Deuses Gregos - Dionisio - Artigo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 21

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA – UFJF

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – ICH


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA RELIGIÃO – CRE

Temas de Religião I

OS DEUSES DOS GREGOS: DIONISO


Ma Luana de Almeida Telles
“este texto faz parte da minha dissertação de mestrado disponível no acervo da faculdade”

Dioniso é o deus dos gregos do vinho, do teatro e do êxtase místico. Existiam diversas
celebrações dionisíacas; algumas faziam parte da religião cívica como as Antestérias, as Leneias,
as Agriônias, as Dionísias Rurais e as Grandes Dionísias (ou Dionísia Urbana). Outros, como os
cultos de mistério eram somente para os iniciados aos ritos secretos, o que dificultou a chegada
das informações desses movimentos até nós. Ao longo dos anos, na Grécia, o deus poderia ser
representado como um velho barbudo, como uma criança ou como um jovem afeminado. Era
representado ornamentado com diversos elementos vegetais e animais: usava uma coroa de hera
(chamada de kissós), um bastão com a ponta de pinho (tirso) e um robe de pele animal (chitṓn).
Do mesmo jeito que as videiras, as heras, o pinheiro, a figueira e a murta também eram seus
símbolos; era igualmente associado a elementos animais que exprimem grande vigor, tais como:
leopardos, tigres, panteras, touros e serpentes. Como cita Sousa (2007, p. 4): “Dioniso exprime-
se aos olhos dos mortais, na sua capacidade de metamorfose para que a própria natureza o dotou”.
Estava quase sempre acompanhado pelos sátiros, pelos silenos, pelos centauros, pelas ninfas, por
suas sacerdotisas e pelo deus Pã.
Para Isler-Kerényi (2006), no repertório de ilustrações das cerâmicas, mesmo se
analisarmos somente o período clássico, vemos Dioniso como um deus das metamorfoses. Como
aponta a autora, os domínios de Dioniso vão além dos citados acima – o teatro, o vinho e o êxtase,
como comumente associamos nos estudos modernos: ele era celebrado por crianças, homens,
mulheres, escravos e estrangeiros em situações públicas e privadas, dentro dos braços ordenadores
da pólis e do oíkos, e também nas celebrações rurais que rememoram o deus na natureza selvagem,
que englobam os aspectos da vida e da morte. Para a autora, “desde os dias da Atenas clássica até
o fim do mundo antigo, nenhum deus era mais adorado, mais temido e mais amado” (ISLER-
KERÉNYI, 2006, p. 241).
Os Hinos Homéricos dedicados à Dioniso
1. Origem Mitológica: nascido de Zeus e Sêmele, criado pelas Ninfas
Nessa versão, Dioniso é filho de Zeus e da princesa tebana Sêmele, que seria uma das
quatro filhas1 de Cadmo e Harmonia. Quando a esposa de Zeus, Hera, descobre que seu marido
havia engravidado outra mortal, ela tenta impedir o nascimento do futuro bastardo disfarçando-
se de ama para convencer a jovem princesa de que Zeus não a amava como ele amava sua esposa,
pois não mostrava a ela sua real aparência. A ingênua princesa, agora também cega por ciúmes,
pede a Zeus que lhe conceda um desejo, não importando qual fosse; Zeus consente, e Sêmele pede
para que ele se revele em toda a sua glória. Aborrecido, o deus lhe suplica que não poderia, pois,
mortais não podem ver os deuses em sua forma divina. Mas, como havia prometido, Zeus aparece
então na forma de um raio e fulmina a princesa tebana, que ainda tinha Dioniso no ventre. Zeus,
então, pega a criança que ainda estava sendo gerada e a abriga nos músculos de sua própria coxa.
No momento do nascimento de Dioniso, com receio do que Hera poderia fazer, Zeus se dirige até
Hermes, que leva o bebê para ser cuidado pelas ninfas nas cavernas da montanha de Nysa. Essas
que mais tarde se tornariam as primeiras sacerdotisas e companheiras de Dioniso – algumas
versões dizem que entre as cuidadoras de Dioniso estavam as irmãs de Sêmele, outras dizem que
elas foram punidas mais tarde quando o deus retorna a Tebas, exigindo reconhecimento. Lá, teria
sido criado pelas ninfas e por Sileno, pai dos sátiros.
Dentre as fontes dessa versão, estão os Hinos Homéricos, poemas atribuídos a diversos
autores antigos de diferentes épocas e regiões, em que se faziam evocações e elogios às
divindades; de acordo com Torrano (2015) por volta do IV século AEC já encontraríamos a
coleção completa. Dioniso é apelidado de deus do vinho e do êxtase místico e teria sido gerado
por “Sêmele, grávida de Zeus fulminoso”2 (Hino Homérico I a Dioniso, v. 4), o hino também
diria que, independentemente das diferentes versões de lugares que Sêmele poderia ter gerado
Dioniso, seria mais importante reconhecer que foi Zeus que o gestou, “oculto a Hera”, e teria
nascido em Nysa o “monte supremo, florido de selvas” (Hino Homérico I a Dioniso, v. 5). Em
Nysa, teria sido cuidado e criado pelas ninfas pela vontade de Zeus (Hino Homérico XXVI a
Dioniso, v. 3-5) e, mais tarde, teriam se tornado suas companheiras. “As Ninfas seguem junto, ele
guia, e o frêmito domina toda a floresta. Eia, tu! Alegra-te assim, ó Dioniso viticomado, dá-nos,
por te saudarmos, chegar a novas estações e, destas estações, de novo, chegar a muitos anos”
(Hino Homérico XXVI a Dioniso, v. 9-13). No Hino XXVI, temos o relato de seu tíaso divino que
floresceu junto da companhia das alegres e dançantes ninfas em sua infância.

1
Cadmo, como anteriormente mencionado, é o fundador da cidade de Tebas; na mitologia, para conseguir
fundar a cidade no local a que estava destinada, primeiro teve que matar um dragão (filho de Ares, o deus
da guerra) e foi condenado a servir Ares por oito longos anos. No fim desse período, Zeus oferece Harmonia
(filha de Ares e Afrodite, a deusa do amor) em casamento. As filhas de Cadmo e Harmonia são Autônoe,
Ino, Agave e Sêmele.
2
Optamos por usar a tradução de Torrano dos hinos a Dioniso (2015).
Outra obra, importante para nosso trabalho, que descreve a versão da filiação de Sêmele,
seria a peça escrita por Eurípides que narraria sobre as origens do culto de Dioniso na Grécia. As
Bacantes (gr. Báchai) é uma tragédia grega apresentada no século V AEC no Teatro de Dioniso
durante o festival das Grandes Dionisíacas. Nos primeiros versos, o próprio deus descreve sua
genealogia:

Venho a esta terra tebana, filho de Zeus, Dioniso, que nasce da filha de Cadmo,
Sêmele, partejada por relampeado fogo. Troquei a forma de Deus pela humana,
presente às águas de Dirce e às de Ismeno. Vejo monumento à minha mãe
fulminada, lá perto das casas e ruínas do palácio a fumarem chama ainda viva
do fogo de Zeus, imortal agressão de Hera à minha mãe. Louvo a Cadmo que
tornou intocável este chão, o recito da filha; eu o cobri todo ao redor com o
cacheado verdor de videira (As Bacantes, v. 1-12).

Na obra, Dioniso busca reconhecimento em sua cidade natal junto com suas iniciadas
asiáticas, as mênades – representadas na tragédia pelo coro. As bacantes seriam as mulheres
tebanas que se recusaram a prestar devidas honras a Dioniso e, como punição, ele inflige a mania
báquica a todas elas.

2. As manifestações fitomórficas e teriomórficas: como Dioniso se revela na Natureza

Para compreendermos como Dioniso se revela no ambiente natural, precisamos primeiro


entender que o conceito de deuses da vegetação, assim como, “a categoria de ‘divindade natural’
é uma construção moderna” (LARSON, 2007b, p. 56) e nenhuma dessas esferas se aplicava a um
deus específico do panteão grego. Muito pelo contrário, para J. Larson, todos os deuses dos gregos
eram, em certa medida, deuses da natureza, pois estavam conectados de uma forma ou de outra
aos fenômenos naturais. No entanto, existiam algumas figuras mitológicas que personificavam
aspectos específicos da paisagem ou dos fenômenos do meio ambiente, essas estariam mais perto
de uma concepção moderna de divindade da natureza. Aprofundando nosso debate, a própria
noção de natureza se expressa de várias formas, em diferentes tempos e lugares.
Analisando essas questões, queremos realçar que não consideramos Dioniso um deus da
natureza, mas um deus que, pela experiência extática, revela a Natureza3 para suas iniciadas e
iniciados. Como aponta Seaford,

(...) o culto de Dioniso floresceu ao longo da história registrada dos gregos, por
mil anos, sempre tendo em seu cerne o poder de Dioniso para preencher as

3
Em 1969, Robert Lenoble reconhece que “a natureza em si, não passa de uma abstração. Não encontramos
senão uma ideia de natureza que toma sentido radicalmente diferente segundo as épocas e os homens”
(LENOBLE apud DULLEY, 2004, p. 16). Assim dizendo, compreendemos “natureza” como um conceito
vivo, que adquire diversos significados culturais e temporais. Por outro lado, a Natureza com N maiúsculo
engloba a experiência e, por isso, está relacionada a uma maneira de viver (uma biói) e, nesse caso, com a
consciência religiosa dos gregos entre o ambiente bucólico e o sagrado. Por isso dissemos que não
consideramos Dioniso como um deus da natureza, mas como um deus da Natureza que, através do êxtase,
evoca e expressa a espiritualidade de um kósmos simbiótico entre sagrado, iniciado e mundo natural.
lacunas entre as três esferas do mundo - natureza, humanidade e divindade. A
humanidade emerge da natureza e aspira para a divindade. Dioniso, ao
transcender essas divisões fundamentais, pode transformar a identidade de um
indivíduo em animal e deus. E é por sua presença que ele liberta o indivíduo
das circunstâncias desta vida. (...) É a alegre transformação da identidade que
está subjacente à importância de Dioniso em várias esferas - notavelmente as
esferas do vinho, culto ao mistério, o submundo, política, teatro, poesia,
filosofia e artes visuais (SEAFORD, 2006, p. 4).

Para compreendermos tais afirmações feitas por Seaford, analisaremos o contexto


mitológico, ritual e dos festivais dedicados a Dioniso que faziam essa ponte com o mundo natural
e que ocorriam na Grécia antiga. Tentaremos, ainda nesse capítulo, investigar as manifestações
de Dioniso na natureza, e qual seria a lýsis experienciada por suas companheiras sob seu epíteto
de Lýsios. Não temos como propósito traçar todos os domínios de Dioniso na antiguidade grega,
mas compreender sua relação com o mundo natural, que será representada, principalmente,
através de seu fitomorfismo e teriomorfismo4.

2.1 Umidade
Para Otto (1965), existe um elemento que carrega todo o poder dionisíaco e que permeia
a vida vegetativa: a umidade. Como foi exposto por Dodds,

Ele é Δενδρίτης ou Ἔνδενδρος, o Poder na árvore; ele é Ἄνθιος, o que traz a


floração, Κάρπιος que traz as frutas, Φλεύς ou Φλέως, a abundância de vida.
Seus domínios são, nas palavras de Plutarco, toda a υγρά φύσις – não apenas
o fogo líquido na uva, mas o caminhar da seiva em uma jovem árvore, o sangue
que bombeia nas veias de um jovem animal, todos os mistérios e correntes
incontroláveis que declinam e fluem na vida da natureza (DODDS, 1960, p.
xii).

Precisamos, no entanto, ponderar essas afirmações. Como apontamos acima ele não é um
deus da vegetação, nem mesmo da natureza, como muito foi dito atualmente; Otto chama nossa
atenção para caminharmos com cuidado nessas categorias muito genéricas sobre a relação do deus
Dioniso com as plantas, epítetos como ánthios, ántheos, éndendros, ou até mesmo a Antestéria
(festival da Floração) que fariam alusão à floração, provavelmente estabeleciam relação com as
flores da videira. E se “Baco ama flores” (OVÍDIO, Fastos, 5.345-6 apud OTTO, 1965) é porque
ele faz sua aparição no começo da primavera “e a adorável progênie do chão da terra anuncia sua
vinda e adorna seu caminho. É a umidade que dá vida, portanto, da qual as plantas sagradas para
Dionísio dão testemunho” (ibid., p. 159).
Daí vem a compreensão exposta por Dodds e Plutarco logo acima, que seria uma crença
grega que Dioniso é o portador de toda natureza úmida, por isso Filolau de Crotona também diria
que o deus dominava a criação úmida e fogosa (τὴν ὑγρὰν καὶ θερμὴν γένεσιν), cujo símbolo em
excelência era o vinho, por ser de natureza líquida e quente (OTTO, 1965, p. 156). O elemento

4
Sendo fitomorfismo as representações de Dioniso com característica semelhantes à da vegetação, e,
teriomorfismo as formas animais do deus.
da umidade é percebido em toda a natureza vegetativa, mas também no mundo humano e animal
que está presente na seiva das árvores, no sangue, no esperma dos animais e também na polpa das
frutas por representar vitalidade, revigoração e nutrição de tudo que existe. Isso porque a água
(essência da umidade), no campo da mitopoese, é o elemento que representa “os mistérios que
habitam na vida primordial” (ibid., p. 161), isto é, ela cria e mantém a vida; por isso, inclusive,
que as ninfas – guardiãs das fontes de água – estariam associadas aos cuidados de muitas crianças
divinas.

2.2 Fitomorfismo
Dioniso tinha muitos nomes associados a suas manifestações vegetais, dentre eles
Dendeu, Dendrítēs e Endendros que são epítetos relacionados à exuberância e ao crescimento da
vegetação (KERENÝI, 2015). Seria Kissós ou Kittofóros, portador da hera e Tirsóforo, que
empunha o tirso. Os gregos também o chamavam de Fléōs doador de uma abundante produção e
fertilidade de frutas e de plantas, Protrýgaios, o primeiro na safra, Staphýlites o deus das uvas e
Onfacites especificamente das uvas verdes; Em relação à paisagem vegetativa, está
predominantemente associado à videira, à hera e ao pinheiro, mas também poderia ser associado
à figueira e à murta.
• Hera: a associação mitológica de Dioniso com a hera aparece desde sua origem, como
aponta Otto (1965, p. 153), pois seriam as folhas da planta que surgiriam simultaneamente a seu
nascimento para protegê-lo do raio de Zeus que fulmina Sêmele.
• Figueira: seria na figueira que os elementos da umidade e da procriação seriam revelados
de forma mais evidente, isso porque os falos das procissões dionisíacas eram produzidos com sua
madeira.
• Murta: de acordo com a peça As Rãs de Aristófanes, a murta teria sido dada de presente
pelo deus a Hades para substituir Sêmele no submundo, por isso essa árvore faria um paralelo
entre Dioniso e os mortos.
• Pinheiro: na mitologia e no ritual, é que seria a árvore sagrada do deus, pois a pinha
coroa o tirso, durante as celebrações noturnas as tochas que iluminam as passagens são feitas com
sua madeira e as estátuas em homenagem a Dioniso que descansam em Corinto seriam feitas do
pinheiro que Penteu escalou para observar as bacantes (OTTO, p. 158). Para Anghelina (2017, p.
118), existem ainda outras relações do pinheiro com o deus: quando as pinhas estão verdes nos
galhos, elas se assemelham a densos cachos de uva, assim como o caminho das pinhas no pinheiro
podem ser associadas à videira e, também, na antiguidade, a resina do pinheiro era usada como
conservante do vinho.
• Uva: Apesar de suas múltiplas formas vegetativas, existe uma planta que manifesta a
essência da qual todo o domínio dionisíaco se ramifica, isto é, a manía presente fundamentalmente
no vinho. Anghelina (2017) acredita que os camponeses gregos tinham uma representação muito
concreta da associação entre o deus e o vinho, principalmente, nos seguintes aspectos: (i) os mitos
sobre o nascimento e morte de Dioniso refletem o processo de vinificação, mesmo se
considerarmos diferentes comunidades, como o mito tebano e o mito órfico; (ii) os principais
festivais áticos dionisíacos – a Oscoforia, a Dionísia Rural, a Lenaia, a Antestéria e a Grande
Dionísia (Urbana) – também marcam as etapas de transformação do vinho, começando com a
colheita da uva e terminando com a primeira ingestão do vinho novo; (iii) os sátiros e as mênades
representam a natureza libidinosa do culto a Dioniso – os sátiros por sua forma equina e as
mênades pela adoração do touro –, pois demonstram os efeitos do vinho nos grupos sociais de
homens e mulheres de estimulação sexual; e, (iv) “a mitologia de Dioniso é a mitologia de vinho”,
fato que reflete tanto no mito quanto no ritual, nesse sentido, para a autora, a loucura de Dioniso
representa alegoricamente o processo de fermentação e, os rituais das liknítēs, aiṓra e o katagṓgia
(procissão do barco que dá início às Grandes Dionísias) representam uma alegoria para o “mundo
do bêbado” que balança – e mais além, para a autora, a dança ritualística das mênades, os
terremotos de Dioniso que destroem o palácio de Penteu n’As Bacantes e o tremor no mito do rei
Licurgo, refletem a mesma ideia de um mundo que bamboleia na presença do deus do vinho.
Desse modo, para Anghelina (2017, p. 121), poderíamos fazer uma leitura alegórica entre
a mitologia dos nascimentos de Dioniso e os nascimentos do vinho, para ela essa correspondência
confirma a antiga crença de que “Dioniso é o vinho”. Vamos analisar primeiro a cosmogonia
tebana sobre Semêle: sabemos que as versões diferem sobre o tempo em que a princesa ficou
grávida antes de ser morta pelos raios de Zeus (ou seria melhor dizer, morta pelo ciúmes de
Hera?), e esse período teria haver com o tempo de colheita da uva3 – o ciclo do vinho começa na
primavera, quando as uvas são plantadas (Dioniso é concebido), seis ou setes meses depois elas
são colhidas (o feto é retirado do ventre de sua mãe) e colocadas em outro recipiente (o embrião
é colocado na coxa de Zeus), lugar que permanecem até se transformar em 3 Para Anghelina
(2017, p. 123), o tempo que Dioniso passa no ventre de Sêmele pode ser interpretado como parte
do ciclo da videira, que se prolongaria desde o surgimento das uvas na primavera (março-abril)
até a prensagem das uvas no outono (setembro-outubro), todo esse processo poderia durar de 6 a
7 meses, podendo variar de acordo com as condições climáticas. 12 vinho. No caso do mito, o
momento em que Zeus fulmina Semêle com seu raio poderia ter dois significados: poderia ser
uma metáfora para o início do processo da fermentação (rememora o momento em que a uva
produz calor e borbulha); ou representaria as tempestades do final do outono, pouco depois da
vindima, nesse momento as uvas ainda não foram prensadas, mas estão estimulando a
fermentação no sol, em seu estado de mosto (sumo de uvas frescas que não tenham passado pelo
processo de fermentação). Portanto, o primeiro nascimento de Dioniso – quando Zeus o tira da
barriga de Semêle – corresponderia a esse momento em que as uvas são colhidas e colocadas em
um outro recipiente para a produção do mosto. Esse outro recipiente corresponderia miticamente
ao momento em que Zeus costura Dioniso em sua coxa. A análise de Anghelina se contrapõe aos
diferentes estudos que analisam a coxa de Zeus como um membro fálico ou que comparam o
nascimento de Dioniso ao de Atena – essas teses, para Anghelina, não se sustentam nas fontes
antigas –, para a autora, a coxa simboliza o askós, um recipiente feito de pele de cabra para
transportar vinho ou até mesmo para armazená-lo no processo de fermentação. Já o segundo
nascimento de Dioniso – momento em que nasce da coxa de Zeus – seria equivalente ao processo
de fermentação, no qual o açúcar presente no mosto é transformado em álcool, e a mistura se
torna o vinho propriamente dito. Similarmente, a morte de Dioniso nos hinos órficos, que falariam
sobre o desmembramento e a ressurreição do deus criança também poderia ser entendido como
uma alegoria do processo de fazer vinho, como aponta Anghelina (2017), de forma que o
“cozimento” de Dioniso está associado à fermentação. O mito órfico pode ser sim uma alegoria
para o processo do vinho, como apontavam os autores antigos, dentre eles Diodoro que
mencionaria a crença da relação do desmembramento de Dioniso com a colheita das uvas e o
“cozimento” do vinho (o momento da fermentação assemelha-se a uma água fervente); e Cornutus
que interpreta os sofrimentos de Dioniso com o tratamento (prensagem) das uvas. Cole (2007, p.
336) aponta que existiam vários festivais atenienses dedicados ao deus Dioniso, que marcavam o
período da colheita do fruto e o preparo do vinho, de forma que o culto oficial dionisíaco e seu
calendário ritual se desenvolveram junto com a pólis e com a viticultura.
Os festivais mais importantes, pelo menos na Ática, dedicados a Dioniso são (em ordem
que ocorriam no calendário): a Dionísia Rural (inverno / final da fermentação), a Lenaia
(primavera / primeiros botões da videira), a Antestéria (outono / barris de vinho são abertos) e a
Grande Dionísia (verão / as flores se transformam em uva). No inverno, para Silva (2019), de
acordo com os escritos de Plutarco, o inverno carregava outra característica para seus cultos: era
um período de ociosidade no calendário agrícola, ou seja, os serviços de aração e semeadura já
teriam sido completados e ainda não seria a hora da colheita, por isso, “trata-se de um momento
caracterizado por festas em honra aos mortos, com cultos em que os aspectos festivos de recomeço
do ciclo natural da terra combinam-se a elementos fúnebres” (SILVA, 2019, p. 318).

2.3 Teriomorfismo
Como vimos, Dioniso é tradicionalmente representado com diversos elementos vegetais,
mas era igualmente associado a diversos animais que exprimem grande vigor, sendo associado
tanto a animais domésticos – como o touro e o bode – quanto a animais selvagens, principalmente
ao leopardo e a pantera. Seaford (2006, p. 23) realça que a associação de Dioniso com animais
exóticos na cultura grega teria relação com o retorno de Dioníso da Índia; podemos encontrar
alguns desses mitos nas Dionisíacas de Nono de Panópolis (século IV-V EC). De acordo com
Kerenýi (2015), depois da procissão dionisíaca ter conquistado a Índia, foram aparecendo animais
cada vez mais exóticos para o povo heleno em seu séquito como era o caso dos leões, das panteras
e dos leopardos, e eram “todos domesticados pelo vinho” (KERENÝI, 2015, p. 166). Outra coisa
destacada por aquele autor, é que “Dioniso não é somente associado, mas muitas vezes
identificado com animais” (SEAFORD, 2006, p. 23), como podemos perceber nas Bacantes de
Eurípedes, quando o coro clama 13 para que seu deus apareça como um touro, ou uma serpente
de muitas cabeças ou como um leão (v. 1017-19). Seus companheiros também se apresentavam
de forma antropozoomórfica como é o caso dos sátiros e do deus Pã, o comportamento das
mênades também era descrito como de animais silvestres, com Eurípides as comparando a
potrinhos.
• Jumento: Existiam dois animais que podemos chamar carinhosamente de jardineiros de
Dioniso e, por isso, foram muito associados ao deus e a videira: o bode/cabra e o jumento (não
era o cavalo, já falamos sobre essa questão quando falamos da iconografia de Dioniso). Diferente
do touro e do bode, o jumento não foi associado a Dioniso por conta de epítetos e nem pelo deus
assumir sua forma, mas por ter ensinado aos gregos a poda da videira, por conta de seu hábito de
pastar os seus brotos (OTTO, 1965). Outras associações do burro com a divindade seriam como
sua montaria, como aparece no drama satírico Os Ciclopes, e, por conta de seu grande falo, que
seria representado em muitos vasos de forma cômica com os sátiros (que comparavam os
tamanhos de seus membros).
• Bode: O outro animal associado aos brotos da videira era o bode, que gostava tanto de
comê-los que ficaram apelidados de “brotos de bode”. O bode e a cabra foram os animais mais
associados ao deus, que tinha os epítetos de Érifo, jovem cabrito, mas também Egóbolo, que come
cabras, e Melaneges, aquele que se veste com uma pele de cabra negra – que teria relações com
os cultos ctônicos. Na mitologia, Zeus transforma Dioniso em cabrito para escondê-lo de Hera,
contava-se que Zeus havia entregado o infante Dioniso a Hermes, para entregar a Ino e Atamante,
mas Hera havia enlouquecido os dois – e, por isso, Hermes deveria levar a criança pra as ninfas
de Nisa, disfarçado de cabrito.
• Touro: Todavia, o animal mais associado a Dioniso é o touro: como manifestação do
deus, como presa e como animal de sacrifício. Como mencionamos na introdução deste capítulo,
o touro era associado aos deuses dos rios que representavam nutrição e fertilização, por isso,
muitos autores modernos imaginaram que para os antigos o animal simbolizava a fertilidade, a
fecundidade e o desejo sexual por estar associado à água que sustenta toda a vida. No entanto,
como Otto (1965) expõe, como todas as genuínas revelações do deus, o touro também dá a vida
e destrói” (ibid., p. 165); autores antigos como Ateneu (escritor grego do século I-II EC) diziam
que “Dioniso foi comparado ao touro por causa da selvageria que a intoxicação pelo vinho evoca.
É precisamente o touro selvagem e furioso cuja imagem os devotos têm diante de seus olhos
quando convocam Dioniso” (OTTO, 1965, p. 166); e Ésquilo quando “disse no Edoni das orgias
da Trácia que ‘aparições assustadoras rugiam de algum lugar da escuridão com a voz do touro’”
(idem).
• Serpente: Para Kerenýi (2015), a relação de Dioniso com a serpente estaria ligada à sua
origem, de acordo com as crenças órficas, que contaria que Zeus copulou com Deméter e
Perséfone em forma de uma serpente – para o autor, temos aqui uma interconexão entre as deusas,
Deméter seria “descrita como alter ego de Reia, embora seja também identificada por Perséfone.
Zeus gerou Dioniso – assim está expressamente declarado – com Deméter ou Perséfone (...) e
gerou em sua filha o deus que, nas histórias órficas, deveria ser seu sucessor, o quinto soberano
do mundo” (KERENÝI, 2015, p. 157) –, e também, Deméter teria colocado duas serpentes para
guardar Perséfone em uma caverna em Creta. Para ele, enquanto os chifres em Dioniso seriam
herança de sua descendência da deusa do submundo; a dança o teria sido ensinada por Reia e seus
Coribantes/Couretes. Kerenýi argumenta que (...) entre os etruscos, as mulheres dionisíacas
realmente mantinham leopardos domesticados em suas casas. As mênades mais antigas usavam
serpentes mansas em torno dos braços e o deus aparecia para elas como um touro. As peles de
enhos em torno do pescoço eram despojos de sua própria caça.
• Pantera: No livro Dionysos Mis a Mort, Detienne (1979) narra o conto da pantera do
amor (le dit de la panthère d’amors), segundo o autor, a pantera representa tanto a caça de Ártemis
quanto a caça de Afrodite, ou seja, está relacionada aos caçadores e à sexualidade. Sabemos que
os gregos estruturavam muitas de suas atividades levando em consideração o gênero, por isso, as
florestas e as montanhas – ligados à caça – fazem parte de uma paisagem atribuída ao sexo
masculino, da qual a mulher estava ausente, “assim, também, são excluídos os valores
sociopolíticos que definem o uso adequado do corpo feminino” (DETIENNE, 1979, p. 25); mas,
ao mesmo tempo, existiam divindades que aproveitavam a floresta enquanto um “espaço onde as
regras sociais são silenciosas, o desvio é articulado e as transgressões acontecem” , como era o
caso da deusa virgem e caçadora Ártemis e do tíaso das sacerdotisas de Dioniso. Além disso, o
deus Dioniso manifesta o duplo caráter da pantera que poderia ser simbolizado pela caça das duas
deusas citadas pelo autor: Ártemis, que representa a caça selvagem, e Afrodite, que “como a
pantera, a bela cortesã pratica uma espécie de caça que os gregos chamam de ‘a caça de Afrodite’
(aphodisía ágra)” (DETIENNE, 1979, p. 40), inclusive, o perfume da pantera era associado ao
corpo da mulher adulta. O deus bacante e suas companheiras femininas realizavam um ritual que
englobava todos esses âmbitos, que veremos agora, o menadismo.

2.4 Lýsios e lýsis entre as bacas

Dentre as possíveis grafias para Lýsios estão: λύσιος (lýsios), λυαῖος (luaîos) e
Ἐλευθερεύς (eleuthereús). De acordo com Leinieks, na obra The City of Dionysos (1996), e
também Bacelar (2013) e Planchas (2019), o deus recebia esses nomes cúlticos em Corinto, Sícion
e Tebas, sendo o epíteto λύσιος (Lýsios) mais associado a esses locais – como aponta Planchas
(2019, p. 44). Para Leinieks, Tebas teria sido uma grande exportadora dos cultos dionisíacos,
muitas vezes sob os conselhos do oráculo de Delfos, como seria o caso de duas cidades do
Peloponeso: Corinto e Sícion. Em Corinto, por exemplo, Pausânias descreve (2.2.6-7) duas
estátuas de madeira com as faces pintadas de vermelho cor de vinho e robes amarelos, uma
dedicada a Dioniso Lýsios e outra a Dioniso Báccheios, de acordo com o geógrafo teria sido o
oráculo de Delfos que aconselhou aos coríntios encontrarem a árvore em que Penteu escalou para
observar as mênades e a adorá-la, por isso, as estátuas foram construídas com a madeira dessa
árvore. Para Leinieks, o culto coríntio teria uma clara influência da peça de Eurípides. Pausânias
também teria descrito o caso de Sícion (2.7.5-6), em que havia um templo dedicado a Dioniso –
também perto do teatro –, contendo uma estátua de marfim do deus cercada por estátuas de
mármore das mênades. Contudo, durante as procissões anuais, também sob conselho do oráculo
de Delfos, duas outras estátuas eram levadas ao templo: uma de Dioniso Lýsios e outra de Dioniso
Báccheios.
De acordo com Bacelar (2020), a relação desses epítetos permitiria duas interpretações,
que não seriam necessariamente excludentes.

Ou se refere a dois momentos sucessivos: Dioniso é Báccheios quando


desperta a manía e Lýsios quando entrega a manía (Rohde, 1925, p. 287;
Dodds, 1977, p. 268; Jeanmaire, 1970, p. 198); ou apela a dois aspectos
coexistentes, mais precisamente às virtudes da própria manía: a ação
libertadora do deus é realizada pelo transe (Detienne, 1998a, 40-43; Seaford,
2006, p. 71-72) (BACELAR, 2020, p. 9).

A primeira leitura se sustenta pelos próprios relatos de Pausânias que evoca certo contexto
menádico, no entanto, ao considerar a manía e a lýsis como estados consecutivos, estaríamos
atrelando a manía um contexto mais “punitivo” e a lýsis a um efeito mais terapêutico. Por isso,
essa concepção se torna um pouco reduzida, o próprio templo de Dioniso Lýsios em Tebas não
estava associado ao transe ritual, mas sim à atitude do deus de ter libertado os prisioneiros tebanos
dos trácios. Por outro lado, compreender ambas como faces da mesma moeda parece implicar
mais do que o objeto da libertação, abrindo mais o nosso leque de interpretação, pois sabemos
que Lýsios, também estaria associado à escatologia órfica.

Lýsis na Natureza: As Bacantes de Eurípides

O Dioniso de As Bacantes não é um deus do anti-racionalismo, mas sim um


deus da libertação. O que Eurípedes fez na peça, foi estender e elaborar suas
ideias sobre a liberdade e apresentá-las em termos religiosos, usando como
veículo o Dioniso de um culto tebano específico, o culto de Dioniso Lýsios,
“Dioniso o Libertador” (LEINIEKS, 1996, p. 10).

A ideia de libertação não possui forma única, como vimos acima, e n’As Bacantes
também não. Leinieks distinguiria quatro formas distintas de libertação na peça. A primeira forma
que ela se manifesta é de forma física, quando Dioniso liberta suas seguidoras das prisões públicas
de Penteu (v. 226-227, momento em que são aprisionadas) – “Bacas que encarceraste, que
prendeste e encadeaste nas cadeias do palácio público vão soltas nas vias para os santuários aos
saltos e invocam Brômio Deus: os grilhões por si se soltaram de seus pés e chaves abriram portas
não por humanas mãos” (v. 443-448) –, e quando liberta o “estrangeiro” dos estábulos reais (v.
509-510; v. 576-637). Esses momentos, de acordo com Leinieks (1996, p. 313), deixam claro que
Dioniso está constantemente cuidando de seus acompanhantes, sempre pronto para intervir se
necessário, como nos mostram os versos: “e o que agora sofro, presente ele vê” (v. 500), e
“Brômio não suportará que expulses as Bacas dos évios montes” (v. 790-791).
A segunda forma seria a libertação da fome e da sede, como mencionado pelo coro das
mênades nos versos 142-144 – “flui leite do chão, flui vinho, flui mel nectário, a névoa é como
de incenso sírio”, ou nos versos 704-713. Dioniso também libertaria da ansiedade e do luto, “o
filho de Sêmele: úmido licor de uva inventou e apresentou aos mortais, dos sofridos homens ele
cessa a dor quando se fartam do fluxo da uva, dá sono e oblívio aos males cotidianos, não há
nenhum outro remédio das fadigas” (v. 278-283), e do desânimo pela sua simples presença, como
expressa o coro quando Dioniso retorna do encarceramento – “ó luz máxima do nosso évio
Baqueuma, quão feliz te vejo ao ter só solidão” (v. 608-609). Como já dizia a Ilíada, Dioniso é a
alegria dos mortais.
A última forma, seria a libertação das mulheres que se apresenta no contexto dos rituais
menádicos. Vários autores falariam sobre um contexto político e familiar desta, Bacelar aponta
que, para Seaford, a libertação

(...) das mulheres que deixam suas casas para realizar as práticas cultuais do
menadismo e sugere que as representações secretas características de outras
festas dionisíacas teriam contribuído, uma vez reveladas em público, para a
gênese das performances dramáticas. Seaford acrescenta que o deus, como
“destruidor de lares”, seria o salvador da cidade, posto que a pólis só teria se
estabelecido em detrimento das famílias aristocráticas e autocráticas que, nos
“mitos de resistência” a Dioniso, são esmagadas pela loucura punitiva do deus
até que seja instituído o culto coletivo de Dioniso, em benefício de todos (1994,
p. 344-360; 1996) (BACELAR, 2013, p. 41).

Sob a influência de Dioniso, as mulheres afastavam-se de seus lares, maridos e filhos, e


abandonavam suas atividades domésticas, estavam “longe das rocas e dos teares” (v. 118) – tudo
aquilo que na época antiga definia o papel da mulher. Por isso, quando essas mulheres foram
cultuá-lo no Monte Citéron, elas estavam questionando as distinções e as hierarquias essenciais
para a estrutura religiosa e social daquela pólis grega, como a thysía e o papel tradicional da
mulher. Para além disso, também estavam abandonando o espaço civilizado, pela vida nas
montanhas. Trabulsi diz que “isso tudo significa questionar seu estatuto de mulher, mas também,
através disso, ameaçar a cidade em seus fundamentos mais indispensáveis” (TRABULSI, 2004,
p. 178). Como seria dito pela própria Agave, mãe de Penteu, a seu pai: “Pai, tu podes alardear
máximo alarde: semeaste filhas as melhores dentre todos os mortais, digo por todas e mais por
mim que abandonei as rocas junto dos teares por algo maior: caçar feras com a mão” (v. 1233-
1237). Leinieks, nessa linha de pensamento, diria que

As bacantes refletem seu estado de libertação em seu comportamento. Elas


comportam-se como um cervo que escapou dos caçadores. O cervo brinca
(ἐμπαίζουσα, 866), salta (θρῴσκει, 873) e fica satisfeito com a ausência dos
homens (βροτῶν ἐρημίαις, 875). Foi libertado do medo e do perigo dos
caçadores. Elas se comportam como um potro liberto do rebanho (ζυγά, 1056),
o símbolo da escravidão. A bacante salta como o potro (σκιρτήμασι, 167;
σκιρτῶσι, 446). A característica comum de todas as variedades de liberação é
que elas são agradáveis. Os ritos de Dioniso são agradáveis (ἡδὺν, 66; ἡδοναῖς,
867) e o adorador está satisfeito (ἡδομένα, 165, 874). A música da flauta
conectada com os ritos é agradável (ἁδυβόᾳ, 127). O próprio Dioniso, que é o
líder dos ritos na montanha, é agradável (ἡδὺς, 135). Libertação da velhice é
agradável (ἡδέως, 188). O prazer mencionado aqui é, como veremos, χαρά, a
alegria da libertação. A libertação das mulheres tem implicações políticas de
longo alcance. Implica uma rejeição das duas instituições básicas do grego
organização política, família e cidade (LEINIEKS, 1996, p. 316).

Através do relato de Eurípides, seria possível vislumbrar essa possível experiência


contemplativa dessas mulheres seguidoras de Dioniso que se libertam das amarras da civilização
e da ordem civil através dessa sabedoria dionisíaca. Para nós, ao se voltarem novamente para o
ambiente natural, essa transformação causada pelo frenesi dionisíaco se torna símbolo de uma
relação em sinfonia com a natureza. Mas, para tal, seria preciso se despojar dos vernizes sociais,
como faziam as mênades ao praticar seus rituais nas montanhas, abdicando de suas obrigações
femininas. Percebe-se, então, ao se analisar a tragédia, a importância dos conceitos de Natureza e
liberdade expressos através das mênades. Por isso, é preciso entender a sabedoria que se encontra
por trás da manía dionisíaca.
Nossa proposta, portanto, é similar a de Colombani (2021), seria compreender a outra
perspectiva apresentada por Dioniso na relação com o divino, que seria diferente dos modelos
canônicos (homéricos) e de “toda contemplação estática e em silêncio” (COMLOMBANI, 2021,
p. 26), seria barulho, movimento, animalidade e a presença da natureza em seu estado mais
selvagem. “A festa que sela o ‘entre’ é uma celebração da natureza em suas formas mais variadas;
é a exibição do natural em sua forma mais radical, sem véu, sem tule; pura natureza que serve de
marco a uma experiencia extrema” (ibid., p. 27). Para Colombani, o encontro entre Dioniso e suas
seguidoras ocorre na órgia, que se apresenta como condição de possibilidade da aproximação de
dois mundos ontologicamente impermeáveis: dos mortais e dos imortais, por isso, Dioniso seria
um deus mais palpável entre os gregos.
Podemos, nesse sentido, considerar a tragédia As Bacantes de Eurípedes um exemplo
privilegiado para um estudo sobre as mênades e de suas relações com o mundo natural. Lá,
Eurípides esboça a oposição entre o mundo natural dionisíaco e um outro mundo, aquele
resultante da construção humana, representado por Penteu. Uma das principais questões que
distingue ambos é a questão de gênero e a dicotomia cidade/agreste: em Penteu, temos a postura
do cidadão (homem) grego – que é prudente, racional e civilizado. Já em Dioniso, temos a postura
das mênades (apenas mulheres) – que eram compreendidas como desmedidas, loucas, irracionais
e selvagens. Colli chama atenção para o fato de que Dioniso apresenta a totalidade por meio das
contradições, ele traz em si as principais oposições que o indivíduo grego carrega, sem se limitar
a nenhuma – ele é um deus ao mesmo tempo que é um animal e que morre. Essa forma de
sabedoria, poderia ser encontrada por trás da figura de Dioniso Lýsios, o libertador. Isso porque
sua presença carregava em si uma vitalidade que se apresentava enquanto uma oposição ao que
definia os princípios da estrutura civilizacional grega: do princípio racional, da medida, da
individualidade e do androcentrismo.
Quando começamos a discernir as características básicas dos mitos de Dioniso,
percebemos seu vínculo indissociável com o feminino e com os poderes vitais da natureza. Para
Colombani, a natureza representa ainda outra marca de excepcionalidade, como nos apontariam
os versos 683-711 d’As Bacantes. Ao fazer jorrar vinho, leite, água cristalina e doce mel para suas
mênades, Dioniso simboliza a “pura exuberância de uma terra que não para de presentear. (...)
Como afirma Otto, ‘no elemento dionisíaco do úmido não habita apenas a força conservadora da
vida, mas também a força criadora e nutridora, e assim se espalha, como semente, por todo o
mundo animal e humano’” (COLOMBANI, 2017, p. 30). Dioniso-bacante, deus dançarino, de
múltiplas máscaras, que pela extrema vitalidade de uma natureza que se confunde com ele mesmo,
conduz a celebração do estado bákchoi. Esse estado que era descrito por Dodds como “uma fusão
da consciência individual em uma consciência coletiva: seu grupo sagrado θίασεύεταί φυχάν (Ba.
75), está em harmonia não apenas com o Mestre da Vida, Dioniso, mas também com suas
companheiras de adoração; e também está de acordo com a vida da terra (Ba. 726-7)” (DODDS,
1960, p. xx) – ou seja, o estado bákchoi é se reconhecer nas formas e alteridades da natureza.
Ao longo deste subtópico, analisamos algumas passagens d’As Bacantes para
compreender as formas de lýsis presentes na peça, mas principalmente, para sugerir uma outra
possibilidade de liberdade, pouco explorada nas análises da peça, que seria a relação que as
mênades estabelecem com a Natureza. De forma que, através da manía, suas iniciadas se
tornariam conscientes da sua pertença à Natureza, verdade que se encontrava velada para elas
quando eram pertencentes ao pensamento políade. A questão principal, portanto, gira em torno
de compreender as atitudes rituais das mênades, vivenciadas na experiência orgíaca através da
oreibasía e da caça/forma de sacrificar, como uma forma de sabedoria na qual o ato cultual de
conexão com seu deus passaria primeiramente por um reconhecimento de sua condição como
Natureza. Esse comportamento se sustentava no ato dessas mulheres de reinterpretar a forma
como se relacionavam com o ambiente natural, através de uma reorientação do seu agir no mundo,
para além da forma cotidiana ensinada pelas tradições da pólis. “No lugar da casa e da cidade,
Dioniso colocou o tíaso, a instituição da liberdade” (LEINIEKS, 1996, p. 318).
Nosso interesse é demonstrar essa outra forma de contato com o sagrado entre os gregos,
por isso, neste trabalho, procurar-se-á, também, captar os significados das atitudes rituais e das
crenças referentes às suas sacerdotisas – as mênades – e de que forma aquelas atitudes podem
contribuir para uma reflexão sobre nossa relação com o ambiente natural e com o cotidiano
(próximo capítulo). Para tanto, foi preciso compreender melhor a associação entre esta divindade
e a natureza na religiosidade grega antiga.

3. “Deus cabrito, louco por mulheres”: as práticas menádicas e as iniciações


Nesse ambiente iniciático, tanto Dioniso, quanto seus adoradores, são chamados pelo
mesmo nome: bácchios para o deus, bácchoi para os homens e bácchai para as mulheres
(SANTAMARÍA, 2013). Para Cole (1980, p. 229), isso ocorre porque ambos (deus e adepto) são
descritos pela atividade do ritual; similar com Santamaría (2013, p. 48) que acredita que Dioniso
recebe os epítetos de bácchios (e seus derivados) para destacar seu zelo pelos seus iniciados, mas
também para representar sua proximidade e participação nos rituais e seus efeitos. E quem poderia
fazer-se Bacante (ou seja, quem poderia se iniciar nos mistérios de Dioniso)? Todos! No entanto,
precisamos reconhecer algumas diferenças: o menadismo ritual (associado aos ritos dionisíacos
de natureza extática) é restrito para mulheres, mas existem formas de devoção masculinas a
Dioniso – um homem pode ser bácchos (Caballero, 2013, p. 166-7). Inclusive, os imortais (deuses
e daímones) poderiam ser bacantes, “eles são descritos assim porque eles são infundidos com
alguma inspiração como são os adoradores do próprio Dioniso” (COLE, 1980, p. 229). Esse
sagrado inspirado por Dioniso evidenciava a profunda conexão entre os ambientes naturais e o
sagrado que os habita e modela, toda a floresta e a montanha dançavam e acordavam sob a
presença de Dioniso, sua música divina era uma melodia entre a flauta de Pã, os árgos dos sátiros,
os tamborins e os címbalos das mênades; seu séquito era uma simbiose entre a aparência jocosa
dos sátiros e de Pã, e dos pés catárticos de suas distintas companheiras.

3.1 As Mênades

Mas afinal, quem eram as mulheres que pertenciam inerentemente a Dioniso e qual o seu
papel ritual? Muito se imagina hoje sobre as sacerdotisas de Dioniso: possuem diversas
designações, dentre elas são chamadas de mênades, tíades, bacantes e entre outros. A palavra
mênade (gr. μαινάδε / transl. maináde) significa mulher louca, é um nome poético com conotações
pejorativas (BREMMER, 1984; CABALLERO, 2013) e que “evidentemente refletia a aprovação
masculina das adoradoras de Dioniso” (BREMMER, 1984, p. 281). De acordo com Geraldo
(2014), no Greek-English Lexicon (LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 1073), o radical do termo deriva
do verbo maínomai, “que designa o frenesi báquico” (GERALDO, 2014, p. 9). Os termos são
derivados da palavra grega manía, para Burkert (1985), a palavra designa “uma experiência de
poder mental intensificado” (BURKERT, 1985, p. 162), que é entendido pelo autor como um
fenômeno coletivo que se espalha como uma epidemia. Para o autor, o simbolismo da máscara
atribuída ao deus representaria o instrumento da transformação que os adoradores passariam:
“todos que se rendem a esse deus correm o risco de abandonar sua identidade cotidiana e
enlouquecer; isso é divino e saudável. (...) esse desfoque nos contornos de uma personalidade
bem formada faz com que o culto a Dioniso se coloque em contraste com o que é justamente
considerado tipicamente grego” (idem). Similarmente, expõe Colli (2012) ao dizer que “o
orgiástico leva a uma liberação dos vínculos do individuo empírico, das condições de sua
existência cotidiana, e esse novo estado é chamado mania, loucura (...), isto é, um estado da
consciência que se contrapõe aquele ‘normal’, quotidiano” (COLLI, 2012, p. 18-19). Por outro
lado, para Dodds (1960), mênade é um título ritual, no entanto, o autor não deixa claro se o
menadismo é um estado de frenesi – que Dodds (1940, p. 168) considera como um estado mental,
real e recorrente – ou se é um movimento religioso (COLE, 2007, p. 329-330).

O que chamamos de menadismo hoje pode ser estudado a partir de algumas tragédias e
comédias antigas, de fragmentos e de alguns testemunhos de filósofos e de historiadores antigos.
Como se baseia na compreensão das fontes antigas tanto orais, quanto textuais e iconográficas,
sabemos que tais registros estão sujeitos a diferentes interpretações; por isso, o significado de
menadismo foi amplamente analisado, modelado e reformado. Para os primeiros helenistas, como
exposto por Rohde (1925), o menadismo é um estado de histeria coletiva que, durante um período
de tempo, expressa a dissolução das barreiras sociais. Hipótese que reverbera até hoje, Anghelina
(2017, p. 137) acredita que a palavra define o comportamento das mulheres durante o ritual
orgiástico a Dioniso, que seria uma libertação ritual das amarras impostas pelas normas sociais.

Para Henrichs (1978), o principal problema conceitual desses estudos modernos acerca
do menadismo é a busca de uma unidade identitária e ritual que seria possível reconhecer em
qualquer iniciada de qualquer cidade grega. Ao contrário dos estudiosos modernos cujas
explicações do menadismo grego se concentram nos impulsos internos dos adoradores humanos
ou na experiência religiosa coletiva do homem, os próprios gregos tinham uma resposta muito
mais simples, que merece atenção. Embora essa resposta talvez nunca tenha sido claramente
enunciada antes do período helenístico, ela é, em essência, tão antiga quanto os primeiros
resquícios do menadismo, como nossa breve revisão das primeiras evidências literárias mostrou.
Os gregos entendiam o menadismo como uma reencenação do mito e, portanto, basicamente
mimético, ou comemorativo (HENRICHS, 1978, p. 145). Por isso, neste trabalho, consideramos,
assim como Otto (1965, p. 174), Henrichs (1978, p. 145) e Seaford (1998, p. 101), que o
menadismo é uma espécie de performance, realizada por um grupo feminino (tíaso), de um certo
tipo de registro cúltico mitológico, geralmente, envolvendo as órgias em honra a Dioniso. Em
vista disso, Otto compreende que, no menadismo, as mulheres “devem se tornar como os espíritos
femininos de uma natureza que está distante do homem – como as ninfas que o alimentaram”
(OTTO, 1965, p. 179); e também para Hedreen (1984), “em sua loucura, as mênades tornam-se
brevemente como ninfas: abandonam suas casas e seus filhos na cidade e habitam, como ninfas,
nas montanhas e florestas. Mas o comportamento dessas mulheres enlouquecidas por Dioniso é
um desvio temporário. No final, elas retornam às suas vidas anteriores, ou se tornam outra coisa”
(HEDREEN, 1984, p. 49). Nesse sentido, como aponta Caballero (2013), o termo mênade
expressa uma atitude e não uma identidade, “esse estado emula as mênades míticas e lendárias,
não apenas as amas ninfas (ninfas-mênades), mas também as mulheres de Tebas (mênades
lendárias)” (CABALLERO, 2013, p. 169).

Mênades mitológicas: ninfas


As mênades ninfas são, primeiramente, as cuidadoras (tithênai; LARSON, 2001) de
Dioniso, como nos aponta na Ilíada (6. 132-35). De acordo com a mitologia, as ninfas de Nysa
teriam recebido Dioniso quando criança do deus Hermes, e o criariam junto com Sileno
(KERENYI, 2015) –, esse tema seria famoso na arte e poesia grega (LARSON, 2001): “Os vasos
atenienses geralmente mostram um grupo misto de silenos e ninfas em Nisa, e um sileno idoso,
ou papposilênos, às vezes é mostrado recebendo o divino infante enquanto as ninfas estão de
prontidão”. Mas também, essas ninfas são, de acordo com o Hino Homérico XXVI, as primeiras
seguidoras de Dioniso: “quando as deusas o nutriram com muitos hinos, então perambulava por
nemorosas moradas, coroado com hera e louro. as ninfas seguem junto, ele guia, e o frêmito
domina toda a floresta”.

Mênades Lendárias
No período clássico e arcaico, as mênades na Ática só eram atestadas na poesia e nas
cerâmicas, esferas em que suas referências eram abundantes. Sobre essas mulheres e seus
trabalhos rituais, Hedreen (1984, p. 57) faz uma pergunta interessante: a arte poderia fornecer
uma evidência inequívoca sobre as práticas menádicas em Atenas? Larson (2007a), Pierce (1998),
Hedreen (1984) e Bron (1987), pensam que sim, e sugerem a possibilidade de se estudar as
mênades clássicas através dos chamados Vasos Leneios, como já mostramos anteriormente. De
acordo com Larson (2007a), os motivos mais comuns desses vasos são mulheres que dançam em
êxtase ao redor de um pilar de culto temporário dedicado a Dioniso (na iconografia, aparece como
uma coluna ou pilar com uma máscara barbada – como na figura acima), ao ar livre. Desde o
início do século XX vem se especulando se essas cenas poderiam ser atribuídas a um festival ático
específico – alguns diziam que representava a Lenaia, outros diriam que representava a Antestéria,
ainda haveria uma terceira hipótese que se tratava de cenas genéricas ou até mesmo mitológicas.
Hedreen (1994, p. 57) nos aponta para a análise de Bron (1987) que leva em consideração as
interrelações entre mito, ritual, realidade visível e as intenções na pintura de vasos atenienses.
Dessa forma, diferente de outros comentaristas que tentam tratar essas imagens como documentos
fotográficos de rituais reais, Bron as percebe como representações artísticas dos pintores.
Acreditamos que tal reflexão poderia se estender para os cenários narrados na peça de Eurípides
– como também aponta Barbosa (2010, p. 149): “As Bacantes de Eurípides é o maior testemunho
do dionisismo”, ao modo que o tragediógrafo enxergava; e, por este motivo, o culto retratado não
era, necessariamente, o culto praticado e, como não possuímos registros de cultos menádicos
ocorrendo na Atenas democrática, não temos como saber sobre a veracidade de tais descrições.
De acordo com Dodds (1940), é inquestionável que muitos elementos da peça são
tradicionais, como o tirso, a coroa de hera, a nébrida e o sparagmós, no entanto, existiam
elementos que tinham seu contexto para com o período que Eurípides escreveu No século V, estes
rituais – como já foi colocado – já estavam completamente transformados, sobretudo em Atenas,
em festas políades, promovidas pelo Estado. Estes rituais, não temos como datar exatamente de
quando são. Contudo, é certo que são de um momento no qual a cidade não estava tão grande e
urbanizada, e os ambientes rural e urbano ainda não estavam completamente claros e difundidos.
Podemos acreditar que no período homérico estes ritos poderiam ser mais comuns, já que o
ambiente rural se constituía como quase a totalidade do território grego (BARBOSA, 2010, p.
179). Por conta disso, para Caballero (2013, p. 162), a peça apresenta certas deformidades em
relação a esses cultos femininos, pois o autor acaba exagerando nas ações rituais e na mistura com
os registros mitológicos; mas, apesar disso, a autora nos chama atenção para as influências da
peça a curto, médio e longo prazo. De tal forma que podemos falar de dois tipos de menadismo:
aqueles rituais que existiriam antes da peça e aqueles praticados a partir de Eurípides.
As Bacantes de Eurípides é uma peça que foi apresentada postumamente em um concurso
de teatro nas Grandes Dionisias em 405 AEC, um ano após a morte de seu autor. De acordo com
Geraldo (2014), o título da peça significa mulheres adoradoras do deus Bácchos; para Torrano
(1995, p. 19), recebe esse nome por conta do coro composto pelas bacantes originárias da Lídia.
Para Torrano, (...) o coro das Bacas mostra o culto dionisíaco em sua forma tradicional; descreve
seus parâmetros: a coroa de heras, o tirso (bastão adornado com heras e pâmpanos e com uma
pinha no alto), a nébrida (pele de corça que se ata ao pescoço); descreve seu comportamento e
gestos: o tíaso (grupo de Bacas guiadas por Baco), as corridas errantes nas montanhas, o
sacudimento da cabeça para frente e para trás, solta a cabeleira, a laceração e imediata devoração
ritual de animais, as visões miríficas que consumam as danças extáticas; narra os seus mitos e
formula os seus preceitos e exigências religiosas (TORRANO, 1995, p. 22). Para Sousa Silva
(2007), são as tarefas e os gestos das bacantes, descritas ao longo do texto, que constituem a
essência que fazem delas sacerdotisas de Dioniso; com outras palavras, ser mênade é uma atitude
(CABALLERO, 2013; PLATAS, 2002; HENRICHS, 1978).
Inspiradas por Dioniso, as bacantes praticavam seu ritual à noite, organizadas em tíasos,
elas acendiam suas tochas (v. 145-146, 307, 485-486, 862) para subirem as montanhas (oreibasía).
Nas mãos, as mênades carregavam o tirso (v. 25, 80, 1054), se cobriam com peles de veado
bordadas de tufos brancos de lã (v. 136- 137; 696-698), andavam com os cabelos soltos (v. 695)
e coroados com heras ou serpentes (v. 111-112). Dessa forma, percebemos que as sacerdotisas de
Dioniso buscavam assimilar diversas características de seu deus em suas vestimentas (v. 24-25)
e comportamentos. Eurípides também descreve o habitat das bacantes nas montanhas (v. 76; 218-
219; 811; 977-978), “eis óros, para a montanha” (TRABULSI, 2004, p. 211), elas gritavam, e nos
vales relvosos sob os verdes e umbrosos pinheiros (v. 38; 1048-1052), o próprio Dioniso é
“ὄρειος, ὀρειμανής, ὀρέσκιος, οὐρεσίφοιτης6 [originário da montanha]” (DODDS, 2002, p. 272).
No Cíteron, possuídas por Dioniso (enthéos), elas dançavam descalças (v. 664-665, 863-864),
agitavam (v. 80, 723-724) e golpeavam (v. 239-241; 731-733) seus tirsos no solo ou em quem as
observava, e saltavam nas montanhas como potrinhas ágeis no pasto (v. 166-167) ou como corças
a brincar livres nos prados (v. 866-873), “longe dos homens, por entre folhas da floresta frondosa”
(v. 874-875).
Os trabalhos em honra a seu deus (órgia) progrediam para a caça da vítima sacrificial –
geralmente, um bode (GILDA, 2013) (v. 137-138) –, em que era praticado o sparagmós (v. 736-
747; 1108-1109) – “Nós com a mão mesma agarramos esta fera e distribuímos dispersos os seus
membros” (v.1209-1210) –, e, possivelmente, a homophágia (v. 136-139) do animal capturado.
No caso da peça, o animal a ser sacrificado seria o próprio rei Penteu (v. 977-1152)7 . Esse
comportamento, como vimos, não precisa ser induzido pelo consumo de vinho, a manía é a
expressão da “mudança da consciência na intoxicação como a irrupção de algo divino”
(BURKERT, 1985, p. 162); para Larson (2007a, p. 126) e Belloto (p. 142), é justamente o
elemento do enthousiasmós (a inspiração dionisíaca), e o apelo especial às mulheres, que
diferenciava a adoração de Dioniso das outras divindades olímpicas. 6 Transliteração: óreios,
oreimanḗs, oréskios, oyresíphoitēs. 7 Sobre os sacrifícios dedicados a Dioniso, Larson (2007a, p.
137) chama atenção que, quando realizados sob os auspícios do Estado Grego, seguiam as
mesmas normas que para os outros deuses. No entanto, os sacrifícios realizados em contextos
menádicos seguem outros padrões; a prática do sparagmós era muito representada nos vasos
áticos, retratando as mênades ou o próprio deus segurando pedaços dilacerados de animais,
geralmente, uma cabra ou um cervo. Porém, a prática da homophágia não está clara para nós. Para
a autora, quando o coro (v. 139) fala: “ὠμοφάγον χάριν” (transl. ōmophágon khárin / tradução
“ato alegre de comer carne crua”), estava falando do comportamento de Dioniso (sob os epítetos
de Omestes e Omadios), não necessariamente do seu; entretanto, o consumo de carne crua pode
sim ter ocorrido em certos mistérios dionisíacos. Para concluir, para Larson, o mito grego estava
recheado de relatos de homens e crianças sendo despedaçadas pelas mênades – que não
conseguiam distinguir entre humanos e animais –, no entanto, não há evidências críveis de que
essas formas de “sacrifício” eram praticados regularmente em qualquer cidade grega. 17 Por estes
motivos, a estranheza dos gregos ao culto de Dioniso é em relação tanto à dança dionisíaca que
estava associada aos gritos frenéticos das mênades, ao movimento – “movimento intenso que
coloca o corpo em certo isomorfismo com o mundo animal” (COLOMBANI, 2021, p. 28) – e aos
diversos instrumentos percurssivos orientais, dentre eles os tamborins (v. 58-59; 125; 156), as
flautas da Frígia (v. 127-128) e os címbalos; quanto à caçada sem armas praticada por suas
sacerdotisas – “que abandonei as rocas junto dos teares por algo maior: caçar feras com a mão”
(v. 1236-1237) –, “a caça – como já foi dito por nós – é um elemento da ruralidade, e um elemento
também do mundo selvagem, da floresta, dos campos não arados” (BARBOSA, 2010, 179). Essa
comparação das mênades e de Dioniso com animais (Dioniso aparece na peça ao mesmo tempo
como mortal, divino e animal) e a associação ao ambiente selvagem destacam a ideia do
ctonicismo presente nessas práticas, pois os elementos da natureza e as forças telúricas (como o
terremoto que destrói o palácio) estão sempre agindo em conjunto com as mênades e com Dioniso.

Mênades Históricas
De acordo com Larson (2001, p. 95) e Hedreen (1984, p. 57), a evidência mais antiga de
rituais orgiásticos dedicados a Dioniso datam do período helenístico (séc. III e II AEC), como
teria sido demonstrado por Henrichs (1978, p. 121), no artigo “Greek Maenadism from Olympias
to Messalina”. Um dos registros mais antigos que recuperamos é a passagem, citada acima, de
Diodoro Sículo (4.3.2-3), historiador grego do século I AEC, encontrada em sua biografia de
Dioniso no período helenístico; para ele, nesse período, “as mulheres adoravam Dioniso em
imitação das mênades que dizem ter sido associadas com o deus nos velhos tempos” (DIODORO
apud HEDREEN, 1984, p. 57). Porém, esse relato levanta diversos questionamentos acerca dessas
práticas no período helenístico, como aponta Larson (2007a), e a principal seria se elas praticavam
rituais que se estenderam desde os tempos antigos, ou se elas haviam se inspirado em descrições
poéticas, como n’As Bacantes, para “reviver” tradições que já haviam desaparecido – essa
segunda hipótese se baseia na inscrição que encontramos na Magnésia (que analisaremos logo
adiante). A inscrição da Magnésia também confirma o registro de Diodoro, de que o menadismo
ritual é uma rememoração de um menadismo mítico. De acordo com o registro de Diodoro, essas
sacerdotisas se organizavam em congregatios (confrarias/colégios) restritas para mulheres,
casadas ou não, mas que tinham atribuições diferentes: as donzelas, isto é, as mulheres não
casadas, carregavam o tirso e “expressavam seu entusiasmo com o grito ritual de evoé”
(HENRICHS, 1978, p. 147); enquanto as matronas tinham mais deveres, se organizam em grupos
(tíasos) e “(...) realizam ritos báquicos (βακχεύειν), presumivelmente não mais do que uma
referência a danças menádicas; elas cantam hinos sobre a epifania de seu deus como o coro das
Bacantes e as mulheres de Elis; e, o mais surpreendente, dizem que elas sacrificam a Dioniso”.
Os textos que analisamos, principalmente, em Henrichs (1978) constituem grande parte da
evidência escrita que recuperamos sobre o menadismo ritual na Grécia.
O período helenístico tem seu fim com a vitória romana na Batalha de Corinto, iniciando
a influência e domínio romano sobre a Grécia Antiga. Quando o cristianismo se torna a religião
oficial de estado do Império Romano, os politeísmos antigos são proibidos e, com o decreto do
imperador Teodósio I em 380 EC, os templos pagãos são fechados. Por isso, Hölderlin nos
perguntava, agora que o templo e o oráculo de Delfos dormem – isto é, perde seu prestígio e
encerram suas atividades – “onde ressoa o grande destino?”, onde estão os deuses, as canções, a
contemplação? A ruína do menadismo ritual também se inicia nesse período, no final do período
helenístico com o início do período romano, momento em que, como mostra Henrichs (1978, p.
135), podemos falar sobre mênades sem menadismo8 , pois os padrões menádicos são convertidos
progressivamente para os do “bacanal” romano, um ritual báquico marcado pelo consumo de
vinho e orgias sexuais entre jovens romanos e matronas com trajes de mênades (nesse momento,
os rituais báquicos eram supervisionados pelo senado romano, que permitia os dois sexos, mas
somente as mulheres eram sacerdotisas). Claro, isso ocorre em quadros mais amplos, sabemos
das diferenças regionais dos cultos praticados, “the regional pattern of Greek cult tolerated the
coexistence of old and new forms of Dionysiac worship in close proximity”.

4. Dioniso e as Mulheres
Para Moreira (2021), a tragédia de Eurípides poderia nos apresentar aspectos
significativos da cultura e da história de gênero entre os atenienses, e, também poderia nos
iluminar sobre o elo especial que o deus possuía com o feminino, expressado através de seus
mitos, da forma como se vestia e de sua relação com suas sacerdotisas; para a autora, “o deus
transmitia às mulheres suas forças vitais, ligadas a terra e à renovação vegetal e da vida”
(MOREIRA, 2021, p. 98). Para Matos (2021), se olharmos a peça pensando na mulher grega,
podemos nos perguntar se “as bacantes, seguidoras de Dioniso, seriam exceção ou uma
possibilidade de ser mulher no mundo antigo?” (MATOS, 2021, p. 17); isso porque, para a autora,
“o culto a Dioniso (...) atestaria a participação central das mulheres na esfera transgressora,
tirando-as da oíkia e as posicionando no espaço público. O menadismo acaba, por meio da cultura
material e escrita, envolvendo e sendo incorporado pela pólis” (ibid., p. 17).
Em outras palavras, apesar de gozar de certa oficialidade da pólis, o culto a Dioniso seria
uma possibilidade para uma outra forma de ser mulher na Grécia. Como vimos, existe uma série
de debates sobre o nome e as práticas das sacerdotisas de Dioniso e sobre a inserção, ou não, de
homens nos rituais orgiásticos, por este motivo, propomos neste tópico uma Dionisolepsia, uma
sabedoria a ser apreendida pela experiência religiosa orgiástica. Como aponta Dodds (2002, p.
82), “o protótipo da loucura ritual é a oreibasía, ‘a dança da montanha’”. Assim como as ninfas
que capturavam e inspiravam (Larson, 2001) certos indivíduos, conhecidos como nymphólēptos,
a cuidar de seus jardins, adornar suas cavernas e até mesmo lhes concediam poderes oraculares;
acreditamos que as mênades/bacantes são dionysólēptas, inspiradas ou apreendidas por Dioniso,
e sob essa influência elas subiam as montanhas como forma de adquirir uma sabedoria passada
somente pela experiência dionisíaca, uma forma de conhecimento que não poderia ser ensinada,
apenas experimentada. Como aponta Dodds (2002), quando na dança as dionysólēptas são
possuídas por seu deus, podemos compreendê-las como manifestações divinas do próprio deus,
tornando-as (enthéoi); ou como diria Kerényi “o gesto inspirado eleva o homem à esfera divina,
e a dança faz mais ainda: na dança, os deuses podem tornar-se presentes, a maior deidade pode
ser trazida ao meio dos dançarinos” (KERENÝI apud MATOS, 2021, p. 121). Para Dodds (2002,
p. 84) e Matos (2021, p. 81), através da dança orgiástica as iniciadas passavam por um processo
de catarse que purifica a mente, “a cura acontecia por meio de uma conciliação entre deus e
humano” (MATOS, p. 81).
Trata-se, portanto, de um teomorfismo, como ponta Otto (2006, p. 89), não é uma
humanização da figura de Dioniso, mas uma elevação das sacerdotisas para o nível mitológico
(nesse caso, seriam como ninfas ou personagens das poesias lendárias). Como apontamos,
acreditamos que pela oreibasía, sua iniciadas se tornavam portadoras de uma sabedoria presente
na experiência do ritual dionisíaco, como nos indica Colli incessantemente, “a sabedoria de
Dioniso está dentro dele, não é algo que ele passa para os outros” (COLLI, 2012, p. 24); e,
“tornando-se louca, a bacante recebe em si mesma Dioniso, a chave da sabedoria” (ibid., p. 27).
8 Expressão de Henrichs (1978, p. 155). Dessa forma, concluímos que Dioniso é um sábio
delirante, que através de suas múltiplas máscaras possibilitaria àqueles que forem capturados por
sua sabedoria reinterpretar sua relação consigo mesmo, com seu habitat, com os deuses e com a
totalidade, que chamamos de Natureza.

Você também pode gostar