Klüber - A Disciplina de Epistemologia e A Formação de Pesquisadores Na Área de Ensino
Klüber - A Disciplina de Epistemologia e A Formação de Pesquisadores Na Área de Ensino
Klüber - A Disciplina de Epistemologia e A Formação de Pesquisadores Na Área de Ensino
Resumo
Abstract
1
Professor Adjunto da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Cascavel. Doutor
em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
7
Preâmbulo
(BACHELARD, 1977). Penso que esses benefícios, de certa maneira, esclarecem em parte a
relevância e pertinência de disciplinas de epistemologia na formação de pesquisadores. Por
ora, limito-me a dizer isso para alinhavar esses esclarecimentos na última seção do artigo.
A minha experiência como docente da pós-graduação stricto sensu é decorrente da
atuação no programa de Pós-graduação em Ensino, PPGEn, nível de mestrado, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Foz do Iguaçu, desde 2014. Destaco que
desde a construção do seu Projeto Político Pedagógico (PPP), em 2012, defendi a presença de
uma disciplina de epistemologia, a qual foi implantada com a criação do programa. Sendo
assim, se instalou a necessidade da oferta da disciplina no quadro obrigatório e passei a
assumi-la deliberadamente e ministrá-la nos anos de 2014, 2015 e 2016.
Como docente da disciplina pude observar, da parte de alguns dos meus discentes,
um comportamento muito semelhante àquele de alguns dos meus colegas de mestrado e
doutorado externavam: uma angústia por compreender a finalidade da disciplina na sua
formação, a qual, de início, pode parecer deslocada e sem significado.
Nesse itinerário de formando e formador não conheci textos de epistemologia que se
dedicassem debate da relevância da inserção de questões epistemológicas especificamente
para os programas de pós-graduação da área. Há, sim, textos que discutem o papel de uma ou
outra corrente epistemológica para a área (DELIZOICOV, 2004), ou de visões
epistemológicas para uma visão não deformada da Ciência na formação de professores de
ciências (GIL-PEREZ et.al, 2002). Assim, salvo algum texto muito recente que não tomei
conhecimento, parece não haver textos que tratem designadamente da relevância da disciplina
que, ainda que com muitas nuances, traz reflexões sobre diversas correntes, vertentes,
enfoques, opções e quadros epistemológicos, enfim, um debate sobre ciência e seus diferentes
modos de produção.
Dessa perspectiva, é razoável efetuar um esforço analítico e registrar reflexões que
busquem situar essa relevância dada à disciplina e que está presente em mais da metade dos
programas de pós-graduação da área de ensino2, revelando um compartilhamento tácito de
suas contribuições. Ainda que corra o risco de afirmar nesse artigo o óbvio, o registro das
minhas reflexões pode abrir possibilidades para a aceitação da disciplina, por parte dos
discentes e também docentes de outras áreas que se iniciam na área de ensino.
2
Conforme levantamento efetuado na plataforma sucupira:
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/programa/listaPrograma.jsf , em 14/09/2016,
articulando o relatório da área de Ensino e da antiga área de Ensino de Ciências e Matemática.
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como Popper (2004), Lakatos (1979), Bachelard (1996), Kuhn (1975), Feyrabend (1977) e
Fleck (2010). Esses pensadores representam o que há de mais relevante para uma reflexão
intracientífica que vai além da discussão inscrita na região de inquérito da filosofia, no sentido
de incorporar outros elementos antes considerados irrelevantes, como por exemplo, o
processo não cumulativo, mas histórico da ciência (BACHELARD, 1977, 1996), o papel das
comunidades (KUHN, 1975), mas principalmente, levar em conta a ideia de método
científico, ora buscando-o ora negando-o.
Esses pensadores marcam um momento da reflexão epistemológica que mostra um
movimento interno da ciência para compreender a si mesma, trazendo, portanto, do interior da
prática científica, os aspectos tomados para dar uma explicação sobre como se produz o
conhecimento. Esses representam um debate e a disputa entre duas tendências da ciência, uma
analítica e outra histórica (BOMBASSARO, 1992).
Longe de soluções frágeis, como pretendia o positivismo ingênuo, as contribuições
dos diferentes autores, em vez de delimitar ou restringir aquilo que pode ser chamado de
Ciência, alargou as suas fronteiras e deixou, por assim dizer, várias pontes que permitem o
trânsito e a interferência de aspectos antes ignorados ou secundarizados, como por exemplo, o
senso comum ou o conhecimento produzido pelas Ciências Humanas e Sociais (SOUZA
SANTOS, 2006, BOMBASSARO, 1992).
Das reflexões de Popper e Lakatos, por exemplo, decorre uma abertura para pensar
no caráter provisório e até mesmo falho, seja das teorias consideradas individuais, seja
daquelas compartilhadas por um grupo de pesquisadores que racionalmente decidem sobre
persistir ou abandonar uma teoria que não pode ser refutada ou corroborada. Ainda, colocam
por terra a falácia da neutralidade do pesquisador e dos dados puros, de herança positivista.
Admitindo como tese básica, a presença de teoria prévia em toda e qualquer observação.
De Bachelard, o caráter histórico e autocorretivo da ciência indica um caminho para
superar visões ingênuas sobre o fazer científico e sobre o cientista de maneira geral. Além
disso, revela o caráter plural das teorias envolvidas na explicação dos fatos científicos que
nunca são em si, mas sempre produzidos, inclusive por intermédio dos instrumentos utilizados
pelo cientista.
Das contribuições de Kuhn e Fleck ressalta-se o caráter coletivo da produção
científica, que ocorre sempre no interior de uma comunidade científica ou coletivo de
pensamento. Ainda que existam diferenças, inclusive indicadas na literatura (DELIZOICOV,
2004), entre suas epistemologias, elas guardam semelhanças. Portanto, além daquilo que
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parece ser iniciado com Popper, ao menos naquilo que foi dado a conhecer, Kuhn e Fleck dão
conta das reflexões iniciadas por ele e avançam, retirando o caráter puramente lógico e
progressivo da ciência, atribuindo-o uma dimensão sócio-histórica.
De Feyrabend, certamente o mais irreverente de todos, emergem duras críticas à
visão dogmática, quase religiosa construída e defendida pelos cientistas. Aquilo que parece
ser uma reflexão descompromissada com a ciência pode trazê-la ao seu devido lugar.
No entanto, além das reflexões epistemológicas desses autores há aquelas “nativas”
das Ciências Humanas e Sociais, que historicamente foram vistas como ciências de segundo
nível e mesmo imprecisas. Ainda que haja uma variação de nomenclaturas, podemos dizer
que duas delas se destacam por se fazerem presentes nas reflexões educacionais brasileiras: a
posição histórico-dialética e a fenomenológico-hermenêutica.
Dessas duas correntes, destaco a possibilidade de conceber e olhar os objetos de
pesquisa segundo um estatuto epistemológico próprio, sem se prender aos princípios do
monismo metodológico que caracterizam uma visão ingênua das Ciências da Natureza. Tanto
o movimento histórico-dialético, quanto o fenomenológico nascem de uma oposição aos
princípios do positivismo lógico que buscava imperar, epistemológica e metodologicamente,
sobre os modos de proceder das ciências sociais, segundo a minha leitura dos textos de
Tremblay (2010), Souza Santos (2006), Bombassaro (1992) e Dartigues (2008).
Ainda que tenham concepções de conhecimento e realidade distintas, essas duas
correntes devolvem, ao lado das epistemologias mais recentes das Ciências, a historicidade
inerente a todo e qualquer conhecimento produzido pelo ser humano. Nessa perspectiva,
estudá-las, pode favorecer uma compreensão sobre o lugar da pesquisa desenvolvida no
âmbito das Ciências Humanas e Sociais, no caso, na área de ensino.
De maneira geral, os aspectos que demarcam o estatuto epistemológico das Ciências
Sociais e Humanas podem ser assim resumidos, a partir da leitura de Souza Santos (2006, p.
40): 1) Ausência de teorias explicativas que deem conta do real, segundo uma metodologia
controlada; 2) Não são estabelecidas leis universais, considerando o caráter histórico e
cultural das relações humanas; 3) Impossibilidade de “[...] produzir previsões fiáveis”, pois os
seres humanos tendem a modificar o seu comportamento a partir do conhecimento adquirido;
4) “os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela
natureza objetiva do comportamento; 5) Não é possível, ao pesquisador, libertar-se, no ato da
observação, dos valores que sustentam a sua prática social.
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De acordo com os autores se destacam sete imagens deformadas da Ciência que são
recorrentes entre os professores de ciências e que se aproximam do senso comum, quais
sejam: 1)“concepção empírico-analítica indutivista e ateorica”, a qual enfatiza o papel de
neutralidade da observação e experimentação; 2) “visão rígida (algorítmica, exata, infalível)”,
considerando um conjunto de etapas fixo a ser seguido; 3) visão a-problemática e a-histórica,
sendo assim, fechada e dogmática; 4) “visão exclusivamente analítica”, a qual tem caráter
simplificador e limitado; 5) “visão acumulativa de crescimento linear”, que admite a Ciência
como um edifício minuciosamente construído, sem retroação; 6) “visão individualista e
elitista”, apegada a uma ideia ingênua de genialidade e produção de mentes isoladas e
iluminadas; e 7) visão de uma ciência socialmente neutra, não admitem as complexas relações
entre sociedade, ciência e tecnologia – CTS (GIL-PEREZ, et al, 2002, p. 129-133).
De certo modo, ainda que isso mereça uma ampla investigação particular para a área
de ensino, essas visões perduram entre os discentes de programas de pós-graduação de outras
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áreas como se pode no estudo particular de Alves, Flôr e Souza (2015), no qual concluíram
permanecer a visão empirista entre pós-graduandos de agroquímica da Universidade Federal
de e Viçosa, UFV. Os programas da área de ensino, por seu movimento histórico, são
sabidamente multidisciplinares, constituídos por docentes de diferentes áreas do
conhecimento e que possuem visões distintas sobre ciência (DELIZOICOV, 2004),
carecendo, ainda mais, de reflexões epistemológicas no sentido de superar tanto as imagens
deformadas das ciências, construídas em suas trajetórias escolares, como as divergências
epistemológicas que venham contribuir para a instauração de outras deformações, como por
exemplo, reincidir de maneira sistemática numa epistemologia que reforce visões distorcidas
da ciência com prejuízos à pesquisa em ensino considerada como Ciência Humana Aplicada.
Sob esse argumento, a presença da disciplina de epistemologia ou alguma variação,
em mais de 52 programas de pós-graduação, espalhados pelo Brasil, por diferentes
instituições ou campi, é um aspecto que pode ser destacado como uma característica
importante dos programas da área. A partir de minha experiência observo que essa é também
uma espécie de demarcação epistemológica destes programas, no sentido de avançar numa
reflexão mais apurada sobre ciência, o papel da ciência e os desdobramentos pedagógicos que
dela decorrem. A reflexão epistemológica parece se tornar uma „substituta‟ dos princípios
epistemológicos fixistas e pretensamente universais advindos de imagens deformadas da
ciência.
A reflexão epistemológica, se conduzida de maneira adequada, pode conferir
segurança aos futuros pesquisadores de ensino, tanto na defesa adequada do lugar de sua
pesquisa, como o respeito ao posicionamento divergente dos pares. Em outras palavras,
poderá, por meio da reflexão epistemológica, situar-se de maneira rigorosa sem incorrer em
modismos acadêmicos ou ficar apegado a visões ingênuas de ciência e principalmente das
ciências humanas e sociais.
Se essas reflexões fizerem parte do estofo do pesquisador da área de ensino, além de
poder reorientar a sua prática pedagógica para uma perspectiva mais investigativa, podendo
contribuir para o desenvolvimento visões não distorcidas de ciência, poderá compreender o
uso adequado das teorias no escopo de seus trabalhos e métodos.
Dominar algumas noções de epistemologia evitará incorrer em erros grosseiros como
a afiliação acrítica a pontos de vista que são partilhados na academia como se fossem de
estatuto epistemológico, quando se constituem em mero senso comum acadêmico, como, por
exemplo, a necessidade de sempre produzir resultados que busquem confirmação por meio do
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levantamento e tratamento estatístico. Para além disso, o pesquisador pode usar essas noções
como queira, transitando entre a ciência, o seu estudo e a elaboração de uma pesquisa em
Ciências Humanas e Sociais, sem desprezar os resultados de cada uma.
Por fim, apresento excertos de discentes da disciplina da epistemologia, por mim
conduzida, produzidos por ocasião da avaliação interna da disciplina, portanto, sem
identificação. Esses excertos indicam que a aproximação dos discentes à epistemologia, pode
auxiliar na superação de obstáculos epistemológicos que deturpam e prejudicam tanto a
formação do pesquisador, quanto a qualidade da pesquisa desenvolvida.
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Referências
HESSEN, J.. Primeira Parte- Teoria Geral do Conhecimento. In: HESSEN, J. Teoria do
Conhecimento. 7. ed. Coimbra-Portugal: Arménio Amado, 1982. p. 25-57. Tradução de Dr.
Antônio Correia.
GIL-PÉREZ, D. et al. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência e
Educação. V.7, n.2, p.125-153, 2002.
SOUZA SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
TREMBLAY, M-A. Reflexões sobre uma trajetória pessoal pela diversidade de objetos de
pesquisa. In: POUPART, J. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e
metodológicos. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 2010. p.9-
30.
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