Reunião e Associação Pacíficas;21). Direito à Liberdade de
Pensamento, Consciência e Religião; 22). Direito à Liberdade de Ir e Vir;23). Direito de Buscar Asilo
24). Direito de Constituir uma Família; 25). Direito de Participar da Vida Pública ; 26). Direito de
Participar da Vida Cultural;27). Direito de Promover os Direitos Humanos;28). Direito a Recursos
Jurídicos e Medidas Corretivas Eficazes;29). Responsabilização (“Accountability”)
97
O Brasil não possui uma legislação de identidade de gênero como outros países,
como a Argentina, Colômbia, Uruguai, Espanha, Inglaterra e Portugal. Na Argentina, país
fronteiriço ao Brasil, foi formulada a lei 26.743 a partir dos Princípios de Yogyakarta
sobre a Aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos às Questões de
Orientação Sexual e Identidade de Gênero. A nova legislação vai além do
reconhecimento formal e garante não apenas a alteração de registros e documentos
conforme a “identidade de gênero autopercebida”, mas também inclui nos sistemas
públicos de saúde as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais que forem
necessários.51.
51
Matéria da página da ONU no Brasil: ONU parabeniza Argentina por lei de identidade de gênero
https://nacoesunidas.org/onu-parabeniza-argentina-por-lei-de-identidade-de-genero/
98
Essa ação nacional contou com a organização da ANTRA, idealizada por ativistas
transexuais para a promoção do respeito. Nos cartazes produzidos pelo Ministério, as
travestis trazem as fotos de 27 delas e uma frase chave: "Travesti e respeito: já está na
hora de os dois serem vistos juntos. Em casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na
vida."52. Após ação, as 52 organizações afiliadas à ANTRA, em todo o país, foram
convidadas a sair às ruas e reivindicar seus direitos em suas localidades.
52
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2302200438.htm
99
pessoas. Conforme a Constituição Federativa do Brasil, no artigo 6°, “são direitos sociais,
a educação, a saúde, o trabalho e o lazer” (Senado Federal, 1988), sendo assim, todas as
pessoas devem ter a visibilidade de seus direitos e oportunidades asseguradas.
Tais contradições legislativas são sintetizadas por Berenice Bento (2014) como
uma “gambiarra legal”, que resulta em uma cidadania precária. O Brasil é o único país do
mundo onde, no vácuo de uma legislação geral, instituições garantem um direito negado
globalmente. Aqui transmutamos o respeito à identidade de gênero em “nome social”.
Mudar sem alterar substancialmente nada na vida da população mais excluída da
cidadania nacional. (BENTO, 2014:175)
ranking de assassinatos de travestis e transexuais, o país onde mais se mata essas pessoas.
Ainda não existe uma lei específica que criminaliza os crimes de ódio contra pessoas
trans, lésbicas ou homossexuais.
53
Fonte: http://guiadedireitos.org/index.php?option=com_content&view=article&id=1035&Itemid=257
104
transexuais devido à subnotificação nos meios midiáticos, onde não se encontram notícias
relacionadas a essa parcela da população. Muitos dos casos são notificados enquanto
homossexuais, lésbicas e até mesmo com a expressão "homem com vestimentas de
mulher". O monitoramento da REDETRANS é uma parceria com a ONG Transgender
Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população
transgênero.
54
Publicado em 2017, de autoria de Sayonara Naider Bonfim Nogueira, Tathiane Araújo Aquino e Euclides
Afonso Cabral, da Rede Trans Brasil. Dossiê completo:
http://redetransbrasil.org/uploads/7/9/8/9/79897862/redetransbrasil_dossier.pdf
105
...de forma geral, repetem o padrão dos crimes de ódio, motivados por
preconceito contra alguma característica da pessoa agredida que a
identifique como parte de um grupo discriminado, socialmente
desprotegido, e caracterizados pela forma hedionda como são
executados, com várias facadas, alvejamento sem aviso, apedrejamento
(STOTZER, 2007), reiterando, desse modo, a violência genérica e a
abjeção com que são tratadas as pessoas transexuais e as travestis no
Brasil. (JESUS, J., 2011:113)
Não há como justificar qualquer tipo de violência causada pela homofobia e pelos
crimes de ódio no Brasil. Conforme a Declaração Universal de Direitos Humanos, toda
pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Segundo a Constituição Brasileira, Art. 5º, todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Conforme o terceiro termo do Art. 5º, ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante. Sendo assim, essas pessoas trans têm todos os direitos pelo fato
de serem brasileiras e por serem seres humanos.
Realizamos um recorte histórico com referencial na década dos anos 1990 até os
dias atuais, que representaram um período de pioneirismo em termos de políticas LGBT
no país. Começamos o capítulo com a citação de Boaventura Souza Santos que alertava
para o direito de sermos iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e o direito de
sermos diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Durante todo percurso do
capítulo, buscamos transitar dentro desse contexto, pontuando as questões pertinentes ao
movimento LGBT e também especificamente às travestis e transexuais. Percorremos
algumas pautas das pessoas trans, discutidas pelo movimento, como o tema da saúde, da
visibilidade, do nome social e dos crimes de ódio. Encerramos citando as diretrizes da
107
CAPÍTULO IV
Chegamos ao último capítulo desta dissertação, que tem como objetivo refletir
sobre o surgimento das organizações AMOTRANS e NATRAPE e o papel mediador da
ONG GTP+. Buscamos a partir das análises construídas no capítulo III, situá-las em um
contexto de influência nacional, observando as consequências na atuação local, relatando
como foi que pessoas que antes eram invisíveis às políticas públicas (garotos de
programa, travestis e transexuais) passarem a ser público-alvo de projeto sociais
promovidos pelas políticas governamentais nacionais.
"arrecife", uma barreira rochosa que se estende por toda a sua costa, acima do nível do
mar ou completamente submersa, em regiões de pouca profundidade.
A cidade está situada sobre uma planície, constituída por ilhas, penínsulas,
alagados e manguezais. Para Gilberto Freyre56 é uma “cidade quase-ilha ou quase-
arquipélago levantada entre a água do mar e a mata tropical”. Foi apelidada como
"Veneza Brasileira", comparada com a cidade europeia devido à semelhança fluvial, uma
cidade cortada por pontes que unem suas partes e por onde acontece o encontro dos rios
Beberibe e Capibaribe que deságuam no Oceano Atlântico.
56
Gilberto Freyre, Guia prático, Histórico e Sentimental da cidade do Recife (5 edição), São Paulo, Global
Editora e Distribuidora, 2007 , pág 75.
57
Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, Diogo Mainardi (trad.), São Paulo, Cia das Letras, 1990.
58
Fonte: http://www.pe.gov.br/conheca/cultura/
110
Recife possui paisagens tropicais, fica iluminada durante o dia pelo sol ardente, é
acolhida durante o ano todo pelo clima quente, até mesmo no período de inverno, munido
de chuvas frequentes. Ao mesmo tempo em que apresenta seu lado cosmopolita, aberta a
novas culturas através do turismo, a cidade está atrelada à permanência de seus costumes
e tradições.
59
Fonte: http://www.galodamadrugada.org.br/index.php/o-galo/historia
112
iluminação brinda certas ruas, repletas de bares e com circulação de pessoas que
desfrutam a boemia, mas também trazem sensação de insegurança, impedindo o livre
acesso à cidade, abrindo margem a situações de violência. A cidade só volta a estar
iluminada nas festividades de junho, em homenagem a São João. Cada morador da
cidade, na véspera da comemoração, no dia 23, tem o costume de acender uma fogueira
na frente de sua residência, enquanto aprecia os diversos pratos feitos de milho.
Descrição Porcentagem
rendimento
rendimento
60
Relatório completo:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/110603_apresentacao_pobrezaextrema_pe.pdf
114
61
http://www.observatoriodorecife.org.br/site/wp-
content/uploads/2016/09/IndicRecife_TrabalhoRendaDesigualdade.pdf
115
62
Disponíveis em http://www.portaisgoverno.pe.gov.br/web/sds/lista-vitimas- cvli
116
Recife está na rota do turismo sexual no Brasil e vários turistas buscam sexo
barato, incentivando assim a exploração sexual, que é uma das práticas do tráfico
humano. Segundo o Ministério da Justiça63, uma das mais brutais espécies de violação
dos direitos humanos é o tráfico de pessoas, que vem crescendo vertiginosamente e
alcançando vultosas somas com a prática de comercializar pessoas para fins de trabalho
escravo, exploração sexual e tráfico de órgãos, dentre outras finalidades.
63
http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/anexos/desafiosperspectivasl.pdf
117
Nesse sentido, buscamos elencar vários aspectos da cidade do Recife, com suas
variadas facetas, com suas festividades, ritos, costumes, tradições, assim como suas
desigualdades e contradições. Cidade palco de vários atores e atrizes sociais que
constroem ações, atividades e projetos desenvolvidos pela garantia dos direitos humanos
e pela construção cidadã, o que veremos a seguir.
Eram perguntas como essas que inquietavam um grupo de pessoas vivendo com
HIV/Aids que se encontrava periodicamente na sede da ONG/Aids Gestos, no centro da
cidade do Recife, em meados dos anos 1990. Era o inicio da política de AIDS no Brasil, e
a ONG Gestos era a única instituição no estado de Pernambuco que acolhia pessoas com
HIV. O processo era pauperização da epidemia, ou seja, a incidência do vírus crescia na
população mais pobre e de maior carência de informação sobre os comportamentos de
risco à contaminação ao HIV.
A experiência da súbita morte de um ser querido levado pela Aids já era uma
realidade de muitos brasileiros. Wladimir Reis, naquela época, era um dos membros das
daquelas reuniões que serviam como um âmbito de coesão com outras pessoas vivendo
com HIV/Aids. Wladimir vive com o vírus HIV há 24 anos e já teve períodos em sua
jornada em que esteve doente de Aids.
118
Tal situação fez com ele adotasse uma nova estratégia. Resolveu ocultar sua
homossexualidade e quando o médico perguntou como tinha contraído o vírus, ele disse
foi através de uma relação heterossexual, que sua companheira tinha contraído o vírus e
já tinha falecido. Não foram feitas mais perguntas e no mesmo dia todos os papéis foram
liberados e finalmente Wladimir recebeu sua aposentadoria.
Ismael Basílio, Josefa Conceição, Marcos França, Reinaldo Brito, Sérgio Araújo e
Wladimir Reis eram integrantes desse grupo. Todas as pessoas que participavam eram de
regiões periféricas de Recife. Mas essas seis pessoas, em particular, além de buscar a
ajuda necessária para lidar com as questões pessoais acerca do tema do HIV,
compartilhavam do mesmo anseio de levar informação para outras pessoas.
vivendo com HIV e tomavam contato com militantes experientes da luta contra AIDS de
outras regiões do país, que compartilhavam informações sobre êxitos e fracassos de
campanhas de conscientização sobre a epidemia, explicavam a conjuntura nacional das
políticas sociais.
Com pancake branco no rosto e figurino simples (Imagem 2), escondiam suas
identidades e encenavam cenas do cotidiano nas ruas do Recife e cidades da região
metropolitana. Com o tempo, desenvolveram esquetes teatrais que tratavam da
negociação do uso do preservativo dentro do âmbito das famílias ou cenas com parceiros
heterossexuais ou homossexuais, chamando a atenção das pessoas para a epidemia de
AIDS e a importância da prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e o HIV. Os
assuntos abordados através de esquetes teatrais possibilitavam uma ruptura no cotidiano
da plateia/comunidade, tornando-se um verdadeiro acontecimento, em que se
compartilhavam alegrias, risos, reflexão e, também, oferecia informação.
121
O trabalho contínuo do grupo composto por pessoas vivendo com HIV/Aids que
atuavam como arte educadores, utilizando o lúdico como estratégia, via esquetes teatrais,
deu origem ao Teatro Turma da Prevenção e, posteriormente, à institucionalização do
grupo, como uma organização não-governamental. No site oficial da ONG GTP+, em um
vídeo64 institucional, uma das fundadoras, Josefa da Conceição, aborda a importância do
teatro para o grupo:
64
http://www.gtp.org.br/new/master_portugues.php?area=videos
122
Através do Azael que deu a maior força nesse tempo que a gente
conseguiu um projeto com financiador da Alemanha, com a ASW e foi
um projeto de estruturação e ter nossa própria sede. Porque antes era
pulando de galho em galho, porque nunca tinha sala, era falta de
cadeiras, sala pequena. A gente se sentia objeto de projeto queria
deixar essa condição, queria ter informação e passar a informação
para quem não tinha. Fomos lutando, lutando... através de Azael que
conseguiu esse projeto de estruturação que pagou dois anos de aluguel
da casa, essa mesma casa que estamos agora... Foi muita luta. (Sergio
Pereira de Araújo, entrevista dada em 25/08/2016).
A trajetória foi difícil, pois um dos maiores problemas enfrentados pelas ONGs
tem sido a sustentabilidade financeira e política. Os desafios para manter uma
organização em andamento incluem dificuldades de várias ordens, como conseguir fontes
de financiamento, elaborar propostas consistentes e de acordo com as solicitações dos
editais, o que exige pessoal especializado em elaborar projetos. Além disso, a captação de
recursos, a gestão administrativa da organização e dos projetos em andamento exige um
grande esforço de seus membros e colaboradores.
127
Conforme apontado por Facchini (2005), a adoção de uma estrutura formal trazia
consigo uma longa lista de novas atribuições, cargos e papéis definidos na organização,
despesas mensais, a necessidade de financiamentos e interlocução com técnicos de
agências de cooperação internacional, a preparação para matérias jornalísticas em
veículos de comunicação.
Outra perda foi a precoce morte de Patrícia Gomes no mesmo ano, vítima de
toxoplasmose. Conhecida por todos como Nena Patrícia, a travesti exercia função de
secretária administrativa e financeira no GTP+. Patrícia era uma pessoa alegre, de
extremo bom humor, que tinha comprometimento e afinco em suas atividades
profissionais e de militância. Na época de seu falecimento, com apenas 30 anos, atuava
como vice-presidenta da AMOTRANS (Articulação e Movimento das Travestis e
Transexuais de Pernambuco) e uma grande defensora dos direitos humanos65. Com
respostas rápidas e praticidade no desenvolvimento dos procedimentos, contribuiu de
maneira contundente com a luta da construção da cidadania das travestis no estado de
Pernambuco.
65
Após a conclusão desse estudo, em 16 de novembro de 2017, foi inaugurado o primeiro ambulatório
LGBT de Pernambuco, intitulado Ambulatório LGBT - Patrícia Gomes, na Policlínica Lessa de Andrade,
no bairro de Madalena, cidade do Recife. O nome do ambulatório foi em homenagem ao legado deixado
por Patrícia que atuou de forma decisiva na promoção dos direitos e cidadania das pessoas trans. O espaço
visa à promoção da cidadania e garantia de direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
Está habilitado a fornecer orientações sobre direitos humanos e prestar atendimento especializado a vítimas
de discriminação e violência homofóbica. Maiores detalhes:
http://www2.recife.pe.gov.br/noticias/16/11/2017/pcr-inaugura-ambulatorio-lgbt-na-policlinica-lessa-de-
andrade
129
66
1) Outubro de 2008, através do Congresso de Prevenção às IST/ AIDS do Ministério da Saúde, ficando
em terceiro lugar na categoria Ações Bem Sucedidas; 2) Dezembro de 2008, com o projeto “Não fique em
Silêncio”, conquistado com a população surda nas ações de prevenção as IST/AIDS no Recife e Região
Metropolitana. Primeiro lugar no Projeto Saúde Brasil, 3) 5º Premio AIDS – Responsabilidade Social em
Dezembro de 2009, categoria Organizações Não Governamentais. Prêmio idealizado pela Aguilla
Comunicação, que tem como objetivo estimular ações que promovam a melhoria da qualidade de vida dos
portadores do vírus HIV, 4) Dezembro de 2010 - Segundo lugar conquistado pelo voto popular no
Concurso Prudence no Dia Mundial de Luta Contra a AIDS. 5) Dezembro de 2012 Premiado pelo
Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais _ M.S. Brasil, Banco Mundial – BIRD, da Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO e do Escritório das Nações Unidas sobre
Drogas e Crime –UNODC através de dois projetos 1- Mercadores de Ilusões – nas Paradas I ( ações de
prevenção das IST/HIV/Aids e hepatites virais durante as atividades de mobilização do orgulho LGBT) e o
Cidadania Posithivas (fortalecer ações de promoção e defesa dos Direitos Humanos relacionado à epidemia
de IST/HIV/AIDS e Hepatites Virais), que realizaram gestão eficiente e transparente dos recursos públicos
repassados no âmbito dos subprojetos desenvolvidos em 2011 - com abrangência nacional ou regional.
67
Para maiores detalhes sobre os projetos desenvolvidos pela ONG GTP+:
http://www.gtp.org.br/new/index.php.
131
atrelados à projetos aprovados. Alguns projetos aprovados por editais demoram a receber
seus recursos por meses, às vezes anos. Quando recebidos, os valores estão defasados
tanto para compra de materiais, quanto para pagamento de recursos humanos que
dependem de uma remuneração condizente a função a ser desempenhada. Tal cenário
torna improvável a manutenção de uma equipe técnica de qualidade por muito tempo e
contribui para o trabalho precarizado.
Na atualidade, apesar de país concentrar mais de 40% das novas infecções pela
Aids na América Latina e no Caribe, segundo Unaids68, existe a falta de recursos no
combate à doença, o que também prejudica a prevenção e as populações mais pobres
sofrem a consequência conforme nos fala de Sérgio Araújo:
68
Fonte: https://nacoesunidas.org/falta-de-recursos-ameaca-resposta-ao-hivaids-alerta-agencia-da-onu/
133
69
As ligas camponesas defendiam uma reforma agrária profunda no Brasil. Maiores detalhes:
http://historiadomundo.uol.com.br/idade-contemporanea/ligas-camponesas-e-a-reforma-agraria.htm
134
O nome do projeto foi uma ideia de Marcos França que associou a vivência dos
garotos de programa a um mercado de ilusões. No início do projeto, que posteriormente
teve várias edições, Azael Cosme era o coordenador do projeto e Reinaldo Brito era o
assistente de coordenação. Ambos trabalharam juntos e voluntariamente no projeto-piloto
Mercadores de Ilusões e coordenavam as atividades desenvolvidas: abordagens noturnas,
mapeamento e oficinas com os grupos operativos.
O projeto Mercadores de Ilusões teve seu primeiro projeto aprovado em 2003, por
uma organização alemã, chamada ASW, por dois anos consecutivos. Houve a capacitação
de 20 profissionais do sexo (homens) como agentes multiplicadores de prevenção. Mas
antes disso, em 2002, uma política nacional queria atuar com populações que o Ministério
da Saúde tinha dificuldade em alcançar e iniciou-se uma parceria do GTP+ com a
Secretara Estadual de Saúde:
aqueles públicos que até então eram invisíveis e entre eles o público de
profissional do sexo masculino. O Ministério também começa a
perceber que ele precisa ter uma dinâmica um pouco diferenciada para
atingir esses públicos: prostitutas, garotas de programa, travestis. O
projeto SOMOS foi pensado para essas ações, é pensado para
direcionar recursos humanos para atender essa população que nem
sempre está dentro do horário comercial acessível, então nosso projeto
tinha essa flexibilidade. O projeto Mercadores de Ilusões começa a ser
apoiado com material, com camisa do projeto, com um carro para que
a gente fizesse as abordagens noturnas, porque até então eu fazia com
meu carro. A Secretaria passa a disponibilizar um carro e um
motorista, eles deram os insumos para que a gente começasse a
desenvolver o projeto, a partir daí a gente começa a ter essa ajuda.
Então o início do projeto foi esse. (Azael Cosme dos Santos Junior,
entrevista em 26/08/2016)
No período de 2006 à 2007 percebeu-se uma mudança nos locais de trabalho dos
profissionais do sexo, exigindo atualizações no mapeamento realizado anteriormente.
Além disso, durante as abordagens noturnas, crescia a informação sobre os casos de
garotos de programa e travestis viajando para países da Europa para prostituição. Na
mesma época, o Projeto tomou conhecimento dos primeiros relatos sobre o tráfico de
seres humanos e percebeu que em seus mapeamentos o número de travestis e travestis
menores de idade aumentou nos pontos de prostituição.
Outro fato que abalou a equipe que coordenava o projeto foi que um ex-integrante
da primeira edição do Mercadores de Ilusões transformou-se em travesti, foi morar em
São Paulo e foi assassinada nas ruas do centro da capital paulistana. Mediante o novo
cenário, a coordenação do GTP+ decide inserir travestis como público-alvo do projeto,
além dos garotos de programa.
O GTP+ passa a receber com mais regularidade travestis em sua sede e toma a
decisão de inserir o público como beneficiário de todos os projetos desenvolvidos na
instituição.
136
A ONG decide como política organizacional que, assim como pessoas vivendo
com HIV poderiam concorrer a vagas de trabalho na instituição, travestis também
poderiam ter as mesmas oportunidades:
A trajetória de luta pela garantia dos direitos das travestis já existia na cidade,
começou antes da criação de uma ONG que as representassem. Algumas ativistas
participavam de ENLAIDS e eventos do Ministério da Saúde desde 2004 e pensavam
formar uma nova organização.
70
http://amotrans.blogspot.com.br/
138
Em 2010, o projeto pela primeira vez tem o grupo de formato misto, com homens,
travestis e transexuais femininas. A inovação vem da premissa de trabalhar o tema do
preconceito entre os três públicos. Com a experiência, a ONG GTP+ realizou
apresentação oral no Congresso Nacional de DST, HIV e Aids, que ocorreu em Brasília
em junho. Além disso, recebeu a notificação da aprovação da exibição de um Pôster, em
julho, no Congresso Mundial de Viena de 2010, mas por falta de recursos financeiros não
pode enviar um representante para expor o trabalho e compartilhar os desdobramentos do
projeto.
necessidade pelo estado de saúde destes, além de discriminações geradas pelo pessoal da
guarda e funcionários do presídio. Não são apenas as pessoas vivendo com HIV ou AIDS
(PVHA) que sofrem discriminação e são violentadas em seus direitos nesta instituição, as
travestis, por exemplo, têm a identidade de gênero não reconhecida, sofrendo uma gama
de desrespeitos, sendo tratadas enquanto pessoas de segunda categoria. Às travestis estão
destinadas todas as atividades de limpeza, lavagem de roupas e demais serviços
domésticos, sem qualquer remuneração, sendo que, quando se recusam a assumir essas
atividades, são espancadas e vítimas de abusos sexuais, salientando que, via de regra, elas
são obrigadas a manter relações sexuais com todos os homens que ocupam o pavilhão em
que habitam.
Maria Clara de Sena era uma das travestis que participou do projeto Mercadores
de Ilusões e que também foi secretária do GTP+ (substituiu Patrícia Gomes após seu
falecimento) e atuou no Projeto Fortalecer para Superar Preconceitos. Ela percebeu nos
atendimentos que realizava no GTP+ que a maioria da população trans atendida acabava
em unidades prisionais. Em 2012 e 2014, a atuação do GTP +, apoiada pelo Fundo Brasil
de Direitos Humanos, conforme dito por Wladimir Reis teve como um dos resultados a
criação de um espaço especial, que é referência para todo o Brasil, destinado a população
trans no Presídio de Igarassu, em Pernambuco. Dessa experiência resultaram várias
140
71
Destacamos: Vídeo Presídio de Igarassu ganha pavilhão para homossexuais – Diário de Pernambuco
https://www.youtube.com/watch?v=ReOKjtlQO4Y
Transgêneros ganham ala especial em presídio no Grande Recife:
http://blogs.diariodepernambuco.com.br/segurancapublica/?tag=presidio-de-igarassu
A incrível história de Maria Clara de Sena, que luta por condições dignas nos presídios do Recife
https://mdemulher.abril.com.br/estilo-de-vida/a-incrivel-historia-de-maria-clara-de-sena-que-luta-por-
condicoes-dignas-nos-presidios-do-recife/
141
Esse troféu tem um simbolismo daquilo que a gente luta, que é o amor,
o amor verdadeiro. Gostaria de agradecer muito. Eu não imaginava
que ia chegar na final. E se chegamos estamos indo pra um lugar
positivo, só basta acreditar. Esse prêmio não é só meu mais de muita
gente. (Maria Clara de Sena, depoimento após premiação em
04/10/2016).
72
Imagem 15 - Foto do acervo pessoal de Maria Clara de Sena com a sobrinha e a pesquisadora .
72
Foto de autoria da fotografa Bianca Vasconcellos.
143
A perita do Mecanismo contra Tortura, Maria Clara solicitou ao agente que ele se
dirigisse a ela como Servidora do Estado e respeitasse o trabalho desenvolvido pela
equipe. O agente disse que não respeitava e a expulsou da Unidade Prisional, porém ela
manteve a posição de ficar e disse que a equipe não sairia. O agente destravou a arma e
apontou para a cabeça de Maria Clara e falou “vou matar este viado preto”, o chefe de
segurança puxou ele e disse que ele estava passando dos limites, chamando-o de Ricardo.
O agente penitenciário bradou diversos palavrões e disse que naquele momento mataria
Maria Clara, o chefe de segurança mandou um veículo da unidade prisional levar a
equipe para um local seguro, enquanto o agente permanecia na frente da unidade com o
revólver em punho ameaçando atirar.
de sua residência, Edifício Modulo, numa atitude de intimidação. Ao saber que o agente
penitenciário rondava o prédio em que vivia, ela mudou de residência, mas a queixa
maior era em relação a posição do Estado:
73
Nota do sindicato na íntegra pode ser acessada através do link:
http://sindasppernambuco.blogspot.com.br/2015/08/documentos-laudos-e-relatorios-provam.html
145
Diante desse cenário, Maria Clara teve que abandonar seus estudos universitários
em Serviço Social, pois não sentia a proteção efetiva do Serviço de Segurança do Estado
de Pernambuco, assim como não se sentia segura para ir às aulas, e tinha receio de ser
abordada na entrada ou saída do prédio em que estudava75.
Das várias reflexões que possam surgir a partir desse episódio vivenciado por
Maria Clara, destaco o questionamento sobre os desafios relacionados ao tema da
inclusão social das pessoas trans e ao preconceito arraigado nas relações sociais.
74
Para detalhes sobre o processo acessar:
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/308118715/andamento-do-processo-n-0014088-
7320158170000-do-dia-24-02-2016-do-djpe
75
Dois meses antes da conclusão desse estudo, em setembro de 2017, Maria Clara de Sena buscou refúgio
internacional no Canadá. Atualmente vive Toronto e participa de um projeto da ONG Internacional The
519, de inclusão de pessoas trans refugiadas de países em que sofreram discriminação.
146
pessoas trans dentro do espaço público, para que as crenças privadas não comprometam o
exercício dos direitos conquistados.
Tais mecanismos e estratégias de defesa dos direitos são como pontes de conexão
para que os direitos conquistados sejam verdadeiramente exercidos. Conforme Jesus
(2012) sinaliza, toda mudança em favor da justiça e da igualdade começa quando
entendemos melhor quem são as outras pessoas, e o que elas vivem, superando mitos e
medos. Sendo assim, não basta abrir oportunidades de inclusão, é preciso compreender
melhor as relações de preconceito e estigma arraigadas na sociedade. Essas relações de
preconceito incluem o rechaço a orientação sexual e identidade de gênero diferentes ao
padrão binário (homem/mulher, macho/fêmea), e é importante o conhecimento
aprofundado dos desafios para superá-las no espaço público.
Quando o Estado não assegura os direitos das pessoas trans, abre-se a margem
para a homofobia, para os crimes de ódio e para a perpetuação do preconceito. Para uma
mudança em favor da justiça e da igualdade, como aponta Jesus, é necessário o esforço
legítimo de estudar, aprofundar e sistematizar mecanismos que sensibilizem a sociedade,
criando uma legislação específica que garanta os direitos humanos das pessoas trans e a
fiscalização da execução das leis para assegurar a legítima inclusão nos espaços sociais.
Desse modo, essas pessoas sofreriam um risco menor de serem alvo de situações
estigmatizantes, movidas por crenças preconceituosas e discriminatórias, e se isso
ocorresse, estariam protegidas pela lei para sua defesa.
Observa-se na fala de Maria Clara que o futuro era algo incerto antes de conhecer
o projeto, e a expectativa de vida curta era realidade sentenciada. O acolhimento nos
espaços de militância, normalmente em ONGs, auxiliam o reconhecimento e sentimento
de pertencimento à condição de transgênero, contribuindo para construção de laços de
amizade e companheirismo e, além disso, para a conscientização da luta coletiva pela
garantia de direitos, que vem através do exercício da cidadania, conforme expressado por
Heymilly:
Para Luana, que atualmente vive na Espanha, mas que foi atuante na construção e
efetivação de atividades, atos e ações em várias edições do projeto Mercadores de Ilusões
quando era garoto de programa, o espaço de militância a ajudou durante sua transição
para tornar-se uma travesti:
coordenação dos projetos. Tal situação tem criado um processo interessante: agora são as
ONGs que atuam com a temática do HIV e Aids que buscam parcerias com as
organizações de travestis e transexuais para concorrer a editais de projetos relacionados
aos direitos humanos.
O edital do ELAS de 2017, por exemplo, incentiva projetos que tenham propostas
que visem o diálogo, aproximação e/ou ação conjunta entre diferentes segmentos dos
movimentos feministas e de mulheres, que sejam intergeracionais e/ou que reconheçam a
diversidade, promovendo o encontro entre sujeitas políticas dos movimentos de mulheres
no Brasil (mulheres jovens, indígenas, negras, do campo, trans, trabalhadoras domésticas,
lésbicas, com deficiência, vivendo com HIV/Aids, prostitutas, estudantes, quilombolas,
etc).
76
Tal posicionamento do Ministério da Saúde causou embate com as ONGs que lutam contra Aids que
afirmam que o vírus da Aids ainda é um problema de saúde pública e que o caráter de epidemia persiste.
151
77
Fonte: Vereadora faz homenagem à Amotrans-PE
http://www.recife.pe.leg.br/noticias/vereadora-faz-homenagem-a-amotrans-pe-1
153
Conforme vimos no capítulo III e foi relatado por Carvalho e Carrara (2013), o
surgimento da REDETRANS apontou tensões dentro do movimento de travestis e
transexuais. Mediante as disputas e os debates internos sobre como operacionalizar as
ações nacionalmente e a inclusão as travestis e transexuais de todas as esferas e situações
sociais, em grande medida a REDETRANS nasce desses conflitos num racha da
ANTRA. Heymilly Maynard comenta a atuação na REDETRANS e sua opinião sobre a
construção de um modelo que contemple a diversidade trans:
Para a formação política cidadã, a estratégia usada pela NATRAPE tem sido de
articular o diálogo, provocar e aprofundar o conhecimento entre pares para desenvolver
estratégias de promoção dos direitos das pessoas trans, com uma metodologia pedagógica
que inclui informação, vivências compartilhadas, reflexão, emoção, sentimento e
afetividade. Cria-se um ambiente de aprendizagem ativa, com estimulo ao vínculo entre
pares para compartilhar informações e pensar soluções para problemas comuns.
Em uma das viagens feitas ao Recife, presenciei um desses atos, uma caminhada
até o Ministério Público, com aproximadamente 20 travestis, a maioria do Pernambuco e
representantes de outros estados como Alagoas, Bahia, Paraíba, Sergipe e Rio de Janeiro.
158
Durante a caminhada de seis quadras entre o Hotel que sediava o Seminário até o
Ministério Público, as travestis e transexuais caminhavam com os cartazes que foram
feitos na oficina de educação entre pares. Sob os olhares atentos das pessoas que também
estavam nas ruas não aconteceu nenhum tipo de insulto ou represália à caminhada. Uma
mulher de uns sessenta anos de idade se aproximou do grupo e o acompanhou até o
Ministério Público, disse que as apoiava, “meu neto é gay e sofre discriminação, eu apoio
a luta de vocês e sou contra o preconceito.”. Maria Clara me relatou que “quando estamos
em maior número nas ruas é difícil alguém insultar, mas quando estamos em duas ou três
sempre tem um que chama de frango, viado safado, o que mostra a covardia da
violência.”.
159
Imagem 21 - Foto em frente ao Ministério Público: destaque para senhora transeunte de vestido
branco estampado que acompanha o grupo
160
Por sua vez, o promotor Marco Aurélio Farias da Silva disse que o Ministério
Público em Pernambuco é uma instituição que tem como missão servir à população,
promover o exercício da cidadania e contribuir para a justiça social, fortalecendo os
direitos de todos os cidadãos do Estado de Pernambuco, independente da orientação
sexual ou identidade de gênero desse cidadão ou cidadã. Ressaltou que o Ministério
Público de Pernambuco, através da Comissão de Direitos Homoafetivo de Pernambuco e
várias organizações do movimento social78 de Pernambuco tinham contribuído para a
78
Assessoria LGBT do Estado de Pernambuco, - Assessoria LGBT do Município do Jaboatão dos
Guararapes,- Centro de Combate à Homofobia de Pernambuco, - Centro de Cidadania LGBT do Recife,
Espaço de Acolhimento e Atendimento de Pessoas Trans do Hospital das Clínicas de Pernambuco, GTP+
, Grupo Frida de Gênero e Diversidade, Gerência de Livre Orientação Sexual do Recife, Humanitas –
Unicap, Instituto José Ricardo, Mães pela Igualdade, Secretaria de Saúde de Pernambuco, Secretaria de
Saúde do Recife contribuíram com o Ministério Público de Pernambuco para a Construção da Cartilha
Direitos da População LGBT. Acessível em http://www.mppe.mp.br/mppe/cidadao/campanhas/ultimas-
noticias-campanhas/4164-cartilha-direitos-da-populacao-lgbt
161
O promotor disse que tinha ciência que certos procedimentos jurídicos são
morosos, mas que esse fato não deveria desacreditar o comprometimento do Ministério
Público e da justiça, ele ressaltou a necessidade de se atuar em duas frentes diante desse
tema para possibilitar e ampliar o diálogo com a sociedade e os movimentos organizados
e, por outro, cuidar da defesa dos direitos por meio das ações judiciais.
Os Desafios
Maria Clara também aponta o desafio da ONG manter seus princípios éticos,
preservando missão, esquivando-se da corrupção, de excesso de vaidade pessoal em
oposição aos interesses coletivos, o que pode ser um desafio e prejudicar a construção
coletiva da cidadania:
Aspirações e Sonhos
Toda pessoa tem objetivos que deseja alcançar, metas a cumprir e sonhos a
realizar. O conjunto dessas aspirações, bem como os meios para concretizá-las, é o que dá
forma e vida ao projeto pessoal.
Os sonhos de uma vida melhor para si e para seus pares, de obter estabilidade
econômica, iniciar ou finalizar os estudos, ter uma família, de ser respeitada ou
simplesmente sobreviver, representam projeções para o futuro e as formas de
enfrentamento às adversidades presentes no cotidiano, conforme as respostas das
entrevistadas:
Meus sonhos... Minha visão quanto movimento é que a gente possa ter
um Estado que seja laico, não seja um Estado de fachada que diz ter a
laicidade onde as pessoas trans seriam vistas como pessoas e cidadãs,
podendo ter um emprego, podendo ser respeitadas, por sua identidade
de gênero ou sua orientação sexual, podendo sair na rua de forma
como qualquer outra pessoa humana, não sendo vítima de violação de
direitos como chacota, piadinhas ou até mesmo algum tipo de agressão
verbal ou física. No futuro, no pessoal...que eu possa estar concluindo
minha pós, eu penso também em construir uma família e adotar
crianças. Eu tenho esse sonho. (Heymilly Maynard, entrevista
concedida em 13/11/2015)
165
Tenho o sonho, talvez seja besta mas... tenho o sonho de ter minha
família, adotar uma criança, levar para escola, ter meu marido,
trabalhar, dar continuidade ao meu estudo. As pessoas respeitando a
gente como pessoa normal. Hoje de manhã mesmo, um menino de rua
começou a me seguir e gritar alto ‘o viado!’ e as pessoas ao redor
agem como se isso fosse normal. Meu sonho é que tudo isso fique no
passado, que eu possa andar, que eu possa cumprimentar. Parece um
sonho muito distante. Queria que as pessoas se respeitassem e
respeitassem o outro... As pessoas falam muito em sensibilização, mas
como sensibilizar quem não é sensível, não adianta. As pessoas
precisam de uma conscientização... A lei que criminaliza o racismo, por
exemplo, hoje se tem mais cuidado para não agredir verbalmente... se
criasse algum tipo de lei especifica melhoraria, mas acho que é pela
educação que se muda. Se alguém falar mal de uma travesti, por
exemplo, a punição poderia ser trabalhar por serviços sociais, dar seu
tempo numa instituição, trabalhar a empatia, entregar preservativos às
travestis, buscar uma melhoria significativa no que se refere à relação
humana. (Maria Clara de Sena, entrevista concedida em 14/11/2015)
166
Um Estado laico, a formação de uma família, ter filhos, estudar, trabalhar, serem
respeitadas em qualquer espaço social, incluídas como cidadãs, e respeitadas em suas
diferenças. Esses sonhos e aspirações estão imbuídos em cada gesto e fala das travestis
que foram entrevistadas na pesquisa. Elas vivenciam diariamente as dificuldades de
inclusão, de serem tratadas no gênero feminino e, apesar dos avanços, frutos de
resistência e luta pela cidadania, ainda vivenciam situações de ausência de políticas na
área da saúde, educação, trabalho, cultura e lazer.
CONCLUSÃO
Como ponto de partida, nos guiamos pela mitologia, destacando alguns contos
sobre personagens que viviam como mulheres em corpos masculinos. Alguns desses
mitos retratam personagens disfarçados com indumentárias femininas, assim como
metamorfoseados com mudanças de sexo. Através de seleções, fragmentos, resgate de
mitos, percursos filosóficos e recortes de momentos de expressão artística, tecemos uma
breve genealogia travesti, considerando símbolos, o imaginário, a figura do hermafrodita,
os monstros, as relações de forças e os discursos que produziam jogos de poder em
relação aos papéis sociais de cada gênero. Esses discursos multiplicaram-se e foram
tantas vezes repetidos, que acabaram construindo de maneira arbitrária e determinista
uma noção de sentido e verdade.
No entanto, ainda existe um caminho a ser percorrido. A maioria dos estados não
instituiu o tripé da cidadania (Coordenadoria, Conselho LGBT e Plano de Combate à
169
Homofobia). A maioria das prefeituras ignora o tema das políticas públicas LGBT, não
instituindo ação de combate à homofobia. Ainda existe o desafio das pessoas trans serem
incluídas em outras políticas sociais, resguardando o direito de vivenciar sua identidade
de gênero e orientação sexual, sendo tratadas como cidadãs.
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