Rodrigo Estrategia de Acomodacao

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Aeestratégia de acomodacao na ditadura brasileira e eines a influéncia da cultura politica Rodrigo Patto Sa Motta p g paginas | afio 8 - n° 17 Mayo - Agosto / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 / 2016 mt http:/revistapaginas.unr.edu. arfindex.php/RevPaginas Aestratégia de acomodagao na ditadura brasileira ea influéncia da cultura politica La estrategia de acomodacién en la dictadura brasilefa y la influencia de la cultura politica Rodrigo Patto Sa Motta Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil [email protected] Resumo © artigo apresenta reflexdes teéricas sobre os comportamentos sociais diante das ditaduras recentes e sobre as estratégias de dominacao dos regimes autoritarios, com énfase para o caso brasileiro. Dialogando com a historiografia dedicada ao fascismo europeu dos anos 1930/40, texto propde uma tipologia (adesio, acomodacao resist@ncia) capaz de iluminar as relagdes entre os meios universitarios e a ditadura militar brasileira. Além disso, argumenta-se que acomodacao é parte da cultura politica brasileira e que esse caminho de agao explica algumas caracteristicas da peculiar transicao pés-ditatorial, bem como certos impasses do momento atual. Palavras chave Ditadura; cultura polftica; acomodaeao; repressao; resisténcia Resumen E] articulo presenta reflexiones te6ricas sobre los comportamientos sociales durante las dictaduras recientes y sobre las estrategias de dominacion de los regimenes autoritarios, con énfasis en el caso brasileno. Doalogando con la historiografia dedicada al fascismo europeo de los anos 30/40, el texto propone una tipologia (adhesién, acomodacién y resistencia) capaz de iluminar las relaciones entre los medios universitarios y la dictadura militar brasilera, Se argumenta que la acomodacién es parte de la cultura politica brasilenia y que ese camino de accién explica algunas de las caracteristicas de la pecualiar transicién pos dictatorial asf como ciertos impasses del momento actual. Palabras clave Dictadura; cultura politica; acomodacién; represiGn; resistencia Esta obra est sujeta a la Licencia Reconocimiento-NoComercial-Compartirlgual 40 Internacional de Creative Commons. http:/ /creativecommons.org/licenses/by-ne-sa/4.0/ [aera A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica A proposta do artigo é apresentar 0 quadro teérico desenvolvido no livro As universidades e 0 regime militar: modernizago autoritéria e cultura politica brasileira’, em que estudei as politicas universitarias da ditadura e seus impactos na comunidade académica. Mais do que divulgar a discussao tedrica em que se baseou o livro, a intengao é reelabora-la a partir de outros enfoques e leituras realizadas depois da publica¢ao do trabalho. Interessa, em especial, discutir 0 aporte que a historiografia sobre a ocupagao nazista da Europa pode trazer a0 debate teérico sobre os comportamentos sociais diante de estados autoritarios, chamando atengao para o cuidado que é necessario para nos apropriarmos dela, Essa questo foi abordada sumariamente no livro, mas é retomada agora com mais profundidade gracas a temporada de trabalho na Franca que permitiu pesquisar melhor a bibliografia2 Em suma, a ideia 6 contribuir para os estudos sobre as estratégias de poder e de legitimacao da ditadura brasileira, ¢ igualmente para as pesquisas dedicadas aos comportamentos sociais diante do autoritarismo. Quem sabe estas reflexdes serdo titeis, também, para analises comparativas envolvendo outros pafses que viveram situacdo semelhante, Um pressuposto bésico para esta andlise 6 que devem ser evitadas interpretagdes simplistas sobre as ditaduras, pois elas impedem a percepgao da complexidade das estratégias de dominacio estatal. Afinal, mesmo em situacao de ocupacio militar e uso agudo da violéncia, como na Europa dos anos 1930/40, os aparatos estatais buscaram apoio de partes da populasao através de meios mais suaves de governo. Na verdade, essa discusstio implica qualquer forma de Estado. Hé uma tradigfo de pensamento ligada a autores como N. Maquiavel, M, Weber e A. Gramsci que aponta o carater duplo da dominacao estatal, baseada simultaneamente em coer¢ao e consenso. Porém, o retorno aos classicos implicaria percurso te6rico demasiado longo para o escopo deste texto, por isso vamos nos restringir As estratégias de dominagao dos Estados autoritarios do século XX, com éniase no Brasil e Cone Sul. Voltar os olhos para a historiografia dedicada ao caso europeu importa ndo apenas porque ela inspirou novas andlises sobre as ditaduras do Cone Sul, mas também devido & sua apropriacio por atores politicos latino-americanos. Com efeito, antes de existir uma historiografia consolidada sobre a Europa fascista os agentes politicos brasileiros ja se apropriavam de conceitos produzidos do outro lado do Atlantico, A utilizagdo do par antitético resisténcia x colaboracéo para designar os comportamentos diante da ditadura de 1964 foi quase imediata ao evento. Como se sabe, essa conceituagiio derivou do dominio nazista na Europa, expressando visio dicotmica sobre as atitudes das populagdes submetidas ao poder dos conquistadors alemaes e de seus aliados. Integrada cultura da + Rodrigo Patto $4 Motta. As universidades e 0 regime militar: modernizagéo autoritéria e cultura politica brasileira, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2014 2 Entre janeiro e junho de 2016 fui professor visitante do IHEAL, ocupando a Cétedra Simén Bolivar. Agradeco 2 Olivier Compagnon a sugestao de consultaro trabalho de Philippe Burrin. paginas / afo 8 n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 /2016 10 Rodrigo Patto Sa Motta esquerda mundial, tal conceituagao foi aplicada ao Brasil pds-64 por grupos que se imaginavam diante de nova experiéncia fascista. Com isso, os eventos do golpe poderiam ser inscritos em categorias compreensivels para a esquerda, com a vantagem de atribuir aos golpistas brasileiros o rétulo fascista. No entanto, as coisas nao eram tao simples. Havia semelhancas com o contexto dos anos 1930-40, j4 que o anticomunismo era a lingua franca da direita e no grupo vitorioso em 1964 estavam representados os herdeiros locais do fascismo. Porém, a direita fascista era sécia minoritdria do poder e tinha atritos com outros apoiadores do regime militar, de modo que ¢ inconsistente classificar como puramente fascista a ditadura militar pés-1964. Ademais, nfo houve ocupacao por forcas estrangeiras, ao contrario da situacdo europeia nos anos 1940, © que torna o termo “colaboracao” inadequado. f mais correto dizer que alguns grupos participaram, apoiaram ou aderiram ao regime militar ~ que nao era forga externa nem resultado de derrota militar, mas, uma construgdo politica considerada legitima por setores sociais significativos*. Além disso, muitos comportamentos nao podem ser classificados nas opedes extremas, de modo que reduzir as atitudes diante da ditadura a resisténcia ou colaboragao é simplificagao grosseira, No contexto europeu, a historiografia h4 muito questiona a redugio de todas as situagdes ao par dicotdmico e nessa linha tem nos oferecido sugestdes de andlise interessantes. Entretanto, hd que refletir sobre sua adequacao ao contexto dos pafses latino-americanos, para evitar apropriacdes mecanicas. Desde os anos 1970 alguns investigadores da ocupacdo nazista vém criticando construcdes mitolégicas e vises simplistas sobre o comportamento das populacdes derrotadas pelos alemaes. No caso da Franca, o trabalho de Robert Paxton (1973) inaugurou uma linha de pesquisas que iria destruir o mito resistencialista, Esse historiador mostrou a profunda colaboragao entre as autoridades francesas e as forgas de ocupacao alemas, desencadeando uma virada na meméria e também na historiografia que estuda o temas Na década seguinte outros historiadores seguiram pela mesma senda, notadamente Henry Rousso, Pierre Laborie, Philippe Burrin e Jacques Semelin’, Esses autores confirmaram algumas questes apontadas por Paxton, mas, em certos aspectos, criticaram apropriagdes da obra daquele historiador que geraram novas versdes simplistas. 0 mito de uma maioria resistente ao nazismo (¢ a seus aliados), com justeza criticado A luz das novas pesquisas, acabou por alimentar um 2 Algumas pesquisas de opinigo feitas 4 época revelam esse apoio, embora os mimeros (e sua interpretagio) sempre possam ser questionados. Rodrigo Pato S4 Motta. O golpe de 1964 ¢ a ditadura nas pesquisas de opiniao. Revista Tempo, Niteréi, vol.20, 2014:1-21 + Robert Paxton. La France de Vichy, 1940-44. Paris, Editions du Seull, 1974. Efetto semelhante € convergente teve o filme de Marcel Ophuls (Le Chagrin et la Pitié), que foi langado no mesmo perfodo. 5 Henry Rousso. Le Syndrome de Vichy. Paris, Editions du Seuil, 1987; Pierre Laborie. L’Opinion frangaise sous Vichy. Paris, Editions du Seuil, 1989; Philippe Burrin, La France é heure allemande: 1940-1944, Paris, Editions du Seuil, 1995; Jacques Semelin. Sans armes face d Hitler, la resistance civile en Europe. Payot et Rivages, 1989 paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 “W A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica contra mito igualmente simplificador: a maioria teria colaborado com o nazismo. Esse debate, inevitavelmente explosivo, foi acompanhado de intimeras polémicas historiograficas, disputas politicas e conflitos de meméria ao longo das tiltimas trés décadas, provocando batalhas em torno do revisionismo e da judicializagao da memoria. Importa ressaltar que a partir dessas polémicas foram produzidas analises mais sofisticadas e menos dicotémicas sobre os comportamentos diante dos vencedores nazistas. Nessa linha, destaque-se a contribuigao de Pierre Laborie que, ao estudar as flutuagdes de opiniao questionou a versdo de que 40 milhées de franceses haviam se transformado, da noite para o dia, de colaboradores em resistentes, de petainistas em gaullistas. Para construir seu argumento ele apontou as ambivaléncias presentes época, a complexidade do sentimento attentiste® e as zonas de sombra, propondo que as pessoas poderiam ser, por exemplo, petainistas e resistentes ao mesmo tempo; acreditar que o Marechal Petdin pretendia proteger a Franca e, simultaneamente, torcer pela vitéria dos aliados; e poderiam mostrar- se superficialmente de acordo com a nova ordem enquanto escondiam seus pensamentos (as vezes atitudes) rebeldes, Outro autor a destacar é Philippe Burrin, que utilizou 0 termo acomodacao para expressar as atitudes dos setores da sociedade derrotada que nao resistiram aos vitoriosos, preferindo adaptar-se ao novo regime, Partindo do pressuposto de que tal acomodacao foi voluntaria, seu objetivo foi explicar as diferentes gradacoes € motivos que a inspiraram, fazendo um amplo estudo com foco em diferentes setores da sociedade francesa, desde politicos a empresdrios, passando por intelectuais e artistas. Para Burrin, quatro elementos motivaram a acomodacéo com a ordem nazista: a sensacio de constrangimento, o interesse material, a complacéncia pessoal ea conivéncia ideolégica. Embora se reconheca a qualidade e a contribuicdo original do seu trabalho, uma das criticas & categoria acomodagao de Burrin é que ela nao se distingue bem de colaboragao. 0 leitor fica em dtivida sobre os limites entre os comportamentos de acomodagaio e de colaboracio, se eles seriam efetivamente duas categorias distintas ou, na esséncia, o mesmo fendmeno Chama a atencfo na historiografia dos anos 1980 e 1990 a tendéncia a relegar a segundo plano as ages de resisténcia, decerto um desdobramento da recusa ao mito resistencialista, Mesmo em um trabalho que foge a essa tendéncia, como o de Jacques Semelin (Sans armes face & Hitler, la resistance civile en Europe), 0 propésito foi enfocar um tipo de resisténcia ndo convencional, a chamada resisténcia civil. De qualquer modo, o autor contribuiu para manter 0 tema da resisténcia em debate e propds uma tipologia mais ampla para classificar © Uma expressao dificil de traduair, mas significa que muitas pessoas preferiram esperar os acontecimentos a engajar-se ativamente, mesmo odiando os alemaes e repudiando o colaboracionismo, Mas, Laborie argumenta que 0 atentismo dos franceses se tornou cada vez mais, simptico a resistncia. Pierre Laborie. L'Opinion francaise... Op. Cit, p.313 paginas / afo 8 n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 /2016 12 Rodrigo Patto Sa Motta as atitudes da populacao civil diante dos ocupantes: colaboracao, acomodagio ou resisténcia” Como foi dito, tais pesquisas tém sido inspiradoras para pensar as relacies de dominagio e 0 comportamento politico no quadro das ditaduras latino- americanas. Em especial, elas estimularam a questionar os mitos sobre a resisténcia e a pesquisar o fenémeno do apoio e do consentimento aos Estados ditatoriais, o que amplia a compreensio sobre as bases sustentadoras do poder autoritario® No entanto, sua apropriacio deve ser cuidadosa devido as ja mencionadas diferengas de contexto, pois, além da auséncia de ocupacio estrangeira, a direita que subiu ao poder no Cone Sul nos anos 1960/70 tinha composicao ideolégica diferente do bloco fascista dos anos 1940, notadamente devido a influéncia marcante do liberalismo. Voltando a atengio para o caso brasileiro, e A pesquisa sobre as universidades sob a ditadura, a proposta foi utilizar a triade adesao, resisténcia ou acomodagio para classificar as relacdes entre o Estado autoritario e os meios académico-cientificos. Em outras palavras, defende-se que essa triade resume as principais atitudes da comunidade académica diante da ditadura erigida em 1964. Algumas pessoas ¢ instituigdes promoveram aces que podem ser classificadas em dois ou nos trés tipos, em momentos diferentes ou simultaneamente, de modo que “ou” em alguns casos foi “e” (por exemplo, resist@ncia e acomodacao}. A preferéncia pelo termo adesao no lugar de colaboragao deve-se a razdes jA apontadas. 0 golpe de 1964 nao derivou de derrota e ocupacao estrangeira, ainda que o apoio da poténcia norte-americana tenha sido essencial. Ele foi um levante liderado pelas forgas de direita que contou com apoio de parte da sociedade (especialmente nas classes média ¢ alta), em luta contra processo de mudancas socials de viés esquerdista que estava acontecendo durante 0 governo de Joao Goulart. E houve muitas adesdes A ditadura no mundo académico, que recrutou ali importantes quadros politicos e técnicos que serviram aos sucessivos governs militares. Quanto a resisténcia defende-se 0 uso da mesma expressio, embora algumas de suas caracterfsticas tenham sido diferentes em relagio ao contexto europeu. Mesmo assim, no presente caso também se pode conceituar resisténcia como conjunto de atos de recusa coletiva ao poder institufdo, que podem se 7 Jacques Semelin. Sans armes face &.., Op. Cit, p.341. 8.0 debate historiografico europen contribuiu para uma nova pauta de pesquisas no Brasil, como nos trabalhos cle Daniel Aarao Reis Filho (Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 2000), por exemplo, que mostram os limites do mito da resisténcia e sua manipulagio nas batalhas da meméria pés-ditadura. Outra autora importante & Denise Rollemberg, tanto em textos préprios como na obra coletiva 4 construcdo social dos regimes autoritdrios: legitimidade, consenso € consentimento no século XX (Rio de Janeiro, Civilizacao Brasileira, 2010), que coordenou junto com Samantha Quadrat e refine textos sobre o Brasil e demais paises do Cone Sul. Vale a pena consultar também os textos da seguinte coletnea: Rodrigo Patto S4 Motta (org) Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Belo Horizonte, Editora da URMG, 2015. paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 13, A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica expressar de diferentes maneiras. Nos espacos universitérios houve intimeras aces de resisténcia, na maioria protagonizadas pelos estudantes como passeatas, paralisacdes de aulas e divulgaco de produtos culturais censurados; ¢ também atos mais agudos como as ocupagées de edificios, sem esquecer que muitos estudantes foram recrutados por organizagdes armadas (embora com atuacao fora dos campi). 0 aspecto mais original e polémico do trabalho foi analisar as estratégias e os jogos de acomodacdo envolvendo a ditadura e os meios académicos Comecemes discutindo a peculiaridade do uso do termo acomodacao frente & conceituacio produzida pela historiografla europela. Embora na época da produgao do livro (4s universidades ¢ o regime militar) desconhecesse o trabalho de P. Burrin, as reflexes sobre acomodagao partiram de quest4o semelhante: como se comportaram certos segmentos socials submetidos a regime autoritario? Porém, acomodacao no caso brasileiro tem duas singularidades que implicam conceito diferente, Primeiro, ela integra o repertério da cultura politica brasileira, portanto, nao é produto de situagao autoritéria episédica, Segundo, a acomodagao nao foi somente uma maneira de adaptar-se a ditadura: tratou-se de jogo de mao dupla, que envolvia 0 Estado e o mundo académico/cientifico. Voltaremos a esse ponto logo adiante, para esclarecer melhor a ideia, Faz-se necessdrio apresentar sumariamente 0 que se entende por cultura politica brasileira e seu elemento chave, a acomodacio, antes de abordar sua incidéncia no periodo ditatorial, Cultura politica seria um conjunto de representagdes, valores e padrdes de comportamento politico comuns a determinado grupo, sem que isso signifique qualquer forma de atavismo. 0 campo da politica supde o protagonismo de agentes que fazem escolhas: ha sempre margem para a opefo entre diferentes caminhos de aco. O argumento é que as escolhas podem sofrer a influéncia da cultura politica, que oferece aos agentes alguns padrées de aco ja inscritos nas tradicées, mais atraentes e vidveis por terem gerado sucesso em ocasides anteriores. Assim, ndo h4 porque supor oposigao entre a influéncia de padrdes culturais e a escolha dos agentes politicos. A cultura politica indica caminhos ¢ estratégias com maiores chances de sucesso que, por isso, podem tornar-se opgdes interessantes para os agentes envolvidos Embora a cultura politica implique relagdes sociais, valores culturais e imaginarios estruturados, portanto, bem enraizados na sociedade, isso nao significa que mudangas sejam imposstveis, Alids, a grande crise que o Brasil vive hoje talvez. soja um marco para mudangas estruturais na cultura politica. ° Conceituacao inspirada em Jacques Semelin. Sans armes face a... Op. Cit. p.79. Ainda ha muito 0 que debater sobre o significado de resisténcia no contexto ditatorial brasileiro. A esse respeito conferir os textos de Daniel Aarao Reis Filho. “Ditadura e sociedade: as reconstrucées da meméria” © Marcelo Ridenti. "Resisténcia e mistificagao da resisténcia armada contra a ditadura: armadilhas para os pesquisadores” em Daniel Aarao Reis Filho, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto S4 Motta (org). Ogolpe ea ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, Eduse, 2004. paginas / afo 8 n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 /2016 14 Rodrigo Patto Sa Motta Hé que lembrar alguns precursores do debate sobre a cultura brasileira: G. Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque, J. Hondrio Rodrigues, R. DaMatta, ensafstas argutos, mas as vezes defensores de posigdes conservadoras que certamente descarto. Mesmo assim, eles elaboraram insights interessantes para pensar a cultura politica brasileira, ao apontar temas como o patrimonialismo, a cordialidade, o paternalismo, o personalismo, a flexibilidade, a ojeriza a conflitos e a busca de integracdo, e a conciliagao. Desse conjunto gostaria de destacar dois elementos: a conciliacdo ¢ 0 personalismo. No caso do personalismo, trata-se da primazia dos lagos pessoais em detrimento de relacdes impessoais. Trocando em mitidos, na sua atuacio politica os brasileiros privilegiariam a fidelidade a lagos de parentesco, amizade, compadrio ou patronagem a revelia de normas com baixa adesio a projetos politicos impessoais. Evidentemente, todos esses elementos esto ligados A sociedade patriarcal e escravista nas origens do Brasil, 0 que gerou concentragao do poder em infima elite, restrigdes de acesso & cultura e educacio e auséncia de democracia no Estado € nos espagos sociais. 0 fim da escravidao, a Repiiblica e outros processos de mudanga posteriores ndo lograram romper totalmente com os problemas originais, Seguiram influentes 0 clientelismo, o elitismo, 0 patrimonialismo, a fragil identificagio dos cidadaos com as instituigdes (em especial os partidos), 0 pouco aprego e a escassa participagdo nos espagos piiblicos. E também a baixa adesio/respeito 4s normas institucionais, percebidas como ilegitimas, e a busca de alternativas para driblar o sistema legal. Ressalte-se que a fraca participacao popular na politica institucional nao significa ignorancia, ao contrario, por vezes ela revela a percepgiio de que o universo da “grande” politica exclui os setores socials subalternos. Alids, a exclusio politica dos setores populares era e & um objetivo permanente dos grupos dominantes, que para esse efeito usaram nao apenas a repressio, mas também estratégias sutis de negociagio, de conciliagio ou acomodagio, Nosso argumento & que af esté a origem dos jogos de acomodagao, que se tornaram tradicionais integrados 4 cultura politica. 0 medo dos escravos ¢ © fantasma do haitianismo explicam as estratégias de acomodagio politica dos grupos dirigentes brasileiros no século XIX, a comegar pela peculiar negociagio do processo de Independéncia (com o proprio Estado portugués, a que se pagou wna indenizagio), a manutengao da unidade das ex-coldnias portuguesas (uma faganha baseada em violéncia e acordo) e até outras acomodacdes posteriores, chegando ao processo de criagao da Reptblica sem povo de 1889. Nas décadas seguintes ocorreram novos jogos de acomodagio, inclusive durante a ditadura, como seré discutido logo a seguir, e também em anos recentes, como ser abordado na conclusio. Antes de retornar A ditadura mais recente, um Ultimo comentirio. Os ensaistas que primeiro refletiram sobre o tema tenderam a privilegiar 0 termo conciliagdo, enquanto nesta proposta de andlise a preferéncia é por acomodagao. As duas expressdes tém sentidos proximos e sugerem a ideia de acordos, niversais, paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 15 A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica negociagdes e flexibilidade, Mas ha algumas peculiaridades que gostaria de destacar. A preferéncia por acomodagao no lugar de conciliagao é porque o primeiro termo permite expressar sentidos mais amplos. A conciliagao na tradi¢ao brasileira significa 0 acordo politico realizado nas altas esferas do poder, envolvendo os grupos dirigentes do Estado. Acomodacao, tal como é utilizada aqui, permite integrar esse sentido e incluir também arranjos realizados em outros espagos sociais institucionais com envolvimento de outros atores, como académicos, cientistas, intelectuais ¢ produtores culturais.2° Como sera mostrado adiante, acomodagao permite expressar melhor a ideia de que mesmo em uma ditadura houve oportunidades para acomodar intelectuais ¢ académicos do campo oposicionista, em um jogo de miituas concessées entre Estado e atores sociais.!! Portanto, um aspecto importante da acomodacao é que ela envolve os dois campos; para o jogo funcionar, hé que existir uma via de mao dupla, embora se trate de situagdes de poder assimétricas. Voltemos nossos olhos, agora, para o tema das relagdes entre a ditadura e as, universidades. © objetivo do trabalho era entender o proceso de modernizagao conservadora/autoritéria da ditadura na drea do ensino superior e da pesquisa. O argumento 6 que a moderniza¢do/reforma das universidades durante a ditadura (que conheceram enorme expansio de quadros e de recursos"2) estava conectada a dois objetivos: a) 0 sucesso do projeto autoritario, pois a modernizagao universitaria era peca importante nos planos desenvolvimentistas da ditadura; b) a estratégia de acomoda¢io, com a tentativa de seduzir a elite académica/cientifica por melo do aumento dos investimentos nas universidades e da reduco da repressio. Durante a ditadura militar brasileira, para os dirigentes e demais membros da comunidade universitéria houve possibilidades intermediarias entre aderir ou resistir. Muitos procuraram maneiras de se acomodar ao novo sistema de poder, sem que isso significasse, a seus olhos, qualquer compromisso com o regime militar, Pessoas que no desejavam aderir, por nao partilhar os valores dominantes, mas que também nao tinham intengao de resistir frontalmente ao Estado autoritério - por medo da punic3o ou por achar imitil -, buscaram estratégias de conviver com ele, inclusive como forma de reduzir os efeitos da repressio. Do seu ponto de vista, tratava-se de explorar possibilidades abertas pelo préprio regime militar, usando-as com o objetivo de atenuar o autoritarismo. ite 19 Eventualmente, a que demandaria outras pesquisas, podemos pensar também em jogos de acomodagao capazes de envolver setores populares. #1 Acomodagao agrada-me também por sugerir uma interessante imagem metaférica, inspirada no fendmeno geol6gico. © Foram criadas novas universidades piiblicas, federais ¢ estaduais, houve grande ampliagao dos corpos docente e discente. Ademais, foi criado um programa de dedicagao exclusiva para docentes de universidades piiblicas, houve aumento de salarios e do niimero de bolsas ¢ a implantagao de um, sistema de p6s-graduagio. paginas / afo 8 n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 /2016 16 Rodrigo Patto Sa Motta Alguns pesquisadores j4 notaram a ambiguidade ¢ a ambivaléncia de certos personagens diante da ditadura.! Entretanto, 6 necessario perceber que a acomodagio, tal como esta sendo analisada aqui, implicava via de mao dupla, ou seja, o Estado também era ambiguo. Alguns agentes sociais (no caso, Iideres académicos) aceitavam conviver com o regime militar, mas este também precisava fazer concessées, de outro modo o arranjo nao seria possivel. Do lado dos intelectuais e profissionais da academia, alguns atores aceitavam a convivéncia com o regime autoritari inclusive ocupando cargos ofici do lado do Estado, certos agentes toleravam a presenca de intelectuais ideologicamente suspeitos em cargos ptiblicos, bem como arranjos para flexibilizar a repressao. Tratava-se de jogo em que o Estado procurava atrair o intelectual/professor e este precisava moderar suas opinides e comportamentos. Entretanto, o Estado igualmente cedia ao transigir com os valores do “inimigo” ~ por vezes contrarios aos seus - ¢ ao permitir sua circulagdo, ainda que em verses fracas. A flexibilidade estava presente nos dois lados. A flexibilidade que possibilitou tais estratégias de acomodacao se devia, em parte, A heterogeneidade da base de apoio do regime militar, que contava com alas favordveis & moderag’o no uso da violéncia. Entretanto, foi fundamental a influéncia da cultura polftica brasileira, Os atores aceitavam colocar em pritica essas estratégias porque elas faziam parte do repertério a disposi¢ao, com bons resultados em situagdes anteriores, Por exemplo, durante a ditadura do Estado Novo, regime igualmente anticomunista, o governo também tolerou a presenca de intelectuais de esquerda no cendrio piblico, alguns a seu servigo direto ou indireto.1* Gracas A estratégia de acomodagao, as iniciativas repressivas As vezes foram suavizadas por meios indiretos, subterfiigios, negociagdes, arranjos, protelacao burocrética, © funcionamento dessas estratégias geralmente envolvia o estabelecimento de compromissos pessoais, elemento também integrante do repertério da cultura brasileira, Por um lado, a motivacéo para aceitar acordos decorria da presenga de lagos entre os agentes envolvidos, ligagdes que para muitos superavam a fidelidade a preceitos formais. De outro lado, a lealdade pessoal era indispensdvel para 0 sucesso de acordos informais, construidos revelia das normas. Esse tipo de situagao nem sempre foi vidvel, porque certos agentes ndo se mostravam inclinados a compromissos, ou porque, obviamente, 0 regime nao estava disposto a tolerar algumas transgressdes ¢ alguns inimigos. Ainda assim, chama atengao o mimero de casos em que se tentaram estratégias de acomodagio, muitas vezes com sucesso. e repressor, por vezes is; 18 Daniel aro Reis Filho. Ditadura militar, esquerdas...e Denise Rollemberg “As trincheiras da meméria. A Associacio Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974)". In Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, A construgdo social dos regimes autoritérios... Op. Cit, p.97-144. Aqui vale lembrar os trabalhos de Sérgio Miceli (Intelectuais é brasileira, $0 Paulo, Companhia das Letras, 2001) sobre “cooptario” de intelectuais pelo Estado nas primeiras décadas do século XX. No entanto, a perspectiva tebrica adotada neste trabalho é diferente, baseada no conceito de acomodacae. paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 7 A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica Varios intelectuais perseguidos tinham contatos pessoais em posigdes de poder, a que poderiam recorrer nas horas dificeis: um tio general; uma esposa parente de governador ou de um deputado federal; um amigo de infancia que se tornara agente do SNI (Servigo Nacional de Informagdes); um primo que tinha amizade estreita com influente general da reserva; um pai amigo de juizes importantes; um parente com boas relagdes com o diretor do DOPS (Departamento de Ordem Politica e Social); um amigo capaz. de mobilizar um bispo ~ entre outros exemplos colhidos na pesquisa. Cerca de metade dos entrevistados (em um total de 50) para o livro relatou algum episédio do género, envolvendo a si mesmos ou tercelros. Era natural e conforme aos costumes do pats recorrer as relagdes socials naquelas circunstancias ¢ muitos dos que tiveram a chance fizeram-no. Parentes e amigos ajudavam os perseguidos mesmo discordando de suas ideias, por entender que 0 vinculo pessoal falava mais alto que consideragdes politico-ideolégicas. Nao é possivel detalhar os casos de acomodacao analisados no livro, ressaltando que foram registrados nao apenas em entrevistas como também na documentacao dos érgios de informagao, Vejamos sumariamente alguns exemplos, com 0 objetivo de esclarecer o argumento, Em algumas instituigdes, houve acordos para a escolha de dirigentes de universidades e entidades cientificas que fossem aceitaveis tanto para a ditadura como para os meios académicos. Em meio aos expurgos de docentes foram feitas negociagdes para evitar algumas demissbes, de modo que alguns quadros esquerdistas permaneceram em seus postos. De maneira parecida, houve arranjos para permitir a contratacao de docentes bloqueados pelos érgios de informagao, resultando em que o expurgo da esquerda nas instit vro, des académicas nao foi completo. De modo semelhante, foram feitas negociacdes para evitar a punicao de estudantes rebeldes, sempre com objetivo de nao aumentar tensdes que poderiam gerar mais protestos. Acordos também foram feitos para liberar eventos culturais e académicos inicialmente proibidos, e do mesmo modo para autorizar a concessao de bolsas a pesquisadores esquerdistas. Um iltimo exemplo, significative: 0 CEBRAP (Centro Brasileiro de Andlise e Planejamento), uma entidade de pesquisa fundada em 1969 por intelectuais expurgados da Universidade de Sao Paulo, teve a sua criacio mediada por negociacdo com 0 comando militar da area. Outro aspecto da acomodagdo nos meios cientificos ¢ intelectuais deve ser destacado. A ampliacao do sistema universitario e das instituicées de pesquisa abriu oportunidades interessantes de carreira, descortinando um horizonte de expectativas positivas. Um dos objetivos do projeto era exatamente empolgar as liderangas académicas e afasté-las da contestagao radical. Muitos Ifderes académicos julgavam que seu engajamento na reforma universitaria da ditadura e na ampliagao de infraestrutura de pesquisa e pés-graduacdo se justificava em nome do interesse do pats. Nessa dtica, aproveitar os investimentos do regime militar e dirigi-los para fins produtivos era percebido como forma de servir aos interesses nacionais, e nao a um governo especifico. Assim, inimeros professores paginas / afo 8 n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 /2016 18 Rodrigo Patto Sa Motta que se opunham & ditadura chefiaram departamentos universitarios, laboratérios ¢ grupos de pesquisa, e também trabalharam em assessorias e consultorias para agéncias oficiais como CNPq, Capes e Finep. Ponto de vista semelhante foi adotado por algumas pessoas que aceitaram cargos na maquina do governo. Trata-se de situacao realmente paradoxal: 0 caso de intelectuais com origem na esquerda contratados para cargos no préprio Estado autoritério. A situaglo é de fato estranha, pois muitos desses intelectuals ou técnicos foram perseguidos nos anos iniciais da ditadura, sofrendo demissio, as vezes prisio, tendo passaportes bloqueados e outros tipos de restri¢ao. Quando foram contratados - ressaltando-se que no se tratava apenas de cargos de docéncia, mas de posicdes em ministérios e empresas piiblicas -, continuaram sob a vigilancia dos érgios de informagao, que algumas vezes atacaram a “infiltracao comunista” nos governos da “Revolucio”.*° f realmente paradoxal que académicos pertencentes ao campo esquerdista ¢ anteriormente presos pela ditadura como José Leite Lopes, Simon Schwartzman, Hélio Pontes, José Israel Vargas, Warwick Kerr, entre outros, tenham assumido cargos oficiais em universidades e instituigdes de pesquisa. A situacao paradoxal, raiando a contradicao, provoca duas perguntas: por que o Estado contratava pessoas que considerava do campo inimigo? Por que elas aceitavam? Pela tica do Estado, a explicagao era sobretudo o interesse em aproveitar quadros competentes e acomodé-los em posigdes estratégicas. Em alguns casos, os contratados nao esposavam mais ideias radicais, porém, tampouco partilhavam os valores do regime militar. Do ponto de vista desses intelectuais ¢ cientistas tratava-se de trabalhar em beneficio do pais, como registraram em memérias ou em entrevistas. Além disso, As vezes aceitavam cargos por perceber a natureza paradoxal da ditadura, que tinha figuras influentes nao comprometidas com a maquina repressiva e mobilizadas por um projeto modernizador com rasgos “cordiais” ~ ou seja, mais acomodacao e menos coersao. Assim, os que aceitaram posigdes oficiais no periodo da ditadura nao se consideravam ciimplices de estratégia de cooptacao do Estado, mas agentes sagazes que se aproveitavam dos paradoxos do regime militar para produzir agdes titeis e de interesse puiblico, como proteger colegas perseguidos ou fomentar o desenvolvimento nacional. Alids, desenvolvimentismo e nacionalismo serviram de ponte a aproximar intelectuais de oposigao e setores do regime militar, que de fato se engajou em projeto desenvolvimentista, embora de corte elitista e autoritario, como no préprio caso da modernizagio universitéria, Por esse caminho transitaram alguns intelectuais de oposigao como a economista Maria da Conceigao Tavares, que era professora de universidade federal e pesquisadora da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), drgdo de pesquisa do governo federal. A propésito, Tavares ofereceu uma declaracao interessante em entrevista publicada nos anos 1980: 45 Como no episédio da lista publicada pelo Ministro do Exército general Sylvio Frota, em novembro de 1977, no contexto de disputas internas ditadura. A referida lista continha nomes de 97 servicores piiblicos federais acusados de serem comunistas. paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 19 A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica Veja as contradigses do Estado brasileiro: vocé Iuta apoiado por estruturas do préprio Estado. ... Nés somos o tinico pais da América Latina em que se lutou de dentro da universidade, com dinheiro do governo, contra 0 préprio governo.*6 Referindo-se aos cargos docentes em geral ¢ nfo apenas aos cargos de confianga, a declaracio da professora aponta para o viés da luta contra o autoritarismo, da resisténcia, De fato, alguns professores e pesquisadores que trabalhavam em instituigdes oficiais fizeram criticas As politicas do governo ¢ participaram de atos de resisténcia, Entretanto, nesse jogo havia também acomodagao, ja que criticas agudas e piiblicas poderiam gerar agdes repressivas. A essa légica estavam particularmente sujeitos os ocupantes de cargos de confianga Mesmo que nao tivessem afinidade ideolégica com a ditadura, os detentores de cargos oficiais precisavam portar-se de maneira discreta, sob 0 risco, evidentemente, de perder a posicao. Em meio a tantas ambiguidades e paradoxos, nao deveria causar espanto o fato de, ainda assim, alguns dirigentes de érgaos oficiais terem usado seus cargos para ages que talvez nao possam ser classificadas como de resisténcia, mas que, ao menos, reduziram os efeitos da repressio. Usaram a acomodacao para minorar o autoritarismo ao proteger alguns alvos da repressio, De qualquer modo, é importante nao exagerar. Nem todos tiveram chance de usar meios de acomodagao e nem sempre essas iniciativas geraram bons frutos. Quaisquer possibilidades de tolerancia ou flexibilidade por parte de agentes do Estado repressivo estavam limitadas pela percepsao da gravidade dos atos, ou da “periculosidade” das pessoas envolvidas. Assim, os suspeitos de pertencimento a grupos revoluciondrios eram tratados com mais rigor, sendo mais dificil estabelecer arranjos para livré-los. Os casos de professores detidos por mais tempo, sobretudo os que sofreram tortura, em geral envolviam suspeita de participacao em (ou apoio a) grupos revoluciondrios clandestinos, Importante lembrar também que o aparato repressivo assassinou ao menos cinco docentes universitarios, entre eles Ana Rosa Kucinski, Vladimir Herzog e Lincoln Bicalho Roque, além de dezenas de estudantes, na maioria militantes dos grupos revoluciondrios, Mas, o exercicio constante da violéncia, inclusive com tortura e assassinatos, nao muda o fato de que a ditadura também utilizou (ou permitiu que fossem utilizados) estratégias de acomodagao para manter o seu poder. Levar em conta essa outra faceta 6 necessdrio para um quadro mais completo da histéria da ditadura, assim como para entender dilemas presentes até hoje. % Disponivel em: _http://www.canalciencia ibict.br/notaveis/tstphp2id=38, (Consulta: 17/05/2011] paginas / aio 8— n° 17 / ISSN 1851-202X / pp. 2-25 /2016 20 Rodrigo Patto Sa Motta A acomodagio na ditadura teve efeitos paradoxais, que permanecem sujeitos a diivida e debate polémico. Vale a pena destacar a utilidade do conceito acomodagio no lugar de outras opgdes dispontveis, como cooptagio, que sugere um sentido mais pejorativo. Esses intelectuais e cientistas nao foram meramente cooptados, nao aderiram & ditadura nem se colocaram a servico da maquina repressiva, E algumas vezes usaram seus cargos ou seus contatos para proteger pessoas perseguidas pelas forcas da repressio, contribuindo para a manutencao de alguns intelectuais de esquerda nas instituigdes académicas e cientificas. A propésito, devido a tal flexibilidade foram contratados profissionais de outras partes da América Latina que fugiam da represso em seus paises. Também por af se explica porque foi permitida a circulacdo limitada de valores inspirados na esquerda, inclusive alguns textos de K. Marx, cuja obra nao foi objeto de censura oficial” Com isso, apesar dos esforcos da repressio, as ideias de esquerda se disseminaram nas universidades durante os anos da ditadura. No fim do processo elas eram mais influentes do que haviam sido antes do golpe de 1964, embora 0 comunismo estivesse em crise ¢ superado por “novas esquerdas’, e o marxismo fosse consumido pelos jovens em doses superticiais. Porém, fica a diivida sobre o resultado final da acomodacao, pois, apesar de algumas derrotas da ditadura na batalha das ideias, tais aces nao necessariamente enfraqueceram 0 Estado autoritério, A acomodagao certamente atrapalhou e minou o poder da ala radical da ditadura que, por isso, nao conseguiu fazer o expurgo completo de seus inimigos. Entretanto, ao mesmo tempo, as estratégias de acomodagao tornaram mais suave para o Estado a gestiio do mundo académico, na medida em que reduziram as tenses. Os jogos sutis de acomodagao fortaleceram a banda moderada da ditadura, mas no debilitaram o regime autoritario como um todo, Em outras palavras, eles podem ter contribufdo para atenuar 0 autoritarismo e incentivar o lado moderado da ditadura, Mas, se de wn lado isso reduzia a violéncia, de outro aumentava as chances de um duradouro regime autoritdrio, ainda que menos sangrento em comparag4o com seus vizinhos A estratégia de acomodagio nao necessariamente abreviou 0 retorno a democracia, Pode ter gerado 0 contrario, ou seja, um regime autoritario mais duradouro. Outro desdobramento negativo desse proceso foi facilitar para os lideres da ditadura negociar uma safda suave do poder. Nao é & toa que o Brasil é 0 tnico pais do cone sul sem processos de investigago criminal contra os agentes da ditadura. H4 um elevado grau de adesio aos acordos suaves, a bizarra ideia de anistia como perdao reciproco - consubstanciada na lei de anistia de 1979, ainda em vigor. Com base na andlise desenvolvida nestas paginas é possivel afirmar que 27 A censura proibiu obras de marxistas revoluciondrios, como Lenin, Mao e Guevara, mas nio os livros do préprio K. Marx (que teve alguns textos vendidos em bancas de revista a partir de 1974), 0 discurso oficial era anticomunista, mas no necessariamente antimarxista, entre outras razées porque nao se pretendia ferir a sensibilidade de aliados liberais e para nao oferecer uma prova cabal de que havia censura liberdade de pensamento, paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 2 A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica a disposigdo de aceitar a acomodagao pés-ditadura foi influenciada pelos jogos de acomodagao permitidos durante a ditadura, que envolveram nao apenas as elites académicas e culturais, como também parte das liderangas politicas. Fundamental, portanto, perceber que a acomodagio serviu para reduzir os conflitos durante a ditadura. Um fendmeno inscrito na cultura politica, mas também uma opsao dos agentes estatais e sociais em a¢ao no contexto. A pesquisa que gerou o livro teve como foco central as elites académico-cientificas, mas, vale a pena investigar a possibilidade de incluir no mesmo escopo tedrico outros grupos sociais que se acomodaram a ditadura, como os produtores culturais e artistas e mesmo as elites politicas tradicionais. Tal linha de anélise é importante por oferecer compreensio menos dicotdmica da ditadura, mais abrangente. Também porque ajuda a entender os impasses da transigdio pés-autoritéria e as dificuldades para superar inteiramente a ditadura, o que implicaria julgar os crimes e seus autores, identificando claramente os responsdveis. Porém, e retomando a andlise sobre a historiografia dedicada 4 Europa nazista, hd que ter cuidado com os riscos do exagero. A critica contra visbes simplistas dicotdmicas nao deve recair no mesmo erro, ainda que em diregao oposta. Em outras palavras, ao mostrar a importancia da acomodagao o propésito nao é relegar a segundo plano as agées de resisténcia. Nem todos aderiram & ditadura, nem todos se acomodaram, muitos atores lutaram contra o Estado autoritério utilizando-se de diferentes meios. Indispensdvel analisar de maneira equilibrada tais fenémenos - tio complexos como polémicos -, com atengao também para as mudangas ao longo do tempo, em que ocorreram oscilagdes na intensidade das agdes de resisténcia, de adesio e/ou de acomodagao com a ditadura, e também no comportamento de muitos atores No caso do Brasil, ademais, é importante considerar que largas faixas da populaso mostraram-se indiferentes ou alheias aos grandes embates politicos, 0 que corresponde a situagiio de tradicional exclusio politica, Para além da exclusio social e da pobreza extrema, e muitas vezes em combinacao com tais fendmenos, existe a exclusdo politica de grupos sociais marginalizados da cidadania, inclusive do direito ao voto, Vale a pena lembrar que os analfabetos s6 conquistaram 0 direito ao voto no Brasil em 1988. Alids, a estratégia de acomodacao e a tentativa de evitar conflitos politicos graves respondia exatamente ao desejo de nao atrair para o cenério politico esses setores populares excluidos. Assim, para uma andlise adequada dos comportamentos sociais diante da ditadura, ha que considerar nao apenas os que aderiram, resistiram e/ou se acomodaram, mas também os indiferentes e os excluidos. Nao poderia concluir este artigo sem mencionar 0 momento de grave crise politica no Brasil, que traz.a tona os impasses da cultura politica e risco de novo paginas / aio 8— n° 17 / ISSN 1851-202X / pp. 2-25 /2016 22 Rodrigo Patto Sa Motta surto autoritério. O pais encontra-se diante de conflitos semelhantes aos vividos em anos passados, com suas instituigdes democraticas mostrando-se mais frageis do que nunca, Uma crise que consterna tanto mais porque encerrou um periodo positivo, em que tivemos crescimento econdmico com reducao das desigualdades sociais, sob o comando dos governos petistas. No entanto, para ter sucesso, 0 projeto de poder do PT e Lula se rendeu a tradico politica brasileira, depois de alguns anos tentando mudar as coisas por meio de combate frontal. Perceberam a fraca disposisao da maioria para apoiar solug possibilidades de utilizar o personalismo em favor do projeto de esquerda. Decidiram, pois, render-se a cultura e As tradigdes politicas para ter chances de ganhar as eleigées, e para ter meios de governar depois da vitéria eleitoral. jes radicais e também as Protagonizaram, assim, mais um episédio de conciliac4o/acomodacao. Como tem sido comum na histéria brasileira, 0 governo de Lula iniciou um processo de mudangas ambiguo, uma espécie de modernizagao conservadora, mas com a novidade de possuir um viés de esquerda, A estratégia da acomodagao tem servido historicamente para preservar a ordem e evitar rupturas sociais, como foi mostrado. Mas, também pode servir para abrir caminho a projetos de mudangas lentas, ainda que isso signifique assumir certos riscos. Foi esse o caminho tentado pelos governos petistas, ao aceitarem arranjo que integrou setores conservadores ao governo de esquerda e manteve (ou reforcou) os piores aspectos do sistema politico bras como uma pré-condigio para chegar ao poder e realizar as almejadas mudancas socials. Protagonizaram uma acomodagio com segmentos da classe dominante, porém, com o objetivo de gerar a inclusdo social, embora lentamente. E, de fato, os governos petistas impulsionaram parte da agenda de mudangas sociais, apesar dos seus scios conservadores. Se considerarmos que a politica é a arte do possivel, ou se evocarmos a ética da responsabilidade de Max Weber, 0 projeto lulista ¢ compreensivel e até aceitavel. E por muito tempo pareceu funcionar perfeitamente, trazendo beneficios aos mais pobres e implantando politicas sociais, educacionais e culturais avangadas. Mas faltou algo al, Se pretendia realmente manter-se fiel d ideia de mudangas, 0 projeto nfo poderia ter se acomodado inteiramente ao sistema politico, a velha cultura politica. Claro que nao é facil mudar tradigdes arraigadas Mas para que serve um partido de esquerda? Haveria que tentar! Faltou uma estratégia para mudar o sistema politico tradicional, que as liderangas petistas parecem ter acreditado poder controlar para sempre, & base de fisiologismo e corrupeao. Ha uma responsabilidade grave do PT nesse ponto: imaginando-se 0 linico partido decente © representative do povo, preferiu manter 0 apoio dos outros com base na corrupsdo, desistindo da possibilidade de melhorar o sistema partidario. Uma democracia pluralista precisa de partidos representativos, consistentes, ¢ parece que os governos petistas contribufram para piorar o quadro. Ao privilegiar lacos baseados na corrupcao 0 governo montou base de apoio fragil ro. Entretanto, fizeram-no paginas | afo 8— n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 [2016 23 A estratégia de acomodacao na ditadura brasileira e a influéncia da cultura politica e cavou sua sepultura, pois os “aliados” abandonaram o barco rapidamente na hora da crise, ja que nao estavam ali devido a outras conviccdes A conciliacdo que estava na base dos governos petistas ruiu, Em meio a essa derrocada politica 0 pais ficou dividido entre favordveis e contrarios ao impeachment de Dilma Rousseff, polarizacao que em muitos casos se combinou com 0 confronto direita x esquerda. Nos meses iniciais de 2016 viu-se o aumento espetacular dos protestos de rua, tanto de um lado como do outro do espectro ideolégico. E aprofundou-se 0 aumento da influéncia dos valores direitistas, especialmente entre a classe média, uma tendéncia que ja vinha se desenhando nos liltimos anos, Nesse quadro de polarizagao e radicalizacdo, chegou-se a imaginar que a campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff terminaria levando a confrontos violentos. Em especial porque muitos cidadaos, notadamente os mais jovens, vinham mostrando indisposico para acordos. Por isso, talvez. essa crise venha a ser um marco, uma quebra de paradigmas no que toca aos comportamentos e valores politicos, Ela ter4 forca para gerar uma nova cultura politica? Estamos presenciando a formagao de uma cidadania mais envolvida com as lutas politicas, mais visceral, mais conflitiva? Menos tolerante com estratégias de acomodacao? Serdo m da tradicional conciliacao brasileira? £ muito cedo para responder a tais questées. Além do mais, 0 préprio processo de impeachment resultou de grande concilia¢ao, que envolveu a maioria da elite politica (uma parte da qual virou as costas repentinamente ao ex-aliado PT), as grandes empresas de mfdia, 0 sistema judiclario e as corporaces empresariais. Todos esses grupos aceitaram que a Constitui¢ao fosse manipulada para permitir a retirada de Rousseff do poder, pois fingiram acreditar na tese de que ela cometeu crime de responsabilidade, Além disso, a persisténcia da estratégia de acomodagio aparece em algumas tentativas do governo de Michel ‘Temer para arrefecer os animos da oposico, com base na reiteracio do discurso tradicional de que os brasileiros nao so dados ao édio politico. Além do discurso, alguns gestos do novo governo indicam a tentativa de acomodar-se com setores da oposicao, Acordos parecidos aos que vimos sob a ditadura ocorrem hoje na area da cultura e na gesto de algumas entidades cientificas, com Iideres aceitando trabalhar para um governo esptirio em nome de interesses maiores. Veremos em breve se comecou no Brasil uma fase de conflitos politicos mais intensos ou se os animos vao ser arrefecidos por meio de novas conciliacdes. Tomara que nao! Pois a acomodagio significa reduzir os confrontos, mas também postergar a solugo dos problemas. Além disso, no presente momento ela interessa especialmente consolidagdo do governo de Michel Temer, que 6 fruto de um esptirio processo de impeachment. paginas / afo 8 n° 17 / ISSN 1851-992X / pp. 9-25 /2016 24 Rodrigo Patto Sa Motta Bibliografia André Singer. Sentidos do Lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. Sao Paulo, Companhia das Letras, 2012 Daniel Aardo Reis Filho. 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