2021 - Felipe Sotto Maior Cruz, Tese - Letalidade Branca, Negacionismo e Violência Anti-Indígena.
2021 - Felipe Sotto Maior Cruz, Tese - Letalidade Branca, Negacionismo e Violência Anti-Indígena.
2021 - Felipe Sotto Maior Cruz, Tese - Letalidade Branca, Negacionismo e Violência Anti-Indígena.
LETALIDADE BRANCA
Negacionismo, violência anti-indígena e as políticas de genocídio
BRASÍLIA
2021
FELIPE SOTTO MAIOR CRUZ
LETALIDADE BRANCA
Negacionismo, violência anti-indígena e as políticas de genocídio
Brasília
2021
Ficha catalográfica elaborada automaticamente,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Cruz, Felipe S. M.
Cl Letalidade Branca. Negacionismo, violência anti-indígena
e as políticas de genocídio / Felipe S. M. Cruz; orientador
Luis Abraham Cayón Durán; co-orientador Alcida R. Ramos. --
Brasília, 2022.
219 p.
A LETALIDADE BRANCA
Negacionismo, violência anti-indígena e as políticas de genocídio
Banca Examinadora
____________________________________________________
Dr. Luis Abraham Cayón Durán - PPGAS/UnB
(Presidente)
____________________________________________________
Dra. Alcida Rita Ramos – PPGAS/UnB
(Presidenta)
____________________________________________________
Dra. Sílvia Maria Ferreira Guimarães - PPGAS/UnB
(Membro Interno)
____________________________________________________
Dr. Luís Henrique Eloy Amado – APIB
(Membro Externo)
____________________________________________________
Dra. Diana Lenton - UBA
(Membro Exerno)
Aos indígenas mais velhos. Com a sua licença e benção.
Agradecimentos
A escrita ................................................................................................................... 56
1 Jaqueline (Kunã) Aranduhá é indígena e antropóloga do povo Guarani-Kaiowá. A fala acima foi
proferida em 18 de outubro de 2021 na palestra “Povos Indígenas: Acesso a direitos em contextos de
violências no Brasil”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_pzD3n6Kh-U&t=7152s.
18
Introdução
O foco de estudo da presente tese de doutoramento surgiu a partir da
confluência de inúmeros acontecimentos que marcaram a minha trajetória enquanto
um sujeito indígena, e de eventos que, percebidos em uma escala nacional e até mesmo
global, me conectaram a outras experiências indígenas. Foi a partir dessa associação
que o tema da violência contra os povos indígenas passou a se impor cada vez mais na
minha mirada como um tema de pesquisa incontornável, impossível de desviar o
olhar. Processos contemporâneos de ataque aos direitos indígenas e catástrofes
ambientais iminentes, recorrentes e evitáveis, como o caso de Mariana e de
Brumadinho, ambas em Minas Gerais, suscitaram em mim a necessidade de entender
a conjuntura atual da vida dos povos indígenas no Brasil a partir do elemento da
violência contínua e onipresente que unifica nossas experiências de norte a sul do país
e através do tempo. Como entender essa violência e o que ela diz acerca da sociedade
construída sobre e em torno dos nossos territórios é, portanto, meu ponto de partida.
equilíbrio local. Como alguém que faz parte da comunidade, mas que nasceu já na
Nova Aldeia, no sítio escolhido para o reassentamento da população, o meu objetivo
foi elaborar uma narrativa que representasse o modo como esse processo foi
vivenciado pelos próprios indígenas, cujas vozes foram silenciadas ao longo dos anos.
Durante a pesquisa, me deparei com os relatos da brutalidade de anos de
irregularidades compensatórias, acordos não cumpridos, frustrações, apagamentos e
medo do futuro. A comunidade Tuxá segue até o presente, após mais de três décadas,
sem um desfecho para o que tinha sido acordado como compensação nos acordos
firmados com a empresa.
Dentre as motivações que me levaram a realizar essa pesquisa de mestrado,
destaco, primeiramente, a percepção de que a formação em antropologia poderia ser
usada como uma plataforma de enunciação, uma ferramenta estratégica para que as
vozes e experiências da minha comunidade e de meus parentes fossem ampliadas,
para serem ouvidas e para ecoarem em outros espaços. Em segundo lugar, eu buscava
entender como foi possível que a comunidade Tuxá tenha sido retirada do seu
território tradicional, o rio São Francisco, que foi parado em sucessivas barragens, e,
ainda assim, trinta anos depois, poucos avanços terem ocorrido em relação aos acordos
de compensação firmados, que previam a demarcação de uma nova reserva indígena
para esse povo. Todo esse processo que marcou e continua a estruturar a minha
experiência enquanto Tuxá no mundo parece, aos meus olhos, não causar a devida
indignação entre os não indígenas.
A expressão “quando a terra sair”, que deu título ao meu trabalho, tomava
como referência uma máxima repetida pelos meus parentes que informava os nossos
cotidianos: a espera pela terra, a terra prometida, a terra de direito, a terra nossa por
justiça, que até o presente não nos foi entregue. Quando estava em Brasília, ao final da
escrita da dissertação, no dia 03 de outubro de 2015, recebi a notícia do falecimento do
meu avô, Antônio Vieira Cruz, que ocupou a função de conselheiro da nossa
comunidade por décadas. Enquanto conselheiro, era afeito ao uso das palavras, e por
ter viajado pelo país em inúmeras andanças, era como um diplomata. Conhecia bem
os brancos e foi um guerreiro incansável pela demarcação e compensação de nossas
terras. Ele morreu sem ver a terra sair. Muitos outros velhos morrem em minha
20
2Discutiremos uma boa parte desses projetos ao longo desse texto e sugerimos a plataforma virtual do
Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND), vinculada à Universidade de Brasília, para
acompanhar o andamento dos mesmos. Disponível em: http://obind.eco.br/)
22
para onde a lama tóxica escorreu. A comunidade Naô Xohã de indígenas Pataxó e
Pataxó Hã Hã Hãe teve o seu modo de vida destruído com a morte do rio Paraopeba,
onde nas margens viviam, e ainda hoje seguem reivindicando da Vale a realocação
para outro território. Essa lama destrutiva que polui e mata pessoas, rios e
ecossistemas, alcançou também o rio São Francisco, onde vive a minha comunidade,
localizada a mais de 1.500 km quilômetros de distância.
Quatro anos antes de Brumadinho, em 5 de novembro de 2015, outra barragem
de rejeitos de minério de ferro da empresa Samarco já havia rompido em Mariana,
também em Minas Gerais. Esse rompimento foi responsável pela liberação de 55
milhões de metros cúbicos de lama tóxica no leito do Rio Doce, que foi tida como o
maior crime ambiental do país. Como relata Ailton Krenak, o seu povo foi amplamente
afetado por esse crime:
O Watu, esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce, entre Minas
Gerais e o Espírito Santo, numa extensão de seiscentos quilômetros, está todo
coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de
resíduos, o que nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma. Faz um ano
e meio que esse crime — que não pode ser chamado de acidente — atingiu as
nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo
que acabou. (Krenak, 2019, p. 22).
Os Krenak já haviam sido afetados anteriormente por empreendimentos
catastróficos. Inaugurada em 2005, a Usina Hidrelétrica de Aimorés, no Rio Doce, foi
construída sem que esse povo fosse consultado durante o processo de licenciamento
ambiental. Ao contrário, os Krenak nem sequer tinham conhecimento a seu respeito.4
O empreendimento foi responsável por gerar redução de peixes e insegurança
alimentar na comunidade, e afetou a sua relação com o rio graças à alteração do seu
fluxo natural rumo ao mar.
Assim como Watu era um amigo querido do povo Krenak, o Rio São Francisco,
Opará, como o denominamos, também o é para o povo Tuxá. Após a inundação de
nosso antigo território, o rio mudou, a comunidade mudou, e foram necessários
muitos anos para que todos na comunidade conseguissem reorganizar suas memórias
4 Conferir http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/mg-aimores-cidade-construida-a-beira-
do-rio-doce-tem-seu-rio-suprimido-da-paisagem-por-obra-de-grandes-empresas-de-mineracao-e-
siderurgia-povo-krenak-sequer-foi-consultado-e-considerado-no-eia-rim/
26
do passado e seus planos para o futuro após tamanha violência. Esse processo de
reorganização teve seu ponto alto ao final de agosto de 2017, quando a Justiça Federal
decretou uma sentença a favor da comunidade por danos morais e coletivos a serem
indenizados pela FUNAI e pela União. A sentença reconhece a tradicionalidade do
território D’Zorobabé nas margens do Rio São Francisco, e culminou em um processo
de autodemarcação desse território ancestral pela comunidade, que cansada de
esperar pela regularização fundiária, ocupou permanentemente e demarcou uma área
que fica defronte ao antigo aldeamento Tuxá submerso. (Durazzo, 2020).
Recentemente, outro empreendimento parece ameaçar a comunidade Tuxá.
Trata-se de um projeto de construção de uma usina nuclear no município de Itacuruba,
em Pernambuco. De acordo com o relatório Violência Contra os Povos Indígenas, de 2019
produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) “quase uma década após os
primeiros estudos, o atual governo pretende reativar o plano para a construção desta
usina nuclear”, que prejudicará, “além dos povos indígenas da região, todas as
populações quilombolas, ribeirinhas, pescadoras e agriculturas serão gravemente
afetadas” (CIMI, 2019, p. 76). Ouvimos falar dessa usina nuclear por muitos anos, mas,
durante o atual governo de Jair Bolsonaro, esse assunto parece se tornar mais real,
próximo e ameaçador do que nunca.
Quando olhados isoladamente, os exemplos mencionados acima parecem, a
princípio, eventos descontínuos no tempo e no espaço. Separados por décadas e por
milhares de quilômetros, evidenciam focos de tensões entre comunidades indígenas e
projetos de desenvolvimento aparentemente pouco relacionados entre si. Todavia, se
os pensarmos do ponto de vista de uma história indígena do sofrimento, essas mesmas
ações fazem parte de um conjunto de ações, normalmente justificadas por ideias vagas
de desenvolvimento e progresso, empreendidas contra os povos indígenas e suas
terras desde 1500. Assim como a lama de Brumadinho alcançou o rio São Francisco,
que está a centenas de quilômetros de distância do local do rompimento, e assim como
os Krenak foram, anos após sofrerem os impactos da Barragem de Aimorés,
novamente alvo de mais um crime, decorrente da tragédia de Mariana, os povos
indígenas no Brasil enfrentam sucessivas ondas destrutivas de suas vidas e das bases
essenciais para sua reprodução cultural e física. Quando olhadas como um conjunto,
27
O problema de pesquisa
O que chamei anteriormente de redimensionamento do modo de perceber a
violência contra os povos indígenas implica em considerar esse fenômeno como
constitutivo das experiências desses povos nos territórios clamados pelo colonialismo
europeu. Para o escopo analítico dessa tese, isso significa tomar a violência não como
expressão de eventos descoordenados, dispersos no tempo e no espaço, e sim como
expressão de uma teia estruturada para a obliteração da existência indígena. Inúmeros
desafios metodológicos e teóricos emergem desse enquadramento, tendo como
limitação inicial o recorte temporal para o desenvolvimento e sustentação do
argumento. Como falar de uma violência que dura mais de cinco séculos e por onde
começar?
Destarte, algumas considerações sobre a noção de violência se fazem
necessárias. De uma perspectiva antropológica, encontrar uma definição
28
5 Cross-cultural.
29
quais ações contam ou não como violência. Os atos que tomaremos aqui, que ocorrem
no campo intersocietário e interétnico brasileiro, possuem efeitos conhecidos em
ambas as partes envolvidas, ainda que possam parcialmente não convergir em seus
significados. Estamos falando de um processo de interação que, embora se desenrole
em temporalidades múltiplas, envolve sempre um certo acúmulo de conhecimentos
recíprocos, que remonta ao início da invasão europeia. Se, há séculos, os povos
indígenas observam, analisam e experimentam os brancos, o mesmo certamente pode
ser dito do contrário.
Para além da busca metodológica por uma definição do fenômeno da violência,
podemos perguntar, por exemplo, o que a motiva, ou quais situações podem levar a
despertar comportamentos violentos entre os indivíduos. Para alguns, a violência tem
muitas vezes um caráter instrumental e tático, sendo um meio para alcançar
determinado fim. Embora indivíduos possam cometer crimes violentos para alcançar
seus objetivos escusos, essa perspectiva implica em considerar uma racionalidade na
prática de tais ações que acaba por ignorar o papel que as instabilidades emocionais,
que quase sempre estão envolvidas nesses processos, desempenham (Corbin, 1976;
Riches, 1986; Krohn-Hassen, 1994). Outros apelarão a uma ideia fraca de biologia e de
natureza humana como essencialmente violentas, associando a agressividade à
irracionalidade e bestialidade, através de comparações com o comportamento de
outros animais. Tal visão parece se fazer presente na perspectiva hobbesiana sobre o
surgimento do Estado, uma vez que Hobbes caracteriza a vida em sociedade pré-
estatal como um estado de guerra de todos contra todos, onde homens são lobos de si
próprios, homo homini lupus. A consequência desse processo, se Weber estiver correto,
é que o Estado suprime essas tendências violentas dos seres humanos apenas e na
medida em que toma para si o exercício e monopólio legítimo do uso da força e da
violência.
O antropólogo Patrick Wolfe (2006) nos oferece um valioso insight inicial para o
entendimento da violência contra os povos indígenas. Para o autor, o colonialismo
europeu pautou relações com os povos originários dentro do que ele nomeou de uma
lógica essencialmente eliminatória. Na colônia, esses povos representam obstáculos
para o acesso à terra. Assim, para se tornarem alvos em potencial, tudo que precisam
30
fazer é permanecer em suas casas, em seus territórios. O autor afirma que o motivo
primário para a sua eliminação não era a raça (religião, etnicidade, escala civilizatória,
etc.) mas o acesso a territórios. Logo, a territorialidade é o elemento específico
irredutível e indissociável do colonialismo (Wolfe, 2006: 388). Acrescenta ainda que a
própria etimologia do termo “indígena” utilizado para nomear os nativos, evidencia
que povos são considerados indígenas, justamente, por serem “originários do local”.
Desse modo, o lugar onde eles estão é, ao mesmo tempo, quem eles são. Como veremos
a seguir, essa indissociabilidade é importante, uma vez que a dimensão territorial
presente nos entendimentos sobre a terra e na territorialidade do empreendimento
colonial é o eixo comum que nos permite unificar as diferentes manifestações da
violência contra esses povos ao longo dos séculos.
Considerando o que Wolfe chamou de lógica da eliminação, não há surpresa
em afirmarmos que as colônias europeias eram lugares de horror e barbárie para os
povos indígenas. Constituíam aquilo que Taussig (1987) descreve, a partir de seu
trabalho sobre o Putumayo, espaços da morte, lugares onde a violência é endêmica e
a cultura do terror floresce pela elaboração contínua do medo. Nas palavras de
Mbembe (2017: 128), “o terror colonial entretém-se constantemente com fantasias de
barbárie, de morte e ficções, com o intuito de criar o efeito do real”. Durante o primeiro
século de colonização, os povos indígenas foram drasticamente reduzidos. O número
de indígenas que viviam nas Américas antes da colonização varia amplamente de
fonte para fonte, dados arqueológicos e relatos de viajantes oscilam entre 8-15 milhões
e 40-100 milhões de pessoas (Denevan, 1992). Stannard (1993), por sua vez, afirma que,
de cada 20 indígenas que habitavam esses continentes, apenas um sobreviveu às
primeiras ondas de colonização, devido a massacres e à rápida disseminação de
patógenos. O sucesso e propósito da redução demográfica fica evidente ao
considerarmos que, hoje, no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), a presença indígena contabilizada é de 0,4% da população total.
Os acervos documentais coloniais, os museus e as historiografias dessas nações
são registros exaustivos das mortes de mundos indígenas. São como contos da
letalidade dessas nações, das chacinas, dos extermínios, do cativeiro, da escravidão,
dos assassinatos, das guerras justas, das perseguições, dos massacres e da pestilência
31
uma história que pauta a chegada dos europeus nas Américas como “descobrimento”
e não como “invasão”, ou que saúda como heróis bandeirantes e figuras históricas
responsáveis pela caçada e extermínio de aldeias e povos indígenas, quilombos e
outras resistências no Brasil Colônia. Tratando-se de história indígena, algumas das
periodizações recorrentemente utilizadas por pesquisadores, como “Brasil Colônia”,
“Império” e “República”, parecem arbitrárias e pouco significativas se considerarmos,
por exemplo, a história da questão fundiária e a regularização das terras indígenas
nesses distintos períodos. Da perspectiva dos estudos sobre indigenismo, outros
marcos aparecem, como o das frentes de territorialização levantados por João Pacheco
de Oliveira Filho (2004) a respeito do Nordeste Indígena. Outros irão desencadear
momentos históricos a partir das diferentes agências centralizadoras de políticas
indígenas como o Diretório dos Índios, o Serviço de Proteção do Índio e a Fundação
Nacional do Índio. Para aqueles interessados em argumentar a favor dos direitos
indígenas, as Constituições Federais, sobretudo a de 1988, constituem importantes
marcos e divisores de águas. Como poderíamos operar, portanto, num estudo sobre o
fenômeno da violência anti-indígena? Quais estruturas e arranjos políticos definem ou
culminam em rupturas no modo como ela – a violência – se manifesta no tempo e
espaço?
Ao contrário do que gostaríamos de acreditar, a violência contra povos
indígenas não é um fenômeno do passado, tampouco ficou restrita ao terror da colônia.
No ano de 2016, a relatora especial de direitos indígenas da Organização das Nações
Unidas (ONU), Victoria Tauli Corpus (End of Mission, 2016), atestou a sua
preocupação com a situação dos povos indígenas no país. Em seu relatório, chamou
atenção para a situação de descaso e de profunda marginalização a que esses povos
foram submetidos na última década. Destacou a impunidade em casos de violações de
direitos indígenas, criminalização e assassinatos de lideranças, relatos de tortura e
prisões arbitrárias, morosidade sistemática na demarcação de terras, alcoolismo,
adoções ilegais de crianças indígenas e elevados índices de mortalidade infantil e
suicídio. (End of Mission, 2016) Mencionou ainda o importante Relatório de Violência
Contra os Povos Indígenas do Brasil, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário
(CIMI) pela primeira vez em 1996, e que passou a ser publicado anualmente a partir
33
relatório revela é mais uma dimensão da história indígena, sobre os efeitos e as vítimas
do período ditatorial brasileiro, minimizada na narrativa oficial.
Instaurada pela Lei 12.528/2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre
a ditadura investigou a situação dos povos indígenas naquele período e destacou que
a violência contra esses povos, de 1946 a 1988, foi sistêmica, efeito direto de políticas
estatais. Ciente das limitações e deficiências dos dados que havia coletado, a Comissão
afirmou ainda que “os resultados dessas políticas estaduais nos permitem estimar que
pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante o período investigado pela CNV,
fruto de ação direta ou omissão de agentes do governo” (Brasil, 2014). Ainda assim, o
fato de milhares de indígenas terem sido vítimas diretas do turbulento período
ditatorial parece contrariar alguns entendimentos, que se mostram, para dizer o
mínimo, desonestos. “’[O]s indígenas não enfrentaram a ditadura’ e ‘o extermínio
indígena existe desde 1500’ são os argumentos comumente mobilizados [...] para
objetar aos povos indígenas sua participação no processo de justiça de transição”
(Coffaci e Pacheco, 2017: 221). Na visão da psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da
CNV diretamente responsável pela apuração e registro de dados referentes aos
contextos indígenas, os “indígenas não estavam resistindo no sentido político, já que
não sabiam exatamente o que era a ditadura. A resistência deles era, de certa maneira,
ingênua, no sentido de preservar sua terra. Mas o tratamento dado a eles era
violentíssimo” (Balza, 2012).6 Esse é o tipo de problema que emerge quando tentamos
dar a devida dimensão ao fenômeno da violência contra os povos indígenas. O próprio
título da matéria que veicula o trecho acima citado é bastante ilustrativo. Publicada no
portal de notícias UOL, em 12 de novembro de 2012, e assinada pelo jornalista
Guilherme Balza, a chamada da matéria informava: “Comissão da Verdade apura
morte de índios que podem quintuplicar vítimas da ditadura”. Nela, Balza descreveu
casos cobertos pelo relatório com foco no desaparecimento de cerca de 2.000 indígenas
da etnia Waimiri-Atroari, entre 1968 e 1983. Se os números referentes ao caso específico
dos Waimiri-Atroari sozinhos já eram assustadores, o que dizer do conjunto que foi
levantado pela Comissão? Se considerarmos ainda as limitações temporais e também
políticas do próprio caráter do levantamento realizado, podemos afirmar que, no
35
idealizador do AI-57, havia sido testada anteriormente nas escolas dos Postos
Indígenas, revelando uma espécie de continuidade ou até de expansão das técnicas
que já eram aplicadas aos indígenas para um contexto mais amplo, em que os próprios
brancos se tornaram alvo. (Matuoka, 2017).
Cabe mencionar ainda a criação de cadeias e reformatórios indígenas durante o
período ditatorial. Retratado em pouco mais de duas páginas no documento final da
CNV, o Reformatório Krenak e a Fazenda Guarani foram organizados após o AI-5.
Eram cadeias oficiais, geridas por policiais militares, para onde foram levados mais de
cem indígenas “delinquentes” e grupos que lutavam por terras. Apontado por
pesquisadores como verdadeiros campos de concentração, os indígenas eram levados
à força para esses lugares, e ali muitos desapareciam ou não sabiam quando poderiam
sair. Eram submetidos a condições desumanas, vítimas de maus tratos, tortura e
trabalho escravo. Para a pedagoga Geralda Soares, ex-integrante do CIMI, a violência
sofrida pelos indígenas no período indica que “muitos desses índios, na minha
concepção, são presos políticos. Na verdade, eles estavam em uma luta justa, lutando
pela terra” (Campos, 2013).
Os exemplos mencionados acima são particularmente reveladores da
problemática que encontramos no estudo da violência. Trata-se da percepção geral de
que a problemática indígena é diferente da problemática política, e que a violência,
portanto, é também de outra ordem, sendo a praticada contra o indígena
hierarquicamente inferior à outra, dita “política”. Cria-se, portanto, uma percepção
que invisibiliza o indígena e seleciona algumas formas de violência como mais
importantes que outras. O Relatório Figueiredo, o documento da ONU relatado por
Victoria Tauli-Corpus, e também o relatório da Comissão da Verdade são sugestivos
para percebermos o caráter da continuidade e contemporaneidade dessa violência.
Todavia, o modo como a nossa imaginação e interesse interpretam esses dados dentro
de um arquétipo da espetacularização, fixa a atenção em determinados relatos de
massacres, chacinas, torturas e outras práticas e contextos que parecem mais
7 O Ato Institucional nº 5 foi um decreto emitido durante a Ditadura Militar em 1968 pelo então
presidente Artur Da Costa e Silva. É comumente associado à inauguração do período mais sombrio da
ditadura.
37
[...] uma vez que a ideia de catástrofe significa uma alteração, o uso da retórica
da crise contradiz um ponto constitutivo – que a morte lenta, ou o desgaste e
enfraquecimento estrutural de pessoas notadamente por conta da sua
vinculação a certa populações, não é nem um estado de exceção nem o oposto,
uma banalidade, mas um campo de revelação onde uma cena perturbadora de
vida que foi abafada nas consciências comuns é revelada como entrelaçada com
a vida cotidiana [...] A retórica sobre o caráter ordinário das crises mede a
intratabilidade estrutural de um problema com o qual o mundo convive, mas
que só toma as proporções de crise e catástrofe quando ligada a novos corpos.
Enquanto a morte é geralmente considerada um evento em contraste com a
“extensividade” da vida, nesse domínio o morrer e a reprodução ordinária da
vida são coextensivas (Berlant, 2007: 761-762; tradução nossa).
O tratamento dado pela autora à questão da obesidade se aproxima do que Rob
Nixon diz em sua elaboração sobre a violência lenta que assola de maneira
despercebida o mundo em processos lentos de destruição do meio-ambiente. Com o
conceito de violência lenta, Nixon aborda a violência gradual, cujos efeitos só serão
claramente percebidos com o passar dos anos e, quem sabe, sentidos apenas por
gerações futuras. Os “efeitos destrutivos estão dispersos no tempo e no espaço, uma
violência desgastante que normalmente não é vista como violência”(Nixon, 2011: 2).
Dentre os exemplos dados pelo autor, estão “as alterações climáticas, o
descongelamento da criosfera, despejos tóxicos, biomagnificação, desmatamento, as
consequências radioativas de guerras, acidificação de oceanos [...]” (Nixon, 2011, p. 2).
Para o autor, essa violência é negligenciada, uma vez que não responde aos apelos
imediatistas e cada vez mais instantâneos de nossa época, que procedem de uma
espetacularização, seja na TV ou no cinema, de narrativas visuais sobre violência, dor
8A autora inclui ainda os povos indígenas; “as populações de pessoas de cor - nativos americanos, afro-
americanos, e hispânicos, especialmente mexicanos-americanos, são caracterizadas por uma
porcentagem significativamente maior de obesidade do que as populações anglo-asiáticas. Em 2000,
68% das mulheres adultas afro-americanas tinham sobrepeso ou eram obesas; é provável que seus filhos
também o sejam. As consequências corporais disso são catastróficas para essas crianças, e não apenas
para a sua "autoestima". Eles agora sofrem, por suas vidas inteiras mais curtas, com o fardo das doenças
davelhice. A hipertensão e o diabetes são especialmente catastróficos, pois pressagiam doenças
cardíacas precoces, insuficiência hepática e pancreática, derrames e aneurismas, bem como cegueira e
problemas de circulação”. (Berlant, 2007: 774-775)
43
e terror. Logo, permitem que a violência lenta continue com o seu trabalho insidioso,
justamente, pelo fato de não chamar a devida atenção para a seus efeitos gradativos.
Violência química e radiológica, por exemplo, que são dirigidas para dentro,
somatizadas em dramas celulares de mutações que – particularmente nos
corpos dos pobres - permanecem em grande parte não observadas, não
diagnosticadas e não tratadas. Do ponto de vista da narrativa, esse teatro
invisível e mutagênico é lento e em aberto, fugindo ao desfecho circunspecto ou
o comedimento que é imposto pelas ortodoxias visuais de vitória e derrota
(Nixon, 2011: 7, tradução nossa).
Muitos outros exemplos poderiam ser acrescentados, tendo como referência o
contexto indígena. A poluição de rios, nascentes e lençóis freáticos pelo uso de
agrotóxicos e também pela contaminação por mercúrio, derivada da mineração ilegal,
é um deles. Somar-se-iam as queimadas e desmatamentos que destroem os territórios
indígenas e liberam toxinas na atmosfera, afetando todos os seres.
O que ambos, Nixon e Berlant, estão sugerindo com os seus conceitos – morte
lenta e violência lenta – é que, nesses casos, narrativas de crises e de catástrofes
emergem apenas da consciência da morte imediata, ou quando ocorreu o rompimento
da barragem, ou diante do prelúdio do cataclisma, ao passo que o foco no momento
espetacular da crise oculta o fato de que esses eventos ocorreram de forma gradual e
anunciada. O problema da obesidade emerge enquanto crise quando esses corpos são
espetacularizados em sua morte ou diante de sua morbidez, mas, antes dessa
culminância, a violência imposta à sua condição já estava presente ao longo da sua
vida. Nesses termos, mineração torna-se crise quando leva a uma catástrofe, como no
rompimento de uma barragem onde rejeitos tóxicos são despejados de forma
irremediável e em grandes quantidades de uma vez só, porém, independentemente de
um rompimento, os rejeitos já eram despejados antes, afetando reiteradamente o meio-
ambiente e as populações dessas localidades.
Em relação à violência concernente aos povos indígenas, a lista de autores que
contribuem para o debate da seletividade e invisibilidade diante do fenômeno é
extensa. Algumas contribuições são bastante promissoras, como a já citada lógica da
eliminação, de Patrik Wolfe (2006), a ideia de momentos genocidas, de Dirk Moses, e
também a crítica audaciosa ao conceito de genocídio elaborada por Ward Churchill,
indígena norte-americano. O intelectual de origem espanhola, Bartolomé Clavero
44
Ora, nossa cultura não é de modo algum uma abstração, é o produto lentamente
constituído de uma história, ela é passível de uma pesquisa genealógica. O que
faz que a civilização ocidental seja etnocida? Tal é a verdadeira questão. A análise
do etnocídio implica, para além da denúncia dos fatos, uma interrogação sobre
a natureza, historicamente determinada, de nosso mundo cultural. Portanto,
trata-se de encarar a história (Clastres, 2004: 59; grifo nosso).
46
Este trecho mostra que Clastres entendia que o fenômeno da violência anti-
indígena merecia ser estudado como decorrente de e situado numa cultura particular.
O que chamou de “cultura Ocidental” é uma cultura como outras tantas estudadas
pela etnologia. Possui lastro histórico, é passível de ser estudada, enraizada no seu
contexto sócio-histórico. Ao utilizar o pronome possessivo “nossa” para se remeter ao
seu próprio mundo cultural, o autor se inclui no mundo etnocida que denuncia,
apontando uma importante questão de cunho etnológico: o que faz com que a
civilização ocidental seja etnocida?
Existem vários desdobramentos possíveis diante das colocações de Clastres,
mas o que nos interessa agora é a dimensão interacional da violência que envolve,
necessariamente, dois polos: de um lado, perpetradores, do outro, vítimas. Riches
(1986) sugere ainda que essa interação é composta por mais um elemento: a
testemunha. Da perspectiva dos perpetradores, seus atos violentos são sempre vistos
como legítimos, embora eles raramente utilizem a palavra violência que, por sua vez,
é enunciada pelas vítimas e pelas testemunhas. Se focalizarmos a compreensão de
apenas um desses polos, teremos uma versão parcial dos atos em questão. Ao afirmar
que denunciar a violência etnocida não é o bastante, Clastres sugere que olhar para
esse fenômeno implica em envidar esforços analíticos para os estudos dos brancos e
da sua cultura. Ou seja, será que uma pesquisa sobre a violência anti-indígena deve
voltar a sua atenção para os povos indígenas e suas versões desse processo, ou
proceder a uma análise etnológica dos brancos, enquanto culturalmente circunscritos,
cujos comportamentos e atitudes já se padronizaram ao longo de séculos de
transmissão de seus códigos culturais? Essa é uma pergunta basilar para a nossa
pesquisa. Embora os povos indígenas possam narrar, na condição de vítimas e de
testemunhas, suas experiências junto aos brancos, as respostas às nossas inquietações
parecem remeter, a priori, ao estudo dos brancos.
Neste sentido, trabalharemos com a hipótese de que a experiência dos povos
indígenas em territórios usurpados pelo colonialismo europeu é essencialmente letal.
Propomos, então, o conceito de letalidade branca, na tentativa de situar as ações
violentas perpetradas contra os povos indígenas como manifestações de um ethos
culturalmente padronizado que estabelece relações com essa alteridade, a originária
47
[...] que estudam a Europa o fazem em partes isoladas (mito nórdico, sociedade
camponesa, cultura popular). Mesmo a “antropologia urbana” não aborda a
cultura europeia como um todo. Uma ciência social eurocêntrica não pode ser
usada para examinar criticamente a tradição cultural europeia. No entanto, não
há razão para que o conceito de cultura não deva ser usado para estudar o
caráter extraordinário do comportamento europeu (Ani, 1994: 2-3, tradução
nossa).
Com a ideia de letalidade branca, esperamos avançar num estudo sobre a
sociedade não indígena no Brasil que nos permita demonstrar a continuidade da
formação cultural Ocidental, apontando, através do seu caráter violento na relação
com os povos indígenas, o modo como o projeto societário colonial instituído pelos
europeus (portugueses, espanhóis, franceses e holandeses) continua sendo
reproduzido no presente por seus descendentes que seguem habitando os territórios
indígenas.
Muitos são os relatos indígenas sobre a letalidade branca, documentados não
apenas em museus e bibliotecas ao redor do mundo, mas também nas cosmologias
indígenas que avaliam essa letalidade cotidianamente. Por que os brancos são tão
letais?9 Essa pergunta nos parece de essencial preocupação para os povos indígenas. É
como sugere o relato de Francisco Sarmento, antropólogo do povo Tukano:
O branco chegou logo com a violência das armas e da religião cristã, por meio
dos militares apresadores de escravos, acompanhados dos padres legitimadores
das capturas e responsáveis de catequizar. As armas de fogo e queima das
habitações tradicionais pode indicar o nome que eles ganharam em tukano
(pehkasã) (Sarmento, 2018: 115).
Também o relato de Davi Kopenawa sobre seu primeiro encontro com os
brancos ressalta o terror anunciado por essa presença:
Não me lembro tudo o que aconteceu nessa época, porque é muito antigo. Mas
não esqueci a chegada desses forasteiros, porque me deixaram apavorado.
9 O legado destrutivo dos brancos foi apontado pelo antropólogo Luis Cayón a partir do
trabalho de campo de décadas entre o povo indígena Makuna do noroeste amazônico. O autor discorre
sobre as éticas distintas de ser e estar no mundo entre indígenas e brancos, sendo a primeira
caracterizada por como ele uma orientação para a vida ao passo que a segunda se voltaria para a morte.
“En la orientación hacia la vida, la vida es un proceso relacional, en flujo, en el que la muerte produce
nueva vida, mientras que en la orientación hacia la muerte se reduce la diversidad de especies de árboles
y animales, se contaminan las aguas y se dañan los suelos para dar paso a un número reducido de
formas de vida, como cierto tipo de pasto y el ganado vacuno. En esta suicida manera de actuar y pensar
se reducen las posibilidades de vida de todos los seres que habitan la selva; no en vano, los makuna
siempre me preguntan “¿por qué ustedes los blancos no piensan en sus nietos?” (Cayón, no prelo: 06).
49
Aliás, assim que a vinda deles foi anunciada, todas as mães de Marakana
preveniram seus filhos pequenos. “Os napë estão chegando! Escondam-se!
Senão eles podem levá-los embora!”. E em seguida fizeram ficar atrás das redes,
encobertos pela lenha encostada na parede da casa. As crianças maiores como
minha irmã mais velha, fugiram por conta própria, para se refugiar na floresta
[...] Eu estava apavorado, mas ela conseguiu me acalmar me dizendo baixinho:
“Não tenha medo, os brancos não vão vê-lo! Só fique quieto!” [...] As mães de
nossa casa temiam que os brancos levassem seus filhos pequenos. Tinham muito
medo mesmo que os roubassem! [...] Ninguém queria dar os filhos, é claro! Mas
todos receavam o furor das epidemias dos brancos, caso recusassem (Kopenawa
e Albert, 2015: 244-245).
De maneira preliminar, sobre o uso do termo branco, remeto ao trabalho de
Daiara Sampaio, da etnia Tukano, que diz: “o termo ‘branco’ em oposição ao termo
‘índio’ é usado para tratar de maneira geral a sociedade não indígena, o sistema e tipo
de pensamento que a representa”. (Sampaio, 2018: 28). Afirma também que para seu
pai, Álvaro Tukano, “quando nos referimos aos ‘brancos’ falamos de um sistema, da
história da colonização. Trata-se da cultura de euro-referente, cristã, racista e
capitalista, distinta das nossas, onde os valores e os saberes são reservados para
aqueles que procuram manter seu poder a todo custo” (Sampaio, 2018: 88).
O pesquisador indígena
Em certa medida, a presente pesquisa se afasta de uma etnografia convencional.
Destarte, algumas considerações precisam ser feitas sobre o fato de seu autor ser
indígena.
No ano de 2007, a etnóloga Alcida Rita Ramos publicou um provocante artigo
intitulado Do Engajamento ao Desprendimento, no qual avaliou num exercício de
retrospecção algumas mudanças no campo da etnologia brasileira percebidas por ela
com perplexidade após décadas de atuação junto, notadamente, ao povo Sanumá,
subgrupo Yanomami, e de análises sobre o indigenismo. Destacou em seu texto o
crescente processo protagonizado por intelectuais indígenas na busca pelo ensino
superior e pela antropologia que vinha, até então, suscitando revisões éticas, políticas
e epistemológicas por parte da comunidade antropológica. Como que num processo
de redimensionamento da consciência étnica, aqueles sujeitos que antes eram apenas
objetos de pesquisa privilegiados pelo olhar antropológico, vêm buscando se apoderar
das ferramentas dessa disciplina, diante da noção de que “a etnografia [seria]
50
importante demais para ser deixada aos etnógrafos. A busca [...] por repatriar a
identidade cultural, que teve início com o ato político de auto-representação,
completa-se quando a produção etnográfica é devidamente apropriada”. (Ramos,
2007: 21). Ramos faz uso de metáforas cênicas para sugerir que, após anos de
engajamento nas questões políticas suscitadas pelo estudo desses povos, uma nova era
se anunciaria, em que o antropólogo tomaria para si o lugar de coadjuvante, passando
a exercer o desprendimento, “a maior expressão de compromisso, pois requer do
etnógrafo que ele saia do palco de modo que este seja ocupado pelos nossos ‘outros’
tradicionais”. (Ramos, 2007: 26).
Esse texto de Ramos foi provavelmente um dos primeiros que li sobre o tema e
seus argumentos se coadunavam, à época, de maneira flagrante com algumas de
minhas inquietações. É notável que o texto de Ramos tenha surgido de um exercício
de retrospecção depois de décadas de experiência enquanto etnóloga e, ainda mais,
que o seu tema tenha tido, quando publicado, um teor quase antecipatório. Isso porque
a presença de indígenas em cursos de antropologia, embora fosse algo que se
anunciasse no horizonte, com nomes como Tonico Benites, do povo Guarani-Kaiowá,
e Gersem Luciano, do povo Baniwa, não era ainda uma realidade expressiva.
Em 2010, um levantamento realizado pelo Centro Indígena de Estudos e
Pesquisa (CINEP), sob a coordenação do antropólogo Baniwa, Gersem Luciano Santos,
estimou que havia cerca de 6.000 indígenas no ensino superior, dos quais, pelo menos,
100 estariam em cursos de pós-graduação (Luciano e Hoffmann, 2010). Em 2016, Souza
Lima (2016) afirmou que esse contingente seria de 10.000 indígenas, distribuídos em
universidades estaduais, federais e privadas. Por sua vez, o Censo da Educação
Superior, produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), estimou
que, no ano de 2018, havia cerca de 57.706 indígenas matriculados em IES. (Facini,
2020). É possível afirmar que o número de indígenas no ensino superior cresceu de
forma intensa, sobretudo, entre 2010 e 2020. Podemos imaginar que esse número seja
ainda maior, se considerarmos que nem todas as IES dispõem de mecanismos
adequados e culturalmente sensíveis para mapear a presença indígena entre os seus
discentes.
51
num lento processo dialógico, onde estavam também presentes professores da escola
indígena, que conduziram o pesquisador a mudar o seu tema de pesquisa, de modo a
corresponder aos nossos anseios. Mas nem todos os pesquisadores, de fato, chegam a
ter uma conversa com o CONTAM. Alguns são desestimulados logo de início, como
se passassem por uma triagem preliminar, que repele pesquisadores aparentemente
escorregadios ou pouco convencidos do que gostariam de pesquisar, ou cujos temas
estão tão distantes de nossos interesses, ou, ao contrário, próximos demais de
pesquisas que nós mesmos queremos realizar.
Em 2019, em parceria com os antropólogos indígenas Florêncio Maytapu e
Gersem Baniwa, organizei um simpósio temático sobre egressos indígenas no
Congresso Internacional de Povos Indígenas da América Latina (CIPIAL). Recebemos
inúmeros trabalhos de pesquisadores indígenas e não indígenas de diversas áreas
acadêmicas e regiões, mas, a princípio, algo que chamou atenção foi que a maioria das
pesquisas eram em alguma medida auto-etnográficas, isto é, consistiam em trabalhos
nos quais o pesquisador voltava a sua mirada para a própria realidade e povo. Os
textos contavam ainda com uma introdução biográfica, onde os indígenas contavam a
sua trajetória, situando o seu lugar no mundo, em sua comunidade e explicando a
pertinência do tema escolhido. Curiosamente, durante os curtos vinte minutos de
apresentação previstos durante o congresso, era comum que eles priorizassem
apresentar os aspectos pessoais de sua jornada repleta de desafios, relatos de violência
e racismo.
O antropólogo Eloy Terena relatou em sua tese de doutorado que, quando
iniciou seus estudos em antropologia social, foi indagado por que estudar o seu
próprio povo, já que o costume tradicional na antropologia era que os pesquisadores
se debruçassem sobre o estudo do “Outro”. O autor aponta que tal questionamento ou
separação existiria apenas na cabeça dos brancos, e que para os pesquisadores
indígenas, “não é possível fazer essa separação. Para nós, indígenas, a única razão de
deixar a aldeia e ingressar na academia é ter a certeza de que poderemos apropriar
desses ‘ditos conhecimentos científicos’ de alguma maneira usá-los em prol de nossa
comunidade” (Amado, 2020: 24). Também afirmou que esse processo refletiria a busca
53
por maior autonomia e protagonismo, uma vez que “já chega do purutuye [branco]
falar por nós” (Amado, 2020: 25).
Nelly Marubo, indígena antropóloga, narrou um momento importante em sua
pesquisa, quando as mulheres de sua comunidade lhe pediram que contasse as suas
histórias, “os antropólogos contam tudo errado! Nós somos as autoras das nossas falas,
e queremos que você conte do jeito que a gente contar pra você. E que você coloque
isso no papel”. (Bonilla e Franchetto, 2015). Essa tem sido também uma frente
importante das pesquisas de antropólogos indígenas: o trabalho de contar novamente
e com fidelidade aquilo que foi narrado de maneira parcial, fragmentada, ou mesmo
equivocada por etnógrafos brancos. Nesse sentido, é comum que, quando entramos
em cursos de antropologia, reunimos aquilo que foi escrito sobre nós e, muitas vezes,
encontramos fotos nunca antes vistas, fotos cujas pessoas retratadas da comunidade
nunca tinham visto ou nem ao menos sabiam que corriam o mundo. Essa experiência
é quase sempre ambígua, e mesmo quando é bem recebida, suscita em nós a
necessidade de reescrever muitas coisas de forma mais acurada e próxima do modo
como queremos ser retratados. Gersem Baniwa dirá que considera a antropologia
aos sujeitos, conforme a sua origem étnica e cultural, ver coisas diferentes, ela em si
continuaria sendo fabricada pelos antropólogos não indígenas. Imagine que essa lente
seja dada pronta e finalizada a nós, antropólogos indígenas, pelos antropólogos não
indígenas. Nesse sentido, enquanto uma ferramenta, a antropologia nos oferece
conjuntos de questionamentos que podemos fazer sobre as nossas realidades ou sobre
as realidades dos brancos. O modo de indagar, levantar problemas antropológicos de
pesquisa e quais perguntas fazer é, todavia, resultado de acordos tácitos de séculos de
elaboração entre os pares desse campo de conhecimento. Ou seja, aprendemos um
modo correto de perguntar e quais perguntas fazer dentro daquilo que é reificado e
reproduzido pela matriz disciplinar. Alguns temas rendem, outros, não. Alguns povos
têm caráter etnológico, outros, não.
Os currículos de nossas formações nesse campo também são responsáveis por
embasar as possibilidades de incursões etnográficas e abrem portas para que possamos
ir em determinadas direções, ao mesmo tempo que outras se fecham. Dou dois
exemplos. Em 2009, ocorreu o primeiro e único encontro de pesquisadores, acadêmicos
e profissionais indígenas promovido pelo CINEP. Na ocasião, um ônibus saiu da
minha aldeia na Bahia e nos levou a Brasília. Meu pai, que também estava presente,
comprou para mim um livro intitulado Crianças Indígenas, que foi o meu primeiro livro
de antropologia. Eu estava em meu primeiro ano de formação em ciências sociais e,
após a leitura, passei meses prestando mais atenção em questões referentes à infância
indígena, seu desenvolvimento e a transmissão cultural que nela ocorre, e tentando,
verdadeiramente, entender o que era a tal “cognição” sobre a qual tanto falavam.
Quando escrevi minha dissertação de mestrado, muitas situações com as quais me
deparei entre os anciões Tuxá, demandavam de mim um enquadramento analítico de
suas ações e discursos que as dimensionassem num modelo ou teoria da ação que
levasse em consideração o racismo de séculos como estruturantes em suas condutas e
estratégias. Naquele momento, embora conseguisse identificar os feitos do racismo, eu
não dispunha das ferramentas teóricas para dar a devida atenção ao fenômeno, uma
vez que a discussão teórica sobre racismo e seus efeitos entre os povos indígenas é
tema negligenciado na formação antropológica tradicional.
55
Tudo isto para dizer que, mesmo tendo ouvido de vários colegas indígenas, ao
entrarem na pós-graduação em antropologia, que queriam estudar os brancos, a
grande maioria acabou, em algum momento, voltando suas pesquisas para os
contextos indígenas. Sempre narrei para mim mesmo que a minha mudança de tema
decorreu de um processo natural. É que eu percebi que era mais importante dedicar
meus esforços, enquanto pesquisador, a questões mais imediatamente relevantes para
o meu povo do que seguir outras pautas. Mas hoje percebo que existe outro fator a ser
considerado. É como se estudar os brancos deixasse de ser interessante, porque essa
possibilidade não configura, a priori, um caminho identificável no percurso formativo
canônico antropológico. É como se nós, indígenas, ocupássemos um não lugar. Se, por
um lado, a antropologia deve estudar o “Outro”, por que é, para nós, uma
impossibilidade estudar o nosso Outro, o branco? Toda a formação antropológica
parece, paradoxalmente, repelir essa possibilidade.
O mais comum nesse processo é nos indagarem sobre o que significa falar de
branco no Brasil, ou sobre quem é branco, de fato, no país. Também afirmam que
existem brancos variados, e que nem todos são iguais. Sobre esse ponto, o quilombola
Nêgo Bispo nos deixa uma importante reflexão:
Nossas palavras são vivas. Por exemplo, quando os povos originários diziam
“Pindorama”, eles queriam dizer “terra das palmeiras”. Quando os colonialistas
os chamam de “índios”, usam uma palavra vazia, uma palavra sem vida. Todas
palavras dos povos originários têm vida, são vivas. Por isso, os colonialistas
colocam uma palavra vazia como nome para tentar enfraquecer. [...] Para
colocar esse nome, os colonialistas desenvolveram pensamentos. E nós também.
[...] Estou colocando nomes. Se uma das armas dos colonialistas é nos colocar
nomes, coloquemos nomes neles também. E coloquemos nomes que os
enfraqueçam. Se eles disserem: “Não gosto que me chamem assim”, nós
respondemos: “Ótimo, mas também não me chame assim”. Se o colonialista me
chamar de negro, chamarei ele de branco. Se ele me chamar de preto, chamarei
ele de amarelado (Bispo, 2018: 25-26).
Até hoje, encontramos teses, artigos e publicações que falam em “pensamento
indígena” ou em “perspectiva indígena”, após muito advogarmos sobre a diversidade
cultural interna desses povos, constituídos por mais de 300 grupos étnicos.
Poderíamos, portanto, submeter o “pensamento branco”, suas motivações, fobias e
comportamentos, a uma análise antropológica? O tema da violência anti-indígena se
tornou particularmente interessante dentro dessa perspectiva, porque não
56
conseguimos entender essa prática recorrente voltando a nossa mirada apenas para os
povos indígenas.
Sobre isso, Riches (1986) afirma que podemos pautar a violência de maneira
triangular, situando algozes, vítimas e testemunhas nesse processo. Quem usa o termo
violência são as vítimas, por perceberem tais atos como ilegítimos, enquanto os
perpetradores não utilizam o termo, porque se percebem e percebem a sua violência
como legítimos. Nesse sentido, a percepção das vítimas é crucial para o processo,
identificando ainda que os povos indígenas são grandes observadores do mundo dos
brancos e possuem inúmeros registros, sobretudo na tradição oral, sobre tudo que
conhecem a seu respeito. Mas, de uma perspectiva etnológica, o fato de que muitos
atos percebidos como violentos pelos povos indígenas permanecem naturalizados até
os dias de hoje, isto é, são vistos como legítimos, é um dado de pesquisa sobre a
“mentalidade branca”, cuja resposta está em seu estudo sistemático e etnográfico.
Nesse sentido, este trabalho é menos um compilado de massacres ou registros de
violência e mais uma tentativa de entender como eles conseguem permanecer ilesos
por séculos. É dessa forma que o trabalho deve ser lido.
A escrita
Antes de seguir para as partes que compõem a tese, gostaria de fazer algumas
considerações sobre a sua escrita. O projeto foi inicialmente desenhado em 2018, antes
da pandemia que assola o mundo. O genocídio indígena estava em minha mente de
uma forma particularmente remota, diferente daquilo em que se tornou, a nível de
experiências sensíveis, depois da chegada do novo coronavírus. Durante o tempo de
crise ao longo de toda a escrita deste texto, muito do que eu pensava saber sobre a
maneira como a letalidade branca age, algumas vezes de modo intuitivo, se tornou
ainda mais evidente. Ao mesmo tempo, novos traços da violência anti-indígena se
somaram aos antigos, acelerando um maquinário que já me era familiar. Enquanto
alguém imerso nesse contexto, tanto por ser indígena quanto por estar compartilhando
os temores diante dessa nova ameaça, tornou-se particularmente desafiador ajustar o
escopo inicial da pesquisa. Durante a pandemia, eram diárias as notícias, denúncias e
informes que faziam uso crescente do conceito de genocídio. Inicialmente, percebi a
57
Figura 2.1 - Indígena usa máscara com dizeres "Vidas indígenas importam" em funeral do chefe Messias
Kokama, 53, morto por Covid-19 em Manaus.10
Parte I – Indígenas
em Movimento
61
“Nós não temos escolha. Ou nós viemos lutar, ou nós morremos também no nosso
território. Estão morrendo pelo PL da grilagem. É um genocídio legislado: quando usa a
estrutura do estado brasileiro para matar. As pessoas e os territórios indígenas estão sendo
devastados, estão sendo invadidos, e é muito urgente que nós nos levantemos com força. São
mais de 305 povos, uma diversidade linguística imensa. Nós estamos aqui é pela vida, a terra
está gritando. A terra está chamando, a terra está convocando. Aquelas pessoas que não
escutarem o chamado dos povos indígenas, o chamado da terra, certamente não vão conseguir
escutar o chamado de mais ninguém. Estar aqui, ocupando Brasília, significa que não lutar com
a mesma arma do inimigo, nunca significou que nós, povos indígenas, estamos desarmados.
Embora nós não podemos impedir a morte, nós temos um compromisso importante de seguir
lutando pela vida. Nós estamos aqui para enfrentar esse governo. Bolsonaro também,
conservadorista. Porque a primeira pessoa que esse governo atacou foi a terra. E quando atacam
a terra, atacam todo o útero das mulheres indígenas. Nós somos uma extensão da terra. Se a
terra adoece nós adoecemos também. Se a terra não pode mais produzir, se a terra é envenenada,
nosso útero também é envenenado. Nós somos a extensão da terra. Por isso é muito urgente
que a humanidade entenda esse chamado dos povos indígenas. Porque enquanto o Congresso
Nacional projeta para nós o projeto da morte, nós projetamos o projeto da vida.”
Célia Xacriabá11
Figura 3.3 Célia Xacriabá protestando em frente ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Em seu braço, "Pare o Genocídio" (Imagem disponível em seu Instagram @celia.xakriaba postada em 31 de janeiro
de 2019)
63
12 Tenho trabalhado diretamente nesta pesquisa desde junho de 2020, quando fui selecionado
para fazer parte da equipe de pesquisadores do projeto “Saúde dos Povos Indígenas no Brasil:
Perspectivas Históricas, Socioculturais e Políticas (Componente sobre Mobilização Indígena em Face da
Pandemia da Covid-19)” no âmbito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sob a coordenação de Ricardo
Ventura Santos e Ana Lúcia Pontes.
13 Foi o próprio colega, antropólogo e advogado indígena da APIB, Eloy Terena, que me
comunicou sobre essa estratégia de litigância e propôs que eu tomasse parte do processo de elaboração
na condição de etnógrafo.
64
***
Essa primeira etapa foi pensada a partir da articulação entre APIB, CADHU e a
Clínica de Litigância Estratégica nas Oficinas do TPI (Tribunal Penal Internacional).
Envolveu cinco encontros pela plataforma virtual Zoom, que tiveram um caráter
formativo num programa cujos conteúdos eram voltados para que os advogados e
advogadas da APIB conhecessem o TPI, suas características, limitações, seus processos
e jurisprudência, de uma perspectiva crítica e participativa. O encerramento dessa
primeira etapa ocorreu em 04 de dezembro de 2020, quando ficou definido que, a partir
dali, um grupo menor, composto por advogados da APIB e colaboradores, ficaria
responsável pela redação de uma minuta da denúncia, que seria compartilhada com
todos para uma sabatina em 2021.
A denúncia finalizada foi apresentada e protocolada no TPI em 09 de agosto de
2021. Nela o presidente Bolsonaro foi denunciado pelo crime de genocídio e crimes
contra a humanidade. A data escolhida para a formalização do processo foi estratégica,
pois marca o dia Internacional dos Povos Indígenas e, além disso, ainda no mês de
agosto, o Movimento Indígena esteve em constante atividade, pressionando nacional
e internacionalmente, os diferentes setores do governo sobre o processo em curso de
desmonte de direitos e ataques aos povos indígenas. Estava marcada para o final de
agosto a votação no Supremo Tribunal Federal (STF) do Projeto de Lei 490/2007 que
versa sobre a tese do Marco Temporal, que dispõe de alterações no entendimento
constitucional sobre o processo demarcatório; se aprovada, representaria um
retrocesso inconstitucional aos direitos indígenas. Devido à votação, foi organizado o
“Acampamento Luta pela Vida”, que ocorreu entre 22 e 28 de agosto, como forma de
acompanhar as votações e dar visibilidade ao trâmite jurídico que, após sucessivos
adiamentos, teve seu início no meio da pandemia. Logo, foi nesse cenário de ataques
em diferentes âmbitos que a denúncia no TPI tomou forma na esfera pública. Sobre o
“Agosto Indígena”, o advogado e coordenador executivo da APIB, Dinaman Tuxá
afirmou:
Figura 4.3 Panfleto da APIB convocando mobilizações contra a PL 490 (@guajajarasonia em 26 de maio
de 2021)
Para além da etnografia das Oficinas do TPI, foram realizadas entrevistas semi-
estruturadas com alguns de seus participantes, indígenas e não-indígenas, via
Whatsapp e Zoom14. As entrevistas se mostraram extremamente importantes para a
pesquisa, uma vez que permitiram a reconstrução do contexto que levou a APIB a
decidir pela preparação da denúncia. Sabemos que as ações da organização indígena
têm se tornado cada vez mais robustas ao longo dos anos (Ferreira, 2017) e interessa-
nos também registrar o período que antecede as oficinas, ressaltando os
posicionamentos políticos referentes ao governo Bolsonaro, apuração de denúncias e
usos do termo “genocídio”. Outro aspecto que buscamos entender das entrevistas,
refere-se às relações estabelecidas entre a APIB e demais participantes da oficina,
como o CADHu, que desempenhou o papel de mediador/facilitador ao longo das
sessões, e os membros de organizações diversas, como Greenpeace, Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), Armazém Memória, Observatório dos Direitos e
Políticas Indigenistas (OBIND), Observatório dos Direitos Humanos dos Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) e também professores universitários.
Por questões éticas que envolvem o próprio trâmite processual no TPI e pela
sensibilidade do tema, o texto que segue não apresenta uma descrição etnográfica
minuciosa e pormenorizada, como muitas vezes é esperado desse gênero textual.
Estamos interessados em ressaltar o percurso da sua feitura, sua história, os atores
14Foram entrevistados Eloísa Machado e Juliana Vieira dos Santos do CADHu, Elaine Moreira
do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND) e os advogados indígenas da APIB,
Maurício Terena e Samara Pataxó.
68
Figura 5.3 Panfleto da APIB postado em sua rede oficial no Instagram @apiboficial em 9 de agosto de
2021, dia da apresentação da denúncia em Haia
conflitos que marcam as suas constituições. São trabalhos que se voltam para o
percurso do modo como as ações políticas diversas de lideranças e coletivos indígenas
tiveram que, em parte, se adequar ao modelo esperado pelos não indígenas no que diz
respeito a processos de institucionalização e burocratização (abertura de cadastro
nacional de pessoa jurídica (CNPJ), criação de estatutos, demanda por conta bancária,
e gestão e prestação de contas de recursos, entre outras questões). Outra característica
desses estudos é o trabalho de identificar as lideranças que foram cruciais em suas
respectivas regiões, trazendo as biografias das personalidades decisivas para a
formação dos movimentos indígenas (Luciano, 2006; Oliveira, 2011; Munduruku,
2012). Cabe destacar, mais recentemente, o crescimento de trabalhos que se debruçam
sobre frentes específicas dos movimentos indígenas, como o movimento de mulheres
indígenas (Sacchi 2003, Verdum 2008, Matos 2012, Ramos 2015 e Dutra e Mayorga
2019), saúde indígena (Garnelo e Sampaio 2005), professores indígenas (Silva 1999,
Cavalcante 2003, Ramos 2013) e juventude (Oliveira e Rangel 2017, Igreja e Oliveira
2019).
Nos mais de 30 anos seguintes à promulgação da Constituição Federal de 1988,
os povos indígenas aperfeiçoaram seus conhecimentos sobre o modelo organizacional
das associações e articulações não indígenas, tornando-se mais eficazes na captação de
recursos, em estratégias de mobilização e no uso das ferramentas de comunicação
disponíveis com o avanço da internet nas aldeias. Mais do que isso, entendo por
amadurecimento o processo de profissionalização do quadro técnico de lideranças
indígenas que, ao adquirirem formação no ensino superior, têm, paulatinamente,
aberto e ocupado novos espaços de debate nas arenas das políticas interétnicas
(Baniwa, Tuxá e Terena, 2020). É a partir desse enquadramento que devemos perceber
a construção da denúncia contra Bolsonaro protocolada no TPI pela APIB.
Por se tratar de uma análise que toma como referência uma ação de litigância
estratégica do departamento jurídico da APIB, reforçamos o entendimento de que a
interlocução entre a antropologia e o campo do direito tem apresentado resultados
profícuos para o avanço da compreensão dos processos através dos quais os povos
indígenas buscam efetivar direitos e lutar por justiça nas múltiplas arenas das políticas
interétnicas, dentre as quais, incluo as próprias instituições jurídicas, como o TPI
73
(Souza Lima, 2012; Kant de Lima e Lupetti, 2013). Através do trabalho de campo e da
etnografia, esperamos acompanhar a construção da denúncia não apenas para
registrar, mas também para mostrar o caráter processual de sua feitura. Tal dinâmica
envolve disputas semânticas e ontológicas entre os atores envolvidos acerca das
questões da interpretação dos textos jurídicos e das estratégias de advocacy que devem
ser consideradas nos atos processuais. Se o campo do direito se constitui a partir de
verdades consagradas embasadas em ideais de impessoalidade e de uma linguagem
própria compartilhada por seus operadores (Bourdieu, 2012), a atitude da investigação
antropológica permite-nos investigar as rotinas jurídicas em seus meandros e
pormenores, contribuindo para elucidar o complexo cenário no qual os advogados da
APIB buscam atuar de maneira efetiva.
Figura 6.3 Na foto o Coordenador Executuivo da APIB Kretã Kaingang segura faixa "Fora Genocida" no
Levante Pela Terra (Fotografia de Richard Wera Mirim em @guajajarasonia postada em 19/06/2021)
76
Figura 7. 3 Coordenadora Executiva da APIP, Sônia Guajajara com cartaz "Fora Bolsonaro Genocida" em
13 de junho @guajajarasonia
Embora essa lista pudesse ser acrescida de inúmeros outros exemplos, o que
gostaríamos de sugerir a partir do que foi elencado é que as ações da APIB diante desse
16 A distância entre a lei e a vida cotidiana, entre o que está escrito no papel e acontece na prática
foi abordado pela advogada indígena australiana Larissa Berendt (2011) e pelo líder indígena
venezuelano Simeón Jiménez (2012). Esse descompasso parece ser uma constante nos diferentes
contextos indígenas e evidencia que posturas contrárias aos seus direitos se encontram devidamente
institucionalizadas em rotinas administrativas e jurídicas pretensamente neutras e justas.
78
cenário de crescente ofensiva aos direitos e vidas indígenas, dentre as quais incluímos
a produção da denúncia ao TPI, vem tomando outras proporções. A própria gestão
bolsonarista é também um motor catalizador de novas respostas políticas, por ser
marcada por instabilidade nas instituições democráticas, aumento do autoritarismo e
posicionamentos oficiais contrários aos direitos dos povos indígenas. Isso tem
implicado não apenas em crescentes esforços da articulação no combate às diversas
modalidades de violência, como também em outras formas de dimensionar essa
violência em si. Nota-se que – e aqui reside um aspecto fundamental – ela deixa de ser
vista como contingencial para ser qualificada a partir do acionamento, cada vez mais
frequente, da categoria de genocídio.
Nessa direção, além da incidência política, nos últimos anos, a APIB qualificou
a sua atuação técnica e jurídica através de parcerias estratégicas e da atuação dos
advogados indígenas. Durante algum tempo, essa atuação contou com a intensa
participação do advogado e antropólogo terena Luiz Henrique Eloy Amado (Eloy
Terena) em inúmeros processos na condição de assessor jurídico da articulação. No
início do ano 2020, em parceria com a Embaixada da Noruega e com o Instituto Pro-
79
Concretamente, a denúncia feita pelo CADHu e pela Comissão Arns foi a única
dentre as várias apresentadas que não foi arquivada, seguindo, assim, para a primeira
etapa de avaliação preliminar de jurisdição. “Conforme as duas entidades, é a primeira
vez que o Escritório da Procuradoria do TPI se dispõe a realizar uma análise preliminar
da jurisdição em relação a um Presidente da República brasileiro” (Mendonça, 2021),
o que pode ser visto como um indicativo de que a cenário político vivido pelos povos
indígenas durante o atual governo está no foco de atenção do Tribunal.
Por fim, em janeiro de 2021, Bolsonaro foi, mais uma vez, denunciado em Haia
por crimes contra a humanidade pelos caciques Raoni Metuktire, Almir Surui e pelo
advogado William Bourdon.
Como veremos a seguir, em agosto de 2020, a coordenação executiva e o
departamento jurídico da APIB traçaram como meta de ação levar também Bolsonaro
ao TPI através de comunicação própria. Cientes de estar diante de uma sucessão de
crimes e violações de direitos indígenas de grande gravidade, acionaram sua extensa
rede de parceiros vinculados a organizações diversas para compor o grupo
colaborativo que veio a elaborar a peça de denúncia. Naquele momento, o CADHu era
o único coletivo que havia denunciado Bolsonaro por crimes contra os povos
indígenas, de modo que foram convidados para participar desse processo, visando
contribuir com todo o conhecimento prévio que possuíam a respeito da estrutura e
perfil do Tribunal.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, nos Países Baixos, foi
criado em 2002, a partir da elaboração do Estatuto de Roma (1998), que regulamentou
as suas competências, funcionamento e jurisdição, enquanto uma instituição de caráter
permanente, apta a responsabilizar criminalmente indivíduos por crimes graves. Por
definição, tais crimes constituem ameaças à paz, à segurança e ao bem-estar da
humanidade, considerados, portanto, crimes internacionais. A corte conta atualmente
com 123 países membros que, ao promulgar o Estatuto de Roma, reconhecem a sua
autoridade para julgar e processar crimes cometidos em seus territórios. O Estatuto do
TPI foi ratificado pelo Brasil, através do Decreto nº 4.338, de 25 de setembro de 2002,
tornando-se o 69º Estado a reconhecer a jurisdição do tribunal.
Existem dois pontos fundamentais para dimensionarmos as implicações
simbólicas e práticas da criação do TPI. O primeiro diz respeito à impunidade
historicamente associada à não responsabilização individual e penal dos
perpetradores desses crimes. Para Lewandowski (2002), a sua criação é um marco
importante na história dos direitos humanos e internacionais, pois foi “a primeira vez
na história dos Estados que se consegue obter o necessário consenso para levar a
julgamento, por uma corte internacional permanente, políticos, chefes militares e
mesmo pessoas comuns pela prática de delitos da mais alta gravidade” (2002: 187). O
segundo ponto refere-se ao modo como a formação dos Estados-Nações modernos está
calcada no ideal de soberania, que, no plano internacional e diplomático, representa
desafios para a eficácia dos chamados direitos humanos. Ao ratificar o Estatuto de
Roma, o Estado-Nação não apenas reconhece a jurisdição do tribunal em seu território,
como também rompe com um entendimento clássico da teoria estatal “de que os
governantes, no exercício da soberania estatal, eram juridicamente irresponsáveis por
seus atos” (2002: 188). Conforme o Artigo 27 do Estatuto, imunidades de
funcionários/oficiais locais não são reconhecidas pelo tribunal, o que tem implicações
para as denúncias que envolvem chefes de governo, como é o caso de Bolsonaro.
Segundo estabelecido por ocasião de sua criação, o TPI não julga crimes que
aconteceram antes do seu surgimento ou que ocorreram num determinado país no
período que antecede a sua filiação. Com o intuito de pôr fim à impunidade dos
83
autores desses crimes e a contribuir, assim, para a prevenção dos mesmos, o Tribunal
opera a partir de vários princípios, numa sequência complexa de etapas que pode
durar anos. No TPI, um dado processo tem início no recebimento da representação,
seguido por exame preliminar, autorização para a investigação, investigações, pré-
julgamento, julgamento e o veredicto (Machado, 2020). A maioria dos casos são
descartados após o seu recebimento, como indicam os dados de 2019, onde 754 (95%)
das 795 queixas recebida sequer entraram na etapa do exame preliminar (Pinto, 2020b).
circulavam entre os demais participantes antes dos encontros. Esse foi um recurso
importante, uma vez que cada sessão envolvia uma grande carga de leitura, difícil de
ser coberta em sua totalidade pelas lideranças e advogados indígenas participantes,
que costumam seguir uma agenda de trabalho com múltiplas demandas simultâneas
e prazos exíguos. Após a discussão dos textos, o convidado da semana fazia uma
exposição a respeito do TPI, seguida por debate e perguntas dos participantes.
Os cinco encontros contaram com a presença de renomados convidados com
atuação reconhecida e diferentes especializações em direito internacional e TPI. No
primeiro encontro, tivemos a presença da jurista Sylvia Steiner, que atuou como juíza
na Corte Penal Internacional de 2003 a 2009. No segundo, contamos com a participação
de Renata Nagamine, que tem experiência com direito internacional e atualmente faz
pós-doutorado em Relações Internacionais na Universidade Federal da Bahia. O
terceiro convidado foi o professor de direito internacional da FGV, Salem Nasser,
especialista em temas relacionados ao pluralismo jurídico e direto global, com foco no
Oriente Médio e no mundo árabe. No quarto encontro, tivemos a advogada francesa
Amelie Robine, com experiência em direito econômico internacional e, por fim, no
quinto encontro, a jurista Ania Salinas Cerda, que atua desde 2010 como oficial jurídica
no TPI. Embora cada encontro fosse centrado num tema específico, que ficava evidente
na bibliografia escolhida, os convidados, por sua vez, eram interpelados com questões
diversas que refletiam os pontos considerados mais problemáticos e/ou mais
importantes para os participantes das oficinas. Diante do exposto, ao invés de
descrever em minúcia cada um dos encontros, optamospor fazer uma análise do
conjunto de tópicos de maior rendimento, isto é, temas transversais que eram
recorrentemente retomados a cada sessão.
O primeiro deles diz respeito ao perfil da denúncia que a APIB viria a
apresentar. Esse debate se deu em torno de polos opostos, mas intimamente
articulados, quais sejam: de um lado, a elaboração de uma peça com um perfil
fortemente político; de outro, o reconhecimento da necessidade de uma forte ênfase na
dimensão jurídica. Essas direções na composição da peça eram apresentadas como
possibilidades distintas, cabendo aos advogados indígenas traçar a melhor estratégia,
buscando acentuar ambos os aspectos simultaneamente e/ou tentar mesclá-los em sua
85
17 Em caso de condenação, as penas previstas pelo Estatuto de Roma são: a) prisão por um
número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou b) prisão perpétua, se o elevado grau
de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem 2. Além da pena de prisão, o
Tribunal poderá aplicar: a) multa, de acordo com os critérios previstos no Regulamento Processual; b)
perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos
direitos de terceiros que tenham agido de “boa fé”. Até o presente, “houve 30 casos perante o Tribunal,
alguns com mais de um suspeito. Os juízes do TPI emitiram 35 mandados de prisão. Graças à
cooperação dos Estados, 17 pessoas foram detidas no centro de detenção do TPI e compareceram
perante o Tribunal; 13 pessoas continuam foragidas. As acusações contra três pessoas foram retiradas
devido às suas mortes” (Ver https://www.icc-cpi.int/about. Acesso em 10/06/2021).
86
para julgar os crimes denunciados. Isso nos leva a indagar: o sistema jurídico brasileiro
tem condição, independência e imparcialidade para processar o Presidente Bolsonaro
pelos fatos em questão? O tipo de responsabilização que a APIB busca com essa
denúncia é, sistematicamente, barrada no Brasil por um sistema que, através da
imunidade parlamentar e outros mecanismos jurídicos sempre, tende a proteger os
governantes. Ademais, a legislação penal brasileira não trata desses crimes com a
mesma amplitude que as normas internacionais previstas no Estatuto de Roma. Dito
isso, quando da realização das oficinas, não existiam internamente ações de
responsabilização penal contra o Presidente em exercício.
Também foram amplamente debatidas questões acerca da seletividade e
politização demasiada do Tribunal. O perfil dos casos julgados por ele tem sido alvo
de críticas por sua seletividade, indicada, por exemplo, quando se constata que, em
2016, 14 anos após o início de sua atividade, a corte havia intervindo apenas em
Estados africanos (Africa and the International Criminal Court, 2016). Em 2020, esse
quadro permanece problemático, conforme apontado por Kamari Maxine Clarke.
O TPI emitiu acusações contra quarenta e dois indivíduos, todos negros e/ou
árabes-africanos. Reconhecendo a existência de racismo anti-negro e anti-
muçulmano em todo o mundo, seria de esperar que a justiça criminal
internacional interrogasse ainda mais o lugar da raça e do racismo. No entanto,
como Randle DeFalco e Frédéric Mégret argumentam, os agentes do TPI e de
outros tribunais internacionais rejeitaram veementemente qualquer noção de
que a raça pode moldar as condições e os resultados de suas funções (Clarke,
202018).
18https://www.justsecurity.org/71614/negotiating-racial-injustice-how-international-
Figura 8.3 Povos Indígenas levam a mensagem sobre "Ecocídio", pedindo "Condenação ao genocida"
durante o Acampamento Luta pela Vida (Foto de @kamikiakisedje em @apiboficial postada em 27 de agosto de
2021)
19 O Estatuto de Roma não proíbe a guerra, mas violações graves às Convenções de Genebra, de
12 de agosto de 1949.
90
E em 24 de janeiro de 2020, afirmou que “o índio mudou [...] Cada vez mais, o índio é
um ser humano igual a nós. Então, vamos fazer com que o índio se integre à sociedade
e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer aqui” (G1, 2020).
92
probabilidades de que cause danos graves que sejam extensos ou duradouros ao meio
ambiente” (Altares, 202122). A proposta de tipificação do crime de ecocídio mostra que
a atenção internacional está voltada para a pauta da destruição ambiental, o que pode
servir como um indicador potencialmente positivo da recepção da Procuradoria do
TPI diante da gravidade dos fatos dispostos na comunicação da APIB.
Em relação à disposição e seleção dos fatos na peça final, a APIB acionou sua
extensa de redes de parceiros para compor, da forma mais ampla possível, a apuração
de todas as violações durante a gestão de Bolsonaro. Em maio de 2020, lançou uma
chamada para que as lideranças indígenas enviassem registros das violações de direito
de que vinham sendo vítimas, através de um canal em seu site e também das
ferramentas de comunicação, como o Whatsapp. O Observatório dos Direitos e
Políticas Indigenistas (OBIND), criado no Departamento de Estudos Latino-
Americanos (ELA) da Universidade de Brasília, sob a coordenação de Elaine Moreira,
também vinha fazendo um importante trabalho de levantamento e sistematização de
dados qualitativos e quantitativos a respeito dos conflitos interétnicos envolvendo os
povos indígenas. A própria APIB já havia sistematizado parte dos fatos quando
contribuiu com o pedido de Impeachment do Presidente, protocolado em 14 de julho
de 2020, assinado por diversos Movimentos Sociais, artistas, e intelectuais23.
Uma vez protocolada uma denúncia, o trâmite processual dentro do TPI pode
levar muitos anos ou mais de uma década, desde as etapas iniciais até o julgamento e
um veredicto. Ainda assim, conforme mencionamos anteriormente, os resultados de
ações de litigância estratégica, como a que abordamos aqui, têm efeitos diversos, que
vão além do desempenho processual no âmbito do tribunal.
22https://brasil.elpais.com/ciencia/2021-06-23/ecocidio-crime-contra-o-planeta-ganha-
24 https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-01/acao-contra-bolsonaro-da-passo-inedito-no-
tribunal-penal-internacional-enquanto-indigenas-se-preparam-para-denuncia-lo-por-genocidio-e-
ecocidio-na-corte.html (Acesso em 04/07/2021)
25 https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-01/acao-contra-bolsonaro-da-passo-inedito-no-
tribunal-penal-internacional-enquanto-indigenas-se-preparam-para-denuncia-lo-por-genocidio-e-
ecocidio-na-corte.html (Acesso em 04/07/2021) e https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-
chade/2021/06/28/pela-1a-vez-brasil-e-citado-por-assessora-da-onu-sobre-
genocidio.htm?cmpid=copiaecola (Acesso em 04/07/2021).
95
que representa, para a garantia dos direitos humanos e da justiça social em relação aos
povos indígenas, a figura de Bolsonaro.
A visão da APIB
26 https://apiboficial.org/2021/08/09/inedito-apib-denuncia-bolsonaro-em-haia-por-
genocidio-indigena/ (Acesso em 10/11/2021
96
JB: Aproximadamente quanto por cento o teu estado, o Acre, está tomado, no
tocante à reserva indígena?
27https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/02/bolsonaro-diz-que-vai-integrar-indios-
e-quilombolas.ghtml
28 A organização Survival International compilou a maioria das falas do Presidente Jair Bolsonaro contra
os povos indígenas em https://www.survivalbrasil.org/artigos/3543-Bolsonaro (Acesso em 05/10/2021)
29 https://www.youtube.com/watch?v=jUgDXVbPHZs (Acesso em 10/11/2021)
30https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/fala-do-
presidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-reuniao-com-os-governadores-dos-estados-da-
amazonia-legal-palacio-do-planalto (Acesso em 09/10/2021)
98
Então, 86% você não pode fazer nada em teu estado. Oitenta e seis por cento,
você não pode... qualquer atividade humana nossa não pode ser realizada lá?
Governador: Temos restrições de ordem ambiental. (...)
JB: Então, um estado que 86% do seu território inviabilizado para até exploração
sustentável não existe. (...)
Muitas reservas têm um aspecto estratégico, que alguém programou isso. O
índio não faz lobby, não fala a nossa língua e consegue hoje em dia ter 14% do
território nacional. Vou fazer, no final, um breve histórico sobre isso daí. Mas
isso tem a intenção, uma das intenções é nos inviabilizar. (...)
Hoje, se o garimpo é ilegal, nós queremos legalizar. O que que é legalizar? É
ouvindo o Parlamento. Eu não vou tomar nenhuma decisão usando uma caneta
compacto, ou caneta Bic, tá? E isso daí está bastante avançado no Ministério das
Minas e Energia, pretendemos apresentar brevemente essa proposta. (...)
O nosso sentimento aqui, a nossa decisão até o momento, mas vamos ouvir os
governadores, é de não demarcar mais isso aí porque, afinal de contas, já
extrapolou essa verdadeira psicose, no tocante às demarcações e ampliações de
terras aqui no Brasil. (...)
Em fevereiro de 2020, foi apresentado pelo Poder Executivo o Projeto de Lei 191
que visa liberar a mineração, garimpo e aproveitamento de recursos hídricos para
geração energética em terras indígenas. A APIB reiterou o fato de que o Presidente
incluiu o PL 191 na lista dos 35 projetos prioritários do governo, em fevereiro de 2021,
entregue aos presidentes da Câmara e do Senado. Isto é, em plena pandemia do
coronavírus, liberar o garimpo e outras atividades extrativistas em terras indígenas era
uma das prioridades governamentais.
O quadro geral elaborado pela APIB acerca dos fatos que compõem a conduta
criminal mostra o caráter sistemático dessas ações. Indicam que a destruição da
31https://cimi.org.br/2021/02/nota-publica-nova-normativa-funai-retoma-politica-
política indigenista é elaborada tanto por ações deliberadas, quanto por omissões e
negligências, cujo efeito direto é a impossibilidade de continuidade da vida indígena
conforme seus moldes tradicionais. Temos um conjunto de ações que acarretam
vulnerabilidades territoriais com a não demarcação, promoção da grilagem e do
esbulho. Verifica-se ainda, o “aparelhamento dos órgãos de proteção a direitos
indígenas e socioambientais, o estímulo à invasão, ao desmatamento, ao garimpo e à
propagação da pandemia de Covid-19 (Apib, 2021: 25).
Na página 13
Nenhum desses atos ou medidas deve ser compreendido de forma isolada. Eles
formam, juntos, uma importante faceta do governo anti-indígena do presidente
Jair Bolsonaro, que favorece a destruição das terras indígenas e das vidas indígenas por
meio do incentivo à mineração e garimpo nos seus territórios [...] A mineração traz uma
série de consequências nefastas, uma série de formas de matar, já amplamente conhecidas
e documentadas [..] (Apib, 2021: 36-37; grifos nossos)
Segue:
Continua:
Figura 9.3 Em panfleto de 30 de julho de 2021, a APIB se mobiliza contra o garimpo, atestando a sua
letalidade e associação com o genocídio (@dinamamtuxa)
104
Figura 10.3 Panfleto da APIB, de 20 de maio de 2021, denunciando a letalidade do garimpo e associando-
o a genocídio. (@guajajarasonia)
105
Figura 11.3 Panfleto da APIB sobre Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 177/2021, que pretende
autorizar o Presidente da República a abdicar da Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho.
(@apiboficial em 21 de julho de 2021)
106
Figura 12.3 Panfleto da APIB, de 26 de junho de 2021, sobre o caráter genocida do PL 490
Parte II – O conceito
de genocídio
109
Uma das primeiras questões com as quais me deparei ao iniciar os estudos sobre
genocídio foi a dificuldade dos povos indígenas com as políticas de seu uso,
enunciação e aplicabilidade. Como alguém interessado em debater o genocídio
indígena, constatei rapidamente que falar sobre essa temática era adentrar uma seara
repleta de apagamentos, silêncios e melindres. Num seminário internacional realizado
na Universidade de Brasília (UnB) entre 25 e 26 de setembro de 2019, intitulado
Genocídio Indígena, pesquisadores de diversas áreas, indígenas e não indígenas, se
reuniram para discutir, de uma perspectiva histórica e comparativa, a situação desses
povos no Brasil, Colômbia e Argentina. Na abertura do evento, o então Vice-
Procurador-Geral da república, Luciano Mariz Maia, um dos palestrantes convidados,
compartilhou conosco o registro que segue:
32 Embora seja particularmente intenso quando quem enuncia é vinculado a movimentos sociais ou
ocupa o lugar de vítima, o caso de Maia citado mostra que, mesmos juristas conceituados, podem ser
interpelados dessa maneira.
112
Não é novidade nem surpresa que, após 1948, logo depois da criação do
conceito de genocídio, povos indígenas ao redor do mundo perceberam que a violência
que suas sucessivas gerações vinham sofrendo por séculos em seus territórios se
adequava de maneira flagrante ao escopo do crime “recém-criado” de genocídio.
Churchill afirma que, já em 1968, o Movimento Indígena Americano (AIM) foi rápido
em aplicar o conceito ao contexto da história norte-americana, sendo posteriormente
acompanhado por grupos aliados dentro de movimentos de libertação Negra e
Chicana, e do movimento de independência porto-riquenha (Churchill, 1997: 7). Em
1970, cinco aborígenes australianos pertencentes à Aborigenes Advancement League
(AAL) protocolaram na ONU uma petição que denunciava o governo australiano por
genocídio. Exemplos como esses são muitos; partem de experiências diversas que nem
sempre são percebidas como decorrentes de projetos civilizatórios semelhantes e que
foram continuados pelas novas nações construídas nos antigos territórios indígenas.
O silêncio a seu respeito é, todavia, ensurdecedor. Se você for a uma livraria no Brasil,
terá dificuldades para localizar livros sobre a violência contra os povos indígenas e
negros, mas encontrará muitos livros sobre guerras, revoluções e nazismo na Europa,
seja na forma de relatos históricos, biografias e autobiografias de sobreviventes,
reinterpretações, romances ou relatos de todos os tipos.
Quando indígenas e outros grupos, cuja racialização remonta ao imperialismo
europeu, acionam o conceito de genocídio em suas realidades e a partir de suas
experiências, percebemos que inúmeros deslocamentos ocorrem no campo jurídico
quanto aos significados que foram atribuídos de maneira unilateral ao escopo de
abrangência do conceito. Isso fica evidente, por exemplo, quando constatamos que o
processo de seu surgimento ocorreu apenas em meados do século XX, quando esses
grupos já possuiam um longo acúmulo de experiências com a empresa colonial, cuja
história está repleta de relatos de práticas genocidas. Assim, o termo “genocídio”
aparece em inúmeros lugares como um termo inventado para dar nome a um crime
que até então não tinha nome. Ou seja, é como se, antes do nazismo, a necessidade de
olhar seriamente para essa classe de delitos não houvesse surgido.
Em 1950, cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o intelectual
diaspórico da Martinica, Aimé Cesaire (2020), publicou seu importante Discurso sobre
116
Scott Trevithick expressa uma preocupação ainda maior com o uso do termo
“genocídio” quando se fala em internatos indígenas, porque ele associa tal uso
à poluição da pesquisa acadêmica por sentimentos morais, bem como a uma
tendência a alegações abrangentes e simplificações exageradas. Ao criticar o
trabalho de Agnes Grant, Trevithick acusa seu uso do termo de "impróprio" e a
ela por manipular evidências para caberem na Convenção de Genocídio das
Nações Unidas. Além disso, ele afirma: “ao inferir que a experiência indígena
nos internatos se aproximava do Holocausto nazista ela perverte o conceito de
genocídio e comete uma grave injustiça a estes fenômenos”. Aqui, novamente,
o Holocausto ofusca a discussão e se confunde com o conceito de genocídio.
(Woolford, 2015: 11; tradução nossa).
119
O que aconteceu foi que, nas páginas finais de seu projeto, a autora substituiu
sutilmente uma agenda por outra. Sem pausa ou notificação, ela muda do
objetivo inteiramente digno de expor, confrontar e repudiar sistematicamente
aqueles que negam a existência do Holocausto, para uma tentativa muito mais
duvidosa de confirmar o genocídio nazista dos judeus europeus como algo
absolutamente singular, um processo sem paralelo em toda a história humana.
Há uma tremenda diferença entre as duas proposições, mas Lipstadt desvia
todos os esforços para fazê-las parecer sinônimos. Com efeito, qualquer “falha”
em conceder a “singularidade fenomenológica” intrínseca do Holocausto é ser
culpado de negá-lo completamente (Churchill, 1997: 31; tradução nossa).
O que Churchill apontou no trabalho de Lipstadt é uma tendência recorrente
no campo em disputa dos estudos de genocídio. Como afirmei anteriormente, para
alguns, a experiência judaica com o nazismo seria o exemplo paradigmático ao qual os
debates posteriores sobre genocídio precisariam se adequar. Dando um passo à frente,
outros a situariam num patamar de unicidade, não replicável nem localizável em
nenhum outro registro de violência em massa ou de extermínio de grupos que tenha
ocorrido na história. Os efeitos desta segunda tendência também têm implicações
diretas na reivindicação de outras vítimas que buscam justiça por meio do conceito de
genocídio.
Embora não tenhamos nos debruçado de forma intensa sobre esse tipo de
produção acadêmica, reunimos dois exemplos que não devem de maneira alguma ser
tomados como emblemáticos, e sim como ilustrações aleatórias da questão em pauta.
Entrei em contato com a produçao bibliográfica de Guenter Lewy através de um artigo
intitulado Can there be genocide without the intent to commit genocide?, publicado em 2007,
120
no Journal of Genocide Research, no qual o autor expressa uma visão bastante formalista
da noção de intencionalidade. (Lewy, 2007). Lewy nasceu em 1923 na Alemanha, e é
professor emérito de Ciências Políticas da Universidade de Massachussets. É autor de
vários livros sobre a Alemanha nazista e a experiência judaica. É também autor de
vários livros dedicados à situação dos ciganos durante o regime nazista, a guerra
norte-americana contra o Vietnã e a destruição de armênios pelo Império Ottomano.
Nenhum desses casos, segundo ele, poderia ser considerado genocídio (Lewy, 2012).
Em setembro de 2004, o autor publicou um ensaio na revista Commentary,
intitulado Were the American Indians the victims of genocide?, no qual refuta a ideia de
um genocídio indígena no contexto norte-americano. O texto tem como ponto de
partida uma entrevista dada por W. Richard West, diretor e fundador do então recém
criado Museum of the American Indian. West havia afirmado que a “instituição não se
esquivará de assuntos difíceis, como o esforços para erradicar a cultura indígena
americana nos séculos XIX e XX. Seguramente, alguém também irá, inevitavelmente,
levantar a questão do genocídio” (Lewy, 2004). As linhas que se seguem constituem
um esforço de Lewy de rechaçar a possibilidade de que o contexto colonial, embora
marcado por violência, fosse enquadrado como genocida. Em sua argumentação, o uso
do termo “genocídio” refletiria “exageros” e “acusações unilaterais”, e as mortes que
resultaram de epidemias não foram, de modo algum, a intenção inicial da empresa
colonial. A respeito de outras hostilidades que tenham ocorrido, o autor tenta fazer
parecer que constituíam um estado mútuo de guerra, mencionando que os povos
indígenas também assassinaram muitos colonizadores e que muitos eram temidos e
conhecidos por sua reputação de crueldade implacável. O extermínio judeu também
aparece como norte comparativo: “por mais difíceis que fossem as condições de
trabalho dos índios - trabalho obrigatório, muitas vezes, alimentação e cuidados
médicos inadequados, castigos corporais -, sua experiência não tinha comparação com
o destino dos judeus nos guetos” (Lewy, 2004). E, ao fim:
Tanto nos atos de barbárie como nos de vandalismo, evidencia-se o espírito anti-
social e destrutivo do autor. Esse espírito, por definição, é o oposto da cultura e
do progresso da humanidade. Isso leva à evolução das ideias de volta ao período
sombrio da Idade Média. Tais atos chocam a consciência de toda a humanidade,
enquanto geram extrema ansiedade quanto ao futuro. Por todas essas razões,
atos de vandalismo e barbárie devem ser considerados ofensas à lei das nações
(Lemkin, 1933, sem página; tradução nossa).
O conceito de genocídio foi elaborado por Lemkin dez anos após essa primeira
formulação. Em certa medida, podemos afirmar que os atos de barbarismo e de
vandalismos constituem um primeiro esboço, ainda que separados, do que ele
percebia como genocídio. O autor elaborou o conceito de genocídio formalmente no
capítulo IX de Axis Rule In Occupied Europe, uma extensa obra na qual descreve em
minúcia as políticas de ocupação tomadas pelos integrantes do Eixo, Alemanha,
Japão e Itália, mais Hungria, Bulgária e Romênia, nos dezessete territórios de países
tomados durante o regime nazista. Para ele, a política de ocupação do Eixo infringia
as normas dispostas nas Convenções de Haia, importantes tratados internacionais
sobre leis e crimes de guerra, uma vez que Hitler, no intuito de instituir a sua Nova
Ordem Nacional-Socialista, pautava uma guerra total, onde se guerreava não apenas
contra estados, exércitos e nações soberanas, mas também contra seus povos. Assim,
“a nação inimiga ocupada poderia ser enfraquecida, desintegrada e destruída num
126
programa que levaria décadas”. (Lemkin, 1944: 81; tradução). Lemkin tentou advertir
o máximo de pessoas que a agenda nazista desenhava uma guerra que iria além do
interesse geopolítico de alterar fronteiras e adquirir territórios. Buscava-se também
alterar o elemento humano dentro dessas fronteiras. Essas alterações significavam
que a maior parte da população dos territórios ocupados, como judeus, ciganos,
polacos e russos, seria gradativamente exterminada e substituída por alemães.
Hitler pretende mudar toda a estrutura populacional da Europa por mil anos -
o que significa, virtualmente, para sempre. Certas nações e raças desaparecerão
completamente ou ficarão aleijadas indefinidamente. Mesmo no caso de derrota
alemã, os alemães planejaram que essas nações restantes terão que se apoiar na
Alemanha para se manterem vivas. Os alemães estão tentando derrotar e
destruir não governos, mas povos. Eles sabem que se o povo for destruído, não
haverá governos ou, com a destruição parcial, governos tão fracos que a
Alemanha não terá que temê-los (Lemkin e Frieze, 2013: 109, tradução nossa).
Lemkin sabia, baseado nos escritos pré-guerra de Hitler, que suas intenções com
o genocídio eram pensadas num processo de germanização que só poderia ser feito
com o solo e nunca com os homens, que, numa perspectiva racializada, nunca iriam
tornar-se alemães (Lemkin, 1944: 81). Nesse sentido, não havia futuro para os povos
dos países ocupados, que poderiam até servir como trabalhadores por um certo tempo,
mas que eram, de fato, não apenas dispensáveis como também indesejáveis no futuro
imaginado por Hitler.
As intenções por trás das técnicas de ocupação mobilizadas pelo Eixo passaram
a ser estudadas por Lemkin ainda durante a sua estada na Suíça, quando começou a
analisar os jornais oficiais dos países ocupados e também aqueles produzidos pelo
Reich alemão. Percebeu que Hitler havia escrito que a Alemanha não deveria procurar
por colônias fora da Europa e sim, dentro dela. Essa máxima foi posta em prática logo
após as primeiras invasões da Polônia através de um decreto de 1939, que previa que
esses territórios deveriam ser incorporados à Alemanha, passando por um processo
de germanização com a desnacionalização e desumanização de seus antigos
ocupantes, destruindo a intelligentsia local e condenando outros tantos a exaurir sua
existência no trabalho forçado, o que levaria à “morte da nação num sentido espiritual
e cultural” (Lemkin & Frieze, 2013: 77; tradução nossa).
127
destinada aos judeus, poloneses e russos estava em gestação [?], de modo que a sua
formulação do delito de genocídio não foi condicionada pelos acontecimentos que
viriam a se tornar o evento paradigmático de onde irradia o significado atualmente
dominante de genocídio.
O autor iniciou a elaboração de Axis Rule In Occupied Europe em Estocolmo, na
Suécia, em 1940, quando buscou reunir o maior número de registros, decretos, jornais
oficiais e magazines elaborados nos países ocupados pelo Eixo, considerando que,
“como advogado, eu sabia o significado de documentos oficiais no entendimento de
política. Sabia que podia ler as intenções do governo nazista através de medidas legais
como decretos e ordens. Decretos são objetivos e evidências irrefutáveis”. (Lemkin e
Frieze, 2013: 76; tradução). Esses documentos previam um processo amplo de
genocídio, através de racionamento de comida que destinava aos judeus uma dieta
desprovida de gorduras, carboidratos e proteínas, e a criação de guetos em Varsóvia
com pena de morte para aqueles que saíssem sem a devida permissão, e apreensão de
suas propriedades (Lemkin e Frieze, 2013: 77-78). Particularmente interessante para o
nosso estudo é o modo como boa parte de sua obra sobre o genocídio nazista foi escrita
tendo como referência a análise de documentos e registros escritos que ele pôde
consultar antes da derrota alemã. Foi através do estudo dos decretos emitidos pela
Alemanha nos países ocupados, num contexto onde as leis “não tinham mais função
ética de justiça distributiva, tornando-se um sistema para fazer cumprir tudo o que foi
considerado útil para o estado” (Lemlin, 2012: 108), que o autor atestou e verificou a
intenção letal que embasava a criação de medidas burocráticas e técnicas que, em anos
ou décadas, poderiam levar à morte física através, por exemplo, da distribuição
desigual de alimentos numa política de racionamento e instituição de trabalhos
forçados em condições desumanas.
De acordo com Lemkin, as notícias que afirmavam que execuções em massa
estavam acontecendo na Europa começaram a circular ao fim de 1942 e duraram até
dezembro de 1944. Todavia, o autor vinha denunciando a política genocida do Eixo
anos antes de tais acontecimentos, o que sugere que a sua formulação do termo
“genocídio” não incluia, necessariamente, assassinatos em massa. Ele dirá:
129
A Alemanha nos lembrou que nossa ciência e nossa civilização não eliminaram
a barbárie do animal humano. Eles simplesmente o armaram com instrumentos
mais eficientes. Devemos invocar os recursos de todas as nossas instituições
sociais e jurídicas para proteger nossa civilização contra o ataque desta barbárie
131
simplicidade senhorial da Casa Branca. Seu estilo parece dizer claramente, com
uma graciosidade democrática, “Nós apenas começamos daqui”. Há grande poder e
espírito neste eufemismo arquitetônico. Fiquei impressionado com a elegância
discreta da Sixteenth Street e a extravagância semelhante a um parque da
Massachusetts Avenue. Os monumentos, especialmente o de Lincoln, contaram
sua história com o que me parecia uma grande simplicidade sem ser grandioso.
Na maneira como Lincoln está sentado, não há nenhuma sensação artificial de
uma pose dirigida a impressionar e aterrorizar a posteridade: há, acima de tudo,
um sentimento de humanidade e solidão contemplativa (Lemkin e Frieze, 2013:
107; tradução nossa; grifos nossos).
O modo como narra a brevidade da nação norte-americana e sua
homogeneidade não demonstra nenhum tipo de inquietação diante de uma história
que, em muitos aspectos, se assemelha ao processo de germanização posto em prática
pelo nazismo. Embora ele mesmo utilize o termo “colonização” para se referir ao
nazismo, é como se os povos indígenas e seus modos de vida destruídos para que os
Estados Unidos se erguessem não tivessem sido submetidos a uma violência genocida.
O autor não menciona esse genocídio, o que, em certa medida, pode ser apontado como
uma falha sintomática de seu trabalho, evidenciando a longa naturalização desses
processos quando recaíram sobre povos tidos como não ocidentais, ou bárbaros, para
utilizar seus próprios termos.
.
A ONU foi criada em 24 de outubro de 1945, quase dois meses após o fim da
Segunda Guerra Mundial, em 02 de setembro. O espírito geral entre as nações após a
experiência de guerra clamava pelo fortalecimento do corpus jurídico internacional,
para que ele prevenisse que violações de direitos humanos, individuais e coletivas,
ocorressem em contextos de guerra. Os anos que se seguem são marcados por avanços
no direito internacional, com a criação de instrumentos jurídicos voltados para a
promoção de uma comunidade transnacional ancorada nos ideais da democracia, do
pluralismo e de direitos humanos básicos e invioláveis. O Tribunal de Nuremberg,
entre 1945 e 1946, por sua vez, foi responsável por fomentar importantes debates, ao
julgar a conduta de chefes e oficiais alemães durante a guerra. A partir da criação sem
precedentes de um tribunal internacional desse tipo, regulamentaram-se os crimes de
134
guerras como crimes contra a paz e crimes contra a humanidade, versando sobre as
violações dos tratados internacionais e sobre ataques contra a população civil, sem os
objetivos econômicos ou territoriais dispostos até então no entendimento acerca das
guerras.
É nesse contexto que, em dezembro de 1946, a ONU emite a Resolução 96 (I) da
Assembleia Geral, declarando o genocídio como crime contra as leis internacionais,
convocando os países membros a promulgar a legislação necessária para punir e
prevenir esse crime, e recomendando ao seu Conselho Econômico e Social que iniciasse
os estudos pertinentes para a elaboração de um esboço inicial de uma convenção para
o crime de genocídio, a ser apresentada na Assembleia Geral subsequente (UN General
Assembly, 1946). O processo de elaboração do texto legal para a criação da Convenção
para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio levou cerca de dois anos, quando
foi adotada por unanimidade em 09 de dezembro de 1948, um dia antes da adoção da
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O texto da Convenção é composto por dezenove artigos, sendo os artigos II e III
aqueles de maior importância para o entendimento da tipificação do crime de
genocídio.
33Esse ponto será melhor debatido no Capítulo III na seção específica voltada para o Tribunal Penal
Internacional.
138
físico, biológico e cultural, contando ainda com uma menção a grupos linguísticos. Os
debates posteriores foram marcados por remoções e pela elaboração de outras
propostas, especialmente. com a criação, no início de 2018, de um comitê ad hoc para
elaboração de um novo esboço. Esse comitê foi formado pela China, França, Líbano,
Polônia, União Soviética, Estados Unidos e Venezuela. Embora ele devesse ter como
ponto de partida os esboços anteriores, não foi isso que aconteceu.
34Utilizo a palavra “crítica” entre aspas, uma vez que o contexto Yanomami é desesperador há décadas.
A reportagem veiculada no Fantástico, na Rede Globo, em 14/11/2021, expôs a intricada teia de
letalidade envolvendo diretamente o garimpo, milhares de garimpeiros ilegais, mortes de indígenas
Ye’kwana, Yanomami e isolados, aumento de casos de malária, poluição de rios, deterioração da vida e
desnutrição infantil: oito em cada dez crianças Yanomami estão desnutridas. Essa teia envolve
diretamente o Estado brasileiro que, além de incentivar o garimpo, recusa-se a elaborar uma política de
remoção desses garimpeiros, mesmo diante de decisões judiciais e da pressão nacional e internacional.
148
35“Saiba mais sobre os crimes listados pela CPI da Pandemia” de João Carlos Teixeira em
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/25/saiba-mais-sobre-os-crimes-listados-
pela-cpi-da-pandemia. Recuperado em 15 de novembro, 2021.
151
36 Conferir https://healingfoundation.org.au/stolen-generations/
153
Parte III –
Antropologia,
genocídio indígena
e a letalidade branca
“Eu comecei a acompanhar meu pai aos 6 anos de idade. Minha primeira retomada foi
na Terra Indígena de Pirakua, no município de Bela Vista. Nas retomadas, não tinha idade ou
gênero, e toda a comunidade ia junto. Na época, costumávamos rodar os lugares de caminhão,
passageiros da velha caçamba. Para mim tudo era uma grande festa, quando andei de caminhão
pela primeira vez na vida. Aquele vento no rosto, aquela emoção…
Mas minha mãe me alertava: 'filha, se algo acontecer, você corre, entra no mato e fica
agachada. Não sai, não chora, não grita'. Hoje, sou eu quem falo a mesma coisa para minha filha
de 10 anos de idade. Então, todos nós íamos, aos poucos, entrando e revezando de volta à nossa
terra.
Até que um dia houve uma perseguição. Alguns consideram 'correria', mas eu via aquilo
como perseguição. Perseguição do índio vivo… perseguição do índio morto.
Alguns pistoleiros vieram em alta velocidade no encalço da gente. Minha amiguinha na
época caiu do caminhão em uma curva e o carro logo atrás simplesmente passou por cima. Eles
fugiram, porque o que aconteceu bastava como 'sinal'. Descemos. A índia ainda estava a olhar
no meu rosto. Peguei na mão dela, e ela se fechou os olhos. Essa foi a primeira morte que
presenciei, mas outras ainda iriam suceder. Minha mãe falou: 'vamos rezar aqui para ela vai
ficar bem'” (Valdelice Veron, Liderança Guarani Kaiowá (Delvizio, 2021).
(Torres, 2016). Seu pai, que estava trabalhando numa praia da região, soube da notícia
pela televisão e, ao se encontrar com sua esposa, ouviu dela que seu filho havia sido
morto por um branco.
Na missa de sétimo dia, Kerexu Ixapyry, liderança do Povo Guarani que havia
viajado 93km para a ocasião, disse: “eu temia por esse momento. Os indígenas são
vítimas da violência em todo o Brasil. Mas é preciso a tragédia para que nos ouçam.
Somos tratados piores que animais. No Mato Grosso do Sul nosso povo está sendo
exterminado. Em Santa Catarina somos vítimas de ameaças” (Torres, 2016). O perfil
do algoz apurado pela polícia indicava um sujeito associado ao satanismo e uso de
drogas e que o crime provavelmente não teria motivações étnicas. A comunidade
Kaingang discorda. Na visão da vice cacique Márcia Rodrigues, “Esse menino não é
louco. Se fosse, teria matado o primeiro que viu pela frente. Ele escolheu o Vitor, um
bebê, no colo de uma indígena. Escolheu porque eram vulneráveis, assim são os índios
do Brasil” (Torres, 2016).
O caso do menino Kaingang Vitor Pontes está longe de ser isolado. Mortes
violentas de indígenas imersos em situações de vulnerabilidade historicamente
acumuladas são recorrentes. Após o réveillon, nas primeiras horas do ano de 2018, o
professor egresso do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata
Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina, Marcondes Namblá, do povo
Laklãnõ-Xokleng, “foi morto enquanto fazia trabalho temporário em Penha-SC,
vendendo picolé neste período de férias turísticas no litoral do estado. Foi espancado
na cabeça até cair desacordado” (Carvalho de Jesus, 2018). Embora o crime tenha
ocorrido num contexto conflituoso devido ao processo de regularização fundiária da
TI Ibirama-La Klãnõ, o delegado Douglas Teixeira Barroco, responsável pelo caso, não
acredita na hipótese de que o assassinato tenha tido motivações étnicas. “A princípio
a motivação foi por motivo de algum desentendimento, um negócio banal” (Pontes,
2018).
Cabe ainda resgatar o caso da morte do indígena Pataxó Hãhãhã e, Galdino
Jesús dos Santos, em 22 de abril de 1997. Dias antes, o indígena foi queimado vivo por
cinco jovens no Plano Piloto em Brasília.
160
***
37 O antropólogo inglês Bateson propõe uma análise etológica da cultura iatmul. “A abordagem
etológica envolve um sistema muito diferente de subdivisão da cultura. Sua tese é a de que podemos
abstrair de uma cultura um certo aspecto sistemático, chamado ethos, definido como a expressão de um
sistema de organização culturalmente padronizado dos instintos e das emoções dos indivíduos. O ethos
de uma determinada cultura é, como veremos, uma abstração de toda a massa de suas instituições e
formulações, e por isso pode-se esperar que os ethos sejam infinitamente variados de cultura para
cultura – tão variados quanto as próprias instituições” (Bateson, 2006: 169).
162
referência nos estudos sobre as castas e a sociedade indiana. A Índia possui hoje 20
idiomas oficiais e 1,6 mil dialetos (Uchôa Balgalore, 2013).
Para não ser totalmente injusto, e isso se aplica em especial aos trabalhos de
Ruth Benedict e Louis Dumont, a comparação entre as sociedades estudadas e as suas
próprias com a mundo Ocidental esteve sempre presente em muitas das análises
antropológicas. A máxima de que é através da experiência do Outro que conseguimos
enxergar coisas sobre nós mesmos nunca esteve, de fato, ausente do procedimento
antropológico. Ainda assim, parece-me que nenhum clássico do panteão canônico da
antropologia tomou o estudo da mentalidade branca como ponto de partida para a
fundação de um ramo da etnologia. Assim, temos inúmeras obras com títulos
sugestivos, como O pensamento selvagem (Levi-Strauss, 1976), O homem primitivo como
filósofo (Radin, 1960) e a Mentalidade primitiva (Lévi-Bruhl, 2008), mas não temos
nenhuma intitulada “O pensamento do homem branco” ou “Tabus e poluição na
mentalidade branca europeia” ou mesmo “Quem são os brancos?”.
Nos primeiros anos de formação em antropologia, nos é apresentado o grande
fenômeno da diversidade cultural num minucioso passeio etnográfico pelos costumes
e crenças de povos como os Nuer, Iatmul, Tikopia, Arapesh, Kwakiutl e tantos outros.
Os povos estudados pelos antropólogos constituíam dentro do imaginário Ocidental
aquilo que se convencionou denominar de “Alteridade Cultural”, diferentes formas
de ser e estar no mundo que, embora pudessem, a princípio, parecer ininteligíveis e
estranhas aos olhos europeus, tornaram-se passíveis de tradução a partir do trabalho
antropológico. O que a antropologia poderia chamar de pensamento branco, encontra-
se, todavia, rotulado apenas como “filosofia” ou mesmo, “ciência”. De certa maneira,
as construções dos brancos sobre o mundo quase nunca são adjetivadas, remetendo à
sua origem étnica ou geográfica, porque o sujeito branco se constitui enquanto
universal, em oposição ao Outro, que precisa ser sempre localizado e autocontido. Se
a alteridade é compreendida em termos locais, sempre culturalmente situada, étnica e
racialmente circunscrita, o pensamento europeu nos é apresentado no mundo colonial
de maneira universal, desenraizado das condições materiais, históricas e culturais do
seu surgimento.
164
38O desenvolvimento dessa perspectiva deve-se ao trabalho de muitos intelectuais que se recusaram a
ver a história da violência contra os povos indígenas no mundo como circunstancial ou arbitrária, como
Marimba Ani (1994); Patrick Wolfe (2006; 2016), Andrew Woolford (2015), Ward Churchill (1997).
165
Principalmente no contexto brasileiro, sugiro Carlos Frederico Santos (2017), Alcida Ramos (2018) e
Lélia Gonzáles (1988).
166
Como os antropólogos têm feito ao longo dos séculos em seus estudos sobre o
Outro, analisar o genocídio indígena dentro dessa perspectiva significa entender como
uma determinada cultura - a cultura dos brancos40 - expressou atitudes e desenvolveu
mecanismos para lidar com uma alteridade tida como dispensável no contexto de
roubo, apagamento e negação que marca a colonização e suas consequências. Em
outras palavras, o que estou propondo aqui é olhar para o genocídio indígena como
uma característica cultural e não como mera soma de eventos (Ani, 1994; Wolfe, 2006).
“Somos obrigados a obrigar o governo a não nos deixar morrer” foram as palavras
do advogado e antropólogo indígena do povo Terena, Luis Eloy Amado, para
denunciar a situação dos povos indígenas no Brasil durante a crise política e sanitária
do novo coronavírus (Terena, 2020). Sucessivos relatórios de diferentes atores, como
ativistas, membros de ONGs, líderes indígenas, intelectuais e até mesmo funcionários
do atual governo, estão abordando abertamente o aumento da vulnerabilidade dos
povos indígenas durante a pandemia. O momento atual agravou profundamente a
histórica marginalização das realidades indígenas no Brasil e nunca antes na história
do país o termo genocídio foi tão utilizado para caracterizar um amplo conjunto de
ações que resultam, permitem, geram e causam a morte indígena41.
Embora todos estejamos cientes dos massacres, guerras e epidemias que
historicamente conduziram à elevada letalidade na história dos povos indígenas que
40 Neste momento da discussão proposta, gostaria de ressaltar que qualquer tentativa de definir, a priori,
“quem são os brancos”, ou o que são “os brancos” enquanto unidade de análise pareceria incompleta e,
portanto, contraproducente. Enquanto categoria, o termo está presente na maior parte da literatura
etnológica, como nos títulos “O índio e o mundo dos brancos” (Cardoso de Oliveira 1996); “Pacificando o
branco: cosmologias do contato no norte amazônico” (Albert e Ramos 2002); “Quem somos nós – Os Wari
encontram os brancos” (Vilaça, 2006). Na arena interétnica, aparece, muitas vezes, em dicotomias como
índio/branco, equivalendo a índio/civilizado e, em minha comunidade, o adjetivo branco denota antes
a ideia de pertencimento e vinculação étnica do que aparência fenotípica: não afirmamos que alguém é
branco, e sim, dos brancos.
41 O Ministério Público Federal, em sua recomendação nº 11/2020 sobre a necessidade de medidas
urgentes a serem tomadas a nível governamental em relação aos efeitos do Coronavírus sobre os povos
indígenas, usa o termo genocídio cinco vezes, apontando a ameaça representada pela Covid-19.
167
42Refiro-me a tomar a violência contra os povos indígenas em si mesma como um objeto de reflexão e
sobre como ela configura a experiência indígena no mundo.
168
constante fiscalização. Muitas são as situações que nos mostram que, em contextos
onde essas normas estão suspensas ou a fiscalização ausente, a população age
conforme seus próprios desígnios. É o caso do motorista que reduz a velocidade apenas
quando sabe que o radar detector está próximo. Ou o caso de saques generalizados às
lojas e estabelecimentos privados, quando as instituições de controle e imposição da
ordem, como a polícia, entram em greve.
No contexto das violações de direitos indígenas e da violência contra esses
povos, ambos endêmicos na sociedade brasileira, devemos considerar que a
diminuição da propensão criminal está diretamente relacionada à possibilidade de que
a conduta em questão não fique impune. Todavia, da perspectiva indígena, é comum
avaliar-se a impunidade em crimes envolvendo povos indígenas como regra, e não
exceção. Por exemplo, o que a presença de mais de vinte mil garimpeiros ilegais dentro
da T.I Yanomami nos diz sobre o cumprimento da norma de usufruto permanente e
exclusivo indígena dessas terras? Sobretudo, se considerarmos o fato de aquela ser
uma presença que dura décadas, sem medidas eficazes para assegurar esse uso
exclusivo desses territórios e uma desintrusão permanente (Linder, 2021). Os
assassinatos, as perseguições e a criminalização de lideranças seguem sendo revestidos
de um manto de impunidade estrutural, levando-nos a considerar que a relação entre
as leis e a violência contra esses povos pode ser mais próxima do que de início
poderíamos imaginar. Na história colonial, vários dispositivos legais, como a lógica do
descobrimento, tratados firmados com líderes indígenas, a ideia de “terra nullius”,
expressão latina do direito romano para nomear “terra de ninguém”, foram
amplamente mobilizados para legitimar o roubo e o saque de terras indígenas. Sobre
esse ponto, Marimba Ani indaga:
Não se tratava apenas de converter e civilizar pessoas, era preciso ainda intervir nos
lugares não alcançados pela conquista, acabar com os lugares desconhecidos, porque
o caráter ameaçador da alteridade estava também associado à sua manifestação
espacial, a natureza bruta. Para os colonizadores, era nos lugares escuros, nas
cavernas, nas matas fechadas, que Lúcifer, silenciosamente, realizava seu trabalho
(Cruz, 2017a).
Patricia Seed (1995) analisou os rituais coloniais realizados por portugueses,
espanhóis, franceses e ingleses para legitimar a posse de territórios. Quais eram as
primeiras coisas que faziam esses colonizadores ao chegar numa terra recém-
conquistada, coisas que viessem ancorar os seus direitos naqueles lugares? A partir de
visões distintas de posse, a autora mostra o simbolismo inglês em torno da abertura
de roças, construções residenciais e o estabelecimento de limites, isto é, de cercas e
muros. Mostrou a ritualização portuguesa em torno da ideia de descoberta e a ênfase
espanhola dada à leitura pública de determinados textos a realização de missas
decretando a submissão nativa aos poderes da Coroa e do colonialismo. Vistos de
perto, esses gestos ritualizados são mais do que cerimônias de posse, são também
rituais voltados para o estabelecimento da ordem nesses lugares e junto a esses povos
que, por definição, são perigosos, justamente, por estarem fora da ordem prevista em
seus próprios sistemas sociais.
Nesse sentido, a violência contra os povos indígenas tem o seu lastro
indissociável da tentativa de impor ordem e controle nos termos da mentalidade
europeia. Tal ordem se opõe a presenças inarticuladas, marginais, pessoas com status
ambíguos dentro da sociedade, cujo caráter ameaçador prevê o uso da violência e de
formas de subjugação. Em nenhum lugar, talvez, isso fique mais evidente do que na
tentativa de controlar os povos indígenas a partir do estabelecimento de locais
previstos dentro do território nacional para a sua existência. As missões e o
estabelecimento dos territórios indígenas pelo SPI partem da premissa de reclusão
desses povos em espaços contidos, para que passassem por um processo de
purificação, seja ele religioso ou secular, uma vez que eram tidos como pessoas inaptas
para o convívio na sociedade.
174
Nessa lógica, tais parcelas de terras usufruídas por indígenas não lhes eram
cedidas, pois a sua função primária não era o florescimento genuíno desses povos em
territórios próprios e autônomos: era pensada para manter a ordem da sociedade
colonial e brasileira, deixando o território em questão seguro, livre das presenças
inarticuladas, selvagens e ameaçadoras. É por isso que indígenas transeuntes se
tornam extremamente vulneráveis a diversas formas de violência. Estão fora de seus
lugares. Uma forma de conformar a ordem diante da existência desses corpos é,
justamente, relegá-los a lugares específicos, destinados à sua reclusão. Durante a
pandemia, indígenas em contextos urbanos não eram contabilizados nos boletins
epidemiológicos que apuravam os avanços da doença entre esses povos. Só tinham
direito a atendimento destinado a povos indígenas caso estivessem dentro dos seus
territórios (ISA, 2020). A indígena universitária que sofreu racismo no Acre achou em
seu material escolar um bilhete que, dentre outras coisas, dizia: “ainda vem com uma
história que almeja um futuro melhor para os pais. Vai tirar eles da onde? Da tribo?
Deixa eles lá porque lugar de índio é dentro de buracos assim mesmo” (Muniz, 2017).
Como mostrou o indígena Philip Deloria em seu livro Indígenas em Lugares
Inesperados (2004), não devemos olhar para a violência mencionada acima apenas como
expressão de estereótipos e de racismo. Nas sociedades fundadas pelo colonialismo
europeu, a complexidade e multiplicidade dos mundos indígenas são tomadas por
anomalias, imagens que desafiam aquilo que está dentro da ordem e do previsto. Ao
se estabelecer um discurso sobre aquilo que é tido como uma anomalia em dado
sistema social, é o seu contrário, a ideia de ordem, que é recriada e reforçada. A
manutenção dessa violência ao longo dos séculos atesta a continuação de um projeto
societário hegemônico que não prevê lugar para a existência desses povos no presente.
Projetos societários indígenas, com seus planos de futuro incertos, são recebidos pela
sociedade não indígena como ambiguidades ameaçadoras para a sua ordem social.
175
Figura 13.2 Famosa imagem de Ailton Krenak na Constituinte de 1988. A foto continua emblemática por
ser um indígena de terno, discursando no Congresso Nacional, em Brasília, com o rosto pintado de preto.
176
Figura 14.2 O primeiro deputado federal indígena, Mário Juruna, devolve dinheiro de origem ilícita em
1984
177
Figura 15.2 No Acampamento Terra Livre de 2019, a foto de um indígena usando patins e cocar pela
Esplanada dos Ministérios viralizou na internet: Índio de patins em Brasília?
abruptamente interrompida, seja um idoso que já havia passado pelos ciclos sociais
esperados (nascimento, crescimento-reprodução) nessa cultura. Dentro da letalidade
branca, as circunstâncias das mortes indígenas aconteceram – e ainda acontecem – sob
as sombras projetadas pela mentalidade de colonização. Ocorrem nos espaços de
morte, lugares onde a violência é endêmica e a cultura do terror floresce pela
elaboração contínua do medo.
Fora da abordagem etnológica clássica, os estudos antropológicos sobre morte
prosperaram em múltiplas direções, abrangendo e interligando posturas biomédicas e
religiosas sobre a morte, etnografias realizadas em hospitais, asilos e laboratórios e,
finalmente, analisando a distribuição e elaboração de políticas da vida e da morte a
partir do conceito de biopoder de Foucault, uma forma de poder que rege o campo
político da governança do Estado ao decidir de forma soberana quem pode viver e
quem deve morrer.
“Em Busca da Boa Morte”, da antropóloga Rachel Menezes (2004), é uma
etnografia realizada num hospital de cuidados paliativos para pacientes terminais,
onde a autora estudou como os pacientes, seus familiares e profissionais de saúde
construíram significados sobre o morrer a partir da ideia de uma boa morte (morrer
em casa com a família; sem sentir dor; dormir, etc.), que só pode ser totalmente
compreendida como coextensiva aos significados socialmente atribuído ao que é viver.
João Biehl (2013: 4), por sua vez, escreveu um relato etnográfico dialógico com
Catarina, uma das residentes do “Vita”, um asilo de Porto Alegre, descrito pelo autor
como uma dessas zonas sociais de abandono, um contexto de aniquilação, espaços que
têm surgido em todo o Brasil, “que abrigou em condições desumanas, os doentes
mentais e os sem-teto, os pacientes com AIDS, os jovens improdutivos e corpos
envelhecidos”. Para Biehl, essas são máquinas de morte social que o levam a indagar a
criação e re-criação de categorias de indivíduos tidos como doentios e improdutivos e
cujas existências estão fadadas à morte.
Esses dois exemplos apresentados por antropólogos brasileiros ilustram
como as políticas de morte e vida devem ser percebidas e analisadas de formas que
vão além das concepções estritamente biológicas. Também nos levam a questionar
como a vida é conceitualizada e valorizada, uma vez que se trata de uma tradição
185
A Letalidade Branca
43 Para maiores informações sobre as demografias indígenas, ver “Indigenous Worlds 2020” (Mamo
2020).
186
cosmologias particulares. O que estou tentando dizer é que a letalidade branca, assim
como o genocídio indígena, não são questões desconhecidas; ao contrário, estão
amplamente documentadas. E para nós, indígenas, é óbvio que esses são temas
recorrentes em nossas elaborações em rodas de conversas, mitos, festividades e cantos.
Anos atrás, quando o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu -
Palavras de um xamã Yanomami, foi finalmente traduzido para o português, tive uma
experiência muito perturbadora numa discussão sobre o assunto com meus colegas
antropólogos não indígenas numa disciplina da pós-graduação. Embora grande parte
do livro seja uma tentativa não apenas de “denunciar as ameaças diretas que afetam
os Yanomami e a floresta amazônica e de lançar um apelo, em seu papel de xamã,
contra os danos generalizados causados pelo 'povo de mercadoria' e o perigo que
representam para o futuro da humanidade” (Kopenawa, Albert 2013: 8), tudo o que
meus colegas pareciam apreender em suas leituras estava encapsulado em ideias como
pensamento Yanomami, perspectivismo ameríndio e tradução etnográfica. A mensagem e o
discurso cosmopolítico de Davi, em certo sentido, "um conto angustiado de doença,
morte, violência e destruição causada pela ganância febril dos garimpeiros de ouro" (:
440), não parecia ser de fato apreendida, uma vez que meus colegas pareciam
parcialmente alheios ao que a obra falava sobre eles mesmos, seus modos e seus
caminhos. Em outras palavras, a ficha não caía.
Essa dificuldade encontrada na mentalidade branca de se perceber e se implicar
como étnica e racialmente ligada a uma tradição cultural ampla de pensamento e ação
é algo que devemos levar em consideração aqui. É difícil lidar com essa constatação
sem depreender uma dimensão denunciadora e flagrante! Ao estabelecermos uma
agenda de pesquisa sobre a letalidade branca, não devemos tomá-la como uma mera
inversão do olhar antropológico, como se fosse um desdobramento natural de
intelectuais indígenas sendo formados como antropólogos para estudar “brancos”.
Isso seria uma chave fácil, causal, até positivista e, dificilmente, seria suficiente para os
nossos objetivos, principalmente, porque a experiência nos mostra que os brancos não
estão acostumados a entender as coisas que lhes são ditas, principalmente, se contadas
por indígenas - antropólogos ou xamãs. Eles precisam ver as coisas por si próprios. Na
medida em que “os brancos só sonham consigo mesmos” (Kopenawa, Albert 2013:
188
vista como distinção: ser Outro era ser menos. O imperialismo, como sabemos, só foi
possível numa cultura que combinasse um impulso expansionista com um impulso
altericida45, resultando no maior genocídio da história da humanidade. Compreender
verdadeiramente este genocídio é apreendê-lo na sua continuidade, tecendo de volta
os laços históricos que nos foram apresentados no mundo colonizado como narrativas
desconexas no tempo e no espaço sobre múltiplas, e ainda, singulares, experiências
com “portugueses”, “espanhóis, “ingleses”, “franceses” e “holandeses”.
Independentemente da procedência ou modalidade de colonização, nos chama a
atenção a similaridade dos desfechos dos povos indígenas que vivem hoje nesses
lugares.
A questão da continuidade foi abordada pela intelectual Maori Linda Tuhiwai
Smith, ao discutir o uso do termo “pós-colonial”.
Nomear o mundo como 'pós-colonial' é, a partir de perspectivas indígenas,
nomear o colonialismo como um negócio acabado. No comentário enigmático
de Bobby Sykes, o pós-colonial só pode significar uma coisa: os colonizadores
partiram. Há evidências bastante convincentes de que de fato isso não ocorreu.
E, mesmo em contextos onde tenham saído formalmente, as instituições e o
legado do colonialismo permaneceram (Smith 1999: 98; tradução nossa).
45O termo foi usado por Achille Mbembe para se referir à "constituição do Outro não como semelhante
a si mesmo, mas como um objeto ameaçador do qual se deve ser protegido ou escapar, ou que deve
simplesmente ser destruído se não puder ser subjugado" (Mbembe, 2017: 10).
46 Embora essas instituições estejam interligadas e sejam igualmente importantes como meios de
reprodução da letalidade branca, gostaria de destacar o papel da Universidade nisso. Para o intelectual
quilombola Antônio Bispo (2019), as universidades são as incubadoras de ovos dos colonialistas. A
missão dos intelectuais negros e indígenas que conseguem entrar é estragar esses ovos. Aqueles de nós
que ficaram de fora, por sua vez, são responsáveis por trazer novos ovos fertilizados e mudar quem vai
nascer dentro da Academia.
190
a vida pode ser apreendida por uma antropologia política e moral, como ela
simultaneamente molda e é moldada pelas escolhas políticas e as economias morais
das sociedades contemporâneas” (Fassin 2009: 48).
Não devemos esperar que as nações construídas em territórios coloniais
abordem abertamente suas constituições com base no genocídio. Como antropólogos,
a letalidade branca nos leva a questionar uma tradição de pensamento amplamente
documentada: nenhuma outra cultura produziu tantos artefatos escritos e outros tipos
de artefatos culturais que poderíamos usar como dados etnográficos. O amálgama de
informações que temos ao nosso alcance torna difícil operacionalizá-lo na construção
de um argumento. Os obstáculos metodológicos, presentes em todas as pesquisas, não
devem prejudicar a necessidade de assumir, com urgência, esse empreendimento.
Parece que^, embora o genocídio indígena seja evidente entre aqueles que o
vivenciam, os brancos continuam escapando impunes, apoiados pelas próprias
instituições que criaram para defender os chamados direitos humanos. Nesse sentido,
nosso trabalho de desvendar intenções ocultas e elucidar um plano orquestrado para
obliterar silenciosamente a existência e a soberania indígenas está apenas começando.
197
Epílogo
Muita gente chegou de outros lugares distantes e desconhecidos por nós,
acolhemos e aprendemos a conviver: negros, brancos, amarelos. Aprendemos a
conviver a partir da pedagogia da interaprendizagem, da solidariedade e da
reciprocidade. Mas, junto com os que vieram de lugares distantes, vieram,
também, pessoas mal-intencionadas, herdeiras de Caim e seguidores de Érebo
e Tánatos, e logo começaram a implantar e praticar atos de muita violência,
crueldade, barbaridade e injustiça contra nossos povos. Assim, esta terra do
Bem Viver, da Hekwape Ienepe, da Yvy marã e’y”, da Pachamama, da Aby-Yala
passou a ser terra de crises, de ódio, de racismo, de tragédias, epidemias,
pandemias, pandemônios, pragas, desastres e necropolíticas47 (Baniwa, 2020:
26).
Findar esta tese, cujo argumento central gira em torno do que aqui denominei
de letalidade branca, não suscita um fechamento e sim desafios futuros de pesquisa,
sobretudo, porque o rastro de destruição deixado pela formação cultural ocidental no
mundo está longe de ser um negócio acabado.
Enquanto escrevi o texto, motivado, em parte, pelas inúmeras notícias que
povoam os noticiários sobre o avanço da Pandemia do Coronavírus em territórios
indígenas, pensei sobre as crescentes narrativas escatológicas que marcam esta era.
Mais recorrentes que antes, acessamos suas múltiplas versões em torno de catástrofes
que vão desde o colapso dos mercados mundiais e da economia global e o surgimento
de novas doenças, até o já incontestável aquecimento global que ameaça a vida do/no
planeta como o conhecemos (Stengers 2015; Danowski e Viveiros de Castro 2015). O
discurso escatológico, aquele que versa sobre os eventos finais do gênero humano,
promove hoje um sentimento comum de destruição. Fala-nos sobre o exaurimento do
47 Conforme as notas de rodapé (8-13) do autor, respectivamente, Caim é um dos filhos de Adão e
Eva, personagens primordiais bíblicas do judaísmo e do cristianismo; Érebo, deus da escuridão e da
sombra na antiga mitologia grega, e Tánatos, deus da morte, também na mitologia grega”; “Hekwape
Ienepe” é a Criança-Universo, o universo (terra) primordial na Cosmologia Baniwa; “Yvy marã e’y”, Terra
Sem Males (sem fome, sem guerra, sem doença) na Cosmologia Guarani; “Pachamama” em Quechua,
Pacha é universo, mundo, tempo e mama é mãe – Terra Mãe; Abya Yala em Kuna (ou Guna) é terra
madura, terra viva, terra em florescimento, terra de sangue vital.
198
planeta e de seus recursos, criando uma urgência que recai, igualmente, sobre todos
nós.
Antropoceno, capitaloceno (Moore 2015) e tecnoceno (Holnborg 2001, 2015) são
alguns dos nomes dados a esses múltiplos processos destrutivos, o primeiro nomeia o
atual período geológico do planeta colocando no centro de sua definição a espécie
humana e seus efeitos avassaladores sobre a Terra acelerados, sobretudo, a partir do
aumento do uso de combustíveis fósseis no século XIX. Capitaloceno põe no centro da
discussão o capitalismo, pautado na acumulação não-reflexiva, e a sua versão
neoliberal globalmente mais letal e predatória que nunca, responsável pelo
esgotamento do equilíbrio ecológico do planeta, nos conduzindo ao fim. Tecnoceno,
por sua vez, enfatiza os efeitos da alta tecnologia, responsável pela degradação do
sistema ecológico da Terra.
Como resposta para tais inquietações, pesquisadores de diversas áreas têm
chamado a atenção para o legado de destruição deixado no mundo pelo modo
particular como se fazem as divisões e classificações cosmológicas e ontologias
europeias, sobretudo, no que concerne a objetificação da natureza. A crise planetária
clama por uma reconexão do que o Ocidente dividiu, natureza/cultura, vivo/não-vivo
e, especialmente, o Outro, com suas ontologias particulares, que emerge, talvez pela
primeira vez, como locus de enunciação, quiçá extração, de uma forma mais
sustentável de viver. O clamor é por desfazer especismos e velhos esquemas de
diferenciações humanas que parecem fazer cada vez menos sentido diante dos avanços
do neoliberalismo que, para muitos, caminha na direção de normalizar as vidas
humanas indistintamente a partir de seu valor de mercado e trabalho (Bessire e Bond,
2014; Povinelli, 2016; Haraway, 2016) .
Somos tentados a acreditar que, num cenário onde a condição da morte
iminente e da dispensabilidade de alguns corpos, tão intimamente conhecidas pelos
sujeitos indígenas e negros se democratiza para toda a humanidade num grande
Devir-Negro do Mundo (Mbembe, 2017), faria pouco sentido pensar sobre a letalidade
branca. Como se a velha gramática da racialização, decisiva para a história do
capitalismo, passasse a ser cada vez menos necessária à medida que o valor da vida de
199
diferentes sujeitos estivesse determinado, não mais por sua cor, raça e vinculação
étnica, e sim, por seu valor de mercado.
A princípio, a chegada de um novo vírus, letal para todos e pretensamente
democrático, pareceu nos relembrar da fragilidade dessa tal condição humana
compartilhada. Aqueles mais afoitos tomaram a iminência da morte diante de um
vírus desconhecido como oportunidade para elaborar um exercício reflexivo sobre
seus próprios lugares no mundo.
Pela primeira vez em cinco séculos repletos de surtos epidêmicos
decorrentes de vírus, bactérias e protozoários exógenos levados aos povos
indígenas, nós, os invasores de seus territórios originários, experimentamos
simultaneamente os mesmos sintomas, desespero e fragilidade de uma doença
desconhecida, para a qual não temos anticorpos ou remédios. Nesse sentido,
“somos todos indígenas”, como disse recentemente o antropólogo Bruce
Albert, pois sentimos na pele o sofrimento que impusemos a eles.
O projeto de extermínio das culturas indígenas, proposto e executado
pela equipe que rege o Brasil desde janeiro de 2019, volta-se agora igualmente
contra nós, que vemos, com olhos arregalados, e trancados em nossas casas, as
nossas vidas em risco, nas mãos de governantes incompetentes (Vilaça, 2020:
8).
***
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