Mãe Balbina Ilha de Mare

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Volume I, número 17, 2021

LEMBRANÇAS DA ILHA DE MARÉ: DIÁLOGOS ENTRE SABERES E FAZERES DE


MÃE BALBINA
Marcos Rodrigues

Resumo: O presente texto é uma versão parcial da pesquisa realizada pelo Programa
de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia. O
objetivo é refletir a relação da memória com as vivências históricas a partir da oralidade
em notas etnográficas registradas sobre a Ilha de Maré e a importância de Mãe Balbina,
líder religiosa durante várias décadas. A entrevista foi a ferramenta utilizada na coleta dos
relatos como elemento metodológico do trabalho de campo.

Palavras-chave: Ilha de Maré; Mãe Balbina; Memória.

Abstract: This text is a partial version of the research carried out by the Graduate
Program in Ethnic and African Studies at the Federal University of Bahia. The objective is
to reflect the relationship between memory and historical experiences based on orality in
ethnographic notes recorded on Ilha de Maré and the importance of Mãe Balbina, religious
leader for several decades. The interview was the instrument for collecting the reports as a
methodological element of the fieldwork.

Keywords: Ilha de Maré; Mãe Balbina; Memory.

Este texto é parte do trabalho de campo realizado na localidade de Praia Grande,


Ilha de Maré, em Salvador (BA), durante o curso de mestrado pelo Programa de Pós-
Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia18. A intenção
é apresentar um breve panorama sobre o local e sua moradora mais ilustre, Mãe Balbina,
conhecida por sua sabedoria e prática religiosa, que marcou época na comunidade local.
O fio de discussão sobre o lugar da memória (BOSI, 2003) perante as vivências históricas
traz depoimentos orais sobre a trajetória de uma liderança social na referida comunidade.
A narrativa que segue é baseada na coleta de informações a partir de entrevistas e no
relatório da pesquisa.
Até então, o local fora locus de pesquisas nas áreas de Nutrição e Biologia da UFBA,

18 Versão parcial da Dissertação de Mestrado intitulada Três Conversas de Barracão


em Praia Grande (Ilha de Maré) hoje, assim como no tempo de Mãe Balbina, defendida e
aprovada em abril de 2012, orientada pelo Prof. Dr. Marcelo N. Bernardo da Cunha.

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além de estudos ambientais de faculdades privadas e grupos ecológicos19. Mais recentes,


surgiram pesquisas em educação e geografia. Na área social, poucos trabalhos foram além
de observação da paisagem e da produção nativa que servem de atrativo ao turismo exótico.
E ainda segue a carência de estudos históricos e antropológicos sobre esse entreposto de
grande importância econômica no período colonial (OLIVEIRA, 2011; RODRIGUES, 2012)

Objeto de várias outras discussões nas áreas de saúde e ambientalismo, a Ilha de


Maré é a segunda em extensão no arquipélago da Baía de Todos os Santos, com quase
14 quilômetros quadrados de área20. Extensão do Subúrbio Ferroviário de Salvador, com
uma população negro-mestiça de baixa renda, a Ilha padece da falta de infra-estrutura e de
serviços públicos básicos. Apesar de incluída numa Área de Proteção Ambiental (APA) pelo
governo21 e ser parte do município de Salvador com um grau de poluição acentuado, a ilha
está mais próxima e voltada ao Recôncavo, territorialmente falando.
Afastada de Salvador, a partir do terminal de São Tomé de Paripe, por apenas nove
milhas náuticas (equivalente a cinco quilômetros), a ilha (fig.1) tornou-se um ponto de
atração turística sem muita estrutura ou local de veraneio para visitantes urbanos. Um
conjunto remanescente de Mata Atlântica divide a paisagem com mangueiras, coqueirais
e bananeiras e compõe um cenário ecológico. O cenário é típico de uma cidade do interior
marcado pelo limite das necessidades básicas de vida.

Figura 1 - Mapa de Salvador com a Ilha de Maré (detalhe).

Fonte: Portable Network Graphics

19 Vale destacar SANTOS, Fábio Rodrigo. Práticas Alimentares em Ilha de Maré. Salvador: ENUFBA,
2008; e Caderno Ambiental Ilha de Maré / Rosiléia Oliveira de Almeida, Edinaldo Luz das Neves, organizadores;
autores, Adriana Pena Godoy... [et al.]. - Salvador: Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE), 2011.
20 Dados da Secretaria Municipal dos Transportes Urbanos e Infra-Estrutura – SETIN
informam que a ilha tem exatamente 13,79 km2.
21 Decreto Estadual 7.595, de 5 de junho de 1999 criou a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baía
de Todos os Santos, conforme publicado no Diário Oficial em 9/6/1999.

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Com uma população estimada em 6.434 habitantes, segundo o censo de 2010, atualmente a
ilha é dividida em oito povoados remanescentes interligados por trilhas. São eles: Botelho, Santana,
Praia Grande, Neves, Itamoabo, Bananeira, Porto dos Cavalos e Martelo. Os mais habitados são
Santana e Praia Grande. O local tem enfrentado alguns riscos que não são recentes e seguem
ignorados, a exemplo da ocupação da Petrobras desde os anos de 1980, considerada uma ameaça
à vida da população local, causa de problemas de saúde aos moradores por contaminação e
poluição aos manguezais (SANTOS, 2008). Esses elementos, como tantos outros, têm ocupado
espaço na imprensa quando ocorre algum fato mais agravante22. Com abordagens que vão desde
os problemas rotineiros de transporte, violência, falta de água e saneamento básico, passando
por focos de doenças até assistência social e lazer, as reportagens dão uma pequena mostra do
cotidiano da população nativa. Todas as necessidades humanas se fazem sentir à medida que
adentramos o território da ilha.

A história local tem início marcado pela chegada dos europeus dispostos a explorar a costa
do Brasil e exterminar a população indígena tupinambá. Há notícia da existência, já no século
XVI, do engenho de propriedade do jesuíta Bartolomeu Pires (SOUSA, 1971), movido à base de
tração animal. Oliveira (2011) confirma a sua origem a partir da colonização portuguesa, através do
sistema de Capitanias Hereditárias, sendo seu primeiro donatário Francisco Pereira Coutinho. É uma
lembrança que não faz mais parte da memória da população local, embora o direito à memória seja
negligenciado na preservação do patrimônio histórico como testemunha de um passado não muito
distante (MAIA, 2003). Assim, o saber de uma comunidade está ligado estreitamente à memória
social que atravessa o tempo e a falta de conexão com a história coletiva fragmentada pelos ciclos
econômicos e pela desassistência social.

22 Reportagens publicadas em versão impressa: jornal A Tarde (14/3/2002; 6/5/2002; 28/7/2003;


13/11/2005; 10/1/2007; 2/3/2008; 29/3/2011; 19/4/2011). Jornal Correio da Bahia (31/8/2004; e 6/8/2005).
Também matéria disponível no site <www.bahianoticias.com.br>, acesso em 10 mar. 2010.

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Entre o final do século XIX e o início do século XX, a cidade do Salvador respirava os
novos ares da República e se adaptava à nova política econômica ainda sob as marcas da
cultura escravista. Na ilha, ainda a presença de três engenhos e várias fazendas, conforme
o levantamento de Oliveira (2011), para um período de intenso fluxo migratório de escravos
fugitivos ou libertos na fase inicial do pós-abolição. O trabalho de Oliveira (2001) indica
que a população negro-mestiça se movimentava em busca de novo rumo, emprego, outros
espaços geralmente quase nada diferente do cativeiro. Esse trânsito se dava basicamente
através do transporte marítimo.
Desde as primeiras décadas do século XX, a população conviveu com as práticas
de cura e rituais caseiros de uma parteira que se instalou na Ilha de Maré, já que não havia
serviço público de saúde por lá. Em Praia Grande, o maior dos oito povoados da ilha, local
da pesquisa, a história de vida de algumas pessoas possui uma raiz em comum: a finada
Balbina23, tendo em vista a sua importância na região. A construção do trabalho etnográfico
requer do pesquisador o movimento de “estar aqui” e “estar lá” (GEERTZ, 2009). Através
de conversas informais, foi possível coletar lembranças mais antigas da vida na ilha,
certamente não muito diferente de toda a região do Recôncavo.
Possivelmente, foi nesse cenário de transição política e social que Balbina e seu marido
Silvano chegaram à Ilha de Maré para fixar residência e se tornar uma liderança popular. A perspectiva
desta breve análise hipotética é que sirva como elemento chave para a compreensão da sua história
de vida. Uma trajetória, mesmo fragmentada, e singular, que se mostra digna de registro na história
da cidade, e até mesmo do candomblé da Bahia. Marcada na memória da comunidade como uma
mulher de coragem, sempre ativa, espiritualizada, bem articulada, parteira, curandeira, atuou numa
época crítica em que as pessoas portadoras de poderes sobrenaturais eram perseguidas, junto com
os terreiros, pelas investidas cruéis da polícia (BRAGA, 1995).

Balbina instalou um terreiro de candomblé em Praia Grande, no alto da Cidade de Palha, na


época local de poucos moradores e acesso não muito fácil. Segundo informação de familiares, no
pé da ladeira, havia uma gameleira que muitos diziam ser mal-assombrada. E lá em cima, no fim da
rua ficava sua casa, de onde era vislumbrar a paisagem marítima, o velejar dos saveiros, o vai e vem
de pescadores e quem vinha na sua direção a desafiar a subida. De acordo com os depoimentos
orais, era considerada a mãe da ilha. Ninguém sabe dizer quando chegou para lá. Sua origem
ainda é imprecisa, em decorrência da escassez de documentação. Daí a memória se constituir um
fenômeno a ser explorado através da oralidade, por estar a pesquisa na zona de fronteira entre o
dizível e o indizível (POLLAK, 1989) de uma memória social subalterna negligenciada pelo estado
dominante. Os moradores mais antigos não hesitam em dizer que a conheceram, tamanho era o
seu prestígio na Ilha de Maré e região. Mãe Bina de Iansã era única no local, requisitada por todos
que precisavam.
23 Balbina Bárbara de Santana, Mãe Bina de Iansã, (hoje lembrada como finada Balbina) era uma mulher
multifacetada para a época em sua comunidade. Era considerada uma pessoa hábil e dotada de poderes
sobrenaturais. Acumulava as funções de líder religiosa, parteira, na médica popular e líder comunitária na
região. Grande parte da população da Ilha de Maré nasceu através de suas mãos.

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Se quase nada sabemos da ascendência de Balbina, seus descendentes fincaram


raiz na ilha. Normalmente as maiores referências são as duas filhas Madalena e Maria
Genoveva (Menininha). Também não se sabe ao certo quanto tempo morou na ilha,
nem quanto tempo durou seu terreiro, mesmo porque, este ainda foi assumido pela filha
Madalena, após o seu falecimento. A especulação deve girar em torno de 50 a 60 anos.
Essas informações certamente se perderam na memória dos entrevistados. Memória que
parece distanciada e destruída pela própria cientificidade da história, lembrando Hobsbawm
(1998).
Conforme análise dos depoimentos, Mãe Balbina parecia ser uma pessoa predestinada
no que fazia. Numa localidade onde a cultura política soprava novos ventos, construiu a
função do amparo e do cuidado, através de atos de caridade, na medida em que também
aumentavam os laços de compadrio. O ofício de parteira é lugar comum na lembrança
de todos. O nome de Balbina é marca registrada na vida da comunidade. A ferramenta da
entrevista semiestruturada foi aplicada com todos os informantes, o que facilitou muito as
respostas e uma boa conversa. Roteiro em mãos, de início as perguntas eram: “A senhora
conheceu a finada Balbina? Quem era ela? Qual sua importância na ilha?”.

Ela tinha muita importância aqui na ilha, era uma parteira aqui de mão
cheia, ela e... sobre também poblema da seita. (...) Antigamente só
tinha ela, era a primeira mãe de santo que tinha aqui na ilha.

(ANADE, 2011)

Era ali... era parteira... durante o dia dava banho na criança, a pessoa
dava o que queria, não tinha preço estipulado, tá entendendo?
agradava ela, era o meio dela... rezar olhado, cobreiro, qualquer coisa
que tivesse ia a ela, não piorava. E uma certa feita foi uma pessoa lá,
ela olhou, olhou, deu um chá, ela chamou o dono do paciente e disse
“olhe respeite o rapaz”. Não tinha mais jeito. Tá entendendo? “Respeite
o rapaz!”, ela não quis dizer: “aqui não dou jeito”. E quando ela dava
jeito, dava o remédio, pronto (dizia): “depois traga ele aqui” e quando
ia lá, já ia bom, trabalhando, e esse ela mandou que respeitasse o
rapaz.

(DONA ADELITA, 2011)

Mulheres aqui de parto, menino atrevessado, a pessoa já arquejando


já pra morrer, e ela colocava na mão, desvirava o menino, salvava a

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pessoa e o menino.

(ANGÉLICA, 2011)

Ela vinha aqui me ver. Meus filho todo foi ela que pegou... Eu só tive
uma em salvador porque foi dois, foi mabaço. Foi Marli e Mario. Aí
Mario morreu, parto demorado. Demorou esse menino... aí morreu
e fiquei com outro, a menina, ela que pegou, ela que me levou pra
cidade, lá na Tsylla Balbino, tive lá. Ela fez acho que 51 anos, que ela
fez, a mais velha. O menino que morreu. Então ela pegou acho que os
filho de todo mundo aqui. Dona Balbina era falada. A gente chamava
ela mãe Balbina.

(DONA MARIA, 2011)

Conheci. Era comadre da minha mãe... Ela fazia parto inclusive... sim
da minha mãe foi ela que fez de todas minhas irmãs... tenho quatro
irmãs.

(DONA JUDITE, 2011)

Ela era uma bela pessoa. Era uma pessoa positiva, ispiciá, ela, porque
não tinha nada, o que ela botasse a mão podia esperar que ia resolver.
Podia ser o que fosse, podia ser esse negócio de esprito, era mulher
de parto, ela pegava, tinha vez que tinha pobrema, não podia ter, a
Mãe Velha dela chegava, fazia o parto, fazia mesmo, e salvava todo
mundo.

(DONA ANGELINA, 2011)

Os depoimentos são precisos não só por se constituírem em documentos de uma memória


oral, mas por terem testemunhado fatos acontecidos. A começar pelo depoimento de Anade, é
possível observar como são fortes as referências de poder atribuídas à sua avó.

P- Como exemplo de vida, como a senhora via a finada Balbina?

Dento do candombré aqui, todo mundo só procurava minha vó Balbina.

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Vinha gente do fim do mundo procurar minha vó Balbina sobre pra


fazer parto e sobre o negócio também do candombré.

P- Algum caso que ela nunca tenha dado jeito?

É... Sobre o caso do candombré, ela dava o jeito mesmo. Agora sobre
da parte do parto, tinha coisas que ela não podia fazer aqui, então
ela juntava com a partoriente e ia pra Salvador fazer o parto lá com
médico. Ela trabalhava com o médico. A pena dela acho que ela não
tinha carteira. O médico dizia a ela: “é pena a senhora não ter... (a
carteira)” 24

P- Mas ela tinha conhecimento...

Tinha, tinha conhecimento, sabia trabalhar, sabia trabalhar e trabalhava


com brabo, não é esse negócio que tem aí hoje, essas besteira não,
ela trabalhava com o diabo brabo mesmo e tirava.

Vale refletir sobre a onda de lembrança versus esquecimento, em que a memória acaba
desprovida da investigação sistemática dos seus agentes (MENESES, 1992) e sem o devido
tratamento histórico. Há que se valorizar os depoimentos orais como documento. O início da
construção do terreiro também é desconhecido. Todos disseram que quando nasceram o terreiro já
existia. Portanto, Mãe Balbina negociou, se legitimou, gerou um grupo hierarquizado a sua volta e
construiu a sua história no local. Em Praia Grande, todos os entrevistados declararam que quando
nasceram, ela já existia, já morava na ilha.

Ela era uma pessoa muito entendida, uma mãe de santo, né?... muito
entendida mesmo. (...) Tudo que ela botava a mão, ela dava conta.
Pessoa muito, muito entendida...

24 Os profissionais de saúde possuíam um documento oficial de classe.

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(DONA JUDITE, 2011)

Era, curadeira mesmo, aquela dali fez muita falta aqui. Gente que
ia pro médico, pra Base Naval, quando voltava dizia: “hum não vai
chegar nem ao caminho”. Chegava aqui, ia pra mão dela, ela labutava,
labutava, botava a pessoa boa, boa mesmo. (...) Era uma mãe de
santo, uma curadeira muito boa. (...) O pessoal tinha muita fé. Tudo
que ela fazia dava certo, curava as pessoas, gente desenganada do
médico e ela curava, botava boa. Ia pra o médico fazia exame tudo,
o médico desenganava, vinha pra ela, gente de longe mesmo, não
era daqui de perto não. De Passé, de Candeias, de Feira de Santana,
de São Francisco do Conde, Caboto... era gente que vinha pra aqui
ruim mesmo desenganada do médico, ela curava. Ela era curadeira
mesmo, a finada Balbina.

(ANGÉLICA, 2011)

Era zeladora, podia a pessoa ter a doença que tivesse... Clarice, uma
prima minha que mora ali, tava com pobrema, levou pra ela, a finada
mãe dela levou, fez remédio botou, oh Clarice aí, ficou boa. Não foi
pra médico, num foi pra lugar nenhum. Ela curava, curadora mesmo.
Curava a pessoa, podia ser doença de médico, pode ser o que for, que
ela botasse a mão, você creia em Deus, podia dizer: tava salvo.

(DONA ANGELINA, 2011)

Balbina se notabilizou nas funções de rezar e curar, além de líder religiosa. Como chefe de
terreiro, organizava sua grande festa no dia 4 de dezembro para Iansã25, atraindo grande número
de pessoas até a ilha. Balbina não é só uma memória imaginada. É uma memória testemunhada.
O valor desta memória está na proximidade dos informantes com os fatos em questão. A pesquisa
reflete a oportunidade de encontrar testemunhos vivos (BOSI, 2003) de um momento pontual que
permeia a geração seguinte. Isso facilita a compreensão da oralidade como ferramenta de registro
da memória, apesar da estrutura excludente do contexto histórico.

As lembranças de Balbina não foram uma criação coletiva. Poderão gerar uma mitologia no
futuro, mas por enquanto mesmo de forma fragmentária, as lembranças são trazidas com precisão
e detalhes. O seu poder de cura se estendia a males desconhecidos pela modernidade e a casos
25 Na Bahia é tradição celebrar Iansã, divindade regente dos raios e tempestades
sincretizada com a Santa Bárbara da igreja católica.

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que a medicina convencional não se habilitava a tratar, tampouco curar. Há até quem diga que era
uma mulher milagrosa. Seu conhecimento sobre as folhas medicinais era vasto e sobre rezas para
qualquer mal, estava ali. Embora o espaço aqui neste trabalho não seja suficiente para todos, os
relatos a seguir dão o aval à sua atuação na Ilha de Maré.

Meu marido mesmo quebrou a perna jogando bola, pra dizer, não tinha
meio de descer pra cidade, nem nada, era aqui mesmo, ela entalou
a perna dele com a tala do dendezeiro e do bambu. Ele levou um
bocado de tempo com ela, que quando tirou, tava até ferido. Formou
uma ferida que o senhor via o osso. Pra dizer que a carne apodreceu
toda, aquela carne, ela pegava a perna dele, Nô chorava como menino
pequeno, ela cortava aquela carne toda, tirava aquilo, lavava tudo que
o senhor chegava a ver esse osso aqui, oh. E ela curou. (...)

Aqui tinha uma criatura que não enxergava. Os olhos dela tava branco,
branco, só o senhor vendo, quase não via nem mais aquela sombrinha
do preto. Ela curou com crista de galo. Todo dia ela pisava aquela
crista de galo botava num pedacinho de pano, espremia aquela água
da crista de galo, da folha e colocava. Aquela vermelhidão, aquela
embranquição que tava nas vista foi saindo, saindo, que o senhor
visse tomava pavor. Quando ela botava, a criatura ficava sentada.
Quando pensava que não, a água começava a escorrer, a escorrer...
quando via, juntava no canto dos olho aquela massa branca, eu sei
que alimpou a vista dela. Ela aí, ia todo dia, ela perguntava: “venha
cá, como é que está?” (a paciente respondeu:) “Oh minha velha, eu tô
vendo que parece um vurtinho”. Quando foi um dia, ela botou o menino
de junto dela, ela (a paciente) fez: “esse daí é fulano”, pronto começou
a enxergar. Pergunta a Baia. Isso aqui foi comentado, falado Deus e
o mundo veio ver, veio espiar. Ela era curadeira mesmo. (ANGÉLICA,
2011)

Seu nome ainda é lembrado com o carinho de quem a conheceu, seja parente ou
não. Os depoimentos são carregados de saudade. Dentre outras informações, cabe lembrar
que à função de parteira de Balbina agregou a de madrinha, gerando a legitimidade de sua
prática e uma grande legião de afilhados, o que demarcava também a hierarquização da
comunidade local através do parentesco e do compadrio.
Seguindo seus passos, quem melhor assumiu os ensinamentos de Balbina foi dona Joana,
uma pessoa muito respeitada em Praia Grande, certamente a sua principal herdeira espiritual.
Cresceu na família como filha de criação e acabou se tornando seu braço direito nos afazeres

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religiosos do terreiro que ficava no alto da Cidade de Palha. Herdou e praticou toda a sabedoria
sobre cura e as habilidades de rezadeira e parteira. Enquanto esteve ao lado de Balbina, aprendera
e fizera de tudo um pouco. Trabalhava intensamente. Além de ajudante de parteira, dona Joana era
uma pequena comerciante de comida típica como mingau, arroz doce e outras iguarias. Quando
começou a constituir família, sua vida passou se dividir entre os afazeres da casa de Balbina e os
filhos. Ela ajudava sempre em tudo, era uma espécie de mãe pequena, a segunda pessoa da casa.
Tudo passava por ela também.

Sua trajetória de curandeira, rezadeira, parteira e mãe de santo tem início na década
de 1940, ou até antes. Os familiares não sabem precisar o momento devido a falta de
preocupação com esse tipo de registro. Em sua modesta moradia, começou a realizar
sessões para Oxossi26 e a coisa foi crescendo devido à procura das pessoas com problemas
espirituais e de saúde. Acolhia sempre disposta a atender por caridade. Não cobrava nada
de ninguém. Grande conhecedora das folhas e suas utilidades, partejou muita gente e
tratou de quem chegou em busca de cura. Mesmo fora da entrevista, outros informantes
confirmam a impressão sobre o volume de conhecimento adquirido, a capacidade de
acolhimento e saber tratar.
Dona Joana sabia receber quem chegasse à sua porta, desde que se identificasse,
claro. Nada de turbante, nem conta no pescoço, nem bata, nem saia longa. Sua roupa
diária era um vestido (tipo robe) e um lenço branco amarrado na cabeça, além de calçar
um chinelinho leve. A frente da casa nada indica ali ser um espaço sagrado, mas a sua
presença já consistia na típica representação, sem nenhum paramento que simbolizasse
esse habitus. Esse comportamento pode ilustrar o que Bourdieu (1979) define como uma
condição humana constituída de práticas estruturantes movidas por tradições. Para o
autor, a experiência social do sujeito determina a capacidade de cognição e avaliação ao
apreender as coisas do mundo. Assim, concebe que as práticas sociais são traduzidas a
partir de preparações identificáveis.
Muito conhecimento acumulado era aplicado apenas em curar o mal passageiro que
alguém sentia. Na voz dos familiares, muita gente, em estado de aflição, chegava em busca
de cura e ninguém voltava do mesmo jeito. Os filhos costumam dar testemunho dos casos,
cuidados por dona Joana, que vinham sem solução de outros lugares. Se fosse o caso de
alguém precisar se iniciar, ela dizia: “agora você vai procurar fulano de tal, isso aí já não é
mais comigo”. No contexto da cura, dona Joana se dava por contente e sua missão parecia
cumprida com aquela pessoa. As duas filhas, Isabel e Nicinha, atestam o grande saber da
mãe e que boa parte já se perdeu. Formar uma família de santo nunca foi do interesse. Dona
Joana não iniciou ninguém e sempre cuidou de tudo sozinha ou com a ajuda dos filhos em
alguns momentos. Por alguns era denominada como “minha enfermeira”, segundo revelou
26 Divindade do candomblé regente das matas na tradição queto e muito popular nos
cultos de caboclo.

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Isabel em entrevista.
Pessoa de importância reconhecida na sua comunidade, dona Joana tem uma
trajetória religiosa e de contribuição social que a simboliza como uma cartilha do saber
popular. Dentre suas habilidades, ficou notório o preparo da garrafada, isto é, produto
medicinal caseiro para todo tipo de doença, seja física ou espiritual. É do conhecimento de
todos na ilha a prática de cura, não só com garrafadas, mas também com reza, banho de
folhas e outros procedimentos hoje utilizados pela medicina alternativa.
A Rua do Beco, um dos principais destinos de quem chega a Praia Grande, é onde
morava dona Joana. Foi lá que estive algumas vezes como simples visitante, antes do
período da pesquisa, ainda sem saber a dimensão da sabedoria que tinha aquela senhora
com jeito de avó, conselheira, dona de sua história. Na casa dos 80 anos, não se mostrava
cansada. Em nada também parecia ser mãe de 14 filhos. O senso de humor fazia parte do
seu perfil. O olhar parecia sempre estar na mira do horizonte. Outrora portadora de uma
conversa franca e descontraída, Joana do Nascimento da Encarnação era uma pessoa que
gozava do respeito e admiração de todos que tiveram a oportunidade de conhecê-la.

Na atualidade, sua memória encontra-se restrita ao grupo familiar ou, no máximo, ao


povo de santo do local. Mais uma vez parece estarmos diante da fronteira do dizível e do
indizível (POLLAK, 1989) de uma memória subalternizada e reduzida a uma imagem imposta
pelas relações do poder. As entrevistas concedidas demonstram que as informações são
circulantes dentro de um limite físico e social, mas nada de forma ostensiva. Sobre o legado
da cura, esse aprendizado poderia ter sido bem mais aproveitado pelas filhas de dona
Joana. Mas elas próprias confessam que já vieram se dar conta muito tarde da importância
desses saberes e fazeres. E ao que parece não foi por falta de aviso nem conselho, pois
todas reconhecem que ela ensinava, conforme relatam nos depoimentos.

Por fim, a discussão temática deste texto consistiu em apresentar algumas notas
etnográficas da Ilha de Maré entre os diálogos que marcaram a trajetória social da finada
Balbina. Seu legado assumido por dona Joana permeia a memória popular chamando
atenção para a importância de construção da sua própria história, além das convenções
estabelecidas pelas teorias dominantes. Aqui apresentei parte do trabalho feito a partir de
depoimentos orais, através da ferramenta da entrevista, durante a pesquisa de campo para
efeito de reflexão sobre o lugar da memória e seu distanciamento da história. Assim, esta
narrativa se propôs a verificar a importância de Mãe Balbina para a comunidade de Praia
Grande e áreas circunvizinhas a partir dos depoimentos coletados como testemunha direta.
Com isso, é possível afirmar a preservação da memória como umas das formas de
construir a história mesmo num plano de subalternidade. A expectativa teórico-metodológica
pode tornar subjetivos interesses outros além do compromisso ético da pesquisa. Daí, o fato

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de não explorar teoricamente os depoimentos por entender o lugar de fala dos entrevistados
em favor do conhecimento. Com esse fim, os estudos etnológicos muito têm contribuído
no campo das relações étnico raciais, através de ferramentas multidisciplinares para a
produção de conhecimento. O trabalho etnográfico não resulta apenas de descrições, mas
também da fala do campo.
Este breve relato sobre Praia Grande e a trajetória destacada de Mãe Balbina foi uma
indicação para a continuação de outras propostas de estudo ou pesquisa a respeito da orali-
dade e seu lugar na pesquisa científica. O caminho trilhado segue aberto a outras abordagens
etnográficas, relações etnicorraciais e histórias de vida. Um mundo de sabedoria por ser reve-
lado em poder de pescadores, marisqueiras, artesãos, ainda não percebido pelos estudiosos
das ciências humanas e sociais. Testemunhos que ainda podem ser encontrados vivos a tempo
de não permitir a subjetividade da história de hábitos e comportamentos pelos métodos e
teorias da imaginação. Vale lembrar ainda que a ilha ainda permanece carente de debates
e estudos na área social em favor de uma melhoria da qualidade de vida da sua população.

REFERÊNCIAS

Fontes orais

Anaildes de Santana (Anade), 75 anos, neta de Balbina. Entrevista concedida em 8/3/2011.

Angélica Pereira Souza, 60 anos, filha de santo de Madalena (filha de Balbina). Entrevista concedida
em 10/7/2011.

Angelina Neves de Neves, 76 anos, comadre de Balbina. Entrevista concedida em 7/3/2011.

Belmérica Adelita Magalhães Matos, 82 anos, comadre de dona Joana. Entrevista concedida em
27/7/2011.

Berenice do Nascimento Neves (Nicinha), 67 anos, e Isabel Maria do Nascimento Pacheco, 56


anos, filhas de dona Joana. Entrevista concedida em 11/9/2011.

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Judite Ferreira de Jesus, 77 anos, amiga de Balbina. Entrevista concedida em 25/4/2011.

Maria Santana Farias de Carvalho, 70 anos, comadre de Balbina. Entrevista concedida em


26/10/2011.

Bibliográficas

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.


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