A Epifania Das Máscaras
A Epifania Das Máscaras
A Epifania Das Máscaras
1 Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Curador de coleções etnológicas do Museu
Nacional/UFRJ.
A Epifania das Máscaras: Um Experiência de Escuta e Encontro Dialógico
As peças que integram um museu podem ser “vivas”? Ou seja, elas podem
ter uma outra vida, uma ordem de existência que não seja planificada, coordenada
ou sequer conhecida pelos curadores, museólogos e dirigentes responsáveis pelas
instituições que as administram e possuem? Esta ideia, que estaria na contra-cor-
rente das sensações e sentidos que garantem a presença e expressão dos objetos
na experiência museológica, implicaria na completa subversão daquilo que, seguin-
78 do Arjun Appadurai (1986), poderíamos chamar de a vida cotidiana dos objetos e
a organização social das exposições.
Os temores que suscitam, apesar de sua raridade e de sua aparente esqui-
MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE Vol.5, nº9, Jan./ Jun. de 2016
Relatar a experiência daí resultante, creio, poderia ser útil também para
estimular os debates sobre uma reformulação de perspectiva nos museus et-
nográficos. Submeter ao olhar dos nativos a cultura objetificada reunida nos
museus possibilita repensar algumas práticas e interpretações tanto sobre as
populações colonizadas quanto sobre a própria natureza da “ilusão museal” (Pa-
checo de Oliveira & Santos, 2015). Em suma, debater as relações entre o sagra-
do e o profano, entre o racional e o imaginário, entre o solar e o noturno nos 79
museus etnográficos.
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Alguns anos atrás (1999) fiz uma viagem aos Ticunas com a finalidade
de produzir, conjuntamente com uma equipe do LACED/Museu Nacional, um
documentário sobre as novas formas de organização indígena. Paralelamente,
munido de fotografias reproduzidas via scanner das peças exibidas na exposição
Memória da Amazônia (acima mencionada) e em outra intitulada Os Índios,
Nós, realizada no Museu Nacional de Etnologia (MNE), em Lisboa, em 2000, com
curadoria do antropólogo Joaquim Paes de Britto, bem como das descrições
e comentários contidos nos livros de registro das duas instituições (MAUC
e MNE), pude envolver-me em um fascinante exercício dialógico – promover
um encontro dos índios contemporâneos com a Amazônia do século XVIII,
ouvindo, dialogando e registrando as reflexões e argumentos dos Ticunas atuais
sobre tal material. É deste encontro que resultam as anotações, comentários,
hipóteses e interpretações a seguir aqui apresentadas.
Segundo os registros feitos por Alexandre Rodrigues Ferreira, as máscaras
seriam de origem Jurupixana, tribo dada como extinta nos inventários etnoló-
gicos e lingüísticos, bem como em levantamentos bibliográficos desde o século
XIX. Os Jurupixuna habitariam os afluentes dos rios Negro e Japurá (também
chamado de Putumayo). Através de outros viajantes do século XIX, como Spix
e Martius e Bates, há notícias sobre a existência de índios chamados Juris no rio
Içá (Caquetá) e Japurá. Em seu rigoroso trabalho de revisão da literatura sobre
os indígenas do Brasil, Herbert Baldus (1954) menciona esta tribo, registrando
também para ela igualmente a referência de Juripixuna.
Os Ticunas, por sua vez, ocuparam no passado uma região mais a oriente,
tendo o rio Içá e seus afluente como o seu limite. Esta situação se modificará
ao longo do século XX, com a convivência com famílias de indígenas Cocamas,
provenientes do Peru, e de grupos locais Caixana. Por outro lado durante levan-
tamentos de população indígena no Alto Solimões, pude obter indicações sobre
a presença passada de famílias e grupos locais Juris em terras do atual município
de São Paulo de Olivença (Pacheco de Oliveira, 1988, 2012 e 2015). Os dois
povos participavam de todo modo de uma mesma área cultural, caracterizada,
entre outros elementos, por uma cosmologia complexa e dualista, pelo uso de
máscaras, de tabaco forte e bebidas fermentadas.
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Ao apresentar as reproduções xerográficas das máscaras aos Ticunas atu-
ais logo surpreendeu-me o contraste face as atitudes que em geral mantinham
frente a situações de variação cultural entre subgrupos de distintas localizações
territoriais. Enquanto naquelas ocasiões, em relação a estoques de nomes indi-
viduais e dos patriclans, de motivos de pintura, mitos, e tecnologias diversas, eles
marcaram os limites estritos de seu conhecimento, referenciando-se sempre a
sua própria comunidade, e afirmando não saber informar sobre costumes e as-
pectos de seus vizinhos, agora os Ticunas estabeleceram de imediato um diálogo
A Epifania das Máscaras: Um Experiência de Escuta e Encontro Dialógico
um “animal maior” (com “fauces cheias de dentes”), o qual por sua vez devora
um animal menor (“um jacaré”).
Na leitura praticada pelos Ticunas, esta peça não estaria de modo algum
replicando processos naturais de predação de uns animais por outros, mas mos-
traria um outro tipo de espírito malfazejo que habita o mundo subterrâneo, o
“ucaé. Tal personagem estaria “vomitando alguma coisa que tem dentro de si,
82 para que ela fosse atacar outra pessoa”. No caso, dizem os Ticunas, o “ucaé”
estaria expelindo uma cobra, mas poderia lançar igualmente outros “bichos”
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(“como aranha, vespa, morcego”) que iriam a seguir instalar-se no corpo das
vítimas e promover a sua morte por feitiçaria.
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Não é correto também supor que os indígenas estejam sempre de acordo
quanto à identificação dos personagens e ações representados nas máscaras.
As interpretações que apresentam podem estar referidas a estoques locais de
conhecimentos sobre as máscaras, tanto quanto as narrativas míticas ou ainda a
referências às práticas e a linguagem do xamanismo (todas elas distribuídas de
maneira bem diversa entre a população Ticuna, obedecendo a fatores de espe-
cialização, idade, gênero e localidade). Isso é recorrente, p. ex., nas análises sobre
as máscaras BR – 147 e 136, ambas já mostradas anteriormente).
Para um exemplo de leituras divergentes realizadas a partir de uma nar-
rativa ou da observação direta da natureza, podemos reportar-nos a Imagem 2
(Máscara BR – 141). Enquanto um dos analistas indígenas identificou tal máscara
a um tipo de cachorro do mato muito bravo, similar quase a uma onça, um outro
realizou uma exegese a partir de uma narrativa tradicional sobre um menino
órfão criado pela avó.
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A avó teria em seu poder uma máscara de onça, que secretamente coloca-
va e saia à noite para caçar animais de vários tipos. Ela proibia à criança de tocar
naquela máscara. Um dia o menino encontrou no tapiri um fígado humano – que
fazia um som muito peculiar (“taca taca taca”) – dentro de uma panela de barro.
Curioso, voltou a indagar de sua avó sobre aquela máscara, ao que ela nada lhe
respondeu e renovou a proibição. No dia seguinte, a criança encontrou outra vez
a máscara, resolveu brincar com ela e a colocou em seu corpo. O menino nunca
mais conseguiu retirá-la e ficou para sempre transformado em onça.
Ao invés de um registro neutro de memória, de uma simples decifração de
um objeto em sua forma atual e observada, o que pudemos notar aqui (como
no relato da imagem BR-136) é algo bem diverso. Os interlocutores indígenas
se envolveram em uma “démarche” interpretativa, incorporando o visto (a más-
cara) enquanto componente metonímico de uma performance maior (a ação
dos personagens envolvidos). Isso os leva a dramatizar “in extremis” o relato e
a atualizar para si mesmos, assim como para os que os ouvem, toda a dimensão
aterrorizante dos significados aludidos naquela peça. Assim o narrador, com visí-
vel sentimento de pena e temor, observou que a máscara tem a boca aberta (por
causa “do choro do menino”) e por trás da figura da onça se pode perceber “uma
cabeça de gente” (da criança tentando desesperadamente arrancar a máscara).
Aos Ticunas não causa qualquer desconforto o fato de que haja discordân-
cias quanto à identificação dos personagens representados pelas máscaras. Os
conhecimentos e experiências que os indivíduos têm da cultura são muito dife-
rentes, dependendo da localidade e do circuito de parentesco a que pertencem,
João Pacheco de Oliveira
das diferentes faixas de idade, das religiões oficiais que adotam e dos conheci-
mentos que possuem sobre o mundo dos brancos. Enquanto um “capitão” (líder
local) de 64 anos observava a imagem 1 e falava sobre o “tchatchacuna”, um rapaz
de 22, solteiro e estudante, embora captando perfeitamente o teor ameaçador da
máscara, classificou aquele personagem como “um extra–terreno, um ET” (sic!),
todos rindo muito (inclusive o etnógrafo) daquela surpreendente sobreposição
de significados. Um curto circuito temporal reunia o saber xamanístico à ficção 83
científica holywoodiana, o viajante filósofo aos imaginário atual da televisão.
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Por que os indígenas jamais falam das máscaras friamente, como se as
estivessem observando à distância? Segundo as tradições Ticuna as máscaras
surgem apenas no contexto do ritual de iniciação feminino (worecu), chamado
em português de “festa da moça nova”, sempre protagonizando cenas de agres-
são contra à jovem e as pessoas presentes na festa (em especial as crianças e
mulheres). Longe de verem os mascarados como artefatos admirados na vitrine,
os participantes deste ritual (em especial os parentes mais próximos da “moça
nova”) envolvem-se em , jogos de confronto corporal com elesde modo a evi-
tar que atinjam o local onde está a moça (que querem violar e matar). Ao cabo,
depois de parecerem desistir desse intento, recebem comida e bebida, sendo
enquadrados na festa e passando a dançar com os participantes.
Os mascarados são objeto de sentimentos permanentes de medo, raiva
e desconfiança, não deixando jamais de serem perigosos, pois a qualquer mo-
mento podem voltar a serem agressivos e perseguirem os seus intentos iniciais.
Algumas vezes os participantes da festa conseguem individuar quem seria,
naquele caso, o indígena que usa aquela específica máscara. Contudo como nes-
sas ocasiões é comum um grande o afluxo de visitantes de outros grupos locais, a
tendência mais usual é preservar-se o segredo de quem é o portador da máscara.
Há sempre, claro, a virtual ameaça de que dentro da máscara não exista
um homem, mas sim o próprio espírito agressor, notoriamente no caso de al-
guns personagens mais assustadores ou de mascarados com uma conduta mais
agressiva. Os limites entre a farsa e a tragédia, entre a jocosidade e o arbítrio
de seres sobrenaturais malévolos, não são claramente delimitados nem podem
portanto serem antecipados em sua totalidade pelos que participam de tal jogo.
Ao término do ritual as máscaras são retiradas pelos visitantes e entre-
gues ao dono da festa, em geral o pai ou o irmão do pai da jovem iniciada, sendo
guardadas em um jirau para serem queimadas em outra festa a ser realizada um
ano depois. Indiscutivelmente os momentos mais calmos da festa são justamen-
te aqueles em que as máscaras estão ausentes.
O processo cultural de investimento e atribuição de sentido3 às más-
caras permite que interpretações ambíguas e contraditórias sejam entendidas
como normais. Não existe um inventário rígido de personagens representados
pelas máscaras. Cada máscara é inteiramente concebida e criada por quem irá
vesti-la, correspondendo em geral a uma revelação ocorrida em sonho a um
xamã. Alguns dos mascarados servem-se de identificações adicionais para dar
a conhecer aos integrantes da festa a sua verdadeira “natureza” (usando para
isso certos padrões adornativos – a roda ou a estrela, por exemplo -, portando
objetos específicos ou entoando certas músicas). Outros utilizam-se para isso
de talos de bambu como flautas e por aí “cantam”, com uma voz fina e de falsete,
explicando para as pessoas “quem são” e “o que desejam”.
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3 Ver Bourdieu, 1966.
A Epifania das Máscaras: Um Experiência de Escuta e Encontro Dialógico
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João Pacheco de Oliveira