Klüber - A Disciplina de Epistemologia e A Formação de Pesquisadores Na Área de Ensino

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A disciplina de epistemologia e a formação de pesquisadores na área de ensino

Tiago Emanuel Klüber1

Resumo

A disciplina de epistemologia, sob diversas variações e nomenclaturas, é recorrente em programas de


pós-graduação da área de Ensino. Essa presença, por si, indica que ela é vista de maneira relevante por
pesquisadores da área. No entanto, articulada a sua importância, emerge a seguinte interrogação: qual
a finalidade de uma disciplina como essa no currículo de programas de pós-graduação em Ensino?
elaborada, na maioria das vezes, por discentes. De maneira geral, o esforço de esclarecimento sobre o
a finalidade da disciplina é efetuado no âmbito das aulas. Nesse sentido, torna-se relevante elucidar
alguns aspectos concernentes a ela, devido à complexidade e às possibilidades que se abrem com o
tema. Dessa perspectiva, pretendo, nesse artigo, efetuar considerações sobre a relevância e pertinência
da disciplina de epistemologia para a formação inicial de pesquisadores na área de ensino.

Palavras-chave: Ensino, Pesquisa em Ensino, Teoria do conhecimento.

The epistemology discipline and researchers training in teaching area

Abstract

The epistemology discipline, in various variations and nomenclatures, is recurs in graduate


programs of teaching area. This presence, indicates that it is seen in a relevant way for
researchers. However, of the its importance emerges the following question: what is the
function of this discipline in the curriculum of postgraduate programs in teaching area? asked
by most students. In general, the attempt to clarify the role of discipline is made within the
classes. In this sense, it is relevant clarify some aspects related to it due to the complexity and
the possibilities that open with the theme. From this perspective, I intend, in this article, make
considerations about the relevance and pertinence of epistemology discipline for the initial
training of researchers in teaching area.

Keywords: Teaching, Research in Education, Theory of knowledge.

1
Professor Adjunto da UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Campus de Cascavel. Doutor
em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
7

Preâmbulo

Em um primeiro momento considero significativo esclarecer ao leitor em qual lugar


me situo em relação à temática que abordarei ao longo desse texto: a epistemologia na
formação de pesquisadores na área de ensino. Esse esclarecimento passa por um breve
retrospecto da minha experiência enquanto discente da pós-graduação e, portanto, pesquisador
em formação inicial por, pelo menos 6 anos, bem como, de minha experiência enquanto
docente de um programa de pós-graduação na área de Ensino, no últimos anos.
Em segundo, farei um apanhado breve sobre epistemologia geral, epistemologia da
ciência e ciências humanas, sem a preocupação de tratar de maneira exaustiva do tema e por
compreender ser inócua aos propósitos deste artigo. Por fim, buscarei explicitar o meu
entendimento, articulado ao percurso argumentativo sobre a relevância e pertinência da
disciplina de epistemologia para a formação de pesquisadores na área de ensino.

Sobre as experiências do autor no tocante ao tema

Naquilo que concerne ao meu período de formação inicial em pesquisa, tive a


oportunidade de cursar duas disciplinas de epistemologia, com enfoques relativamente
distintos, mas obviamente, aproximados. A primeira, cursei no ano de 2006, no âmbito do
então Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PPGE,
UEPG. A segunda, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação Científica
Tecnológica, PPGECT, UFSC, no ano de 2008, por ocasião de meu doutoramento. Ressalto
que, em ambos os programas, as disciplinas tinham caráter obrigatório. No âmbito do
PPGECT as preocupações voltadas à reflexão de cunho epistemológico não se limitavam a
disciplina de epistemologia, mas permeavam as demais disciplinas e atividades desenvolvidas
nele, como por exemplo, nos seminários docentes e discentes e nas dissertações e teses
produzidas.
Outro aspecto que quero enfatizar é o meu interesse pessoal que sempre extrapolou o
momento das disciplinas. Em resumo, as questões epistemológicas sempre estiveram
agendadas em meus estudos e produções acadêmicas, o que se pode ver em diversos
trabalhos, incluindo minha dissertação e tese, respectivamente (KLÜBER, 2007, KLÜBER,
2012).
Essa afinidade às questões epistemológicas ao longo da minha formação de
pesquisador trouxe benefícios mediatos e imediatos às pesquisas que realizei nos últimos dez
anos como, por exemplo, um sentido de vigilância epistemológica na produção da pesquisa
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(BACHELARD, 1977). Penso que esses benefícios, de certa maneira, esclarecem em parte a
relevância e pertinência de disciplinas de epistemologia na formação de pesquisadores. Por
ora, limito-me a dizer isso para alinhavar esses esclarecimentos na última seção do artigo.
A minha experiência como docente da pós-graduação stricto sensu é decorrente da
atuação no programa de Pós-graduação em Ensino, PPGEn, nível de mestrado, da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Foz do Iguaçu, desde 2014. Destaco que
desde a construção do seu Projeto Político Pedagógico (PPP), em 2012, defendi a presença de
uma disciplina de epistemologia, a qual foi implantada com a criação do programa. Sendo
assim, se instalou a necessidade da oferta da disciplina no quadro obrigatório e passei a
assumi-la deliberadamente e ministrá-la nos anos de 2014, 2015 e 2016.
Como docente da disciplina pude observar, da parte de alguns dos meus discentes,
um comportamento muito semelhante àquele de alguns dos meus colegas de mestrado e
doutorado externavam: uma angústia por compreender a finalidade da disciplina na sua
formação, a qual, de início, pode parecer deslocada e sem significado.
Nesse itinerário de formando e formador não conheci textos de epistemologia que se
dedicassem debate da relevância da inserção de questões epistemológicas especificamente
para os programas de pós-graduação da área. Há, sim, textos que discutem o papel de uma ou
outra corrente epistemológica para a área (DELIZOICOV, 2004), ou de visões
epistemológicas para uma visão não deformada da Ciência na formação de professores de
ciências (GIL-PEREZ et.al, 2002). Assim, salvo algum texto muito recente que não tomei
conhecimento, parece não haver textos que tratem designadamente da relevância da disciplina
que, ainda que com muitas nuances, traz reflexões sobre diversas correntes, vertentes,
enfoques, opções e quadros epistemológicos, enfim, um debate sobre ciência e seus diferentes
modos de produção.
Dessa perspectiva, é razoável efetuar um esforço analítico e registrar reflexões que
busquem situar essa relevância dada à disciplina e que está presente em mais da metade dos
programas de pós-graduação da área de ensino2, revelando um compartilhamento tácito de
suas contribuições. Ainda que corra o risco de afirmar nesse artigo o óbvio, o registro das
minhas reflexões pode abrir possibilidades para a aceitação da disciplina, por parte dos
discentes e também docentes de outras áreas que se iniciam na área de ensino.

2
Conforme levantamento efetuado na plataforma sucupira:
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/programa/listaPrograma.jsf , em 14/09/2016,
articulando o relatório da área de Ensino e da antiga área de Ensino de Ciências e Matemática.
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Feita essa explanação e justificativa do tema, passo a um breve apanhado sobre


epistemologia da ciência.

Um apanhado sobre epistemologia das Ciências (Da Natureza, Humanas e Sociais)

A epistemologia não é uma disciplina de definição única, comportando uma série de


variações e denominações que, para além de diferenças terminológicas, indica diferentes
visões sobre a sua função, validade, alcances e limitações. Em outras palavras, ela comporta
um estatuto duvidoso em relação aos objetos científicos e ao seu lugar na relação com outros
saberes, como por exemplo, a filosofia (SOUZA SANTOS, 1986).
Ainda que a epistemologia não possa ser entendida de maneira única é inegável a sua
importância, principalmente no âmbito da pesquisa em Ciências Sociais e há duas maneiras
básicas de caracterizá-la: 1) metaciência e 2) intraciência. (BRUYNE, HERMAN,
SHOUTHEEETE, 1982). O caráter metacientífico diz respeito às regras gerais aplicadas a
qualquer ciência. O intracientífico é inerente às ciências particulares e às suas regras próprias.
Portanto, há um sentido clássico do qual a epistemologia geral herda, a reflexão filosófica, a
lógica da prova e lógica da descoberta e um sentido contemporâneo que admite considerações
formais, numa articulação com a história do conjunto das práticas de um domínio científico,
afetadas também por questões sociológicas, por exemplo.
A função da epistemologia, no âmbito da pesquisa que se pretende científica,
estabelece uma condição de vigilância interna (pano de fundo); reflexão constante,
contrapondo-se às posições dogmáticas, tanto de ciência, quanto de concepção de ciência. É
sob esse aspecto que a epistemologia coloca a possibilidade de autocorreção e do
estabelecimento de um debate profícuo para indagar os sentidos atribuídos às ideias de
progresso científico e linearidade da ciência.
A epistemologia ainda questiona e orienta condições de objetividade da pesquisa e é
um saber ligado à produção da ciência e respectivamente à sua crise. Por não ser uma ciência
no sentido genético (gênese ou origem) da palavra, ou seja, não estando apegada aos métodos
da própria ciência positivista, ela possui métodos múltiplos, estando muito próxima de um
tipo específico de filosofia.

Os pesquisadores encontrarão na reflexão epistemológica não apenas os


fundamentos para se assegurarem do rigor, da exatidão, da precisão de seu

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procedimento, como também preciosas indicações que guiarão a


indispensável imaginação da qual deverão dar provas para evitar obstáculos
epistemológicos e para conseguirem fazer progredir o conhecimento dos
objetos que investigam (BRUYNE; HERMAN; SHOUTHEEETE, 1982, p.
44).

Do ponto de vista de uma epistemologia geral ou uma teoria do conhecimento,


residem discussões concernentes à relação estabelecida entre sujeito e objeto, na produção do
conhecimento, considerando, as três seguintes categorias: possibilidade d conhecimento,
origem do conhecimento e essência do conhecimento (HESSEN, 1982).
Essas categorias são, de modo geral, fundamentais numa reflexão epistemológica,
ainda que possam ser tomadas sob outros referenciais e outras nomenclaturas. A partir delas, é
possível compreender correntes como o dogmatismo, o ceticismo e derivadas que, como
antípodas, aniquilam-se naquilo que concerne à pergunta: o conhecimento é possível? O
dogmatismo ao admitir que o conhecimento é uma entidade independente do sujeito e o
ceticismo por defender que o conhecimento não é possível, pois depende apenas do sujeito,
logo, não tem sentido universal e transferível. Como em toda e qualquer discussão, há sempre
posições intermediárias, buscando conciliar ou tomar uma posição crítica, como criticismo
(HESSEN, 1982).
No que diz respeito à categoria origem do conhecimento, emerge a pergunta: de onde
vem o conhecimento?, a qual remete às correntes do racionalismo e empirismo e suas
variações. Em suma, essa categoria permite refletir se o conhecimento se origina na razão ou
não experiência, ou ainda, em versões intermediárias, as quais enfatizam a primeira ou a
segunda corrente, mas considerando o contributo de ambas para a produção do conhecimento,
definido como uma imagem que decorre da relação entre sujeito e objeto.
Quanto à essência do conhecimento, há diferentes tentativas de solução, as quais
discorrem sobre os aspectos que caracterizam o conhecimento, ou seja, se a essência diz
respeito a algo do objeto; do sujeito, ainda que existam posições intermediárias como o
realismo crítico e o fenomenolismo (IBIDEM, 1982).
Em síntese, esses aspectos permeiam toda e qualquer discussão epistemológica. Ela é
um tipo de discussão atemporal, ou seja, baseada em argumentações que se pretendem
universais e que, de certa maneira, se estenderiam à produção do conhecimento em qualquer
área. Não parece ser diferente na área de Ensino.
Para além dessa discussão, buscando aspectos que não podem estar ausentes, há uma
discussão epistemológica efetuada por ilustres representantes da epistemologia da ciência,

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como Popper (2004), Lakatos (1979), Bachelard (1996), Kuhn (1975), Feyrabend (1977) e
Fleck (2010). Esses pensadores representam o que há de mais relevante para uma reflexão
intracientífica que vai além da discussão inscrita na região de inquérito da filosofia, no sentido
de incorporar outros elementos antes considerados irrelevantes, como por exemplo, o
processo não cumulativo, mas histórico da ciência (BACHELARD, 1977, 1996), o papel das
comunidades (KUHN, 1975), mas principalmente, levar em conta a ideia de método
científico, ora buscando-o ora negando-o.
Esses pensadores marcam um momento da reflexão epistemológica que mostra um
movimento interno da ciência para compreender a si mesma, trazendo, portanto, do interior da
prática científica, os aspectos tomados para dar uma explicação sobre como se produz o
conhecimento. Esses representam um debate e a disputa entre duas tendências da ciência, uma
analítica e outra histórica (BOMBASSARO, 1992).
Longe de soluções frágeis, como pretendia o positivismo ingênuo, as contribuições
dos diferentes autores, em vez de delimitar ou restringir aquilo que pode ser chamado de
Ciência, alargou as suas fronteiras e deixou, por assim dizer, várias pontes que permitem o
trânsito e a interferência de aspectos antes ignorados ou secundarizados, como por exemplo, o
senso comum ou o conhecimento produzido pelas Ciências Humanas e Sociais (SOUZA
SANTOS, 2006, BOMBASSARO, 1992).
Das reflexões de Popper e Lakatos, por exemplo, decorre uma abertura para pensar
no caráter provisório e até mesmo falho, seja das teorias consideradas individuais, seja
daquelas compartilhadas por um grupo de pesquisadores que racionalmente decidem sobre
persistir ou abandonar uma teoria que não pode ser refutada ou corroborada. Ainda, colocam
por terra a falácia da neutralidade do pesquisador e dos dados puros, de herança positivista.
Admitindo como tese básica, a presença de teoria prévia em toda e qualquer observação.
De Bachelard, o caráter histórico e autocorretivo da ciência indica um caminho para
superar visões ingênuas sobre o fazer científico e sobre o cientista de maneira geral. Além
disso, revela o caráter plural das teorias envolvidas na explicação dos fatos científicos que
nunca são em si, mas sempre produzidos, inclusive por intermédio dos instrumentos utilizados
pelo cientista.
Das contribuições de Kuhn e Fleck ressalta-se o caráter coletivo da produção
científica, que ocorre sempre no interior de uma comunidade científica ou coletivo de
pensamento. Ainda que existam diferenças, inclusive indicadas na literatura (DELIZOICOV,
2004), entre suas epistemologias, elas guardam semelhanças. Portanto, além daquilo que

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parece ser iniciado com Popper, ao menos naquilo que foi dado a conhecer, Kuhn e Fleck dão
conta das reflexões iniciadas por ele e avançam, retirando o caráter puramente lógico e
progressivo da ciência, atribuindo-o uma dimensão sócio-histórica.
De Feyrabend, certamente o mais irreverente de todos, emergem duras críticas à
visão dogmática, quase religiosa construída e defendida pelos cientistas. Aquilo que parece
ser uma reflexão descompromissada com a ciência pode trazê-la ao seu devido lugar.
No entanto, além das reflexões epistemológicas desses autores há aquelas “nativas”
das Ciências Humanas e Sociais, que historicamente foram vistas como ciências de segundo
nível e mesmo imprecisas. Ainda que haja uma variação de nomenclaturas, podemos dizer
que duas delas se destacam por se fazerem presentes nas reflexões educacionais brasileiras: a
posição histórico-dialética e a fenomenológico-hermenêutica.
Dessas duas correntes, destaco a possibilidade de conceber e olhar os objetos de
pesquisa segundo um estatuto epistemológico próprio, sem se prender aos princípios do
monismo metodológico que caracterizam uma visão ingênua das Ciências da Natureza. Tanto
o movimento histórico-dialético, quanto o fenomenológico nascem de uma oposição aos
princípios do positivismo lógico que buscava imperar, epistemológica e metodologicamente,
sobre os modos de proceder das ciências sociais, segundo a minha leitura dos textos de
Tremblay (2010), Souza Santos (2006), Bombassaro (1992) e Dartigues (2008).
Ainda que tenham concepções de conhecimento e realidade distintas, essas duas
correntes devolvem, ao lado das epistemologias mais recentes das Ciências, a historicidade
inerente a todo e qualquer conhecimento produzido pelo ser humano. Nessa perspectiva,
estudá-las, pode favorecer uma compreensão sobre o lugar da pesquisa desenvolvida no
âmbito das Ciências Humanas e Sociais, no caso, na área de ensino.
De maneira geral, os aspectos que demarcam o estatuto epistemológico das Ciências
Sociais e Humanas podem ser assim resumidos, a partir da leitura de Souza Santos (2006, p.
40): 1) Ausência de teorias explicativas que deem conta do real, segundo uma metodologia
controlada; 2) Não são estabelecidas leis universais, considerando o caráter histórico e
cultural das relações humanas; 3) Impossibilidade de “[...] produzir previsões fiáveis”, pois os
seres humanos tendem a modificar o seu comportamento a partir do conhecimento adquirido;
4) “os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela
natureza objetiva do comportamento; 5) Não é possível, ao pesquisador, libertar-se, no ato da
observação, dos valores que sustentam a sua prática social.

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As reflexões contemporâneas mostram, articuladas às contribuições dos


epistemólogos que convidamos ao diálogo nesse texto, que essas características não são
exclusivas das Ciências Sociais e Humanas, mas que elas também condicionam o modo de
produção das Ciências da Natureza, alterando o seu estatuto, muitas vezes, indevidamente,
considerado infalível.
Esse breve apanhado, no qual já dei indicativos de respostas à interrogação: qual o
papel de uma disciplina como essa no currículo de programas de pós-graduação em Ensino?
abre um espaço para explicitar, na seção subsequente, aquilo que perseguimos.

A disciplina de epistemologia em programas de pós-graduação na área de ensino

Os aspectos ligeiramente apresentados na seção anterior, por si, já encaminharam


respostas às indagações sobre o papel da disciplina “epistemologia” na formação dos
pesquisadores da área de ensino. De certo modo, essa afirmação converge para aquilo que
Gil-Perez et al (2002, p. 135) discutiu de maneira mais ampla sobre formação de professores
para a atuação na área então denominada Ensino de Ciências. Sustentam, de maneira
hipotética que:
[...] a leitura de textos escritos por diferentes epistemólogos contemporâneos
mostra – apesar de diferentes terminologias, variações e divergências em
aspectos concretos etc. – um consenso básico numa série de elementos-chave
que configuram uma imagem da ciência radicalmente oposta à das visões
deformadas da ciência estudadas.

De acordo com os autores se destacam sete imagens deformadas da Ciência que são
recorrentes entre os professores de ciências e que se aproximam do senso comum, quais
sejam: 1)“concepção empírico-analítica indutivista e ateorica”, a qual enfatiza o papel de
neutralidade da observação e experimentação; 2) “visão rígida (algorítmica, exata, infalível)”,
considerando um conjunto de etapas fixo a ser seguido; 3) visão a-problemática e a-histórica,
sendo assim, fechada e dogmática; 4) “visão exclusivamente analítica”, a qual tem caráter
simplificador e limitado; 5) “visão acumulativa de crescimento linear”, que admite a Ciência
como um edifício minuciosamente construído, sem retroação; 6) “visão individualista e
elitista”, apegada a uma ideia ingênua de genialidade e produção de mentes isoladas e
iluminadas; e 7) visão de uma ciência socialmente neutra, não admitem as complexas relações
entre sociedade, ciência e tecnologia – CTS (GIL-PEREZ, et al, 2002, p. 129-133).
De certo modo, ainda que isso mereça uma ampla investigação particular para a área
de ensino, essas visões perduram entre os discentes de programas de pós-graduação de outras
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áreas como se pode no estudo particular de Alves, Flôr e Souza (2015), no qual concluíram
permanecer a visão empirista entre pós-graduandos de agroquímica da Universidade Federal
de e Viçosa, UFV. Os programas da área de ensino, por seu movimento histórico, são
sabidamente multidisciplinares, constituídos por docentes de diferentes áreas do
conhecimento e que possuem visões distintas sobre ciência (DELIZOICOV, 2004),
carecendo, ainda mais, de reflexões epistemológicas no sentido de superar tanto as imagens
deformadas das ciências, construídas em suas trajetórias escolares, como as divergências
epistemológicas que venham contribuir para a instauração de outras deformações, como por
exemplo, reincidir de maneira sistemática numa epistemologia que reforce visões distorcidas
da ciência com prejuízos à pesquisa em ensino considerada como Ciência Humana Aplicada.
Sob esse argumento, a presença da disciplina de epistemologia ou alguma variação,
em mais de 52 programas de pós-graduação, espalhados pelo Brasil, por diferentes
instituições ou campi, é um aspecto que pode ser destacado como uma característica
importante dos programas da área. A partir de minha experiência observo que essa é também
uma espécie de demarcação epistemológica destes programas, no sentido de avançar numa
reflexão mais apurada sobre ciência, o papel da ciência e os desdobramentos pedagógicos que
dela decorrem. A reflexão epistemológica parece se tornar uma „substituta‟ dos princípios
epistemológicos fixistas e pretensamente universais advindos de imagens deformadas da
ciência.
A reflexão epistemológica, se conduzida de maneira adequada, pode conferir
segurança aos futuros pesquisadores de ensino, tanto na defesa adequada do lugar de sua
pesquisa, como o respeito ao posicionamento divergente dos pares. Em outras palavras,
poderá, por meio da reflexão epistemológica, situar-se de maneira rigorosa sem incorrer em
modismos acadêmicos ou ficar apegado a visões ingênuas de ciência e principalmente das
ciências humanas e sociais.
Se essas reflexões fizerem parte do estofo do pesquisador da área de ensino, além de
poder reorientar a sua prática pedagógica para uma perspectiva mais investigativa, podendo
contribuir para o desenvolvimento visões não distorcidas de ciência, poderá compreender o
uso adequado das teorias no escopo de seus trabalhos e métodos.
Dominar algumas noções de epistemologia evitará incorrer em erros grosseiros como
a afiliação acrítica a pontos de vista que são partilhados na academia como se fossem de
estatuto epistemológico, quando se constituem em mero senso comum acadêmico, como, por
exemplo, a necessidade de sempre produzir resultados que busquem confirmação por meio do

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levantamento e tratamento estatístico. Para além disso, o pesquisador pode usar essas noções
como queira, transitando entre a ciência, o seu estudo e a elaboração de uma pesquisa em
Ciências Humanas e Sociais, sem desprezar os resultados de cada uma.
Por fim, apresento excertos de discentes da disciplina da epistemologia, por mim
conduzida, produzidos por ocasião da avaliação interna da disciplina, portanto, sem
identificação. Esses excertos indicam que a aproximação dos discentes à epistemologia, pode
auxiliar na superação de obstáculos epistemológicos que deturpam e prejudicam tanto a
formação do pesquisador, quanto a qualidade da pesquisa desenvolvida.

D1:Avalio como fundamental. Os textos sugeridos permitiram a aquisição de


conhecimentos e o aprofundamento de discussões sobre temas de relevância
para a minha formação como pesquisador. Destaco, dentre esses, os
relacionados a: filosofia da ciência, a epistemologia e aos epistemólogos das
ciências, por ampliarem a minha compreensão sobre a construção do
conhecimento e sobre a importância de mantermos sobre a pesquisa
vigilância, o que certamente contribuirá para que ela seja realizada com rigor
e confiabilidade. (SIC).

D2: É muito interessante poder ter contato com as correntes epistemológicas


e discutir a essência e a origem do conhecimento, uma vez que durante a
graduação esse contato não existiu. (SIC).

Sem um apego ingênuo às respostas dos discentes, é possível afirmar que os


discentes podem compreender a finalidade da disciplina e, desse modo, avançar na reflexão
epistemológica que é um dos pilares da pesquisa na área de ensino. Obviamente que sempre
há mais aspectos envolvidos, como a metodologia empregada e a postura docente na
condução da disciplina. Para além dessas variações, naquilo que concerne ao conteúdo da
disciplina, parece sustentar e requerer a sua presença nos programas da área de ensino.
Ainda destaco a importância da disciplina na formação do professor/pesquisador.
Segundo Silveira et al (2011, p. 9) “A compreensão das diferentes visões dos epistemólogos,
não apenas pelo pesquisador, como também pelo professor, permite a problematização do
ensino e da pesquisa no ensino, tornando a sua prática transformadora”. Embora os autores
não se reportem especificamente à disciplina de epistemologia, no âmbito dos programas da
área de ensino, ela é o lócus em que se efetivam essas discussões na atual estrutura disciplinar
dos programas. A sua oferta representa uma possibilidade de ruptura epistemológica com
concepções equivocadas de ciência e com práticas docentes irrefletidas. Em certa medida ela
oportuniza a emergência de um novo paradigma de pesquisa e de ensino.

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Se a reflexão provada pela disciplina for suficientemente desafiadora poderá


minimizar a angústia e a repulsa daqueles discentes que não veem sentido nela. Em meu
entendimento, um dos principais aspectos que motivam uma visão negativa da disciplina é a
formação fragmentada dos discentes. Além disso, defender a pertinência da disciplina passa
pelo esforço de esclarecimento e articulação dos inúmeros conceitos envolvidos na disciplina
pelo docente que a ministra. Este, por sua vez, não pode apenas trabalhar textos de
epistemologia em sala aula, mas deve efetuar um esforço de explicitar diferentes modos pelos
quais as “as epistemologias operam” nas pesquisas e na prática docente.
Nesse sentido, abrem-se possibilidades de diálogo entre os docentes de programas de
pós-graduação em ensino, na direção de implementarem debates permanentes sobre suas
perspectivas epistemológicas e teóricas. Para além de discussões sobre correntes, enfoques ou
quadros epistemológicos, podem ser discutidas, a partir de cada projeto de dissertação ou tese,
noções epistemológicas que contribuam para o desenvolvimento de pesquisas aceitáveis na
comunidade e que expressem um avanço não acumulado, mas reflexivo, o que é próprio das
ciências sociais (BRUYNE; HERMAN; SHOUTHEEETE, 1982).

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