A Docil
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FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
TEORIA DA LITERATURA
Porto Alegre
2016
Jéssica Souza Vargas
Porto Alegre
2016
Para o Luís, que nos deixou cedo, e para o Donatelo,
que por 13 anos deitou em cima dos livros.
AGRADECIMENTOS
It is a fact that Dostoyevsky’s literary work is known worldwide not only when it
comes to Russian literature; considering the visibility of his novels, most of them
already translated directly from Russian. In order to think the “underground man” –
his ultimate character – in all its aspects, we chose A Gentle Creature, a novella that
shows a man who floats over the crowd and tries to understand it at the same time
as he tries to understand himself. The proposal of the present study is to reveal this
unreliable and delusional narrator who, in a desperate soliloquy, struggles to accept
his wife’s suicide, the central action of the plot. The apparently always-in-
development Saint Petersburg drives a philosophical question – the sinking inside of
the human soul – and offers a social structure that pushes the conflict of an individual
who tries to make himself present while he dialogues with the Other, who is also
present. The alterity of the dead wife cannot be understood by the widower, in
observations brought at the end of the analysis which, as a matter of fact, denies the
singularity of the woman’s discourse, who cannot be understood as gentle or meak
and who in her final act, death, finds a possibility of escape. Therefore, in order to
think the Self and the Other, we used Emmanuel Levinas’ first philosophy. Taking
this incomplete being as a result of the narrative, we studied aspects related to the
subject’s unfinished speech by using concepts of authors such as Mikhail Bakhtin
and Leonid Grossman, who also brought ideas about the structure of the novella
genre, which was modified by Dostoyevsky. There were other authors selected to
give basis to this study’s arguments and, moreover, to guarantee that the individuals
(turned into presence through their words) could be a part of what we understand as
reality, the same strange reality engendered by the author, who reveals to the reader
two characters enclosed in their undergrounds, with no exit.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS.............................................................................. 09
2 O HOMEM DAS IDEIAS...................................................................................... 14
2.1 A INTER-RELAÇÃO DOS “EUS”...................................................................... 21
2.2 O DISCURSO IDEOLÓGICO DO “HOMEM NOVO” DO SÉCULO XIX............ 26
3 A ANÁLISE DA NOVELA: O SUBSOLO EM CONSTRUÇÃO........................... 37
3.1 A RESPONSABILIDADE (IM)POSSÍVEL?....................................................... 39
3.2 CONTINUIDADE E PERMANÊNCIA: O CARÁTER ESTRANHO.................... 51
3.3 A PERSONAGEM NARRADORA: O MAL E O SUBTERRÂNEO.................... 61
3.4 O ATO MAIS ORIGINAL DE UM CORAÇÃO FRACO...................................... 67
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 72
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 77
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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
que reflete sobre si e o seu lugar no mundo, perante a convivência com os outros,
não é um sujeito que se permite realizar grandes ações, no sentido estrito do termo.
Para o homem do subsolo, tudo ocorre na sua mente. No entanto, esse sujeito
enfastia-se da vitimização que o próprio coletivo parece impor, experenciando
algumas de suas ideias que visam ao rompimento com a normose do cotidiano, com
o “senhor-todo-mundo”, conforme referencia o filósofo lituano. Precisamos, portanto,
evidenciar, na novela, o exercício de consciência das personagens para
entendermos as suas manifestações enquanto produto de suas autoconsciências
dialogizantes com o mundo, mas primeiro consigo mesmas; é o drama da condição
humana e da inércia destrutiva daquele momento histórico levados ao extremo, em
diálogos interiores obsessivos e apelativos.
Para dar conexão de sentido aos processos (in)conscientes das personagens
– do narrador, em verdade, porque é a partir de um discurso elaborado por ele que
chegamos à busca de sentido da vida da outra personagem –, compreendemos a
hibridização do gênero novelístico que contempla a polifonia, a relação irrestrita
entre as apreciações dos sujeitos (BAKHTIN, 2008; GROSSMAN, 1967). As visões
críticas já produzidas sobre o gênero, e sobre as questões aparentemente
destoantes que o envolvem, servirão para corroborar argumentos de um sujeito
leitor, primeiramente, de literatura.
Nessa perspectiva, encontramos como base os estudos de Bakhtin, que se
dobrou às questões que, primeiro, colocam o romance como produto discursivo,
exemplificando suas análises sobre o gênero com a literatura de Dostoiévski. Essa
reflexão é fruto de uma literatura produzida a partir do limiar das situações da vida e
da consciência humana do sujeito do século XIX, como vimos. Aos heróis
extravagantes de Dostoiévski é permitido narrar suas próprias histórias na medida
em que elaboram-nas para si mesmos, partindo de uma consciência que dialoga
consigo mesma, de um “subsolo” de ideias que não permite a esses sujeitos
sentirem-se inteiros no mundo tido como real, apenas naquele subterrâneo íntimo e
excêntrico engendrado por eles e que questiona essa realidade. É a construção de
enunciados eloquentes e que beiram ao exagero, desacomodando os indivíduos que
estão no limite da vivência em sociedade, da loucura e do sofrimento.
O desenvolvimento argumentativo da pesquisa traz a análise de aspectos de
Uma criatura dócil, tanto criativos quanto estruturais, sendo a novela pensada a
partir de apontamentos teóricos entendidos como primordiais para o aparecimento
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do sujeito do subsolo que tem um propósito cruel e egoísta: salvar a si mesmo, mas
externalizando esse encargo à esposa e aos planos futuros para a vida. Ele precisa
dela para que o planejamento funcione sem frustrações. Frente à morte dela,
aparentemente sem motivo e sem sentido, a não reciprocidade de uma relação
fadada ao fracasso, ele se vê impelido a interpelar os seus valores morais num
processo autoconsciente quase doentio.
Propomos, portanto, uma observação abrangente que não perde de vista o
ponto determinante do estudo, que é buscar o homem que recorre ao foço obscuro
da mente para dele poder, quem sabe, sair, numa narrativa que refaz o gênero,
conferindo a ele a estranheza transformadora que permite a sua renovação.
Buscamos compreender a maneira pela qual esse subsolo está marcado na
personagem narradora e, também, na protagonista feminina, e como os diálogos
internos que dão a forma de todo o enredo conduzem-no não absolutamente ao
tema central, mas às questões últimas de um sujeito bruto que está beirando o
desespero pela consciência de uma vida que não oferece muitas possibilidades de
mudanças.
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1
Nikolai Vasilievich Gogol (1809-1852) foi um grande escritor ucraniano admirado por Dostoiévski por
sua habilidade em trazer à literatura as questões que colocariam em questionamento o sujeito social
da Rússia do século XIX, o que, em muito, motivou o autor russo nas suas próprias criações.
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2
O que é revelado é o resultado da autoconsciência do ser, a última palavra da personagem. O que
parecia ser um todo definitivo torna-se parte do todo: o que era toda a realidade é apenas um aspecto
dela (a visão integral de um minuto histórico da atualidade, conforme Grossman). O que temos,
portanto, é uma combinação de vozes, e não a ênfase de uma em relação à outra. Dessa forma, a
unidade, no sentido estrito da palavra, do romance polifônico não existe (BAKHTIN, 2008).
3
Dostoiévski e outros intelectuais da época promoviam reuniões em que as mais diversas opiniões
sobre os acontecimentos da época, inclusive sobre as ordens governamentais, eram levantadas.
Num desses encontros, o escritor lê uma carta de Bielínski a Gogol em que o crítico atacava o
escritor ucraniano (Gogol nasceu no que hoje é território da Ucrânia, mas na época pertencia ao
império russo) pelos ideais levantados em relação ao espírito de obediência e aceitação sobre o
regime vigente na Rússia (GROSSMAN, 1967).
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4
Lucáks categoriza o herói problemático como aquele em que a sua ação estará vinculada ao grau
de inadequação entre ele e o mundo (LUCÁKS, 2000).
5
Bakhtin (2008) ainda nos lembra que o autor gostaria, entretanto, de crer em algo que não lhe
inspirasse uma fé verdadeira e que refutaria, se possível fosse, as questões que lhe geravam
dúvidas. Em verdade, esses são os elementos que tornam Dostoiévski apto a representar as
perturbações do sujeito social do século XIX.
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Se para ser universal o artista precisa falar da sua própria aldeia6, o que
interessou a Dostoiévski foi o trabalho de tornar suas personagens o tema
fundamental de sua literatura – não o indivíduo russo em si, mas o indivíduo russo
do século XIX que se perturbou tanto quanto perturba-se um sujeito que vive no
século XXI, já que o ser humano está sempre em estado de perturbação: “o que lhe
interessa não é uma figura expressiva isolada, mas o homem-problema, o homem-
drama. A solução de semelhante problema não conhece fim, e a ação de
semelhante conflito não pressupõe um desfecho” (GROSSMAN, 1967, p. 136). O
fenômeno real que a literatura abarca é a mobilidade da experiência humana, pois,
estando o sujeito social absorto em uma variedade de discursos que se mostram,
por vezes, dogmáticos, os silogismos que Dostoiévski procura desenvolver nas suas
criações aproximam-se de ideias humanitárias que compreendem o ser humano
enquanto capaz de pensar por si mesmo e fazer suas próprias avaliações e
julgamentos.
Dostoiévski não vem com preceitos e teses determinantes sobre as suas
impressões a respeito do mundo, mas incentiva o leitor, a partir das reflexões
dialogizantes de suas personagens, a buscá-las: “pensar e sentir adotando o ponto
de vista dos outros, pessoas reais ou personagens literárias, é o único meio de
tender à universalidade e nos permite cumprir nossa vocação” (TODOROV, 2012a,
p. 82). Não há razões para incorporar por completo a palavra do outro como
absoluta, mas procuramos acessá-la a ponto de compreendê-la.
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Uma máxima de Leon Tolstoi (1828-1910), escritor russo.
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7
“[...] el olvido del otro, su aniquilación: ya por vía del asesinato, ya por vía de la asimilación del otro
al yo, el otro, en su radical alteridad, desaparece.” (tradução nossa).
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Palavras de Mefistófeles, personagem de Fausto, tragédia de Goethe.
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que ele guarda somente para si, não permitindo o reconhecimento de sua imagem,
mas a construção de um discurso pleno e puro. A sua autoconsciência, frente ao
fato central da narrativa, vem das suas infinitas perguntas sem respostas e da sua
inconclusividade enquanto ser humano.
Esse “realismo superior” (PAREYSON, 2012) permite a Dostoiévski um novo
posicionamento seu em relação ao enfoque do indivíduo, ou seja, a descoberta de
um novo aspecto integral do homem, a realização do “homem no homem”, num
diálogo sempre inacabado organizado no todo não encerrado da própria vida do
sujeito, sempre situada no limiar, frente à repulsa que sente por si mesmo e à
condenação pela sua consciência perspicaz (MARTINS, 2002). Para isso, a
“distância entra no plano do autor, pois ela é a única que assegura a autêntica
objetividade da representação do herói” (BAKHTIN, 2008, p. 72) da forma como o
colocamos até então. A palavra da personagem encontra a palavra de outra
personagem, ou as incompatibilidades do próprio discurso, mas não se funde a ela,
conservando a sua autonomia. Como o discurso, a ideia quer ser ouvida,
compreendida e, até certo ponto, respondida, por ideias (vozes, consciências) de
outros posicionamentos:
A ideia não vive na consciência individual isolada de um homem:
mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e morre.
Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as
ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é, a formar-se,
desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar
novas ideias. O pensamento humano só se torna pensamento
autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o
pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na
consciência dos outros expressa na palavra. (BAKHTIN, 2008, p. 98)
lembra, por exemplo, o narrador de Uma criatura dócil, que tendo pertencido ao
regimento do exército entende a sua saída dali como uma perda de reputação e uma
injustiça, o que lhe custa muitos sofrimentos silenciosos, como ele mesmo diz. Para
reparar, de certa forma, essa queda social, o personagem “vinga-se” da sociedade
em sua casa de penhores, explorando aqueles que, como ele, almejam por dias
melhores. Tentando alcançar uma vida mais digna, e entendendo-se como um
homem que tem poder sobre seus atos para poder modificá-los, ele planeja uma
nova vida em outra localidade e, então, faz algumas economias e opta também por
casar-se. Veremos depois que esse “poder” que o “homem novo” dos anos de 1860
tem sobre si pode ultrapassar questões que ele não pode controlar, como a força do
acaso ou, melhor, as intenções e ideias de um sujeito Outro – a exemplo da jovem
que comete suicídio e que não tem obrigação alguma de participar do planejamento
do marido.
Bielínski (1846) via a sociedade russa estratificada de forma a não inter-
relacionar de forma satisfatória os indivíduos das diferentes classes. Numa São
Petersburgo diversificada, que recebia russos de diferentes localidades do país, era
lamentável e desumano que o ambiente fosse traçado por interesses materiais. Em
contrapartida, a Rússia explodia em produção cultural que, para ele, educava os
sujeitos daquele contexto em transição. A diversidade de formações literárias
daquele momento segregou as pessoas não apenas em suas preferências culturais,
mas na vida prática, “[...] em gerações com modos de agir e de pensar e com
convicções diversas, cujas discussões candentes e relações polêmicas, oriundas de
princípios, e não de interesses materiais, mostram por si os sinais da vida espiritual
que surge e se desenvolve [...]” (BIELÍNSKI, 1846, p. 120). Os interesses morais
aproximam, ou não, os sujeitos, e permitem o respeito pela dignidade humana. Para
o crítico, o artista russo deveria, obviamente, visar reconhecimento nacional, mas,
também, universal; logo, ele entendia que as composições de um autor deveriam
conglomerar aquelas ideias humanas comuns sobre os destinos da humanidade.
A emancipação literária russa, em relação à França, viria a partir dessa
época, visto que as criações desse povo marginalizado abarcavam de uma forma
estrutural nova as questões que envolviam o mundo todo, dando voz a personagens
que se mobilizavam, interna e externamente, frente aos problemas sociais.
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Baseia-se na observação fiel da realidade, apontando que o indivíduo é influenciado pelo ambiente
no qual está inserido (GROSSMAN, 1967).
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George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876). Foi uma romancista e
memorialista francesa, considerada uma das precursoras dos ideais feministas.
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Para Todorov (2012b), o fantástico é aquilo que pode ser caracterizado pela incerteza. Se o que
compreendemos por realidade permanece intacto numa narrativa, podemos entendê-la, portanto,
como pertencente ao gênero estranho, o estranho puro, que se refere a acontecimentos incomuns
que possuem explicações racionais, sendo a relação do homem com o seu contexto de percepção e
consciência.
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12
A mímese aristotélica compreende a literatura enquanto imitação das ações humanas. Bakhtin
(2002) desloca o conceito expresso por Aristóteles dizendo que a literatura era, no entanto, a mímese
do discurso humano.
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Bakhtin (2002) elege para análise o romance, mas as questões aplicadas a este gênero percorrem
toda a obra de Dostoiévski, independente da categorização dada a ela, como o próprio teórico
expressa. Assim, os argumentos de Bakhtin serão utilizados para pensarmos previamente a novela
aqui estudada.
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dos ideais trazidos pelo círculo de Bielínski porque, para o autor russo, a essência
desse movimento cultural ainda buscava caracterizar o sujeito –, ou o processo de
formação da personagem, mas a reação desta ao ambiente que a contempla
(BIANCHI, 2006). Recorrendo, de certa forma, aos mesmos heróis problemáticos,
Dostoiévski fazia-os experimentar as diferentes facetas de uma mesma situação,
como acontece ao homem de Uma criatura dócil que, a partir de uma situação
pontual, é provocado ao limite da sua consciência.
Para chegar ao herói pertencente a uma sociedade russa que ainda não sabia
transformar ideias em ações, que o conduzia a uma intensificação de seus
pensamentos e sujeitava-o cada vez mais ao isolamento, Bianchi (2006) faz um
apanhado crítico e social da primeira metade do século XIX. Ainda nos anos de
1820, as condições gerais da Rússia já possibilitavam o aparecimento dos ideais
realistas. Tanto o romantismo, que continha as manifestações artísticas da época,
quanto o realismo, eram impulsionados pelos conflitos com a realidade, que se
expressava por meio de “um indivíduo que se encontrava em contradição
irreconciliável com a sociedade conservadora e retrógrada que o cercava” (BIANCHI,
2006, p. 109); tornava-se cada vez mais difícil representar esse sujeito no contexto
em que ele estava. Os anos de 1840 – período em que Dostoiévski começa a
produzir – significaram um momento de despertar, levando o “homem do seu tempo”
a não concordar com a realidade em que vivia, configurando-se como um intelectual
idealista que procurava pela “palavra nova” capaz de responder pelos entraves que
permeavam a Rússia daquela época. O herói tem, portanto, liberdade de revelação
de si mesmo sem a interferência direta do autor.
O discurso no romance é sempre citado, ou seja, repleto das propagações do
discurso dos Outros. São discursos opacos e bivocalizados, ou seja, dialógicos, que
refletem uma realidade ao mesmo tempo em que a refrata (BAKHTIN, 2002), porque
a escolha e a compreensão da palavra alheia é o que confere a evolução ideológica
do sujeito – sendo, claro, uma palavra proferida a fim de permitir o diálogo vivo e a
não-finitude do seu sentido. Seguindo esse conceito, Bakhtin (2002) ainda fala que
quanto mais intensas e diversificadas forem as relações sociais de um ambiente,
mais o discurso do falante tem relevância em se tratando dos demais elementos do
discurso romanesco, que ao englobar o plurilinguismo na sua estrutura, precisa ser
submetido a uma elaboração literária num sistema estilístico harmônico que
expresse as posições ideológicas diferenciadas inclusive daquelas do autor:
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Acentua-se o fenômeno do herói, que vai atrelar suas ações à sua fala e à
fala do coletivo daquele período. Dostoiévski experimentou uma execução diferente
daquilo que a Escola Natural propunha, pois considerava as interpretações do
movimento como incapazes de ir fundo na essência dos fenômenos sociais e na
representação do seu sujeito literário (BIANCHI, 2006). O indivíduo da década de
1840 era o nobre intelectual pertencente à aristocracia (que não estava a salvo de
toda a problemática da época, mas que a sofria de forma diferente) e não o ser
marginalizado que vivia nos limites físicos da capital, sofrendo a desordem de forma
mais progressiva e mostrando ao leitor um conteúdo psicológico-social mais vivo e
em eterna transformação, parecendo ser este o meio mais verossímil de
aproximação com a verdade: “a realidade é um monstro terrível, para ser livre e, em
vez de um monstro terrível, ver nela uma fonte de felicidade, existe apenas um único
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indivíduo é interpelado a todo o momento pelo Outro, pelo ser que não é ele próprio,
mas um diferente, processo que o narrador de Uma criatura dócil não consegue
elaborar de imediato. Isso não é exatamente o mesmo que “refletir sobre si e seu
lugar no mundo”, que se aproxima do conceito clássico de ética e que também muito
tem a ver com o homem do subsolo. Essa transcendência do Eu ao Outro vai muito
além da ontologia e diz respeito à ética proposta por um dos mais influentes filósofos
da pós-modernidade – e que muito dialoga com o autor em questão – Emmanuel
Levinas, que conduzirá boa parte da nossa análise sobre a novela. Para Medina
Delgadillo (2014), só se pode entender a proposta ética de Levinas com a literatura
de Dostoiévski, já que, para o mexicano, os russos conseguiram fazer as perguntas
certas, mesmo sem terem chegado às respostas. Dostoiévski nos permite encontrar
a humanidade no indivíduo. É a assimetria entre os seres que fundamenta uma
responsabilidade infinita e que não deve esperar reciprocidade, porque, assim,
haveria desinteresse pelo Outro quando este se chocasse com os interesses do Eu;
a proximidade do Outro é ética e não física.
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Lasar Segall (1891-1957) nasceu em Vilna, localidade pertencente ao império russo, e seguiu seus
estudos artísticos na Alemanha, tornando-se parte importante da vanguarda expressionista alemã.
Encadeando relações com os artistas modernistas brasileiros da década de 1920, seguiu carreira em
São Paulo/Brasil, onde viveu até falecer.
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nos conta também sobre a vida da esposa, que não possui voz própria na narração.
O homem, inicialmente, parece não saber bem o que pensar e em como “montar”
toda a história, e tanto ele quanto o leitor constroem, juntos, a trama da narrativa.
O que existia ali não era amor, responsabilidade ou compaixão pelo Outro,
conforme sugere Levinas (2004), mas apego e medo. A sensação de desigualdade
entre eles era, para ele, deleitosa demais. O narrador sentiu-se vitorioso perante ela
e recordava esse momento já com certa repulsa, pois aparentemente percebia que
ela não estava escolhendo uma vida necessariamente melhor ou uma forma de
libertar-se da sobrevivência indigna, mas uma forma diferente de prisão, frente às
imposições que ele colocou já de início. É um propósito parasita: para salvar a si
mesmo de uma existência desagradável, ele planeja uma série de coisas externas,
inclusive o casamento. Ela é externa a ele e ele precisa dela para que o plano
“funcione” e, no entanto, com isso, não existe inter-relação entre os seres, pois ele
não a vê como um sujeito uno e consequentemente Outro. Ele mesmo não se
percebe enquanto um Eu, e o mergulho no subsolo da própria consciência só
começa quando ele reconta esses atos pelo seu próprio ponto de vista. Há um
choque, uma ruptura, no aparente conforto de uma “zona planejada”.
O momento histórico e social não era dos mais favoráveis para os
trabalhadores das classes baixas – já que a Rússia parecia não acompanhar o
desenvolvimento econômico das grandes potências – e a união da jovem com o
usurário parecia mais uma espécie de sacrifício ao qual uma alma humilhada deve
recorrer (GROSSMAN, 1967). O homem tirava-lhe o entusiasmo da juventude que
queria amar: “o frio, o silêncio, o cálculo, o cotidiano medido, decente, mas
rigorosamente econômico: era indispensável juntar trinta mil rublos, a fim de se isolar
para sempre na Crimeia” (DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 132).
O problema, para o homem do subsolo, é que o suicídio da esposa foge ao
planejamento de vida dele, que se percebe criticado e investido pela alteridade da
mulher (LEVINAS, 2004), já que ele procurava exilar-se daquela sociedade
opressora, uma maneira ineficaz de não pertencer a ela. Frente à ação incontornável
da jovem, ele não encontra outra opção a não ser olhar, de fato, para o acontecido:
“pensar não é mais contemplar, mas engajar-se, estar englobado no que se pensa,
estar embarcado – acontecimento dramático do ser-no-mundo” (LEVINAS, 2004, p.
23). O homem, ao planejar objetivamente o que gostaria de fazer, faz outras tantas
42
coisas que não queria, em ações atravessadas por vestígios 15, acreditando que ter
conhecimento sobre a situação miserável da jovem bastaria para que ali nascesse
uma relação plena entre sujeitos, entre consciências que podem dialogar
abertamente. Todavia, agregando a moça à sua rotina e estabelecendo limites para
a manifestação da individualidade dela, tira-lhe a capacidade de ser um Eu que se
manifesta a ele sempre enquanto Outro:
Nossa relação com ele [o Outro] certamente consiste em querer
compreendê-lo, mas esta relação excede a compreensão. Não só
porque o conhecimento de outrem exige, além da curiosidade,
também a simpatia ou amor, maneiras de ser distintas da
contemplação impassível. Mas também porque, na nossa relação
com outrem, este não nos afeta a partir de um conceito. Ele é ente e
conta como tal. (LEVINAS, 2004, p. 26)
15
“É como a caça que, na planície coberta de neve, foge em linha reta do barulho dos caçadores, e
assim acaba por deixar precisamente os vestígios que levarão à sua morte” (LEVINAS, 2004, p. 24).
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mulher imposto pelo do marido, pois não a tornou íntima de sua vida pessoal nem da
profissional, questionando-se, enfim, sobre o silêncio reinante que se instaurou no
relacionamento deles já no início.
Não houve liberdade para a manifestação do amor. Tudo o que o narrador
conhece, em relação às mulheres, é a subordinação: “permitam-me, senhores: eu
sabia que uma mulher, e ainda mais de dezesseis anos, não pode fazer outra coisa
a não ser submeter-se completamente a um homem. Não há originalidade nas
mulheres” (DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 40), assim como não há, segundo o usurário,
originalidade no que a mulher fez, entendendo o suicídio como um ato
completamente incoerente frente à vida que ela levava com ele, protegendo-se num
cercamento próprio que não lhe permitia o diálogo com o Outro, a responsabilidade
infinita para com o Outro (LEVINAS, 2004), numa vaidade desmedida (GROSSMAN,
1967).
Negar a outro indivíduo a sua independência de ente, de Eu, é violentá-lo.
Sentindo-se responsável por ela – mas não de modo a ter por ela compaixão –,
pelos cuidados com a sua existência – de um modo não eficaz –, o homem entende
que, para isso, precisa vencê-la e dominá-la:
A posse é o modo pelo qual um ente, embora existindo, é
parcialmente negado. Não se trata apenas do fato de o ente ser
instrumento e utensílio – quer dizer meio: ele é também fim –
consumível, é alimento e, no gozo, se oferece, se dá, depende de
mim. (LEVINAS, 2004, p. 31)
O trecho de Uma criatura dócil nos aproxima do que Levinas (2004) diz sobre
o sofrimento puro ser aquele que compreende a compaixão pelo próximo e não o
desespero do ser que vislumbra no Outro a sua salvação, num sofrimento inútil. O
narrador não sofre pelo estado frágil em que se encontra a mulher, mas pela
possibilidade de frustração de seus planos que, aparentemente, só se
concretizariam da forma planejada. Não havendo a escuta da esposa, o homem
encontra-se numa espécie de estado inerte:
A dor pode tornar-se o fenômeno central do estado mórbido [...]. O
mal do sofrimento – passividade extrema, impotência, abandono e
solidão – não é ele o inassumível e, assim, por sua não-integração
na unidade de uma ordem e de um sentido, [...] apelo original por
auxílio, por socorro curativo, pelo socorro do outro eu, cuja
alteridade, cuja exterioridade prometem a salvação? (LEVINAS,
2004, p. 131).
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 99), em que ele diz aceitar, de forma ambígua, a esposa
da forma como ela aparecia para ele, rebelde, e, ao mesmo tempo, insiste na
necessidade de ela ter tempo para entender os seus propósitos de uma vida melhor:
“cega, cega! Está morta, não pode ouvir! Você não sabe com que paraíso eu a teria
cercado. O paraíso estava em minha alma, eu o teria plantado em seu redor”
(DOSTOIÉVSKI, 2013, p. 100). Tendo ele chegado mais cedo poderia, na sua ideia,
impedir o suicídio, e que isso não passaria novamente pela cabeça da mulher.
Além disso, o narrador culpa o acaso, mas não vê que ela não se sujeitaria
àquela vida porque, a partir do momento em que ela percebeu que não aguentaria
viver ao lado dele, percebe também a incapacidade de amparar a si mesma num
mundo que não lhe trazia encanto. Não foi um momento: ela extenuara-se
psicologicamente de uma forma irreversível. Nem que suas intenções, finalmente,
fossem as melhores, o homem não poderia tirá-la da rotina, da força que o universo
inteiro exerce sobre o ser humano, já que existir simplesmente é algo quase
sobrenatural.
Para Grossman (1967), o que entendemos da novela clássica é remodulado
com a introdução, nesse gênero reduzido em extensão, das últimas fronteiras da
consciência humana. Partindo de uma ocorrência concreta16, o autor “desvenda a
eterna tragédia do homem” (GROSSMAN, 1976, p. 135), a tragédia do existir. Sobre
a narrativa em si, o crítico argumenta que “nada preencherá o vazio sem fundo da
existência, da qual se retirara o único ser amado, mortalmente ofendido pelas leis do
existir, e que saíra voluntariamente de sob o seu poder” (p. 134). A perspectiva da
responsabilidade do Eu com o Outro, para Levinas (2004), não conhece a
reciprocidade, numa inter-relação dissonante entre os seres. No entanto, o processo
dialógico entre as vozes dos sujeitos deve procurar uma via de mão dupla para que
haja, justamente, o diálogo híbrido que não vise a uma fusão de ideias (BAKHTIN,
2008).
Sabemos que não houve, por parte do narrador, o cuidado para com o Outro
e, consequentemente, a interação viva entre as ideias do Eu e do Outro, já que
aquele pretendia agregar a esposa, sem ouvi-la, ao seu discurso: “[...] na relação ao
16
“Em sua edição de 2 de outubro de 1876, o jornal Golos (A voz), de São Petersburgo, estampava a
notícia do suicídio de uma certa Maria Boríssova, jovem costureira moscovita que viera tentar a sorte
na capital do império. Sozinha na cidade grande, ela caíra na miséria e, por desespero, jogara-se do
alto de um prédio, abraçada a um ícone da Virgem” (BIANCHI. Posfáco. in: DOSTOIÉVSKI, 2013, p.
105).
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“Ser e tornar-se um verdadeiro russo talvez signifique, em última análise, ser e tornar-se irmão de
todos os homens” (DOSTOIÉVSKI apud MACHADO, 2004). Esse imperativo de que todos os seres
são irmãos é bíblico e a sua origem está no Gênesis, expresso na relação entre Caim e Abel.
18
“Mas todo outro homem é amigo, compreende?” (LEVINAS, 2004, p. 160).
19
“Não é um dom do coração, mas do pão da boca” (LEVINAS, 2004).
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indiferença, o cúmplice, e tivesse que responder por esta morte do outro e não
deixá-lo morrer só” (LEVINAS, 2004, p. 237), sendo isso um processo
autoconsciente do ser e não uma solução em si mesma. O ser subterrâneo que se
permite a uma hiperconsciência, num processo cruel consigo e com o entorno,
permite-se, em suma, a uma abertura humana.
Como vimos, o tema central não é o que circunda todos os aspectos trazidos
pela novela, visto que dele o discurso dialógico do narrador sai e a ele retorna, ainda
nos seus processos dialógicos.
A literatura seria um meio de comprender o não aprisionamento do Eu
humano, de confirmar uma identidade na possibilidade de “questionar esta própria
identidade, sua liberdade ilimitada e seu poder, sem fazer que perca sua significação
de único” (LEVINAS, 2004, p. 238). É uma espécie de estabelecimento de
“fronteiras” que contemplem a alteridade: uma identidade que reconhece outras
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Em algumas citações encontradas a partir desta seção foi utilizada a edição de 1981 da referência
Problemas da poética de Dostoiévski, em que se priorizou o capítulo Particularidades do gênero
e temático-composicionais das obras de Dostoiévski.
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O autor não estaria interessado num retrato fiel do mundo, mas num
simulacro dele construído via discurso. Trata-se daqueles elementos que não são
mensuráveis, daquilo que causa o “estranhamento”, conforme os críticos do
Formalismo Russo (SCHNAIDERMAN, 1982), estando a linguagem, o discurso
elaborado para a confecção de uma obra, como um suporte à imagem tida como
inverossímil, mas que se apresenta assustadoramente real.
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era o diálogo socrático e a sátira menipeia (BAKHTIN, 1981). Aquele está composto
pela “confrontação de diferentes pontos de vista sobre um determinado objeto”,
sendo isso entendido por síncrese, e pelas provocações às palavras do falante, o
ideólogo, “levando-o a externar sua opinião e externá-la internamente”, o que é
chamado de anácrise (BAKHTIN, 1981, p. 95). Nessa experimentação, no desafio
entre as ideias, o diálogo socrático introduz na manifestação literária europeia o
sujeito ideológico que encontramos, depois, em Dostoiévski.
O importante não é necessariamente chegar à verdade, mas o processo
ideológico e filosófico até ela, conforme a apresentação que temos do narrador de
Uma criatura dócil. Claro que esses elementos fundamentam boa parte das obras do
autor, mas não as determinam porque, sabemos, elas vão além. O diálogo socrático
em si não se sustenta enquanto gênero dialógico, mas origina outros, entre os quais
o que se aproxima ainda mais das narrativas do artista russo, a sátira menipeia, que
permite o êxito dessas construções ilimitadas e excepcionais de situações, ou seja,
o já aparecimento dos “diálogos no limiar”, na libertação de qualquer
verossimilhança externa, sendo o inabitual interiormente fomentado: “criar situações
extraordinárias para provocar e experimentar uma ideia filosófica” (BAKHTN, 1981,
p. 98).
O fantástico, ou melhor, o insólito, está subordinado à ideologia, que precisa
experimentar a realidade, causando o estranhamento. O narrador da obra aqui
analisada não aceita o fato preciso de que a esposa cometeu suicídio, e a
estranheza está no exame exploratório da sua posição filosófica do mundo – o cruel
mundo em que ele e a esposa estão inseridos –, entrando em conflito com a
perversão de uma espécie de submundo. Tudo o que está concentrado nele, no
universo e no discurso filosófico do indivíduo, é limítrofe e dá-se justamente nessas
últimas questões.
Lembremos do conto O sonho do homem ridículo. Um sujeito claramente
desacreditado do mundo planeja suicidar-se, mas, antes que isso aconteça, cai em
sono profundo e sonha com uma espécie de paraíso, onde tudo e todos se
relacionam de forma absolutamente harmônica, num respeito mútuo pela dignidade
do ser. Ao acordar, percebe-se no “mundo real”, o espaço desapiedado, e busca,
para si e para os outros, essa verdade: a de que vivemos irremediavelmente num
mundo “sem conserto”, mas de que deveríamos ao menos buscar o paraíso em
terra. Ele não encontra, portanto, uma solução em si mesma, mas permite-se ao
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nível, para realizar o seu momento final; o corpo estendido no chão, na rua, aos
olhos do público, como que a afrontar a personagem narradora; os sapatinhos da
jovem ao lado da cama como que a esperar pela reviravolta da circunstância
inesperada e irreversível; e o caixão que limita em muito o espaço em que a mulher
repousará em sono eterno, objeto que será levado da casa na manhã seguinte,
instaurando o pânico nos pensamentos do marido. Todos esses pontos limítrofes ou
geram uma guinada surpreendente, em vias de uma renovação não
necessariamente positiva, ou a possibilidade da morte: “todos os encontros
decisivos do homem com o homem, da consciência com a consciência, sempre se
realizam nos romances de Dostoiévski no ‘infinito’ e ‘pela última vez’ (nos últimos
minutos de crise) [...]” (BAKHTIN, 1981, p. 155), no limite do espaço e do tempo.
Uma das peculiaridades da menipeia, além das mencionadas até então, é o
seu prisma quase jornalístico, que se reporta a acontecimentos de uma época,
levando os problemas relacionados às “últimas questões” aos fatos cotidianos que
envolvem toda a diversidade de camadas sociais. A menipeia foi uma espécie de
preparação para o trabalho polifônico encontrado na literatura de Dostoiévski. Esse
gênero, que se encontra renovado nas criações do autor, é diretamente influenciado
pela perspectiva “invertida” do carnaval21, que desvia o curso normal da rotina e
propõe a eliminação das distâncias hierárquicas entre os sujeitos, num “livre contato
familiar entre os homens” (BAKHTIN, 1981, p. 106). A excentricidade é a palavra de
ordem da cosmovisão carnavalesca, permitindo a revelação (em geral, aqui, via
processo mental) daquilo que é oculto na natureza humana – o que escapa à
compreensão imediata do Outro é justamente o que ele é enquanto Eu, conforme
Levinas (2004) –, numa transformação de valores. Se a distância entre os seres é
eliminada, elimina-se também a distância entre os discursos, ensejando o diálogo
entre as múltiplas vozes.
O cenário petersburguense como que determina o destino dos participantes
ativos daquele século. O carnavalesco seria a suspensão temporária dessa ordem,
percebido na relatividade do mergulho que o indivíduo faz na própria consciência
pela extrema universalidade das questões filosóficas que atravessam o ser,
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O carnaval do qual fala Bakhtin (1981) existe apenas enquanto matéria literária, enquanto discurso,
visto a sua posibilidade de relativizar situações tidas como permanentes. Toda a provisoriedade
dessa visão, o riso desconcertante, as coroações e os destronamentos são elementos do carnaval
medieval, que em muito se distancia da manifestação cultural da atualidade.
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O medo das consequências dos seus atos sórdidos pode ser entendido como
o pontapé inicial para o processo autoconsciente do invidívuo do subterrâneo. A
verdadeira relação dialógica entre os seres se dá na não-indiferença de uns para
com os outros, ultrapassando o ego, o que não ocorre entre o marido e a esposa:
O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade
por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome
grave do que se chama amor do próximo, amor sem Eros, caridade,
amor em que o momento ético domina o momento passional.
(LEVINAS, 2004, p. 143)
possibilidade do amor pleno por outro ser? Como não tiranizá-lo em nome da minha
própria singularidade e em função desse mesmo amor? Para Dostoiévski (apud
TODOROV, 2011),
Amar o homem como a si mesmo, de acordo com o mandamento de
Cristo, é impossível. A lei da personalidade na Terra constrange, o
eu impede. Apenas Cristo podia amar o homem como a si mesmo,
mas Cristo era um ideal constante e eterno ao qual o homem aspira
e, segundo a natureza, deveria aspirar. (p. 307)
Como leitor, o indivíduo pode olhar para a literatura como uma espécie de
exílio, pois pode-se pensar a manifestação literária como um afastamento da
realidade – necessário, talvez, para que se chegue perto dela. O artista que se
afasta de si mesmo para criar, ao mesmo tempo se aproxima. Dostoiévski muitas
vezes parte da própria experiência para ficcionalizar, e não ignora, mesmo sem dar
um rosto definido às personagens, a humanidade como um todo. Um afastamento
em vias de aproximação. O autor procura afastar-se dos pontos de vista do coletivo,
de uma moral preestabelecida, para configurar uma ideologia própria, para pensá-la
também como forma de exílio: o isolamento intensificado pelos abismos ideológicos
que se engendram no processo investigativo da consciêcia dos seus sujeitos
literários.
Já sabemos que a jovem, que não possui voz própria em Uma criatura dócil,
não pode se mesmificar, atar-se a um gesto que não era o dela. Há, como diz o
próprio Dostoiévski, a lei natural que rege os seres, e essa lei é a personalidade.
Exilada num mundo que não era o seu, as suas palavras sofrem uma retaliação tal
que a personagem não possui voz no contexto da narrativa; o seu discurso é
completamente exilado, fazendo parte provavelmente somente da sua interioridade,
visto o seu ato final que parece inconcebível dentro da trama, já que, da parte dela,
não reconhecemos as motivações reais, podendo construí-las apenas pelas
palavras do narrador e pela estrutura social daquele período. Conforme o marido,
estavam ambos desabituados um com o outro, forçados a silêncios, e ela parecia
desacreditar na “vida nova” que o marido lhe impunha, da mesma forma que não
acreditava na “salvação” que ele lhe propusera com o casamento, tirando-a da
miséria. Além das imposições do marido, existe o contraste de uma São Petersburgo
que em nada acolhe os seus sujeitos mais necessitados – “A cidade domina o tempo
todo os homens e pesa sobre os seus destinos” (GROSSMAN, 1967, p. 122). A
moça é um espírito mudo. O exílio já não era mais físico, era um degredo na alma:
ela não podia mais negar a si mesma a sua singularidade.
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Fazemos uma referência direta ao conto “Um coração fraco”, de Dostoiévski, publicado na década
de 1840, em que o autor já faz uma experimentação dinâmica de gêneros e estilos que fomenta o
aparecimento do sujeito questionador tido como o ideólogo e que tem dificuldades em se manter são
no meio em que está inserido (GROSSMAN, 1967).
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“Ser-aí”, em alemão, conforme a terminologia adotada por Heidegger.
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cometer suicídio ela consegue, finalmente, impor a sua presença, ainda que na
ausência, para o marido; ela finalmente se torna Outro.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2009.
______. Prefácio. Trad. Renata Esteves. In: POE, Edgar Allan. A narrativa de A.
Gordon Pym. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
______. Uma criatura dócil. Trad. Fátima Bianchi. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
MIKHAILÓVSKI, Nikolai. Um talento cruel (1882). Trad. Sonia Branco. In: GOMIDE,
Bruno Barretto (org.). Antologia do pensamento crítico russo. São Paulo: Editora
34, 2013.
MOISÉS, Massaud. A novela. In: ______. A criação literária: prosa I. 20 ed. São
Paulo: Cultrix, 2006.
______. Viver com o absoluto. In: ______. A beleza salvará o mundo: Wilde, Rilke
e Tsvetaeva: os aventureiros do absoluto. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL,
2011.