Direito Societario Atualizado 2024

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6ª EDIÇÃO

Atualizada e ampliada até 31/12/2023

Eduardo Goulart Pimenta

Doutor e Mestre em Direito Empresarial - UFMG


Professor Associado de Direito Empresarial na UFMG
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da PUC/MG
Procurador do Estado de Minas Gerais
Consultor e árbitro
Direção editorial: Luciana de Castro Bastos
Diagramação e Capa: Editora Expert
Revisão: Do Autor
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Pimenta, Eduardo Goulart


Título: Direito societário [livro eletrônico] / Eduardo Goulart Pimenta. -- 5. ed.
-- Belo Horizonte : Ed. do Autor. 6ª edição – atualizada e ampliada até 31 de
Dezembro de 2023
ISBN 978-65-6006-059-3
DOI: 10.29327/5363495
1. Direito societário 2. Direito societário -
Brasil I. Título
20-41362 CDU-34:338(81)
Modo de acesso: http://experteditora.com.br
Direito Societário; 2. Sociedade empresarial; 3. Empresa; 4. Pessoa jurídica;
5. Direito empresarial
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil : Direito societário 34:338(81)

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Prof. Dr. João Bosco Leopoldino da


Fonseca
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Para Luciana
SUMÁRIO
Capítulo I

O regime jurídico-constitucional da empresa e das sociedades


empresárias no direito brasileiro............................................................. 23

1 – Análise econômica da empresa e do mercado..................................23

2 – A Empresa e o Direito..............................................................................................26

3 – A regulação da empresa e do mercado na Constituição


Federal....................................................................................................................................29

3.1 – Normas constitucionais e a empresa......................................................29

3.2 – Normas constitucionais e o mercado.....................................................32

4 – As sociedades empresárias e sua contextualização no Direito


brasileiro....................................................................................................................................35

5 – Direito societário e risco: a limitação de responsabilidade........37

6 – A Sociedade Limitada e a Sociedade Anônima: uma análise


econômica e comparativa de seu regime jurídico....................................42

Capítulo II

Constituição de sociedades: do contrato social à pessoa


jurídica.............................................................................................................53

1 – Sociedade Limitada: a natureza plurilateral do contrato social e


sua disciplina no Código Civil....................................................................................53

2 – A constituição da personalidade jurídica da sociedade.............61


3 – O contrato de Sociedade Limitada e suas cláusulas
essenciais................................................................................................................. 64

4 – A constituição da sociedade anônima e suas peculiaridades....67

5 – A dicotomia fundamental das sociedades anônimas: companhias


abertas e fechadas............................................................................................................73

6 – A affectio societatis e a caracterização dos vínculos societários


nas companhias abertas, fechadas e sociedades limitadas.............76

Capítulo III

Estrutura e funcionamento do mercado de valores mobiliários..... 83

1 – Captação de poupança e intermediação financeira........................83

2 - O Mercado de Valores Mobiliários.................................................................87

3 – A Bolsa de Valores e suas atribuições no mercado de valores


mobiliários................................................................................................................................91

4 – O mercado de balcão: caracterização e modalidades.................98

5 – A Comissão de Valores Mobiliários .............................................................100

6 – A Comissão de Valores Mobiliários e o Poder Judiciário.............106

7 – Meios extrajudiciais de solução de conflitos societários e sua


importância para o mercado de valores mobiliários...............................110
Capítulo IV

Valores Mobiliários: caracterização e espécies no direito


brasileiro.............................................................................................................. 117

1 – As definições normativa e abstrata de valores mobiliários........117

2 – O Mercado de Derivativos...................................................................................122

3 – Os Fundos de Investimento...............................................................................131

4 – Securitização e a Lei n. 14.430/2022 ................................................................. 141

5 – Cross listing, American Depositary Receipts (ADR´s) e Brazilian


Depositary Receipts (BDR´s) ......................................................................................151

6 - Debêntures ....................................................................................................................154

7 – Partes beneficiárias e Bônus de subscrição..........................................164

Capítulo V

Ações, quotas e direitos de sócio............................................................ 167

1 – Ações: espécies e formas.....................................................................................167

2 – A quota social ...............................................................................................................173

3 – Participação nos lucros e outros direitos essenciais dos


sócios.................................................................................................................................174

4 – Critérios de avaliação de ações e quotas................................................183

4.1- O capital social e o valor nominal da ação ou quota.....................184

4.2 – Valor patrimonial da ação ou quota: sua utilidade e forma de


obtenção...................................................................................................................................186
4.3 – O valor da ação no mercado primário: seu preço ou valor de
emissão......................................................................................................................................188

4.4 – O preço de cotação de uma ação: seu valor no mercado


secundário ..............................................................................................................................191

4.5 - O valor de negociação de quotas ou ações de companhias


fechadas....................................................................................................................................196

Capítulo VI

O capital social e suas alterações........................................................... 203

1 – Capital social: integralização e funções....................................................203

2 – A distinção entre capital e patrimônio social........................................210

3 – Aumento do capital social: hipóteses e procedimentos..............214

4 - Redução do capital social ...................................................................................225

5 – Os procedimentos de abertura e fechamento de capital social:


mecanismos de colocação ou retirada de uma companhia no
mercado de valores mobiliários..............................................................................227

6 – Os Juros sobre Capital Próprio e a remuneração do sócio........235

Capítulo VII

Tecnologia, disrupção digital e mercado de valores mobiliários:


um novo ambiente de negociações....................................................... 241

1 – O problema da confiança e sua importância para o mercado.241

2 – Os terceiros confiáveis e sua participação no mercado de valores


mobiliários................................................................................................................................246
3 – Tecnologias disruptivas: o que são e seu impacto sobre o
mercado e o Direito...........................................................................................................252

4 – A internet e a disrupção nas trocas e sua disciplina legal..........257

5 – Redes peer-to-peer (ponto a ponto): o desenvolvimento de um


sistema virtual e descentralizado de trocas...................................................260

6 – Blockchain e a formação de um sistema descentralizado de


solução prévia para o problema da confiança..............................................265

7 – Perspectivas da regulação jurídica em um mercado


descentralizado de negociações digitais.........................................................273

Capítulo VIII

Tecnologia, disrupção digital e mercado de valores mobiliários:


novos tomadores de decisões, novos ativos e novas formas de
captação pública de recursos................................................................... 277

1 – Negociações de alta frequência: o uso de inteligência artificial na


tomada de decisões no mercado de valores mobiliários...................277

1.1 – Tomada de decisão e investimentos ......................................................277

1.2 – Algoritmos e tomada de decisão no mercado de valores


mobiliários................................................................................................................................280

2 – Disrupção digital e novos ativos financeiros: as criptomoedas........ 290

3 - Disrupção digital e novas formas de captação pública de recursos:


Crowdfunding e Initial Coin Offering........................................................................301

3.1 – Crowdfunding: captação coletiva de recursos através de


plataformas digitais...........................................................................................................301
3.2 Initial coin offering (oferta inicial de moeda) ou token sales
(vendas de tokens): captação coletiva de recursos financeiros via
blockchain.................................................................................................................................306

Capítulo IX

Deliberações societárias e o direito de voto dos sócios............... 313

1 – Deliberações societárias: a soberania da vontade dos sócios em


relação aos atos da sociedade................................................................................313

2 – Deliberações societárias: uma comparação entre sua concepção


teórica e a realidade fática..........................................................................................317

3 – O órgão deliberativo nas Sociedades Anônimas e nas Sociedades


Limitadas: Assembleia Geral de Acionistas, Assembleia e Reunião
de Sócios...................................................................................................................................320

4 – Das formalidades essenciais à deliberação dos sócios...............324

4.1 – Formalidades de convocação......................................................................324

4. 2 – Formalidades de instalação e deliberação ....................................328

5 – Representação dos sócios, voto e deliberações à distância,


semipresenciais e digitais............................................................................................333

6 - O direito de voto nas deliberações sociais: características e


condições de validade...................................................................................................337

7 - Voto estratégico, voto conflitante e voto abusivo: caracterizações


e efeitos......................................................................................................................................342
Capítulo X

Controle societário: caracterização e modalidades no direito


brasileiro.............................................................................................................. 347

1 – Poder de Controle societário.............................................................................347

2 - Controle societário e controlador - conceito, distinções e


fundamentos .............................................................................................................................. 347

3 - Os conceitos de sócio majoritário, sócio controlador e do


controlador no direito brasileiro..............................................................................351

4 - O controle exercido por sócios da sociedade - controle


interno......................................................................................................................... 354

4. 1 - Controle majoritário ............................................................................................354

4. 2 - Controle minoritário.............................................................................................355

4.3 - Controle conjunto e controle indireto.....................................................357

5 - O controle externo: sua definição e tratamento no direito


brasileiro ...................................................................................................................................358

5.1 - Controle gerencial...................................................................................................358

5. 2 - Controle econômico............................................................................................360

5.3 - Controle contratual ...............................................................................................361

6 – As modificações no poder de controle decorrentes de compra e


venda de ações....................................................................................................................362

7 – A oferta pública de compra de ações como condição para a


transferência de titularidade das ações do controlador de companhia
aberta – Art. 254-A da Lei n. 6.404/76................................................................370
8 – A oferta pública para compra de ações como meio de aquisição
do poder de controle sobre uma companhia aberta: art. 257 e
seguintes da Lei n. 6.404/76.....................................................................................375

9 – Ofertas hostis e pílulas de veneno...............................................................377

10 – Sociedades coligadas e participações recíprocas........................383

Capítulo XI

Acordos de sócios e outros instrumentos de uniformização de


decisões corporativas................................................................................... 387

1 – Aspectos gerais............................................................................................................387

2 – Estrutura e classificações....................................................................................388

2.1 – Quanto às partes.....................................................................................................388

2.2 – Quanto ao objeto....................................................................................................391

2.3 – Quanto à forma........................................................................................................398

3 – O Acordo de acionistas e suas repercussões sobre o processo


de tomada de decisões na companhia.............................................................401

4 – Acordo de acionistas e sociedade holding como instrumentos


de uniformização de decisões societária: uma abordagem
comparativa............................................................................................................................404

5 - A regra da execução específica do acordo de acionistas e seus


reflexos sobre o comportamento estratégico dos contratantes....406

6 - Acordo de quotistas..................................................................................................411
Capítulo XII

Administração de sociedades: composição, atribuições e


deveres................................................................................................................. 415

1 – Caracterização legal e atribuições do administrador ....................415

2 – Natureza jurídica da relação entre administrador e sociedade


empresária administrada..............................................................................................417

3 – A separação entre a propriedade e a gestão das sociedades


empresárias.............................................................................................................................419

4 – Administração singular e colegiada na legislação brasileira....422

5 – A administração de sociedades no Código Civil ..............................427

6 – Administração e sua disciplina nas sociedades anônimas ......431

7 – Principais deveres do administrador de sociedades no Código


Civil e na Lei n. 6.404/76 ..............................................................................................434

8 – A responsabilização judicial dos administradores de sociedades


empresárias no Código Civil e na Lei n. 6.404/76.....................................447

9 – Partes relacionadas e conflito de interesses na contratação......450

Capítulo XIII

Conflitos de agência e Governança Corporativa.............................. 455

1 – Processo decisório nas sociedades anônimas....................................455

2 – Variações no processo decisório corporativo ....................................459

3 – Monitoramento de decisões corporativas..............................................463


4 – Conflitos de agência e sua importância para o estudo das
sociedades anônimas.....................................................................................................466

5 – Principais conflitos de agência e sua regulação pelo direito


societário...................................................................................................................................470

Capítulo XIV

Conselho Fiscal e outros instrumentos de fiscalização das


atividades sociais............................................................................................ 479

1 – Os instrumentos legais de fiscalização das companhias e seu


papel na redução dos conflitos de agência...................................................479

2 – O Conselho fiscal como instrumento de mitigação dos conflitos


internos de agência..........................................................................................................482

2.1 – Características gerais do Conselho Fiscal...........................................482

2.2 – As atribuições legais do Conselho Fiscal nas Sociedades


Anônimas e nas Sociedades Limitadas.............................................................487

2.3 – Conselho fiscal e a redução dos conflitos de agência nas


sociedades anônimas.....................................................................................................490

3 – A fiscalização externa e os custos de agência no contexto das


sociedades anônimas ....................................................................................................493

4 – Os padrões normativos de transparência dos negócios da


companhia e seus reflexos sobre os conflitos de agência ...............496

5 – Os custos e benefícios da transparência compulsória nas


companhias brasileiras: uma análise sob as perspectivas micro e
macroeconômica.......................................................................................................................500
Capítulo XV

Relações e estruturas jurídicas entre duas ou mais sociedades:


parcerias e concentração empresarial................................................. 505

1 - Origem e conceituação das parcerias empresariais ou Joint


Ventures.......................................................................................................................................505

2 - Espécies ................................................................................................................................. 506

3 – Contratos de parceria empresarial típicos: Os grupos de


sociedades na Lei n. 6.404/76.................................................................................509

4 – Os grupos de direito na Lei n. 6.404/76...................................................510

5 – Os Consórcios de empresas como parcerias empresariais


contratuais típicas..............................................................................................................517

6 – Concentração empresarial: as operações de fusão e incorporação


no direito brasileiro............................................................................................................519

7 – Cisão e transformação de sociedades......................................................528

8 – Unipessoalidade societária: incorporação de ações e sociedade


subsidiária integral no direito brasileiro.............................................................531

Capítulo XVI

Teoria da Empresa e relações intersocietárias: análise econômica


do Direito e concentração empresarial................................................ 537

1 – Concentração empresarial..................................................................................537

2 – A Teoria da Empresa e sua relação com os institutos reguladores


das operações de concentração ou parceria empresarial.................540
3 – As operações jurídicas de concentração e parcerias empresariais
sob o prisma do exercício centralizado ou descentralizado da
atividade econômica........................................................................................................549

4 – Concentração ou parceria empresarial: apontamentos sobre


custos e benefícios de cada uma das opções.............................................555

Capítulo XVII

Dissolução parcial de sociedade e apuração dos haveres de


sócio...................................................................................................................... 567

1 – Dissolução parcial de sociedade: caracterização..............................567

2 - O recesso societário.................................................................................................567

3 - Exclusão de sócio .....................................................................................................576

3.1 – Exclusão extrajudicial de sócio por violação ao dever de


integralização .......................................................................................................................577

3.2 – Exclusão extrajudicial de sócio por violação ao seu dever de


colaboração............................................................................................................................579

3.3 – Exclusão judicial de sócio................................................................................584

3.4 - Hipóteses de exclusão de acionista previstas no direito


brasileiro....................................................................................................................................586

4 – A penhora de quotas ou ações e a falência do sócio como


espécies de dissolução parcial de sociedade.............................................587

5 - O falecimento de sócio e seus efeitos sobre a sociedade.........591

6 - Apuração de haveres do sócio e seu regime jurídico no Código


de Processo Civil, Código Civil e Lei n. 6.404/76.......................................596
Capítulo XVIII

Dissolução e liquidação total de sociedades.................................... 613

1 – Dissolução de sociedade: caracterização e fases.............................613

2 – Dissolução em sentido estrito: o fim do contrato social e da


relação entre os sócios..................................................................................................616

2.1 – As causas extrajudiciais de dissolução de sociedade................617

2.2 – As causas de dissolução judicial de sociedade..............................623

3 – A liquidação do patrimônio social.................................................................626

3.1 – O liquidante da sociedade...............................................................................627

3.2 – A liquidação judicial de sociedade...........................................................632

4 – A extinção da sociedade e o fim da pessoa jurídica.......................633

5 – Dissolução e liquidação de fato: sua caracterização e efeitos


jurídicos e econômicos..................................................................................................635

6 – A responsabilidade pelas obrigações não quitadas durante a


liquidação da sociedade...............................................................................................640

Obras citadas.................................................................................................... 643


Capítulo I

O regime jurídico-constitucional da empresa e das


sociedades empresárias no direito brasileiro

1 – Análise econômica da empresa e do mercado

A empresa é uma realidade cuja definição ainda é, tanto no


campo econômico1 quanto - e talvez até mais - na seara jurídica,
cercada por vários debates e incertezas.
Isto, porém, não impede que se aponte, com relativa segu-
rança, algumas características fundamentais desta que é, indubita-
velmente, um dos mais importantes elementos sobre os quais está
baseado o atual sistema econômico.
Historicamente, o surgimento da empresa como forma de
atuação econômica remete especialmente ao Século XVIII, quando
a economia feudal (basicamente agrícola e artesanal) é definitiva-
mente preterida por outro modelo, de feição capitalista e empre-
sarial.
Esta significativa mudança está ligada à conjunção de diver-
sos fatores que contribuíram, cada um a seu modo, para a profunda
alteração na forma pela qual as pessoas passaram a produzir ou
fazer circular bens e serviços.
As inovações tecnológicas da época - como, por exemplo, a
máquina a vapor - acrescentaram à atividade produtiva aspectos
até então desconhecidos e que permitiram aos agentes econômi-
cos a otimização e transformação dos recursos naturais disponíveis
(matéria-prima) de modo sistemático e em escala até então nunca

1 HAHN. Frank. General Equilibrium Theory. (In:) BELL. Daniel. KRISTOL. Irving. The Crisis in
Economic Theory. Basic Books. New York. 1981. Pg. 131.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 23


vista. A produção de bens torna-se, então, eminentemente manu-
fatureira e não mais apenas artesanal e agrícola, como no período
medieval.
A efetiva organização de sistema bancário e de crédito permi-
tiu, a seu turno, maior e mais fácil acesso ao capital àqueles indivídu-
os que pretendiam dedicar-se a atividade produtiva. Aumentou-se,
com isso, o potencial produtivo dos empreendedores e sua capa-
cidade de agrupamento de matérias-primas, tecnologia e trabalho.
A divisão do trabalho, por sua vez, permitiu o exponencial
crescimento da produção manufatureira de bens2 e revelou outro
aspecto constitutivo daquilo que viria a ser a moderna empresa.
Tem-se, então, a partir deste período histórico - comumen-
te denominado Revolução Industrial – o nítido surgimento de um
modo de produção baseado na organização, por um determinado
agente empreendedor, de diferentes elementos (matéria prima,
tecnologia, capital e trabalho) com vistas à geração de bens em
quantidades excedentes, destinadas ao consumo de terceiros.
É a esta organização econômica dos fatores de produção - ou
insumos - para a produção ou circulação de bens e serviços que se
passou a chamar de empresa, realidade sobre a qual se construiu
os alicerces da economia capitalista.
Foi já na primeira metade do Século XX que Ronald Coase
acrescentou novas e importantes nuances à visão econômica da
empresa. Em texto publicado em 19373 , Coase explica a empresa a
partir do chamado mecanismo de preços.
Segundo ele a empresa é, em essência, uma forma de pro-
dução desenvolvida para redução de determinados custos - poste-
2 Na economia feudal o mesmo artesão em regra cuidava de todo o processo produtivo,
desde a extração da matéria prima até a comercialização do produto final. WILLIAM PETTY
e posteriormente ADAM SMITH foram incisivos ao salientar a importância da divisão do
trabalho no processo produtivo como instrumento de ampliação da capacidade econômica
da sociedade. Neste sentido confira: SMITH. Adam. Riqueza das Nações. Ed. Hemus. São Paulo.
2003. Pg. 2 e segs. JORDAN. Thomas E. Sir William Petty, 1623-1687: the genius entrepreneur of
seventeenth-century Ireland (Lewiston 2007).
3 COASE. Ronald. The Nature of the firm. (In:) COASE. Ronald H. The Firm, the Market and the
Law. The University of Chicago Press. Pg. 33 a 56. Edição original: ECONOMICA, IV, November
1937, pgs. 386/405.

24 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


riormente chamados de custos de transação4 - que hoje represen-
tam importante variável tanto na Economia quanto também para o
Direito.
Em Coase a empresa é tomada como um conjunto de contra-
tos de duração prolongada firmados por um empreendedor com o
objetivo de organizar os fatores de produção ou insumos.
Ainda segundo Coase, a forma empresarial - ou verticalizada -
de produção é empregada uma vez que reduz os custos inerentes à
obtenção descentralizada - ou horizontal - destes mesmos insumos
no mercado.
O texto lança a ideia de custos de transação ao propor que
a empresa, como forma verticalizada de exercício da produção ou
distribuição de bens ou serviços, existe em virtude da redução dos
custos inerentes à aquisição destes mesmos fatores de produção
de forma descentralizada, no mercado.5
O mercado é, ao lado da empresa, outra realidade não menos
importante no atual contexto econômico.
Há, no campo da Economia, diversas definições de mercado.
Particularmente pertinente é aquela que concebe o mercado sim-
plesmente como um grupo de compradores e vendedores de um
determinado bem ou serviço6.
Nesta perspectiva, são pressupostos de existência do merca-
do a geração de excedente na produção de bens ou serviços, a
existência de mecanismos econômicos e jurídicos que viabilizem a
4 Custos de transação são, em essência, aquilo que se precisa pagar ou de que se deve
abrir mão para constituir, manter, proteger ou transferir os direitos e deveres decorrentes
de uma relação contratual. “(...) at the microlevel, transaction costs consist of those costs
associated within contracting between private parties.” MERCURO, Nicholas. MEDEMA, Steven
G. Economics and the law – from Posner to Post-Modernism. New Jersey: Princeton University
press. 1999. Pg. 131.
5 “A firm had therefore a role to play in the economic system if it were possible for transactions to
be organized within the firm at less costs than would be incurred if the same transactions were
carried out through the market. The limit to the size of the firm would be set when the scope of its
operations had expanded to the point at which the costs of carrying out the same transactions
through the market or another firm”. (COASE. Ronald. The Nature of the Firm: meaning. (In:)
WILLIAMSON. Oliver E. WINTER. Sidney G (ed.). The Nature of the firm: origins, evolution and
development. Oxford University Press. 1993. Pg. 48).
6 MANKIW. Gregory. Principles of Economics. 3th edition. Thomson Learning. 2005. Pg. 64.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 25


troca na titularidade deles e o objetivo de lucro na realização destas
transações.
A empresa tem no mercado seu local de nascimento, sobre-
vivência e crescimento. É no mercado que a empresa transaciona
com os bens e serviços que produz e proporciona, ao seu titular, o
lucro por ele objetivado.
A liberdade de mercado implica a existência de um ambiente
econômico e jurídico no qual tanto a produção quanto a troca e o
consumo são livremente definidos pelos agentes deste mercado.
Portanto, a liberdade dos agentes econômicos decidirem so-
bre o quê, quanto, quando, onde e como produzir, trocar ou consu-
mir bens e serviços está essencialmente vinculada à existência e
preservação do mercado.
Resta claro, por outro lado, que tanto a empresa quanto o
mercado, realidades originalmente econômicas, não podem ou de-
vem ficar à margem da regulação jurídica.
A existência da empresa e do próprio mercado livre depen-
dem da intervenção normativa sobre o funcionamento deles, de
modo a corrigir suas inevitáveis falhas7 e moldar-lhes o exercício
conforme os valores prevalentes à época.

2 – A Empresa e o Direito

Boa parte do ordenamento jurídico – em especial no que hoje


constitui o Direito Empresarial - é estruturado a partir de interesses
ou valores de natureza econômica. Por outro lado, o funcionamento
da economia é limitado e direcionado por normas jurídicas8.
A empresa e o mercado são, como apontado, realidades ori-
ginalmente econômicas que, entretanto, acabaram por ser juridica-
mente disciplinadas em sua constituição e funcionamento.
7 Sobre as chamadas “falhas de mercado”: COOTER. Robert. ULEN. Thomas. Law & Economics.
5th edition. The Addison-Wesley series in Economics. Pearson Education Inc. 2008. Pg. 43 e
segs.
8 WEBER. Max. Law in Economy and Society. Simon and Schuster. New York. 1954. Pg. 50 e
segs.

26 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O conjunto de normas erigido inicialmente para a disciplina da
atividade comercial e daqueles que a ela se dedicavam – O Direito
do Comércio ou simplesmente Direito Comercial – é, como se sabe,
de origem medieval e consuetudinária.
Trata-se de um ramo do Direito cuja criação e evolução se deu
paralelamente ao modo de produção empresarial e capitalista, sen-
do, neste sentido, especialmente atrelado, em seus institutos fun-
damentais, a valores e interesses de ordem econômica9.
Dentre importantes referências da evolução no regime jurí-
dico da atividade econômica vale, por exemplo, citar os títulos de
crédito, as sociedades anônimas (datadas ainda do Sec. XVII) e as
sociedades de responsabilidade limitada (de origem no final do Sec.
XIX, na Alemanha), o que comprova a nítida influência da economia
na configuração de institutos jurídicos10 e a correlata intervenção
das normas sobre o funcionamento do sistema econômico.
Com a supremacia da organização empresarial sobre a ordem
econômica feudal (artesanal, agrícola e comercial) o regime jurídico
originalmente criado para a disciplina das atividades de interme-
diação – comerciais – foi aos poucos sendo ampliado para abarcar
outras atividades de feição empresarial.
9 “A constituição de um direito comercial especial decorre historicamente das exigências
daquela economia capitalística que, surgida com a burguesia das cidades italianas e com
característicos bem diversos dos até então tradicionais, foi progressivamente renovando com
espírito de racionalização, de risco, de livre concorrência, e de livre iniciativa a constituição
econômica. (...)
Coaduna-se, destarte, o direito comercial no terreno da economia, não com determinada
atividade econômica, mas com determinado sistema de economia, encontrando no
aparecimento e desenvolvimento deste sistema a explicação da sua constituição como direito
especial e do seu desenvolvimento.
Apresenta-se, por isso, o direito comercial, historicamente ligado nas suas origens, com a
econômica capitalística que, por seu turno, historicamente se liga à constituição da econômica
de massa; apresentam-se, hoje, muitos institutos do direito comercial uma correlação geral com
a economia de massa constituindo o instrumento jurídico desta.” ASCARELLI. Tullio. Panorama
de Direito Comercial Saraiva Livraria Acadêmica. São Paulo. 1947. pg. 46/47. No mesmo sentido:
GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de Empresa. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo.
2ª edição. 2008. Pg. 32.
10 Sobre a direta influência da organização econômica capitalista e empresarial na
organização do sistema jurídico veja-se, por exemplo, o aprofundado (e já centenário) estudo
de Clóvis Bevilacqua. BEVILACQUA. Clóvis. Estudos de Direito e Economia Política. 2ª edição.
H. Garnier Editor. Rio de Janeiro. 1902. Pg. 91 e segs.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 27


É do início do Século XX a positivação da empresa como ob-
jeto das normas até então atinentes à disciplina da atividade co-
mercial. Neste sentido são especialmente marcantes o Código Co-
mercial Alemão de 1897 e, por sua direta influência sobre o direito
brasileiro, o Código Italiano de 1942.
A empresa, categoria essencialmente econômica, passa, a
partir de então, a ser objeto de um corpo organizado e sistematiza-
do de normas jurídicas especialmente voltadas para a regulação de
sua existência e funcionamento. Trata-se do que hoje se chama de
Direito da Empresa.
Se a empresa é uma realidade econômica o Direito da Empre-
sa é, como regime jurídico daquela, uma realidade normativa. São
as normas que disciplinam o exercício das atividades de natureza
empresária.
No direito brasileiro a empresa foi positivada como objeto de
um regime jurídico próprio com a entrada em vigor do Código Civil,
em 2003.
Em seu Livro II o Código estabelece as normas fundamentais
do Direito da Empresa e, também, a caracteriza, ainda que indireta-
mente, em seus artigos 966 (que define a figura do empresário) e
1.142 (o qual se refere ao estabelecimento).
O regime jurídico da empresa no direito brasileiro não está,
porém, adstrito ao Código Civil. Ao contrário, os principais institutos
jurídicos de direito empresarial encontram-se disciplinados em le-
gislação própria, apartada do Código.
São, por exemplo, os casos da Sociedade Anônima (Lei n.
6.404/76), do Mercado de Capitais (Lei n. 6.385/76), da falência e
recuperação de empresas (Lei n. 11.101/05) e da Propriedade Indus-
trial (Lei n. 9.279/96).
Fundamental lembrar, ainda no que tange ao regime jurídico
da empresa, que encontra-se expresso no texto Constitucional todo
um complexo de normas programáticas destinados à organização
jurídica da empresa, tanto no que diz respeito ao seu aspecto estri-
tamente constitutivo (como organização dos fatores de produção)

28 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


quanto em relação ao ambiente no qual ela nasce, existe e se de-
senvolve (o mercado).

3 – A regulação da empresa e do mercado na


Constituição Federal

A Constituição Federal de 1988 dedicou-se expressamente à


fixação dos Princípios Gerais da Atividade Econômica (art. 170 a 181),
inserindo-se no contexto histórico iniciado pela Constituição Mexi-
cana de 1917 e pela Constituição de Weimar, em 1919.
Como salientado, há na Constituição brasileira normas volta-
das para a proteção e garantia do eficiente funcionamento do livre
mercado e da empresa privada. Tais dispositivos, essencialmente
programáticos11, conformam a legislação ordinária e, também, a lei-
tura e interpretação doutrinária e jurisprudencial.
Assim, a análise econômica do Direito da Empresa na Consti-
tuição Federal de 1988 passa por normas regentes da organização
dos fatores de produção (matéria prima, capital, trabalho e tecno-
logia) e, também, por normas destinadas à disciplina do funcio-
namento do ambiente de troca dos bens e serviços produzidos (o
mercado).
O art. 170 da Carta de 1988 está indubitavelmente no centro
das normas constitucionais acerca da empresa e do mercado. É,
portanto, o ponto inicial da análise aqui pretendida.
Esta constatação, porém, não exclui a pertinência e importân-
cia de outras normas constitucionais para a disciplina da empresa
e do mercado.

3.1 – Normas constitucionais e a empresa

Os primeiros – e talvez mais importantes – dispositivos consti-


tucionais ligados à organização da empresa estão nas referências à

11 HORTA. Raul Machado. Direito Constitucional. 2ª edição. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. Pg. 197.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 29


predominância do exercício privado das atividades econômicas em
geral (art. 173) e da propriedade privada dos fatores de produção
(art. 5º caput, XXII e 170, II).
Há exceções a esta orientação constitucional - como, por
exemplo, no art. 177 – e elas devem receber, como ocorre com as
situações excepcionais em geral, restritiva interpretação.
Não é, desta forma, admissível qualquer referência a outra for-
ma de estruturação econômica no Brasil que não aquela baseada
no exercício privado da atividade empresarial e no livre mercado.
A propriedade privada dos fatores de produção e sua utiliza-
ção estão constitucionalmente vinculados à preservação de sua
função social (art. 5º, XXIII e art. 170, III), da qual decorre, no especí-
fico ambiente empresarial, a chamada função social da empresa12.
Trata-se de diretriz constitucional estabelecida com o obje-
tivo de obrigar tanto o legislador ordinário quando a jurisprudên-
cia a criar ou fazer implementar mecanismos jurídicos destinados
a permitir que a organização empresarial possa exercer de forma
economicamente eficiente sua função de produzir ou fazer circular
bens e serviços.
O cumprimento e observância da função social da empresa
não é um ônus a ela imposto, mas sim uma obrigatória preocupa-
ção a ser respeitada por todo o ordenamento jurídico e, também,
por aqueles diversos grupos de interesses mais ou menos organi-
zados em torno dela.
O princípio de preservação da empresa e de sua função social
encontra-se corporificado ao longo de toda a legislação ordinária
atinente à ela, como é o caso da Lei das Sociedades Anônimas (Lei
n. 6.404/76), da Lei de Falência e Recuperação de Empresas (Lei
n.11.101/05) e do Código da Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/96).

12 Sobre o tema: MAGALHÃES, Rodrigo Almeida. PEREIRA, Henrique Viana. Princípios


Constitucionais de Direito Empresarial: A função social da empresa. Editora CRV. Curitiba. 2011.
Pg. 57 e segs.

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Ainda no que tange à empresa como organização dos fatores
de produção nota-se que cada um destes insumos recebe, no texto
constitucional, tratamento específico.
Chama-se de matéria-prima o fator de produção representa-
do pelos recursos economicamente mensuráveis diretamente ex-
traídos da natureza e que, em função do trabalho e da tecnologia,
serão manufaturados e colocados no mercado.
Como algo extraído diretamente da natureza, o uso empre-
sarial deste insumo conflita diretamente com a necessidade de
preservação do Meio Ambiente, razão pela qual são de particular
relevância os dispositivos do art. 170, VI (que exige a defesa dos re-
cursos naturais) e 225 da Constituição Federal de 1988.
O fator trabalho, a seu turno, encontra-se constitucionalmen-
te abarcado pela previsão de sua valorização como fundamento e
princípio geral da República (art. 1º IV e art. 170 caput), da busca pelo
pleno emprego (art. 170 VIII) e da participação dos empregados na
gestão e nos lucros da empresa (art. 7º XI)13.
O fator de produção tecnologia também recebe proteção
constitucional específica quando o art. 5º XXIX estabelece a obri-
gatória proteção às criações intelectuais de natureza industrial em
geral e, paralelamente, estabelece limites temporais na utilização
econômica das patentes14.
Também há proteção constitucional à tecnologia, como fator
de produção, quando a Constituição estabelece e prevê em seu art.
218 o incentivo à ciência e à tecnologia.
Já o fator capital encontra-se abarcado pelo texto constitucio-
nal tanto na referência à regulação do sistema financeiro nacional
(art. 192) quanto no que tange à previsão de regramento, com base

13 Já legislação empresarial ordinária remete a tais previsões quando, por exemplo, incentiva
a dissociação entre propriedade e gestão na macroempresa e a adoção de práticas de
governança corporativa.
14 No sentido de dar efetividade a este preceito constitucional apresenta-se a Lei n. 9.279/96,
também chamada de Código da Propriedade Industrial, que se incumbe de regular o
exercício de direitos de propriedade inerentes às invenções, modelos de utilidade, desenhos
industriais e marcas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 31


no interesse nacional, de investimentos de capital estrangeiro e re-
messa de lucros para o exterior (art. 172)15.

3.2 – Normas constitucionais e o mercado

Como salientado, a Constituição Federal de 1988 estabelece


diretrizes voltadas também para o eficiente funcionamento do mer-
cado16, de forma a viabilizar o pleno exercício privado da atividade
empresarial.
Há alguns pressupostos econômicos inerentes ao eficiente
funcionamento do mercado. Cabe ao Direito procurar, se pretende
preservar a empresa e o mercado, resguardá-los.
O primeiro deles está na previsão de livre acesso ao mercado.
É claro que o acesso ao mercado não se consagra efetivamente
apenas com sua previsão normativa. Sem esta, entretanto, compro-
metido fica este verdadeiro postulado de existência do mercado
como realidade econômica e jurídica.
Há, na Constituição Federal, vários dispositivos que direta ou
indiretamente procurar proteger e incentivar o livre acesso ao mer-
cado. Neste sentido o texto do art. 5º, que estabelece a igualdade
de todos perante a Lei, a liberdade de exercício de qualquer traba-
lho, ofício ou profissão e a liberdade de associação.
Fundamental também lembrar a liberdade de iniciativa e de
exercício de qualquer atividade econômica de finalidade lucrativa,
previstas no art. 170 como princípios fundamentais da ordem eco-
nômica nacional.
15 A legislação ordinária, em consonância com tais diretrizes constitucionais, regula o
funcionamento do mercado financeiro e do mercado de capitais através de diversos e
extremamente detalhados dispositivos e organismos como a Comissão de Valores Mobiliários
e o Banco Central do Brasil.
16 “A idéia de regulamentação do poder econômico no mercado tem origem em uma
premissa sócio-econômica fundamental: todo agrupamento social, por mais simples que
seja, organizado ou não sob a forma de Estado, que queira ter como fundamento básico da
organização econômica a economia de mercado deve contar com um corpo de regras mínimas
que garantam ao menos o funcionamento desse mercado, ou seja, que garantam um nível
mínimo de controle das relações econômicas.” (FILHO. Calixto Salomão. Direito Concorrencial –
as estruturas. 3ª edição. Ed. Malheiros. São Paulo. 2007. Pg. 19).

32 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Aplicando tais preceitos à empresa nota-se que, em essência,
tratam-se todos de normas destinadas a garantir o que em uma
única expressão pode ser chamado de “liberdade de empresariar”17,
conferida indistintamente a todos.
O acesso ao mercado também é constitucionalmente tutela-
do quando se estabelece a livre concorrência (art. 170), a repressão
ao abuso de poder econômico e à dominação do mercado (art. 173)
assim como outras diretrizes fundamentais do ordenamento pátrio.
A legislação ordinária, neste aspecto, procura dar efetiva re-
gulação a tais princípios quando, por exemplo, disciplina a livre con-
corrência e as diversas formas jurídicas de exercício da atividade
empresarial, seja como pessoa física (o empresário individual) ou
por meio da criação de pessoas jurídicas (as sociedades empresá-
rias).
Pode-se ainda, com relativa tranquilidade, inserir no estudo
das normas constitucionais garantidoras do acesso ao mercado a
previsão de regime jurídico diferenciado para as micro e pequenas
empresas (art. 170 IX e art. 179).
Tal disposição, hoje corporificada no Estatuto Nacional da
Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complemen-
tar n.123/2006) parte da correta premissa de que a efetiva imple-
mentação do livre acesso ao mercado passa pelo reconhecimento
de que os agentes empresariais somente poderão sobreviver e se
manter no mercado se tratados legalmente de acordo com sua ca-
pacidade econômica.
A disciplina jurídica do mercado passa, por outro lado, pela
tutela não só da produção ou distribuição de bens e serviços como
igualmente pela regência de seu consumo.
O mercado, como já apontado, consubstancia-se no sistema
de trocas de bens e serviços produzidos em excedente pelas em-
presas e destinados ao consumo de terceiros. Portanto o mercado
engloba não só a liberdade de empresariar, mas também a liberda-
de de consumir os bens e serviços disponíveis.
17 BOTREL. Sérgio. Direito Societário Constitucional. Ed. Atlas. São Paulo. 2009. Pg. 45.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 33


Neste sentido afigura-se fundamental para a eficiência do
mercado a defesa dos direitos do consumidor, preocupação con-
sagrada em diferentes pontos do texto constitucional (art. 5º XXXII,
art. 170 V)18.
Demonstra-se, então, que a Constituição Federal de 1988
abarca e procura tutelar o mercado em ambos os elementos que
o compõem - produtores e consumidores –independentemente do
bem ou serviço produzido.
Resta ainda lembrar que o Direito tem papel fundamental tam-
bém na regulação dos mecanismos destinados a permitir a trans-
ferência na titularidade de bens e serviços disponíveis no mercado.
É especialmente importante, desta forma, a eficiente disci-
plina legal tanto dos direitos de propriedade quanto do contrato,
elemento fundamental para a própria existência do mercado como
realidade econômica e jurídica19.
Embora não haja especificamente maior referência ao con-
trato no texto constitucional, deve este instituto ser regulado e in-
terpretado conforme sua função econômica em um sistema que,
conforme já salientado, funda-se na empresa privada e no livre fun-
cionamento do mercado.
A eficiência do mercado e da atividade empresarial são, por-
tanto, constitucionalmente protegidas e, neste sentido, elementos
conformadores da análise doutrinária ou jurisprudencial que se pre-
tenda fazer sobre normas ou condutas privadas.

18 A legislação ordinária mais uma vez vem a regular tal diretriz constitucional na forma da Lei
n. 8.078/90 (o Código de Defesa do Consumidor).
19 “Nesse sentido, a função social da concorrência, do contrato e da propriedade está
relacionada, em um sistema econômico capitalista, à operabilidade do mercado. Com efeito,
se o mercado joga importante papel na sociedade, quanto melhor o seu desempenho, maior a
função social do Direito.” TIMM. Luciano Benetti. O Novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado,
a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. Livraria do Advogado Editora.
Porto Alegre. 2008. Pg. 91.

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4 – As sociedades empresárias e sua contextualização
no Direito brasileiro

Em seu Livro II o Código Civil de 2002 dedica-se a cuidar do


que chama “Direito de Empresa”, o qual nada mais é do que o re-
gime jurídico privado especialmente elaborado para disciplinar os
atos vinculados à empresa.
O direito positivo brasileiro adota expressamente (art. 966,
caput do Código Civil) o conceito de empresa como elemento ba-
lizador e distintivo do campo de incidência das normas de direito
privado.
No Direito brasileiro, porém, a definição de empresa agrega
outros elementos que, a rigor, são irrelevantes do ponto de vista
econômico. Deste modo, nem tudo o que pode ser considerado
empresa para a Economia é, no Direito, objeto das normas espe-
ciais componentes do Direito de Empresa. A noção econômica de
empresa em muito se assemelha, mas não se equipara à sua defi-
nição jurídica.
Determinadas atividades econômicas, embora organizadas
para a produção ou circulação de bens ou serviços e com nítido in-
tuito lucrativo, estão apartadas da ideia de empresa consagrada na
legislação brasileira. Tais atividades econômicas encontram-se no
parágrafo único do já mencionado art. 966 do Código Civil de 2002.
Tem-se então que qualquer pessoa física ou jurídica que de-
senvolva profissão intelectual, de natureza científica, literária ou ar-
tística terá sua atividade apartada das normas do Direito de Empre-
sa, ainda que pratique tal atividade com intuito lucrativo e de forma
economicamente organizada.
São, regra geral, atividades nas quais há um vínculo essencial
entre o adquirente do serviço e os atributos profissionais e pessoais
que acompanham a pessoa que irá prestá-lo.
As atividades intelectuais, artísticas, científicas ou literárias
podem ser prestadas de forma empresarialmente organizada e cer-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 35


tamente apresentam, hoje, intuito lucrativo. Seriam então, sob um
enfoque econômico, exemplos de empresas.
Foram, porém, apartadas da definição jurídica de empresa (e,
por consequência, do âmbito de incidência das normas de Direito
Empresarial) face ao caráter personalíssimo que se lhes costuma
20
acompanhar .
Outro ponto de contraste entre a aproximação econômica e
a definição jurídica de empresa no direito brasileiro está no art. 971
do Código Civil de 2002, que define o empresário rural e seu regime
jurídico.
Se analisado o tema apenas face à aproximação econômica e
à literalidade do caput do art. 966 do Código Civil, não há dúvidas
de que a pessoa física ou jurídica voltada profissionalmente para a
atividade agrária é exercente de uma “atividade econômica organi-
zada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, ou
seja, é um exemplo de empresário.
Porém, de acordo com o Código Civil, estes profissionais so-
mente se sujeitarão às normas concernentes ao Direito de Empresa
se formalizarem seu registro perante a Junta Comercial de sua sede.
Conclui-se, portanto, que os empresários rurais passam a re-
presentar categoria profissional cujo regime jurídico é definido não
pelo objeto de sua atividade, mas sim pelo local onde forem arqui-
vados seus atos constitutivos (Junta Comercial ou Cartório civil).
Há, no direito brasileiro, duas espécies de empresários. Um
deles é o empresário individual, a pessoa física que, em seu próprio
nome, exerce a empresa com intuito lucrativo e profissional.

20 A orientação da legislação brasileira pode ser comprovada, pois se as atividades de feição


personalíssima perdem este caráter, em virtude da prevalência da organização econômica
dada aos fatores de produção, a solução legal é diferente.
Segundo os termos do art. 966 par. único do Código Civil, se as atividades intelectuais,
artísticas, científicas ou literárias se constituem em “elemento de empresa”, o sujeito que as
exerce passa a se submeter ao regime jurídico empresarial.
A sociedade que tenha por objeto atividade de natureza não empresarial é, nos termos do
art. 982 do Código Civil, chamada de Sociedade Simples. Ela se contrapõe às Sociedades
Empresárias, que, como o nome indica, são constituídas para exercício da empresa.

36 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O outro é o chamado empresário pessoa jurídica, que pode se
constituir sob a forma de um dos tipos de sociedades empresárias,
as quais são, em regra, o agrupamento de duas ou mais pessoas
interessadas em exercer a empresa sob o nome, conta e risco de
uma pessoa jurídica21.

5 – Direito societário e risco: a limitação de


responsabilidade

A empresa é essencialmente uma atividade de risco econô-


mico. Embora seja desnecessário descer a maiores explicações so-
bre esta afirmação, dada sua notória comprovação, ela é importante
pois é a partir deste postulado fático e jurídico que se pode cons-
truir o raciocínio a ser exposto.
O risco de insucesso inerente à empresa significa, patrimonial-
mente falando, a obrigação de que o agente econômico dedicado a
esta atividade - o empresário - responda, com seu patrimônio, pelas
obrigações assumidas em função e em decorrência deste exercício.
Este risco é contrabalançado, por outro lado, pela potencial-
mente ilimitada perspectiva de ganhos financeiros em decorrência
do exercício da empresa.
Face à constatação de que as pessoas são contrárias a riscos,
reagem aos incentivos que lhe são oferecidos e diante da indispen-
sável função que o empresário tem em uma economia de mercado
foram, ao longo do tempo, desenvolvidos e aperfeiçoados diferen-
tes instrumentos destinados a minimizar o risco da empresa e in-
centivar seu exercício.
A sociedade é, entre as pessoas jurídicas de direito privado,
aquela que pode ser destinada ao exercício de atividade de nature-
21 A Lei n. 13.874/2019 (denominada Lei da Liberdade Econômica) alterou o texto do art.1.052
do Código Civil brasileiro para permitir a criação de sociedades limitadas unipessoais,
tomadas estas como as constituídas por um único sócio. Relativiza-se, assim, a concepção
de sociedade como instituto no qual a pluralidade de pessoas é essencial. Vale também
ressaltar, por oportuno, que a adoção, pelo Código Civil, do modelo societário unipessoal
não retira a importância das sociedades com pluralidade de sócios, as quais são, como já
salientado, a genuína forma deste instituto.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 37


za empresarial. Trata-se, portanto, do empresário coletivo, em con-
traponto aos modelos de exercício individual da empresa.
O termo sociedade, porém, não limita seu significado, no direi-
to privado em geral – e, também, no direito empresarial, em particu-
lar - à noção de pessoa jurídica.
Ao contrário, a sociedade é, originalmente, concebida como
acordo de vontades entre duas ou mais pessoas para a execução
de atividade comum e partilha dos resultados financeiros daí advin-
dos (art. 981 do Código Civil).
Desta original feição contratual a sociedade evoluiu, no direito
privado brasileiro, para a condição de pessoa jurídica com a entrada
em vigor do Código Civil de 1916, no qual tal acordo de vontades ad-
quiriu o poder de resultar na criação de um novo sujeito de direito.
A sociedade passava, em nosso ordenamento de origem es-
sencialmente romana, de relação jurídica contratual para, sem dei-
xar de lado tal essência, ser concebida como sujeito de direito apto,
se devidamente registrado (art. 985 do Código Civil), a contrair direi-
tos e obrigações próprias.
Ainda hoje, porém, a relação entre sociedade e pessoa jurídi-
ca não é essencial, já que existem sociedades que não são pessoas
jurídicas e, também, pessoas jurídicas de direito privado que não
são sociedades22.
O que se pretende salientar é que ao se reduzir a figura da
pessoa jurídica no direito empresarial a mera decorrência possível
do acordo de vontades sobre o qual se funda a sociedade estar-se-
-á abdicando da análise mais significativa deste instituto.
A pessoa jurídica no direito empresarial é hoje, antes de mais
nada, um elemento de limitação do risco econômico inerente à em-
presa. Em uma sociedade empresária, a personificação decorrente
do registro do contrato social é não uma finalidade abstrata, mas ato

22 São sociedades não personificadas as sociedades em comum (art. 986 a 990 do Código
Civil) e as sociedades em conta de participação (art. 991 a 996 do Código Civil), as quais
devem ser tratadas apenas como espécies contratuais.
Já as pessoas jurídicas de direito privado sem natureza de sociedade são as fundações e as
associações (art. 44 do Código Civil)..

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com a função econômica concreta de proporcionar aos participan-
tes do empreendimento comum a possibilidade de anteverem, pla-
nejarem e, principalmente, restringirem – com a responsabilidade
limitada do sócio - o risco patrimonial de cada um deles 23.
Richard Posner aponta importante consequência decorrente
da regra societária de responsabilidade limitada do sócio. Segundo
ele, a responsabilidade limitada do sócio é uma forma de externa-
lizar24 as perdas decorrentes do possível insucesso econômico da
atividade empresarial.
Isto significa que os custos decorrentes da insolvência da so-
ciedade personificada não são suportados apenas pelo patrimônio
dos empreendedores (sócios) mas também pelos credores (volun-
tários e involuntários) da pessoa jurídica, que, por não poderem ir

23 ´Limited liability´means only that those who contributes equity capital to a firm risk no more
than their initial investments – it is an attribute of the investment rather than of the corporation.”
(EASTERBROOK. Frank H. FISCHEL. Daniel R. The Corporate Contract. (in) BEBCHUCK. Lucien
Arye. (coord.) Corporate Law and Economic Analysis. Cambridge University Press. 2005. Pg. 191.
24 Externalidade é, em síntese, a consequência que o ato de uma pessoa física ou jurídica
provoca sobre os direitos de terceiros, naqueles casos em que não o agente, mas os terceiros
afetados pelo ato em questão, arcam com os custos advindos desta conduta ou auferem os
ganhos dela decorrentes.
Quando o ato praticado provoca um efeito negativo sobre os direitos de terceiros e estes
efeitos negativos são custeados por eles, fala-se em externalidade negativa. Quando, ao
contrário, o ato praticado provoca um efeito positivo sobre os direitos de terceiros e estes
ganhos não são custeados por eles, verifica-se uma externalidade positiva.
“Uma externalidade surge quando uma pessoa se dedica a uma ação que provoca impacto
no bem-estar de um terceiro que não participa dessa ação, sem pagar nem receber nenhuma
compensação por esse impacto. Se o impacto sobre o terceiro é adverso, é chamado
externalidade negativa; se é benéfico, é chamado de externalidade positiva.” (MANKIW, Gregory.
Introdução à Economia. 3a edição São Paulo: Thomson. 2005. p.204).
A poluição emitida em decorrência da atividade empresarial é um genuíno exemplo de
externalidade negativa. Quando não preocupadas em conter o nível de poluição por elas
produzida, as organizações empresariais não gastam nada com a contenção desta poluição,
mas, por outro lado, provocam com sua ação poluidora graves danos ambientais, que são
suportados por toda a sociedade. É um custo social da atividade produtiva, que diminui o
dispêndio com a produção dos bens, mas socializa os danos poluentes.
Externalidade positiva, por outro lado, ocorre quando uma conduta específica provoca um
ganho para terceiros sem que estes tenham que arcar com os custos decorrentes deste
ato. Quando, por exemplo, um supermercado reforma as vias públicas que levam ao seu
estabelecimento, este ato provoca um ganho para a coletividade em geral (que passam
a desfrutar de maior conforto) mas seus custos são suportados exclusivamente pela
sociedade empresária em questão, que o faz em atenção a seus interesses particulares, mas
inevitavelmente provoca um ganho para toda a sociedade.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 39


aos bens particulares dos sócios para receber seus créditos, e dian-
te da insolvência da sociedade, suportarão parte dos custos deste
fracasso25.
Fácil concluir, portanto, que os modelos societários que ofe-
recem a todos os seus sócios o direito de limitar o risco de perda
patrimonial em virtude do exercício da empresa são, na prática, os
únicos efetivamente usados.
A Sociedade Limitada e a Sociedade Anônima são as duas es-
pécies societárias com o atributo da responsabilidade limitada para
todos os seus integrantes26. São elas portanto que, na prática, re-
vestem juridicamente o exercício coletivo da empresa.

25 POSNER. Richard. Economic Analysis of Law. Seventh Edition. Aspen Publishers. New York.
2007. Pgs. 424 e segs.
26 A realidade do ordenamento jurídico brasileiro aponta um significativo aumento das
hipóteses em que se relativiza, em favor dos credores, a regra da limitação na responsabilidade
limitada dos sócios.
Como demonstrado por Bruno Meyerhof Salama (SALAMA. Bruno Meyerhof. O fim da
responsabilidade limitada no Brasil: história, direito e economia. Malheiros Editores. São Paulo.
2014), débitos de diferentes naturezas (fiscais, trabalhistas ou decorrente de relação de consumo,
em especial) são hoje, seja por previsão legal ou, pior, por orientação jurisprudencial, estendidos
ao patrimônio dos integrantes de sociedades com previsão legal de responsabilidade limitada
para seus sócios.
Por outro lado, a mitigação dos requisitos originais para aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica torna esta situação eminentemente excepcional em constante, levando-a
a também servir de fundamento para a relativização ora tratada.
No citado trabalho, Bruno M. Salama demonstra a aqui abordada importância da limitação na
responsabilidade dos sócios como fator de incentivo e previsão do risco no exercício da atividade
empresarial. Ressalta a sua prevalência em diferentes ordenamentos - das mais diversas origens
- e, por fim, enumera as cada vez mais comuns regras e orientações jurisprudenciais que estão
a relativizá-la, chegando à conclusão de que apenas as sociedades anônimas com ações
negociadas em bolsa ainda podem ser consideradas, mesmo que não de forma absoluta, como
dotadas de tal atributo.
O alcance do patrimônio pessoal dos sócios de responsabilidade limitada por débitos da pessoa
jurídica rompe com a previsibilidade dos custos e benefícios de se empreender, uma vez que os
agentes não são capazes de antever o grau de risco econômico que assumem no exercício da
empresa. Tal rompimento gera insegurança jurídica e, por consequência, compromete o efciente
funcionamento do mercado de bens e serviço.
Desta forma, há que se restringir as hipóteses de exceção à limitação na responsabilidade dos
sócios pelas dívidas da pessoa jurídica e, principalmente, admitir-se sua aplicação apenas nas
situações expressamente previstas em lei.

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A fita de Moebius e o estudo das sociedades empresárias:
uma mesma superfície

Subir para baixo ou sair para dentro... Isso soa impossível, mas não é - e nem é tão difícil
quanto pode parecer.
Há 160 anos existe um objeto que desafia as leis da física. A fita de Möbius foi criada
pelo matemático e astrônomo alemão August Ferdinand Möbius, em 1858.
Sua representação mais comum e conhecida é como um símbolo do infinito.
Fazer uma é muito simples, basta pegar uma tira de papel, girar uma de suas pontas e
juntar os dois extremos. Assim, resta uma fita com “apenas um lado”, que é a característica
que define a fita de Moebius.
Um exemplo de objeto não orientável
Uma das características mais fascinantes da fita de Möbius é ser o que os matemáticos
chamam de “objeto não orientável”, ou seja, é impossível determinar qual é a parte de cima
e a de baixo, a de dentro e de fora.
“É algo complicado de entender intuitivamente”, diz Alejandro Adem, professor de
Matemática da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá.
Se, por exemplo, você começasse a caminhar pela parte de “cima” de uma fita de Möbius,
quando desse a volta completa e chegasse novamente ao ponto de partida, estaria, sem
se dar conta, parado na parte de “baixo”.
Da mesma forma, se começasse a caminhar pela borda externa da fita, ao dar a volta
completa, terminaria em sua borda interna.
www.bbc.com. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-45659225. Site
consultado em 01/06/2020

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 41


Metaforicamente, a fita de Moebius remete ao que este livro se propõe a
apresentar a respeito das sociedades empresárias, especialmente seus dois
tipos basilares: a sociedade limitada e a sociedade anônima.

Embora pareçam muito distintas, estes modelos de pessoas jurídicas têm muito
mais pontos de contato do que a princípio possam aparentar. Todas são, em
essência, um conjunto organizado de pessoas e capital para desenvolvimento
de atividade econômica com finalidade de lucro. Além disso, o instituto da
sociedade é consagrado, há séculos, como o regulador da empresa na economia.

É por isso que, mesmo servindo de estrutura jurídica para operações


economicamente tão díspares, este trabalho opta por estudar o direito societário
não como duas realidades estanques, mas como uma mesma essência
desdobrada em facetas complementares.

6 – A Sociedade Limitada e a Sociedade Anônima: uma


análise econômica e comparativa de seu regime jurídico

Entre todas as modalidades de sociedades hoje disciplinadas


pela legislação brasileira a Sociedade Limitada é aquela de origem
mais recente e cercada das mais significativas particularidades.
Os tipos societários atuais têm, em regra, a mesma origem de
vários dos fundamentais institutos de Direito Empresarial. São his-
toricamente o resultado das práticas reiteradas dos comerciantes
medievais que, posteriormente e de forma gradual, alcançaram a
legislação positiva, à medida que se consagraram por sua grande
adequação ao tráfico mercantil27.
Assim, espécies societárias como a sociedade em nome co-
letivo, a sociedade em comandita simples e a sociedade em conta
de participação remetem ao período histórico em que o ainda in-
cipiente “direito dos comerciantes” era basicamente um conjunto
mais ou menos ordenado de usos e costumes adotados à margem
da legislação estatal.
Eram, em essência, práticas destinadas a atender às necessi-
dades de um mercado em expansão e que, pela correspondência

27 ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva & Cia. 1947. p. 24 e
segs.

42 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


aos interesses dos agentes econômicos, ganharam muito posterior-
mente a legislação positiva.
Tais constatações se aplicam mesmo às sociedades por
ações. Sua origem é remota e, como salientado, resulta de paulati-
nas etapas evolutivas decorrentes, em regra, de usos e costumes.

William Magnuson (MAGNUSON. William. For Profit: a history of corporations. New


York: Basic Books. 2022. Pg. 25 e seg) cita a societas publicanorum romana (Sec. I
A.C) como o primeiro exemplo de organização jurídica e econômica na qual já se
encontravam traços fundamentais das atuais sociedades por ações.
Criadas para coletar impostos em territórios conquistados pelo Império Romano,
estas societas publicanorum tinham, por exemplo, capital privado, personalidade
jurídica distinta de seus integrantes, assembleias para deliberações de seus
membros e repartição de competência entre gestores. Além disso, os direitos
de participação sobre seus resultados econômicos eram livremente negociados
ao público, no Forum Romano28

28 “Some scholars read the evidence we have from Roman writers as suggesting that ancient
Rome had a large and active stock market, in which the shares of Roman companies could be
traded among the public much like on a modern stock market”. MAGNUSON, William. For Profit:
A History of Corporations (p. 20). Basic Books. Edição do Kindle.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 43


Já no Séc. XII é possível apontar o surgimento, em Florença,
de um certo empreendimento familiar denominado “compagnia”, o
qual, após sucessivas transformações, resultaria no modelo que, a
partir do Séc. XV, se apresentou com as características básicas das
atuais sociedades anônimas29.
A Companhia Holandesa das Índias Orientais, instituída em
1601, é tida como o primeiro exemplo genuíno desta espécie asso-
ciativa na evolução histórica do Direito Empresarial,30 sendo ainda o
resultado da evolução destas anteriores modalidades de agrupa-
mentos consuetudinariamente empregados por aqueles que pre-
tendiam empreender juntos31.
A origem das Sociedades Limitadas, porém, segue um cami-
nho inverso. Se, como demonstrado, as outras espécies de socie-
dades foram inicialmente concebidas pelas práticas do incipiente
mercado medieval e apenas posteriormente reguladas pela legis-
lação, as Sociedades Limitadas partiram, por assim dizer, da legis-
lação para o mercado.
Este modelo societário é criação de uma legislação especí-
fica. Não se afigura, portanto, como um instituto desenvolvido no
campo das relações comerciais. Trata-se, em sentido oposto, de um
modelo societário criado em um contexto histórico determinado e
por meio de normas gerais e abstratas com o intuito de atender,
antes de mais nada, à eficiência do Direito.

29 “The word compagnia is a compound os two latin words (cum and panis) meaning “breaking
bread together”. MICKLETHAWAIT. John. WOOLDRIDGE. Adrian. The Company: a short history
of a revolutionary idea. Modern Library. London. 2012. Pg. 21 e segs.
30 GOWER, L.C.B. Gower´s Principles of Modern Company Law. London: Sweet & Maxwell. 1992.
p. 21. ASCARELLI. Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. Campinas:
Bookseller Editora e Distribuidora. 2001. p. 452.
31 Certo também concluir que desde sua origem a sociedade anônima é uma criação
estruturada para agregar grande quantidade de pessoas e capitais, de modo a viabilizar
grandes empreendimentos econômicos. Em decorrência disso, este tipo de sociedade está,
em regra, sujeito a rígidas exigências de constituição, tanto que originalmente dependia
de expressa e específica autorização do soberano. MICKLETHAWAIT. John. WOOLDRIDGE.
Adrian. The Company: a short history of a revolutionary idea. Modern Library. London. 2012. Pg.
46 e segs.

44 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A Sociedade Limitada foi instituída pela lei alemã de 1892, de
iniciativa do deputado Oechelhaueuser. A Alemanha vivia, à época,
forte crise econômica e havia então grande interesse e necessidade
de se estabelecer incentivos àqueles que pudessem se dedicar à
atividade empresarial.
Faltava, porém, um modelo de sociedade adequado aos em-
preendedores de pequeno e médio porte. As Sociedades Anônimas
não lhes atendiam, dados a extremada formalidade e rigor da legis-
lação, algo mais adequado às grandes aglomerações de acionistas.
Também as demais sociedades então conhecidas não eram
economicamente eficientes pois, se por um lado eram disciplinadas
por uma legislação menos onerosa, por outro exigiam a presença
de ao menos um integrante disposto a assumir a responsabilidade
pessoal e ilimitada pelos débitos vinculados ao exercício da ativida-
de empresarial.
Faltava, então, um modelo societário que fundisse o que hou-
vesse de mais adequado em cada uma das espécies até então
conhecidas, ou seja: uma sociedade que fosse tão simples de se
constituir como as sociedades com sócios de responsabilidade ili-
mitada e que também garantisse a todos os seus integrantes o que
até então era privilégio dos acionistas: a efetiva separação entre o
patrimônio pessoal dos sócios e os débitos contraídos em nome da
pessoa jurídica.
O sucesso da então recém instituída sociedade de responsa-
bilidade limitada (Gesellshaft mit Beschränkter Haftung, ou simples-
mente GmbH) alemã foi tão rápido e de proporções tão significativas
que provocou a quase imediata adesão de outros ordenamentos à
nova espécie societária32.
A essência das sociedades em geral - e da Sociedade Limi-
tada em particular – está, portanto, no fato de que representa um
instrumento jurídico destinado a agrupar diferentes pessoas inte-
32 Tanto que já em 1906 houve a edição da legislação austríaca, em 1911 a legislação
poArtuguesa e já no ano seguinte, por iniciativa de Herculano Marcos Inglês de Souza, o Brasil
se movimentava no sentido de consagrá-la em sua legislação positiva, o que, porém, só veio
a ocorrer em 1919, com a edição do Dec. Lei n. 3.708.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 45


ressadas em se dedicar conjuntamente e de forma organizada ao
exercício de uma atividade de cunho econômico, notadamente de
caráter empresarial.
Portanto, a relação de sociedade impõe-se como uma situa-
ção em que a maximização dos interesses individuais dos agentes
econômicos envolvidos depende também das escolhas e atos em-
preendidos pelos demais partícipes.
A maximização dos ganhos da sociedade – e, por consequ-
ência, de cada um dos sócios – está na cooperação de todos os
contratantes. É, portanto, uma situação apta a ser submetida aos
modelos econômicos ligados à Teoria dos Jogos.
Jogos cooperativos ou jogos de cooperação são modelos es-
quemáticos de conduta que analisam situações em que os agentes
maximizam seus próprios interesses particulares quando se dis-
põem a moldar sua própria ação aos anseios de outrem. A escolha
e posterior conduta de um dos contratantes provoca reflexos posi-
tivos em relação aos demais33.
Quando um sócio se dispõe a colaborar com parte de seu
patrimônio e, também, com seus esforços pessoais para a realiza-
ção do objeto social, não apenas ele está ganhando com isso, mas
também todos os demais sócios. Estes, por sua vez, têm na mútua
colaboração e na integralização do capital a estratégia dominante,
ou seja, aquela que lhes é mais favorável independentemente da
conduta do outro.
Resta lembrar, porém, que o comportamento cooperativo dos
sócios existe até o momento em que esta cooperação em torno da
sociedade e de seu objeto social é o meio mais eficiente de maxi-
mização dos interesses particulares de cada sócio.
Baseada ao mesmo tempo na perenidade de seu objeto, na
colaboração mútua e no interesse egoístico de cada sócio, a rela-
ção de sociedade - espécie de contrato relacional34 - encontra em
33 MYERSON, Roger B. Game Theory: Analysis of Conflict. Cambridge, Massachussets: Harvard
University Press, 1997. OSBORNE, Martin J. An Introduction to Game Theory. New York – Oxford:
Oxford University Press, 2004.
34 Para aprofundamento nas questões específicas sobre contratos relacionais veja: GOETZ,

46 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


seu caráter incompleto outro fundamental fator para sua compre-
ensão e disciplina.
A análise econômica dos contratos deve ser processada a
partir de duas premissas diretamente vinculadas. A primeira refe-
re-se à existência dos chamados custos de transação e a segunda
diz respeito ao inevitável caráter incompleto dos vínculos firmados.
Custos de transação – ou custos de contratação – represen-
tam aquilo que dispenderam ou deixaram de ganhar as partes de
um contrato com o objetivo de constituí-lo ou executá-lo. São os
custos que os contratantes enfrentam para elaborar, manter e fazer
cumprir o contrato.
A importância dos custos de transação se tornou evidente a
partir do seminal trabalho de Ronald Coase35 e hoje é fundamental
para a análise econômica do Direito pois, conforme se depreende
do denominado Teorema de Coase, quanto maiores forem os cus-
tos da transação, menores serão as chances das partes chegarem
a contratar.
Outra noção basilar para o tema é a de incompletude dos
contratos. Na elaboração de um vínculo contratual é necessário
perceber que as partes tentam, em princípio, prever todas as cir-
cunstâncias que podem ocorrer durante a execução do contrato e,
ao mesmo tempo, dar-lhes uma solução.
Porém, forçoso é também reconhecer que, por diferentes fa-
tores, esta previsão e disciplina invariavelmente se apresenta lacu-
nosa. Daí porque os contratos denominados incompletos36.
Apartadas as sociedades com membros de responsabilidade
ilimitada pelos débitos comuns - hoje de utilização extremamente
restrita - ficam aos sócios as alternativas da sociedade anônima e

Charles J. SCOTT, Robert E. Principles of Relational Contracts. Virginia Law Review. Vol. 67. n. 6
(Sep. 1981) Pg. 1089 a 1150.
35 Os mais importantes trabalhos do autor (The Nature of The Firm e The Problem of Social
Cost) são encontrados, com valiosos comentários, na seguinte obra: COASE, Ronald H. The
Firm, The Market and The Law. Chicago: The University of Chicago Press. 1990.
36 BAKER, Scott. KRAWIEC, Kimberly D. Incomplete Contracts in a Complete Contract World.
http//www.ssrn.com. (site consultado em 21/11/2006).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 47


da sociedade limitada. Estes dois tipos societários guardam, porém,
inúmeras distinções em sua estrutura e disciplina legal, as quais já
se procurou explicar sob diferentes critérios, muitos deles de utili-
dade e aplicabilidade questionável.

O modelo regulatório das companhias confere, inegavelmente, significativa


vantagem comparativa, em relação aos demais tipos de pessoas jurídicas de
direito privado, se considerados aspectos como segurança jurídica e transparência
de decisões, além do acesso à captação pública de investimentos.

Exemplo desta vantagem comparativa está na Lei n. 14.193, de 2021, que instituiu
a denominada Sociedade Anônima do Futebol (S.A.F) com o objetivo de conferir
às instituições cuja atividade principal consista na prática do futebol, feminino
e masculino, em competição profissional (art. 1º), um modelo regulatório mais
eficiente.

Inegável, porém, que a sociedade anônima é disciplinada por


uma legislação extremamente rígida, detalhada, complexa e que
deixa pouquíssimas lacunas em assuntos importantes para serem
preenchidas pelos atos constitutivos da sociedade.
O rigor da legislação do anonimato se impõe também na sua
aplicação. Assim, vigora na sociedade anônima a estrita legalidade,
em termos similares aos encontráveis no âmbito da Administração
Pública.
Desta forma, quando a lei das sociedades anônimas prescre-
ve uma conduta aos sócios, administradores, controladores e de-
mais envolvidos com a organização societária não lhes é permitido
adotar conduta diversa. As normas da lei do anonimato são em sua
maioria de ordem pública.
O fundamento deste perfil de estrita legalidade encontra-se
no fato de que esta modalidade societária se destina precipuamen-
te à captação de recursos na comunidade em geral. Sua principal
função econômica é captar a poupança popular e canalizá-la para
as atividades empresariais.

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A rigidez da legislação das sociedades anônimas leva em
conta que, ao menos potencialmente, a massa dos acionistas será
composta por pessoas que não terão e nem pretenderão ter qual-
quer contato direto com a gestão do empreendimento (sleeping
partners). Ao contrário, querem é lucrar ou com a percepção dos
dividendos ou com a compra e venda das ações no mercado de
valores mobiliários.
Se os acionistas não têm no contato direto com a gestão da
companhia a escolha que maximize seus interesses, a legislação
deve, sob a premissa de maior austeridade do próprio mercado de
valores mobiliários, zelar pela integridade do capital por eles inves-
tido.
A Lei das sociedades anônimas (Lei n. 6.404, de 15 de dezem-
bro de 1976) é complexa e inderrogável também porque pressupõe
não haver entre os sócios interação significativa o suficiente para
se esperar que possam eles adequadamente regular seus próprios
interesses comuns em relação ao empreendimento37.
Além desta falta de direta interação entre os acionistas, outro
fator se destaca como fundamento da rigidez e detalhamento des-
ta legislação, qual seja: sociedade anônima ergue-se sobre a pers-
pectiva de ser uma instituição apta a agregar o capital de diferentes
perfis de investidores.
Em uma genuína sociedade anônima encontra-se, no quadro
de acionistas, pessoas com os mais diversos perfis. Há desde aque-
le microinvestidor, que aplica suas economias pessoais no capital
das sociedades (normalmente valendo-se da intermediação de
instituições financeiras) até aqueles que, profundos conhecedores
do mercado acionário e também da gestão do empreendimento -
além de muito abastados financeiramente - acumulam a maioria do
capital social.

37 L.C.B GOWER salienta, ao cuidar dos modelos societários anglo-saxônicos, que as


corporations são mais adequadas às situações em que não há a “confiança mútua” entre
os sócios, elemento característico de outras modalidades societárias como as partnerships
(GOWER. L.C.B. Principles of Modern Company Law. 5th ed. London: Sweet & Maxwell. 1992.
Pg. 5).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 49


Inclua-se também neste rol os investidores institucionais –
como fundos de pensão e fundos mútuos – e aqueles acionistas
interessados nos dividendos ou, como já lembrado, na especulação
com a compra e venda de seus papéis.
Radicalmente diferente é o perfil da Sociedade Limitada. Aqui
a perspectiva é outra: trata-se de agrupamentos de interesses com-
postos por um número relativamente pequeno de pessoas que se
conheceram e se confiam a ponto de se disporem a contratualmen-
te dar origem à sociedade.
Em função do número potencialmente menor de sócios é
também válido pressupor que os quotistas terão um contato direto
com o empreendimento e com seus gestores, o que lhes permi-
te maior simetria de informações na hora de fazer suas escolhas e
auto regular seus interesses.
A simetria de informações entre os quotistas é respaldada
também pela observação de que, na sociedade limitada, presume-
-se considerável uniformidade no perfil de seus integrantes, dife-
rentemente do que se nota na sociedade anônima.
Se dentre os acionistas de uma companhia há desde pessoas
que dispõem de irrisório percentual do capital social até investido-
res institucionais e empreendedores que, com massiva quantidade
de ações, ditam praticamente todas as escolhas da sociedade, nas
limitadas o que se espera é a comunhão de interesses entre pesso-
as com similares graus de informação e capacitação técnica.
De forma inversa ao que se verifica nas companhias, nas so-
ciedades limitadas não há que vigorar a regra da estrita legalidade.
Ao contrário, deve-se facultar aos quotistas, em princípio, o poder
de auto regular contratualmente seus interesses. A autonomia pri-
vada deve prevalecer sobre o caráter tutelar e cogente da lei.38
A concepção e interpretação das normas sobre a sociedade
limitada deve basear-se na possibilidade de livre transação entre os
contratantes. O pressuposto é que os sócios são as pessoas mais

38 COOTER, Robert. ULEN, Thomas. Law & Economics. 4th edition. New York: Pearson, Addison
Wesley. 2004. Pg. 225

50 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


recomendadas e adequadas à disciplina de seus próprios interes-
ses no contrato de sociedade.
Em se tratando do contrato social da sociedade limitada tem-
-se que a legislação brasileira (Código Civil, artigos 1.052 a 1.086)
faculta aos agentes a possibilidade de auto regularem a maior parte
das questões inerentes ao empreendimento comum.
Ciente, porém, de que o contrato social é eminentemente co-
operativo, incompleto e sujeito a inúmeras variáveis ao longo de sua
implementação, a legislação deve funcionar como uma salvaguar-
da, fornecendo regras a serem utilizadas para preencher a omissão
dos sócios.
O caráter supletivo das normas regentes da sociedade limita-
da perpassa o texto do Código Civil e se manifesta expressamente
em diferentes e fundamentais pontos da relação intrasocietária.
A função da legislação é subsidiar o aplicador quando diante
de uma lacuna no contrato social, lacuna esta que, como já salien-
tado, decorre da própria essência de um contrato relacional e de
longo termo como este.
Assim, ao mesmo tempo que respeita a autonomia privada
dos quotistas – sob as premissas de simetria de informações e da
racionalidade na efetivação de suas escolhas – a legislação, ao ser-
vir de socorro ao intérprete no suprimento das inevitáveis lacunas
contratuais, dá aos sócios maior segurança por antecipar, em seu
texto, qual deverá ser a solução judicial.

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Capítulo II

Constituição de sociedades: do contrato social à


pessoa jurídica
1 – Sociedade Limitada: a natureza plurilateral do
contrato social e sua disciplina no Código Civil

Em busca de uma resposta para a natureza do ato de consti-


tuição de uma sociedade, a doutrina agrupou-se em duas corren-
tes, sendo a primeira delas a que tem tal ato como um contrato e
a segunda aquela que o toma como um negócio jurídico não con-
tratual.
Não tardou, entretanto, a conclusão de que a constituição de
uma sociedade - seja ela empresária ou não, personificada ou não
- afigura-se como negócio jurídico dotado de peculiaridades signifi-
cativas o bastante para impossibilitar o seu simples enquadramento
em alguma das supra referidas categorias.
Ao enfrentar o tema, Tullio Ascarelli postulou que a constitui-
ção de uma sociedade é basicamente uma modalidade de contrato
plurilateral39. Desde então, poucos têm discordado da pertinência
desta concepção.
No contrato plurilateral as vontades criadoras não se encon-
tram em sentidos opostos, como nos contratos sinalagmáticos tra-
dicionais. Ao contrário, estas vontades estão orientadas para a con-
secução de um objetivo comum.
A ideia de empreendimento, atividade, empresa a ser realiza-
da em conjunto pelos signatários de um contrato plurilateral é de
fundamental importância na caracterização deste instituto.
As partes de um contrato plurilateral se obrigam a agrupar es-
forços pessoais e/ou recursos patrimoniais particulares para viabi-
lizar o empreendimento no qual todos os partícipes se envolverão.
39 ASCARELLI. Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. Ed.
Bookseller. Campinas. 2001. Pg. 276/277

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Entretanto – e diferente da figura clássica do contrato sinalag-
mático - as prestações das partes de um contrato plurilateral estão
voltadas para a mesma direção, qual seja: a realização da atividade
ou negócio conjunto.
Outro fator de relevância na figura do contrato plurilateral está
na constatação de que a contribuição de cada um dos contratantes
não é, por si só, a causa jurídica da prestação dos demais, em virtu-
de da inexistência de oposição de vontades.
Deste modo, o inadimplemento de um deles não torna, em
princípio, ineficaz o acordo como um todo, sendo ainda admissível,
em tese, a livre entrada e saída de membros sem violação à integri-
dade do contrato.
Saliente-se ainda que todo contrato plurilateral admite a parti-
cipação de mais de duas partes, entendidas aqui como polos espe-
cíficos de direitos e obrigações decorrentes do contrato e não ape-
nas enquanto sujeitos de direito signatários do acordo de vontades.
Pode-se objetar que esta não é uma particularidade do con-
trato plurilateral, já que em qualquer contrato sinalagmático é pos-
sível, ao menos em princípio, que se tenha mais de dois sujeitos de
direito como partícipes do negócio jurídico.
Na generalidade dos contratos sinalagmáticos, porém, haja
ou não mais de dois contratantes, estes sempre estarão agrupados
em apenas dois polos, entendidos estes como centros de direitos e
obrigações decorrentes do vínculo estabelecido.
Num contrato de compra e venda, por exemplo, ainda que se
tenha mais de dois contratantes, todos eles estarão necessariamen-
te na situação de vendedores ou de compradores. Em um contrato
de locação, por seu turno, somente haverá dois polos de direitos e
obrigações (locador e locatário), sejam eles ocupados por mais de
uma pessoa ou não.
Nos contratos plurilaterais, ao contrário, a cada sujeito de di-
reito signatário do instrumento corresponderão direitos e obriga-
ções próprios, particulares em relação aos demais.

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O art. 981 do Código Civil define o contrato de sociedade em
termos muito próximos àqueles ora apontados. Toma-o como o
acordo entre duas ou mais pessoas (as partes) pelo qual se obrigam
a contribuir com bens ou serviços (suas respectivas prestações)
para o exercício de determinada atividade de natureza econômica
(o objeto social) e partilha dos resultados (finalidade social).
A seguir será feita uma abordagem desta estrutura básica do
contrato de sociedade, com referência às suas partes, às presta-
ções que estabelece, seu objeto e finalidade. Tais aspectos serão,
no decorrer do livro, abordados de forma individualizada, especial-
mente no sentido de apresentar suas eventuais peculiaridades con-
forme o tipo de sociedade do qual se esteja a tratar.
Podem participar de um contrato de sociedade, como regra,
qualquer pessoa física ou jurídica, seja ela, no caso das últimas, de
direito privado (art. 44 do Código Civil) ou de direito público interno
(art. 41 do Código Civil).
Com relação às pessoas físicas, vale lembrar que a capacida-
de civil não é requisito para ser sócio. O art. 974 par. 3º do Código
Civil (com redação dada pela Lei n. 12.399/2011) admite a constitui-
ção de sociedades empresárias com sócios civilmente incapazes,
desde que cumulativamente se observe três requisitos, a saber: o
sócio incapaz não pode exercer a administração da sociedade, o
capital social deve ser totalmente integralizado e, por fim, o sócio
relativamente incapaz deve ser assistido e o absolutamente incapaz
deve ser representado no exercício de seus direitos.
Ao tomarem parte no contrato de sociedade os sócios se obri-
gam, nos termos do art. 981 do Código Civil, a contribuir com deter-
minados bens ou serviços, sendo essa a prestação característica do
vínculo de natureza societária.
O dever de integralização do sócio consiste, deste modo, na
obrigação que ele assume de contribuir para a formação de um
conjunto de bens cuja expressão monetária é denominada capital
social. São estes bens e recursos financeiros, provenientes do patri-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 55


mônio dos sócios, que viabilizarão a realização, pela sociedade, de
seu objeto e finalidade.
Sobre o objeto e finalidade do contrato de sociedade, trata-se
de aspectos essenciais de sua estrutura, com bem estabelecido no
art. 981 do Código Civil. São, entretanto, definições conexas, o que
justifica mais detida abordagem do tema.
Vale também lembrar que a classificação das sociedades
quanto ao seu objeto é questão de grande importância, pois é a
partir deste critério que se define, em princípio, o regime jurídico
aplicável a elas.
Antes de classificar as sociedades, nos termos do Código Civil,
conforme o seu objeto, é conveniente distinguir entre o que é con-
siderado objeto social e o que se pode chamar de finalidade social.
Objeto social é a espécie ou modalidade de atividade econô-
mica para a qual foi criada a sociedade. Identifica-se como objeto
social aquela “atividade econômica” que, nos termos do art. 981 do
Código Civil, é inerente a qualquer contrato de sociedade.
Finalidade ou fim social é, por outro lado, o objetivo final das
pessoas físicas ou jurídicas que decidem firmar um contrato de so-
ciedade. É, portanto, aquilo que o art. 981 do Código Civil expressa
como “partilha, entre si, dos resultados” econômicos advindos do
exercício do objeto social.
A finalidade de qualquer sociedade está, conforme estabele-
cido no Código Civil, na obtenção de lucro e, mais do que isso, na
partilha deste entre os seus sócios. Toda sociedade tem, portanto,
a mesma finalidade ou fim social, sob pena de descaracterizar-se
como tal. Não é possível, desta forma, classificar as sociedades
conforme sua finalidade ou fim social, ao menos segundo a sua atu-
al disciplina no Código Civil.
Já a atividade econômica a ser exercida como meio para se
alcançar o lucro é que foi dividida, pelo Código Civil, conforme sua
natureza empresarial ou não.
As sociedades que exerçam atividades de natureza empre-
sarial (ou seja, cujo objeto social seja o exercício de uma empresa)

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são, nos termos do art. 982 do Código Civil, chamadas de socie-
dades empresárias. Já aquelas sociedades cujo objeto social seja
uma atividade econômica – ou seja, com finalidade de lucro - mas
natureza não empresarial são, nos termos do Código, chamadas de
sociedades simples40.
Neste sentido – e como é a regra geral estabelecida pelo art.
982 do Código Civil - a sociedade limitada é classificada como so-
ciedade simples ou sociedade empresária conforme a natureza da
atividade para a qual tenha sido constituída41.
Se a sociedade limitada foi constituída para o exercício de ati-
vidade de natureza empresarial ela será, para todos os efeitos, uma
sociedade empresária. Se, por outro lado, a sociedade limitada foi
criada para o exercício de uma atividade econômica desprovida de
natureza empresarial ela será uma sociedade simples, quanto ao
seu objeto e regime jurídico.
Nesta segunda hipótese a sociedade limitada não será regida
pelo direito empresarial. A sociedade limitada, se simples quanto
ao seu objeto é disciplinada, já a partir de sua constituição, pelas
regras civis e não empresariais42.
A sociedade limitada tem seu regime jurídico disciplinado pe-
los artigos 1.052 a 1.086 do Código Civil brasileiro e é – como os

40 Considera-se de natureza empresarial qualquer atividade econômica – é dizer, de


finalidade lucrativa - englobada pelo art. 966, caput do Código Civil. Tais atividades são, nos
termos do Código, empresas. Já as atividades econômicas que estejam fora desta abrangente
definição (como, por exemplo, as enumeradas no art. 966 par. único do Código Civil) são, por
exclusão, definidoras do que sejam sociedades simples.
41 A Lei n. 6.404/76 estabelece, em seu art. 2º, que pode ser objeto da sociedade anônima
qualquer empresa de fim lucrativo, não contrária à lei, à ordem pública e aos bons costumes.
Vale lembrar, porém, que o texto deste artigo deve ser interpretado sob o prisma do Código
Civil de 2002, que, como visto, dividiu as atividades de finalidade lucrativa em empresariais ou
não, conforme sua adequação ou não ao texto do seu art. 966, caput.
Assim, as sociedades anônimas podem ter, como objeto social, qualquer atividade econômica
de finalidade lucrativa – de natureza empresarial ou não, portanto - desde que não contrária à
lei, à ordem pública e aos bons costumes.
O mais importante é salientar que, independentemente da natureza empresarial ou não
do objeto da companhia, será ela sempre sujeita ao regime do direito da empresa, como
expressamente fixa o art. 982 do Código Civil.
42 Como se verá adiante, as sociedades anônimas são sempre de natureza empresarial,
independentemente de seu objeto (art. 982 par. único do Código Civil).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 57


demais tipos societários – definida a partir da responsabilidade que
seus sócios assumem pelos débitos contraídos em nome da pes-
soa jurídica.
A disciplina legal da sociedade limitada completa-se, como
estabelecido pelo art. 1.053 do Código Civil, pelo emprego de nor-
mas supletivas, as quais serão, em princípio, aquelas dos artigos.
997 a 1.038 do Código Civil, referentes às sociedades simples43.
Porém, e como estabelecido pelo art. 1.053 par. único do Có-
digo Civil, o contrato social da sociedade limitada poderá remeter,
como regime supletivo, às normas das sociedades por ações, con-
solidadas na Lei n. 6.404/76. Sobre esta questão é importante es-
clarecer alguns pontos.
Em primeiro lugar, a regência supletiva somente pode ser in-
vocada em caso de lacuna nas normas específicas das sociedades
limitadas, ou seja, somente quando não houver, nos artigos 1.052 a
1.086 do Código Civil, tratamento normativo do assunto é que se
poderá aplicar, conforme haja previsão contratual ou não, as nor-
mas das sociedades por ações ou das sociedades simples.
Outra questão sobre o tema é referente às eventuais cláusulas
contratuais estabelecidas para preencher as lacunas existentes nas
normas específicas das sociedades limitadas (artigos 1.052 a 1.086
do Código Civil).
Tome-se, por exemplo, o caso do Conselho de Administração,
órgão não referido no Código Civil – tanto nas normas da socie-
dade limitada quanto da sociedade simples – mas expressamente
estruturado, em seus aspectos fundamentais, na Lei das S.A (Lei n.
6.404/76).
43 O termo sociedade simples tem, no Código Civil, duas diferentes conotações. A primeira
delas – a que se chama de sentido genérico do termo – significa qualquer sociedade (exceto
a anônima) cujo objeto social seja desprovido de natureza empresarial. É a sociedade de
objeto civil e, por isso, apartada do Direito Empresarial.
Sociedade simples também designa um determinado tipo, espécie ou modelo de sociedade
– seu sentido específico – cujas normas constam dos artigos 997 a 1.038 do Código Civil.
Este modelo de sociedade só pode ser criado para atividades de natureza civil (artigo 983 do
Código Civil) estando, portanto, sempre fora do alcance do direito empresarial. Apesar disso,
trata-se do regime jurídico supletivo a princípio aplicável, como se demonstra, às sociedades
limitadas.

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O contrato de sociedade limitada pode expressamente prever
a existência do Conselho de Administração em sua estrutura orga-
nizacional. Pode ainda, independentemente de qual seja a regên-
cia supletiva estipulada para a sociedade, discipliná-lo com regras
contratuais próprias, mesmo que diferentes daquelas que regem
este órgão na Lei das S.A (Lei n. 6.404/76).
O contrato social não pode afrontar as normas de ordem públi-
ca especificamente criadas para a sociedade limitada (artigos 1.052
a 1.086 do Código Civil), mas pode preencher as lacunas existentes
nestes dispositivos legais. Neste caso, tal previsão contratual preva-
lecerá inclusive sobre as normas do regime supletivo da sociedade
em questão, seja ele qual for.
Vale repetir que, em matéria de sociedade limitada, a orien-
tação adotada pelo Código Civil foi a de privilegiar, na disciplina
dos direitos e deveres dos sócios, a autonomia privada. Assim, são
relativamente poucas as normas aplicáveis especificamente às so-
ciedades limitadas que não possam ser derrogadas por disposição
contratual.
A prevalência da autonomia privada na disciplina dos direitos
e deveres de sócios nas sociedades limitadas explica-se e justifi-
ca-se, como demonstrado no capítulo anterior, pelo relativamente
baixo custo de transação entre os sócios e menor assimetria de in-
formação entre eles. Do mesmo modo, a autonomia privada deve
prevalecer também quando se trata do preenchimento de lacunas
na legislação específica.
Portanto os sócios podem preencher, mediante cláusula do
contrato social, as lacunas deixadas pelos artigos 1.052 a 1.086 do
Código Civil, de maneira a disciplinar sua relação jurídica sem ter
que necessariamente acatar a regra supletiva advinda seja do Có-
digo Civil ou da Lei n. 6.404/76.
Conclui-se então que as normas supletivas da sociedade li-
mitada somente podem ser aplicadas a ela em caso de inexistência
de previsão específica nos artigos 1.052 a 1.086 do Código Civil e

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 59


desde que omisso o contrato social no preenchimento da lacuna
normativa.
Por outro lado, deve-se ressalvar que a aplicação supletiva
das regras das sociedades por ações às limitadas não se faz indis-
tintamente44. Caso assim se procedesse, a mera previsão contratual
de aplicação supletiva das normas das sociedades por ações fa-
ria recair sobre a limitada vários institutos e situações não previstas
em suas normas específicas, como por exemplo a obrigatoriedade
de preenchimento de uma série de livros contábeis (art. 100 da Lei
6.404/76).
De forma a evitar esta absurda conclusão, é preciso deixar
claro que o regime supletivo das sociedades limitadas serve para
preencher as lacunas de suas normas específicas (art. 1.052 a 1.086
do Código Civil) e de seu contrato social exclusivamente naqueles
assuntos que estejam tratados em uma ou noutro.
É, por exemplo, o caso das normas específicas das sociedades
limitadas referentes à sua administração. Estas normas omitem-se
quanto aos deveres e responsabilidade do administrador, sendo,
portanto, de alcance do regime supletivo a função de disciplinar o
tema.
O mesmo se deve salientar quanto ao contrato social. Se – no-
vamente como exemplo - o acordo de vontades cria um Conselho
de Administração na sociedade limitada, mas deixa de disciplinar
sua estrutura, deve-se fazer uso das normas supletivas.
Portanto, o regime supletivo da sociedade limitada supre as
normas especificas deste tipo societário e o contrato social apenas
quando estes mencionam um assunto ou órgão, mas deixam de
regulá-lo por completo.
É, porém, forçoso reconhecer também que há institutos dis-
ciplinados pela Lei das S.A (Lei n. 6.404/76) que são inaplicáveis às

44 “Por isso, parece-nos que o contrato social precisa deixar claramente estabelecido em que
assunto deve ser aplicada a referida lei [Lei das S.A] e, além disso, regular, suplementarmente,
os institutos do anonimato que incorpora à sociedade sobre que versa.” GONÇALVES NETO.
Alfredo de Assis. Direito de Empresa – Comentários aos artigos 996 a 1.195 do Código Civil. Ed.
Revista dos Tribunais. São Paulo. 2007. Pg. 306.

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sociedades limitadas – independentemente de seu regime supleti-
vo - posto que incompatíveis com a sua estrutura45.
Sobre eles as regras específicas da sociedade limitada no Có-
digo Civil não tratam e o contrato social também não pode fazê-lo,
sob pena de afrontar normas de ordem pública.
O contrato de sociedade limitada tem como cláusulas essen-
ciais, no direito brasileiro, aquelas previstas no art. 997 do Código
Civil, aplicável por determinação expressa e específica – portanto,
não supletiva – do art. 1.054 do mesmo texto legal.
Nem todas as cláusulas previstas pelo art. 997 do Código Civil
são aplicáveis à sociedade limitada, dada a existência de regra es-
pecífica na lei em sentido oposto. São os casos dos números V, VII
e VIII, já que, por previsão legal expressa e específica, a sociedade
limitada tem regras próprias de responsabilidade dos sócios e não
admite a contribuição exclusiva com serviços.
O contrato de sociedade pode resultar, como se demonstrará
a seguir, na criação de um novo sujeito de direitos e obrigações pró-
prias, consistente na pessoa jurídica societária.

2 – A constituição da personalidade jurídica da


sociedade

Desde seus remotos e primitivos agrupamentos a humanida-


de manifesta constante tendência a realizar em grupo as atividades
comuns. Ainda em estágio embrionário de sua evolução cultural as
pessoas já percebiam o quanto multiplicavam os resultados se, em
prol de um mesmo objetivo, unissem seus esforços.
Não tardou para que tal fenômeno se fizesse presente no re-
gramento normativo de diversos povos, que logo trataram de re-
gular juridicamente esta comunhão de interesses reunidos sob a
forma de sociedade.

45 CARVALHOSA. Modesto. Comentários ao Código Civil – parte especial – Do Direito de


Empresa. Ed. Saraiva. São Paulo. 2003. Pg. 45.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 61


No Direito Romano as sociedades se estruturavam funda-
mentalmente sobre o caráter familiar que invariavelmente apresen-
tavam. Tais organismos se originavam da comunhão de interesses
surgida entre os herdeiros de uma mesma pessoa. Os irmãos, for-
çosamente agrupados em torno do patrimônio deixado pelo pater
familias falecido, então constituíam uma sociedade, onde se desta-
cava intensamente o caráter pessoal - intuitu personae - do vínculo
surgido.
Este perfil personalista assumido pelas sociedades conheci-
das do Direito Romano acabou por constituir, durante muito tem-
po, o principal elemento característico dos vínculos societários em
geral, tendo influenciado decisivamente a orientação adotada pelo
Código Napoleônico de 1807 e por todos aqueles que o seguiram,
em especial o Código Comercial brasileiro de 1850.
Durante a Idade Média, o reaquecimento do comércio e o efe-
tivo surgimento do ramo jurídico destinado a ordenar as relações
advindas de tal atividade tornaram as sociedades ainda mais im-
portantes, já que passaram a representar o instrumento legal a ser
adotado por aqueles que desejassem comerciar em conjunto.
Nesta época consolidou-se a distinção entre o regime jurídico
civil ou comum e o regime jurídico comercial, este último destinado
àqueles que se dedicavam à prática habitual de atos de comércio
com intuito de lucro. Afastaram-se também as noções de socieda-
des civis e sociedades comerciais, estas últimas definidas conforme
o objeto - realização de atos de comércio - ou segundo a forma
societária adotada.
Atualmente a utilidade do conceito de sociedade é imensa.
Para corroborar tal assertiva, no campo econômico, é suficiente que
se remeta à porcentagem das atividades econômicas hoje pratica-
das sob o manto de algum dos tipos societários previstos em nossa
legislação.
Já no terreno normativo basta mencionar, para que se consta-
te o grande interesse a respeito do assunto, a constante sofisticação

62 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


das formas societárias criadas pelos ordenamentos legais, cujo ápi-
ce é, em regra, a sociedade anônima.
O conceito e a disciplina jurídica das sociedades, pelo menos
no que tange ao direito brasileiro, se funda sobre a noção de pessoa
jurídica.
No Direito brasileiro, a inserção da noção de pessoa jurídica e
sua aplicação às sociedades não se verificou, ao menos de forma
expressa, com a entrada em vigor do Código Comercial de 1850.
Seguiu-se forte discussão doutrinária acerca da matéria, com al-
guns defendendo a personalidade autônoma de tais entes enquan-
to outros a negavam.46
Esta situação de relativa incerteza veio a encerrar-se quando
da promulgação do Código Civil de 1916, que dispôs expressamen-
te, em seu art. 16, I e II, sobre a personalização das sociedades civis
e comerciais.
O Código Civil de 2002 por sua vez, não altera a questão, dis-
pondo, em seu art. 44, I, que as sociedades são pessoas jurídicas de
direito privado.
A personificação é, portanto, regra que alcança todas as es-
pécies societárias previstas pela legislação, excetuadas a socieda-
de em conta de participação - que, em virtude de sua particular
estrutura, somente vigora entre seus membros - e a sociedade em
comum.
Ressalte-se, entretanto, que, para alcançar o status de pessoa
jurídica, a comunhão de interesses representada pela sociedade
deve cumprir rigidamente as exigências legais atinentes à sua cria-
ção e, principalmente, ao devido registro dos seus atos constituti-
vos.
A cargo das Juntas Comerciais – no caso das sociedades em-
presárias - ou dos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas
– para as das sociedades simples - o registro do contrato ou estatu-

46 Sobre a divergência doutrinária acerca da personalidade jurídica das sociedades


comerciais no direito brasileiro, anterior a 1916, veja-se: CARVALHO DE MENDONÇA. J.X.
Tratado de Direito Comercial....Volume III. Livro II. Parte III. Ob. cit. Pg. 80 e segs.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 63


to social é providência essencial à personificação destas entidades
(artigos 45 e 985 do Código Civil).

3 – O contrato de Sociedade Limitada e suas cláusulas


essenciais

A Sociedade Limitada tem seu regime jurídico disciplinado


pelos artigos 1.052 a 1.086 do Código Civil. Como é regra no direito
brasileiro, a definição deste modelo de sociedade se dá a partir do
tipo de responsabilidade que os sócios assumem pelas dívidas de-
correntes do empreendimento.
O art. 1.052 do Código Civil fixa para os sócios, neste tipo, a
regra da responsabilidade limitada. Isto significa que, ao criarem
este modelo de sociedade, os integrantes conseguem apartar seus
bens particulares das dívidas em comum47.
A responsabilidade do sócio de uma sociedade limitada está,
em princípio, restrita ao valor de sua respectiva quota/fração no ca-
pital social, o qual é livre e consensualmente estabelecido, entre e
por eles, no ato da elaboração do contrato.
Portanto, todos os sócios devem obrigatoriamente contribuir,
na forma e modo contratualmente fixados, para a formação do capi-
tal social. Esta contribuição pode se efetivar com dinheiro ou quais-
quer bens suscetíveis de avaliação econômica, sendo, entretanto,
absolutamente vedada a cláusula que preveja para algum membro
a contribuição exclusivamente em serviços (art. 1.055 par. 2o).48
Há, porém, importante aspecto da responsabilidade dos só-
cios quotistas a ser abordado. Trata-se da regra de solidariedade
prevista no art. 1.052 do Código Civil, o qual estipula, para a Socieda-

47 O mesmo dispositivo legal relativiza, em seus parágrafos 1º e 2o, a pluralidade de sócios


como essencial para a regular constituição de uma sociedade limitada, já que autoriza sua
criação e registro com apenas um integrante, seja este uma pessoa física ou jurídica.
48 Pode-se entender esta inadmissão do sócio de serviços dada a responsabilidade dos
sócios de sociedade limitada. Como, em princípio, seu patrimônio pessoal não garante os
credores da pessoa jurídica, esta deve ter um conjunto de bens suscetíveis de garantir os
seus credores. Tal conjunto é exatamente o capital social.

64 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


de Limitada, que todos os sócios são solidariamente responsáveis
pela integralização do capital social, regra que os coloca como ga-
rantidores das quotas uns dos outros49.
Assim, ainda que o sócio realize, no tempo e modo previs-
tos, sua parcela do capital social, ele pode ser demandado, pelos
eventuais credores da pessoa jurídica, a honrar os valores eventu-
almente não integralizados por qualquer dos outros integrantes da
sociedade.
Desta forma, cada sócio integraliza sua quota no capital social
e fica legalmente como garantidor – solidário aos demais membros
– das eventuais quotas não integralizadas, até que seja a totalidade
do capital social constituída em favor da pessoa jurídica50.
O art. 1.054 do Código Civil fixa as cláusulas essenciais do con-
trato de sociedade limitada ao remeter, no que couber, ao art. 997
do Código, o qual se dedica ao elenco das cláusulas essenciais do
contrato de sociedade simples.
O sócio é, como dito, parte neste acordo de vontades que, em
regra, constitui a sociedade, podendo mesmo, como admite o pa-
rágrafo 1º do art. 1.052 do Código Civil, constituí-la sozinho. Lógico,
portanto, que a primeira providência do contrato social seja, como
exige o art. 997 do Código Civil, elencar e qualificar seu(s) partici-
pante(s).

49 É possível justificar-se esta regra de garantia mútua na integralização de quotas de


sociedade limitada com a consideração de que neste tipo societário inexiste exigência de
prova, em relação a terceiros, tanto da efetivação da transferência do valor das quotas para o
patrimônio da pessoa jurídica quanto da realização de avaliação externa dos bens utilizados
na integralização do capital social.
Se apenas os sócios são os responsáveis por fiscalizar a efetiva integralização do capital
e também a pertinência dos valores atribuídos aos bens a serem utilizados na operação,
afigura-se correto responsabilizar-lhes, em solidariedade, tanto pelo descumprimento, por
qualquer deles, de seu dever de integralização quanto pelas eventuais superavaliações dos
bens usados para a composição do capital social.
50 Relevante lembrar que uma vez integralizadas todas as quotas do capital social, opera-se
a já lembrada separação entre o patrimônio dos sócios e as dívidas da pessoa jurídica.
A partir desta integralização, mesmo que futuramente o capital social seja insuficiente para
honrar as obrigações da sociedade, não se poderá invocar a responsabilização dos sócios,
já que terão eles cumprido, na forma do art. 1.052 do Código Civil, seu dever de compor, nos
termos do contrato, o capital da sociedade.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 65


Da sociedade limitada podem fazer parte, na condição de só-
cio, quaisquer pessoas físicas e jurídicas51, tenham estas últimas o
objetivo de lucro ou não, como no caso de associações e funda-
ções.
Quanto aos sócios pessoas físicas, a regra é a exigência da
plena capacidade civil, mas admite o art. 974 par. 3º do Código Ci-
vil que, se atendidos os requisitos ali estipulados52, a pessoa física
relativa ou mesmo absolutamente incapaz possa nela figurar como
sócio.
Com relação ao objeto social trata-se, como salientado, da(s)
espécie(s) de atividade(s) econômica(s) para a(s) qual(is) foi criada,
com finalidade de lucro, a sociedade.
Sua previsão contratual, de forma completa e detalhada, é
obrigatória e tem, nas Sociedades Limitadas, o poder de definir seu
regime jurídico – civil ou empresarial – conforme as atividades pre-
vistas para a pessoa jurídica sejam ou não características de empre-
sário sujeito a registro (art. 982 do Código Civil).
Assim, se a sociedade limitada tiver por objeto uma atividade
econômica sem natureza empresarial – como as elencadas pelo art.
966 par. único do Código Civil – estará ela sujeita ao regime jurídico
civil e não ao direito de empresa.
O nome empresarial da sociedade limitada deve também
constar do contrato social. A teor do art. 1.158 do Código Civil, este
tipo societário poderá adotar firma ou denominação, sempre inte-
gradas pela palavra “limitada” ao final, escrita por extenso ou abre-
viadamente.
As sociedades limitadas podem se constituir por prazo de-
terminado ou indeterminado de duração, mas a opção dos sócios
deve ser expressa no contrato e, caso se pretenda constituí-la por
51 A condição de sócio pode ser ocupada mesmo por entidades desprovidas da condição de
pessoa jurídica, como os fundos de investimentos, que merecerão abordagem específica no
Capítulo III deste trabalho.
52 A pessoa relativa ou absolutamente incapaz poderá ser sócia da sociedade limitada se
devidamente representada ou assistida no exercício de seus direitos, não figurar ou exercer
qualquer atividade administrativa e desde que o capital social já esteja completamente
integralizado.

66 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


prazo determinado, é igualmente necessária a expressa referência
à data escolhida para o encerramento das atividades sociais.
Já a cláusula contratual que fixa a sede da sociedade é obri-
gatória principalmente porque indica o local e a jurisdição onde a
pessoa jurídica responderá, regra geral, pelos atos por ela pratica-
dos.
O valor, divisão e forma de integralização do capital social são,
juntamente com a previsão dos poderes e modo de indicação dos
administradores, as outras cláusulas obrigatórias do contrato social.
A análise de seus aspectos mais relevantes será feita quando trata-
dos respectivamente os temas do capital social e administração da
sociedade.

4 – A constituição da sociedade anônima e suas


peculiaridades

O processo de constituição de uma sociedade anônima – ou


companhia – tem detalhado regulamento nos artigos 80 a 99 da Lei
n. 6.404/76 e está dividido em três fases distintas e cronologica-
mente ordenadas.
Na primeira delas - denominada de requisitos preliminares - a
pessoa jurídica ainda não existe e nem existirá após o encerramen-
to desta fase. O objetivo aqui é encontrar os interessados em fazer
parte da sociedade em constituição – os futuros sócios – e, tam-
bém, agregar o capital necessário à realização do empreendimento.
A condução desta fase fica sob a responsabilidade daqueles
a quem a Lei n. 6.404/76 chama de fundadores. Eles podem ser ou
não futuros acionistas e, grosso modo, são aquelas pessoas que
tomam a decisão de criar a companhia.
A fase dos requisitos preliminares está, como estipulado pelo
art. 80 da Lei n. 6.404/76, subdividida em três momentos distintos e
subsequentes. São eles a subscrição do capital social, a sua realiza-
ção e, por fim, o seu depósito.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 67


Subscrever capital significa, em direito societário, assumir a
obrigação de transferir à sociedade – neste caso, ainda em forma-
ção - o valor correspondente a certa fração do capital social em
troca do direito de figurar como sócio na pessoa jurídica em cons-
tituição.
A criação da companhia começa, portanto, com a procura por
interessados em subscrever a totalidade do valor fixado como ca-
pital da sociedade em constituição e, no futuro, integrar seu quadro
de sócios.
A integralidade do capital social deve ser subscrita por pelo
menos duas pessoas físicas ou jurídicas, e há duas formas de en-
contrar os interessados em fazer parte do quadro de sócios da com-
panhia em formação. Fala-se, neste sentido, em subscrição pública
ou particular do capital social.
A subscrição do capital social é publica quando se realiza por
qualquer das formas previstas pelo art. 19 par. 3º da Lei n. 6.385/7653,
que estabelece, como se viu, as normas fundamentais do funciona-
mento e estrutura do mercado de valores mobiliários.
A partir do texto do art. 19 par. 3º da Lei n. 6.385/76 vê-se que,
na subscrição pública, os fundadores lançam, através do mercado
de valores mobiliários, uma espécie de convite, aos investidores em
geral, para participar da companhia em criação. Este convite é for-
malizado pelos meios ali previstos.
Trata-se, obviamente, de uma captação pública de recursos,
no sentido já explicitado no capítulo sobre o mercado de valores
mobiliários. Justifica-se, então, aplicar-se nesta operação o rigor fis-
calizatório e regulamentar destinado a segurança deste delicado
mercado.

53 Art. 19. Nenhuma emissão pública de valores mobiliários será distribuída no mercado sem
prévio registro na Comissão [de Valores Mobiliários] (...)
§ 3º - Caracterizam a emissão pública: I - a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição,
folhetos, prospectos ou anúncios destinados ao público; II - a procura de subscritores ou
adquirentes para os títulos por meio de empregados, agentes ou corretores; III - a negociação
feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público, ou com a utilização dos serviços
públicos de comunicação.

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Deste modo, constituir uma companhia valendo-se de subs-
crição pública de capital exige o cumprimento de dois requisitos
específicos, os quais estão descritos no art. 82 da Lei n. 6.404/76.
Um destes requisitos consiste na participação, nesta fase, de
instituição financeira, a qual deverá funcionar como intermediária -
e possível garantidora - na captação de recursos dos subscritores
e responderá, assim como os fundadores, pelos eventuais prejuízos
decorrentes do fracasso no processo de constituição da companhia
(Lei n. 6.404/76 art. 92).
A esta instituição financeira cabe, em essência, o papel de re-
ceber – mediante pagamento de comissão - os aportes feitos pelos
subscritores do capital da sociedade em formação (art. 85 da Lei n.
6.404/76) e mantê-los em depósito, até que ultimado o processo
de constituição da pessoa jurídica.
A pessoa interessada em subscrever o capital da companhia
em constituição formaliza tal operação adquirindo os boletins de
subscrição – disciplinados com o nome de boletins de entrada no
art. 85 da Lei n. 6.404/76 - disponíveis na instituição financeira inter-
mediária da operação54.
Este documento faz referência a um determinado número de
ações da futura companhia, sendo que os adquirentes destes bole-
tins têm, mediante a quitação do valor neles mencionado, o direito
de receber a quantidade, espécie e classe de ações ao qual corres-
pondam.
Além de intermediar a negociação dos boletins de subscrição,
a instituição financeira ligada à constituição da companhia pode-
rá se obrigar a adquirir as parcelas do capital social eventualmen-
te não subscritas, ou mesmo adquirir a totalidade do capital social
para posteriormente – e em nome próprio – negociá-lo com subs-
critores.55
54 Segundo o artigo 8º da Lei n. 13.874/2019, que alterou este artigo 85 da Lei n. 6.404/76, é
dispensada a assinatura de lista ou boletim em caso de constituição por subscrição pública
intermediada por entidade administradora de mercados organizados de valores mobiliários.
55 “O contrato de intermediação, a ser firmado com a instituição financeira, também chamado
de contrato de ‘underwriting’, ora envolverá o compromisso firme de adquirir todas as ações

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 69


Vê-se claramente aqui a preocupação em se assegurar a cre-
dibilidade financeira do processo constitutivo da companhia, prin-
cipalmente quando ele se realiza a partir da captação pública dos
valores que integrarão o capital social.
O outro requisito específico estipulado para os casos de cons-
tituição da companhia através de subscrição pública do capital con-
siste na realização de prévio registro da emissão na Comissão de
Valores Mobiliários.
Este pedido de registro deve ser instruído com os documen-
tos elencados pelo art. 82 par. 1º da Lei n. 6.404/76. São eles: um
estudo da viabilidade econômica e financeira do empreendimento,
o projeto dos estatutos da companhia em constituição (art. 83 da
Lei n. 6.404/76) e o prospecto assinado pelos fundadores e pela
instituição financeira intermediária da operação.56
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem o poder de
negar o registro da emissão, se considerar inviável ou temerário
o empreendimento, ou inidôneos os fundadores. Pode também a
autarquia exigir modificações no projeto de estatutos apresentado
pelos fundadores (art. 82 par. 2º da Lei n. 6.404/76), sempre com a
finalidade de preservar a legalidade, a eficiência e a equidade no
mercado de valores mobiliários.
Considera-se particular qualquer outra forma de subscrição
do capital social que não seja uma daquelas elencadas no art. 19
par. 3º da Lei n. 6.385/76. Trata-se, então de uma noção residual.
Em geral, nestes casos, os futuros acionistas já estão previamente

para depois coloca-las no mercado em nome próprio, ora corresponderá ao um esforço de


colocação das ações em determinado prazo, com o compromisso de aquisição do saldo
não colocado (stand by), ora representará um mero esforço de colocação, sem garantia de
subscrição do saldo (best effort). A comissão cobrada pela instituição financeira será tanto
maior quanto mais firme for a sua garantia de colocação. Os bancos, nas grandes emissões,
organizam um grupo (pool) ou consórcio de instituições financeiras que, sob a liderança de
um ou alguns, subdividem entre si o compromisso assumido perante o emitente.” BORBA. José
Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2014. Pg. 209.
56 O prospecto tem seu conteúdo mínimo fixado no art. 84 da Lei n. 6.40476. Este refere-se
basicamente ao valor e forma de integralização do capital da companhia em constituição, ao
número, espécie e classe de ações previstas, aos fundadores e à intermediária financeira da
subscrição.

70 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


convidados, por haver entre eles anterior acordo de vontades no
sentido da constituição da companhia.
A segunda fase dos requisitos preliminares consiste na reali-
zação das parcelas de cada subscritor. Neste momento, cada um
deles é obrigado a transferir os valores referentes às suas respecti-
vas frações no capital social da futura companhia.
Embora os subscritores – futuros sócios - possam integralizar
suas parcelas do capital social em dinheiro ou qualquer outro bem
suscetível de avaliação pecuniária (art. 84, III da Lei n. 6.404/76), a
Lei das S.A estabelece, em seu artigo 80, II, um percentual mínimo
de 10 (dez) por cento do valor total do capital social a ser integrali-
zado neste momento, necessariamente em dinheiro.
Este percentual, bem como a data de sua realização, é esta-
belecido pelos fundadores e expresso no prospecto e nos boletins
de subscrição, devendo sua quitação se realizar na instituição finan-
ceira intermediária da constituição (Lei n. 6.404/76 artigos 84 e 85)
Estes valores serão mantidos, pela instituição financeira inter-
mediária, em uma conta bancária em favor da sociedade em cons-
tituição e lá serão mantidos até o encerramento do processo cons-
titutivo (Lei n. 6.404/76).
Por outro lado, há um período máximo de seis meses para
que se ultime o processo de criação da companhia, sob pena de
necessária e automática devolução, aos subscritores, dos valores
depositados e fracasso do processo constitutivo da companhia (Lei
n. 6.404/76, art. 81 par. único).
A segunda fase do processo criação de uma companhia é
chamado de constituição propriamente dita. Realizada após a de-
finição dos futuros acionistas e depósito de parte do capital social
em conta bancária, esta fase se destina a formalizar a criação da
pessoa jurídica, o que se dará por uma de duas formas, legalmente
previstas.
O ato de constituição propriamente dita de uma companhia
pode ser uma assembleia geral com todos os subscritores do capi-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 71


tal social. Tal assembleia se chama, na Lei n. 6.404/76, de Assem-
bleia de Fundação, e sua disciplina está nos artigos 86 a 8857.
Segundo o art. 87 da Lei n. 6.404/76, a Assembleia de Funda-
ção deverá, em essência, aprovar o texto dos estatutos da compa-
nhia – o qual só poderá ser modificado por unanimidade - e eleger
seus primeiros administradores e, se for o caso, fiscais.
Dela participarão todos os subscritores do capital social – ou
seus procuradores com poderes especiais, conforme disposto no
art. 90 da Lei n. 6.404/76 - que, além disso, poderão votar na apro-
vação do estatuto, qual seja a sua espécie ou classe de ações na
futura companhia.
Outra modalidade de constituição propriamente dita da com-
panhia é aquela prevista no art. 88 da Lei n. 6.404/76, e que consiste
na elaboração, no Cartório de Notas da localidade, de uma escritu-
ra pública de constituição, a qual tem o conteúdo estipulado pelo
artigo ora citado e será assinada por todos os subscritores ou seus
procuradores, nomeados na forma do art. 90 da Lei n. 6.404/76.
É fundamental salientar que a constituição da companhia por
meio de escritura pública só pode ser feita se a subscrição de seu
capital se efetuou de forma particular.
A terceira e última fase dos atos constitutivos de uma compa-
nhia consiste nas chamadas formalidades complementares, disci-
plinadas nos artigos 94 a 99 da Lei n. 6.404/76.
Estas formalidades complementares são cumpridas já pelos
primeiros administradores da companhia, os quais foram eleitos na
assembleia de fundação ou nomeados na escritura de constituição.
O objetivo aqui é dar tornar oponível a terceiros a criação da pessoa
jurídica.

57 As formalidades de convocação da Assembleia de fundação são as mesmas legalmente


estabelecidas para as Assembleias Gerais de acionistas, com a pequena ressalva de que, em
caso de anúncio de subscrição pública em jornal, o mesmo veículo de comunicação deve
ser usado para publicar o edital de convocação para a Assembleia de Fundação (art. 86 par.
único da Lei n 6.404/76).

72 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


São duas as formalidades complementares de constituição.
Uma é o registro dos atos constitutivos na Junta Comercial do Esta-
do no qual funcionará a companhia e a outra é a publicação destes
atos de constituição no Diário Oficial (art. 94 da Lei n. 6.404/76).

5 – A dicotomia fundamental das sociedades anônimas:


companhias abertas e fechadas

A distinção entre sociedades anônimas abertas e fechadas


está estabelecida no art. 4º da Lei n. 6.404/76 e tem por critério a
autorização ou não para realização de captação pública de capital,
através do mercado de valores mobiliários.
Chama-se de sociedade anônima aberta – ou sociedade anô-
nima de capital aberto – aquela cujas ações e outros valores mobi-
liários por ela emitidos podem ser negociados através das institui-
ções que compõem este mercado, enquanto o termo sociedade
anônima fechada – ou sociedade anônima de capital fechado – é,
por exclusão, referente à companhia que não tem acesso a esta for-
ma de comercialização dos valores mobiliários por ela emitidos58.
O acesso dos valores mobiliários emitidos pela companhia à
negociação através da bolsa de valores ou mercado de balcão é
uma característica exclusiva, mas não essencial, das sociedades
anônimas e foi, como se vê, empregado pela Lei n. 6.404/76 como
critério para classificá-las em abertas ou fechadas.

58 É possível mesmo aludir a uma subespécie de companhia fechada - prevista no art. 294 da
Lei n. 6.404/76 - que tem por características o patrimônio líquido inferior a R$ 78.000.000,00
(setenta e oito milhões de reais) e menos de 20 (vinte) acionistas em seu quadro de sócios.
José Waldecy Lucena a elas se refere como sociedades familiares, uma vez que são adotadas,
em regra, por sócios de uma mesma família ou bastante próximos, como colegas de trabalho
ou amigos (LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades Anônimas – Comentários à Lei. Vol. I. Ed.
Renovar. Rio de Janeiro. 2009. Pg. 108/109).
As companhias fechadas que atendam aos requisitos do art. 294 da Lei n. 6.404/76 terão
algumas prerrogativas particulares, as quais também se encontram ali estabelecidas. São
elas: possibilidade de convocação de assembleia geral de acionistas por comunicação
escrita entregue a cada um dos sócios e dispensa de publicação dos documentos do art. 133
da Lei n. 6.404/76.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 73


As companhias fechadas em muito se assemelham, quanto
à forma de transferência da titularidade dos direitos de sócio, às
sociedades limitadas. Entretanto, o mesmo não ocorre em relação à
sua disciplina legal. Neste ponto, aliás, a diferença é manifesta.
As sociedades anônimas - sejam elas abertas ou fechadas
- são marcadas por rígida, complexa e detalhada disciplina legal
composta, em geral, por normas inderrogáveis, seja por previsão
estatutária ou decisão de seus acionistas59.
Já a sociedade limitada, ao contrário, é uma modalidade so-
cietária eminentemente contratual, na qual, em especial quanto às
relações entre sócios, a legislação tem papel predominantemente
supletivo.
Quais seriam, então, os motivos que levam sócios relativa-
mente bem informados e entre os quais há, ao menos a princípio,
afinidade recíproca, a optar por um regime jurídico menos flexível
como o das companhias fechadas e abdicar da autonomia con-
tratual que lhes é oferecida pelas sociedades limitadas? A análise
pode ser feita a partir da noção de custos de transação.
A regulação contratual das relações intrasocietárias, tão evi-
dente nas sociedades limitadas, obviamente gera, para os seus só-
cios, os custos inerentes à negociação das cláusulas disciplinado-
ras da relação entre eles60.
Tais custos não se evidenciam tanto nas sociedades anônimas
fechadas, uma vez que seu regime jurídico se mostra praticamente
“pronto” na própria Lei, dispensando os acionistas dos custos e des-
gastes com a fixação de muitas cláusulas contratuais.

59 Por realizarem, como será demonstrado em capítulos seguintes, captação da poupança


disponível na economia, as sociedades anônimas abertas são submetidas a gama ainda
maior e mais elaborada de regras, as quais são, em sua maior parte, oriundas das próprias
instituições que participam ou regulam o mercado de valores mobiliários.
60 Na elaboração de um contrato social os sócios precisam – se pretendem estabelecer
eficientes regras de convívio na sociedade – dispender tempo e dinheiro na obtenção de
informações sobre as diferentes alternativas contratuais, bem como precisarão arcar com
o tempo e o desgaste necessários à definição, entre eles, de qual alternativa adotar na
disciplina dos diferentes aspectos da relação societária.

74 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Por outro lado, a mutabilidade das cláusulas contratuais da
sociedade limitada – e, por consequência, das relações intrasocie-
tárias – por simples deliberação majoritária gera, para os sócios mi-
noritários, maior grau de incerteza quanto aos termos da relação
societária, dada a não essencialidade de vários de seus direitos61.
Nas companhias fechadas, o poder dos estatutos é menor e,
também, via de consequência, da Assembleia Geral de Acionistas,
o que garante aos sócios maior grau de intangibilidade de seus di-
reitos na companhia.
Por fim, ressalte-se também que os custos de transação – ou
custos de contratação - sujeitam as cláusulas do contrato social a
lacunas e possíveis dúvidas interpretativas, algo potencialmente
menos comum em uma sociedade marcada, como as companhias
fechadas, por intenso detalhamento normativo.
Não se pense, porém, que as companhias fechadas não têm,
em relação às sociedades limitadas ou às sociedades anônimas
abertas, suas perdas comparativas. Ao contrário, pode-se apontar
aspectos nos quais as companhias fechadas são comparativamen-
te menos eficientes ou mais dispendiosas, para seus sócios, do que
as sociedades limitadas ou companhias de capital aberto.
A título de exemplo, pode-se lembrar que a detalhada e com-
plexa estrutura normativa das companhias fechadas acarreta al-
guns custos que são menos evidentes nas sociedades limitadas.
Trata-se aqui dos custos inerentes ao atendimento das próprias
regras tão pormenorizadamente estabelecidas pela própria Lei n.
6.404/7662. Os custos para se manter uma companhia fechada em
plena regularidade são mais altos do que aqueles necessários para
esta mesma finalidade, em se tratando das sociedades limitadas.

61 São exemplos de direitos de sócio suscetíveis de alteração, no contrato de sociedade


limitada, por deliberação majoritária: proporcionalidade na distribuição dos lucros, regras de
cessão de quotas, exclusão de sócio e direito de retirada e critérios de apuração de haveres.
62 São, por assim dizer, os “custos do cumprimento da Lei das sociedades anônimas”, os
quais se desdobram, por exemplo, em maior gasto com a escrituração de livros contábeis
e publicação de demonstrações financeiras, redação e arquivamento de atas e outros
documentos obrigatórios, cumprimento de regras de convocação para deliberações, etc.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 75


Uma característica das companhias fechadas - e das socie-
dades limitadas, pode-se acrescer - apontada pela doutrina estran-
geira é a maior suscetibilidade da minoria ao poder do controlador,
em comparação com as companhias abertas.63
Por outro lado, os entraves contratuais ou estatutários à livre
transferência dos direitos de sócios levam – nas sociedades limita-
das e companhias fechadas, respectivamente - à falta de liquidez
destes direitos e significativo “aprisionamento” do sócio à socieda-
de, algo que não ocorre nas sociedades anônimas abertas.

6 – A affectio societatis e a caracterização dos vínculos


societários nas companhias abertas, fechadas e
sociedades limitadas

É corente, no direito societário, a referência a determinado


elemento anímico inerente à constituição das sociedades em ge-
ral. Trata-se da chamada affectio societatis, expressão que remete à
intenção dos sócios de efetivamente contratarem sociedade entre
si64.
63 “In recent years, this question has taken on critical importance, as the LLC has emerged as the
favored business structure for many closely held enterprises. An LLC is a noncorporate business
form that provides its owners, known as “members,” with limited liability for the venture’s obligations,
favorable partnership tax treatment, and extensive freedom to contractually arrange the
business”. MOLL. Douglas K. Minority Oppression & the Limited Liability Company: Learning (or
Not) from Close Corporation History. University of Houston. Public Law and Legal Theory Series
2006-A-01. disponível em http://ssrn.com/abstract=869310. Site consultado em 28/09/2017.
Pg. 885. No mesmo sentido, a seguinte afirmativa: “The fundamental feature of closely-held
corporation ownership is that shareholders are typically few in number, knowledgeable about
firm operations, and involved in management. The key governance conflict is the abuse of
power by the controlling shareholder”. NAGAR. Venky. PETRONI. Kathy. WOLFENZON. Daniel.
Governance Problems in Closely-Held Corporations. Journal of Financial and Quantitative
Analysis October 2009. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1291612. Pg. 06. Este texto
fala mesmo em expropriação dos acionistas minoritários, pelo majoritário.
64 João Eunápio Borges ressalta, apoiado em autores como Paul Pic, Jean Kréher e Ripert,
dentre outros, que a affectio societatis tem conteúdo essencialmente de natureza econômica,
baseado na intenção dos sócios, no ato de constituição da sociedade, de cooperar
ativamente na realização da obra ou empresa comum. Além disso, ressalta que ao termo
ora discutido não se deve dar amplitude maior, vinculada, por exemplo, ao seu significado
em outras expressões como maritalis affectio. “Affectio societatis é apenas o consentimento, o
elemento subjetivo comum e indispensável à formação de todo e qualquer contrato”. BORGES.

76 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A affectio societatis acaba, neste sentido, tomada como fun-
damento último de existência e bom funcionamento da pessoa
jurídica. Vale, entretanto, questionar se é mesmo necessário, para
a manutenção da sociedade, a existência desta affectio societatis
entre seus membros.
Em retrospectiva histórica da sociedade anônima, Tullio Asca-
relli ressaltou que nesta modalidade societária uma das caracterís-
ticas é exatamente aquela que chamou de “indiferença da pessoa
dos sócios à caracterização jurídica da sociedade”. Fundamentado
na responsabilidade limitada do acionista, Ascarelli ressaltou, sob
tal título, a circunstância de, nas sociedades anônimas, a alteração
no quadro original de sócios ser possível, em regra, sem necessida-
de de alteração dos atos constitutivos da sociedade ou mesmo do
consentimento dos demais integrantes do empreendimento.65
As sociedades anônimas – especificamente as abertas - são,
então, vistas como tipos nas quais os atributos específicos de cada
sócio são indiferentes – ou pelo menos secundários, em relação ao
fator financeiro - enquanto nos demais modelos societários tais as-
pectos pessoais dos membros seriam essenciais.66 Sob esta ótica,
os acionistas se agrupam intuitu pecuniae, enquanto os sócios das
demais sociedades se vinculam intuitu personae.
A sociedade é, em regra, uma relação jurídica de trato sucessi-
vo. Embora a legislação brasileira admita formas pontuais de socie-
dade (como a chamada Sociedade de Propósito Específico67), esta
João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. Vol. II. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 1959.
Pg. 19. No mesmo sentido. REQUIÃO. Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. I. 25a edição.
Ed. Saraiva. São Paulo. 2003. Pg. 408.
65 ASCARELLI. Tullio. Problemas das Sociedade Anônimas e Direito Comparado. Ed. Bookseller.
Campinas. São Paulo. 2001. Pg. 480.
66 Neste sentido a muito difundida divisão entre sociedades de pessoas e de capital, conforme
o grau de dependência do sucesso do empreendimento em relação às qualidades morais,
técnicas ou intelectuais de seus sócios. TOMAZETTE. Marlon. Curso de Direito Empresarial. Vol.
I. 2ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2009. Pg. 280.
67 A chamada sociedade de propósito específico (frequentemente identificada pela sigla
SPE) não é um tipo societário próprio. Trata-se de uma pessoa jurídica societária constituída
– sob a forma de algum dos tipos legalmente abarcados - para a realização de apenas um ou
alguns negócios jurídicos específicos, os quais serão identificados em seus atos constitutivos
(art. 981, parágrafo único do Código Civil).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 77


modalidade de negócio jurídico é, ainda, o principal mecanismo de
definição de direitos e deveres entre pessoas que pretendem man-
ter entre si, de forma constante e cronologicamente relevante, uma
relação jurídica destinada à conjugação de esforços e recursos para
o exercício de mesma atividade econômica.
Outra característica importante está na intensidade da relação
entre os sócios. A sociedade é, além de um vínculo cronologica-
mente duradouro, igualmente relevante quando se pondera que ela
estabelece alto grau de interação financeira e patrimonial entre os
seus componentes, os quais conjugam parte de seus bens pessoais
no ato de constituição, partilham seus lucros e permanecem juntos
no que diz respeito ao constante risco de insolvência e aos casos de
responsabilidade ilimitada pelos débitos da pessoa jurídica.
Por outro lado, os atos a serem praticados pela sociedade não
são negociados, mas deliberados pelos sócios, o que significa que a
negociação - ou transação, no sentido econômico do termo - entre
os componentes, marcante no momento da criação da sociedade,
perde espaço, ao longo de sua existência, para a situação de pre-
domínio de uma vontade sobre a outra, baseado na formação de
maiorias e minorias no quadro de sócios68.
A constituição de uma sociedade é marcada pelo acordo de
vontades entre todos os sócios. Majoritários ou minoritários, todos
participam igualmente da elaboração dos atos constitutivos e a ma-
nifestação livre de vontade de cada um deles é igualmente neces-
sária à validade do ato de elaboração do contrato social. Todos con-
cordam em assumir, na sociedade que se cria, os direitos e deveres
daí decorrentes.
Durante a existência da sociedade, entretanto, os atos a serem
por ela praticados são, como salientado, decididos pelos sócios
através de um mecanismo - as deliberações societárias - que in-
centiva o conflito de vontades e não o seu consenso, o seu acordo.
68 “Encontros e desencontros entre maiorias e minorias na sociedade anônima são uma
constante, sendo mesmo um componente da dinâmica deste tipo societário e da predominância
da maioria com o uso dos seus poderes de decisão para impor sua vontade.” SCISINIO. Alaôr
Eduardo. As maiorias acionárias e o abuso do direito. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 1998. Pg. 47.

78 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A desigualdade de ingerência sobre os negócios sociais aca-
ba por colocar os sócios, nas constantes deliberações societárias,
nas posições de vencido e vencedor, tornando aquele original pa-
ralelismo de interesses em situações de contraposição, senão de
interesses - pois pressupõe-se que todos queiram o melhor para
a sociedade - ao menos de vontades, em relação às atividades so-
ciais.
A continuidade temporal da sociedade, a sua significativa in-
tensidade de envolvimento patrimonial entre os sócios e as cons-
tantes deliberações ao longo de sua existência (com a ressaltada
consequência do surgimento dos grupos majoritário e minoritário)
são fatores que contribuem significativamente para corroer a origi-
nal affectio entre os integrantes e convertê-la em clima de animosi-
dade e divergência.
Uma das maiores preocupações do atual direito empresarial –
e, via de consequência, do direito societário – está na preservação
da empresa, enquanto organismo econômico, para consecução de
sua evidente função social.
Não se pode, em virtude disso, admitir que a existência e bom
funcionamento da pessoa jurídica societária e da organização em-
presarial fiquem essencialmente atrelados ao bom relacionamen-
to entre os sócios. O direito societário deve propiciar formas de se
permitir a manutenção da sociedade – e da empresa – mesmo em
situações nas quais os seus sócios não mantenham mais a original
affectio societatis.
É exatamente quando falta a harmonia original entre os só-
cios que o direito societário deve oferecer soluções eficientes que
permitam à sociedade e à empresa permanecerem em funciona-
mento, apesar da divergência entre as partes do contrato social. O
direito societário é, neste sentido, mais útil para tentar regular a falta
de affectio societatis do que o regramento necessário à disciplina
de relações societárias fundadas na harmonia entre as partes. Quão
menor for o grau de affectio societatis, mais necessária uma eficien-
te regulação jurídica.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 79


É por isso que, a título de exemplo, a Lei das S.A (Lei n. 6.404/76)
estrutura-se sobre intrincadas garantias e direitos intangíveis para
os sócios minoritários, como os casos de quóruns qualificados para
determinadas deliberações, representação de minorias societárias
na administração da companhia, restrições ao exercício do poder
de controle e outros.
Dada sua pressuposta rigidez no quadro de sócios - ao con-
trário das anônimas abertas e sua constante alteração de acionistas
– é nas companhias fechadas que, com o decorrer do tempo, mais
provavelmente ocorra o desgaste das relações internas e, por isso,
verifique-se a quebra da harmonia inicial entre os acionistas.
Some-se esta observação à impossibilidade de livre negocia-
ção dos direitos de sócio e se perceberá que as companhias fecha-
das são, como as sociedades limitadas, institutos mais carecedores
de mecanismos societários eficientes na tentativa de manter a pes-
soa jurídica e a empresa mesmo quando ausente a inicial affectio
societatis.

80 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


The Houses of Parliament, de Claude Monet (1900-1905)

A pintura impressionista é marcada pela falta de fronteiras e limites bem definidos


do objeto representado. O objetivo não é retratar a realidade, mas expressar
uma sensação, um sentimento, muitas vezes fugaz, desta mesma realidade.

Não se sabe ao certo onde acaba e onde começa cada aspecto do que é ali mostrado.
Há ciência do que está exibido, mas falta-lhe nitidez. É, metaforicamente, como se
apresenta o elemento affectio societatis das relações societárias. Há, em maior ou
menor grau, a sensação de sua importância e presença, mas torna-se impossível
caracterizar onde ele começa e onde acaba, quando ele é ou não relevante.

É por isso que apoiar o arcabouço regulatório das relações entre sócios sobre
elemento de tal fluidez e, por consequência, subjetividade, mostra-se inadequado
e, mesmo, inexequível.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 81


82 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo III
Estrutura e funcionamento do mercado de valores
mobiliários

1 – Captação de poupança e intermediação financeira

A compreensão da organização e funcionamento dos merca-


dos de valores mobiliários em geral - e do brasileiro em particu-
lar - depende da abordagem de alguns conteúdos essencialmente
econômicos.
Inicialmente, deve-se salientar que os agentes econômicos
(sejam eles pessoas físicas ou jurídicas) subdividem-se, conforme
seu fluxo patrimonial, em superavitários ou deficitários.
Agentes econômicos superavitários são aqueles que se abs-
tém voluntariamente de consumir parte da riqueza por eles produ-
zida. Sua necessidade ou vontade de consumo é, ao menos no mo-
mento presente, inferior à sua geração de riqueza, o que os torna
capazes de poupar - armazenar, guardar - parte de seus ganhos.
O termo poupança refere-se exatamente ao percentual dos
recursos financeiros de um agente econômico que não é por ele
consumido, ou seja: poupança é a riqueza produzida e não consu-
mida – no momento presente - por um determinado agente eco-
nômico.
Essa riqueza produzida e não consumida é, entretanto, alme-
jada pelos agentes econômicos deficitários, caracterizados como
aqueles que têm uma necessidade ou pretensão de utilização de
riqueza maior do que a sua capacidade de gerá-la, ao menos no
momento presente.
Uma sociedade por ações, por exemplo, necessita de captar
parte da poupança acumulada pelos agentes econômicos supera-
vitários para, com ela, promover investimentos (entendidos esses
como a aplicação de recursos financeiros em bens de produção)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 83


que, por sua vez, contribuirão para o aprimoramento de sua ativida-
de econômica e, no futuro, para sua maior geração de riqueza.
O funcionamento eficiente do sistema econômico depende,
portanto, de mecanismos igualmente eficientes em possibilitar a
“canalização” da poupança acumulada pelos agentes superavitá-
rios em direção às pessoas físicas e jurídicas (especialmente as de
natureza empresarial) que dela necessitam para otimizar sua capa-
cidade produtiva.
Um nível adequado de geração de poupança e mecanismos
eficientes de alocação da riqueza poupada viabilizam maior inves-
timento e financiamento das atividades e agentes deficitários, com
o consequente aumento na capacidade deles de futura geração de
mais riqueza.
Chama-se de intermediação financeira a atividade que efe-
tua essa “aproximação” entre agentes econômicos superavitários e
deficitários, com o objetivo de permitir que a riqueza poupada por
aqueles venha a financiar os investimentos pretendidos por esses.
Note-se que a estrutura patrimonial dos intermediários finan-
ceiros tem, em sua essência, particularidade que em muito ajuda
a compreender seu papel básico no funcionamento do mercado69:
estes intermediários captam à vista – momento presente - a pou-
pança dos agentes superavitários, para repassá-las a crédito - ou
seja, com recebimento futuro - aos agentes deficitários. Tornam-se,
assim, devedores à vista, dos depositantes e credores, a prazo, dos
mutuários.
Obviamente, como entidades de finalidade lucrativa, as insti-
tuições dedicadas a intermediação financeira realizam essa capta-
ção e direcionamento de capital com o objetivo de auferir os ganhos
decorrentes da diferença entre os valores pelos quais remuneram

69 A intermediação financeira não tem exclusivamente o papel aqui descrito. Ao contrário, sua
participação no funcionamento das economias de mercado é ampla e fundamental. Sobre
tais diversas funções, confira: GORTON. Gary. WINTON. Andrew. Financial intermediation.
National Bureau of Economic Research, Working paper 8928. 2002. Cambridge http://www.
nber.org/papers.html.

84 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


seus poupadores e aqueles que cobram, pelo uso dos recursos fi-
nanceiros disponibilizados, de seus mutuários.
O agente econômico poupador confia seus recursos finan-
ceiros não consumidos ao intermediário pois recebe, deste último,
juros e correções que servem para ao menos preservar (ou mesmo
aumentar) o poder de compra dos valores poupados.
Já o agente econômico deficitário, ao tomar, como mutuário,
valores em um intermediário financeiro, assume também a obriga-
ção de lhe remunerar, igualmente por meio de juros e outras previ-
sões similares, pelo uso dos recursos.
É certo que os índices pelos quais o intermediário financeiro
remunera seus poupadores é inferior àqueles cobrados dos usuá-
rios do capital. Dá-se o nome de spread à diferença entre estes dois
índices ou taxas de juros, a primeira sendo aquela pela qual o inter-
mediário financeiro remunera seus credores e a segunda a cobrada,
por tal intermediário, de seus mutuários.
A atividade de intermediação financeira é exercida, em essên-
cia, por determinadas organizações empresariais compreendidas
sob o termo instituições financeiras, as quais compõem o cerne do
mercado financeiro aqui descrito.
O art. 17 da Lei n. 4.595/64 buscou definir quais são as ati-
vidades caracterizadoras de uma instituição financeira e que, por
consequência, sujeitam tais agentes às normas regulatórias e en-
tidades fiscalizadoras deste mercado70. Trata-se de uma definição
criticada, principalmente, por sua amplitude71.
Porém, e a partir do art. 17 da Lei n. 4.595/64, depreende-se
que as instituições financeiras - ou bancos – exercem, com habitu-
alidade e profissionalidade, a captação e posterior empréstimo do
70 A ela seguiu-se o art. 1º da Lei n. 7.492/1986, que, ao tratar dos crimes contra o Sistema
Financeiro Nacional define, para os efeitos daquela legislação, as instituições financeiras
com sendo a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade
principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de
recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão,
distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.
71 YAZBEK. Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Ed. Elsevier Campus. Rio
de Janeiro. 2007. Pg. 158.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 85


dinheiro de terceiros, seus correntistas. São elas, como descrito, a
um só tempo devedoras de seus depositantes e credoras de seus
mutuários, sendo essa a essência de sua atividade72.
As instituições financeiras assumem o risco de inadimple-
mento de seus mutuários, não podendo repassá-lo aos seus de-
positantes. Assim, a possibilidade de não recebimento dos valores
emprestados aos mutuários (risco de inadimplemento) é exclusiva-
mente do intermediário financeiro, que, na outra ponta da operação,
é devedor e pessoalmente responsável pelos valores depositados
pelos poupadores.
Dadas essas características, é regra, em qualquer sistema ju-
rídico organizado, que a disciplina legal das atividades das institui-
ções financeiras, em seus vários desdobramentos, seja formada por
normas cogentes e extremamente detalhadas, aliando-se a esse
arcabouço normativo entidades fiscalizadoras capazes de zelar
pelo bom andamento de tão delicado sistema de captação e cana-
lização de poupança73.
Este complexo e rigidamente regulado sistema de alocação
da poupança existente na economia subdivide-se, por sua vez, em
quatro grandes modalidades74.

72 “Em vista disso, deve-se interpretar o artigo 17 da Lei n. 4.595/64, que define as instituições
financeiras em função de suas atividades privativas, como exigindo, cumulativamente, (i) a
captação e recursos de terceiros em nome próprio, (ii) seguida de repasse financeiro através
da operação de mútuo, (iii) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos
recursos repassados em relação à dos recursos coletados, (iv) desde que a captação seja
seguida de repasse em caráter habitual. SALOMÃO NETO. Eduardo. Direito Bancário. Ed. Atlas.
São Paulo. 2007. Pg. 27
73 Os mercados financeiros e de valores mobiliários são também caracterizados por forte
grau de interdependência entre seus agentes, o que leva ao chamado risco sistêmico, outro
fator de justificação da detalhada regulação e fiscalização aqui referidas. “O risco sistêmico
aproxima-se da ideia de um efeito prejudicial de descrédito e desconfiança no mercado
financeiro, decorrente, com frequência, de um abalo econômico de uma de suas instituições,
que se alastra atingindo os demais agentes solventes, do mercado, sem relação direta com
as ações da instituição que gerou o efeito prejudicial. É um efeito negativo (externalidade), o
mais devastador do mercado bancário, que se origina no próprio setor”. (SILVA. Leandro Novais
e. Direito bancário – regulação e concorrência. Ed. Mandamentos. Belo Horizonte. 2005. Pg.
60/61).
74 EIZIRIK. Nelson. GAAL. Ariádna B. PARENTE. Flávia. HENRIQUES. Marcus de Freitas.
Mercado de Capitais – Regime jurídico. 2ª edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2008. Pg. 7/8.

86 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A primeira delas é o chamado mercado de crédito que, a rigor,
consiste na atividade supra descrita, caracterizada pela operação
bancária típica de captação e repasse de recursos de terceiros para
financiamento do consumo e investimento.
O mercado de câmbio, a seu turno, compreende a operação
de compra e venda de moeda estrangeira. Trata-se de contrato que
tem por objeto a troca entre diferentes espécies de moeda, sendo
que tal operação só pode se realizar através de instituição financeira
ou outra a ela legalmente equiparada, ao menos para tal finalidade.
Há também o denominado mercado monetário, cujo objeto é,
dentre outros, títulos de curto prazo de vencimento emitidos pelo
Poder Público. Neste caso o agente mutuário, captador da poupan-
ça disponível, é o Estado, que o faz com o objetivo de cumprir polí-
ticas econômicas governamentais.
A quarta grande vertente ou modalidade de captação da pou-
pança disponível é aquela que mais diretamente se liga às socieda-
des anônimas. Trata-se do mercado de valores mobiliários, o qual
negocia títulos que conferem a seus adquirentes direitos em rela-
ção às sociedades por ações deles emissoras.
O captador e usuário da poupança disponível é, nesse caso,
diretamente o agente econômico que dela necessita para investir
em sua atividade produtiva, enquanto o poupador/investidor ad-
quire direitos em relação a essa companhia emissora.

2 - O Mercado de Valores Mobiliários

Se o termo mercado pode ser definido como o conjunto de


transações envolvendo a compra e venda de um determinado bem
ou serviço, a expressão mercado de valores mobiliários correspon-
de, com igual correção, à totalidade das operações de compra e
venda que tenham com objeto um ou mais “valores mobiliários”.
Este bem ou produto se presta a captar recursos financeiros
armazenados na economia e direcioná-los ao financiamento de
companhias. Viabiliza o uso da poupança acumulada no mercado

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 87


para o investimento na atividade empresarial, sem passar pelos in-
termediários financeiros e, por consequência, pela necessidade de
pagamento de juros e outras formas de remuneração pelo uso do
dinheiro de terceiros.
O economista Americano Irving Fisher propôs, em sua famosa
tese de doutorado, a metáfora que comparou o funcionamento do
75
mercado aos vasos comunicantes de uma máquina hidráulica .
Tal metáfora serve para explicar também – e especialmente –
a essência do funcionamento do mercado de valores mobiliários, na
medida em que revela o alto grau de interdependência entre seus
diferentes agentes e, ao mesmo tempo, deixa clara a função deste
mercado de canalizar a poupança popular para o interior do capital
das sociedades por ações.
Pode-se, por outro lado, apontar algumas características ca-
pazes de individualizar o mercado de valores mobiliários em rela-
ção às demais vertentes ou modalidades de captação da poupança
disponível na economia.
A primeira destas características está na chamada não exigi-
bilidade, uma vez que, em princípio, a companhia captadora dos
recursos não garante ao investidor ou adquirente dos valores mobi-
liários a restituição integral do capital aplicado.
Trata-se, por isso, de um mercado de risco76, o que é reforça-
do pelo fato de os ganhos do investidor ou adquirente dos valores
75 “A preocupação de Fisher, neste trabalho, foi o de investigar o elevado grau de interdependência
e de cooperação mantidos entre os agentes econômicos – famílias, empresas e governo – e
também o considerável número de canais através dos quais determinada causa produzia, pela
interação entre estes agentes e as variáveis econômicas, seu efeito final. Assim, com o objetivo
de verificar como o mercado “calculava” os preços que equacionavam a oferta e a demanda,
Fisher construiu um modelo na forma de uma “máquina hidráulica”, onde todas as coisas
estão interligadas e pôde, com isso, demonstrar como uma causa – um choque, por exemplo,
na oferta e procura de um determinado mercado – afetava os demais preços e quantidades
produzidas em dez mercados inter-relacionados e como este processo se irradiava para os
demais, alterando preços e quantidades em toda a economia e modificando rendas, utilidades
e escolhas de produtos pelos consumidores.” (OLIVEIRA. Fabrício Augusto de. Irving Fisher: do
equilíbrio neoclássico à crise do subprime. Revista de História Econômica & Economia Regional
Aplicada. Vol. 8. Nº 15. Jul-Dez 2013. Pg. 54).
76 A relação risco/retorno é, pode-se afirmar, a “pedra de toque” das decisões sobre aplicações
financeiras. A ideia fundamental corresponde à constatação de que a possibilidade de ganho
financeiro é diretamente proporcional ao risco de perda do capital investido.

88 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mobiliários estarem, em regra, vinculados proporcionalmente aos
lucros das companhias emissoras.
O mercado de valores mobiliários caracteriza-se ainda por co-
locar diretamente como partes na operação o poupador/investidor
e o agente que precisa da poupança para investir em suas ativida-
des (a companhia emissora).
Não há, como no mercado de crédito, a estrutura triangular
que envolve, além dos dois agentes citados, a participação do in-
termediário financeiro, que, como visto, se coloca, a um só tempo,
como devedor do poupador e credor do mutuário77.
O mercado de valores mobiliários subdivide-se em dois seg-
mentos distintos, mas complementares. São eles os chamados
Mercado Primário e Mercado Secundário.
Entende-se por Mercado Primário aquelas operações que
têm por objeto valores mobiliários negociados pela primeira vez.
São títulos que, até aquele momento, não haviam sido vendidos a
investidores/poupadores, em regra porque acabaram de ser emiti-
dos pelas companhias.
Assim, as operações em Mercado Primário em geral colocam,
como vendedoras, as próprias companhias emissoras dos títulos e,
do outro lado da operação, o primeiro adquirente de tais valores
mobiliários.
O valor pago pelo adquirente na compra de um valor mobi-
liário em Mercado Primário vai diretamente compor o capital – ou,
dependendo de sua espécie, o patrimônio – da companhia emisso-
ra. É, portanto, em Mercado Primário que as sociedades anônimas
conseguem captar a poupança em circulação na economia.

Sobre a essencial relação entre decisões – particularmente as de natureza financeira – e risco


vale consultar o trabalho de Peter Bernstein: BERNSTEIN. Peter L. Desafio aos Deuses – a
fascinante história do risco. Rio de Janeiro. Ed. Alta Books 2018.
77 Os agentes intermediários da negociação de valores mobiliários existem, mas, como
se demonstrará abaixo, em regra não atuam em nome próprio, como compradores ou
vendedores de títulos neste mercado. Ao contrário, agem eles em nome das respectivas
partes, que são, de um lado, o investidor em valores mobiliários e, de outro, a companhia
emissora.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 89


O Mercado Secundário, por sua vez, refere-se às posteriores
negociações envolvendo um valor mobiliário já adquirido em Mer-
cado Primário. Assim, consiste nas subsequentes revendas daquele
título emitido pela companhia.
Tanto o comprador quanto o vendedor de um valor mobiliário
em Mercado Secundário são, em regra, investidores, o primeiro de-
les interessado em revender o título antes adquirido em Mercado
Primário e o segundo objetivando comprá-lo.
Um valor mobiliário é negociado uma única vez em Mercado
Primário, mas pode ser negociado, em tese, infinitas vezes em Mer-
cado Secundário.
Ambos os mercados são, como salientado, fundamentais para
a eficiência dos negócios envolvendo valores mobiliários.
A principal função do Mercado Primário é, repete-se, canalizar
a poupança disponível na economia em direção ao patrimônio das
companhias emissoras.
Já o Mercado Secundário tem como primordial função a de
assegurar uma renegociação rápida e em termos adequados para
os títulos adquiridos em Mercado Primário, de forma a garantir aos
seus titulares a liquidez – rápido e equitativo retorno – dos valores
investidos78.
O mercado de compra e venda de valores mobiliários – es-
pecialmente aqueles emitidos por sociedades anônimas – tem na
Bolsa de Valores sua principal referência de operação, tanto se trate
de Mercado Primário quanto de Secundário.

78 A busca por assegurar liquidez e preço equitativo para os valores mobiliários negociados
em mercado secundário é, como dito, uma preocupação central tanto do mercado quanto
das normas que o disciplinam. É neste sentido que são desenvolvidas alternativas como o
Market Maker, cuja previsão se encontra na Resolução n. 133/22, da Comissão de Valores
Mobiliários. Este “fazedor de mercado” – em tradução literal – é uma pessoa jurídica que,
cadastrada na bolsa de valores, atua na compra e venda das ações de uma dada companhia,
de modo a evitar que elas fiquem, pela falta de compradores, desinteressantes para os
investidores. Verificada a pouca procura por ações desta companhia, o Market Maker entra no
mercado para comprá-las apenas para, ao menos temporariamente, criar demanda em torno
de tais valores mobiliários.

90 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


3 – A Bolsa de Valores e suas atribuições no mercado de
valores mobiliários

O termo Bolsa de Valores tem diferentes significados, que vão


desde o local aonde se encontram representantes de compradores
e vendedores de valores mobiliários, passam pela instituição (pes-
soa jurídica) que administra aquele local e os sistemas de opera-
ções ali realizados e alcançam o próprio mecanismo de negociação
utilizado.79 Destes, o mais importante é o segundo, pois dele decor-
rem, de certa forma, os outros dois.
Assim, pode-se conceber a Bolsa de Valores como uma ins-
tituição personificada criada para permitir o contato entre repre-
sentantes de pessoas interessadas em comprar ou vender ações
e outros títulos ali admitidos, bem como para estipular as regras e
padrões desta negociação.
Atualmente, a única Bolsa de Valores em funcionamento no
Brasil é a B3 (sigla que se refere aos termos BRASIL, BOLSA, BAL-
CÃO), criada em 2017 pela união entre a BM&F BOVESPA e a CETIP
S. A Mercados Organizados80.

79 YAZBEK. Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Ed. Elsevier Campus. Rio
de Janeiro. 2007. Pg. 137.
80 Até o ano de 2017 havia, como instituições separadas, a BM&F BOVESPA – que já era
resultado da união entre a BM&F (Bolsa de Mercadorias e Futuros) e a BOVESPA (Bolsa de
Valores do Estado de São Paulo) – e a CETIP S.A Mercados Organizados, que desempenhava
a função de intermediário em negociações de títulos e valores mobiliários realizadas fora da
Bolsa de Valores, o chamado Mercado de Balcão.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 91


A Bolsa de Valores desempenha inúmeras funções destina-
das, em essência, a tornar eficiente o mercado de compra e ven-
da de valores mobiliários. Neste sentido, ela funciona tanto como
elemento redutor dos custos destas transações (ao, por exemplo,
facilitar o contato entre compradores e vendedores e padronizar os
termos da negociação) quanto como fator de redução do risco de
inadimplemento das obrigações assumidas (por meio de sistema
próprio de liquidação) e, ainda, como regulador das eventuais diver-
gências entre os participantes (através de regulamentos próprios e
mecanismos internos de solução de conflitos).
Na Bolsa de Valores a negociação não é feita diretamente en-
tre o interessado em comprar valores mobiliários e aquele que de-
seja vender tais títulos. Ao contrário, cada um deles precisa, antes,
de procurar uma sociedade corretora de valores mobiliários autori-
zada a negociar na Bolsa,81 para que ela funcione como mandatária
e, ao mesmo tempo, garantidora de cada uma das partes envolvi-
das na operação de compra e venda.
O direito de negociar valores mobiliários é, na Bolsa de Valo-
res, restrito a estes membros regularmente habilitados, que são as
sociedades corretoras. Esta restrição tem a dupla função de garantir
o cumprimento das obrigações assumidas (a solvência das partes)
e tornar mais ágil a negociação.
As sociedades corretoras atuam, em essência, como manda-
tárias, cumprindo (ou executando) as ordens de compra e venda de
valores mobiliários emitidas por seus clientes. Em regra, a corretora
não compra ou vende em nome próprio – e sim em nome de seu
cliente - mas garante o adimplemento das ordens de compra ou
venda que efetua, reduzindo a praticamente zero o risco de não
pagamento.
Os clientes (compradores ou vendedores de valores mobiliá-
rios) somente podem emitir ordens até o limite de crédito que dis-
81 Segundo o art. 16 da Lei n. 6.385/76: depende de prévia autorização da Comissão de Valores
Mobiliários o exercício das seguintes atividades: I - distribuição de emissão no mercado (Art. 15,
I); II - compra de valores mobiliários para revendê-los por conta própria (Art. 15, II); III - mediação
ou corretagem na bolsa de valores.

92 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


ponham na sociedade corretora por meio da qual atuam, não se
admitindo as chamadas “ordens a descoberto”, que são aquelas nas
quais o comprador não tem o dinheiro para pagar o que está com-
prando ou o vendedor não tem os títulos que prometeu entregar.
A existência da Bolsa de Valores, aliada à intermediação obri-
gatória das sociedades corretoras, garante também, nas operações
ali efetuadas, alto grau de padronização das regras de negociação82,
o que confere enorme agilidade ao mercado. Esta padronização en-
globa desde questões jurídicas (como prazos, regras de pagamento
e garantias) até aspectos como horários de funcionamento e siste-
mas de atendimento.
Muito da credibilidade das operações realizadas em Bolsa de
Valores deriva, como salientado, de um sistema que garanta o efe-
tivo cumprimento das ordens de compra ou venda dadas, através
das sociedades corretoras, pelos investidores. O objetivo aqui é, no-
vamente se diga, reduzir o risco de descumprimento das obriga-
ções assumidas no mercado.
Assim, além da já ressaltada limitação de participação às so-
ciedades corretoras autorizadas, é regra a existência, nas Bolsas
de Valores, de um segmento próprio responsável por impedir que
alguém venda o que não tem ou compre sem ter o dinheiro para
pagar.
Trata-se da Câmara de Compensação e Liquidação, que,
como o próprio nome indica, zela tanto pelo integral e rápido paga-
mento do preço quanto pela efetiva entrega dos valores mobiliários
negociados.

82 A Bolsa de Valores é uma entidade autorreguladora. Isto significa que ela pode, respeitados
os limites legais, criar as regras aplicáveis às operações ali realizadas, de forma a padronizar
e agilizar os negócios além de, concomitantemente, oferecer segurança e previsibilidade aos
investidores.
“A atuação da B3 e de todos os seus clientes está amparada em um conjunto de regras
e procedimentos, organizados e descritos na Estrutura Normativa da companhia. Nessa
estrutura não só estão definidos os direitos e deveres de todos os Participantes, mas também
estão estabelecidos os procedimentos que devem ser seguidos no âmbito das diferentes
atividades desempenhadas pela B3 em suas diversas linhas de negócio”. Disponível em:
https://www.b3.com.br/pt_br/regulacao/estrutura-normativa/sobre-a-estrutura/.Consulta
em 25 de Janeiro de 2022.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 93


Na Bolsa de Valores brasileira há ainda a Câmara de Arbitra-
gem do Mercado (CAM)83, criada para ser um mecanismo eficiente
de solução das eventuais controvérsias, o que se constitui em outro
importante aspecto no qual a Bolsa de Valores contribui para o bom
funcionamento do mercado de valores mobiliários.
Dá-se o nome de Pregão ao momento do dia em que a Bolsa
de Valores se abre para que corretores de compradores e vende-
dores de valores mobiliários possam negociar entre si e executar as
inúmeras ordens de compra e venda dadas pelos seus clientes84.
O processo de compra e venda de valores mobiliários na Bolsa
de Valores brasileira é completamente informatizado. O chamado
pregão eletrônico é feito através da Plataforma Eletrônica de Nego-
ciação da Bolsa, sistema que permite a compra e venda automática
de ações e outros valores mobiliários85.
As operações em Bolsa de Valores são comumente divididas
em dois tipos, respectivamente conhecidos como Mercado à Vista
e Mercado a Termo.
No Mercado à Vista o pagamento, em moeda corrente, dos
valores mobiliários comprados em pregão – liquidação financeira
da operação - deve ser efetuado em, no máximo, três dias úteis
após o negócio, enquanto a entrega dos títulos vendidos – liquida-
ção física da operação - precisa se realizar em até dois dias úteis
após feita a venda.

83 A Câmara de Arbitragem do Mercado oferece um foro especializado para a solução de


questões relativas ao direito empresarial, sobretudo relacionadas ao mercado de capitais
e o direito societário. A CAM atua na administração de procedimentos arbitrais originários
de conflitos surgidos no âmbito das companhias comprometidas com a adoção de práticas
diferenciadas de governança corporativa e transparência, cujas ações são listadas na B3,
e também em outros litígios entre pessoas físicas e jurídicas, desde que sejam referentes
a direito empresarial. Disponível em:http://www.b3.com.br/pt_br/b3/qualificacao-e-
governanca/camara-de-arbitragem-do-mercado-cam/
84 A B3 emprega atualmente o PUMA Trading System, chamado também de Plataforma
PUMA (Plataforma Unificada de Multiativos), desenvolvida a partir do modelo da Bolsa de
Chicago.
85 A B3 oferece ainda, através das diversas corretoras que ali atuam, o sistema de Home
Broker, no qual os investidores podem, nos sites e aplicativos de suas respectivas corretoras,
emitir, pela internet, ordens de compra e venda de valores mobiliários.

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Em virtude destes prazos curtos de liquidação, o Mercado à
Vista permite menor especulação com a variação no preço de cota-
ção dos valores mobiliários negociados.
Já no Mercado a Termo, o investidor se compromete a com-
prar ou vender, em estipulada data futura, determinada quantidade
de ações – ação objeto – por um preço fixado em momento pre-
sente.
Assim, pode-se especular com a eventual variação no preço
da ação objeto, pois comprador e vendedor ajustaram comprá-la
ou vende-la, na data futura, pelo preço entre eles estabelecido no
momento do fechamento da negociação.
Fundamental segmentação entre os valores mobiliários nego-
ciados pela Bolsa de Valores brasileira é o denominado Novo Mer-
cado, que entrou em funcionamento no ano de 2002. Em síntese,
este segmento é composto pelas ações e demais valores mobi-
liários emitidos por companhias listadas na B3 e que, além disso,
apresentam, em sua estrutura, padrões de transparência e gover-
nança corporativa superiores aos legalmente fixados86.
Por seu alto grau de transparência e regras de governança in-
terna, as companhias que compõem este Novo Mercado são, ao
menos em tese, mais atrativas para os investidores e conseguem,
deste modo, circular com maior eficiência os valores mobiliários por
elas emitidos.
As regras para participar do Novo Mercado são fixadas pela
própria Bolsa de Valores e dividem as companhias participantes em
vários diferentes níveis, conforme se tornam mais rígidas as exigên-
cias regulamentares.87
A função básica deste segmento da Bolsa de Valores é criar
incentivos para que os sócios majoritários das companhias nele
86 Quando uma companhia é autorizada a emitir valores mobiliários para serem negociados
na Bolsa de Valores, diz-se que ela se encontra “listada”. No mercado de valores mobiliários
brasileiro o número de sociedades listadas ainda é relativamente pequeno, não passando
das centenas, enquanto outros países já contam com milhares de companhias negociando
suas ações desta forma.
87 Sobre estas regras e segmentos, confira: http://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-servicos/
solucoes-para-emissores/segmentos-de-listagem/sobre-segmentos-de-listagem/.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 95


listadas promovam maior grau de transparência nas atividades da
sociedade, além de melhor regularem sua relação tanto com os só-
cios minoritários quanto com terceiros – como empregados e cre-
dores, por exemplo - que de alguma forma estejam vinculados à
companhia.
Ao abdicarem, em virtude do cumprimento das regras estipu-
ladas pela Bolsa de Valores, de parte de seu poder sobre as ativi-
dades da sociedade, os sócios majoritários têm, em contrapartida, a
companhia por eles controlada listada entre aquelas que integram
o Novo Mercado.
Ao serem incluídas neste especial segmento da Bolsa de Va-
lores, as ações de uma companhia demonstram, grosso modo, ter
maior quantidade e qualidade de direitos para seus titulares, o que
as torna mais atrativas e, via de consequência, mais valorizadas pe-
los compradores.
Cria-se então, por meio deste segmento da Bolsa de Valores,
um sistema de custos e benefícios que, para os majoritários, signifi-
ca, em síntese, trocar poder por dinheiro. Eles abdicam de parte de
sua ingerência sobre os negócios da companhia em troca de maior
valorização e procura pelas ações por ela emitidas.
Ao se submeterem às regras mais rígidas de transparência e
divisão interna de poder, as companhias participantes do Novo Mer-
cado geram, além de maior procura pelos valores mobiliários por
elas emitidos, também uma série de externalidades positivas.
Em primeiro lugar, o compartilhamento de poder na compa-
nhia favorece a participação e maior atenção aos interesses de só-
cios minoritários e de outros grupos ligados à atividade empresarial,
como credores e empregados. Isso torna a gestão da companhia
menos voltadas para os objetivos exclusivos dos majoritários e a
orienta para além desses, no sentido de também atender outros
grupos de interesses existentes em torno da atividade empresarial.
Em segundo lugar, os títulos negociados no Novo Mercado
tornam-se alternativa de maior credibilidade para investidores em

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geral, posto que passam a trazer em si embutidos, como já dito,
maior qualidade e quantidade de direitos.
Este aumento na atratividade dos valores mobiliários como
opção de investimento é, por sua vez, fator que contribui para a en-
trada de maior quantidade de capital na Bolsa de Valores e, em con-
sequência, para maior financiamento das atividades empresariais.
Em terceiro lugar, a transparência exigida das sociedades par-
ticipantes do Novo Mercado aumenta o grau de informação dispo-
nível aos investidores em geral, o que lhes permite formar de ma-
neira mais fundamentada sua decisão de comprar ou não um valor
mobiliário. Evita-se, assim, que o preço de negociação das ações
seja, no mercado, formado com base em meras suposições ou, pior,
especulações. 88
Além do Novo Mercado, funciona atualmente na Bolsa de Va-
lores brasileira outro segmento específico, o BOVESPA MAIS. Ele foi
criado para ser, grosso modo, a “porta de entrada” no mercado de
valores mobiliários.
Trata-se, em síntese, de um grupo de companhias que ainda
não estão definitivamente consolidadas para colocar, com sucesso,
suas ações à negociação em bolsa, mas que têm a intenção de fa-
zê-lo, no futuro.
Tais companhias passam, então, por este segmento, que tem
exigências de participação menos rigorosas do que aquelas fixadas
para as sociedades listadas em geral. Desta forma, as companhias
que figuram no segmento BOVESPA MAIS conseguem gradativa-
mente se estruturar para emitirem suas ações em bolsa e, ao mes-
mo tempo, começam a gerar interesse nos investidores.

88 Os principais benefícios do Novo Mercado sob as diversas óticas são: a) para os investidores:
maior transparência nos processos, mais respeito com seus direitos societários, redução de
risco. b) para as empresas: melhoria na imagem institucional, valorização das ações, menor
custo de capital. c) para o mercado acionário: aumento da liquidez, aumento das emissões.
d) para o Brasil: empresas mais fortes e competitivas, fortalecimento do mercado de capitais.
PINHEIRO. Juliano Lima. Mercado de Capitais: fundamentos e técnicas. 7ª edição. Ed. Atlas. São
Paulo. 2014. Pg. 198.

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4 – O mercado de balcão: caracterização e modalidades

A Bolsa de Valores é uma instituição que foi essencialmente


criada para aproximar e tornar mais eficientes as negociações entre
compradores e vendedores de valores mobiliários. É natural, por-
tanto, que as operações com estes títulos se concentrem nela, o
que, entretanto, não impede que estes negócios também sejam
efetuados sem a sua participação.
Dá-se o nome de mercado de balcão àquelas operações de
compra e venda de ações e outros valores mobiliários realizadas
fora das regras e do ambiente da bolsa de valores. Pode-se mesmo
afirmar que toda compra e venda de valores mobiliários no país se
efetua em Bolsa de Valores ou então se considera realizada, por
exclusão, no chamado mercado de balcão89.
O mercado de balcão está dividido, com base no art. 3º da Lei
n. 6.385/76, em “organizado” e “não organizado”, sendo ambos su-
jeitos, como os devidos ajustes e especificidades, aos regulamen-
tos e fiscalização do mercado de valores mobiliários pois, da mes-
ma forma que as operações em bolsa de valores, realizam captação
da poupança disponível na economia.
Mercado de balcão organizado se refere às operações com
valores mobiliários realizadas fora do ambiente e das regras da bol-
sa de valores, mas intermediadas por outra entidade igualmente
autorizada a promover esta aproximação entre compradores e ven-
dedores destes títulos.
Esta entidade autorizada a figurar como intermediária na ope-
ração faz, de forma similar à bolsa, o papel de agrupar comprado-
res e vendedores de valores mobiliários, ao mesmo tempo que fixa
os padrões de negociação entre eles. É, desta forma – e em outro

89 A Comissão de Valores Mobiliários disciplina o funcionamento dos chamados mercados


regulamentados de valores mobiliários, expressão que engloba os negócios com estes
títulos realizados em bolsa de valores ou no mercado de balcão.

98 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


ponto de semelhança com a bolsa de valores – uma entidade au-
torreguladora.90
Por contar com a necessária intermediação de entidade au-
torreguladora e padrões elevados de negociação e fiscalização, as
operações em mercado de balcão organizado têm se aproximado
cada vez mais, em sua estrutura, daquelas efetuadas na Bolsa de
Valores, o que torna menos nítidas as diferenças entre estes dois
aspectos do mercado.91
Pode-se mesmo dizer que, em essência, a diferença relevante
entre as operações realizadas em Bolsa de Valores e aquelas efe-
tuadas no denominado mercado de balcão organizado está apenas
no fato de contarem com entidades intermediárias diferentes.
A falta de efetiva diferença entre mercado de balcão organi-
zado e as operações em Bolsa de Valores tornou-se ainda mais evi-
dente no Brasil, aonde as duas principais instituições que desempe-
nhavam o papel de intermediárias do mercado de balcão organiza-
do acabaram por gradativamente integrarem-se à Bolsa de Valores
nacional.
Uma destas entidades era a CETIP S.A – Mercados Organiza-
dos, sociedade privada criada em 1986 e que, desde 2017, compõe
a estrutura da B3. Ela tinha autorização para intermediar a negocia-
ção de uma ampla gama de títulos, que iam desde derivativos e
outros valores mobiliários até instrumentos de financiamento ban-
cário, como títulos de crédito ou de renda fixa.
Outra entidade autorizada a funcionar como intermediária no
mercado de balcão organizado era a SOMA – Sociedade Operadora
do Mercado de Ativos, que desde 2003 está integrada à BM&F BO-

90 “As entidades de balcão organizado possuem, basicamente, as mesmas funções e


objetivos das bolsas de valores, isto é, a manutenção de um sistema adequado à realização
de operações de compra e venda de títulos e valores mobiliários e a preservação, por meio
de normas de comportamento aplicáveis aos intermediários, participantes e companhias, de
elevados padrões éticos de negociação.” EIZIRIK. Nelson. GAAL. Ariádna B. PARENTE. Flávia.
HENRIQUES. Marcus de Freitas. Mercado de Capitais – Regime jurídico. 2ª edição. Ed. Renovar.
Rio de Janeiro. 2008. Pg. 238.
91 YAZBEK. Otávio. Regulação do Mercado Financeiro e de Capitais. Ed. Elsevier Campus. Rio
de Janeiro. 2007. Pg. 138/139.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 99


VESPA. Ela operava com títulos de renda fixa e outros não negocia-
dos nos demais segmentos da bolsa.
Por fim, vale salientar que a caracterização das operações em
mercado de balcão não organizado é, por sua vez, residual, pois
abarca qualquer compra e venda de valores mobiliários realizada
fora do ambiente e das regras da Bolsa de Valores ou das entidades
autorizadas a funcionar como intermediárias no mercado de balcão
organizado.
A venda, neste caso, é realizada diretamente através de enti-
dades distribuidoras de valores mobiliários no mercado. Elas estão
enumeradas no art. 15 da Lei n. 6.385/76 e são instituições finan-
ceiras, sociedades ou autônomos que, por conta própria ou como
agentes da companhia emissora, colocam valores mobiliários à
venda, sem usar o ambiente da bolsa de valores ou do mercado de
balcão organizado.

5 – A Comissão de Valores Mobiliários

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) foi criada e estrutu-


rada pela Lei n. 6.385/7692 que, em seu artigo 5º, a caracteriza como
uma “entidade autárquica em regime especial, vinculada ao Ministé-
rio da Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, do-
tada de autoridade administrativa independente, ausência de subor-

92 Além de instituir a Comissão de Valores Mobiliários, a Lei n. 6.385/76 traça as diretrizes


fundamentais do funcionamento deste mercado e dos seus participantes.

100 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e
autonomia financeira e orçamentária”.
É uma instituição inspirada nos moldes da Securities and Ex-
change Comission (SEC), que desempenha papel análogo no mer-
cado de valores mobiliários norte-americano.
Tanto a CVM quanto seu modelo, a SEC, advêm da necessi-
dade de presença do Poder Público na intensa e constante fiscali-
zação e disciplina de tão delicado, interdependente e importante
mercado.
Vale notar também que ambas foram criadas como respostas
a momentos de crise de credibilidade no mercado de valores mo-
biliários, decorrentes de especulação excessiva combinada a regu-
lação precária93.
A SEC foi instituída em 1934, por meio do Securities and Ex-
change Act, como resposta à quebra da bolsa de Nova York, em
192994. A CVM, por sua vez, veio em razão da necessidade de melhor
regramento e fiscalização do mercado acionário brasileiro, comba-
lido que estava em virtude de uma série de condutas especulativas
e fraudulentas praticadas no início da década de 1970, conhecidas
com encilhamento95.
A Lei n. 6.385/76 (especialmente os seus artigos. 8º e 18) con-
fere à Comissão de Valores Mobiliários extensa, complexa e variada
gama de atribuições. Seus poderes vão desde o de regulamentar,
através de atos normativos, o funcionamento do mercado de valo-
res mobiliários, passam por aplicar, nos casos concretos, as condi-

93 A regulação eficiente ou ineficiente do mercado de valores mobiliários não é


necessariamente decorrente de maior ou menor quantidade ou detalhamento de dispositivos
e instrumentos regulatórios. Ao contrário, há que se encontrar um ponto de equilíbrio que
garanta a credibilidade do mercado sem, por outro lado, comprometer sua agilidade e
liquidez. Sobre o tema, confira: BERLE. Adolf. A. COFFEE JR. John. Law and the Market: The
impact of Enforcement. The Social Science Research Network Electronic Paper Collection.
Working Paper n. 304. 2007. http://papers.ssrn.com/paper.taf?abstract_id=967482.
94 http://www.sec.gov/about/whatwedo.shtml#.VQDJB5U5DtQ. Site consultado em
23/03/2020.
95 “O encilhamento de 1971 afugentou do mercado os milhões de brasileiros que sofreram
os prejuízos de um clima de especulação irresponsável”. PEDREIRA. José Luiz Bulhões. A
Reforma da Lei das S.A. Jornal do Brasil. 24 de Agosto de 1975.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 101


ções para participar deste mercado e vão até o de fiscalizar a lega-
lidade das condutas ali praticadas.
Por fim, tem ainda a autarquia o poder de punir, em âmbito ad-
ministrativo, as eventuais infrações cometidas e de colaborar com
os possíveis processos judiciais decorrentes destas condutas ilíci-
tas.
Já no que se refere às pessoas, operações e valores mobiliá-
rios sujeitos à atuação da CVM, coube ao art. 1º da Lei n. 6.385/1976
(alterado pela Lei n. 10.303/2001) a fixação de tais destinatários, de
forma a abarcar a totalidade dos agentes e operações orientadas
para a negociação pública no mercado de valores mobiliários bra-
sileiro.96
A função regulamentadora da CVM está expressa em diferen-
tes artigos da Lei n. 6.385/76 (como, por exemplo, os artigos 8º, I, 18,
I e o 22, par. 1º). A partir deles é possível afirmar que embora não seja
integrante do Poder Legislativo a autarquia tem, por tal atribuição
legal, o poder de editar atos normativos destinados a disciplinar o
funcionamento do mercado de valores mobiliários.
Assim, a primeira função que se destaca é a de estabelecer,
em abstrato e antecipadamente, os padrões de legalidade, eficiên-
cia e equidade de condutas e operações no mercado de valores
mobiliários.
Esta competência regulamentar é efetiva e massivamente
exercida pela autarquia, que já editou centenas de Instruções Nor-
mativas, Resoluções e outros atos com poder vinculante de todos
aqueles que operam no mercado de valores mobiliários.
Este poder regulamentar – que, no âmbito do mercado finan-
ceiro, cumpre ao Banco Central do Brasil97 – mostra-se eficiente
96 Art. 1o Serão disciplinadas e fiscalizadas de acordo com esta Lei as seguintes atividades: I – a
emissão e distribuição de valores mobiliários no mercado; II – a negociação e intermediação no
mercado de valores mobiliários; III – a negociação e intermediação no mercado de derivativos;
IV – a organização, o funcionamento e as operações das Bolsas de Valores; V – a organização,
o funcionamento e as operações das Bolsas de Mercadorias e Futuros; VI – a administração de
carteiras e a custódia de valores mobiliários; VII – a auditoria de companhias abertas; VIII – os
serviços de consultor e analista de valores mobiliários.
97 A regulação do sistema financeiro brasileiro está estruturada, pelas Leis n. 4.595/64,

102 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


pois, em primeiro lugar, responde com a agilidade necessária às
demandas por regulação em um mercado sujeito a constantes e
significativas alterações.
Em segundo lugar – e dadas a especialização da autarquia e
a complexidade das operações sob sua competência - verifica-se
que as normas editadas pela CVM têm, em regra, profundo grau de
apuro e sofisticação técnicas, justificando, uma vez mais, a função
ora comentada98.
À CVM compete também, em função dita consultiva (art. 13
da Lei n. 6.385/76), orientar as condutas no mercado para, a um
só tempo, zelar pela eficiência e legalidade de seu funcionamen-
to sem limitar excessivamente o movimento financeiro e a atuação
dos agentes.
Além de estabelecer padrões abstratos de legalidade, eficiên-
cia e equidade, a CVM é também responsável por autorizar ou não a
entrada dos agentes e dos títulos que são negociados no mercado
de valores mobiliários. Isto se implementa por meio da função de
autorização e registro a ela conferida, por exemplo, nos artigos 16,
19 e 21 da Lei n. 6.385/76.
A CVM tem, nesta função de registro, o poder de admitir ou
não, segundo as regras vigentes, a entrada dos agentes e valores
mobiliários no mercado, zelando para que os requisitos legais ati-
nentes a credibilidade destas pessoas e títulos seja aplicada, nos
casos concretos.
Por outro lado, a exigência de prévio registro de companhias e
valores mobiliários na CVM dá a ela um grau elevado de informação

4.7.28/65 e 6.385/76, a partir de três instituições fundamentais: uma delas é o Conselho


Monetário Nacional, que supervisiona e orienta os outros dois agentes, fiscalizadores e
regulamentadores por excelência, que são o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores
Mobiliários. O primeiro tem competência sobre o mercado financeiro, enquanto a segunda
está voltada para o mercado de valores mobiliários. TRINDADE. Marcelo Fernandez. O papel
da CVM e o Mercado de Capitais. (in). SADDI. Jairo (org.). Fusões e aquisições: aspectos jurídicos
e econômicos. Ed. IOB. São Paulo. 2002. Pg. 304 e segs.
98 A atuação regulamentar da CVM torna, portanto, a regulação do mercado de valores
mobiliários mais eficiente por duas principais razões: agilidade e especialidade na matéria
disciplinada.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 103


sobre o que e quem circula no mercado de valores mobiliários bra-
sileiro, algo que em muito facilita sua terceira grande função.
A CVM tem nítida e fundamental função fiscalizadora, o que
significa que ela deve acompanhar as condutas dos agentes no
mercado de valores mobiliários para, caso a caso, verificar a ade-
quação ou não destas práticas às normas que regulam o funciona-
mento deste mercado.
Esta atribuição de fiscal do mercado de valores mobiliários
(art. 8º, III, V c/c art. 1º da Lei n. 6385/76) pode e deve ser exercida
de maneira constante e ampla pela CVM, de modo a alcançar inclu-
sive a vigilância no cumprimento das normas regulamentares por
ela própria editadas.
A competência fiscal da CVM desdobra-se também em re-
levante função sancionadora (art. 9º V, VI e par. 6º, além do art. 11,
ambos da Lei n. 6.385/76), já que a autarquia tem o poder de aplicar
sanções administrativas àqueles agentes do mercado que violarem
as regras legais e regulamentares vigentes99.
A aplicação, pela CVM, de sanções administrativas àqueles
que violarem as regras disciplinadoras do mercado de valores mo-
biliários é obrigatoriamente precedida da instauração de processo
sancionador próprio, no curso do qual é essencial a observância dos
princípios constitucionais e legais referentes a qualquer processo
deste tipo instaurado na Administração Pública Federal. 100
A CVM conta, em sua estrutura, com a Superintendência de
Processos Sancionadores (SPS) para a condução destes feitos101,
que se realizam em duas fases distintas: a investigação e o contra-
ditório, sendo a primeira delas, em princípio, sigilosa (art. 9º par. 2º e
3º da Lei n. 6.385/76).

99 CANTIDIANO. Luiz Leonardo. O papel regulador da CVM. In: Revista de Direito Bancário e do
Mercado de Capitais. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 2005. n. 27.
100 São, deste modo, princípios norteadores do processo administrativo sancionador
instaurado na CVM: a legalidade, o contraditório e a ampla defesa, além da obrigatória
fundamentação das decisões e proporcionalidade das punições aplicadas (Lei n. 9.784/99).
101 http://www.cvm.gov.br/menu/acesso_informacao/institucional/sobre/sps.html.
Consultado em 03/05/2020.

104 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Na fase de investigação - que se efetiva na forma de inqué-
rito - a finalidade é colher indícios sobre condutas potencialmente
ilegais e sua autoria102. Apenas se houver tais indícios instaura-se
a segunda fase, que se inicia com a intimação dos acusados para
apresentação defesa sobre os indícios apurados na fase investiga-
tória
A decisão do processo administrativo sancionador pode, após
dada ampla defesa aos acusados, aplicar-lhes as sanções previstas
pelo artigo 11 da Lei n. 6.385/76, as quais vão desde advertência até
cassação da autorização para atuar no mercado e multa103.
Nota-se, portanto, que a CVM atua em relação a todas as pes-
soas, fases e segmentos da negociação com valores mobiliários no
país. Suas competências vão, como explicitado, desde a edição de
normas que estabelecem os padrões de legalidade no setor, pas-
sam pelo controle de acesso ao mercado por pessoas e valores
mobiliários, pela fiscalização da licitude e equidade das operações
realizadas e, em caso de condutas ilegais, aplicação de sanções
administrativas.
Por fim, a CVM também deve colaborar para o aumento do
interesse no mercado de valores mobiliários, de forma a ampliar sua
capacidade de captação de poupança. Esta atribuição, à qual se
pode chamar de função de fomento104, consubstancia-se na pro-
moção de campanhas de divulgação, cursos e ações similares.
É certo, por outro lado, que a função de fomento é atendida
também quando a CVM, no exercício de suas outras atribuições,

102 “Em síntese, existe, no inquérito, simples investigação de fatos e da responsabilidade pela
sua prática, se ilegais. Nada além disso, não cuidando ainda de acusação, que só surgirá
no eventual processo administrativo posterior, sendo essa uma das razões por que a lei,
sabiamente, determinou o sigilo das apurações realizadas pela CVM, que podem, ao final,
não resultar em processo administrativo”. ARAGÃO. Paulo Cezar. Parecer de Orientação CVM
n. 6/1980. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare006.
html. Consultado em 03/06/2020.
103 A CVM pode ainda coibir condutas dos agentes sujeitos às suas normas e fiscalização
mesmo antes que resultem em danos ou prejuízos, desde que com a finalidade de prevenir
ou corrigir situações anormais de mercado (art. 9º par. 1º da Lei n. 6.385/76).
104 BORBA. José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 7ª edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro.
2013. Pg. 126

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 105


colabora para o aumento da credibilidade e interesse do mercado
de valores mobiliários.

6 – A Comissão de Valores Mobiliários e o Poder


Judiciário

O amicus curiae (expressão latina que significa “amigo da cor-


te”) é alguém que, sem ser parte de um determinado processo ju-
dicial, comparece nos autos para, como o nome indica, auxiliar a
corte (no caso, o juiz) com subsídios fáticos e jurídicos que possam
contribuir para o correto julgamento do feito.
Tem por fundamento a constatação de que a contribuição de
terceiros – em geral especializados na matéria debatida nos autos
– é particularmente importante em processos cuja repercussão al-
cance determinada ou determinável coletividade como, por exem-
plo, o conjunto de agentes econômicos que operam no mercado de
valores mobiliários.
Por isso, uma das hipóteses de amicus curiae no direito brasi-
leiro é aquela em que este “amigo da corte” é a Comissão de Valo-
res Mobiliários. Ela funciona neste papel quando a matéria discutida
em um processo judicial versa sobre questão sujeita, no âmbito ad-
ministrativo, à sua competência (Lei n. 6.385/76, art. 31).
Assim, quando alguma conduta praticada no âmbito do mer-
cado de valores mobiliários - que, como visto, está sujeito à fiscali-
zação e regulação da CVM - resulta em processo judicial, seja ele
de natureza cível ou penal, o julgador deve intimar a Comissão de
Valores Mobiliários para que ela possa, em considerando conve-
niente, funcionar como amicus curiae no feito e apresentar seus
subsídios no prazo máximo de 15 (quinze) dias, contados de sua in-
timação (art. 31 da Lei n. 6.385/76).
Esta previsão legal baseia-se, por um lado, na citada necessi-
dade de preservação da segurança e credibilidade no mercado de
valores mobiliários, o qual, como igualmente já salientado, apresen-
ta alto risco sistêmico e interdependência entre seus agentes.

106 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Assim, um processo judicial que verse sobre hipotética ilega-
lidade praticada no mercado de valores mobiliários pode compro-
meter não apenas os interesses do autor e do réu, mas, por via de
consequência, toda uma gama de pessoas físicas e jurídicas ligadas
ao mercado de valores mobiliários.
Lógico, portanto, que a Comissão de Valores Mobiliários, insti-
tuição criada para zelar pela legalidade e eficiência deste mercado,
tenha espaço para, em tais processos, subsidiar o Poder Judiciário.
Por outro lado, se considerada a complexidade e quantidade
de normas – muitas delas oriundas da própria CVM – que discipli-
nam o mercado de valores mobiliários, forçoso é reconhecer que
várias destas regras e operações específicas são afastadas do quo-
tidiano do Poder Judiciário105.
Assim, contar com subsídios oriundos da instituição que regu-
lamenta e fiscaliza tais normas leva, por óbvio, a maior aprofunda-
mento do magistrado sobre a lide que se ponha diante dele106.
A CVM deve ser intimada em tais feitos para, através de sua
Procuradoria especializada, opinar juridicamente sobre a matéria
discutida no processo, estando habilitada a subsidiar o julgador
com todas as informações que considerar relevantes, advenham
tais subsídios de sua própria competência (como Instruções, Reso-
luções, Pareceres e decisões administrativas) ou de terceiros (deci-
sões judiciais anteriores, posicionamentos doutrinários, etc.).
A intimação da CVM se dá após apresentada a contestação
(ou transcorrido o prazo para tal resposta) e, se acaso decidir com-

105 Imagine-se, por exemplo, uma questão complexa relativa a negócios com derivativos
no mercado de futuros: não é realista esperar que o Poder Judiciário tenha familiaridade
com esse tipo de questão e possa efetivamente tomar em conta os fatores relevantes na
determinação da regularidade de uma operação de hedge, sendo previsível imaginar-se que
o entendimento manifestado pelas áreas técnicas da CVM terá um peso imenso na convicção
do julgador. ARAGÃO. Paulo César. A CVM em juízo: limites e possibilidades. Disponível em:
www.bmfbovespa.com.br/pdf/ArtigoPauloAragao.pdf. Site consultado em 13/03/2015. Pg. 12
106 Em nosso ordenamento jurídico, são raros os órgãos judiciais dotados de competência
especializada em matéria empresarial, daí a possibilidade conferida à CVM para cooperar
com o judiciário visando a melhor adequação de suas decisões a tais questões. EIZIRIK.
Nelson. GAAL. Ariádna B. PARENTE. Flávia. HENRIQUES. Marcus de Freitas. Mercado de
Capitais: Regime Jurídico. 2ª edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2008. Pg. 263.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 107


parecer nos autos, a autarquia deve ser intimada de todos os atos
processuais subsequentes (art. 31 par. 1º e 2º da Lei n. 6.385/76).
Embora seja algo inerente à independência do julgador, vale
salientar que o juiz não é obrigado a se pautar pelos subsídios for-
necidos pela CVM. Ao contrário, cumpre ao Poder Judiciário a com-
petência exclusiva para decidir o feito, seja ou não no sentido si-
nalizado pelas informações eventualmente trazidas aos autos pela
Comissão de Valores Mobiliários.
Quando na função de amicus curiae a Comissão de Valores
Mobiliários terá, por força do art. 31 par. 3º da Lei n. 6.385/76, legi-
timidade recursal nos processos, se as partes deixarem de fazê-lo.
Mais complexa e intrincada é a questão sobre a eventual le-
gitimidade da CVM para postular dos responsáveis por determina-
da operação ilícita realizada no mercado de valores mobiliários, as
eventuais reparações e sanções, como substituta processual dos
prejudicados.
Se tal legitimidade é conferida, em outros ordenamentos, ao
órgão regulador do mercado de valores mobiliários107, no direito
brasileiro o sentido é diverso, uma vez que, como se demonstrará a
seguir, a Lei n. 6.385/76 dá à CVM, nestas hipóteses, papel diferente.
A Lei n. 7.913/1989 confere ao Ministério Público a legitimida-
de para adotar medidas judiciais destinadas a evitar prejuízos ou
obter ressarcimento de danos causados a investidores ou titulares
de valores mobiliários em hipóteses de operação fraudulenta, uso
ou omissão de informação relevante108.
107 ARAGÃO. Paulo César. A CVM em juízo: limites e possibilidades. Disponível em: www.
bmfbovespa.com.br/pdf/ArtigoPauloAragao.pdf. Site consultado em 13/03/2015. Pg. 12
108 Art. 1º Sem prejuízo da ação de indenização do prejudicado, o Ministério Público, de ofício
ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários — CVM, adotará as medidas judiciais
necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de
valores mobiliários e aos investidores do mercado, especialmente quando decorrerem de:
I — operação fraudulenta, prática não equitativa, manipulação de preços ou criação de
condições artificiais de procura, oferta ou preço de valores mobiliários;
II — compra ou venda de valores mobiliários, por parte dos administradores e acionistas
controladores de companhia aberta, utilizando-se de informação relevante, ainda não divulgada
para conhecimento do mercado ou a mesma operação realizada por quem a detenha em razão
de sua profissão ou função, ou por quem quer que a tenha obtido por intermédio dessas pessoas;
III — omissão de informação relevante por parte de quem estava obrigado a divulgá-la, bem

108 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Deste modo, a CVM não tem legitimidade para, como substi-
tuta processual dos eventuais prejudicados, postular medidas pro-
cessuais reparadoras ou preventivas, cabendo apenas aos próprios
prejudicados e ao Ministério Público a legitimidade ativa em tais
feitos.
Porém, a própria Lei n. 7.913/1989 expressamente autoriza a
Comissão de Valores Mobiliários a solicitar formalmente ao Ministé-
rio Público a postulação judicial destes eventuais prejuízos. Esta so-
licitação, porém, não vincula a decisão do Ministério Público acerca
da efetivação ou não do pleito judicial.
Ainda sobre as relações entre a Comissão de Valores Mobi-
liários e o Ministério Público, merece referência o disposto no art.
12 da Lei n. 6.385/76, o qual estabelece que quando um inquérito,
instaurado pela autarquia para investigação de condutas ilegais no
mercado de valores mobiliários, concluir pela ocorrência de crime
de ação pública, caberá à CVM o dever de oficiar ao Ministério Pú-
blico109, para que este decida pela propositura ou não da compe-
tente ação penal.
A Comissão de Valores Mobiliários poderá, nesta hipótese,
funcionar no processo penal como assistente do Ministério Público,
sempre com o supra referido objetivo de preservar a credibilidade
e a segurança dos agentes e investidores no mercado de valores
mobiliários.

como sua prestação de forma incompleta, falsa ou tendenciosa.


109 A cooperação entre a Comissão de Valores Mobiliários e o Ministério Público se desdobra
também em ações institucionais como convênios para troca de informações entre estas
instituições. EIZIRIK. Nelson. GAAL. Ariádna B. PARENTE. Flávia. HENRIQUES. Marcus de
Freitas. Mercado de Capitais: Regime Jurídico. 2ª edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2008. Pg,
265.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 109


7 – Meios extrajudiciais de solução de conflitos
societários e sua importância para o mercado de valores
mobiliários

Existem situações nas quais a maximização de interesses pró-


prios depende exclusivamente da conduta do agente. Exemplo:
uma pessoa que deseja escrever uma tese de doutorado ou ser
aprovada em um concurso público precisa, essencialmente, ape-
nas de seu próprio esforço e trabalho.
Já quem constitui uma sociedade depende, para maximizar
seus ganhos, da cooperação de e com seus sócios. Todos querem
maximizar os próprios interesses, mas sabem que essa maximiza-
ção está direta e essencialmente relacionada à conduta dos outros
participantes.
Desde sua constituição, a sociedade é um negócio jurídico no
qual os participantes vão cooperar, na constituição do capital social
e, possivelmente, também no exercício da empresa, para geração
de lucro e posterior repartição deste entre eles.
Fundamental ressaltar que, aqui, a ideia de cooperação não
é aquela inerente aos atos gratuitos, ou seja, decorrente de uma
liberalidade. É a constatação de que cooperar seja a forma mais
eficiente de maximizar os próprios benefícios.
Esta mesma ideia de cooperação deve perpassar a conduta
dos sócios também no caso de conflitos decorrentes do exercício
de seus direitos na sociedade. Uma cooperação “interessada”, des-
tinada à geração de eficiência para todos os envolvidos, de forma a
superar o conflito.
Conciliar conflito e cooperação não é, por óbvio, tarefa fácil e,
neste sentido, o Direito Empresarial em especial dispõe de alterna-
tivas ao acesso ao Poder Judiciário, dadas, principalmente, a patri-
monialidade e disponibilidade dos direitos envolvidos.
O Poder Judiciário não dispõe de instrumentos eficientes para
geração de cooperação na solução do conflito. Isto porque, primei-
ramente, o conflito disputa a atenção e o tempo dos julgadores com

110 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


milhares de outros, em geral sobre matérias diversas. As partes dis-
putam o tempo e o cuidado do juiz com uma infinidade de outros
litigantes, cada qual em sua respectiva demanda.
Outro elemento está na imprevisibilidade do tempo de dura-
ção do processo, algo que cria insegurança jurídica e enfraquece a
cooperação. Não há tempo exigível para a implementação de um
ato processual, o que torna inviável estabelecer, com um mínimo
aceitável de certeza, as consequências e custos da demanda.
Custos e litígios são indissociáveis, isto é óbvio. Porém, muitas
vezes os custos decorrentes da discussão escapam às próprias par-
tes. Isto porque litigar implica várias modalidades de custos, muitas
vezes não tão evidentes.
Em um primeiro momento, sempre que se pensa em custos
do litígio, o que vem à mente se relaciona às custas processuais e
honorários de advogado110. Mas estes não são, de forma alguma, os
únicos custos na solução de conflitos.
Há os custos de oportunidade, representados aqui pela indis-
ponibilidade do objeto do litígio enquanto o mesmo não for resol-
vido. Tome-se, por exemplo, uma disputa envolvendo a titularidade
de uma determinada quantia em dinheiro. Enquanto o conflito não
chegar ao fim, o montante disputado deixa de ser usado pelas par-
tes e, em consequência, de gerar ganho para qualquer delas.
Há ainda o que se pode chamar de custos reputacionais do
litígio, os quais significam, em síntese, o possível comprometimento

110 Em arbitragem, os custos patrimoniais são certamente maiores do que as custas judiciais,
dada a necessidade de custeio dos honorários de árbitros e Câmara. Porém, estes custos
são compensados, via de regra, em termos de previsibilidade (o que gera menores custos
de oportunidade), custos reputacionais e do precedente, além da maior especialidade da
decisão.
Uma solução adotada para redução de custos patrimoniais em arbitragem é o financiamento
por terceiros. Neste caso, uma pessoa física ou jurídica, alheia ao conflito, se dispõe a arcar
com todos ou alguns dos custos patrimonias da arbitragem em troca do recebimento,
caso a parte financiada seja bem sucedida no litígio, de percentual dos valores auferidos.
BAUMANN, Anjte. New Forms of Third Party Funding in International Arbitration: Investing
in Case Portfolios and Financing Firms. Kluwer Arbitration, 2019. TUCCI, José Rogério Cruz
e. Financiamento de litígios por terceiros (third-party litigation funding) em processos cíveis
(judiciais e arbitrais). Tese de Doutorado.Universidade de São Paulo. 2017.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 111


das credibilidade das partes, em razão do conflito, no mercado, seja
em relação a investidores, consumidores ou fornecedores.
Ainda é possível apontar os chamados custos do preceden-
te, pois, uma vez estabelecida uma decisão judicial na solução de
uma demanda, outras pessoas em igual situação são incentivadas
ao litígio.
Além disso, questões relacionadas ao direito societário – e
mesmo ao direito empresarial em geral - são dotadas de grande
especificidade quanto ao direito material, e, por isso, exigem, em
regra, maior especialização dos julgadores, algo mais facilmente
obtido em tribunais arbitrais, nos quais a escolha dos componentes
decorre, direta ou indiretamente, das próprias partes litigantes.
Por estas e outras razões, o predominante método de solução
de conflitos societários é hoje, sem dúvida, a utilização de formas
extrajudiciais, dentre as quais se destaca a arbitragem.
Vale salientar, porém, que a adoção de formas privadas para
resolução de conflitos é inerente ao Direito Empresarial/Comercial
desde suas origens111.

111 “Por isso, o direito comercial se apresenta originariamente, com um caráter autônomo, não
apenas no sentido atual da palavra, mas no sentido que este termo tinha no sistema romano
comum. Era direto autônomo, poi não se prendia ao direito estatal, mas assentava apeans no
consentimento e nos costumes dos interessados, , sucessivamente consolidados nos constituta
usus medievais; era autônomo, pos que da competência de uma jurisdição consular particular,
que por seu turno se contrapunha à jurisdição geral do magistrado comunal”. ASCARELLI. Tullio.
Panorama do Direito Comercial. Ob. Cit. Pg. 24

112 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Os Síndicos da Guilda dos fabricantes de tecidos (1662), de Rembrandt

A utilização de métodos privados para solução de conflitos comerciais é tão antiga


quanto a própria historia do direito comercial e remete às corporações de mercadores
medievais (denominadas guildas), que estabeleciam, em seus estatutos, as regras a
serem obedecidas pelos seus membros, bem como a utilização de órgãos decisórios
corporativos na resolução de eventuais conflitos.

A Bolsa de Valores brasileira (B3) dispõe, como já ressaltado


em item anterior, de sua própria Câmara Arbitral, destinada a aten-
der, preferencialmente, as companhias abertas, mas não restrita à
elas, já que este método de resolução de litígios societários tam-
bém é positivamente disseminado entre companhias fechadas e
mesmo sociedades limitadas.
Em se tratando de conflitos societários, mesmo em face da
disponibilidade e patrimonialidade dos direitos envolvidos, existe a
necessidade de analisar a chamada arbitrabilidade deles, o que sig-
nifica, em síntese, saber se o conflito pode ou não ser afastado da
apreciação judicial, para ser decidido em sede arbitral. Neste senti-
do, pode-se falar em arbitrabilidade subjetiva e objetiva112.
Arbitrabilidade subjetiva se refere a quais sujeitos de direito
estão aptos a se submeterem ao tribunal arbitral. Trata-se, portanto,

112 MARTINS. Pedro A. Batista Martins. Arbitragem no direito societário. GZ Editora. Rio de
Janeiro. 2019. Pg. 45 e seg.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 113


de questões referentes à legitimidade subjetiva no processo arbi-
tral.
Sociedades personificadas e pessoas físicas em pleno exercí-
cio de sua capacidade civil estão, obviamente, aptas a litigar em tri-
bunais arbitrais, o que permite, portanto, que sócios nesta condição,
administradores, sociedades anônimas ou limitadas, assim como
outros agentes de mercado constituídos sob a forma de pessoas
jurídicas possam atuar, em nome próprio, em processos arbitrais.
Paira alguma discussão sobre a arbitrabilidade subjetiva de
entes despersonalizados - entre os quais estão a massa falida, es-
pólio, condomínio e fundos de investimento, por exemplo - face ao
entendimento de que tais entes precisam de autorização judicial
para celebrar convenção arbitral e participar do procedimento113.
Esta não é, entretanto, a posição mais correta, pois entes des-
personalizados têm legitimidade processual (art. 75 do Código de
Processo Civil), o que lhes confere, por consequência lógica, tam-
bém legitimidade para funcionar em processos arbitrais, indepen-
dentemente de específica autorização judicial.
Outra relevante questão sobre arbitrabilidade subjetiva em di-
reito societário se refere àquela pessoa física ou jurídica que venha,
por ato inter vivos ou mortis causa, a se tornar titular de ações ou
quotas de uma sociedade cujos atos constitutivos estipulem, em
cláusula expressa, o obrigatório uso de arbitragem. Vale, em rela-
ção a esta pessoa, tal previsão estatutária ou contratual?
A resposta é afirmativa, uma vez que, ao adquirir – seja por
ato inter vivos ou causa mortis - participação societária, o adquiren-
te obrigatoriamente se sujeita às regras estatutárias ou do contrato
social, entre as quais pode estar a cláusula compromissória.114

113 CARMONA. Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 3ª


edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2009. Pg. 37/38
114 “A maior parte dos autores que tratou sobre a questão no Brasil, assim como no exterior,
é amplamente favorável à ideia de que a cláusula compromissória societária atinge todos
os sócios, independentemente (i) de terem estado presentes na deliberação que introduziu a
convenção de arbitragem no estatuto ou contrato social (ii) de terem votado favoravelmente a
tal deliberação (iii) de terem ingressado posteriormente na sociedade. Ao menos em relação à
doutrina, pode-se dizer seguramente que essa é uma questão que caminha para a superação”.

114 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O mesmo fundamento – obrigatória submissão aos estatutos
ou contrato social – se aplica também a quem venha a adquirir ou-
tro tipo de valores mobiliários ou mesmo a assumir posição nos ór-
gãos societários.115
O outro aspecto da questão diz respeito à chamada arbitrabi-
lidade objetiva, consistente na análise a respeito de quais matérias
devem, obrigatóriamente, ser submetidas à apreciação de um tri-
bunal arbitral em virtude da cláusula compromissória prevista nos
atos constitutivos da sociedade.
Como postulado básico de resposta a esta questão, é preciso
estabelecer que nem todo conflito de interesses entre sócios, entre
eles e a sociedade ou entre esta última e terceiros são abarcados
pela cláusula compromissória prevista nos estatutos ou contrato
social. Porém, todo conflito de interesses decorrentes de direitos
societários está abarcado pela cláusula compromissória estatutária
ou contratual.
O que se chama aqui de direitos societários são aqueles pre-
vistos pela legislação própria – Lei n. 6.404/76 e Código Civil, no
caso das sociedades limitadas – ou fixados em regulamentação da
Comissão de Valores Mobiliários ou Bolsa de Valores, bem como
constantes dos próprios atos constitutivos ou acordos de sócios.
No que tange a companhias abertas, inclui-se ai também in-
teresses de terceiros, titulares de valores mobiliários emitidos pela
companhia, os quais podem estar previstos, além da Lei n. 6. 385/76,
nos regulamentos editados pela Comissão de Valores Mobiliários,
Bolsa de Valores ou mesmo pela própria companhia emissora.

FRANZONI. Diego. Arbitragem Societária. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 2015. Pg. 93/94 .
115 Outro aspecto do assunto diz respeito à possibilidade ou não de intervenção de terceiros
em processos arbitrais, algo a ser considerado especialmente em se tratando de comparnhias
abertas. Neste sentido, vale a constatação de que: “Em síntese, há uma presunção em favor
da privacidade e da confidencialidade da arbitragem comercial. Em hipóteses excepcionais,
no entanto, quando a sentença irremediavelmente tiver a capacidade de afetar interesses
jurídicos alheios (eficácia ultra partes), há de flexibilizar-se a premissa. Deve permitir-se, então
o ingresso voluntário de terceiros no processo”. COSTA. Guilherme Recena. Partes e Terceiros
na Arbitragem. Tese de Doutorado. São Paulo. Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. 2015. Pg. 53.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 115


Nestes casos, a opção estatutária ou no contrato social pela
solução arbitral se aplica independentemente de outro pacto neste
sentido. Já se a matéria não for, neste sentido, societária, há neces-
sidade de que as partes tenham pactuado a solução arbitral em
documento próprio.

116 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo IV
Valores Mobiliários: caracterização e espécies no direito
brasileiro

1 – As definições normativa e abstrata de valores


mobiliários

A compreensão do que seja este bem ou produto chama-


do valor mobiliário pode ser realizada a partir de duas diferentes
e complementares aproximações, aqui respectivamente chamadas
de normativa e abstrata.
A definição normativa de valores mobiliários encontra-se,
como o próprio termo indica, na legislação positiva. Neste sentido,
pode-se considerar valores mobiliários todos os títulos que, uma
vez indicados em lei, são suscetíveis de serem negociados ao pú-
blico, através do mercado.
Assim, para que determinado título seja considerado, nesse
sentido, um valor mobiliário, basta que seja ele assim expressamen-
te mencionado pela legislação vigente.
A enumeração legal dos valores mobiliários encontra-se, no
direito brasileiro, estabelecida no art. 2º da Lei n. 6.385/76, alterado
pela Lei n. 10.303, de 2001116.
A definição normativa de valores mobiliários é, sem dúvida, a
que tem mais direta relevância, dada sua natureza cogente e, prin-
cipalmente, porque é ela quem delimita o âmbito de aplicação de
116 Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: I - as ações, debêntures e bônus
de subscrição; II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento
relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III - os certificados de depósito de valores
mobiliários; IV - as cédulas de debêntures; V - as cotas de fundos de investimento em valores
mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI - as notas comerciais; VII -
os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores
mobiliários; VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e IX -
quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo,
que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de
prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 117


toda a legislação sobre o mercado destes bens. Porém, tal definição
não evita que seja necessária outra abordagem de tão complexo
instituto.
Assim é preciso, a partir do rol normativo do que sejam consi-
derados valores mobiliários, extrair algumas características comuns
a todos eles, de forma a obter-se uma definição abstrata destinada
a compreender sua essência e ao mesmo tempo promover, se ne-
cessário, rearranjo no elenco normativo de suas espécies.
Há ordenamentos jurídicos – como a França, por exemplo -
que tomam a aqui chamada definição normativa como taxativa ou
restrita, o que significa que valores mobiliários são apenas e tão so-
mente aqueles expressamente enumerados pela legislação. Outros
países – como os Estados Unidos - permitem que o elenco de valo-
res mobiliários apresentado em lei seja, por força de interpretação,
ampliado117.
O direito brasileiro, por seu turno, evoluiu de uma orientação
próxima do direito francês – que, como se viu, somente considera
valores mobiliários aqueles títulos assim expressamente elencados
em lei – para o direito norte americano, que admite a ampliação in-
terpretativa do elenco normativamente estabelecido.118
Exatamente por admitir a inclusão, por força de interpretação,
de novos títulos no elenco de valores mobiliários é que o sistema
norte-americano contribuiu de forma particularmente significativa
para a elaboração de uma definição abstrata deste bem ou produto
financeiro.
A chamada definição Howey de valores mobiliários (oriunda
da decisão proferida no caso Howey, em 1946)119 em muito auxilia

117 EIZIRIK. Nelson. GAAL. Ariádna B. PARENTE. Flávia. HENRIQUES. Marcus de Freitas.
Mercado de Capitais: Regime Jurídico. 2ª edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2008. Pg. 54.
118 Tal alteração na orientação do regime brasileiro decorre da Lei n. 10.303 de 2001, que,
ao modificar a redação original do art. 2º da Lei n. 6.385/76, tomou por valores mobiliários
não apenas os títulos elencados expressamente na legislação mas também quaisquer outros
títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria
ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm
do esforço do empreendedor ou de terceiros.
119 A expressão Howey Test – “Teste de Howey”, em tradução literal – é usada para se referir

118 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


a composição dos caracteres comuns ao produto ora estudado. A
partir dela pode-se inclusive traçar uma definição abstrata aplicável
ao direito brasileiro.
A definição Howey salienta que os valores mobiliários trazem,
em sua essência, a necessidade de que o adquirente efetue, em fa-
vor do emissor do título, aporte de capital. Isto, porém, não significa
necessariamente pagamento em moeda corrente.
Ao contrário, a compreensão de tal pagamento pode ser es-
tendida a qualquer outra situação em que há transferência de bens
suscetíveis de serem avaliados monetariamente e que possam ser
usados como contribuição para determinado empreendimento
econômico.
A destinação dos valores aportados pelo adquirente do títu-
lo é outro elemento componente da definição Howey. Tais recursos
devem obrigatoriamente ser direcionados para a realização de um
determinado empreendimento econômico, de cujo resultado todos
os adquirentes participam.
Os ganhos de cada investidor em valores mobiliários depen-
dem, portanto, não só de sua ação ou sucesso individual, mas do
empreendimento como um todo. Por consequência, o sucesso fi-
nanceiro de um investidor naquele título necessariamente reflete o
de todos os outros adquirentes120.
Conclui-se também que a expectativa ou finalidade de lucro
igualmente configura-se, pela definição Howey, como inerente aos
à aplicação da definição Howey a um determinado título que se quer tomar como valor
mobiliário. “Under the Howey test, any interest that involves an investment of money in a common
enterprise with profits to come solely from the efforts of others is an investment contract,4 thereby
included within the definition of “security” and subject to the rules and regulations of the federal
securities laws. ALBERT. Miriam. The Howey Test Turns 64: Are the Courts Grading this Test on a
Curve? Disponível: http://ssrn.com/abstract=1666894.
120 Note-se que a emissão de valores mobiliários é uma espécie de chamada coletiva de
pessoas interessadas em participar de um empreendimento econômico. Ao adquirir os títulos,
o investidor está alocando parte de sua poupança para, com ela, auxiliar na formação de
capital a ser usado para viabilizar o empreendimento econômico, normalmente de natureza
empresarial.
Há, portanto, uma “cooperação” - no sentido econômico do termo - entre todos os
adquirentes, pois o agrupamento dos investimentos individuais viabiliza o empreendimento
que, pretende-se, será capaz de gerar riqueza a ser posteriormente distribuída entre eles.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 119


valores mobiliários. O adquirente do título o faz pois almeja, em es-
sência, que seu direito de participar dos resultados econômicos do
empreendimento se consubstancie em ganho financeiro.
Porém, mais significativa do que a expectativa de lucro é, nes-
te caso, a variabilidade e incerteza essenciais referentes a esse lu-
cro, o que diferencia o investimento em valores mobiliários de ou-
tros ativos financeiros no quais já se sabe, de antemão, quanto e
quando será o resultado financeiro.
No caso dos valores mobiliários o lucro, cuja busca é essen-
cial, é ao mesmo tempo incerto e inexigível, ao menos até que seja
o momento de liquidar os direitos previstos no título.
Deste modo, o adquirente de valores mobiliários não tem, em
regra, certeza de que o lucro por ele almejado ao comprar os títulos
se efetivará, nem sabe de antemão o montante destes possíveis
ganhos.
Isto porque os ganhos financeiros dos adquirentes depen-
dem do sucesso do empreendimento econômico financiado pela
emissão de valores mobiliários. Portanto, em caso de fracasso do
empreendimento, os titulares dos valores mobiliários emitidos não
podem, em regra, demandar o esperado ganho.
A definição Howey inclui ainda a dependência do esforço ou
competência de terceiros (em relação ao investidor) como outro
elemento integrante da natureza dos valores mobiliários.
Isso não significa a impossibilidade de colaboração ativa do
investidor para o sucesso do empreendimento ao qual esteja vin-
culado o valor mobiliário de que seja titular, mas apenas que os ga-
nhos proporcionados pelo título não decorrem somente da conduta
individual de seus proprietários. Ao contrário, estes ganhos depen-
dem principalmente do esforço e capacidade de terceiro, o qual
vai empreender com o capital arrecadado através da emissão dos
títulos.
Além destes elementos salientados na definição Howey, algu-
mas outras características podem ser apontadas, senão como es-
senciais, ao menos como decisivas para a compreensão abstrata

120 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dos valores mobiliários. São elas: a não destinação ao uso ou consu-
mo, a inexistência de critério de avaliação único e de preço mínimo
de revenda.
Os valores mobiliários são bens que conferem a seus titulares
um ou mais direitos contra o agente econômico que os emite ou que
se coloca como responsável pelo cumprimento das obrigações de-
correntes dos direitos neles elencados. Assim, não há sentido pen-
sar-se em uso ou consumo dos valores mobiliários, mas apenas em
exercício ou transferência dos direitos por ele conferidos.
De outro lado, os valores mobiliários podem ser avaliados se-
gundo diferentes critérios, nenhum dos quais sendo, porém, capaz
de lhes atribuir um valor intrínseco ou objetivo. Ao contrário, são
eles precificados conforme diversos aspectos altamente variáveis e
muitas vezes subjetivos, como liquidez, perspectivas de lucrativida-
de da sociedade emissora e outros.
Da sua falta de valor intrínseco decorre também a inexistência
– pelo menos como um direito - de garantia de preço ou condições
mínimas de negociabilidade, o que os torna um investimento de ris-
co - aqui configurado na possibilidade real de perda dos valores
investidos - já que os ganhos por eles proporcionados dependem,
em síntese, do sucesso econômico do emissor ou do empreendi-
mento ao qual está atrelado.
Este risco, porém, tem um fundamental aspecto positivo em
relação aos ativos financeiros nos quais o direito a remuneração é
certo e exigível, como os títulos de renda fixa. Quanto maior for o
sucesso do empreendimento econômico financiado com a emissão
de valores mobiliários, maiores serão os ganhos a serem revertidos
aos adquirentes dos títulos.
Assim os valores mobiliários podem, em caso de sucesso do
empreendimento financiado, propiciar aos seus titulares ganhos
muito maiores do que os originalmente esperados e, principalmen-
te, do que os proporcionados pelos outros ativos financeiros.
A partir do que foi exposto é possível afirmar, com a atual re-
dação do art. 2º da Lei n. 6.385/76 (alterado, especialmente em seu

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 121


n. IX, pela Lei n. 10.303/01) que também no direito brasileiro o elen-
co dos valores mobiliários pode, com base nos caracteres acima
elencados, ser ampliado, o que torna a sua definição abstrata ainda
mais relevante121.
Passa-se, a seguir, à descrição individualizada das principais
modalidades de valores mobiliários negociadas no mercado brasi-
leiro.

2 – O Mercado de Derivativos

Além dos valores mobiliários por excelência, que são aqueles


emitidos por sociedades anônimas e conferem direitos em relação
a elas, há outros títulos incluídos no elenco normativo dos valores
mobiliários (art. 2º da Lei n. 6.385/76) e que representam mercados
importantes tanto do ponto de vista jurídico, como econômico. É o
caso dos chamados derivativos.
Para a abordagem destes complexos valores mobiliários é ne-
cessário, antes, fazer referência a operações financeiras que generi-
camente são conhecidas como operações de hedge.
A Lei n. 8.981/95 a define como uma operação que pode ser
realizada em bolsas de valores, de mercadorias e futuros ou no
mercado de balcão, destinadas à proteção contra riscos inerentes
às oscilações de preços ou de taxas, contratadas para proteger di-
reitos (ativos) ou obrigações (passivo) de uma empresa, desde que
os contratos protegidos estejam relacionados às suas atividades
operacionais.
Deste modo, pode-se dizer que hedge engloba, em sua defi-
nição, qualquer operação financeira que visa proteger o investidor
do risco de perda de seus investimentos, por decorrência das va-
121 Mais importante que enumerar legalmente os títulos considerados valores mobiliários –
algo que, como se vê, é cada vez mais difícil – a essência da boa regulação deste mercado
está em centrar a análise não exatamente no produto financeiro negociado, mas na forma
pela qual ele é oferecido. É dizer: a regulação eficiente do mercado de valores mobiliários
deve preocupar-se precipuamente com as características definidoras de uma “captação
pública de recursos” e não exatamente com o instrumento jurídico/financeiro empregado
nesta captação. Importa mais o “como” negociar do que exatamente “o quê” é negociado.

122 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


riações nos diferentes índices financeiros ou valores de negociação
de um produto. O mercado de derivativos é, portanto, uma forma de
hedge praticada no mercado de valores mobiliários122.
O termo derivativo vem do inglês derivative e se explica por
uma característica, inerente a todos os produtos financeiros desta
modalidade, consubstanciada no fato de seu valor derivar, decorrer,
da variação no valor de outro ativo financeiro ou produto123 (o cha-
mado ativo subjacente ou ativo de referência).
Há dois grandes grupos de derivativos, conforme o seu ati-
vo de referência. São eles os derivativos financeiros e os agrope-
cuários.124 Os primeiros têm como ativo de referência outro índice
financeiro, como uma moeda estrangeira ou uma taxa de juros, en-
quanto os segundos derivam, como o nome diz, de uma commodity
(produto de natureza agrícola, pecuária ou extrativa).
Os derivativos agropecuários são basicamente os denomina-
dos contratos a termo e os contratos do mercado futuro, enquanto as
principais modalidades de derivativos financeiros são as opções e o
chamado swap. Vale ressaltar, entretanto, que o mercado sempre
está a criar novas variações destes valores mobiliários, posto que,
ao menos em tese, qualquer produto ou ativo cujo preço de nego-
ciação esteja sujeito a variações pode servir como referência para
um ou mais derivativos.
122 “Derivativos são produtos financeiros oferecidos sob a forma de um contrato entre duas
partes, em que existe um compromisso de comprar, vender ou realizar fluxos financeiros, tudo
baseado em uma regra de formação de preços previamente estabelecida e dentro de um prazo
determinado. A origem deste nome ‘derivativo’ é o inglês derivatives e vem da forma como o
preço dos contratos se modifica ao longo do tempo, sempre em relação de dependência com
o preço de outro produto ou da observação dos preços de outros mercados. O produto sobre o
qual o derivativo se referência é o denominado ativo subjacente (underlying asset, em inglês)”.
MENDONÇA. Álvaro Affonso. Hedge para Empresas – uma abordagem aplicada. Ed. Elsevier
Campus. São Paulo. 2011. Pg. 51.
123 “Os derivativos são instrumentos financeiros sem valor próprio. Isso pode soar estranho,
mas é o segredo a que eles se reduzem. Eles têm esse nome por derivarem seu valor do valor
de algum outro ativo, exatamente o motivo pelo qual servem tão bem para limitar o risco de
flutuações inesperadas de preço. Eles limitam o risco da posse de coisas como arrobas de trigo,
francos franceses, títulos governamentais e ações ordinárias – em sua, qualquer ativo cujo
preço seja volátil”. Bernstein. Peter L. Desafio aos Deuses – a fascinante história do risco. 2018.
Ob. Cit. Pg. 320.
124 SALOMÃO NETO. Eduardo. Direito Bancário. Ed. Atlas. São Paulo. 2007. Pg. 340.

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Em interessante cena do filme “A Grande Aposta” (Big Short: Direção: Adam McKay. Produção:
Plan B Entertainment; Regency Enterprises. Estados Unidos: 2015) o vencedor do Prêmio
Nobel de Economia Richard H. Thaler e a atriz Selena Gomez ilustram, de forma bastante
didática e lúdica, a lógica essencial que suporta os derivativos.

São contratos a termo aqueles nos quais, em data presente,


comprador e vendedor acertam o objeto a ser vendido, a quantida-
de, o preço a ser pago e, também, a data futura de execução das
obrigações assumidas.
É, por exemplo, a hipótese em que o contratante A (compra-
dor) se compromete, em 20 de maio de 2023, a adquirir, do contra-
tante B (vendedor), na data de 20 de julho de 2023, 100 sacas de
café tipo X, por R$5.000,00 reais cada.
Desta forma, independen-temente da possível variação que
este ativo de referência (café) possa apresentar entre a data de es-
tipulação do contrato e sua execução, A deverá pagar a B o preço
estipulado pelas sacas compradas.
Estes contratos são derivativos exatamente porque atrelados
ao preço de um determinado produto e têm, por um lado, o efei-
to de minimizar os riscos do vendedor, pois, se o preço do ativo

124 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


de referência cair, entre a data de fechamento do contrato e a sua
execução, ele (vendedor) se protegeu contra esta queda, ou seja,
minimizou seu risco.
Já o comprador aposta que, na data de execução das obri-
gações acordadas, o valor do ativo de referência terá aumentado,
em relação ao preço a ser por ele pago, o que lhe proporcionará o
ganho advindo dessa diferença.
Nota-se, desta forma, que os contratantes assumem, cada um
a seu modo, as consequências da variação no preço deste produto,
pois já estipularam, com antecedência, os termos gerais do contra-
to, produto e preço. Trata-se, então, de um negócio jurídico no qual
o vendedor do ativo de referência procura se proteger do risco de
queda no preço de negociação deste produto, enquanto o compra-
dor aposta na possibilidade de subida deste valor125.
É por isso que um contrato derivativo desta modalidade é vis-
to como instrumento de alocação dos riscos financeiros entre seus
contratantes, sendo, portanto, uma operação ou contrato de hedge.
Umas das partes de um derivativo como este quer se proteger
contra o risco de desvalorização excessiva ao qual um determina-
do bem ou ativo está sujeito. Neste sentido, vale-se do derivativo
para pré-estabelecer um preço mínimo que receberá, no futuro, por
aquele ativo que venderá.
Já na outra ponta da operação está alguém que, em troca da
garantia de preço que ofereceu ao outro contratante, especula com
a possibilidade de aumento no preço de negociação ou cotação do
ativo de referência.
A natureza especulativa de tais contratos a termo, modalida-
des de derivativo que são, se manifesta ainda mais quando se nota
que tanto a posição de comprador quanto a de vendedor são trans-

125 “Se o preço subir, o vendedor terá prejuízo no exato montante em que o comprador lucrará.
Isto é, o vencedor ganha o que o perdedor perde; um contrato de futuros [assim como o contrato
a termo] é um jogo de soma zero, em que a perda de uma parte é exatamente igual ao ganho da
outra parte”. WEBB. Robert. BRAHMA. Sanjukta. Mercados Financeiros. Ed. Saraiva. São Paulo.
2016. Pg. 196.

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feríveis, apesar de não contarem com a livre e organizada negocia-
ção em bolsa, como se verá no caso dos mercados futuros126.
Deste modo, e com base no exemplo dado, no período de
tempo compreendido entre a promessa de contratar e a efetiva en-
trega do bem vendido e de seu valor, os direitos de compra e venda
deste bem poderão ser livremente negociados, permitindo às par-
tes liquidarem suas posições no negócio e transferi-las a terceiros.
Este derivativo contém também (como, aliás, é da natureza
deles) forte elemento especulativo, pois se, na data de execução
das obrigações, o preço do ativo de referência (no caso, o café) ti-
ver variado para mais (ou seja, se estiver sendo negociado por valor
superior a R$5.000,00 a saca), o comprador tem o direito de adquirir
tais ativos pelo preço acertado anteriormente e pode, se quiser, re-
negociar tais ativos no mercado, realizando o lucro decorrente da
variação de preço.
Os contratos futuros são muito semelhantes aos menciona-
dos contratos a termo, já que também se constituem em operações
nas quais as partes acordam, no momento presente, a obrigação de
compra e venda futura de determinado ativo (como uma commodi-
ty, por exemplo), por preço estabelecido previamente127.
Porém, os contratos a termo são acordos particulares, o que
lhes tornam menos padronizados e, portanto, carecedores de mais
tempo para a constituição de seus termos. Além disso, as garantias
a ele relacionadas devem, se for o caso, ser estabelecidas pelos
contratantes, o que aumenta o risco de inadimplemento e os custos
da operação.
126 A negociação de contratos a termos é limitada ao mercado de balcão. Além disso, dadas
as especificidades que envolvem as prestações de cada um dos contratantes, sua negociação
em mercado secundário é relativamente baixa. WEBB. Robert. BRAHMA. Sanjukta. Mercados
Financeiros. Ob. Cit. Pg. 194.
127 “A diferença, entretanto, reside basicamente em dois aspectos. Os contratos futuros são
essencialmente negociados em ambiente de bolsa e não possuem uma data específica para
a entrega da mercadoria ou liquidação”. GONÇALVES. Fernando. MOURÃO. Gustavo César de
Souza. Os contratos de derivativos e a impossibilidade de revisão por onerosidade excessiva
ou imprevisão. In: WALD. Arnoldo. GONÇALVES. Fernando. CASTRO. Moema Augusta Soares
de. (coord.). Sociedades Anônimas e Mercado de Capitais – homenagem ao Prof. Osmar Brina
Corrêa Lima. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2011. Pg. 163.

126 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Já os contratos do mercado futuro foram elaborados para se-
rem negociáveis em pregões da B3, o que efetivamente ocorre128,
dado que os ativos aos quais são atrelados (os chamados ativos
de referência) são igualmente cotados e negociados em bolsa. É o
caso de certas commodities agrícolas, como a soja e o café.
Os contratos futuros são, para sua maior liquidez e negociabi-
lidade, baseados em modelos padronizados, o que agiliza a transa-
ção e permite, por exemplo, a fixação de garantias de cumprimento,
a intermediação e responsabilidade da câmara de compensação da
bolsa e a estipulação de datas de vencimento uniformes129.
Em virtude desta padronização de formas, garantias de cum-
primento, prazos de vencimento e condições de negociação os
contratos futuros são acessíveis a investidores de menor poder fi-
nanceiro, os quais, dados os custos e garantias exigidas, normal-
mente não têm como se valer dos contratos a termo.
Além disso, as operações em mercado futuro apresentam va-
riação diária no valor de sua cotação, o que permite que os inves-
tidores possam valer-se dele com mais agilidade que os contratos
a termo.
Contratos de SWAP - O termo significa troca e refere-se à
operação financeira na qual, em essência e síntese, os investidores
envolvidos “trocam” os índices financeiros (taxas de juros) de suas
respectivas dívidas.

128 Isso não significa que os contratos a termo não sejam negociáveis. O que se pretende
ressaltar é que os contratos futuros são, em relação aos seus similares a termo, melhor
estruturados para serem livremente negociáveis, dadas características como a maior
padronização e a existência de vencimentos antecipados.
129 “Contrato futuro – instrumento derivativo com um conjunto de características padronizadas,
sendo previamente estabelecido pela bolsa: as características físicas do ativo subjacente do
contrato, seu tamanho (valor financeiro), a variação mínima de preço, a unidade de negociação,
a data de vencimento e a sua forma de liquidação na data de vencimento. Para a negociação
de contratos futuros para determinado vencimento, os participantes somente precisam declarar
o interesse em três variáveis: a natureza (compra e venda), a quantidade de contratos e o preço.”
MENDONÇA. Álvaro Affonso. Hedge para Empresas – uma abordagem aplicada. Ob. Cit. Pg.
72/73.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 127


Os agentes econômicos em geral, mas aqueles ligados à ati-
vidade empresarial em especial, são, ao mesmo tempo, credores e
devedores em diferentes situações.
Tais débitos e créditos, por sua vez, estão, obviamente, onera-
dos por meio de juros e outras formas de correção no valor destas
obrigações. Estes índices podem ser fixos - ou seja, previamente
estipulados – ou variáveis – o que significa que não se pode antever
o seu valor.
Como operação de hedge, o swap tem por objetivo primordial
proteger as partes contra a variação abrupta das taxas de juros e de
atualização do valor de suas dívidas.
Imagine, por exemplo, uma companhia que tenha um alto
percentual de débitos atrelados à variação do dólar, como são, em
geral, aquelas dívidas contraídas em relação a credores estrangei-
ros (como fornecedores de insumos, dentre outros).
Há, sobre esta companhia, o permanente risco de que um au-
mento significativo e repentino no valor da moeda estrangeira im-
pacte, com igual relevância, sobre o valor de suas dívidas, fazendo-
-as subir além do que se poderia inicialmente esperar.
Esta companhia pode, então, optar por minimizar tal risco re-
alizando a operação de hedge aqui tratada, através do contrato de-
rivativo no qual ela troca, com o outro contratante na operação, o
índice de referência de suas dívidas. Assim, as dívidas em dólar da-
quela companhia passam, por exemplo, a serem corrigidas através
de um índice fixo, o qual até então era aplicado às obrigações do
outro contratante.
A operação de swap consiste exatamente nessa troca. As dí-
vidas dos contratantes passam a ser corrigidas uma pelo índice do
outro. Trata-se, claro, de um exemplo de derivativo, pois é um con-
trato que decorre e está atrelado a outro índice financeiro (as taxas
de juros das dívidas envolvidas).
Parece claro que, para a companhia do exemplo dado, o swap
mostra-se interessante, pois minimiza o risco do aumento repentino
de suas dívidas vinculadas a variação do dólar.

128 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Vale, porém, salientar que, dependendo de inúmeras circuns-
tâncias, o preço do dólar (ativo de referência, no exemplo dado)
pode, ao contrário, variar para baixo. Nesse caso, quem ganha com
o swap é o outro contratante, pois ele optou por ter seus débitos
corrigidos pela variação cambial do dólar, ao invés de manter-se
com seu índice fixo, originalmente contratado.
Deste modo, e como qualquer derivativo, o swap apresenta
também forte caráter especulativo, pois os contratantes “apostam”
em sentidos contrários, um acreditando que o índice das dívidas do
outro será mais vantajoso.
Os contratos de swap são necessariamente intermediados
por uma instituição financeira e, ao contrário do mercado futuro e
das opções, não são livremente negociados em pregão da Bolsa de
Valores130, mas em mercado de balcão organizado.
Outro segmento importante dos derivativos é representado
pelo mercado de opções de ações, que, diferentemente do que vi-
mos no caso dos outros tipos de derivativos citados, é efetuado por
meio das mesmas instituições que negociam ações outros valores
mobiliários emitidos pelas companhias.
A opção é, em essência, uma operação financeira na qual as
partes acordam, em momento presente, o direito de, em data fu-
tura, comprar e vender entre si uma determinada quantidade de
ações, a preço já fixado131.
Segue um exemplo simples: A adquire de B, em 20 de maio
de 2023, a opção de comprar, em 20 de dezembro de 2023, deter-
minado número de ações preferenciais que B possui na companhia
X pelo valor de, digamos R$100,00 cada.

130 Embora não atue diretamente na negociação deste tipo de derivativo, a Bolsa de Valores
realiza o registro de algumas de suas modalidades, em seu sistema eletrônico
131 “Opções podem ser de dois tipos: 1 – opção americana: confere ao titular da opção o direito
de comprar ou vender o ativo subjacente [como ações, no caso ora em estudo] a qualquer
momento no horizonte de tempo até que a opção expire. Uma opção que expire em três meses
pode ser exercida a qualquer momento neste período. 2 – opção europeia: confere ao titular da
opção o direito de comprar ou vender o ativo subjacente em uma data específica, conhecida
como data de vencimento”. WEBB. Robert. BRAHMA. Sanjukta. Mercados Financeiros. Ob. Cit.
Pg. 220/221.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 129


Assim, na data de vencimento da opção, 20 de dezembro de
2023, caberá a A (adquirente da opção) decidir se deseja ou não
comprar as ações preferenciais de B, pelo preço estipulado entre
eles. Se A desiste de comprá-las, perde o valor pago pela opção, ou
seja, pelo direito de adquiri-las. Se, por outro lado, A resolve efetuar
a compra (realizar a opção), B tem o dever de vendê-las, pelo valor
estipulado.
Trata-se de um derivativo, pois tal contrato está atrelado ao
valor das ações em questão. Além disso, apresenta forte e eviden-
te caráter especulativo, pois, como está previamente estipulado o
valor de cada ação, o titular da opção de compra irá exercê-la se,
na data fixada para tal exercício, o valor de negociação das ações
objeto no mercado estiver superior àquele pelo qual a outra parte
se obrigou a vendê-las.
Assim, as opções são derivativos nos quais, à semelhança dos
contratos a termo, as partes fixam, para elas próprias, obrigação fu-
tura, que, neste caso, consiste no dever de negociarem, entre elas,
determinados valores mobiliários a preço previamente estipulado.
Porém, diferentemente do que se tem nos contratos a termo,
no mercado de opções seu adquirente tem o direito de, na data fu-
tura estipulada, contratar ou não com aquele que se obrigou a ven-
der-lhe os valores mobiliários objetos da opção. Em outras palavras,
o adquirente da opção tem o direito de exercer ou não o direito que
lhe atribui o derivativo em questão.
O titular de uma opção de compra – chamada call – aposta
que, na data futura, fixada para a realização da opção de compra, a
ação objeto estará valendo mais do que o preço estabelecido por
ele e pelo vendedor, quando da estipulação da opção.
O titular da opção de compra tem, como dito, o direito de
comprar a ação objeto pelo preço anterior (seu valor na opção) e
não pelo preço atual, o que significa que, se efetivada a sua expec-
tativa de aumento no valor da ação objeto, ele, titular do direito de
compra-las a preço inferior, realizará os ganhos desta diferença.

130 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Já o titular de uma opção de venda – chamada put – adquire o
direito de vender certo número de ações objeto, pelo preço fixado,
na data futura estabelecida. Ele acredita que, na data da efetivação
da compra e venda, a ação objeto valerá menos do que o estabe-
lecido na opção e busca, por meio deste derivativo, evitar a perdas
decorrentes de tal desvalorização, minimizando seus riscos.
Os derivativos funcionam, portanto, como um interessante
mecanismo de alocação voluntária do risco inerente a determina-
das operações empresariais ou financeiras. Há, neles, o objetivo de
permitir que um dos agentes transfira para o outro o risco original-
mente assumido por ele.
Como este risco traz consigo não apenas a possibilidade de
perda, mas também a de um ganho superior ao inicialmente espe-
rado, há aquele agente que se dispõe, grosso modo, a assumir o
risco alheio, sempre com a expectativa de que tal risco se converta
em ganho.
Vale pegar como exemplo os derivativos agropecuários: ne-
les, uma das partes se protege do risco de variação no preço do
produto, enquanto a outra assume o risco desta variação na expec-
tativa de que esta variação se dê de forma positiva, na forma de
aumento no preço de negociação de tal produto.

3 – Os Fundos de Investimento

O investimento em valores mobiliários pode, em princípio, ser


realizado por qualquer pessoa física ou jurídica capaz de gerar e
administrar poupança. É uma opção de alocação de recursos finan-
ceiros não consumidos em troca, como demonstrado, do direito de
participar dos resultados econômicos de um empreendimento.
O mercado de valores mobiliários é, entretanto, ambiente que
oferece infinitas opções de investimento, a maioria dos quais tra-
zendo em si o risco de perda do capital aplicado. Deste modo, in-
vestir no mercado de valores mobiliários exige do participante, para

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 131


ser bem sucedido, alto grau de informação sobre cada uma das
modalidades de aplicação disponíveis.
Obter essa informação é, entretanto, algo que acarreta custos
– financeiros ou não – e isso muitas vezes afasta um grande núme-
ro de potenciais investidores, que, por não disporem de tempo ou
capacidade técnica para obter tais informações, desistem do mer-
cado de valores mobiliários como opção de aplicação dos recursos
financeiros poupados.
O mercado, entretanto, cria e estrutura modelos de negócio
para viabilizar, em favor de investidores com esse perfil, a aplicação
de poupança, em valores mobiliários, com menor custo de informa-
ção. Entre estes modelos estão os chamados fundos de investimen-
tos, cuja regulamentação está estruturada a partir do artigo 1.368 do
Código Civil (alterado pela Lei n. 13.874/2019) e da Res. 175/22 (e
sucessivas alterações), da Comissão de Valores Mobiliários.
O artigo 1.368 do Código Civil confere aos fundos de investi-
mentos a natureza de condomínio de natureza especial, criado a
partir de comunhão de recursos destinados à aplicação em ativos
financeiros, bens e direitos de qualquer natureza.
Este dispositivo legal põe fim à outrora existente discussão
sobre a natureza jurídica de tais fundos. Sobre o assunto havia, em
essência, duas correntes distintas, a primeira delas entendendo o
fundo de investimentos como uma modalidade de condomínio e a
segunda o concebendo como espécie de sociedade132.
Fundo de investimentos é, portanto, instituto desprovido de
personalidade jurídica própria133 e sua natureza especial o afasta da
aplicação das regras gerais sobre os condomínios. Cabe à Comis-
são de Valores Mobiliários a função de regulamentar sua estrutura e
132 FREITAS. Ricardo dos Santos. A Natureza Jurídica dos fundos de investimento. Ed.
Quartier Latin. São Paulo. 2006. Pg. 138 e segs. BORGES. Florinda Figueiredo. Os fundos de
investimento – reflexões sobre sua natureza jurídica. In: FRANÇA. Erasmo Valladão Azevedo
e Novaes. Direito Societário Contemporâneo. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2009. Pg. 56 e segs.
133 CORRÊA-LIMA. Sérgio Mourão. PIMENTA. Vinícius Rodrigues. Fundos de Investimento.
In: WALD. Arnoldo. GONÇALVES. Fernando. CASTRO. Moema Augusta Soares de. (coord.).
Sociedades Anônimas e Mercado de Capitais – homenagem ao Prof. Osmar Brina Corrêa Lima.
Ob. Cit. Pg. 163

132 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


funcionamento, bem como a atribuição de efetuar o registro deles,
condição suficiente para sua publicidade e oponibilidade (art. 1.368-
C do Código Civil)134.
O regular funcionamento dos fundos de investimentos de-
pende, além de seu prévio registro na Comissão de Valores Mobili-
ários, da atuação de pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela
prestação dos chamados serviços essenciais.
Estes serviços essenciais ao funcionamento dos fundos de
investimentos são desempenhados pelo seu administrador e seu
gestor, os quais têm atribuições respectivamente complementares.
Em síntese, cabe ao administrador do fundo de investimentos
– necessariamente uma pessoa jurídica - a atribuição de zelar pelo
seu regular funcionamento, especialmente no que tange à sua es-
trutura jurídica e obrigações regulatórias e contábeis.
Incumbe, por seu turno, ao gestor do fundo de investimentos,
antes de mais nada, tomar as decisões sobre a destinação dos re-
cursos financeiros aportados pelos cotistas135.
Assim, enquanto o administrador tem uma atuação mais rela-
cionada a aspectos administrativos, jurídicos e contábeis do fundo
de investimentos, cabe ao gestor a tomada de decisões, essencial-
mente pautadas por critérios econômicos, voltadas à obtenção de
maiores rendimentos para os cotistas136.
134 Em igual sentido os art. 7º e 8º da Res. CVM n. 175/22, que dispõem:
Art. 7º O fundo de investimento deve ser constituído por deliberação conjunta dos prestadores
de serviços essenciais, a quem incumbe aprovar, no mesmo ato, o seu regulamento.
Art. 8º O funcionamento do fundo depende do seu prévio registro na CVM
135 A administração profissional de carteiras de valores mobiliários – que, no caso dos fundos
de investimentos, é atribuição de seu gestor - tem, no mercado brasileiro, sua regulamentação
geral disposta na Res. n. 21/2021 da CVM.
Em seu artigo 1º está disposto que“a administração de carteiras de valores mobiliários é o
exercício profissional de atividades relacionadas, direta ou indiretamente, ao funcionamento,
à manutenção e à gestão de uma carteira de valores mobiliários, incluindo a aplicação de
recursos financeiros no mercado de valores mobiliários por conta do investidor”.
Já o art. 2º da mesma Resolução da CVM exige, para o exercício da função, que esta pessoa
física ou jurídica tenha prévia autorização da Comissão de ValoresMobiliários.
Desta forma, se busca um padrão de credibilidade para o exercício da complexa e arriscada
atividade de gerir o capital de terceiros na compra e venda de valores mobiliários.
136 A Res. n. 175/22 da CVM regulamenta, de forma específica, o regime jurídico dos
administradores e gestores de fundos de investimentos, especialmente no que diz respeito

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 133


Além do administrador e do gestor, os fundos de investimen-
tos devem obrigatoriamente contar com a assembleia de cotistas,
órgão deliberativo do qual podem participar e votar todos os titula-
res das cotas componentes do fundo e que tem, como matérias de
competência privativa, aquelas elencadas pelo art. 70 da Res. CVM
n. 175/22137.
A Res. 175/22 da CVM estipula ainda (art. 72 a 76) que a assem-
bleia de cotistas pode ser realizada por meio total ou parcialmente
eletrônico e que suas deliberações são tomadas, regra geral, pela
aprovação da maioria de votos entre os presentes.
Os participantes aportam seus recursos financeiros disponí-
veis na aquisição de cotas, as quais formam o capital do fundo de
investimentos. Este capital, por sua vez, é aplicado pelos gestores
do fundo – pessoas com elevado nível de informação e qualificação
técnica para investir – em, por exemplo, diferentes modalidades de
valores mobiliários disponíveis.

às suas atribuições e responsabilidades. Neste sentido, vale citar os seguintes artigos:


Art. 82. O administrador, observadas as limitações legais e as previstas na regulamentação
aplicável, tem poderes para praticar os atos necessários à administração do fundo de
investimento, na sua respectiva esfera de atuação.
Art. 83. Incluem-se entre as obrigações do administrador contratar, em nome do fundo, com
terceiros devidamente habilitados e autorizados, os seguintes serviços: I – tesouraria, controle e
processamento dos ativos II – escrituração das cotas; e III – auditoria independente, nos termos
do art. 69.
Art. 84. O gestor, observadas as limitações legais e as previstas na regulamentação aplicável,
tem poderes para praticar os atos necessários à gestão da carteira de ativos, na sua respectiva
esfera de atuação.
Art. 85. Inclui-se entre as obrigações do gestor contratar, em nome do fundo, com terceiros
devidamente habilitados e autorizados, os seguintes serviços: I – intermediação de operações
para a carteira de ativos; II – distribuição de cotas; III – consultoria de investimentos; IV –
classificação de risco por agência de classificação de risco de crédito; V – formador de mercado
de classe fechada; e VI – cogestão da carteira de ativos.
137 Art. 70. Compete privativamente à assembleia de cotistas deliberar sobre: I – as
demonstrações contábeis, nos termos do art. 71; II – a substituição de prestador de serviço
essencial III – a emissão de novas cotas, na classe fechada, hipótese na qual deve definir se
os cotistas possuirão direito de preferência na subscrição das novas cotas, sem prejuízo do
disposto no art. 48, § 2º, inciso VII; IV – a fusão, a incorporação, a cisão, total ou parcial, a
transformação ou a liquidação do fundo ou da classe de cotas; V – a alteração do regulamento,
ressalvado o disposto no art. 52; VI – o plano de resolução de patrimônio líquido negativo, nos
termos do art. 122; e VII – o pedido de declaração judicial de insolvência da classe de cotas.

134 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Note-se, porém, que os fundos de investimentos não neces-
sariamente têm valores mobiliários como destinação dos recursos
por eles agregados. Ao contrário, o Código Civil é expresso em res-
saltar que quaisquer bens ou direitos podem ser objeto de investi-
mento por parte dos fundos.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 135


Cannabis, Água e Games: como investir em investimentos exóticos?

Você já teve interesse em entender como investir em cannabis? Em um primeiro


momento, essa alternativa pode soar um tanto estranho, especialmente se você
não domina o assunto. Contudo, essa pode ser uma alternativa para quem deseja
diversificar os investimentos e aproveitar a expansão da cannabis no mundo.

A possibilidade faz parte do universo dos investimentos exóticos — voltados para


investidores que buscam pensar fora da caixa. Além da cannabis, existem muitas
outras alternativas disponíveis no mercado nacional e internacional — como o setor
de água e games. (…)

bAo longo dos últimos anos, muitas pessoas têm mudado a visão negativa que se
tinha sobre a cannabis. Embora ainda seja um tema polêmico, diversos países buscam
descriminalizá-la. E a legalização já existe em muitas regiões dos Estados Unidos —
principal potência econômica global.

Ademais, vale destacar que a ciência tem se dedicado a entender o potencial da


cannabis no campo da saúde por meio da produção de medicamentos utilizando
o canabidiol Assim, muitos investidores têm desenvolvido interesse pelo mercado,
acreditando que o avanço da legalização e importância dela pode trazer crescimento
e oportunidades.

Games

O século XXI trouxe novas profissões para a sociedade, não é? Com isso, uma das
principais mudanças de percepção está no mundo dos games. Antes vistos como
brincadeiras para crianças e adolescentes, esse mercado hoje é responsável por
movimentar bilhões na economia global.

No entanto, os e-Sports, como também são chamados, não se destacam apenas pela
venda de jogos. Na realidade, esse universo tem sido um gerador de renda. Como
exemplo é possível citar os torneios internacionais e a comercialização de produtos
dentro do ambiente do próprio game.

Portanto, considerar ativos desse mercado pode ser interessante para investidores que
buscam diversificar suas carteiras e acreditam que empresas do setor demonstram
capacidade de inovar e expandir seu faturamento.

Água

Entre as três alternativas, é possível que a água seja aquela que cause o maior
estranhamento, certo? Afinal, não é comum que a substância seja vista como uma
oportunidade de investimento — e justamente por isso é considerada exótica.

136 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Você já deve ter acompanhado nos noticiários informações sobre aquecimento global
e a necessidade de empresas se tornarem sustentáveis, não é? Nesse contexto, existe
grande preocupação em impedir que a água de torne um bem escasso.

Por isso, diversas empresas ao redor do mundo vêm buscando soluções para esse
campo. Dessa forma, pode ser benéfico conhecer esse nicho e o potencial de
crescimento que ele apresenta para investidores.

Quais as oportunidades e os riscos desses investimentos?

Como você viu, esses três mercados podem trazer oportunidades de investimentos
exóticos para a sua carteira. Desse modo, uma das principais vantagens que eles
apresentam está, como você viu, na possibilidade de diversificação para o seu
portfólio.

Além disso, uma parcela considerável das empresas nesses nichos é internacional.
Isso significa que alocar capital em investimentos exóticos pode ser um meio para
internacionalizar seu portfólio. Assim, você pode se expor a outras moedas e diminuir
os riscos de eventuais crises no mercado brasileiro.

Entretanto, também existem riscos nessas modalidades. O primeiro ponto de


destaque está no fato de que esses são, de forma mais comum, investimentos de
renda variável. Portanto, é preciso ter em mente que não existem garantias de retorno
e que há exposição à volatilidade e possibilidade de perda.

Esses investimentos são regulamentados no Brasil?

Ao conhecer possibilidades de investimentos exóticos, uma dúvida comum que pode


surgir é sobre sua regulamentação. Afinal, o consumo da cannabis e seus derivados,
por exemplo, não é legalizado no Brasil — apenas em certos casos de saúde.

No entanto, quando feitos por meio da bolsa de valores ou via plataforma da


instituição financeira que você utiliza para investir, não há qualquer tipo de problema
nesse sentido. Isso porque a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é a responsável
pela regulamentação e fiscalização dos investimentos disponíveis nesses ambientes.

Quais as alternativas de investimento disponíveis no Brasil?

Os mercados exóticos podem ser acessados aqui mesmo no Brasil, por meio de
instituições internacionais ou mesmo via operações não regulamentadas no país.
Contudo, esse último acesso costuma gerar riscos de fraude. Logo, vale a pena
entender como se expor a eles de forma regulamentada.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 137


Para tanto, é preciso conhecer as principais maneiras de fazer esse investimento
por meio do mercado brasileiro, certo?

Confira algumas possibilidades!

Fundos de investimento

No mercado brasileiro, uma das maneiras de se expor aos mercados exóticos é por
meio de fundos de investimento. Eles consistem em veículos coletivos que contam
com a presença de um gestor profissional responsável pela composição da carteira
do fundo.

No caso dos investimentos exóticos, a opção são os fundos temáticos. Ou seja,


aqueles que escolhem se expor a um mercado específico — como cannabis, água ou
games, por exemplo — e diversificam seus portfólios com empresas desses nichos.

ETFs

Os exchange traded funds (ETFs), ou fundos de índice, também são uma modalidade
de investimento coletiva. Eles são negociados na bolsa brasileira e sua principal
característica é buscar replicar os resultados de um indicador do mercado.

Assim, nos investimentos exóticos, como no setor de games, por exemplo, eles optam
por acompanhar um índice relacionado a essas alternativas. Um ponto interessante está
no fato de que parte desses indicadores estão presentes no mercado internacional.
Assim, você pode expor parte do seu capital a outras moedas, de maneira indireta.

Disponível em: https://comoinvestir.anbima.com.br/noticia/cannabis-agua-e-


games-como-investir-em-investimentos-exoticos/. Site consultado em 16/12/2023.

Esta liberdade de aplicação é, porém, limitada quando da elabo-


ração e aprovação do regulamento do fundo. Definidos, por cláusula
deste regulamento, quais os ativos, bens ou direitos nos quais os recur-
sos do fundo serão investidos, é absolutamente vedado aos gestores
destes recursos dar-lhes outra destinação.
Também ao regulamento do fundo de investimentos cabe a
competência para a disciplina de importantes matérias, sendo de
se destacar o poder de limitar a responsabilidade do cotista ao valor
de suas cotas (art. 1.368-D do Código Civil).138

138 Segundo o art. 18 da Res. CVM n. 175/22, caso o regulamento não limite a responsabilidade

138 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Tem-se, desta forma, que os fundos de investimento agregam
o capital de inúmeros investidores para, com este montante, investir
no mercado e proporcionar aos seus cotistas os ganhos oriundos da
variação no preço ou decorrentes dos lucros gerados pelos títulos
ou ativos adquiridos139.
Para o cotista, a vantagem básica é poder contar com a ca-
pacitação técnica e elevado grau de informação dos gestores do
fundo de investimento. Com isso o investidor fica, em princípio, de-
sonerado dos custos de buscar, ele mesmo, as informações sobre
as boas opções de compra disponíveis no mercado de valores mo-
biliários140.
Por outro lado, como agregam um volume imenso de capi-
tal, estes fundos têm condições de adquirir maiores quantidades
de determinados tipos de valores mobiliários. Isto muitas vezes lhes
proporciona maior participação e ingerência nas atividades das en-
tidades emissoras dos títulos, o que permite, por óbvio, maior con-
trole sobre o sucesso do empreendimento.
O titular de uma cota paga por sua aquisição e será remune-
rado com base na variação no preço dos valores mobiliários adqui-
ridos pelos gestores do fundo de investimentos. O cotista do fundo
espera que o gestor use sua capacidade técnica e de informação
para encontrar os valores mobiliários de melhor retorno.

dos cotistas, eles responderão pessoalmente por eventual patrimônio líquido negativo, sem
prejuízo da responsabilidade do prestador de serviço pelos prejuízos que causar dolosa ou
culposamente.
139 Fundos de investimento são “um conjunto de recursos monetários, formados por
depósitos de grande número de investidores (cotistas), que se destinam à aplicação coletiva
em títulos e valores mobiliários”. ASSAF NETO. Alexandre. Mercado Financeiro. 5ª edição. Ed.
Atlas, São Paulo. 2003. Pg. 386.
140 “Os fundos buscam a conveniência da aplicação em condições técnicas mais favoráveis
do que as que seriam possíveis para cada um de seus participantes, se estes operassem por
conta própria nos mercados financeiros. (...) Os fundos agem em nome de uma coletividade,
substituindo grande número de investidores, oferecendo as vantagens decorrentes dessa
concentração”. PINHEIRO. Juliano. Mercado de Capitais: fundamentos e técnicas. 7ª edição.
Ed. Atlas. São Paulo. 2013. Pg. 139.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 139


Há várias modalidades de fundos de investimentos, classificá-
veis conforme diferentes critérios, dentre os quais é possível desta-
car a destinação do capital acumulado.141
É também válido classificá-los, nos termos da Res. CVM n.
175/22, em fundos abertos e fechados.
Fundos abertos são aqueles que admitem a livre entrada e
saída de cotista e o aumento, mediante novos aportes, da partici-
pação de cada um. Os fechados, ao contrário, somente permitem o
resgate do valor das cotas ao final de suas operações.
Importante acrescentar que as cotas de fundos de investi-
mentos abertos não podem ser objeto de cessão ou transferência
de titularidade - salvo nos casos autorizados pelo art. 16 da Res.
CVM 175/22142 - enquanto as cotas de fundos de investimentos fe-
chados têm na livre negociabilidade uma de suas características143.
As cotas de fundos de investimentos passaram, com a Lei n.
10.303/2001 (que alterou o art. 2º da Lei n. 6.385/76) a ser conside-

141 Sobre os diferentes tipos de fundos de investimento, veja: CARVALHO. Mário Tavernard
Martins de. Regime Jurídico dos fundos de Investimento. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2013. Pg.
103 e segs.
142 Art. 16. A cota de classe aberta não pode ser objeto de cessão ou transferência de
titularidade, exceto nos casos de: I – decisão judicial ou arbitral; II – operações de cessão
fiduciária; III – execução de garantia; IV – sucessão universal; V – dissolução de sociedade
conjugal ou união estável por via judicial ou escritura pública que disponha sobre a partilha de
bens; VI – substituição do administrador fiduciário ou portabilidade de planos de previdência; VI
– transferência de administração ou portabilidade de planos de previdência; VII – integralização
de participações acionárias em companhias ou no capital social de sociedades limitadas; VIII
– integralização de cotas de outras classes, passando assim à propriedade da classe cujas
cotas foram integralizadas; e IX – resgate ou amortização de cotas em cotas de outras classes,
passando assim essas últimas cotas à propriedade do investidor cujas cotas foram resgatadas
ou amortizadas.
143 Art. 17. Sem prejuízo da portabilidade das cotas pelos seus titulares, as cotas de classe
fechada e seus direitos de subscrição podem ser transferidos, seja por meio de termo de
cessão e transferência, assinado pelo cedente e pelo cessionário, ou por meio de negociação
em mercado organizado. § 1º A transferência de titularidade das cotas de classe fechada fica
condicionada à verificação, pelo administrador, do atendimento das formalidades estabelecidas
no regulamento, nesta Resolução e demais regulamentações específicas. § 2º Na hipótese de
transferência por meio de negociação em mercado organizado, cabe ao intermediário verificar
o atendimento das formalidades estabelecidas no regulamento e nesta Resolução e demais
regulamentações específicas.
Confira também: CARVALHO. Tomás Lima de. Fundo de investimento imobiliário – análise
jurídica e econômica. Arraes Editores. Belo Horizonte. 2014. Pg. 15.

140 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


radas valores mobiliários, o que atraiu para elas a possibilidade de
negociação ao público no mercado mas também as normas e de-
mais competências a cargo da Comissão de Valores mobiliários.144

4 – Securitização e a Lei n. 14.430/2022

A operação de securitização tem, no mercado de valores mo-


biliários brasileiro, significativa importância como meio de levanta-
mento, pelas companhias, de recursos financeiros necessários ao
financiamento de suas atividades145.
Em essência, securitizar146 consiste em transformar direitos de
crédito - dos quais uma companhia é titular - em valores mobiliá-
rios, para que sejam negociados em bolsa de valores ou mercado
de balcão organizado. Para isso, tais direitos de crédito precisam ser
“formatados” como valores mobiliários, daí o termo “securitizar”.
Sociedades empresárias dos mais diversos ramos de ativi-
dades – como vendas a varejo, operação de cartões de crédito,
concessão de rodovias, construção civil, etc. – vendem seus bens
e serviços para recebimento futuro, o que as torna, portanto, credo-
ras de seus clientes. Tais créditos são, no vocabulário do mercado
financeiro, denominados recebíveis.
Uma loja de departamentos ou uma incorporadora de imó-
veis vende seus produtos para recebimento parcelado, assim como
operadoras de cartões de crédito financiam – para futuro reembol-
so - os gastos mensais de seus clientes e fornecedoras de sinal de
TV a cabo têm o direito de receber, no mês seguinte ao uso, os va-
lores devidos pelos assinantes. Todos esses créditos são exemplos

144 Neste sentido o art. 24 da Res. CVM n. 175/22: A distribuição de cotas de classe fechada
deve observar a regulamentação específica sobre ofertas públicas de distribuição de valores
mobiliários.
145 CAMINHA. Uinie. Securitização. Ed. Saraiva. São Paulo. 2005. CHAVES. Natália Cristina.
Direito Empresarial: Securitização de Crédito. Ed. Del Rey. 2006. Belo Horizonte.
146 O termo “securitização” remete ao vocábulo inglês securitization, o qual, por sua vez,
advém de securities, cuja tradução mais próxima é valores mobiliários.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 141


de recebíveis, os quais são divididos em dois grandes grupos: os
performados e os não performados.
Créditos performados são aqueles já constituídos, mas ainda
não exigíveis, posto que não vencidos. Se uma incorporadora de
imóveis vende uma unidade para recebimento parcelado, o preço
do imóvel vendido é um crédito performado, pois já se tem por jurí-
dicamente constituído, em favor da incorporadora, desde a conclu-
são do contrato de compra e venda, mas as parcelas só se tornarão
exigíveis à medida que forem atingindo seus respectivos vencimen-
tos.
Já os créditos não performados são aqueles que, em momen-
to presente, ainda não se constituíram, mas sobre os quais há cer-
teza (ou grande probabilidade) de futura existência e exigibilidade.
Veja-se, por exemplo, o caso de uma concessionária de rodo-
via. As pessoas usarão a estrada durante determinado período de
tempo futuro e, claro, pagarão o devido pedágio. Em momento pre-
sente, estes créditos, decorrentes dos futuros pedágios, ainda não
existem, mas, em virtude da concessão e exploração da rodovia, é
possível afirmar que, no futuro, estes valores se materializarão em
favor da concessionária. O mesmo ocorre - ainda como exemplo -
com uma operadora de cartão de crédito, em relação aos futuros
gastos de seus clientes.
A questão é que estas sociedades empresárias, muitas vezes,
têm necessidade ou interesse em usar seus créditos - performados
e não performados - antes da data em que os receberão, seja para
movimentar seu fluxo de caixa ou, como é mais comum, para inves-
tir na expansão e aprimoramento de suas atividades empresariais.
Assim, para levantar capital sem precisar contrair dívidas no
mercado financeiro e sem a necessidade de abrir-se, pela emissão
de ações, à entrada de novos sócios, estas sociedades empresárias
recorrem ao aqui tratado mecanismo da securitização147.

147 SCHWARCZ. Steven L. The future of securitization. Connecticut Law Review. Vol. 41.
Number. 4. May. 2009. Pg. 1315/1324.

142 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O objetivo aqui é transferir a terceiros a titularidade dos re-
cebíveis nos quais é credora determinada sociedade empresária,
em troca do recebimento antecipado, por ela, do capital referente a
estes créditos.
Na securitização, uma sociedade empresária148 transfere, por
meio de cessão de créditos, a titularidade de seus recebíveis - per-
formados e não performados - a uma outra pessoa jurídica, chama-
da de securitizadora, constituída especificamente para figurar como
cessionária na operação.
Assim, a sociedade empresária cedente deixa de ser a titular
dos créditos/recebíveis, que passam a ser da securitizadora. Esta
cessão de créditos é chamada de contrato de cessão de lastro.
Nesta cessão de créditos, formalizada através do contrato
de cessão de lastro, o cedente é a sociedade empresária que, em
virtude de suas atividades econômicas, se torna credora de seus
clientes. Ela é a originadora, em razão do exercício de sua empresa,
dos recebíveis cedidos.
O objeto do contrato de cessão de lastro é formado, como já
salientado, pelos direitos de crédito (recebíveis) dos quais é titular
a sociedade empresária cedente, sejam tais créditos referentes a
períodos passados (performados) ou, principalmente, futuros (não
performados).
Já a posição de cessionária é ocupada, neste contrato de
cessão de lastro, pela chamada securitizadora. A securitizadora era
obrigatoriamente uma sociedade personificada, constituída especi-
ficamente com a função de figurar como intermediária nessa ope-
ração, o que a torna, portanto, uma Sociedade de Propósito Espe-
cífico.
Atualmente, porém, a posição de securitizadora pode ser ocu-
pada, por exemplo, por um Fundo de Investimentos, os Fundos de
Investimento em Direitos Creditórios (FIDIC)149.
148 Embora seja, por razões óbvias, algo mais usual entre sociedades com atividade
empresarial, não há vedação legal a que outras modalidades de pessoas jurídicas figurem
como cedentes, na operação de securitização.
149 No início da securitização a SPE – Sociedade de Propósito Específico – era conditio sine qua

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 143


A securitizadora, uma vez cessionária dos recebíveis a ela
transferidos por meio do contrato de cessão de lastro, emitirá valo-
res mobiliários, a serem negociados em bolsa de valores e no mer-
cado de balcão organizado.
Note-se que a capacidade da securitizadora de gerar riqueza
para os adquirentes dos valores mobiliários por ela emitidos decor-
re dos créditos a ela cedidos, principalmente aqueles não perfor-
mados.
Assim, ao adquirir valores mobiliários emitidos pela securiti-
zadora, o investidor torna-se titular do direito de receber, à medida
que forem se constituindo e sendo quitados, parte dos recebíveis
gerados pela sociedade empresária que, no contrato de cessão de
crédito supra mencionado, figura como cedente.
Deste modo, e à medida que, com o passar do tempo, os cré-
ditos dos quais a securitizadora é cessionária sejam honrados, os ti-
tulares dos valores mobiliários por ela emitidos são remunerados. O
ganho destes adquirentes decorre – nos termos do mercado, estão
“lastreados” – nos recebíveis150.
Por outro lado, ao emitir valores mobiliários e negociá-los no
mercado, a securitizadora capta, no momento presente, os recursos
dos adquirentes destes títulos e, em seguida, os transfere à socie-
dade empresária cedente dos recebíveis, em contraprestação pela
cessão destes créditos.
Deste modo, os recursos captados pela securitizadora, à vista,
no mercado de valores mobiliários, não são usados por ela própria,

non para a montagem da operação, hoje, esta expressão “SPE” está sendo substituída por “SPV”
– Special purpose vehicle (veículos de finalidade específica) ou companhias securitizadoras
– que podem ser: 1) contrato ficudiário – Trust; 2) fundo mútuo – fundo de investimento em
direito creditório 3) sociedades anônimas (ou similares) as quais podem ser as próprias SPE(s).
NAJJARIAN. Ilene Patrícia de Noronha. Securitização de recebíveis mercantis. Ed. Quartier
Latin. São Paulo. 2010. Pg.s 99/100.
150 Pode-se ainda, para torná-los economicamente mais interessantes, optar por emitir
diferentes tipos de valores mobiliários em nome da companhia securitizadora, cada um deles
conferindo determinados direitos a seus titulares. FABOZZI. Frank J. Securitization: the tool of
financial transformation. Yale ICF Working Paper n. 07-07. Social Science Research Network.
Electronic Paper Collection: http://ssrn.com/abstract=997079.

144 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mas direcionados para a cedente dos créditos que fundamentam a
operação.
A sociedade empresária cedente não precisará aguardar para
receber e acumular os valores dos créditos cedidos à securitizado-
ra. Ao contrário, com a securitização a cedente consegue levantar,
de uma única vez, os recursos financeiros de que precisa para apri-
morar suas atividades empresariais.

O músico David Bowie não estava à frente de seu tempo apenas no campo artístico. Foi um
inovador também nos negócios. Em 1997, Bowie negociou os direitos autorais futuros sobre
suas obras na forma dos chamados, à época, Bowie Bonds. Os investidores que adquirissem
tais “bonds” seriam titulares dos créditos futuros decorrentes da obra do artista. Isto permitiu
que Bowie transformasse a expectativa de remuneração futura em dinheiro presente, em nítida
operação de securitização. https://epocanegocios.globo.com/Vida/noticia/2016/01/david-
bowie-foi-tao-inovador-nos-negocios-quanto-na-musica.html

Como qualquer operação realizada no mercado de valores


mobiliários, a securitização também acarreta determinados riscos,
tanto para a companhia cedente dos recebíveis que lastreiam a
operação quanto para os investidores que se dipõem a adquirir os
valores mobiliários emitidos pela securitizadora.
Este risco está, no caso da sociedade empresária cedente,
principalmente na possibilidade de não haver interessados em ad-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 145


quirir os valores mobiliários emitidos pela securitizadora – crise de
liquidez – enquanto, para os investidores, o principal fator de preo-
cupação é o risco de atraso ou falta de pagamento dos recebíveis
cedidos à securitizadora – crise de inadimplência.
Imagine-se, por exemplo, que os recebíveis cedidos à secu-
ritizadora decorram da venda de imóveis residenciais151. Como se
trata, em regra, de financiamentos de longo prazo, sempre há o ris-
co de que os mutuários, compradores dos imóveis, não consigam
honrar integralmente as prestações.
Por isso são empregadas, em operações de securitização, a
atuação de agências de avaliação de risco, as rating agencies. Elas
se dedicam a mensurar a qualidade dos valores mobiliários emiti-
dos pelas securitizadoras, especialmente do ponto de vista do risco
de inadimplência deles.152
Outra forma de minimizar o risco dos compradores de valores
mobiliários emitidos pela securitizadora é estabelecer que a ceden-
te dos recebíveis responde, como obrigada de regresso, pelo adim-
plemento destes créditos.
Nesta hipótese, os titulares dos valores mobiliários emitidos
pela securitizadora têm, como garantias de recebimento, não só
a capacidade de pagamento dos devedores nos recebíveis, mas
também o patrimônio da companhia cedente153.
151 As companhias securitizadoras de créditos imobiliários são aquelas nas quais os recebíveis
cedidos são originados da venda de imóveis, como citado na hipótese. Nesse caso, os valores
mobiliários usados são as CRI - Certificados de Recebíveis Imobiliários.
Outra modalidade especial são as companhias securitizadoras de créditos decorrentes do
agronegócio. Aqui, a sociedade cedente é empresária rural e os créditos cedidos são valores
que ela espera receber na venda de futuras safras. Os valores mobiliários empregados nesta
operação são os chamados CRA – Certificados de recebíveis do agronegócio.
152 “O rating de emissão é uma opinião independente sobre a idoneidade creditícia de um
emissor [no caso, emissor de valores mobiliários vinculados ao pagamento de recebíveis]
expressa através da escala ‘AAA’ a ‘C’, sendo certo que a idoneidade creditícia é a capacidade
futura do emissor de honrar pontual e completamente os pagamentos devidos.” NAJJARIAN.
Ilene Patrícia de Noronha. Securitização de recebíveis mercantis. Ed. Quartier Latin. São Paulo.
2010. Pg. 134.
153 “Em uma operação de securitização realizada sem direito de regresso ou coobrigação do
cedente, o pagamento dos valores mobiliários emitidos no mercado de capitais independe
da situação econômico-financeira do cedente, mas tão somente da solvência dos devedores
e eventuais garantidores dos recebíveis adquiridos pelo veículo securitizador. TROVO. Beatriz.

146 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A edição da Lei n. 14.430/2022 – chamada também de Marco
Legal da Securitização – estabeleceu, em bases expressas, algu-
mas importantes regras sobre a realização desta operação.
O art. 18 da Lei n. 14.430/22 define tanto o que são conside-
radas companhias securitizadoras como a própria operação de se-
curitização, a qual está vinculada à emissão de uma espécie própria
de valor mobiliário, o Certificado de Recebíveis154.
Os Certificados de Recebíveis são, portanto, valores mobiliá-
rios emitidos pela securitizadora e negociados em bolsa de valores
ou mercado de balcão organizado. Conferem, como anteriormente
já explicado, o direito do titular/beneficiário ao recebimento dos va-
lores transferidos à securitizadora em virtude do contrato de cessão
de lastro (art. 20 da Lei n. 14.430/22).
São promessas de pagamento, emitidas em forma nomi-
nativa e escritural, dotadas de executividade possibilidade de livre
negociação e às quais são aplicadas, supletivamente, regras cam-
biais, além de institutos como aval e endosso, neste caso obrigato-
riamente na forma “sem garantia” por parte do endossante.155
Seus requisitos extrínsecos estão previstos no art. 22 da Lei
n. 14.43/22, entre os quais vale destacar o nome da securitizadora
emitente, a remuneração por taxa de juros fixa, flutuante ou variável
(com ou sem prêmio), correção monetária e a descrição dos direitos
creditórios a ela vinculados, pelos quais a companhia securitizadora
responde tanto em relação à origem quanto à autenticidade.
Na forma como até aqui abordada, vê-se que o objeto da se-
curitização é relacionado a direitos de crédito de constituição e/ou
Securitização de Recebíveis. In: GORGA. Érica. SICA. Lígia Paula Pinto (Coord.). Estudos
Avançados de Direito Empresarial. Ed. Elsevier Campus. 2013.Pg. 281.
154 Art. 18. As companhias securitizadoras são instituições não financeiras constituídas sob a
forma de sociedade por ações que têm por finalidade realizar operações de securitização.
Parágrafo único. É considerada operação de securitização a aquisição de direitos creditórios
para lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários
perante investidores, cujo pagamento é primariamente condicionado ao recebimento de
recursos dos direitos creditórios e dos demais bens, direitos e garantias que o lastreiam.
155 Isto significa, em síntese, que a transferência do Certificado de Recebíveis não impõe,
àquele que o endossa, nenhuma responsabilidade patrimonial pelo cumprimento da
prestação constante do documento (art. 21 par. 3º da Lei n. 14.430/22).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 147


recebimento futuro, os chamados recebíveis. Entretanto, a operação
pode ter outros objetos, sendo um deles relacionado aos contratos
de seguro, resseguro e afins. Este modelo está especificamente dis-
ciplinado pela Lei n. 14.430/22.
É fundamental lembrar, previamente, que o contrato de segu-
ro tem por objetivo, em sua forma elementar, transferir, do proprie-
tário para a companhia seguradora, o risco de perda ou dano de um
determinado ativo ou bem.
Tome-se, por exemplo, o caso do automóvel. Trata-se de um
bem ao qual é inerente a possibilidade de perda (por furto ou roubo,
por exemplo) e danos (causado por colisões ou forças da natureza).
Além disso, é um bem que pode causar danos a terceiros, como no
caso de acidentes. A estes eventos adversos, ocasionados pelo uso
do bem objeto de seguro, dá-se o nome de sinistro.
Em princípio, cabe ao proprietário do automóvel arcar com
as responsabilidades patrimoniais decorrentes destes eventos ad-
versos, os chamados sinistros. É, portanto, ao proprietário que cabe
o risco – tomado aqui como a possibilidade de resultado adverso
com o uso do automóvel – de sinistros referentes ao veículo.
Entretanto, ao celebrar o contrato de seguro do bem em ques-
tão, o proprietário tranfere, à companhia seguradora, exatamente
este risco e as responsabilidades decorrentes de sinistro. O seguro
é, portanto, uma forma de alocação do risco no mercado, pois o
transfere do proprietário do bem ou ativo objeto do contrato para a
companhia seguradora contratada.
Espera-se, no exemplo, que a companhia seguradora seja
patrimonialmente capaz de honrar o pagamento dos valores de-
correntes de sinistros relacionados ao uso do automóvel objeto do
seguro. Constata-se então que assegurar a solidez patrimonial das
companhias seguradoras é a preocupação fundamental neste mer-
cado, o qual é regulamentado pela Superintendência de Seguros
Privados (SUSEP), autarquia instituída pelo Dec. Lei n. 73/1966 e
análoga à Comissão de Valores Mobiliários.

148 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Neste ponto, vale cogitar o seguinte: a companhia seguradora
poderia “securitizar” no mercado o risco de pagamentos das indeni-
zações e reparações dela contratadas? Dito em outras palavras: se-
ria possível que investidores assumissem, em troca de rendimentos,
o ônus de formar um patrimônio capaz de garantir os pagamentos
devidos aos clientes da companhia seguradora? A resposta a am-
bas as questões é afirmativa e encontram na Lei n. 14.430/22 ex-
pressa acolhida, na forma das chamadas sociedades seguradoras
de propósito específico (SSPE).
Em apertada síntese, tem-se, neste caso, que a companhia
seguradora pode criar uma sociedade de propósito específico – de
forma análoga às securitizadoras já abordadas – para tranferir a ela
a responsabilidade pelo pagamento do valores devidos aos seus
clientes quando da ocorrência de determinados sinistros.
Imagine-se, como exemplo, uma companhia de seguros que
é contratada para assumir o risco de perda ou danos, por eventos
climáticos (como enchentes ou terremotos), de um grupo de usinas
hidrelétricas. Indispensável ressaltar o alto valor envolvido e tam-
bém a relativamente baixa possibilidade de ocorrência do sinistro.
Esta companhia seguradora terá, como já explicado, que ar-
car, com seu patrimônio, pela eventual – embora improvável – ocor-
rência do evento causador do dano ou perda das usinas (sinistro), o
que significa, em outras palavras, que está exclusivamente com a
seguradora o risco desta operação.
Ao criar uma sociedade seguradora de propósito específico
(SSPE), a companhia seguradora original transfere àquela a respon-
sabilidade pelo pagamento das reparações previstas, no exemplo,
pelo contrato de seguro das hidrelétricas156. Assim, em caso de
ocorrência do sinistro, caberá ao patrimônio da sociedade segura-

156 Art. 2º da Lei n. 14.430/22: A Sociedade Seguradora de Propósito Específico (SSPE) é a


sociedade seguradora que tem como finalidade exclusiva realizar uma ou mais operações,
independentes patrimonialmente, de aceitação de riscos de seguros, previdência complementar,
saúde suplementar, resseguro ou retrocessão de uma ou mais contrapartes e seu financiamento
por meio de emissão de Letra de Risco de Seguro (LRS), instrumento de dívida vinculada a riscos
de seguros e resseguros.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 149


dora de propósito específico (SSPE) o ônus de pagar, aos contra-
tantes do seguro, os valores destinados à reparação dos danos ou
perdas provocados pelo sinistro.
Entretanto - e como já salientado - a preocupação fundamen-
tal do mercado de seguros é a solidez patrimonial da pessoa jurídi-
ca responsável pelo pagamento das reparações. No caso da SSPE é
valido perguntar, então, de onde viria este patrimônio, já que ela foi
criada – como sociedade de propósito específico - apenas para as-
sumir a responsabilidade pelo pagamento das reparações referen-
tes ao seguro das hidreléticas, originalmente de responsabilidade
da companhia seguradora.
O patrimônio da sociedade seguradora de propósito espe-
cífico é constituído pela emissão e negociação pública de valores
mobiliários denominados Letras de Risco de Seguro, os quais estão
disciplinados pelo art. 12 e seguintes da Lei n. 14.430/22.157
Ao adquirir tais Letras de Seguro de Risco, investidores vão
integralizar o capital social da SSPE, o qual é, como visto, garantidor
dos pagamentos devidos, pela companhia seguradora, em caso de
sinistro.
Assim, em vez de assumir, com seu patrimônio, os riscos do
sinistro, a companhia seguradora se vale do capital social da SSPE
para garantir seus contratantes/segurados, capital social este que
é integralizado com a emissão e negociação pública das Letras de
Risco de Seguro.
Obviamente que a próxima pergunta é: o que ganham os in-
vestidores adquirentes destas Letras de Seguro de Risco? Neste
formato, eles são remunerados na forma de juros e correção mone-
tária, similares aos demais titulos de renda fixa existentes no merca-
do, além de receber parte dos prêmios pagos, em virtude do con-
trato de seguro, à companhia seguradora.

157 As Letras de Risco de Seguro são inspiradas nos chamados Insurance Linked Securities, já
usados há décadas no mercado de valores mobiliários norte-americano para operações de
transferência de risco inerente a contratos de seguro. Sobre o tema, confira: Cummins, J. David,
CAT Bonds and Other Risk-Linked Securities: State of the Market and Recent Developments
(November 19, 2007). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1057401.

150 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Claro que, em caso de ocorrência do sinistro garantido pelo
patrimônio da SSPE emissora das Letras de Seguro de Risco, o pa-
trimônio dela será desfalcado, nada podendo, a este respeito, opor
os titulares de tais valores mobiliários. Por outro lado, como a possi-
bilidade de ocorrência do sinistro é relativamente baixa, esta preo-
cupação deixa de ser, a princípio, tão relevante.

5 – Cross listing, American Depositary Receipts (ADR´s) e


Brazilian Depositary Receipts (BDR´s)

A admissão de uma companhia e seus títulos à livre negocia-


ção no mercado de valores mobiliários é, como se procurou de-
monstrar, ato cercado por vários e rígidos requisitos normativamen-
te estabelecidos.
Por captar recursos diretamente da economia popular, o mer-
cado de valores mobiliários estrutura-se sobre severas normas de
fiscalização e funcionamento, aplicáveis a qualquer um que dele
participe.
Vale também acrescentar que, em regra, cada país tem seus
próprios requisitos admissionais. Assim, uma companhia que pre-
tenda negociar seus valores mobiliários em mais de um mercado
nacional organizado deve se submeter às regras admissionais pró-
prias para cada um deles.
Se, por um lado, atender a tantas exigências, de diferentes
ordenamentos jurídicos, implica em severos custos para as com-
panhias, por outro, a admissão de seus valores mobiliários à nego-
ciação em diversos mercados implica na óbvia ampliação das fon-
tes de recursos financeiros suscetíveis de serem canalizados para a
atividade empresarial de cada uma delas.
O termo cross listing é usado para denominar a admissão dos
papéis emitidos por uma determinada companhia à negociação em
mercados de valores mobiliários de diferentes países. É, por exem-
plo, o caso de companhias abertas brasileiras que, além de nego-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 151


ciarem seus valores mobiliários no mercado nacional, também são
admitidas a fazê-lo em bolsas internacionais, como a de Nova York.
Como dito, realizar o cross listing implica, antes, em conseguir
preencher todos os requisitos de admissão e registro da companhia
- e dos títulos por ela emitidos - no mercado estrangeiro onde ela
pretenda negociar seus valores mobiliários.
O mercado de valores mobiliários norte-americano, pela sua
tradição e gigantesca amplitude e volume de recursos financeiros
movimentados, é uma opção frequente entre as companhias brasi-
leiras que pretendam realizar o cross listing.
Porém, proporcional à sua tradição e volume de recursos é, no
caso norte-americano, a quantidade e rigor das normas e institui-
ções reguladoras do mercado de valores mobiliários158. Isto significa
que conseguir admissão nas bolsas daquele país implica, para as
companhias, em altos custos, decorrentes do cumprimento de tais
regulações.
Os American Depositary Receipts (ADR) são, pode-se afirmar,
soluções, desenvolvidas originalmente nos Estados Unidos da
América, para aquelas companhias que desejam colocar os valores
mobiliários de sua emissão à negociação no mercado norte-ameri-
cano sem terem que se submeter a todas as exigências legais para
sua inclusão diretamente nas bolsas de valores daquele país.
Atualmente, esta modalidade de derivativos tornou-se um
interessante meio para que companhias de países estrangeiros –
especialmente as estabelecidas em regiões menos desenvolvidos

158 Um dos aspectos mais evidentes desta regulação consubstancia-se nos altos padrões de
transparência negocial exigidos pela legislação norte-americana, a qual tem no denominado
Sarbane-Oxley Act um de seus pilares. Referida frequentemente pelas siglas SARBOX ou
SOX, tal lei, editada em 2002, representou grande alteração nas regras de transparência e
governança corporativa, estabelecendo padrões de conduta elevados para as companhias
que negociem no mercado de valores mobiliários norte-americano.
É incerto se os requisitos de transparência e governança corporativa fixados pela SOX são
realmente eficientes ou se, em verdade, representam mais custos do que efetiva melhoria no
funcionamento do mercado de valores mobiliários daquele país. Veja-se, como exemplo, o
texto de PIOTROSKI. Joseph. SRINIVASAN. Badrinath. Regulation and Bonding: The Sarbanes-
Oxley Act and the Flow of International Listings. Rock Center for Corporate Governance.
Stanford University Working Paper n. 11. 2008. Disponível em: ssrn.com.

152 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


economicamente - possam captar recursos no mercado norte-a-
mericano mesmo sem estarem autorizadas a negociar diretamente
nos Estados Unidos da América159.
Em sua forma básica, a operação se inicia quando uma insti-
tuição financeira ou similar, autorizada a negociar no país das com-
panhias interessadas em captar recursos no mercado norte-ame-
ricano, adquire valores mobiliários por elas emitidos e, a partir de
então, os mantém em custódia.
Assim, por exemplo, uma instituição financeira autorizada a
negociar no Brasil adquire valores mobiliários emitidos por com-
panhias abertas brasileiras - não listadas no mercado norte-ame-
ricano, mas interessadas em captar recursos lá - e os mantém em
custódia.
Em seguida, a instituição custodiante dos valores mobiliários
emitidos estabelece um convênio com outra instituição financeira
ou similar, desta vez situada nos Estados Unidos e autorizada a ne-
gociar no mercado de valores mobiliários daquele país.
Em virtude desse convênio, a instituição financeira norte-a-
mericana pode emitir os ADR’s (American Depositary Receipts) aqui
tratados, os quais são documentos que conferem aos seus titulares,
no mercado norte-americano, os mesmos direitos que eles teriam
se adquirissem os títulos originais - oriundos das companhias es-
trangeiras - e que, por sua vez, permanecem em custódia na insti-
tuição que os adquiriu, no início da operação.160
Os direitos em relação às companhias emissoras dos valores
mobiliários são exercidos pela instituição que tenha tais títulos em
custódia, mas os ganhos financeiros decorrentes destes papéis são
159 BORBA. José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14a edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2015.
Pg. 182.
160 “Em suma, há um título emitido em determinado país que é adquirido por uma instituição
financeira desse país, que os mantém em custódia. Uma instituição financeira norte-americana
faz um convênio com a primeira instituição financeira emitindo no seu território [no caso, os
Estados Unidos da América] os títulos que serão efetivamente negociados. Tais títulos são
denominados ADR (American Depositary Receipts), porquanto os titulos reais estão depositados
na instituição financeira norte-americana, sendo negociados apenas os recibos de tais
depósitos.” (TOMAZETTE. Marlon. Curso de Direito Empresarial. Vol. I. 6ª edição. Ed. Atlas. São
Paulo. 2014. Pg. 492).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 153


direcionados, por meio da instituição financeira norte-americana,
aos titulares dos ADR´s.
O mercado de valores mobiliários brasileiro admite e regula-
menta, na Resolução n. 182/2023 da CVM (e alterações), operação
análoga, a qual se efetiva pela emissão dos Brazilian Depositary Re-
ceipts – BDR´s. Trata-se de certificados de depósito, negociados no
mercado de valores mobiliários brasileiro, mas vinculados a títulos
emitidos por companhia abertas como sede no exterior161
No caso dos BDR´s o investidor os adquire, no mercado brasi-
leiro, de instituição financeira devidamente autorizada, pelo Banco
Central e pela C.V.M, a realizar a operação no Brasil. Esta instituição
financeira, por sua vez, mantém convênio com a custodiante dos
valores mobiliários - uma instituição financeira estrangeira – que fo-
ram emitidos por companhias abertas situadas no exterior.
Os BDR´s são, então, um meio de permitir que companhias
abertas estrangeiras captem recursos no mercado de valores mo-
biliários brasileiro sem precisar atender à totalidade das regras de
admissão fixadas na legislação e pela Comissão de Valores Mobili-
ários162.

6 - Debêntures

As sociedades – sejam elas anônimas ou limitadas – têm, em


essência, dois principais meios para captação dos recursos finan-
ceiros necessários às suas atividades negociais.

161 Brazilian Depositary Receipts (BDRs) são certificados de depósito de valores mobiliários
emitidos no Brasil que representam valores mobiliários de emissão de companhias abertas
com sede no exterior
162 “A função econômica dos BDRs é a de permitir que emissores estrangeiros captem recursos
do mercado de capitais brasileiros através da negociação com valores mobiliários lastreados
em títulos de sua emissão, o que, com o desenvolvimento da economia e do mercado de capitas
nacionais, tem alcançado significativa importância”. TESTA. Pedro. Anotações sobre o regime
jurídico dos Brazilian Depositary Receipts. (IN). ADAMEK. Marcelo Vieira Von. (Coord.). Temas
de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Ed. Malheiros. São Paulo. 2011. Pg. 553.

154 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O primeiro deles está na contribuição dos sócios e se concre-
tiza quando cada um deles integraliza suas respectivas quotas ou
ações e, assim, se tem constituído o capital social.
O segundo está na contratação de empréstimos – de curto,
médio ou longo prazos para pagamento – no denominado mercado
financeiro, composto essencialmente, no polo credor, por institui-
ções bancárias.
Tratando-se de uma companhia aberta, nota-se que estes
dois meios de captação estão corporificados, respectivamente, no
mercado de valores mobiliários – onde ela pode lançar suas ações
e, uma vez negociando-as, angariar recursos advindos de novos só-
cios – e no mercado bancário, onde ela pode obter empréstimos
destinados a viabilizar suas atividades e/ou investimentos163.
Indispensável, porém, salientar que ambas as formas de cap-
tação – mercado de valores mobiliários ou mercado bancário – têm,
para a companhia, diferentes custos a serem considerados.
A captação de recursos através do lançamento de novas
ações – e, em consequência, admissão de novos sócios – implica
em alteração da estrutura de controle e poder sobre a sociedade.
A entrada de novos integrantes modifica o percentual de todos no
capital social e, em virtude disso, altera o exercício de certos direitos
de sócio, principalmente no que diz respeito ao percentual de cada
um sobre os lucros e nas deliberações sociais.
O custo elementar da captação de recursos, por uma com-
panhia aberta, através do lançamento de novas ações no mercado
de valores mobiliários é, portanto, esta alteração – a princípio per-
manente, diga-se de passagem – no percentual de todos os sócios
sobre o capital social.
Já a busca por dinheiro através de empréstimos contraídos
no mercado bancário impõe, à companhia/mutuária, os encargos –

163 Este modelo de captação deixa de lado algumas situações que podem ser chamadas de
“híbridas”. É o caso, por exemplo, dos sócios que emprestam dinheiro à pessoa jurídica, de
bancos que investem na sociedade em troca de direitos de sócio ou mesmo das sociedades
que emitem novas ações ou quotas a serem totalmente integralizadas – respeitada a
preferência de cada um – pelos atuais integrantes.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 155


essencialmente constituídos por juros, correção monetária e garan-
tias – exigidos, pelos bancos, para a realização do contrato. O custo
elementar da captação de recursos no mercado bancário está, por
óbvio, nos encargos financeiros atrelados ao contrato.
Sócio e credor têm em comum, pode-se afirmar, o fato de se-
rem, cada um a seu modo, os provedores dos recursos financeiros
a serem empregados pela sociedade no exercício de sua atividade.
São, porém, significativas as diferenças entre um e outro, como se
passa a demonstrar.
O direito do credor contra o devedor – no caso, a sociedade
– é, pode-se dizer, incondicionado, posto que futuramente exigí-
vel desde a data de sua criação. O credor de uma sociedade tem,
desde a data de constituição de seu crédito, o direito de exigir, no
futuro, o valor emprestado, mais os encargos financeiros oferecidos
pela devedora.
Já o sócio tem, neste sentido, o que se pode chamar de di-
reito condicionado, posto que, por um lado, sua remuneração se
consubstancia na participação dos lucros gerados pelo empreen-
dimento – os quais não são garantidos – e, por outro lado, a resti-
tuição do valor de seus títulos somente se dará com a dissolução
parcial – exclusão ou recesso – ou total da pessoa jurídica.
Tem-se, neste sentido, que o credor pode exigir o valor do
principal mais os encargos oferecidos, e este direito existe desde
a constituição de sua relação com sociedade devedora. Já o sócio
somente poderá exigir a sua forma de remuneração própria – par-
ticipação nos lucros – se as atividades de sociedade forem econo-
micamente bem sucedidas e, além disso, o valor por ele investido
somente será reembolsado – após descontados os débitos da pes-
soa jurídica - em caso de recesso ou dissolução total da companhia.
De outro lado, o direito do credor contra a sociedade deve-
dora é quantitativamente limitado, posto que consiste no valor do
principal mais os encargos financeiros preestabelecidos. O credor
não pode exigir e não receberá nada além disso.

156 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Já o sócio, por sua vez, é remunerado na forma de participa-
ção nos lucros gerados pelas atividades da sociedade, os quais
são potencialmente ilimitados. Assim, quanto maior for o sucesso
financeiro da companhia, proporcionalmente será maior a remune-
ração do sócio, na forma de participação nos lucros gerados. Isto
não ocorre com o credor, cujo crédito é, como se viu, exigível, mas
limitado aos valores preestabelecidos.
Uma terceira diferença está na modalidade de risco de cada
um destes tipos de investimento. O risco do credor está na possível
incapacidade patrimonial de pagamento do devedor – no caso, a
sociedade. Trata-se do que se pode chamar de risco de insolvência.
O credor não recebe se o devedor não tiver bens suficientes para
honrar tal compromisso.
Já o sócio assume uma outra modalidade de risco, que é o
de fracasso econômico das atividades a serem desenvolvidas pela
sociedade. Como já salientado, todas as sociedades têm finalidade
lucrativa. Isto, porém, não significa que todas elas alcançarão o lu-
cro almejado. Assim, se a sociedade não for economicamente bem
sucedida, não haverá lucro a partilhar. O risco do sócio é, portanto,
o risco de insucesso da sociedade.
Por fim, uma quarta significativa distinção entre credores e só-
cios está na prerrogativa de interferir ou não sobre os atos a serem
praticados pela devedora e sobre a gestão do patrimônio dela.
Em princípio, os sócios têm direito de participação na socie-
dade, o qual se desdobra exatamente na prerrogativa de votar nas
deliberações sociais e na eleição dos administradores do patrimô-
nio e atividades sociais. Já o credor não tem, em regra, tal poder de
participação, permanecendo – ao contrário – alheio à forma pela
qual age a sociedade devedora e são escolhidos os gestores do
capital por eles fornecido164.

164 Vale repetir que esta distinção leva em conta a realidade fundamental de credores e
sócios. Com o evoluir do regime jurídico das sociedades e formas de captação de recursos,
acabaram por ser desenvolvidas formas “híbridas”, como as debêntures perpétuas, as
conversíveis em ações ou com remuneração vinculada aos lucros obtidos pela sociedade
devedora e mesmo as ações preferenciais sem direito de voto e sem prioridade na repartição

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 157


A debênture, valor mobiliário de grande utilização, apresen-
ta-se como um instrumento que permite à companhia emissora
captar recursos sem, por um lado, ter que admitir novos sócios – e,
portanto, alterar sua estrutura interna de poder – e, por outro, sem a
necessidade de se sujeitar aos encargos financeiros impostos pelo
mercado bancário.
A debênture é, no caso das companhias abertas, negociada
no mercado de valores mobiliários, mas representa, em essência,
um contrato de mútuo/empréstimo de dinheiro no qual a emissora
dos títulos é a mutuária/devedora e o adquirente da debênture –
debenturista – é o mutuante/credor.
Trata-se, assim, de um valor mobiliário que confere direitos de
credor sob uma estrutura jurídica de emissão e negociação muito
próximas àquela reservada aos direitos de sócio. Em outras pala-
vras: as debêntures são direitos de crédito emitidos e negociados
como direitos de sócio.
Este título capta recursos no mercado de valores mobiliários,
mas sem entregar direitos de sócio e, de outro lado, torna a compa-
nhia devedora em empréstimos nos quais ela - e não o mutuante/
credor – é, em princípio, a parte que fixa as condições e encargos
de pagamento e garantia.
A debênture é um valor mobiliário – e, ao mesmo tempo, um
título de crédito – que confere ao seu titular, o chamado debentu-
rista, o direito de cobrar da companhia emissora, ao final do prazo
estabelecido, o valor a ela referente, acrescido de encargos e ou-
tros benefícios eventualmente fixados. Ao adquirir uma debênture,
o seu titular está emprestando o valor pago por ela à companhia
emissora e esta, por sua vez, se obriga a restituir tal valor – mais os
possíveis encargos – na data futura fixada no ato de lançamento do
título (Lei n. 6.404/76 art. 52).
A decisão de emitir debêntures é, segundo o art. 59 da Lei n.
6.404/76, de competência privativa da Assembleia Geral de Acio-

dos lucros.

158 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


nistas da companhia165, à qual igualmente cabe deliberar e aprovar
os itens enumerados pelo citado texto legal166.
Por se tratar, como salientado, de um valor mobiliário que con-
substancia, em essência, uma operação de empréstimo de dinheiro
à companhia emissora, a deliberação sobre a emissão de debêntu-
res deve aprovar, nos termos da Lei n. 6.404/76, os direitos dos de-
benturistas, em especial no que diz respeito à data de vencimento
dos títulos e possibilidade de resgate antecipado (art. 55), juros e
correção monetária oferecidos (art. 56) e instrumentos de garantia
de pagamento (art. 58).
Estas e as demais prerrogativas dos debenturistas serão es-
tipuladas em um documento denominado Escritura de Emissão
das debêntures (art. 61 da Lei n. 6.404/76). Este documento deverá
ser aprovado pela Assembleia Geral de Acionistas da companhia
emissora, registrado – juntamente com a ata da Assembleia que o
aprovou – no Órgão de Registro Público de Empresas mercantis (art.
62 da Lei n. 6.404/76) e também respeitar as eventuais exigências
aprovadas pela Comissão de Valores Mobiliários, quando as debên-
tures forem destinadas à negociação em bolsa de valores ou no
mercado de balcão.
É obrigatória, nos casos de negociação pública de debêntu-
res – ou seja, de debêntures destinadas a serem comercializadas na
forma do art. 17 par. 3º da Lei n. 6.385/76 – a atuação do chamado

165 Segundo o par. 1º do art. 59 da Lei n. 6.404/76 o conselho de administração pode, nas
companhias abertas, deliberar sobre a emissão de debêntures não conversíveis em ações,
salvo disposição estatutária em contrário.
166 Art. 59. A deliberação sobre emissão de debêntures é da competência privativa da
assembleia-geral, que deverá fixar, observado o que a respeito dispuser o estatuto :I - o valor da
emissão ou os critérios de determinação do seu limite, e a sua divisão em séries, se for o caso;
II - o número e o valor nominal das debêntures; III - as garantias reais ou a garantia flutuante,
se houver; IV - as condições da correção monetária, se houver; V - a conversibilidade ou não
em ações e as condições a serem observadas na conversão; VI - a época e as condições de
vencimento, amortização ou resgate; VII - a época e as condições do pagamento dos juros, da
participação nos lucros e do prêmio de reembolso, se houver; VIII - o modo de subscrição ou
colocação, e o tipo das debêntures.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 159


agente fiduciário dos debenturistas167, o qual será indicado na Escri-
tura de Emissão dos títulos (art. 66 da Lei n. 6.404/76).
O regime jurídico do agente fiduciário dos debenturistas está
fixado pelos artigos 66 a 69 da Lei n. 6.404/76. Trata-se, em sín-
tese, de um representante dos debenturistas perante a sociedade
emissora, com a função precípua de zelar pelos interesses de seus
representados e, principalmente, pelo integral e tempestivo cum-
primento de todas as condições previstas na Escritura de Emissão
dos títulos.
Sua obrigatoriedade nas emissões públicas de debêntures se
justifica pois, como salientado, os credores não têm, em regra, inge-
rência sobre os atos praticados pelo devedor, no caso representado
pela companhia emissora168.
A presença do agente fiduciário é, assim, uma forma de ga-
rantir a este grupo de investidores um canal de comunicação mais
eficiente com a companhia emissora, principalmente no que tange
ao cumprimento das condições oferecidas pela debênture.
As debêntures são, como as ações, emitidas em forma no-
minativa (art. 63 da Lei n. 6.404/76) e obrigatoriamente em grupo,
podendo cada emissão ser subdividida em diferentes séries, cada
uma delas conferindo iguais direitos aos seus titulares (art. 53 da Lei
n. 6.404/76).
Uma modalidade particularmente interessante e útil deste va-
lor mobiliário é aquela disciplinada pelo art. 57 da Lei n. 6.404/76.
Trata-se das denominadas debêntures conversíveis, que têm esse
nome por conterem, em sua Escritura de Emissão, a possibilidade
167 Art. 66 par. 1º da Lei n. 6.404/76: somente podem ser nomeados agentes fiduciários
as pessoas naturais que satisfaçam os requisitos para o exercício de cargo em órgão de
administração da companhia e as instituições financeiras que, especialmente autorizadas
pelo Banco Central do Brasil, tenham por objeto a administração ou a custódia de bens de
terceiros.
168 O art. 71 da Lei n. 6.404/76 disciplina a denominada Assembleia Geral de Debenturistas,
da qual podem participar todos os titulares de debêntures de uma mesma emissão. Vale
ressaltar, entretanto, que tal assembleia somente tem competência para aprovar ou não atos
da companhia que modifiquem diretamente os direitos destes debenturistas em relação à
sociedade emissora dos títulos. Não tem este órgão, portanto, qualquer competência sobre
os atos de gestão da companhia devedora das debêntures.

160 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


de que, na data de seu vencimento, sejam convertidas em ações da
sociedade emissora.
Nas debêntures conversíveis o debenturista – credor – da so-
ciedade poderá tornar-se sócio, caso seja implementada esta con-
versão. A conversibilidade da debênture deve ser prevista em sua
Escritura de Emissão, à qual também caberá fixar a espécie e classe
de ações nas quais poderá converter-se, a época e prazo de con-
versão e, principalmente, as denominadas “bases de conversão”, ou
seja: qual a proporção de ações para cada debênture ou vice-versa.
A conversibilidade ora tratada evita, por um lado, que a com-
panhia emissora tenha que desembolsar, na época do resgate das
debêntures, o valor integral delas, que passará a integrar o capital
social. Por outro, oferece ao debenturista a opção de tornar-se sócio
do empreendimento, caso decida acatar a oferta de conversão.
Importante salientar que a conversibilidade da debênture
deve, além de prevista na Escritura de Emissão, ser deliberada e
aprovada pela Assembleia Geral de Acionistas da companhia emis-
sora e, além disso, ser acolhida pelo debenturista, em decisão in-
dividual. Assim, a conversão dependerá da adesão tanto da com-
panhia emissora – através de sua assembleia geral de acionistas
– quanto do debenturista.
Duas outras modalidades de debêntures que ficam, pode-se
dizer, “a meio caminho” entre os direitos de crédito e os de sócio são
aquelas cuja remuneração do debenturista é vinculada aos lucros
advindos das atividades da sociedade (art. 59, VII da Lei n. 6.404/76)
e as denominadas debêntures “perpétuas”, cujo vencimento – e exi-
gibilidade – somente ocorre nos casos de inadimplência da obri-
gação de pagar juros, dissolução da companhia ou outras causas
eventualmente previstas na Escritura de Emissão (art. 55 par. 4º da
Lei n. 6.404/76).
No caso das debêntures com remuneração vinculada aos lu-
cros obtidos pela sociedade emissora, quebram-se algumas das
premissas da relação credor/devedor, como a exigibilidade incon-
dicionada do valor do crédito e a limitação deste ao montante em-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 161


prestado, mais encargos previstos. Ao contrário, na hipótese ora tra-
tada o debenturista tem sua remuneração condicionada à ocorrên-
cia do lucro e, por outro lado, vê os frutos de seu investimento lhe
remunerarem proporcionalmente ao sucesso do empreendimento.
Já nas debêntures “perpétuas” o objetivo do debenturista não
é receber de volta, no futuro, o valor emprestado, mas continuar
indefinidamente recebendo, da sociedade emissora, os juros e de-
mais encargos previstos. Enquanto a companhia lhe pagar os juros
e demais encargos previstos, este debenturista não poderá exigir o
reembolso do valor emprestado.
Para a companhia, trata-se de um mecanismo que lhe per-
mite usar o capital de terceiros pagando encargos por ela própria
estipulados, na Escritura de Emissão das debêntures “perpétuas”.
Já para o debenturista a vantagem está em aplicar seu capital na
sociedade emissora e usufruir periodicamente de rendimentos ad-
vindos deste empréstimo.
Há, além das debêntures, pelo menos duas outras modalida-
des de valores mobiliários caracterizados como títulos de crédito e
suscetíveis de emissão e negociação pública ou privada. São eles
a Nota Comercial (regulada pela Lei n. 14.195/2021) e as Notas Pro-
missórias (chamadas também de commercial papers) regulamenta-
das pela Res. n. 162/2022 da Comissão de Valores Mobilários.
Tanto Notas Comerciais quanto Notas Promissórias corporifi-
cam, nos moldes das debêntures, um direito de crédito – ou seja,
recebimento futuro de dinheiro – do titular em face da sociedade
que venha a emitir tais valores mobiliários.
Por causa de sua essência idêntica, Debêntures, Notas Co-
merciais e Notas Promissórias têm, portanto, a mesma finalidade,
qual seja a já discutida possibilidade de captação de recursos finan-
ceiros de terceiros, para o exercício das atividades societárias, sem
a entrada de novos sócios.
Vale acrescentar, no caso das Notas Comerciais e Notas Pro-
missórias, a expressa previsão de sua emissão por sociedades li-
mitadas e cooperativas, o que representa, indubitavelmente, uma

162 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


importante opção de financiamento, para estas pessoas jurídicas,
através de captação pública de recursos, algo em regra reservado
apenas às companhias abertas.
A Lei n. 14.195/21 caracteriza, em seus art. 45 a 50, a Nota Co-
mercial como título de crédito suscetível de execução extrajudicial
(independentemente de protesto), emitido somente sob forma es-
critural e no qual, como dito, se estabelece uma promessa de pa-
gamento de valor em dinheiro, em favor do adquirente, pela socie-
dade emissora.
A emissão destas Notas Comerciais é decidida, salvo previsão
em contrário nos atos contitutivos da sociedade, por deliberação
dos órgãos de administração, os quais são, no caso da Sociedade
Anônima, o Conselho de Administração (ou, inexistindo este, a Dire-
toria) e, nas limitadas ou cooperativas, seus administradores.
Dada sua forma escritural, o titular de uma Nota Comercial
prova esta condição com a certidão emitida pelo escriturador ou
depositário central (art. 48), o qual fica responsável por manter siste-
ma informatizado destinado ao armazenamento e processamento
de informações sobre a titularidade e negociações envolvendo as
Notas Comerciais.
Além disso, a Lei n. 14.195/21 exige que qualquer alteração no
direito dos titulares de Notas Comerciais seja submetida à aprova-
ção deles, reunidos em assembleia cuja validade está condicionada
ao cumprimento das mesmas formalidades reservadas às assem-
bleia de debenturistas.
As companhias, sociedades limitadas e, em certos casos,
mesmo cooperativas (art. 2º par. 2º da Res. 163/22 C.V.M) podem
emitir também Notas Promissórias – ou commercial papers – a se-
rem distribuídas no mercado de valores mobiliários.
São tais Notas Promissórias reguladas pela Resolução n.
163/22 da Comissão de ValoresMobiliários e, em relação às debên-
tures e notas comerciais, guardam a peculiaridade de apresenta-
rem forma cartular (transferível por endosso) e menor prazo de res-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 163


gate, o que as torna adequadas para operações de financiamento
de curto prazo.

7 – Partes beneficiárias e Bônus de subscrição

Juntamente com as ações e as debêntures, estes são os úni-


cos valores mobiliários cujo regime jurídico está expressa e espe-
cificamente disciplinado na Lei n. 6.404/76. Apesar disso – e ao
contrário das ações e debêntures – bônus de subscrição e partes
beneficiárias não chegam a ter grande relevância no contexto das
companhias brasileiras, sendo mesmo de se constatar sua restrita
aplicação prática.
A essência de partes beneficiárias e bônus de subscrição está
em serem, ambos, valores mobiliários que conferem aos seus titu-
lares um – ou alguns – dos direitos essenciais dos acionistas. Seus
titulares não são sócios da companhia, mas, em virtude dos títulos
aqui tratados, terão um ou mais dos direitos essenciais conferidos
pela Lei n. 6.404/76 (art. 109) aos acionistas.
No caso das partes beneficiárias, o direito de sócio conferido é
o de participação nos lucros gerados pelas atividades da pessoa ju-
rídica. Trata-se do que a Lei n. 6.404/76 chama de “crédito eventual”
contra a companhia, consistente na participação nos lucros anuais,
até o máximo de 10% (dez por cento) do valor a ser distribuído (art.
46 par. 1º e 2o).
As partes beneficiárias são criadas por previsão expressa nos
estatutos da companhia e, como visto, quem adquire este valor mo-
biliário terá o direito a perceber – pelo prazo de duração estipulado
- uma parcela dos lucros gerados pela pessoa jurídica, mas sem os
demais direitos dos acionistas, excetuado o de fiscalizar as ativida-
des dos administradores (Lei n. 6.404/76 ar. 46 par. 3º).
Duas relevantes observações quanto às partes beneficiárias
são, em primeiro lugar, a de que é proibida sua emissão por com-
panhias abertas e, em segundo lugar, o fato de que podem – em
curiosa exceção aos atos empresariais em geral - ser emitidas e

164 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


conferidas a título gratuito, como forma de remuneração a serviços
prestados à companhia por terceiros ou mesmo como meio de con-
tribuições beneficentes a fundações ou entidades similares (art. 47
caput e par. único da Lei n. 6.404/76).
Já os bônus de subscrição – disciplinados pelos artigos 75
a 79 da Lei n. 6.404/76 – são valores mobiliários nominativos que
conferem aos seus titulares o direito de preferência na aquisição
de novas ações a serem emitidas pela companhia, outro dos direi-
tos elencados pelo art. 109 da Lei n. 6.404/76 como essenciais aos
acionistas.
Trata-se, assim, de um valor mobiliário a ser adquirido por
terceiros que desejam ter preferência – inclusive sobre os acionis-
tas da companhia – na aquisição de novas ações a serem futura e
eventualmente emitidas pela sociedade. Quem adquire um bônus
de subscrição169 paga para ter preferência na aquisição de futuras
emissões de ações da companhia170.

169 A decisão de emitir os bônus de subscrição é da assembleia geral de acionistas, podendo


o estatuto social atribuir tal competência ao Conselho de Administração (Lei n. 6.404/76 art.
76).
170 Os acionistas da companhia têm preferência na aquisição dos eventuais bônus de
subscrição emitidos, de forma a poderem preservar, cada um deles, seu respectivo percentual
no capital social.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 165


166 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo V
Ações, quotas e direitos de sócio

1 – Ações: espécies e formas

O art. 15 da Lei n. 6.404/76 prevê a possibilidade de criação, em


uma mesma companhia, de até três diferentes espécies de ações.
Destas, apenas duas são efetivamente empregadas - as ações or-
dinárias e as ações preferenciais - e se diferenciam em razão dos
direitos e vantagens que conferem a seus titulares171.
Ainda segundo a natureza ou forma de concessão de deter-
minados direitos ou vantagens a seus titulares, as ações ordinárias
de companhias fechadas e as ações preferenciais de companhias
abertas ou fechadas podem ser, por previsão estatutária, subdividi-
das em diferentes classes (art. 15 par. 1º da Lei n. 6.404/76)172.
As chamadas ações ordinárias são normalmente conceitua-
das como a espécie que confere a seus titulares a integralidade do
“estado de sócio” ou “direito de participação”, pois assegura a es-
tes acionistas, além dos seus direitos essenciais (art. 109 da Lei n.
6.404/76), a faculdade de intervir, com base no direito de voto, nas
deliberações sociais em geral.
As ações ordinárias são as únicas de existência obrigatória,
tanto nas companhias abertas quanto nas fechadas. Isto significa
171 A terceira espécie de ação é a denominada ação de fruição, que pode ser emitida em
caso de amortização de ações ordinárias ou preferenciais (art. 44 par. 5º da Lei n. 6.404/76).
Ocorre que, como constata a doutrina, elas são inexistentes na prática societária brasileira. “A
amortização – operação raríssimamente praticada pelas companhias brasileiras – consiste na
distribuição, aos acionistas, a título de antecipação e sem redução do capital social, de quantias
que lhes poderiam tocar em caso de liquidação da companhia (art. 44 par. 2º)”. CORRÊA-LIMA.
Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2003. Pg. 51.
172 As ações ordinárias de companhias abertas não podem, salvo a previsão de voto plural,
ser subdivididas em diferentes classes. Já nas companhias fechadas, as classes de ações
ordinárias podem ser reguladas em função de um ou alguns dos critérios previstos no art. 16
da Lei n. 6.404/76, que são: admissão de voto plural, conversibilidade em ações preferenciais,
exigência de nacionalidade brasileira do acionista ou direito de voto em separado para o
preenchimento de determinados cargos administrativos.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 167


que, salvo previsão estatutária, a totalidade do capital da compa-
nhia será composto por ações desta espécie, o que coloca todos os
seus acionistas no mesmo grau de direitos e deveres em relação à
sociedade.
As ações preferenciais, por sua vez, decorrem de criação es-
tatutária, tanto nas companhias abertas quanto fechadas. Assim,
elas somente existem quando forem previstas no estatuto social,
ao qual também cabe estruturar, dentro das premissas fixadas em
lei, os direitos e possíveis restrições aplicáveis aos seus titulares (art.
19 da Lei n. 6.404/76).
A característica que mais evidentemente individualiza as
ações preferenciais está no fato de terem, em relação às ações or-
dinárias, uma vantagem ou preferência especificamente a elas atri-
buída, por previsão estatutária. Tais vantagens podem ser de natu-
reza patrimonial (art. 17 da Lei n. 6.404/76) ou política (art. 18 da Lei
n. 6.404/76).
As vantagens patrimoniais que podem ser estatutariamente
atribuídas às ações preferenciais de uma companhia consistem em
prioridade na distribuição de dividendos – ou seja, do percentual
dos lucros a serem repartidos entre os acionistas - e/ou prioridade
no reembolso do capital (com ou sem prêmio) em caso de liquida-
ção da companhia.
Destas, apenas a prioridade no recebimento dos dividendos
a serem distribuídos pela companhia pode representar uma efeti-
va vantagem em relação às ações ordinárias, pois o reembolso do
capital somente se efetiva em caso de liquidação – e consequente
extinção - da companhia e após pagos todos os seus credores173.
As preferências de natureza política atribuíveis estatutaria-
mente às ações preferenciais consistem no direito de escolher, em
separado, um ou mais membros dos órgãos administrativos ou no

173 “Como são raras as dissoluções e liquidações de sociedades prósperas e solventes a


prioridade no reembolso do capital não deveria seduzir nenhum investidor na aquisição de
ações preferenciais” (CORRÊA-LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo
Horizonte. 2003. p. 59).

168 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


poder de vetar alterações em determinadas cláusulas do estatuto
social (art. 18 da Lei n. 6. 404/76).
Por outro lado, o estatuto social pode retirar das ações prefe-
renciais, por previsão expressa, um ou mais dos direitos pertinentes
às ações ordinárias, inclusive o direito de voto nas deliberações so-
ciais (art. 111 da Lei n. 6.404/76)174.
Assim - e diferentemente do que se tem nas ações ordinárias -
as ações preferenciais podem, em caso de previsão estatutária nes-
te sentido, ser “não votantes” nas deliberações sociais, o que acaba,
na prática, permitindo que o capital de uma companhia com ações
desta espécie seja dividido entre o “votante” e o “não votante” 175.
Afiguram-se elas, deste modo, como possível instrumento
de atração de capital para a companhia sem alteração no poder
de controle sobre as deliberações e gestão da sociedade, os quais
ficam concentrados nos titulares de ações ordinárias. Os titulares
de ações preferenciais – chamados preferencialistas – não votantes
são, portanto, um grupo de sócios sem poder de interferir nas de-
cisões da companhia e, por consequência, na estrutura interna de
controle.
A perda do direito de voto seria, em tese, “recompensada” pela
vantagem patrimonial ou política conferida pelos estatutos sociais,
o que faria da ação preferencial um investimento particularmente
atraente para o investidor interessado em retornos financeiros e não
em poder de decisão na companhia. Esta não foi, entretanto, a rea-
lidade das ações preferenciais sem direito a voto.
A existência de percentual significativo do capital social cons-
tituído por ações sem qualquer ingerência nas deliberações da
174 “Não menciona a lei, na verdade, como já notou Valverde, quais os direitos especiais que
possuem as ações ordinárias, a não ser o direito de voto nas reuniões assembleares (art. 110).
Em virtude do que, só se o estatuto contiver direitos especiais para as ações ordinárias é que, ao
criar ações preferenciais, poderá deixar de conferir tais direitos a ditas ações”. MARTINS. Fran.
Comentários à Lei das S.A. Vol. II. Tomo I. Ed. Forense. Rio de Janeiro. Pg. 52.
175 A retirada do direito de voto das ações preferencias é medida tão comum nos estatutos
sociais que chegam elas quase a serem confundidas com ações “sem direito de voto”, o que
não é exatamente correto. As ações preferenciais, uma vez criadas estatutariamente, só não
terão tal direito se o estatuto assim dispuser. Desta forma, nada impede que existam ações
preferenciais com direito de voto.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 169


companhia é objeto de constantes críticas176, especialmente se
considerado que até metade do capital social pode ser estruturado
na forma de ações “não votantes” ou como direito de voto restrito a
determinadas matérias (art. 15 par. 2º da Lei n. 6.404/76)177.
Por esta razão, as companhias abertas que desejam emitir
ações preferenciais sem direito de voto devem obrigatoriamente
conferir-lhes uma vantagem patrimonial mais significativa do que a
mera perspectiva de preferência no reembolso do capital social, em
caso de liquidação (art. 17 par. 1º da Lei n. 6.404/76).
Além disso, a Bolsa de Valores veda o acesso ao seu Novo
Mercado às companhias que tenham em seu capital ações prefe-
renciais sem direito a voto ou com direito de voto restrito nas deli-
berações sociais178.
Pode-se mesmo afirmar, em virtude disso, que a companhia
aberta com ações não votantes em seu capital acaba, em geral,
sendo considerada pelos investidores como desprovida de boas
práticas de governança corporativa e, em consequência, deixa de
ser opção atraente de investimento.
Em sua forma clássica, as ações eram individualmente cor-
porificadas em documentos escritos, de modo que a titularidade
sobre elas se provava com a posse legítima deles. Daí o termo “pa-

176 “A supressão do direito de voto às ações preferenciais e a ampliação ilimitada do percentual


do valor das subscrições de capital que podem ser por elas representadas têm as seguintes
consequências: - causam prejuízos aos acionistas não controladores, na medida em que
concentram todo o poder da companhia em mãos de poucos;- afetam de modo radical a
estrutura da sociedade anônima, rompendo o equilíbrio de poder;- facilitam enormemente as
cessões de controle e, portanto, a formação de conglomerados e a concentração empresarial”
CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Vol. I. Ed. Saraiva. São
Paulo. 2015. Pg. 126.
177 Há, porém, uma situação na qual os acionistas titulares de ações preferenciais adquirirão,
por força de lei - e, portanto, ainda que os estatutos digam o contrário - o direito de voto.
Trata-se do chamado voto contingente, previsto pelo § 1o do art. 111 da Lei n. 6. 404/76: As
ações preferenciais sem direito de voto adquirirão o exercício desse direito se a companhia,
pelo prazo previsto no estatuto, não superior a três exercícios consecutivos, deixar de pagar os
dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus, direito que conservarão até o pagamento, se tais
dividendos não forem cumulativos, ou até que sejam pagos os cumulativos em atraso.
178 Sobre as regras admissionais Novo Mercado da B3: https://www.b3.com.br/pt_br/
produtos-e-servicos/solucoes-para-emissores/segmentos-de-listagem/novo-mercado/ Site
consultado em 18/01/24.

170 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


péis” ser ainda adotado para se referir às ações ou outros valores
mobiliários emitidos por uma companhia.
Com a informatização dos processos inerentes ao mercado
de valores mobiliários, as ações deixaram de ser consubstanciadas
em documentos escritos e, em virtude disso, também a forma de
provar a condição de acionista foi alterada.
Segundo a atual redação dada ao art. 20 da Lei n. 6.404/76, só
há uma modalidade de prova e transferência da titularidade sobre
ações, que é através do lançamento do nome do acionista em um
instrumento de registro legalmente previsto. Neste sentido, todas
as ações existentes no direito brasileiro assumem a denominada
forma nominativa179.
As ações nominativas são aquelas cuja propriedade presume-
-se pela inscrição do nome do acionista no “Livro de Registro de
Ações Nominativas”. Trata-se de um livro no qual são registrados
todos os acionistas da companhia, com suas respectivas participa-
ções no capital social, assim como as eventuais transferências (art.
31 par. 1º da Lei n. 6.404/76) e/ou constituição de ônus reais sobre
tais ações, como penhor, caução, usufruto, fideicomisso ou aliena-
ção fiduciária (art. 39 e 40 da Lei n. 6.404/76).
Assim, o acionista prova sua condição pela simples identifica-
ção pessoal, a qual será conferida com o respectivo registro no livro
ora mencionado. Se o nome de uma pessoa está no “Livro de Re-
gistro de Ações Nominativas” ela é, para todos os efeitos, titular da
condição de sócio daquela companhia180 e pode exercer os direitos
daí decorrentes181.
179 As ações transferíveis por endosso – denominadas ações endossáveis – ou por mera
tradição – as ações ao portador – não mais são admitidas no direito brasileiro, posto que
extintas por força da Lei n. 8.021/1990.
180 “Trata-se de presunção relativa, que pode ser afastada em decorrência de sentença
judiciária que, por exemplo, declare ser outra pessoa o proprietário das ações registradas
falsamente em nome de terceiro”. VERÇOSA. Haroldo Malheiros Duclerc. Direito Comercial –
Sociedade por ações. 3ª edição. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2014. Pg. 143.
181 Quando ocorre uma mudança na titularidade das ações da companhia, esta será lançada
no “Livro de Transferência de Ações Nominativas”, com a devida assinatura de alienante e
adquirente ou de seus representantes (como as sociedades corretoras, nas operações
realizadas em bolsa de valores).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 171


Por outro lado, é possível que as companhias brasileiras dis-
ponham dos serviços de uma instituição financeira destinada à cus-
tódia182 das ações ou outros valores mobiliários por elas emitidos
(Lei n. 6.404/76, art. 41).
O exercício desta atividade de custódia é privativo de institui-
ções financeiras devidamente autorizadas pela Comissão de Valo-
res Mobiliários (art. 34 par. 2º da Lei n. 6.404/76) e, nesta hipótese,
cabe a esta instituição custodiante o dever de manter um mecanis-
mo de registro destinado tanto a enumerar todos os titulares das
ações e outros valores mobiliários de emissão daquela sociedade
quanto para formalizar as eventuais transferências.
Neste caso, a prova da condição de acionista se faz por meio
de extrato emitido pela instituição financeira custodiante destas
ações, e sua transferência se opera mediante a apresentação e en-
trega de autorização judicial ou – como é mais comum – por meio
de ordem escrita dada pelo alienante - ou seu representante - em
favor do adquirente (Lei n. 6.404/76, art. 35).
As ações registradas por instituições financeiras custodiantes
são denominadas ações escriturais e sua adoção total ou parcial
depende de previsão nos estatutos da companhia emissora (art. 34
da Lei n. 6.404/76), sendo elas especialmente interessantes para as
companhias abertas, nas quais há inúmeras transferências diárias –
e por meio eletrônico - de suas ações e demais valores mobiliários.
As ações escriturais são, em essência, simples variação das
ações nominativas, posto que sua propriedade e transferência tam-
bém se opera e prova por meio de registros próprios, aqui mantidos
pela instituição financeira custodiante e não pela companhia emis-
sora.

Tal transferência será posteriormente lavrada, pela companhia, também no “Livro de Registro
de Ações Nominativas”.
182 “Basicamente, a custódia de títulos compreende o serviço de guarda e o de exercício
de alguns dos direitos decorrentes dos títulos, os quais são prestados aos investidores pela
instituição custodiante”. TOMAZETTE. Marlon. Curso de Direito Empresarial. Vol. I... ob. Cit. Pg.
457.

172 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


2 – A quota social

Denomina-se quota a fração constitutiva do capital de uma


sociedade limitada ou qualquer outra daquelas disciplinadas pelo
Código Civil. Por consequência, pode-se afirmar que o valor do ca-
pital social destas sociedades é o resultado da soma aritmética do
valor das quotas em que está dividido.
Ao contrário do que se tem com as ações, as quotas não são
legalmente classificadas em diferentes espécies ou classes.
Assim (e se observadas estritamente as regras do Código Ci-
vil), as quotas conferem aos seus titulares os mesmos direitos e de-
veres em relação à sociedade, sem qualquer vantagem ou restrição
específica para algum ou alguns dos sócios.
Porém o Departamento Nacional de Registro Empresarial e
Inovação (DREI), que dispõe, entre outros assuntos, sobre o proce-
dimento de registro de sociedades limitadas, expressamente admi-
te a criação contratual de quotas preferenciais neste tipo societário,
desde que regido supletivamente pela Lei n. 6.404/76.
Também na doutrina há referência à possibilidade de exis-
tência destas quotas preferenciais, a serem – de forma análoga às
ações desta espécie – criadas por disposição no contrato social183.
As quotas preferenciais contam, em relação às outras demais
componentes do capital, com alguma especial vantagem política
ou patrimonial e estão, por outro lado, sujeitas à restrição total ou
parcial, no contrato social, do seu direito de voto.
As quotas componentes do capital de uma sociedade podem
ser de valores iguais ou diferentes entre si, assim como uma mes-
ma pessoa pode ser titular de uma ou várias delas (Código Civil, art.
1.055). Tem-se então que, em determinada sociedade, uma pessoa
pode ter cem quotas no valor de R$ 1,00 (um real) cada, enquanto
outra pode ser, por exemplo, titular de única quota no valor de R$
100,00 (cem reais).
183 PATROCÍNIO. Daniel Moreira do. Sociedade Limitada – Comentários. Ed. Juarez de Oliveira.
São Paulo. 2008. Pg. 26/27.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 173


O exercício dos direitos de sócio é diretamente proporcional
ao percentual que a quota ou as quotas de um sócio representam
no capital social. Assim, sejam cem quotas de R$ 1,00 (um real) cada
ou uma quota de R$ 100, 00 (cem) reais o percentual é, em ambos
os casos, o mesmo em relação ao montante total do capital social e,
em decorrência, os direitos de sócio serão exercidos, neste exem-
plo, em igual proporção.
O número de quotas integrantes do capital social, assim como
o valor e titularidade de cada uma delas, é fixado em cláusula cons-
tante do contrato social assinado por todos os sócios (Código Civil,
art. 997), instrumento no qual também são fixadas as formas de in-
tegralização de cada uma destas frações.
A condição de quotista se prova pela referência, em cláusula
do contrato social assinado por todos os sócios e devidamente ar-
quivado no órgão de registro competente, ao nome daquela pessoa
física ou jurídica como titular de uma ou mais quotas de determina-
da sociedade.
Já a transferência de titularidade sobre uma ou mais das quo-
tas integrantes do capital social se opera pelo arquivamento, igual-
mente no órgão de registro competente, de alteração no contrato
social assinada pelo alienante, pelo adquirente e demais sócios re-
manescentes.

3 – Participação nos lucros e outros direitos essenciais


dos sócios

A condição de sócio implica em direitos e obrigações muitas


vezes difíceis de serem analisados pois, em primeiro lugar, deve-se
considerar se há, por assim dizer, direitos e obrigações essenciais a
tal condição. Estes seriam aqueles sem os quais o “estado de sócio”
estaria descaracterizado e este pretenso integrante seria, de fato,
titular de outra relação com a sociedade, como a de credor, empre-
gado ou contratante.

174 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


No direito brasileiro há, no art. 109 da Lei n. 6.404/76, funda-
mental referência para a questão. Trata-se tal norma de um elenco
de “direitos essenciais” do acionista, posto que inatacáveis tanto pe-
los estatutos da companhia quanto por eventual decisão da assem-
bleia geral.
Ressalte-se, porém, que até estes direitos “essenciais” do
acionista estão sujeitos, para seu exercício, a limites e/ou condições
legalmente estipuladas, inexistindo, pode-se mesmo afirmar, direito
de sócio que se exerça de forma absoluta, tomada aqui como ilimi-
tada e incondicionada.
Embora sem um dispositivo expresso e sistematizado como o
ora citado artigo 109 da Lei n. 6.404/76, o Código Civil também con-
sagra, ainda que por vezes de maneira tácita, os mesmos direitos
essenciais para os quotistas, com importantes ressalvas que serão
abordadas.
O primeiro dos direitos essenciais à condição de sócio é o de
participação nos resultados econômicos gerados pela pessoa ju-
rídica. Referido tanto pelo art. 109 da Lei n. 6.404/76 quanto pelo
Código Civil (artigos 981 e 1.008)184, corporifica-se ele na distribuição
periódica, aos sócios, dos chamados dividendos, termo que iden-
tifica o percentual de cada um deles sobre os lucros gerados, no
período, pela atividade da sociedade185.
O direito aos lucros gerados pela sociedade é, em qualquer
modelo societário que se analise, essencial ao sócio. Porém, tra-
ta-se de um direito condicionado, posto que somente se configu-
ra quando houver lucros a serem distribuídos. Se, no período em
questão, não houve lucro decorrente das atividades da sociedade,
não há como se pretender distribuir dividendos aos sócios186.
184 O art. 981 do Código Civil inclui esta característica como inerente ao contrato de sociedade
e seu art. 1.008 fulmina com nulidade cláusula que retire este direito de qualquer dos sócios.
185 O direito de participar dos lucros da sociedade não se confunde com o denominado
“pro labore”, valor pago ao sócio que contribui, com seu trabalho, para a efetiva realização
do objeto social. “Seu pagamento, assim, deve beneficiar apenas os empreendedores, que
dedicaram tempo à gestão dos negócios sociais”. COELHO. Fábio Ulhôa. Curso de Direito
Comercial. Vol. II. 17ª edição. Ed. Saraiva. São Paulo. 2013. Pg. 455.
186 Exatamente por causa deste necessário caráter condicionado é que se descaracteriza

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 175


Desta forma, tanto a Lei n. 6.404/76 (art. 201 caput e par. 1º)
quanto o Código Civil (art. 1.009) proíbem expressamente que a so-
ciedade distribua aos sócios, como pretenso pagamento de divi-
dendos, parte de seu capital, além de atribuir aos administradores
da pessoa jurídica - e fiscais, no caso de companhias - responsabi-
lidade pessoal, ilimitada e solidária pela reposição dos valores irre-
gularmente distribuídos187.
Nas companhias, há regras legais que estabelecem, em caso
de existência de lucro, que um percentual mínimo deste lucro seja
obrigatoriamente distribuído aos sócios, na forma de dividendos.
Estes são os chamados dividendos mínimos obrigatórios, cuja dis-
ciplina está, basicamente, no art. 202 da Lei n. 6.404/76188.
A previsão de dividendos mínimos obrigatórios para os acio-
nistas tem, pode-se afirmar, o objetivo de evitar que a companhia
retenha todo o lucro em seu patrimônio, sem permitir que os acio-
nistas possam periodicamente perceber ao menos parte destes po-
sitivos resultados econômicos gerados pela pessoa jurídica.
Segundo a Lei n. 6.404/76 (art. 202, I), em caso de omissão dos
estatutos sociais sobre o assunto os acionistas têm direito a receber,
como dividendos mínimos obrigatórios, metade do lucro líquido do
período, a ser calculado na forma do ora citado texto legal.

a condição de sócio quando o membro da sociedade tem estipulado em seu favor,


por força de eventual cláusula contratual, certo pagamento periódico de “dividendos”,
independentemente da geração de lucro pela sociedade. A sociedade não pode assegurar
dividendos antecipadamente a nenhum sócio pois, como seu viu, estes somente decorrem
do efetivo e apurado lucro no período.
187 Na regra do art. 1.009 Código Civil, os sócios que sabiam ou deviam saber desta
distribuição irregular de dividendos são solidariamente responsáveis, juntamente com os
administradores da pessoa jurídica, por tal ato.
Já pela Lei n. 6.404/76 (artigo 201 par. 2º), os acionistas não são obrigados a restituir os
dividendos que em boa-fé tenham recebido, presumindo-se a má-fé quando tais dividendos
forem distribuídos sem o levantamento de balanço ou em desacordo com os resultados
deste.
188 Os tipos societários regulados pelo Código Civil não têm qualquer previsão sobre
percentuais mínimos dos lucros que devam ser obrigatoriamente repartidos aos sócios.
Assim, nas sociedades limitadas cabe aos sócios deliberarem sobre a distribuição ou não
dos lucros gerados pela pessoa jurídica, repartição essa que pode variar de zero à totalidade
destes lucros.

176 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Porém, estipula o par. 2º do mesmo art. 202 da Lei n. 6.404/76
que a assembleia geral de acionistas poderá inserir regra estatutária
referente ao percentual destes dividendos mínimos obrigatórios189.
Neste caso, os estatutos não poderão fixar os dividendos mínimos
obrigatórios em percentual inferior a 25% (vinte e cinco por cento) do
lucro líquido, apurado conforme os critérios do art. 202, I.
Há, porém, duas hipóteses - previstas no art. 202 da Lei n.
6.404/76 - nas quais a companhia poderá distribuir dividendos in-
feriores aos limites mínimos obrigatórios fixados pela lei ou pelos
seus estatutos, ainda que haja lucro suficiente para tal repartição.
A primeira delas se refere, nas companhias fechadas, à de-
cisão de sua assembleia geral de acionistas, sem que haja oposi-
ção de nenhum dos presentes (art. 202 par. 3º II da Lei n. 6.404/76).
Portanto, os próprios acionistas de uma companhia fechada podem
abdicar, por votação unânime entre os presentes, dos dividendos
mínimos obrigatórios a que fariam jus em um determinado exercício
social.
Nas companhias fechadas190 tem-se, portanto, a regra da dis-
positividade somada à disponibilidade dos dividendos mínimos obri-
gatórios, já que os estatutos podem disciplinar – dentro dos limites
legais - a matéria e, além disso, a assembleia geral de acionistas
pode, desde que sem oposição de qualquer dos presentes, abdicar,
em específico exercício social, de tais limites mínimos.
Já nas companhias abertas tem-se a dispositividade da ma-
téria – posto que o estatuto também pode cuidar do tema – mas

189 Em matéria de dividendos mínimos obrigatórios a regra é a da dispositividade, que se


refere ao poder do estatuto social para dispor sobre a matéria, com os limites legais somente
se aplicando em caso de omissão estatutária. “Com acerto, o legislador conferiu à própria
sociedade grande liberdade para desenhar a forma de distribuição de dividendos que melhor
adeque-se à sua realidade”. ROBERT. Bruno. Dividendo Mínimo obrigatório nas S.A – apuração,
declaração e pagamento. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2011. Pg. 97.
190 Também usufruem desta disponibilidade sobre os dividendos mínimos obrigatórios as
sociedades que tenham registro como companhias abertas apenas para fins de captação
de recursos no mercado de valores mobiliários através do lançamento de debêntures não
conversíveis em ações.
Por outro lado, as companhias fechadas controladas por sociedades anônimas abertas não
têm a prerrogativa aqui mencionada (art. 202 par. 3º, da Lei n. 6.404/76).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 177


não a disponibilidade dos dividendos ora tratados, uma vez que a
assembleia geral de acionistas não pode abdicar destes percentu-
ais mínimos.
A outra hipótese na qual uma companhia – aberta ou fechada,
neste caso – poderá distribuir aos seus acionistas dividendos infe-
riores ao limite mínimo obrigatório está prevista no art. 202 par. 4º
da Lei n. 6.404/76, o qual se refere à inadequação entre a situação
financeira da companhia e tal distribuição de dividendos.
Trata-se, em síntese, da hipótese em que uma companhia se
encontra em situação financeira particularmente instável e, em vir-
tude disso, precisa deixar de distribuir os dividendos mínimos obri-
gatórios para, com o lucro apurado no exercício social em questão,
tentar estabilizar-se economicamente.
Para que seja válida, esta opção de retenção dos dividendos
mínimos obrigatórios deve ser fundamentadamente informada pe-
los órgãos de administração da sociedade, corroborada por parecer
do Conselho Fiscal e, no caso das companhias abertas, justificada-
mente comunicada à Comissão de Valores Mobiliários, no prazo de
5 (cinco) dias (art. 202 par. 4º da Lei n. 6.404/76).
A distribuição de dividendos aos sócios é um dos direitos que
se exerce, em regra, com base no que se pode chamar de princí-
pio da proporcionalidade. Isto porque o percentual a que cada sócio
tem direito nos lucros gerados pela sociedade é, em princípio, dire-
tamente proporcional à sua participação no capital social.
Desta forma – e independentemente do tipo societário em
questão - o sócio que mais contribuiu para a formação do capital
social será, na mesma proporção, mais recompensado no momento
da repartição dos lucros gerados pelas atividades da pessoa jurídi-
ca.
O princípio da proporcionalidade na repartição dos dividendos
não é, entretanto, absoluto, nem no que diz respeito às sociedades
anônimas, nem no que se refere às sociedades limitadas e outras
regidas pelo Código Civil191.
191 O art. 1.007 do Código Civil refere-se à forma de participação do “sócio de serviços” nos

178 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Como visto, o art. 1.008 do Código Civil prevê a nulidade abso-
luta de cláusula contratual que retire do sócio o direito a participa-
ção nos resultados econômicos da sociedade. Isto não impede, por
outro lado, que o contrato social abdique do princípio da proporcio-
nalidade e o substitua por outro critério de repartição de lucros192.
Já no que se refere às companhias, é preciso citar os chama-
dos dividendos preferenciais, que são aqueles que, por previsão es-
tatutária, podem ser atribuídos às ações preferenciais criadas pelo
estatuto social. Disciplinados pelo art. 17 da Lei n. 6.404/76, tem-se
que tais dividendos, dependendo de sua estrutura estatutária, po-
dem implicar em certa alteração na regra da proporcionalidade.193
Os dividendos preferenciais encontram-se classificados, na
Lei n. 6.404/76, segundo dois principais critérios, sendo um deles o
que os separa em dividendos fixos ou mínimos e o outro aquele que
os divide em cumulativos ou não cumulativos.
Dividendos preferenciais fixos são aqueles que, uma vez pa-
gos – no montante previsto pelos estatutos - não conferem aos
acionistas dele titulares direito a participação nos lucros remanes-
centes da companhia, os quais serão repartidos apenas entre os
outros acionistas. Assim, o valor destes dividendos representa um
“teto” para além do qual os acionistas dele titulares não podem ul-
trapassar194.

lucros da sociedade da qual venha a participar. Embora esta modalidade de sócio seja vedada
nas sociedades limitadas, vale a referência como exceção ao princípio da proporcionalidade
na repartição dos lucros.
192 Tome-se, por hipótese, uma sociedade que tenha por objeto social serviços que sejam
prestados individualmente pelos sócios, como consultas fisioterápicas ou odontológicas.
Nada impede que o contrato social preveja que os lucros serão repartidos não em função
da participação dos integrantes sobre o capital, mas, por exemplo, em função do número de
atendimentos realizados, no período em questão, pelos sócios, individualmente considerados.
193 É o caso, por exemplo, do art. 17, par. 1º, II da Lei n. 6.404/76, que estabelece a possibilidade
de que o estatuto social confira a cada ação não votante de companhias abertas dividendos
ao menos 10% (dez por cento) superiores àqueles reservados para cada uma das ações
ordinárias.
194 Em caso de lucro reduzido, estes acionistas recebem seus dividendos preferenciais e os
demais ficarão sem participação, dada a prioridade ora comentada. Por outro lado, se houver
grande lucro remanescente, este somente é distribuído aos demais acionistas da companhia,
sem qualquer participação dos titulares de ações com dividendos preferenciais fixos.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 179


Já os dividendos preferenciais mínimos são aqueles que, em
sentido oposto, conferem aos seus titulares o direito de recebê-los
– no montante fixado pelos estatutos – e ainda lhes permite par-
ticipar, em igualdade de condições com os demais acionistas, da
repartição de eventuais lucros remanescentes.
Portanto, dividendos preferenciais mínimos são, por assim di-
zer, um “piso”, no sentido de que o seu valor deve ser pago antes
de qualquer outra distribuição, mas que, em caso de lucro rema-
nescente, seus titulares ainda poderão concorrer com os demais
acionistas195.
São também os dividendos preferenciais classificáveis em
cumulativos ou não cumulativos, sendo da primeira modalidade
aqueles exigíveis no exercício social seguinte - se houver lucro -
quando não ocorrer seu integral pagamento em um determinado
exercício social.
Deste modo, se a companhia não pagar integralmente, em
um determinado exercício social, os dividendos preferencias cumu-
lativos, o acionista dele titular terá o direito de, no exercício social
seguinte, receber não apenas os valores referentes ao período que
se encerra como também o valor não quitado anteriormente.
Ao contrário, os dividendos preferenciais não cumulativos são
aqueles que, se não forem inteiramente pagos em um determinado
exercício social, não poderão ser cobrados no exercício social futu-
ro. São, portanto, inacumuláveis com os do exercício social seguinte.
Cabe aos estatutos sociais conjugar tais critérios, ao criar
ações preferenciais com esta vantagem patrimonial. Assim, os divi-
dendos preferenciais podem ser fixos e não cumulativos, mínimos e

195 Este concurso aos lucros remanescentes somente se opera após o pagamento, aos
demais acionistas, dos valores já anteriormente pagos a título de dividendos preferenciais
mínimos.
Na modalidade ora analisada, a primeira providência da companhia é pagar os dividendos
preferenciais, no montante estipulado pelos estatutos. Após este pagamento, se ainda
houver lucro, os demais acionistas recebem dividendos até o montante já repassado aos
acionistas com a prioridade no recebimento. Após esta etapa, se ainda houver lucro, este
será dividido igualmente entre todos os acionistas da companhia, independentemente de
sua espécie de ação.

180 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


não cumulativos, fixos e cumulativos ou, por fim, mínimos e cumu-
lativos.
Para as companhias abertas que emitam ações sem direito
de voto os dividendos preferenciais precisam ser disciplinados, nos
estatutos sociais, conforme as diretrizes do art. 17 par. 1º da Lei n.
6.404/76196, o que não impede que sejam estatutariamente previs-
tas outras vantagens patrimoniais ou políticas (art. 17 par. 2º da Lei
n. 6.404/76).
Outro direito essencial dos sócios previsto tanto pelo art. 109
da Lei n. 6.404/76 quanto pelo Código Civil (art. 1.021) é o de fisca-
lizar, na forma da lei, os atos praticados pelos administradores da
sociedade.
O capital social é, como se sabe, constituído pelos sócios, mas
gerido pelos administradores da sociedade. Portanto, nada mais
natural que se conferir àqueles o direito inatacável de fiscalizar a
forma pela qual os órgãos de administração estão a gerir os recur-
sos financeiros da pessoa jurídica.
Como se analisa em capítulo próprio, tem-se que o direito de
fiscalização do acionista sobre os atos de gestão é essencial, mas,
por outro lado, se exerce de forma indireta, posto que através do
Conselho Fiscal ou, mais proximamente, das assembleias gerais de
acionistas, à qual cabe a tomada e aprovação das contas dos admi-
nistradores (art. 122, III da Lei n. 6.404/76).
196 Art. 17 par. 1o Independentemente do direito de receber ou não o valor de reembolso do
capital com prêmio ou sem ele, as ações preferenciais sem direito de voto ou com restrição
ao exercício deste direito, somente serão admitidas à negociação no mercado de valores
mobiliários se a elas for atribuída pelo menos uma das seguintes preferências ou vantagens:
I - direito de participar do dividendo a ser distribuído, correspondente a, pelo menos, 25% (vinte
e cinco por cento) do lucro líquido do exercício, calculado na forma do art. 202, de acordo com
o seguinte critério:
a) prioridade no recebimento dos dividendos mencionados neste inciso correspondente a, no
mínimo, 3% (três por cento) do valor do patrimônio líquido da ação; e
b) direito de participar dos lucros distribuídos em igualdade de condições com as ordinárias,
depois de a estas assegurado dividendo igual ao mínimo prioritário estabelecido em
conformidade com a alínea a; ou
II - direito ao recebimento de dividendo, por ação preferencial, pelo menos 10% (dez por cento)
maior do que o atribuído a cada ação ordinária; ou
III - direito de serem incluídas na oferta pública de alienação de controle, nas condições previstas
no art. 254-A, assegurado o dividendo pelo menos igual ao das ações ordinárias.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 181


Somente de forma excepcional – e atendidos requisitos ex-
pressos - um determinado acionista ou grupo deles terá o acesso
direito, integral e individualizado aos livros e documentos contábeis
da companhia (art. 105 da Lei n. 6.404/76), já que é fáticamente in-
viável conceber-se uma sociedade anônima – especialmente de
capital aberto - na qual os seus sócios possam, individualmente e a
qualquer momento, exigir acesso a tais informações e explicações.
Esta não é, entretanto, a regra prevalente no sistema do Códi-
go Civil, que, em seu art. 1.021, consagra aos sócios quotistas o direi-
to de, a qualquer tempo, examinar os livros e demais documentos
referentes aos negócios da pessoa jurídica197.
Há, portanto, nítida diferença, na forma de exercício do direito
de fiscalização, entre o regime jurídico das companhias e aquele
reservado às sociedades regidas pelo Código Civil. Enquanto a Lei
n. 6.404/76 segue a regra de que os acionistas só podem fiscalizar
a gestão da pessoa jurídica através das deliberações da assembleia
geral ou do Conselho Fiscal – indiretamente, portanto - opta o Có-
digo Civil por conferir aos sócios direito praticamente irrestrito de
fiscalização.
Justifica-se tal discrepância se considerado que a estrutura
jurídica das sociedades do Código Civil – especialmente as limita-
das – é orientada para uma realidade de maior proximidade entre
os sócios e a administração, sendo mesmo de se constatar que em
muitos casos as mesmas pessoas ocuparão ambas as posições.
Por fim, são também direitos essenciais dos sócios, consa-
grados tanto no regime do Código Civil quanto do art. 109 da Lei
n. 6.404/76: a participação, em caso de liquidação, no acervo da
sociedade; o direito de preferência, na hipótese de aumento do ca-

197 Ainda segundo o art. 1.021 do Código Civil, cláusula do contrato social poderá prever que
o acesso aos livros e documentos referentes às atividades da sociedade somente se efetuará
em determinadas épocas do ano, de forma a estabelecer alguma previsibilidade para os
administradores.
Por outro lado, vale acrescentar que esta fiscalização direta, pelo sócio, dos atos de gestão é
complementada, no caso das sociedades limitadas, pelo poder de tomada e aprovação das
contas dos administradores (art. 1.071, I do Código Civil), em forma análoga ao que se verifica
nas sociedades anônimas.

182 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


pital social pela emissão de novas ações ou quotas; e o direito de
recesso ou retirada, que nada mais é do que o poder de deixar, por
vontade própria, a sociedade.
Todos eles serão abordados especificamente quando analisa-
das as diferentes nuances referentes ao aumento do capital social
pela emissão de novas ações ou quotas e a dissolução total ou par-
cial das relações societárias. Por ora, o que mais importa é ressaltar
que se tratam todos de direitos essenciais, mas condicionados a
determinadas circunstâncias de fato ou de direito.
Assim, a participação no acervo do patrimônio social somente
ocorre após pagos todos os credores da pessoa jurídica, o direito
de preferência deve ser exercido dentro do prazo estabelecido e o
direito de recesso somente ocorre nas hipóteses previstas por lei
ou, no caso das sociedades limitadas, pelo contrato social.

4 – Critérios de avaliação de ações e quotas

Há diferentes critérios – legalmente expressos ou não – pelos


quais se pode atribuir valor a uma determinada ação ou quota, es-
pecialmente quando se trata de companhias abertas. Assim, para
cada quota ou ação que se pense é possível atribuir, concomitante-
mente, diferentes preços, definidos cada um segundo o critério de
avaliação adotado.
Uma ação de companhia aberta pode ser avaliada por, pelo
menos, cinco critérios diferentes, que são o capital social, o patri-
mônio líquido da sociedade, o mercado primário, o mercado secun-
dário e o reembolso, para o caso de recesso do titular. Alguns deles
são mais relevantes que outros, mas, como se demonstrará, cada
um tem sua aplicabilidade, ainda que para situações específicas.
As ações de uma companhia fechada ou as quotas de uma
sociedade limitada, por sua vez, também estão sujeitas à plurali-
dade de critérios de avaliação, mas com particularidades bastante
evidentes.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 183


4.1- O capital social e o valor nominal da ação ou quota

É sabido que o capital social é o resultado da soma das con-


tribuições financeiras ou patrimoniais dos sócios e se forma para a
viabilização fática da atividade econômica da sociedade. Sem capi-
tal a pessoa jurídica não tem como organizar seu estabelecimento
(art. 1.142 do Código Civil) e exercer seu objeto.
No caso das sociedades anônimas – abertas ou fechadas - as
unidades em que se divide o capital social são, repete-se, denomi-
nadas ações (Lei n. 6.404/76, art.1º). Uma ação corresponde, por-
tanto, a certa fração - indivisível - do valor do capital social.
Chama-se de valor nominal da ação àquele que é obtido
quando se divide o valor do capital social da companhia pelo nú-
mero total de ações por ela emitidas. Assim, em uma companhia
– aberta ou fechada - cujo capital social seja, por regra estatutária,
de $1.000.000,00 (um milhão de reais) e dividido em 1.000.000 (um
milhão) de ações, o valor nominal de cada uma será, em conclusão,
de R$ 1,00 (um real)198.
Quando uma pessoa subscreve certa quantidade de ações
ou quotas de uma sociedade ela assume a obrigação de transferir,
para a pessoa jurídica, o valor nominal das ações ou quotas subs-
critas. Na medida em que todos os adquirentes façam o mesmo,
integraliza-se o capital social e, em consequência, viabiliza-se a ati-
vidade econômica a ser exercida pela sociedade.
O art. 11, caput da Lei n. 6.404/76 faz referência à possibilida-
de de uma companhia emitir ações sem valor nominal. Vale, neste
ponto, esclarecer o real significado deste termo.

198 O art. 11 par. 2º da Lei n. 6.404/76 estipula que o valor nominal será o mesmo para todas
as ações da companhia. Assim, é ilegal pretender-se que uma ação de determinada espécie
ou classe possa corresponder, isoladamente considerada, a percentual maior, em relação ao
capital social, do que outra.
Nas sociedades limitadas as quotas podem, ao contrário do que se tem nas companhias, ser
de valores nominais iguais ou diferentes (art. 1.055 caput do Código Civil), o que significa que
cada quota pode representar uma fração específica do montante do capital social. O valor
nominal delas – igual ou diferente entre si – há que ser fixado no contrato social (Código Civil,
art. 1.054 c/c art. 997).

184 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Toda ação corresponde a uma fração do capital social e, neste
sentido, não é possível haver uma ação para a qual não seja possível
atribuir-se um valor nominal. Todas as ações emitidas por uma com-
panhia – aberta ou fechada - são suscetíveis de serem avaliadas
em relação ao que correspondam, percentualmente, no capital da
sociedade emissora.
Ações ditas “sem valor nominal” são aquelas em que este va-
lor não é expressamente atribuído, pela companhia emissora. A tais
ações é, como dito, possível dar valor nominal, mas este não é, por
decisão da sociedade emissora, expressamente nelas mencionado.
A razão de sua utilização está na já apontada constatação de
que o valor do capital social se desatualiza muito rapidamente, em
relação ao patrimônio da pessoa jurídica. Assim, especialmente
quando se trata de ações de companhias abertas, a expressa refe-
rência a um valor nominal – certamente desatualizado – muitas ve-
zes pode ocasionar desnecessárias dúvidas entre os investidores,
razão pela qual a companhia emissora pode decidir omiti-lo.
Esta falta de correspondência entre o valor do capital de uma
sociedade e seu patrimônio compromete a utilidade prática do
valor nominal da ação ou quota. Isto porque o investidor não deve
confiar que o valor do capital social – e, por consequência, o valor
nominal da ação correspondente – efetivamente existe, em termos
de bens e direitos, sob a titularidade da pessoa jurídica.
No exemplo anterior, não há como afirmar, com este grau de
informação, que o R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) outrora in-
tegralizado pelos sócios ainda existe, patrimonialmente falando,
sob a titularidade da sociedade ou se já foi, ao menos em parte,
utilizado para pagamento de dívidas ou outros negócios economi-
camente malsucedidos.
Por outro lado, é igualmente possível que a sociedade tenha
acumulado sucessos negociais e que hoje, após constituída, tenha,
sob sua titularidade, bens e direitos em valor superior àquele advin-
do da contribuição original dos sócios.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 185


Uma sociedade de sucesso, sob o ponto de vista empresarial,
tem um capital social inferior ao seu patrimônio, o qual cresce à me-
dida em que se acumulam os ganhos advindos do exercício da em-
presa. Já uma sociedade malsucedida, sob o aspecto empresarial,
provavelmente tem um patrimônio inferior ao capital social antes
integralizado, pois dispendeu este último, ao menos em parte, no
pagamento de suas obrigações.
É preciso, em virtude disso, encontrar um critério de avaliação
destinado a esclarecer quanto, em termos de bens e direitos de
titularidade da sociedade, é possível atribuir a cada uma das ações
por ela emitidas. Este critério está no patrimônio líquido da socie-
dade.

4.2 – Valor patrimonial da ação ou quota: sua utilidade e


forma de obtenção

Exceto, possivelmente, no ato de constituição da sociedade,


o patrimônio da pessoa jurídica (patrimônio social) não corresponde
ao valor com o qual contribuíram os seus sócios (capital social).
Assim, se um interessado em se tornar sócio de uma socieda-
de deseja saber qual o montante, em termos de bens e direitos da
pessoa jurídica, corresponde àquela ação ou quota, ele precisa de
informações mais aprofundadas do que apenas o valor do capital
da companhia emissora das ações ou da sociedade limitada à qual
se referem as quotas.
Este investidor precisa saber, basicamente, quanto a pessoa
jurídica teria para distribuir entre seus sócios - conforme o número
de ações ou valor da quota de cada um - caso resolvesse vender os
seus bens, realizar seus direitos e quitar as suas obrigações.
Em termos contábeis, chama-se de patrimônio líquido o con-
junto formado, em essência, pelo montante de dinheiro, bens e di-
reitos do qual a sociedade disporia, após pagos todos os seus débi-
tos. Ao se subtrair dos ativos contábeis da sociedade (formado por
seus recursos financeiros, bens e direitos) o valor do passivo patri-

186 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


monial dela (composto por todas as suas obrigações) obtém-se o
valor do patrimônio líquido desta pessoa jurídica199.
Assim, se uma sociedade tem um montante de R$
10.000.000,00 (dez milhões de reais) em bens, recursos financeiros
e direitos, mas deve, no total, R$ 8.000.000,00 (oito milhões de re-
ais), seu patrimônio líquido é de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de
reais)200.
É este valor que, em princípio, seria dividido entre os sócios,
caso a sociedade decidisse encerrar suas atividades. É, por outro
lado, uma relativamente confiável amostra da real situação patrimo-
nial e financeira da pessoa jurídica, posto que toma por base os seus
bens, direitos e obrigações atuais e não apenas aqueles oriundos
da contribuição passada dos sócios.
Valor de patrimônio líquido – ou valor patrimonial - de uma
ação é o resultado da divisão do patrimônio líquido da companhia
pelo número total de ações por ela emitidas201.
Assim, no exemplo dado, a divisão do patrimônio líquido da
sociedade (dois milhões de reais) pelo número total de ações por
ela emitida (um milhão, exemplificativamente) permite encontrar o
valor patrimonial de cada uma das ações, o qual será, no caso, de
R$ 2,00 (dois reais)202.
199 MARTINS. Eliseu. GELBCKE. Ernesto Rubens. SANTOS. Ariosvaldo dos. IUDÍCIBUS. Sérgio
de. Manual de Contabilidade Societária. 2ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2013. Pg. 411.
200 Ressalte-se que tanto o valor dos ativos, quanto do passivo patrimonial variam
constantemente – para cima ou para baixo – em consequência dos negócios realizados pela
sociedade.
201 Como já salientado (e em virtude do art. 1.055 caput do Código Civil) as quotas de uma
sociedade limitada podem ter valores nominais iguais ou diferentes entre si. Neste segundo
caso, o valor patrimonial delas também será diverso umas das outras.
Se uma quota representa, por exemplo, 50% (cinquenta por cento) do capital da sociedade, a
ela corresponde o mesmo percentual no patrimônio líquido da pessoa jurídica. Assim, o valor
patrimonial desta quota é de 50% (cinquenta por cento) do patrimônio líquido da sociedade.
Tomando esta mesma hipotética sociedade limitada, se nela houver uma quota
correspondente, por exemplo, a 10% (dez por cento) do capital social, seu valor patrimonial
corresponderá, em consequência, a 10% (dez por cento) do patrimônio líquido da pessoa
jurídica e será, por óbvio, cinco vezes menor do que o valor patrimonial da quota antes citada.
202 Como, em uma sociedade anônima – aberta ou fechada – todas as ações correspondem
ao mesmo percentual do capital social – ou seja, têm o mesmo valor nominal – elas também
têm, sempre, o mesmo valor patrimonial.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 187


O valor patrimonial da ação é, portanto, atrelado - ou melhor,
lastreado – no montante de dinheiro, bens e direitos ao qual esta
ação corresponde no patrimônio da companhia. É, certamente, um
importante parâmetro para a decisão do possível comprador ou
vendedor.
Necessário salientar, por outro lado, que tanto o valor nominal
quanto o patrimonial de uma ação ou quota são estabelecidos con-
forme critérios fixos e expressos, os quais são, respectivamente, o
capital social e o patrimônio líquido da pessoa jurídica.
Porém, num ambiente de mercado, estes valores podem não
corresponder, na prática, ao preço pelo qual vendedores e compra-
dores estejam dispostos a negociar a ação ou quota.
O valor nominal e principalmente o valor patrimonial são, como
dito, referências importantes na formação da decisão de comprar
ou vender uma ação ou qualquer outro valor mobiliário.
Entretanto, o efetivo valor de um bem é aquele pelo qual al-
guém está disposto a comprá-lo e vendê-lo. No caso de uma quota,
ação ou outro valor mobiliário é, portanto, necessário conhecer o
valor pelo qual possíveis compradores e vendedores estejam dis-
postos a negociar este título.
A rigor, somente as ações de companhias abertas - de livre
negociação em bolsa de valores e mercado de balcão - são real-
mente suscetíveis de serem avaliadas segundo o preço pelo qual
compradores e vendedores estejam dispostos a negociá-las203. É o
que se passa a expor nos dois próximos itens.

4.3 – O valor da ação no mercado primário: seu preço ou


valor de emissão

Quando uma ação de companhia aberta é emitida e coloca-


da à negociação pela primeira vez, o valor pago por seu compra-
203 No caso das quotas e de ações de companhias fechadas, ambas não são livremente
negociáveis, pois o seu titular somente pode aliená-las se atendidas as restrições estipuladas
no contrato social ou estatuto da companhia. Neste caso é possível falar-se, como se
demonstrará a seguir, em valor de negociação, mas não em valor de mercado.

188 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dor será usado para integralizar o capital da sociedade. Trata-se do
chamado mercado primário, termo que identifica as operações de
compra e venda de ações que têm, como vendedoras, as compa-
nhias emissoras – ou intermediário delas - e, como compradores, os
primeiros titulares do valor mobiliário negociado.
Dá-se, por sua vez, o nome de preço ou valor de emissão ao
montante que é pago pelo adquirente de uma ação no mercado
primário, ou seja, é o preço pelo qual a ação emitida é vendida ao
seu primeiro comprador. Preço ou valor de emissão de uma ação é,
portanto, aquele praticado no mercado primário.
O preço de emissão é direcionado para o capital social, de
forma a integralizá-lo. A função primordial das operações em mer-
cado primário é, desta forma, canalizar, para o capital das socie-
dades emissoras, os recursos pagos na aquisição das ações nele
negociadas.
Vale retomar, por uma razão que a seguir será explicada, o
exemplo dado no item anterior, qual seja: uma hipotética compa-
nhia com capital social de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais),
dividido em um milhão de ações cujo valor nominal é, portanto, de
R$ 1,00 (um real) cada.
Como dito, o preço a ser pago pelos primeiros adquirentes das
ações desta hipotética companhia – seu preço ou valor de emissão
– é obrigatoriamente direcionado para integralizar a parcela do ca-
pital social referente a elas.
Suponha-se agora que cada ação daquela companhia hipo-
tética seja, no mercado primário, vendida por R$ 0,80 (oitenta cen-
tavos) cada. Isto significa que o preço de emissão destas ações é
inferior ao seu valor nominal.
Admitida tal possibilidade, ao final da negociação de to-
das as ações desta companhia, em mercado primário, haverá R$
800.000,00 (oitocentos mil reais) de capital integralizado, e não o R$
1.000.000,00 (um milhão de reais) citado no estatuto. A companhia
estará, portanto, sub capitalizada.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 189


Há, portanto, uma fundamental relação entre o preço de
emissão de uma ação e seu valor nominal, pois este é o valor míni-
mo possível para aquele. Dito de outra forma: o preço ou valor de
emissão de uma ação não pode ser inferior ao seu valor nominal204.
Assim, uma ação de valor nominal R$ 1,00 (um real) não pode
ser negociada, ao seu primeiro adquirente, por menos do que isso,
pois, se assim fosse, não haveria a completa integralização do capi-
tal da companhia.
Por outro lado, nada impede – sob o ponto de vista jurídico -
que a companhia emissora estabeleça um preço de emissão supe-
rior ao valor nominal das ações a serem negociadas. De outro modo:
é possível que o preço de emissão de uma ação seja superior ao
seu valor nominal.
Se a demanda por ações de uma determinada companhia
aberta está, em bolsa de valores ou mercado de balcão, elevada
– portanto há muitos interessados em comprá-las – nada impede
que esta sociedade, ao emitir novas ações, cobre, de seus primeiros
adquirentes, o valor nominal desta ação – seu preço de emissão mí-
nimo fixado em lei – mais um acréscimo, ao qual se chama de ágio.
A companhia emissora não é obrigada a negociar suas ações,
em mercado primário, pelo valor nominal delas. Este último é o va-
lor mínimo para negociação das ações no mercado primário, mas
nada impede que, em percebendo procura suficiente para isso, a
companhia insira, no preço de emissão de suas ações, um “sobreva-
lor” denominado ágio. Nesta hipótese, o preço de emissão da ação
é composto pelo seu valor nominal, mais o percentual cobrado a
título de ágio205.
204 Lei n. 6.404/76 art. 13: É vedada a emissão de ações por preço inferior ao seu valor nominal.
Par. 1º. A infração do disposto neste artigo importará nulidade do ato ou operação e
responsabilidade dos infratores, sem prejuízo da ação penal que no caso couber.
205 Veja-se a seguinte hipótese: uma companhia, cujas ações têm valor nominal de R$
1,00 (um real) cada, verifica que tais ações são, em bolsa de valores, negociadas por R$
2,00 (dois reais), dada a intensa procura em relação à oferta. Ao decidir emitir novas ações,
esta companhia terá que lhes atribuir (por força do art. 11 da Lei n. 6.404/76) o mesmo valor
nominal daquelas já em circulação. Isto não impede, porém, que a companhia cobre, em
mercado primário, o valor pelo qual suas ações são efetivamente negociadas em bolsa (R$
2,00) e converta o montante superior ao valor nominal delas – o ágio – em reservas.

190 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O percentual do preço de emissão pago a título de ágio tam-
bém é direcionado para a pessoa jurídica, mas não integrará o seu
capital social, uma vez que este já está estipulado nos estatutos e
se dá por integralizado quando realizada a totalidade do valor no-
minal das ações emitidas.
O valor do ágio pago pelo adquirente de uma ação em mer-
cado primário será contabilizado, pela companhia emissora, a título
de reserva de capital (art. 13 par. 2º da c/c art. 182 par. 1º, a da Lei n.
6.404/76)206.

4.4 – O preço de cotação de uma ação: seu valor no


mercado secundário

Após emitida e negociada em mercado primário, uma ação


de companhia aberta pode ser – e em regra o será – renegociada
sucessivas vezes. O adquirente da ação no mercado primário pode
revendê-la a outro interessado e esse, por sua vez, fazer o mesmo,
implicando numa sucessão de compras e vendas daquele mesmo
valor mobiliário.
A estas sucessivas – em relação à negociação origi-
nal, no mercado primário – compras e vendas de uma mes-
ma ação dá-se o nome de mercado secundário, enquan-
to o montante de dinheiro pelo qual uma determinada ação
é nele negociada denomina-se valor ou preço de cotação.
Trata-se, portanto, do preço pelo qual uma ação é negociada no
mercado secundário.

206 Dá-se o nome de reservas, grosso modo, a quaisquer bens, recursos ou direitos de uma
sociedade, descontados aí aqueles referentes à integralização do capital social. São, em
síntese, todos os ativos financeiros da pessoa jurídica – créditos, dinheiro e bens – menos o
valor referente à integralização do capital social.
As reservas são subdivididas, na Lei n. 6.404/76, em diversas modalidades e têm origem,
em princípio, no lucro obtido pela pessoa jurídica e ainda não distribuído aos sócios. Sobre
as reservas e suas diferentes regras legais, confira: VERÇOSA. Haroldo Malheiros Duclerc.
PEREIRA. Alexandre Demetrius. Sociedades por ações. Ed. Revista dos Tribunais. 3ª edição.
São Paulo. 2014. Pg. 577 e segs.

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Em mercado secundário, o que há é uma compra e venda da
ação entre o seu atual titular e alguém interessado em adquiri-la. O
bem vendido é a ação e, por ela, paga-se o seu preço de cotação
estabelecido naquele momento.
A troca de dinheiro por ação se dá entre seu vendedor e seu
comprador, sem que a companhia emissora tenha, em princípio,
qualquer atuação nesta operação. Assim, as operações em merca-
do secundário não alteram o capital da companhia emissora das
ações, posto que o mesmo já foi integralizado com o valor pago por
elas no mercado primário207.

O filme π, de Darren Aronovsky, é uma experiência cinematográfica arrojada e experimental


destinada a mostrar, com certo caráter surrealista, a constante busca por uma forma de
antever, com eficiência, o valor de cotação das ações em bolsas de valores. (π Direção: Darren
Aronofsky. Produção: Independente. Estados Unidos:1998)

207 O fato de as operações no mercado secundário não terem direta interferência sobre o
capital ou o patrimônio das companhias não permite, porém, concluir que mercados primário
e secundário sejam dois segmentos estanques e sem mútua repercussão. Ao contrário, se
as ações de uma companhia são, em mercado secundário, ilíquidas – ou seja, apresentam
pouca eficiência de negociação – é claro que, em futuras emissões, esta sociedade terá
dificuldade em encontrar compradores interessados em adquirir, no mercado primário, suas
novas ações.
Por outro lado, se não houver novas emissões de ações, o mercado secundário poderá
tornar-se, pelo excesso de procura em relação à pouca oferta de títulos, excessivamente
especulativo, formando-se o que os economistas denominam “bolha”.

192 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Por se tratar de uma negociação entre o atual titular da ação
e seu pretenso adquirente, o preço de cotação seria, em princípio,
estabelecido por eles próprios, após sucessivas propostas e con-
trapropostas.
Porém, no caso das companhias abertas, a formação do pre-
ço de cotação de uma ação não se dá pela decisão isolada de um
comprador ou vendedor, mas pelo valor estabelecido, naquele
dado momento, como padrão entre os agentes.
Em bolsa de valores – ou mercado de balcão – há, ao mes-
mo tempo, inúmeros vendedores e possíveis compradores para
as ações de uma mesma companhia. Determinada ação é ali con-
comitantemente negociada por várias pessoas interessadas em
vendê-las. Por outro lado, também há, no mesmo momento, uma
pluralidade de investidores possivelmente interessados em adquirir
aquele valor mobiliário.
Além da pluralidade concomitante de vendedores e compra-
dores de uma mesma ação, o mercado de valores mobiliários – es-
pecialmente a bolsa de valores – permite que os pretensos com-
pradores ou vendedores tenham acesso simultâneo uns aos outros,
ou seja: o vendedor pode negociar com qualquer comprador e vi-
ce-versa.
Quando, em um determinado mercado – como, no caso, o de
compra e venda de uma ação – tais circunstâncias estão todas pre-
sentes, vendedores e compradores são chamados de tomadores de
preços, pois têm a liberdade de decidir se e quando vão negociar,
mas são incapazes de, isoladamente, fixar o preço do objeto nego-
ciado208.
208 O agente econômico é tomador de preço quando tem que aceitar, em uma transação, o
valor fixado pelo mercado, sob pena de não conseguir negociar.
O mercado de compra e venda de pães é um exemplo em que todos os produtores e
consumidores são tomadores – e não formadores - de preços. Se um produtor decidir, sozinho,
elevar o preço do pão acima do praticado pelos demais fornecedores, ele certamente não
encontrará compradores interessados, pois estes optarão por comprar do concorrente. Isto
significa que este produtor, para participar do mercado, deve aceitar o preço nele praticado.
Neste exemplo, também os consumidores são tomadores de preço, pois sua decisão isolada
de, por não concordar com o valor cobrado pelo pão, simplesmente não comprar, é incapaz
de influenciar a conduta dos vendedores. O consumidor que deixa, isoladamente, de comprar

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 193


No mercado secundário, em princípio, compradores e vende-
dores de ações são – e devem ser - tomadores e não formadores de
preços, pois não têm o poder de, isoladamente, determinar o preço
de cotação mas, ao contrário, são obrigados – se quiserem negociar
- a adotam o valor fixado pelo conjunto das operações praticadas,
naquele momento, pelo mercado.
Pode-se então concluir que a existência de um ou alguns
agentes capazes de isoladamente influenciar, com suas decisões,
o valor de cotação de uma ação – agentes formadores de preços -
compromete a eficiência do mercado de valores mobiliários209.
Outra variável relevante para a eficiente formação do preço de
cotação de uma ação está na igualdade de custos, procedimentos
e regras para sua compra e venda. Em um mercado de valores mo-
biliários eficiente, o custo, os procedimentos e regras para aquisição
de determinada ação devem ser exatamente os mesmos para to-
dos os compradores interessados em adquiri-las.
Há falha de mercado, neste aspecto, se os possíveis interes-
sados em adquirir uma mesma ação se sujeitam a regras ou pro-
cedimentos diversos para comprá-la, ou têm que arcar com custos
diferentes para implementar a aquisição.210
pão não tem o poder de fazer com que seu preço baixe.
Em um mercado de valores mobiliários eficiente, tanto compradores quanto vendedores
devem ser isoladamente incapazes de influenciar - com sua decisão de comprar ou não,
vender ou não - o valor da ação a ser negociada.
209 Se um determinado comprador ou vendedor é capaz de, com suas decisões individuais,
influenciar na formação do preço de cotação de uma ação ele tem o poder de fazer a “balança
da oferta e da demanda” pender artificialmente para um ou outro lado.
Este agente que, sozinho, influencia o preço de cotação de uma ação pode, se decide trazê-
lo para baixo, auxiliar aqueles que querem comprar ações e, se opta por conduzir o preço
para cima, colaborar para quem queira vender tais títulos. É, portanto, ineficiente um mercado
de valores mobiliários cujo preço das ações seja formado não pelas decisões do mercado,
mas pela opção de um ou alguns de seus agentes.
210 Seria, por exemplo, o caso de se estabelecer, para o investidor A, o direito de comprar
ações, na bolsa de valores, através de mecanismos mais rápidos, seguros e/ou baratos do
que os disponíveis para o investidor B. O livro Flash Boys – revolta em Wall Street, de Michael
Lewis (Ed. Intrínseca. Rio de Janeiro. 2014) ilustra esta falha de mercado quando narra a busca,
por alguns operadores nas bolsas de valores norte-americanas, por conexões de internet
mais rápidas e que, portanto, permitissem acessos mais céleres à aquisição de determinada
ação. Assim, quem tivesse uma conexão mais rápida chegaria primeiro no ato de comprar ou
vender as ações, tornando desigual o acesso ao mercado.

194 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Outro componente fundamental de um mercado de valores
mobiliários eficiente está na quantidade e qualidade das informa-
ções disponíveis, sobre o bem negociado, para a integralidade dos
agentes.
Se o grau de informação sobre o bem vendido – no caso, a
ação - é o mesmo para todos os possíveis compradores e vende-
dores, cada agente pode tomar sua decisão de comprar ou vender
com base no mesmo grau de conhecimento.211
Diante de todo o exposto, resta clara a relação entre a eficiên-
cia na formação do preço de cotação de uma ação e o grau de in-
formação disponível, no mercado, sobre a companhia emissora. Em
tese, se houver divulgação total e irrestrita de cem por cento das
informações disponíveis sobre uma companhia, seus negócios e
patrimônio, o mercado conseguirá atribuir às ações e valores mobi-
liários por ela emitidos um preço de cotação totalmente eficiente212.

211 O uso, por um ou mais agentes, de informações não disponíveis ao conhecimento dos
demais compradores ou vendedores daquela ação - a chamada informação privilegiada –
torna desigual a negociação entre eles.
Esta desigualdade de informações sobre o bem objeto de uma negociação – denominada
assimetria informacional - é uma grave e comum falha comprometedora da eficiência dos
mercados. Veja-se, como exemplo, os negócios envolvendo carros usados. O vendedor sabe,
a princípio, muito mais do que o pretenso comprador sobre o estado do veículo e se vale
desta desigualdade informacional na formação do preço.
O mesmo se verifica quando, em uma compra e venda de ações, o vendedor ou o comprador
tem informações - a respeito da companhia ou daquele valor mobiliário específico -
inacessíveis à outra parte do negócio. Por exemplo: se um investidor sabe, antes dos demais,
que uma companhia petrolífera está prestes a anunciar uma grande descoberta de novos
postos de exploração, sua decisão é – com base nesta informação privilegiada – adquirir
ações desta petrolífera antes que os demais resolvam, uma vez divulgada a informação, fazer
o mesmo.
212 A busca por um critério seguro de formação do preço de cotação de uma determinada
ação é, pode-se mesmo dizer, um verdadeiro “Santo Graal” do mercado de valores mobiliários.
Entretanto, a História mostra que as várias – e muitas vezes imperceptíveis – falhas de mercado
influenciam negativamente o modelo descrito e acabam por submeter o preço de cotação
das ações a fatores muitas vezes aleatórios ou meramente especulativos. Sobre o tema: FOX.
Justin. O mito dos mercados racionais: uma história de risco, recompensa e decepção em Wall
Street. Ed. Best Seller. Rio de Janeiro. 2009.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 195


4.5 - O valor de negociação de quotas ou ações de
companhias fechadas

As transferências de quotas de sociedades limitadas ou ações


de companhias fechadas a terceiros – não sócios - estão sujeitas a
determinadas restrições estabelecidas em lei ou nos atos constitu-
tivos da pessoa jurídica.
Nas sociedades limitadas, o art. 1.057 do Código Civil esta-
belece que a transferência de quotas para terceiros (pessoas que
ainda não integram o quadro de sócios) está condicionada à não
oposição por parte de um quarto ou mais do capital social213. Trata-
-se, em síntese, de um poder de veto à entrada do novo integrante
dado, pelo Código Civil, à minoria qualificada de um quarto ou mais
do capital social.
Tal estipulação pode ser alterada por cláusula contratual ex-
pressa, tanto no sentido de torná-la mais branda, quanto de fazê-la
ainda mais rígida. A opção de uma sociedade limitada sem qual-
quer restrição à livre transferência de quotas para terceiros é rara,
ao contrário daquelas que sujeitam, no contrato social, tal negócio
a quórum de aprovação maior do que o estabelecido pelo art. 1.057
do Código Civil.
Já nas sociedades anônimas de capital fechado, o art. 36 da
Lei n. 6.404/76 permite que seus estatutos estabeleçam – como,
em regra, se faz – restrições à livre transferência de ações a tercei-
ros, não integrantes do quadro de acionistas.
A restrição ao direito do sócio de alienar as próprias ações não
é, ao contrário do que se viu nas sociedades limitadas, expressa na
legislação, que se limita, no caso das companhias fechadas, a admi-

213 Código Civil, art. 1.057: Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou
parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se
não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.
Parágrafo único. A cessão terá eficácia quanto à sociedade e terceiros, inclusive para os fins do
parágrafo único do art. 1.003, a partir da averbação do respectivo instrumento, subscrito pelos
sócios anuentes.

196 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


tir regra estatutária que fixe, com as ressalvas ali estabelecidas, tais
restrições de negociação214.
As restrições legais, estatutárias ou contratuais à livre aliena-
ção de quotas ou ações a terceiros configura-se como uma verda-
deira barreira de entrada215 no mercado de negociação destes direi-
tos de sócio.
Isto significa que o mercado de compra e venda de ações de
companhia fechada ou quotas de sociedade limitada é regulado
– em lei ou nos atos constitutivos da pessoa jurídica - de forma a
que a participação nele seja restrita aos interessados que consigam
preencher os requisitos próprios de admissão à condição de sócio.
Para que alguém almeje adquirir quotas de uma sociedade li-
mitada ou ações de uma companhia fechada é preciso, antes mes-
mo das tratativas iniciais, conseguir superar as restrições aplicáveis
à entrada de terceiros na sociedade em questão. Por isso, não se
pode esperar que haja, ao mesmo tempo, multiplicidade de inte-
ressados capazes, todos, de superar as restrições à sua entrada na
sociedade.
Já no outro polo do mercado – o dos vendedores – também
há notável diferença em relação às companhias abertas, pois em re-
gra não há multiplicidade concomitante de vendedores dos direitos
de sócio em uma determinada companhia fechada ou sociedade
limitada.
Explica-se: nas companhias fechadas ou sociedades limita-
das, é excepcional a situação em que dois ou mais de seus inte-

214 Lei n. 6.404/76, art. 36: O estatuto da companhia fechada pode impor limitações à circulação
das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não impeça a
negociação, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou
da maioria dos acionistas.
Parágrafo único. A limitação à circulação criada por alteração estatutária somente se aplicará
às ações cujos titulares com ela expressamente concordarem, mediante pedido de averbação
no livro de “Registro de Ações Nominativas”.
215 Também chamadas de impedimentos à entrada no mercado. STIGLITZ. Joseph. E. WALSH.
Carl. E. Introdução à Microeconomia. 3ª edição. Ed. Campus. Rio de Janeiro. 2003. Pg. 213/215.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 197


grantes negociam, ao mesmo tempo e com o mesmo interessado,
seus direitos de sócio216.
Não há, portanto, multiplicidade de vendedores do objeto ne-
gociado (as ações da companhia fechada ou quotas da sociedade
limitada), diversamente do que se vê no caso das companhias aber-
tas, onde, seja em bolsa de valores ou mercado de balcão, os vários
vendedores de um mesmo título disputam os múltiplos interessa-
dos em comprá-los.
A compra e venda de ações de companhias fechadas ou quo-
tas de sociedades limitadas é, portanto, marcada por cláusulas de
barreira à entrada de possíveis compradores e, também, por uma
espécie de monopólio contestável dos vendedores217.
Estas restrições comprometem a liquidez destes títulos, uma
vez que se torna, em relação às ações das companhias abertas,
expressivamente mais custoso e demorado encontrar com quem
negociar, já que só estão aptos a fazer isso o potencial comprador
capaz de ser admitido na sociedade e o sócio interessado em ven-
der sua participação naquele determinado empreendimento.
Sem multiplicidade concomitante de vendedores e compra-
dores, o preço do objeto negociado não é dado pelo mercado, mas
sim pela barganha direta entre os envolvidos na compra e venda218.

216 Em verdade, a citada multiplicidade concomitante de vendedores é possível, mas rara,


pois acaba sendo tomada, pelos potenciais compradores, como sinal de que os negócios
sociais não estão bem. As sociedades com restrição à livre negociação de direitos de sócio
não se mostram adequadas à especulação de curto prazo e consequente mutação constante
de seus membros. Ao contrário, pressupõem perenidade e relativa estabilidade no quadro de
integrantes. Se vários deles querem, ao mesmo tempo, alienar seus direitos, é de se presumir
que, sob o ponto de vista econômico-financeiro, não há boas perspectivas.
217 Chama-se de monopólio contestável aquele em que o monopolista é o único vendedor,
mas está constantemente sujeito à entrada de competidores no mercado, pois outros
também são capazes de oferecer o bem negociado.
O vendedor da quota ou ação de companhia fechada é, em princípio, monopolista deste
objeto, mas paira sobre a negociação a possibilidade de que o interessado em adquiri-
las possa negociar também com outro sócio. O monopólio contestável impede que o
monopolista possa, sozinho, fixar o preço do bem negociado. Sobre monopólio contestável:
MANKIW. Gregory. N. Introdução à Economia. 3ª edição. Ed. Thomson. São Paulo. 2005. Pg. 45
e segs.
218 Chama-se de barganha qualquer diálogo sobre valor para chegar a um acordo quanto
ao preço de um determinado produto ou serviço. COOTER. Robert. ULEN. Thomas. Direito e

198 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O valor de negociação de quotas ou ações de companhias
fechadas é, deste modo, fixado pela negociação direta entre com-
prador e vendedor, cada um deles considerando sua respectiva
vantagem competitiva, pois, de um lado, apenas aquele interessado
é capaz de preencher os requisitos para se tornar sócio e, do outro,
o vendedor é, em princípio, o único integrante do qual se pode ad-
quirir aquelas ações ou quotas.
A barganha entre compradores e vendedores de ações de
companhias fechadas ou quotas de sociedades limitadas é uma
operação que pode ser, dado o modo de interação entre estes dois
tomadores de decisão, bem compreendida à luz de algumas pre-
missas da Teoria dos Jogos219.
Primeiramente, é relevante notar que se trata de um jogo não
cooperativo – ou jogo de soma zero – uma vez que o ganho de um
dos “jogadores” – o comprador e o vendedor das quotas ou ações –
corresponde exatamente à perda do outro.
Em jogos como tais, não há aumento da riqueza social, mas
apenas distribuição de direitos de propriedade entre os jogadores.
Comprador e vendedor destas ações ou quotas trocam diferentes
tipos de riqueza entre si – dinheiro por direitos de sócio - e, mais do
que isso, o que um deles agrega ao seu patrimônio é exatamente o
que deixa o patrimônio do outro agente.
Além disso, esta negociação é o que se pode chamar de jogo
forte, pois compradores e vendedores podem, a qualquer momen-
to das tratativas, decidir comprar ou não, vender ou não. Nenhum
deles é, portanto, obrigado a manter-se na negociação, a participar
do “jogo”.
Por ser uma barganha que envolve diferentes e sucessivas
propostas e contrapropostas, esta negociação configura-se um jogo

Economia. Ed. Bookseller. Porto Alegre. 2012. pg. 202.


219 As referências à Teoria dos Jogos feitas neste ponto do texto foram extraídas de:
OSBORNE. Martin. J. An introduction do Game Theory. Oxford University Press. 2004. MYERSON.
Roger B. Game Theory. Harvard University press. 1997. BÊRNI. Duílio de Ávila. Teoria dos Jogos.
Reichmann & Affonso Editores. Rio de Janeiro. 2004. BIERMAN. H. Scott. FERNANDEZ. Luiz.
Teoria dos Jogos. 2ª edição. Pearson editora. São Paulo. 2008.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 199


dinâmico. Trata-se de um jogo no qual os participantes não esgotam
a negociação em um único ato, ou seja, em uma única proposta ou
contraproposta.
Ao contrário, quando se trata de comprar ou vender ações de
companhias fechadas ou quotas de sociedades limitadas, o que se
tem é uma sucessão de movimentos – leia-se propostas e contra-
propostas – tanto do lado do vendedor quanto do comprador.
Por fim, talvez o mais relevante seja salientar que a compra e
venda ora analisada é um jogo de informação imperfeita para os en-
volvidos, pois nem o potencial comprador nem o possível vendedor
têm cem por cento de conhecimento sobre o grau de interesse e a
capacidade financeira da outra parte no negócio.
Esta é uma variável fundamental para a eficiente formação do
preço destas ações ou quotas, pois quanto maior o grau de informa-
ção de um “jogador” sobre as intenções e capacidade econômica
do outro, mais eficiente será a alocação do preço do bem negocia-
do.
Por outro lado, quando o potencial comprador sabe pouco so-
bre a real necessidade e interesse do vendedor e vice-versa, menos
podem eles agir no sentido de promover a eficiente fixação do pre-
ço das quotas ou ações negociadas.
O aspecto informacional da operação se completa com o co-
nhecimento sobre o estado econômico-financeiro da sociedade à
qual se referem as ações ou quotas. Nas companhias abertas, a cor-
reção de tal assimetria informacional se efetiva com as práticas de
transparência - disclosure - impostas pela legislação e pelos agen-
tes reguladores do mercado de valores mobiliários.
Porém, em se tratando de companhias fechadas ou socieda-
des limitadas, a obtenção destas informações é mais dispendiosa
e complexa, exigindo, em regra, procedimentos de auditoria e due
diligence220 que acabam por se constituir em custos de transação.
220 Esta “diligência prévia” é, em síntese, uma análise de todos os documentos e informações
referentes ao estado econômico-financeiro de uma sociedade. Se efetiva com o estudo dos
balanços e informações contábeis e bancárias, relatórios, livros e documentos internos,
contratos, títulos, além de investigações em órgãos públicos executivos – como a Receita

200 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Barreiras de entrada, monopólios contestáveis, barganha, in-
formação imperfeita e custos de transação são, portanto, variáveis
relevantes na formação do preço de negociação de ações de com-
panhias fechadas e quotas de sociedades limitadas.

Jackson Pollock n, 30 (1950)


As obras do pintor Jackson Pollock (1912-1956) causam, em princípio, a sensação de se estar
diante de uma realidade caótica, ininteligível e desorganizada. Porém, ao se observar com
cuidado, atenção e, principalmente, paciência, percebe-se um certo grau de harmonia, relações
e conexões. Assim é, também, o cada vez mais elaborado mercado financeiro e de valores
mobiliários: realidade que choca pela complexidade e aparente falta de lógica, mas que, na
essência, sustenta-se em bases compreensíveis

Federal – e judiciais.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 201


202 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo VI
O capital social e suas alterações

1 – Capital social: integralização e funções

A prestação a que se obrigam as partes de um contrato de


sociedade (art. 981 do Código Civil) consiste na mútua contribuição
em bens, créditos ou dinheiro, para a formação de um conjunto pa-
trimonial denominado capital social.
Capital social é, portanto, uma expressão que corresponde à
soma das contribuições financeiras e materiais oriundas de cada
uma das partes do contrato de sociedade. Trata-se de um patrimô-
nio que, sob a titularidade da pessoa jurídica criada, será usado para
a formação de seu estabelecimento (art. 1.142 do Código Civil) e via-
bilização fática do objeto social.
Dá-se o nome de quota à parcela ou fração deste montante
com o qual cada um dos sócios, individualmente considerados, ve-
nha a contribuir. Quota é, então, termo que identifica a contribuição
de cada um dos sócios para a formação do conjunto de bens e re-
cursos financeiros ao qual se denomina capital social. A soma arit-
mética da expressão monetária das quotas de cada um dos sócios
corresponde ao valor do capital da sociedade.
Nas sociedades limitadas, o valor do capital social deve ser
expresso, em moeda corrente, no contrato social (art. 1.054 c/c 997
do Código Civil), assim como também é necessário prever, no ins-
trumento de constituição da sociedade, o número de quotas em
que se divide o capital, o valor de cada uma delas221, o seu respecti-
221 As quotas podem ser de valor igual ou diferente entre si, bem como um mesmo sócio
pode ter uma ou mais destas frações (art. 1.055 do Código Civil). Não há significativa relevância
em se atribuir a um sócio, por exemplo, uma quota no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) ou mil
quotas no valor de R$ 1,00 (um real) cada.
Seria possível argumentar que a segunda forma permitiria mais facilidade na transferência
de uma parcela do percentual do sócio no capital social. Esta observação é, com a devida
vênia, improcedente, uma vez que, se seguidas as formalidades legais, o capital social pode

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 203


vo titular e a forma pela qual serão integralizadas cada uma destas
parcelas ou frações.
Nas sociedades anônimas o capital social é fixado, em moe-
da corrente, nos estatutos sociais e se divide não em quotas, mas
em ações, que conferem aos seus titulares os direitos de sócio na
companhia (artigos. 1º e 5º da Lei n. 6.404/76) e constituem frações
indivisíveis do capital da pessoa jurídica.
Subscrever uma quota – ou ação - é assumir a obrigação de
transferir, para a pessoa jurídica, o valor referente a esta fração do
capital social. A subscrição das quotas222 que formam o capital so-
cial ocorre no momento que o sócio assina o contrato de sociedade
e se obriga, na forma e valores ali previstos, pelas prestações a ele
referentes223.
A subscrição da quota ou da ação não se confunde com sua
integralização, a qual representa a efetiva transferência, para a pes-
soa jurídica da sociedade, dos recursos monetários ou patrimoniais
aos quais cada um dos sócios se obrigou, seja no momento da as-
sinatura do contrato social ou, nas sociedades anônimas, quando
da realização das formalidades preliminares à criação da pessoa
jurídica.
A subscrição das quotas é efetuada quando o sócio adere sua
vontade ao contrato de sociedade, enquanto a integralização de-
las pode ocorrer à vista (no ato de sua subscrição) ou, no caso da
sociedade limitada224, de modo parcelado e/ou postergado, desde
ser reestruturado, por alteração contratual, em qualquer um dos modelos de distribuição das
quotas entre os sócios.
222 A subscrição da totalidade das ações do capital de uma companhia é, com visto no
capítulo II, requisito preliminar à sua constituição (art. 80 da Lei n. 6.404/76).
223 O sócio que não cumpre, na forma e tempo estipulados no contrato social, sua obrigação
de contribuir para a formação do capital social é o sócio remisso, o qual, como se verá em
capítulo próprio, pode ser excluído da sociedade (art. 1.058 do Código Civil).
O mesmo ocorre, com base e na forma do art. 107 da Lei n. 6.404/76, no caso do acionista que
não integraliza o valor das ações por ele subscritas.
224 Como visto no capítulo II, as sociedades anônimas, para sua regular constituição, devem
ter ao menos 10% (dez por cento) do seu capital integralizado em dinheiro, antes mesmo
da formalização de sua criação (art. 80, II da Lei n. 6.404/76). O restante do valor das ações
subscritas pode ser, de forma similar ao que se vê nas sociedades limitadas, integralizado
futuramente, de modo parcelado ou não, desde que a data de vencimento do dever de

204 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


que esta dilação temporal seja expressamente prevista no contrato
social.
É, para as sociedades limitadas, válida a cláusula de integra-
lização futura e/ou parcelada do capital social. Porém, nesta hipó-
tese, todos os sócios ficam, desde o momento da constituição da
pessoa jurídica, responsáveis de forma pessoal, ilimitada e solidária
pela totalidade do valor do capital social (art. 1.052 do Código Ci-
vil), até que o mesmo seja, enfim, completamente integralizado por
eles.
Já para o acionista inexiste a obrigação de garantir, com seu
patrimônio pessoal, o montante do capital social, mesmo enquanto
ainda não totalmente integralizado. Ao contrário, sua responsabili-
dade é limitada ao valor das ações por ele subscritas (art. 1º da Lei
n. 6.404/76) e se esgota quando ele efetua a integralização delas225.
As quotas de uma sociedade limitada ou ações de uma com-
panhia (art. 7º da Lei n. 6.404/76) podem ser integralizadas em di-
nheiro, créditos226 ou por quaisquer bens suscetíveis de avaliação
econômica227, sejam estes de natureza móvel, imóvel ou mesmo
integralização também esteja prevista nos atos constitutivos da companhia.
“A integralização do capital, em nosso sistema, seja em dinheiro, seja em bens, pode se dar
parcialmente, segundo a livre deliberação dos sócios. E um mesmo sócio pode integralizar sua
quota, parte em dinheiro e parte em bens, ou somente em bens. Apenas se exige, se em dinheiro,
a entrada de 10%. (...).
Não se justifica, outrossim, a imediata integralização de um capital que, ao início das atividades
sociais, se mostre desnecessário e improdutivo, sendo mais racional, mormente sob o enfoque
financeiro, que, na proporção do crescimento da empresa, se façam as chamadas de
capital, consoante previsto no estatuto. (LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades Anônimas.
Comentários à Lei. Vol I. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. Pg. 180 a 182).
225 A previsão de solidariedade entre acionistas pela integralização do capital social seria por
si só fator de inviabilização das companhias com grande número de sócios - como aquelas
que negociam suas ações no mercado de capitais - pois colocaria esta gama de pessoas que,
em regra, sequer se conhecem, como responsáveis pelo valor das ações umas das outras.
226 Quando a subscrição do capital se efetua pela transferência de créditos dos quais seja
titular o subscritor, este último é responsável, perante a sociedade e os demais sócios, pela
solvência do devedor (art. 10 par. único da Lei n. 6.404/76).
Embora o Código Civil não contenha, para as sociedades limitadas, regra expressa neste
mesmo sentido, a aplicação da mesma solução se impõe, uma vez que os créditos não
satisfeitos significam quotas não integralizadas.
227 A contribuição em serviços é expressamente vedada pelo par. 2º do art. 1.055 do Código
Civil. Esta proibição se justifica por tratar-se de uma sociedade de responsabilidade limitada
para todos os seus sócios. Nestes tipos o capital social deve ser obrigatoriamente composto

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 205


imaterial228, como na hipótese dos direitos sobre uma marca, por
exemplo.
A avaliação dos bens de qualquer natureza que venham a ser
usados para a integralização do capital social é providência essen-
cial, tanto nas sociedades anônimas quanto nas limitadas, pois em
ambas o capital social e suas frações são expressas em moeda cor-
rente. Desta forma, é obrigatório que se atribua um valor pecuniário
aos bens usados na integralização de quotas ou ações.
Nas sociedades anônimas, a avaliação dos bens que eventu-
almente sejam usados, por permissão estatutária, na integralização
do capital social, é disciplinada pelo art. 8º da Lei n. 6.404/76, o qual
fixa a exigência de laudo técnico, a ser elaborado por três peritos ou
empresa especializada, nomeados em assembleia geral de subs-
critores realizada na forma prevista pelo ora citado texto legal.
Os autores do laudo devem fundamentá-lo, fazer detalhada
indicação dos critérios adotados e documentos empregados, além
de prestarem, na assembleia geral de subscritores, os eventuais es-
clarecimentos solicitados pelos presentes (art. 8º par. 1º da Lei n.
6.404/76).
Se esta assembleia não aprovar o valor atribuído pelo laudo
ou o subscritor não aceitar a avaliação aprovada, ficará sem efei-
to o projeto de constituição da companhia (art. 8º par. 3º da Lei n.
6.404/76). Ressalve-se, contudo, a possibilidade de o subscritor op-
tar por integralizar suas ações em dinheiro, quando então se poderá
continuar o processo constitutivo.
Para as sociedades limitadas, não exige o Código Civil a par-
ticipação de perito especializado na elaboração de laudo de ava-
liação dos bens a serem empregados na integralização do capital

por algo tangível pelos credores, em caso de inadimplemento das obrigações sociais.
228 Modesto Carvalhosa lembra, com acerto, que a penhorabilidade é também um requisito
para que um bem seja usado na integralização do capital social de qualquer sociedade. “Isto
porque é papel do capital social a garantia dos credores. Fossem os bens não penhoráveis e não
executáveis, não teriam os credores qualquer segurança ou garantia efetiva”. CARVALHOSA.
Modesto. (In). AZEVEDO. Antônio Junqueira (Coord.). Comentários ao Código Civil – Vol. 13.
Editora Saraiva. São Paulo. 2003. Pg. 70.

206 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


social. Ao contrário, cumpre aos próprios sócios atribuir valor aos
bens que comporão o capital da sociedade por eles constituída
É claro que tanto nas sociedades anônimas quanto nas limi-
tadas pode haver a superavaliação dos bens usados na integraliza-
ção de quotas ou ações. Dita superavaliação significa, por exemplo,
atribuir a um bem de R$ 500,00 (quinhentos mil reais) o valor de R$
1.000.000,00 (um milhão de reais) em quotas ou ações da socieda-
de.
Tal expediente provoca o que a doutrina chama de “capital
aguado”229 e, obviamente, implica em prejuízo para os outros sócios
e para os credores da pessoa jurídica, que acreditam haver, sob a
titularidade da sociedade, mais recursos patrimoniais do que efeti-
vamente existe.
A Lei n. 6.404/76 prevê, como forma de evitar e sancionar a
superavaliação dos bens que comporão o capital social, que os
avaliadores contratados e o subscritor responderão perante a com-
panhia, os acionistas e terceiros, pelos danos que lhes causarem
por culpa ou dolo na avaliação dos bens, sem prejuízo da responsa-
bilidade penal em que tenham incorrido (art. 8º par. 6º).
Já o Código Civil estipula, para as sociedades limitadas, que a
falta de exata avaliação dos bens conferidos ao capital social impli-
ca na responsabilidade solidária de todos os sócios, pelo prazo de
5 (cinco) anos, contados da data do registro da sociedade (art. 1.055
par. 1º).
Tem-se assim, em ambos os casos, que a consequência jurídi-
ca da superavaliação de bens, para fins de integralização do capital
social, é a responsabilização patrimonial das pessoas responsáveis
por tal avaliação.
Nas sociedades anônimas, a responsabilidade pela avaliação
não é dos acionistas, mas sim do subscritor cedente dos bens e dos
avaliadores contratados na forma da lei. Portanto, cabe a eles re-
229 “Esta situação lembra prática comum na venda de gado: os animais são forçados a consumir
dose excessiva de sal, o que os leva a beber grandes quantidades de água, aumentando
artificialmente o seu peso”. CORRÊA-LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo
Horizonte. 2003. Pg. 41.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 207


parar, com seus respectivos patrimônios pessoais, os prejuízos que
culposa ou dolosamente causarem.
Note-se que o par. 6º do art. 8º da Lei n. 6.404/76 não se re-
fere a solidariedade entre avaliadores e subscritor, para fins da res-
ponsabilização ali tratada. Isto significa que cada um deles é res-
ponsável na medida em que tenha contribuído, com dolo ou culpa,
para a superavaliação.
Se, por exemplo, o subscritor presta correta e integralmen-
te as informações sobre os bens com os quais deseja integralizar
suas ações e os peritos contratados, na forma da lei, empregam de
forma equivocada as informações prestadas, levando à superava-
liação, há que se atribuir apenas a estes últimos a responsabilidade
pelos prejuízos.
Porém se, ao contrário, o subscritor fornece aos peritos con-
tratados, com culpa ou dolo, informações erradas ou incompletas
sobre os bens a serem avaliados e, em virtude disso, os peritos, em-
bora diligentes e cuidadosos, avaliam mal o bem, a responsabilida-
de deve ser exclusiva do subscritor.
Já nas sociedades limitadas, tem-se que a avaliação dos bens
é de responsabilidade de todos os sócios, que, em consequência,
permanecem pessoal e ilimitadamente obrigados, de forma solidá-
ria e pelo prazo de 5 (cinco) anos do registro da sociedade, à repara-
ção dos prejuízos que a superavaliação dos bens componentes do
capital tenha causado.
Se um ou mais dos sócios não concorda com os critérios ado-
tados na avaliação de bem a ser usado na integralização do capital,
deve retirar-se da sociedade antes mesmo da finalização de seu
processo constitutivo, sob pena de, com base no artigo 1.055 do
Código Civil, responsabilizar-se pelos prejuízos causados pela su-
peravaliação.
A superavaliação ora mencionada não se confunde com even-
tuais – e quase sempre inevitáveis – depreciações naturais, decor-
rentes da ação do tempo sobre os bens usados na integralização de

208 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


capital social ou de fatos supervenientes – como acidentes, danos,
desatualização – que comprometam o valor original deles.
Há superavaliação quando se tem a falta de exata correspon-
dência - no momento de atribuição de valor ao bem para fins de in-
tegralização do capital da pessoa jurídica - entre seu valor de mer-
cado e aquele atribuído nos atos constitutivos da sociedade.
Sócios, subscritores e peritos não podem ser responsabiliza-
dos, na forma acima explicitada, se a diferença entre o valor atual de
mercado do bem e o valor a ele dado, na data da integralização do
capital da sociedade, decorre simplesmente da ação do tempo ou
de fatos supervenientes.
Como demonstrado no Capítulo II, a Lei n. 6.404/76 exige que
um percentual mínimo de 10% (dez por cento) do valor do capital
social das companhias seja constituído, à vista e em dinheiro, pelos
futuros acionistas. Nos demais tipos societários não há tal exigência.
Assim, é corriqueiro que os sócios muitas vezes estipulem, no con-
trato de sociedade, valores para o capital social que não se encon-
trem devidamente integralizados.
O Órgão Público de Registro de Empresas Mercantis não dis-
põe de mecanismos efetivos para aferir a real integralização dos
montantes correspondentes às quotas de cada sócio, o que acaba
por facilitar a criação de pessoas jurídicas cujo capital social, ex-
presso nos atos constitutivos, simplesmente jamais foi integralizado.
Em virtude disso, o instituto do capital social perdeu muito de
sua credibilidade, hoje servindo apenas como balizador das rela-
ções internas de poder entre os sócios (função interna corporis) e
não mais como efetiva garantia dos credores, sua outrora conside-
rada função externa.
Tal realidade – que em muito contribui para a existência de
“sociedades fantasma”, posto que sem qualquer patrimônio230 – po-

230 Não se está aqui a fazer alusão à adequação de previsão legal de “capital mínimo” para a
constituição de sociedades. A pessoa jurídica em geral – e a sociedade, em particular – muitas
vezes é usada apenas para limitação do risco no exercício de uma atividade econômica.
Nestes casos, é mesmo esperado que ela disponha de pouquíssimos recursos patrimoniais.
O que se deve evitar – e que, infelizmente, tornou-se prática comum – é a existência de

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 209


deria ser em muito mitigada se, uma vez alegado por terceiro que
o capital social resta não integralizado, fosse atribuído aos sócios o
ônus de comprovar – via documentos de transferência de proprie-
dade ou depósitos bancários, por exemplo - sua integralização.
A falta de rigor na sanção à criação de sociedades sem efetiva
integralização do capital social leva, ainda, ao enfraquecimento do
próprio instituto da responsabilidade limitada dos sócios, que, es-
pecialmente em débitos de natureza trabalhista, é desconsiderada,
posto haver quase que presunção absoluta de não integralização
do capital social231.

2 – A distinção entre capital e patrimônio social

Fundamental é, neste ponto, distinguir entre o termo capital


social e o denominado patrimônio social. Capital social é, como já
apresentado, o resultado da soma aritmética das contribuições dos
sócios, sendo sua expressão monetária fixada, quando da constitui-
ção da sociedade, no contrato social ou estatuto.
À medida que a sociedade começa a exercer efetivamente
seu objeto social e, de fato, dedicar-se à atividade econômica para
a qual foi constituída, naturalmente ela passa a agregar bens e di-
reitos àqueles provenientes da contribuição efetuada pelos sócios
expressa, como visto, na forma de capital social.
A partir deste momento, os bens e direitos da sociedade pas-
sam a ser aqueles oriundos da contribuição dos sócios – capital
social – somados àqueles provenientes dos ganhos resultantes do

sociedades que têm estipulado em seus atos constitutivos um valor de capital social
totalmente ilusório, posto que jamais integralizado.
231 CALÇAS. Manoel de Queiroz Pereira. Sociedade Limitada no Código Civil. Ed. Atlas. São
Paulo. 2013. Pg. 102/104. Em âmbito administrativo, a falta de integralização tempestiva do
capital social pode acarretar para a sociedade o comprometimento de sua avaliação de
capacidade econômico-financeira, para fins de prosseguimento em processos licitatórios.
BARROS. Clemilton da Silva. O capital social não integralizado e a aferição da capacidade
econômico-financeira da empresa nos procedimentos licitatórios. htttp://jus.com.br/
artigos/11233. Site consultado em 12/02/2016.

210 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


exercício da atividade econômica para a qual foi criada a pessoa
jurídica.
Por outro lado, a sociedade também passa, assim que inicia
suas atividades, a contrair uma série de obrigações – voluntárias ou
não – inerentes ao próprio exercício do objeto social. São, por exem-
plo, dívidas tributárias, com empregados, fornecedores de capital
e outras, as quais recairão tanto sobre os bens e direitos expressos
na forma de capital social quanto também sobre aqueles posterior-
mente agregados.
Pode-se afirmar que patrimônio social é, em absoluta síntese,
o valor expresso como capital social, mais o valor destes bens e
direitos oriundos da prática, pela sociedade, de suas atividades ne-
gociais, menos o valor dos débitos que esta pessoa jurídica venha a
contrair em virtude do exercício de seu objeto social.
Em outros termos, trata-se de todos os bens, direitos e obriga-
ções materialmente constituídas, em dado momento, em nome da
pessoa jurídica, sejam estes bens, direitos e obrigações resultantes
da contribuição dos sócios – capital social – ou do exercício do ob-
jeto social.
Enquanto o valor do capital social pode ser facilmente identifi-
cado – com simples consulta aos atos constitutivos da sociedade –
e permanece fixo até que seja formalmente modificado, o patrimô-
nio de uma pessoa jurídica varia quase que de forma ininterrupta,
pois ela está constantemente agregando, pelo efetivo exercício do
objeto social, novos bens, direitos e obrigações à sua titularidade.
Mensurar o patrimônio de uma sociedade depende de deta-
lhadas informações a serem empregadas para a realização de di-
ferentes Balanços e demonstrações contábeis232. Além disso, esta
mensuração inevitavelmente se torna, à medida que passe o tem-
po, cada vez menos condizente com a realidade presente do patri-
mônio social, servindo apenas como dado histórico.

232 A Lei n. 6.404/76 disciplina as diversas Demonstrações Financeiras da companhia em


seus artigos 176 a 188. Já o Código Civil, aplicável às Sociedades Limitadas, regula a matéria
nos artigos 1.179 a 1.189.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 211


É possível perceber também que o patrimônio social contém
um aspecto positivo e outro negativo. O primeiro deles é represen-
tado pelos bens, recursos financeiros e direitos patrimoniais sob a
titularidade da pessoa jurídica. São, em termos contábeis, os cha-
mados ativos patrimoniais.
Já o aspecto negativo do patrimônio social é composto pela
soma de todas as dívidas e demais obrigações patrimonialmente
mensuráveis, sejam elas voluntárias ou não, atribuíveis à sociedade.
Trata-se do que se denomina, em linguagem contábil, de passivo
patrimonial.
O patrimônio líquido da sociedade é o valor que se obtém
quando, dos ativos patrimoniais, subtraem-se os valores do passivo
patrimonial. Grosso modo, é o resultado aritmético correspondente
ao valor de todos os bens, direitos e recursos financeiros da socie-
dade, menos o montante da totalidade de seus débitos.
Uma sociedade economicamente bem sucedida tem, natu-
ralmente, um patrimônio líquido superior ao seu capital social, pois
a este último foram gradativamente acrescidos ganhos financeiros
e materiais em montante superior ao valor dos débitos contraídos
para a exitosa prática do objeto social. Trata-se de uma sociedade
cujo patrimônio líquido é superior ao valor de seu capital social e
que, por isso, encontra-se em situação superavitária.
Por outro lado, uma sociedade que, para o exercício quotidia-
no de suas atividades, venha a contrair débitos em valor superior
aos bens e direitos que consiga agregar neste exercício, terá um
patrimônio líquido inferior ao capital social expresso nos atos cons-
titutivos.
Trata-se de uma sociedade economicamente deficitária, cujo
valor expresso nos atos constitutivos como expressão monetária do
capital social já deixou de existir, sob sua titularidade, posto que to-
tal ou parcialmente consumido na quitação das obrigações ineren-
tes à atividade social.
A expressão monetária do capital social é, portanto, simples
reflexo do valor que foi – ou, ao menos, deveria ter sido – contribu-

212 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


ído pelos sócios. Com o decorrer das atividades da sociedade, este
valor torna-se seriamente divergente – para mais ou para menos –
do patrimônio líquido da pessoa jurídica, este último referente aos
bens, recursos financeiros e direitos existentes, em data presente,
sob a titularidade da sociedade.
Do que foi exposto constata-se ainda que, para fins de efeti-
va garantia dos credores da pessoa jurídica, o capital social – se já
integralizado – e sua expressão monetária deixa de ser relevante,
em detrimento do patrimônio social líquido, este sim efetivamente
significativo como conjunto de bens e direitos aptos a serem usa-
dos para pagamento das dívidas a serem contraídas em nome da
pessoa jurídica.
A outra função do capital social – dita interna corporis - está
em servir, na generalidade dos modelos societários (exceção feita
à sociedade cooperativa), como referência ou critério para o exercí-
cio, pelos sócios, dos direitos decorrentes desta condição.
Em regra, os sócios exercem seus direitos na sociedade com
base no denominado princípio da proporcionalidade. Isto significa
que o sócio exercerá seus direitos essenciais em percentual direta-
mente proporcional ao que tenha contribuído para a formação do
capital social. Quanto maior for a contribuição do sócio para o capi-
tal social, proporcionalmente maior será o seu proveito em relação
aos seus direitos233.
Embora expressa e monetariamente fixado em cláusula con-
tratual ou estatutária, o capital de uma sociedade pode ser alterado
tanto para mais, quanto para menos. Assim, embora fixo, o valor do
capital social não é imutável, podendo tanto ser aumentado quan-

233 O direito de voto e o direito de participação nos lucros ilustram bem o denominado
princípio da proporcionalidade aqui referido. Assim se, por exemplo, o sócio contribuiu com
70% (setenta por cento) do valor do capital social, ele terá direito ao mesmo percentual dos
lucros resultantes da atividade da sociedade e, nas deliberações com os demais integrantes,
seu voto também corresponderá aos mesmos 70% (setenta por cento) do total.
Os direitos essenciais do sócio são, em geral, exercidos com base no princípio da
proporcionalidade, o qual se justifica uma vez que, no empreendimento societário, os
possíveis ganhos e a ingerência do sócio devem corresponder, de forma proporcional, ao
que ele tenha contribuído para a formação do capital da pessoa jurídica.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 213


do reduzido, desde que observadas as hipóteses e requisitos legal-
mente estabelecidos234.

3 – Aumento do capital social: hipóteses e


procedimentos

As hipóteses de aumento do capital social podem ser classi-


ficadas em duas grandes modalidades, conforme reflitam ou não
também em aumento no patrimônio líquido da sociedade235. Tais
hipóteses estão expressamente enumeradas pelo art. 166 da Lei n.
6.404/76, enquanto o Código Civil limita-se, em seu art. 1.081, a pre-
ver, de forma geral, a possibilidade do aumento sem, porém, elen-
car as modalidades.
Há hipóteses legais de aumento do capital social que tam-
bém acarretam na aquisição de novos bens, direitos ou recursos
financeiros para a titularidade da pessoa jurídica. Nestes casos tem-
-se, então, um aumento de capital social e também um acréscimo
no patrimônio líquido da sociedade, dada esta nova injeção de di-
nheiro, direitos ou bens. Isto se verifica quando os sócios realizam
a integralização de novas ações ou quotas, quando há a entrada
de novos sócios e quando a sociedade converte seus credores em
sócios.
Por outro lado, há casos em que o aumento de capital não
implica em modificação do patrimônio social líquido. Aumenta-se
o valor do capital social, expresso nos atos constitutivos, com base
em simples adequações contábeis, de forma a torná-lo mais condi-
zente com o atual patrimônio líquido da pessoa jurídica.
Nestas hipóteses não há, como será demonstrado, entrada
de novos bens, direitos ou recursos financeiros para a titularidade
da sociedade. A capitalização de reservas e a correção/atualização
234 Veja-se nesse sentido o que estipula o art. 6º da Lei n. 6.404/76: O capital social somente
poderá ser modificado com observância dos preceitos desta Lei e do estatuto social (arts. 166
a 174).
235 ASCARELLI. Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. Ed.
Bookseller. Campinas. 2001. Pg. 618 e segs.

214 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


da expressão monetária do capital social são exemplos destes au-
mentos de capital sem alteração no patrimônio líquido da pessoa
jurídica.
Evidente caso de aumento do capital social com acréscimo de
patrimônio líquido é aquele em que os atuais sócios decidem rea-
lizar novas contribuições financeiras ou materiais para a sociedade.
Isto pode se implementar mediante a emissão de novas quotas ou
ações ou de simples aumento no valor nominal delas.
Assim, os sócios contribuirão com novas integralizações de
capital, sendo estas formalizadas mediante a emissão de novas
ações, previsão contratual de novas quotas ou, como dito, simples-
mente acrescentando-se numerário ao valor nominal das quotas ou
ações já emitidas. Trata-se do que pode ser chamado de aumento
por subscrição, sem modificação no quadro de sócios.
Imagine-se, por exemplo, uma sociedade cujo capital seja de
R$ 1.000.000,000 (um milhão de reais), dividido em 1.000.000 (um
milhão) de ações ou quotas. Seus sócios podem decidir, na forma
como será explicitado abaixo, pela integralização de, por exemplo,
R$ 100.000,00 (cem mil reais) na forma de novas quotas ou ações,
a serem acrescentadas ao montante original. Assim, esta socieda-
de passará a ter um capital de R$ 1.100.000,00 (um milhão e cem
mil reais) composto por 1.100.000 (um milhão e cem mil) quotas ou
ações.
Estas novas contribuições dos sócios podem ser efetuadas
também sob a forma de aumento no valor nominal das ações ou
quotas já existentes. No exemplo acima tem-se que, antes do au-
mento, o valor nominal das ações ou quotas daquela hipotética so-
ciedade era de R$ 1,00 (um real).
Decidido o aumento – e para não emitir novas ações ou criar
mais quotas – a sociedade pode receber as novas contribuições
dos sócios e formalizá-las por meio de acréscimo ao valor nominal
das ações já emitidas ou através de alteração contratual (no caso
das sociedades limitadas) que reflita, no valor das quotas já existen-
tes, o acréscimo efetuado pelos integrantes.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 215


Assim, no citado exemplo, as quotas ou ações da hipotética
sociedade teriam, após o aumento de capital social mediante novas
contribuições realizadas pelos atuais sócios, o valor nominal de R$
1,10 (um real e dez centavos) cada.
Seja pela emissão/criação de novas quotas ou ações236 ou por
acréscimo ao valor nominal delas, o aumento de capital por novas
contribuição dos sócios está condicionado à alteração da cláusula
contratual ou estatutária que menciona o valor deste capital social
e o número e valor nominal das ações237 ou quotas em que está
dividido.
A cláusula estatutária ou contratual que estipula o valor e for-
ma de integralização do capital social só pode ser alterada, tanto no
regime da Lei n. 6.404/76 (art. 166, IV) quanto do Código Civil (art.
1.071, V c/c art. 997, III), por expressa deliberação dos sócios.
Nas sociedades anônimas, a iniciativa de propor o aumento
do capital social, por novas contribuições dos acionistas, somente
pode ocorrer após integralizados ¾ (três quartos) ou mais do valor
original (art. 170 caput da Lei n. 6.404/76) e advém de proposta da
administração da sociedade – mais especificamente do Conselho
de Administração, quando existente – a qual deverá ser formalmen-
238
te justificada aos acionistas .

236 O termo “emissão de quotas” não se afigura correto, uma vez que elas somente existem
como cláusulas do contrato social, no qual também constam, como já mencionado, seu valor
e titularidade.
237 As ditas ações sem valor nominal já foram abordadas em capítulo anterior e, como lá
se expôs, não são exatamente desprovidas deste valor. Ao contrário, simplesmente não há
referência expressa a ele.
238 A justificação aqui aludida significa uma explicação geral sobre os motivos da chamada
de capital e também quanto aos seguintes aspectos: 1 - o valor do capital social a ser
subscrito e o modo de sua realização 2 - o número, as espécies e classes de ações em que se
dividirá o capital social 3 - o valor nominal das ações (se for o caso) e o preço de emissão das
novas ações 4 - a importância a ser integralizada no ato de aprovação e as eventuais parcelas
sucessivas, bem como os prazos e os critérios de sua realização 5 - a eventual possibilidade
de subscrição ou não por terceiros, não acionistas, em caso de renúncia ou cessão do direito
de preferência 6 - os dispositivos estatutários a serem alterados e sua nova proposta de
redação 7 - as datas de início e término da subscrição 8 - o critério de disposição das sobras
de ações não subscritas pelos acionistas titulares de preferência sobre elas (art. 171 da Lei n.
6.404/76).

216 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O par. 1º do art. 170 da Lei n. 6.404/76 estabelece, ao dispor
sobre a forma de cálculo do número e valor de emissão das ações a
serem integralizadas no aumento de capital, que a companhia pode
adotar tanto o valor econômico (baseado na perspectiva de renta-
bilidade da sociedade) quanto o valor patrimonial (obtido a partir do
patrimônio líquido da companhia) e/ou o valor de cotação da ação,
239
o qual é praticado em Bolsa de Valores ou Mercado de Balcão .
Para a válida instalação da Assembleia Geral Extraordinária
de Acionistas destinada a deliberar sobre aumento de capital so-
cial por emissão de novas ações, há regra própria (art. 135 da Lei
240
n. 6.404/76) , enquanto a aprovação deste aumento se dará pela
adesão da maioria absoluta dos votos, na forma do art. 129 c/c art.
136 da Lei n. 6.404/76.
Regra geral, a companhia que pretenda aumentar seu capital
precisa modificar a cláusula estatutária que contém a referência ao
seu valor. Há, porém, uma exceção à esta necessidade, a qual se
configura quando a companhia já contém, no seu estatuto, cláusula
expressa autorizando e disciplinando, antecipadamente, o aumento
de capital social por emissão de novas ações e sem necessidade de
reforma estatutária.
Tal companhia – chamada de sociedade de capital autoriza-
do - é regulada pelo art. 168 da Lei n. 6.404/76 e, nela, cabe à As-
sembleia Geral de Acionistas - ou mesmo ao Conselho de Admi-
nistração, conforme esteja previsto no estatuto – apenas decidir o
momento estratégico adequado de realização do procedimento241.

239 Nas companhias fechadas, de caráter nitidamente familiar, o critério mais adequado e
próprio é o do valor de patrimônio líquido, de fácil equacionamento, já que obtido conforme
os critérios do art. 178 e seguintes. Já para as companhias abertas, o critério do valor de
cotação mostra-se nitidamente de mais fácil obtenção.
240 Diferentemente da regra geral sobre as Assembleias de Acionistas, esta somente se
instala, validamente, em primeira convocação, com a presença de 2/3 (dois terços) ou mais
do capital social votante, já que deliberará sobre reforma dos estatutos por modificação do
capital social. Em segunda convocação, realizada segundo as mesmas formalidades legais,
esta Assembleia se instala com qualquer número de acionistas presentes.
241 O aumento de capital torna-se, portanto, uma medida mais ágil de ser implementada, o
que deixa ao órgão social competente maior amplitude e discricionariedade para decidir, do
ponto de vista estritamente negocial, quando realizar o procedimento.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 217


Os estatutos que contenham a autorização ora referida deve-
rão especificar o limite deste possível aumento, as espécies e clas-
ses de ações que poderão ser emitidas, o órgão competente para
tomar a decisão de aumento e os casos e condições de exercício,
pelos atuais acionistas, de seu direito de preferência (art. 168 da Lei
n. 6.404/76).
Nas Sociedades Limitadas, o aumento do capital social, por
meio de novas contribuições dos quotistas, também depende de
deliberação expressa dos sócios a ser aprovada por, no mínimo, ¾
(três quartos) do capital social, posto que implica em alteração nos
atos constitutivos da sociedade (art. 1.071 c/c art. 1.076, I e art. 1.081
do Código Civil).
Diferentemente do que se verifica na Lei n. 6.404/76, não há,
no regime do Código Civil, regras expressas reguladoras da legitimi-
dade para propor o aumento, bem como de sua justificação quanto
à pertinência, forma e montante de realização, cláusulas contratuais
a serem modificadas e outros aspectos inerentes a este importante
momento nas atividades de uma sociedade.
Apesar desta omissão, resta inegável que esta relevante de-
liberação dos quotistas somente deve ser tomada se forem eles
devidamente informados tanto sobre a pertinência e finalidade do
aumento quanto a respeito de todos os detalhes inerentes à sua
realização, como datas, valores e formas de integralização das no-
vas quotas, assim como sobre a proposta de redação das cláusulas
contratuais a serem modificadas.
Aspecto fundamental do procedimento de aumento de capi-
tal social por novas contribuições dos sócios está na disciplina do
denominado direito de preferência, o qual é tratado como essen-
cial tanto para o acionista (art. 109 da Lei n. 6.404/76) quanto para
o quotista (art. 1.081 do Código Civil). A plena compreensão deste
essencial direito do sócio carece de alguma explicação preliminar.
Como já foi salientado, tanto nas sociedades anônimas quanto
nas limitadas os sócios exercem, em regra, seus direitos de forma
proporcional à sua fração do capital social. Isto significa que quanto

218 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


maior for o percentual do sócio no capital social, maior será, propor-
cionalmente, sua ingerência sobre as deliberações da sociedade e
sua fração nos eventuais lucros gerados pela atividade social.
Decidido o aumento do capital social por novas contribuições
dos sócios, é, portanto, necessário assegurar a cada um dos atuais
integrantes o direito de manutenção do seu percentual no capital
da sociedade, de forma a que este sócio possa, mesmo após o au-
mento, continuar com a mesma fração no capital da pessoa jurídica
e, consequentemente, com igual ingerência e participação nos re-
sultados das atividades sociais.
Para isto é legalmente assegurado, à totalidade dos sócios - e
no caso do aumento de capital social por novas contribuições deles
- o direito de adquirir, antes dos outros sócios e de terceiros, as quo-
tas ou ações referentes ao aumento, na exata proporção do atual
242
percentual de cada um deles no capital social .
O objetivo fundamental do direito de preferência é evitar que
o aumento do capital social por novas contribuições dos sócios re-
sulte, indiretamente, em alteração, quanto ao percentual de cada
integrante, no capital social e, por consequência, na organização de
poder na sociedade.
Ressalte-se, entretanto, que o direito de preferência apresen-
ta, tanto na Lei n. 6.404/76 (art. 171) quanto no Código Civil (parágra-
fos. 1º e 2º do art. 1.081) certos limites que, na prática, muitas vezes
inviabilizam seu efetivo exercício. Destes limites, dois são mais sig-
nificativos e comuns às sociedades anônimas e limitadas.
O primeiro deles refere-se ao prazo decadencial para seu
exercício. Se o acionista ou quotista não integralizar, na forma como
aprovada, sua parcela do aumento de capital social, decairá do di-
reito de preferência a ele concedido e abrirá, por consequência, a
possibilidade de que outros sócios – ou mesmo terceiros, se previs-

242 Assim se, por exemplo, um sócio tem 10% (dez por cento) do capital social, uma vez
deliberado aumento deste último, por emissão de novas ações ou quotas, este sócio terá,
antes dos demais integrantes e de terceiros, o direito a integralizar exatos 10 % (dez por
cento) das ações ou quotas provenientes do aumento aprovado, com isto preservando seu
percentual no montante do capital social.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 219


ta tal hipótese na deliberação que aprovou o aumento - venham a
integralizar tais parcelas.
O segundo limite, também comum à quotistas e acionistas,
está em que o direito de preferência somente será exigível na estrita
forma e prazo estipulados para a integralização das novas ações ou
quotas. É dizer: o sócio somente terá direito de preferência sobre
as quotas ou ações provenientes de aumento do capital social se
realizar a integralização de seu percentual nas exatas condições e
243
prazos estipulados pela deliberação que aprovou o aumento .
O capital social também é aumentado, com acréscimo ao pa-
trimônio líquido da sociedade, quando são admitidos novos sócios,
os quais tem, tanto nas sociedades anônimas quanto nas limitadas,
o dever de integralizar as novas ações ou quotas que, a partir de
então, passam a compor o capital social.
As regras de admissão de novos sócios são, entretanto, signifi-
cativamente diferentes, conforme se trate de uma sociedade anôni-
ma aberta, por um lado, de uma companhia fechada ou sociedade
limitada, por outro.
Nas companhias abertas, novos sócios são admitidos quando
a sociedade delibera, por meio de sua Assembleia Geral de Acio-
nistas, reformar o estatuto social para emissão de novas ações a
serem livremente negociadas – subscrição pública - em Bolsa de
Valores ou no Mercado de Balcão. Ressalte-se que nesta hipótese
é obrigatório preservar o direito de preferência dos atuais acionistas
(art. 171 da Lei n. 6.404/76) e realizar o prévio registro desta emissão
na Comissão de Valores Mobiliários (art. 170 par. 5º e 82 da Lei n.
6.404/76).

243 Outro aspecto relevante do direito de preferência garantido a acionistas e quotistas


está na sua negociabilidade. “A cessão dos direitos de subscrição preferencial constitui direito
individual do acionista, que não pode ser impedido pelo estatuto ou pela assembleia geral
(art. 171). (...) Não obstante, se, na companhia fechada, o estatuto adotar o pacto parassocial
limitando a circulação de ações nominativas (art. 36), há necessidade de conciliar o direito
de cessão da preferência com as restrições estatutárias. Essa restrição, no entanto, não afeta
as ações cujos titulares não tenham expressamente concordado com esse pacto parassocial
estatutário (...). CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Vol. II.
Ed. Saraiva. São Paulo. Pg. 360.

220 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


As companhias fechadas também podem admitir novos só-
cios, o que implica, claro, em aumento do capital social e do pa-
trimônio líquido da sociedade pela subscrição e integralização
– sempre particular – de novas ações. Segundo o art. 36 da Lei n.
6.404/76, o estatuto da companhia fechada pode impor restrições à
negociabilidade de suas ações, o mesmo se aplicando à entrada de
novos sócios, que somente poderão ser admitidos se preenchidas
244
as exigências estatutariamente previstas .
No mesmo sentido vai o Código Civil, que, ao cuidar da ne-
gociabilidade de quotas de sociedades limitadas, condiciona sua
transferência a terceiros às eventuais restrições previstas no con-
trato social ou, na inexistência destas últimas, à falta de oposição
por sócios que sejam titulares de ¼ (um quarto) ou mais do capital
social (art. 1.057). São estas as regras aplicáveis à entrada de novo
sócio quotista, seja porque adquiriu, no todo ou em parte, as quotas
de integrante original, seja porque simplesmente vai subscrever ou
245
integralizar novas quotas .
Aspecto de particular relevância, quando se trata do aumento
de capital social pela emissão de ações ou quotas a serem adqui-
ridas por novos sócios, está na prevenção da denominada diluição
injustificada da participação dos sócios originais, considerados es-
tes com os que já integravam a sociedade antes da deliberação de
aumento do capital social.
Há diluição injustificada quando, em um aumento de capital
por emissão de novas ações ou quotas, os seus adquirentes pagam,
por elas, valores inferiores ao que teriam, se adequadamente ava-
liadas. Veja-se um exemplo: se as ações de uma companhia têm o
valor patrimonial de R$ 1,00 (um real) cada, um aumento de capital
244 As companhias fechadas são, em regra, caracterizadas por um evidente caráter
personalíssimo – e mesmo familiar – entre seus integrantes, razão pela qual é usual que a
admissão de novos sócios seja, por cláusula estatutária, condicionada ao preenchimento de
rígidas exigências como, por exemplo, a aprovação por alto percentual dos atuais integrantes.
245 Inexiste razão para se tratar de forma diferente, sob o aspecto jurídico, situações tão
similares quanto as descritas. Se haverá a entrada de novo sócio quotista, é absolutamente
irrelevante, para fins de se estipular quais as regras de tal entrada, se isto ocorrerá pela
aquisição das quotas de um sócio atual ou pela subscrição e integralização de novas quotas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 221


por emissão de novas ações somente pode ser validamente reali-
zado se estes novos papéis forem negociados pelo valor individual
mínimo de R$ 1,00 (um real).
Caso contrário, os adquirentes das novas ações terão pago,
por uma ação da companhia, valor inferior àquele correspondente
a cada ação dos acionistas anteriores ao aumento, os quais terão
injustificadamente diluída sua participação no patrimônio da com-
panhia.
A diluição injustificada de participação no capital social é ilegal
em qualquer modelo societário, mas, por óbvio, sua regulação é
mais completa e detalhada quando se trata das companhias, espe-
cialmente aquelas de capital aberto. É neste sentido que o aqui já
citado par. 1º do art. 170 da Lei n. 6.404/76 estipula regras inafastá-
veis sobre a fixação do preço de emissão das ações a serem lança-
das para realização de aumento do capital social.
A última forma de efetuar aumento de capital social com
acréscimo ao patrimônio líquido da sociedade está na conversão
de dívidas da pessoa jurídica em participação no seu capital social.
Transforma-se o capital de terceiros em capital próprio.
Os credores da sociedade tornam-se seus sócios, e os valo-
res em relação aos quais tinham direito de crédito são convertidos
em instrumentos para integralização de suas quotas ou ações na
sociedade. Por este meio, os credores integralizarão suas ações ou
quotas não com dinheiro ou bens, mas com o direito de crédito que
tinham contra a sociedade.
Assim, o credor da sociedade deixará de receber o que tinha
direito e seu crédito contra a pessoa jurídica será tomado como o
meio de integralização das novas quotas ou ações emitidas pela
sociedade. O patrimônio líquido da sociedade aumenta, já que o
seu passivo – composto, como visto, pelas suas dívidas – diminui
no exato valor dos créditos que deixarão de ser exigíveis pelos seus
246
antigos credores, agora sócios .

246 Exemplo desta modalidade de aumento do capital social com acréscimo de patrimônio
líquido é a operação de conversão de debêntures em ações da companhia (art. 166, III da

222 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Ao contrário do que possa a princípio parecer, nem todo au-
mento de capital social tem como consequência um acréscimo nos
bens, direitos ou recursos financeiros da sociedade, assim como
também não resulta em diminuição de suas dívidas. Portanto, há hi-
póteses de aumento do capital social que não produzem qualquer
reflexo sobre o patrimônio líquido da sociedade.
Já aqui se apontou que capital social e patrimônio social não
são expressões sinônimas. Capital social é, grosso modo, a soma da
contribuição dos sócios para a titularidade da sociedade, enquanto
o patrimônio social é composto por tais contribuições mais todos os
bens, direitos e obrigações que a pessoa jurídica venha a acumular,
ao longo de suas atividades, sob sua titularidade.
Desta forma, quando a sociedade inicia suas atividades, o seu
patrimônio – originalmente composto apenas pelas contribuições
dos sócios – passa a ser constantemente acrescido de recursos fi-
nanceiros e bens que ela consegue, com o efetivo exercício de seu
objeto, acumular, assim como surgem, para a pessoa jurídica, obri-
gações decorrentes da viabilização de seu empreendimento.
À medida que o tempo passa, mais se distancia do efetivo
patrimônio da pessoa jurídica o valor expresso nos atos constitu-
tivos como seu capital social, sendo, portanto, necessário realizar,
periodicamente, operações que aproximem novamente estas duas
referências.
Uma destas operações remete às reservas patrimoniais, que
essencialmente significam, em termos contábeis, todos os bens, re-
cursos financeiros e direitos patrimoniais que a pessoa jurídica tem
sob sua titularidade e que não estejam contabilizados sob a forma
de capital social. Advém essencialmente dos ganhos que a socie-
247
dade obtém em decorrência de suas atividades econômicas .
Lei n. 6.404/76). A sociedade deixará de ser devedora dos valores correspondentes aos
títulos convertidos em ações, o que diminui seu passivo e, por consequência, aumenta o seu
patrimônio líquido.
247 Um exemplo de reserva está nos lucros que os sócios decidem não distribuir entre si,
optando, ao contrário, por mantê-los sob a titularidade da sociedade. Tais lucros compõem
o patrimônio social, mas não o seu capital, razão pela qual são modalidades de reservas
contábeis.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 223


Uma vez existentes, as reservas patrimoniais podem, por de-
cisão da Assembleia Geral de Acionistas (art. 169 da Lei n. 6.404/76),
ser incorporadas ao capital social, o que se efetiva com a emissão,
em favor de todos os sócios, de novas ações ou através do aumen-
to do valor nominal das ações já existentes, sempre respeitada a
necessidade de manutenção do percentual de cada acionista no
capital social e o limite referente ao valor das reservas patrimoniais
incorporadas.
Esta capitalização de reservas implica em aumento no núme-
ro de ações da companhia ou no valor nominal delas, refletindo, por
consequência, na expressão monetária do capital social. Não há,
entretanto, acréscimo ao patrimônio líquido da sociedade – com a
inclusão de novos bens ou direitos - pois as reservas incorporadas
ao capital já compunham o patrimônio social.
Há também aumento de capital sem alteração no patrimônio
líquido da companhia quando simplesmente se realiza a correção
da expressão monetária do capital social, por meio de decisão da
Assembleia Geral Ordinária de Acionistas (art. 166, I e 167 da Lei n.
6.404/76) e consequente alteração dos estatutos.
A correção monetária do valor do capital social expresso nos
estatutos é simplesmente uma atualização do seu valor, de forma a
evitar que este fique defasado em virtude da variação no poder de
compra da moeda. É uma operação de competência da Assembleia
Geral Ordinária de Acionistas (art. 132, IV da Lei n. 6.404/76), já que
precisa ser periodicamente efetuada e não implica, como se pode
ver, em reflexos sobre os bens, direitos ou obrigações sob a titulari-
dade da pessoa jurídica.
Embora não haja, no Código Civil, previsão específica destas
duas modalidades de aumento do capital social sem alteração no
patrimônio líquido da sociedade, ambas podem ser implementa-

A Lei n. 6.404/76 dedica vários artigos à disciplina das diferentes modalidades de reservas
contábeis (Lei n. 6.404/76, arts. 193 a 200), que, embora sejam suscetíveis de classificação
segundo vários critérios – como origem e destinação, por exemplo – mantém a essência de
serem, como salientado, os bens e direitos da sociedade não computados sob a forma de
capital social.

224 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


das, já que vinculadas essencialmente apenas à alteração do con-
trato social, providência de competência privativa dos quotistas (art.
1.071, V, do Código Civil).

4 - Redução do capital social

O capital social também pode ser alterado para menos, em


relação ao seu valor originalmente estipulado no contrato ou esta-
tutos sociais. Esta operação – redução do capital social – é discipli-
nada tanto pela Lei n. 6.404/76 (artigos. 173 e 174) quanto no Código
Civil (artigos. 1.082 a 1.084) e tem como fundamentos duas possíveis
ocorrências: perdas irreparáveis ou excesso, em relação ao objeto
social.
No primeiro caso, tem-se que as contribuições patrimoniais
realizadas pelos sócios foram, em parte, esgotadas, para cumpri-
mento de obrigações decorrentes do próprio exercício do objeto
social. Assim, os valores originalmente integralizados pelos sócios
efetivamente não mais existem, sob a titularidade da sociedade. O
patrimônio social é, em virtude de tais gastos, inferior ao capital so-
cial integralizado, o que justifica a redução de sua expressão mone-
tária, nos atos constitutivos.
Neste ponto é importante salientar que os sócios não são obri-
gados a realizar novas contribuições patrimoniais para recompor as
perdas que a sociedade sofra em virtude dos negócios que tenha
empreendido para viabilizar suas atividades.
O capital social é integralizado – na forma e prazos fixados
pelos atos constitutivos - uma só vez e serve, como demonstrado,
para propiciar as condições financeiras e materiais de que a socie-
dade necessita para iniciar a realização de seu objeto.
Assim, o gasto de parte do capital social – e sua consequen-
te perda irreparável – para o regular exercício do objeto social não
implica no dever, por parte dos sócios, de novas contribuições. Ao
contrário, o que se prevê, nesta hipótese, é a redução da expressão

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 225


monetária do capital social, de forma a adequá-lo à nova realidade
patrimonial da pessoa jurídica248.
Esta operação deve ser implementada com a aprovação dos
sócios – já que implica em reforma do contrato ou estatutos – e
diminuição no valor nominal das quotas ou ações componentes
do capital social249, observada, sempre, a proporcionalidade no
percentual de cada sócio (art. 1.083 do Código Civil e 173 da Lei n.
6.404/76).
O outro possível fundamento de uma operação de redução
no valor de capital social está na constatação de seu excesso, em
relação ao montante necessário à devida implementação do objeto
social.
A soma das contribuições dos sócios deve, em qualquer tipo
societário, ser em montante apto a viabilizar o início das atividades
sociais. A definição deste valor cabe aos sócios, que livremente es-
tipulam, no ato de constituição da pessoa jurídica, o valor da contri-
buição de cada um deles.
Pode ocorrer – embora seja raro – que os sócios tenham fixa-
do, para si mesmos, valores de contribuições superiores ao neces-
sário para a implementação do objeto social. Nesta hipótese deve-
-se admitir, como o fazem a Lei n. 6.404/76 e o Código Civil, que
seja deliberada a restituição de parte destas contribuições, com a
consequente e necessária redução do valor do capital social.
Em Assembleia – ou reunião, no caso das limitadas – sócios
quotistas e acionistas podem decidir restituírem a si mesmos parte
do valor das quotas ou ações integralizadas por eles, constatado o
excesso supra referido.
Ressalve-se que esta hipótese de redução do capital social
está sujeita, tanto na Lei n. 6.404/76 (art. 17) quanto no Código Civil
248 Vale, porém, notar que se o montante de dívidas sob a titularidade da pessoa jurídica for
superior à sua capacidade de pagamento, há que se requerer a autofalência da sociedade
ou, se for o caso, pedida sua recuperação judicial ou extrajudicial, na forma prevista pela Lei
n. 11.101/05.
249 No caso das ações esta redução no valor do capital social também pode ser efetivada
com a diminuição do número total de ações emitidas pela companhia, observada, como
sempre, a manutenção na proporção da participação de cada acionista.

226 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


(art. 1.084) à impugnação, por parte dos credores da pessoa jurídica,
uma vez que a redução ora abordada pode implicar na incapacida-
de da sociedade honrar os débitos contraídos em seu nome.
Havendo impugnação a sociedade estará, para a oponibili-
dade da redução deliberada aos credores impugnantes, obrigada
a provisionar tais recursos, de modo a garantir-lhes o pagamento
devido.

5 – Os procedimentos de abertura e fechamento de


capital social: mecanismos de colocação ou retirada de
uma companhia no mercado de valores mobiliários

O art. 4º da Lei n. 6.404/76 classifica as sociedades anônimas


conforme os valores mobiliários por elas emitidos estejam ou não
admitidos à negociação pública através da bolsa de valores ou do
mercado de balcão.
São sociedades anônimas abertas – ou de capital aberto –
aquelas cujos valores mobiliários estejam admitidos a tal mercado,
enquanto as denominadas sociedades anônimas fechadas – ou de
capital fechado – são, em sentido oposto, as que não podem ne-
gociar os valores mobiliários de sua emissão através de bolsa de
valores ou mercado de balcão.
O enquadramento de uma companhia na condição de aber-
ta ou fechada não é necessariamente permanente. Ao contrário, é
relativamente comum que uma sociedade anônima decida conver-
ter-se de fechada em aberta, ou vice-versa.
Assim, as companhias de capital aberto podem tornar-se fe-
chadas, por meio do procedimento denominado fechamento de
capital. Por outro lado, é igualmente possível a uma companhia
fechada o movimento inverso, no sentido de lançar seus valores
mobiliários em bolsa de valores ou mercado de balcão, o que se
efetiva mediante a abertura de seu capital ou, em termos técnicos,
Oferta Pública Inicial, muito referida pela sigla de seu significado em
inglês: IPO (Initial Public Offering).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 227


Tanto a decisão de abrir quanto a de fechar o capital de uma
sociedade são pautadas essencialmente por critérios de natureza
econômica e gerencial, cabendo à legislação a tarefa de disciplinar
o procedimento a ser adotado em ambos os casos, de forma a evi-
tar que interesses juridicamente relevantes sejam eventualmente
inobservados em qualquer uma das hipóteses.
A abertura do capital de uma companhia é, como se disse,
uma decisão pautada por critérios de natureza econômica e ge-
rencial, não jurídicos. Assim, a iniciativa da proposta neste sentido
advém, em regra, do sócio ou grupo controlador da sociedade fe-
chada, que vê na operação uma oportunidade para maximizar seus
ganhos decorrentes da condição de sócio.
Para os acionistas de uma companhia fechada – em especial
o grupo ou sócio controlador – a decisão de abrir o capital da socie-
dade representa, em síntese, abdicar de poder sobre os atos e ne-
gócios da companhia em troca da perspectiva de entrada de novos
recursos financeiros para o patrimônio social e, por consequência,
otimização da atividade empresarial e valorização de suas ações.
Grosso modo, troca-se poder por dinheiro.
A referida perda de poder sobre os atos e negócios da compa-
nhia decorre principalmente de dois fatores, sendo o primeiro deles
a entrada dos novos acionistas que, ao adquirirem as ações coloca-
das à venda no momento da abertura do capital social, promovem
um rearranjo na estrutura interna de poder ao diminuírem, por ób-
vio, o percentual dos sócios originais no montante total das ações.
O sócio ou grupo controlador da companhia antes fechada
verá, após a abertura de capital, seu percentual sobre o montante
total de ações emitidas diminuir abruptamente, pela entrada de no-
vos integrantes. Isto significa que tal grupo ou sócio, antes contro-
lador, não mais deterá o poder de decidir, sozinho, os atos e delibe-
rações a serem efetivadas pela companhia, agora de capital aberto.
Os antigos acionistas antes majoritários não terão mais o mes-
mo percentual sobre as ações da companhia – agora de capital
aberto - e conviverão com a presença de uma gama maior e mais

228 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


diversificada de novos acionistas, os quais provavelmente serão,
além disso, mais organizados e atuantes na defesa de seus interes-
ses.
A diminuição do poder dos acionistas de uma companhia fe-
chada advém também, com a abertura do capital social, da regula-
mentação e fiscalização que sobre a sociedade passarão a exercer
a Bolsa de Valores e, principalmente, a Comissão de Valores Mobili-
ários – CVM – cuja função é, como já demonstrado, zelar pela lega-
lidade e eficiência das operações envolvendo qualquer aspecto do
mercado de valores mobiliários.
Uma companhia aberta é, ao contrário daquelas de capital
fechado, obrigada a atender inúmeras exigências legais e regula-
mentares fiscalizadas tanto pela bolsa de valores quanto pela CVM.
Isto obviamente acarreta, para os acionistas, menor capacidade de
ingerência na tomada de decisões corporativas250. Os acionistas de
uma companhia aberta têm menos amplitude para tomada de de-
cisões do que os membros de uma companhia fechada, pois es-
tão limitados pelas diversas regras vigentes no mercado de valores
mobiliários.
Além disso, a companhia aberta sujeita-se a exigências legais
e regulamentares referentes ao grau de divulgação das informações
sobre sua estrutura interna e atividades. Nas companhias abertas a
regra é, como se verá em capítulo adiante, a ampla e obrigatória di-
vulgação de informações sobre sua realidade econômica, estrutura
jurídica e decisões. O mercado e seu regulador – CVM - saberá de
qualquer ato ou fato relevante inerente à companhia e esta informa-
ção terá sua legalidade sujeita à constante apreciação.
Se, como demonstrado, a abertura do capital social acarreta
sérias restrições para os acionistas que dela participavam enquanto
fechada, o procedimento em análise representa, ao menos poten-

250 O respeito às regras e regulamentos aplicáveis às companhias abertas representa não


só perda de poder para os acionistas como também a necessidade de arcar com uma série
de custos destinados exatamente ao cumprimento de tais exigências normativas. Uma
companhia aberta demanda uma série de custos para manter-se dentro dos padrões de
legalidade vigentes, custos estes que inexistem para as companhias fechadas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 229


cialmente, grande valorização tanto do patrimônio da sociedade
quanto das ações que integrem o capital social.
Com a emissão de novas ações para serem negociadas em
bolsa de valores ou mercado de balcão, o procedimento de abertu-
ra do capital de uma companhia promove a entrada, para o patrimô-
nio social, de grande montante de novos recursos financeiros. Há
significativa injeção de dinheiro que, obviamente, deve destinar-se
à ampliação e aprimoramento das atividades sociais e, claro, valori-
zação da companhia e suas ações.
A companhia que abre seu capital ao mercado de valores
mobiliários vê quase que imediatamente seu patrimônio aumentar
drasticamente, dadas as integralizações realizadas pelos investido-
res que adquirem as ações emitidas no ato da abertura.
Por outro lado, o índice de liquidez das ações de uma com-
panhia aberta é incomparavelmente maior que o das companhias
fechadas, uma vez que são negociados quotidianamente em bolsa
de valores ou mercado de balcão.251 Em princípio, quanto maior a
liquidez de determinada ação, mais potenciais compradores inte-
ressados na sua aquisição e, claro, mais valorizados se tornam tais
papéis, especialmente para quem pretenda futuramente revendê-
-los.252

251 O termo Underpricing se refere à diferença entre o valor das ações vendidas em IPO e o
preço pelo qual elas são subsequentemente negociadas. Demonstra, em regra, o aumento
no preço de tais ações em virtude da liquidez que adquirem ao passarem a ser livremente
negociadas em Bolsa de Valores e Mercado de Balcão. “Underpricing is estimated as the
percentage difference between the price at which the IPO shares were sold to investors (the
offer price) and the price at which the shares subsequently trade in the market”. LJUNGQVIST.
Alexander. IPO Underpricing. ECKBO. Espen. (ed:). Handbook in corporate finance: Empirical
corporate finance. 2004. Pg. 76.
252 WELCH. Ivo. RITTER. Jay. A Review of IPO activity, pricing and allocations. Yale International
Center for Finance. Working Paper-No. 02-01. February 8, 2002. Pg. 5.

230 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Entre as maiores ofertas pública iniciais (Initial Public Offering – IPO) estão:

Saudi Aramco – Arábia Saudita – 2019 - US$ 25,00 bilhões

Alibaba – China – 2014 – US$ 21,00 bilhões

Softbank Corp – Japão – 2018 – US$ 20,9 bilhões

American International Assurance (AIA) – Hong Kong – 2010 – US$ 17,90 bilhões

Facebook – Estados Unidos – 2012 – US$16,00 bilhões

A abertura do capital de uma companhia – IPO – é uma opera-


ção complexa e que passa por diferentes fases, até sua finalização.
Tais fases podem, para fins didáticos, ser classificadas em procedi-
mentos internos ou externos, conforme se refiram à própria organi-
zação da companhia ou ao mercado, respectivamente.
Esta organização, porém, não significa que as fases sejam
cronologicamente subsequentes. Ao contrário, é comum que elas
ocorram paralelamente, sempre no sentido de viabilizar a operação.
A primeira providência é a decisão dos acionistas no senti-
do de empreender a conversão da companhia em uma sociedade
anônima de capital aberto. Esta decisão cabe à Assembleia Geral de
Acionistas (Lei n. 6.404/76, art. 122), que, para isso, deve deliberar
também sobre a aprovação de alterações estatutárias destinadas a
tornar os atos constitutivos adequados às exigências legais e admi-
nistrativas aplicáveis às companhias abertas253.
253 Um exemplo desta adequação está no Conselho de Administração. Órgão facultativo nas
companhias fechadas e de existência obrigatória nas companhias de capital aberto (Lei n.
6.404/76, art. 138, par. 2º). Assim, os acionistas de uma companhia fechada devem aprovar a
inserção deste órgão nos estatutos – caso ele ainda não estivesse previsto - bem como suas

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 231


Aprovada, pelos acionistas, a abertura do capital e as altera-
ções estatutárias necessárias, é preciso também adequar os livros
e demais Demonstrações e Balanços Contábeis da companhia, que
agora precisam atender as mais rígidas regras aplicáveis às socie-
dades de capital aberto254.
Tem-se, deste modo, que a aqui denominada fase interna de
um IPO envolve basicamente a aprovação da operação pela As-
sembleia Geral de Acionistas, a reforma dos estatutos sociais e a
estruturação dos documentos contábeis da companhia, para ade-
quar ambos às exigências normativas estipuladas para as socieda-
des anônimas abertas.
A denominada fase externa do IPO se inicia com a divulga-
ção da companhia para potenciais investidores, de forma a garantir
que as ações a serem emitidas encontrem compradores. O sucesso
da operação depende fundamentalmente do interesse de poten-
ciais investidores pelas ações a serem emitidas pela companhia, e
para isso são realizadas diversas apresentações – o denominado
roadshow255.
Este fundamental momento de uma operação de IPO depen-
de de um ambiente econômico e institucional favorável ao lança-
mento de novas ações. É o que se chama de “janela de mercado”,

regras de funcionamento, caso desejem caminhar no sentido da abertura do capital social.


Além disso, as regras de governança corporativa aplicáveis a uma companhia aberta são
mais rígidas do que aquelas referentes a sociedades de capital fechado. Por isso, é comum
que uma ampla reforma estatutária seja necessária às companhias que pretendam abrir seu
capital social.
Vale lembrar, por fim, que a Assembleia Geral Extraordinária destinada a deliberar sobre
reforma dos estatutos precisa anteder a quórum de instalação específico (Lei n. 6.404/76,
art. 135).
254 A Resolução n. 80 da CVM, editada em 2022, estipula uma série de requisitos referentes
aos padrões contábeis exigidos das companhias abertas e daquelas que pretendam alcançar
tal condição.
255 O termo roadshow é um jargão que identifica as várias ações que uma companhia em vias
de abrir seu capital empreende no sentido de se apresentar a potenciais investidores como
uma interessante alternativa de investimento no mercado de valores mobiliários. Envolve,
por exemplo, a elaboração de materiais escritos de divulgação, exposições a grupos maiores
ou menores de interessados, auxílio de intermediários e outras. A Comissão de Valores
Mobiliários regula os termos destas ações de divulgação, principalmente como o objetivo de
zelar pela qualidade, amplitude e veracidade das informações sobre a companhia.

232 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


quando, por uma série de fatores – normalmente alheios à ingerên-
cia da companhia - as condições econômicas em geral e o ambien-
te do mercado de valores mobiliários em particular estão propícios
ao lançamento de novas ações, dado o interesse de investidores.
Cumprida esta fase – ou paralelamente a ela - a companhia
em vias de abrir seu capital social finalmente dirige-se à Comissão
de Valores Mobiliários e à bolsa de valores para, mediante o aten-
dimento das exigências legais e regulamentares aplicáveis, solicitar
seu registro na condição de companhia aberta256.
Uma companhia pode também seguir o sentido inverso, ou
seja, decidir retirar da negociação em bolsa de valores e merca-
do de balcão as ações e outros títulos de sua emissão. Trata-se da
operação denominada fechamento de capital, realizada, como o
próprio termo diz, pelas companhias abertas que decidem cancelar
o seu registro na Comissão de Valores Mobiliários para tornarem-se
sociedades de capital fechado.
O cancelamento do registro da sociedade anônima na CVM
- e consequente fechamento de capital - impactará drasticamente
na liquidez dos valores mobiliários de emissão da companhia, pois
eles agora deixam de ser livremente negociáveis em um mercado
para isto estruturado (a bolsa de valores e o mercado de balcão) e
passam a se submeter às restrições estatutárias comuns nas trans-
ferências de ações de sociedades anônimas fechadas, as quais res-
tringem enormemente os potenciais adquirentes.
Por isso, os acionistas minoritários de uma companhia aberta
que decide passar à condição de fechada correm o evidente risco
de se verem, após a operação, praticamente aprisionados à socie-
dade, já que não terão com quem negociar as ações de sua pro-
priedade.
Dito aprisionamento conduzirá também, se não for devida-
mente regulado, à decisão, por parte dos acionistas minoritários, de

256 A Comissão de Valores Mobiliários exige, de acordo com o art. 4º da Lei n. 6.404/76, o
registro prévio tanto da sociedade anônima quanto dos valores mobiliários que venham a ser
por ela colocados à distribuição ou negociação pública.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 233


negociar suas ações com o sócio ou grupo controlador da socieda-
de que fecha seu capital. Este sócio ou grupo controlador, por sua
vez - e diante da falta de compradores interessados - exercerá um
poder quase que unilateral de fixação do preço de compra destes
títulos.
Face ao exposto, o art. 4º da Lei n. 6.404/76 regula o assunto
com o objetivo central de zelar pelo interesse dos investidores que,
titulares de ações emitidas pela companhia em vias de fechar seu
capital, não desejam integrá-la após sua conversão em sociedade
anônima fechada, mas, por outro lado, merecem receber um preço
adequado pelos papéis de sua titularidade.
Segundo o texto do art. 4º par. 4º da Lei n. 6.404/76, o registro
de companhia aberta para negociação de suas ações no mercado
de valores mobiliários somente poderá ser cancelado se esta com-
panhia, seu sócio, grupo ou sociedade controladora apresentarem
uma oferta pública destinada a adquirir, por preço justo, a totalidade
das ações em circulação257.
Com isto, todos os acionistas que não tiverem interesse em
integrar a companhia após o fechamento de seu capital poderão
aceitar a oferta pública legalmente exigida e realizarem o investi-
mento correspondente ao valor de suas ações.
Já o sócio, grupo ou sociedade controladora da companhia
pode, se assim entender eficiente - por razões de ordem econô-
mica ou gerencial - promover o cancelamento de registro e conse-
quente fechamento de capital social. Basta, no caso, arcar com os
custos deste fechamento, que passam, basicamente, pelo desem-
bolso necessário à aquisição das ações daqueles que aceitarem a
oferta pública prévia ao cancelamento do registro da companhia.
Não é difícil constatar que o principal problema inerente à esta
oferta pública para cancelamento de registro de companhia aberta
passa pelos critérios de fixação do valor a ser pago pelo ofertante

257 O procedimento de cancelamento de registro de companhia aberta e a necessária oferta


pública ora referida são regulados pela Comissão de Valores Mobiliários, especialmente
através da Resolução n. 85, de 2022.

234 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


para compra das ações daqueles acionistas que decidirem aceitar
tal oferta pública. O art. 4º par. 4º da Lei n. 6.404/76 refere-se à vaga
expressão “preço justo” e busca, em seguida, apontar os possíveis
critérios a serem empregados para esta finalidade.
Em capítulo anterior já foram apresentados os diversos crité-
rios de avaliação de uma determinada ação, como valor patrimonial,
econômico e de negociação. Em síntese, todos eles podem ser, de
forma isolada ou combinada, empregados para fixação do valor da
oferta pública para cancelamento do registro de companhia aberta,
além de outros aceitos pela CVM.258
Uma possível prática, neste sentido, é a do chamado “fecha-
mento branco” do capital social. Para não precisar passar pelo pro-
cedimento legal de fechamento de seu capital, a companhia per-
manece formalmente listada em bolsa de valores ou Mercado de
Balcão mas, de fato, suas ações deixam de ser negociadas, com-
prometendo seriamente a liquidez que deve caracterizar os papéis
de uma companhia aberta.
Para evitar este “fechamento branco”, a Comissão de Valores
Mobiliários exige uma constante negociação mínima de ações de
todas as companhias abertas, para que elas possam se manter nes-
ta condição. Este percentual mínimo é o que se chama de free flo-
at259.

6 – Os Juros sobre Capital Próprio e a remuneração do


sócio

Os provedores de recursos materiais e/ou financeiros a uma


sociedade são necessariamente enquadrados na condição de só-
258 O essencial para a eficiência da operação é garantir aos destinatários desta oferta pública
a devida informação sobre as condições gerais da oferta e da companhia, para que possam
decidir pela aceitação ou não.
259 “Assim, a fim de evitar o fechamento branco do capital social, se impõe ao controlador
que aumentar sua participação de tal modo a reduzir substancialmente a liquidez das ações
remanescentes a obrigação de fazer uma oferta pública nos mesmos termos da oferta para
fechamento do capital social.” TOMAZETTE. Marlon. Curso de Direito Empresarial. Vol. I. 6ª
edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2014. Pg. 425.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 235


cios ou de credores. Os primeiros integralizam, na forma de ações
ou quotas, o valor do capital social – fixado nos atos constitutivos
- com o objetivo de viabilizar economicamente as atividades da so-
ciedade e, em caso de sucesso, participar dos lucros resultantes
deste empreendimento.
Os valores pagos pelos sócios, na forma de integralização de
ações ou quotas, não são, salvo nos casos de dissolução total ou
parcial da sociedade, suscetíveis de serem restituídos. Ao contrá-
rio, passam à titularidade da sociedade, que com ele organizará,
de fato, seu estabelecimento (art. 1. 142 do Código Civil) e viabilizará
seu objeto social. Trata-se do que se denomina, em termos contá-
beis, de Passivo Não Exigível.
Os sócios realizam tal integralização com o objetivo básico de
poderem, em caso de lucros decorrentes das atividades da socieda-
de, participar da repartição destes mesmos lucros, os quais são pa-
gos, como também já visto, na forma dos chamados dividendos. Os
dividendos são, portanto, condicionados à existência de lucro, mas,
por outro lado, são potencialmente ilimitados, já que diretamente
proporcionais ao montante dos lucros gerados pela pessoa jurídica.
Já os credores fornecem capital à sociedade para que ela pos-
sa, durante determinado período de tempo, utilizar tais recursos na
viabilização, aprimoramento ou ampliação de suas atividades nego-
ciais. Note-se que desde o momento em que este capital é fornecido
à sociedade, ela está juridicamente obrigada a efetuar, após o prazo
estabelecido, a integral restituição do valor cedido pelo credor.
E termos contábeis, é o que se chama de Passivo Exigível, dado
o direito do credor de pleitear, após determinado prazo, a restituição
integral do valor transferido. Debêntures e contratos de mútuo são
dois exemplos de instrumentos jurídicos que criam uma relação de
credor em relação à sociedade.
Além da restituição dos valores temporariamente cedidos à
sociedade, seus credores são remunerados na forma de juros e cor-
reção monetária. Trata-se, em essência, de uma retribuição devida
pela sociedade – no caso, devedora – por utilizar, durante determi-

236 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


nado período de tempo, do capital de terceiros – os credores – para
viabilizar, aprimorar ou ampliar suas atividades.
O direito do credor aos juros e correção monetária – sua forma
de remuneração própria, como fornecedor de capital à sociedade
– é incondicionado e limitado, pois não depende da ocorrência de
lucros, mas, por outro lado, somente será devido nos estritos mon-
tantes pactuados.
Tem-se, deste modo, que os sócios integralizam o capital so-
cial com o objetivo de viabilizar a atividade econômica da socieda-
de e, mais diretamente, usufruir dos almejados lucros decorrentes
deste exercício. Já os credores fornecem, por determinado período
de tempo, seu capital à sociedade com o objetivo de recebê-lo, no
futuro, acrescido de juros e correção monetária.
Credores são, em essência, remunerados por via de juros.
Sócios através de dividendos. Credores podem exigir a restituição
integral do capital investido, na data aprazada. Sócios somente po-
derão exigir a restituição do capital em casos de dissolução total ou
parcial da sociedade.
Há, entretanto – e como também já apontado anteriormen-
te - formas híbridas entre estes dois modelos de fornecedores de
capital. São, por exemplo, o caso de debentures perpétuas, ações
não votantes e outros modelos que muitas vezes não podem ser
perfeitamente encaixados como credores ou sócios da sociedade.
Uma situação corriqueira e que, de certa forma, se enquadra
como um destes modelos híbridos é a denominada JCP, sigla que
se refere à expressão Juros sobre Capital Próprio.
Em extrema síntese, a JCP estrutura-se sobre a seguinte pre-
missa: se os sócios integralizaram o capital social e este, por conse-
quência, passa à titularidade da pessoa jurídica, poderiam aqueles
exigir, da sociedade, o pagamento de juros referentes as quotas ou
ações por eles integralizadas.
Estaria então o sócio legitimado a receber, por transferir o va-
lor de suas quotas ou ações à pessoa jurídica, juros referentes ao
uso, pela sociedade, destes valores? Se a resposta a esta questão é

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 237


afirmativa, os sócios farão jus ao recebimento de Juros sobre o Ca-
pital Próprio, capital este representado, no caso, pelo capital social
integralizado, pelos próprios sócios, na forma de ações ou quotas.
Os sócios receberiam, portanto, os dividendos decorrentes
dos lucros gerados pela atividade social e, também, juros, os quais
decorreriam do fato de a sociedade estar a empregar, nas suas ati-
vidades, o capital oriundo do patrimônio dos sócios e integralizado
na forma de ações ou quotas da sociedade.
A JCP encontra-se atualmente disciplinada, no direito brasi-
leiro, pela Lei n. 9.249/1995, que em seu artigo 9º cuida, para fins
tributários, do pagamento, pela sociedade anônima ou qualquer
outra, de JCP aos seus sócios, pelo uso do capital social ao longo
do tempo260.
A grande dúvida está em caracterizar ou não o pagamento de
JCP como parte dos dividendos recebidos pelos sócios. A doutrina
se divide261, mas, a rigor. não há razão para que os sócios pretendam
esta dupla remuneração.
Ao ser integralizado, o capital social deixa de ser da titularida-
de dos sócios e passa à pessoa jurídica. O capital social é da pessoa
jurídica. Os sócios abdicaram da propriedade sobre ele ao integra-
lizarem suas quotas ou ações, em troca do direito de participar dos
lucros e outros referentes à condição de sócio.
Juros somente são atribuíveis quando terceiro - no caso, a so-
ciedade - usa o capital de outrem. Não há, entre sócios e sociedade,
tal relação, pois o capital é da própria sociedade e não dos sócios.
260 Esta não é, porém, a primeira vez que o tema apareceu no ordenamento jurídico nacional.
“Deve-se acentuar, desde logo, que não foi a lei de 1995 que, a rigor, introduziu o pagamento
de juros sobre o capital da pessoa jurídica, em benefício de seus membros. A antiga Lei do
Anonimato, de 1940, fazia referência expressa ao seu pagamento, durante a instalação da
sociedade (art. 129, parágrafo único, d); eram os chamados ‘juros de construção’ (Valverde, 1959,
2:383). Também registro que a Lei das Cooperativas, em 1971, cuidou do assunto, estabelecendo
o limite de 12% ao ano para os juros sobre o capital pagos em favor dos associados (Lei n.
5.764/71, art. 24, par. 3º), e até as alterações introduzidas pela Lei n. 11.638/2007, a lei do
anonimato igualmente mencionava o pagamento de juros aos acionistas, ao disciplinar sua
escrituração”. COELHO. Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. Vol. II. 17ª edição. Ed. Saraiva.
São Paulo. 2013. Pg. 373.
261 COELHO. Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. Vol. II. 17ª edição. Ed. Saraiva. São Paulo.
2013. Pg. 375.

238 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Daí a expressão Juros sobre Capital Próprio significar o fato de a so-
ciedade remunerar seus sócios com juros relativos ao seu próprio
– leia-se da pessoa jurídica, no caso - capital.
Assim, a Lei n. 9.249/95 autoriza que os valores pagos a título
de JCP sejam imputados como parte dos dividendos obrigatórios
pagos aos acionistas (art. 9o par. 7o) o que representa, na prática,
o acolhimento da tese de que os sócios têm direito à percepção
da JCP mas que, por outro lado, ela constitui parte dos dividendos
distribuídos.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 239


240 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo VII

Tecnologia, disrupção digital e mercado de valores


mobiliários: um novo ambiente de negociações

1 – O problema da confiança e sua importância para o


mercado

O termo em latim con fides significa “com fé” e é a origem eti-


mológica do verbo “confiar”, ação ou sentimento essencial, entre
tantos, ao Direito, à Economia, ao mercado e ao contrato, principal
instrumento jurídico de troca de bens e serviços.
Em Direito, o ato de “confiar” é premissa estrutural fundamen-
tal para uma ampla gama de relações jurídicas e sua regulação nor-
mativa. “Confiar” na isenção judicial, “confiar” em instituições estatais
de controle, “confiar” naquele com quem se contrata, etc.
Em termos econômicos (ou negociais), Don e Alex Tapscott
afirmam que a ideia de confiança deve ser vinculada a quatro ele-
mentos estruturantes, quais sejam:
.Honestidade – definida como a realização de comunicações
verdadeiras, precisas e completas entre aqueles que transacionem
no mercado;
Consideração – tomada como a necessidade de respeito pe-
los legítimos interesses, desejos ou sentimentos daquele com que
se transacione;
Responsabilidade – compreendida como o dever de assumir
compromissos claros e, principalmente, de respeitá-los;
Transparência – consistente no dever de realizar uma abertura
ativa de informações relevantes para todos aqueles com os quais
se venha a interagir economicamente262.

262 TAPSCOTT. Don. TAPSCOTT. Alex. Blockchain Revolution. São Paulo: Senai editora. 2016.
Pg. 40/41.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 241


É possível, portanto, adotar uma conotação específica do ter-
mo para referir-se àquela ação ou sentimento em virtude do qual
acredita-se que aquilo que foi prometido por alguém será cumpri-
do. Remete, neste sentido, ao grau de crença na realização da con-
duta futura pactuada. O que foi prometido, será cumprido.
Confiar em si mesmo significa que uma determinada pessoa
acredita que, em momento futuro, será capaz de colocar em prática
a conduta por ela prometida. Confiar no outro significa que alguém
tem segurança, crença, expectativa, enfim, de que outrem imple-
mentará, em momento futuro, a prática ou a omissão prometida.
“João confia que Antônio lhe entregará as chaves do aparta-
mento amanhã”. “Aline confia que Luiz comparecerá à reunião na
próxima semana”. Ambos os exemplos – simples, antes de mais
nada – remetem à legitima expectativa de uma pessoa (no caso,
João e Aline) na conduta futura pactuada, prometida por outrem.
Os agentes econômicos (pessoas físicas ou jurídicas) estão
constantemente interagindo uns com os outros, trocando bens e
serviços que produzem por bens e serviços dos quais precisam ou
que desejam, e, com isso, compondo o que se denomina “merca-
do”263.
Estas trocas são, em regra, economicamente viabilizadas pelo
uso de moeda e juridicamente formalizadas por meio de contratos,
que são acordos nos quais as partes contratantes se obrigam a “fa-
zer”, “deixar de fazer” ou “entregar, dar” algo264.
Salvo situações juridicamente excepcionais – aqui tomadas,
genericamente, pela expressão “obrigação de contratar” – contra-
ta-se livremente, no tempo presente, e cria-se, a partir deste mo-
263 “Como as modernas economias podem fabricar milhões de diferentes bens de maneira
aparentemente não coordenada? E, já que os recursos são escassos, há algum mecanismo que
assegure seu melhor uso? A resposta a essas indagações está no papel das trocas voluntárias
nos mercados. (...) Os economistas descrevem qualquer situação em que ocorra a troca como
um mercado” STIGLITZ, Joseph. E. WALSH, Carl. E. Introdução à Microeconomia. 3ª ed. São
Paulo: Ed. Campus, 2003, Pg. 10.
264 “o contrato escrito era uma maneira de codificar uma obrigação, de estabelecer confiança e
definir expectativas. Contratos escritos forneceram orientações quando alguém não aguentou o
fim da barganha, ou algo inesperado aconteceu”. TAPSCOTT. Don. TAPSCOTT. Alex. Blockchain
Revolution. Ob. Cit. Pg. 137.

242 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mento, entre os contratantes, a expectativa mútua de cumprimento
posterior das condutas ou omissões prometidas no contrato.
É fundamental salientar, neste ponto, que quanto maior for o
lapso temporal estipulado entre o momento da formalização dos
termos contratuais – que torna juridicamente exigíveis as condutas
prometidas – e o cumprimento fático das obrigações assumidas,
mais o problema da confiança se torna relevante.
Contratos de cumprimento “não imediato” são aqueles nos
quais há um relevante lapso temporal entre o momento do esta-
belecimento do vínculo e o do cumprimento fático das prestações.
Quanto maior for este tempo, mais se torna significativa a possibili-
dade de uma ou ambas as partes descumprirem o pactuado, o que
faz diretamente mais relevante a existência de confiança recíproca,
ou seja, da crença de ambos na promessa feita pelo outro.
Há contratos nos quais o lapso temporal decorrido entre a es-
tipulação do vínculo e o cumprimento das obrigações assumidas é,
tanto sob o aspecto jurídico quanto econômico, irrelevante. Pegue-
-se o exemplo de alguém que entra em uma lanchonete para tomar
um refrigerante ou que usa o serviço de transporte coletivo urbano.
Não há qualquer lapso de tempo relevante entre o momento da
contratação e o do cumprimento das prestações. Nestes casos, o
problema da confiança recíproca é praticamente inexistente265.
Desconsideradas, para fins da análise, outras variáveis rele-
vantes266, pode-se afirmar que o grau de confiança recíproca ne-
cessário aos contratantes é diretamente proporcional ao tempo que

265 “Imaginemos uma singela compra de revista numa livraria. Essa compra, a princípio, não
afeta terceiros positiva ou negativamente – ou seja, não gera externalidades. O produto que
está sendo comprado é absolutamente igual a todas as outras revistas da mesma edição – não
há defeitos ocultos. A entrega do bem e o pagamento do preço são simultâneos, de forma que
nenhuma das partes corre o risco de efetuar sua prestação e ver a outra parte desaparecer
sem cumprir com sua obrigação. (...) Por fim, não é preciso garantir a execução do contrato, pois
as prestações são executadas imediata e simultaneamente no mesmo local”. TIMM, Luciano
Benetti. Análise Econômica dos Contratos. In: TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia
no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2019, Pg. 169.
266 O problema da confiança não é a única falha de mercado a comprometer a eficiência
dos contratos. Há outras, como monopólio, externalidades, etc. O objetivo aqui é, entretanto,
“isolar” esta variável – a confiança – para melhor analisá-la.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 243


decorrerá entre o momento da contratação e o do cumprimento do
contratado. Quanto mais tempo decorrer, mais confiança recíproca
será necessária à vontade de contratar.
A falta de absoluta confiança entre contratantes é inerente a
um mundo jurídico e econômico no qual prevalecem relações con-
tratuais estabelecidas a partir de uma realidade de informações as-
simétricas, ou seja, desiguais. Em regra, os contratantes não sabem,
com total precisão, as intenções e capacidade do outro quanto ao
cumprimento futuro das obrigações estabelecidas267.
Isto significa que o contratante não tem com mensurar com-
pletamente a índole, a capacidade e as intenções do outro, em re-
lação ao real e integral cumprimento do prometido268.
É o que se denomina “informação oculta”, fator de perda de
confiança quando a realização da conduta contratualmente prome-
tida não é imediata, mas, ao contrário, está no futuro.
Outro fator que abala a confiança entre contratantes é o temor
de uma “ação oculta”, consistente na possibilidade de que um deles
não adote, no cumprimento do que foi contratado, todas as provi-
dências prometidas269. Teme-se, neste caso, que o prometido seja
cumprido fora dos padrões contratados270.

267 “Muitas vezes, na vida, algumas pessoas estão mais bem informadas do que outras e
essa diferença de informação pode afetar as escolhas que elas fazem e a maneira como se
relacionam umas com as outras. (...). ‘Eu sei algo que você não sabe’. Essa provocação é comum
entre crianças, mas também traduz uma verdade profunda sobre como as pessoas interagem
umas com as outras em algumas situações. Em muitas situações da vida, uma pessoa sabe
mais do que outra sobre o que está acontecendo. Uma diferença de acesso a conhecimento
relevante é chamada de informação assimétrica”. MANKIW, Gregory. Introdução à Economia.
3ª edição. São Paulo: Ed. Thomson, 2005, Pg. 479-480.
268 É o caso, por exemplo, de uma pessoa que paga, antecipadamente, por um produto
adquirido pela internet. Há, sempre, um grau – maior ou menor - de dúvida, de desconfiança,
se o vendedor realmente irá enviar o produto comprado ou se vai se apropriar indevidamente
do dinheiro já transferido. “E se o vendedor simplesmente ‘sumir’ e não me enviar o produto?”
É pergunta inerente, por questão de prudência, a este tipo de transação.
269 VARIAN, Hal. R. Microeconomia. 8ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2012. Pg. 766.
270 São dúvidas como a que o contratante de um serviço extremamente especializado –
como, por exemplo, uma obra de engenharia – tem quanto aos materiais que serão usados
na obra e o tempo prometido para entrega. “Será que vão usar os materiais da qualidade
contratada? Vão me entregar a obra no tempo prometido?”. Aqui também se inclui o risco de
vícios ocultos no produto objeto do contrato.

244 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O problema da confiança é tratado, sob o prisma estritamen-
te judicial271, de forma geralmente repressiva, ou seja, posterior (ex
post) ao temido descumprimento, com a imposição de sanções
– como multas e indenizações – aplicáveis ao contratante faltoso
após o descumprimento, não antes272.
É notório, porém, que o ato de demandar pela conduta pro-
metida, posteriormente ao descumprimento do contrato, atrai cus-
tos273 que podem ser evitados se houver instrumentos eficientes de
prevenção contra o risco de quebra do contrato, não apenas de re-
pressão à parte descumpridora. Formas de prevenção à quebra do
contratualmente prometido são, deste modo, fatores que aumen-
tam a confiança das partes.
Uma forma de enfrentar, de maneira preventiva, o problema
da confiança entre os contratantes seria reduzir, antes da contra-
tação, a assimetria em relação às possíveis “ações ocultas” ou “in-
formações ocultas” da parte contrária. Assim, antes de contratar, as
partes podem se prevenir obtendo todas as informações relevantes
sobre as intenções e capacidades do outro participante do contrato.
A questão é que essa verificação prévia, pelas próprias partes,
de todas as informações relevantes sobre o outro contratante igual-
mente implica custos, que oneram a relação – custos de transação

271 Fuller e Perdue, em seminal texto de 1936, analisam as possíveis “respostas” jurídicas à
quebra de contrato salientando, em síntese, que a preocupação básica é de “devolver” ao
contratante lesado a situação anterior ao contrato. (FULLER, L.L. PERDUE, William. R. The
Reliance Interest in contract damages. Yale Law Journal. Vol. 46. n. 1.1936. Pg. 52-96).
“Os remédios jurídicos se enquadram em três tipos gerais: remédios jurídicos definidos pelas
partes, remédios jurídicos impostos pelo tribunal e execução específica”. COOTER, Robert.
ULEN, Thomas. Direito e Economia. 5ª edição. Porto Alegre: Ed. Bookman, 2010, Pg. 248.
272 O que se pretende ressaltar é que o Poder Judiciário só consegue alcançar a quebra de
contrato com respostas repressivas ao descumprimento, não preventivas. “Confirmou-se a
quebra da promessa contratualmente feita? Vá a juízo exigir o cumprimento”. “O contratante
não agiu como contratado? Exija judicialmente que seja obrigado a refazer, da forma
combinada inicialmente”.
273 Tais custos envolvem não apenas aqueles diretamente ligados à demanda pelo
cumprimento judicial do originalmente contratado – como honorários de advogado e custas
judiciais – mas também os “custos de oportunidade” caracterizados, em essência, pelo tempo
que se espera para ter o que foi originalmente prometido e por aquilo que se deixou de fazer
enquanto se aguardava a solução judicial.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 245


– a ponto de, muitas vezes, até mesmo inviabilizá-la economica-
mente.
Torna-se tão caro saber tudo que é relevante sobre o outro
contratante que passa a ser mais eficiente não contratar ou, então,
contratar assumindo riscos relativamente altos de não receber a
conduta prometida pelo outro.
O problema da confiança, portanto, coloca os contratantes
diante da seguinte escolha: assumir o risco e custos de ter que
exigir, em juízo, posteriormente, o cumprimento do contratado e a
reparação dos danos; ou aceitar os custos necessários à redução
prévia da assimetria de informação quanto às “intenções” ou “ações”
ocultas pelo outro contratante, aumentando, assim, a confiança no
cumprimento do contrato a ser celebrado.
Com o objetivo de oferecer uma solução ao problema da con-
fiança que seja, a um só tempo, preventiva (ex ante) e mais bara-
ta e eficiente do que a redução, por ato próprio, da assimetria de
informações relevantes entre contratantes, terceiros se propõem a
ser, grosso modo, “elementos geradores de confiança prévia” entre
pessoas que pretendam contratar entre si.
São agentes econômicos que se oferecem para, em deter-
minados tipos de relações contratuais, funcionarem, antes ou du-
rante a contratação, como elementos que assegurem, às partes, a
confiança quanto ao cumprimento da promessa feita no contrato.
Este terceiro confiável se apresenta como alguém capaz de reduzir
a assimetria de informação causadora da perda de confiança entre
contratantes.

2 – Os terceiros confiáveis e sua participação no


mercado de valores mobiliários

O terceiro confiável é aquele agente econômico que se coloca


entre as partes interessadas em contratar uma com a outra para mi-
nimizar o problema da confiança entre elas, ou seja, para assegurar

246 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


que não ocorram “ações ocultas” ou “intenções ocultas” relevantes
para aquela contratação.
Sua ação pode ser repressiva – ou seja, após verificado um
descumprimento – mas sua principal característica está na ação
prévia ou concomitante à contratação, assegurando às partes con-
fiança no cumprimento do que é ali pactuado e, ao mesmo tempo,
reduzindo, para os contratantes, os custos com a diminuição da as-
simetria informacional.
Tome-se como exemplo as bolsas de valores: entre as várias
funções relevantes deste agente econômico, talvez a mais impor-
tante seja a de conferir confiança aos investidores, na medida que
reduz a praticamente zero o risco de que o pactuado sob suas re-
gras e intermediação seja descumprido.
Os bancos também desempenham significativo papel de ter-
ceiros confiáveis, no mercado de crédito. Poupadores confiam a eles
o depósito de sua riqueza armazenada, devedores confiam que re-
ceberão os valores que tomaram emprestado, etc.
De maneira similar, basta uma rápida “passada de olhos” pelo
mercado para que se encontre vários destes terceiros confiáveis,
que funcionam, com maior ou menor eficiência, como elementos
“criadores de confiança” entre os contratantes de um determinado
setor de atividade econômica274.
A grande vantagem do terceiro confiável está no fato de que
opera em escala. Os custos que ele tem para reduzir a assimetria de
informações relevantes entre os contratantes é bem menor do que
se cada contratante fosse fazê-lo sozinho, com seus próprios meios
e recursos.
Para um banco, operadora de cartão de crédito, corretora ou
bolsa de valores, é muito mais barato e rápido identificar e preve-
nir as possíveis intenções ou ações ocultas dos contratantes que
atuem naquele setor, pois o faz de forma especializada, reiterada e

274 Desde cartórios, operadoras de cartões de crédito e agências de viagens, passando por
alguns que se destacam, mais recentemente, pelo modelo de negócio empreendido e rápida
aceitação no mercado, como Ebay, Pay Pal, Uber, etc.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 247


constante, o que reduz o custo por verificação realizada. É o que se
denomina “economia de escala”275.
Além disso, os custos da existência e operações destes cha-
mados terceiros confiáveis são diluídos, direta ou indiretamente, por
todos os usuários de seus serviços, impactando menos para cada
contratante.
Assim, vale notar que, em um setor do mercado no qual haja
a atuação de um destes terceiros confiáveis, os contratantes deixam
de se preocupar com a confiança recíproca, passando a depositá-
-la, toda, na atuação deste terceiro. Torna-se desnecessário se in-
formar sobre as intenções ou ações ocultas do outro contratante.
Basta, às partes, confiarem na ação do terceiro que se apresenta
como “depositário da confiança” naquele setor.276
Com atuação em escala, repartição de seus custos de opera-
ção e ação prévia ou concomitante ao contrato estes terceiros con-
fiáveis reduzem a assimetria informacional que compromete, entre
contratantes, a confiança no cumprimento total e tempestivo das
obrigações a serem estipuladas entre eles.
Por outro lado, o terceiro confiável afirma-se, em um determi-
nado mercado, como imparcial em relação aos possíveis ganhos e
perdas recíprocos, entre os contratantes, em virtude da transação
realizada sob sua intermediação.
O fundamental, para ele, é garantir que as promessas feitas
entre os contratantes sejam cumpridas. Garantir a confiança nas
transações sem, entretanto, interferir sobre as legítimas decisões e
suas consequências econômicas para os usuários de seus serviços.
Essencial salientar, entretanto, que a ação destes terceiros
confiáveis não extingue o problema da confiança, mas, apenas, des-
loca seu foco. Deixa de ser relevante crer na índole do outro con-
275 PINDYCK, Robert. RUBINFELD. Microeconomia. 8ª edição. São Paulo: Ed. Pearson, 2013,
Pg. 245-246.
276 Se a operadora de cartão de crédito autoriza uma venda, o comerciante vendedor se
considera desobrigado de saber se o comprador tem ou não “intenções” ou “ações” ocultas
em relação ao contrato. Se um aplicativo de transporte como o Uber admite um motorista
em seus quadros, o usuário considera esta admissão suficiente para confiar na índole e
competência do condutor contratado, mesmo sem conhecê-lo previamente.

248 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


tratante, mas passa a ser fundamental, para todos que ali atuem, a
credibilidade do terceiro confiável que funcione naquela transação,
seja a bolsa de valores, o banco ou a sociedade corretora.
Constata-se, assim, uma característica comum a todos estes
terceiros confiáveis: eles atuam como “centralizadores da confiança”
naquele mercado, concentrando, em suas operações, a crença de
todos os contratantes daquele setor, quanto ao cumprimento futuro
das obrigações contratadas entre eles.
Tome-se como exemplo o mercado de compra e venda de
ações de companhias abertas.
A confiança das partes no integral cumprimento das presta-
ções assumidas em contratos desta modalidade está atrelada à
crença na segurança do sistema de registro e compensação das
bolsas de valores. Quanto maior for a confiança no sistema ofereci-
do pela bolsa, mais credibilidade terão, sob este prisma, as transa-
ções sujeitas à sua intermediação.
Por outro lado, um sistema de transação de valores mobiliá-
rios em bolsa de valores pouco confiável implica em descrença no
cumprimento efetivo das transações pactuadas, garantias ofereci-
das, etc.277
Fundamental também salientar que estes terceiros confiáveis,
por seu turno, se obrigam – seja por lei ou por contrato – a desem-
penhar sua função de “depositários de confiança” sempre no inte-
resse da redução da assimetria de informação naquele mercado.
Dito de outra forma, os terceiros confiáveis são obrigados, por
lei ou por contrato, a constantemente zelar pela redução da assime-
tria de informações entre os seus usuários, protegendo o mercado
contra intenções ou condutas ocultas, que, como visto, comprome-
tem a confiança nos contratos a serem estabelecidos. Colocam-se,
portanto, como agentes, sendo os destinatários daquele serviço os
principais278.
277 Do mesmo modo, os correntistas bancários apoiam-se na credibilidade da atuação dos
bancos.
278 “Segundo os economistas, sempre que uma pessoa deve agir por intermédio de outrem,
aparece o problema de agency, quando quem age tem interesses ou objetivos próprios, que

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 249


Tomado como um modalidade de relação de agência, o vín-
culo do terceiro confiável com os destinatários de seus serviços
apresenta, claro, aquele que é o maior dos riscos verificados em
situações agente/principal, e que pode ser traduzido na seguinte
pergunta: o que impediria o terceiro confiável - agente - de buscar a
satisfação de seus interesses particulares mesmo em situações nas
quais tal procura implique em comprometimento do interesse dos
principais, os destinatários de seus serviços?
Por exemplo: como impedir que um banco realize emprésti-
mos com grau de risco superior ao nível de segurança para seus
depositários? Como evitar que um aplicativo de transporte flexibi-
lize demasiadamente seus critérios de seleção de motoristas, em
detrimento da segurança dos clientes? É possível assegurar que
um site de intermediação de compra e venda de valores mobiliá-
rios ou criptomoedas não se aproprie indevidamente do dinheiro de
seus clientes?
Denominam-se custos de agência aqueles que o principal –
ou alguém, por ele - precisa assumir para monitorar a conduta do
agente com o objetivo de evitar que este último passe a perseguir,
no desempenho de suas funções, não o interesse do principal –
com é sua obrigação legal ou contratual – mas, sim, seus objetivos
próprios.
No caso das bolsas de valores, bancos e corretoras - entre
outros - os custos de monitoramento de suas atividades são assu-
midos pelo Poder Público, de forma a preservar a credibilidade na
performance destes terceiros confiáveis e, em consequência, tam-
bém nas transações realizadas sob sua intermediação.

diferem, ou podem diferir, daqueles do principal, os quais, quem age, pode não perseguir, na
medida em que seja muito custoso para este, o principal, fiscalizar a cada momento suas
ações. Os esquemas aparecem, não apenas na representação no sentido do direito civil, mas
também nos contratos de trabalho, no de prestação de serviços ou de empresa, nas relações
entre administradores da empresa e acionistas e com terceiros”. MACKAAY, Ejan. ROUSSEAU,
Stéphane. Análise Econômica do Direito. 2ª edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2014, Pg. 21-22.
Sobre a Teoria da Agência (Agency Theory) e sua importância para o Direito há vasta literatura,
a qual é exposta, em seus mais relevantes aspectos, por Fernando Araújo (ARAÚJO, Fernando.
Teoria Econômica do Contrato. Coimbra: Ed. Almedina, 2015, Pg. 215 e segs).

250 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


São, assim, criadas entidades estatais como a Comissão de
Valores Mobiliários e o Banco Central do Brasil, que, entre outras
funções, assumem os custos de regular e monitorar a atuação de
bolsas de valores, corretoras e bancos para evitar que estes últi-
mos – centralizadores da confiança naquele mercado – atuem, no
exercício de suas atividades, em benefício de seus interesses parti-
culares e não daqueles destinatários de suas funções. São, grosso
modo, custos de monitoramento da conduta dos terceiros confiá-
veis.
Necessário ainda acrescentar que uma eventual “quebra da
confiança” neste terceiro confiável impacta diretamente em todos
os contratantes daquele mercado, não só naqueles envolvidos em
uma determinada transação. Quer dizer: se um banco quebra a re-
lação de confiança com seus clientes, não apenas estes perdem a
crença no funcionamento daquele mercado, mas os usuários dos
demais bancos também tenderão a abandonar o sistema.
Portanto, o sistema “centralizado” de geração de confiança
apresenta, ao menos, quatro grandes problemas: o risco do com-
portamento oportunista do terceiro confiável, o risco de compro-
metimento de todo o sistema sob sua intermediação, os custos de
monitoramento para evitar este risco e, também, os custos com a
manutenção destes terceiros confiáveis.
Assim, se a ação destes terceiros confiáveis é, para o mercado,
mais eficiente do que deixar aos próprios contratantes os custos de
proteção contra o problema da confiança, ela também está longe
de se configurar uma solução exata.
Um novo passo na busca pela solução – ou, ao menos, mini-
mização - do problema da confiança foi recentemente dado, e vai
no sentido da “descentralização” desta ação prévia destinada a re-
duzir a assimetria informacional entre contratantes e, em paralelo,
aumentar a credibilidade dos contratos entre eles estabelecidos.
Neste modelo, não mais os contratantes têm que assumir, iso-
ladamente, os custos de monitorar suas transações, nem haverá um
terceiro que centralize estas atividades. Todos monitorarão as ope-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 251


rações de todos. Os contratantes/usuários fiscalizam previamente
as contratações uns dos outros, através de uma rede de troca de
informações e validação mútua, realizadas por computador.
Para abordar, com algum conforto, este sistema “descentrali-
zado” de solução prévia para o problema da confiança é preciso, an-
tes, fazer uma breve explanação sobre as denominadas tecnologias
disruptivas, cuja relevância, para o mercado financeiro e de valores
mobiliários, se tornou central e, mesmo inevitável.

3 – Tecnologias disruptivas: o que são e seu impacto


sobre o mercado e o Direito

Pode-se considerar, com relativa segurança, que tecnologia é


qualquer resultado do exercício intelectual destinado a propor solu-
ções para problemas constatados no mundo dos fatos. É o acúmulo
de conhecimento destinado a solucionar ou minimizar os efeitos de
uma realidade considerada negativa ou duvidosa, incerta.
Em extrema síntese, é possível afirmar que, ao menos des-
de a Filosofia clássica, o conhecimento humano é produzido, pela
civilização ocidental, a partir do binômio pergunta/resposta. São
criadas, com o passar do tempo e o exercício do pensamento, res-
postas para dúvidas ou necessidades específicas, constatadas no
mundo dos fatos. É a isso que aqui se concebe como tecnologia.
O pensamento humano está incessantemente preocupado
em desenvolver ou aprimorar soluções para os problemas cotidia-
nos, ou seja, novas tecnologias.
Neste sentido, há soluções que vêm para aprimoram as ante-
riores, e outras que simplesmente tornam obsoleto tudo o que ha-
via sido pensado e proposto, até aquele momento, como resposta
para um determinado problema.
Quando, por exemplo, se apresenta uma câmera fotográfica
capaz de tirar fotos mais nítidas, um avião mais seguro ou um tênis
mais confortável, nota-se o nítido exercício da atividade criativa com
o objetivo de aprimorar, fazer melhor a solução anterior. Evolui-se a

252 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


partir das premissas e referências já propostas, sem comprometer, a
princípio, a utilidade da solução ou resposta anterior. Evoluir é apri-
morar respostas dentro do padrão já estabelecido.
É certo que, em alguns casos, o aprimoramento da solução
anterior é tão relevante que, na prática, impacta enormemente so-
bre os destinatários da resposta apresentada. Isto, porém, não in-
valida a constatação de que houve um aprimoramento – mais ou
menos relevante – da resposta anterior.
Há momentos, entretanto, em que o intelecto humano encon-
tra soluções para um determinado problema que são capazes de
tornar obsoletas, inúteis, ultrapassadas, as soluções até então pro-
postas. Surgem novas referências teóricas e fáticas, novas premis-
sas de comportamento ou compreensão daquele problema. Novos
padrões são criados. Há uma espécie de ruptura com as respostas
anteriormente apresentadas. Propõe-se um rumo novo, que “rom-
pe” com o anterior. É o que se denomina de tecnologia “disruptiva”.
O caráter “disruptivo” de uma tecnologia, de uma solução in-
telectual para um determinado problema está, em essência, no fato
de ela implicar a obsolescência de outras, reduzindo ou simples-
mente acabando com a demanda pela tecnologia anterior. Implica
parar de evoluir em um determinado sentido e começar em outro,
radicalmente diferente do anterior.
Máquinas de escrever, faxes, fitas cassete, VHS e outros tan-
tos, são exemplos de criações intelectuais antes consideradas a
melhor resposta para problemas cotidianos, mas que, hoje, somen-
te são lembradas como algo antigo e não mais útil. Foram criadas
soluções que, quase imediatamente, colocaram as citadas fora do
ritmo evolutivo.
Esses momentos disruptivos não são exatamente novos. Ao
contrário, fazem parte da História humana desde seus primórdios279.

279 Klaus Schab aponta quatro grandes momentos de disrupção na Humanidade:


O primeiro deles, há cerca de 10.000 anos, ocorreu quando os seres humanos substituíram
a busca por alimentos, na natureza, pela agricultura e, consequentemente, abandonaram a
vida nômade (Revolução Agrícola).
A segunda, ocorrida a partir da segunda metade do Século XVII, caracteriza-se, em um

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 253


Criações como a máquina a vapor, a lâmpada elétrica, os primei-
ros sistemas de impressão ou gravação de sons são, certamente,
momentos de disrupção com o que havia, até aquele momento, de
solução para uma determinada necessidade ou vontade humana.
Se as tecnologias disruptivas não são exatamente uma novi-
dade para o conhecimento e a vida humana, qual a razão de esta-
rem, ao menos desde a virada do atual milênio, tão em evidência
na preocupação de estudiosos ou daqueles que simplesmente se
interessam pelo assunto?
A resposta não está na ocorrência da disrupção, mas no ritmo
como ela atualmente ocorre. A validade das respostas existentes
é constantemente colocada à prova. É cada vez mais rápido o sur-
gimento de uma resposta, de uma solução que coloca de lado o
caminho até então seguido. As referências são rapidamente modi-
ficadas.
O que é útil e revolucionário hoje, torna-se obsoleto com fre-
quência e velocidade jamais vistas em outro momento histórico280.
Há, mesmo, quem fale em Economia Disruptiva, a qual estaria base-
ada nesta constante modificação de referências tecnológicas.
Portanto, os agentes econômicos empresariais – e os produ-
tos e serviços por eles oferecidos, em consequência – estão cons-
tantemente sujeitos ao rápido e surpreendente aparecimento de

primeiro momento, pela substituição da força muscular pela energia mecânica e depois,
por volta do início do século XX, pela produção em massa e uso irrestrito da eletricidade
(Revolução Industrial).
A terceira grande disrupção na Humanidade é por ele localizada a partir da década de 1960,
quando do advento do computador e sua disseminação para o ambiente profissional e
doméstico (Revolução Digital).
Por fim, o mesmo autor fala em um quarto grande momento de disrupção humana, a
chamada 4ª Revolução Industrial, que está atualmente em curso e é caracterizada pela
criação de formas artificiais de inteligência e aprendizagem automática. “Nessa revolução, as
tecnologias emergentes e as inovações generalizadas são difundidas de forma muito mais
rápida e amplamente do que nas anteriores, as quais continuam a desdobrar-se em algumas
partes do mundo.” (SCHAB. Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo. Edipro. 2016. Pg.
22 e segs).
280 “A escala e o escopo das mudanças explicam por que as rupturas e as inovações atuais
são tão significativas. A velocidade da inovação em termos de desenvolvimento e ruptura está
mais rápida do que nunca.” SCHAB. Klaus. A quarta revolução industrial. Ob. Cit. Pg. 23.

254 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


novas soluções, as quais simplesmente tornar desnecessária, ob-
soleta, a presença dos outrora predominantes agentes no mercado.
Neste sentido, o Direito e as regras jurídicas encontram, a par-
tir de então, especial dificuldade em adaptar institutos basilares -
muitos deles milenares, como o contrato e a propriedade - a estes
constantes novos padrões de comportamento, decorrentes de alte-
rações radicais oferecidas por tecnologias disruptivas.
Seria o instituto do contrato – como tradicionalmente compre-
endido - capaz e suficiente para regular, de forma eficiente, transa-
ções como aquelas operadas sob o termo smart contracts? Como
regular um mercado de valores mobiliários no qual as decisões não
decorrem de uma conduta humana, mas de um algoritmo desen-
volvido para investir? É possível conceber um sistema de pagamen-
tos sem uma moeda de lastro estatal?
Perguntas como estas demonstram que também o Direito e
seus referenciais teóricos e institucionais vive um até aqui inédito
momento de disrupção, com a necessidade de respostas que se-
jam, elas também, rompimentos com certos paradigmas interpreta-
tivos não mais válidos.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 255


Evolução e disrupção: sua convivência nas artes

As artes são, em seus vários tipos, campo fértil tanto para a evolução quanto para
a disrupção, sendo, portanto, pertinente a alusão a elas para ilustrar o tema.

Tome-se, primeiramente, a história da música erudita ocidental. Permeada de


gênios, ela é constantemente dividida em períodos, os quais marcam a prevalência
de um determinado modelo ou padrão de composição.

Assim, há artistas que representam a evolução máxima de um determinado padrão


de composição, na medida que aprimoraram, até o limite, tal padrão. É o caso, por
exemplo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), talvez a maior mente musical da
história. Sua morte é tomada como o fim do período Barroco na música europeia,
padrão ao qual se dedicara e levara ao seu cume.

Também Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) foi outro que, uma geração depois,
já no período Clássico da música erudita ocidental, elevou tal modelo composicional
a uma altura jamais ultrapassada.

Tanto Bach quanto Mozart são exemplos de artistas que evoluíram os padrões de
sua época e atividade. Há, porém, aqueles que propuseram novos padrões, novas
formas de fazer música.

É o caso de Igor Stravinsky (1882-1971) que, com sua obra “A Sagração da Primavera”,
de 1913, rompeu com longa tradição rítmica ocidental, literalmente apresentando
nova forma de se fazer música.

O mesmo se pode dizer de Arnold Schonberg (1874-1951) que, também no início do


Século XX, rompeu com 300 anos de padrões tonais de composição para propor
um modelo novo, dito atonal.

Também na pintura é possível encontrar vários exemplos ilustrativos do que é


evolução e do que é disrupção.

Tome-se, por exemplo, a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (1452-1519) e As damas


de Avignon, de Pablo Picasso (1881-1973). A primeira, unanimemente tida como a
mais famosa obra de arte do mundo, representa o ápice da forma renascentista
de pintura. Feita já no início do Século XVI, a obra remete a toda uma concepção
artística estabelecida no século XV e que teve, em Leonardo, seu maior expoente.

256 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Já As damas de Avignon é, por sua vez, talvez o maior exemplo, isoladamente
considerado, de disrupção na pintura. Nela, Picasso abdica dos padrões
consagrados à época para, em arriscada opção, estabelecer nova maneira de se
conceber a pintura, em criação daquilo que seria conhecido como cubismo.

As Damas de Avignon e a Mona Lisa: disrupção e evolução na arte

4 – A internet e a disrupção nas trocas e sua disciplina


legal

Tomar a internet como ambiente de trocas prevalente é pre-


missa necessária à criação de respostas jurídicas adequadas às
perguntas que predominam no atual momento histórico.
A grande transformação na realidade disciplinada pelas nor-
mas jurídicas está, ao menos no que se refere a relações de na-
tureza patrimonial, na prevalência da utilização da internet para a
realização de negócios e armazenamento de informações.
Se, até o final da primeira década do Século XXI, as trocas e
armazenamento de bens, valores e informações se realizava pre-
cipuamente através de atos entre pessoas fisicamente presentes
(ou devidamente representadas), a partir de então o uso da internet
tornou-se, se ainda não majoritário, uma inevitável nova premissa281.
281 Entre as estrondosas consequências decorrentes da Pandemia que marcou, para
sempre, o ano de 2020, está a aceleração na adoção dos modelos de transações realizados
online, dada a necessidade de adoção de formas mais ou menos gravosas de isolamento

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 257


Esta constatação leva, por consequência, à grande pergunta
que se impõe a todos aqueles que, direta ou indiretamente, atuem
na área jurídica: como adaptar institutos muitas vezes milenares a
este novo ambiente de transações e informações?
Como dito, os institutos fundamentais do Direito foram conce-
bidos e desenvolvidos em um mundo de transações entre pessoas
fisicamente presentes ou, no mínimo, capazes de se fazerem repre-
sentar pessoalmente, no momento da realização de um determina-
do negócio ou ato jurídico.
Por outro lado, o armazenamento, divulgação e gerenciamen-
to de informações era absolutamente fundado na ideia tradicional
de documento cartular, fisicamente corporificado em papel ou, de-
pois, em disquetes ou memória de aparelhos de computador.
Tais premissas precisam ser rearranjadas para um mundo no
qual as trocas e as informações são respectivamente realizadas e
armazenadas predominantemente em ambiente virtual.
A internet é resultado, em sua versão original, da busca por
um sistema que permitisse a troca de dados entre computadores
de diferentes unidades militares, e, desnecessário explicar, atu-
almente ganhou um número infinitamente maior de aplicações e
usos. É uma tecnologia tão útil e revolucionária que, com o tempo,
seu real potencial foi – e ainda é – aumentado exponencialmente,
em relação à sua finalidade original282.

social como prevenção e combate ao COVID/19.


282 “A Agências para Projetos de Pesquisa Avançados (Advanced Research Progects Agency,
ARPA) do Departamento de Defesa dos Estados Unidos procurava uma forma mais eficiente de
usar todos os computadores que havia financiado no país. (...) A resposta foi ligar computadores
diversos através de uma rede. Essa rede, chamada ARPANET, foi lançada no final de 1969,
ligando quatro computadores diferentes, localizados na Universidade da Califórnia em Los
Angeles, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, na Universidade de Utah e no
Instituto de Pesquisas de Stanford, uma instituição de pesquisa sem fins lucrativos. Essa foi a
origem da internet. Financiada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a ARPANET
expandiu-se até ligar 15 computadores em 1971”. STIGLITZ, Joseph. WALSH, Carl. Introdução à
Microeconomia. 3ª edição. Rio de Janeiro. Ed. Campus 2003. Pg. 07.

258 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Shermin Voshmgir283, ao analisar os gigantescos impactos que
o advento da internet provocou, sintetiza a história da rede mundial
de computadores a partir de três grandes momentos.
O primeiro período de real expansão da internet inicia-se em
1991, quando Tim Berners-Lee criou o primeiro website e viabilizou,
com isso, que qualquer usuário da rede pudesse nela inserir seu
endereço próprio (site), destinado, então, à divulgação e armazena-
mento de informações.
A partir deste momento, tem-se também que o uso do correio
eletrônico (email) torna possível a troca de informações sem a ne-
cessidade de remessa de bases materiais (como papel e disquetes)
nas quais estivessem armazenadas. A conexão dos computadores
de remetente e destinatários, através da rede oferecida e mantida
por um servidor contratado, passa a ser suficiente.
Surge um modelo de utilização da rede estruturado a partir de
servidores, intermediários do armazenamento, divulgação e troca
de informações entre os usuários. Trata-se de um modelo de base
centralizada de provimento de rede, posto que estes servidores se
tornam, em regra, indispensáveis ao acesso à internet.
O início do Século XXI traz consigo uma significativa amplia-
ção nas funções da internet, que passa a permitir interações sociais
e econômicas entre pessoas fisicamente distantes, ao aproximar
compradores e vendedores. A rede passa a ser instrumento não
apenas de informações, mas também para a realização de trocas
sociais e econômicas.
Porém, conforme salientado por Shermin Voshmgir, estas tro-
cas somente são realizadas com a participação de um outro tipo de
intermediário (middleman), responsável por atribuir confiança aos
usuários da rede - e participante das transações realizadas - quanto
ao efetivo e tempestivo cumprimento das obrigações contratadas.
Estes intermediários (como Uber, Airbnb, PayPal, etc.), aqui
chamados de terceiros confiáveis, asseguram a confiança nas tran-

283 VOSHMGIR. Shermin. Token Economy: how blockchains and smart contracts revolutionize
the economy. Berlim. BlockchainHub. 2019. Pg. 22 e segs.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 259


sações, mas, ao mesmo tempo, se tornam centralizadores das in-
formações e do mercado por eles intermediado.
Todo o sistema de dados é acessado se o centralizador des-
tas informações (o intermediário, o terceiro confiável) for acessado
ou se permitir acessar. Há um único ponto de armazenamento de
informações, o ponto do intermediário. Se ele falhar, todas as infor-
mações estão expostas.
A confiança na preservação e uso adequado das informações
produzidas pelos usuários dos serviços destes intermediários re-
pousa, quase exclusivamente, sobre a competência destes últimos
em adotar mecanismos de defesa contra acessos indesejáveis a es-
sas informações.
Shermin Voshmgir afirma, por fim, a existência e avanço de
uma terceira grande revolução no uso da internet - denominada
Web3 - marcada essencialmente pelo desenvolvimento de solu-
ções destinadas a dispensar a necessidade deste intermediário
centralizador, do já citado terceiro confiável. Em outras palavras:
uma internet na qual a confiança nas trocas de bens e valores seja
assegurada, ao mesmo tempo, por todos ou usuários, em modelo
chamado de descentralizado.

5 – Redes peer-to-peer (ponto a ponto): o


desenvolvimento de um sistema virtual e
descentralizado de trocas

A disseminação da internet permitiu, especialmente nos últi-


mos anos, que se começasse a desenvolver a ideia de uma rede de
participantes de um determinado mercado no qual, por meio ele-
trônico, fosse possível e seguro trocar mutuamente bens, valores,
serviços e/ou conteúdos, sem a necessidade de um intermediário,
centralizador das transações entre eles. É o que se denomina de
rede peer-to-peer (algo como “par a par”, em português) ou, sim-
plesmente, P2P.

260 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A origem remota deste tipo de rede descentralizada de trocas
está, costuma-se apontar, no USENET, criado em 1979, nos Estados
Unidos, para ser uma rede de computadores na qual os usuários
postariam, livremente, conteúdos que poderiam ser acessados, pe-
los demais usuários, se e quando desejassem. Cada usuário era, ao
mesmo tempo, provedor e consumidor de informações, sem, como
se pode perceber, qualquer agente intermediário ou centralizador.
Porém, o grande marco inicial da história da tecnologia P2P
está nas operações do NAPSTER, iniciadas em 1999. Disseminava-
-se, a partir de então, a adoção de um mecanismo virtual de trocas
diretas entre seus usuários.
Ao se conectar ao NAPSTER, todos os arquivos de músicas
de uma pessoa, armazenados em seu computador, poderiam ser
livremente acessados pelos demais usuários e aquela pessoa ti-
nha, por sua vez, o mesmo acesso ilimitado aos conteúdos musicais
contidos nos computadores dos demais participantes da rede. Isso
permitiu a livre troca, entre eles, de arquivos de músicas, sem que
estas trocas fossem sujeitas a algum agente centralizador.
Assim, o NAPSTER possibilitava que seus usuários comparti-
lhassem livremente arquivos de música, marcando a disseminação
da ideia conceitual, quase ideológica, de uma rede de computa-
dores sem elemento centralizador e na qual cada usuário fosse, ao
mesmo tempo, provedor e consumidor de conteúdo.
Vale ressaltar, entretanto, ao menos três muito significativas
questões sobre as operações do NAPSTER e sua referência como
rede descentralizada – P2P - de troca de conteúdos na internet.
A primeira delas diz respeito à constatação de que havia, por
parte do próprio NAPSTER, um certo grau de centralização de in-
formações sobre as trocas ali ocorridas, já que mantinha, em ser-
vidores centrais, uma lista de seus usuários e arquivos. Tratava-se,
portanto, do que se pode chamar de rede P2P híbrida, na qual há
um centralizador, mas este não interfere na confiança dos conteú-
dos trocados.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 261


O segundo problema se refere às questões relativas aos di-
reitos de propriedade sobre os conteúdos trocados pelos usuários.
Não foram poucos os questionamentos sobre a legalidade das tro-
cas ali realizadas, já que estas não contavam com a anuência dos
titulares dos direitos autorais sobre as obras musicais disponibiliza-
das. A matéria abaixo relata a disputa entre o NASTER e a indústria
da música, no início dos anos 2000:

Shawn Fanning pode não ser lembrado pelos milhares de usuários que hoje
compartilham músicas em MP3 pela internet - mas ele é um dos protagonistas
da história que começou com uma brincadeira em um computador na faculdade,
passou por processos judiciais de gigantes da indústria musical e terminou na
constatação de que a mercado tradicional da música (venda de CDs, discos, etc.)
jamais será o mesmo.

Fanning tinha apenas 18 anos quando criou, em 1999, o Napster, programa


pioneiro de compartilhamento de arquivos sonoros. O nome veio do apelido
que tinha na faculdade; a ideia, da vontade de dividir música com os amigos. O
Napster alcançou patamares não imaginados na época, se tornando uma espécie
de febre entre usuários da internet - e uma praga para bandas, gravadoras e
órgãos reguladores.

Quando a aceitação da ideia de Fanning tornou-se indiscutível (no auge, o


Napster chegou a contar com 50 milhões de usuários), começaram as brigas. O
Metallica de James Hetfield e Lars Urich encabeçou uma luta contra Fanning e
seu produto, entrando com um processo na primeira quinzena de abril de 2000.
O ícone do metal não imaginava que todos os esforços acabariam sendo em vão
- é possível encontrar dezenas de programas que se utilizam do mesmo princípio
para o compartilhamento de arquivos - a rede P2P, ou peer-to-peer.

Os problemas começaram no mesmo ano em que o Napster nasceu, quando


a RIAA (Recording Industry Association of America, algo como “Associação da
Indústria de Gravadoras da América”) processou Fanning por “facilitar a infração
de direitos autorais”.

Mas foi com a entrada do Metallica na discussão que o caso explodiu - a banda
combateu, ao lado de outros artistas, a “ameaça” (quebra de direitos dos artistas,
que tinham seu trabalho oferecido gratuitamente pelo programa) do Napster,
com advogados e declarações na imprensa.

262 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A vitória foi, inicialmente, do lado da indústria - os servidores do Napster foram
fechados em 2001. Mas de acordo com veículos especializados, a união de
gravadoras, bandas e instituições contra o Napster foi a maior gafe da música.
Juntar-se a Fanning para tentar criar uma alternativa - como a venda de músicas
em arquivos digitais, a exemplo de redes como o iTunes - teria sido a opção mais
inteligente, já que o fim do Napster não teve nenhum impacto no número de
downloads de músicas grátis. Pelo contrário, a circulação de música pela rede
mundial sem controle comercial só aumentou.

Em 2006, a criação de Fanning (comprada em 2002 por um grupo que passou


a vender músicas para os usuários) voltou à rede com um novo programa
para comercialização e reprodução de músicas on-line.Disponível em www.
rollingstone.oul.com.br. https://rollingstone.uol.com.br/noticia/metallica-x-
napster-aconteceu-ha-8-anos/. Site consultado em 01/06/2020

A terceira fundamental questão remete à constatação de


que o modelo proposto pelo NAPSTER não conseguiu solucionar
o problema da confiança. Dispensado o tal intermediário, o terceiro
confiável, como os usuários poderiam checar a procedência das in-
formações trocadas, evitando o recebimento de conteúdo ilegal ou
indevido, como vírus, etc284?
A falta da atuação de um terceiro confiável, responsável pela
validação dos conteúdos trocados levou, no caso do NAPSTER, a
uma enorme frequência de arquivos musicais contaminados por
vírus e outros defeitos que comprometiam a sua credibilidade, uti-
lidade e, por fim, mesmo a confiança dos usuários do sistema ali
proposto.
O uso do NAPSTER como tecnologia P2P, descentralizada, de
troca de conteúdos revelou-se, portanto, arriscada, dada a origem
duvidosa dos arquivos trocados diretamente entre os usuários.
Isto obrigou os que dela faziam uso a ter que se encarregarem,
individualmente, de se protegerem contra o problema da confiança,
arcando pessoalmente com os custos de uso de softwares antivírus

284 RUFFO, Giancarlo. PAGALLO, Ugo. Andrea, GLORIOSO. The Social impact of PSP Systems.
IN: SHEN, Xuemin. YU, Heather. BUFORD, John. AKON, Mursalin. Ed. (Org.) Handobook of peer
to peer networking. Disponível em www.file.allitebooks.com. Pg. 49.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 263


e outros mecanismos de proteção de seu computador pessoal con-
tra arquivos comprometidos trocados na rede.
Faltava à tecnologia P2P uma forma de solucionar previamen-
te o problema da confiança nas informações e conteúdos trocados,
sem que se pudesse contar, para isso, com a atuação, até ali in-
dispensável, de um terceiro confiável, responsável por centralizar e
validar as informações.
Restava, portanto, o grande problema: como manter um siste-
ma descentralizado de troca e, ao mesmo tempo, resolver previa-
mente o problema da confiança? Como criar um sistema que conci-
liasse a multiplicidade de provedores e consumidores e, ao mesmo
tempo, descentralização de geração prévia de confiança285?
Este modelo foi proposto em 2009, na forma do chamado
blockchain, originalmente criado para suportar as transações en-
volvendo o bitcoin. A verdade é que o blockchain foi criado para o
bitcoin, mas se mostrou algo muito mais amplo do que “apenas” um
sistema gerador de confiança em transações envolvendo criptomo-
edas.
Trata-se de uma rede descentralizada de troca no qual todos
os usuários são, ao mesmo tempo, fornecedores e tomadores de
informações e, também, de um sistema descentralizado de gera-
ção prévia de confiança entre os usuários, no qual todos eles são

285 O problema dos dois generais, também denominado problema dos generais bizantinos
é um modelo teórico – como, por exemplo, o famoso Dilema dos Prisioneiros - empregado
para ilustrar a dificuldade com a solução prévia do problema da confiança em redes
descentralizadas de comunicação, ou seja, aquelas sem a participação de um terceiro
confiável como validador de todas as transações.
Em rápida síntese, consiste na seguinte situação: um grupo de generais cerca uma cidade,
cada um com suas respectivas tropas. A cidade-alvo está entre as tropas, não havendo,
portanto, como os generais se comunicarem para decidirem, em consenso, a hora e forma
de ataque.
O problema é que há, entre eles, alguns possíveis traidores, os quais podem enviar informações
falsas aos demais acerca da hora e forma do ataque, sabotando toda a operação.
A grande dificuldade está, portanto, em criar uma solução que permita a tais generais
definirem, em consenso, a forma de ataque sem contar, para isso, com alguém para centralizar
tal tomada de decisão e, ao mesmo tempo, poderem confiar nas informações mutuamente
trocadas.

264 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


participantes – mas não isoladamente – da validação das transa-
ções ali ocorridas.

6 – Blockchain e a formação de um sistema


descentralizado de solução prévia para o problema da
confiança

A história do blockchain começa a ser escrita em 2009 e está


essencialmente ligada à do bitcoin. Ambas, por sua vez, estão atre-
ladas à quase mítica persona de Satoshi Nakamoto.
A própria existência de Satoshi Nakamoto é objeto de grandes
dúvidas e discussões. Há desde quem diga que ele é, na verdade,
um grupo de programadores que trabalharam em conjunto, sob
este pseudônimo, até quem afirme tratar-se, na verdade, de Nick
Szabo, outra referência em matéria de sistemas descentralizados
de verificação.
Atribui-se a Satoshi Nakamoto a autoria de texto publicado na
internet em 31 de outubro de 2008 com o título Bitcoin: a Peer-to-
-peer Electronic Cash sistem no qual ele descreve um sistema de
promoção e verificação de trocas que tornaria dispensável o inter-
mediário, aqui chamado de terceiro confiável.
Explicar o que é blockchain é tão complexo e desafiador quan-
to, por exemplo, tentar definir o que é a internet. Aliás, já há quem
compare ambas as criações, salientando que as duas são capazes
de expandir suas utilidades para muito além do que foi originalmen-
te pensado. São exemplos de metatecnologias, criações humanas
capazes de impactar diretamente no funcionamento de diversas
outras286.
O blockchain tem sua origem como suporte de confiança para
o bitcoin, mas, assim como a internet, se mostra uma tecnologia
286 “Da mesma maneira que bilhões de pessoas ao redor do mundo estão atualmente
conectadas à web, milhões, e então bilhões de pessoas se conectarão às redes blockchain.
Não deveríamos nos surpreender se a velocidade de propagação do uso do blockchain
ultrapassasse o crescimento histórico de usuários web”. MOUGAYAR, William. Blockchain para
Negócios. Rio de Janeiro: Alta Books editora, 2017, Pg. 5.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 265


com um potencial de utilidade exponencialmente mais amplo do
que “apenas” validar as transações envolvendo o bitcoin. O bitcoin
está amparado no sistema blockchain, mas uma rede blockchain
não precisa do bitcoin para existir.
É fato que ainda se está longe de constatar todos os possíveis
empregos da rede blockchain, mas, nos dias atuais, têm-se perce-
bido que ela se mostra um instrumento capaz de resolver o proble-
ma da confiança nas transações eletrônicas P2P.
O blockchain é, portanto, um sistema capaz de prover um mer-
cado descentralizado de transações e registros eletrônicos para,
em tese, quaisquer ativos (como ações e demais valores mobiliá-
rios, por exemplo) e, ao mesmo tempo, confiável para os usuários287.
Como dito, o blockchain foi originalmente desenvolvido para
resolver o problema da confiança nas transações envolvendo o bi-
tcoin, uma espécie de moeda eletrônica – chamada também de
criptomoeda – criada para ser emitida e circular sem qualquer ação
estatal, ou, de forma mais ampla, controle centralizado.

287 O termo blockchain refere-se a redes virtuais nas quais há uma solução prévia e
descentralizada para o problema da confiança aqui relatado. Importante notar, porém, que
a partir dessa essência descentralizada de geração prévia de confiança, variações maiores
ou menores desta tecnologia têm sido desenvolvidas. É o caso, por exemplo, da tecnologia
que sustenta o Ether, criptomoeda amparada em uma plataforma descentralizada diferente,
a Ethereum.

266 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A obra Composition n. IV, de Piet Mondrian, ilustra metaforicamente um sistema no qual
cada parte é, ao mesmo tempo, agente e garantidor – portanto suporte – dos demais sem,
entretanto, existir um ponto central do qual cada uma das partes extraia sua sustentação.

Em síntese, a admissão do bitcoin, como criptomoeda, depen-


dia de um sistema que criasse, sem a ação de um agente inter-
mediário ou centralizador, confiança prévia entre seus usuários, de
forma a evitar, por exemplo, que uma pessoa usasse o mesmo bit-
coin em duas transações simultâneas, que pudesse falsificá-los ou,
simplesmente, transferi-los ilicitamente de uma pessoa para outra.
Assim, para que o bitcoin efetivamente funcionasse, era ne-
cessário um sistema que conciliasse as trocas diretas, descentra-
lizadas, das redes P2P com uma solução prévia - e igualmente in-
dependente da atuação de agente centralizador ou intermediário
- para o problema da confiança, o qual, como visto, havia ocasiona-
do troca de conteúdos ilícitos ou danificados em outros sistemas
descentralizados, como o NAPSTER.
Este sistema, capaz de permitir trocas descentralizadas – no
formato P2P, portanto – e, ao mesmo tempo, apto a gerar confiança
prévia entre seus usuários sem, para isso, contar com o terceiro con-
fiável é o que se chamou de blockchain, algo como “rede de blocos”.
Importante salientar que a relação entre redes de computa-
dores P2P e blockchain é, grosso modo, de “gênero para espécie”. O

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 267


blockchain é um modelo, tipo ou espécie de rede de computadores
P2P pois, nele, cada participante é, ao mesmo tempo, cliente e pro-
vedor de informações e serviços na rede.
O blockchain é uma rede de computadores interconectados,
diretamente, por meio da internet. É, assim, algo como uma rede
dentro da rede. Um conjunto de usuários voluntariamente conecta-
dos pela internet no formato P2P, ou seja, sem a ação ou interme-
diação de nenhum agente centralizador.
Nesta rede de computadores, conectados uns aos outros
via internet, todos são responsáveis pela validação das transações
feitas entre eles. É o que se pode chamar de sistema descentrali-
zado de validação, já que dispensa o terceiro confiável e transfere
seu papel para os usuários, não individualmente considerados, mas
como um grupo. Uma transação só é validada se passa pelo crivo
da maioria dos demais usuários288.
No blockchain, as transações realizadas são eletronicamente
agrupadas em blocos de informações, os quais vão sendo encade-
ados aos anteriormente ali colocados. O Bloco 10 se liga ao Bloco 9,
o Bloco 9 se liga ao Bloco 8 e, assim, sucessivamente.
Assim, são constantemente acumuladas as informações das
transações realizadas, de forma que as posteriores extraem sua va-
lidade da referência às anteriores. Como os blocos de transações
são atrelados aos anteriores, forma-se uma corrente – ou rede - de
blocos.
É a engenharia de software que permite a criação de uma
rede de computadores nos quais os usuários atuam conjuntamente
na verificação prévia das transações realizadas. Uma transação está
sujeita, para sua validação, à verificação prévia por todos os demais

288 “Sempre que há um consenso, uma transação é gravada em um ´bloco´, que é um


espaço de armazenamento. O blockchain mantém o controle das transações, que mais tarde
podem ser verificadas como tendo sido realizadas. Assim, o blockchain é uma plataforma de
transações gigante, capaz de lidar desde microtransações com até transações de altos valores”.
MOUGAYAR, William. Blockchain para Negócios. Alta Books editora. Rio de Janeiro. 2017. Pg.
21.

268 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


usuários. Não basta um validar. Todos concorrem e participam des-
ta validação.
Evita-se, assim, que se possa falsear uma informação ou tran-
sação, já que implicaria na necessidade de alterar não um, mas to-
dos os blocos anteriormente armazenados, o que só pode ser feito
com a atuação da maioria absoluta dos usuários, não de um289.
A validade e segurança de uma transação, lançada em um
bloco, decorre de sua pertinência às informações contidas no bloco
anterior – já validado - e assim por diante. Como se fosse, por exem-
plo, um sistema de registro e transferência de ações ou as anota-
ções de um Cartório de Registro de Imóveis, nos quais a validação
da transferência de titularidade sobre um grupo de ações ou um
imóvel decorre de sua conformidade com a transação anteriormen-
te ali lançada.
No formato atual do sistema de registro de transferência de
ações, ou de imóveis, a confiança está centralizada, conforme o
caso, na performance da instituição custodiante ou do Cartório, o
terceiro confiável. No blockchain, a confiança da anotação decorre
do bloco de informações anterior, que é mantido e monitorado de
forma descentralizada.
Uma instituição custodiante de valores mobiliários, corretora
ou Cartório de Registro de Imóveis mantém, atualizada e em se-
gurança, registradas na forma própria, todas as transferências de
propriedade realizadas em relação a um determinado ativo. Ex: em
1953, Antônio vendeu o lote X para João; em 1959 João construiu
uma casa naquele lote; em 1989, João faleceu e deixou, em heran-
ça, a casa para Maria, que a vendeu em 1995, etc.
Há, no cartório, uma memória das transações realizadas, e a
validade de uma decorre de sua relação com a anterior. Ex: João só
pôde deixar a casa em herança para Maria porque, nas anotações
cartorárias, ele constava como proprietário. João, por sua vez, só
289 Interessante perceber, neste ponto, que a confiabilidade do blockchain aumenta em
proporção direta ao número de usuários aderidos à rede. Quanto mais pessoas fizerem parte
de uma rede blockchain, maior será o número de participantes necessário à uma validação
de transação ali realizada.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 269


figurava como proprietário porque havia, segundos as anotações
cartorárias, comprado a propriedade daquele que antes ali era refe-
rido como o dono anterior.
Verifica-se, assim, que as anotações do Cartório são encade-
adas umas nas outras, com a validade da posterior decorrendo de
sua concordância com a anterior.
É essa a finalidade, em síntese, também do blockchain. As
transações vão sendo eletronicamente lançadas em blocos, e estes
blocos só são armazenados porque têm relação e correspondência
com o bloco anterior, do qual extraem sua validade.
A diferença fundamental é que no blockchain esses lança-
mentos são efetuados dispensando o terceiro confiável. A confiança
vem da cadeia de blocos, que representa uma espécie de “memó-
ria” daquela transação e tem seu preenchimento e validação sujeito
à ação conjunta de todos os usuários, de maneira descentralizada.
Acessar as informações armazenadas não depende, apenas,
de se conseguir quebrar as defesas do terceiro confiável, repositório
destas informações, mas de quebrar as defesas dos múltiplos usu-
ários e, ao mesmo tempo, provedores desta confiança.
Todos os usuários são pontos de defesa do sistema, e quem
pretender invadir precisará “quebrar” vários pontos de acesso e não
apenas o do centralizador290.
Tomada sob seu aspecto jurídico/normativo, o propósito des-
ta rede blockchain é analisar, sob o ponto de vista de seus requisitos
de validade, transações comerciais realizadas entre os usuários da
rede, como compra e venda de moedas, valores mobiliários, em-
préstimos e até negociações envolvendo imóveis.
Não há um só agente ou grupo determinado capaz de centra-
lizar a geração de confiança prévia nas transações. Todos os desti-

290 “No sistema blockchain, quando um novo bloco de transações é adicionado, ele fica
permanentemente aderido à cadeia de informações ali colocadas. Como cada bloco se refere ao
anterior, se alguém desejar fraudar o conteúdo das informações em um bloco, precisará alterar
não apenas aquele, mas todos os blocos anteriores. Esta alteração exige uma capacidade
computacional que torna, na prática, impossível fazê-lo ou, então, tão caro que não justifica o
benefício perseguido” (GATES, Mark. Blockchain. São Paulo: Amazon ed. 2017. Pg. 22).

270 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


natários, contratantes, usuários daquela rede validam previamente,
fiscalizam, monitoram as operações mútuas, uns dos outros. Aque-
les que hoje contrata, amanhã monitora os contratos dos outros,
validando-os e aumentando a confiança nele.
Como até aqui foi apontando, a rede em formato blockchain
aponta, em sua utilidade, para a estruturação de um sistema eletrô-
nico de trocas e armazenamento cuja confiança prévia seja assegu-
rada pela ação dos próprios usuários, sem necessidade de terceiro
confiável.
A obsolescência do terceiro confiável, hoje elemento essencial
para a solução do problema da confiança em diversos e fundamen-
tais setores de mercado, certamente implicará em rompimento da
forma como hoje se estruturam estes mercados.

Características do sistema blockchain

Desintermediado – não há um agente que se coloca como intermediário de todas


as transações ali efetuadas. Elas são realizadas diretamente entre as partes,
na forma do que se denomina sistema P2P. A inexistência deste intermediário
centralizador de informações torna impossível acessar ou alterar os dados dos
participantes por meio de simples acesso às informações armazenadas pelo
intermediário, como hoje ocorre.

Descentralizado – por não haver o intermediário nas transações, a verificação da


autenticidade das mesmas, bem como sua adequação às regras de negociação,
é realizada por todos os participantes do sistema de troca.

Transnacional – não há barreira geográfica para se participar do sistema. Qualquer


pessoa, em qualquer lugar, pode participar. Ao mesmo tempo, as regras são
dadas pelo sistema de negociação, não por um ordenamento jurídico específico.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 271


Capaz de transferir quaisquer bens ou valores – o sistema blockchain permite a
realização de transações econômicas verificáveis e autenticáveis. O valor original
para o qual foi criado é, com visto, a criptomoeda, mas nada impede que um
sistema blockchain seja empregado para transações envolvendo quaisquer
outros bens ou ativos, como imóveis, ações, debêntures, derivativos etc.

“Se, agora, a tecnologia do blockchain registra transações financeiras feitas com


moedas digitais (o bitcoin, por exemplo), futuramente ele servirá para registrar
coisas bem diferentes, como nascimentos e óbitos, títulos de propriedade,
certidões de casamento, diplomas escolares, pedidos às seguradoras,
procedimentos médicos e votos – essencialmente, quaisquer tipos de transação
que podem ser transformadas em código.” SCHWAB. Klaus M. A Quarta
Revolução. Ob. Cit. Pg. 36

Resiliente – as informações armazenadas em blockchain são


extremamente protegidas contra alterações, uma vez que eventuais
modificações nos dados precisam passar pela aprovação eletrônica
de, pelo menos, mais da metade dos participantes. Isso torna
praticamente impossível uma fraude em sistemas assim organizados.

Origem e funcionamento online – todo o sistema é totalmente vinculado e


implementado através da internet. Não há qualquer registro em documento
cartular, seja das transações ou das pessoas que transacionam.

Criptografado – permite a cada usuário identificar-se por meio


escolhido (como um token, por exemplo) e, além disso, decidir quando
e o que vai transacionar, além de quais dados vai disponibilizar.

Transparente – todas as transações são acessíveis e verificáveis, a qualquer


tempo, por todos os usuários. Isso leva também à rastreabilidade das transações
ali praticadas.

Um sistema eficiente de verificação prévia e descentraliza-


da tem, ao menos potencialmente, poder de reinventar todos os
ambientes nos quais há troca constante e generalizada de ativos,
como se verifica no mercado de valores mobiliários e no mercado
de crédito.
Além disso, todo o sistema de armazenamento de informa-
ções referentes às atividades da companhia pode, em tese, ser rea-
lizado através do blockchain. É o caso, por exemplo, de registro so-
bre a propriedade e transferência de ações, registro de propriedade

272 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


sobre bens de qualquer natureza, registro de informações contá-
beis e, mesmo, de votações.

7 – Perspectivas da regulação jurídica em um mercado


descentralizado de negociações digitais

Resta demonstrado que toda a regulação dos mercados é


hoje, via de regra, estruturada a partir da performance de terceiros
confiáveis (como bancos, bolsas de valores, corretoras e cartórios)
e em instituições estatais centralizadoras do papel de regulação
e fiscalização, como a Comissão de Valores Mobiliários e o Banco
Central do Brasil.
Neste sentido, todo o arcabouço normativo referente ao mer-
cado financeiro e de valores mobiliários está estruturado a partir de
um modelo de confiança que tem no terceiro confiável seu eixo e
principal garantidor. A dúvida que fica é: será possível regular juridi-
camente um mercado de valores mobiliários estruturado a partir de
um modelo de geração prévia e descentralizada de confiança? Em
caso positivo, quais são os pontos relevantes para essa regulação?
Obviamente que a questão ainda está longe de ter, dada sua
relativa novidade, uma resposta definitiva. Por outro lado, simples
sugestões de possíveis modelos regulatórios muitas vezes pouco
ou nada diferem de meros exercícios de adivinhação. Há, porém,
alguns caminhos que já sinalizam possíveis oportunidades de regu-
lação desta nova realidade descentralizada.
Lawrence Lessig aponta quatro grandes direções nas quais a
regulação pode caminhar dentro do que chama de cyberespaço: a
primeira delas é exatamente através de leis editadas pelo Estado; a
segunda advém de normas sociais praticadas entre integrantes de
um mesmo grupo; a terceira é decorrente do mercado e represen-
tada pelas alterações na relação oferta/demanda e, por fim, apon-
ta ainda o autor a possibilidade de regras estabelecidas a partir da

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 273


própria concepção (ou, como prefere ele, “arquitetura”) do sistemas
operacionais291.
Admitida, portanto, a premissa de que normas estatais são ca-
pazes de regular ambientes virtuais de troca, mesmo quando des-
centralizados na geração de confiança, Primavera de Filippi e Aaron
Wright sinalizam direções para a legislação sobre o tema292.
A primeira delas predominantemente é dirigida aos usuários
finais do sistema descentralizado de confiança, sancionando even-
tuais ilegalidades cometidas. Embora protegidos por criptografia e
pseudônimos, estão hoje disponíveis, para organizações estatais,
mecanismos que permitem descobrir a verdadeira identidade das
pessoas que acessem tais redes.
Na mesma linha, os agentes fazendários dispõem de instru-
mentos que permitem cruzamento de informações no objetivo de
combater eventuais sonegações fiscais ou outro tipo de infração às
normas tributárias.
Outro ponto suscetível de regulação, mesmo em sistemas
descentralizados de confiança, está na denominada “camada de
transporte”, que funciona, grosso modo, como transmissora de da-
dos entre os computadores conectados a uma mesma rede. Sem
essa transmissão de dados a rede não funciona. Portanto, os pro-
vedores de tais “camadas de transporte” servem como eficientes
pontos sobre os quais podem recair normas de conduta.
Ressaltam ainda os autores que mecanismos de busca e re-
des sociais podem ser objeto de regulação destinada a um sistema
descentralizado de troca, uma vez que podem ser proibidos de dis-
tribuir ou hospedar conexões com sistemas considerados ilegais.
Por fim, é possível também que as leis estabeleçam regras
para o próprio desenvolvimento dos sistemas descentralizados, ao
estipular, por exemplo, uma “porta dos fundos”293 (backdoor) aces-
291 LESSIG. Lawrence. Code: version 2.0. 2ª edição. Basic Books. 2006. Pg. 120 e segs.
292 DE FILIPPI. Primavera. WRIGHT. Aaron. Blockchain and the Law: the rule of Code. Harvard
University Press. 2018. Pg. 173 e segs.
293 Em essência, essa “porta dos fundos” consiste em permitir que entidades estatais
reguladoras (como, por exemplo, a CVM) possam “espiar”, através desta “porta”, as transações

274 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


sível às entidades reguladoras ou dando ao Poder Público autoriza-
ção para simplesmente desativar certas transações.
Certo é que o desenvolvimento de um ambiente de negócios
que, além de virtual, caminha também para ser descentralizado, im-
pacta em todos os polos fundamentais do mercado de valores mo-
biliários, pois implica, como se demonstrará no capítulo seguinte, no
aparecimento de novos sujeitos, novos objetos e novos caminhos.

ali ocorridas, para investigar eventuais ilegalidades.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 275


276 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo VIII
Tecnologia, disrupção digital e mercado de valores
mobiliários: novos tomadores de decisões, novos ativos
e novas formas de captação pública de recursos

1 – Negociações de alta frequência: o uso de


inteligência artificial na tomada de decisões no
mercado de valores mobiliários

1.1 – Tomada de decisão e investimentos

A microeconomia clássica - e, por consequência, também a


análise econômica do Direito - é estruturada a partir de algumas
premissas metodológicas, entre as quais está a do ser humano
como agente racional e tomador de decisões, segundo critérios por
ele assumidos ou estabelecidos. Pessoas tomam e implementam
decisões diariamente, e o fazem segundo um padrão de racionali-
dade.
É certo que a premissa do ser humano como constante toma-
dor de decisões racionais não pode ser levada ao extremo. A deno-
minada Economia Comportamental apresenta sólidas demonstra-
ções de que as decisões humanas não são exatamente pautadas,
sempre, por um padrão abstrato de racionalidade, sendo, ao con-
trário, muitas vezes decorrentes de sentimentos, emoções, falsas
impressões da realidade ou mesmo deficiência em analisar fatos294.
A tomada de decisão se torna particularmente importante
quando se pensa no mercado financeiro ou de valores mobiliários.

294 Richard H. Thaler, prêmio Nobel de Economia e referência em matéria de Economia


Comportamental, remete, para ilustrar o tema, ao que chama de “homo economicus”, agente
tomador de decisões sempre objetivas e racionais que fundamenta a generalidade dos
modelos econômicos e ao “homo sapiens”, esse sim um ser racional, claro, mas também
movido, em suas decisões, por fatores outros que não a simples adoção de um modelo
objetivo de relação custo/benefício de cada escolha. THALER. Richard H. Misbehaving: the
making of Behavioral Economics. Norton & Company. 2015. Pg. 4.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 277


Aqui há tanto a presunção quanto a exigência de alto grau de ob-
jetividade e respeito a padrões abstratos de racionalidade, no que
tange à tomada de decisões.
É correto, por um lado, presumir alto grau de informação, for-
mação e especialização dos investidores no mercado de valores
mobiliários, o que lhes confere, ao menos em tese, maior capacida-
de de análise e objetividade para decidir sobre o assunto295.
Por outro lado, a genuína exigência de que as decisões toma-
das no mercado financeiro e de valores mobiliários sejam fundadas
em altos padrões de racionalidade decorre da constatação de que
os valores investidos não são, em regra, apenas dos próprios toma-
dores de decisão – na pessoa dos gestores destes recursos – mas
de uma coletividade de poupadores296.
Portanto, ao se pensar em decisões no mercado financeiro e
de valores mobiliários é indispensável conjugar o alto grau de racio-
nalidade exigido e presumido de quem toma tais decisões com a
natural possibilidade, inerente aos seres humanos, de subjetividade
e falhas comportamentais que venham a comprometer a conduta
esperada de tais tomadores de decisões.
Além disso, há outra importante variável a considerar.
Até algumas décadas atrás, as decisões tomadas eram colo-
cadas em prática com a participação presencial das pessoas envol-
vidas na decisão. Ao decidir contratar, as partes precisavam estar
fisicamente presentes neste ato, ou se fazer representar por outras
pessoas. Decisões eram colocadas em prática, prevalentemente,
por ato entre pessoas fisicamente presentes.

295 Mesmo autores como Richard H. Thaler, consideram o grau de especialização dos
tomadores de decisão um aspecto fundamental para a sustentação de modelos racionais de
tomada de decisões. (THALER. Richard H. Misbehaving: the making of Behavioral Economics.
Ob. Cit. Pg. 125 e segs.
296 O estudo de Peter Bernstein (BERNSTEIN. Peter. A história do mercado de capitais: o
impacto da ciência e da tecnologia nos investimentos. Ed. Campus. Rio de Janeiro. 2008) faz
longa retrospectiva sobre o assunto, com o objetivo de apresentar teorias que aceitem ou
relativizem a premissa da máxima racionalidade econômica como padrão de decisões no
mercado de capitais e, também, de salientar seus enormes impactos sobre o interesse de
terceiros.

278 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Como apontado no capítulo anterior, a primazia da internet
como ambiente de trocas fez com que as decisões passassem a
ser implementadas à distância, através de comandos emitidos, em
ambiente virtual, pelos participantes daquele negócio jurídico.
Tornaram-se comuns (para não dizer predominantes) situa-
ções na quais ocorre a execução eletrônica de decisões tomadas
por seres humanos. Desde a aquisição de ações em bolsa de va-
lores ou a contratação de um empréstimo bancário até a simples
compra de um produto ou serviço, é raro aquilo que não se pode
contratar em ambiente virtual.
Conclui-se, portanto, que há decisões humanas que são pre-
sencialmente efetivadas e, também, decisões humanas que são
eletronicamente implementadas.
Atualmente, porém, a disrupção tecnológica chegou a um ou-
tro nível, já que coloca em dúvida a exclusividade do ser humano
não apenas como executor, mas também como tomador, formador
de decisões racionais. Trata-se da comumente denominada inteli-
gência artificial, que, no mercado de capitais, repercute sob a forma
das chamadas negociações de alta frequência, ou HFT (sigla para
“high frequency trading”) 297.
Softwares ou robôs concebidos a partir de algoritmos já se
mostram capazes de tomar decisões a respeito de “quando”, “quan-
to”, “onde” e “o quê” comprar ou vender no mercado de valores mo-
biliários.
Não se trata mais, apenas, de um instrumento de efetivação
de decisões, mas de um elemento capaz de ponderar sobre as vari-
áveis fundamentais na tomada de decisão, como o tempo (“quando”
decidir), a quantidade (“quanto” comprar ou vender), o lugar da de-

297 “High-frequency trading refers to fast reallocation or turnover of trading capital. To ensure
that such reallocation is feasible, most high-frequency trading systems are built as algorithmic
trading systems that use complex computer algorithms to analyze quote data, make trading
decisions, and optimize trade execution. All algorithms are run electronically and, therefore,
automatically fall into the “electronic trading” subset.” Aldridge. Irene. High frequency Trading. 2º
edition. John Wiley & Sons. Inc. 2013. New Jersey. Pg. 23)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 279


cisão (“qual o ambiente” físico ou virtual no qual vai agir) e, principal-
mente, sobre o objeto (“o quê” comprar ou vender) 298.
Há, portanto, um novo agente tomador de decisões no mer-
cado de valores mobiliários, capaz de afastar a premissa de que as
decisões são exclusivamente tomadas por seres humanos, ainda
que sob o manto de pessoas jurídicas ou similares, como fundos de
investimento?
Este novo tomador de decisões conseguirá suprir as eventuais
falhas comportamentais humanas e, enfim, ser capaz de agir com a
máxima racionalidade em matéria de investimentos?

1.2 – Algoritmos e tomada de decisão no mercado de


valores mobiliários

A tomada de decisão é, essencialmente, a colocação em prá-


tica de uma escolha. Uma vez que seja, do ponto de vista fático ou
jurídico, impossível colocar todas as opções em prática, torna-se
necessário adotar uma das alternativas e, em consequência, des-
cartar todas as outras.
Essa seleção entre alternativas é efetuada a partir da relação
custo/benefício entre cada uma das escolhas que se apresentam. O
agente tomador de decisões pondera os custos e possíveis ganhos
de cada opção e, a partir das informações de que dispõe, pretende
escolher a alternativa que lhe atraia maiores ganhos, com menores
riscos e custos possíveis.
Para conseguir montar tal caminho decisório o agente precisa
de informações, já que só assim ele consegue, ainda que de forma
incompleta, quantificar riscos, ganhos e perdas de cada uma das
alternativas entre as quais tem que escolher.
298 Pretende-se, inclusive, “corrigir” as falhas que decisões tomadas por seres humanos
apresentam, já que, como aqui salientado, nem sempre elas conseguem ser absolutamente
racionais. “Na última década, ou duas, a economia comportamental tem contado uma história
muito particular sobre os seres humanos: a de que somos irracionais e propensos ao erro, o que é
devido em grande parte ao defeituoso e idiossincrático hardware do cérebro”. CHRISTIAN. Brian.
GRIFFITHS. Tom. Algoritmos para viver: a ciência exata das decisões humanas. Ed. Companhia
das Letras. São Paulo. 2017. Pg. 16.

280 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Á medida que são obtidas informações relevantes, mais fácil
se torna identificar a escolha certa. Quanto mais informada é uma
decisão, maior a chance de ela ser correta, segundo os critérios do
tomador.
Necessário lembrar, entretanto, que a reunião destas informa-
ções relevantes implica custos e tempo, algo que, por sua vez, pode
levar o tomador de decisão à perda da escolha certa. Quanto mais o
tomador de decisões se informa, mais tempo ele leva para decidir e
mais custos ele assume para se informar, o que pode levá-lo à per-
da da oportunidade certa ou, ao menos, a custos desnecessários.
Como tomar uma decisão informada quando o próprio ato de
se informar prejudica o resultado? Colher informações de menos
implica no aumento da possibilidade de não se chegar à melhor
decisão, mas colher informações demais pode significar deixar a
melhor alternativa passar.
Há, assim, um momento em que o tomador de decisões deve
parar de colher informações e partir para a implementação daquela
que lhe pareça a melhor escolha, com as informações de que dis-
ponha. É o que se chama de parada ótima, o momento em que se
deve parar de apenas colher informações e colocar em prática uma
escolha299. É o momento exato em que se verifica que há informa-
ções suficiente para se tomar uma decisão eficiente.

299 CHRISTIAN. Brian. GRIFFITHS. Tom. Algoritmos para viver: a ciência exata das decisões
humanas. Ob. Cit. Pg. 54 e segs.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 281


A busca por algo artificialmente criado e capaz de tomar decisões organizadas segundo
critérios preestabelecidos é tema frequente nas artes em geral e no cinema, em particular.
Uma notória e nem tão recente descrição está no filme 2001: uma odisseia no espaço, na
forma do computador HAL 9000, personagem do filme (2001 – Uma odisseia no espaço.
Direção e Produção: Stanley Kubrick, Estados Unidos. 1968)

Quando se fala em informações e decisões é preciso lembrar


também que não bastam dados acerca de alternativas. Além de co-
lher informações, o tomador de decisões precisa conciliá-las com
os seus critérios, suas preferências. Cada pessoa atribui pesos di-
ferentes à cada uma das variáveis relevantes para aquela decisão.
Tome-se o seguinte exemplo:
Duas pessoas saem de casa para comprar, cada uma, um car-
ro para si mesmas. Suponha-se que ambas podem e querem gastar
o mesmo valor. Elas vão às mesmas concessionárias, conversam
com os mesmos vendedores, examinam exatamente os mesmos
modelos de carros. Elas têm, portanto, as mesmas informações so-
bre o objeto da decisão. Isso significa que elas comprarão o mesmo
carro, ou seja, que farão a mesma escolha? De modo algum. Iguais
informações não significam iguais decisões, pois as informações
são sujeitas aos critérios de cada um dos tomadores da decisão.
Qual a cor preferida de cada um? O que mais valorizam num
carro? Beleza, espaço, potência do motor, segurança? Ambos sa-

282 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


bem exatamente as mesmas coisas e dispõem dos mesmos recur-
sos, mas chegam a decisões diferentes pois cada um submete tais
informações aos seus próprios critérios decisórios.
Investir é tomar decisões a respeito das possíveis destina-
ções dos recursos financeiros disponíveis. Organizar mentalmente
alternativas existentes, colher informações sobre cada uma delas,
submeter tais informações aos seus critérios pessoais e colocar a
melhor opção em prática. Tudo isso é feito por seres humanos, mas
pode ser estruturado em modelos matemáticos, os algoritmos.
Algoritmos são passos matematicamente elaborados desti-
nados a permitir a tomada de decisão ótima. Conciliam as alternati-
vas disponíveis com as informações obtidas sobre cada uma delas,
as regras estabelecidas para colocá-las em prática e preferências
apontadas de forma a, a partir daí, apontar “o quê”, “quanto”, “onde”
e “quando” fazer ou deixar de fazer algo.
Algoritmos são capazes de encontrar livros, roupas ou hotéis
mais adequados às preferências que lhe são apresentadas pelo to-
mador da decisão. É, entretanto, necessário que este agente toma-
dor da decisão forneça (direta ou indiretamente) ao mecanismo de
cálculo quais critérios levar em consideração, ou seja, quais são as
variáveis de maior relevância para a decisão: preço, lugar do hotel,
marca da roupa, autor ou assunto do livro, etc.
Nas redes sociais ou no sistema de busca pela internet essa
informação é dada pelo usuário, quando ele procura, por exemplo,
por hospedagem em uma determinada praia, um certo modelo de
tênis ou um livro sobre assunto específico.
Ao fazer tais buscas, o usuário está fornecendo suas preferên-
cias decisórias aos softwares, como a praia que pretende visitar, o
tipo de tênis que gosta ou o livro que quer ler. Sabendo dos critérios
decisórios do usuário, o software se vale de algoritmos para orga-
nizar alternativas, colher informações sobre essas opções e filtrar o
custo e benefício de cada uma delas, sempre submetendo as infor-
mações de que dispõe aos critérios revelados pelo usuário.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 283


Softwares e algoritmos potencializam enormemente a capaci-
dade de cálculos dos seres humanos, bem como dispõem de uma
capacidade infinitamente maior de armazenar e combinar dados
relevantes. São análises realizadas em enorme quantidade, tempo
mínimo e ponderando informações e preferências em número gi-
gantesco.
É como o computador programado para vencer uma partida
de xadrez contra uma pessoa: estabelecida a preferência a ser sa-
tisfeita (vencer a partida), a máquina tem, a partir daí, uma capacida-
de de analisar alternativas de jogadas e as possíveis consequências
de cada uma delas, dentro das regras do jogo, muito maior do que
a do cérebro humano300.
O mesmo raciocínio fundamental vale também para a seleção
de hotéis, roupas, tênis ou, como interessa mais no momento, op-
ções de aplicações de recursos financeiros. Há algoritmos capazes
de, diante das preferências a ele sinalizadas, selecionar os melhores
ativos financeiros, a partir do processamento de um número muito
maior de informações do que seria capaz um investidor humano.
No caso dos investimentos, os próprios “parâmetros de ne-
gociação” (como início, calendário, preço, quantidade ou modo de
gestão) são, entre as alternativas possíveis, determinados automati-
camente por um algoritmo informativo301.

300 Em 1997, pela primeira vez um computador (chamado Deep Blue) venceu uma partida
de xadrez contra o então campeão mundial da modalidade, Gary Kasparov. “Na verdade, a
vitória do Deep Blue em 1997 foi justa e inequívoca. Foi também uma realização histórica, a
culminação de uma odisséia de 55 anos, cujas implicações foram muito além do xadrez. (...)
Essa vitória constituiu um momento profundo e emocionante, cuja importância o mundo inteiro
logo pôde compreender intuitivamente: a tecnologia movia-se agora em direção a um novo
reino ameaçador. Uma coisa era construírem-se máquinas que pudessem mover-se sobre a
terra, ou voar sobre o oceano, ou até mesmo reconhecer um rosto. Mas a vitória do Deep Blue
sobre Kasparov indicava que agora estávamos produzindo máquinas que poderiam competir
conosco intelectualmente. (SHENK. David. O Jogo Imortal. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro.
2007. Pg. 196/197)
301 “Assim, a intervenção humana restringe-se à própria programação dos algoritmos a
montante da negociação; após a sua criação, o algoritmo ‘vivifica-se’ e adquire uma faculdade
negocial autônoma”. (QUELHAS. José Manuel. High Frequency Trading. Universidade de
Coimbra. Boletim de Ciências Econômicas. Volume. LVIII. Coimbra. 2015. Pg. 317)

284 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Retomando a comparação acima, é como se o algoritmo “in-
vestidor” não só selecionasse as opções de hotéis mais adequadas
às preferências do tomador da decisão, mas, além disso, fizesse a
reserva naquele considerado o mais adequado, nas datas corres-
pondentes às férias do usuário, pagasse as diárias e, ainda, fizesse
tal pagamento de forma a permitir a melhor condição, como núme-
ro de parcelas, data de vencimento, etc.
Assim, a negociação de alta frequência consiste em comprar
e vender ativos financeiros de negociação pública (como ações e
outros valores mobiliários) de forma constante, extremamente veloz
e em altíssimas quantidades, com base em decisões formadas a
partir de algoritmos e colocadas em prática, com a requerida velo-
cidade, por softwares302.
Chama a atenção não apenas o fato da formação da decisão
sobre os investimentos se dar sem relevante atuação humana, mas
também o fato de que tais decisões se baseiam em uma capacida-
de de captação e processamento de informações muitíssimo su-
periores à do cérebro humano303, bem como a velocidade com que
tais decisões são eletronicamente implementadas304.

302 “Fundos de investimento ou bancos de médio e grande porte gerenciam portfólios com
centenas de posições em qualquer tempo dado. O banco (ou o fundo) monitoram os dados
do mercado, computadores atualizam os valores dos chamados ‘osciladores” indicando
quais posições devem ser adquiridas (...) Em geral, o que ocorre na prática é que os fundos
de investimentos, tanto os pequenos quanto os grandes, antes de começarem a usar um
novo modelo de algoritmo, fazem um teste de eficiência a partir de uma amostra de dados
da seguinte forma – uma fração da amostra é utilizada para estimação de parâmetros
considerados adequados para o algoritmo, com a fração restantes, o algoritmos é validado
simulando seu desempenho. Sendo o algoritmo aprovado nessas etapas de teses, o mesmo
é colocado no mercado (...) Mas não importa o quão bons sejam os algoritmos, eles sempre
necessitarão de testes e atualizações. Os mercados estão em constante mudança e conquistas
passadas não são indicativos de quaisquer sucessos futuros”. (UEMATSU. Akira Aricê de Moura
Galvão. Algoritmos de negociação com dados de alta frequência. Dissertação de Mestrado.
2012. Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo. Pg. 9/10)
303 Para que se possa ter uma ideia de volume e tempo destas transações em alta
frequência, as unidades de medidas adotadas são milhões de ordens de negociação em
dez microssegundos (a milionésima parte de um segundo). ALDRIDGE. Irene. High frequency
Trading. Ob. Cit. Pg. 122.
304 A velocidade de implementação das decisões é inerente à ideia de HFT. Há, por outro
lado, o termo low frequency trading, usado para os casos de decisões por algoritmos em
volume menor (BODEK. Haim. The problem of HFT: collected writings on High frequency Trading

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 285


Investir em alta frequência com o uso de algoritmos exige, en-
tretanto, que o software/robô seja informado sobre as preferências,
o “perfil” do investidor, ou seja: quais são as variáveis mais relevan-
tes para aquele caso (como menor ou maior risco, maior ou menor
liquidez, etc). São os critérios mais relevantes para a tomada de de-
cisão, os quais serão buscados, pelo algoritmo, entre as opções do
mercado.
Além disso, é necessário que haja capital suficiente para as-
segurar o devido cumprimento das decisões tomadas a partir dos
algoritmos “investidores”, assim como softwares capazes de execu-
tar, com a necessária velocidade, as ordens de compra ou venda
emitidas.
No que tange à regulação das negociações de alta frequên-
cia, há vários pontos que suscitam dúvidas e preocupações, posto
tratar-se de uma tecnologia evidentemente disruptiva e, portanto,
capaz de subverter vários padrões até então inquestionáveis no
mercado de valores mobiliários305.
Entre tais pontos de preocupação, há um problema básico e
estrutural na utilização de softwares e algoritmos de investimento,
consistente na possibilidade de que, dadas a constância, velocida-
de e quantidade de dinheiro investido, eles possam comprometer
o modo de formação de preços no mercado de valores mobiliários.
Como já apontando em capítulo anterior, o mercado de valo-
res mobiliários funda-se na premissa de que todos os participantes
são tomadores de preço. Isso significa que tais participantes não são,
se isoladamente considerados, capazes de interferir no preço de,
por exemplo, determinado tipo de ação.
Porém, no caso das negociações em alta frequência, com o
volume de dinheiro e de operações envolvidas, bem como a velo-
cidade de implementação das decisões, há o temor de tais “inves-
tidores” venham a ser formadores de preço, influenciando artificial-
& Stock Market Structure reform. DCM. United States. 2013).
305 Neste sentido vale citar a Diretiva 2014/65 da União Europeia, que regula vários aspectos
referentes às ali denominadas “negociações algorítmicas”. Nota-se preocupação com a
transparência das informações e plataformas utilizadas, garantia de cumprimento das ordens
emitidas, bem como questões referentes a quantidade e velocidade das negociações.

286 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mente na oferta ou demanda por um determinado tipo de ação ou
valor mobiliário.
Além deste problema central, causa preocupação o desen-
volvimento de formas eficientes de identificação dos responsáveis
pelas operações, importante tanto para fins de transparência no
mercado quanto, principalmente, para a aplicação de eventuais
sanções.
Há ainda, como outro foco de atenção regulatória, a preocu-
pação em garantir que todas as ordens emitidas no mercado sejam
lastreadas em recursos financeiros efetivamente existentes e dispo-
níveis, de modo a evitar possíveis inadimplementos.
De modo a minimizar tais riscos, há alguns pontos para os
quais apontam as diferentes regras aplicáveis à estas negociações:

a. Obrigatoriedade de registro dos operadores HFT, de


forma que a Comissão de Valores Mobiliários e a bolsa de va-
lores possam saber quem são e sobre eles exercer seus pode-
res regulamentar, fiscalizador e sancionador;
b. Obrigatoriedade de divulgação da informação de
que se trata, na operação, de HFT. Chama-se “flagging”, no jar-
gão do mercado;
c. Criação de um sistema eletrônico de prevenção con-
tra erros no funcionamento dos sistemas HFT ou, ao menos, a
existência de mecanismos de rápida e eficiente reparação de
eventuais danos;
d. Estabelecimento de padrões próprios de transparên-
cia nas formas de negociação, bem como no que tange aos
sistemas empregados;
e. Fixação de limites mínimos de tempo entre cada
operação e limites máximos de ordens a serem emitidas den-
tro daquele limite de tempo;
f. Aferição da capacidade de pagamento dos operado-
res de HFT em relação ao montante de dinheiro movimentado
por eles no mercado.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 287


Os robôs do mercado financeiro: entre oportunidades e
riscos

Máquinas permitem que investidor tenha mais velocidade e precisão nos negócios
em bolsa, mas a modalidade High Frequency Trading (HFT) abre brechas para novas
formas de fraude eletrônica

Foi-se o tempo em que os investidores precisavam conversar com o gerente do


banco para conhecer as melhores opções de aplicação. Hoje, além de usar home
broker, é possível conhecer opções de investimento com sugestões feitas por robôs,
os chamados robôs advisors. Mais do que isso, há ferramentas que fazem a operação
totalmente de forma automática com base nas suas preferências, os robôs traders.

E para quem topa alto risco é possível deixar um computador fazendo várias ordens
de compra e venda de ações no mesmo dia, de forma automatizada, seguindo
regras de algoritmos. Adrenalina pura! É o que o mercado financeiro chama de High
Frequency Trading, ou simplesmente HFT.

A utilização desse tipo de tecnologia só cresce no Brasil. Em maio deste ano, o total de
contratos negociados por investidores de alta frequência no segmento BM&F bateu
recorde. Ao todo, os HFTs foram responsáveis por negociar 9,6 milhões de contratos,
enquanto em janeiro de 2009 eles negociaram 3.500.

As operações de alta frequência ganharam notoriedade em 2010, após o evento que


ficou conhecido como Flash Crash, quando o índice Dow Jones, da Bolsa de Nova
York, chegou a cair 600 pontos em pouco mais de meia hora e provocou uma parada
técnica – daí o termo crash.

Numa operação de HFT, para que o envio de ordens ocorra no menor espaço de tempo
possível, é preciso que a velocidade de resposta seja mínima. Ou seja, proximidade das
máquinas com a central de negociação da bolsa e uso de tecnologia de ponta podem
fazer toda a diferença entre ganhar ou perder dinheiro para esses investidores alucinados.
Mas, afinal, HFT é ilegal? Não. A modalidade de negociação automatizada à base
de algoritmos em si não viola nenhuma regra no mercado financeiro. A questão
é que abre brecha para a manipulação de mercado, exatamente por combinar
alta velocidade e grande volume de dinheiro.

E nessa diferença de preço das ações pode ser que um investidor cause uma condição
artificial para aquele ativo. Aí, vira crime. Tem o spoofing, que cria liquidez artificial com
ofertas fora do padrão do livro do ativo (book) e o layering, que atua em forma de
camadas de ofertas em níveis sucessivos de preços para influenciar os investidores.

288 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


“No spoofing você vai jogando as ordens de compra e venda, e elas vão ficando ali, no
livro de ofertas. De repente, as ordens são canceladas, mas daí o preço das ações já
foi alterado. No layering, as ordens do robô encontram com as dele mesmo”, explica a
professora de Direito Financeiro da FGV Direito, Ilene Najjarian.

Apesar de a prática de layering ser considerada nova por envolver o uso de robôs, ela
se assemelha às operações “Zé com Zé” do caso Naji Nahas, que derrubou a Bolsa
do Rio no fim dos anos 1990 . “A diferença é que naquela época era manual”, conta a
professora.

A bolsa brasileira, a B3, afirma que adota mecanismos para mitigar eventuais
riscos com operações HFT. “Queremos ter investidor pessoa física e fundos de
investimentos, mas também queremos ter clientes de alta frequência, porque
tudo isso ajuda as pessoas a terem os negócios executados. Uma base de clientes
diversa contribui com a liquidez do mercado”, afirmou o diretor de Operações da
B3, Mário Palhares.

De acordo com ele, a diversidade de clientes implica em ter controles para


administrar o ambiente de negociação. “Temos a capacidade de limitar a
quantidade de mensagens que o investidor pode mandar para nosso ambiente,
por exemplo.”

Além disso, em maio deste ano, a B3 lançou uma plataforma para diminuir o risco
pré-negociação, como conta o diretor de Risco da B3, André d’Almeida Monteiro.
Esse mecanismo analisa a ordem do investidor e se ela é compatível com seu
histórico e capacidade de pagar.

De acordo com Monteiro, esse novo sistema de mitigação de risco leva


em consideração sete critérios para definir se a oferta deve ou não entrar na
plataforma de negociação. “Há um investimento muito forte da B3 para assegurar
o processo de formação de preço para proteger contra eventuais problemas de
crédito”, diz.

Já ocorreu uma punição por spoofing no Brasil. Em março de 2018, a empresa


Paiffer Management Ltda. e o sócio da companhia, José Paiffer, foram condenados
pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por spoofing e multados em R 2,39
milhões – valor duas vezes maior do que o ganho com a prática criminosa.

As investigações começaram ainda em 2013, quando operações suspeitas, como


a compra de ações da Vale e da Petrobrás e o posterior cancelamento dessas
ordens, chamaram a atenção dos reguladores.

ANDRADE.Jennefer.www.arte.estadao.com.br.Disponível:https://arte.estadao.
com.br/focas/estadaoqr/materia/os-robos-do-mercadofinanceiro-entre-
oportunidades-e-riscos. Site consultado em 28/05/2020.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 289


2 – Disrupção digital e novos ativos financeiros: as
criptomoedas

Um dos pilares fundamentais para qualquer país juridicamen-


te organizado e com um sistema econômico minimamente em fun-
cionamento está na moeda, unidade de valor fundamental.
Em complemento a tal assertiva é também correto afirmar o
monopólio estatal em relação à emissão de moeda. Mesmo entre
autores liberais, como Adam Smith306, a ingerência exclusiva do Es-
tado sobre o assunto é reconhecida, há séculos, como uma de suas
funções essenciais.
Há, pelo menos, três grandes funções econômicas da moe-
da emitida e garantida pelos diferentes Estados. Elas são impor-
307

tantes para a compreensão das criptomoedas.


A primeira das funções da moeda é funcionar como padrão de
comparação de valor entre diferentes bens ou serviços. A todos os
bens e serviços disponíveis no mercado são atribuídos valores em
moeda, o que permite a compra e venda recíproca deles mediante
a comparação de preços a partir de um referencial único.
Nessa função, a moeda viabiliza a comparação de valores en-
tre diferentes bens e serviços e estabelece padrões de troca. Por
exemplo: quantos salários mínimos são necessários para comprar
um carro? Quantos quilos de arroz correspondem ao aluguel de um
determinado apartamento etc.
A segunda função essencial da moeda está em servir como
meio de quitação, de extinção das obrigações patrimoniais assu-
midas no mercado. Dada sua natureza, toda e qualquer obrigação
patrimonial pode ser extinta com a transferência de moeda. Sendo
assim, é a moeda que permite aos agentes econômicos a aquisição
dos bens e serviços disponíveis.
306 BRUE. Stanley L. História do Pensamento Econômico. 6ª edição. Ed. Thomson. São Paulo.
2005. Pg. 73.
307 MANKIW. Gregory. N. Introdução à Economia. 3ª ed. Ed. Thomson. Pg. 628/629.
ROSSETTI. José Paschoal. Introdução à Economia. Ed. Atlas. São Paulo. 20ª edição. 2003. Pg.
648/649.

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A terceira função básica da moeda está em permitir quantifi-
car a riqueza produzida e armazenada em um determinado sistema
econômico, como, por exemplo, um país, uma cidade etc. Funciona,
assim, como índice de reserva de valor, já que permite a pessoas
físicas e jurídicas quantificarem, segundo essa referência única, a
riqueza que produziram e conseguiram armazenar.
Para conseguir cumprir as suas funções básicas a moeda
apresenta ao menos duas características essenciais. São elas:

a. Liquidez absoluta – a moeda precisa ser algo


conversível, sem que haja lapso temporal, em qualquer
bem ou serviço disponível no mercado. É um ativo que
pode ser imediatamente trocado por qualquer bem ou
serviço disponível no mercado.
b. Aceitação geral e irrestrita – a moeda deve ser
algo admitido, como meio de aquisição ou troca, por qual-
quer agente econômico que atue naquele determinado
mercado. Nos padrões econômicos atuais, essa aceitação
geral e irrestrita vem na forma do chamado “curso força-
do”, quando o Estado emissor da moeda impõe, por meio
de leis, a obrigatoriedade de adoção e circulação, em seu
território, da moeda por ele emitida.

Outra característica da moeda hoje adotada na generalida-


de dos países está na inexistência de um valor intrínseco para ela.
Isso quer dizer que o papel (ou metal) no qual são corporificadas as
moedas não têm, em si mesmos, qualquer valor. Seu valor decorre
exclusivamente do seu uso como referência de troca, uso este que
advém de uma imposição estatal, o qual é também o garantidor da
credibilidade daquela moeda.
A compreensão desta característica das atuais moedas é fa-
cilitada quando elas são comparadas com as chamadas “moedas
mercadoria”. Neste último caso, a moeda é corporificada em um
objeto que teria o mesmo valor, mesmo se não fosse usado como

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 291


moeda. São objetos que valem por si só, ou seja, têm um valor in-
trínseco que deles decorre mesmo se não usados como moeda.
São, por exemplo, os casos em que se adotava o ouro como refe-
rência monetária308.
Outro ponto fundamental sobre a moeda estatal está na cons-
tatação de que seu lastro, confiabilidade e, por consequência, valor
de troca decorre da quantidade de riqueza produzida pelo país, isto
é, está vinculado ao montante de riqueza existente naquele país.
Um país só pode aumentar sua emissão de moeda se este
aumento corresponder a um efetivo e igual acréscimo na riqueza ali
produzida, sob pena de a moeda perder parte de seu valor de com-
pra, já que haverá mais moeda disponível para comprar a mesma
quantidade de bens e serviços.
Grosso modo, têm-se então que quando a emissão de moe-
da, pelo Estado, não corresponde a um efetivo aumento na riqueza
produzida pelo país emitente, há perda no valor de compra desta
moeda.
Outra base até aqui inatacável da moeda está, como já salien-
tado, em sua origem estatal. A gigantesca maioria das trocas eco-
nômicas realizadas hoje, ao redor do mundo, se faz a partir de mo-
edas de emissão estatal. O vínculo entre moeda e Estado emitente
tem, porém, um relevante e complexo efeito.
Por estar amparada na solidez social, política e econômica do
Estado emitente, a moeda sofre sobressaltos, em seu valor de com-
pra, todas as vezes em que ocorram eventos que afetem a confian-
ça no Estado emissor.
Isto significa que o problema da confiança, abordado no capí-
tulo anterior, tem aqui uma nova aplicação: a confiança na moeda

308 Outro exemplo de moeda-mercadoria são os cigarros. Nos campos de prisioneiros de guerra
durante a Segunda Guerra Mundial, os prisioneiros trocavam bens e serviços entre si usando
cigarros como reserva de valor, unidade de conta e meio de troca. De forma similiar, quando
a União Soviética estava em colapso, no final da década de 1980, os cigarros começaram a
substituir o rublo como moeda em circulação preferida em Moscou. Nos dois casos, até os não-
fumantes ficavam satisfeitos em aceitar cigarros em uma troca, sabendo que poderiam usá-los
para comprar outros bens e serviços” (MANKIW. Gregory N. Introdução à Microeconomia. Ob.
Cit. Pg. 630)

292 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


de um país está centralizada e dependente da credibilidade depo-
sitada nas instituições estatais ali organizadas. Abalos na confiança
em relação às instituições do Estado emissor refletem diretamente
sobre o poder de compra da moeda por ele emitida.
A disrupção digital chegou, no final da década passada, à
questão da moeda única de emissão estatal, algo até então inques-
tionável como base de estruturação dos sistemas econômicos.
Essa disrupção veio na forma das criptomoedas ou criptoativos, das
quais o Bitcoin é considerada a primeira experiência bem sucedida.

O filme “O jogo da imitação” narra a história real do matemático Alan Turing e seu trabalho,
durante a Segunda Guerra Mundial, para decifrar as mensagens criptografadas (ou seja,
codificadas) trocadas entre as tropas nazistas. (O Jogo da Imitação. Direção: Morten Tyldum.
Produção: Black Bear Pictures. Estados Unidos. 2014)

A concepção ideológica e quase romântica que motivou a


criação do Bitcoin, primeira modalidade de criptomoeda efetiva-
mente bem sucedida, foi o ideal de retirar do Estado o monopólio
de emissor e, ao mesmo tempo, garantidor do maior e mais impor-
tante mecanismo de troca usado no mercado.
O objetivo original do Bitcoin foi, ao menos segundo seus cria-
dores, combater o fato de que a moeda (e, portanto, o poder de
compra de toda a população) estivesse excessivamente vinculada
apenas à capacidade do Estado emissor de gerar credibilidade em

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 293


relação à essa moeda. Em última análise, a finalidade era relativi-
zar o poder que as autoridades estatais tinham sobre a forma de
avaliação e quantificação da riqueza produzida e armazenada no
mercado309.
A partir do Bitcoin – e sucessivas variações – e dos acima
apontados aspectos fundamentais da ideia de moeda, é possível
extrair as características básicas das criptomoedas.
Trata-se de criação intelectual destinada a servir de referência
de valor, meio de quitação de obrigações e, também, de quantifi-
cação de riqueza, concebida exclusivamente em ambiente virtual,
sem qualquer vínculo estatal e cuja credibilidade decorra da ado-
ção de criptografia e de um sistema prévio e descentralizado para
geração de confiança.
No caso dos criptoativos em geral, e do Bitcoin em particular,
sua confiabilidade, como instrumento de referência de valor e troca,
não está atrelada a um Estado emitente, mas se apoia no mecanis-
mo descentralizado de geração de confiança, o blockchain.
É na credibilidade deste sistema de geração prévia e descen-
tralizada de confiança que se apoia o Bitcoin. Retira-se do Estado e
deposita-se na generalidade dos usuários do blockchain a confian-
ça na moeda e nas transações, de forma a afastá-la de possíveis
fraudes e de conjunturas políticas, sociais ou econômicas.
Ao mesmo tempo, a privacidade da identidade dos usuários,
bem como do valor e quantidade das transações de cada um é as-
segurada por meio de criptografia, que consiste, em essência, em
registrar informações através de uma linguagem codificada.
Embora validadas de forma descentralizada, a identidade e o
valor de cada uma das transações envolvendo o Bitcoin (e demais
criptomoedas) é reservado ao seu titular, na forma de códigos ma-
temáticos armazenados em tokens310.
309 Relevante a informação de que o “lançamento” do Bitcoin no mercado deu-se
imediatamente após a eclosão da grave crise econômica que abalou a economia norte-
americana (e, por consequência, várias outras) no ano de 2008.
310 A address on a blockchain represents a pseudonymous digital identity. Tokens belonging
to that address can be signed with the respective private key of the address owner. This private

294 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Todo usuário dispõe de um token, mecanismo que permite a
cada um o registro e a proteção das informações e transações que
realiza311. Assim, só se confere acesso a esse tipo de informação a
quem se deseja e na forma como se quer. Como cada usuário tem
o seu token, torna mais difícil acessar o sistema.
Uma genuína moeda precisa, porém, atender a duas já apon-
tadas exigências: liquidez absoluta e aceitação irrestrita. No caso
de criptomoedas, ambas decorrerão da adesão voluntária do mer-
cado e não, como nas moedas estatais, de uma imposição legal.
É possível afirmar que a formação da liquidez e do grau de
aceitação de uma criptomoeda também são descentralizados, pois
dependem não da imposição estatal aos seus jurisdicionados, mas
da adesão individual e voluntária dos agentes de mercado.
Em última análise, caberá a cada vendedor de bens ou ser-
viços decidir se aceita ou não um determinado criptoativo como
forma de quitação de obrigações e referência de valor. Não ocorre,
como hoje, a imposição de aceitação forçada e irrestrita. Cada pes-
soa é livre para decidir se aceita ou não este ou aquele criptoativo.
Atualmente, há várias de espécies de criptoativos no merca-
do, todos eles amparados em criptografia e sistemas de geração
prévia e descentralizada de confiança, mais ou menos semelhantes
ao blockchain do Bitcoin. São algumas delas:

key acts as a password that gives its owner acess to their digital assets. No user is trusted more
than any another. Istead of a single trusted third party validating transactions through their
servers with authority (single vote), a P2P network of computers running the blockchain protocol
validates transactions by consensus (majority vote)”. VOSHMGIR. Shermin. Token Economy. Ob.
Cit. Pg. 56
311 A impressão de que a riqueza armazenada na forma de criptomoeda seja inacessível
à fiscalização e regulamentação estatal não é correta, na medida que o Estado dispõe de
instrumentos para aferir a capacidade de geração e consumo de riqueza de cada pessoa. A
Receita Federal, por exemplo, exige que toda a riqueza armazenada em criptomoedas seja
devidamente declarada no Imposto de Renda do contribuinte. Assim, fica possível realizar
“cruzamento” de informações.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 295


Ripple – Litecoin – Bitcoin – Ethereum - Namecoin

Há forte caráter especulativo em torno das criptomoedas, já


que nenhuma delas pode ainda ser considerada ampla e irrestrita-
mente utilizada. Vai algum tempo até que se possa pagar por um
sanduíche, por uma corrida de taxi ou por um ingresso de cinema
com uma criptomoeda, mas quem investe nestes ativos crê (em
maior ou menor grau) que esta época está para chegar.
Enquanto isso, grupos cada vez maiores de pessoas físicas e
jurídicas destinam parte de sua poupança para investir em cripto-
moedas. Em virtude disso, formou-se também um mercado de cor-
retoras destes criptoativos, que funcionam de modo semelhante às
corretoras de valores mobiliários.
A Lei n. 14.478, de 21 de Dezembro de 2022, foi editada com o
objetivo de, nos seus próprios termos, estabelecer “diretrizes a se-
rem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na re-
gulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais” (art. 1º).
A preocupação central do texto é, inegavelmente, disciplinar
uma atividade de crescente exercício e que, em regra, envolve a
captação de recursos financeiros de terceiros (poupança popular),
o que, por óbvio, justifica especial atenção regulatória.

296 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Vale atentar, de imediato, para a definição de ativos virtuais
estabelecida no art. 3º da Lei. Há três aspectos fundamentais nesta
definição, que são, respectivamente, a natureza incorpórea, a livre
negociabilidade e a conversibilidade destes ativos.
A natureza incorpórea dos ativos virtuais é mencionada, na
definição do art. 3º, quando o mesmo os trata como “representação
digital de valor”, enquanto sua essência de livre negociabilidade é
referida na expressão “negociável e transferível por meio eletrôni-
co” e, por fim, sua conversibilidade é caracterização pela destinação
a “pagamentos ou investimentos”, o que significa que ativo virtual
pode ser imediatamente convertido em bens, serviços ou investi-
mento.
Ao mesmo tempo, preocupa-se o art. 3º em afastar, por restri-
ção legalmente expressa, ativos como a moeda - eletrônica e física
- nacional ou estrangeira (referência de valor e troca de emissão es-
tatal), ativos referentes a programas de recompensas ou fidelidade,
além de ativos cuja regulamentação já esteja sob a competência
da Comissão de Valores Mobiliários ou do Banco Central do Brasil.
Definido quais são os ativos virtuais suscetíveis à regulação
da Lei 14.478/22, o mesmo texto estabelece ainda, em seu art. 5º,
o que se considera prestadoras de serviços que tenham por objeto
os ativos virtuais supra referidos. São pessoas juridicas – societárias
ou não – cuja atividade envolva, além dos ativos virtuais, a operação
com recursos captados de terceiros.
A Lei n. 14. 478/22 não se aplica, portanto, a pessoas jurídi-
cas cujas atividades envolvam ativos virtuais, mas sejam realizadas
apenas com capital próprio. Nítida, neste ponto, a justificável preo-
cupação com a regulação das operações que envolvam captação
do recurso de terceiros (poupança popular) para investimentos, de
forma análoga ao que se tem no caso de bancos comerciais e so-
ciedades corretoras de valores mobiliários.
Da mesma forma, a pessoa física ou jurídica que deseja alocar
seus recursos financeiros acumulados (poupança) em ativos virtuais
tem, reconhecido na própria Lei n. 14.478/22, o direito de fazê-lo e,

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 297


desde que se valha apenas de seus próprios recursos financeiros,
não se sujeita às exigências regulatórias ora tratadas.
Vale lembrar, porém, que o mesmo não se aplica a questões
tributárias, já que os ativos virtuais integram o patrimônio da pessoa
física ou jurídica e, como tal, devem ser declarados, para fins de re-
colhimento dos tributos aplicáveis.
Ainda da definição de prestadoras de serviços de ativos vir-
tuais extrai-se que elas realizam, para assim serem definidas, cus-
tódia, administração e tansferência de ativos virtuais (art. 3º), bem
como a troca destes por moeda (nacional ou estrangeira) ou por
outros ativos virtuais.
Com já salientado, pesssoas jurídicas que operem, em nome
próprio ou de seus clientes, com recursos captados destes últimos
são, por regra, objeto de particular atenção por parte da legislação,
dado que suas operações envolvem nítida separação entre o titular
do capital e o tomador de decisões sobre este capital.
Por este motivo a Lei n. 14478/22 destina, às prestadoras de
serviços de ativos virtuais, a mesma restrição ao princípio da livre
criação já fixada para outras pessoas jurídicas que operam com a
captação de poupança popular, com os já citados bancos e corre-
toras de valores mobiliários.
Isto porque exige que as prestadoras de serviços de ativos
virtuais tenham específica e expressa autorização, dada pelo Po-
der Executivo Federal, para realizar suas operações, assim como
bancos e corretoras de valores mobiliários precisam de autorização
análoga, conferida pelo Banco Central do Brasil.
Esta corretagem de ativos virtuais já encontra, tanto no Bra-
sil quanto no exterior, diferentes agentes (como os indicados abai-
xo), os quais oferecem serviços com os definidos em pela Lei n.
14.478/22 e passam, com a edição desta última, a sujeitar-se aos
seus dispositivos.

298 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Em complemento ao poder de autorização acima citado, a Lei
n 14.478/22 prevê, para o Poder Executivo Federal, a prerrogativa de
definir qual entidade estatal desempenhará este poder registrário
das prestadoras de serviços de ativos virtuais.
Além disso, esta entidade indicada por ato do Poder Executivo
terá, com se extrai do texto da Lei n. 14478/22, poderes análogos ao
que tem a CVM no mercado de valores mobilários, quais sejam o
de regulamentar, fiscalizar, sancionar e fomentar além, claro, do já
citada competência registrária.

Corretoras de criptomoedas

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 299


Quatro documentários para entender como funciona a
bitcoin.
Exame.com. 2018. Disponível em: https://exame.com/mercados/4-documentarios-para-
entender-como-funciona-a-bitcoin/

1 – Banking on Bitcoin
Ano: 2017
Direção: Christopher Cannucciari
Duração: 83min
Disponibilizado na Netflix recentemente, este documentário retrata a criação da bitcoin a
partir de entrevistas com jornalistas,entusiastas e especialistas que acompanharam
episódios marcantes envolvendo a moeda. Também discute o futuro e a possibilidade da
bitcoin reduzir o poder dos bancos centrais.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=tmxqlSevtkQ?rel=0%5D

2 – Bitcoin: The End of Money (as we know it)


Ano: 2015
Direção: Torsten Hoffmann
Duração: 60min
Como o próprio título sugere, neste documentário, a bitcoin é a apresentada como o
instrumento que deve mudar a forma como lidamos com o dinheiro. A obra aborda algumas
fragilidades do sistema financeiro e explica brevemente a maneira como as criptmoedas
são criadas. Está disponível em plataformas como Vimeo e Youtube.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=lUF6klWuB38?rel=0%5D

3 – The Rise and Rise of Bitcoin


Ano: 2014
Direção: Nicholas Mross
Duração: 95min
Conta a história de Daniel, um programador de computação de Pittsburgh (EUA) que muda
sua rotina após descobrir as moedas digitais. Enquanto trata da vida do personagem — que
divide o tempo entre o trabalho, os filhos e as criptmoedas –, o documentário aborda a
história, o sobe-desce dos preços e os desafios da bitcoin no futuro. Está disponível em
plataformas como Vimeo.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=MDtWWc-zBKI?rel=0%5D

4 – The Blockchain and US


Ano: 2017
Direção: Manuel Stagars
Duração: 31min
O foco da obra é o blockchain, o mecanismo por trás da bitcoin que permite o registro e
a comprovação de cada transação envolvendo a moeda. Discute outros possíveis usos
para a tecnologia, a partir de entrevistas com especialistas em softwares, consultores
e empresários de países como Estados Unidos, Canadá, Suíça, Inglaterra e Austrália.
Disponível no Youtube.
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=2iF73cybTBs?rel=0%5D

300 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


3 - Disrupção digital e novas formas de captação
pública de recursos: Crowdfunding e Initial Coin Offering

3.1 – Crowdfunding: captação coletiva de recursos


através de plataformas digitais

A captação de recursos financeiros para viabilização de um


projeto ou atividade econômica obedece a dois modelos funda-
mentais, já abordados no Capítulo III. São eles o mercado financeiro
ou o mercado de valores mobiliários.
Ambos são modelos centralizados de geração prévia de con-
fiança, já que estão amparados, no primeiro caso, sobre a credibili-
dade dos bancos e demais entidades fornecedoras de crédito, bem
como na instituição estatal que funciona como reguladora e fiscali-
zadora destes agentes, o Banco Central do Brasil.
No mercado de valores mobiliários, a confiabilidade está ba-
seada na performance das instituições intermediárias, as bolsas
de valores e corretoras, que canalizam o dinheiro investido por ter-
ceiros para dentro do capital das companhias. Há, também aqui, o
regulamento e fiscalização estatal exercido, basicamente, pela Co-
missão de Valores Mobiliários.
Com a prevalência da internet não apenas como veículo de
circulação e armazenamento de informações, mas também como
instrumento de troca e alocação de riqueza, surgiram operações
financeiras destinadas a viabilizar a captação pulverizada de dinhei-
ro fora dos acima apontados sistemas tradicionais de fornecimento
de crédito (mercado financeiro) ou de captação pública de recursos
(mercado de valores mobiliários)312.

312 A disrupção provocada por instrumentos de captação coletiva de recursos financeiros


como crowdfunding ou initial coin offering é apenas uma das consequências do uso de novas
tecnologias em relação ao sistema financeiro tradicional. “Hoje, o sistema financeiro pode
conciliar as necessidades de tomadores e emprestadores, lidar com informações assimétricas
e prestar serviços de pagamento convenientes sem recorrer às atividades bancárias”. Mc Millan.
Jonathan. O fim dos bancos: Moeda, crédito e a revolução digital. Ed. Portfolio-penguin. São
Paulo. 2018. Pg. 122.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 301


A captação pulverizada do capital de terceiros, para a viabili-
zação de um projeto ou atividade econômica, pode ser caracteriza-
da a partir da multiplicidade de investidores e, em regra, contribui-
ções percentualmente menores de cada um deles.
Os responsáveis pelo empreendimento visam financiá-lo a
partir de um “convite” divulgado a um número muitas vezes des-
conhecido de investidores, dos quais se espera adesão em massa,
mas não necessariamente robusta, sob o aspecto financeiro. Con-
tribuições financeiramente pequenas, de um número relativamente
grande de investidores, costuma ser o objetivo.
O termo Crowdfunding (traduzível como “financiamento coleti-
vo” ou, como prefere a CVM, “investimento participativo”) surgiu e se
popularizou, especialmente a partir da segunda década do Século
XXI, para designar operações destinadas à captação coletiva e pul-
verizada de recursos financeiros de terceiros, através de platafor-
mas digitais, para aplicação em uma finalidade específica, apontada
pelos realizadores da captação.
A destinação dos recursos financeiros captados diretamente
da contribuição coletiva, voluntária - e, em regra, pulverizada – des-
tes investidores, através das plataformas digitais, varia enormemen-
te, indo desde objetivos humanitários até o financiamento de ativi-
dades científicas, obras artísticas (como filmes, gravações musicais
e peças de teatro) e mesmo projetos de natureza empresarial.
Há os casos nos quais os investidores fazem a contribuição a
título de simples doação de recursos, ou seja, sem esperar nenhu-
ma contrapartida por parte dos responsáveis pela captação, exceto
a obrigação de destinar os valores captados para a finalidade apon-
tada.
O objetivo aqui é somente contribuir para a efetivação do ob-
jetivo divulgado pelos realizadores da captação. É, por exemplo,
o caso de pessoas que contribuem, em plataformas digitais, para
campanhas humanitárias. Trata-se, na hipótese, de captação de do-
ações coletivas feitas, através destas plataformas digitais, por pes-

302 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


soas que acreditam e querem apenas contribuir para aquele obje-
tivo.
Há ainda os casos em que a contrapartida conferida aos con-
tribuintes decorre da natureza da atividade financiada pela capta-
ção digital. É um modelo baseado na ideia de prêmios não monetá-
rios pela contribuição realizada, os quais decorrem da própria ativi-
dade financiada, normalmente um projeto artístico ou recreativo.
Tais prêmios se consubstanciam em direitos como ingressos para
espetáculos, recebimento de brindes ou gravações exclusivas, di-
reito a participação em pré-vendas etc.

O grupo inglês de rock progressivo Marillion é considerado o pioneiro na adoção do


crowdfunding como forma de captação coletiva de recursos financeiros, para a implementação
de um projeto musical específico. Em 1999, o grupo se utilizou do mecanismo para financiar
sua turnê e, diante do sucesso, passou a adotá-lo também para viabilizar a produção de seus
álbuns, a partir de então. Os investidores são remunerados na forma de ingressos, cópias dos
álbuns e outros.

A captação coletiva e pulverizada de recursos financeiros, re-


alizada diretamente através de plataformas digitais, tornou-se tam-
bém um útil instrumento de financiamento para atividades ou pro-
jetos de natureza estritamente empresarial.
Tal uso do crowfunding revela-se particularmente eficiente
para a viabilização econômica de sociedades empresárias “nascen-
tes”, voltadas para o desenvolvimento de tecnologias evolutivas ou
disruptivas (as chamadas startups) e, também, para aquelas ainda
não suficientemente estruturadas, do ponto de vista jurídico, geren-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 303


cial ou econômico, para abrirem seu capital em bolsa de valores ou
mercado de balcão.
O objetivo é obter o financiamento desejado sem os custos
inerentes ao cumprimento das obrigações regulamentares para
captação em bolsa de valores e, também, sem a necessidade de
atender às exigências do sistema bancário de fornecimento de cré-
dito, especialmente no que tange aos juros e garantias exigidas.
Nesta modalidade de crowdfunding são conferidos aos inves-
tidores, como contrapartida ao valor investido, determinados direi-
tos, de natureza estritamente financeira, em relação aos destinatá-
rios finais do investimento realizado. Tais direitos são estruturados a
partir da participação nos lucros decorrentes do projeto financiado
ou da devolução futura, acrescida de juros, do valor investido.
Os modelos de crowdfunding nos quais a utilização de pla-
taformas digitais visa captação coletiva e pulverizada de recursos
financeiros para viabilização de projetos ou atividades empresariais
é objeto de regulação específica por parte da Comissão de Valores
Mobiliários, que o fez principalmente a partir da Instrução Normati-
va n. 588/2017, hoje revogada pela Resolução n. 88, de 27 de Abril
de 2022. Tais modelos são chamados, por referida norma, de “crow-
dfunding de investimento”. 313
Nestes casos, considerados captação pública de recursos fi-
nanceiros através da emissão de valores mobiliários314, a CVM dedi-

313 Os modelos de crowdfunding baseados na inexistência de recompensa individual para


o contribuinte ou de prêmios não monetários estão fora do alcance da regulação específica
oriunda da Comissão de Valores Mobiliários (art. 1º parágrafo. 3º da Resolução n. 88/2022
CVM).
314 Nas palavras da própria CVM: “No crowdfunding de investimento, em verdade, as empresas
utilizam a internet para captar recursos dos investidores, e emitem em troca contratos ou títulos
que conferem a eles direito de crédito ou de participação no negócio, sob o qual o investidor
não tem qualquer gestão, ou seja, a sua expectativa de retorno depende exclusivamente dos
esforços do empreendedor.
Isso significa dizer que, quando uma empresa capta recursos utilizando-se do crowdfunding
de investimento, ela na realidade está emitindo títulos que se enquadram no conceito de
valor mobiliário. Portanto, as ofertas públicas realizadas nessa modalidade estão sujeitas
à regulamentação e à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários”. Disponível em:
www.investidor.gov.br/portaldoinvestidor/export/sites/portaldoinvestidor/publicacao/
Cadernos/CVM-Caderno-12.pdf.

304 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


ca-se a regular o assunto para, em essência, conciliar o devido fun-
cionamento de um diferente modelo de financiamento empresarial
com a necessidade de tutela das várias formas de captação pública
de capital.
A Resolução n. 88/2022 CVM exige que todas as plataformas
digitais interessadas em servir de intermediárias ao crowdfunding
de investimento sejam titulares de autorização e registros específi-
cos (cujos requisitos estão no art. 13 de referida Resolução), a serem
realizados pela própria CVM.
Tais plataformas digitais (chamadas pela Resolução n. 88/2022
de “plataformas eletrônicas de investimento participativo”) terão au-
torização para realizar ofertas públicas de valores mobiliários ape-
nas nas condições estipuladas pela Instrução Normativa ora refe-
rida e em “ambiente virtual”, o que comporta sites, programas ou
aplicativos.
Tem-se, portanto, que o texto da Resolução n. 88/2022 opta
por eximir os destinatários finais dos valores investidos das obri-
gações exigidas para realização de oferta pública de valores mo-
biliários, mas, ao mesmo tempo, estabelece tal dever de registro
para as plataformas digitais intermediárias. Configura-se assim, no
crowdfunding de investimento, um modelo centralizado de geração
prévia de confiança.
A Res. n. 88/2022 CVM dispõe expressamente sobre limites
máximos de valor e de tempo para uso desta forma de captação (art.
3º), bem como estabelece valor máximo de faturamento bruto anu-
al das sociedades empresárias destinatárias finais do investimento
(art. 2º), de modo a permitir o acesso a este modelo de captação
apenas a atividades nascentes ou de menor porte econômico.
Há também a exigência de registro dos potenciais investido-
res, com o objetivo de evitar o acesso de eventuais concorrentes ou
espiões industriais às informações divulgadas, via plataforma digi-
tal, sobre os empreendimentos disponíveis para investimento.
Ainda sobre os potenciais investidores, a Res. 88/2022 CVM
permite que eles componham grupos (denominados “sindicatos de

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 305


investimento participativo”) para investir em conjunto, via crowdfun-
ding de investimento, sob a orientação de um “investidor líder”.
Este “investidor líder”, por sua vez, é definido pelo art. 46 da
Res. CVM n. 88/2022. Trata-se de pessoa física ou jurídica conside-
rada experiente e bem informada sobre os diferentes destinatários
finais de investimentos disponíveis.
Ele deverá expor, de maneira fundamentada, as razões de sua
escolha de investimento em determinada sociedade empresária,
de forma a reduzir a assimetria informacional entre outros possíveis
investidores e os emissores de valores mobiliários.
Este “investidor líder”, pessoa com experiência comprovada
no mercado de captação, pode também atuar como consultor para
sociedades empresárias interessadas nesta modalidade de emis-
são.
O objetivo é zelar para que o grau de risco do investimento
seja o mesmo do mercado de valores mobiliários tradicional, ou
seja: aquele inerente ao possível insucesso de toda e qualquer ati-
vidade empresarial. Neste sentido, o objetivo da regulação é zelar
para que o risco não seja vinculado à falta de credibilidade dos in-
termediários ou dos destinatários finais dos recursos.

3.2 Initial coin offering (oferta inicial de moeda) ou token


sales (vendas de tokens): captação coletiva de recursos
financeiros via blockchain

Com o desenvolvimento de sistemas descentralizados de


geração prévia de confiança, como o blockchain, percebeu-se que
eles também podem ser usados para captação coletiva de recursos
financeiros, sem a necessidade de intermediários, como as bolsas
de valores, para finalidades econômicas.
Por ser um modelo descentralizado e sem regulamentação
estatal definida, trata-se de um investimento de alto grau de vo-
latilidade e risco, mas que vem sendo usado principalmente para
financiamento de empreendimentos econômicos ainda nascentes

306 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


(as chamadas startups) relacionados ao desenvolvimento de tecno-
logias evolutivas ou disruptivas.
O projeto ou atividade econômica para o qual se deseja captar
recursos financeiros é descrito em um documento digital conheci-
do como White Paper315. Neste documento, que circula pela inter-
net, o responsável pelo projeto tenta convencer investidores tanto
da viabilidade e potencial de lucro do empreendimento, quanto de
sua capacidade pessoal para implementá-lo de maneira eficiente.
Após a divulgação há, via plataforma blockchain ou similar,
a chamada aos interessados em contribuir financeiramente para o
empreendimento, a qual se efetiva não com a emissão de valores
mobiliários (como em bolsa de valores), mas de tokens, que, como
foi antes mencionado, conferem aos seus titulares, de forma cripto-
grafada e no blockchain, determinados direitos em relação ao des-
tinatário do investimento.
Há significativo grau de semelhança entre o crowdfunding de
investimento, analisado no item anterior, e a operação financeira ora
tratada, pois ambos são formas de captação pulverizada de recur-
sos financeiros, através da internet, para viabilização de projetos ou
atividades empresariais. Há, porém, relevantes diferenças entre es-
tas operações.
No crowdfunding financeiro a captação de recursos é reali-
zada com o uso de intermediários, que são as plataformas digitais
através das quais se realiza a captação. Estas plataformas digitais
atuam, como visto, como terceiros confiáveis, que sustentam a cre-
dibilidade das operações.
Além disso, os contribuintes têm assegurada a contrapartida
ao seu investimento através da emissão, em favor deles, de valores
mobiliários que lhes conferem, em relação ao destinatário dos re-
cursos investidos, um direito como participação nos lucros do em-

315 O termo white paper é inspirado no título do texto, atribuído a Satoshi Nakamoto, no qual
são descritos os objetivos e modo de funcionamento do blockchain criado para o bitcoin.
Entretanto, os white papers aqui mencionados são menos relacionados à explanação sobre
a tecnologia usada na operação e mais orientados para a demonstração de sua viabilidade
econômica.

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preendimento financiado ou devolução, como juros, da contribui-
ção feita.
Já na operação ora abordada, o investidor tem sua contrapar-
tida formalizada em um token, o qual lhe confere um determinado
direito, em relação ao captador dos recursos, fundado e garantido
em plataforma descentralizada de confiança, segundo a tecnologia
blockchain.
Assim, os interessados em participar do empreendimento e
nele investir adquirem tais tokens, os quais conferem a eles um ou
mais direitos, lastreados na blockchain, em relação ao responsável
pelo projeto em desenvolvimento.
Tais direitos podem ser de uma determinada quantidade da
criptomoeda que será criada e circulará apenas naquela platafor-
ma (daí o termo oferta inicial de moeda), direito sobre os lucros do
empreendimento a ser implementado ou mesmo direito ao recebi-
mento posterior, com juros, do capital investido, em formato próxi-
mo ao de um empréstimo de dinheiro.
É a esse tipo de operação de captação de recursos financeiros
que se denomina ICO (initial coin offering), algo como oferta inicial de
moeda, em paralelo com o IPO (initial public offering) já tradicional
no mercado de valores mobiliários316.
Entretanto, é possível constatar que o ICO guarda semelhan-
ças não só como as ofertas públicas iniciais de ações, mas também
com o mercado futuro de commodities, por exemplo.
O ponto de similitude básica com o mercado futuro de com-
modities está no fato de se investir em um empreendimento que
ainda não está, de fato, em funcionamento.
No mercado futuro de commodities aplica-se dinheiro em sa-
fras que ainda serão cultivadas. Já no ICO há o investimento em
uma empresa nascente, cujo projeto, apresentado no White Paper,
pode ser ainda só uma ideia.
316 O termo ICO (initial coin offering) não é considerado o mais adequado para nomear a
operação ora descrita. Mais recentemente, termos como ITO (initial token offering) - algo como
“oferta inicial de tokens” - ou, simplesmente token sales (vendas de tokens) têm ganhado
adesões. VOSHMGIR. Shermin. Token Economy. Ob. Cit. Pg. 198.

308 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Com as ofertas públicas iniciais de ações (IPO) o ICO tem em
comum o fato de oferecer a uma coletividade de potenciais investi-
dores o direito de pagar para, de alguma forma, participar do possí-
vel futuro sucesso financeiro de um empreendimento.
No IPO esta participação se corporifica em ações e na forma
de direitos de sócio. Já no ICO, o token oferecido pode, entre outros,
dar direito ao uso de algum aplicativo que esteja em desenvolvi-
mento pelo captador do dinheiro, ao recebimento futuro de alguma
criptomoeda ou outro tipo de ativos, ao reembolso do capital in-
vestido acrescido de juros ou mesmo à participação nos lucros do
projeto financiado.
Embora amparados pelo sistema blockchain de geração pré-
via e descentralizada de confiança, há grande preocupação das ins-
tituições reguladoras do mercado de valores mobiliários e financ
eiro em relação ao grau de confiabilidade destes projetos, de sua
viabilidade econômica e, principalmente, do perfil do responsável
pela captação daqueles recursos via blockchain.
Para a Comissão de Valores Mobiliários, se esses ativos vir-
tuais oferecidos por meio de tokens se encaixarem na definição de
valores mobiliários, a operação de ICO será considerada captação
pública de recursos, o que obriga os responsáveis pela negociação
ao atendimento das exigências regulamentares emitidas pela pró-
pria CVM.
Além da inexistência de regulação própria, bem como da falta
de atuação de terceiros confiáveis - como se dá no mercado futuro
ou no IPO - há ainda um outro risco para quem decida investir di-
nheiro na forma de ICO. Trata-se da potencialmente maior dificul-
dade em recuperar os valores investidos, em caso de descumpri-
mento voluntário das obrigações assumidas pelos emissores dos
tokens.
Isso porque não há definição prévia sobre quais as autorida-
des jurisdicionais são competentes para apurar eventuais descum-
primentos das prestações assumidas em uma operação financeira
como a aqui tratada.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 309


Além disso, as próprias regras de contratação são concebidas
conforme a plataforma descentralizada adotada para a negociação,
inexistindo, assim, um arcabouço normativo estatal aplicável como
solução para eventuais divergências.
A credibilidade da operação passa, portanto, pelo sistema blo-
ckchain de geração prévia e descentralizada de confiança e, princi-
palmente, pelo grau de seriedade do conteúdo e dos responsáveis
pelo projeto apresentado317.

317 Criptomoedas amparadas em blockchain, como é o caso do bitcoin, apresentam, em


relação à generalidade dos projetos financiados através destas ICO’s, maior confiabilidade,
pois o ativo ao qual se referem já está efetivamente criado e em uso.

310 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Uma aplicação crescente das chamadas token sales está em clubes de futebol nacionais e
estrangeiros.

Com o uso deste dispositivo, os adquirentes destes chamados fan tokens tornam-se titulares
de direitos diversos em relação ao clube emitente.

Estes direitos, devidamente lastreados em seu respectivo blockchain, vão desde escolha
de músicas ou cores de uniformes específicos até a participação nos lucros gerados pela
negociação de direitos contratuais sobre atletas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 311


312 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo IX

Deliberações societárias e o direito de voto dos sócios

1 – Deliberações societárias: a soberania da vontade dos


sócios em relação aos atos da sociedade

Essencialmente considerado, todo modelo societário é, em


síntese, um grupo de pessoas – os sócios – que agregam um con-
junto de bens e recursos financeiros – capital social – para viabilizar
o exercício de uma determinada atividade econômica – objeto so-
cial – cuja finalidade essencial é gerar lucro, o qual será partilhado
entre os participantes.
Deste modo, o poder de decidir sobre a forma pela qual o pa-
trimônio da sociedade será empregado na viabilização do objeto
social e do almejado lucro há de ser, em última análise, conferido
àqueles que contribuíram para a formação deste conjunto patrimo-
nial e integram, como partes, o empreendimento societário.
Consagra-se, portanto, a premissa segundo a qual a vonta-
de dos sócios é, respeitadas as regras legais pertinentes, soberana
para fixar os atos a serem ou não praticados pela pessoa jurídica.
Há, porém, alguns elementos relevantes a serem considerados a
partir desta premissa.
O primeiro deles está na constatação de que a sociedade é
– salvo raríssimas exceções318 - composta por uma pluralidade de
pessoas físicas ou jurídicas. Assim, a vontade dos sócios, em rela-
ção aos atos a serem praticados pela sociedade, não é, sempre,
exatamente a mesma, sendo quase certo presumir que, em geral,
haverá divergência, entre eles, sobre as matérias sujeitas à sua de-
liberação.
318 Com a admissão, pelo Código Civil (art. 1.052, alterado pela Lei n. 13. 874/19) da sociedade
limitada unipessoal como regra geral, é provável que estas exceções se tornem, com o
tempo, menos raras.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 313


A segunda relevante variável é a de que se faz necessário
estabelecer um procedimento adequado para permitir aos sócios
manifestarem, em iguais condições, seu desejo sobre os atos da so-
ciedade. Em outras palavras, a lei deve disciplinar um procedimento
para regular a forma de expressão, pelos sócios, de sua vontade
sobre os atos da pessoa jurídica.
A primeira destas variáveis é solucionada pela regra da deli-
beração por maioria. Assim, a lei não exige, salvo excepcionais situ-
ações, que todos os sócios aprovem um determinado ato, para que
ele seja considerado apto a ser implementado pela pessoa jurídica.
Ao contrário, a regra é a da prevalência da vontade da maioria
sobre a da minoria, em consonância com o que é predominante em
se tratando de pluraridade de pessoas e interesses regulados por
regras democráticas.
Complementa o aspecto da maioria nas deliberações sociais
o chamado princípio da proporcionalidade. De prevalência na ge-
neralidade das sociedades empresárias, este significa, em síntese,
que as deliberações são tomadas não com base no número de só-
cios que votem num ou noutro sentido, mas a partir do percentual
que cada um deles detém sobre o capital social.
Portanto, a manifestação de vontade do sócio é, nas delibe-
rações da sociedade, diretamente proporcional ao seu percentual
sobre o capital social. Quanto maior o número de quotas ou ações
de um sócio, proporcionalmente será maior sua ingerência sobre as
deliberações da sociedade (art. 1.010 do Código Civil e art. 110 da Lei
n. 6.404/76). As decisões dos sócios sobre a sociedade se efetivam
por maioria de capital, não de pessoas.

314 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Além do específico caso do voto múltiplo (art. 141 da Lei n. 6.404/76)319, a relação
1 (uma) ação votante = 1 (um) voto nas deliberações da Assembleia Geral de
Acionistas (art. 110 da Lei n. 6.404/76) foi relativizada com a admissão, pelo texto
da Lei n. 14.195/2021, do chamado voto plural.

Segundo o art. 110-A da Lei n. 6.404/76 (inserido pela Lei n. 14.195/2021) pode ser
criada, por disposição estatutária, uma classe de ações ordinárias ou preferenciais
em relação à qual se confira até o número de 10 (dez) votos por ação.

O objetivo deste instituto é permitir maior relevância ao voto destes acionistas, de


modo que acarretem, ao menos em tese, maior ingerência deles em relação à
aprovação ou não de certas deliberações na companhia.

Ressalve-se, entretanto, que a criação desta classe de ações dotadas de voto plural
somente é possível, nas companhias abertas, se concomitante à sua constituição
ou abertura de capital. Já nas companhias fechadas admite-se que, por alteração
estatutária, ações com voto plural sejam criadas a qualquer tempo.

Além disso, as ações com voto plural estão sujeitas tanto a limitações temporais
quanto materiais, já que este atributo específico somente vigora pelo prazo máximo
– mas prorrogável - de 7 (sete) anos, além de não incidir em deliberações sobre
determinadas matérias, as quais estão enumeradas pelo art. 110-A da Lei n.
6.404/76 (com redação dada pela Lei n. 14.195/2021.

O segundo aspecto relevante acima salientado, referente ao


procedimento regulador do modo pelo qual os sócios expressarão
sua vontade em relação à sociedade, é solucionado com a previ-
são, tanto para as companhias quanto para as sociedades limitadas,
de um órgão especificamente voltado para a finalidade essencial
de permitir que todos os sócios manifestem sua vontade em rela-

319 O voto múltiplo é um instrumento destinado a permitir que uma pessoa ou grupo minoritário
possa, se souber se organizar, eleger um número de Conselheiros de Administração superior
ao que conseguiria, se aplicada a regra geral de proporcionalidade.
Previsto somente para a eleição dos Conselheiros de Administração da companhia, este instituto
confere a cada ação o número de votos correspondente ao número de Conselheiros a serem
eleitos na ocasião.
Assim se, por exemplo, serão escolhidos, em uma dada Assembleia Geral de Acionistas,
03 (três) novos Conselheiros de Administração, cada ação votante terá, naquela específica
votação, 03 (três) votos, podendo o acionista concentrá-los em um único candidato ou
distribuí-lo entre diferentes postulantes.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 315


ção aos atos a serem praticados pela sociedade. Este órgão é, nas
companhias, a Assembleia Geral de Acionistas e, nas sociedades
limitadas, a Assembleia de Sócios ou, alternativamente, a Reunião
de sócios.
São, desta forma, características comuns às sociedades limi-
tadas e anônimas: a soberania da vontade dos sócios como con-
dutora das atividades sociais, a prevalência da vontade da maioria
sobre a minoria dos sócios320, a proporcionalidade entre a vontade
de cada sócio e o seu percentual sobre o capital social e a exis-
tência de um órgão especificamente orientado para a captação da
vontade dos sócios em relação aos atos da sociedade.
Além disso, este órgão deliberativo de uma sociedade – seja
ela anônima ou limitada – tem natureza decisória, ou seja, suas de-
liberações são vinculantes dos demais partícipes da estrutura or-
ganizacional da pessoa jurídica. O órgão deliberativo da sociedade
anônima ou limitada não manifesta opiniões, toma decisões. Deter-
mina, não pede ou sugere.
É ainda ponto comum à estrutura do órgão deliberativo das
sociedades anônimas ou limitadas a previsão, em lei, de uma série
de formalidades inerentes à sua realização, sem as quais será nula
qualquer deliberação ali tomada. Uma Assembleia Geral de Acio-
nistas, Assembleia ou Reunião de sócios somente é válida se aten-
didas integralmente todas as formalidades previstas, para cada um
destes órgãos, pela legislação ou nos atos constitutivos da pessoa
jurídica321.
320 “Trata-se de um negócio jurídico unilateral, formado pela coincidência de vontades
individuais que se fundem para expressar a vontade coletiva. Constitui, com efeito, um
negócio unitário, porque emana de um colégio também unitário. (...).Há uma pluralidade de
manifestações paralelas que caracterizam um concurso de vontades. Não é a deliberação do
conclave um ato plurilateral, porque não há multiplicidade de vontades, mas várias vontades
fusionadas ou unificadas.” CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil – Vol. 13.
Parte Especial: Do Direito da Empresa. Ed. Saraiva. São Paulo. 2006. Pg. 194.
321 É uma regra geral em matéria de direito civil e empresarial aquela segundo a qual há direta
proporcionalidade entre a rigidez formal de um ato e a segurança e credibilidade quanto
aos seus efeitos. Assim, quanto mais seja necessário garantir credibilidade e segurança aos
efeitos de um ato jurídico, maiores tendem a ser as formalidades inerentes à sua validade.
Com as deliberações dos sócios, pode-se perceber nitidamente tal vínculo entre a segurança
jurídica que se precisa ter sobre as deliberações e as várias formalidades estipuladas como

316 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


2 – Deliberações societárias: uma comparação entre sua
concepção teórica e a realidade fática

Em teoria, o órgão deliberativo de uma sociedade é, portanto,


um ambiente no qual os sócios podem manifestar opiniões, fazer
propostas, debater diferentes ideias sobre as atividades e empre-
endimentos a serem efetivados pela sociedade e, principalmente,
manifestarem, em proporcionalidade à sua participação no capital
social, seu direito de voto, o que resultaria na aprovação ou não das
matérias debatidas e propostas322.
Esta concepção é, entretanto, muito distante da realidade atu-
al, especialmente em se tratando das sociedades – companhias ou
não - brasileiras. Diferentes fatores contribuem para esta distância
entre a concepção teórica – para não dizer utópica – de órgão deli-
berativo societário e a realidade dos fatos.
Em primeiro lugar, o princípio da proporcionalidade do voto
faz com que, em sociedades nas quais uma pessoa ou grupo seja
titular de mais da metade do capital social votante, a participação
dos sócios minoritários seja inócua, posto que incapaz de interferir
na aprovação ou não de determinada matéria323.
Em sociedades caracterizadas por tal grau de predominância
de uma pessoa ou grupo sobre o montante do capital social vo-
tante, esta pessoa ou grupo tem poder para decidir sozinho sobre

requisitos para validade das decisões tomadas.


322 Neste sentido as palavras de Waldemar Ferreira, que, sobre a Assembleia Geral de
Acionistas, disse: “Sua função é, se não a de falar em nome dela [da sociedade] ou de lhe
dizer a vontade, a de traçar o roteiro de seu destino. Para a consecução desse alvo, ela é
soberana; livremente toma as decisões condizentes com o interesse social; e sua decisão de
impõe, definitivamente, a quantos, a qualquer título, se dediquem ao seu serviço. Merece, por
isso, o qualificador de órgão supremo da sociedade, como tal soberano, título com que a têm
honrado algumas leis.” FERREIRA. Waldemar. Tratado de Direito Comercial. Vol. IV. Ed. Saraiva.
São Paulo. 1961. Pg. 364.
323 “Não significa a assembleia um cenário da democracia, porquanto as votações são
comandadas, na maioria das vezes, por influência de grupos, conchavos e poder político.
Em verdade, em muitos casos, não passa de um ato meramente formal, já que um único
acionista pode determinar o rumo das deliberações”. RIZZARDO. Arnaldo. Direito de Empresa.
Ed. Forense. Rio de Janeiro. 2007. Pg. 450.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 317


quase todas as questões referentes à sociedade, e, assim, aos mi-
noritários não resta razão prática para participar das deliberações324.
Por outro lado, a participação no órgão deliberativo represen-
ta custos de diferentes ordens, se considerada uma sociedade –
especialmente uma companhia – composta por sócios que prova-
velmente residem em diferentes lugares, muitas vezes distantes do
local no qual se realiza a deliberação325.
Estes gastos incluem também – e principalmente - os custos
de informação sobre o objeto das deliberações, pois que de pou-
co adianta o sócio se dispor a investir seu tempo e seu dinheiro na
viabilização de sua participação na deliberação sem, por outro lado,
estar devidamente informado sobre os elementos que o levariam a
optar pelo ‘sim’ ou ‘não’ em cada um dos assuntos a serem apresen-
tados na ocasião326.
A proporcionalidade do direito de voto, somada à constância
do sócio ou grupo majoritário – hegemônico nas deliberações – e
os custos financeiros, de tempo e de informação acabam, assim,
por provocar um esvaziamento do órgão deliberativo das socieda-
des, que, na prática, hoje pouco interfere nos rumos dos negócios
sociais.
Há, porém, alguns aspectos - de ordem normativa ou fática –
que ao menos buscam amenizar estes fatores de enfraquecimento
dos órgãos deliberativos no contexto das sociedades brasileiras.

324 “Ao longo dos últimos anos, a assembleia geral vem, na prática, perdendo espaço como
principal centro decisório da companhia, tendo em vista o absenteísmo dos acionistas
minoritários, uma vez que, em geral, apenas os controladores comparecem ao conclave”.
EIZIRIK. Nelson. A Lei das S.A Comentada – Vol. II. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2011. Pg. 17.
325 As deliberações à distância, semipresenciais ou digitais nitidamente reduzem, como se
mostrará adiante, ainda neste capítulo, tais custos de participação.
326 “A chamada ‘apatia racional’ descreve o comportamento dos acionistas quando o custo
de manter-se informado e participar nas assembleias gerais é superior ao benefício individual
esperado por tal comportamento. Ou seja, vale mais a pena, do ponto de vista econômico,
manter-se apartado da participação informada nas decisões coletivas do que nelas se envolver”.
EIZIRIK. Nelson. A Lei das S.A Comentada – Vol. II. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2011. Pg. 17.
O custo de se informar sobre os elementos relevantes para uma votação consciente são,
neste caso, maiores do que a capacidade do sócio de influenciar no resultado final da
votação. Assim, ele prefere não arcar com os custos desta informação e se abstém de votar,
enfraquecendo o órgão deliberativo.

318 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Em primeiro lugar, a legislação – tanto o Código Civil quanto a
Lei n. 6.404/76 – estabelece algumas exigências tendentes a tornar
mais relevante o poder dos sócios minoritários.
Neste sentido é possível encontrar, nos citados textos legais,
exigência de quóruns de instalação ou aprovação mais altos que
a regra geral (art. 135 e 221 da Lei n. 6.404/76, art. 1.076 do Código
Civil), direito de votação em separado para a composição dos ou-
tros órgãos societários (art. 161 par. 4º da Lei n. 6.404/76 e art. 1.066
par. 2º do Código Civil), além de prerrogativas como o voto plural
ou múltiplo (art. 110-A e 141 da Lei n. 6.404/76), que flexibilizam, em
determinados casos, o princípio da proporcionalidade do voto nas
deliberações societárias.
A evolução da tecnologia também contribui para a redução
dos custos de participação nas deliberações societárias. Como
abaixo se verá, atualmente o acionista (e mesmo o quotista) pode
exercer seu direito de participação e voto por meio eletrônico ou à
distância, dispensando os sócios do deslocamento antes essencial.
Por outro lado, a consulta às informações necessárias à com-
preensão das matérias a serem deliberadas tornou-se muito mais
ágil e fácil, já que pode ser eletronicamente realizada327. Deste
modo, são reduzidos os custos necessários à obtenção das infor-
mações essenciais à formação de uma fundamentada convicção
sobre as deliberações328.
Voto múltiplo, participação à distância ou por meio eletrônico,
facilidade de consulta às informações sobre as matérias a serem
deliberadas, quoruns qualificados e outras prerrogativas previstas
em lei a favor dos minoritários são, sem dúvida, instrumentos de

327 O art. 133 da Lei n. 6.404/76 enumera, no caso de Assembleias Gerais Ordinárias de
Acionistas, uma série de documentos que devem, na forma ali disciplinada, obrigatoriamente
estar à disposição dos acionistas, para consulta e análise, com antecedência mínima de
um mês para a deliberação. Trata-se, em síntese, de informações sobre os atos de gestão
e a situação patrimonial da companhia, temas sobre os quais deliberarão, na ocasião, os
acionistas.
328 Esta diminuição de custos não se refere, entretanto, à necessidade de, diante das
informações disponíveis, ser capaz de interpretá-las e delas extrair uma opinião fundamentada
sobre como votar nas deliberações.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 319


fortalecimento do órgão deliberativo. Certo é, entretanto, que mes-
mo assim a sua realização não é algo que se possa, ao menos no
presente estágio, ter-se por algo corriqueiro.
Por outro lado, é necessário reconhecer que, apesar destes
vários entraves, há determinadas decisões que devem ser tomadas
exclusivamente pelos sócios. Por isso, tanto o Código Civil (art. 1.071)
quanto a Lei n. 6.404/76 (art. 122) enumeram, em rol exemplificativo,
certas matérias que são de competência privativa do órgão delibe-
rativo, ou seja, somente podem ser validamente decididas direta-
mente pelos sócios.
Conclui-se então que os sócios têm, como já salientado, po-
der para decidir sobre qualquer ato referente à pessoa jurídica por
eles composta (art. 121 da Lei n. 6.404/76), mas apenas nas maté-
rias de competência privativa este poder é indelegável. É dizer: os
sócios podem deliberar sobre qualquer assunto referente à socie-
dade, mas apenas nos casos previstos pelos artigos 122 da Lei n.
6.404/76 e art. 1.071 do Código Civil – além de outros eventualmen-
te previstos nos atos constitutivos - esta deliberação é condição de
validade da decisão.

3 – O órgão deliberativo nas Sociedades Anônimas e nas


Sociedades Limitadas: Assembleia Geral de Acionistas,
Assembleia e Reunião de Sócios

Nas sociedades anônimas (art. 121 a 136 da Lei n. 6.404/76)


a Assembleia Geral de Acionistas é o órgão deliberativo, do qual
todos os acionistas podem participar e – se votantes – deliberar so-
bre os atos a serem praticados pela pessoa jurídica. Sua existência
é essencial tanto nas companhias abertas quanto fechadas, sendo
também, em ambas as modalidades, muito similar as regras proce-
dimentais inerentes à sua validade.
Já o Código Civil estipula, para as Sociedades Limitadas, uma
curiosa dualidade de órgãos deliberativos distintos, os quais po-

320 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dem, como se verá, ser alternativamente adotados. São eles a As-
sembleia de Sócios e a Reunião de Sócios.
É correto desde logo salientar que Assembleia e Reunião de
sócios não são o mesmo instituto. Ambos se prestam à finalidade
essencial de servir como instrumento de captação da vontade dos
sócios quotistas, mas são legalmente regulados de forma distinta.
Também é preciso observar que a Sociedade Limitada deve,
em seu contrato social, deixar expressa qual a opção de órgão deli-
berativo por ela adotada, a qual passará a ser obrigatória para todas
as deliberações daquela pessoa jurídica (art. 1.072 caput do Código
Civil)329.
Assim, feita a previsão contratual de que a sociedade deli-
berará por Assembleia de Sócios, não se poderá admitir – exceto
se houver alteração de tal cláusula do contrato social – que seja
empregada, alternativamente, a Reunião de Sócios como forma de
deliberação, o mesmo valendo para a hipótese inversa.
A distinção entre tais modalidades de órgãos deliberativos –
Assembleia de Sócios e Reunião de Sócios - está exclusivamente
no número e grau de formalidades essenciais à validade de uma e
de outra.
O Código Civil estipula, para a Assembleia de Sócios das so-
ciedades limitadas, uma série de requisitos de validade inerentes
tanto à sua convocação (art. 1.152 par. 3º) quanto instalação (art.
1.074) e deliberação (art. 1.076), de forma muito similar ao que se
tem nas Assembleias Gerais de Acionistas.
Já a Reunião de Sócios não contém qualquer previsão ou exi-
gência referentes à sua forma de convocação ou quórum de instala-
ção. Isto significa que a Reunião de Sócios pode ser convocada por
qualquer meio, sem que isso lhe comprometa a validade, o mesmo
ocorrendo com a sua instalação, que se realiza independentemente
do número de sócios presentes na ocasião330.
329 As sociedades limitadas compostas por mais de 10 (dez) integrantes são obrigadas a
adotar a Assembleia de Sócios como órgão deliberativo (art. 1.072 par. 1º do Código Civil).
330 Neste sentido: LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 6ª. Edição. Ed.Renovar.
Rio de Janeiro. 2005. pg.520.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 321


A Reunião de Sócios tem a mesma competência deliberatória
da Assembleia de Sócios, mas depende, para sua validade, ape-
nas do cumprimento das formalidades legais para deliberação (art.
1.076 do Código Civil), que, como se verá abaixo, prestam-se a aferir
se uma determinada matéria foi ou não aprovada pelos sócios, con-
forme o quórum necessário.
Assim, enquanto a Assembleia Geral de Acionistas e a Assem-
bleia de Sócios quotistas devem, para sua validade, atender a for-
malidades de convocação, instalação e deliberação, a Reunião de
Sócios está legalmente dispensada das duas primeiras, o que se faz
para tornar sua realização menos rígida, custosa e formal331.
A Lei n. 6.404/76 subdivide a Assembleia Geral de Acionistas
em Ordinária (A.G.O. art. 132 a 134) e Extraordinária (A.G.E, art. 135 e
136), o mesmo ocorrendo, ainda que apenas de forma tácita, para a
Assembleia de Sócios (art. 1.078 do Código Civil).
A razão de ser desta distinção está na constatação de que
existem certas matérias que periodicamente necessitam da apre-
ciação direta pelos sócios. Em razão desta periódica e indispensável
deliberação, tanto a Lei n. 6.404/76 quanto o Código Civil estipulam
que, em determinada época do ano, há que se realizar obrigato-
riamente uma Assembleia Geral de Acionistas – ou de sócios, nas
limitadas – com a finalidade de deliberar sobre estas matérias.
Assim, a Assembleia Geral Ordinária de Acionistas tem que ser
realizada obrigatoriamente uma vez – e somente uma vez – a cada
exercício social, para deliberar sobre um rol de assuntos por lei con-
siderados de indispensável apreciação periódica (art. 131 e 132 da
Lei n. 6.404/76).

331 Imagine-se, a título de exemplo, uma sociedade limitada composta por dois ou
três sócios. Há alguma razão lógica para se estabelecer formalidades indispensáveis à
convocação e instalação de uma deliberação entre eles? Não seria possível, por exemplo,
que eles livremente combinassem de se encontrar para discutirem e votarem os assuntos
de interesse social?
Esta informalidade, por outro lado, gera insegurança jurídica nas hipóteses em que a
sociedade apresenta – ao menos potencialmente – elevado número de sócios, razão pela
qual a convocação deles, para fins de deliberação, torna-se mais rígida e formal, como se vê,
por exemplo, na Lei n. 6.404/76.

322 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A Assembleia Geral Ordinária de Acionistas tem, portanto,
época fixada para sua realização e matérias de obrigatória aprecia-
ção, o mesmo ocorrendo com a Assembleia de Sócios da socieda-
de limitada, que, embora sem ser legalmente classificada em Ordi-
nária e Extraordinária, também conta com a exigência de realização
anual, para a deliberação de assuntos legalmente estabelecidos
(art. 1.078 do Código Civil)332.
Já a Assembleia Geral Extraordinária de Acionistas é aquela
que se realiza quando e quantas vezes forem necessárias decisões
dos sócios sobre as atividades da pessoa jurídica. Não há número,
época de realização ou matérias preestabelecidas, já que não se
pode antever quantas vezes e quais os assuntos que, no decorrer
do exercício social, hão de ser enfrentados e deliberados pelos só-
cios.
Quanto à Assembleia de sócios quotistas, o mesmo se aplica,
pois além daquela de realização anual obrigatória (art. 1.078 do Có-
digo Civil), haverá a convocação deste órgão deliberativo sempre
que, por lei ou pelo contrato, houver a necessidade de manifesta-
ção dos quotistas sobre um ou mais assuntos de interesse da socie-
dade (art. 1.072 do Código Civil)333.

332 Tanto a Lei n. 6.404/76 (art. 132) quanto o Código Civil (art. 1.078) estipulam que esta
periódica e obrigatória assembleia deve se realizar dentro dos quatro primeiros meses
seguintes ao fim do exercício social. Embora não seja obrigatório, o exercício social costuma
coincidir, por regra contratual ou estatutária, com o ano civil, o que leva – principalmente
nas companhias – a uma grande quantidade de Assembleias Gerais Ordinárias de Acionistas
realizadas no início do ano, especialmente na última metade do mês de Abril.
333 O Código Civil é omisso quanto à necessidade de Reunião de Sócios para deliberar,
periodicamente, sobre os assuntos do art. 1.078. Como visto, a diferença entre Assembleia
e Reunião de sócios restringe-se às respectivas formalidades de convocação e instalação,
não alcançando, portanto, sua competência deliberatória e quoruns de aprovação. Portanto,
deve-se concluir que mesmo nas sociedades limitadas que deliberem por Reunião de
Sócios é obrigatória a sua realização anual, para fins de apreciação e votação dos assuntos
elencados pelo art. 1. 078 do Código Civil.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 323


4 – Das formalidades essenciais à deliberação dos
sócios

O órgão deliberativo de uma sociedade – anônima ou limitada


– deve, para que as decisões ali tomadas sejam válidas, ser realiza-
do com o estrito cumprimento de uma série de exigências formais
previstas expressamente pela legislação.
Estas formalidades, todas essenciais à validade da delibera-
ção, se subdividem em três níveis distintos, conforme se refiram à
forma de convocação dos sócios para participação na deliberação,
à válida habilitação para início das deliberações (instalação) e, por
fim, às quantidade de adesões necessárias à aprovação de uma
matéria submetida à apreciação dos sócios, naquele ato.
Fala-se, portanto, em formalidades de convocação, instalação
e deliberação, as quais estão expressamente disciplinadas tanto
para a Assembleia Geral de Acionistas quanto para a Assembleia de
Sócios, nas sociedades limitadas.

4.1 – Formalidades de convocação

A primeira questão referente à convocação da Assembleia


Geral de Acionistas – nas companhias – ou de sócios – nas limita-
das - diz respeito à pessoa ou grupo que pode ou deve convocá-la.
A chamada legitimidade ordinária remete àquela pessoa ou
grupo que tem, entre suas atribuições, a obrigação legal de con-
vocar a assembleia de acionistas ou quotistas, sempre que forem
necessárias ou exigidas suas deliberações.
É importante ressaltar que tanto no caso das sociedades anô-
nimas, quanto das limitadas, o titular da legitimidade ordinária tem a
obrigação - e não a faculdade - de, nas hipóteses previstas pela lei
ou nos atos constitutivos da sociedade, convocar a assembleia de
acionistas ou quotistas.

324 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A legitimidade ordinária de convocação dos sócios para uma
Assembleia Geral de Acionistas é disciplinada pelo art. 123 caput da
Lei n. 6.404/76, que consagra o poder dos estatutos sociais para
conferir tal competência ao Conselho de Administração – se exis-
tente – ou à diretoria, enquanto o Código Civil prevê, para as Assem-
bleias de sócios quotistas, que sua convocação é dever dos admi-
nistradores da sociedade (art. 1.072, caput)334.
Além da legitimidade ordinária há também, tanto no caso da
Assembléia geral de acionistas quanto de quotistas, as hipóteses
de legitimidade extraordinária para convocação.
Fala-se em legitimidade extraordinária para convocação
quando se trata dos casos nos quais uma determinada pessoa ou
grupo tem, por lei, a faculdade – não o dever – de realizar, de ma-
neira expressa e fundamentada, a convocação da assembleia de
acionistas ou quotistas.
Os casos de legitimidade extraordinária de convocação estão
previstos, para as companhias, no parágrafo único do art. 123 da Lei
n. 6.404/76, e, para as sociedades limitadas, no art. 1.073 do Código
Civil. Os textos de ambos os artigos são muito semelhantes, já que
conferem o direito aqui tratado ao Conselho Fiscal, à uma minoria
qualificada do capital social ou a qualquer dos sócios, quando, nes-
te último caso, houver atraso por parte de quem tenha a obrigação
de convocação.
Fundamenta-se o direito do Conselho Fiscal essencialmente
na constatação de que, no exercício de suas atribuições, este órgão
deve, como se verá em capítulo adiante, reportar-se diretamente

334 A decisão sobre a oportunidade da convocação, bem como a realização dos procedimentos
inerentes à sua validade justificam a opção – constante tanto da Lei n. 6.404/76 quanto do
Código Civil - de concentrar na pessoa dos administradores a atribuição legal de convocação
da assembleia de acionistas ou quotistas.
Primeiro porque, na condição de gestores do patrimônio e dos negócios sociais, são eles que
mais diretamente acompanham o andamento das atividades da sociedade, e, por isso, estão,
a princípio, mais informados para decidir quando a assembleia se faz necessária.
Em segundo lugar, os custos de convocação são da pessoa jurídica, e, portanto, nada mais
adequado que os mesmos sejam efetivados por ato de seus representantes legais.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 325


aos sócios, sempre que constatada alguma irregularidade na ges-
tão social.
A previsão de legitimidade extraordinária a um determinado
percentual mínimo do capital social se mostra como um instrumen-
to em favor dos sócios ou grupos minoritários, os quais, se devida-
mente organizados, não ficarão dependentes da vontade dos ad-
ministradores para poderem apresentar propostas de deliberação
à assembleia335.
Por fim, é igualmente acertada a autorização para qualquer
sócio realizar a convocação da assembleia em caso de atraso, por
prazo superior a 60 (sessenta) dias, da pessoa ou grupo que tenha
a legitimidade ordinária de convocação. O objetivo desta previsão é
suprir a negligência dos administradores da sociedade, que estão a
descumprir sua obrigação legal de realizar, a tempo e modo, o pro-
cedimento convocatório, em notório prejuízo às atividades sociais.
A Assembleia Geral de Acionistas ou de sócios quotistas será
convocada por edital publicado pelo menos três vezes em jornal
de grande circulação nas localidades da sede da sociedade e suas
filiais (art. 124 da Lei n. 6.404/76 e art. 1.152 par. 1º e 3º do Código
Civil)336.
O edital de convocação deverá conter, claro, a data, hora e
local da assembleia337, além da chamada Ordem do Dia, que con-
siste na enumeração taxativa das matérias a serem deliberadas na
ocasião.
335 Cumpre esclarecer que esta minoria qualificada de acionistas ou quotistas deve, antes
de ter a prerrogativa de convocação, dirigir, a quem tenha a legitimidade ordinária de
convocação, requerimento fundamentado neste sentido. Somente se tal requerimento,
que deve ser especificado e justificado, não for atendido no prazo de 08 (oito) dias, terão os
requerentes o poder de, por si próprios, realizar a convocação.
336 Há variações apenas quanto à antecedência mínima exigida entre a primeira destas
publicações e a realização da assembleia. Nas companhias abertas, exige-se que haja uma
antecedência mínima de 21 (vinte e um) dias, enquanto as companhias fechadas devem
observar ao menos 8 (oito) dias. Em segunda convocação, tais prazos caem para 8 (oito) e
5 (cinco) dias, respectivamente (Lei n. 6.404/76, art. 124 par. 1º). O Código Civil exige, para as
Assembleias de quotistas, uma antecedência mínima de 8 (oito) dias, em primeira convocação,
e 5 (cinco) dias, para o caso de segunda convocação (art. 1.152 par. 3º).
337 Segundo o art. 124 par. 2º da Lei n. 6.404/76, salvo motivo de força maior, a assembleia
geral realizar-se-á no edifício onde a companhia tiver a sede.

326 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O respeito à Ordem do Dia é essencial à validade de uma as-
sembleia de acionistas ou quotistas. Somente poderão ser aprecia-
dos, pelos sócios, os assuntos e temas expressamente constantes
da Ordem do Dia publicada.
Esta limitação decorre da necessidade de que os participan-
tes estejam previamente cientes dos assuntos a serem deliberados,
de modo a eventualmente se organizarem sobre a forma como pro-
ceder. Portanto, uma vez publicada, a Ordem do Dia limita a compe-
tência deliberatória da Assembleia Geral de Acionistas ou sócios, de
forma a protegê-los contra eventuais surpresas durante o evento.338
Há, no regime do Código Civil e da Lei n. 6.404/76, três hipó-
teses nas quais serão supridas todas estas elencadas formalidades
de convocação. Isto significa que, se ocorrida alguma de tais hipóte-
ses, eventuais descumprimentos das formalidades de convocação
legalmente previstas serão desconsiderados, com a consequente
validade das decisões tomadas.
A primeira destas hipóteses de suprimento das formalidades
de convocação está no comparecimento espontâneo da unanimi-
dade dos acionistas ou quotistas (art. 124 par. 4º da Lei n. 6.404/76
e art. 1.072 par. 2º do Código Civil). Se todos estão presentes, não há
razão para se questionar a validade das deliberações com base na
forma pela qual foram convocados os participantes339.
As outras duas hipóteses de suprimento das formalidades de
convocação estão previstas expressamente apenas no Código Civil
(art. 1.072 par. 2º e 3o), mas, como ser verá, não há razão alguma

338 Importante também observar que “a ordem do dia constará de um resumo do que será
tratado na assembléia, sendo condenável a indicação em termos gerais, como às vezes se
procura fazer.” MARTINS, Fran. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. – Vol. II. Tomo 1. 2a
edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984. Pg. 168.
339 “O fundamento da dispensa de convocação é que somente os sócios têm interesse
em conhecer com antecedência os assuntos a serem discutidos. Comparecendo todos os
sócios ao conclave, presume o Código que concordaram com a omissão desse requisito
legal. Tendo, com efeito, a convocação por objetivo proteger os interesses dos sócios, não há
por que negar a validade e a eficácia da instalação do conclave se todos consentirem sobre
a ordem do dia. E a presença da unanimidade dos acionistas dá segurança de que não serão
atingidos os seus interesses.” CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil – Vol. 13.
Parte Especial: Do Direito da Empresa. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. Pg. 198.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 327


para se negar sua aplicação também às companhias, embora a Lei
n. 6.404/76 não tenha, sobre o assunto, dispositivo expresso.
Haverá suprimento de qualquer das formalidades de convo-
cação se a unanimidade dos sócios se declarar, por escrito, ciente
da convocação e da ordem do dia. Deve-se apenas observar, nesta
comunicação escrita aos sócios, a antecedência mínima de convo-
cação prevista, para cada caso, na legislação.
Observe-se que não se trata, aqui, do comparecimento unâ-
nime, mas sim da ciência individualizada, por escrito e com a an-
tecedência mínima legalmente exigida, da totalidade dos sócios
a respeito da data, hora, local e Ordem do Dia da Assembleia de
quotistas ou acionistas. Assim, mesmo que não compareçam todos,
reputam-se regularmente convocados.
Por fim, se a unanimidade dos sócios aprovar expressamen-
te uma determinada deliberação esta será válida, ainda que tal
aprovação não tenha sido precedida de Assembleia regularmen-
te convocada e instalada340. Lavra-se a Ata da Assembleia Geral de
Acionistas ou quotistas, enumeram-se as deliberações aprovadas
e, claro, a assinatura da totalidade dos sócios, o que supre qualquer
dúvida quanto à legitimidade da decisão.

4. 2 – Formalidades de instalação e deliberação

Se o número de sócios presentes na assembleia for pouco


significativo, em relação ao montante total do capital social, as deci-
sões tomadas naquele momento carecerão de legitimidade, já que
efetuadas por parcela reduzida dos interessados.
Uma vez convocada por quem de direito e segundo as exi-
gências legalmente estabelecidas, a assembleia de acionistas ou
quotistas somente pode deliberar sobre os assuntos de sua Ordem
do Dia se contar com um número de participantes cujos percentu-
ais sobre o capital social sejam significativos o bastante para legiti-
340 CATAPANI. Márcio Ferro. As Assembleias Gerais. (In). COELHO. Fábio Ulhôa. Tratado de
Direito Comercial. Vol. II. Ed. Saraiva. São Paulo. 2015. Pg. 360.

328 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mar as decisões tomadas. Este quorum é fixado pela legislação (Lei
n. 6.404/76, art. 125 c/c 135 e art. 1. 074 do Código Civil) e trata-se
da formalidade de instalação da Assembleia Geral de acionistas ou
quotistas.
Se frustrada a formalidade de instalação, pela insuficiência de
presentes, frustra-se também, naquele momento, a possibilidade
de realização da assembleia. Será então necessária a realização da
2a convocação, com observância das mesmas formalidades esta-
belecidas para a 1a, ressalvada apenas a redução na antecedência
mínima entre a primeira publicação e a data do evento.
Tanto o Código Civil quanto a Lei n. 6.404/76 dispensam, em
2ª convocação, qualquer formalidade de instalação. Isto significa
que uma Assembleia Geral de acionistas ou quotistas estará regu-
larmente instalada, em 2ª convocação, com qualquer número de
sócios presentes341.
Uma vez devidamente convocada e instalada, a Assembleia
de Sócios está apta a deliberar sobre as questões de sua compe-
tência, aprovando ou não os assuntos previamente elencados no
edital de convocação.
Respeitado o já mencionado princípio da proporcionalidade
do direito de voto dos sócios – e excepcionados os casos expressa-
mente previstos em lei - consideram-se aprovadas, nas sociedades
anônimas, as deliberações que obtenham o voto favorável da maio-
ria absoluta de votos, não se computando os votos em branco (art.
129 caput da Lei n. 6.404/76). Isto significa que, em regra, é preciso
que mais da metade do capital social votante da companhia seja fa-
vorável à uma deliberação, para que ela seja considerada aprovada.
Já nas sociedades limitadas a regra geral é, pelo art. 1.076 III
do Código Civil, a da aprovação pela maioria relativa, que tem como
referência mais da metade do capital social presente no ato de de-

341 Justifica-se tal orientação, posto que a legitimidade dada por uma participação
significativa de sócios na assembleia não pode fazer com que, em virtude da ausência e
desinteresse destes, restem frustradas várias convocações e, via de consequência, fiquem
pendentes as decisões a serem tomadas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 329


liberação e não o capital social votante, como nas sociedades anô-
nimas.
Esta regra geral é, entretanto, substituída pelo quorum quali-
ficado de mais da metade do capital social em vários dos casos de
competência privativa dos sócios quotistas (art.1.076 do C.C), o que
faz concluir que, de fato, restam poucas deliberações relevantes a
serem, em uma sociedade limitada, sujeitas à regra geral de apro-
vação pela maioria relativa.
Uma vez aprovada pelos sócios, a decisão tomada é vinculan-
te em relação a todos eles, não podendo os eventuais divergentes
se recusarem a submeter-se ao que foi validamente aprovado. A
deliberação é majoritária, mas, uma vez aprovada, é vinculante em
relação à totalidade dos sócios e administradores da sociedade342.
Situação à qual todas as sociedades estão, em princípio, sujei-
tas, é aquela na qual ocorre um empate na votação sobre determi-
nada matéria. Metade do capital social votante a aprova, enquanto
a outra metade é contrária. Para esta hipótese, a Lei n. 6.404/76 e o
Código Civil trazem solução, respectivamente em seus artigos 129
par. 2º e art. 1.010 par. 2º.
Nas companhias, o empate deverá ser solucionado na forma
como eventualmente prevista estatutariamente. Assim, cláusula
que contenha, por exemplo, a prevalência da maioria de pessoas
votantes num determinado sentido, a existência de voto qualificado
(aquele que tem peso maior nas deliberações acaso empatadas)343
342 Restará aos sócios divergentes o direito de se retirar da sociedade, caso a deliberação
aprova esteja elencada dentre aquelas que concedem tal possibilidade (art. 137 da Lei n.
6.404/76 e art. 1.077 do Código Civil).
343 O voto qualificado é similar à denominada “golden share” (literalmente “ação dourada”),
mas não idêntico. Tem-se o voto qualificado quando, em caso de empate em uma votação,
prevalece a posição tomada, sobre a matéria em deliberação, por um determinado acionista.
Já a “golden share” representa, em essência, o poder dado, pelos estatutos, a um
determinado acionista, de vetar a aprovação de uma ou mais deliberações, ainda que
tenham elas prevalecido pela maioria do capital social votante. Trata-se de um instrumento
que foi adotado, no Brasil, pelo Poder Público, em sociedades que passaram por processos
de privatização, sendo sua legalidade questionável em caso de acionistas privados, já que
subverteria a proporcionalidade entre a participação no capital social e o poder de decisão
nas assembleias gerais de acionistas.
“A ação preferencial de classe especial equivale à popularmente denominada golden share,

330 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


ou a automática submissão da decisão à arbitragem são plenamen-
te válidas.
No silêncio do estatuto, nova Assembleia Geral de Acionistas
será convocada, com intervalo mínimo de 02 (dois) meses, para re-
tomar a deliberação que, se continuar empatada, será submetida a
decisão judicial caso os sócios não aprovem, por maioria de capital,
a submissão da matéria a terceiro, como um perito ou árbitro.
Segundo o art. 1.010 do Código Civil, as deliberações são to-
madas por maioria de capital, mas, em havendo empate segundo
este critério, prevalecerá a maioria de pessoas, ou seja, é conside-
rada vencedora a decisão que tenha sido aprovada por metade do
capital social e, cumulativamente, pelo maior número de sócios vo-
tantes.
Havendo igualdade segundo ambos os critérios – pessoas e
capital – a decisão será submetida a decisão judicial podendo, cla-
ro, o contrato social conter, nos moldes do que se viu em relação às
companhias, regra destinada a regular a questão sem, entretanto,
violar o dispositivo do par. 2º do art. 1.010.
Os atos praticados e as deliberações tomadas pela Assem-
bleia Geral de Acionistas serão formalizados em uma Ata, docu-
mento escrito a ser lançado em livro próprio, o denominado “Livro
de Atas das Assembleias Gerais” (art. 100, III e 130 da Lei n. 6.404/76).
Sua importância é imensa, pois refletirá, para todos os fins, o que foi
dito e decidido na assembleia344.
A validade da Assembleia Geral de Acionistas ou de quotistas
está, portanto, vinculada ao integral atendimento deste três níveis
de formalidades, enquanto a Reunião de sócios dispensa – salvo

que foi concebida originariamente no Reino Unido para conciliar o programa de privatização
com o resguardo de interesses estratégicos do Poder Público nas empresas privatizadas, sem
tolher sua liberdade externa de ação no mercado e inteferir demasiadamente na dinâmica
societária interna.” PINTO JÚNIOR. Mário Engler. Empresa Estatal. 2ª edição. Ed. Atlas. São
Paulo. 2013. Pg. 197.
344 As Assembleia de sócios quotistas também devem obrigatoriamente ser registradas em
Ata (par. 1º do art. 1.075 do Código Civil). Já as Reuniões de sócio dispensam, como visto,
qualquer formalidade de convocação ou instalação. Neste sentido, basta a deliberação
assinada por tantos sócios quantos os necessários à sua aprovação.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 331


disciplina contratual do assunto – as formalidades de convocação
e instalação, tendo, por consequência, sua validade condicionada
somente ao preenchimento do quórum de deliberação aplicável à
matéria em apreço.
É, a partir daí, possível apontar três espécies de vícios que po-
dem comprometer a validade da deliberação societária. São eles os
vícios da própria assembleia, da deliberação ou do voto345.
Os vícios da assembleia referem-se, em síntese, ao compro-
metimento das formalidades de convocação e/ou de instalação.
Uma Assembleia de acionistas ou sócios irregularmente convoca-
da ou instalada terá comprometidas todas as decisões aprovadas
na ocasião. Fala-se então em anulabilidade da Assembleia Geral de
Acionistas ou sócios, com a consequente anulação de tudo o que
foi, no ato, deliberado.
Os vícios de deliberação existem quando, em uma assem-
bleia de acionistas ou sócios validamente convocada e instalada,
há a aprovação de matéria que afronte a lei ou os atos constitutivos
da sociedade, ambos hierarquicamente superiores às decisões dos
sócios. Nesta hipótese, a anulabilidade não se aplica a todas as de-
cisões tomadas por aquela Assembleia ou Reunião de sócios, mas
alcança especificamente a matéria aprovada em afronta à lei ou aos
atos constitutivos346.
Por fim, o vício de voto decorre das abaixo analisadas situa-
ções de conflito de interesses ou abuso no exercício deste direito,
assim como da ocorrência, no caso, de algum dos vícios de consen-
timento, capazes de comprometer a validade da manifestação de
vontade do sócio (como a coação, erro ou dolo).

345 Sobre o tema, confira: BORBA. Gustavo Tavares. Invalidação da assembleia geral e de
suas deliberações. (In.) COELHO. Fábio Ulhôa. Tratado de Direito Comercial. Vol. II. Ed. Saraiva.
São Paulo. 2015. Pg 373/374.
346 O art. 1.080 do Código Civil responsabiliza ilimitadamente os sócios que venham a aprovar
matéria contrária à lei ou ao contrato social. É necessário observar, sobre este dispositivo,
que tal responsabilização depende, obviamente, da efetiva aprovação e implementação
da deliberação, bem como da comprovação dos prejuízos causados a outros sócios, à
sociedade ou a terceiros. GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de Empresa. Ed. Revista
dos Tribunais. São Paulo. 2007. Pg. 382/383.

332 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O vício do voto não compromete a validade da assembleia ou
reunião de sócios, e, além disso, somente justifica a anulabilidade
da deliberação caso o voto viciado tenha sido determinante para
a aprovação ou não da matéria deliberada. De qualquer modo, o
sócio deverá indenizar os eventuais prejuízos causados em decor-
rência de seu voto abusivo ou conflitante, ainda que o mesmo não
tenha sido decisivo para a deliberação (art. 115 par. 3º e 4º da Lei n.
6.404/76).
Segundo o art. 286 da Lei n. 6.404/76, a ação para anular as
deliberações tomadas em assembleia geral ou especial, irregular-
mente convocada ou instalada, violadoras da lei ou do estatuto, ou
eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação prescreve em 2 (dois)
anos, contados da deliberação347.

5 – Representação dos sócios, voto e deliberações à


distância, semipresenciais e digitais

Um curioso caso de ativismo contra as deliberações societárias à distância ou


digitais

“De forma surpreendente, e até mesmo cômica, uma organização de freiras


investidoras se posicionou abertamente contra a realização das assembleias
digitais. A comunidade de aproximadamente quatrocentas freiras Irmãs de São
Francisco da Filadélfia – Sisters of St. Francis of Philadelphia72 não só investe
no mercado acionário, mas suas integrantes também se mostram verdadeiras
ativistas. Baseadas no argumento de ausência do face a face e receio da redução
das interações entre acionistas e administradores, as freiras têm se mostrado
verdadeiras opositoras das assembleias digitais. Nesse sentido, a administração
de companhias investidas pela organização das freiras que optaram por
descontinuar suas assembleias presenciais enfrentaram considerável
resistência das Irmãs, como foi o caso da grande companhia de petróleo e
energia ConocoPhilips e da Comcast, atuante na área de telecomunicações”.
FERREIRA. Matheus Costa. Deliberações Societárias digitais – regulação, limites
e perspectivas. Porto Alegre. Editora Fi. 2019. Pg. 102

347 Já para as sociedades limitadas este prazo é de 3 (três) anos, com base no que dispõe o
par. único do art. 48 do Código Civil.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 333


A legitimidade do participante da Assembleia Geral de Acio-
nistas deve ser provada por um dos meios previstos pelo art. 126
da Lei n. 6.404/76, que se referem, em essência, à demonstração
de que a pessoa que pretende participar da deliberação é, naquele
momento, titular de uma ou mais ações da companhia.
Para as sociedades limitadas inexiste previsão, no Código Ci-
vil, sobre a forma de demonstração da condição de sócio, pois, em
verdade, esta prova só pode ser feita comparando-se a identidade
daquele que pretenda participar da deliberação e a enumeração
dos sócios, constante do contrato social atualizado.
O exercício do direito de participar e votar nas deliberações
sociais é privativo dos sócios, mas não se trata de um direito per-
sonalíssimo. Por isso, é ponto comum entre o Código Civil e a Lei n.
6.404/76 a admissão do mandato como forma de o sócio se fazer
representar, para fins de voz e voto, nas deliberações sociais.
Segundo o Código Civil, o sócio quotista pode se fazer repre-
sentar, através de procuração, por outro sócio ou por advogado, ao
qual deverá conferir poderes específicos para participar e votar nas
deliberações enumeradas pelo instrumento, o qual será levado a
registro juntamente com a ata da assembleia ou reunião de sócios
(art. 1.074 par. 1º).
Nas sociedades anônimas a questão da representação de
sócio em Assembleia Geral de Acionistas ganha maior relevância,
especialmente nas companhias abertas, dado o potencialmente gi-
gantesco número de acionistas, os quais, por diversas razões, mui-
tas vezes não podem ou não querem se deslocar até o local da
deliberação.
O art. 126 par. 1º da Lei n. 6.404/76 limita a possibilidade de re-
presentação, em Assembleia Geral de Acionistas, a procurador que
seja também acionista, administrador da companhia ou advogado,
podendo, no caso das sociedades anônimas abertas, ser ainda no-
meada mandatária instituição financeira, sendo necessário, em to-
das essas hipóteses, que o mandato - com poderes específicos e

334 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


detalhados para exercício dos direitos de sócio na deliberação - te-
nha sido outorgado há menos de 01 (um) ano.
A prática de solicitar procurações àqueles acionistas que não
pretendam participar da Assembleia Geral é também expressamen-
te regulada pela Lei n. 6.404/76 e, muitas vezes, acaba se revelando
um fundamental método para que se possa aprovar importantes
deliberações de interesse da companhia, dada a previsão legal de
quórum mínimo para aprovação da matéria e o já apontado desinte-
resse - ou impossibilidade - de muitos dos acionistas em participar
pessoalmente da deliberação.
O art. 126 da Lei n. 6.404/76 prevê inclusive a possiblidade
de pedido de procuração através de correspondência, anúncio ou
qualquer outra forma de apelo ao público. Esta prática deve, ainda
segundo o aqui citado texto legal, ser regulada, para as companhias
abertas, pela Comissão de Valores Mobiliários, que sobre o tema já
se pronunciou em diferentes oportunidades e por diversos meios,
sendo, atualmente, a referência principal a sua Resolução. n. 81, de
2022.
A Res. n. 81/22 da CVM trata de três diferentes – embora se-
melhantes - aspectos do assunto. O primeiro é a participação do
acionista através do voto à distância, o segundo é a participação
do acionista, durante a assembleia, através de videoconferência e
o terceiro, por fim, é a participação do sócio por meio da nomeação
de mandatário que exercerá, pelo acionista mandante, na assem-
bleia, os direitos inerentes às suas ações.
O voto à distância se dá quando o acionista preenche um do-
cumento denominado boletim de voto à distância, cujo conteúdo
está indicado pelo art. 31 da Res. n. 81/22 da CVM.
Trata-se de um documento a ser redigido de forma a enume-
rar cada matéria objeto de deliberação e deixar, ao acionista que o
preencha, a simples opção de assinalar sua aprovação, rejeição ou
abstenção sobre cada um dos temas indicados.
O boletim de voto à distância deve ser recebido, pelos acio-
nistas – por meio físico ou eletrônico – com pelo menos um mês de

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 335


antecedência em relação à data da Assembleia, cabendo ao votan-
te devolvê-lo, também por meio físico ou eletrônico, até sete dias
antes da deliberação (art. 26 e 27 da Res. 81/22 C.V.M).
Trata-se, portanto, de um instrumento que permite ao acionis-
ta manifestar direta e pessoalmente seu voto sobre cada uma das
matérias a serem apreciados na Assembleia, dispensando-o ape-
nas de fazê- lo de “viva voz” na data, hora e local de realização da
deliberação;
A Res. 81/22 da CVM prevê também outra forma de partici-
pação direta do acionista em Assembleia Geral, sem sua presença
física no local da deliberação, já que considera presente, para to-
dos os fins, aquele acionista que tenha registrado sua presença em
sistema eletrônico de participação à distância disponibilizado pela
companhia (art. 47).
Embora a disponibilização deste sistema eletrônico de parti-
cipação à distância não seja uma exigência, na prática ele viabiliza,
por exemplo, que a participação do acionista – e a própria Assem-
bleia Geral – seja realizada, por exemplo, através de videoconferên-
cia.
Semelhante, mas não idêntico, é o sistema de voto por procu-
ração. Neste caso, o acionista confere, como salientado, um man-
dato a outrem para que este, seu mandatário, exerça por ele os di-
reitos de sócio na Assembleia Geral.
O voto por procuração é disciplinado, tanto pelos já citados
art. 126 da Lei n. 6.404/76 quanto pelo Código Civil, mas a Res.81/22
da CVM regulamenta, para as companhias abertas, a forma de cap-
tação destas procurações348, assim como a admissibilidade de sua
concessão por forma eletrônica.

348 Res. 81/22 da CVM, art. 52 e 53, respectivamente:


Art. 52 - As procurações objeto de pedido público devem:
I – indicar um procurador para votar a favor, um procurador para se abster e outro procurador
para votar contra cada uma das propostas objeto do pedido;
II – indicar expressamente como o procurador deve votar em relação a cada uma das propostas
ou, se for o caso, se ele deverá se abster em relação a tais propostas;
III – restringir-se a uma única assembleia.
Art. 53. Os pedidos públicos de procuração devem ser dirigidos a todos os acionistas com direito

336 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A regulamentação das deliberações societárias à distância ou
por meios eletrônicos cabe, no caso das sociedades limitadas e co-
operativas, ao Departamento de Registro Empresarial e Integração
(DREI), ou qual faz referência a três modelos deliberatórios: assem-
bleias ou reuniões presenciais, semipresenciais e digitais349.
As assembleias ou reuniões digitais são aquelas que contam
exclusivamente com a participação remota de sócios, através de
sistema eletrônico destinado a permitir a interação simultânea de
duas ou mais pessoas, como no caso das videoconferências.
Já as denominadas assembleias ou reuniões semipresenciais
combinam a forma de participação remota acima descrita com a
alternativa de participação presencial dos sócios ou seus manda-
tários.
Em caso de assembleias digitais, a votação se realiza também
de maneira remota, sendo exigido, para isso, sistema eletrônico
no qual seja possível, por exemplo, exibir e encaminhar documen-
tos, realizar manifestações ou pedidos orais e aferir presença, bem
como a gravação da integralidade do que for ali dito ou apresenta-
do, a qual deverá ser preservada, pela sociedade, até que prescre-
vam quaisquer questionamentos sobre a deliberação.
O preenchimento da ata da assembleia ou reunião caberá ao
seu presidente e secretário da deliberação, que deverão fazê-la
acompanhar da lista de presença350.

6 - O direito de voto nas deliberações sociais:


características e condições de validade

O direito de voto nas deliberações sociais é, entre todos os


decorrentes da condição de sócio, certamente aquele que mais di-
de voto na assembleia..
349 Instrução Normativa n. 79/20 do DREI regulamenta, de forma detalhada, tais modelos
de deliberação.
350 Vale lembrar que, em casos de participação remota, a marcação de presença dos sócios
se faz através de mecanismos baseados no binômio login/senha ou outros, como assinatura
digital e biometria.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 337


retamente impacta nos rumos das atividades da sociedade, e, por
consequência, nos interesses dos demais sócios.
Isto porque é através do voto que se decide, ao menos em
princípio, os atos a serem ou não praticados pela pessoa jurídica,
assim como são escolhidos seus administradores, pessoas respon-
sáveis pela gestão dos recursos patrimoniais da pessoa jurídica e
por representá-la, tanto judicial quanto extrajudicialmente.
O direito de voto apresenta características que lhe são apli-
cáveis tanto nas companhias quanto nas sociedades limitadas, e,
além disso, importantes para sua compreensão e exercício. São elas
a proporcionalidade, a negociabilidade, a facultatividade, a irrevo-
gabilidade, a preclusividade, a imotivação e a vinculação quanto à
finalidade.
Como já ressaltado, tanto nas companhias quanto nas socie-
dades limitadas o exercício do voto é proporcional à participação de
cada sócio no capital social, nisto consistindo a denominada pro-
porcionalidade deste direito. As deliberações sociais são tomadas
por maioria de capital, não de pessoas.
Por outro lado, tem-se que o sócio pode, através de acordo
com outros integrantes, assumir o dever de acompanhar, nas deli-
berações da sociedade, o que predominar, entre eles, em relação
ao sentido do voto a ser dado sobre determinado tema351.
Vale ainda lembrar que as ações podem, como expressamen-
te previsto pela Lei n. 6.404/76 (art. 39 e 40), ser gravadas com usu-
fruto, penhor, alienação fiduciária e outros ônus reais, assim como
locadas ou penhoradas, o que impacta sobre a titularidade do exer-
cício do direito de voto correspondente a tais ações352, o mesmo
ocorrendo no caso de quotas de sociedades limitadas.
351 É o que se tem, por exemplo, no caso de acordos de acionistas sobre o exercício do
voto nas deliberações da companhia. Como se verá em capítulo próprio, estes acordos são
extremamente comuns e neles as partes se obrigam a votar sempre de maneira uniforme nas
Assembleias Gerais.
352 “O penhor da ação não impede o acionista de exercer o direito de voto; será lícito, todavia,
estabelecer, no contrato, que o acionista não poderá, sem consentimento do credor pignoratício,
votar em certas deliberações. O credor garantido por alienação fiduciária da ação não poderá
exercer o direito de voto; o devedor somente poderá exercê-lo nos termos do contrato. O direito

338 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Tem-se, portanto, que o direito de voto nas deliberações de
uma sociedade pode ser objeto de gravame ou ser voluntariamen-
te alienado pelo sócio, em favor de outros integrantes ou mesmo
de terceiros, vedada tal negociação somente quando diretamente
orientada para causar prejuízo a terceiros (art. 177 par. 2o do Código
Penal)353.
A facultatividade do voto decorre da simples constatação de
que o sócio não é obrigado a comparecer às deliberações sociais
ou, em estando presente, manifestar sua vontade em relação ao
que se está a deliberar. É direito do sócio abster-se de comparecer
à deliberação ou de votar em uma ou mais das matérias ali apre-
sentadas354.
A irrevogabilidade significa a impossibilidade de que o só-
cio pretenda, após lavrada uma determinada deliberação, alterar o
sentido do voto por ele na ocasião manifestado. As deliberações
de uma sociedade não podem estar sujeitas a eventuais arrepen-
dimentos do sócio. Portanto, uma vez validamente manifestado, o
voto não pode ser, quanto ao seu conteúdo, alterado por quem o
tenha dado.
Também da necessidade de estabilidade e certeza quanto às
deliberações da sociedade decorre a preclusividade do direito de
voto, ou seja: o sócio só pode manifestar seu voto até o momento
em que a matéria é posta em votação. Passada tal oportunidade,
não poderá o sócio que tenha se ausentado ou omitido pretender,
posteriormente, fazer constar sua vontade.
O direito de voto é imotivado porque o sócio não é obrigado
a apresentar as razões pelas quais opta, em uma determinada ma-

de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato de constituição do gravame,
somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário.”
CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2003. Pg. 136.
353 Sobre tal debate, confira: RIBEIRO. Renato Ventura. Direito de Voto nas Sociedades
Anônimas. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2009. Pg. 349 a 352.
354 Esta facultatividade de comparecimento ou de voto será, de certo modo, flexibilizada no
caso de acordos de acionistas, hipóteses para as quais o art. 118 da Lei n. 6.404/76 prevê as
consequências aplicáveis ao sócio que, signatário de tais acordos, se abstém de comparecer
ou votar.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 339


téria, pela aprovação ou não do que está a ser votado. A validade
do voto do sócio não depende de sua expressa fundamentação,
bastando o “sim” ou “não” do votante.
Por fim, há que se observar que o exercício do direito de voto
nas deliberações sociais não é, quanto à sua finalidade, livre. Ao
contrário, o sócio deve, sempre, votar no sentido do melhor inte-
resse para a sociedade (Lei n. 6.404/76, art. 115 caput), sendo-lhe
vedado exercer seu direito de voto para causar dano a outro sócio,
a terceiros ou à pessoa jurídica.
A finalidade almejada pelo sócio, quando no exercício de seu
direito de voto, é tema que merece mais atenta abordagem, o que
se pode fazer a partir da distinção entre o denominado “votante in-
gênuo” e o “votante estratégico”, empregada pela Teoria dos Jogos
para a compreensão e análise deste direito355.
Em Teoria dos Jogos, “votante ingênuo” é aquele que é capaz
de, em atenção a um interesse maior, votar contrariamente ao seu
interesse pessoal. Já o “votante estratégico” usa o voto sempre no
sentido de maximizar seu próprio interesse, escolhendo, dentre as
alternativas postas em votação, a que melhor lhe atenda.
A simples leitura do art. 115 caput da Lei n. 6.404/76 faz con-
cluir, a princípio, que o acionista – e, por analogia, o sócio em ge-
ral - é obrigado a adotar, sempre, a postura “ingênua”, já que deve
obrigatoriamente votar no interesse da sociedade, ainda que isto
contrarie a maximização de seus interesses pessoais. Resta, então,
a pergunta: se todos os sócios são obrigados, por lei, a votar no me-
lhor interesse da sociedade, por que há divergência nas votações?
Em outras palavras: se a votação não foi unânime, houve ne-
cessariamente, dentre os votantes, quem não tenha orientado seu
voto no melhor interesse da sociedade? Por outro lado, necessaria-
mente o melhor interesse da sociedade coincide com a opção que
tenha prevalecido entre os votantes?

355 BIERMAN. H. Scott. FERNANDEZ. Luis. Teoria dos Jogos. 2ª edição. Pearson Editora. São
Paulo. 2010. Pg. 92.

340 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Deve-se observar, inicialmente, que o sentido do voto dado
pelo sócio decorre, em regra, do grau de informação que ele dispõe
sobre a matéria em deliberação. Se há assimetria informacional en-
tre os sócios, a divergência no sentido do voto dado por eles pode
decorrer da existência, entre os votantes, daqueles que estivessem
mais informados sobre os custos e benefícios de cada alternativa.
O sócio mais informado acerca dos custos e benefícios de cada op-
ção de escolha certamente não dará um voto tão embasado e bem
orientado quanto o sócio mais informado sobre o assunto em vota-
ção.
Entretanto, nem por isso se pode questionar a validade do
voto dado pelo sócio mal informado. Com o grau de informação de
que dispunha, a melhor alternativa, para o atendimento do interesse
da sociedade, lhe parecia aquela por ele escolhida. Se, entretanto,
ele estivesse, sobre a matéria deliberada, mais informado, sua es-
colha teria caminhado em sentido diverso356.
Reconheça-se, porém, que o sócio mal informado e que, por
isso, aprova algo contrário ao melhor interesse da sociedade é, sob
o ponto de vista acima apontado, um “votante ingênuo”. Ele alme-
java escolher a melhor alternativa para a sociedade. Não o fez por
falta de informação. Seu voto é, sob o prisma do art. 115 caput da Lei
n. 6.404/76, válido.
Saliente-se ainda que, por falta de informação, muitas vezes
a opção prevalente entre os votantes pode não ser aquela que, ob-
jetivamente considerada, fosse a mais adequada aos interesses da
pessoa jurídica. É dizer: a falta de adequado grau de informação
pode acarretar mesmo na aprovação de uma deliberação menos
correspondente ao melhor interesse da pessoa jurídica.
Em suma, o que se pretendeu salientar é que o voto dado pelo
sócio mal informado é um voto “ingênuo” e não compromete a previsão

356 Sancionar o sócio que vota sem o devido grau de informação sobre os custos e benefícios,
para a sociedade, de cada uma das alternativas postas em deliberação significaria atribuir aos
votantes nas assembleias ou reuniões de sócios o dever de previamente se informarem, o
qual não se encontra previsto nem no Código Civil, nem na Lei n. 6.404/76. O sócio tem o
direito – não o dever – de se informar sobre as atividades da sociedade.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 341


do art. 115, caput da Lei n. 6.404/76, embora possa inclusive acarretar
na aprovação de uma medida contrária ao melhor interesse da socie-
dade.
Resta questionar se a legislação societária brasileira – em espe-
cial a Lei n. 6.404/76 – admite a possibilidade do “votante estratégico”,
ou seja, daquele sócio que, em uma ou mais deliberações, visa priori-
tariamente a maximização de seus interesses particulares atrelados à
matéria em votação.

7 - Voto estratégico, voto conflitante e voto abusivo:


caracterizações e efeitos

Para que se possa abordar a validade ou vício do voto “estra-


tégico” é necessário considerar, antes, que a sociedade é composta
por um conjunto de pessoas que, embora orientadas para a mesma
finalidade – o lucro – não têm, sempre, paralelismo de interesses
sobre as matérias a serem por eles deliberadas.
Por outro lado, especialmente as sociedades anônimas aber-
tas são compostas por acionistas com diferentes perfis e objetivos
em relação ao investimento por eles realizado357. O acionista mera-
mente especulador, o empreendedor ou o de perfil de investidor
de longo prazo certamente não têm igualdade de propósitos em
relação à sua participação na companhia, o que não compromete a
legitimidade de nenhum deles.358
357 Esta diversa gama de grupos de interesses organizados – e nem sempre convergentes –
que compõe a sociedade – especialmente uma companhia – já era objeto de análise na hoje
clássica obra Berle & Means: BERLE. Adolf A. MEANS. Gardiner C. The Modern Corporation &
Private Property. Harcourt, Brace & World, Inc. 1932 (edição original). Pg. 112 e segs.
358 O acionista que investe com a intenção meramente especuladora está, em regra, mais
preocupado com o valor de cotação de suas ações. Já o acionista de “longo prazo” – entendido
como o que não tem a intenção de negociar rapidamente suas ações – está, a princípio, mais
preocupado com a perspectiva de lucratividade e a estabilidade econômica da sociedade.
Embora esta seja uma evidente simplificação de uma realidade bem mais complexa – os
perfis e intenções dos acionistas em relação à companhia – ela serve para ilustrar o que, no
presente caso, é essencial: demonstrar que não se pode pressupor ou exigir que os acionistas
– e sócios em geral – tenham, em relação à sua participação na sociedade, exatamente os
mesmos objetivos, razão pela qual uma determinada medida por ser eficiente para o interesse
de alguns e ineficiente para o interesse de outros.

342 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Esta diferença de intenções em relação ao ganho esperado
com a participação na sociedade certamente se reflete no momen-
to em que estes sócios vão deliberar359. A aprovação de uma deter-
minada matéria pode ser mais eficiente para o interesse de alguns
dos votantes do que para os outros, dependendo do que cada um
deles espera de seu investimento na sociedade e das repercus-
sões, em relação a isso, da aprovação ou não do que se está a votar.
Inegável, portanto, que o sócio venha a agir “estrategicamen-
te” em uma determinada votação, sem que isso comprometa a va-
lidade do voto por ele dado360. Se a aprovação de uma medida es-
pecífica vai, por exemplo, significar o imediato aumento no valor de
cotação das ações – ainda que às custas de uma menor lucrativida-
de ao final do exercício social – não se pode exigir que o acionista
especulador abdique desta escolha, afrontando a razão pela qual
decidiu participar da companhia361.
Entretanto, há dois limites ao “voto estratégico” do sócio, os
quais são tratados pela Lei n. 6.404/76 e pela doutrina como o voto
conflitante e o voto abusivo, ambos legalmente inválidos e suscetí-
veis de serem sancionados.
O voto conflitante é aquele dado quando o ganho do votante
representa necessária e inevitavelmente uma perda para a compa-
nhia362. O interesse do sócio está diretamente oposto ao da socieda-
359 “We must begin by making a fundamental assumption about how individuals make choices:
individuals are rational in the sense that they consistently prefer outcomes with higher payoffs to
thos with lower payoffs. We express payoffs in dollars, but this is not necessary”. BAIRD. Douglas
G. GERTNER. Robert H. PICKER. Randal C. Game Theory and Law. Harvard University Press.
Cambridge. 1994. Pg. 11.
360 Votante estratégico é o que sempre vota de modo a obter o melhor resultado possível,
dadas as informações de que dispõe, as regras de votação e como crê que os outros votantes
se comportarão. “O benefício esperado de votar estrategicamente em vez de honestamente
depende em parte da probabilidade de o voto de uma pessoa influenciar o resultado de uma
eleição”. BIERMAN. H. Scott. FERNANDEZ. Luis. Teoria dos Jogos. 2ª edição. Pearson Editora.
São Paulo. 2010. Pg. 95.
361 O mesmo se pode concluir, em sentido diverso, do voto dado, por exemplo, pelo sócio
controlador que, pensando na estabilidade financeira da sociedade, aprova uma medida que
provoque uma queda repentina no preço de negociação das ações da companhia.
362 O par. 1º do art. 115 da Lei n. 6.404/76 enumera hipóteses nas quais há, de forma objetiva
e inegável, esta direta contraposição entre o interesse do sócio e o da sociedade. Trata-se de
enumeração taxativa,

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 343


de – conflito de interesses - e o ganho de um representa e decorre,
em igual proporção, da perda do outro, em um jogo de soma zero ou
não cooperativo363.
No voto conflitante, o ganho do sócio decorrerá diretamente
do prejuízo da sociedade, ainda que o votante não tenha a intenção
– dolo - de prejudicar a pessoa jurídica, outro sócio ou terceiros. O
sócio colocado nesta situação está entre causar prejuízo a si mes-
mo ou à sociedade, razão pela qual não poderá deliberar.
Sobre o voto dado em conflito de interesses é constante o
debate entre aqueles que entendem que tal situação é inevitavel-
mente viciada e os que condicionam a anulabilidade deste voto à
demonstração de efetivo prejuízo à sociedade, aos demais sócios
ou a terceiros364.
Não se mostra eficiente condicionar, no voto conflitante, sua
anulabilidade à prova de efetivo dano. Este prejuízo é, como se pro-
curou demonstrar, legalmente presumido, dada a realidade objeti-
va e inevitável de contraposição entre o interesse do sócio votante e
o da sociedade. Condicionar a invalidação do voto dado em conflito
de interesses à prova do prejuízo por ele causado significaria impor
à sociedade, aos sócios ou a terceiros os custos da comprovação e
anulação de um ato cuja prática é, ex ante, sancionada pela lei.
O voto abusivo é, por sua vez, aquele no qual o sócio tem a
intenção precípua de causar dano à sociedade, a outro sócio ou a
terceiros. O voto é, neste caso, utilizado como forma de prejudicar
outrem, e não como meio para maximizar legítimos interesses do
sócio votante.

363 O “jogo de soma zero” é, em síntese, representado por uma determinada situação na qual
o ganho de um dos participantes é exatamente a perda do outro envolvido. MYERSON. Roger
B. Game Theory: Analysis of conflict. Harvard University Press. Cambridge. 1991. Pg. 37 e segs.
364 “A doutrina, ao tratar do voto conflitante, faz uma distinção entre o conflito formal e o conflito
substancial de interesses. No primeiro caso, presume-se o abuso pela situação de fato e, por
isso, veda-se previamente o exercício do direito de voto. Já no segundo caso, não se presume o
abuso e, por isso, o voto não é vedado previamente, mas deve ser feita uma análise a posteriori
caso a caso para verificar a existência ou não do abuso”. TOMAZETTE. Marlon. Curso de Direito
Empresarial. Vol. I. 7ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2016. Pg. 535.

344 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Contrariamente ao que se viu no voto conflitante, o voto abu-
sivo exige, para sua invalidação, a prova de que foi dolosamente
manifestado para prejudicar outrem, além da demonstração de
que este prejuízo efetivamente foi causado (art. 115 caput da Lei n.
6.404/76).
A objetividade do voto conflitante – posto que suas hipóteses
se encontram legalmente enumeradas – permite que a Assembleia
Geral de Acionistas, uma vez provocada pela mesa que preside os
trabalhos, desconsidere o voto dado em conflito de interesses, sus-
pendendo o direito do acionista que assim venha a agir (art. 120 da
Lei n. 6.404/76).
Já no caso de voto abusivo, é necessário, como se viu, de-
monstrar a ação dolosa do sócio e o efetivo prejuízo decorrente de
seu voto, o que somente poderá ser feito posteriormente, através
de ação judicial ou arbitral própria365.
Resta demonstrado, portanto, que o sócio pode utilizar seu
direito de voto nas deliberações sociais de forma a maximizar legíti-
mos interesses particulares, sem que isto implique no comprometi-
mento da validade de sua conduta.
O voto somente é anulável quando dado nas taxativas hipó-
teses legais de conflito de interesses ou quando tem a orientação
direta não de dolosamente causar prejuízo aos demais sócios, à so-
ciedade ou a terceiros.

365 BOTREL. Sérgio. A mesa das assembleias gerais das S.A. (in) BOTREL. Sérgio (Coord.).
Direito Societário – Análise crítica. Ed. Saraiva. São Paulo. 2012. Pg. 29.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 345


346 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo X
Controle societário: caracterização e modalidades no
direito brasileiro

1 – Poder de Controle societário

O controle sobre os atos e a gestão das sociedades em geral


- e da sociedade anônima em particular - é tema de fundamen-
tal importância, dada a sua essencial interferência - e muitas vezes
conflito - em relação a interesses alheios ao titular de tal poder.
A Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/76) se preocu-
pou sobremaneira com a fenômeno do controle societário e, além
disso, procurou fixar limites e responsabilidades decorrentes de seu
366
exercício .
Ressalte-se, porém, que o tema, naturalmente complexo, ain-
da aparece envolto em dúvidas, geradas pelas inevitáveis lacunas
que o legislador deixou ao disciplinar tão importante aspecto.
O primeiro passo na abordagem do assunto é a conceituação
de termos como “poder de controle societário” e “controle societá-
rio” procurando, na medida do possível, separar-lhes das noções
de “controlador” e “sócio controlador”, também de vital importância
para o desenvolvimento satisfatório de trabalho que verse sobre
esta matéria.

2 - Controle societário e controlador - conceito,


distinções e fundamentos

É inerente ao termo controle, sob qualquer aspecto, a referên-


cia à ideia de dominação, de poder, de interferência sobre a esfera
366 O art. 117 da Lei n. 6.404/76 prevê e sanciona, com a obrigação de indenizar os prejuízos
causados, modalidades de exercício abusivo do controle societário, o qual se pretende,
sempre, empregado para fazer a sociedade cumprir seu objeto e função social (art. 116 par.
único Lei n. 6.404/76).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 347


decisória alheia367. Deste modo, a palavra controle, em direito socie-
tário, encontra-se estreitamente ligada à dominação, à imposição
da vontade própria a outrem.
Assim, aquele que controla algo ou outrem impõe sua vonta-
de à conduta deste último. Quem controla uma sociedade impõe
sua vontade aos atos deste ente jurídico. A sociedade age de acor-
do com a vontade daquele que sobre ela exerce o controle.
Diante disso, é correto afirmar que o controle é mais uma no-
ção “de fato” do que “de direito”. O controle é um fato, não um poder.
Não há controle que exista apenas em abstrato ou em potência. É
com base nesta constatação que se pode distinguir os conceitos de
controle e poder de controle.
Poder de controle é o controle em potência. Quem tem o po-
der de controle sobre algo ou alguém tem a faculdade de impor
sua vontade à conduta deste último. Porém, nem sempre essa fa-
culdade é, de fato, posta em prática. Ter poder de controle é ter a
faculdade de controlar. O controle societário somente existe se esta
faculdade é realizada, colocada em prática pelo titular deste poder.
Há controle societário quando de fato - e não apenas em po-
tência - uma pessoa ou grupo de pessoas físicas ou jurídicas368 fa-
zem com que os atos de determinada sociedade se realizem de
acordo com sua vontade.
Quem impõe efetivamente sua vontade aos atos da sociedade
não pode ser tratado e/ou conceituado da mesma forma que aque-
le ou aqueles que têm a faculdade (o poder) de impor sua vontade
ao ente societário, mas, de fato, não o fazem. Na primeira situação
367 “Ora, a evolução semântica, em português, foi influenciada tanto pelo francês como pelo
inglês, de tal sorte que a palavra ‘controle’ passou a significar, correntemente, não só vigilância,
verificação, fiscalização, como ato ou poder de dominar, regular, guiar ou restringir. (...)
No entanto, a influência inglesa faz sentir-se, hoje, de modo preponderante, nesse particular, e,
aos poucos, as nossas leis passam a usar ‘controle’ sobretudo no sentido forte de dominação,
ou na acepção mais atenuada de disciplina ou regulação.” COMPARATO. Fábio Konder. FILHO.
Calixto Salomão. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 5a edição. Ed. Forense. Rio de
Janeiro. 2008. Pg. 29
368 É mesmo possível admitir-se, como titulares do poder de controle, entidades sem
personalidade jurídica, mas capazes de, por exemplo, exercerem direitos de sócios numa
companhia. É o caso dos já analisados fundos de investimento.

348 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


há controle societário; na segunda há poder de controle ou controle
em potência, a faculdade de controlar.
Há um vínculo direto e exclusivo entre o que a sociedade (pes-
soa jurídica) irá fazer e a vontade dos titulares do controle societário.
Controlador, por sua vez, é a pessoa ou grupo de pessoas fí-
sicas ou jurídicas – ou entes capazes de serem titulares de direitos
de sócio - que exercem o controle sobre determinada sociedade. O
controle societário é sempre exercido por alguém. É a esta pessoa
ou grupo que se denomina controlador.
A Lei n.6.404/76 optou por se referir não aos atos de controle
societário em si, mas à pessoa ou grupo que os realiza. Neste sen-
tido o seu art. 116 define o que é acionista controlador e não o que
sejam os atos por ele praticados (controle societário).
Entretanto é possível, com base no texto do art. 116 da Lei n.
6.404/76, elencar quais sejam os atos que, se praticados, expri-
mem, no direito brasileiro, a existência do controle societário.
Se a norma em tela dispõe que o acionista controlador é a
pessoa ou grupo que detém a maioria dos votos na assembleia ge-
ral e elege a maioria dos administradores da sociedade, há que se
concluir que o controle societário – atos característicos e exclusivos
do acionista controlador - consiste, basicamente, em eleger a maio-
ria dos administradores da sociedade e deter a maioria dos votos
nas assembleias gerais369.
Deste modo, os atos de controle societário se corporificam
pela imposição, de fato e de forma exclusiva, da vontade do contro-
lador sobre a maioria dos votos na assembleia geral de acionistas
e sobre a eleição da maioria dos administradores da sociedade.370
369 O art. 1.098 do Código Civil também contém definição do que sejam os atos
caracterizadores do controle societário, e vai no mesmo sentido da Lei n. 6.404/76: o poder
de eleger a maioria dos administradores da sociedade e a titularidade da maioria dos votos
na assembleia ou reunião de quotistas.
No mesmo sentido vai ainda o art. 243 par. 2º da Lei n. 6.404/76, que se vale dos mesmos
critérios para definir o que se considera, legalmente, uma sociedade controladora de outra.
370 “O exercício do poder do acionista controlador [poder de controle em exercício, de fato]
pode revestir formas diversas, embora não excludentes, e se manifesta através de diferentes
espécies de atos: (a) nas matérias de competência privativa da Assembleia Geral, ou submetidas
à sua deliberação, sob a forma de voto; (b) se o acionista controlador cumula suas funções com

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 349


O controle societário, por sua vez, pode se fundar - e mesmo
se legitimar - em diferentes bases, cada uma decorrente do exercí-
cio de poder sobre a sociedade controlada. São eles:
Poder político: se manifesta, em se tratando de sociedades,
nas Assembleias Gerais de sócios/acionistas. É o poder que deter-
minadas entidades371 ou pessoas - acionistas e sócios em geral -
têm de, calcados em sua participação no capital social, tomar parte
nas deliberações sobre os atos da sociedade.
Poder administrativo: Se é correto afirmar que a vontade so-
cial se exprime por meio das deliberações dos sócios, não é menos
verdade que a execução das decisões ali tomadas fica a cargo dos
órgãos administrativos.
É comum, nas companhias, que a pessoa ou grupo que dete-
nha o poder político também exerça o poder administrativo, partici-
pando diretamente dos órgãos gestores.
Por outro lado, há hipóteses nas quais as pessoas que detém
o poder político na sociedade - os sócios - não são as mesmas que
possuem o poder administrativo, como integrantes dos órgãos de
gestão.
Em situações como estas, nas quais há, na sociedade, cisão
entre o poder político e o poder administrativo, pode ocorrer que os
atos de controle societário sejam exercidos direta e unilateralmente
pelos administradores e não pelos sócios, o que configura o contro-
le administrativo.
Poder Jurídico: decorrente de uma cláusula contratual na qual
a sociedade, através de seus representantes, confere a uma outra
pessoa ou grupo o poder de exercer, em relação a ela, os atos de
controle societário.372
as de administrador, sob forma de atos de administração; e (c) ainda que não administrador
eleito, sob forma de ordens aos órgãos de administração e fiscalização”. LAMY FILHO. Alfredo
e PEDREIRA. José Luiz Bulhões. A Lei das S.A. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. pg. 235
371 Utiliza-se aqui esta expressão para abarcar os entes despersonalizados capazes de
serem titulares de direitos de sócio numa sociedade, como os fundos de investimentos.
372 É a hipótese que Fábio Konder Comparato chama de controle contratual.“A influência
dominante é presumida, como se viu, quando há participação majoritária de uma empresa
em outra. Mas ela pode também exercer-se fora de qualquer participação societária de

350 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Poder econômico: Nesta situação a sociedade, em virtude de
necessidades de ordem econômico-financeira, transfere, de fato, o
poder de controle a outrem, que vem a exercê-lo.
A pessoa jurídica passa a se submeter às decisões tomadas
por seus credores, e os órgãos sociais tornam-se meros homolo-
gadores – no caso da Assembleia de sócios – ou executores – os
órgãos administrativos – da vontade manifestada pelos credores.373
Visto que o controle societário pode se fundar em diferentes
elementos, cumpre diferenciar entre as figuras do controlador e do
sócio controlador.

3 - Os conceitos de sócio majoritário, sócio controlador


e do controlador no direito brasileiro

É correto afirmar, com base no texto do art. 116 da Lei n.


6.404/76, que a definição de acionista controlador da sociedade
anônima não equivale à de acionista majoritário, entendido este úl-
timo como o titular da maioria (50% mais uma) das ações votantes
da companhia.
A abordagem do conceito legal - art. 116 da Lei n. 6.404/76 -
de acionista controlador permite afirmar que seus requisitos cumu-
lativos são:
a) Trata-se de pessoa natural, pessoa jurídica, grupo de pes-
soas físicas e/ou jurídicas vinculadas por acordo sobre o exercício
do direito de voto ou ente despersonificado capaz de exercer direi-

capital, notadamente pela via contratual. O direito societário alemão, de resto, consagra
desde a Lei de 1937 tipos especiais de contratos entre empresas (chamados justamente
Unternehmensvertrage), regulando a subordinação jurídica de uma à outra” COMPARATO.
Fábio Konder. Direito Empresarial. 1a edição. Ed. Saraiva. São Paulo. 1995. Pg. 276
373 “Há, assim, em primeiro lugar, toda uma série de hipóteses em que o controle externo resulta
de uma situação de endividamento da sociedade. Em razão do seu direito de crédito, cuja
execução forçada pode levar a companhia à falência, o credor passa, muitas vezes, a dominar
a devedora, comandando a sua exploração empresarial.” COMPARATO. Fábio Konder. FILHO.
Calixto Salomão. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 5a edição. Ed. Forense. Rio de
Janeiro. 2008. Pg. 90/91.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 351


tos de sócio e participar de acordo sobre o exercício destes direitos
(como no caso dos fundos de investimento);
b) é titular de direitos de sócios na companhia;
c) tem, de modo permanente, a maioria dos votos nas delibe-
rações da assembleia geral de acionistas e detém, também de ma-
neira permanente, o poder de eleger a maioria dos administradores
da sociedade374;
d) por fim, acionista controlador é aquele que usa efetivamen-
te seu poder para dirigir as atividades sociais e para orientar o fun-
cionamento dos órgãos da companhia.
Constata-se então que a figura do acionista controlador, no
direito brasileiro, se define por requisitos de ordem objetiva (art. 116,
a da Lei n. 6404/76) e também por um requisito de ordem subjetiva
(art. 116, b), este último vinculado à vontade, ao animus do acionis-
ta375.
Ao dizer que só há acionista controlador quando houver efeti-
vo exercício do poder sobre a administração e as deliberações so-
ciais, esta disposição da Lei n. 6.404/76 reflete a mencionada sepa-
ração entre poder de controle (ou controle em potência) e controle
societário, pois, como se viu, a faculdade de impor sua vontade à
sociedade não se confunde com sua efetiva imposição.
É também possível afirmar, por outro lado, que o acionista ma-
joritário detém, ao menos de forma potencial, o poder de controle,
já que somente ele preenche os requisitos objetivos do art. 116 da
Lei n. 6.404/76.
374 De particular dubiedade é a referência que este item da legislação faz à ideia de
permanência como elemento inerente ao conceito legal de acionista controlador. O que
pretende esta norma com a expressão “modo permanente”? Como quantificar este elemento
de notória fluidez e subjetivismo, tendo em vista que a noção de “modo permanente” ou de
“permanência” varia enormemente de pessoa para pessoa?
375 “Não podemos deixar de observar, neste ponto, que o conceito de ‘acionista controlador,
explicitado na lei (art. 116) não se contenta com a titularidade de direitos de sócio que assegure,
de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de
eleger a maioria dos administradores da companhia. Para caracterizar o conceito de acionista
controlador, a lei exige um segundo requisito mais subjetivo, que consiste no fato de se usar
efetivamente esse poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos
da companhia (art. 116, b).” CORRÊA LIMA. Osmar Brina. O acionista minoritário no direito
brasileiro. Ed. Forense. Rio de Janeiro. Pg. 12.

352 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Conclui-se então que o acionista majoritário só não é o acio-
nista controlador, nos termos do art. 116 da lei n. 6. 404/76, quando
não “usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e
orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”, requisito este
dependente de sua vontade. Portanto, o acionista majoritário só não
será também controlador quando não quiser, não tiver a vontade de
usar efetivamente seu poder de influência (poder de controle) sobre
a companhia.
Nas hipóteses em que o acionista majoritário decide não exer-
cer o controle societário376, é claro que outra pessoa ou grupo irá
ocupar tal posição, ainda que, por óbvio, não preencha todos os re-
quisitos objetivos do art. 116 da Lei n. 6.404/76.
Trata-se, por exemplo, do chamado “controle minoritário” -
exercido por acionista ou grupo desprovido da maioria das ações
votantes - e do “controle externo”, em suas diferentes modalidades.
Deste modo, sócio controlador é uma espécie de controlador.
É aquele controlador que exerce o controle societário em virtude
de seu poder político na sociedade. Em outras palavras, é aquela
entidade, pessoa física ou jurídica - ou grupo de pessoas físicas ou
jurídicas unidas por acordo - que exerce, em virtude de sua titula-
ridade sobre o capital social, atos de controle em uma sociedade.
Já o termo controlador abarca não apenas aquele que assim
se configura por deter participação no capital social, mas também
aqueles que, em decorrência de poder de outra natureza – seja
econômica, jurídica ou administrativa, como visto – impõem sua
vontade aos atos praticados pela sociedade.
Pode-se, portanto, afirmar que em qualquer sociedade há o
fenômeno do controle societário. Em todas as sociedades há uma
entidade, pessoa ou grupo de pessoas que exerce este controle – e
assim se configura como controlador.

376 Fundamental salientar também que há companhias cujo capital social está pulverizado
na titularidade de diferentes acionistas, de modo que simplesmente não há uma pessoa ou
grupo organizado que seja detentor de mais da metade das ações votantes. Uma sociedade
com esta distribuição de capital é, sem dúvida, uma sociedade sem sócio majoritário. Não é,
entretanto, uma sociedade sem controlador.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 353


Entretanto, nem sempre o controlador exerce o controle com
base no poder político sobre a sociedade, consubstanciado, como
já salientado, na participação no capital social. Por este motivo, nem
toda sociedade apresenta um sócio controlador.
Uma sociedade na qual, por exemplo, os atos de controle se
fundem em cláusula contratual e sejam exercidos por pessoa alheia
aos quadros sociais, não tem sócio controlador. Tem, de fato, con-
trole societário e controlador. Este, porém, não preenche os requi-
sitos legais para ser considerado sócio/acionista controlador, tendo
em vista que seu controle se funda em outros elementos que não a
participação sobre o capital social.

4 - O controle exercido por sócios da sociedade -


controle interno

4. 1 - Controle majoritário

É sabido que as deliberações nas sociedades brasileiras, quer


se trate da Sociedade Limitada ou da Sociedade Anônima, se pauta
pela maioria do capital votante, e não no número de sócios.
Assim, as noções de maioria e minoria societária se definem
tendo por referência o poder político na sociedade. Sócio(s) majori-
tário(s) e sócio(s) minoritário(s) são situações que se exprimem pela
participação no capital votante da sociedade.
Desta forma, sócio majoritário é a entidade, pessoa física, ju-
rídica ou grupo unido por acordo que detém, sozinho, mais de 50%
do capital social votante da companhia. É (ou são) o(s) titular(es) de
mais da metade do capital social, situação política que os habilita,
regra geral, a aprovar, sozinhos, as deliberações assembleares e a
eleger a maioria dos administradores da sociedade.
Por exclusão, sócios minoritários são todos aqueles que de-
tém, em conjunto, menos de 50% do capital social votante. São, ao
menos em regra, sócios incapazes, mesmo que unidos entre si, de

354 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


impor uma deliberação à sociedade, bem como de eleger a maioria
dos seus administradores.
Fique claro, porém, que o conceito de sócio majoritário não se
confunde com o de sócio controlador, pois somente quando o sócio
majoritário preenche os já tratados requisitos do art. 116 da Lei n.
6.404/76 é que ele se torna, de fato e de direito, sócio controlador.
Quem tem a maioria do capital social votante, mas não exerce
efetivamente o seu poder sobre a assembleia de sócios é sócio ma-
joritário, mas não é controlador377, ou seja, tem o poder de controle,
mas não o controle societário.
Conclui-se, portanto, que uma sociedade apresenta controle
majoritário quando o controle societário é exercido por um sócio
(ou grupo unido por acordo) que detém, sozinho, mais de 50% das
ações votantes.
Neste caso, a mesma pessoa ou grupo que se define como
controlador - e, além disso, como sócio controlador - é também
aquela que detém a maioria das ações ou quotas votantes.

4. 2 - Controle minoritário

Acionista (ou sócio) majoritário é aquele que detém 50% (cin-


quenta por cento) mais uma das ações votantes da companhia. É
correto afirmar que esta entidade, pessoa ou grupo unido por acor-
do tem, sempre, a maioria dos votos nas deliberações da assem-
bleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da
companhia. Tal poder é inerente a esta entidade, pessoa ou grupo,
posto decorrer diretamente do número de ações do qual é titular.
Acionista (ou sócio) minoritário, por outro lado - e por exclusão
ao conceito de acionista (ou sócio) majoritário - é aquele que não
tem, de forma permanente, a maioria dos votos nas deliberações da
assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores
da companhia.
377 BORBA. José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2014.
Pg. 314.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 355


Vale ressaltar, porém, que o fato de os sócios minoritários não
deterem, de forma permanente, o citado poder, não significa que
eles não venham a praticar atos de controle.
É possível que mesmo desprovidos de maior parcela do po-
der político, a minoria societária consiga impor unilateral e exclusi-
vamente sua vontade aos atos da sociedade, tornando-se, de fato,
a controladora do empreendimento.
Em sociedades nas quais o capital social esteja de tal forma
pulverizado que não exista uma única pessoa física ou jurídica titu-
lar de mais de metade das ações vontantes, nem um grupo unido
por acordo de voto que torne seus integrantes, juntos, titulares da
maioria absoluta do capital votante, abre-se espaço à prevalência
de minorias nas deliberações societárias.
Assim, a aprovação da matéria, em assembleia geral de acio-
nistas, se dá pela adesão de um conjunto de acionistas minoritários,
não organizados por acordo de voto, capazes de atingir o quórum
necessário à deliberação.
Nestas sociedades, é provável que acionistas votem no mes-
mo sentido em uma determinada deliberação e discordem, entre si,
em outra decisão assemblear, sendo que a aprovação da matéria
decorre, como salientado, da formação de maioria “não organizada”,
posto que inexistente acordo de sócios no sentido da uniformidade
do voto.
Há também, como instrumento de viabilização da deliberação
sobre a matéria, a possibilidade de captação de procurações em
número suficiente para formação do quórum de aprovação378

378 “Em geral, o controle minoritário - reproduzindo a observação de Berle e Means repousa
na habilidade dos minoritários de atraírem os acionistas dispersos para deles obterem
procurações que lhes assegura maioria nas deliberações da assembleia geral. O mesmo ocorre
com o chamado controle gerencial, em que a posição do mandatário é desempenhada pelos
administradores com participações mínimas, e, até, sem participação na sociedade.” LAMY
FILHO. Alfredo e BULHÕES PEDREIRA. José Luis. A Lei das S.A ... Vol. II. Ob. Cit. Pg. 196

356 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


4.3 - Controle conjunto e controle indireto

O controle conjunto é aquele exercido por mais de uma enti-


dade, pessoa física ou jurídica unidas por acordo de vontades, en-
quanto o denominado controle indireto se dá quando exercido por
duas ou mais pessoas jurídicas controladas, elas próprias, por uma
mesma pessoa.
Há, portanto, entre estas duas modalidades de controle, um
ponto em comum, corporificado no fato de o controle societário ser
exercido, tanto no caso do conjunto quando do indireto, por duas ou
mais pessoas.
Diferem-se, entretanto, o controle conjunto do controle indi-
reto pois, no primeiro caso, as duas ou mais entidades ou pessoas
físicas ou jurídicas controladoras estão unidas por um vínculo de
natureza jurídica (um acordo de vontades), enquanto no segundo
caso as entidades ou pessoas jurídicas estão entre si atreladas por
um vínculo de fato, já que ambas são controladas por uma mesma
pessoa.379
O vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas controladoras
de uma sociedade surge, normalmente, na forma de um acordo de
acionistas. Este contrato parassocial380 encontra-se tipificado no art.
118 da Lei n. 6.404/76 e é utilizado para diversas finalidades, nor-
malmente ligadas à disposição sobre o exercício do direito de voto
pelos acionistas que a ele se integrem.
Já a alusão ao controle indireto, exercido por duas ou mais
pessoas jurídicas controladas, todas, por uma terceira, remete à no-
ção de Sociedade Holding de 2o grau.

379 “Em relação à sociedade de que participam diversos acionistas submetidos a controle
comum, o respectivo controlador exercerá, verdadeiramente, controle indireto, através
de sociedades-meio, de caráter puramente instrumental.” TEIXEIRA. Egberto Lacerda e
GUERREIRO. José Alexandre Tavares. Das Sociedades Anônimas no direito brasileiro. Ed. José
Bushatsky. São Paulo. 1979. Pg. 295.
380 BARBI FILHO. Celso. Acordo de Acionistas. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 1993. Pg. 69.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 357


Sociedade holding de 2o grau é a sociedade controladora de
uma ou mais sociedades que, por sua vez, são controladoras de ou-
tras. É, em síntese, a sociedade controladora das controladoras381.
Quando o controle sobre uma sociedade é exercido por duas
ou mais sociedades e estas, por sua vez, são controladas por uma
única (a holding de 2o grau) está configurado, em relação à primeira
delas, a hipótese de controle indireto.
Vejamos um exemplo: O controle da sociedade A é exercido,
em conjunto, pelas sociedades B e C, as quais, por sua vez, são con-
troladas pela sociedade D. Aqui é possível afirmar que o controle da
sociedade A é um exemplo de controle indireto.

5 - O controle externo: sua definição e tratamento no


direito brasileiro

Apresentadas que foram as modalidades de controle socie-


tário fundadas no poder político - participação no capital social – é
necessário cuidar das formas de exercício do controle societário por
pessoas que não têm a condição de sócio da sociedade controlada.

5.1 - Controle gerencial

Controle gerencial é a modalidade de controle societário


exercida pelos administradores do empreendimento, em socieda-
des marcadas pela pulverização do seu capital social e, por conse-
quência, pela inexistência de um acionista ou grupo majoritário.
Não se deve confundir esta modalidade de controle societá-
rio com hipótese similar (e muito mais comum) na qual o controle é
exercido por acionistas - majoritários ou mesmo minoritários - que,
além disso, também exercem cargos administrativos.
381 O art. 243 da Lei 6. 404/76 admite expressamente a figura da sociedade holding de 2o
grau ao definir sociedade controlada como sendo “(...) a sociedade na qual a controladora,
diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de ‘socio que lhe assegurem,
de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria
dos administradores.”.

358 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Para entender o controle gerencial é necessário, antes, reme-
ter à separação entre três diferentes elementos integrantes de qual-
quer ente societário: o controle, a propriedade e a administração.
Como visto, o controle societário é a imposição, de fato, de
uma vontade aos atos praticados pela sociedade. O controle socie-
tário é exercido pelo controlador, que orienta as atividades sociais
segundo sua vontade.
A propriedade sobre o patrimônio social, por sua vez, perten-
ce aos sócios e orienta-se de acordo com a participação de cada
um deles no capital social. Os sócios da sociedade são os titula-
res das frações ideais que constituem e representam parcelas do
capital social. Aqui prevalecem os conceitos de maioria e minoria
societária, os quais tomarão como referência, sempre, a titularidade
sobre o capital da sociedade.
Por fim, tem-se a administração, que, como elemento inte-
grante da concepção de sociedade personalizada, constitui-se no
poder de condução e representação do organismo criado.
É comum, especialmente em sociedades familiares ou fecha-
das, que uma mesma pessoa ou grupo detenha o controle socie-
tário, a maioria da propriedade sobre o capital social e, também,
ocupe os cargos de administração.
Esta não é uma hipótese de controle gerencial, pois, neste
caso, o controle se funda não sobre o poder que este controlador
tem sobre a administração da sociedade, mas sobre a sua parti-
cipação no capital social. Trata-se, na verdade, de modalidade de
controle interno (seja ele majoritário ou minoritário).
Haverá controle gerencial quando os titulares da administra-
ção e não os titulares da propriedade sobre o capital social exerce-
rem o controle societário.
Uma sociedade está sob controle gerencial quando os admi-
nistradores - e não seus sócios, sejam eles majoritários ou minoritá-
rios - impõem unilateralmente sua vontade aos atos da sociedade.
A vontade que orienta os rumos do empreendimento é única e ex-
clusivamente dos administradores.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 359


Para que se possa falar em controle gerencial é necessário
que:
1) os titulares da administração social não sejam também os
titulares de partes significativas do capital social - distinção admi-
nistração/ propriedade do capital;
2) os titulares do capital social estejam de tal forma afastados
dos negócios sociais que sequer compareçam, pessoal ou remota-
mente, às deliberações da sociedade, delegando – através de pro-
curações - este poder aos administradores;
3) os administradores, dotados da capacidade de deliberação,
assumam não apenas a gerência das atividades sociais, mas tam-
bém a tomada de todas as decisões a respeito.
Assim, o exercício desta modalidade de controle assenta-se
não só sobre o poder de administração, mas também sobre um me-
canismo eficaz de representação dos sócios nas assembleias382.

5. 2 - Controle econômico

Nesta modalidade de controle o fundamento é exclusivamen-


te – ou predominantemente - de ordem econômica. A sociedade e
aquele que, até o momento, exercia sobre ela o controle estão em
posição de tal dependência econômica perante outrem que permi-
tem que esta pessoa ou grupo imponha sua vontade aos atos de
deliberação e gestão da pessoa jurídica.
Aqui, a pessoa ou grupo que impõe sua vontade à sociedade
está vinculada a ela por uma relação de natureza creditícia. O con-
trole societário será exercido, de fato, por credor ou credores da
sociedade.
Saliente-se uma vez mais que controle societário, como foi
aqui dito e repetido, é uma noção de fato, não de direito. Esta con-
clusão, aplicada à modalidade em estudo, permite afirmar que, no

382 Ressalve-se, entretanto, o fato de que o administrador que for mandatário de acionista
não poderá representá-lo na votação dos documentos da administração (art. 133 e 134, par.
1o da Lei n. 6. 404/76).

360 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


controle econômico, há um “controlador” de direito - que, na verda-
de, nada controla - e um controlador de fato, o qual, na realidade, é
o único, pois somente ele orienta, de fato, as atividades sociais.
No controle econômico os atos da sociedade são, de direito,
executados de acordo com a vontade ou dos administradores ou de
um grupo de sócios unidos por acordo, ou de um sócio majoritário
ou, por fim, de um sócio minoritário.
Estes, porém, são “controladores de direito” e não de fato, uma
vez que a vontade por eles exarada limita-se a corroborar os dese-
jos manifestados pelo credor ou credores e verdadeiros controla-
dores da sociedade.
Quem controla tem poder de fato, não de direito. Neste caso,
portanto não são os administradores ou sócios que impõem sua
vontade aos atos societários e sim o(s) credor(es).

5.3 - Controle contratual

Trata-se de mais uma modalidade de controle externo da so-


ciedade, nas quais as deliberações e a administração social se efe-
tuam de acordo com a vontade exclusiva de uma pessoa ou grupo
alheio ao capital da sociedade.
Assim como no caso do controle econômico, estará presente
nesta situação um controlador “de direito” (sócio ou sócios majoritá-
rios ou minoritários), que se limitará a usar seu poder político sobre
a sociedade de acordo com a vontade de uma pessoa ou grupo
alheio ao quadro de sócios, mas que, de fato, será o único a impor
sua vontade aos atos realizados pela pessoa jurídica.
Esta pessoa ou grupo unido por acordo extrairá sua ingerên-
cia sobre os “controladores de direito” - e, via de consequência,
também sobre a sociedade - de um vínculo não mais de natureza
creditícia, como no controle econômico, mas de natureza jurídica,
representado por uma cláusula contratual.
Ao firmarem entre si um contrato de parceria empresarial, por
exemplo, duas ou mais sociedades podem acordar que os atos de

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 361


controle referentes a uma ou mais dentre as participantes serão
praticados de acordo com a vontade exclusiva de outra das socie-
dades contratantes. Ocorrerá, por assim dizer, uma “transferência
contratual” do controle societário.
O controle societário, configurado pela imposição unilateral de
vontade aos atos da sociedade controlada, pode embasar-se sobre
diferentes fundamentos, sejam eles de ordem política (participação
no capital social), econômica (existência de créditos contra a socie-
dade controlada), administrativa (ocupação dos órgão de gestão) e,
por fim, jurídico (estabelecimento mediante acordo de vontades fir-
mado entre o antigo e o novo detentor do controle, através do qual
aquele se compromete a exercer seu poder de controle de acordo
com as orientações do segundo).
Se um acionista (ou sócio em geral) controlador firma contrato
mediante o qual se obriga a exercer seu poder de controle segundo
as orientações do outro contratante este acionista não mais pode
ser chamado de controlador, pois a vontade que orienta os atos da
sociedade não mais será a dele, mas a do outro contratante, que a
impõe devido ao contrato firmado.

6 – As modificações no poder de controle decorrentes


de compra e venda de ações

Já foi demonstrado que o poder de controle não se confunde


necessariamente com o seu efetivo exercício sobre a sociedade. O
poder de controle societário é decorrente, sempre, da titularidade
sobre o capital social, enquanto o efetivo uso deste poder advém,
nos citados casos de controle externo sobre a sociedade, de funda-
mentos administrativos, econômicos ou jurídicos.
O poder de controle, decorrente da titularidade sobre o capi-
tal social, pode ser alienado383, o que se faz, nos casos de controle
383 Em clássico estudo sobre o tema, Henry Manne fala em “Market for corporate control”
– em tradução aproximada, mercado para o controle societário – de forma a identificar as
diferentes modalidades de alienação do poder decisório na sociedade. MANNE. Henry. G.
Mergers and the Market for Corporate Control. The Journal of Political Economy, Vol. 73, No. 2.

362 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


externo da companhia, aos administradores (por meio da conces-
são de procurações), aos credores (em virtude do endividamento
da sociedade) ou a parceiros comerciais (mediante cláusulas con-
tratuais).
Nestas hipóteses, os titulares do capital social mantêm a sua
propriedade sobre as ações da companhia, mas transferem a ter-
ceiros o poder de impor sua vontade aos atos da sociedade, sejam
estes terceiros os administradores, os credores ou parceiros comer-
ciais.
Porém, a mais evidente forma de alienar o poder de controle
sobre uma sociedade está na transferência da titularidade sobre as
próprias ações componentes do capital social. Neste caso, o adqui-
rente destas ações vai se tornar, como exigido pelo art. 116 da Lei n.
6.404/76, o acionista controlador da companhia, já que terá o poder
de maioria na eleição dos administradores e nas deliberações da
assembleia geral.
A transferência do poder de controle sobre a sociedade de-
corre, nestes casos, da alienação das próprias ações da companhia
e não apenas do poder de decidir sobre as atividades sociais, como
nos casos de controle externo da sociedade. Além disso, nestes
casos o quadro de sócios se modifica ou, pelo menos, a estrutura
interna de divisão do capital social será alterada.
Assim, é muito comum que alguém queira adquirir ações de
uma companhia em número suficiente para eleger a maioria dos
seus administradores e prevalecer sua vontade nas deliberações da
assembleia geral, tornando-se, nos citados termos do art. 116 da Lei
n. 6.404/76, o seu acionista controlador.
Por outro lado, ações são, especialmente em companhia
abertas, bens de livre negociação, o que autoriza seus titulares a
aliená-las a quem quiserem, no momento e preço que lhes forem
convenientes. É essa a premissa básica do mercado de valores mo-
biliários.

(Apr., 1965), Pg. 110-120.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 363


O mercado de compra e venda de ações para transferência de
controle societário envolve, em princípio, três polos distintos de in-
teresses a serem mais diretamente considerados como relevantes
na operação384.
O primeiro destes polos de interesses refere-se à pessoa, gru-
po, fundo de investimento ou universalidade de direitos que pre-
tende adquirir ações da companhia em quantidade suficiente para
sobre ela ter o poder de controle, nos termos do art. 116 da Lei n.
6.404/76. A esta pessoa, grupo, fundo de investimento ou universa-
lidade chama-se de ofertante.
O segundo núcleo de interesses é formado pelos acionistas
da companhia cujo controle o ofertante deseja adquirir, a chamada
companhia alvo. Os sócios da companhia alvo são os titulares das
ações almejadas pelo ofertante, ao menos em número suficiente
para que ele possa assumir o controle sobre a sociedade.
Um terceiro polo de interesses a ser considerado nos casos
de compra e venda de ações para transferência de controle é for-
mado pelos administradores da companhia objeto. Este grupo deve
ser considerado pois as operações aqui tratadas costumam refletir
sobre sua posição na companhia objeto, que em geral passa, com a
alteração na sua estrutura de controle, por modificações de nomes
ou cargos em sua estrutura administrativa.
Considerar os custos, benefícios e respectivos incentivos de
cada um destes principais polos de interesses é fundamental para
a eficiente disciplina das operações de compra e venda de ações
para transferência de controle societário. A regulação jurídica des-

384 A menção específica aos polos de interesses descritos não exclui a existência de outros
grupos ou pessoas a serem tutelados. Uma operação de transferência de controle sobre
uma sociedade gera diversas externalidades – positivas e negativas – que podem alcançar,
por exemplo, os empregados da companhia, seus fornecedores, credores, concorrentes e,
mesmo, o mercado em geral.
A opção por esses três polos principais se justifica pois, sob o aspecto eminentemente
societário, são a eles – e seus possíveis conflitos – que se dirige a regulação legal. Outros
grupos são tutelados juridicamente por mecanismos ou regimes específicos. É o caso, por
exemplo, do mercado, cuja concorrência pode ser comprometida em uma operação como a
aqui descrita. Para isso se disciplina as regras e organizações de proteção, consolidadas na
Lei n. 12.529/2011.

364 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


tas operações deve levar em consideração as possíveis falhas des-
te mercado de transferência de controle e criar mecanismos para
corrigi-las.
A principal falha de mercado na relação entre o ofertante e os
acionistas da companhia objeto está na assimetria de informação
entre eles. Os acionistas da companhia objeto têm, em regra, difi-
culdade em avaliar se o valor oferecido por suas ações é economi-
camente justo ou se não estaria excessivamente baixo em relação
ao valor que a companhia tem para o ofertante.
A principal tarefa da legislação consiste, neste caso, em propi-
ciar eficientes mecanismos de resposta à seguinte pergunta: como
os acionistas da companhia objeto podem avaliar se é justo o preço
que o ofertante quer pagar por suas ações?
No que tange à relação entre os administradores da compa-
nhia objeto e seus acionistas, a principal falha de mercado está no
conflito de agência entre eles, pois os administradores tendem, nas
operações envolvendo a transferência de controle, a se preocupar
mais com seus próprios interesses na companhia objeto do que
com a geração de riqueza para a pessoa jurídica ou seus acionistas.
Quando diante da perspectiva de uma compra e venda de
ações para transferência de controle sobre a sociedade por eles
administrada, os gestores se deparam, em geral, com a inseguran-
ça quanto ao seu futuro na companhia objeto. A chegada de um
novo acionista controlador significa, em princípio, nova orientação
administrativa, com a consequente mudança de pessoas e funções.
Assim, diante de tal perspectiva, muitas vezes os administra-
dores da companhia objeto priorizam, numa situação de transfe-
rência de controle aqui analisada, a preservação de suas funções e
não a melhor opção para os acionistas ou para a pessoa jurídica.385
385 At times of takeover, shareholders are implicitly asking the top-level managers of their firm
to negotiate a deal for them that frequently involves the imposition of large personal costs on the
managers and their families. These involve substantial moving costs, the loss of position, power,
and prestige, and even the loss of their jobs. Shareholders are asking the very people who are
most likely to have invested considerable time and energy (in some cases a life’s work) in building
a successful organization to negotiate its sale and the possible redirection of its resources.
JENSEN. Michael C. The takeover controversy: analysis and evidence. Midland Corporate

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 365


A principal função da legislação é, neste aspecto, corrigir a
seguinte falha de mercado: como evitar que os administradores da
companhia objeto comportem-se, na operação de transferência de
controle, apenas em função de seus próprios interesses, deixando
de lado os acionistas e a companhia objeto?
A compra e venda de ações para transferência de controle so-
cietário acarreta ainda um sério conflito de agência entre o acionista
controlador da companhia objeto e seus demais sócios, o qual tam-
bém precisa ser corrigido pela regulação jurídica destas operações.
Trata-se da alocação do chamado “prêmio de controle”. Para que se
compreenda esse conflito de agência é preciso abordar um aspec-
to inerente às ações de uma companhia.
É inegável que as ações do acionista controlador trazem con-
sigo um atributo ou “prêmio” particular, pois só elas dão ao seu ti-
tular o poder de controlar a companhia através da eleição dos seus
administradores e deliberações da assembleia geral (art. 116 da Lei
n. 6.404/76).
Assim, é natural que alguém que queira comprar ações de
uma companhia, para controlá-la, se disponha a pagar mais para
cada uma das ações do acionista controlador, em relação ao preço
que pagaria para cada uma das ações dos demais acionistas.
As ações do acionista controlador trazem consigo algo que as
demais ações da companhia não têm, que é o poder de controlar
a sociedade. Exatamente porque elas agregam algo exclusivo – o
chamado “prêmio de controle” – elas valem mais para os possíveis
adquirentes.
Entretanto, permitir que o acionista controlador possa interna-
lizar todos os ganhos decorrentes desse sobrevalor de suas ações
é fator de ineficiência no mercado de valores mobiliários, pois tal
sobrevalor só existe em virtude da colaboração de terceiros e dos
acionistas minoritários da companhia.
Já foi salientado que o controle sobre a sociedade não com-
põe o patrimônio de quem o exerça. A verdade é que o controle só
Finance Journal, Volume 4, No. 2, Summer 1986. Pg. 45.

366 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


existe porque há sócios minoritários e, também, outros grupos que
compõem a atividade empresarial, como empregados, credores e
consumidores.
O que se quer salientar é que o acionista controlador só o é
porque existem sócios minoritários a sustentar e justificar sua posi-
ção. Justo, portanto, que parte do sobrepreço pago pelas ações do
controlador, caso ele as aliene, seja alocado em direção aos demais
acionistas da companhia.
Se apenas o acionista controlador se apropria do sobrevalor
de suas ações, ele está incorporando a totalidade dos ganhos de-
correntes da colaboração de todos os sócios – e terceiros - para
que a sociedade funcione. Ele internaliza os ganhos econômicos
do controle, mas externaliza aos demais sócios parte dos custos da
manutenção da sociedade.
Tem-se, portanto, que a regulação jurídica das operações de
compra e venda de ações para transferência de controle societário
precisa atuar especialmente sobre as seguintes falhas de mercado:
redução da assimetria de informações entre ofertante e acionistas
da companhia objeto, solução do conflito de agência entre os acio-
nistas e administradores da companhia objeto e alocação eficiente
do “prêmio de controle” pago pelo ofertante.
O principal mecanismo jurídico desenvolvido para corrigir as
falhas do mercado de transferência de controle societário está na
previsão de diferentes modalidades de ofertas públicas para aquisi-
ção de ações da companhia alvo, denominadas genericamente de
“Ofertas Públicas de Aquisição” e identificadas pela sigla OPA.
A precípua função desta oferta pública, destinada a todos os
acionistas da companhia objeto, é oferecer a estes sócios um trata-
mento igualitário na operação, de forma a evitar que alguns interna-
lizem ganhos ou perdas de forma diferente dos outros386.

386 “The principle of equal treatment basically requires that the person acquiring control over
the company is to ensure for the minority shareholders the possibility of exit from the company
subject to conditions that are at least as advantageous as the conditions ensured during the
acquisition of the share block providing control over the company”. KECSKÉS. András. HALÁSZ.
Vendel. Hostile takeover bids in the European Union: regulatory steps em route to an

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 367


Assim, para que se possa corrigir as apontadas falhas do mer-
cado de transferência de controle societário, a primeira medida é
colocar todos os acionistas da companhia objeto – minoritários e
controladores - em igualdade de tratamento, em relação ao ofer-
tante.
A essência da OPA está na previsão de que o ofertante deve,
se deseja adquirir ações da companhia objeto em número suficien-
te para controla-la, ofertar a todos estes acionistas – controladores
ou minoritários – as mesmas condições de compra das ações, de
forma a evitar favorecimentos ou, o que é pior, concorrência entre
os acionistas da companhia objeto, por condições melhores de ne-
gociação387.
A Lei n. 6.404/76 cuidou expressamente de várias modalida-
des de ofertas públicas para aquisição de ações, especialmente –
integrated capital Market. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte. N. 109. Jul/
dez 2014. Pg. 105.
387 Neste sentido o texto do art. 4º da Res. 85/2022 CVM que, ao regular a OPA,
dispõe: Na realização de uma OPA devem ser observados os seguintes princípios:
I – a OPA deve ser sempre dirigida indistintamente aos titulares de ações da mesma espécie
e classe daquelas que sejam objeto da OPA, assegurado o rateio entre os aceitantes de OPA
parcial;
II – a OPA deve ser realizada de maneira a assegurar tratamento equitativo aos destinatários,
permitir-lhes a adequada informação quanto à companhia objeto e ao ofertante, e dotá-los dos
elementos necessários à tomada de uma decisão refletida e independente quanto à aceitação
da OPA;
III – na hipótese do art. 2º, § 1º, a OPA deve ser previamente registrada na CVM, segundo a
modalidade adequada;
IV – a OPA deve ser intermediada por sociedade corretora ou distribuidora de títulos e valores
mobiliários ou instituição financeira com carteira de investimento;
V – a OPA deve ser lançada por preço uniforme, ressalvada a possibilidade de fixação de preços
diversos conforme a classe e espécie das ações objeto da OPA, desde que compatível com
a modalidade de OPA e se a diferença for justificada pelo laudo de avaliação da companhia
objeto ou por declaração expressa do ofertante quanto às razões de sua oferta diferenciada;
VI – sempre que se tratar de OPA formulada pela própria companhia, pelo acionista controlador
ou por pessoa a ele vinculada, ou ainda por administrador ou por pessoa a ele vinculada, a OPA
deve ser instruída com laudo de avaliação da companhia objeto, exceto no caso de OPA por
alienação de controle, ressalvado o disposto no art. 33, § 6º, II;
VII – a OPA deve ser efetivada em leilão em ambiente de mercado organizado de valores
mobiliários, salvo se for expressamente autorizada pela CVM a adoção de procedimento diverso;
VIII – a OPA pode sujeitar-se a condições, cujo implemento não dependa de atuação direta ou
indireta do ofertante ou de pessoas a ele vinculadas; e
IX – a OPA é imutável e irrevogável, após a divulgação do edital, exceto nas hipóteses previstas
no art. 6º.;

368 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mas não exclusivamente - quando se trata de operações em que a
compra e venda de ações da companhia resultará em transferência
do poder de controle sobre a sociedade.
A primeira delas é aquela disciplinada pelo art. 254-A da Lei
n. 6.404/76, e que deve ser efetuada como condição para que o
acionista controlador de uma companhia possa alienar suas ações
e, em consequência, o controle societário.
Outra importante modalidade de OPA está disciplinada no art.
257 e seguintes da Lei n. 6.404/76 e se refere à hipótese em que o
ofertante, interessado em adquirir o controle da companhia objeto,
busca entre os acionistas dela vendedores de ações em número
suficiente para isso.
Se o objetivo do ofertante é comprar ações da companhia ob-
jeto em número suficiente para se tornar o seu acionista controla-
dor, ele será obrigado a fazer uma oferta a todos os acionistas inte-
grantes desta companhia objeto. Neste caso (art. 257 e segs. da Lei
n. 6.404/76) a oferta pública não é uma condição, mas um meio, um
caminho para se adquirir ações da companhia objeto em número
suficiente para ter o seu controle.
A Comissão de Valores Mobiliários, por sua vez, regulou as
operações de OPA por meio de detalhadas regras consolidadas na
Resolução n. 85, editada em 2022. Em seu art. 2º, esta Instrução re-
fere-se a diversas modalidades de ofertas públicas, algumas obri-
gatórias, outras voluntárias.
A análise delas permite concluir que a sua exigência decorre,
em essência, de duas circunstâncias distintas, quais sejam: compra
e venda de ações que impactem na estrutura de controle da socie-
dade ou retirada das ações da companhia do mercado de valores
mobiliários, com sua consequente passagem à condição de socie-
dade anônima fechada.
Neste tópico se fará o estudo das ofertas públicas de aqui-
sição de ações em situações de transferência de controle sobre a
sociedade, uma vez que o uso da OPA como requisito para fecha-
mento do capital da companhia foi analisado em capítulo próprio.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 369


7 – A oferta pública de compra de ações como condição
para a transferência de titularidade das ações do
controlador de companhia aberta – Art. 254-A da Lei n.
6.404/76

Como dito, uma das falhas do mercado de transferência de


controle societário está em se admitir que o acionista controlador
que venda suas ações internalize a totalidade do “prêmio de con-
trole”, o qual, vale lembrar, significa o valor a mais pago por suas
ações em decorrência de seu poder de conferir o controle sobre a
sociedade.
De forma a alocar em todos sócios – e não apenas no contro-
lador - os benefícios pecuniários decorrentes da compra e venda
de ações para transferência de controle societário de companhia
aberta é que a Lei n. 6.404/76 traz, em seu artigo 254-A, a exigência,
como condição para a realização da transferência, de realização de
uma oferta pública.
Segundo o artigo 254-A da Lei n. 6.404/76, a alienação, direta
ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser
contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o ad-
quirente/ofertante se obrigue a fazer oferta pública para aquisição
das ações com direito a voto de propriedade de todos demais acio-
nistas da companhia objeto, de modo a lhes assegurar o preço no
mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com
direito a voto, integrante do bloco de controle.
Portanto, a Lei 6.404/76 obriga aquele que busca adquirir as
ações do acionista controlador de companhia aberta a oferecer aos
demais acionistas desta sociedade a compra de suas respectivas
participações, ao preço mínimo de 80% (oitenta por cento) do valor
oferecido para cada ação do acionista controlador388.
388 Utiliza-se a expressão tag along para referir-se a este direito conferido aos acionistas
minoritários. Paralela a esta modalidade – mas em sentido oposto – é a denominada “cláusula
de arraste” ou drag along. “Essas disposições [drag along rights] permitem que um sócio obrigue
os demais acionistas assinantes do acordo a alienar sua participação no capital da companhia.
O direito de arraste se sujeita à condição de que um terceiro formule uma oferta de compra de

370 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Esta oferta pública, obrigatória em caso de alienação, pelo
controlador, do controle da sociedade de capital aberto, é uma for-
ma de externalizar o “prêmio do controle”, compartilhando-o entre
todos os acionistas e não apenas com aquele que detém ações su-
ficientes para controlá-la389.
A falha de mercado consistente na assimetria de informação
que, em regra, se verifica entre o ofertante e os acionistas – es-
pecialmente minoritários - da companhia objeto da oferta pública
também encontra, ainda que de forma indireta, eficiente solução no
art. 254-A da Lei n. 6.404/76.
A apontada assimetria de informação consiste na insegurança
dos acionistas da companhia objeto quanto ao valor que é ofere-
cido, em uma OPA, por suas ações. Decidir aceitar ou não a oferta
depende essencialmente de um mecanismo eficiente de formação
do preço das ações da companhia objeto, bem como de instrumen-
tos jurídicos que confiram credibilidade e certeza quanto ao efetivo
cumprimento dos termos da oferta apresentada.
O art. 254-A da Lei n. 6.404/76 e a Resolução CVM n. 85/2022
contêm previsões que interferem de maneira eficiente tanto sobre a
formação do preço da oferta na OPA quanto sobre a credibilidade e
certeza de seu cumprimento.
Quando pretende adquirir as ações de controlador de compa-
nhia aberta, o ofertante é obrigado, por força do que dispõe o ora
comentado art. 254-A da Lei n. 6.404/76, a embutir, nos custos de
aquisição do controle, os valores que terá de desembolsar em favor
dos acionistas que aceitarem a oferta pública obrigatoriamente a
eles dirigida390.

ações de algum dos acionistas assinantes. No evento desta condição, tal sócio poderá obrigar
os demais acionistas a alienar suas respectivas participações no capital social. Assim, o terceiro
adquirente terá à sua disposição as ações de todos os acionistas assinantes do acordo.” REYES.
Francisco. Direito Societário Americano. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2012. Pg. 273.
389 Igualmente certo é afirmar que a oferta pública exigida pelo art. 254-A da Lei n. 6.404/76
torna mais cara a aquisição do controle de uma companhia aberta, pois o ofertante/
adquirente precisará comprar, além das ações do controlador, também as ações dos demais
acionistas que decidirem aderir à oferta pública obrigatoriamente feita em favor deles.
390 Outra forma de alocação do “prêmio de controle” admitida pelo art. 254-A da Lei n.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 371


Em função disso, o valor que o ofertante se dispõe a pagar pe-
las ações do acionista controlador não pode exorbitar em muito seu
valor de mercado, sob pena de tornar a aquisição financeiramente
inviável ou desinteressante, já que este sobrepreço será pago tam-
bém aos acionistas minoritários que aceitarem a oferta pública.
Assim, em suas negociações para transferência de ações – e,
consequentemente, de controle – acionista controlador e ofertan-
te tendem a estabelecer um “prêmio de controle” que, mesmo se
estendido aos demais acionistas, não comprometa a viabilidade fi-
nanceira da aquisição.
Deste modo, se, por um lado, o controlador não pode exigir
valor exorbitante por suas ações, também não aceitará valor inferior
ao que ele deve, diante das informações que detém sobre a reali-
dade econômico-financeira da companhia, aceitar.
O que se quer dizer é que o acionista controlador da compa-
nhia alvo não está – como em regra se vê no caso de acionistas mi-
noritários – em posição de assimetria informacional em relação ao
ofertante. Ao contrário, o acionista controlador dispõe de informa-
ções suficientes sobre a realidade econômico-financeira da compa-
nhia para que possa avaliar de maneira fundamentada o preço que
pode pedir por suas ações.
Se entre o acionista controlador e o ofertante não há significa-
tiva assimetria informacional sobre o justo valor das ações391, atrelar

6.404/76 é o seu pagamento aos acionistas minoritários da companhia objeto, sem que eles
precisem transferir suas ações ao ofertante e novo acionista controlador.
Neste caso, o ofertante pode não se dispor a adquirir as ações dos minoritários da companhia
objeto, mas se obriga a pagar-lhes o “prêmio de controle”, consubstanciado na diferença
entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle
(art. 254-A, par. 4º da Lei n. 6.404/76).
391 A preocupação em reduzir a assimetria de informação aqui abordada está também
expressa na Resolução CVM n. 85/2022 que, como se viu, regulamenta a OPA. Em seu art.
13, esta Resolução da CVM exige que o instrumento da OPA – documento que explicita os
termos da oferta - seja firmado conjuntamente pelo ofertante e pela instituição intermediária
e contenha, além de outros requisitos descritos, declarações do ofertante e da instituição
intermediária de que desconhecem a existência de quaisquer fatos ou circunstâncias, não
revelados ao público, que possam influenciar de modo relevante os resultados da companhia
objeto ou as cotações de suas ações.

372 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


o valor da oferta pública aos minoritários392 ao preço pedido e acer-
tado com o controlador da companhia alvo permite a estes acio-
nistas minoritários maior confiança na pertinência do preço que re-
ceberão, na oferta pública, por suas participações no capital social.
Assim, a oferta pública obrigatória do art. 254-A da Lei n.
6.404/76 impede, ainda que de forma indireta, que as ações do
acionista controlador sejam, em relação ao seu valor de mercado,
excessivamente sobre ou subvalorizadas, o que provocaria uma for-
mação artificial de preço.
Esse eficiente mecanismo de formação de preço funciona,
a um só tempo, como elemento impeditivo de eventual conduta
oportunista do acionista controlador – que poderia pedir valor ex-
cessivamente alto como “prêmio de controle” – e confere, aos mi-
noritários, maior segurança quando à adequação financeira do valor
ofertado por suas ações.
Outra falha de mercado corrigida pelo artigo 254-A da Lei n.
6.404/76 e pela Res. CVM n. 85/2022 está na possível inseguran-
ça dos destinatários da oferta pública – os acionistas minoritários
da companhia objeto – quanto ao efetivo cumprimento, a tempo
e modo oferecidos, das condições de compra de suas ações, pelo
ofertante.
A presença obrigatória de corretora ou instituição financeira
na operação – que funciona tanto como intermediária quanto como
garantidora da oferta pública393 – torna quase nulo o risco de ina-
dimplemento.
392 Dá-se o nome de tag along a este valor mínimo que, na hipótese de alienação de controle
de companhia, deve obrigatoriamente ser oferecido aos acionistas minoritários.
393 Res. 85/2022 da Comissão de Valores Mobiliários, Art. 8º - O ofertante deve contratar a
intermediação da OPA com sociedade corretora ou distribuidora de títulos e valores mobiliários
ou instituição financeira com carteira de investimento.
§ 1º O ofertante é responsável pela veracidade, qualidade e suficiência das informações
fornecidas à CVM e ao mercado, bem como por eventuais danos causados à companhia
objeto, aos seus acionistas e a terceiros, por culpa ou dolo, em razão da falsidade, imprecisão
ou omissão de tais informações.
§ 2º A instituição intermediária deve tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões
de diligência para assegurar que as informações prestadas pelo ofertante sejam verdadeiras,
consistentes, corretas e suficientes, respondendo pela omissão nesse seu dever, devendo ainda
verificar a suficiência e qualidade das informações fornecidas ao mercado durante todo o

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 373


Ao mesmo tempo, o art. 254-A da Lei n. 6.404/76 fixa a re-
gra da irretratabilidade dos termos oferecidos pelo ofertante,394 o
que permite aos minoritários formar com segurança sua decisão de
aceitar ou não as condições oferecidas.
Acrescente-se a isso a obrigatória presença da Comissão de
Valores Mobiliários em todas as fases da operação395 - e no exercí-
cio de várias de suas atribuições legais, especialmente a de fisca-
lização, registro e regulamentação – e será inevitável concluir pela
enorme credibilidade e segurança do procedimento aqui comen-
tado.

procedimento da OPA, necessárias à tomada de decisão por parte de investidores, inclusive as


informações eventuais e periódicas devidas pela companhia, e as constantes do instrumento de
OPA, do laudo de avaliação e do edital.
§ 3º A instituição intermediária deve auxiliar o ofertante em todas as fases da OPA, e dele solicitar
a prática dos atos necessários ao correto desenvolvimento da oferta, bem como a cessação
de atividades que prejudiquem tal desenvolvimento, devendo interromper seus serviços em
hipótese de recusa do ofertante, sob pena de não se eximir das responsabilidades impostas
nesta Resolução.
§ 4º A instituição intermediária deve garantir a liquidação financeira da OPA e o pagamento do
preço de compra, em caso de exercício da faculdade a que se refere o § 2º do art. 13.
§ 5º A instituição intermediária, seu controlador e pessoas a ela vinculadas, devem apresentar as
informações previstas nos itens IX a XII do art. 1º do Anexo B em relação aos valores mobiliários
e derivativos referenciados em valores mobiliários da companhia objeto de que sejam titulares,
ou que estejam sob sua administração discricionária.
§ 6º Ao ser contratada para a intermediação de OPA, a sociedade corretora ou distribuidora de
títulos e valores mobiliários ou instituição financeira com carteira de investimento, bem como
pessoas a ela vinculadas que atuem no mercado financeiro, ficam impedidas de negociar com
valores mobiliários de emissão da companhia objeto, ou a eles referenciados, bem como de
efetuar pesquisas e relatórios públicos sobre a companhia e a operação.
394 De acordo com a Res. 85/2022 da Comissão de Valores Mobiliários, a alteração nos
termos da oferta só pode ser feita se for para torná-la mais vantajosa para os destinatários,
sob autorização da Comissão de Valores Mobiliários ou se tal possibilidade de modificação
já fosse previamente informada aos destinatários, no instrumento que formalizou a oferta.
395 Art. 254-A da Lei n. 6.404/76 (...) § 2o A Comissão de Valores Mobiliários autorizará a
alienação de controle de que trata o caput, desde que verificado que as condições da oferta
pública atendem aos requisitos legais. (...)
§ 3o Compete à Comissão de Valores Mobiliários estabelecer normas a serem observadas na
oferta pública de que trata o caput.

374 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


8 – A oferta pública para compra de ações como
meio de aquisição do poder de controle sobre uma
companhia aberta: art. 257 e seguintes da Lei n.
6.404/76

Situação semelhante, mas diversa é a disciplinada no art. 257


da Lei n. 6.404/76, a qual parte da mesma premissa fática do supra
comentado art. 254-A, qual seja: uma pessoa, grupo ou universa-
lidade tem interesse em adquirir ações da companhia objeto em
montante suficiente para tornar-se, nos termos do art. 116 da Lei n.
6.404/76, seu acionista controlador.
Porém – e diferentemente da hipótese cuidada no art. 254-A
da Lei n. 6.404/76 - neste caso o ofertante buscará essas ações não
através de negociação direta com o acionista controlador, mas en-
tre todos os acionistas da companhia objeto.
Assim, em vez de negociar com o acionista controlador da
companhia objeto a aquisição das ações dele – e, por consequên-
cia, do controle sobre a sociedade – o ofertante vai atrás destas
ações no mercado, fazendo um convite – oferta pública – a todos os
acionistas da companhia que quiserem vender-lhe suas ações até
que seja atingido o montante suficiente para a aquisição do contro-
le.
Aqui o ofertante dirige-se não apenas ao acionista controlador
da companhia objeto, mas indistintamente a todos os seus acionis-
tas, convidando-os a venderem-lhe suas ações, as quais ele pre-
tende adquirir em montante suficiente para, nos termos do art. 116
da Lei n. 6.404/76, conseguir eleger a maioria dos administradores
e nas deliberações da assembleia geral de acionistas da companhia
objeto396.
Esta forma de aquisição de controle de uma companhia aber-
ta deve ser regulada juridicamente pois também apresenta possí-
396 Esta forma de aquisição de controle somente funciona se a companhia objeto não está
sujeita a controle majoritário, pois, se assim for, o ofertante precisará necessariamente de
adquirir as ações deste controlador majoritário, na forma do já discutido art. 254-A da Lei n.
6.404/76.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 375


veis falhas de mercado a serem corrigidas. Duas das mais evidentes
tutelas são a garantia de extensão, em termos idênticos, da oferta
a todos os acionistas da companhia objeto e a confiabilidade do
cumprimento, a tempo e modo, da oferta realizada.
Como instrumento de credibilidade e segurança financeira e
jurídica da oferta, a Lei n. 6.404/76 estabelece a obrigatória inter-
mediação da operação por instituição financeira (art. 257 caput), o
registro prévio na CVM, em caso de oferta de permuta (art. 257 par.
1º) e a irrevogabilidade da oferta (art. 257 par. 2º) lançada.
O tratamento igualitário entre todos os destinatários da ofer-
ta é garantido pela obrigatória divulgação, pela imprensa, de suas
condições (art. 258 da Lei n. 6.404/77), bem como do prazo mínimo
de 20 (vinte) dias para aceitação.
Está também legalmente garantido que, em havendo melho-
ra nas condições da oferta (art. 261 par. 1º da Lei n. 6.404/76) esta
alteração obrigatoriamente se estenderá a todos os acionistas da
companhia objeto, inclusive aqueles que acaso já tenham aceitado
a proposta original.
Em relação ao ofertante, há dois aspectos que precisam ser
salientados, por serem de especial relevância. O primeiro deles é
a necessidade de aprovação, pela Assembleia Geral de Acionistas,
de qualquer operação destinada a aquisição do controle de outra
sociedade, se a ofertante/adquirente for companhia aberta e esti-
verem presentes uma ou mais das condições estabelecidas no art.
256 da Lei n. 6.404/76397.
Por outro lado, o ofertante não é obrigado a adquirir todas as
ações daqueles que aceitarem a oferta pública de aquisição, rea-
lizada nos termos do aqui abordado art. 257 e seguintes da Lei n.
6.404/76. Se o objetivo da oferta é adquirir o controle da companhia

397 Esta exigência de aprovação, pela Assembleia Geral de Acionistas da ofertante, quando
tratar-se de companhia aberta, vale também para o caso da oferta pública disciplinada
pelo art. 254-A da Lei n. 6.404/76. De fato, em qualquer operação de aquisição do controle
de outra companhia, a ofertante/adquirente está, em geral, realizando um movimento de
elevado risco e investimento, o que, em última análise, justifica a exigência legal de prévia
aprovação assemblear.

376 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


objeto, ao ofertante bastam ações suficientes para que ele possa,
nos termos do art. 116 da Lei n. 6.404/76, caracterizar-se como acio-
nista controlador da sociedade em questão.
Por isso, o art. 258 da Lei n. 6.404/76 permite que o instrumen-
to da oferta de compra preveja uma forma de rateio, entre os des-
tinatários que aceitarem tal oferta, de modo a manter o tratamento
igualitário entre eles sem obrigar o ofertante a adquirir um número
de ações da companhia objeto maior do que o necessário para con-
ferir-lhe o controle.
Por outro lado, se não houver, dentre os acionistas que acei-
tarem a oferta, ações suficientes para aquisição do controle da
companhia objeto, não se pode obrigar o ofertante a sustentar a
proposta, ou seja: o ofertante não será obrigado a honrar a oferta
pública de aquisição se não houver aceitantes suficientes para tor-
ná-lo acionista controlador da companhia objeto (art. 258, III da Lei
n. 6.404/76) 398.

9 – Ofertas hostis e pílulas de veneno

A transferência de controle acionário em companhias abertas


é, como se demonstrou, vinculada à realização de uma oferta pú-
blica de compra de ações, seja esta uma condição para a realiza-
ção da operação (art. 254-A da Lei n. 6.404/76) ou um meio para se
conseguir a titularidade do controle da companhia objeto (art. 257 e
seguintes da Lei n. 6.404/76).
Entretanto, há situações nas quais o interessado na aquisição
do controle da companhia objeto toma esta iniciativa sem observar

398 “As ofertas públicas de aquisição – ou, abreviadamente, OPA – São propostas dirigidas ao
público tendo em vista a aquisição de valores mobiliários, através de um processo estabelecido
e lei. Ao contrário do que sucede em relação às emissões, as ofertas de aquisição apelam a uma
decisão de alienação de valores mobiliários: visam decisões de desinvestimento.
Apesar da intermediação, a oferta dirige-se aos titulares dos valores mobiliários emitidos pela
sociedade visada: depende, pois, do grau de aceitação por estes o sucesso ou insucesso da
oferta”. CÂMARA. Paulo. As ofertas públicas de aquisição. CÂMARA. Paulo. (coord.). Aquisição
de Empresas. Coimbra Editora. Coimbra. 2011. Pg. 162.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 377


as regras referentes à oferta pública disciplinada pelos art. 257 e
seguintes da Lei n. 6.404/76.
Tal ato é denominado tomada hostil de controle (hostile
takeover) 399 e se implementa, em princípio, com a realização, pelo
interessado na aquisição do controle, de sucessivas compras de
ações da companhia objeto, no mercado de valores mobiliários,
sem a prévia comunicação aos administradores desta companhia.
O interessado em realizar a tomada hostil do controle de uma
companhia aberta vai, no mercado de valores mobiliários, realizan-
do sucessivas compras de ações da sociedade objeto – normal-
mente por valores superiores aos da cotação praticada no momen-
to – sem a prévia comunicação aos administradores da companhia
cujo controle é almejado, de forma a escapar da necessidade de
adesão destes à operação e da exigência de cumprimento do pro-
cedimento disciplinado pelos art. 257 e seguintes da Lei n. 6.404/76.
Este tipo de aquisição de controle só pode ser implementa-
do em sociedades nas quais inexista uma pessoa ou grupo contro-
lador majoritário. A sociedade objeto é caracterizada por alto grau
de dispersão de suas ações, o que facilita o ato daquele que, por
sucessivas compras, pretende chegar a um número de ações da
companhia objeto capaz de lhe tornar seu controlador.
Ressalte-se que a participação dos administradores da com-
panhia objeto na operação de oferta pública para aquisição de con-
trole (art. 257 e seguintes da Lei n. 6.404/76) tem, em princípio, o
objetivo de tutelar os interesses dos acionistas desta companhia
objeto.
Presume-se que os administradores da companhia objeto
zelem para que a oferta pública se realize nos termos da lei e no
melhor interesse dos acionistas destinatários da proposta400, o que
399 BETTON. Sandra. MOLSON. John. ECKBO. B. Espen. THORBURN. Karin. Corporate
Takeovers. Tuck School of Business Working Paper No. 2008-47. Social Science Research
Network Electronic Paper Collection: http://ssrn.com/abstract=1131033
400 A necessidade de participação dos administradores é amparada, dentre outros, no
argumento de que são eles – e não os acionistas da companhia objeto – que têm informações
e meios suficientes para mensurar a pertinência do valor oferecido em oferta pública.
Além disso, os acionistas da companhia objeto – caracterizada, como se viu, pela inexistência

378 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


vai, por outro lado, de encontro aos interesses do proponente, que
deseja adquirir o controle pelo menor custo possível. Daí as suces-
sivas compras de ações sem contato com os administradores da
sociedade objeto.
Há, porém, um outro aspecto da questão. A adesão dos ad-
ministradores da companhia objeto está, de fato, condicionada à
preservação de seus interesses individuais. Mudanças no controle
de uma sociedade geralmente significam alterações na estrutura
ou composição dos órgãos de gestão, algo que afeta diretamente o
interesse dos administradores da companhia objeto.
Por isso, a adesão destes administradores à operação de ofer-
ta pública do art. 257 e seguintes da Lei n. 6.404/76 demandaria, do
proponente, a capacidade de lhes convencer de que, após a altera-
ção no controle societário, seus interesses pessoais, como gestores
da sociedade objeto, não serão comprometidos.
Com a tomada hostil de controle, o proponente não precisa da
adesão dos administradores da companhia objeto e pode, portanto,
descartá-los como um núcleo de interesses a ser observado para o
sucesso da operação.
Outro ponto relevante a se observar é o nítido conflito de
agência entre os administradores e os acionistas da companhia ob-
jeto. Aqueles estão mais preocupados em preservar seus interesses
pessoais do que em zelar pela melhor oferta aos acionistas. Assim,
a oferta hostil é rechaçada não pelos acionistas da companhia ob-
jeto – que têm a opção de aceitar ou não a proposta – mas pelos
administradores da sociedade em questão401.
de controlador majoritário – são presumidamente incapazes de se organizar para, em
conjunto, obterem melhores condições do proponente da oferta pública, o que se afigura
outro fundamento para se exigir a participação, na operação, dos administradores desta
sociedade objeto.
401 Para Easterbrook e Fischer, a legislação deveria impedir que os administradores da
companhia objeto da tomada hostil de controle agissem no sentido de barrar a operação,
deixando apenas aos acionistas destinatários da oferta a decisão de alienar ou não suas
participações. Haveria, no caso, um certo “dever de neutralidade” dos administradores da
companhia objeto, em caso de tomadas hostis de controle. EASTERBROOK. Frank H. FISCHER.
Daniel R. The Economic Structure of Corporate Law. Harvard University Press. Massachussets.
1991. Pg. 109 e segs.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 379


Uma solução desenvolvida originalmente nos Estados Unidos
foi estabelecer, em cláusula estatutária, regras que protegessem a
companhia contra a tomada hostil de seu controle, de forma a tu-
telar o interesse dos acionistas da companhia objeto e, também, de
seus administradores.
Tais cláusulas, denominadas poison pills, (literalmente, “pílulas
de veneno”) estabeleceriam tal grau de exigência para aquele que
pretendesse realizar a tomada hostil de controle que, na prática, tal
operação se tornaria economicamente desinteressante.
As pílulas de veneno foram criadas como mecanismo de defe-
sa contra a oferta hostil, pois trata-se de cláusulas estatutárias que
estabelecem, para o pretenso adquirente, graves ônus decorrentes
de seu ato de comprar ações da companhia objeto em percentual
superior ao indicado no estatuto. Assim, cria-se um sobrepreço na
aquisição hostil de controle.
Em seu formato primordial, a pílula de veneno dá aos acionis-
tas da companhia objeto, diante de uma oferta hostil para aquisição
de seu controle, o direito de adquirem novas ações a serem emi-
tidas pela companhia objeto ou de vender, a preços altos, as suas
próprias ações ao autor da tentativa de tomada de controle402.
Com o tempo, tais pílulas de veneno foram ganhando, na prá-
tica societária norte americana, diversas variantes, todas com a es-
sência comum de preservar o interesse dos acionistas e adminis-
tradores de companhias alvo de tomadas hostis de controle. Veja
abaixo alguns exemplos, elencados por Jorge Eliseu Martins Vieira
e Luis Paulo Lopes Fávero.

402 JARRELL. Gregg A. BRICKLEY. James A. NETTER. Jeffry M. in. Foundations of corporate
Law. ROMANO. Roberta. Org. Foundation Press. New York. Pg. 271.

380 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Shark-repellent (repelente de tubarão): medidas tomadas pela administração
da companhia-alvo ou cláusulas contratuais que na mesma linha das poison
pills inviabilizam as aquisições hostis. Um exemplo é a inserção de dispositivos
nos contratos de trabalho celebrados com os administradores da companhia
(membros de CA e diretoria), que garantam a esses pesadas indenizações,
no caso de rescisões de seus contratos após uma aquisição hostil (golden
parachute ou paraquedas dourado), o que torna precário o poder de controle de
um proponente comprador da companhia-alvo, uma vez consumada a transação.
Há, ainda, uma medida que compreende uma operação de incorporação de
uma terceira companhia pela companhia-alvo (incorporação defensiva), com o
objetivo de acionar disposições de normas antitruste de Reguladores do direito
econômico e da livre concorrência14, caso em seguida seja formulada a OPA de
controle. Outros exemplos de shark repellents são disposições estatutárias que
conferem mandatos alternados aos membros de conselho de administração
- staggered board (e com isso restringe o poder de atuação do adquirente hostil,
via nomeações de novos membros) ou requerem um quorum qualificado (2/3 ou
3/4 de votos, por exemplo), para deliberação em Assembleia Geral de Acionistas,
quando a matéria for OPA de controle, o que requer uma adesão substancial de
acionistas à oferta.

Pac man (denominação extraída de tradicional vídeo game): operação defensiva


segundo a qual a companhia-alvo começa a adquirir ações de companhia que
seja sua potencial compradora, visando a inverter a situação. Intenta a aquisição
hostil da potencial compradora. No Brasil, esse tipo de operação teria como
reforço disposições da lei voltadas às participações recíprocas, que as vedam
acima de determinados limites (art. 244 da Lei 6.404/76).

Scorched-earth policy (política da terra arrasada): medida adotada pela


administração da companhia-alvo que compreende ou a venda da principal linha
de negócios da companhia-alvo ou a venda dos seus principais ativos (crown
jewels) ou o planejamento do vencimento antecipado de todas as suas dívidas.
Esse tipo de estratégia, no Brasil, esbarraria em disposições da lei, voltadas ao
controle dos atos praticados pelos administradores (deveres e responsabilidades,
disciplinados pelos artigos 153 a 160 da Lei 6.404/76).

White knight (cavaleiro do bem): medida adotada pela administração da


companhia-alvo que consiste em procurar um investidor amigável que esteja
interessado em defendê-la de uma aquisição hostil, e propenso a formular uma
OPA de controle concorrente. O investidor formula uma outra OPA com a qual
a administração da companhia alvo trabalhará no convencimento dos seus
acionistas.

VIEIRA. Jorge Eliseu Martins. FÁVERO. Luis Paulo Lopes. Poison Pills no Brasil:
um estudo exploratório. Revista de Contabilidade Financeira. Vol. 20. No. 50. São
Paulo. Maio/Agosto. 2009.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 381


No Brasil, a modalidade mais usada de pílula de veneno é a
que estipula, para aquele que adquirir, em mercado de valores mo-
biliários, um certo percentual de ações da companhia objeto, o de-
ver de realizar uma oferta pública de compra, direcionada a todos
os demais acionistas desta sociedade.
A diferença fundamental é que enquanto na oferta pública do
art. 257 e seguintes da Lei n. 6.404/76 o valor é fixado através de
critérios legalmente estabelecidos, a pílula de veneno prevê, para
o adquirente do percentual de ações da companhia objeto fixado
pelo estatuto, a obrigação de realizar uma oferta pública por valores
absurdamente altos.
Torna-se, então, na prática, economicamente inviável qual-
quer aquisição de ações da companhia objeto em percentual su-
perior ao previsto no estatuto com capaz de disparar a exigência da
oferta pública de compra.
Se, em uma companhia caracterizada pela dispersão acioná-
ria, esta medida é vista como protetiva aos interesses de seus acio-
nistas e administradores, em sociedades nas quais haja controlador
majoritário, uma previsão como esta acaba, na prática, tendo o efei-
to inverso, pois não há ninguém que queira comprar as ações dos
acionistas minoritários de sociedades nas quais haja uma exigência
de oferta pública, por preços exorbitantes403.
É, assim, amplamente majoritária – para não dizer unânime –
a crítica da doutrina ao formato que se deu às pílulas de veneno
no Brasil, pois, em uma realidade de controle majoritário – como a
maior parte das companhias brasileiras404 – tais cláusulas funcio-
403 “Na OPA obrigatória a oferta compulsória de aquisição acarreta uma repartição do prêmio
de controle (...), posterior, contudo, à sua alienação. Na poison pill brasileira, por outro lado, a
obrigatoriedade da oferta de aquisição inibe ou impede a aquisição de uma posição acionária
relevante, capaz de ameaçar o poder detido pelos controladores. ZANINI. Carlos. Klein. A poison
pill brasileira: desvirtuamento, antijuridicidade e ineficiência. (In.) ADAMEK. Marcelo Vieira Von
(Coord.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Ed. Malheiros. São Paulo.
2012. Pg. 265.
404 “Se nos Estados Unidos as poison pills tinham o objetivo exclusivo de inviabilizar tomadas
de controle acionário repentinas, no Brasil esse instituto jurídico tem sido utilizado por empresas
que jamais correriam o risco de aquisição hostil de controle e, até mesmo, por aquelas que já
possuem um controle acionário bem definido.

382 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


nam apenas como fatores protetivos dos controladores, que jamais
terão seu poder ameaçado.405

10 – Sociedades coligadas e participações recíprocas

Neste capítulo foram abordados, até o presente momento,


diferentes aspectos referentes à realidade do controle societário.
Uma pessoa – física ou jurídica – grupo ou mesmo ente desperso-
nalizado que determina, como sua vontade, os atos a serem prati-
cados por uma sociedade.
É preciso, porém, observar que nem sempre a participação
de uma sociedade no capital social de outra é na condição de con-
troladora, ou seja: é perfeitamente possível, lícito e corriqueiro que
uma sociedade seja titular de direitos de sócia sobre outra sem, en-
tretanto, ser sua controladora.
A realidade em que uma sociedade é titular de quotas ou
ações de outra sem, entretanto, controlá-la é disciplinada tanto
pelo Código Civil (art. 1. 097 a 1.101) quanto pela Lei n. 6.404/76 (art.
243 da Lei n. 6.404/76), e tem por referência primordial a noção de
coligação entre sociedades406.

Além disso, muitas vezes, as poison pills são protegidas pelas chamadas “cláusulas pétreas”,
as quais dificultam a alteração ou exclusão da pílula de veneno (...).” CATEB. Alexandre Bueno.
SOUZA ROCHA. CARMEN Godoy Vieira de. PIMENTA. Eduardo Goulart. SIQUEIRA. Izes.
VELOSO. Silvia Mechelany. Breve Estudo sobre as poison pills no Brasil – O caso MRV versus
o caso Tenda. Revista de Direito Empresarial. Ano 9. N. 3. Setembro/Dezembro 2012. Curitiba.
Pg. 17/18.
405 CARVALHOSA. Modesto. As poison pills estatutárias na prática brasileira: alguns aspectos
de sua legalidade. CASTRO. Rodrigo Monteiro ARAGÃO. Leandro Santos de. (org.) Direito
Societário. Desafios atuais. São Paulo Ed. Quartier Latin. 2009. Pg. 25 e segs.
406 O termo sociedades coligadas pode, em uma conotação extremamente ampla, referir-se
a todas as hipóteses nas quais há, entre duas ou mais sociedades, uma conexão econômica,
independentemente de qual seja o instrumento jurídico usado. Trata-se, na realidade, de um
sentido amplo e impreciso, pois abarcaria situações como contratos de representação com
exclusividade, contratos de transferência de tecnologia, locação de estabelecimentos etc.
“Num sentido mais rigoroso falaremos em coligação, quando uma sociedade for sócia de
outra, em controle, quando a participação de uma sociedade em outra for de molde a facultar
legalmente o controle da primeira sobre a segunda; em holding, quando uma sociedade, sem
explorar diretamente nenhuma atividade comercial, tiver o seu patrimônio invertido em ações
ou quotas de outras sociedades, sujeitas, assim, ao seu controle.” ASCARELLI. Tullio. Problemas

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 383


O Código Civil abarca sob o termo sociedades coligadas três
hipóteses distintas: o controle, a coligação ou filiação e a simples
participação. Assim, a expressão sociedades coligadas tem, no Có-
digo Civil, um sentido amplo ou genérico, que alcança as seguintes
modalidades ou espécies: o controle (art. 1.098), a coligação (em
sentido estrito) ou filiação (art. 1.099) e a simples participação (art.
1.100).
Pela análise dos textos dos artigos 1.099 e 1.100 do Código Ci-
vil, tem-se que a distinção entre sociedades coligadas ou filiadas e
aquelas que têm sobre outra o que se chama de “simples participa-
ção” vincula-se exclusivamente ao percentual que uma sociedade
tenha do capital social de outra.
Assim, a sociedade coligada ou filiada é caracterizada, no Có-
digo Civil, com aquela que é titular de mais de 10% (dez por cento)
do capital de outra sem, entretanto, exercer sobre ela o controle so-
cietário, enquanto a “simples participação” consiste na titularidade
de quotas de outra sociedade em percentual inferior a 10% (dez por
cento) do capital votante.
Já para a Lei n. 6.404/76 há coligação entre sociedades quan-
do uma delas tenha sobre a outra o que se identifica como “influên-
cia significativa”, a qual é presumida pela titularidade de 20% (vinte
por cento) ou mais de seu capital votante sem, entretanto, implicar
em participação no controle societário (art. 243 par. 1º e 5º).
Por se tratar de lei específica, o art. 243 da Lei n. 6.404/76 se
aplica se uma ou mais das sociedades analisadas, para fins da veri-
ficação de coligação, estiver constituída sob a forma de sociedade
por ações, enquanto o Código Civil e seus critérios são aplicáveis
quando, em sentido oposto, não houver nenhuma companhia na
hipótese em apreço407.
das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. Ed. Bookseller. Campinas. São Paulo. 20001.
Pg. 693/694.
407 Isto não impede, porém, que as regras do Código Civil sejam aplicadas às companhias,
desde que não haja conflito. “Por consequência, quanto às regras do Código Civil que não
conflitam com aquelas previstas na Lei n. 6.404/76, o melhor entendimento pode ser no sentido
de inferir que tais diplomas são complementares, concluindo-se, portanto, pela aplicação de
ambos a todos os tipos de sociedade previstos no ordenamento brasileiro”. MENEZES. Maurício

384 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Outro aspecto que é objeto de disciplina tanto no Código Civil
quanto na Lei n. 6.404/76 é a participação recíproca entre socieda-
des, o que pode ser definido como a situação na qual duas socie-
dades são simultaneamente titulares de parte do capital social da
outra. Por exemplo: a sociedade A é titular de 10% (dez por cento)
do capital da sociedade B e esta, por sua vez e ao mesmo tempo, é
titular de 20% (vinte por cento) do capital social de A.
O problema fundamental da participação recíproca é ocor-
rer uma dupla titularidade sobre o mesmo patrimônio social. Par-
te do patrimônio de duas pessoas jurídicas diferentes é, em última
análise, composto pelo mesmo conjunto de bens e direitos, o que
tornaria artificialmente maior os valores que estariam a garantir os
credores de ambas408.
Segundo o art. 1.101 do Código Civil e art. 244 par. 1º da Lei n.
6.404/76, a participação recíproca é válida, desde que o seu per-
centual não ultrapasse o limite dos reservas patrimoniais das socie-
dades envolvidas, excluída a legal. Desta forma, se o bem ou direito
é contabilizado, em uma das sociedades envolvidas na participação
recíproca, como reserva patrimonial e não como parte do capital
social, não há, ao menos em tese, o efeito de este bem ou direito
compor simultaneamente o capital social de duas pessoas jurídicas
distintas.
Entretanto, o art. 244 caput da Lei n. 6.404/76 admite, sem a
restrição referida acima, a participação recíproca entre sociedades
que não tenham, entre si, uma relação de controle ou coligação. Vê-
-se então que, pelo regime da Lei n. 6.404/76, a participação recí-
proca é admitida, sem qualquer restrição, até o limite de 20% (vinte
Moreira. Sociedades controladas, coligadas e subsidiárias integrais. (In.) COELHO. Fábio Ulhôa.
(Coord.). Tratado de Direito Comercial. Vol. III. Ed. Saraiva. São Paulo. 2015. Pg. 395.
408 “Como pessoa jurídica, capaz de administrar o seu próprio patrimônio, a sociedade pode
participar de uma outra. Havendo participações recíprocas, entretanto, vários problemas
surgem de natureza patrimonial e política. Quanto aos primeiros, verifica-se que as garantias
dos credores diminuem, pois, para os fins de garantia, as participações recíprocas se anulam,
reduzindo-se o valor real do capital de ambas as sociedades.” MARTINS. Fran. Comentários à
Lei das Sociedades Anônimas – Vol. III. Ed. Forense. Rio de Janeiro. Pg. 261.
Se duas sociedades são ao mesmo tempo sócias uma da outra, um determinado bem
pertence simultaneamente a ambas, já que integraliza o capital tanto de uma quanto da outra.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 385


por cento) do capital social das companhias envolvidas, pois, como
se viu, acima deste limite já se configura relação de coligação e, por
consequência, a participação recíproca somente pode ser efetuada
até o valor de lucros ou reservas patrimoniais disponíveis, exceto a
legal (art. 244 par. 1º c/c art. 30 par. 1º, b da Lei n. 6.404/76).

386 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XI
Acordos de sócios e outros instrumentos de
uniformização de decisões corporativas

1 – Aspectos gerais

Trata-se o acordo de acionistas de um contrato pelo qual dois


ou mais sócios de uma mesma companhia disciplinam, entre eles,
a forma pela qual exercerão algum ou alguns de seus direitos de
sócio.
É chamado de contrato parassocial, uma vez que envolve in-
tegrantes da sociedade e disciplina seus direitos em relação à pes-
soa jurídica sem, entretanto, se confundir com os atos constitutivos
da companhia409. É um instrumento extremamente importante para
organizar as relações intrasocietárias e influencia diretamente a for-
mação de maiorias e minorias nas deliberações e atos societários.
O acordo de acionistas pode, se preenchidas determinadas
regras formais, assumir o formato tipificado em lei (art. 118 da Lei
n. 6.404/76) ou não, falando-se, no primeiro caso, em acordo de
acionistas típico e, no segundo, em acordo de acionistas atípico. A
diferença entre eles está, em síntese, na amplitude dos efeitos de
cada um, sendo estes notadamente mais amplos na forma típica.
O acordo de acionistas típico tem seus termos oponíveis à
companhia e a terceiros em geral, como eventuais sucessores ou
futuros adquirentes das ações dos participantes do acordo410. Já o
409 “De fato, ressalta de logo tratar-se de um pacto parassocial, ou seja um contrato que se
situa ao lado do pacto social (constitutivo da companhia), que obviamente o precede, do qual,
sem perder a sua autonomia, depende, e cujo estatuto social não pode alterar ou complementar.
De se notar, no entanto, que, embora inconfundível com o pacto social, o acordo de acionistas,
ao disciplinar interesses dos acionistas enquanto tais (uti singuli), irradia efeitos que alcançam a
própria sociedade”. (LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades Anônimas: Comentários à Lei. Vol.
I. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2009. Pg. 1131)
410 O Superior Tribunal de Justiça também já ressaltou o vínculo entre o atendimento às
formalidades do acordo e sua oponibilidade a terceiros. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
3a Turma. RECURSO ESPECIAL Nº 1.102.424 - SP (2008⁄0132178-0. Relator: Min. Massami

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 387


acordo de acionistas que negligencia tais formalidades – configu-
rando-se atípico – tem seus efeitos restritos aos contratantes.
A abordagem do acordo de acionistas deve se fazer a partir
dos elementos constitutivos comuns aos contratos em geral, quais
sejam: suas partes, seu objeto e sua forma. No caso do acordo de
acionistas, os três elementos constitutivos apresentam peculiari-
dades e requisitos próprios, que se acrescem às regras contratuais
gerais da legislação.

2 – Estrutura e classificações

2.1 – Quanto às partes

À primeira vista tem-se que, inclusive por imposição termino-


lógica, somente podem ser partes no acordo de acionistas os titu-
lares de ações de uma mesma companhia, seja eles majoritários
ou minoritários411. Deste modo, às regras gerais de capacidade para
contratar acrescenta-se essa, que torna este modelo contratual ex-
clusivo dos sócios de uma mesma sociedade anônima.
É certo afirmar que pactos estabelecidos entre acionistas e
terceiros podem ter por objeto a alienação do exercício de deter-
minados direitos de sócio. Institutos como a alienação fiduciária, o
usufruto, fideicomisso ou locação podem recair sobre ações e, as-
sim, atribuírem a determinada pessoa a propriedade das ações e a
outra o exercício dos direitos a elas referentes412.
Um pouco distinto – mas merecedor de igual tratamento ju-
rídico - é o pacto que, uma vez firmado entre acionista e terceiro,
Uyeda).
411 Neste sentido: EIZIRIK. Nelson. A Lei das S.A Comentada. Ed. Quartier Latin. São Paulo.
2011. Pg. 703.
412 O mesmo se aplica a casos de acordos entre acionistas e credores, deles ou da
sociedade. “A questão não é acadêmica, na medida em que, na prática, os grandes credores
de companhias, notadamente os institucionais (BNDES), têm inserido cláusulas em acordos de
acionistas existentes, ou exigido a celebração de tais avenças, visando garantir os seus créditos
de longo prazo”. (CARVALHOSA. Modesto. Acordo de Acionistas. Ed. Saraiva. São Paulo. 2011.
Pg. 45/46).

388 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


estabeleça para aquele, por exemplo, o dever de votar, nas delibe-
rações societárias, sempre conforme orientações prévias emitidas
por determinado credor ou investidor413.
Em hipóteses como essas, o acionista transfere a terceiro não
todos os seus direitos de sócio, mas algum deles.
Tais pactos são, a princípio, válidos, desde que preenchidos os
requisitos gerais da legislação, mas não podem ser tomados como
modalidades de acordos de acionistas, dado que não preenchem
o requisito específico referente às partes que nele podem figurar414.
Portanto, eventual pacto estabelecido entre um acionista e
terceiro - como um credor da sociedade, por exemplo - será váli-
do, mas não pode ser confundido com a modalidade contratual ora
analisada, especialmente em sua forma típica.
Do mesmo modo, não há como vincular terceiros aos termos
dos acordos de acionistas. É o caso, por exemplo, de previsão, em
acordo como o aqui discutido, de que os administradores eleitos
pelos signatários estão obrigados a votar ou agir, no exercício de
suas atribuições de gestão, conforme as expressas orientações
constantes do acordo estabelecido por seus eleitores415.
A oponibilidade do acordo de acionistas a terceiros, quando
constituído sob a forma típica, não se confunde com a expansão de
seus efeitos para além de seus signatários.
Tal oponibilidade de efeitos significa, em síntese, que os ter-
mos do acordo devem ser respeitados por terceiros, os quais de-
413 “A questão básica consiste em saber se os direitos dos acionistas podem ou não ser
cindidos, pois em caso positivo há possibilidade de cessão do voto. Ou seja, se o direito de
voto está ou não dissociado da propriedade da ação e se os direitos referentes à ação, como
o de voto, são ou não divisíveis. Se a lei admitir a cisão, deve ser possível a cessão do direito de
voto. Naturalmente, quando a transferência da participação social requerer a concordância da
sociedade, a cessão do direito de voto também dependerá de autorização.” (RIBEIRO. Renato
Ventura. Direito de Voto nas Sociedades Anônimas. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2009. Pg. 348)
414 BARBI FILHO. Celso. Acordo de Acionistas. Ed. Del Rey. Belo Horizonte, 1994. Pg. 83/84.
415 É, porém, claro que tais acionistas/eleitores poderão destituir – na forma da lei e dos
estatutos – os administradores por eles eleitos, se não respeitadas suas diretrizes. A
substituição dos gestores é uma faculdade dos acionistas, mas esta não se confunde com o
poder de lhes exigir, como salientado, o respeito aos termos de um acordo do qual não são
partes. Em sentido oposto: LAMY FILHO. Alfredo. Temas de S.A. Ed. Renovar. Rio de Janeiro.
2007. Pg. 323 a 327.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 389


vem, ao se relacionar com as partes de tal pacto, ter ciência de que
elas estão obrigadas aos termos do acordo firmado.
Contudo, isso não permite, em momento algum, que o acordo
de acionistas atinja a esfera dos direitos de terceiros, sendo igual-
mente vedado que o pacto ora discutido lhes estabeleça qualquer
ônus ou obrigação, como na hipótese aventada acima, referente
aos administradores eleitos pelos contratantes.
Diferente, porém, é o acordo de acionistas no qual os signa-
tários se obrigam, uma vez eleitos para vaga no Conselho de Admi-
nistração ou Diretoria da companhia, a seguir as deliberações pre-
viamente fixadas, nos termos do pacto. Aqui, o acordo de acionistas
vincula apenas seus partícipes, estejam eles na posição de votantes
na Assembleia Geral de Acionistas ou ocupantes de outro órgão so-
cial416.
Ainda sobre a legitimidade para figurar em acordo de acio-
nistas, resta tratar da admissibilidade da própria companhia, como
pessoa jurídica, tomar parte neste contrato.
A Resolução n. 44/21 da Comissão de Valores Mobiliários con-
tém, em seu artigo 2o, par. Único, III, expressa referência a tal possi-
bilidade, que, entretanto, se restringe às hipóteses do denominado
acordo de bloqueio, o qual tem por objeto, como se verá abaixo, a
restrição à negociabilidade das ações dos signatários417.

416 Mesma conclusão se aplica também ao sucessor ou adquirente das ações dos signatários
do acordo, os quais restarão obrigados a respeitar seus termos. A vinculação do sucessor ou
adquirente das ações ao acordo decorre da aquisição dos valores mobiliários, quando então
este outrora terceiro – em relação ao acordo – torna-se a ele vinculado.
417 “Como reiterado, nos acordos de acionistas somente estes podem instituir a avença, ou seja,
ter a iniciativa de contratá-la. Assim, não pode a companhia subscrever o acordo de acionistas.
Não obstante, nos acordos de bloqueio, a própria sociedade poderá tornar-se parte, com
interesse próprio, portanto.
Com efeito, nos acordos de bloqueio em que a sociedade é credora obrigacional, pela ordem,
na preferência ou opção de aquisição de ações do acionista retirante, torna-se ela parte efetiva
do acordo”. (CARVALHOSA. Modesto. Acordo de Acionistas. Ed. Saraiva. São Paulo. 2011. Pg. 40).

390 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


2.2 – Quanto ao objeto

O caput do texto do art. 118 da Lei n. 6.404/76 estipula quais


são, dentre os direitos de sócio, aqueles que podem ser objeto de
disciplina através de acordos de acionistas.
São eles o direito de negociar as próprias ações, o direito de
preferência na aquisição de novas ações emitidas pela companhia,
o direito de voto nas deliberações sociais e o exercício do poder de
controle sobre a sociedade.
Diante de tal enumeração legal percebe-se que há, essencial-
mente, duas modalidades de acordo de acionistas, conforme seu
objeto: o acordo de voto (que disciplina o direito de participar e votar
nas deliberações sociais) e o de bloqueio (que disciplina o direito de
negociar suas ações e dentro do qual pode-se, com acerto, colocar
o direito de preferência na aquisição de novas ações).
Importante ressaltar que esta limitação de objeto somente
vale para a forma típica do acordo, não se podendo negar validade
– na modalidade atípica - a acordos entre acionistas que eventual-
mente disciplinem o exercício de outros de seus direitos na compa-
nhia418.
Chama-se de Acordo de Voto aquele acordo de acionistas
que tem por objeto disciplinar a forma pela qual os signatários vão
exercer tal direito nas deliberações sociais. É indubitavelmente a
mais relevante e empregada modalidade deste instituto.
Dentre as possíveis variações deste Acordo de Voto está
aquela destinada à formação de grupo de acionistas que, uma vez
unidos pelo acordo, deterão o controle societário.
Costuma-se chamar tal variação de ‘acordo de controle’, sen-
do, porém, necessário lembrar que se trata de um acordo de voto

418 “Não significa isso que os acionistas não possam estabelecer normas ultrapassando essa
limitação; apenas, em tais casos, ainda mesmo que a sociedade arquive acordos com as
cláusulas não mencionadas na lei, tais acordos não serão observados pela sociedade nem
oponíveis a terceiros quando averbados nos livros de registro e nos certificados das ações, se
emitidos”. (MARTINS. Fran. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Volume II. Tomo I. 2a
edição. Ed. Forense. Rio de Janeiro. Pg. 120)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 391


– uma vez que seu objeto é a disciplina no exercício deste direito
– com a particularidade de que, neste caso, o pacto permite aos
signatários galgar, pelo preenchimento dos requisitos do art. 116 da
Lei n. 6.404/76, a condição de controladores da companhia.
Assim, os partícipes do “acordo de controle” - modalidade de
Acordo de Voto - conseguem, juntos, quórum suficiente nas delibe-
rações da Assembleia Geral de Acionistas e na eleição dos adminis-
tradores da sociedade para tornarem-se, nos termos do art. 116 da
Lei n. 6.404/76, acionistas controladores.
Para a validade do Acordo de Voto é necessário que nele se-
jam estabelecidas as hipóteses em que se aplicará o acordo, ou
seja, é preciso explicitar quais são as matérias que, uma vez sujeitas
à deliberação em Assembleia Geral de Acionistas, deverão ser regi-
das pela uniformidade de voto entre os contratantes.419
Outra possível variação do Acordo de Voto está naquela des-
tinada a formar um grupo de acionistas minoritários que, uma vez
unidos pelo acordo, detenham percentual de ações votantes sufi-
cientes para o exercício de direitos que a legislação confere a deter-
minados percentuais qualificados do capital social da companhia.
É, por exemplo, o caso do poder de eleger em separado
membro do Conselho de Administração (via voto múltiplo) ou Con-
selho Fiscal e da prerrogativa de se exigir a exibição judicial dos
livros contábeis da sociedade (art. 105 da Lei n. 6.404/76). Forma-se,
por via desta variante do Acordo de Voto, um grupo minoritário que,
junto, será titular de direitos que, se isoladamente considerados os
contratantes, não se poderiam exercer.
Se, nas versões do Acordo de Voto citadas acima, tal pacto
serve para formar o controle societário ou qualificar a minoria acio-
nária, há também a possibilidade de que o Acordo de Voto seja usa-
do para atrelar determinadas decisões do controlador à vontade da
minoria societária.
419 “Não há restrições ao elenco de matérias que podem ser disciplinadas no acordo de voto,
sendo necessário, porém, que elas constem expressamente do ajuste, uma vez que não se
admite os acordos de voto em aberto, que implicariam, na prática, em alienação do direito de
voto dos minoritários pactuantes do acordo.” (EIZIRIK. Nelson. A Lei das S.A… ob. Cit. Pg. 708).

392 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Nesta modalidade o controlador se obriga, por meio do acor-
do de acionistas, a votar favoravelmente a determinada delibera-
ção, em Assembleia Geral de Acionistas, apenas se houver prévia
concordância dos outros signatários do acordo, acionistas minori-
tários. Forma-se aqui verdadeira hipótese de quórum qualificado
para determinadas deliberações da Assembleia Geral de Acionistas,
uma vez que sua aprovação dependerá da adesão dos minoritários
signatários do acordo.420
O sentido do voto a ser dado pelos signatários do acordo de
acionistas, em determinada votação na Assembleia Geral, será es-
tabelecido anteriormente, em deliberação da qual apenas eles par-
ticiparão, na chamada Reunião Prévia421.
Suas formalidades de convocação, instalação e deliberação
não são disciplinadas em lei. Por isso, recomenda-se que o texto
do acordo de acionistas as discipline detalhadamente, uma vez que
é neste evento que se define o rumo das votações a serem feitas
pelos signatários422.
Vale repetir que o Acordo de Voto pode ter por objeto não
apenas as deliberações da Assembleia Geral de Acionistas, mas
também do Conselho de Administração. Assim, se um ou mais dos
signatários do acordo for eleito para ocupar vaga no Conselho de
Administração - e se o acordo de acionistas por ele assinado fizer
referência à sua atuação neste órgão - estará este conselheiro/sig-

420 Nas companhias fechadas as hipóteses de quórum qualificado podem constar do


estatuto social (art.129), o que tornaria, no caso, desnecessário o acordo de voto ora tratado.
Nas companhias abertas, porém, só por meio de acordo de acionistas tal qualificação de
quórum é possível. (ARAGÃO. Paulo Cezar. A disciplina do acordo de acionistas na reforma da
lei das sociedades por ações (Lei n. 10.303, de 2001) in. LOBO. Jorge. (coord.) Reforma da Lei
das sociedades Anônimas. 2a edição. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 2003. Pg. 370).
421 “Os subscritores do acordo de controle formam uma comunhão de interesses composta de
um órgão interno – a reunião prévia, facultativamente representada por um síndico (par. 7º do
art. 118 da lei societária). (...)A reunião prévia dos signatários do acordo de controle tem como
fundamento formar a vontade da comunhão que daí resulta, a partir do confronto das vontades
individuais traduzidas, eventualmente, em interesses ou posicionamentos contratantes.”
(CARVALHOSA. Modesto. Acordo de Acionistas... ob. Cit. Pg. 222).
422 Nesta “reunião prévia” o exercício do voto, pelos signatários do acordo de acionistas,
também está sujeito ao princípio da proporcionalidade, sob pena de afronta a uma regra
consagrada expressamente na legislação.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 393


natário obrigado a exercer suas funções de gestão sob as diretrizes
do pacto parassocial.
Outra modalidade de Acordo de Acionistas é, quanto ao obje-
to, aquele que disciplina o direito que o acionista tem de negociar
suas próprias ações. Tal Acordo de Acionistas, comumente chama-
do de Acordo de Bloqueio, tem por objetivo estabelecer restrições
às condições normais de negociação das ações dos signatários423.
Para estabelecer os requisitos a serem atendidos no caso de
os signatários desejarem negociar suas ações, os Acordos de Blo-
queio podem valer-se de alguns instrumentos.
O primeiro deles está em fixar, em favor dos demais partí-
cipes, direito de preferência na aquisição das ações do signatário
vendedor. Este direito de preferência deve, entretanto, ser limitado
no tempo e deve respeitar a igualdade de condições com proposta
de terceiros, como ocorre na generalidade dos casos de direito de
preferência na aquisição de quotas ou ações.
Muito chamada também de “direito de primeira recusa”, esta
preferência obriga o signatário de acordo de acionistas a oferecer
suas ações, em primeiro lugar, aos demais signatários do acordo,
e só após a recusa deles é que está autorizado a negociá-las, pelo
preço e nas condições da oferta recusada pelos outros partícipes
do acordo, com terceiros424.
Outro instrumento comumente empregado em acordos de
bloqueio é a exigência de aprovação, pelos outros partícipes do
acordo, do nome do comprador das ações de qualquer dos signa-
423 O que ora se denomina “restrições às condições normais de negociação das ações” não
significa, de forma alguma, inegociabilidade das mesmas. Portanto, será nula a eventual
previsão, em acordo de acionistas, de vedação à transferência das ações dos contratantes. “A
imposição de um gravame de intransferibilidade, que não é objeto do Acordo, imporia em violar
a própria essência do título, que foi criado para circular. Mais ainda, iria de encontro à norma da
Lei, que protege sua negociabilidade, o que acarretaria sua nulidade, como já foi dito”. (LAMY
FILHO. Alfredo. Acordo de Acionistas: averbação de intransferibilidade de ações (PARECER)
(in.). Temas de S.A. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2007. Pg. 302)
424 A disciplina deste “direito de primeira recusa” em acordos de acionistas tem sérias
implicações na conduta estratégica dos signatários. Tais implicações podem ser eficientes ou
não, dependendo das circunstâncias e do grau de informação das partes. Sobre o tema, vale
consulta ao texto: KAHAN. Marcel. An Economic Analysis of Rights of First Refusal. New York
University Center for Law and Business. Working Paper #CLB-99-009. 1999.

394 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


tários. Assim a transferência das ações, pelo signatário do acordo,
fica condicionada à aprovação, pelos demais contratantes, do nome
do adquirente.425
A obrigação de vender suas ações, em caso de determinada
proposta de terceiro, também pode ser estabelecida em acordo en-
tre os acionistas. Chamada de drag along right, tal cláusula dispõe,
em síntese, que se um dos contratantes aceitar a oferta de terceiro
por suas ações, todos os demais signatários também são obrigados
a vender, para aquele proponente, suas respectivas participações
no capital da companhia426.
O Acordo de Acionistas não pode, como já salientado, contra-
por-se ao estatuto social, que a ele é superior tanto em amplitude
quanto em capacidade cogente. São nulas as cláusulas do acordo
que afrontem a legislação ou os atos constitutivos da companhia à
qual se refiram427.
Neste mesmo sentido, vale também ressaltar que o acordo de
acionistas não pode disciplinar matéria que, pela sua natureza, deva
constar do Estatuto Social. Deste modo, o acordo de acionistas só
tratar dos direitos de seus signatários ou a forma de exercê-los,
sendo vedada a menção, em suas cláusulas, à estrutura ou atos da
companhia, dos demais acionistas ou de terceiros.

425 “Evidentemente, tal convenção de aceitação subjetiva deverá conter uma clara e suficiente
cláusula liberatória, ou seja, de obrigação de aquisição dessas mesmas ações pelos signatários
remanescentes do acordo que vetarem, intuitu personae, o ingresso do promitente-adquirente.
Sem a instituição de cláusula liberatória, a convenção de prévio consentimento representaria
um cerceamento ilegal do direito de livre disponibilidade patrimonial.” CARVALHOSA. Modesto.
Acordo de Acionistas. Ed. Saraiva. São Paulo. 2011. Pg. 123.
426 “Essas disposições permitem que um sócio obrigue os demais acionistas assinantes do
acordo a alienar sua participação no capital da companhia. O direito de arraste [drag along
right] se sujeita à condição de que um terceiro formule uma oferta de compra de ações a
algum dos acionistas assinantes. No evento desta condição, tal sócio poderá obrigar os demais
acionistas a alienar suas respectivas participações no capital social”. REYES. Francisco. Direito
Societário Americano: estudo comparativo. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2013. Pg. 273.
427 “O acordo de acionistas é ‘norma secundária’ em confronto com o estatuto e, a fortiori, a
lei, os quais assumem o papel de ‘norma primária’ no sentido hierárquico”. (COMPARATO. Fábio
Konder. Novos Ensaios e Pareceres. Ed. Forense. 1981. Pg. 75). Decorrentes desta premissa
são as conclusões de que em acordos de acionistas não podem ser excluídos ou limitados
direitos essenciais dos sócios (art. 109 da Lei n. 6.404/76), assim como não se pode prever
decisões cuja competência seja dos órgãos sociais.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 395


O que se salienta, neste aspecto, é que o acordo de acionistas
somente pode disciplinar o interesse de seus signatários em rela-
ção à companhia, sendo-lhe vedado cuidar, por exemplo, de ques-
tões atinentes à forma de gestão do empreendimento, aos poderes
e deveres dos administradores ou outros acionistas.
Outro limite existente ao objeto de acordos de acionistas re-
fere-se à impossibilidade de sua aplicação em declarações de ver-
dade, que são aquelas nas quais o acionista se manifesta sobre a
correspondência entre algo e a realidade.
Em tais hipóteses, o acionista é sempre obrigado a votar con-
forme sua impressão sobre pertinência entre o que é apresentado
e o mundo real, como, por exemplo, quando ele aprova ou não a
prestação das contas da administração. Nula é a cláusula que obri-
ga o acionista a votar, em declarações de verdade, num ou noutro
sentido428.
Portanto, o acordo de acionistas só pode se referir a delibera-
ções que tenham por conteúdo a manifestação do acionista quanto
aos atos futuros da sociedade, ou seja, em declarações de vontade.

428 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. RECURSO ESPECIAL Nº 1.152.849 - MG


(2009⁄0157602-6). Relator: Min. João Otávio de Noronha. Data de julgamento: 03 de novembro
de 2013.

396 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Cláusulas relevantes em acordos de acionistas: alguns exemplos

1 - Buy or sell – também denominada “cláusula texana”, prevê que qualquer das
partes pode fazer uma oferta pelas ações de um ou mais dos outros contratantes.
Aos destinatários da oferta cabe o direito de aceitá-la, vendendo suas ações
ao ofertante, ou dirigir ao proponente uma contraoferta, pelas ações deste
último, nos mesmos termos e condições que a proposta original. No caso desta
contraoferta, o proponente original é obrigado a vender suas ações.

2 - Drag Along – também conhecida pelo termo “cláusula de arraste”, estabelece


que qualquer dos participantes que receba e decida aceitar uma oferta de
terceiros pelas suas ações tem o direito de obrigar os demais contratantes a
vender também suas respectivas participações, por igual valor, para o mesmo
comprador. Consubstancia-se em verdadeiro “dever de venda conjunta”.

3 - Tag Along – trata-se de cláusula que, nos moldes do art. 254-A da Lei n.
6404/76, obriga o adquirente das ações de qualquer dos contratantes a estender
a oferta aos demais signatários do acordo, nas mesmas condições. É um “direito
de venda conjunta” conferido, pelo acordo, aos seus signatários.

4 - Direito de primeira recusa – semelhante ao direito de preferência previsto nos


casos legais, trata-se do dever de qualquer dos contratantes oferecer, antes, aos
demais signatários do acordo, suas respectivas ações, em iguais condições com
a oferta de terceiros.

5 - Voto de qualidade – estabelece, em favor de um ou mais dos signatários,


um peso maior de seu voto, em caso de empate nas deliberações sobre uma
determinada matéria. Normalmente conferido àquele sócio que tenha maior
conhecimento sobre o assunto da deliberação.

6 - Valuation – cláusula destinada a regular os critérios de avaliação a serem


empregados em casos de retirada voluntária ou compulsória de qualquer dos
contratantes.

7 - Sucessão causa mortis – cláusula reguladora das consequências do


falecimento de sócio signatário do acordo, no que tange à titularidade de suas
ações.

8 - Distribuição dos cargos de Conselhos e diretoria – estabelece a forma pela


qual os contratantes vão distribuir, entre eles, a votação para preenchimento
dos órgãos sociais, de modo a estabelecer o número de representantes de cada
signatário do acordo na gestão e fiscalização das atividades sociais.

9 - Vinculação de ações futuramente adquiridas pelos contratantes – cláusula que


estabelece, para os signatários do acordo, a obrigação de respeitar todos os seus
termos ainda que venham a aumentar sua participação no capital social

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 397


8 - Distribuição dos cargos de Conselhos e diretoria – estabelece a forma pela
qual os contratantes vão distribuir, entre eles, a votação para preenchimento
dos órgãos sociais, de modo a estabelecer o número de representantes de cada
signatário do acordo na gestão e fiscalização das atividades sociais.

9 - Vinculação de ações futuramente adquiridas pelos contratantes – cláusula que


estabelece, para os signatários do acordo, a obrigação de respeitar todos os seus
termos ainda que venham a aumentar sua participação no capital social.

10 - Cláusula de prevalência – dispõe que o acordo prevalecerá sobre qualquer


outro documento firmado, entre si, pelos signatários

11 - Compromisso arbitral – dispõe que quaisquer dúvidas ou divergências sobre


qualquer cláusula do acordo serão submetidas à Tribunal Arbitral.

12 - Lock up – estabelece, para os contratantes, a obrigação de permanecer, pelo


menos por um determinado período, na titularidade das ações. Visa evitar a saída
de acionistas antes, por exemplo, do cumprimento de determinadas metas ou
contratos assumidos pela sociedade.

13 – Cláusula de confidencialidade – obriga os signatários do acordo a não revelar


seus termos a terceiros.

14 – Cláusula de não concorrência – obriga os signatários do acordo a não


praticarem qualquer atividade que venha a significar concorrência com os
empreendimentos da sociedade.

2.3 – Quanto à forma

O instituto do Acordo de Acionistas pode assumir a forma típi-


ca ou atípica429, conforme sejam ou não observadas as exigências
formais estipuladas pelo art. 118 da Lei n. 6.404/76. Constata-se,
portanto, que está na “forma prescrita em lei” a característica que
tipifica o Acordo de Acionistas e o torna oponível a terceiros e à pró-
pria companhia.
Considera-se típico o acordo de acionistas elaborado se-
gundo a estrita observância das regras formais do art. 118 da Lei n.
6.404/76 e atípico aquele que, embora tendo como partes acio-
nistas de uma mesma companhia e por objeto o exercício de seus

429 BARBI FILHO. Celso. Acordo de Acionistas. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 1993. Pg. 96/97

398 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


direitos de sócio, é constituído em negligência às regras formais do
art. 118 da Lei n. 6.404/76.
O acordo de acionistas atípico não tem qualquer exigência for-
mal específica como condição de validade, entre os seus signatá-
rios. Observadas as regras gerais do art. 104 do Código Civil, o pacto
entre dois ou mais sócios de uma mesma companhia destinado a
disciplinar a forma pela qual eles exercerão seus direitos de sócio é,
entre eles, instrumento gerador de direitos e obrigações recíprocas.
A forma prescrita em lei, para o acordo de acionistas, é con-
dição não de sua validade entre os signatários430, mas de sua opo-
nibilidade à companhia e a terceiros em geral. Assim, o acordo de
acionistas que segue as regras formais do art. 118 da Lei n. 6.404/76
é, entre os contratantes, tão válido quanto aquele que ignora tais re-
quisitos formais. A diferença está em que, observada a forma típica
do acordo de acionistas, tem-se a oponibilidade a terceiros como
efeito particular e específico.
São duas as exigências de forma previstas pelo art. 118 da Lei
n. 6.404/76 como requisitos para a tipificação e consequente opo-
nibilidade dos termos do acordo de acionistas à companhia, por um
lado, e a terceiros, por outro.
A primeira está na necessidade de arquivar uma cópia do ins-
trumento que formaliza o Acordo de Acionistas na sede da compa-
nhia integrada pelos contratantes, e em relação à qual se refere o
pacto. Para esta finalidade, a cópia do acordo deve ser entregue ao
órgão, setor ou departamento da companhia competente para cui-
dar do registro de ações431. Cumprida esta exigência, os termos do
acordo são oponíveis à pessoa jurídica.
A segunda formalidade, necessária para a oponibilidade dos
termos do acordo a terceiros (art. 118 par. 1º da Lei n. 6.404/76), está

430 CARVALHOSA. Modesto. Acordo de Acionistas. Ed. Saraiva. São Paulo. 2011. Pg. 52.
431 “Quando a companhia entregar o serviço de escrituração, guarda, transferência e emissão
de certificados de suas ações a instituição financeira especializada, como autoriza o art. 27
da Lei n. 6.404/76, o arquivamento deverá ser feito pelo setor da companhia que cuida das
relações com a instituição financeira, ou, na sua ausência, pela Diretoria”. (BARBI FILHO. Celso.
Acordo de Acionistas... ob. Cit. Pg. 137)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 399


na exigência de se providenciar a averbação de uma cópia nos li-
vros de registro e certificados de ações da companhia à qual se
refira, se emitidos.
O art. 118 par. 10 da Lei n. 6.404/76 exige ainda que os acio-
nistas vinculados por acordo indiquem, no ato do arquivamento,
representante para comunicar-se com a companhia e para prestar
e receber informações, quando solicitadas. Trata-se do síndico do
acordo, que funciona, como mandatário dos contratantes, para as
finalidades de informação e comunicação com a pessoa jurídica.
Segundo o par. 11 do art. 118 da Lei n. 6.404/76, os signatários
de um acordo de acionistas são obrigados a prestar esclarecimen-
tos sobre suas cláusulas, sempre que solicitados pela companhia.
Se não atendida tal solicitação, o acordo não pode ser oposto nem
à pessoa jurídica, nem a terceiros em geral.
Além das formalidades acima, expressas no art. 118 da Lei n.
6.404/76, há outra, estipulada especificamente para as companhias
abertas, constante do art. 2º parágrafo. único da Resolução CVM n.
44/2021.
Segundo o texto desta norma, a companhia aberta é obrigada
a publicar qualquer “fato relevante” a ela referente, sendo os acor-
dos entre seus acionistas – especialmente os chamados acordos
de controle – expressamente elencados como modalidades de
“fato relevante” sujeitos, portanto, à publicação compulsória.
Ressalte-se que esta é uma obrigação da companhia, não
dos signatários do acordo. A eventual não publicação de acordo de
acionistas de companhia aberta não compromete sua oponibilida-
de a terceiros, mas impõe à companhia – e não aos contratantes
– os ônus decorrentes do descumprimento da supra referida reso-
lução emitida pela CVM432.

432 O artigo 19 da Resolução n. 44/21 da CVM estipula que configura infração grave, para fins
do art. 11 da Lei n. 6.385/76, a violação de seus dispositivos. Desta forma, deixar de publicar
acordo de acionistas de companhia aberta, desde que devidamente arquivado em sua sede,
sujeita os responsáveis – no caso, os gestores da sociedade anônima aberta - às sanções
enumeradas pelo art. 11 da lei n. 6.385/76.

400 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


3 – O Acordo de acionistas e suas repercussões sobre o
processo de tomada de decisões na companhia

O acordo de voto tem por função básica obrigar seus signa-


tários a exercerem este direito nas deliberações sociais sempre no
sentido que for estabelecido em reunião prévia, da qual participarão
os contratantes.
Em consequência, as discussões que se dariam em Assem-
bleia Geral de Acionistas passam a ser efetuadas nesta reunião
prévia, o que reduz os custos de transação das deliberações as-
sembleares433 mas, por outro lado, acarreta um “esvaziamento” da
Assembleia Geral de Acionistas no contexto do processo decisório
da companhia, pois ela passará de órgão ratificador de iniciativas
(ou seja, de órgão no qual as iniciativas são ou não validadas pela
maioria do capital social) para órgão meramente homologador de
decisões que já foram, na reunião prévia, submetidas ao princípio
majoritário434.
O acordo de voto, em virtude disso, reduz os custos do con-
trole societário, já que para preencher os requisitos legais caracte-
rizadores do acionista controlador - a maioria permanente nas de-
liberações da assembleia e na eleição dos administradores - basta
ter a maioria das ações dentre os signatários do acordo, e não entre
todos os acionistas da companhia.
Além de reduzir os custos do controle societário, o acordo de
voto provoca também redução no poder decisório dos acionistas
não signatários do pacto, pois eles não podem contar com eventual
adesão, em uma determinada deliberação, de nenhum dos acionis-
tas participantes do acordo.

433 Ao concentrar o controle societário sobre os acionistas contratantes, o acordo de voto


assegura maior estabilidade na tomada de decisões, bem como reduz os custos de transação
na aprovação das matérias, em assembleia geral de acionistas. Estabilidade e agilidade
decisórias são, portanto, externalidades positivas decorrentes do acordo de voto. Há, porém,
externalidade negativas a serem também consideradas.
434 Entendido aqui como a maioria dos signatários do acordo, não dos acionistas da
companhia.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 401


Num contexto como o traçado pelo acordo de voto – espe-
cialmente o chamado acordo de controle – excluem-se as possibili-
dades de “maiorias eventuais”, que decorrem, como o próprio nome
indica, de concordância entre grupos de acionistas não alinhados
previamente.
O acordo de voto, neste sentido, expropria poder decisório
dos não signatários e o aloca nos signatários do pacto, mais especi-
ficamente no acionista majoritário dentre os contratantes435. Diminui
o universo de ações ratificadoras das iniciativas e interfere direta-
mente na distribuição do poder votante na companhia, que deixa de
ser a maioria das ações votantes e passa a ser a maioria das ações
dentre os signatários do acordo.
Ao expropriar poder decisório dos acionistas não signatários
do pacto, o acordo de acionistas expropria também parte do valor
destas ações, cujo preço refletirá tal expropriação. Trata-se de uma
externalidade negativa, gerada pelo acordo de voto, principalmente
quando referente ao controle societário.
Repare que o acionista majoritário dentre os contratantes do
acordo de voto consegue para si as vantagens do controle societá-
rio concentrado sem pagar pelo preço integral desta modalidade
de controle, uma vez que não precisa ter a maioria das ações vo-
tantes da companhia, mas “apenas” a maioria dentre as ações dos
contratantes.
Já os acionistas que não figuram como partes no acordo de
voto têm, em virtude do pacto, menos poder decisório do que te-
riam, se considerados na totalidade do capital social.

435 “Let us consider agreements such that the voting rights of their participants sum up to the
absolute majority of total voting shares. Then all relevant corporate decisions – that should be
taken by the general shareholders’ meeting – are de facto taken within the agreement, with the
shareholders’ meeting playing only a formal ratifying role. As a consequence, the redistribution
of power among the participants to an agreement is not – in general – a zero-sum game:
their VPCs sum up to a positive number equal to the overall voting power outside agreement
of the non- participating shareholders, who loose their power due to the agreement. In other
words, participants in agreements benefit from a ‘lever’age effect”: they are collectively able
to get a voting power disproportional to their voting equity”. (BAGLIONI. Angelo. Shareholders’
Agreement and voting power: evidence from Italian Listed firms. Disponível em: http://ssrn.
com/abstract=1092864)

402 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Eles pagam por um determinado número de ações da com-
panhia mas, em virtude do acordo de voto pactuado entre os ou-
tros sócios, passam a ter um poder decisório inferior ao que teriam,
se considerados na totalidade do capital social, pois são afastados
permanentemente do grupo formador da maioria nas deliberações
assembleares.
Já o acordo de voto celebrado entre acionistas para a forma-
ção de minoria qualificada no capital social tem efeito contrário, no
que tange à alocação do poder decisório na companhia.
Ao viabilizar a formação de uma minoria qualificada, este tipo
de acordo de acionistas retira parte do poder decisório da maioria
e o aloca sobre os signatários, que passam a ter uma influência su-
perior à que teriam, se considerados isoladamente, nas decisões e
eleições da companhia.
Sob outro aspecto, a pessoa ou grupo majoritário terá, como
minoritários, não um conjunto de pessoas sem prerrogativas es-
pecíficas no contexto das deliberações societárias, mas um grupo
que, dado o acordo, conta com garantias e direitos mais amplos.
Também o acordo de voto entre majoritário e minoritários,
quando destinado ao aumento de quórum de aprovação para cer-
tas deliberações assembleares, igualmente consegue o efeito de
retirar parte do poder decisório do majoritário e realocá-lo na mino-
ria signatária do pacto.
Se o acordo de voto impacta diretamente na tomada de deci-
sões e valor das ações da companhia, o mesmo se verifica, sob di-
ferentes aspectos, também quando se trata do denominado acordo
de bloqueio, o qual, repita-se, estabelece limites à negociabilidade
das ações dos contratantes.
Ao estabelecer tais limites o acordo de bloqueio retira – em
companhias abertas, vale frisar - parte da liquidez das ações dos
signatários, que já não mais dispõem da livre e rápida negociabili-
dade de seus papéis, aspecto extremamente relevante para a efici-
ência do mercado de valores mobiliários.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 403


Já em companhias fechadas, o acordo de acionistas que dis-
cipline regras de transferência das ações entre os sócios ou destes
em relação a terceiros costuma ser, em sentido oposto, importante
elemento redutor de custos de transação, principalmente no caso
de divergências entre os acionistas.
Assim, quando um ou mais deles desejar deixar a socieda-
de, já se terá estipulado, no acordo, o modo pelo qual os outros
sócios – remanescentes – poderão adquirir a participação do acio-
nista retirante, inclusive com os critérios de fixação do preço. Neste
caso, evita-se a indefinição que advém da falta de regras claras a
disciplinar uma eventual composição de interesses entre acionistas
divergentes.

4 – Acordo de acionistas e sociedade holding como


instrumentos de uniformização de decisões societária:
uma abordagem comparativa

Em sociedades nas quais a maioria do capital social votante


pretende-se concentrado na titularidade de um grupo determi-
nado e fixo de pessoas, o acordo de acionistas costuma “rivalizar”,
como instrumento uniformizador de decisões, com as chamadas
holdings436, que são pessoas jurídicas criadas para serem titulares
da maioria das ações votantes da sociedade que se pretende con-
trolar. Veja-se um exemplo:
Os interessados em deter, juntos, a maioria do capital votante
da sociedade – A - criam uma pessoa jurídica - B - para que esta
última seja titular das ações de - A - em grau suficiente para con-
trolá-la.
Dita sociedade - B - denominada “holding”, terá seu capital
integralizado com ações da sociedade – A – e seus sócios serão
aqueles que, desta forma, juntos conseguem influir decisivamente
sobre as deliberações sociais e eleição dos administradores de – A.
436 FERNÁNDEZ. Joan Egea. protocolo familiar y pactos sucesórios. Revista para el análisis
del derecho. Barcelona. Julho 2007.

404 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Tem-se então que os sócios da sociedade - B - exercem, por meio
desta pessoa jurídica, o controle sobre a sociedade A.
Neste caso, todas as deliberações sobre os atos da sociedade
- A - concentram-se nas Assembleias Gerais de Acionistas da socie-
dade – B - cujo capital será dividido conforme o número de ações
da sociedade – A - integralizado por seus sócios.
A criação de holding tem maior poder de afastar da socieda-
de controlada os conflitos societários que podem surgir entre os
acionistas. Assim, eventuais divergências, de qualquer ordem, entre
os sócios da holding terão menos impacto sobre as deliberações
e atos da sociedade controlada do que se tal divergência ocorrer
entre acionistas signatários de um acordo437.
Por outro lado – e talvez mesmo por isso - o desfazimento, em
relação a si, do acordo de acionistas é menos complexo e custoso,
para o contratante, do que a realização do recesso ou dissolução
parcial da holding, principalmente por não envolver necessidade de
transferência patrimonial, já que, no caso do acordo, as ações nunca
saíram da titularidade do contratante.
Vale também salientar que quando se opta pela criação de
uma sociedade holding, o grau de abrangência da relação entre os
acionistas é maior e mais profundo, se comparado com o acordo de
acionistas.
Isto porque um acordo de acionista pode vincular seus partíci-
pes apenas no que diz respeito a determinados direitos em relação
à companhia, enquanto no caso de sociedade holding conjugam-
-se, nela, a totalidade dos direitos de sócio.
Por outro lado, o acordo de acionistas pode apresentar, como
se demonstrará no item seguinte, graves dificuldades na sua exe-
cução, o que o torna menos confiável, como instrumento uniformi-
zador de decisões, do que a criação de uma pessoa jurídica holding.

437 MAMEDE. Gladston. MAMEDE. Eduarda Cotta. Holding Familiar e suas vantagens –
planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 15ª edição. São Paulo.
Ed. GEN. 2022.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 405


Assim – e de forma sintética e abstrata – pode-se concluir,
com significativo grau de confiança, que o acordo de acionistas
deve ser empregado quando os contratantes desejam a opção por
eventual desfazimento menos complexo e custoso de suas rela-
ções, enquanto a holding se mostra mais adequada quando a preo-
cupação fundamental for a estabilidade e rigidez nas relações e no
exercício do controle438.

5 - A regra da execução específica do acordo de


acionistas e seus reflexos sobre o comportamento
estratégico dos contratantes

O acordo de acionistas versa, como já frisado, essencialmente


sobre a forma pela qual as partes vão exercer seu direito de nego-
ciar suas ações (acordo de bloqueio) ou de votar nas deliberações
sociais (acordo de voto). Tratam-se, em síntese, de obrigações que
comportam execução in natura, ou seja, mediante suprimento judi-
cial do ato ilegalmente omitido pelo contratante.
A regra da execução específica do acordo de acionistas está
expressamente consagrada pela Lei n. 6.404/76 (art. 118 par. 3o).
Significa dizer que as obrigações de dar ou fazer estipuladas em tais
acordos são exigíveis, por via judicial, em sua forma original. Esta
exigibilidade específica se desdobra, no contexto do art. 118 da Lei
n. 6.404/76, em duas previsões respectivamente estipuladas nos
parágrafos 8º e 9º.
Na primeira delas, tem-se que o presidente da assembleia ou
do órgão colegiado de deliberação da companhia tem o dever de
não computar o voto proferido com infração de acordo de acionis-
tas devidamente arquivado.
Na segunda, fica estipulado que o não comparecimento à as-
sembleia ou às reuniões dos órgãos de administração da compa-
438 “Se se tentasse estabelecer uma ordem gradativa de aprisionamento da vontade dos
acionistas, ter-se-ia, como forma mais branda, o acordo do direito brasileiro, depois o pooling
agreement, em seguida o voting trust, o sindicato acionário e, por último, a holding, como
mecanismo mais rígido e irreversível”. BARBI FILHO. Acordo de Acionistas... ob. Cit. pg. 52.

406 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


nhia, bem como as abstenções de voto de qualquer parte do acordo
de acionistas ou de membros do conselho de administração, eleitos
nos termos de acordo de acionistas, assegura à parte prejudicada o
direito de votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou
omisso e, no caso de membro do conselho de administração, pelo
conselheiro eleito com os votos da parte prejudicada.
Os dispositivos em análise geram grandes discussões e con-
trovérsias entre aqueles que se dispõem a analisá-los.439 Boa parte
destas divergências devem-se, é possível afirmar, ao fato de haver
soluções legais diferentes para as hipóteses em que um acionis-
ta vinculado ao acordo expressamente vota contra o estipulado no
pacto e aquela na qual este sócio opta por não comparecer ou se
abster na deliberação.
No primeiro caso, o presidente da Assembleia ou do órgão co-
legiado deve deixar de computar o voto proferido contra o acordo
arquivado, mas não tem o poder de suprir a vontade do acionista,
ou seja, de contar seu voto no sentido em que este deveria ter sido
proferido440.
O sócio que afronta, como sua declaração expressa na as-
sembleia geral, o pactuado por ele no acordo de acionistas será,
para todos os efeitos, equiparado àquele sócio que tenha se ausen-
tado da deliberação, pois suas ações não serão consideradas, na
apuração final dos votos proferidos. Na prática, é como se o acionis-
ta que votou expressamente contra o acordo por ele assinado não
houvesse comparecido à assembleia geral de acionistas.
Já na segunda hipótese – não comparecimento ou abstenção
de um dos signatários do acordo de acionistas – os demais con-

439 Sobre tais divergências, vale consulta à sistematização contida em: RIBEIRO. Renato
Ventura. Direito de Voto nas Sociedades Anônimas. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2009. Pg. 341
a 348.
440 “Atribui-se ao presidente da assembleia geral, entretanto, uma autoridade limitada: pode
ele negar-se a computar o voto lançado contra os termos do acordo, mas não pode suprir a
vontade do devedor e agir positivamente, votando como supõe que o acionista inadimplente
deveria ter votado”. ARAGÃO. Paulo Cezar. A disciplina do Acordo de Acionistas na Reforma da
Lei das Sociedades por ações (Lei n. 10.303/01). (in:). LOBO. Jorge. (Coord.). A Reforma da Lei
das Sociedades Anônimas. 2ª edição. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 2003. Pg. 373.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 407


tratantes ou o representante deles poderão votar pelo ausente, no
sentido estipulado pelo acordo441. Assim, a ausência de um dos sig-
natários não gera qualquer prejuízo aos demais ou ao cumprimento
do acordo, pois os contratantes presentes podem votar pelo ausen-
te, no sentido que fora pactuado no acordo de acionistas por eles
assinado.
Chega a ser curioso notar que, na forma com está redigido o
art. 118 da Lei n. 6.404/76, o acionista que esteja presente na delibe-
ração e expressamente vote contra os termos do acordo por ele as-
sinado será, para este efeito, considerado ausente, já que seu voto
não é, naquela oportunidade, computado nem no sentido proferido
por ele, nem na forma como deveria, pelos termos do acordo de
acionistas, ter sido manifestado.
Por outro lado, o acionista ausente ou omisso na deliberação
será, para os efeitos do cômputo de seu voto, tratado como pre-
sente e, mais do que isso, votante, como se ali estivesse e expres-
samente declarasse sua vontade no exato sentido estipulado pelo
acordo de acionistas.
Se o acionista vota expressa e deliberadamente contra o esti-
pulado em acordo por ele assinado, seu voto não será computado,
mas não se permite que o mesmo seja contabilizado, pelo presi-
dente da assembleia ou órgão colegiado, no sentido em que deve-
ria ter sido manifestado, ou seja, nos termos do acordo.
Essa simples não contabilização do voto manifestado expres-
samente contra o estipulado em acordo de acionistas pode invia-
bilizar, ao menos naquela oportunidade, a aprovação da matéria
objeto de votação, frustrando a fundada expectativa dos demais
signatários do pacto.
Tem-se, desta forma, que a previsão do par. 8º do art. 118 da
Lei n. 6.404/76 pode, na prática, ser usada por um dos signatários
como forma de impedir a aprovação de uma deliberação assem-
441 Em comentário ao par. 9º do art. 118 da Lei n. 6.404/76, Calixto Salomão Filho afirma:
“Passa a ser possível, exatamente como ocorre com os órgãos sociais, obter uma manifestação
única de seus membros, sem a existência de mandato.” (SALOMÃO FILHO. Calixto. O Novo
Direito Societário. 3ª edição. Ed. Malheiros. São Paulo. 2006.Pg. 118).

408 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


blear prevista em acordo de acionistas por ele assinado, quando
não for estrategicamente interessante, para ele, acompanhar os de-
mais signatários do pacto.
Caberá a estes demais partícipes do acordo, com base no
art. 118 par. 3º da Lei n. 6.404/76, buscar o suprimento judicial da
vontade que deveria ter sido declarada pelo acionista que viola o
pactuado, ou seja, a execução específica do acordo de acionistas
negligenciado.
Esta execução específica, porém, não se dá imediatamente.
Ao contrário, acarreta os custos do suprimento judicial, nos quais se
incluem o tempo até a obtenção da decisão e os demais dispêndios
com a instauração e condução do processo.
Entre a data em que a deliberação era oportuna e necessária
para os negócios sociais e o pronunciamento de decisão judicial
que, com base nos parágrafos. 3º e 8º do art. 118 da Lei n. 6.404/76,
supra o voto dado expressamente com violação ao acordo de acio-
nistas, a execução específica aqui tratada pode se mostrar já ino-
portuna e inútil para a sociedade e para os sócios.
Assim, a solução legal para o voto expressamente dado con-
tra acordo de acionistas permite àquele que, de forma oportunista,
deseja descumpri-lo, algo que os economistas chamam de “des-
cumprimento eficiente” do contrato, e coloca os demais signatários
na necessidade de renegociar os termos do acordo original, de for-
ma a reverter o voto contrário dado por um deles, ou de incorrer nos
custos – principalmente de oportunidade – de buscar a execução
específica do acordo442.
Por outro lado, o par. 9º do art. 118 da Lei n. 6.404/76 impede
que a ausência ou abstenção do contratante sejam usadas como

442 “O remédio jurídico da indenização dá ao promitente [o acionista que vota expressamente


contra os termos do acordo por ele assinado] a opção de cumprir a promessa ou de descumpri-la
e pagar a indenização. O promitente pode escolher a alternativa mais barata. Em contraposição
a isso, o remédio jurídico da execução específica dá ao promissário [demais signatários do
acordo de acionistas] o direito ao cumprimento da promessa, independentemente do seu custo.
Exercer esse direito nas circunstâncias erradas causa a ineficiência. Para evitar o exercício
ineficiente do direito à execução específica, as partes precisam conseguir renegociar o contrato.”
COOTER. Robert. ULEN. Thomas. Direito e Economia. Ed. Bookman. Porto Alegre. 2010. pg. 267.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 409


meios de frustrar o cumprimento de acordo de acionistas. Ausentar-
-se ou abster-se de votar não é, para o acionista, um mecanismo de
descumprimento eficiente do acordo por ele assinado.
Tem-se então que o art. 118 da Lei n. 6.404/76 torna, para
aquele acionista que pretenda violar o acordo por ele assinado, o
comparecimento e expresso voto contrário aos termos do pacto
uma estratégia estritamente dominante 443 .
Em verdade, tanto no caso de acionista omisso quanto daque-
le que vota expressamente contra o acordo há - ainda que em dife-
rentes medidas - o exercício, pelo presidente da assembleia ou do
outro órgão colegiado, de poder de autotutela, pois o art. 118 da Lei
n. 6.404/76 lhe permite verificar, no caso de ausência ou omissão
de um dos contratantes, a pertinência do voto dado pelos outros
signatários (parágrafo. 9º), assim como deve ele aferir a afinidade
ou não entre os termos do acordo arquivado e o voto dado em uma
deliberação (parágrafo. 8º)444.
Assim, se em ambos os casos há a admissão legal da autotu-
tela, não há razão pela qual a solução legal deva ser distinta. Mais
eficiente, para a segurança e credibilidade dos termos do acordo de
acionistas, que tanto na hipótese de voto contrário quanto de au-
sência ou abstenção do signatário os votos fossem todos compu-
tados no sentido do pacto, com os eventuais abusos sendo, claro,
suscetíveis de discussão e eventual reparação por via judicial.

443 Estratégia estritamente dominante é aquela que se mostra a melhor ação para aquele
jogador, qualquer que seja a estratégia do outro ou dos outros jogadores. “Um jogador racional
adotará uma estratégia dominante sempre que ela existir”. BIERMAN. H. Scott. FERNANDEZ.
Luis. Teoria dos Jogos. 2ª edição. Ed. Pearson Prentice Hall. São Paulo. 2011. Pg. 9.
444 O par. 8 do art. 118 da Lei n. 6.404/76 não permite, por ato do presidente da deliberação,
o suprimento do voto contrário ao acordo de acionistas, mas também não lhe nega poder de
autotutela, pois lhe autoriza a um só tempo aferir a contrariedade entre o voto dado e aquele
que deveria ter sido manifestado e também a não computa-lo na apuração final.

410 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


6 - Acordo de quotistas

Discute-se a possibilidade de utilização de acordos entre quo-


tistas da sociedade limitada, com as mesmas características estru-
turais e efeitos do Acordo de Acionistas aqui discutido.
Para que se possa concluir em um ou noutro sentido, faz-se
adequado analisar a pertinência ou não dos supra analisados ele-
mentos estruturais do Acordo de Acionistas ao contexto jurídico da
sociedade limitada.
Quanto às partes, é de se concluir que inexiste obstáculo a
que os sócios de uma mesma sociedade limitada possam, entre si,
contratar a forma pela qual exercerão seus direitos de sócio na pes-
soa jurídica que integram, do mesmo modo que se viu em relação
aos acionistas de uma mesma companhia.
Tal obstáculo também inexiste quanto ao objeto destes acor-
dos, uma vez que o exercício dos direitos, em uma sociedade limi-
tada, também pode ser validamente pactuado, entre os sócios, nos
moldes verificados para o caso das sociedades anônimas.
Se, no que tange às partes e objeto, a matéria não causa dúvi-
da plausível, o mesmo não se pode dizer com relação aos requisitos
formais do acordo de quotistas e, em consequência disso, à sua
oponibilidade em relação à sociedade e a terceiros.
O art. 118 da Lei n. 6.404/76 estipula, repete-se, dois requisitos
de forma indispensáveis à oponibilidade do acordo de acionistas à
companhia e a terceiros. São eles o arquivamento na sede da so-
ciedade e sua averbação no livro de registro de ações, quando for
o caso.
Já à primeira vista verifica-se que tais requisitos de forma são
inaplicáveis – se tomados literalmente - à estrutura jurídica de uma
sociedade limitada, especialmente no que tange à averbação do
instrumento do acordo em livro de registro que, em momento al-
gum, é legalmente referido nas normas que disciplinam a socieda-
de limitada (art. 1.052 a 1.086 do Código Civil).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 411


Há na doutrina o entendimento de que, em se tratando da so-
ciedade limitada, a averbação de acordo entre sócios no livro de
registro de ações - prevista no art. 118 da Lei n. 6.404/76 - possa ser
validamente suprida, se prevista a regência supletiva pela lei das
sociedades anônimas, pelo arquivamento do acordo de quotistas
no órgão público de registro onde esteja inscrita a sociedade limi-
tada em questão.445
Se considerada suprida, na forma citada, a exigência formal
do art. 118 da Lei n. 6.404/76, poder-se-ia conceber, a partir daí, uma
modalidade “típica” de acordo de quotistas, a qual, nos moldes dos
acordos de acionistas típicos, seria oponível à sociedade e a ter-
ceiros em geral. Há, porém, algumas ponderações a fazer a esse
respeito.
Em primeiro lugar, não parece adequado substituir-se requi-
sitos de forma essenciais à publicidade de um ato. Um acordo de
acionistas típico é um negócio jurídico solene e suas formalidades
não podem ser, em virtude de sua inexequibilidade na sociedade
limitada, substituídas por outras que se entenda “análogas”.
Não se pode, sob o argumento de que a pretendida publici-
dade é assim alcançada, substituir meios legalmente estipulados
como requisitos para tal efeito, como se está a fazer quando um
acordo de quotistas é averbado no órgão de registro da pessoa ju-
rídica com a pretensão de atender à exigência de sua inscrição em
um livro que sequer existe neste modelo societário (o livro de regis-
tro de ações).
Vale ainda observar que, no caso das deliberações em as-
sembleia geral de acionistas, o art. 118 da Lei n. 6.404/76 indica que
seu presidente é responsável por zelar pela aplicação dos termos
do acordo de acionistas típico.
As sociedades limitadas nem sempre terão, em sua estrutura
organizacional, uma assembleia de sócios. Assim, em uma socie-
445 CORVO. Erick. Acordos de sócios de sociedades limitadas à luz do Código Civil de
2002. (in:). ADAMEK. Marcelo Vieira Von. (Coord.) Temas de Direito Societário e Empresarial
Contemporâneos – Liber Amicorum Prof. Dr. Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França. Ed.
Malheiros. São Paulo. 2011. Pg. 113.

412 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dade limitada na qual os quotistas deliberem por simples reunião
– sem, como se viu, formalidades de realização – quem será res-
ponsável por zelar, na deliberação, pelos termos do acordo de quo-
tistas?
Cabe ainda questionar se o órgão de registro da sociedade
limitada tem - ou, antes disso, se pode ter – o poder de zelar por
eventual acordo de bloqueio entre quotistas e assim inadmitir o ar-
quivamento de cessão de quotas sob o argumento de que a trans-
ferência estaria a afrontar acordo de quotistas ali arquivado. Parece
claro que tal competência não pertence à Junta Comercial ou ao
Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
Por fim, a possível regência supletiva pela Lei n. 6.404/76 não
permite que se aplique à sociedade limitada institutos que são in-
compatíveis com sua estrutura. A se conceber tal possibilidade, na
verdade se está a admitir a criação de um modelo societário “híbri-
do”, o que afronta as mais elementares regras de direito societário.
Deste modo, não há como pretender, para a sociedade limi-
tada, uma modalidade “típica” de acordo de quotistas, nos moldes
daquele existente no contexto das companhias446. Acordos de quo-
tistas são válidos, se atendidos os requisitos de parte e objeto apli-
cáveis aos acordos de acionistas, mas não são oponíveis, dada sua
essencial atipicidade, à sociedade e terceiros em geral.
O descumprimento de acordo de quotistas deve ser reparado
não por meio da execução específica de seus termos – algo parti-
cular ao acordo de acionistas típico – mas por meio das eventuais
medidas indenizatórias, dado seu caráter privado.
O mesmo se verifica também com outras modalidades de
convenções de voto que não seguem o modelo tipificado pelo art.
118 da Lei n. 6.404/76. São acordos válidos, mas inoponíveis à com-
panhia.

446 Fundamental lembrar, porém, que o Departamento de Registro Empresarial e Integração


(DREI) admite expressamente (Instrução Normativa n. 81/2020) que as Juntas Comerciais
arquivem tais acordos de quotistas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 413


É o caso, por exemplo, do acordo pelo qual o acionista aliena
fiduciariamente suas ações permitindo, com isso, que o fiduciário
exerça, em nome próprio, o direito de voto sobre elas ou, ainda, os
pactos pelos quais o acionista preserva a propriedade das ações
mas transfere a terceiros o direito de voto relativo a elas447.

447 RIBEIRO. Renato Ventura. Direito de Voto nas Sociedades Anônimas. Ed. Quartier Latin. São
Paulo. 2009. Pg. 346/347.

414 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XII
Administração de sociedades: composição, atribuições
e deveres

1 – Caracterização legal e atribuições do administrador

A sociedade empresária é, como espécie de pessoa jurídica,


uma entidade apta a adquirir direitos e contrair obrigações. É cla-
ro, entretanto, que a capacidade da pessoa societária é limitada,
se comparada à das pessoas físicas, pois somente está habilitada a
praticar atos jurídicos que, diretamente ou não, tenham relação com
a atividade econômica por ela desenvolvida.
Vale notar também que, embora dotadas pela legislação da
capacidade para praticar validamente numeroso elenco de atos e
negócios, as pessoas jurídicas, como se sabe, não existem no mun-
do dos fatos.
Assim, enquanto as pessoas físicas podem manifestar e im-
plementar sua vontade por meio de sua direta interação com os
demais sujeitos de direito, as pessoas jurídicas em geral – e as so-
ciedades em particular - necessitam de pessoas físicas que as “cor-
porifiquem” no mundo dos fatos, praticando atos jurídicos em seu
nome e interesse.
Desta necessidade advém a figura do administrador, que pode
ser definido, sob o aspecto jurídico, como a pessoa ou o grupo de
pessoas físicas legalmente autorizadas a praticar atos jurídicos em
nome, por conta e risco da sociedade personificada448.
O administrador da sociedade é o instrumento de que se vale
a pessoa jurídica para colocar-se diante daqueles com os quais vá
praticar algum ato jurídico. É a pessoa ou grupo de indivíduos dota-

448 O Código Civil (art. 1.011 par. 1º) e a Lei n. 6.404/76 (art. 147) estabelecem hipóteses de
inelegibilidade para o exercício da administração de sociedades.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 415


dos dos poderes necessários à prática das condutas direta ou indi-
retamente voltadas para a consecução do objeto da sociedade449.
É de lembrar, entretanto, que a função do administrador em
uma sociedade supera – e em muito – a de simplesmente corpori-
ficá-la na aquisição de direitos e obrigações. Se perante terceiros a
principal atribuição da figura do administrador está na sua aptidão
para praticar atos jurídicos pela sociedade que administra, interna-
mente seu trabalho ganha outros contornos.
No interior da empresa a administração da sociedade envolve
a escolha e implementação de todas as medidas tendentes – ao
menos de forma potencial – a conduzir a organização econômica
da forma mais produtiva e lucrativa possível.450
A tarefa do administrador é conduzir a sociedade no exercício
da empresa. A sua atribuição jurídica para contrair direitos e obri-
gações em nome da sociedade é mera decorrência do verdadei-
ro ônus que possui: empregar seus conhecimentos e habilidades
pessoais para, diante das limitações materiais e financeiras e das
circunstâncias econômicas que o cercam, gerar lucro a partir da ati-
vidade empresarial desenvolvida pela sociedade451.

449 Vale citar, neste sentido, o texto do art. 1.022 do Código Civil brasileiro: a sociedade adquire
direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes
especiais, ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador.
450 Administrar uma sociedade “(...) implica responsabilidade em procurar modelar o ambiente
econômico; em planejar, iniciar e levar adiante alterações nesse ambiente; e em constantemente
alargar os limites que as circunstâncias econômicas impõem à capacidade de contribuição da
empresa. O possível (as“condições econômicas” do economista) constitui, portanto, apenas um
pólo da direção da empresa. O outro pólo é representado pelo que se apresenta como desejável
no âmbito do interesse da economia e da empresa. E (...) cabe à direção a tarefa específica de
transformar aquilo que é desejável em possível, primeiro, depois em realidade. A administração
não é mera criatura da economia; é também criadora. E é apenas na medida em que domine
as circunstâncias econômicas e as altere, através de atos conscientemente conduzidos, que ela
realmente dirige.” DRUCKER, Peter F. Introdução à Administração. São Paulo: Thomson – IOB,
2004. Pg. 33/34.
451 Os decisivos reflexos que a estrutura, a composição e o perfil dos integrantes da
administração de uma sociedade têm sobre o resultado econômico de suas atividades não
escapa ao estudo de juristas, especialmente no Direito Norte-americano. Veja, a título de
exemplo: ROMANO. Roberta. BHAGAT. Sanjai. Empirical Sudies of Corporate Law. Center For
Law, Economics and Public Policy - Yale Law School. Research Paper No. 316. New Haven, May
2005. 108 Pg.

416 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Se os empregados da sociedade contribuem para a empresa
com o fator trabalho, os sócios e credores com o fator capital e a
natureza com a matéria-prima, cabe ao administrador, em síntese,
a tarefa de dar organização a estes fatores de produção, combinan-
do-os de forma a efetivamente transformá-los em uma empresa.

2 – Natureza jurídica da relação entre administrador e


sociedade empresária administrada

A natureza jurídica da relação entre a sociedade empresária,


seus sócios e seus administradores é tema sobre o qual já se pre-
ocuparam grandes autores do Direito Empresarial, os quais desen-
volveram ou aderiram a diferentes teorias sobre o assunto.
Cesare Vivante via na relação entre administrador e sociedade
administrada uma modalidade do contrato de mandato, pelo qual
aquele estaria obrigado a colocar em prática a vontade desta.452
Assim o administrador – e também os órgãos por ele integra-
dos, como a Diretoria e o Conselho de Administração – enquanto
mandatário da sociedade, não responde patrimonialmente pelos
atos praticados, desde que tenha agido nos limites dos poderes a
ele conferidos.
Em face desta teoria o administrador está obrigado a respeitar
e cumprir fiel e estritamente a vontade de seus mandantes, repre-
sentados, no caso, pelos sócios que o tenham escolhido e conferi-
do o exercício de suas funções.
Embora defendida por autor do porte de Cesare Vivante esta
concepção foi – e ainda é – alvo de numerosas e agudas críticas
como a de Tullio Ascarelli (reproduzida por Rubens Requião)453 para
quem a teoria em questão não se sustenta face à constatação de
que os administradores da sociedade podem manifestar e imple-

452 VIVANTE, Césare. Tratado de Derecho Mercantil. Vol. II. 1a ed. Madrid: Editorial Réus, 1932.
Pg. 285 e segs.
453 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol I. 25a ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Pg.
423.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 417


mentar sua vontade pessoal na gestão dos negócios sociais, o que
os diferenciaria da figura do mandatário, a quem incumbe pura e
tão somente efetuar, colocar em prática, o desejo do mandante.
É a partir deste pressuposto – qual seja o de que o adminis-
trador da sociedade tem poderes para interferir na vontade da pes-
soa jurídica administrada, ao contrário do que se verifica no caso do
mandatário – que Pontes de Miranda concluiu que o administrador
da sociedade é, na verdade, um órgão da pessoa jurídica454.
Seguindo a linha apontada por Pontes de Miranda, vários fo-
ram os autores que aderiram à teoria do administrador como órgão
da pessoa jurídica.455
A administração da sociedade realmente encontra-se estru-
turada a partir da noção órgão social, entendido como grupo de
competências legalmente fixadas456. A Diretoria e o Conselho de
Administração das Sociedades Anônimas, por exemplo, são núcle-
os de atribuições normativamente organizados para melhor gestão
do objeto da sociedade e dos sócios.
Não se deve confundir, entretanto, tais órgãos com as pesso-
as físicas que os componham, os chamados agentes. O órgão não
se confunde com a pessoa que o integra457. A Diretoria é um órgão;
os diretores são agentes deste órgão. O Conselho de Administração

454 “O órgão não representa, presenta. A pessoa jurídica é que assina o título de crédito, ou
qualquer título circulável, ou o instrumento público ou particular de contrato, ou qualquer ato
jurídico, negocial ou não, posto que a mão que escreve seja a do órgão da sociedade, uma vez
que o nome de quem materialmente assina integre a assinatura. A pessoa jurídica pode outorgar
poderes de representação. Mas o órgão tem outros poderes, que resultam de sua investidura, na
conformidade dos atos constitutivos ou dos estatutos, ou de lei. O representante figura em nome
do representado; o órgão não é figurante; quem figura é a pessoa juridica ela se vincula em seu
próprio nome” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Vol n.
49. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. Pg. 113
455 LAMY FILHO, Alfredo. BULHÕES PEDREIRA, José Luis. A Lei das S. A. Vol. II. 2a ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 1996. Pg. 426
456 Complementa tal afirmativa o texto do art. 139 da Lei n. 6.404/76, que diz: “As atribuições
e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro
órgão, criado por lei ou pelo estatuto.”
457 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. V. II.
Rio de Janeiro: Forense, 1974. Pg. 78 e segs.

418 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


é um órgão; os Conselheiros de Administração são agentes deste
órgão.
Os administradores são pessoas que agem por conta da so-
ciedade empresária. São escolhidos pela vontade social (que, no
caso das sociedades empresárias, emana da vontade de seus só-
cios) para legitimamente exercerem as atribuições referentes ao ór-
gão do qual passam a ser agentes. Praticam atos na condição de
agentes dos órgãos sociais.
O agente público é investido nos seus poderes por diferentes
meios legalmente fixados (provimento em cargo, admissão em fun-
ção, etc.) e torna-se responsável por implementar os interesses do
Estado.
O administrador de sociedade empresária é investido nos
seus poderes pela vontade dos sócios, mas, uma vez no exercício
de suas funções, ele tem que implementar não a vontade dos só-
cios que o tenham escolhido (como ocorreria no caso do mandato)
mas o interesse da pessoa jurídica.
A função dos administradores é diferente da do mandatário.
Este põe em prática a vontade do mandante. Os administradores
põem em prática o interesse da pessoa jurídica, não dos sócios que
os elegeram. Devem os administradores exercer suas funções no
interesse da pessoa jurídica a quem os seus atos são imputados458,
de forma análoga ao que se verifica entre os agentes públicos e o
Estado.

3 – A separação entre a propriedade e a gestão das


sociedades empresárias

A administração de uma sociedade empresária exige do ad-


ministrador conhecimentos que, em boa parte das vezes, os sócios
do empreendimento não apresentam. Os sócios são as pessoas
458 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Modificações introduzidas na Lei das
Sociedades por Ações, quanto à disciplina da Administração das Companhias, In: LOBO,
Jorge (Org.). Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. 2a edição. Rio de Janeiro: Forense,
2003. Pg. 437.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 419


que se dispõem a agrupar seus recursos financeiros disponíveis na
constituição de uma sociedade para, através do exercício de uma
empresa, obterem lucro, aumentando o capital investido quando da
constituição da pessoa jurídica.
É regra geral, no momento da constituição da sociedade, em
que a empresa está ainda incipiente, que os próprios sócios se de-
diquem à tarefa de administrá-la. Porém, com o sucesso do empre-
endimento e seu consequente aumento de complexidade, torna-se
necessário contar com a ajuda de profissionais formados na tarefa
de administrar o negócio.
Neste momento é comum que os sócios, empreendedores
dotados ao mesmo tempo de iniciativa empresarial e recursos fi-
nanceiros para investir nesta atividade, não tenham a formação aca-
dêmica, a experiência profissional ou mesmo condições físicas de
desempenhar todas as tarefas administrativas que, com o evoluir da
empresa, tornam-se essenciais ao seu bom desempenho.459
Nas sociedades limitadas, cuja estrutura é mais adequada a
pequenos e médios empreendimentos, a legislação pressupõe um
perfil mais ou menos uniforme dos sócios. A sociedade limitada é,
como apontado, composta normalmente por pessoas de condições
econômicas, técnicas e intelectuais muito semelhantes.
São pessoas de uma mesma família, colegas de profissão ou
amigos que se agrupam face à mútua confiança e credibilidade.
Constituem a sociedade com o objetivo de exercerem uma ativida-
de empresarial sobre a qual todos tenham algum grau de conheci-
mento, o que os habilita, no momento inicial do empreendimento, a
praticar diretamente a gestão.

459 “A maior parte das empresas nasce de fundadores-proprietários, que inicialmente


acumulam as funções de proprietários e gestores. À medida que as empresas crescem e, com o
passar do tempo, seus fundadores morrem, nem sempre os descendentes reúnem as condições
ou tem interesse em substituí-los, mas herdam a propriedade. O processo inevitável é então o
de separação entre a propriedade e a gestão – um processo que avança e se desdobra com
o correr do tempo, tornando a propriedade ainda mais dispersa entre milhares de acionistas
não organizados, cada vez mais afastados da administração diária dos negócios.” ROSSETTI,
José Paschoal. ANDRADE, Adriana. Governança Corporativa – fundamento, desenvolvimento e
tendências. São Paulo: Atlas. 2004. Pg. 43

420 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Apenas numa fase posterior, com o já comentado aumento
na complexidade da atividade empresarial, é que se verifica a cisão
entre a propriedade das quotas e a administração da sociedade,
sempre com o objetivo de tornar mais eficiente a gestão social.
A separação entre os proprietários (sócios) da sociedade li-
mitada empresária e seus administradores é benéfica e mesmo re-
comendável. Os sócios da sociedade afastam-se de boa parte das
tarefas administrativas da empresa, outorgando-as a outros profis-
sionais mais qualificados tecnicamente para a função.
Nas sociedades anônimas, por outro lado, tal cisão é pressu-
posta pela legislação. A sociedade anônima, por excelência o for-
mato jurídico da grande empresa, deve agrupar, espera a legisla-
ção, um número potencialmente grande e diversificado de sócios
(acionistas).
O grupo de acionistas naturalmente tende a reunir pessoas
com diferentes objetivos profissionais e pessoais, além de apresen-
tarem grandes disparidades econômicas, técnicas e intelectuais.
Em uma genuína Sociedade Anônima há inúmeros perfis de acio-
nistas.
Há, a título de exemplo, aqueles com interesses exclusiva-
mente especulativos, que compram e vendem ações constante-
mente com o único objetivo de lucrar com tais transações, outros
que procuram os dividendos gerados pelos lucros da empresa e
também os que pretendem ter o controle sobre a companhia.
Embora sejam pessoas de características potencialmente tão
diferentes, não é recomendável que a administração do empreen-
dimento fique diretamente a seus cuidados, dada a complexidade
inerente a atividades de tal potencial econômico e o fato de que a
uns falta capacidade técnica para a gestão e a outros falta interesse
em assumir esta tarefa, havendo também aqueles que não dispõem
de número suficiente de ações para se elegerem.460
460“Nas sociedades anônimas, em substância, o direito parte do conceito de que, em
consequência do número dos acionistas e da variabilidade deles, o sócio, como tal, não pode
administrar, direta e pessoalmente, a sociedade. Daí a distinção entre sócios e diretores: entre
um órgão deliberativo (assembleia) e um órgão que preside à gestão normal da sociedade

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 421


Deste modo, a Lei das sociedades anônimas (Lei n. 6.404/76)
procura viabilizar e implementar a divisão da função de administrar
a sociedade entre diferentes pessoas ou grupos investidos legal-
mente de tais atribuições.

4 – Administração singular e colegiada na legislação


brasileira

É válido classificar a forma pela qual os administradores de


sociedades empresárias estão organizados para o exercício de suas
funções segundo alguns importantes critérios, os quais em regra
decorrem originalmente da análise de órgãos estatais, mas podem,
com sucesso, ser aplicados também à compreensão das pessoas
jurídicas empresárias461 .
Há o modo colegiado, em que os administradores deliberam
entre si por maioria de pessoas - não de capital - e extraem uma
única resolução a ser implementada conjuntamente por todos.
Neste caso o integrante da administração não tem, isolada-
mente, qualquer poder decisório, podendo apenas manifestar sua
vontade no interior do colegiado de administradores. É assim que

(diretores).” ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. 1a ed.
Campinas: Bookseller. 2001. Pg. 482.
461 Maria Silvia Zanella Di Pietro relata que comumente classificam-se os órgãos públicos,
quanto à sua composição, em singulares e coletivos, conforme sejam integrados por um
único indivíduo ou vários. Lembra, porém, que Renato Alessi apresenta critério um pouco
diverso, preferindo falar em órgãos burocráticos e colegiados. “Os primeiros são aqueles que
estão a cargo de uma só pessoa física ou de várias pessoas ordenadas verticalmente, isto é, de
forma que cada uma delas possa atuar individualmente, porém ligadas, para sua necessária
coordenação, por uma relação hierárquica. Quando se fala, por exemplo, de uma Diretoria,
sabe-se que existe o Diretor, que é o responsável pelo órgão, mas dentro desse órgão existem
outras pessoas ligadas ao dirigente, como secretárias, datilógrafos, contínuos. Já os órgãos
colegiados são, ao contrário, formados por uma coletividade de pessoas físicas ordenadas
horizontalmente, ou seja, com base em uma relação de coligação ou coordenação, e não uma
relação de hierarquia; são pessoas situadas no mesmo plano e que devem atuar coletivamente
em vez de individualmente, concorrendo a vontade de todas elas ou da maioria para a formação
da vontade do órgão.” DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. 14a ed. São Paulo:
Atlas. 2002. Pg. 351

422 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


funciona, por exemplo, o Conselho de Administração das socieda-
des anônimas. 462
Há, por outro lado, a modalidade singular, que é aquela em
que cada administrador tem poderes para tomar, isoladamente,
qualquer medida inerente às suas atribuições contratual ou esta-
tutariamente estabelecidas, vinculando a sociedade sem necessi-
dade de consentimento dos outros administradores eventualmente
existentes.
Tome-se como exemplo a atuação dos diretores de uma so-
ciedade anônima, que, salvo regra diversa estabelecida pelos es-
tatutos da companhia, têm poderes para isoladamente exercerem
suas funções e contraírem obrigações pela pessoa jurídica463.
É também possível classificar a forma de exercício da admi-
nistração da sociedade empresária conforme seja realizada por um
único órgão ou dois. Fala-se, então, em sistemas unitário e biparti-
do.464
A administração de uma sociedade anônima, de maneira aná-
loga ao que se verifica quando se trata da administração da má-
quina estatal, envolve um grande número de providências, que se
tornam mais complexas à medida que cresce o poderio econômico
do empreendimento.

462 “O Conselho de Administração sendo um órgão de deliberação colegiada, suas decisões


devem ser tomadas pelos conselheiros em conjunto, não podendo um só, isoladamente,
praticar atos que requeiram uma manifestação dos demais.” MARTINS, Fran. Comentários à
Lei das Sociedades Anônimas. Volume II – Tomo I. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. Pg. 272
463 A Diretoria é, na verdade o único órgão genuinamente administrativo pois, como se
pode ver pelo art. 138 par. 1o da Lei n. 6.404/76, seus integrantes são os únicos que podem
representar a pessoa jurídica perante terceiros. Revela-se a Diretoria, deste modo, como
sendo o único órgão da sociedade anônima que detém as atribuições internas e internas
antes citadas.
464 “Com efeito, na esfera da administração das companhias, os sistemas adotados
universalmente são, basicamente, dois: (i) o unitário, tradicional, correspondente a um estágio
menos desenvolvido, que se cinge a apenas um órgão diretivo, e que propicia, pelo absenteísmo
dos acionistas, o controle gerencial, e (ii) o bipartido, relativamente recente, que distribui o exercício
da administração entre dois órgãos diferenciados (conselho de administração e diretoria).”
CAMARGO, João Laudo de. BOCATER, Maria Isabel do Prado. Conselho de Administração:
seu funcionamento e participação de membros indicados por acionistas minoritários e
preferencialistas. In: LOBO, Jorge (Org.). Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. 2a edição.
Rio de Janeiro: Forense, 2003. Pg. 388.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 423


Tanto no caso das sociedades anônimas privadas quanto do
Poder Público, o legislador percebeu que atribuir a uma única pes-
soa ou grupo competência para realizar toda a gama de providên-
cias necessárias à gestão seria altamente ineficiente. A lei então
separa as diferentes providências administrativas e, organizando-as
em conjuntos mais ou menos harmônicos, as atribui a um ou mais
indivíduos.
Assim, cada indivíduo ou grupo passa a ter competência para
realizar apenas aquelas providências que lhes foram conferidas
pela legislação, não podendo interferir ou praticar os atos atribuídos
pela legislação a outros indivíduos ou grupos.
No caso do Poder Público isto fica muito claro. Tome-se por
exemplo as diferentes Secretarias Estaduais. Cada uma delas é en-
carregada de determinados setores da Administração Pública es-
tadual. A Secretaria de Segurança Pública, a Secretaria de Saúde,
a Secretaria de Educação e todas as outras têm competência legal
para a prática de variado rol de providências, mas todas vinculadas
entre si e apartadas das competências das demais Secretarias. O
termo órgão público representa exatamente cada um destes “cen-
tros de atribuições” conhecidos e disciplinados pelas normas que
tratam da organização da Administração Pública.
A disciplina da matéria nas sociedades anônimas é similar. A
lei procurou elencar as providências necessárias ao funcionamento
da sociedade e as repartiu entre as diferentes “unidades de atribui-
ções” componentes da estrutura societária, cada qual a partir de
então adequadamente denominada de órgão social.
Assim, o sistema de administração da sociedade anônima é,
em princípio, bipartido, posto que dividido entre Conselho de Ad-
ministração e Diretoria (art. 138 da Lei n. 6.404/76)465 e combina a

465 Nas companhias fechadas o Conselho de Administração é órgão facultativo, somente


existindo se previsto expressamente no estatuto social (art. 138 par. 2º da Lei n. 6.404/76.
Assim, em companhias fechadas sem a presença do Conselho de Administração, suas
competências recairão automaticamente para a Assembleia Geral de Acionistas.

424 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


forma singular, característica da Diretoria, com a forma colegiada,
típica do Conselho de Administração. 466
O Conselho de Administração, a Diretoria, a Assembleia Geral
de Acionistas e o Conselho Fiscal são os órgãos componentes da
sociedade anônima. Já no que diz respeito à sociedade limitada, o
Código Civil deixou a cargo do contrato social decidir se cada admi-
nistrador poderá agir isoladamente (forma singular de administra-
ção) ou apenas em conjunto, como integrante de órgão colegiado.
Em caso de omissão do contrato social, a administração da
sociedade limitada realiza-se por uma ou mais pessoas nomeadas
na forma legal e que poderão isoladamente implementar qualquer
medida atinente às suas atribuições legais e contratuais (adminis-
tração singular). Com o poder de agir isoladamente o administrador
vincula a sociedade e os demais gestores com as providências que
efetua.
Assim, enquanto a Lei n. 6.404/76 conhece e regula expres-
samente a repartição das funções administrativas entre dois dife-
rentes órgãos (o Conselho de Administração e a Diretoria) a socie-
dade limitada apresenta, em princípio, uma ou mais pessoas que,
no exercício da administração do empreendimento, terão para si a
generalidade das atribuições inerentes à função (art. 1. 015 do Có-
digo Civil).
Tal medida é plenamente justificável tendo em vista que a so-
ciedade limitada representa um modelo societário menos elabo-
rado que as anônimas, adequando-se às micro, pequenas e mé-
dias empresas que muitas vezes não apresentam a complexidade

466 É possível também a analogia entre a forma de repartição das competências entre
os diferentes órgãos das Sociedades Anônimas privadas e a divisão de Poderes em um
Estado Democrático de Direito. Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, citando Charles Resteau,
lembrou que: “A sociedade anônima pode ser assemelhada a uma república democrata com
seus Poderes Legislativo, Executivo e Fiscalizador. O primeiro é a assembleia geral; o segundo,
a administração; e o terceiro, o conselho fiscal.(...) “Na sociedade anônima, como no regime
democrático, os três poderes são harmônicos e independentes. Cada um tem suas atribuições
traçadas na lei e nos estatutos, e só dentro de sua competência sua decisão tem valor.”. PEIXOTO,
Carlos Fulgêncio da Cunha. Sociedade por Ações. Vol. III. São Paulo: Saraiva, 1973. Pg. 1 e 2.

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administrativa que, como lembrado, é o motivo para a criação dos
diferentes órgãos sociais.
Entretanto, com o Código de 2002, a legislação das socieda-
des limitadas também passa a exibir, ao menos potencialmente, a
repartição de competências aqui tratada, uma vez que se admite
expressamente a possibilidade de existência do Conselho Fiscal e
da Assembleia de Sócios, que, juntamente com os administradores,
compõem os órgãos deste modelo societário.
Do mesmo modo, nada há que impeça também a criação de
um sistema bipartido de administração, com a previsão pelo contra-
to social da sociedade limitada, de um Conselho de Administração
em sua estrutura.467
O contrato social pode optar por dividir as providências admi-
nistrativas e conferir cada grupo de atribuições a uma única pessoa
ou conjunto de pessoas encarregadas de implementá-los. Têm-se,
nestas hipóteses, uma administração baseada em órgãos sociais,
nos moldes das sociedades por ações e, em maior escala, da Admi-
nistração Pública.
Há nestes casos um administrador - também chamado diretor
- para a área financeira, um para o setor de recursos humanos, outro
para a área jurídica e assim por diante, sempre segundo a conveni-
ência e vontade dos sócios.
Trata-se de uma forma administrativa mais elaborada e com-
plexa que somente se justifica quando o empreendimento desen-
volvido pela sociedade alcança tal nível de poderio econômico que

467 “Diante da flexibilidade contratual que se permite à sociedades limitadas, sua administração
poderá ser formada por apenas um órgão de administração, composto por administradores que
equivaleriam aos diretores da sociedade anônima, ou poderá ser formada, se assim dispuser o
contrato social, por um conselho de administração, que neste caso funcionará, como já referido,
sob as regras das sociedades anônimas desde que haja a indicação no contato social da Lei do
Anonimato como supletiva das omissões legais e contratuais.
Se a sociedade limitada optar por uma administração unitária, com apenas um órgão
semelhante à diretoria, poderá, ainda livremente regular a estrutura dessa administração,
instituindo um ou vários cargos de administrador – já que a lei não estabelece limite mínimo ou
máximo par ao número de administradores -, para os quais o contrato social deverá estabelecer
a distribuição de funções e a forma de representação”. CARVALHOSA, Modesto. Comentários
ao Código Civil. Vol. 13. São Paulo: Saraiva. 2004. Pg.108.

426 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


se torna ineficiente - ou mesmo inviável - atribuir-se toda a adminis-
tração a um único órgão.468
O Código Civil, ciente de que tal modelo societário é utilizado
tanto por microempreendimentos quanto por outros de porte bas-
tante significativo optou por deixar a cargo do contrato social a de-
cisão sobre a distribuição ou não de competências administrativas
entre diferentes órgãos.

5 – A administração de sociedades no Código Civil

A disciplina da matéria em relação às sociedades limitadas


encontra-se, em parte, nos dispositivos especificamente dedica-
dos, pelo Código Civil, a este tipo societário (art. 1.052 a 1.086).
Por outro lado, há importantes questões cuja solução o Có-
digo preferiu deixar à cargo da legislação supletiva, representada,
segundo o seu art. 1.053, pelas normas atinentes à sociedade sim-
ples (art. 997 a 1.038 do Código Civil) ou pela Lei das sociedades por
ações (Lei n. 6.404/76).
A escolha dos administradores é medida a ser efetuada, sem-
pre, pelos sócios. São eles que tomam parte no contrato da socie-
dade a ser administrada, integralizam o capital social com recursos
próprios e, além disso, podem até responder, com seu patrimônio,
pelas obrigações contraídas, em nome da pessoa jurídica, por seus
administradores. Justifica-se, assim, que a lei lhes confira o poder
de escolher a pessoa (ou as pessoas) que exercerá(ão) a administra-
ção do empreendimento.

468 “Quando a limitada explora atividade econômica de pequena ou média dimensão, são
os próprios sócios (ou parte deles) que exercem, indistintamente, os atos de administração,
agindo em conjunto ou separadamente. Uma situação corriqueira, aliás, é a do sócio majoritário
empreendedor como o único administrador. À medida, contudo, que a sociedade se dedica
a atividades de maior envergadura, a administração da empresa se torna mais complexa, e
reclama maior grau de profissionalismo. Então, as tarefas gerenciais ou administrativas tendem
a ser repartidas, entre os sócios e profissionais contratados, em áreas compartimentadas da
gestão empresarial (administrativa, comercial, de produção, financeira etc.)” COELHO, Fábio
Ulhôa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. Pg. 51.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 427


O regime estabelecido pelo revogado Dec. Lei n. 3. 708/17
restringia aos sócios - embora disciplinasse a chamada “delegação
de gerência” – o direito de serem administradores da sociedade li-
mitada por eles composta.
Limitação desta natureza mostrou-se, ao longo do tempo,
ineficiente, uma vez que, percebeu-se gradativamente, a tarefa de
administrar uma sociedade implica, como já lembrado, em uma sé-
rie de conhecimentos técnicos e científicos que muitas vezes esca-
pam àqueles que integram o corpo social.
Era indispensável, nas sociedades limitadas, a necessidade
de aplicar-se parâmetros similares ao das sociedades anônimas,
que, em prol do sucesso do empreendimento, separam a gestão
da empresa e titularidade sobre o capital social ao admitir que os
Diretores e Conselheiros de Administração da pessoa jurídica sejam
escolhidos entre pessoas desprovidas de direitos de sócio.
O Código Civil (art. 1.061) aboliu a exigência do Dec. Lei n. 3.
708/19 e passou a expressamente admitir, para as sociedades limi-
tadas, a figura do administrador não sócio, cuidando apenas de fixar
condições particulares para sua eleição e destituição.
A indicação de uma ou mais pessoas para administradores da
sociedade limitada deve ser efetuada pelo texto do contrato social,
no momento de sua elaboração e arquivamento, ou por meio de
outro documento escrito elaborado em separado469 (art. 1. 060 do
Código Civil).
Se consta, no contrato social ou em documento separado, a
indicação expressa de um ou mais sócios para o exercício da admi-
nistração, sua substituição dependerá da aprovação por titulares de
quotas correspondentes a mais da metade do capital social, salvo

469 “Admitiu o Código Civil a designação por ato em separado, isto é, por instrumento diverso do
contrato social. Essa fórmula é apropriada para as sociedades nas quais o contrato social prevê
prazo certo de gestão. Evita, com isso, alterações contatuais periódicas, exclusivamente para
substituir ou para estender o mandato dos administradores escolhidos.” GONÇALVES NETO.
Alfredo de Assis. Direito de Empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. Ed.
Revista dos Tribunais. São Paulo. 2007. Pg. 327.

428 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


previsão contratual diversa (art. 1.063 par. 1o , 1.071 II e 1.076 II do
Código Civil).
Por outro lado, se o contrato social ou documento separa-
do identifica um ou mais administradores que não sejam sócios, a
substituição de tal(is) pessoa(s) dependerá do quórum específico
fixado pelo art. 1.061 do Código Civil. Necessária, nesta hipótese, a
concordância de, no mínimo, 2/3 (dois terços) dos sócios, enquanto
o capital não estiver integralizado, e da aprovação de titulares de
quotas correspondentes a mais da metade do capital social, após a
integralização.
Nota-se, portanto, que o Código Civil estipula quórum maior
para a eleição e substituição de administradores não sócios do que
aquele previsto para o caso da administração ser conferida aos ti-
tulares de quotas.
O Código Civil dedicou os art. 1. 013 e 1. 014 à disciplina da
maneira pela qual os administradores da sociedade limitada devem
desenvolver, entre si, suas atividades.
Embora tenha incorporado vários dos princípios e regras que
norteiam o regime jurídico dos administradores nas sociedades
anônimas, o Código Civil não se preocupou em conferir à questão o
mesmo nível de detalhamento da legislação do anonimato.
Tal posicionamento se afigura bastante elogiável, tendo em
vista a maior ênfase à autonomia privada dos sócios na disciplina da
estrutura da sociedade limitada.
O Código Civil deixou a cargo do contrato social decidir se
cada administrador poderá agir isoladamente ou apenas em con-
junto, como integrante de órgão colegiado.
Silente o contrato social, a administração da sociedade limita-
da realiza-se por uma ou mais pessoas nomeadas na forma legal e
que poderão isoladamente implementar qualquer medida atinente
às suas atribuições legais e contratuais (art. 1.022 do Código Civil).
Com o poder de agir isoladamente o administrador vincula a
sociedade e os demais gestores com as providências que efetua.
Em atenção a esta possibilidade é que o art. 1.013 do Código esti-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 429


pula que mesmo no silêncio do contrato social cada administrador
tem o direito de impugnar os atos pretendidos pelos outros, reme-
tendo a decisão aos sócios.
Assim o Código procura conciliar o princípio da individualida-
de dos poderes dos administradores de sociedades limitadas com
a necessidade de um mínimo de harmonia entre eles na gestão do
empreendimento.
A aprovação dos sócios, na hipótese do art. 1.013, exonera os
administradores da obrigação de indenizar a sociedade e/ou os só-
cios pelos prejuízos eventualmente advindos da providência apro-
vada salvo, obviamente, se a medida é tomada culposa ou dolosa-
mente pelos gestores470.
Já o art. 1.014 do Código estabelece que os atos de compe-
tência conjunta de vários administradores somente serão imple-
mentados por meio da participação unânime de todos eles, exce-
ção feita aos casos urgentes e que possam causar dano irreparável
à sociedade.
Não se deve confundir os “atos de competência conjunta” de
que trata o artigo em questão com outros para os quais, por força
de disposição constante dos atos constitutivos, seja estabelecida a
necessidade de participação de mais de um administrador da so-
ciedade.
Neste último caso, a própria cláusula já estabelece quais são
os atos e, o mais importante, já determina qual o número de admi-
nistradores necessário à implementação daquele ato, não havendo
razão para o art. 1.014 referir-se à matéria.
Se adotada pelo contrato social a gestão colegiada da socie-
dade limitada, vale lembrar que o art. 48 do Código Civil dispõe que
as decisões serão implementadas se aprovadas pela maioria de vo-
tos presentes.

470 Em sentido contrário, há que se admitir que a não impugnação, pelos demais
administradores, da medida tomada por qualquer deles implica na solidariedade, entre eles,
perante a sociedade e/ou os sócios, pelos prejuízos culposa ou dolosamente praticados.

430 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


6 – Administração e sua disciplina nas sociedades
anônimas

Em uma sociedade anônima, a Assembleia Geral de acionis-


tas tem, em princípio, competência para “decidir todos os negócios
relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que jul-
gar convenientes à sua defesa e desenvolvimento” (Art. 121 da Lei
n. 6.404/76).
Entretanto, a competência da Assembleia Geral de acionistas,
soberana sobre as decisões dos demais órgãos da sociedade, não
é, em regra, privativa. Isto significa que os assuntos de interesse da
companhia podem, em regra, ser decididos por outros órgãos com-
ponentes da sociedade, não sendo essencial – salvo nos casos do
art. 122 da Lei n. 6.404/76 - a expressa apreciação deles pela As-
sembleia Geral de acionistas.
O órgão que, por lei, concentra a maior parte da competência
decisória é o Conselho de Administração, uma vez que, segundo
o art. 142 da Lei n. 6.404/76, cabe a ele o poder de “fixar a política
geral econômica e financeira da companhia”, bem como de decidir
– salvo previsão estatutária diversa - sobre a “alienação ou consti-
tuição de ônus reais sobre os ativos da sociedade” e a “prestação de
garantias a terceiros”.
A partir do art. 142 da Lei n. 6.404/76 nota-se que o Conse-
lho de Administração tem, em relação às atividades da companhia,
uma espécie de competência decisória residual em relação à As-
sembleia Geral de Acionistas, já que pode “decidir todos os negó-
cios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que
julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento”, desde que
não afronte as matérias de competência privativa - art. 122 da Lei
n. 6.404/76 - ou então alguma deliberação já tomada pela Assem-
bleia.
Com a permissão de ser integrado por pessoas estranhas ao
corpo de sócios, somada à sua gama de competências (art. 142 da
Lei n. 6.404/76), pode-se mesmo dizer que o Conselho de Adminis-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 431


tração é hoje um órgão ao qual foram conferidos poderes impor-
tantes demais para serem tomados exclusivamente pela Diretoria e
muito urgentes – ou técnicos - para serem decididos, sempre, em
Assembleia Geral de Acionistas.
A composição do Conselho de Administração é plural e cole-
giada (art. 140 da Lei n. 6.404/76). Isso significa, em primeiro lugar,
que o número de conselheiros é de no mínimo três pessoas, a se-
rem sempre eleitas e destituídas pela Assembleia Geral de Acionis-
tas, para um prazo de gestão não superior a três anos471.
Já o caráter colegiado do órgão significa que os conselheiros
– que não precisam ser acionistas da companhia472 e podem ser
reeleitos sucessivas vezes - deliberam “por cabeça”, ou seja, a cada
membro do órgão corresponde um voto, independentemente do
número de ações da sociedade eventualmente sob sua titularidade
e, além disso, não podem agir isoladamente. Há uma deliberação –
unânime ou majoritária – única, a ser obrigatoriamente seguida por
todos473.

471 A Lei n. 6.404/76 confere, em relação à estrutura e composição do Conselho de


Administração, grande poder ao estatuto, já que a ele cabe disciplinar, por exemplo, a forma
e o órgão – Assembleia Geral de Acionistas ou o próprio Conselho - responsável pela escolha
e substituição de seu Presidente, bem como o poder de estabelecer – dentro dos limites
legais - o prazo de gestão e o número de seus integrantes, sendo mesmo permitido que este
número seja estabelecido entre um limite mínimo e máximo.
472 O Conselho de Administração é, como se tem procurado salientar, o órgão central em
torno do qual giram as principais decisões administrativas da companhia. Deste modo, a Lei n.
6.404/76 procura criar instrumentos que “democratizem” a composição do Conselho, evitando
que ele seja formado apenas por pessoas eleitas pelo acionista ou grupo controlador. Entre
estas medidas estão o chamado voto múltiplo (art. 141 da Lei n. 6.404/76) e a possibilidade
de previsão estatutária que preveja a participação, como Conselheiro, de representante dos
empregados da companhia, a serem diretamente escolhidos por eles (art. 140 par. único da
Lei n. 6.404/76).
Empregado apenas mediante requerimento de minoria qualificada do capital social e
somente para a eleição dos Conselheiros de Administração da companhia, o chamado voto
múltiplo (art. 141 da Lei n. 6.404/76) confere a cada ação o número de votos correspondente
ao número de Conselheiros a serem eleitos, na ocasião.
Assim se, por exemplo, serão escolhidos, em uma dada Assembleia Geral de Acionistas,
03 (três) novos Conselheiros de Administração, cada ação votante terá, naquela específica
votação, 03 (três) votos, podendo o acionista concentrá-los em um único candidato ou
distribuí-lo entre diferentes postulantes.
473 “Cada deliberação, apesar de tomada por todos os membros em conjunto, constitui
manifestação de vontade uma do órgão. Com base na teoria organicista, é pacífico o

432 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A Diretoria, por sua vez, é, nas sociedades anônimas, o órgão
administrativo por excelência, pois concentra, com exclusividade, o
poder de contrair direitos e obrigações em nome da sociedade. Os
Diretores – eleitos pelo Conselho de Administração - são, portanto,
os representantes da companhia para todos os atos, sejam eles ju-
diciais ou extrajudiciais (art. 144 da Lei n. 6.404/76).
De forma análoga ao que se tem quanto ao Conselho de Ad-
ministração, nota-se que também sobre a Diretoria a legislação dá
significativa autonomia ao estatuto social, ao qual cabe a prerroga-
tiva de estabelecer o número de diretores, o prazo de sua gestão
– não superior a três anos – sua forma de substituição e as atribui-
ções e poderes de cada um de seus integrantes (art. 143 da Lei n.
6.404/76).
Sobre este último tópico, há algumas ressalvas importantes
a serem feitas. Primeiramente, a Diretoria não é, como o Conselho
de Administração, um órgão colegiado. Isto significa que, salvo dis-
posição estatutária expressa, qualquer Diretor pode, isoladamente,
praticar os atos de sua competência, em nome da companhia.
Por outro lado, a Lei n. 6.404/76 não reparte competências
entre os membros da Diretoria. Desta forma qualquer um deles
pode, em princípio, praticar qualquer ato que entenda necessário
ao exercício de suas atribuições.
Em uma companhia com maior organização regulatória é co-
mum – e mesmo recomendável – que os estatutos, no exercício de
faculdade atribuída pela Lei n. 6.404/76, estabeleçam esta reparti-
ção de competências entre os diretores. Feito isso, eles terão que
agir apenas dentro dos poderes a eles estatutariamente conferidos.
A remuneração dos administradores da companhia é fixada,
de forma global ou individual, pela Assembleia Geral de Acionistas
(art. 152 da Lei n. 6.404/76) e, em regra, diferencia-se conforme as
atribuições ou o cargo ocupado e envolve diferentes parcelas fixas
entendimento de que tais deliberações não são atribuídas individualmente ao administrador [no
caso, aos Conselheiros], pois representam o próprio órgão e, consequentemente, a vontade da
companhia”. ABREU. Maíra Leitoguinhos de Lima. Invalidação das deliberações do Conselho de
Administração. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2015. Pg. 70.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 433


e variáveis (como participação nos lucros, na forma estipulada pelo
152 par. 1º da Lei n. 6.404/76).

7 – Principais deveres do administrador de sociedades


no Código Civil e na Lei n. 6.404/76

Tanto a Lei n. 6.404/76 quanto o Código Civil – referente às


sociedades limitadas - aderiram ao princípio da demissibilidade ad
nutum – imotivada - dos administradores.474 Como pessoas encar-
regadas de implementar a empresa exercida pela sociedade, so-
mente ficarão no exercício de suas funções enquanto seu trabalho
agradar aos sócios.
A demissão do administrador, entretanto, não lhe acarreta a
responsabilidade de indenizar à sociedade os prejuízos que eventu-
almente tenha ocasionado com seu trabalho. Esta responsabilidade
somente existirá caso o administrador tenha violado algum de seus
deveres legais.
O administrador de sociedade limitada ou o Diretor da socie-
dade anônima, por terem autorização para contrair obrigações em
nome e por conta do patrimônio da pessoa jurídica, devem empre-
gar toda a sua capacidade técnica e profissional no desempenho de
suas funções475.
Este dever, comumente conhecido por dever de diligência,
encontra sua inspiração na figura do bonus pater familias476 roma-
no e está expressamente consagrado, como orientador da condu-
ta dos administradores de sociedades, tanto pela Lei n. 6.404/76
quanto pelo Código Civil de 2002477.
474 Confira art. 140 e art. 143 da Lei n. 6.404/76 e art. 1.071, III do Código Civil.
475 Embora seja, como visto, desprovido do poder de representação da companhia, o
Conselho de Administração acarreta, para seus integrantes, os mesmos deveres fundamentais
aqui analisados (art. 145 da Lei n. 6.404/76).
476 Expressão latina que pode ser traduzida como “bom pai de família”. O objetivo e dizer que
o administrador da sociedade deve ter para com os interesses da pessoa jurídica o mesmo
cuidado e atenção que tem para com os seus.
477 É o art. 1.011 do Código Civil: o administrador da sociedade deverá ter, no exercício de
suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na

434 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Tem o administrador da sociedade empresária a obrigação
de dedicar, aos negócios que praticar nesta condição, toda a sua
atenção, cuidado e perícia, de modo a objetivar, sempre, o sucesso
do empreendimento. O administrador diligente deve, em síntese,
procurar sempre a eficiência em todos os atos que pratique no exer-
cício de suas funções.478
O oposto do administrador diligente é o administrador ne-
gligente, que cumpre suas funções profissionais sem os devidos
cuidados e atenção pessoais ou sem os conhecimentos técnicos
e informações que, pressupõe-se, tenha acumulado para exercer
a função.
Os dispositivos legais citados são de padrões de conduta abs-
tratamente fixados pelo legislador, como forma de orientar o traba-
lho de juízes e intérpretes na análise de cada caso concreto.
Deste modo, apenas diante das circunstâncias de cada situ-
ação particular é possível constatar se um administrador violou ou
não os padrões de conduta diligente fixados abstratamente pelo
legislador. O que pode ser um ato negligente, sob determinadas
circunstâncias, não necessariamente o será se outro for o contexto
em que foi praticado.
Ressalte-se também, por outro lado, que o dever de diligência
do administrador da sociedade não alcança o sucesso de seus atos.
O fato de a atuação do administrador não refletir, do ponto de vista
econômico, o sucesso esperado pelos sócios não significa que te-
nha ele sido negligente.479

administração de seus próprios negócios.


Este texto praticamente repete o art. 153 da Lei n. 6.404/76, que determina: O administrador
da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo
homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.
478“Não basta, em nosso direito, por sua inquestionável feição institucional, que o administrador
atue como homem ativo e probo na condução de seus próprios negócios. São insuficientes
os atributos de diligência, honestidade e boa vontade para qualificar as pessoas como
administradores. É necessário que se acrescente a competência profissional específica, traduzida
por escolaridade ou experiência e, se possível, ambas.” CARVALHOSA, Modesto. Comentários à
Lei das Sociedades Anônimas. 3o Volume. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2003. Pg. 266.
479 A norma, na espécie, define as condutas-tipo que devem ser observadas pelo administrador.
É função do intérprete verificar quais as manifestações da conduta do administrador, no exercício

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 435


O dever de diligência do administrador está em empregar to-
dos os seus esforços, conhecimentos e cuidado na gestão do em-
preendimento, sem, porém, garantir a consecução dos objetivos
econômicos esperados pelos sócios. A administração mal sucedida
não pode ser confundida com administração negligente.
Apoiada nos postulados expostos está a denominada “regra
da autonomia”480 – ou business judgment rule – originária no direito
societário norte americano e atualmente consagrada pelo art. 159,
par. 6º da Lei n. 6.404/76481.
Esta “regra da autonomia” estipula, em síntese, que o adminis-
trador não poderá ser civilmente sancionado se o ato por ele prati-
cado foi precedido dos devidos cuidados e informações necessá-
rias, ainda que tenha causado prejuízo à sociedade.
Se o administrador, no seu julgamento, procurou previamente
obter – de maneira devida – informações sobre os custos, benefí-
cios e riscos de cada opção possível e, dentro de sua ótica empre-
sarial, tomou uma destas opções, nada há que se sancionar, ainda
que a escolha feita tenha acarretado prejuízo à sociedade482.
A empresa é, como aqui já várias vezes repetido, uma ativida-
de de risco, e os administradores estão constantemente expostos
a terem que escolher entre diferentes opções, sempre no intuito de
proporcionar os melhores resultados econômicos para a sociedade.

de suas funções, que não correspondem a tais padrões. Os padrões de cuidado e diligência
são, portanto, enunciativos e não rígidos, e sua interpretação ampla. (...) Os standards previstos
na norma apontam para o princípio da boa-fé no desempenho das funções de administrador.
Consequentemente, este não é responsável por erros de julgamento em que, de boa-fé, tenha
incorrido na administração dos negócios da companhia, desde que fique demonstrado ter agido
como o devido cuidado e diligência.” CARVALHOSA, Modesto. Comentários... 3o Volume. Ob. Cit.
Pg. 267
480 REYES. Francisco. Direito Societário norte-americano. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2014.
Pg. 229.
481 SILVA. Alexandre Couto. Responsabilidade dos Administradores de S.A – business judgement
rule. Ed. Campus Elsevier. Rio de Janeiro. 2007.
482 “Os doutrinadores enfatizam que uma coisa é tomar uma decisão, e outra coisa é tomar
uma decisão informada. E acrescentam que a business judgment rule só protege a decisão
informada”. CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Business Judgment rule. (In.). SILVA. Alexandre Couto
(Coord.). Direito Societário – Estudos sobre a Lei de Sociedades por ações. Ed. Saraiva. São
Paulo. 2013. Pg. 158.

436 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Os critérios de sua decisão – desde que previamente cerca-
da das devidas informações e cuidados – não podem, desta for-
ma, serem revistos judicialmente, sob pena de substituir-se critérios
empresariais por judiciais, na avaliação das decisões tomadas pelos
administradores483 e, mais evidentemente ainda, inibir os gestores
de agirem conforme lhes pareça, sob o ponto de vista negocial,
mais adequado484.
Já foi demonstrado que o regime jurídico dos administradores
de sociedades empresárias privadas apresenta diversos e impor-
tantes pontos de contato com a análise do tema sob o prisma da
Administração Pública. Outro destes pontos de contato refere-se à
estrita submissão ao Princípio da Legalidade.
O administrador de sociedades empresárias privadas encon-
tra, no exercício quotidiano de sua atividade, dois limites pratica-
mente intransponíveis, representados pela lei e pelos atos constitu-
tivos da sociedade (contrato ou estatutos sociais).
De forma análoga ao que se verifica em relação aos agentes
da Administração Pública, o administrador de sociedade empresá-
ria não pode praticar, pela pessoa jurídica a ele confiada, nenhum
ato jurídico que não esteja abarcado dentro dos limites fixados pela
lei ou pelos atos constitutivos.
Denomina-se dever de obediência exatamente a esta obriga-
ção que os administradores de sociedades privadas têm de respei-
tar os limites estabelecidos por lei ou pelos atos constitutivos no
exercício de sua atividade.

483 “O administrador de uma companhia, ao exercer um poder discricionário, não procede


como o jurista, socorrendo-se de ensinamentos da ciência do Direito. Procede como um técnico,
socorrendo-se dos ensinamentos da ciência da Administração de Empresas. Assim, não é justo
nem desejável que o juiz, na ação de responsabilidade civil contra o administrador de uma
companhia, queira substituir o discricionarismo do administrador pelo seu”. CORRÊA LIMA.
Osmar Brina. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima. Ed. Aide. Rio
de Janeiro. 1989. Pg. 135.
484 Se os administradores estivessem sujeitos à sanção judicial sempre que, apesar de
devidamente informados, fracassassem economicamente em uma operação, os seus atos
seriam muito mais limitados, assim como os lucros do empreendimento e, por consequência,
dos sócios. EASTERBROOK. Frank H. FISCHEL. Daniel. R. The Economic Structure of Corporate
Law. Harvard University Press. Cambridge. 1996. Pg. 94.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 437


Extrai-se do texto do art. 158, II da Lei n. 6.404/76 a consagra-
ção do dever de obediência, uma vez que, segundo esta norma, o
administrador responderá, ainda que sem culpa ou dolo, pelos atos
que praticar com violação da lei ou dos estatutos.
De outro lado, a sociedade somente pode exercer atos vin-
culados à atividade econômica para a qual foi criada, o seu objeto
social. Assim, além de respeitar os limites legais, contratuais ou es-
tatutários estabelecidos para sua atuação, o administrador somente
pode agir no sentido de cumprir a atividade para a qual foi criada a
sociedade, não podendo, desta forma, exercer atos que extrapolem
o objeto social485.
O ato que o administrador pratica sem ter, por lei ou pelos atos
constitutivos da sociedade, competência para tal, ou que extrapola
os limites do objeto social da pessoa jurídica, viola seu dever de
obediência, sendo denominado ato ultra vires.486
A doutrina do ato ultra vires tem origem em 1855, e sua razão
original era evitar que os administradores aplicassem os recursos
financeiros da companhia em algo estranho à atividade para a qual
foi criada, prejudicando assim seus sócios e credores487.
Atualmente, é fundamental elemento balizador da conduta
dos administradores das sociedades em geral, que somente po-
dem praticar atos intra vires, que são voltados para implementar a
atividade para a qual foi criada a pessoa jurídica.
O dever de obediência do administrador deve, entretanto, ser
entendido com cuidado. Nem a lei, nem o contrato ou os estatutos
da sociedade e mesmo as deliberações dos sócios são capazes de

485 O art. 1.015 do Código Civil é expresso ao estabelecer a estreita e direta conexão entre os
atos que podem ser praticados pelos administradores e o objeto social.
486 “Ultra vires is a latin expression which lawyers and civil servants us to describe acts
undertaken beyond (ultra) the legal powers (vires) of those who have purposed to undertake
them.” GOWER. L.C.B. Gower’s Principles of Modern Company Law. 5th Edition. London: Sweet &
Maxwell, 1992. Pg. 166.
487 RAGHUVANSHI. Raghavendra S. VAIDYA. Nidhi. Applicability of doctrine of ultra vires
on companies. Pg. 3. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1558971. Site consultado em
12/05/2016.

438 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


pormenorizar todos os atos que precisam ser implementados, pe-
los administradores, para a realização do empreendimento.
Deste modo, quando se estipula o objeto social ou uma atri-
buição específica para a administração da sociedade, deve-se es-
tar ciente de que tal estipulação automaticamente implica a com-
petência para a realização de outras providências conexas, sem as
quais o ato desejado não será alcançado. Daí a noção de poderes
expressos e implícitos do administrador488.
É, portanto, pressuposta a competência dos administradores
para praticarem quaisquer atos que – mesmo não expressamente
enumerados em lei ou nos atos constitutivos da sociedade – sejam
meios necessários à devida implementação do objeto social (art.
1.015 caput do Código Civil e art. 154 da Lei n. 6.404/76).
Por outro lado, o administrador de sociedade empresária, en-
quanto no exercício de suas funções, deve ter em vista exclusiva-
mente o interesse da pessoa jurídica por ele representada, e jamais
deve colocá-lo de lado em função dos interesses de terceiros, ou
mesmo do seu próprio. É esta a noção que perpassa o chamado
dever de lealdade, inerente a todos os administradores de socie-
dades.
O administrador deve servir, com diligência e respeitando os
limites normativamente estabelecidos para seus atos, unicamente
à sociedade, jamais se valendo de sua condição para beneficiar a si
mesmo ou a terceiros, em detrimento do interesse da pessoa jurídi-
ca por ele representada.
Osmar Brina Corrêa Lima aponta três principais problemas
vinculados ao cumprimento do dever de lealdade489. São eles o ad-
ministrador que concorre com a própria sociedade pelas mesmas
oportunidades de negócio, o conflito entre os interesses do admi-
488 “Implied authority may be pieced out by reading between the lines of Express authority.
To instruct a corporate officer to build a factory may by fair implication convey authority to hire
architects, buy land, enter construction contracts and do the other things that have to be done
to achieve the end in view.” VAGTS, Detlev. Basic Corporation Law. Materials – Cases – Text. 3th
edition. University Casebooks series. New York: The Foundation Press, 1989. Pg. 297.
489 CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade
Anônima. Ed. Aide. Rio de Janeiro. 1989. Pg. 71.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 439


nistrador e os da sociedade490 e, por fim, o uso, em benefício próprio
ou de terceiros, das informações que o administrador obtém em
decorrência do exercício de suas atribuições.
A concorrência com a sociedade é vedada expressamente
pelo art. 155 da Lei n. 6.404/76, que proíbe o administrador de usar,
em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a
companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conheci-
mento em razão do exercício de seu cargo.
Uma situação clássica de conflito de interesses entre admi-
nistrador e sociedade administrada está na hipótese de contratação
entre eles. O art. 156 par. 1º e 2º da Lei n. 6.404/76 admite, em prin-
cípio, a validade deste contrato, desde que realizado em condições
“idênticas às que prevalecem no mercado”, sob pena de anulabili-
dade e reparação das vantagens obtidas.

O filme Wall Street – Poder e cobiça é um verdadeiro clássico dos filmes relacionados
ao mercado financeiro. Nele se pode perceber, ao longo de todo o enredo, o valor de
informações privilegiadas para os investidores e as consequências, para o mercado, de sua
utilização. (Wall Street. Direção: Oliver Stone. Produção: A. Kitman Ho e Edward R. Pressman.
Estados Unidos. 1987.

490 A situação em que o interesse do administrador é contraposto ao da sociedade é


objetiva, ou seja, independe de eventual má-fé ou intuito fraudulento do gestor. Nestes casos
o art. 156 da Lei n. 6.404/76 (assim como o art. 1. 017 do Código Civil) veda ao administrador
interessado qualquer intervenção na decisão da companhia.

440 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Mais complexo e difícil, tanto na definição quanto – e princi-
palmente – na regulação é o caso do administrador que usa, em
benefício próprio ou de terceiros, informações ainda não divulgadas
e que foram por ele obtidas em virtude da posição que ocupa na
gestão da sociedade.
Insider trading é aquela pessoa que obtém informações refe-
rentes às atividades da sociedade e, antes de sua divulgação, se
utiliza de tais informações para benefício próprio ou de terceiros.
Trata-se, como se pode ver, de uma noção que se aplica não ape-
nas – mas especialmente - aos administradores da sociedade, mas
a qualquer um que atue no interior da organização corporativa.
O uso de informação privilegiada – ou seja, ainda não divul-
gada – para aplicar no mercado financeiro ou de valores mobiliários
é coibido na generalidade dos ordenamentos jurídicos491. No Brasil,
há expressa vedação tanto na Lei n. 4.728/65 (art. 3º, X) – que disci-
plina o mercado financeiro – quanto na Lei n. 6.404/76 (art. 155 par.
1º).
Para que se possa caracterizar o insider trading é preciso que,
na situação concreta, estejam cumulativamente presentes alguns
elementos fáticos. Em primeiro lugar, o autor da conduta deve ser
ocupante de alguma posição na estrutura organizacional da com-
panhia - por isso a referência ao termo insider (“de dentro”) – e a
informação foi por ele obtida exatamente em virtude do exercício
de suas atribuições na sociedade492.
Além disso, a caracterização do insider trading exige que a
informação usada não se encontre – ao menos naquele momen-
to – divulgada ao mercado em geral, provocando uma assimetria
informacional – falha de mercado - entre o insider e os demais in-
vestidores.

491 CAHN. Andreas. DONALD. David C. Comparative Company Law. Cambridge University
Press. 2010.
492 Inclua-se também como insider trading a pessoa que, apesar de não ligada à companhia,
obtém a informação em questão por meio de alguém inserido na estrutura organizacional da
sociedade.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 441


Por fim, é preciso também demonstrar que os investimentos
realizados pelo autor da conduta foram orientados com base na in-
formação obtida e, mais do que isso, que lhe tenham proporcio-
nado ganhos econômicos superiores àqueles obtidos por pessoas
que realizaram o mesmo investimento, no mesmo momento, mas
não detinham tal informação.
Em estudo publicado nos anos 60, Henry Manne argumenta
a favor da admissibilidade do insider trading como conduta lícita no
mercado de valores mobiliários, contrariando, com já aqui aponta-
do, as normas positivadas na generalidade dos ordenamentos jurí-
dicos organizados493.
Em apoio à sua afirmação, Manne propõe que os investimen-
tos realizados com base em informação privilegiada não teriam
qualquer impacto sobre os denominados “acionistas de longo pra-
zo”, ou seja, sobre aqueles investidores que mantém suas ações por
um período relativamente longo, já que eles, independentemente
do valor de cotação praticado no momento, não venderiam seus
papéis494.
Por outro lado, a prática do insider trading teria também um
efeito “estabilizador” no preço do valor mobiliário negociado, pois
tornaria o seu valor de cotação mais próximo da realidade econô-
mica da companhia, evitando especulações baseadas em infor-
mações falsas. Deste modo, o ato do insider teria, indiretamente, o
efeito de corrigir eventuais falhas no valor de cotação da ação ne-
gociada.

493 MANNE. Henry. Insider Trading and the Stock Market. The Free Press. New York. 1966.
494 Neste sentido, Manne ainda questiona o postulado de que a decisão de comprar ou
vender ações ao insider decorra, por parte daquele que não tem a informação privilegiada,
estritamente deste desconhecimento. “The most fundamental economic proposition in the
whole topic of insider trading is that no shareholder is harmed by a rule of law that allows the
exploitation of nonpublicized information about shares of publicly traded corporations. The
naive argument in defense of the SEC’s position on this subject is that if the shareholder had the
information (good news) the insider had, he would not sell his shares.” MANNE. Henry. Insider
Trading and the Stock Market. The Free Press. New York. 1966. Pg. 317.

442 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Além disso, Manne postula, em controverso argumento495, que
o uso de informação privilegiada seria uma forma de recompensar
o administrador da companhia por sua eficiência e, ao mesmo tem-
po, um incentivo para que tais gestores continuamente buscassem
gerar informações positivas sobre a sociedade e, em consequência,
melhores resultados econômicos para o empreendimento e para
seus sócios496.
Diante de tais ponderações, qual seria, então, a razão pela
qual a prática de insider trading encontrar-se entre as típicas e mais
rigorosamente sancionadas condutas praticadas no mercado de
valores mobiliários?
A questão pode ser respondida sob diversos pontos de vista,
sendo o primeiro deles, mais superficial, de que simplesmente não
seria “justo” que alguém ganhasse dinheiro a partir de uma infor-
mação que só ele tem e que foi obtida não por seu esforço, mas
simplesmente em decorrência do seu exercício de uma função na
companhia.
Há, porém, outras formas, mais elaboradas e eficientes, de
fundamentar a ilicitude do insider trading, sendo uma das mais in-
teressantes e adequadas aquela que se apoia sobre concepção de
assimetria informacional como falha de mercado.
O problema fundamental da prática aqui abordada está em
que o insider trading, por dispor de uma informação não divulgada,
negocia os valores mobiliários de uma determinada companhia por

495 As severas críticas a tal argumento são reconhecidas pelo próprio Henry Manne, em
posterior trabalho no qual ele retorna ao assunto. MANNE. Henry. Insider Trading: Hayek,
virtual markets, and the dog tha did not bark. Journal of Corporation Law, Vol. 31, No. 1, Fall
2005, pp. 167-185
496 “Manne identified two principal ways in which insider trading benefits society and/or the firm
in whose stock the insider traded. First, he argued that insider trading causes the market price
of the affected security to move toward the price that the security would command if the inside
information were publicly available. If so, both society and the firm benefit through increased
price accuracy. Second, he posited insider trading as an efficient way of compensating managers
for having produced information. If so, the firm benefits directly (and society indirectly) because
managers have a greater incentive to produce additional information of value to the firm”.
BAINBRIDGE. Stephen M. Manne on Insider Trading. UCLA School of Law. Law & Economics.
Research Paper Series. Research Paper n. 08. Pg. 04.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 443


um preço mais próximo ao seu real valor, já que mais condizente
com a realidade econômica da sociedade em questão497.
Os demais investidores, por sua vez - e por não terem acesso
à informação possuída pelo insider - são incapazes de precificar de-
vidamente os papéis negociados e estão, por consequência, com-
prando e vendendo tais valores mobiliários por preços mais distan-
tes do seu valor real498.
Assim, enquanto a informação permanece não divulgada, o
insider trading negocia os papéis por seu valor “real” – ou, ao menos,
mais próximo disso – enquanto os demais investidores compram e
vendem tais papéis por um valor “artificial”, posto que incompleto,
dada a falta da informação não divulgada499.
O insider trading também pode ser analisado em função do
dever de informação, que perpassa a atividade de todo administra-

497 “If the information is not made public then the prices of some goods are not adjusted and
consequently people continue to consume resourses at one price when in fact these resources
should command a different price. There is a net social loss for the period between the time the
information became known to the insiders and when it became known to the general public. To
the extent that the insider trading moves the prices closer to their proper level the net social loss
is reduced. The more the insiders make use of the information the more rapidly the price rises
and the lower the net social loss. It is the standard invisible hand effect.” WATKINS. Thayer. Henry
Manne´s position on insider trading and property rights. Disponível em http://www.sjsu.eduu/
faculty/watkins/manne.htm. Site consultado em 02/03/2016.
498 Não se pode pressupor, com fundamento, que todos os investidores disponham do
mesmo grau de informação sobre as ações no mercado de valores mobiliários. É, ao contrário,
lícito que cada investidor busque se informar sobre a realidade econômica das companhias
e, em decorrência disso, use para si tais informações e faça suas opções de investimento.
A diferença central entre o investidor que busca, por seus próprios meios, informações
relevantes e o insider trading é que o primeiro obtém tais informações com seu esforço,
arcando com os respectivos custos.
Já o insider trading obtém a informação não divulgada sem qualquer esforço ou custos, mas
pelo simples fato de ocupar uma posição na estrutura corporativa.
499 É, por exemplo, como negociar um carro usado com seu antigo dono. O vendedor
tem um grau de informação muito mais completo sobre o estado do veículo, o que lhe
permite precificar melhor o produto. Já o potencial comprador, por não dispor de tal grau de
informação, não tem critérios adequados para fixar o preço. Esta assimetria de informações
acaba por levar a uma transação ineficiente, posto que o comprador tende a pagar, pelo
carro, mais do que ele vale.
Este exemplo é a base de um trabalho hoje fundamental para a compreensão da assimetria
informacional como falha de mercado e suas consequências: AKERLOF. George. The market
for lemons: quality uncertainty and the market mechanism. Quarterly Journal of Economics.
The MIT Press. 1970. Pg. 488/500.

444 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dor de sociedade. Regulado no Código Civil (art. 1.020 e 1.021), na
Lei n. 6.404/76 (art. 157) e mesmo no Código Penal (art. 177 par. 1º,
I) trata-se, em síntese, da obrigação de expor aos sócios, na forma
estipulada em lei, a completa e real condição econômica da socie-
dade500.
A minimização da falha de mercado representada pela ação
do insider trading está, em essência, em minimizar o tempo entre a
produção da informação e sua divulgação ao mercado, reduzindo
o prazo dentro do qual esta informação fica produzida e não divul-
gada.

500 Não se deve confundir o insider trading e a obrigação de transparência com situações
nas quais dois ou mais agentes econômicos estabelecem entre si, em uma fase ainda pré
contratual, acordo de confidencialidade. O objetivo deste último é proteger as informações
que forem, nesta fase pré contratual, trocadas entre os negociadores. Trata-se de evitar que
um deles use ou divulgue as informações que, em razão das negociações em curso, são
fornecidas pelo outro.
É lícito – e mesmo recomendável – que, nas tratativas anteriores a um contrato, as partes
desta negociação estabeleçam a recíproca proibição de divulgação ou uso das informações
que, como forma de viabilizar a conclusão do negócio, são colocadas à disposição mútua.
Nesta hipótese, o sigilo é válido e funciona mesmo a favor do mercado, pois impede que
as informações trocadas nesta fase pré-contratual – muitas vezes referentes à estrutura ou
funcionamento das partes – se tornem irrestritamente conhecidas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 445


Vale, a título de exemplo, pensar na seguinte situação hipotética: João, diretor da
companhia VXY S.A, está, por sua posição, diretamente ligado à produção das
informações que refletirão no preço de cotação destas ações no mercado de
valores mobiliários. Para ele, a melhor escolha é preservar ao máximo o sigilo das
informações, posto que lhe servem como fundamental vantagem comparativa
com outros investidores.

Por outro lado, a redução da falha de mercado representada pela assimetria


informacional entre João e os demais investidores em ações da VXY S.A passa
exatamente pela rápida divulgação da informação produzida, na maioria das
vezes, com a participação de João.

Desta forma, é preciso que haja outra pessoa ou grupo para o qual o ato de
divulgar imediatamente a informação produzida seja a melhor escolha, dentro
de um adequado sistema de incentivos e preços. Entre esta pessoa ou grupo e
João haveria o que se denomina de jogo não cooperativo – ou jogo de soma zero
– posto que o ganho de um corresponde exatamente à perda do outro.

Assim – e mediante um adequado regramento de responsabilidade de ambos


- pode-se chegar a um quadro no qual a eventual omissão do divulgador, para
colaborar com o insider, seja de tal forma prejudicial aos seus interesses que
ele opte, sempre, por divulgar imediatamente qualquer informação que seja
relevante para a formação do preço das ações.

Há, porém, um nítido conflito de interesses entre o produ-


tor/detentor da informação privilegiada e o mercado. Para aque-
le, quanto maior o tempo entre a produção da informação e sua
divulgação, mais será o lapso dentro do qual este insider poderá
negociar, no mercado de valores mobiliários, em nítida situação de
assimetria informacional em relação aos demais investidores. Em
outras palavras: para o insider trading, quanto mais tempo passar
entre a produção da informação relevante e sua divulgação, mais
tempo ele terá para, com base nesta informação privilegiada, nego-
ciar em vantagem comparativa no mercado de valores mobiliários.
A redução deste nítido conflito de agência501 passa por regras
de divulgação que busquem separar a pessoa ou grupo produtor

501 Sobre esse e outros conflitos de agência, confira o capítulo seguinte, relativo ao processo
decisório na companhia e suas regras de governança.

446 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


da informação daquele outro responsável pela divulgação ao mer-
cado. Se a divulgação da informação depender de quem tem a ga-
nhar com ela – na condição de insider trading – menos eficiente será
a operacionalização desta ampla divulgação.
Assim, o produtor desta informação – e que tem a ganhar com
sua não divulgação – não pode ser a pessoa ou grupo responsável
por divulgá-la. Este último, por sua vez, deve estar sujeito a regras
de governança que funcionem como incentivos à divulgação rápida
e eficiente de tais informações, não o contrário.
Por outro lado, sanções rígidas e efetivas aumentam o risco da
prática do insider trading e, portanto, funcionam como mecanismos
inibidores. Assim, mesmo reconhecida a dificuldade em se provar a
prática, há o temor das consequências. Em outras palavras: sanções
efetivas e rígidas tornam mais arriscado – e, portanto, mais caro –
praticar o insider trading.
A minimização das situações de conflitos de interesse e in-
sider trading tem sido realizada também por meio da segregação,
especialmente em grupos societários, das atividades negociais, de
forma a impedir que uma mesma pessoa ou grupo tenha acesso a
uma quantidade de informações sobre uma determinada operação
que seja suficiente para ser utilizada como vantagem comparativa,
para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários502.
Segregar internamente as informações relevantes e uma efi-
ciente divulgação das mesmas podem parecer estratégias confli-
tantes no enfrentamento ao insider trading. Este conflito, porém, é
apenas ilusório. A segregação de informações funciona enquanto
não divulgada a informação.

502 “A construção de uma barreira de contenção de informações, ou chinese wall, consiste,


assim, na adoção de políticas, procedimentos e controles visando a impedir o fluxo de
informações privilegiadas obtidas por uma área para outros setores da instituição (ou de
entidades integrantes de um mesmo conglomerado financeiro) que não aquele originalmente
detentor da informação.” BOCATER. Maria Isabel do Prado. Chinese Wall: a segregação de
atividades em conglomerados financeiros como forma de prevenir a ocorrência de atos
ilícitos. (In). ADAMEK. Marcelo Vieira Von. (Coord.) Temas de Direito Societário e Empresarial
Contemporâneos. Ed. Malheiros. São Paulo. 2011. Pg. 500.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 447


Assim, mesmo no inevitável lapso temporal existente entre a
produção e a divulgação da informação, restaria mais difícil a atu-
ação do insider, posto que ele precisaria ainda arcar com os custos
de obter, internamente, a completude das informações necessárias
a proporcionar-lhe uma ação vantajosa no mercado de valores mo-
biliários.

8 – A responsabilização judicial dos administradores


de sociedades empresárias no Código Civil e na Lei n.
6.404/76

É ponto pacífico e comum à Lei n. 6.404/76 e ao Código Civil


a conclusão de que os administradores de sociedade que atuem
com integral respeito aos seus deveres e competências não podem
ser responsabilizados pelos eventuais prejuízos ocasionados à so-
ciedade ou a terceiros, por suas decisões. Nesta hipótese, trata-se
de atos da sociedade, e a ela cabem os ganhos ou os prejuízos de-
correntes (art. 47 do Código Civil e art. 158 caput da Lei n. 6.404/76).
Lado outro, quando, culposa ou dolosamente, estes mesmos
administradores causam, no exercício de suas funções e compe-
tências, prejuízos à sociedade ou a terceiros surge, para eles, o de-
ver de indenizar, com seu patrimônio pessoal, tais danos (Art. 158, I
da Lei n. 6.404/76 e art. 1.016 do Código Civil).
A negligência, imperícia, imprudência, dolo ou má-fé do ad-
ministrador são os fundamentos a partir dos quais ele poderá ser
judicialmente obrigado a indenizar os prejuízos que o ato por ele
praticado – mesmo que dentro de suas competências – tenha cau-
sado à sociedade ou a terceiros503.
A responsabilidade civil do administrador por ato intra vires é
subjetiva, mas o mesmo não se verifica quanto o ato foi praticado
com violação ao dever de obediência, o denominado ato ultra vires.
503 Por exigência expressa do art. 1. 016 do Código Civil e do art. 158, I da Lei n. 6.404/76,
é necessário demonstrar, além do dano causado pelo administrador, a culpa ou dolo em
sua conduta e o nexo de causalidade entre este dano e o ato do administrador. Trata-se de
hipótese de responsabilidade civil subjetiva.

448 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Nesta hipótese, é desnecessária a prova da culpa ou dolo do admi-
nistrador, bastando a demonstração do ato praticado e sua autoria,
da violação ao dever de obediência e do nexo causal entre o ato e o
prejuízo ocasionado à sociedade ou a terceiros504.
É neste sentido que expressamente vai o art. 158, II da Lei n.
6.404/76. Embora sem correspondência direta no Código Civil, há
que se dar aos administradores das sociedades limitadas – ou ou-
tras regidas pelo Código – o mesmo tratamento. A responsabiliza-
ção civil do administrador por ato ultra vires não pode ficar subme-
tida à prova de culpa ou dolo. O dever de indenizar decorre pura-
mente da inobservância dos limites legais e contratuais de atuação
expressamente fixados para o gestor.
Tanto o Código Civil (art. 1.016) quanto a Lei n. 6.404/76 (art.
158 par. 2º) estabelecem a regra da solidariedade entre os adminis-
tradores, para fins de responsabilização pelos prejuízos causados à
pessoa jurídica ou a terceiros.
Trata-se, pode-se dizer, de criar, entre os gestores, uma es-
pécie de vigilância mútua, já que a violação de um deles implica na
responsabilização de todos. Desta forma, todos são incentivados a
zelar pelo cumprimento dos deveres legais e contratuais não ape-
nas no que tange aos seus próprios atos, como também no que se
refira às ações dos demais integrantes dos órgãos de administração.
Diferentemente do Código Civil, que silencia sobre o tema, o
art. 159 da Lei n. 6.404/76 disciplina detalhadamente o procedimen-
to prévio à propositura de ação de responsabilidade civil contra um
ou mais dos administradores505 da companhia, em caso da violação
dos deveres ora referidos.
504 Ainda que praticado com violação aos deveres de obediência, lealdade ou diligência,
o ato do administrador não gerará, para seu autor, qualquer obrigação de reparação, caso
não tenha provocado prejuízos à sociedade ou a terceiros. Assim, o ato ultra vires que resulte
em benefício econômico para a sociedade não pode ser causa da responsabilização civil do
administrador que o tenha praticado. Restará aos sócios, apenas, o poder de destituí-lo, caso
entendam inaceitável a quebra do dever de obediência, ainda que em benefício econômico
do empreendimento.
505 Os mesmos deveres e regime de responsabilização se aplicam aos membros do Conselho
Fiscal (art. 165 da Lei n. 6.404/76) ou aos integrantes de qualquer órgão estatutariamente
criado (art. 160 da Lei n. 6.404/76).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 449


A decisão sobre a propositura ou não desta ação de responsa-
bilidade civil deve obrigatoriamente ser precedida de deliberação
dos sócios, a ser tomada em Assembleia Geral Ordinária de Acionis-
tas ou, se prevista na ordem do dia ou for consequência direta de
assunto nela incluído, em Assembleia Geral Extraordinária.
Na mesma Assembleia Geral de Acionistas que aprova a pro-
positura da ação em análise, são destituídos os administradores a
serem processados e imediatamente eleitos outros, os quais terão
o prazo de 03 (três) meses para, em nome da companhia, propor a
ação contra os antigos gestores.
Ultrapassado o prazo acima referido, qualquer acionista pode-
rá, em nome da sociedade, propor a ação de responsabilidade civil
contra os antigos administradores, tendo em vista a prévia aprova-
ção da medida em Assembleia Geral. Esta legitimidade extraordi-
nária não impede, porém, que os atuais administradores possam,
apesar de esgotado o prazo inicialmente fixado, agir finalmente no
sentido da propositura da ação.
Interessante lembrar a previsão do art. 159 par. 4º da Lei n.
6.404/76506, que funciona, ao menos em princípio507, como defesa
dos acionistas minoritários contra a decisão da maioria do capital
social que, em Assembleia Geral de Acionistas, decida não autorizar
a propositura de ação de responsabilidade civil contra os adminis-
tradores508.

506 Art. 159 par. 4º da Lei n. 6.404/76: se a assembleia deliberar não promover a ação, poderá
ela se proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital
social.
507 O termo “a princípio” é usado pois muitas vezes essa prerrogativa garantida à referida
minoria qualificada do capital social pode tornar-se instrumento de abuso, como no caso das
denominadas strike suits do direito norte-americano. ‘’Strike suits. Shareholder derivative action
begun with hope of winning large attorney fees or private settlements, and with no intention of
benefiting corporation on behalf of which suit is theoretically brought.’’ Black’s Law Dictionary.
Sixth Edition, St. Paul, Minn. West Publishing Co, 1990. Veja também: BRANDI. Tim Oliver.
The strike suit: A common problem of the derivative suit and the shareholder class action.
Dickinson Law Review. vol. 98. nº3. 1994.
508 Imagine-se, por exemplo, que o administrador a ser responsabilizado civilmente seja
pessoa de estreita ligação com o controlador da companhia. Nesta hipótese, é pouco
provável que a maioria do capital social autorize a propositura da demanda indenizatória.

450 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Por outro lado, a reparação dos prejuízos que um ato do ad-
ministrador tenha causado a um determinado acionista ou grupo
podem ser diretamente postuladas judicialmente por eles – e em
nome próprio, não da sociedade – sem que haja necessidade de
prévia apreciação da matéria em Assembleia Geral (art. 159 par. 7º
da Lei n. 6.404/76).

9 – Partes relacionadas e conflito de interesses na


contratação

O contrato é uma constante inevitável no exercício da empre-


sa, seja como instrumento para organização dos fatores de produ-
ção – capital, trabalho, matéria prima, tecnologia – ou para colocar
no mercado os bens ou serviços prestados pela organização em-
presarial.
Em uma economia de mercado, é premissa fundamental a li-
berdade de contratação, o que significa que os agentes econômi-
cos são, em regra, livres para decidir contratar ou não e, em optan-
do pela realização do negócio, estabelecerem livremente quando,
onde, como, com quem e sob que condições vão contratar.
Na atividade empresarial – e societária em particular - presu-
me-se que, em uma relação contratual, cada uma das partes bus-
que, neste ato, maximizar seus próprios interesses, e não abdicar
destes em função da maximização dos interesses do outro contra-
tante. Em outras palavras: nos contratos entre empresários ou so-
ciedades empresárias, o objetivo é maximizar o próprio interesse,
não o do outro contratante.
Necessário reconhecer, portanto, que tal contratação deve
ser, especialmente nas sociedades, pautada por isenção e objeti-
vidade, de forma a evitar que a pessoa jurídica e os que por ela
atuem contratem de maneira intencionalmente menos vantajosa
para a sociedade que representam para, com isso, maximizarem o
interesse do outro contratante.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 451


A menção a estas premissas é necessária para que seja pos-
sível abordar hipóteses nas quais há, entre as sociedades contra-
tantes, uma situação – de fato ou de direito – que retira de uma
delas – e de seus administradores – a supra comentada isenção,
objetividade e preocupação em maximizar, em primeiro lugar, os
interesses da pessoa jurídica representada.
Por uma situação de fato ou de direito, uma das contratantes
– e seus representantes – estão mais preocupados, no ato de con-
tratar, em maximizar o interesse da outra parte da relação, e não os
da sociedade por eles representada.
Imagine-se o seguinte exemplo: a sociedade controladora
decide contratar um empréstimo em favor de sua controlada. Será
mesmo factível presumir que os administradores da controlada –
eleitos pela controladora – contratarão zelando, antes de mais nada,
pelos interesses da sociedade que administram – a controlada – ou,
pelo contrário, atuarão, na contratação, de forma a maximizar o in-
teresse da controladora?
Em situações que tais, é preciso reconhecer que, indepen-
dentemente da má-fé dos envolvidos, a relação de controle entre
as sociedades contratantes citadas retira de uma delas a necessá-
ria objetividade e racionalidade para, no contrato, barganhar e zelar
pelos próprios interesses.
Teme-se, justificadamente, que em casos como estes uma
das partes acabe contratando em condições excessivamente des-
vantajosas – se comparadas às situações similares praticadas no
mercado – e, com isso, cause prejuízo aos seus acionistas e demais
envolvidos, como credores.
O termo partes relacionadas é empregado para identificar
duas ou mais sociedades que têm entre si uma relação de fato ou
de direito em virtude da qual, se elas decidirem contratar entre si,
uma delas está disposta a aceitar condições excessivamente des-
vantajosas para si própria, em favor da outra contratante.
O contrato firmado entre partes relacionadas é excessivamen-
te oneroso para uma das partes e exageradamente benéfico para a

452 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


outra, se comparado a situações similares praticadas, no mercado,
por contratantes que não tenham, entre si, alguma situação fática
ou jurídica que lhes retire, na contratação, a objetividade e impar-
cialidade.
Não significa que partes relacionadas não possam contratar
entre si. Não é esta a forma eficiente de regulação do tema. Ao con-
trário, a contratação entre partes relacionadas pode muitas vezes
ser economicamente vantajosa para ambas. O que se deve impedir
é que partes relacionadas contratem entre si de forma a, como já
salientado, gerar excessivos ônus para uma das contratantes e con-
sequentes ganhos desproporcionais para a outra.
A Comissão de Valores Mobiliários disciplinou o tema por meio
da Resolução n. 94, de 23 de maio de 2022. Um dos mais importan-
tes tópicos desta regulamentação é o que procura definir quais são
as situações fáticas ou jurídicas capazes de caracterizar duas ou
mais sociedades como partes relacionadas.
Em essência, trata-se de situações que envolvem o controle
de uma sociedade sobre a outra, a existência de parceria empresa-
rial ou relação de coligação entre elas, pessoas que sejam inves-
tidores ou administradores de ambas ao mesmo tempo, além da-
quelas pessoas que sejam parentes dos que atuarão, em nome das
sociedades contratantes, na contratação em análise.
Além do problema da caracterização do que se deve conside-
rar partes relacionadas, outro ponto de dificuldade está em provar
que a contratação entre estas partes relacionadas se deu de manei-
ra estranha às condições normais de mercado.
Como já salientado, não há vedação à contratação entre par-
tes relacionadas. O que não pode ocorrer é a contratação em ter-
mos excessivamente desiguais para as partes envolvidas.
É possível apontar alguns procedimentos que sirvam para de-
monstrar que a transação entre duas ou mais partes relacionadas
não fugiu ao que se pode chamar de “padrão de mercado” e, por-
tanto, não estaria sujeita a qualquer tipo de questionamento.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 453


O primeiro deles seria a realização de uma espécie de cole-
ta de propostas de contratação. Diferentes fornecedores daquele
bem ou serviço seriam solicitados a apresentar propostas para re-
alização do contrato. Assim, as partes relacionadas poderiam con-
tratar nas mesmas condições da mais vantajosa proposta feita por
terceiro.
A segunda forma de demonstrar o “padrão de mercado” na
transação entre partes relacionadas seria a solicitação de um laudo
técnico, a ser elaborado por terceiro, que atestaria a paridade entre
o contrato firmado entre as partes relacionadas e os padrões nor-
mais praticados, no mercado, para situações idênticas ou similares.
Por fim, as partes relacionadas poderiam, para contratar entre
si, agregar provas de contratos idênticos firmados por terceiros, de
maneira a demonstrar que a contratação em questão não fugiu ao
que foi praticado, por outras pessoas, na mesma situação.

454 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XIII
Conflitos de agência e Governança Corporativa

1 – Processo decisório nas sociedades anônimas

Os atos praticados por uma sociedade anônima são precedi-


dos por um processo decisório do qual devem participar, em suas
respectivas competências, os órgãos que compõem sua estrutu-
ra. Esse processo é juridicamente ordenado para, ao final, culminar
com a estruturação de um ato a ser colocado em prática pela com-
panhia.
Tal processo decisório envolve ainda, uma vez praticado o ato
aprovado, os mecanismos legais destinados a monitorar a corres-
pondência entre o ato praticado e a decisão aprovada, de forma a
aferir o grau de similitude entre um e outro509.
O processo decisório que conduz aos atos praticados pela
companhia passa, como salientado, por diferentes fases. Primeira-
mente, há a fase da INICIATIVA, que consiste na formulação e expo-
sição de determinada providência referente à forma de alocação ou
uso dos recursos materiais disponíveis na companhia, bem como
do modo pelo qual a sociedade deva maximizar seus ganhos. Como
mera iniciativa, é desprovida de qualquer poder vinculante, seja em
relação à companhia, a terceiros ou ao seu próprio autor.
À exteriorização da iniciativa segue-se sua possível RATIFICA-
ÇÃO, quando ela passará de simples sugestão - sem poder vincu-
lante em relação aos órgãos da companhia - para a condição de
decisão, ainda que apenas no contexto interno da sociedade. Ratifi-
cada a iniciativa apresentada, esta converte-se em decisão, forma-
lizada pela companhia e, a partir daí, com poder de vincular toda a
509 A análise do processo decisório aqui tratado pauta-se pela sistematização exposta por
Michael Jensen e Eugene Fama, em texto de fundamental importância para a compreensão
do tema: JENSEN. Michael C. FAMA. Eugene F. Separation of ownership and control. Journal
of Law and Economics, Vol. XXVI, June 1983.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 455


estrutura organizacional da sociedade, que estará obrigada a colo-
cá-la em prática.
Decisão juridicamente ratificada pela companhia deve neces-
sariamente ser acompanhada de sua IMPLEMENTAÇÃO, que con-
siste em colocar em prática a decisão formada e ratificada. Uma
vez implementada a decisão ratificada, a companhia vincula-se não
apenas internamente, mas também em relação a terceiros, com
quem venha a se relacionar na prática deste ato510.
A implementação da decisão não esgota, porém, o processo
ora analisado. Ao contrário, decisão implementada deve sujeitar-se,
posteriormente, à aferição do grau de correspondência entre o que
foi decidido e o que foi implementado.
Segue-se então a fase de MONITORAMENTO da decisão im-
plementada, bem como de seus resultados. Visa-se aqui, essen-
cialmente, apurar o grau de correspondência entre o ato implemen-
tado e aquele que foi ratificado pela companhia511.
Segundo Jensen e Fama, as fases de INICIATIVA e IMPLE-
MENTAÇÃO das decisões corporativas concentram-se no mesmo
grupo – ou órgãos sociais – sendo, por isso, agrupadas sob o termo
“gerenciamento de decisões” (decision management).

510 Tome-se, para fins de ilustração, o seguinte exemplo: em uma determinada sociedade,
um acionista – controlador ou não - entende que seria de interesse da companhia realizar a
compra de um certo imóvel, para instalação do estabelecimento.
Com esta convicção, este acionista externaliza sua iniciativa, a qual não tem, até o presente
momento, nenhum poder de vincular nem a companhia, terceiros ou mesmo o autor da
sugestão.
Se esta iniciativa for ratificada pelo órgão competente – Conselho de Administração ou
Assembleia Geral de Acionistas, conforme o caso – torna-se uma decisão corporativa, a ser,
agora com poder vinculante, observada por toda a estrutura interna da sociedade.
Cabe, a seguir, a implementação desta decisão, que se consubstancia quando a companhia,
nos termos decididos, coloca em prática o ato, contratando a compra do imóvel com seu
vendedor e, a partir de então, vinculando-se em relação a este terceiro.
511 “In broad terms, the decision process has four steps: initiation—generation of proposals for
resource utilization and structuring of contracts; ratification—choice of the decision initiatives to
be implemented; implementation—execution of ratified decisions; and monitoring—measurement
of the performance of decision agents and implementation of rewards”. JENSEN. Michael C.
FAMA. Eugene F. Separation of ownership and control. Journal of Law and Economics, Vol.
XXVI, June 1983. Pg. 302

456 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Por outro lado – e ainda de acordo com Jensen e Fama – as
fases de RATIFICAÇÃO e MONITORAMENTO de decisões estão alo-
cadas em outro grupo ou órgãos sociais, sendo, por isso, analisadas
sob o termo “controle de decisões” (decision control)512.
Submeter tal análise do processo de decisões corporativas à
estrutura organizacional estabelecida pela Lei n. 6.404/76513 leva à
conclusão de que são os órgãos de administração os competentes
para o gerenciamento de decisões, entendido aqui como a sua ini-
ciativa e implementação.
É mesmo natural que as iniciativas referentes ao modo pelo
qual a sociedade vai empregar seus fatores de produção ou buscar
maximizar seus lucros advenham – em regra - daquela pessoa ou
grupo diretamente ligado à gestão de tais recursos, ou seja, seus
administradores.
A proximidade com o quotidiano gerencial das atividades so-
ciais e com o mercado no qual está inserida a companhia, bem com
o grau de informação disponível para quem ocupe tais cargos leva
inexoravelmente os administradores à constante apresentação de
iniciativas, a serem ratificadas pela companhia514.

512 “Because the initiation and implementation of decisions typically are allocated to the same
agents, it is convenient to combine these two functions under the term decision management.
Likewise, the term decision control includes the ratification and monitoring of decisions. Decision
management and decision control are the components of the organization’s decision process or
decision system”. JENSEN. Michael C. FAMA. Eugene F. Separation of ownership and control.
Journal of Law and Economics, Vol. XXVI, June. 1983. Pg. 302.
513 A análise de Jensen e Fama refere-se à esta divisão de competências decisórias como um
intrincado nexo de relações contratuais, estabelecidos internamente à estrutura corporativa.
Em que pese a relevância destas relações contratuais intracorporativas, não se pode deixar
de lado que, no caso da Lei n. 6.404/76, a competência de cada órgão social, ao longo do
processo de gerenciamento e controle de decisões, é estabelecida diretamente pela lei, fixa
a competência de todos os órgãos corporativos.
514 A afirmação de que os órgãos de administração são competentes para a iniciativa do
processo decisório não significa tratar-se de competência privativa deles. Ao contrário, esta
iniciativa pode advir de qualquer pessoa ou grupo interessado na companhia, faça ou não
parte de sua estrutura interna, como sócios minoritários, controladores, empregados ou
mesmo credores, consumidores e fornecedores, por exemplo.
“Numa organização não complexa, a informação é centralizada pelos agentes que tomam
decisões; numa organização complexa, a informação é descentralizada”. MACKAAY. Ejan.
ROUSSEAU. Stéphane. Análise Econômica do Direito. Ed. Atlas. São Paulo. 2014. Pg. 534.
Assim, quanto maior a complexidade da organização corporativa, mais descentralizada a

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 457


De outro lado, os órgãos de administração também têm –
agora na condição de competência legal privativa – o poder de
implementar a decisão tomada no interior da corporação. Portanto,
na estrutura organizacional da Lei n. 6.404/76, a iniciativa e a im-
plementação de decisões cabem aos administradores, aquela sem
caráter privativo, ao contrário desta última.
Na implementação de decisões, ao Conselho de Administra-
ção caberá fixar os parâmetros e diretrizes de médio e longo prazo
sobre o modo de tornar efetiva a decisão ratificada (art. 142, I da
Lei n. 6.404/76), enquanto à Diretoria cumpre, na condição de ex-
clusivos representantes legais da companhia, vinculá-la a terceiros,
implementando definitivamente o ato ratificado515.
Antes de sua implementação, a iniciativa apresentada – seja
pelos administradores ou qualquer outra pessoa ou grupo interes-
sado na companhia – passa pela necessária RATIFICAÇÃO, fase que
visa, essencialmente, tornar obrigatória, em relação à sociedade, a
iniciativa apresentada.
Se tomada sob o aspecto de sua legitimidade, a ratificação
das iniciativas apresentadas deveria ser competência dos titulares
do capital social, ou seja, dos acionistas. Nesta perspectiva, a rati-
ficação de decisões deve ter-se por efetuada quando a iniciativa
apresentada for aprovada pelo voto da maioria do capital social, em
Assembleia Geral de Acionistas.
A Assembleia Geral de Acionistas seria, então, o órgão de ra-
tificação das iniciativas, pois a sugestão apresentada estaria então
respaldada pela adesão da vontade de mais da metade do capital
social, tornando inquestionável sua legitimidade como decisão cor-
porativa.

informação e, por isso, mais ampla a gama de pessoas ou grupos fáticamente habilitados a
propor iniciativas.
Já em organizações menos complexas, a capacidade de propor iniciativas restringe-se
eminentemente àquele grupo que dispõe de informações suficientes para isso.
515 Importa lembrar que nas companhias fechadas sem a presença do Conselho de
Administração em sua estrutura organizacional (art. 138 par. 2º da Lei n. 6.404/76), a
implementação de decisões concentra-se exclusivamente na Diretoria da corporação.

458 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Por outro lado, a Assembleia Geral de Acionistas é também
legalmente competente para aferir o grau de correspondência en-
tre a decisão ratificada e o ato implementado, pois a ela cumpre,
em última análise – art. 122, III da Lei n. 6.404/76 - a fiscalização dos
atos praticados pelos órgãos gestores (Conselho de Administração
e Diretoria).

2 – Variações no processo decisório corporativo

Contraposto o modelo decisório proposto por Jensen e Fama à


estrutura organizacional da Lei n. 6.404/76, pode-se então concluir
que o gerenciamento de decisões concentra-se sobre os órgãos de
gestão – Conselho de Administração e/ou Diretoria – enquanto o
controle decisório centrar-se-ia na Assembleia Geral de Acionistas,
cuja incontestável legitimidade decorre da sua composição por to-
dos os acionistas votantes.
Note-se que o modelo decisório da Lei n. 6.404/76 – ao me-
nos como abstratamente desenhado - é baseado em algumas pre-
missas. A primeira delas está na orientação vertical e “descendente”
de ratificação e implementação da decisão.
Assim, a ratificação da iniciativa se verificaria, a princípio, no
órgão que estabelece a vontade da maioria do capital social - As-
sembleia Geral de Acionistas - e iria, até sua implementação, dos
órgãos eleitores para seus respectivos eleitos, ou seja, da Assem-
bleia Geral de Acionistas para o Conselho de Administração, e deste
para a Diretoria.
Outra premissa deste modelo decisório abstrato consiste na
participação de todos estes órgãos em fases específicas e prede-
terminadas do processo de iniciativa, ratificação, implementação e
monitoramento de decisões. A Assembleia Geral de Acionistas rati-
fica as iniciativas, o Conselho de Administração estabelece suas di-
retrizes de implementação e a Diretoria, representante legal da pes-
soa jurídica, efetua esta última, vinculando a companhia a terceiros.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 459


Em teoria, a iniciativa deveria advir, em regra, dos gestores da
sociedade, pessoas diretamente ligadas ao quotidiano das ativida-
des sociais e, portanto, melhor informadas para a realização de tais
proposições.
Esta iniciativa passaria, como condição de legitimação, pela
aprovação da maioria do capital social, para, então, converter-se
em uma decisão vinculante da companhia. A seguir, seria imple-
mentada pelos representantes legais da sociedade, seus diretores,
estabelecendo obrigações e direitos recíprocos em relação a ter-
ceiros516.
Este é, em absoluta síntese, o modelo decisório que, face à
estrutura organizacional da Lei n. 6.404/76, se pode em princípio
vislumbrar. De feição “descendente” e eminentemente comparti-
mentado entre os diferentes órgãos sociais, já que a cada um deles
é dedicada uma fase específica deste processo de formação e mo-
nitoramento de decisões.
Entretanto, e novamente a partir das fases do processo de-
cisório sistematizadas por Jensen e Fama, é possível notar nítidas
diferenças entre o modelo abstratamente concebido pela estrutura
organizacional das sociedades anônimas e aquele que, por uma sé-
rie de circunstâncias fáticas, se mostrou aplicado.
A abstrata estruturação decisória e sua distribuição entre os
diferentes órgãos sociais acaba, na realidade fática, tornando-se
nebulosa, com a sobreposição ou supressão de competências se
revelando uma realidade da qual a legislação não pode se furtar a
enfrentar.

516 “Assim, justamente, se ensina ter, em princípio, a deliberação assemblear, de per si, um
caráter interno, devendo ser, pois (aos cuidados dos diretores ou de outrem com poderes
a respeito), manifestada a terceiros para ter relevância quanto a estes. Por sua vez, entre os
diretores, alguns podem ter o poder de manifestar a terceiros a vontade social (e, por isso,
de obrigar a sociedade perante terceiros), tendo, no entanto, também os outros, o poder de
concorrer (é óbvio, nos limites decorrentes da lei, do estatuto e das deliberações assembleares)
para a determinação da vontade social que, em seguida, deve ser manifestada a terceiros.
ASCARELLI. Tullio. Problemas das sociedades Anônimas e Direito Comparado. Ed. Bookseller.
Campinas. São Paulo. 2001. Pg. 496. nota n. 1025.

460 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A primeira variável a ser considerada na desconstrução fáti-
ca e jurídica do modelo decisório “descendente” e compartimenta-
do está na Assembleia Geral de Acionistas. Órgão social com altos
custos de transação - dadas as rígidas formalidades de realização
e deliberação - a Assembleia Geral de Acionistas não está apta a
concentrar, com exclusividade, a competência para ratificar todas
as iniciativas apresentadas517.
Neste sentido, a própria Lei n. 6.404/76 flexibilizou a com-
petência ratificadora da Assembleia Geral de Acionistas, tornando
tal ratificação obrigatória apenas nos casos do art. 122, matérias de
competência privativa deste órgão.
Fora deste taxativo rol do art. 122 da Lei n. 6.404/76, a ratifica-
ção de iniciativas pode ser realizada pelo Conselho de Administra-
ção (art. 142 da Lei n. 6.404/76), órgão de estrutura e deliberações
mais ágeis e, na maioria dos casos, melhor embasadas, dado o grau
de informação disponível aos conselheiros.
O modelo decisório “descendente” e claramente comparti-
mentado entre Assembleia Geral de Acionistas, Conselho de Admi-
nistração e Diretoria é, de fato, impraticável e, em virtude disso, foi
fática e normativamente substituído por outro, centrado cada vez
mais no Conselho de Administração, órgão que, por sua estrutura
e composição, revela-se informado, ágil e legitimado o suficiente
para propor iniciativas, ratifica-las e traçar as linhas gerais de sua
implementação.
A informação e especialização atribuídas ao Conselho de Ad-
ministração advém tanto do perfil de seus integrantes518, quanto
517 Rubens Requião já apontava, com razão, a distância entre a função abstrata deste
órgão e sua realidade fática. Em tese, a Assembleia Geral de Acionistas seria o órgão social
supremo e mais legítimo, no qual os acionistas, sócios da companhia, democraticamente
deliberariam sobre quaisquer assuntos de interesse social. Na prática, entretanto, as rígidas
formalidades de convocação e instalação, o absenteísmo dos acionistas minoritários e o
controle societário concentrado enfraqueceram a eficiência deste órgão, que hoje se mostra
cada vez mais periférico no contexto decisório das companhias. REQUIÃO. Rubens. Curso de
Direito Comercial. Vol. II. 23ª edição. Ed. Saraiva. São Paulo. 2002. Pg. 167/168.
518 Integridade, capacidade de ouvir com abertura e tomar decisões difíceis, franqueza e
coragem para expor suas opiniões, habilidades profissionais e antecedentes que demonstrem
sua especialização são algumas das características esperadas daqueles que se disponham

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 461


também da proximidade deles em relação ao mercado e às ativida-
des da companhia. Já sua legitimidade como órgão de ratificação
advém das regras de escolha de seus membros – que procura via-
bilizar a participação de diversos grupos de interesses organizados
em torno da companhia – e, por fim, sua agilidade se revela na ce-
leridade com que pode ser convocado a deliberar.
Além do esvaziamento da Assembleia Geral de Acionistas
como órgão ratificador de decisões – e consequente fortalecimen-
to, neste sentido, do Conselho de Administração - outro fator funda-
mental para o afastamento entre o modelo decisório abstratamente
concebido e aquele efetivamente verificado nas companhias bra-
sileiras está na constante presença de uma pessoa ou grupo con-
trolador majoritário519, que concentra uma quantidade de ações su-
ficiente para aprovar qualquer deliberação na Assembleia Geral de
Acionistas e eleger a maioria dos administradores da sociedade (art.
116 da Lei n. 6.404/76).
Com a realidade do controle majoritário e concentrado, o
processo decisório tende a se concentrar ainda mais, desfazendo
aquela hipotética especialização “descendente” acima aludida.
Como eleitor da maioria dos Conselheiros de Administração
e prevalente nas deliberações da Assembleia Geral de Acionistas,
este modelo de controlador da sociedade concentra, de fato, a
quase totalidade do processo de iniciativa, ratificação e implemen-
tação de decisões corporativas, especialmente quando ele próprio
ocupa lugar nos órgãos de gestão.
Portanto, o “esvaziamento” da competência ratificadora da As-
sembleia Geral de Acionistas, a canalização deste poder ratificador

a compor o Conselho de Administração de uma companhia. ROSSETTI. José Paschoal.


ANDRADE. Adriana. Governança Corporativa. Ed. Atlas. São Paulo. 2013. Pg. 199/200.
519 “A estrutura de propriedade acionária das companhias abertas brasileiras é muito
concentrada, como demonstram diversos estudos existentes sobre o tema. As companhias são
tradicionalmente controladas por um acionista controlador majoritário, ou, como se verificou
mais recentemente, em razão do maior grau de dispersão das estruturas de propriedade das
companhias listadas no Novo Mercado, por um grupo de acionistas vinculados por acordo de
acionistas que regula o exercício do controle compartilhado”. GORGA. Érica. Direito Societário
Atual. Ed. Campus Jurídico. São Paulo. 2012. Pg. 41/42.

462 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


para o Conselho de Administração e a constante presença do con-
trole majoritário nas companhias brasileiras desestrutura de forma
nítida o teoricamente “descendente” e compartimentado processo
decisório corporativo.
Conselhos de Administração que tomam iniciativas, ratificam
e orientam a implementação de decisões e, por outro lado, contro-
ladores que ocupam funções de gestão e concentram, quase com
exclusividade, em si mesmos todas as fases do processo decisório
aludido por Jensen e Fama produzem a necessidade de alterações
tanto na regulação quanto na análise deste contexto.
Considerar tais discrepâncias entre o que abstratamente se
concebe como modelo decisório e o que se verifica no mundo dos
fatos é fundamental para se abordar, como se fará abaixo, a estrutu-
ra de governança corporativa e sua regulação. Antes, porém, é pre-
ciso analisar o processo de monitoramento, pelos órgãos sociais,
das decisões implementadas.

3 – Monitoramento de decisões corporativas

Este processo de monitoramento guarda vários pontos de se-


melhança com o processo de formação e implementação da de-
cisão, uma vez que também aqui há a participação de diferentes
órgãos da estrutura corporativa, cada um deles tendo, em princípio,
atribuições específicas ao longo do processo.
Entretanto, o processo de formação e implementação de
decisões na companhia segue, em tese, uma estrutura vertical e
“descendente”, já parte dos órgãos eleitores para seus respectivos
eleitos.
Já o monitoramento de decisões corporativas segue, por seu
turno, sentido inverso - ou “ascendente” - uma vez que a verificação
entre o implementado e o decidido inicia-se nos órgãos eleitos e vai
em direção àqueles que os elegeram.
Uma vez implementada, pela Diretoria, determinada decisão
tomada na companhia, caberá ao Conselho de Administração o

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 463


monitoramento520 do ato praticado, aferindo até que ponto o que foi
implementado pelos diretores corresponde às diretrizes de médio
e longo prazo estabelecidas.
O Conselho de Administração, a seu turno, prestará à Assem-
bleia Geral de Acionistas contas sobre toda a fase de implementa-
ção da decisão (art. 122, III da Lei n. 6.404/76), permitindo aos acio-
nistas o monitoramento dos resultados obtidos, em relação ao que
foi antes ratificado.
Assim, na estrutura decisória proposta por Jensen e Fama – e
que, em última análise, está positivada na Lei n. 6.404/76 - a As-
sembleia Geral de Acionistas tem, no processo de monitoramento
decisório, a competência final, sendo, ao menos em tese, o órgão
competente para a ratificação e monitoramento - o denominado
controle - de decisões.
Assim, formação e implementação de decisão, por um lado,
e monitoramento da decisão implementada, por outro, formam um
processo cíclico e contínuo - ao menos sob o ponto de vista dos
modelos normativos - de modo a legitimar os atos praticados pela
companhia.
Note-se, porém, que também na fase de monitoramento de
decisões a Assembleia Geral de Acionistas tem se deslocado do
centro para a periferia do processo.
Novamente falando em tese, nada mais legítimo que o ato de
aferir a correspondência entre a ação implementada e aquela ratifi-
cada fosse realizado, em última instância, pelos próprios acionistas,
titulares do capital social. Esta não é, entretanto, a realidade.
As assembleias gerais de acionistas são, como apontado, ór-
gãos de realização custosa e nos quais a efetiva participação dos
acionistas – especialmente minoritários - demanda um grau de in-
formação que eles em geral não dispõem, pois envolve custos ne-

520 SALLES DE TOLEDO. Paulo F. C. O Conselho de Administração e a Governança Corporativa.


(In:) COELHO. Fábio Ulhôa. (Coord.) Tratado de Direito Comercial. Vol. 4. Ed. Saraiva. São Paulo.
2015. Pg. 207 e segs.

464 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


cessários à compreensão e análise das demonstrações financeiras
e contábeis apresentadas pelos administradores.
Em conclusão, o que se percebe é que o modelo regulató-
rio do processo decisório nas companhias caminha em direção ao
Conselho de Administração, tanto no que tange à iniciativa, ratifica-
ção e implementação, quanto ao monitoramento de decisões, afas-
tando a Assembleia Geral de Acionistas deste contexto521.
Outra fundamental diferença entre os processos aqui analisa-
dos está no fato de que o Conselho Fiscal, sem significativa atribui-
ção normativa na formação e implementação da decisão, assume,
ao menos em tese, posição central no processo de seu monitora-
mento.
Como se demonstrará, o Conselho Fiscal é legalmente estru-
turado como instrumento para diminuir os custos de monitoramen-
to das decisões implementadas pelos órgãos de administração. Se,
para os acionistas em geral, é custosa a obtenção de informações
que lhes permita efetivamente monitorar os atos da gestão cor-
porativa, o Conselho Fiscal, a princípio de natureza essencialmen-
te técnica, desempenhará este papel de simplificar e expor, com
maior clareza, estas informações.
Ressalte-se também que enquanto o processo de formação
e implementação de decisões corporativas é eminentemente inter-
no522, ao processo de monitoramento é dada maior amplitude, para
permitir que pessoas estranhas à estrutura interna da companhia
(chamados genericamente de stakeholders) possam eventualmen-
te dele participar.

521 Em companhias com controle concentrado, o Conselho de Administração torna-se, como


aqui já apontado, mero instrumento jurídico através do qual o acionista ou grupo controlador
exercerá tanto o poder de gerenciamento quando de controle de decisões.
522 É possível encontrar, na estrutura decisória normativamente estabelecida, hipóteses de
participação de terceiros, alheios ao capital social, na formação e mesmo implementação
da decisão. É o caso, por exemplo, da participação de representantes de empregados da
companhia na formação do Conselho de Administração ou das modalidades de controle
externo, como na hipótese de credores. São, porém, situações pontuais e excepcionais
que, portanto, não chegam a comprometer o caráter eminentemente interno de formação e
implementação de decisões corporativas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 465


Pretende-se aqui abordar o modelo normativo de monitora-
mento de decisões no contexto das companhias brasileiras, bem
como algumas de suas variações fáticas mais significativas e/ou
frequentes.
Para tal abordagem é, entretanto, necessária mais uma fun-
damental análise, aplicável tanto ao processo de formação e im-
plementação da decisão quanto ao seu monitoramento. Trata-se da
chamada “teoria da agência”, atualmente empregada na compreen-
são do contexto decisório e administrativo das companhias.

4 – Conflitos de agência e sua importância para o


estudo das sociedades anônimas

A expressão “problemas de agência” (agency problems) ou


“conflitos de agência” é mais um dos termos cujo sentido, nas Ciên-
cias Econômicas, em muito difere daquele que, ao menos à primei-
ra vista, lhe atribui o Direito.
Diferenças conotativas são relativamente frequentes entre a
Economia e o Direito. Vale citar, como exemplos, termos com “bem
público”, “transação” e mesmo “propriedade”, cujos sentidos atribu-
ídos na Economia e no Direito são bastante diversos e, em alguns
casos, mesmo conflitantes523.
Por isso é válido, antes de passar à abordagem do tema, es-
clarecer o significado que aqui se dá ao termo “agência” e seus res-
pectivos conflitos e custos.
Em sentido econômico, conotação empregada também nes-
te texto e em outros que abordam as sociedades anônimas sob a
perspectiva da análise econômica do Direito524, agência (agency) re-
fere-se àquela situação na qual a efetivação ou maximização do in-
teresse econômico de determinada pessoa ou grupo (chamado de
523 COOTER. Robert. ULEN. Thomas. Direito e Economia. 5a edição. Ed. Bookman. Porto
Alegre. Pg. 33
524 POSNER. Richard. Economic Analysis of Law. 7th edition. Aspen Publishers. 2007. Pg. 420 e
segs. MACKAAY. Ejan. ROSSEAU. Stéphane. Análise Econômica do Direito. 2a edição. Ed. Atlas.
São Paulo. 2015. Pg. 554 e segs.

466 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


principal, em inglês) depende diretamente da conduta de outrem,
denominado agente (agent) 525.
O que é fundamental para a compreensão da relação de
agência e sua aplicação ao estudo das companhias é, na verdade,
entender que entre principal e agente, há uma situação na qual a
maximização de um determinado interesse economicamente men-
surável do principal se apoia e depende da conduta adotada pelo
agente.
O agente, por sua vez, está - seja em decorrência de contra-
to ou de outro tipo de relação jurídica – juridicamente obrigado a
agir, precipuamente, no sentido da realização do interesse do prin-
cipal526.
O verdadeiro “ovo da serpente” ou “pecado original” da relação
de agência está na constatação de que o agente é responsável pela
conduta e pelos riscos advindos de seu ato, enquanto, por outro
lado, ao principal caberá os frutos da conduta tomada pelo agen-
te527.
Assim, em uma relação de agência, a preocupação central da
pessoa ou grupo que esteja na posição de principal é a de evitar
que o agente aja, no desempenho de sua função, em benefício pró-
prio, e não no sentido maximizador dos interesses do principal, uma
vez que ambos - principal e agente - são, pressupõe-se, sujeitos
racionais e maximizadores de seus próprios interesses528.
525 Muito embora seja comum, dentre as definições econômicas e gerenciais de agência,
a referência a uma relação de natureza contratual entre o principal e o agente, é importante
ressaltar que nem sempre isso se verifica. “We define an agency relationship as a contract under
which one or more persons (the principal(s)) engage another person (the agent) to perform some
service on their behalf which involves delegating some decision making authority to the agent.
If both parties to the relationship are utility maximizers, there is good reason to believe that the
agent will not always act in the best interests of the principal. JENSEN. Michael C. MECKLING.
William H. Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure.
Journal of Financial Economics, October, 1976, V. 3, No. 4, pp. 305-360. Pg. 310.
526 Trata-se, portanto, de uma realidade mais ampla do que aquela abarcada pela definição
legal de agência, referente especificamente à relação contratual definida nos termos do art.
710 do Código Civil.
527 JENSEN. Michael C. FAMA. Eugene F. Separation of ownership and control. Journal of Law
and Economics, Vol. XXVI, June. 1983. Pg. 305.
528 “A essência da teoria do agente-principal está na compreensão e separação de papéis entre

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 467


Há, deste modo, o que se chama de “conflito” ou “problema”
de agência529, dado que a conduta do agente tende, em regra, a se-
guir no sentido da maximização de seus interesses próprios, e não
no sentido necessário da implementação dos interesses do princi-
pal530.
A estrutura de uma companhia baseia-se em relações de
agência, já que, grosso modo, uma sociedade anônima é composta
por grupos identificáveis de pessoas com relativo grau de interes-
ses comuns entre si, os quais, entretanto, para serem implemen-
tados, dependem da conduta de outra pessoa ou grupo ligado à
companhia.
Assim – e por exemplo - a maximização do interesse dos acio-
nistas minoritários depende da conduta do controlador e a deste,
por sua vez, vincula-se à ação dos administradores, e assim por
diante. O ambiente corporativo é, em síntese, formado por grupos
de interesses relativamente comuns dependentes, para sua maxi-
mização, da conduta de outro destes grupos de interesses organi-
zados em torno da companhia.
agente (tomadores de decisão) e principal (pessoas que confiam as decisões para terceiros).
(...) A teoria prevê, entretanto, que nem sempre o agente agirá no melhor interesse do principal”.
SILVEIRA. Alexandre di Miceli. Governança Corporativa. Ed. Elsevier Campus. São Paulo. 2010.
Pg. 34/35.
529 Sobre os conflitos de agência no Direito societário confira o clássico trabalho de:
BERLE. Adolf A. MEANS Gardiner C. The Modern Corporation & Private Property. Transaction
Publishers. 1991 (edição original 1932). Veja também: JENSEN. Michael C. SMITH JR. Clifford
W.Stockholder, Manager, and Creditor Interests: Applications of agency theory. Recent
Advances in Corporate Finance, E. Altman and M. Subrahmanyam, Editors (Dow-Jones Irwin,
1985). EASTERBROOK, Frank H. FISCHEL, Daniel R. Close Corporations and Agency Costs,
38 Stanford Law Review. 271, 277 (1986). STIGLITZ. Joseph E. Principal and Agent. Princeton,
Woodrow Wilson School - Discussion Paper (12). http://ideas.repec.org/p/fth/priwdp/12.
html. 1988. KRAAKMAN. Reinier. HANSMANN, Henry. Agency Problems and Legal Strategies.
Yale Law School. Center for Law, Economics and Public Policy. Research Paper No. 301. http://
ssrn.com/abstract=616003. HOPT. Klaus J. Modernização do Direito Societário: perspectiva
transatlântica. Revista Direito GV. N. 7. Jan-jun. 2008. São Paulo. Pg. 49 a 64.
530 “O ponto crítico do problema de agência reside no fato de que a separação entre propriedade
e gestão [na sociedade anônima] resulta no afastamento entre aqueles que decidem e aqueles
que assumem as consequências das decisões.” (FREITAS. Bernardo Vianna de. QUEIROZ. Júlio
Antônio Nunes. Conflito de Agência nas Sociedades Anônimas: uma análise sob a perspectiva
da teoria dos jogos. In: CASTRO. Moema Augusta Soares de. (Coord.) Sociedade Anônima e
Mercado de Capitais – Homenagem ao Prof. Osmar Brina Corrêa Lima. Ed. Quartier Latin. São
Paulo. 2011. Pg. 141/142.)

468 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A solução – ou, ao menos, minimização - deste conflito nas
companhias passa, em síntese, pela necessidade de que o prin-
cipal disponha de mecanismos que lhe permitam, com eficiência,
monitorar a conduta do agente, de forma a aferir o sentido por ela
tomado ao longo do processo de formação e implementação de
decisões na companhia.
O termo Governança Corporativa pode ser compreendido
como o conjunto de procedimentos e regras destinados a regular e
monitorar os conflitos de agência inerentes às sociedades. São dis-
posições cogentes que disciplinam todo o processo de formação,
implementação e monitoramento de decisões na companhia531, de
forma a garantir a redução dos conflitos de agência aqui tratados.
Este monitoramento532 se torna ainda mais relevante quando
se lembra que, em regra, o agente dispõe de mais ]informações que
o principal acerca da conduta esperada e da forma de desempenho
necessária ao atendimento do interesse do principal.
A necessidade de monitoramento da conduta do agente e de
redução da assimetria informacional533 na qual se encontra leva o
531 A expressão Governança Corporativa (do original inglês corporate governance) acabou
por ganhar diferentes conotações no direito societário, mas, em verdade, melhor identifica as
regras que disciplinam este processo interno de decisão e monitoramento de resultados nas
sociedades anônimas. JOO. Thomas Wuil. Theories and models of Corporate Governance. UC
Davis Legal Studies Research Paper Series. Research Paper No. 213 March 2010. http://ssrn.
com/abstract=1543397. Site consultado em 23/03/2013. “O tema [Governança Corporativa]
pode ser definido como o conjunto de mecanismos que visam a fazer com que as decisões
corporativas sejam sempre tomadas com a finalidade de maximizer a perspectiva de geração de
valor de longo prazo para o negócio”. SILVEIRA. Alexandre di Miceli da. Governança Corporativa
no Brasil e no Mundo. Ob. cit. Pg. 3. Compreender a Governança Corporativa como o conjunto
das regras que disciplinam o processo decisório na companhia permite abarcar situações
como o conflito de interesses nas votações, insider trading, compliance, abuso do poder de
controle e outros temas que têm em comum o fato de decorrerem da estrutura de tomada
de decisões na sociedade.
532 MACKAAY. Ejan. ROSSEAU. Stéphane. Análise Econômica do Direito. 2a edição. Ed. Atlas.
São Paulo. 2015. Pg. 565.
533 “Algumas relações jurídicas (principalmente de conteúdo econômico) serão naturalmente
travadas em situação de flagrante desequilíbrio entre as partes envolvidas, no tocante
à disponibilidade de informações necessárias à adequada avaliação de seus efeitos e
consequências. Trata-se de reconhecida falha de mercado associada à assimetria de
informação, que favorece práticas e condutas inadequadas pela parte preponderante do ponto
de vista informacional, em detrimento daquela mais vunerável”. PITTA. Andre Grunspun. O
direito do acionista à informação. (In:) COELHO. Fábio Ulhôa. Tratado de Direito Comercial. Vol.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 469


principal a assumir os chamados “custos de agência”, que são aque-
les nos quais incorre o principal534 para monitorar e zelar pela ob-
tenção de uma performance confiável e efetiva de seus agentes535.

5 – Principais conflitos de agência e sua regulação pelo


direito societário

É possível apontar, no estudo das sociedades anônimas, ao


menos três grandes conflitos de agência que se desenham e ma-
nifestam tanto na formação quanto na implementação e monitora-
mento de decisões referentes às atividades de uma companhia536.
O primeiro deles é o que se verifica entre os acionistas da
companhia e os administradores contratados para a gestão do em-
preendimento. Os acionistas - aqui no papel de principais - devem
zelar para que os administradores, contratados pela sociedade, di-
recionem sua conduta no sentido da maximização dos interesses
dos sócios - que, afinal, são as pessoas os contrataram - e não no
sentido dos próprios interesses537.
IV. Ed. Saraiva. São Paulo. 2015. Pg. 165.
534 Ressalte-se ainda que a existência de “principais múltiplos”, com interesses muitas vezes
conflitantes entre si, leva à necessidade de coordenar estes interesses em um sentido mais
ou menos uniforme, o que, por sua vez, acarreta os chamados “custos de coordenação”.
535 POSNER. Richard. Economic Analysis of Law. 7th edition. Ob. Cit. Pg. 420. “We define agency
costs as the sum of the monitoring expenditures by the principal, the bonding expenditures by
the agent, the residual loss”. JENSEN. Michael C. MECKLING. William H. Theory of the firm:
managerial behavior, agency costs and ownership structure… Ob. Cit. Pg. 311.
536 Para melhor compreensão destes conflitos vale lembrar que o patrimônio da companhia
é de titularidade dos seus acionistas, é controlado pelo controlador da sociedade, é gerido
e alocado pelos administradores e funciona como garantia do pagamento dos credores. Isto
significa que o mesmo montante de patrimônio serve a pelo menos quatro grupos distintos,
cada um com seus interesses, diversos tanto dos outros grupos quando dentro de cada
um deles. (BERLE. Adolf A. MEANS. Gardiner C. The Modern Corporation & Private property.
Transaction Publishers. 1991. Pg. 112 e segs.)
537 Na última década, este conflito veio particularmente à tona quando se tratou da forma
de remuneração dos administradores, que muitas vezes funciona como elemento catalizador
de condutas contrárias ao interesse dos acionistas, mas favoráveis aos interesses do
administrador. JENSEN. Michael C. MURPHY. Kevin J. Remuneration: where we’ve been, how
we got to here, what are the problems, and how to fix them. ECGI Working Paper Series in
finance. N. 44/2004, july 2004. Social Science Research Network Electronic Paper Collection:
http://ssrn.com/abstract=561305. Site consultado em 01/03/2013.

470 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Em uma companhia cujo processo de iniciativa, ratificação,
implementação e monitoramento de decisões esteja concentrado
nos órgãos de administração – e, mais especificamente ainda, no
Conselho de Administração – esta modalidade de conflito de agên-
cia é a mais evidente. Os interesses dos acionistas dependem das
iniciativas ratificadas e implementadas essencialmente pela admi-
nistração da companhia.
Outro grande conflito de agência que se apresenta no con-
texto das companhias está entre o sócio ou sócio(s) controlador(es)
- neste caso na posição de agentes - e os sócios minoritários, vistos
aqui como principais. Os sócios minoritários precisam se precaver
para evitar que o grupo ou sócio controlador exerça tal poder na
sociedade apenas com o objetivo de atender seus objetivos parti-
culares, e não aos interesses de todos os acionistas da companhia,
como estipulado no art. 117 da Lei n. 6.404/76.
Em companhias de controle majoritário e concentrado – como,
já se aqui disse, é a regra no contexto brasileiro – esta modalidade
de conflito de agência é a mais evidente, pois o controlador exerce,
quase que com exclusividade, o gerenciamento e controle do pro-
cesso decisório, por meio de sua prevalência nos órgãos gestores e
na Assembleia Geral de Acionistas.
A preocupação central está, nesta hipótese, em minimizar o
risco de que o controlador se aproprie, com exclusividade, dos be-
nefícios do controle, utilizando sua ingerência sobre o processo de-
cisório e gerencial apenas em seu próprio benefício.
Estas duas modalidades de conflitos de agência são, como se
verifica, inerentes à estrutura organizacional da companhia e envol-
vem seus próprios sócios e os integrantes dos órgãos administrati-
vos. São, por assim dizer, conflitos internos de agência na compa-
nhia.
Há ainda outro constante conflito de agência que se manifesta
na conjuntura das companhias e que, ao contrário dos anteriores,
envolve grupos de interesses externos à organização societária.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 471


Reconhece-se que a companhia atua no mercado e que os
efeitos positivos e negativos desta atuação extrapolam os interes-
ses daqueles que fazem parte de sua estrutura interna. A existência
e funcionamento de uma companhia gera, portanto, externalidades
positivas e negativas no mercado.
Trata-se aqui, então, do conflito entre a própria companhia -
agente - e terceiros como credores, empregados, consumidores e
outros grupos de interesses jurídica e economicamente tuteláveis,
mas alheios à composição organizacional da sociedade538.
Tal conflito gira em torno da preocupação em evitar que a
companhia exproprie credores, explore empregados ou engane
consumidores, ao invés de trabalhar também pelos interesses des-
tes terceiros. As essenciais externalidades criadas pela atuação da
companhia devem, portanto, ser prevalentemente positivas, não o
contrário.
Em princípio, a participação destes terceiros interessados na
companhia (stakeholders) é, ao longo do processo de formação, ra-
tificação e implementação de decisões, bastante restrita.
Pode-se cogitar que eles tenham legitimidade para propor ini-
ciativas – não vinculantes - a serem, se ratificadas, implementadas
pela companhia. Fora isso, as fases de ratificação e implementação
de decisões escapam à sua atuação, embora os efeitos das deci-
sões implementadas tenham direto impacto sobre os interesses
deles.
Assim, enquanto nos conflitos internos de agência a regula-
ção se pode efetivar com a disciplina das regras de formação, ratifi-
cação e implementação de decisões, no conflito de agência entre a
companhia e terceiros o processo de monitoramento é quem ganha
mais relevância, pois dele podem, com mais efetividade, participar,
através dos mecanismos abaixo abordados, os stakeholders.

538 Utiliza-se o termo stakeholders para denominar genericamente estas pessoas e grupos
cujos interesses estão ligados à companhia. A relação da companhia com estes stakeholders
está no centro da discussão sobre responsabilidade social da companhia. ROSSETTI. José
Paschoal. ANDRADE. Adriana. Governança Corporativa – fundamentos, desenvolvimento e
tendências. Ed. Atlas. São Paulo. 2004. Pg. 35.

472 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


É patente, no mercado de valores mobiliários, a preocupação em ampliar a ideia
de governança corporativa de modo a alcançar, além dos grupos de interesses
diretamente vinculados à atividade empresarial (como sócios minoritários,
credores, empregados e consumidores), outros igualmente merecedores de
tutela, apesar de apenas indiretamente relacionados à empresa.
Há, entre investidores, crescente preocupação, em relação às companhias objeto
de seus investimentos, com o grau de atenção e respeito a questões relacionadas
à proteção ao meio ambiente, bem como a ações socialmente orientadas.

A sigla ESG (Environmental, Social and Corporate Governance) é usada para


identificar o nível de sustentabilidade social e ambiental dos empreendimentos
empresariais e, sem dúvida, é hoje (junto ao compliance) aspecto indissociável da
governança corporativa, além critério essencial balizador da tomada de decisões
relacionadas ao exercício da empresa.

Sobre o tema, merece consulta o material referido abaixo, elaborado pela B3:
h t t p s : // w w w . b 3 . c o m . b r / d a t a / f i l e s / 1 A / D 7 / 9 1 /
AF/132F561060F89E56AC094EA8/Guia-para-empresas-listadas.pdf

Note-se que, nos três modelos apresentados, os custos de


agência consistem não apenas nos custos de orientação e monito-
ramento da conduta dos agentes, mas também nos custos de coor-
denação dos interesses dos principais, já que, nos modelos citados,
os principais são múltiplos e de interesses não coordenados entre
eles mesmos.
Nos conflitos internos de agência, os principais (acionistas da
companhia) não estão completamente alinhados no que se refe-
re aos seus interesses no empreendimento539. Há, vale citar como
exemplos, aquele acionista de perfil especulativo, o de orientação
mais empreendedora, aquele que tem nos dividendos da compa-
nhia seu maior objetivo e aquele grupo ou pessoa que detenha o
controle sobre a sociedade.
Tal constatação é suficiente para demonstrar a dificuldade em
definir e coordenar o que se pode tomar, em qualquer dos conflitos
de agência internos, como real interesse economicamente prepon-
derante do principal.
539 Sobre os diferentes perfis de acionistas, confira: COELHO. Fábio Ulhôa. As Relações
Societárias. (In:). COELHO. Fábio Ulhôa. (Coord:) Tratado de Direito Comercial. Vol. 4. Ed. Saraiva.
São Paulo. 2015. Pg. 14/15.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 473


Clara também é a dificuldade em alinhar, no conflito externo
de agência, o interesse dos principais múltiplos. Os grupos externos
à estrutura organizacional da companhia, mas a ela de algum modo
vinculados (como credores, consumidores, trabalhadores etc.) têm
interesses e objetivos muito diversos uns dos outros.
Os credores querem, claro, receber seus direitos na forma e
prazo estipulados. Os consumidores esperam produtos de alta qua-
lidade e baixo preço e os trabalhadores, a seu turno, querem maio-
res salários e condições de trabalho mais favoráveis. É neste con-
texto que, espera-se, desenvolva a unidade de expectativas sobre
a conduta do agente (no caso, a companhia).
Os citados conflitos ou problemas de agência manifestam-
-se precipuamente no processo de formação, implementação e
monitoramento de decisões no contexto da companhia. Agentes
e principais têm, em todos os casos citados, direta intervenção no
processo decisório ou de monitoramento de decisões e, como con-
sequência, nos atos praticados pela companhia.
Face à realidade conflituosa descrita, a legislação societária –
e as normas internas da companhia, de origem estatutária - busca
estipular regras que solucionem – ou ao menos minimizem – os
conflitos de agência e os custos deles decorrentes540. Tais regras
são, como dito, referidas sob o termo Governança Corporativa.
As estratégias legais para solucionar ou minimizar os conflitos
de agência internos e externos, nas companhias, podem ser classi-
ficadas em duas grandes modalidades541.
Há, por um lado, as chamadas “estratégias reguladoras” (regu-
latory strategies), que são normas destinadas a fixar, de forma de-
talhada e antecipada (ex ante) a conduta esperada do agente para
540 Em geral, reduzir os riscos de que o agente atue contra o interesse do principal acaba
sendo, em última análise, tão vantajoso para o agente quanto para o principal. Assim, leis
de falência protetivas para os credores (principal) contra atos expropriatórios da companhia
(agente) tornam, em certo grau, o fornecimento de crédito mais seguro e, portanto, mais
barato para os empresários.
541 KRAAKMAN. Reinier. HANSMANN. Henry. ARMOUR. John. Agency problems and Legal
Strategies. The Anatomy of Corporate Law: a comparative and functional approach. Second
Edition. Oxford. Pg. 124 e segs.

474 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


o atendimento aos interesses do principal tutelado na situação. A
conduta do agente é, portanto, estabelecida em padrões abstratos
(standards) e legalmente referenciados.
O grau de eficiência desta modalidade de estratégia regula-
dora depende de fatores como a eficiência da autoridade aplicado-
ra de sanções aos agentes desonestos ou oportunistas – seja dita
autoridade o Poder Judiciário ou outro órgão regulador - e também
do nível de transparência (disclosure) das informações relevantes
sobre a conduta do agente, uma vez que só assim é possível aferir
seu alinhamento com os interesses do principal.
Há também as chamadas estratégias de governança (gover-
nance strategies), que visam reduzir os conflitos de agência facilitan-
do o controle – ou monitoramento - do agente, pelo principal, que,
neste caso, dispõe de fortes e eficientes mecanismos para interferir
diretamente na conduta do agente, ao longo do processo decisório.
Criam-se, nesta modalidade, mecanismos de governan-
ça destinados a permitir que os principais atuem diretamente na
construção da conduta do agente. A conduta esperada do agente
é delineada pela atuação concreta do principal e não por modelos
abstratos legalmente estabelecidos.
O grau de eficiência desta estratégia vincula-se, antes de mais
nada, ao nível de coordenação de interesses entre os principais
múltiplos, já que estes disporão de instrumentos destinados a per-
mitir-lhes orientar concretamente a conduta dos agentes.
Deste modo, em situações de grande disparidade de interes-
ses entre os principais, ou de significativo grau de assimetria infor-
macional entre eles, esta estratégia acarreta altos custos de coor-
denação.
A diferença fundamental entre os dois modelos de solução
está, portanto, na necessidade de se optar por estabelecer em lei
a conduta esperada do agente ou por criar mecanismos que pro-
piciem aos principais atuarem diretamente, ao longo do processo
decisório, na formação desta conduta, conforme as situações con-
cretas vivenciadas pela companhia.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 475


Entre ambas as alternativas, a segunda se mostra, a princí-
pio, mais eficiente, especialmente se considerada, por um lado, a
já apontada prevalência do Conselho de Administração na forma-
ção, ratificação e implementação de decisões e, por outro lado, a
realidade das companhias estruturadas sob um regime de controle
majoritário e concentrado.
Em uma companhia cujo processo decisório esteja centrado
no Conselho de Administração ou na presença marcante do contro-
lador, a governança corporativa estruturada em regras que discipli-
nem o acompanhamento e monitoramento do processo decisório
será mais eficiente do que procurar estruturar abstratamente, na
legislação, as condutas esperadas.
A governança corporativa pautada no forte monitoramento de
decisões e não na excessiva padronização legal e abstrata de con-
dutas esperadas dos agentes revela-se, deste modo, mais eficiente
em realidades nas quais, como apontado, o processo decisório con-
centra-se no Conselho de Administração ou na ação do controlador.

O filme “O mago das mentiras” (Wizard of Lies. Direção: Barry Levinson. Produção:
HBO movies. Estados Unidos. 2017) trata do caso verídico de Bernie Madoff, outrora
considerado um mago dos investimentos nos Estados Unidos. Vale observar, ao
longo de todo o filme, que suas criminosas ações foram, de certa forma, viabilizadas
pela inexistência de instrumentos eficazes de transparência, descentralização e
circulação de informações referentes às atividades realizadas.

476 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Compliance e sua importância para a transparência das atividades empresariais

Aspecto fundamental da governança corporativa está nas práticas e regras


que, em conjunto, costumam ser referidas como Compliance. O termo pode ser
traduzido em algo como “conformidade” e significa a necessidade de que atos,
decisões e negócios da sociedade sejam realizados conforme padrões éticos e
normativamente estabelecidos.

O objetivo é, sob o ponto de vista das sociedades, evitar o risco de sanções


decorrentes de atos fraudulentos eventualmente praticados por aqueles que,
dentro da estrutura societária, tenham algum poder decisório.

Estar em compliance é portar-se no mercado, como agente econômico, em


“conformidade” com padrões éticos e de boa fé, buscando prevenir violações
normativas que acarretem, para a sociedade, danos materiais ou reputacionais.

Pode-se mesmo falar em “risco jurídico”, na medida em que esta expressão


seja usada para referir-se à possibilidade de que a sociedade se veja, por atos
praticados em seu nome ou no seu interesse, envolvida em transações ilícitas, que
resultem em perda de sua credibilidade, clientela ou patrimônio.

No Brasil, as regras fundamentais sobre compliance encontram-se na Lei


n.12.846/13, que recebe o nome de “Lei anticorrupção” exatamente porque
decorrente de uma série de escândalos envolvendo relações empresariais e
autoridades públicas.

Um bom programa de compliance deve, portanto, funcionar como um


elemento de controle de riscos jurídicos na sociedade, de forma a criar
um sistema de prevenção “ótimo”, ou seja, nem subcontrolado (que
acarretaria exposição excessiva ao risco) nem supercontrolados (que implicam
custos desnecessários de manutenção)

O programa de compliance deve ser elaborado caso a caso, levando-se em


consideração a realidade específica da sociedade na qual será aplicado.

Apesar de tais especificidades, é possível dizer que tal programa implica a


necessidade de regulamentos internos de conduta (Código de Conduta) e, também,
de criação de órgãos, como o Comitê de compliance e canais de comunicação,
bem como o treinamento dos tomadores de decisões.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 477


478 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA
Capítulo XIV
Conselho Fiscal e outros instrumentos de fiscalização
das atividades sociais

1 – Os instrumentos legais de fiscalização das


companhias e seu papel na redução dos conflitos de
agência

Resta demonstrado que os conflitos de agência são ineren-


tes ao processo decisório nas companhias e, do mesmo modo, que
grande parte dos custos decorrentes destes conflitos advém da ne-
cessidade de monitoramento, pelos principais, da conduta de seus
agentes ao longo da formação e implementação de decisões na
companhia.
Fica também claro que este processo de monitoramento -
vertical e ascendente, como se viu - passa essencialmente pela
obtenção de informações claras e detalhadas sobre a conduta
adotada pelos agentes ao longo do processo decisório, de forma
a permitir que os principais possam monitorar tais condutas e aferir
até que ponto seus legítimos interesses estão observados nos atos
praticados pelos agentes.
No contexto das sociedades anônimas, o processo de obten-
ção destas informações passa por diferentes níveis e instrumentos,
sendo um deles constituído pelos mecanismos de fiscalização da
administração societária.
O capital social é integralizado pelos acionistas que, entre-
tanto, conferem sua gestão aos órgãos de administração, devendo
estes últimos, por sua vez – e em princípio - orientar sua atuação
em prol da maximização de valor para o empreendimento e, via de
consequência, aos interesses dos acionistas.
Assim, se os acionistas são os titulares do capital – e, indireta-
mente, também do patrimônio – social, é inegável que as decisões

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 479


sobre a alocação e gestão destes recursos são implementadas não
por eles, mas pelos administradores da companhia.
Em decorrência, consagra-se a assertiva de que é direito de
todo e qualquer acionista fiscalizar a atuação dos gestores do capi-
tal social integralizado, mas, na prática, esta fiscalização direta e in-
dividualizada se mostra inviável, especialmente se levado em con-
sideração o potencialmente imenso número de acionistas de uma
mesma companhia.
Se aos acionistas fosse individual e diretamente conferida a
atribuição de fiscalizar a gestão da companhia, isso não ocorreria de
forma eficiente, pois, em primeiro lugar, cada um destes acionistas
seria obrigado a arcar com os custos do exercício deste direito e,
em segundo lugar, os administradores precisariam ficar, em tese,
sempre à disposição para prestar informações àquele acionista que
eventualmente se dispusesse a arcar com os custos desta fiscali-
zação542.
Para reduzir os custos de transação inerentes ao exercício da
fiscalização sobre a gestão das sociedades é que foram estabele-
cidos mecanismos que viabilizem a implementação desta fiscaliza-
ção sem, entretanto, comprometer o bom funcionamento dos ór-
gãos societários. Neste sentido existem, basicamente, dois mode-
los para se reduzir a distância entre a atuação dos administradores
e o exercício do direito de fiscalização, pelos acionistas.
O primeiro está na fiscalização interna, assim compreendida
por ser realizada através de um órgão próprio da sociedade543. A
princípio, a Assembleia Geral de Acionistas exerce esta atribuição,
uma vez que aprova as contas da administração e os relatórios anu-
ais e balanços contábeis referentes às atividades sociais (art. 132, I e
133 da Lei n. 6.404/76).

542 Apenas de forma excepcional, fundamentada e judicialmente autorizada o acionista terá


acesso direto à integralidade dos livros e documentos contábeis da companhia, como se
pode extrair do texto do art. 105 da Lei n. 6.404/76.
543 BARBOSA. Marcelo. O direito essencial de fiscalização da gestão dos negócios sociais.
(In) SILVA. Alexandre Couto (coord.). Direito Societário – Estudos sobre a lei de Sociedades por
Ações. Ed. Saraiva. São Paulo. 2013. Pg. 188.

480 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O segundo modelo está na previsão da denominada fiscaliza-
ção externa, assim referida por ser efetuada através de entidades
personificadas544 alheias à companhia fiscalizada. Neste formato, a
companhia e seus administradores são fiscalizados por outra pes-
soa – física ou jurídica – que tem nesta atividade seu objeto e não
compõe a estrutura organizacional da sociedade fiscalizada.
A Lei das Sociedades por Ações brasileira (Lei n. 6.404/76)
ficou entre os dois sistemas. Vale-se, em regra, da fiscalização in-
terna, uma vez submente as contas e atos da administração à apro-
vação pela Assembleia Geral de Acionistas e estabelece a obriga-
toriedade da existência do órgão técnico fiscalizador – o Conselho
Fiscal – nas sociedades anônimas brasileiras.
Por outro lado, a legislação brasileira prevê, para as com-
panhias abertas, a obrigatoriedade de auditoria externa periódi-
ca sobre suas demonstrações contábeis (art. 177 par. 3o da Lei n.
6.404/76), nitidamente invocando o modelo de fiscalização externa.
Assim, a fiscalização da gestão das companhias abertas, co-
rolário necessário à minimização dos custos de agência, é obrigató-
ria e periodicamente efetuada, nos moldes da legislação brasileira,
tanto em âmbito interno quanto externo, enquanto as companhias
de capital fechado e as sociedades limitadas têm em comum a fa-
cultatividade da fiscalização externa e obrigatoriedade de fiscaliza-
ção interna periódica.
Apesar desta importante característica em comum, socieda-
des anônimas de capital fechado e limitadas guardam uma rele-
vante distinção, no que tange às regras de fiscalização interna das
atividades dos administradores.
Tal distinção refere-se à obrigatoriedade ou não de existência,
na estrutura organizacional da sociedade, do órgão fiscalizador por
excelência. O Conselho Fiscal é de existência obrigatória para as
sociedades anônimas – de capital aberto ou fechado – enquanto,

544 CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. III. 6ª edição. Ed.
Saraiva. São Paulo. 2014. Pg. 405 e seg.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 481


nas sociedades limitadas, sua existência depende de previsão con-
tratual neste sentido.

2 – O Conselho fiscal como instrumento de mitigação


dos conflitos internos de agência

2.1 – Características gerais do Conselho Fiscal

O Conselho Fiscal tem seu regime jurídico estabelecido basi-


camente pelos artigos 161 a 165 da Lei das Sociedades por Ações
(Lei n. 6.404/76), e pelos artigos 1.066 a 1.070 do Código Civil. Tra-
ta-se de um órgão destinado essencialmente à fiscalização da le-
galidade dos atos praticados pelos administradores da sociedade
e, desta forma, prestar subsídios valiosos aos sócios, no monitora-
mento de decisões implementadas nas atividades sociais.
Cumpre-lhe, quando em atividade, fiscalizar, nas companhias,
tanto o Conselho de Administração – se existente - quanto a Di-
retoria e, nas sociedades limitadas, todos os seus administradores,
sejam eles nomeados em contrato social ou ato separado.
O Conselho Fiscal é, nas companhias brasileiras, um órgão ca-
racterizado pela EXISTÊNCIA OBRIGATÓRIA e FUNCIONAMENTO
FACULTATIVO545. Isso significa que todas as Sociedades Anônimas
– abertas ou fechadas - são obrigadas a contar com ele em sua
estrutura organizacional (existência obrigatória) mas, por outro lado,
que este Conselho fica, em princípio, DESATIVADO, inativo, aguar-
dando o momento ou a solicitação para que entre atividade (o que
se chama de funcionamento facultativo).
Existem dois casos em que o Conselho Fiscal é, pela Lei das
Sociedades por Ações (Lei n. 6.404/76), de FUNCIONAMENTO PER-
MANENTE. Trata-se das sociedades de economia mista (art. 240 da
545 Como já salientado, o Conselho Fiscal nas sociedades limitadas é de criação contratual
(art. 1.066 do Código Civil). Portanto, silente o contrato social, ele inexiste na estrutura
organizacional das sociedades limitadas. Por outro lado – e uma vez que institua o Conselho
Fiscal – poderá o contrato social estabelecer – nos moldes das sociedades anônimas – regras
para seu funcionamento ou instalação.

482 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Lei n. 6.404/76) e daquelas Sociedades Anônimas – abertas ou fe-
chadas - cujos Estatutos estabeleçam expressamente esta caracte-
rística (art. 161 da Lei n. 6.404/76)546.
Quando o Estatuto Social não contém previsão de funciona-
mento permanente do Conselho Fiscal, é possível que isso seja es-
tabelecido mediante alteração estatutária, a ser precedida do cum-
primento às regras do art. 135 da Lei 6.404/76547.

Os amantes”, de René Magritte

Governança Corporativa

Essencialmente sujeitas a conflitos, a relações societárias devem ser reguladas para que
prevaleça a transparência e a boa-fé entre os envolvidos, de forma a evitar a existência de
ações ocultas ou oportunistas capazes de comprometer as atividades da companhia ou o
mercado

Em hipóteses de funcionamento facultativo, o Conselho Fis-


cal será instalado por decisão da Assembleia Geral de Acionistas,

546 “Assim, o estatuto deve disciplinar o órgão, dispondo se o seu funcionamento será
permanente ou se dependerá da solicitação dos acionistas minoritários para que se instale e
passe a funcionar naquele exercício social” (EIRIZIK. Nelson. A Lei das S.A Comentada. Vol. II. Ed.
Quartier Latin. São Paulo. 2012. Pg. 428).
547 Esta alteração deve, em rápida síntese, atender aos seguintes requisitos:
1 – A alteração de cláusula estatutária para transformar a atuação do Conselho Fiscal de
facultativa em permanente deve ser aprovada em Assembleia Geral Extraordinária de
Acionistas, convocada expressamente para este fim.
2 – Esta Assembleia Geral Extraordinária somente se instala, em primeira convocação, com a
presença de, no mínimo, três quartos do capital votante.
3 – Esta aprovação ocorre por maioria absoluta do capital social. (CARVALHOSA. Modesto.
Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Vol. III. Pg. 420)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 483


desde que tal instalação seja solicitada por acionista ou grupo de-
les que represente, no mínimo, um décimo das ações com direito a
voto ou cinco por cento das ações sem direito a voto emitidas pela
companhia (art. 161 par. 2o da Lei n. 6.404/76).
Este pedido de instalação do Conselho Fiscal poderá ser for-
mulado em qualquer Assembleia Geral de Acionistas, e mesmo que
tal matéria não conste de seu Edital de convocação.
Havendo requerimento de instalação do Conselho Fiscal - e
preenchido, obviamente, o quórum mínimo exigido e acima men-
cionado - os seus integrantes serão eleitos na própria Assembleia
Geral de Acionistas na qual for solicitada a instalação (art. 161 par. 3º
da Lei n. 6.404/76).
Uma vez em funcionamento, o Conselho Fiscal exercerá suas
atividades até a primeira Assembleia Geral Ordinária realizada após
sua instalação (art. 161 par. 2o da Lei n. 6.404/76), quando então vol-
tará, em princípio, ao estado de DESATIVADO.
Nada impede, entretanto, que, em havendo novo requerimen-
to, por parte de acionistas legitimados a solicitar sua instalação, seja
estabelecido novo e igual período de atividade do Conselho Fiscal.
Da mesma forma ocorre com os membros do Conselho Fiscal,
que exercerão suas funções até a primeira Assembleia Geral Ordi-
nária que se realizar após sua eleição, sendo, entretanto, admitida a
reeleição (art. 161 par. 6o da Lei n. 6.404/76)548.
A Lei n. 6.404/76 estabelece expressamente, em seu art. 162,
que os membros do Conselho Fiscal devem cumulativamente pre-
encher os seguintes requisitos: ser pessoas físicas, residentes no
país e diplomadas em curso de nível universitário ou que tenham
exercido, por prazo mínimo de 03 (três) anos, cargo de administra-
dor de empresa ou de conselheiro fiscal.

548 Previsão similar existe também para os membros de Conselho Fiscal das Sociedades
Limitadas, que, uma vez empossados, exercerão suas atividades, salvo cessação anterior, até
a próxima deliberação anual (art. 1.067 do Código Civil).

484 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Ainda no art. 162 a Lei 6.404/76 estabelece as hipóteses que
tornam determinada pessoa INELEGÍVEL para o Conselho Fiscal de
uma sociedade anônima549. São tais casos:

1 – pessoas impedidas por lei especial, ou condenadas por


crime falimentar, de prevaricação, peita ou suborno, concussão, pe-
culato, contra a economia popular, a fé pública ou a propriedade ou
a pena criminal que vede, ainda que temporariamente, o acesso a
cargos públicos (art. 147);
2 – pessoa que não tenha reputação ilibada (art. 147);
3 – pessoa que ocupe cargos em sociedades que possam ser
consideradas concorrentes no mercado (art. 147);
4 – pessoa que tenha interesse conflitante com o da compa-
nhia (art. 147)550;
5 – Membros de órgão de administração da companhia (leia-
-se Conselho de Administração e Diretoria) ou de sociedade contro-
lada por ela ou do mesmo grupo (art. 162);
6 – Empregados da companhia ou de sociedade controlada
por ela ou do mesmo grupo (art. 162);
7 – cônjuge ou parente, até o terceiro grau, das pessoas elen-
cadas nos números 5 e 6 (art. 162).

Extrai-se destes requisitos a preocupação normativa em ter,


no corpo de conselheiros fiscais da sociedade, pessoas ao mes-
mo tempo dotadas de capacidade técnica para o exercício de tais
atribuições e, além disso, cercadas pela necessária imparcialidade
e integridade de conduta que se deve esperar de todo aquele que
exerça funções fiscalizatórias.
A eleição dos Conselheiros Fiscais é, tanto nas sociedades
anônimas quanto nas limitadas, competência privativa e indelegá-
549 Os requisitos e hipóteses de inelegibilidade para o Conselho Fiscal de sociedades
limitadas estão elencados no art. 1.066 caput e par. 1º do Código Civil, sendo muito
semelhantes àqueles estipulados pela Lei n. 6.404/76.
550 Vale observar que as hipóteses elencadas nos números 2, 3 e 4 podem ser dispensadas
pela Assembleia Geral de Acionistas que eleger o Conselheiro.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 485


vel dos sócios, reunidos, nas companhias, em Assembleia Geral de
Acionistas (art. 132, III da Lei n. 6.404/76) ou, nas limitadas, em órgão
de deliberação anual (Código Civil, art. 1.066 caput).
Com o intuito de que o Conselho Fiscal seja composto por re-
presentantes de diferentes grupos organizados de sócios, há, tanto
na Lei n. 6.404/76 quanto no Código Civil, a previsão, em favor de
determinadas minorias, do direito de eleger, em separado, um inte-
grante deste órgão.
Na Lei n. 6.404/76 este direito de eleger em separado um
membro do Conselho Fiscal e seu respectivo suplente é conferido
aos titulares de ações sem direito a voto e aos titulares de ações
com direito a voto, mas não pertencentes ao sócio ou grupo contro-
lador, desde que representem, neste último caso, mais de 10% do
capital votante da companhia (Art. 161 par. 4º da Lei n. 6.404/76)551.
Já nas sociedades limitadas este direito de eleger, em sepa-
rado, um integrante do Conselho Fiscal é conferido aos sócios que
detenham 1/5 (um quinto) ou mais do capital social e não sejam
majoritários (Art. 1.066 par. 2º do Código Civil).
O número de suplentes eleitos para o Conselho Fiscal deve
ser o mesmo dos titulares, sob pena de violação aos citados tex-
tos legais. Vale também lembrar que, conforme salienta Modesto
Carvalhosa,552 cada titular é eleito com seu respectivo suplente e,
deste modo, o suplente de cada conselheiro só pode substituir o
seu respectivo titular.
Sobre conselheiros fiscais e sua forma de remuneração, no-
ta-se que tanto o Código Civil (art. 1.068) quanto a Lei n. 6.404/76
(art. 162 par. 3º) contêm a regra segundo a qual caberá aos sócios,
no ato de eleição dos integrantes do Conselho Fiscal, estabelecer a
remuneração de seus integrantes553.

551 Analisadas à luz dos conflitos de agência é possível ver, nestas previsões de votação em
separado, uma tentativa de coordenar os múltiplos e conflitantes interesses dos principais, no
caso representados pelos acionistas da companhia.
552 CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. III. Ob, cit. Pg.
423.
553 Diferentemente do que se tem no Código Civil, a Lei n. 6.404/76 estabelece, no

486 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Ainda sobre a remuneração dos Conselheiros Fiscais, deve-
-se lembrar que esta vincula-se ao efetivo exercício, pelo membro,
das atribuições inerentes à sua condição554. Assim, apenas quando
o Conselheiro Fiscal suplente vem efetivamente a exercer as ativi-
dades do órgão, em substituição ao respectivo titular, é que terá ele
direito à remuneração estipulada.
Por fim, deve-se lembrar que os Conselheiros fiscais de socie-
dades anônimas ou limitadas estão, como determinam os art. 165
da Lei n. 6.404/76 e 1.070 do Código Civil, sujeitos aos mesmos de-
veres e possibilidade de responsabilização civil aplicáveis aos ad-
ministradores do respectivo modelo societário.

2.2 – As atribuições legais do Conselho Fiscal nas


Sociedades Anônimas e nas Sociedades Limitadas

A Lei n. 6.404/76 fixa diretrizes claras sobre as competências


de cada um dos órgãos da companhia. Esta premissa é particular-
mente importante quando se contrapõe, de um lado, as atribuições
do Conselho Fiscal e, do outro, a dos órgãos de administração -
Conselho de Administração e Diretoria – da sociedade.
No caso do Conselho Fiscal, suas atribuições e prerrogativas
decorrem diretamente da Lei n. 6.404/76, que as elencou em seus
artigos 163 e 164. O texto destes artigos deixa claro que em mo-
mento algum confere-se ao Conselho Fiscal poder de participar no
processo de formação ou implementação de decisões na compa-
nhia555.

referenciado artigo, um valor mínimo de remuneração para os Conselheiros Fiscais em


exercício correspondente a 10% (dez por cento) do montante devido aos diretores da
companhia.
554 “A remuneração deve ser paga mensalmente, a partir do momento em que o conselheiro
toma posse de seu cargo. Nada impede que o estatuto ou a assembleia geral estabeleça,
adicionalmente, remuneração por reunião (jetons) como forma de estimular o comparecimento
dos membros do órgão. Como a remuneração é devida pelo efetivo exercício do cargo, os
suplentes, enquanto permanecerem em tal condição, a ela não fazem jus.” EIZIRIK. Nelson. A
Lei das S.A Comentada. Vol. II. Ed. Quartier Latin. São Paulo. 2011. Pg. 441.
555 O art. 1.069 do Código Civil enumera, em caráter exemplificativo, as atribuições do

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 487


Assim, todos os aspectos referentes à fase de implementação
das decisões ligadas à realização do objeto e finalidade sociais são
de competência dos órgãos de administração, que, quanto a isso,
estão sujeitos diretamente ao que foi deliberado em Assembleia
Geral de Acionistas, órgão responsável pela eleição de tais adminis-
tradores e no qual são, como visto, ratificadas as decisões a serem
implementadas.
O Conselho Fiscal, portanto, não tem competência para ana-
lisar os atos dos órgãos de administração sob o prisma de sua con-
veniência ou oportunidade, pois, se o fizer, estará interferindo na
implementação de decisões da companhia, e, em consequência,
usurpando competência556. É dizer que o Conselho Fiscal tem o po-
der/dever de fiscalizar a legalidade dos atos praticados pelos ad-
ministradores da companhia, mas não pode, sob pena de exceder
suas atribuições, avaliar a conveniência ou a oportunidade destes
mesmos atos557.
Ao se abordar as competências do Conselho Fiscal nas so-
ciedades anônimas é preciso também definir se este é um órgão
colegiado, cujos membros não têm poderes individuais - como o
Conselho de Administração – ou se, ao modo da Diretoria, os con-

Conselho Fiscal das Sociedades Limitadas. De sua análise pode-se também concluir que a
formação ou implementação das decisões tomadas pelos quotistas passam ao largo dos
poderes do Conselho.
556 A conclusão é a mesma em se tratando do Conselho Fiscal das Sociedades Limitadas,
dada a similitude de conteúdo entre as atribuições deste órgão na Lei n. 6.404/76 e no
Código Civil.
557 “A fiscalização a ser exercida pelo Conselho Fiscal sobre os atos dos administradores deve
restringir-se tão-somente à verificação do atendimento dos seus deveres legais e estatutários.
Assim, o órgão fiscalizador não possui competência para apreciar o conteúdo da gestão
societária, ou seja, não lhe cabe entrar no julgamento do mérito e da conveniência das
decisões empresariais tomadas pelos administradores. EIZIRIK. Nelson. Conselho Fiscal.
(in:) LOBO. Jorge. (coord). Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. 2a edição. Ed. Forense.
Rio de Janeiro. 2003. Pg. 462/463. LAMY FILHO. Alfredo. BULHÕES PEDREIRA. José Luiz.
A Lei das S.A. 2a edição. 2o volume. Ed. Renova. Rio de Janeiro. pg. 456). Nesse sentido é
particularmente interessante observar que se o Conselho Fiscal realiza alguma, qualquer
quer seja, interferência na formação das decisões gerenciais da sociedade, começa ele a ser
responsável por elas, perdendo, deste modo, sua feição mais importante, que é a de isenção
e independência em relação às atividades que se destina a fiscalizar.

488 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


selheiros fiscais podem agir de forma isolada, independentemente
de deliberação de seus pares, no exercício de suas atribuições.
A posição adotada, tanto pela doutrina quanto pela jurispru-
dência dominantes, vai, com base no texto dos artigos 163 e 164 da
Lei n. 6.404/76, no caminho intermediário, ao reconhecer a exis-
tência de atos que podem ser isoladamente praticados pelo Con-
selheiro Fiscal, ao lado de outros que dependem, para sua válida
efetivação, de deliberação majoritária558.
Deve-se reconhecer que a admissão de competências indivi-
duais para o Conselheiro Fiscal colabora para dar maior eficiência à
atuação, neste órgão, dos representantes de grupos minoritários de
acionistas, os quais, se prevalente a forma estritamente colegiada,
poderiam ser anulados, pelo voto dos conselheiros ligados ao gru-
po majoritário, nas deliberações do órgão559.
Ressalte-se também que o Conselho Fiscal não é represen-
tante legal da sociedade. É dizer que ele não tem, seja nas com-
panhias ou limitadas, legitimidade para interagir com terceiros em
nome da sociedade, sendo, ao contrário, um órgão cujos atos so-
mente têm validade interna corporis. Todas as suas competências
e atos são orientados exclusivamente para o órgão deliberativo da
sociedade – Assembleia de Acionistas ou sócios - que o elege.

558 Sobre tais posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, veja-se: EIZIRIK. Nelson.


Conselho Fiscal (In:). Reforma da Lei das Sociedades Anônimas. Ob. Cit. pg. 459. Em sentido
oposto, ou seja, defendendo a natureza essencialmente colegiada do órgão, vai Alfredo
Lamy Filho (LAMY FILHO. Alfredo. Temas de S.A – exposições - pareceres. Ed. Renovar. Rio de
Janeiro. Pg. 225 e segs.)
559 O art. 1.069 do Código Civil não deixa margem a dúvidas quando se trata de admitir a
possibilidade de atuação isolada do conselheiro fiscal, no exercício de suas atribuições. Não
só acolhe expressamente esta prerrogativa quanto a admite independentemente de qual
seja o ato a ser isoladamente praticado, desde que, claro, esteja dentro das competências
do órgão.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 489


2.3 – Conselho fiscal e a redução dos conflitos de
agência nas sociedades anônimas

Como visto, o Conselho Fiscal integra a estrutura organizacio-


nal da sociedade anônima. Esta característica, somada à observa-
ção de que se trata de um órgão sem poderes de representação –
ou seja, que não pode atuar em nome da companhia – faz com que
os resultados de sua ação fiscalizatória estejam limitados ao âmbito
da própria sociedade.
Desta forma não há, a princípio, significativa relevância de sua
atuação para a redução de conflitos externos de agência, voltados
para a relação entre a companhia e terceiros, embora uma efetiva
atuação do Conselho Fiscal acabe por refletir positivamente – mas
de forma indireta - sobre a governança corporativa em geral.560
Fique claro, porém, que os resultados da atuação fiscalizadora
do Conselho Fiscal limitam-se aos sócios, e que terceiros interes-
sados na companhia estão, por óbvio, alheios a tais conclusões e
precisarão de outros meios para efetivamente exercer seu monito-
ramento sobre as decisões e atos da companhia.
Por outro lado, o Conselho Fiscal desempenhará, se efetivo,
significativo papel na redução dos custos de monitoramento dos

560 The value of the equity stake sold by the entrepreneur depends on the choice of corporate
governance. This choice is taken to be binary in this model and essentially a ‘weak/strong’ choice.
Under a strong governance regime, the firm has an independent audit committee, deciding
whether or not to appoint an auditor and selecting the quality of any audit, and an independent
board of directors implementing the auditor’s recommendations. Under this regime, both the
audit committee and the board of directors are assumed to take the decisions maximizing the
value of the firm’s equity. In contrast, under a weak governance regime, the entrepreneur takes
the decisions maximizing his own welfare. (FRANTZ. Pascal. INSTEFJORD. Norvald.Corporate
Governance, shareholder conflicts and audit quality. http://ssrn.com/abstract=669024. Site
consultado em 30/04/2013.

490 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


conflitos internos de agência, sejam eles entre sócios e administra-
dores561 ou entre acionistas controladores e minoritários562.
Talvez nenhum outro órgão da companhia tenha sua eficiên-
cia tão vinculada à efetiva dedicação de seus membros quanto o
Conselho Fiscal. O papel central que este órgão social exerce na
redução dos custos de monitoramento inerentes aos conflitos inter-
nos de agência na companhia está essencialmente atrelado à forma
pela qual seus membros encaram o exercício de suas atribuições.
Sem conselheiros dotados de atributos pessoais e técnicos
adequados, somados à imparcialidade e comprometimento com
suas atribuições, o Conselho Fiscal se tornará não um redutor de
custos, mas um elemento gerador deles, sem a correspondente
compensação.
É, portanto, preocupação constante a definição dos atributos
pessoais que devem acompanhar a condição de conselheiro fis-
cal563. Destes atributos, alguns se destacam, quais sejam: indepen-
dência em relação aos administradores e controladores da compa-
nhia, aprofundado conhecimento em finanças e disponibilidade e
vontade para realizar reuniões frequentes564.
Toda esta estrutura normativa destinada a cercar o Conselho
Fiscal de independência e eficiência no exercício de suas atribui-
561 “Especificamente, pode-se dizer que o conselho fiscal contribui para resolver um importante
problema da relação de agência, referente ao fluxo de informações disponíveis sobre o
comportamento do agente para o seu principal. Assim, o conselho fiscal deve minimizar a
assimetria de informações dos acionistas em relação à administração social(...)”. GORGA. Érica.
Direito Societário Atual. Ed. Elsevier. São Paulo. 2013. Pg. 264.
562 An effective AC [Audit Committee] minimizes agency problem by reducing information
“asymmetry between owners and management and also acts as a safeguard of stakeholders’
interests. The main outcomes of an effective AC are (i) more credible financial information,
(ii) preventing unauthorized earning management in the firm and in effect and (iii) enhancing
firm’s returns and profit. MOHIUDDIN. Md. KARBHARI. Yusuf. Audit Committee Effectiveness:
A Critical Literature Review. AIUB Journal of Business and Economics Volume 9, Number 1.
January 2010 pp. 97-125. Pg. 112
563 Vale observar que entre conselheiros fiscais e acionistas há uma relação de agência, com
seus respectivos conflitos e custos. Cabe ao acionista monitorar a atuação do Conselheiro
fiscal nas reuniões e atividades do órgão, de modo a saber se efetivamente corresponde aos
seus interesses.
564 LEVITT JR. Arthur. The numbers game. The CPA Journal. Dec. 1998; 68, 12-19. Disponível
em http://www.ssrn.com. Site consultado em 02/02/2015.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 491


ções de monitoramento do processo decisório estará frontalmente
comprometida se, em companhias com controle majoritário e con-
centrado, o acionista ou grupo controlador eleger, como se espera,
a maioria dos integrantes deste órgão.
O Conselho Fiscal é eleito pela Assembleia Geral de Acionis-
tas (art. 122, II da Lei n. 6.404/76) e, em caso de controle concentra-
do, restará nítido que sua composição será ditada eminentemente
pela vontade do controlador.
Some-se a isso a conclusão de que este acionista ou grupo
controlador também elege – ou participa diretamente – dos órgãos
de gestão (art. 122, II da lei n. 6.404/76) e se estará diante de uma
realidade que, em termos econômicos, denomina-se de “teoria da
captura”565.
Com as devidas adaptações, pode-se aplicar a teoria da cap-
tura também aos Conselhos fiscais. Embora destinados a monitorar
as decisões administrativas, em situações nas quais o controlador
é majoritário, ele elege ou participa da administração e, também,
escolhe os membros do Conselho Fiscal. Assim, os conselheiros fis-
cais acabam por não exercer devidamente seu papel, pois “captura-
dos” pelo controlador.
Quando o Conselho Fiscal é, em sua grande maioria, eleito
pelo controlador majoritário, naturalmente há perda de sua impar-
cialidade e “captura” pelo controlador. O órgão fiscalizador existirá

565 Em essência, o termo “captura” é usado para identificar situações nas quais um órgão
regulador é, em sua composição, ocupado por pessoas voltadas para defender os interesses
daqueles agentes que estão sujeitos ao poder regulador do órgão.
É, por exemplo, o caso de uma agência reguladora do setor de telefonia, na qual os seus
principais dirigentes sejam escolhidos por direta interferência das companhias telefônicas.
Nesta hipótese, o órgão regulador passa a funcionar no interesse daquela pessoa ou grupo
a quem deveria orientar e fiscalizar, perdendo sua razão de ser. Sobre o tema, há três
trabalhos de fundamental referência: STIGLER. George J. A Teoria da Regulação Econômica;
POSNER. Richard. A. Teorias das Regulação Econômica e PELTZMAN. S. A Teoria Econômica
da Regulação depois de uma década e desregulação. A versão traduzida de todos pode ser
encontrada em MATTOS. Paulo. (Coord.). Regulação Econômica e Democracia: o debate norte-
americano. Editora 34. São Paulo. 2004. Veja também: BÓ. Ernesto Dal. Regulatory Capture: a
review. Oxford Review of Economic policy. Vol. 22. n. 2. Oxford Univesity press. 2006. Pg. 203 a
225.

492 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


para legitimar os atos do fiscalizado e não para estabelecer e bali-
zar, sob o aspecto da legalidade, sua atuação.
Ao criar hipóteses de inelegibilidade, a Lei n. 6.404/76 pro-
curou excluir do Conselho Fiscal pessoas ligadas ou subordinadas
direta ou indiretamente à administração da companhia. A indepen-
dência do conselheiro também se completa, na forma da lei, com
as regras da votação em separado para escolha de seus membros
e com a possibilidade de atuação individual do conselheiro.
Assim, espera-se que o Conselho Fiscal tenha em sua com-
posição o reflexo dos grupos de acionistas majoritários e minoritá-
rios, votantes ou não, fazendo com que se estabeleça um ambiente
de atuação independente em relação ao controle da companhia566.
Esta estratégia legal de minimização da “captura” do Conselho
Fiscal não é, entretanto, suficiente para que se possa ter neste órgão
o centro de monitoramento do processo decisório corporativo567, o
que leva à previsão de instrumentos externos de monitoramento,
como os que se passa a abordar.

3 – A fiscalização externa e os custos de agência no


contexto das sociedades anônimas

Como já salientado, a lei acionária brasileira não restringe ao


Conselho Fiscal o acesso às informações destinadas ao monitora-
mento da legalidade das decisões implementadas pelos adminis-
tradores da companhia. Há também, paralelamente à fiscalização

566 É positivamente relevante a previsão legal das hipóteses de eleição em separado para
determinados grupos de acionistas e, também, o reconhecimento da competência individual
de atuação para os conselheiros fiscais, de modo a evitar ou minimizar o risco de “captura”
ora abordada.
567 Embora não expressamente referido na Lei n. 6.404/76, tem se tornado comum a criação
estatutária do chamado “Comitê de Auditoria”, órgão obrigatório para as companhias sujeitas
às regras americanas de transparência (consolidadas pela denomina Sarbanne Oxley Act, ou
simplesmente SOX), mas facultativo no regime jurídico nacional.
Embora muito semelhante ao Conselho Fiscal, o Comitê de Auditoria teria, em tese, uma
função menos fiscalizadora e mais de aconselhamento, orientação e monitoramento dos
administradores, de forma a prevenir – e não reprimir – ilegalidades na gestão empresarial.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 493


interna, a previsão de fiscalização externa, a ser cumprida por audi-
tores independentes.
A sujeição dos atos dos administradores à fiscalização externa
é obrigatória nas companhias abertas (art. 177, par. 3º da Lei da Lei
n. 6.404/76) e facultativa para as companhias fechadas e demais
sociedades, que a ela se submeterão caso assim previsto em seus
atos constitutivos.
A fiscalização externa justifica-se por dois principais funda-
mentos: primeiro porque o Conselho Fiscal funciona apenas interna
corporis e, neste sentido, pouca relevância e utilidade tem sua atu-
ação em relação à terceiros interessados na companhia (os stake-
holders); segundo porque o Conselho Fiscal pode, como apontado,
muitas vezes ter comprometida sua necessária habilitação técnica
ou independência em relação ao controlador e administradores, re-
velando-se, deste modo, muitas vezes insuficiente no exercício do
monitoramento sobre os gestores do capital social568.
A Resolução N. 23/2021 da Comissão de Valores Mobiliários
disciplina a atividade dos auditores independentes de companhias
abertas, os quais estão sujeitos a prévio registro na própria CVM e
são divididos em duas categorias; o Auditor Independente Pessoa
Natural (AIPN) e o Auditor Independente Pessoa Jurídica (AIPJ), o
primeiro entendido como o profissional de nível superior em conta-
bilidade (art. 3º e 5º) e o segundo como a sociedade profissional da
área (art. 4º a 6º).
A exigência de que as companhias abertas submetam suas
atividades a auditoria externa lança novas luzes sobre os custos de
agência e monitoramento uma vez que, com a publicação das con-
clusões destas auditorias externas, o acesso a tais informações é
fraqueado a todo o mercado.
Permite-se, desta forma, o monitoramento direto do processo
decisório na companhia – e de seus resultados - por terceiros nela
568 Segundo José Edwaldo Tavares Borba, “mesmo com a possiblidade de participação dos
minoritários, o conselho fiscal permanece desprestigiado, sendo frequente a adoção da regra
do funcionamento não permanente”. BORBA. José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14ª
edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2015. Pg. 421.

494 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


interessados, mas alheios à sua estrutura organizacional, como em-
pregados e credores, por exemplo.
Assim como o Conselho Fiscal pode ser instrumento de redu-
ção dos custos de agência entre controladores e não controladores,
sócios e administradores, a divulgação do resultado das auditorias
externas se apresenta como forma de reduzir o conflito externo de
agência - entre a companhia e terceiros nela interessados - já que
permite ao terceiro (stakeholder) saber se a companhia não está,
por exemplo, expropriando seus interesses em favor dos sócios ao
estabelecer, por exemplo, uma política de dividendos incompatível
com a situação econômica da sociedade.569
Além disso, a auditoria externa obrigatória das companhias
abertas dá aos acionistas minoritários o poder de conhecer o resul-
tado econômico, financeiro e patrimonial das decisões do contro-
lador, reduzindo também seus custos de monitoramento, além de
possibilitar aos acionistas - controladores ou não – instrumento de
fiscalização da atuação dos gestores. Reduzidos são, portanto, tan-
to os custos de agência internos quanto os externos da companhia.
Há, porém, duas significativas ponderações a serem feitas so-
bre a atuação das auditorias externas como instrumento de monito-
ramento do processo decisório nas companhias.
A primeira diz respeito aos custos de tais auditorias para a pró-
pria companhia e, indiretamente, para seus sócios. O dispêndio de
dinheiro para o pagamento dos serviços de auditoria externo é sig-
nificativo e somente se justifica se efetivamente resultar em maior
eficiência no processo de monitoramento de decisões na compa-
nhia.
Além disso, a Res. CVM n. 23/21 estabelece que auditores in-
dependentes não podem, como se verifica também no Conselho
Fiscal, adentrar à análise de conveniência ou oportunidade dos atos

569 É nesse sentido o radical, mas ilustrativo exemplo de Fischer Black. “There is no easier
way for a company to escape the burden of a debt than to pay out all of its assets in the form of
a dividend, and leave the creditors holding an empty shell. BLACK. Fischer. The dividend puzzle.
The journal of portfolio management. 1976. Pg. 9. Cópia eletrônica em http://web.cenet.org.cn/
upfile/46880.pdf. Site consultado em 22/08/2012.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 495


dos administradores da companhia, devendo, ao contrário, restrin-
gir sua atuação aos dados contábeis da sociedade e sua adequa-
ção às normas pertinentes (art. 22 a 25).
Portanto, o monitoramento do processo decisório, sob o pris-
made sua conveniência e oportunidade, não é eficientemente im-
plementado nem com a atuação do Conselho Fiscal, nem com a
exigência de auditoria externa nas companhias, já que ambos os
mecanismos de fiscalização não têm competência para monitorar
as decisões corporativas sob estes aspectos.

4 – Os padrões normativos de transparência dos


negócios da companhia e seus reflexos sobre os
conflitos de agência

O termo disclosure está relacionado, em Direito Societário, à


divulgação ampla de qualquer ato ou negócio praticado pela com-
panhia e que possa influir sobre o direito ou interesse juridicamente
protegido de alguém que não tenha participado do processo de
formação, ratificação ou implementação daquele ato ou negócio.
Desta forma, qualquer decisão implementada pela compa-
nhia deve ser divulgada se, direta ou indiretamente, refletir sobre
o interesse de terceiros, desde que tal interesse seja, na hipótese,
objeto de tutela normativa. Assim se, por exemplo, uma decisão da
companhia reflete, ainda que potencialmente, sobre o direito de
seus credores, esta deve ser divulgada para que estes últimos pos-
sam, diante desta informação, decidir como se conduzir570.
A transparência dos negócios praticados pela companhia (dis-
closure) pode ainda ser corretamente relacionada à redução dos
570 “A partir do momento em que o mercado tem acesso à realidade e às informações
fidedignas de uma determinada sociedade, há uma minoração dos riscos envolvidos para se
investir nela. Assim, o acesso às informações é importante para conferir credibilidade e permitir
que os agentes possam fazer escolhas racionais”. CARVALHO. Mário Tavernard Martins de. O
papel e o dever da CVM na fiscalização das informações prestadas por companhias abertas
de economia mista. (In:) CASTRO. Moema Augusta Soares de. (Coord:) Sociedades Anônimas e
Mercado de Capitais – Estudos em Homenagem ao Prof. Osmar Brina Corrêa Lima. Ed. Quartier
Latin. São Paulo. 2011. Pg. 108.

496 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


custos do processo de monitoramento de decisões e respectivos
conflitos de agência.
Com os padrões normativos de transparência, o objetivo é
publicizar informações sobre o processo de formação, ratificação
e implementação de decisões na companhia, de forma a permi-
tir tanto aos sócios quanto a terceiros interessados a avaliação de
tais atos não apenas sob o espectro da legalidade, mas também da
conveniência e oportunidade dos mesmos.
A assimetria informacional entre a companhia e terceiros nela
interessados – conflito externo de agência – é reduzida pela pu-
blicização das decisões implementadas pela sociedade, as quais
poderão ser analisadas não apenas sob o aspecto de sua legalida-
de – como o fazem o Conselho Fiscal e a auditoria externa – mas
também sob o aspecto de sua conveniência e oportunidade para
o interesse dos terceiros interessados na decisão implementada571.
As regras sobre transparência das companhias podem ser
divididas em duas grandes modalidades: a voluntária (voluntary
disclosure) e a obrigatória (mandatory disclosure), conforme sejam
decorrentes de previsão estatutária ou deliberação da Assembleia
Geral de Acionistas (voluntária) ou de exigência normativa expressa
(obrigatória)572.
Dentro deste contexto, tem-se novamente que o direito brasi-
leiro adota solução intermediária entre os dois sistemas ao estabe-
lecer, como regra, a transparência obrigatória para as companhias
abertas e a transparência voluntária para as companhias fechadas e
demais modelos societários573

571 LEUZ. Christian. VERRECCHIA. Robert. E. The Economic Consequences of Increased


Disclosure. http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=171975. Site consultado em
02/12/15.
572 Tal sistematização da matéria é, com algumas peculiaridades que não chegam a invalidar
a conclusão, a regra em países de fortes mercados de valores mobiliários, como os EUA,
Alemanha e Reino Unido. CAHN. Andreas. DONALD. David C. Comparative Company Law.
Cambridge. Pg. 513 e segs.
573 Pode-se mesmo afirmar que a completa transparência é uma exigência legal para as
companhias abertas e uma faculdade para as companhias fechadas e demais modelos
societários, estando aí uma das significativas diferenças no regime jurídico de umas e outras.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 497


A referência normativa fundamental sobre os padrões de
transparência obrigatória impostos às companhias brasileiras está
positivada no art. 157 da Lei n. 6.404/76 e na Resolução n. 44/2021
da Comissão de Valores Mobiliários, cujo artigo 2º exige que as
companhias abertas divulguem aquilo que chama e define como
“ato ou fato relevante”574.
Embora a regra da transparência obrigatória prevaleça para as
companhias abertas, resta lembrar que, no contexto do atual mer-
cado acionário brasileiro, há níveis diferentes de transparência obri-
gatória para os atos das companhias abertas.
Tais padrões de transparência são estabelecidos como requi-
sito de admissão das ações da companhia à negociação no chama-
do Novo Mercado da Bolsa de Valores, em seus diferentes níveis.
Quanto mais a companhia avança nos diferentes níveis deste Novo
Mercado, mais se tornam rígidas e detalhadas as regras de transpa-
rência de suas atividades e deliberações.
Assim, a obrigatoriedade da transparência existe para as com-
panhias abertas, mas há, mesmo aqui, certo grau de voluntarieda-
de, na medida em que é a companhia que decide qual o nível de
transparência que vai oferecer ao mercado575.
Por outro lado, nenhum destes níveis de transparência obri-
gatória é, quanto à sua amplitude, absoluto, pois há hipóteses (art.
157 da Lei n. 6.404/76) em que a própria legislação prevê o poder/
dever de sigilo, além de outras em que a comunicação basta ser
574 Resolução 44/2021 CVM: Art. 2º: Considera-se relevante, para os efeitos desta Instrução,
qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos
de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-
administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus
negócios que possa influir de modo ponderável: I - na cotação dos valores mobiliários de
emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; II - na decisão dos investidores de
comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; III - na decisão dos investidores de
exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela
companhia ou a eles referenciados.
575 “O Novo Mercado é um segmento de listagem de títulos na Bolsa destinado à negociação
de ações emitidas por empresas que se comprometem, voluntariamente, com a adoção de boas
práticas de governança corporativa e disclosure adicional, em relação ao que é normalmente
exigido pela legislação”. FORTUNA. Eduardo. Mercado Financeiro. 19ª edição. Ed. Qualitymark.
Rio de Janeiro. 2014. Pg. 645.

498 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


feita a determinada entidade reguladora, como o Banco Central ou
a própria Comissão de Valores Mobiliários.
Assim, a transparência obrigatória legalmente imposta às
companhias abertas – consistente na divulgação de informações
relevantes – vem para, ao menos em princípio, preencher uma das
lacunas deixada pelas outras formas de monitoramento do pro-
cesso decisório, já que permite ao mercado e aos acionistas tomar
conhecimento amplo dos atos do controlador e administradores e
avaliá-los não apenas sob o aspecto da legalidade mas também
sob o prisma de sua conveniência e oportunidade.
Por outro lado, a simples divulgação ampla e irrestrita de in-
formações legalmente consideradas relevantes muitas vezes não
se mostra suficiente como mecanismo de transparência, pois tam-
bém neste caso há que se considerar os custos nos quais incorre o
investidor para dissecar e extrair a essência das informações divul-
gadas.
O que se pretende salientar é que não basta simplesmente
presumir que, por ter acesso a uma quantidade imensa de informa-
ções sobre o funcionamento da companhia, o potencial investidor
terá, com isso, reduzida sua assimetria informacional.
Esta redução efetivamente depende de uma correta análise e
interpretação das informações disponíveis, o que certamente exige
custos inerentes à obtenção das ferramentas técnicas capazes de
dissecar tais dados.
Assim, aquele investidor que, por formação ou contratação,
disponha de recursos técnicos para refinar a informação que lhe é
divulgada pelo mercado certamente estará em vantagem compe-
titiva sobre os demais.
Ressalte-se, porém, que esta vantagem competitiva é, ao
contrário de outros casos de assimetria informacional – como o insi-
der trading – lícita. O investidor que arca com os custos de interpre-
tação das informações divulgadas pela companhia deve também,
por consequência, internalizar os ganhos, os quais consistirão na

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 499


capacidade de fazer, ao menos em tese, investimentos de melhor
qualidade.

5 – Os custos e benefícios da transparência compulsória


nas companhias brasileiras: uma análise sob as
perspectivas micro e macroeconômica

Os custos e benefícios decorrentes da transparência obriga-


tória exigida das companhias abertas brasileiras podem ser anali-
sados tanto sob uma perspectiva “microeconômica” – centrada na
própria companhia – quanto sob o ponto de vista “macroeconômi-
co”, que remete ao mercado de valores mobiliários como um todo.576
Para a companhia – perspectiva microeconômica - a transpa-
rência obrigatória implica em redução da assimetria informacional
existente entre o potencial investidor e o objeto do investimento,
este último representado pelos valores mobiliários por ela emitidos
em mercado primário577.
Assim, a divulgação ampla das “informações relevantes” per-
mite ao investidor mensurar, com menor custo, a qualidade das
operações da companhia, seu valor no mercado e também, claro, o
valor de suas ações.
Este efeito da transparência obrigatória é, para a companhia,
positivo, pois permite que o investidor conheça e avalie, com me-
nor custo, o processo de formação, ratificação e implementação de
decisões e possa, em consequência, direcionar seus investimentos
para os valores mobiliários melhor avaliados. A transparência obri-

576 LEUZ. Christian. WYSOCKI. Peter. Economic consequences of financial reporting and
disclosure regulation: a review and suggestions for future research. Disponível em: http://
ssrn.com/abstract=1105398. Site consultado em 24/08/2012. BUSHMAN. Robert. M.
SMITH. Abbie J. Transparency, Financial Accounting Information and Corporate Governance.
EconomicPolicyReview.N.65.2003.Disponívelem:http://www.newyorkfed.org/research/
epr/03v09n1/0304bush.pdf. Site consultado em 14/11/2105.
577 LEUZ. Christian. SCHRAND. Catherine. Disclosure and the cost of capital: evidence from
firm’s responses to the Enron shock. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w14897. Site
consultado em 12/04/2014.

500 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


gatória é, portanto, elemento de redução do custo do capital e de
atração de novos sócios para a companhia que a realiza.
A transparência obrigatória, ao expor de forma efetiva o pro-
cesso decisório e as atividades da companhia, deixa-a mais exposta
ao mercado e provoca maior potencial de atração de investidores,
na medida em que seus resultados forem economicamente inte-
ressantes578.
A transparência obrigatória funciona também como elemento
de redução da assimetria informacional entre o acionista minoritário
e o controlador da companhia pois permite obter, a menor custo,
informação sobre a legalidade, conveniência e oportunidade das
decisões implementadas.
Sob o aspecto dos custos microeconômicos da transparência
obrigatória, o primeiro e mais evidente deles diz respeito à neces-
sidade de manutenção e pagamento dos profissionais habilitados a
fornecer tais informações ao mercado.
Como qualquer relação econômica, o grau de transparên-
cia obrigatória aplicado a uma companhia aberta também tem
um “ponto ótimo” ou “ponto de equilíbrio”. No caso, este ponto de
equilíbrio precisa conciliar a necessidade de ampla informação ao
mercado e aos acionistas com a preocupação em se evitar custos
desnecessários com a produção destas informações e sua disponi-
bilização579.

578 O grau de transparência do processo decisório e o valor de mercado da companhia são


diretamente proporcionais, ou seja: quanto maior for a qualidade e quantidade de informações
divulgadas pela companhia, maior será a sua credibilidade no mercado e, por consequência,
maior valorização terão seus valores mobiliários. É o que aponta estudo específico sobre o
tema, efetuado no contexto das companhias latino-americanas. (SILVA. Wesley Mendes da.
ALVES. Luiz Alberto de Lira. The voluntary disclosure of financial information on the internet and
the firm value effect in companies across Latin America. Disponível em: http://ssrn.com. 493805.
Site consultado em 23/04/2015). Apesar disso, não se pode simplificar o tema considerando
que apenas o grau de transparência seja suficiente para aumentar o valor de mercado de
uma companhia.
579 Isso significa que um aumento na rigidez das regras de transparência obrigatória só se
justifica se o custo marginal imposto por esse aumento no grau de transparência obrigatória
for inferior ao ganho marginal - para a companhia e/ou para o mercado - em termos de
redução de assimetria informacional.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 501


Outra ordem de custos que a companhia sujeita à transparên-
cia obrigatória precisa suportar refere-se à possibilidade de uso das
informações divulgadas não apenas pelos sócios – atuais ou poten-
ciais - mas por concorrentes, agências reguladoras, sindicatos de
empregados e autoridades fiscais. A obediência às regras de trans-
parência converte-se então em exposição da companhia a ataques
de concorrentes ou demandas de diversas naturezas.
A redução desta externalidade negativa se dá através de nor-
mas que estabeleçam a chamada transparência recíproca (recipro-
cal disclosure), de forma a obrigar que todas as companhias em
situações similares se submetam ao mesmo nível de abertura de
suas informações580.
A regra da transparência obrigatória das companhias abertas
é, sob uma perspectiva econômica, grande geradora de externali-
dades positivas e negativas, na medida que seus custos e benefícios
extrapolam os agentes econômicos nela diretamente envolvidos.
Isso significa que os custos e benefícios econômicos das re-
gras de transparência obrigatória do processo decisório das com-
panhias abertas não estão exclusivamente concentrados na pessoa
jurídica que a estas regras se submete ou em seus sócios e admi-
nistradores.
Se parte dos custos e benefícios das regras de transparência
obrigatória são absorvidos não pela companhia, seus sócios ou ad-
ministradores, mas pelo mercado, é possível fazer-se uma análise
que se pode chamar de “macroeconômica” destas regras de trans-
parência, ao focar-se em tais externalidades.
Uma primeira externalidade positiva gerada pela regra da
transparência obrigatória das companhias abertas está novamen-
te em torno da redução de assimetria informacional, mas agora no
que tange às operações em mercado secundário.

580 EASTERNBROOK. Frank H. FISCHEL. Daniel R. The corporate contract. (in:) BEBCHUK.
Lucien Arye. (Coord) Corporate Law and Economic Analysis. Cambridge University Press. NYC.
2005. Pg. 203.

502 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Com as regras de transparência obrigatória, o investidor tem
acesso mais fácil e barato a informações relevantes sobre as ativi-
dades das companhias objeto de investimento. Isto torna as nego-
ciações em mercado secundário mais eficientes, pois o custo de
obtenção destas informações não será embutido no preço de ne-
gociação das ações.
Tal conclusão decorre também da premissa de que o investi-
dor com poucas informações sobre a companhia tende ou a embu-
tir no preço de negociação o risco dessa assimetria de informações
ou a negociar menos no mercado acionário, comprometendo a li-
quidez dos papéis.
Assim, a transparência ampla de informações sobre os pro-
cessos de formação, implementação e monitoramento de decisões
permite formação mais adequada do preço dos valores mobiliários
no mercado acionário, além de funcionar como fator de incentivo ao
investimento em tais documentos.
Além disso, as regras de transparência obrigatória permitem
mais eficiência na seleção entre “bons” e “maus” investimentos ao
reduzir, para o investidor, o preço da comparação entre as ativida-
des de diferentes companhias, sejam elas concorrentes ou não.
Esta redução no custo de comparação entre os valores mobi-
liários de várias companhias naturalmente direciona os investidores
para as mais eficientes e estabelece, entre elas, uma espécie de
“concorrência” pela qualidade das informações e atração de inves-
tidores.
Outra externalidade positiva decorrente das regras de trans-
parência obrigatória está no fato de que as demais companhias, em
especial as concorrentes, podem usam as informações divulgadas
para tomar suas próprias decisões, sejam estas últimas acerca de
suas atividades ou sobre a concorrente divulgadora da informação.
Mesmo companhias que não sejam concorrentes daquela re-
alizadora da divulgação de informações podem aproveitar-se desta
transparência para, por exemplo, alinhar seu próprio modelo deci-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 503


sório ou produtivo em questões referentes a regras internas de go-
vernança, tecnologia ou organização dos fatores de produção.
Uma externalidade negativa decorrente da transparência
obrigatória está no fato de que os custos de cumprimento destas
normas funcionam como inibidores ou barreiras de entrada de no-
vas companhias no mercado de valores mobiliários.
Com rígidas exigências de transparência obrigatória, muitas
companhias acabam por optar em permanecer alheias à captação
pública de capital, o que reduz o número de opções para o investi-
dor e limita suas escolhas e boas opções de investimento.

504 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XV
Relações e estruturas jurídicas entre duas ou mais
sociedades: parcerias e concentração empresarial

1 - Origem e conceituação das parcerias empresariais


ou Joint Ventures

A maior parte dos institutos que compõem o Direito Empre-


sarial resulta não de criações legislativas, elaboradas a partir de
estudos teóricos, mas de práticas reiteradamente adotadas pelos
agentes da atividade econômica.
O Direito Comercial/Empresarial e seus principais elementos
são de origem consuetudinária, surgindo e se desenvolvendo emi-
nentemente a partir de usos e costumes, inicialmente adotados pe-
los antigos comerciantes e posteriormente normatizados.
A evolução histórica das Joint Ventures não é exceção a esta
regra. Como típico instituto mercantil, também elas são resultado
de práticas que, de forma gradual e crescente, vêm recebendo re-
gulamentação específica.581
Muito em virtude de sua origem essencialmente consuetudi-
nária, a operação de Joint Venture – ou parceria empresarial – acaba
por ter, entre a doutrina, significado bastante amplo, o que permite
sua classificação segundo diferentes critérios.582

581 BAPTISTA. Luiz O e DURAND-BARTHEZ. Pascal. Les associations d’enterprises (joint


ventures) dans le commerce international. 24 ëme édition, FEC, 1991. GARCEZ. José Maria
Rossani. Curso de Direito Internacional Privado. 1a edição. Edição Revista Forense. Rio de
Janeiro. 1999. Pg. 214.
582 Para José Maria Rossani Garcéz trata-se [a Joint Venture] de “(...) uma forma de associação
ou método de cooperação entre empresas independentes, que resolvem atingir um determinado
objetivo, a venture, o negócio especulativo ou a aventura em comum aglutinando seus esforços,
capitais, experiência e tecnologia.(GARCEZ. José Maria Rossani. Curso... ob. cit. Pg. 214). Maristela
Basso considera que “Joint Venture corresponde a uma forma ou método de cooperação entre
empresas independentes, denominado em outros países de sociedade de sociedades, filial
comum, associação de empresas, etc.” (BASSO. Maristela. Joint Ventures - Manual Prático das
Associações empresariais. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre. 1998. Pg. 41).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 505


Há, entretanto, certos aspectos que, com segurança, pode-
-se afirmar sejam inerentes à caracterização da relação de parceria
empresarial. São eles: a mútua integração de recursos patrimoniais
ou esforços, a intenção de empreender uma mesma atividade em
conjunto e, por óbvio, a existência de dois ou mais agentes econô-
micos583 juridicamente independentes.
Joint Venture é, portanto, todo vínculo jurídico estabelecido
entre dois ou mais agentes econômicos com o objetivo de, me-
diante a combinação de esforços e de recursos financeiros, realizar
uma determinada atividade, negócio ou empreendimento comum
(empresa). Em síntese, são parcerias empresariais, termo que, aliás,
passa-se a empregar.

2 - Espécies

No direito brasileiro, os agentes econômicos que pretendam


se unir para realizar em conjunto determinada atividade encon-
trarão três instrumentos jurídicos para fazê-lo, quais sejam: a so-
ciedade personificada, o contrato típico ou, por fim, um acordo de
vontades atípico, no qual poderão os contratantes fixar, dentro de
determinados requisitos e consequências, seus termos de execu-
ção e efeitos.584
583 O termo “agentes econômicos” abarca tanto empresários individuais quanto as
sociedades empresárias, simples ou mesmo outras pessoas jurídicas de direito privado –
como fundações e associações – e de Direito Público. Isto porque, em princípio, todas estas
modalidades de sujeitos de direito estão aptos a participar de parcerias empresariais.
Entidades “sem finalidades lucrativas” – ou seja, que não podem distribuir os lucros advindos
de suas operações – e aquelas reguladas pelo Direito Público estão, claro, sujeitas a tutelas
e restrições, o que, entretanto, não lhes veda a opção de atuar por meio dos instrumentos
jurídicos ora analisados.
O mesmo se pode dizer de alguns entes despersonificados, como os fundos de investimento,
que também desempenham papel importante em certas estruturas jurídicas de parcerias
empresariais.
584 José Augusto Q. L. Engrácia Antunes aborda a questão assinalando que o assunto sofre
similar tratamento na generalidade dos ordenamentos: “O termo joint-venture generalizou-
se na prática internacional dos negócios para designar um amplíssimo sector de acordos
comerciais entre empresas, vocacionados à realização das mais variadas formas de colaboração
e inter-relação econômica. Tais acordos podem possuir uma natureza puramente contratual
(‘unincorporated joint venture’, ‘contrato de consórcio’) ou dar inversamente origem à criação de

506 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Quando os interessados em realizar o empreendimento co-
mum se valem de uma sociedade personificada para efetivar este
vínculo, há a criação de uma Joint Venture ou parceria empresarial
denominada corporativa, personalizada ou personificada.
Por outro lado, quando os partícipes se vinculam por meio de
um contrato - típico ou não - também haverá agrupamento de es-
forços e recursos para a consecução da atividade comum, ou seja,
há a constituição de uma joint venture ou parceria empresarial, que,
nesta hipótese, é chamada de contratual, despersonificada ou des-
personalizada.
Deste modo, sempre que dois ou mais agentes econômicos
acordam e disciplinam mútua associação de capitais e recursos
com o objetivo de realizar um projeto ou atividade comum haverá
Joint Venture ou parceria empresarial.
Se o instrumento jurídico escolhido pelas partes for a criação
de uma sociedade personificada, haverá uma joint venture ou parce-
ria empresarial dita personalizada ou personificada.
Quando o instrumento jurídico adotado for um contrato tipi-
ficado em lei, haverá uma joint venture despersonalizada típica ou,
como se prefere, um contrato de parceria empresarial típico.
Por fim, se o instrumento jurídico escolhido pelas partes for
um contrato atípico - no qual os contratantes terão liberdade para
fixar as cláusulas dele integrantes – estar-se-á diante de um contra-
to de parceria empresarial atípico.
Nos três casos estão presentes os elementos característicos
da joint venture ou parceria empresarial, a saber: combinação de es-
forços ou recursos e objetivo comum. Só se altera o instrumento do
qual os contratantes se valem para se associar e, via de consequên-
cia, o regime jurídico desta relação.

um novo ente societário (‘incorporated joint venture’). ANTUNES. José Augusto Q. L. Engrácia. Os
Grupos de Sociedades - Estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária. Livraria
Almedina. Coimbra. 1993. Pg. 71.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 507


Se a espécie de vínculo jurídico adotado for a criação de uma
sociedade personificada, obviamente esta relação se subordinará
ao regime do tipo societário escolhido.
Quando o meio de vinculação empregado for um contrato de
parceria empresarial típico, por sua vez, a joint venture constituída se
sujeitará ao regime jurídico próprio deste contrato.
Por fim, se o vínculo entre os participantes da atividade co-
mum se operar por meio de um contrato de parceria empresarial
atípico, as partes terão ampla liberdade para disciplinar sua forma
de execução e efeitos, estando, porém, sujeitas a obedecer aos re-
quisitos para a validade dos atos jurídicos em geral (art. 104 do Có-
digo Civil).
Portanto, nas parcerias empresariais efetuadas por meio de
sociedades personificadas ou de contratos típicos, tem-se que a
própria legislação se encarrega de expressamente disciplinar a for-
ma e os efeitos do vínculo firmado.
Os contratos de parceria empresarial atípicos são, a seu turno,
desprovidos de regime legal expresso e específico. Advêm da cria-
tividade e das necessidades dos agentes econômicos, as quais não
são inteiramente supridas pelas formas típicas ou personalizadas
de parcerias empresariais.
O direito brasileiro confere tipicidade a determinadas espé-
cies de Joint Ventures - como os consórcios e os grupos de direito,
ambos regulados pela Lei n. 6.404/76 - ao mesmo tempo que deixa
à liberdade contratual dos agentes econômicos o poder de criar -
obedecidos os requisitos gerais de validade dos atos jurídicos - ou-
tras formas similares de relacionamento585.

585 Os contratos de parceria empresarial atípicos são, em sua essência, contratos de


sociedade e, dada a inexistência de tipificação ou personificação, devem ser considerados
modalidades de sociedades em comum (art. 986 a 990 do Código Civil). Sobre o tema:
PIMENTA. Eduardo Goulart. Contratos de Parceria Empresarial. Ed. Juarez de Oliveira. São
Paulo. 2005.

508 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


3 – Contratos de parceria empresarial típicos: Os grupos
de sociedades na Lei n. 6.404/76

Os grupos de sociedades podem ser classificados segundo


dois critérios principais que os dividem, por um lado, em grupos “de
fato” ou “de direito” e, por outro, em grupos de subordinação ou de
coordenação.
São Grupos “de direito” aqueles que têm sua constituição for-
malizada segundo os artigos 265 e seguintes da Lei n. 6.404/76,
os quais passam também a reger as relações entre as sociedades
participantes do grupo e deste com terceiros em geral.
Os grupos “de fato”, por sua vez, abdicam da tipificação, nos
termos disciplinados pela Lei n. 6.404/76, e optam por permanecer
sob o manto de uma relação contratual atípica entre as sociedades
dele integrantes. Os grupos “de fato” são, portanto, exemplos de
contratos de parceria empresarial atípicos.
Tem-se, desta forma, que a distinção entre as duas modalida-
des de grupos de sociedades é baseada na utilização ou não do re-
gime jurídico disciplinado na Lei n. 6.404/76. Os grupos “de direito”
são formalizados segundo tal regime, ao contrário dos grupos “de
fato”. Em ambas as modalidades a relação entre as sociedades par-
ticipantes é, materialmente, muito próxima. O que varia é a adoção
ou não da forma típica prevista na Lei n. 6.404/76.
Já os grupos denominados “de subordinação” são aqueles nos
quais uma ou mais entre as participantes detém, sobre as outras, o
poder de controle societário. Assim, nesta modalidade há uma so-
ciedade – a sociedade de comando – que é controladora das outras
participantes, as quais são denominadas “sociedades filiadas”.
Os grupos “de coordenação” são, ao contrário e por exclusão,
aqueles em que não há relação de controle societário entre as so-
ciedades participantes. Nos grupos de coordenação inexiste a so-
ciedade de comando.586
586 “Dizem-se grupos de subordinação (ou grupos verticais) aqueles em que as várias
sociedades agrupadas se encontram entre si numa relação hierárquica de dependência:

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 509


Classificar um grupo como “de fato” ou “de direito” e “de su-
bordinação” ou “coordenação” é, portanto, enquadrá-lo em dois di-
ferentes critérios, os quais são, como se pode perceber, comple-
mentares.
Por assumir forma atípica, os grupos “de fato” podem ou não
ser constituídos a partir de uma relação de controle entre as parti-
cipantes. Deste modo, os grupos “de fato” podem ser, sob o outro
critério, enquadrados como “de subordinação” ou “coordenação”. O
mesmo não ocorre, como se demonstrará, no caso dos grupos “de
direito” tipificados na Lei n. 6.404/76.

4 – Os grupos de direito na Lei n. 6.404/76

O empreendimento ou atividade a ser implementada pelas


sociedades que constituem um Grupo “de direito” pode ser, nos ter-
mos do art. 265 caput da Lei n. 6.404/76, a combinação de esforços
e recursos para a realização dos respectivos objetos ou a participa-
ção em atividades ou empreendimentos comuns.
A formação do Grupo “de direito” é, no primeiro dos casos aci-
ma, instrumento para que as sociedades dele integrantes poten-
cializem a realização da atividade econômica que constitui o objeto
social de cada uma delas.
Não há uma atividade comum e sim uma mútua integração e
negociação para permitir que cada uma das filiadas e a sociedade
de comando possam melhor realizar seus próprios e respectivos
objetos. É, por exemplo, o caso em que as sociedades participantes
do grupo são integrantes da mesma cadeia produtiva e, por isso,
são respectivamente fornecedoras e clientes umas das outras.
Diferente é o grupo de sociedades no qual as integrantes se
propõem a participar, em conjunto, de atividades ou empreendi-
aqui a direcção económica unitária coexiste com a simultânea situação de interdependência
das sociedades. Inversamente, os grupos de coordenação (também chamados paritários ou
horizontais) são aqueles nos quais as várias sociedades agrupadas, encontrando-se embora
submetidas a uma direcção económica unitária, se conservam umas independentes das outras.”
ANTUNES. José Augusto Q. L. Engrácia. Os Grupos de Sociedades... ob. cit. Pg. 53

510 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mento. Aqui se apresenta, com clareza, a verdadeira “sociedade
entre sociedades”, já que as participantes do grupo vão - de forma
análoga ao que ocorre com os sócios de uma sociedade - se obri-
gar a combinar seus esforços e recursos para o desenvolvimento
desta atividade ou empreendimento comum.
As sociedades filiadas e a sociedade de comando passam, a
partir da constituição do Grupo, a se dedicar ao objeto social pre-
visto contratual ou estatutariamente para cada uma delas e, além
disso, paralelamente voltam seus esforços e patrimônios também
para o empreendimento ou atividade que irão exercer junto com as
demais sociedades componentes do Grupo.
Segundo o texto do art. 265, §. 1o da Lei 6. 404/76, nos Grupos
“de direito” a sociedade de comando deve exercer, direta ou indire-
tamente - e de modo permanente - o controle sobre as sociedades
filiadas, como titular de direitos de sócio ou mediante acordo com
outros sócios.
Portanto, nos Grupos “de direito” o regime da Lei n. 6.404/76
exige que a sociedade de comando seja controladora das socie-
dades filiadas. Os grupos “de direito” são, deste modo, necessaria-
mente grupos “de subordinação”. 587
O mesmo art. 265 § 1o exige ainda que, em um Grupo “de direi-
to”, a sociedade de comando seja brasileira, matéria pormenorizada
no par. único do art. 269 da mesma Lei n. 6.404/76.
Segundo esta norma, o grupo de sociedades considera-se
sob controle brasileiro se a sua sociedade de comando é contro-
lada por pessoas naturais residentes ou domiciliadas no Brasil, por
pessoas jurídicas de direito público interno ou por sociedade ou so-
ciedades que estejam - diretamente ou não - sob o controle das
pessoas referidas nas duas hipóteses anteriores.
Ocorre, porém, que a disciplina legal do tema não se esgota
aí, pois o art. 60 da antiga Lei das Sociedades Anônimas - Dec. Lei

587 O citado dispositivo legal exige que a sociedade de comando seja, em relação às
filiadas, “titular de direitos de sócio ou acionista”, o que exclui as hipóteses de controle sem a
participação no capital da sociedade controlada - o chamado “controle externo”.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 511


2. 627/40, mantido em vigor, nesta parte, pelo art. 300 da Lei n. 6.
404/76 - e o art. 1. 126 do Código Civil brasileiro caracterizam como
nacionais as sociedades organizadas em conformidade com a lei
brasileira e que tenham no país a sede de sua administração.
Portanto, a sociedade de comando em um Grupo “de direi-
to” deve cumulativamente atender tanto aos requisitos do art. 1.126
do Código Civil quanto aqueles estipulados pelo art. 269 da Lei n.
6.404/76588.
Cada sociedade integrante de um Grupo “de direito” é uma
pessoa jurídica autônoma. Porém, o grupo por elas constituído não
adquire tal configuração, ou seja, o Grupo “de direito” não é uma
pessoa jurídica diferente e autônoma em relação às sociedades
dele integrantes.
Consequência desta regra é que o patrimônio e as obrigações
de cada uma das sociedades pertencentes ao Grupo permanecem
separados. Não há bens, créditos ou débitos do Grupo de Socieda-
des, e sim de cada uma de suas integrantes.589
Se é pacífico que as sociedades de um Grupo “de direito”
mantêm apartados seus respectivos patrimônios, o mesmo nem
sempre ocorrerá em relação à responsabilidade pelos danos que
as operações comuns possam ocasionar. É mesmo possível que
todas as sociedades integrantes do Grupo venham a responder so-
lidariamente pelos prejuízos advindos de operações praticadas no
interesse do conjunto.
588 “Determina o § 1o da norma ora em estudo [art. 265 da Lei n. 6. 404/76], combinado
com o inciso VII e parágrafo único do art. 269, que a sociedade controladora das sociedades
integrantes do grupo deve ser brasileira. Ademais, a sociedade controladora deve ter como
controladores acionistas residentes no país (pessoas físicas) ou sociedades que, por sua vez,
sejam também controladas por residentes. Desse modo, a exigência de nacionalidade brasileira
da controladora é fundada no regime de registro e de sede no Brasil. E, quanto aos seus
controladores, prevalece o regime do domicílio das pessoas físicas, que diretamente ou através
de outras sociedades, a controlam, e não de nacionalidade. Basta assim, que a companhia
controladora seja constituída segundo as normas das leis brasileiras e tenha a sua sede e
administração no País. Aplica-se à hipótese o art. 60 do Decreto-Lei 2. 627, de 1940, que vige
por força do art. 300 da Lei n. 6. 404, de 1976. Ademais, o § 1o reafirma o conceito de controle
constante no art. 116.” CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas.
Vol. IV. Tomo II. Ed. Saraiva. São Paulo. 1998. P. 271.
589 MARTINS. Fran. Comentários...Vol. III. Ob. Cit. P. 432.

512 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A constituição de um Grupo “de direito” se faz mediante um
documento denominado Convenção Grupal – ou Convenção de
Grupo - e também pelo atendimento aos diversos requisitos legais
aqui tratados. Além disso, esta Convenção deverá ser arquivada no
Órgão Público de Registro de Empresas Mercantis (Junta Comer-
cial), o que lhe confere publicidade.
Assim, a Convenção de Grupo pode – e deve – estipular as
regras quanto à responsabilidade patrimonial de cada uma das so-
ciedades integrantes pelos eventuais prejuízos ocasionados a ter-
ceiros em virtude das atividades conjuntas.
Estas regras da Convenção de Grupo são oponíveis a terceiros,
tendo em vista a tipificação legal sobre a validade desta cláusula e,
também, a previsão de sua publicação por meio de arquivamento
na Junta Comercial, o lhe confere publicidade e oponibilidade.590
Vale, portanto, o que a Convenção de Grupo dispuser a res-
peito da responsabilidade das sociedades integrantes pela indeni-
zação aos prejuízos causados a terceiros. Se houver previsão de so-
lidariedade passiva, a mesma poderá ser invocada por quem quer
que seja. Havendo disciplina diversa, também ela será oponível a
terceiros, uma vez que, repita-se, é cláusula tipificada em lei e do-
tada de publicidade.
Se a Convenção de Grupo for omissa a respeito do tema, a
solidariedade passiva entre as sociedades dele integrantes será
cabível, com base no art. 942 do Código Civil, se o ato ou negócio
jurídico for praticado no interesse e de acordo com a Convenção do
Grupo.

590 “Não se referiu a lei à responsabilidade que a sociedade de comando ou as sociedades


filiadas possam ter por prejuízos causados a terceiros em virtude de operação que interesse
ao grupo. Na realidade, a lei dá a cada sociedade, seja à de comando seja às filiadas, uma
responsabilidade própria pelos atos praticados pelas mesmas como pessoas jurídicas
independentes que são. Uma solidariedade pela reparação dos prejuízos decorrentes de atos
realizados pelas sociedades participantes do grupo será admissível, nos termos da lei, apenas
por via contratual, isto é, se a convenção do grupo declarar que existe tal solidariedade, dentro
da faculdade que tem de determinar ‘as condições de participação das diversas sociedades’,
conforme estatui o item III do art. 269, tratando dos requisitos da convenção de grupo.” MARTINS.
Fran. Comentários ...Vol. III. Ob. Cit. P. 437/438.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 513


Nesta hipótese, todas as sociedades participantes do Grupo
devem ser consideradas autoras de tal ato ou negócio e, em caso
de prejuízo a terceiros, responder solidariamente pela reparação se,
como salientado, inexistente disposição sobre o tema na Conven-
ção Grupal591.
Por outro lado, é necessário também cogitar sobre a possibi-
lidade de prejuízos que um ou mais atos praticados no interesse do
Grupo possam causar a alguma das sociedades dele componentes.
Fala-se aqui da hipótese na qual a participação no Grupo venha a
acarretar danos a uma ou mais das sociedades que dele faça parte.
A legislação não oferece, ao menos expressamente, qualquer
solução para o problema, mas é preciso recordar que, nos Grupos
“de direito”, o controle sobre as sociedades filiadas é exercido, direta
ou indiretamente, pela sociedade de comando.
É, portanto, claro que a decisão sobre a adesão à Convenção
de Grupo fica atrelada não à vontade dos acionistas minoritários das
sociedades filiadas, mas ao controlador delas, que, como se vê, é a
sociedade de comando do Grupo.
Desta forma, se a sociedade de comando aprova uma Con-
venção de Grupo lesiva aos interesses de uma ou mais entre as
sociedades filiadas, estará ela agindo com abuso de controle, o que
lhe acarreta responsabilização nas formas e termos dos art. 116 e
117 da Lei n. 6. 404/76592.
Ainda no plano dos prejuízos que as operações do grupo pos-
sam causar – e da responsabilidade pela indenização dos mesmos
- há a discussão sobre os chamados sócios “minoritários externos”.

591 Há na doutrina o entendimento de que a solidariedade passiva entre as sociedades


integrantes de um Grupo “de direito” decorre diretamente do citado artigo do Código Civil,
independente do que disponha a Convenção de Grupo. Neste sentido veja-se, por exemplo:
TEIXEIRA. Egberto Lacerda e GUERREIRO. Luis Alexandre Tavares. Das sociedades Anônimas
no Direito Brasileiro. Vol. II. Ed. J. Bushatsky. São Paulo. 1979. Pg. 776.
592 O art. 117, alínea c, da Lei do anonimato elenca, como modalidade de abuso de poder por
parte do acionista controlador, o ato de adotar decisão que não tenha por fim o interesse da
companhia.

514 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


José Miguel Embid Irujo escreveu, em 1987, monografia sobre
o tema593, que acabou por despertar a atenção da doutrina nacional,
em especial de Philomeno José da Costa594 e Osmar Brina Corrêa-
-Lima595.
O acionista - ou melhor, o sócio - minoritário externo pode ser
conceituado, nos Grupos “de direito”, como o sócio minoritário das
sociedades filiadas, que, como se sabe, estão em posição de subor-
dinação (controle) perante a sociedade de comando.
Embora seja inegável a situação de inferioridade na qual se
encontram estes sócios, não contam eles com tutela legal específi-
ca, o que deixa o assunto sem uma solução satisfatória.596
Dentre os aspectos anteriormente analisados, quatro deles
podem estar - e quase sempre estarão - presentes tanto nos Gru-
pos “de fato” quanto nos “de direito”.
As considerações feitas sobre o objeto do grupo, a nacionali-
dade da sociedade de comando, o controle sobre as sociedades fi-
liadas e a manutenção da personalidade jurídica das integrantes se
aplicam a ambos os tipos, havendo apenas a necessidade de lem-
brar que, em relação aos Grupos de fato, não há obrigatoriedade no
preenchimento de tais requisitos, contrariamente ao que ocorre em
relação aos Grupos de direito.
Portanto, a distinção entre estas duas modalidades de Grupos
de Sociedades está – excluída a questão da denominação597, que
é de menor importância - essencialmente na existência ou não da
Convenção de Grupo, documento que serve como elemento dis-
ciplinador das relações entre as sociedades integrantes do Grupo
593 IRUJO. José Miguel Embid. Grupos de Sociedades y Acionistas Minoritários (La tutela de la
Minoria en Situaciones de Dependencia Societária y Grupo). E. Ministerio de la Justicia. Madrid.
1987.
594 COSTA. Philomeno José da. Revista de Direito Mercantil. Vol. 78. São Paulo. Abril/junho
1990.
595 CORRÊA-LIMA. Osmar Brina. O Acionista Minoritário no Direito Brasileiro. Ed. Forense. Rio
de Janeiro. 1995. Pg. 125 e segs.
596 CORRÊA-LIMA. Osmar Brina. O Acionista Minoritário... ob. Cit. Pg. 129
597 Art. 267 da Lei n. 6.404/76: O grupo de sociedades terá designação de que constarão as
palavras “grupo de sociedades” ou “grupo”.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 515


(função interna corporis) e, ao mesmo tempo, se presta a dar publi-
cidade à existência e aos termos da união, tornando-a oponível a
terceiros (função externa corporis).
É este documento (cujo conteúdo mínimo obrigatório encon-
tra-se fixado pelo art. 269 da Lei n. 6.404/76) que formaliza e tipifica
a constituição do Grupo “de direito”, além de estipular as linhas ge-
rais e condições de sua atuação. Sua aprovação pelos sócios está
condicionada às formalidades e demais requisitos necessários à al-
teração do contrato social ou do estatuto598, facultando-se ainda,
aos dissidentes nesta votação, o direito de recesso (art. 270 caput e
parágrafo único da Lei n. 6.404/76).
Há quem entenda que a Convenção aqui tratada tem o efeito
de converter o Grupo de direito em uma sociedade não personifica-
da. É o que diz, por exemplo, a própria Exposição de Motivos da Lei
n. 6.404/76, ao referir-se ao seu art. 270.
Não se afigura pertinente esta pretensa equiparação entre os
Grupos de direito e as sociedades não personificadas.599 A tipifica-
ção do Grupo “de direito” existe exatamente para atribuir-lhe regime
jurídico próprio, apartado das relações de sociedade que, por não
se constituírem como pessoas jurídicas, são tratadas como moda-
lidades de Sociedade em Comum, regida pelos artigos 986 a 990
do Código Civil.
Note-se também que, nas Sociedades em Comum, os sócios
sempre responderão de forma ilimitada e solidária pelos débitos
contraídos em benefício do objeto social, uma vez que o contrato
entre existente entre tais sócios - seja verbal ou escrito - não aten-
de ao requisito legal apto a conferir-lhe validade perante terceiros,
consistente no seu devido registro (art. 985 do Código Civil).
Já em se tratando de Grupos de direito, os termos e limitações
de responsabilidade constantes da Convenção de Grupo firmada
598 A Assembleia Geral de Acionistas convocada para deliberar sobre alteração estatutária
deverá respeitar as formalidades específicas dos art. 135 e 136 da Lei n. 6.404/76. No caso
da alteração do contrato de sociedades limitadas, deve-se observar o quórum deliberativo
específico, fixado pelos artigos 1.071, V, c/c art. 1.076, I do Código Civil.
599 MARTINS. Fran. Comentários... vol. III. Ob. Cit. P. 438 - pé de página n. 12.

516 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


entre as sociedades serão, como explicitado, oponíveis a terceiros,
sendo cabível invocar-se a solidariedade passiva entre as diversas
componentes do Grupo somente quando a operação for realizada
em benefício de todas e não houver previsão em contrário na Con-
venção.

5 – Os Consórcios de empresas como parcerias


empresariais contratuais típicas

Trata-se o Consórcio de Empresas, disciplinado pelos art. 278


e 279 da Lei n. 6.404/76, de um contrato pelo qual duas ou mais
sociedades se obrigam a agrupar esforços e recursos para a realiza-
ção de um determinado empreendimento. É, em essência, também
uma modalidade de “sociedade entre sociedades”, mas com algu-
mas importantes peculiaridades.
O § 1o do art. 278 da Lei n. 6. 404/76 dispõe explicitamente que
o consórcio de empresas, enquanto joint venture ou parceria empre-
sarial meramente contratual, não dispõe de personalidade jurídica
própria e, em consequência, de capacidade para assumir direitos e/
ou obrigações.
Assim, o consórcio de empresas é uma modalidade de par-
ceria empresarial contratual, típica e despersonificada, na qual os
signatários têm a faculdade de dispor sobre sua responsabilidade
pelos débitos contraídos em prol do empreendimento comum.
A possibilidade de limitação da responsabilidade dos con-
tratantes é, na verdade, a grande diferença - e porque não dizer
mesmo vantagem - que o instituto típico do consórcio de empre-
sas apresenta em relação à generalidade dos contratos de parceria
empresarial atípicos, estes últimos modalidades de Sociedades em
Comum (art. 986 a 990 do Código Civil).
Ao dispor que “as companhias e quaisquer outras socieda-
des, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio (...)”
o caput do art. 278 da Lei n. 6. 404/76 limita às sociedades esta
forma de parceria empresarial, vedando, portanto, que empresários

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 517


individuais ou Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada
possam tomar parte neste tipo de contrato.
A Lei n. 6. 404/76 estabelece, em seu art. 279, os requisitos de
constituição válida dos consórcios de empresas. A inobservância de
um ou alguns deles retira a tipicidade do acordo firmado e, em con-
sequência, submete-o ao regime comum aplicável aos contratos
de parceria empresarial atípicos.
Como espécie típica de contrato plurilateral600 o consórcio ad-
mite - ainda que de forma potencial - a entrada e saída de membros
sem o comprometimento da relação entre os demais integrantes.
Segundo dispõe o art. 142, VIII da Lei n. 6.404/76, cumpre ao
Conselho de Administração a deliberação sobre a alienação de
bens integrantes do ativo permanente da sociedade, cabendo-lhe,
exatamente por isso, também a atribuição de aprovar os contratos
de consórcio de empresas nos quais o ente societário por ele repre-
sentado venha a figurar como partícipe (art. 279 da Lei n. 6.404/76).
Por se tratar de órgão administrativo obrigatório apenas para
as companhias abertas ou de capital autorizado (§ 3o, art. 138 da Lei
6. 404/76) as atribuições do Conselho de Administração, nas socie-
dades em que ele não esteja presente, são transferidas à Assem-
bleia Geral de acionistas, cabendo, nesta hipótese, a este órgão a
aprovação dos consórcios firmados pela sociedade601.
600 “O consórcio decorre de um contrato plurilateral firmado entre duas ou mais sociedades
com atividades afins e complementares, visando a agregar meios capazes de levá-las a
desenvolver atividades, pesquisas (consórcio operacional), ou capacitá-las a contratara com
terceiros a execução de determinados serviços, obras ou concessões (consórcio instrumental).
Trata-se de uma comunhão de interesses, de objetivos e de atividades que não poderiam ser
alcançados na esfera individual de cada empresa, e que, por isso, demanda a agregação de
recursos e de aptidões para conseguir um determinado objetivo, de natureza operacional ou
instrumental. Será operacional o objetivo quando a congregação visar ao exercício de específica
atividade empresarial, que será desenvolvida no âmbito das sociedades consorciadas. Será
instrumental quando o objetivo do consórcio for o de contratar, com terceiros, obras, serviços e
concessões.” CARVALHOSA. Modesto. Comentários... Vol. IV. Tomo II. Ob. Cit. Pg. 340. Em igual
sentido as opiniões de Pontes de Miranda (PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti.
Tratado de Direito Privado. Vol. LI. 2a edição. Ed. Borsoi. Rio de Janeiro. 1975 pg. 247) e Mauro
Rodrigues Penteado (PENTEADO. Mauro Rodrigues. Consórcio de Empresas. Ed. Pioneira. São
Paulo. 1979. Pg. 160/161).
601 O mesmo se aplica também no que se refere às sociedades regidas pelo Código Civil,
cuja participação em consórcio de empresas depende de aprovação pelos seus sócios.

518 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O texto do par. único do art. 279 da Lei n. 6. 404/76 determina
que “o contrato de consórcio e suas alterações serão arquivados no
Registro do Comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do
arquivamento ser publicada”.
Este requisito é de extrema importância pois é por seu inter-
médio que o contrato em questão adquire publicidade e, conse-
quentemente, validade perante terceiros.
Tamanha é a preocupação da lei com este aspecto que o dis-
positivo citado exige não apenas o arquivamento do instrumento
constitutivo do vínculo na Junta Comercial mas também sua publi-
cação, de modo a garantir (ao menos formalmente) seu conheci-
mento por terceiros em geral.
O desrespeito a esta formalidade fará com que o consórcio
em questão se configure em um contrato de associação empre-
sarial atípico, impedindo, obviamente, a oposição de seus termos
a terceiros, em especial no que se refere à limitação da responsa-
bilidade dos contratantes pelos débitos contrários em função do
empreendimento comum.

6 – Concentração empresarial: as operações de fusão e


incorporação no direito brasileiro

As sociedades empresárias propiciam o agrupamento do es-


forço pessoal e do capital de diversos indivíduos (os sócios) com
o objetivo de aumentar o potencial econômico da atividade a ser
exercida por eles.
Sociedades empresárias economicamente mais poderosas
têm maiores possibilidades de enfrentar a concorrência interna e
externa (traço característico de uma economia de livre concorrên-
cia e globalização), produzir bens ou serviços de melhor qualidade,
resistirem às eventuais instabilidades e crises econômicas e às pos-
síveis mudanças na política pública.
O que dizer, então, se há o agrupamento de sócios e patrimô-
nio de diversas sociedades empresárias em uma única, que pas-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 519


sa a exercer, com capacidade econômica redobrada, a empresa. A
concentração de sociedades é hoje um eficiente instrumento para,
através da união do patrimônio e dos sócios das diferentes pessoas
jurídicas, constituir organizações mais vigorosas e estáveis, econô-
mica e financeiramente aptas a enfrentar as variantes de mercado e
de política pública já apontadas.
Diferentemente do que se viu nas parcerias empresariais,
nos casos de fusão e incorporação de sociedades haverá a união
econômica e jurídica entre sociedades outrora independentes. Isto
significa que, após a operação, uma ou mais das sociedades envol-
vidas deixarão de existir e seus bens, direitos, obrigações e sócios
irão agregar-se à outra sociedade, aumentando seu patrimônio e
capacidade econômica.
Patrick A. Gaughan, em valioso trabalho sobre o tema, disserta
sobre as possíveis vantagens advindas de uma operação de con-
centração empresarial, ordenando-as em quatro grandes tópicos:
crescimento, sinergia, diversificação e motivos econômicos602:
O Crescimento refere-se ao aumento da própria capacidade
material e econômica do empreendimento, a qual se efetiva com a
aglutinação de novos bens, sócios e direitos, algo inerente às ope-
rações de fusão e incorporação aqui analisadas.603
Trata-se a Sinergia de um termo originalmente utilizado pelas
ciências naturais para nomear situações em que dois ou mais ele-
mentos químicos são combinados e, em função disso, acabam por
produzir um efeito muito maior do que aquele que isoladamente
seria alcançado.
Ao se valer do termo sinergia em matéria de concentração
empresarial, o objetivo do autor é salientar que tais operações são
usadas também como forma de agrupar empresas que se com-
602 GAUGHAN, Patrick A. Mergers, Acquisitions, and Corporate Restructurings. 3th ed. New
York: John Wiley & Sons, Inc, 2002. p. 111-164
603 “Companhias procurando expandir-se são confrontadas com uma escolha entre
crescimento interno e crescimento através de fusões e aquisições. Crescimento interno pode
ser um lento e incerto processo. Crescimento através de fusões e aquisições pode ser um
processo muito mais rápido, apesar de trazer suas próprias incertezas.” GAUGHAN, Patrick A.
Mergers, Acquisitions, and Corporate Restructurings… ob. Cit. p. 111. Tradução livre.

520 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


pletam mutuamente e que, uma vez combinadas, são capazes de
gerar efeitos muito mais significativos do que aqueles que geravam
isoladamente.604
A concentração empresarial naturalmente proporciona às so-
ciedades empresárias envolvidas a possibilidade de oferecer uma
gama maior de produtos ou serviços, com a consequente atuação
em mercados diferentes daqueles originalmente ocupados. Tal
efeito é identificado pelo termo Diversificação.605
Por fim, observa-se que a concentração empresarial é tam-
bém uma forma de aumentar o poder de influência dos agentes
econômicos envolvidos sobre o preço dos produtos ou serviços
oferecidos, a quantidade ofertada ou sobre a divisão do mercado
destes bens.606
Além destes, há vários outros elementos que justificam o
constante aumento no número de operações de concentração
de sociedades empresárias, seja através de fusões ou incorpora-
ções607: aumento na rentabilidade dos empreendimentos, redução
de ineficiências administrativas, aumento na capacidade de pesqui-
sa e desenvolvimento de novos produtos, aprimoramento na dis-

604 “Expressa simplificadamente, sinergia se refere ao fenômeno 2 + 2 = 5. Em fusões isto se


traduz pela habilidade de uma combinação de companhias ser mais lucrativa do que as partes
individuais das empresas que foram combinadas.” GAUGHAN, Patrick A. Mergers, Acquisitions,
and Corporate Restructurings… ob. Cit. p. 115. Tradução livre.
605 “Embora muitas companhias tenham lamentado suas experiências em diversificação,
outras podem sustentar terem ganho significativamente. Uma destas empresas é a General
Electric (GE). Ao contrário do que seu nome implica, a GE não mais é apenas uma companhia
de eletrônicos. Por meio de um padrão de aquisições e diversificações, a empresa se tornou
um conglomerado diversificado com operações em seguros, estações de televisão, plásticos,
equipamentos médicos e assim por diante.” GAUGHAN, Patrick A. Mergers, Acquisitions, and
Corporate Restructurings… ob. Cit. p. 123. Tradução livre.
606 Gaughan se refere então a integrações horizontais e verticais: “Integração horizontal se
refere ao aumento da porção do mercado e do poder no mercado que resulta de aquisições e
fusões de rivais. Integração vertical se refere a fusões ou aquisições de companhias que têm
entre si uma relação de comprador-vendedor.” GAUGHAN, Patrick A. Mergers, Acquisitions, and
Corporate Restructurings… ob. Cit. Pg. 36.
607 COSTA, Carlos Alexandre J. da. LUCINDA, Cláudio Ribeiro. Comportamento das firmas –
análise de mercado, In: SADDI, Jairo. (org.) Fusões e Aquisições: aspectos jurídicos e econômicos.
São Paulo: IOB, 2002. p. 106/107 GAUGHAN, Patrick A. Mergers, Acquisitions, and Corporate
Restructurings… Ob. Cit. Pg. 154-157

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 521


tribuição dos bens ou serviços oferecidos além - e principalmente
- de ganhos tributários608.
Cisão, incorporação, fusão e transformação de sociedades
empresárias são todas operações disciplinadas tanto pela Lei das
Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/76, art. 220 a 234) quanto pelo
Código Civil (art. 1.113 a 1.122).
A operação estará sujeita à disciplina do Código Civil quan-
do não envolver, seja antes ou depois de efetuada, a participação
de sociedade anônima609. Assim se, por exemplo, uma Socieda-
de Limitada for incorporada por outra do mesmo tipo, aplicam-se
à operação os artigos 1.113 a 1.122 do Código Civil de 2002. Já se
uma sociedade anônima for incorporada a uma sociedade limitada
- ou vice-versa - a operação será regida pelos dispositivos da Lei n.
6.404/76.
Embora haja duplicidade de regimes jurídicos, as operações
de incorporação e fusão são, em seus aspectos fundamentais, exa-
tamente as mesmas, tanto sob o ponto de vista do Código Civil de
2002, quanto da Lei n. 6.404/76. Tal similitude pode ser expressa-
mente observada a partir da definição que ambos os diplomas le-
gais trazem dos institutos em questão.
Segundo o art. 1.116 do Código Civil, “na incorporação, uma ou
várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em
todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma
estabelecida para os respectivos tipos”.
O art. 227 da Lei n. 6.404/76, por sua vez, caminha no mesmo
sentido, ao estipular que “a incorporação é a operação pela qual
uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede
em todos os direitos e obrigações”.
A mesma similitude – quase igualdade – se dá também quan-
do consultadas as definições que o Código Civil e a Lei n. 6.404/76
608 “Os problemas envolvendo incorporações, fusões e cisões são complexos e os aspectos
tributários assumem especial relevo. Já se disse que nessa matéria é o fiscalista quem comanda”.
CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2003. Pg. 473.
609 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil – Parte Especial: Do Direito de
Empresa... ob. cit. Pg. 522 e segs.

522 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


trazem da operação de fusão. Segundo o art. 1.119 do Código Civil,
“a fusão determina a extinção das sociedades que se unem para
formar sociedade nova, que a elas sucederá nos direitos e obriga-
ções”, enquanto o art. 228 da Lei n. 6.404/76 define-a como sen-
do “a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para
formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e
obrigações”.
Fusão e incorporação são, como visto, modalidades de con-
centração societária, tendo em vista que ao final da operação resta-
rá, em ambos os casos, um número menor de sociedades personi-
ficadas do que o existente anteriormente.
Além deste, outro importante ponto em comum entre estas
duas operações é o fato de que as sociedades resultantes tanto
de uma fusão quanto de uma incorporação obrigatoriamente res-
pondem, como sucessoras, por todas as obrigações assumidas não
apenas por si próprias, como também pelos débitos constituídos
em nome das sociedades incorporadas ou fusionadas610.
Apesar da sucessão obrigatória aqui mencionada, tanto o Có-
digo Civil (art. 1.122) quanto a Lei n. 6.404/76 (art. 232) garantem aos
credores das sociedades envolvidas na operação o direito de, em
determinado prazo, questionar judicialmente a fusão ou incorpora-
ção, sob a alegação de que seus direitos de crédito estejam com-
prometidos pela operação611.
Por outro lado, chama a atenção como característica funda-
mental da incorporação - e elemento distintivo em relação à fusão

610 Embora seja previsão ampla prevista tanto no Código Civil quanto na Lei n. 6.404/76, esta
sucessão obrigatória nas operações de concentração empresarial está também acolhida em
outros pontos da legislação, como na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT):
“Art. 10 - Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos
por seus empregados.”
“Art. 448 - A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os
contratos de trabalho dos respectivos empregados.”
611 É, por exemplo, a hipótese de uma sociedade que incorpore outra cujo passivo se mostre
relativamente alto. Considerando que os credores da sociedade incorporada agora passam
a ser credores da incorporadora, os titulares de crédito contra esta última estarão, com a
operação, sujeitos a ter esvaziado o patrimônio de seu devedor – a sociedade incorporadora
- pela adesão dos credores da incorporada.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 523


- o fato de que as sociedades objeto de incorporação (chamadas
sociedades incorporadas) deixam de existir após a operação, ces-
sando sua personalidade jurídica, ao contrário do que ocorre com
relação à incorporadora, que já existia antes da operação e agora
continuará sua empresa com novos sócios, bens, contratos, débitos
e créditos, oriundos das sociedades por ela incorporadas.
Denomina-se sociedades incorporadas aquelas que serão
absorvidas por outra, em uma operação de incorporação. O termo
absorção implica que as sociedades incorporadas deixarão de exis-
tir como entes personificados e que seus bens, sócios, obrigações
e créditos passarão à titularidade de outra sociedade – a incorpora-
dora - que irá sucedê-las.612
Em uma operação de fusão também ocorre, como se pode
ver dos textos legais assinalados, a absorção de uma ou mais so-
ciedades por outra. As sociedades que são absorvidas por outra,
em uma operação de fusão, são chamadas de sociedade fundidas
ou fusionadas, e esta absorção tem a mesma amplitude que numa
incorporação, implicando assim a integralidade de obrigações, cré-
ditos, sócios, contratos e bens.
A distinção fundamental entre uma operação de fusão e de
incorporação está na circunstância de que, na primeira delas, a pes-
soa jurídica que absorve as sociedades fusionadas é uma socieda-
de nova, constituída de fato e de direito no momento da realização
da operação.
Já na operação de incorporação, a sociedade incorporadora
(sucessora das incorporadas em todas as suas obrigações, débitos,
créditos, contratos e sócios) preexiste à operação, ou seja, é uma
sociedade que já se constituíra anteriormente e que, deste modo,
já contava com seus próprios sócios, bens, débitos e créditos, mas

612 “A incorporação consiste, portanto, na absorção de uma sociedade por outra, com os
seguintes efeitos: a unificação dos corpos sociais das duas sociedades: os sócios da incorporada
passam a ser sócios da incorporadora: a unificação de patrimônios: o patrimônio da incorporada
é consolidado no da incorporadora, que a sucede universalmente; e a extinção da incorporada,
sem liquidação: apenas a pessoa jurídica incorporadora continua a existir após a operação”.
LAMY FILHO, Alfredo. BULHÕES PEDREIRA, José Luis. A Lei das S A ... Ob. Cit. Pg. 560

524 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


passa, a partir da incorporação, a funcionar acrescida dos bens, dé-
bitos, créditos, contratos e sócios das incorporadas.
A realização de uma operação de fusão ou incorporação pas-
sa necessariamente pela prévia aprovação dos sócios de todas as
sociedades envolvidas, sendo matéria de competência privativa
da Assembleia Geral de Acionistas (art. 122, VIII da Lei n. 6.404/76)
e, nas sociedades limitadas, ato obrigatoriamente condicionado à
aprovação dos sócios (art. 1.071, VI do Código Civil).
Caso a operação esteja sob a disciplina do Código Civil, as so-
ciedades a serem incorporadas devem submeter aos seus sócios,
em assembleia ou reunião convocada para este fim, as bases da
operação e o projeto de reforma dos atos constitutivos da socieda-
de incorporadora (art. 1.117).
Já os sócios da sociedade incorporadora irão deliberar sobre
tais documentos e, também, sobre a nomeação dos peritos respon-
sáveis pela avaliação do patrimônio líquido das sociedades incor-
poradas (art. 1.117 par. 2º)613.
Aprovadas tais medidas, em assembleias ou reuniões de só-
cios especialmente convocadas para este fim614, cumprirá apenas a
averbação da extinção das sociedades incorporadas junto ao órgão
público no qual estavam registradas (art. 1.118).
No caso de incorporação ou fusão que envolva uma ou mais
sociedades por ações, aplicam-se os dispositivos da Lei n. 6.404/76,
que regem a matéria com algumas particularidades, embora tam-
bém aqui a exigência de aprovação pela Assembleia Geral de Acio-
nistas permaneça como condição essencial à validade da operação.
Nas regras da Lei n. 6.404/76, uma operação de fusão ou in-
corporação tem seus termos inicialmente formalizados em um do-
cumento denominado Protocolo, cujo conteúdo está pormenoriza-
damente elencado pelo art. 224 da Lei n. 6.404/76.
613 Segundo o art. 1.076, I do Código Civil, o quórum de aprovação, em uma sociedade
limitada, da operação de fusão ou incorporação será de, no mínimo, 75% (setenta e cinco por
cento) do capital social.
614 Os sócios quotistas que votarem contra a realização da fusão ou incorporação terão
direito ao recesso societário (art. 1.077 do Código Civil).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 525


Este documento será firmado pelos administradores ou só-
cios das sociedades envolvidas na operação e, em síntese, deverá
descrever, com o máximo detalhamento possível, as condições e
consequências, para todas as sociedades e sócios envolvidos, da
operação a ser realizada. Estas condições e consequências passam
precipuamente por dois elementos básicos.
O primeiro deles é uma adequada avaliação do patrimônio
das sociedades envolvidas na operação, com a descrição detalha-
da dos elementos ativos e passivos que comporão o patrimônio das
sociedades resultantes da operação, bem como o critério de avalia-
ção a ser empregado.
A decisão pela realização ou não da fusão ou incorporação
passa inegavelmente pela informação sobre o estado patrimonial
das sociedades envolvidas. Uma sociedade não deve se fundir ou
incorporar sem ter o máximo de informação sobre as condições pa-
trimoniais de todas as envolvidas na operação, o que só será pos-
sível com o emprego de eficientes meios de inventário e avaliação
contábil e financeira615, ou seja, com o adequado procedimento de
due diligence.
O outro aspecto fundamental a ser detalhadamente trata-
do no Protocolo é a repartição do capital social entre os acionistas
da sociedade resultante da operação de fusão ou incorporação. O
ponto central desta discussão é estabelecer as bases de conversão
dos direitos dos sócios, ou seja, qual o percentual de cada sócio no
capital da sociedade resultante da fusão ou incorporação, conside-

615 “Na perspectiva da aquisição da empresa, desconsiderar o processo de auditoria legal é,


na nossa opinião, um erro negocial clamoroso. A falta de um bom exercício de auditoria legal
reflecte-se logo numa primeira fase de estruturação de planificação de investimento, que será
certamente deficiente por falta de informação, originará uma significativa limitação na discussão
dos aspectos essenciais do contrato – amiúde, o preço – e potenciará, em geral, imperfeições e
incompletudes no conteúdo do contrato de compra e venda das participações.
Com efeito, antes que seja tomada a decisão de investir numa empresa, o potencial comprador
de parte ou totalidade das participações sociais não pode deixar de cuidar de saber qual o
‘conteúdo’ da mesma.” ROLDÃO. Nuno Moura. TEIXEIRA. Ana Guedes. O processo de Auditoria
Legal. (IN) CÂMARA. Paulo. (coord.). Aquisição de Empresas. Coimbra Editora. Lisboa. 2010. Pg.
109.

526 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


rando o patrimônio das envolvidas na operação e o percentual de
cada sócio nas incorporadas, incorporadoras e fusionadas616.
A aprovação do Protocolo – e, por consequência, da operação
– pela Assembleia Geral de Acionistas é precedida por um procedi-
mento denominado justificação (art. 225 da Lei n. 6.404/76), no qual
serão expostos aos acionistas os motivos ou fins da operação e o
interesse da companhia na sua realização; as ações que os acionis-
tas preferenciais receberão, bem como as razões para as eventuais
modificações propostas em seus direitos e a composição, após a
operação, segundo espécies e classes das ações, do capital das
companhias que deverão emitir ações em substituição às incorpo-
radas.
No ato de justificação será também divulgado o valor do re-
embolso – cujo cálculo é e realizado na forma do art. 45 da Lei n.
6.404/76 - a que terão direito os acionistas que, na Assembleia Ge-
ral, votarem contrariamente à realização da fusão ou incorporação,
posto tratarem-se de deliberações que geram, para os dissidentes,
o direito de recesso (art. 137 c/c art. 230 da Lei n. 6.404/76).
Uma particular situação de incorporação de sociedade é
aquela na qual a incorporadora já era, anteriormente à operação,
controladora da sociedade a ser incorporada. A Lei n. 6.404/76 cui-
da desta hipótese em seu art. 264, sob o título “incorporação de
companhia controlada”.
Como visto, a incorporação ou fusão de sociedade é matéria a
ser obrigatoriamente aprovada, na forma legal, pelos sócios de to-
das as sociedades envolvidas. A principal peculiaridade – e fonte de
preocupação – da incorporação de companhia controlada está no

616 É o que se encontra expresso no art. 224, I da Lei n. 6.404/76, que obriga o Protocolo
a prever “o número, espécie e classe das ações que serão atribuídas em substituição dos
direitos de sócio que se extinguirão e os critérios utilizados para determinar as relações de
substituição”.
Assim, é necessário descrever no Protocolo quantas ações das sociedades incorporadas
correspondem a uma ação da incorporadora ou, no caso da fusão, quantas ações de cada
uma das sociedades fusionadas corresponderão a uma ação da sociedade resultante da
fusão, além dos critérios contábeis adotados para a fixação desta relação.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 527


fato de que a incorporadora é também controladora da sociedade
a ser incorporada.
Assim, ter-se-á, de fato, que a aprovação da operação depen-
derá exclusivamente da vontade da incorporadora, havendo o evi-
dente risco de que a operação de incorporação seja aprovada em
termos excessivamente prejudiciais para os acionistas minoritários
da sociedade incorporada e demasiadamente vantajosos para os
interesses da sociedade incorporadora617.
De forma a minimizar o risco apontado, o art. 264 da Lei n.
6.404/76 estabelece regras ainda mais rígidas e detalhadas para a
disciplina dos dois principais pontos de preocupação em uma ope-
ração de fusão ou incorporação, quais sejam: a forma de avaliação
do patrimônio das sociedades envolvidas na operação e os critérios
a serem empregados na conversão de ações da incorporada em
ações da incorporadora.

7 – Cisão e transformação de sociedades

A cisão é tecnicamente a operação contrária à fusão e à incor-


poração, sendo então justamente considerada forma de descon-
centração societária. Ao final da cisão haverá certamente um núme-
ro maior de sociedades do que o existente anteriormente.
Este instituto também se encontra disciplinado tanto pela Lei
n. 6.404/76 quanto pelo Código Civil, mas, ao contrário das moda-
lidades de concentração analisadas acima, só encontra expressa
definição legal no art. 229 da Lei n. 6.404/76, sem correspondente
direto no Código Civil de 2002.
É o texto do art. 229 da Lei n.6.404/76: A cisão é a operação
pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para
uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes,
617 Há mesmo quem tenha cogitado vetar à sociedade controladora o voto na Assembleia
Geral de Acionistas que delibere a incorporação, por ela, de sua controlada. Esta não é, de
fato, uma solução eficiente, pois na prática estabeleceria uma inadmissível presunção de má-
fé. LAMY FILHO. Alfredo. Incorporação de subsidiária – avaliação de ações – abuso de direito
– recesso. Temas de S.A – exposições e pareceres. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2007.

528 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu
patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.
Há duas modalidades fundamentais de cisão societária: a par-
cial e a total.
A cisão total ocorre quando a sociedade cindida deixa de exis-
tir após a operação. Todos os seus débitos, créditos, contratos, só-
cios e bens são transferidos às sociedades resultantes da operação,
não havendo outra solução para ela que não a extinção.
Na cisão parcial, porém, a sociedade cindida continua a existir
após a operação, tendo em vista que apenas uma parcela de seus
débitos, créditos, contratos, sócios e bens é transferida para as ou-
tras sociedades envolvidas na operação.
É possível perceber, do ponto de vista esquemático, que a ci-
são total é o fenômeno societário contrário à fusão, enquanto a ci-
são parcial, por sua vez, é a operação inversa da incorporação.
A cisão normalmente resulta da necessidade de descentrali-
zação administrativa ou patrimonial, com o propósito de otimizar a
capacidade produtiva da empresa exercida618, motivo pelo qual jus-
tifica-se plenamente sua referência como instrumento de rearranjo
administrativo e/ou patrimonial.
Tal desmembramento se presta tanto para aprimorar a ges-
tão do empreendimento, que passaria a ter maior agilidade, como
também para dividir os credores, empregados e bens entre as no-
vas sociedades criadas, além de muitas vezes permitir um melhor
gerenciamento do passivo – especialmente de natureza tributária
– das pessoas jurídicas envolvidas.
O objetivo da cisão pode ser também simplesmente separar
os sócios de uma mesma sociedade, os quais agora não mais pre-
tendem permanecer vinculados. A operação de cisão se mostra,
neste caso, alternativa à dissolução total ou parcial de sociedade,
principalmente no que se refere ao procedimento de apuração de
haveres.

618 CAMPOS NETTO, Ezequiel de Melo. Cisão das Sociedades Limitadas. Rio de Janeiro:
Forense, 2004. Pg. 8.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 529


Corolário fundamental da cisão é aquele segundo o qual a so-
ciedade ou sociedades resultantes da operação sucedem as even-
tualmente extintas na obrigação de honrar todos os seus débitos,
de maneira similar ao que ocorre na fusão e incorporação619.
O procedimento de cisão seguirá, na regência da Lei n.
6.404/76, as mesmas etapas fundamentais cabíveis nos casos de
fusão ou incorporação, quais sejam: elaboração do protocolo, justi-
ficação e sua aprovação pela Assembleia Geral de Acionistas, como
o necessário direito de recesso para os acionistas dissidentes620.
Transformação de sociedade é a operação pela qual a pessoa
jurídica altera seu tipo societário, com a consequente alteração em
seu regime jurídico (Lei n. 6.404/76 art. 220 e Código Civil, art. 1.113).
É mantida a mesma personalidade jurídica, obrigações, direitos e
sócios, mas agora sob a roupagem de outro modelo societário, re-
putado, na situação concreta, mais adequado aos interesses e ne-
cessidades dos envolvidos com o empreendimento.
Por óbvio, os atos jurídicos praticados anteriormente à trans-
formação continuam sujeitos ao regime jurídico do tipo societário
anterior. Assim se, por exemplo, uma sociedade de responsabilida-
de ilimitada para os seus sócios se torna uma sociedade anônima,
os direitos dos credores desta pessoa jurídica, se constituídos antes
da operação, continuam regidos pela legislação referente ao tipo
societário existente antes da transformação. 621

619 Veja-se neste sentido o par. 1o do art. 229 da Lei n. 6.404/76: (...) a sociedade que
absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações
relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem
parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios
líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados.
620 Em inexplicável orientação, o Código Civil brasileiro omitiu-se não só quanto à definição
da operação de cisão quanto em relação ao seu procedimento. Isto posto, afigura-se o mais
adequado empregar-se, por analogia, as regras da Lei n. 6.404/76, exceto no que tange ao
direito dos credores (art. 1.122 do Código Civil), matéria excepcionalmente cuidada de forma
expressa. GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de Empresa. Ed. Revista dos Tribunais.
São Paulo. Pg. 495.
621 “A operação de transformação compreende dois procedimentos diferentes, que podem
ser discernidos lógica e cronologicamente, e que a lei de sociedades por ações regula em
dispositivos distintos: a) a deliberação dos sócios da sociedade a ser transformada e b) os atos
necessários para que a sociedade passe a revestir a forma do novo tipo adotado”. LAMY FILHO,

530 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A operação de transformação de sociedade exige, para sua
realização, a aprovação unânime dos sócios da sociedade a ser
transformada, salvo se a operação – e seu respectivo quórum de
aprovação - estiverem previstos nos atos constitutivos da pessoa
jurídica (art. 221 da Lei n. 6.404/76 e art. 1.114 do Código Civil).
Uma vez aprovada, a transformação se formaliza com o cum-
primento de todos os requisitos legais necessários à constituição
e registro do tipo societário que resultará da operação (art. 1.113 do
Código Civil e art. 220 par. único da Lei n. 6.404/76).

8 – Unipessoalidade societária: incorporação de ações e


sociedade subsidiária integral no direito brasileiro

É possível classificar as situações de unipessoalidade socie-


tária, no direito brasileiro, conforme elas tenham ou não limite de
duração legalmente estabelecido. Neste sentido fala-se em uni-
pessoalidade societária com ou sem prazo determinado.
Há unipessoalidade societária com prazo determinado quan-
do a sociedade, embora constituída com pluralidade de integran-
tes, vê-se, ao longo de sua existência, contingencialmente reduzi-
da a um único sócio. Neste caso, tanto o Código Civil (art. 1033, IV)
quanto a Lei n. 6.404/76 (art. 206, I, d) admitem a unipessoalidade
pelo prazo improrrogável estabelecido em lei, de forma a permitir
que a sociedade restaure a pluripessoalidade antes que lhe seja
imposta a dissolução total.
Sob o termo “unipessoalidade sem prazo legal determinado”
abarca-se as modalidades de sociedade unipessoal em que não
há, na legislação, limitação temporal de tal circunstância, que pode
perdurar enquanto for conveniente ao seu sócio.
Entre as hipóteses de unipessoalidade societária, sem prazo
legal de duração, é possível dividi-las também em situações de
unipessoalidade originária ou superveniente, conforme a socieda-
de seja composta por um único sócio já no seu ato constitutivo ou
Alfredo; BULHÕES PEDREIRA. José Luis. A Lei das S. A ... ob. cit. Pg. 538/539

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 531


venha a assumir tal perfil como ocorrência superveniente à sua cria-
ção622

A Lei n. 13.874, de 2019, alterou o artigo 1.052 do Código Civil para admitir,
expressamente, a criação de sociedade limitada com apenas um sócio.

Relativiza-se, com esta regra, o caráter contratual da sociedade limitada, que


agora tem prevista a unipessoalidade sem prazo determinado como uma de
suas características.

Esta sociedade limitada unipessoal terá seu ato constitutivo redigido, no que for
compatível, com as mesmas cláusulas essenciais ao contrato social (art. 997 do
Código Civil).

Assim, sua administração será conferida à pessoa que a tenha constituído


ou a outro(s) por ela indicado(s) no seu ato constitutivo, ou em documento
separado. A cessão total ou parcial de quotas (por ato inter vivos ou causa mortis)
será regulada conforme a exclusiva vontade da pessoa que tenha instituído a
sociedade, bem como a alteração dos demais termos de sua constituição.
.
Em relação às sociedades anônimas, há três modalidades
de sociedade unipessoal, sem prazo determinado de duração: a
empresa pública, a Sociedade Anônima do Futebol (S.A.F, Lei n.
14.193/2021) e a sociedade subsidiária integral, sendo esta última,
portanto, o único exemplo de companhia unipessoal privada sem
prazo legalmente determinado de duração e sem restrição de ob-
jeto.
A sociedade subsidiária integral encontra-se expressamente
disciplinada em apenas três artigos da Lei n. 6.404/76 (art. 251 a
253), sendo relevante notar que tais dispositivos se limitam a cuidar
das particularidades que esta modalidade societária apresenta em
relação ao regime geral das demais companhias, peculiaridades
estas decorrentes de sua excepcional unipessoalidade.

622 José A. Engrácia Antunes distingue, neste aspecto, entre as situações de domínio total
originário e domínio total superveniente. Por domínio total original chama o autor a hipótese
da sociedade subsidiária integral que se constitui já nesta condição enquanto a situação de
domínio total superveniente configura-se quando ocorre a aquisição da totalidade do capital
social de uma sociedade já constituída por outra. (ANTUNES. José A. Engrácia. Os Grupos de
Sociedades. Livraria Almedina. Coimbra. 1993. Pgs. 709 e segs.)

532 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A primeira destas particularidades está já na forma de consti-
tuição. Estipula o art. 251 caput da Lei n. 6.404/76 que a sociedade
subsidiária integral somente se constitui através de escritura públi-
ca.
Já a integralização do capital social da subsidiária integral em
constituição far-se-á às custas do patrimônio da sociedade que a
constitui e que se tornará, a partir daí, sua controladora e única acio-
nista623. Como é regra em termos de sociedades, admite-se que a
integralização do capital social da subsidiária integral verifique-se
em dinheiro ou bens suscetíveis de avaliação patrimonial624.
Como já salientado, nem sempre a unipessoalidade da socie-
dade subsidiária integral é originária, ou seja, concomitante à sua
constituição. Ao contrário, admite expressamente a Lei n. 6.404.76
que uma sociedade originalmente pluripessoal converta-se, no de-
correr de suas atividades, à condição de sociedade subsidiária inte-
gral de outra625.
A conversão de sociedade anônima em sociedade subsidiária
integral é possibilidade expressamente admitida pelo par. 2º do art.
251 da Lei n. 6.404/76 e se realiza mediante a incorporação de suas
ações ao patrimônio da futura controladora.
É importante salientar que o instituto da incorporação de
ações não se confunde com a incorporação de sociedade, embora
guardem significativas semelhanças.

623 O art. 251 da Lei n. 6.404/76 exige que a sociedade controladora de subsidiária integral
seja brasileira. Sobre os critérios legais para a definição da nacionalidade de sociedade, há
que se observar tanto os dispositivos da própria lei n. 6.404/76 (art. 269) quanto do Código
Civil (art. 1.126).
624 O par. 1º do art. 251 da Lei n. 6.404/76 reitera que os bens eventualmente utilizados pela
controladora na integralização do capital social da subsidiária integral devem ser previamente
avaliados, na forma do art. 8º da mesma Lei n. 6.404/76.
625 “A lei brasileira, admitindo a existência da sociedade anônima tendo um só acionista,
permite que isso aconteça de duas maneiras: ou por constituição, por sociedade brasileira, de
uma sociedade anônima em que todas as ações pertençam à primeira, ou por conversão de
uma sociedade já existente em subsidiária integral, passando todas as ações a pertencer à
sociedade brasileira”.(MARTINS, Fran. Comentários à Lei das S.A. Vol. III. 2ª edição. Ed. Forense.
Rio de Janeiro. Pg. 315).

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 533


A incorporação de sociedade (art. 223 da Lei n. 6.404/76) re-
sulta na absorção de uma sociedade (sociedade incorporada) por
outra (sociedade incorporadora) e consequente extinção da perso-
nalidade jurídica da incorporada e sucessão de seus débitos, cré-
ditos, sócios e bens, que passarão a ser, todos, da sociedade incor-
poradora.
Na incorporação de ações não há extinção daquela sociedade
que tem a totalidade de suas ações adquiridas por outra. Ao con-
trário, ela permanece, agora na condição de sociedade subsidiária
integral, como sujeito de direitos e obrigações próprias, além de
manter autônomo seu patrimônio.
Incorporação de ações e incorporação de sociedade são, por-
tanto, institutos muito semelhantes e, assim como a fusão, são ins-
trumentos de concentração empresarial. A diferença fundamental
é que a incorporação de ações preserva a autonomia jurídica da
sociedade cujas ações são incorporadas, diferentemente do que se
verifica no caso da incorporação da sociedade. Quando se incorpora
ações – e, de resto, sempre que se cria uma sociedade subsidiária
integral - opta-se pela concentração empresarial sem, entretanto,
unificar as pessoas jurídicas das sociedades envolvidas.
O procedimento de incorporação de ações tem sua forma-
lização iniciada com a elaboração do Protocolo (art. 224 da Lei n.
6.404/76), documento que desempenha tal função, como se viu,
também nos casos de incorporação, fusão e cisão de sociedades.
O Protocolo, documento arquitetado pelos representantes le-
gais das sociedades abarcadas pela operação, tem a natureza de
pré-contrato no qual ficam estabelecidas, de modo definitivo, a for-
ma e os efeitos da operação em curso. Este documento será sub-
metido aos acionistas das sociedades partícipes da incorporação
de ações, para aprovação.626

626 CARVALHOSA. Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. IV, Tomo II, ob.
Cit. pg. 243. CORRÊA-LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. Pg.
435.

534 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Os antigos acionistas da sociedade que agora se transforma
em subsidiária integral passarão a ser acionistas da sociedade con-
troladora. Haverá, deste modo, aumento do capital da sociedade
controladora, pela adesão destes novos acionistas, aumento este
integralizado pelas ações da sociedade agora convertida em sub-
sidiária integral.
Se há apenas um acionista (a sociedade controladora), resta
descabida a presença, em sociedade subsidiária integral, do Con-
selho de Administração, que, além de eminentemente plural e co-
legiado, tem por função precípua aproximar o corpo de acionistas
do órgão executivo por excelência (a diretoria).
O mesmo se deve salientar com relação ao instituto da As-
sembleia Geral de Acionistas. Estipular a obrigatoriedade de cum-
primento das formalidades inerentes a este órgão em uma socieda-
de legalmente reduzida a um único acionista afigura-se descabido
e simples fonte de custos de transação.
As deliberações sobre as atividades da sociedade subsidiária
integral devem ser tomadas na Assembleia Geral de Acionistas de
sua controladora, sendo, na verdade, uma deliberação da pessoa
jurídica sócia única a ser implementada pelos diretores da subsidi-
ária integral627.
A gestão da sociedade subsidiária integral ficará reduzida à di-
retoria, cujo número de integrantes, competência e funcionamento
será definido nos estatutos da sociedade unipessoal.
O Conselho Fiscal, por sua vez, existe não apenas como ins-
trumento de proteção da minoria societária, mas também para zelar
pela legalidade das atividades dos administradores da sociedade

627 Embora salientando ser esta a orientação prevalecente também no direito norte americano
e no direito alemão, Modesto Carvalhosa diverge, ressaltando ser inadmissível conferir-se à
assembleia geral da sociedade controladora os poderes deliberativos sobre as atividades
da sociedade subsidiária integral.“Será, assim, a assembleia de um único sócio totalitária e
unânime, sendo sua função, portanto, atípica no que se refere a estabelecer o consenso a partir
da reunião de sócios que devem contribuir com suas opiniões para o surgimento da vontade
social.”(CARVALHOSA. Modesto. Comentários... Vol. IV. Tomo II. Ob. Cit. Pg. 136.)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 535


fiscalizada, razão pela qual deve existir também na sociedade sub-
sidiária integral628.

628 Waldírio Bulgarelli (O Conselho Fiscal nas Companhias brasileiras. Ed. Revista dos
Tribunais, 1988 pg. 127 e segs) e José Anchieta da Silva (Conselho Fiscal nas Sociedades
Anônimas Brasileiras. Ed. Del Rey. 2000. Pgs 50 e segs) vêem neste órgão a função precípua de
instrumento de proteção aos acionistas minoritários o que, de certa forma, leva à conclusão
de sua incompatibilidade com o instituto da sociedade unipessoal.

536 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XVI
Teoria da Empresa e relações intersocietárias: análise
econômica do Direito e concentração empresarial

1 – Concentração empresarial

A atividade empresarial e os agentes econômicos a ela dedi-


cados têm na busca constante pela eficiência na produção e distri-
buição de bens e serviços seu objetivo fundamental629. Em busca
deste objetivo, é natural que estes agentes econômicos empresa-
riais tenham na ação conjunta e colaborativa o caminho mais ade-
quado.
É possível perceber, se analisada a evolução histórica da ati-
vidade econômica em geral – e empresarial em particular - a cons-
tante tendência ao agrupamento dos agentes que nela atuem. Este
movimento se reflete sobre o ramo do conhecimento jurídico disci-
plinador dessas atividades: o Direito Empresarial.
Ao retomar seu crescimento, ainda durante a Idade Média, o
comércio – e o regime jurídico que posteriormente veio discipliná-
-lo – tinha como principal agente e referência a pessoa física, que
o praticava em seu próprio nome e com intuito lucrativo. Era, então,
a época do comerciante individual, que, de maneira ainda bastante
primitiva e local, realizava a intermediação entre o produtor e o con-
sumidor de bens móveis.
Restou claro para esses comerciantes, porém, que a reunião
de seus esforços e recursos financeiros com vistas à prática conjun-
ta de uma mesma atividade mercantil potencializava enormemente
os resultados obtidos. Desde então, o que se verifica é o constante
crescimento na utilização dos diversos e cada vez mais sofisticados
629 A empresa é, em essência, um modo de produção de bens e serviços, baseado na
organização dos denominados fatores de produção. Determinado agente econômico – o
empresário, nos termos do Código Civil – organiza capital, trabalho, matéria prima e tecnologia
para, com sua combinação, gerar bens ou serviços que serão negociados no mercado.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 537


tipos de sociedades, instrumentos jurídicos aptos a unir diversas
pessoas interessadas em agrupar seus esforços e capitais para a
prática da atividade econômica lucrativa.
A atividade mercantil, outrora centrada na figura do comer-
ciante individual, passou, a partir daí, a ter nas sociedades comer-
ciais seu principal agente, na medida que reúnem, sob uma mesma
pessoa jurídica, diversos outros sujeitos de direito.
O século XX marcou um terceiro estágio na evolução do fe-
nômeno concentracionista aqui salientado. Se os antigos comer-
ciantes individuais foram gradativamente substituídos pelas formas
societárias de organização empresarial, estas, por outro lado, têm
perdido importância para os diferentes arranjos de grupos de socie-
dades, os quais, a seu turno, nada mais são do que modalidades de
“sociedades entre sociedades” 630.
Novamente interessadas em reduzir custos, ampliar merca-
dos, produção, qualidade e, por consequência, também os lucros,
os entes societários hoje buscam incessantemente, associar-se a
outros, constituindo diferentes estruturas de grupos de sociedades.
Pode-se mesmo dizer que há uma terceira fase na evolução
– e concentração – dos entes produtivos. Se, na primeira delas, des-
tacava-se a figura do comerciante individual, na segunda estes se
agruparam em torno de sociedades mercantis, que agora, no ter-
ceiro momento, unem-se sob a forma das já citadas “sociedades
entre sociedades.”
Some-se a esse quadro a constatação de que os institutos
mercantis são, por natureza, essencialmente mutáveis - pois sujei-
tos às constantes alterações na realidade econômica por eles dis-
ciplinada – e será possível concluir que há grande interesse na aná-
lise das regras sobre as inúmeras modalidades de agrupamentos
entre sociedades empresárias.

630 “A tradicional e monolítica empresa societária dos primórdios do capitalismo industrial


começou progressivamente a dar lugar a uma nova e revolucionária forma organizativa, a
empresa de grupo; por outras palavras, a tradicional sociedade comercial individual vai dando
progressivamente lugar a grupos de sociedades.” (ENGRÁCIA ANTUNES. José A. Os Grupos de
Sociedades. Ob.Cit. Pg. 13).

538 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Por outro lado, constata-se que a concentração societária é
fundada em diferentes (e muitas vezes combinadas) razões de or-
dem econômica, financeira, gerencial, estratégica e mesmo social.
Trata-se de um fenômeno econômico que, em seus motivos e justi-
ficativas, muitas vezes escapa ao campo estritamente jurídico.
Cumpre à legislação, especialmente àquela reguladora da
atividade empresarial, o fundamental papel de oferecer e disciplinar
os instrumentos jurídicos adequados à concretização destas opera-
ções de concentração empresarial. Estes institutos, reguladores do
movimento de concentração empresarial, são desenvolvidos para
tentar fornecer os adequados balizamentos normativos aos diferen-
tes objetivos extrajurídicos inerentes ao movimento concentracio-
nista.
Dada a variabilidade de razões e formas econômicas de con-
centração empresarial, a gama destes instrumentos jurídicos de-
senvolvidos para abarcá-las é ampla e se mostra em constante mu-
tação em suas espécies e complexidade.
Note-se também que não há, aprioristicamente, um determi-
nado instituto de concentração empresarial que seja mais eficiente
do que os outros. Cada um deles foi desenvolvido em função de di-
ferentes variáveis e objetivos extrajurídicos inerentes ao movimento
concentracionista.
Assim, para cada operação de concentração empresarial con-
creta é necessário procurar, dentre os diferentes mecanismos ju-
rídicos a ela possivelmente aplicáveis, aquele que de forma mais
eficiente possa regular a operação, sempre se levando em conta as
variáveis e os objetivos específicos de cada situação concreta.
Esta observação, entretanto, não impede que se possa apon-
tar quais são os principais custos e benefícios inerentes à cada ins-
trumento jurídico destinado à concentração empresarial, de forma a
permitir que, diante da situação concreta, se possa optar pelo mais
adequado àquela realidade que se pretenda regular.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 539


2 – A Teoria da Empresa e sua relação com os institutos
reguladores das operações de concentração ou parceria
empresarial

Ao se analisar as atividades de produção ou distribuição de


bens e prestação de serviços e, principalmente, a forma pela qual
são implementadas no mercado, é possível constatar que elas en-
volvem e necessitam de uma complexa e organizada teia de re-
cursos economicamente mensuráveis, além de várias transações
juridicamente relevantes.
A divisão e especialização do trabalho humano fez com que
hoje seja praticamente impensável a produção de algum bem ou a
prestação de algum serviço efetuada, do seu início ao seu término,
por um único indivíduo, munido apenas dos recursos materiais de
sua propriedade.
Ainda que do ponto de vista fático seja possível que um bem
ou serviço seja inteiramente produzido ou distribuído exclusiva-
mente por uma pessoa e seus recursos materiais, esta operação
econômica se revelará certamente mais eficiente – ou seja, mais
lucrativa e menos dispendiosa - se efetuada a partir do esforço con-
junto e dos recursos materiais de diferentes pessoas, cada qual res-
ponsável por uma parte da cadeia produtiva.
Assim, a produção ou a distribuição de bens ou serviços é re-
alizada a partir do agrupamento de diferentes fatores que, somados
e organizados, permitem sejam implementadas tais atividades. A
Economia costuma se referir a tais elementos sob o termo insumos
ou fatores de produção.631

631 “Os recursos de produção são também denominados fatores de produção. Eles são
constituídos pelas dádivas da natureza (fator terra), pela população economicamente
mobilizável (fator trabalho), pelas diferentes categorias de capital (fator capital) e pelas
capacidades tecnológicas (fator tecnologia) e empresarial (fator empresarialidade ou
organizacão). (...) Do emprego desses cinco fatores de produção, de sua disponibilidade, de suas
qualificações ou capacitações, das formas de sua mobilização e de sua interação resultam
os padrões de atendimento das ilimitáveis necessidades individuais e sociais.” ROSSETTI, José
Paschoal. Introdução à Economia. 20a edição. São Paulo: Ed. Atlas, 2003. Pg 91.

540 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Constata-se que a geração de bens e serviços se realiza es-
sencialmente a partir do agrupamento dos recursos naturais e fi-
nanceiros disponíveis. A estes dois elementos deve- se acrescer a
mão-de-obra humana e também os conhecimentos tecnológicos
existentes, fatores aptos à otimização e transformação dos recursos
naturais e financeiros.
Inegável também que de pouco adiantaria a composição des-
tes quatro fatores produtivos se faltasse o elemento organização. É
a partir dele que os quatro outros fatores de produção são combi-
nados de forma harmônica e destinados, todos, a uma mesma fina-
lidade: a produção e circulação de bens ou prestação de serviços.632
A partir da ideia de insumos ou fatores de produção e de seu
emprego organizado é possível definir economicamente a empresa
(chamada também de capacidade empresarial ou empresarialida-
de): trata-se da aglutinação e organização dada aos fatores de pro-
dução para o exercício de uma atividade destinada à produção ou
distribuição de bens ou de serviços.
Neste sentido a empresa é a soma de recursos naturais (fator
terra), mão de obra (fator trabalho), dinheiro (fator capital) e conhe-
cimentos técnicos (fator tecnologia) para que, devidamente organi-
zados por uma pessoa física ou jurídica (o empresário), gerem bens
ou serviços.
É necessário observar, porém, que o agrupamento harmôni-
co dos fatores de produção ou insumos somente se implementa a
partir da realização, pelo empresário, de uma intrincada, mas orga-
633
nizada série de transações .
632 “Considera-se que, quando deixados entregues a si próprios, a terra, o trabalho e o capital
não produzem nada. Deve haver alguém, um indivíduo ou um grupo de pessoas, que organize
estes três factores de modo a que possa haver produção. Alguém tem que decidir: (a) o que
produzir (i.e., o tipo de bens ou serviços e a quantidade); (b) como produzir (i.e., os processos
de produção); (c) onde produzir (i.e., a localização da empresa). Aquele que toma as decisões e
assume os riscos consequentes designa-se por empresário [entrepreneur, no original. A língua
inglesa recorre ao termo francês]. O empresário é o indivíduo que se dedica à produção com
o objectivo de obter lucro”. STANLAKE, George Frederik. Introdução à Economia. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. Pg. 61.
633 O termo “transações” usualmente empregado em Economia corresponde àquilo que,
em Direito, se conhece por relação ou transação jurídica. “A transação jurídica é um ato pelo

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 541


Assim, para obter o insumo trabalho o empresário realiza tran-
sações - contratos - com as pessoas dispostas a fornecer-lhe tal
fator de produção (os empregados) e deve estar disposto a lhes re-
compensar, por meio dos salários, pelo uso de sua força de traba-
lho.
Para conseguir o fator de produção capital, este mesmo em-
presário necessita de entabular transações com o Poder Público,
instituições financeiras ou famílias que disponham deste recurso
para ceder-lhe mediante uma recompensa, corporificada pelos ju-
ros e outros encargos cobrados.
De maneira similar, este empresário, para conseguir a maté-
ria-prima ou a tecnologia de que necessita, deve estabelecer tran-
sações com seus fornecedores e remunerá-los por meio do paga-
mento de preços ou royalties. Assim também com qualquer outro
recurso economicamente relevante para o exercício de sua ativida-
634
de de produção ou distribuição de bens ou serviços .
Deste modo, se a empresa pode ser economicamente con-
cebida como a organização dos fatores produtivos, deve ser com-
preendida não apenas como o conjunto composto por terra, capital,
trabalho, tecnologia e matérias-primas, mas também como o con-
junto das transações jurídicas (contratos) que se deve implementar
para organizar e manter em funcionamento tais fatores de produ-
ção.
Pode-se assim tomar a empresa tanto como um conjunto or-
ganizado de recursos economicamente relevantes (os fatores de
qual os indivíduos autorizados pela ordem jurídica regulam juridicamente certas relações. É um
fato criador de Direito, pois produz os deveres e direitos jurídicos das partes que participam da
transação” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3a edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 199). Toda vez que dois ou mais indivíduos decidem livremente entre si quais
os direitos e deveres de um em relação ao outro, temos uma transação, tanto no sentido
econômico quanto jurídico. A transação ou relação econômica por excelência é constituída,
sob o prisma jurídico, pelo contrato. Assim, sempre que, ao longo do texto, houver referência
a transações ou relações jurídicas e econômicas, deve-se remeter à figura do contrato.
634 Também o fator terra é obtido por meio de relações jurídicas levadas a cabo entre o
empresário que dele necessita e seus titulares. “O preço do uso de uma parcela de terra,
durante um período de tempo, é designado por renda ou, por vezes, renda econômica pura.”
SAMUELSON, Paul A. NORDHAUS, William D. Economia. 16a ed. São Paulo: Mc Graw Hill,
2001. Pg 249.

542 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


produção ou insumos) quanto como o conjunto de transações ou
relações jurídicas contratuais destinadas ao constante agrupamen-
to e organização destes mesmos fatores de produção. Na primeira
apreensão, têm-se uma visão estática da empresa. Sob a segunda
perspectiva, a empresa é vista em funcionamento, em atividade,
sendo, por isso, uma visão dinâmica.
Cada fator de produção de que precisa o empresário, para
constituir e exercer a empresa, exige a devida recompensa, seja na
forma de salários, juros, renda, preços ou royalties. Estes custos são
modalidades de custos de produção, entendidos estes como a re-
tribuição econômica canalizada pelo empresário em favor daquele
635
que lhe forneça um determinado insumo ou fator de produção .
É aquilo que o empresário paga em favor do fornecedor de cada
um dos insumos que organiza, como contrapartida pela sua utiliza-
636
ção.
Os custos de produção não são, entretanto, os únicos com
que arca o empresário para devida e legalmente exercer a empresa.
Os custos de produção estão ligados aos custos de oportunidade e
à remuneração de cada um dos fatores produtivos, que represen-
tam, como visto, apenas uma faceta da empresa para a Economia
(visão estática).
Entendida também como um complexo de transações ou re-
lações jurídicas contratuais, a empresa acarreta para o empresário

635 “Os custos, como todos nós sabemos, são geralmente calculados em termos monetários
e incluem salários, rendas, taxas e juros, e ainda os montantes pagos por matérias-primas,
combustíveis, energia, transportes, etc.” STANLAKE. George Frederik. Introdução à Economia.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. Pg 95.
636 É verdade, entretanto, que os custos de produção não se restringem ao que paga o
empresário a título de salários, rendas, juros e demais recompensas aos fatores de produção
agregados por ele. Há ainda o que a Economia conhece por custos de oportunidade,
representados por aquilo que o empresário está “deixando de ganhar” se, ao invés de dedicar
seu tempo e seus recursos ao exercício da empresa, fosse cuidar de efetuar outro tipo de
atividade. Custos de oportunidade são, em essência, aquilo que o empresário deixa de ganhar
por exercer a atividade empresarial. Ao optar pela produção ou distribuição empresarial de
bens ou serviços, esta pessoa física ou jurídica – o empresário – abdica de outras opções de
ganho, as quais são identificadas pelo termo “custos de oportunidade”. MANKIW, Gregory.
Introdução à Economia. 3a ed. São Paulo: Thomson Learning, 2005. Pg 51. STIGLITZ, Joseph E.
WALSH, Carl E. Introdução à Microeconomia. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2003. Pg 31.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 543


uma outra ordem de custos, que não podem ser confundidos com
os custos de produção.
A implementação das relações ou transações jurídicas neces-
sárias ao exercício da empresa também acarreta custos próprios,
representados pelo valor – em tempo e dinheiro - gasto para plane-
já-las, efetuá-las e concretizar os seus efeitos.637
Foi a partir do estudo da empresa e de sua apreensão não
apenas como um conjunto organizado de fatores de produção, mas
também como um encadeamento de transações ou relações jurídi-
cas que Ronald Coase lançou638 a discussão a respeito de um tema
que hoje se prova central em se tratando de análise econômica do
Direito.
Tal variável é conhecida por custos de transação, que consis-
tem, em absoluta síntese, naquilo que se precisa pagar ou de que
se deve abrir mão para constituir, manter, proteger ou transferir os
direitos e deveres decorrentes de uma relação contratual639.
O empresário precisa constituir, para o exercício da empresa,
uma série de transações jurídicas destinadas a viabilizar a organi-
zação dos fatores de produção. A cada fator de produção ele deve
remunerar por meio de salários, renda, juros ou preços (custos de
produção).
Entretanto, para implementar tais transações – estabelecer as
relações jurídicas - destinadas a estipular como vai se efetuar a tro-
ca de salário por trabalho, uso de capital por juros, terra por renda,
tecnologia por royalties e, além disso, garantir que sejam respeita-

637 “When undertaking a transaction, parties to the transaction must incur several sorts of costs.
Ex ante costs are incurred before the transaction takes place. If the transaction is to be governed
by a written contract, the contract must be drafted. Whether governed by a contract or simply by
verbal commitments, the terms of the transaction must be negociated. Ex post cost are incurred
in consummating and safeguarding the deal that was originally struck.” KREPS, David M. A
Course in Microeconomic Theory. New Jersey: Princeton University Press, 1990. Pg. 743.
638 Foi com o texto “The Nature of The firm”, já referido no Capítulo I, que Ronald Coase
postulou as premissas fundamentais da concepção de empresa ora apresentada.
639 “(...) at the microlevel, transaction costs consist of those costs associated within contracting
between private parties.” MERCURO, Nicholas. MEDEMA, Steven G. Economics and the law –
from Posner to Post-Modernism. New Jersey: Princeton University press. 1999, Pg. 131.

544 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


dos e protegidos os termos destas mesmas relações, o empresário
tem uma outra ordem de custos, os custos de transação640.
Na outra ponta da cadeia produtiva, resta inegável que o em-
presário, para viabilizar sua empresa, deve cuidar não somente do
preço que recebe por seus produtos ou serviços, mas também do
tempo e do dinheiro que leva para, por exemplo, recuperar ou pro-
var judicialmente valores não recebidos, garantir a propriedade,
posse e uso de seus produtos, contratar a forma pelo qual vai trans-
feri-los a terceiros, etc.
Assim, a ideia econômica de empresa, enquanto organiza-
ção dos fatores de produção, traz consigo os custos de produção
– remuneração de cada fator de produção agrupado, somados aos
custos de oportunidade – e os custos de transação – dispêndios
relacionados não à remuneração dos fatores de produção, mas à
implementação das transações ou relações jurídicas pelas quais
são aglutinados.
Além dos custos de produção e de transação, o agente eco-
nômico – pessoa física ou jurídica – que se dispõe a organizar a em-
presa arca também com os custos de agência, (agency costs), termo
que denomina, em síntese, os custos inerentes à minimização dos
diferentes conflitos de interesses entre grupos mais ou menos vin-
culados a uma determinada sociedade empresária641.
640 O que se pretende salientar é que, na realização das transações inerentes ao exercício
da empresa, o empresário deve arcar com uma série de custos que consistem não apenas no
salário pago aos empregados, mas também no tempo e dinheiro que gasta para selecionar
e contratar seus prestadores de serviços, negociar o valor dos salários e demais cláusulas
contratuais com eles ou cumprir as exigências legais de contratação.
De outro lado, o empresário precisa se preocupar não apenas com o valor dos juros com os
quais remunera o prestador do capital, mas também com o tempo e o dinheiro que gasta para
contratar o empréstimo, elaborar o acordo ou para exigir que sejam observadas as cláusulas
contratuais firmadas; deve atentar não somente para a renda que remunera o proprietário
do imóvel no qual se estabelece, mas também para o tempo e o dinheiro que consome na
elaboração do contrato de locação ou no exercício de seus direitos de inquilino; ademais,
precisa ponderar os dispêndios que tem para garantir a propriedade sobre os fatores de
produção que mantêm organizados.
641 Há, com já explicitado no Capítulo XI, os conflitos entre os interesses da maioria e da
minoria do capital social, entre os sócios e os administradores da sociedade, entre sócios,
gestores e empregados e mesmo entre membros de grupos minoritários ou majoritário de
sócios, dentre outros “Contractual relations are the essence of the firm, not only with employees

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 545


Custos de produção, de oportunidade, de transação e de
agência são, portanto, variáveis relevantes para o agente econômi-
co que deseja produzir ou circular bens ou prestar serviços. Em sua
atividade, este agente está permanentemente interessado em re-
duzir qualquer uma destas ordens de custo sem, entretanto, deixar
de lado a produção ou distribuição dos bens ou serviços à qual se
dedica.
Como visto, a pessoa física ou jurídica que pretenda produzir
ou fazer circular bens ou serviços tem na empresa uma opção para
viabilizar suas atividades, opção esta que implica no agrupamento,
sob sua titularidade e organização, dos fatores de produção e acar-
reta as diversas modalidades de custos acima explicitados.
Há, entretanto, outra forma de se obter os insumos neces-
sários à produção ou distribuição de bens ou serviços. Trata-se da
forma descentralizada ou horizontal de organização, alternativa à
forma empresarial, marcada pelo aspecto centralizado ou vertical
supra descrito.
Assim, ao invés de agregar, sob sua titularidade e organiza-
ção, os fatores de produção de que necessita, o agente econômico
pode, em alternativa, recorrer ao mercado para obter tais insumos,
valendo-se de transações econômicas – contratos - pontuais ou
específicas para isto.
Veja-se, como exemplo, o fator trabalho: em uma forma em-
presarial de atividade econômica, o agente organizador – o empre-
sário ou sociedade empresária – contrata, por meio do contrato de
trabalho, um ou mais empregados para, sob sua supervisão e co-
ordenação, valer-se de sua mão de obra, em troca dos salários e
demais encargos.

but with suppliers, customers, creditors, and so on. The problem of agency costs and monitoring
exists for all of these contracts, independent of whether there is joint production in their sense; i.e.,
joint production can explain only a small fraction of the behavior of individuals associated with
a firm.” JENSEN. Michael C. MECKLING. William H. Theory of the Firm: Managerial Behavior,
Agency Costs and Ownership Structure. Journal of Financial Economics, October, 1976, V. 3,
No. 4, Pg. 305-360.

546 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Em uma forma não empresarial – dita também horizontal ou
descentralizada – de produção de bens ou serviços, o agente eco-
nômico organizador buscará no mercado, através de transações
contratuais específicas e pontuais, o trabalho de que necessita.
Assim, em vez de contratar um empregado sob as leis traba-
lhistas, este agente econômico organizador se vale, por exemplo,
do serviço de profissionais autônomos, contratados apenas naque-
le momento necessário e remunerado especificamente pelo traba-
lho adquirido.
No caso, por exemplo, de matérias primas, o empresário as
organiza, em uma estrutura empresarial de produção, por meio de
contratos de longa duração, firmados com seus fornecedores. Já
sob a perspectiva descentralizada – não empresarial - tais matérias
primas seriam obtidas, por meio de contratos próprios e específicos,
sempre e apenas quando fossem necessárias, demandando-se, a
cada necessidade, uma nova contratação.
A redução de uma ou mais das diferentes modalidades de
custos – de produção, de transação, de oportunidade ou de agência
- leva, portanto, ao seguinte trade off642: agrupar os fatores de pro-
dução necessários à geração de bens e serviços em uma estrutura
centralizada – agregando-os ao mesmo agente econômico organi-
zador, o empresário – ou descentralizada, quando o fator produtivo
é agregado por meio de sua busca no mercado, sem internalização.
Em outros termos, trata-se da escolha entre “fazer” ou “com-
prar” : agregar o insumo em uma organização empresarial de
643

642 Trade-off é um termo que se refere ao dilema que uma pessoa ou grupo enfrenta ao
ter que escolher entre duas alternativas incompatíveis uma com a outra. “Descansar” ou
estudar”? “Poupar ou gastar”?
643 Segundo Oliver Williamson, a Teoria da Empresa de Ronald Coase enfatiza que empresa
e mercado são formas alternativas de obtenção dos insumos necessários à produção de bens
ou serviços. A primeira delas – empresa - marcada pela verticalização ou centralização, já que
os fatores de produção se sujeitam à organização única, dada pelo empresário. Já a segunda
alternativa – mercado - é caracterizada pela obtenção de insumos de forma pontual, por
meio de contratos estabelecidos entre o agente econômico que necessita de tais insumos
e seu fornecedor. “In mundane terms, the issue is that of make-or-buy.” WILLIAMSON. Oliver
E. WINTER. Sidney G. (ed.) The nature of the firm – origins, evolution, and development. Oxford
University Press. 1993. Pg. 4.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 547


produção ou obtê-lo, apenas quando necessário, no mercado, por
meio de contratos específicos e pontuais. Produzir ou distribuir bens
ou serviços sob uma forma hierarquizada ou empresarial de organi-
zação ou optar pela obtenção pontual, horizontal ou descentraliza-
da dos insumos, no mercado.
Ao decidir pela forma descentralizada de produção ou dis-
tribuição de bens e serviços o empreendedor abdica do poder de
organizar diretamente os fatores produtivos, sujeitando-se a recor-
rer ao mercado para obtê-los, sempre de forma pontual, de quem
queira fornecê-los.
Assim, preconiza Ronald Coase que a organização empresa-
rial dos fatores de produção existe para reduzir os custos inerentes
à busca destes fatores produtivos no mercado. A empresa, como
forma centralizada de exercício da atividade econômica, se justifi-
ca ao afigura-se como eficiente mecanismo de redução dos custos
nos quais incorreria o agente econômico empreendedor se fosse
buscar no mercado, de forma descentralizada, os fatores de produ-
ção de que necessita para produzir ou fazer circular bens e serviços.
O limite ao porte econômico da empresa encontra-se, então,
no momento que os custos de organização empresarial – ou cen-
tralizada - dos fatores de produção torna-se igual ao custo de ob-
tenção de tais insumos no mercado, de forma descentralizada.
Há, portanto, um momento em que uma das opções se torna
mais eficiente do que a outra: aumentar a organização centralizada
da empresa será menos eficiente, sob o ponto de vista econômico,
do que estabelecer relações pontuais com terceiros. Este será, em
síntese, o momento em que uma organização empresarial atinge
seu máximo de eficiência e quando, se insistir neste modelo centra-
lizado, incorrerá em custos maiores.
Trazendo tais aspectos para o campo do Direito e, mais pro-
priamente, das formas jurídicas de relações entre sociedades em-
presárias, é possível estabelecer que há institutos de concentração
empresarial que se prestam a servir como instrumentos de organi-
zação centralizada da empresa.

548 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Neles a operação resulta, ao seu final, em uma atividade em-
presarial de maior porte, centralizada sob a direção de um único
agente econômico. É o caso das operações de incorporação e fu-
são, além da formação de grupos de sociedades baseados em uma
relação de controle entre as participantes.
Por outro lado, as parcerias empresariais contratuais ou per-
sonificadas podem ser vistas como formas de exercício descentra-
lizado da atividade produtiva, já que implicam em relações contra-
tuais entre agentes econômicos diferentes e, principalmente, inde-
pendentes um do outro, ao menos no aspecto jurídico.
Pode-se, portanto, analisar os institutos principais de concen-
tração ou parceria empresarial – incorporação, fusão, aquisição de
controle, formação de grupos de sociedade ou consórcios e parce-
rias empresariais – sob o prisma do trade off fundamental entre “fa-
zer” ou “comprar”: aumentar a organização centralizada da empresa,
sob a titularidade ou controle de um mesmo agente econômico, ou
optar pela busca, no mercado, dos insumos produzidos e organiza-
dos por outros agentes econômicos independentes.

3 – As operações jurídicas de concentração e parcerias


empresariais sob o prisma do exercício centralizado ou
descentralizado da atividade econômica

A sociedade empresária que decida expandir suas atividades


enfrenta, inicialmente, a escolha entre as duas opções fundamen-
tais, acima citadas: realizar tal expansão mediante ampliação de
seus ativos patrimoniais e objeto social ou expandir-se por meio de
sua maior ou menor vinculação a outras sociedades juridicamente
independentes644.
Trata-se, em síntese, do dilema básico para o agente econô-
mico em expansão: “fazer ou comprar”, que, com já salientado, en-

644 “Companies seeking to expand are faced with a choice between internal growth and growth
throught mergers and acquisitions.” (GAUGHAN, Patrick A. Mergers, acquisitions and corporate
restructuring. 3. Ed. New York: John Wiley & Sons, Inc. 2002. Pg. 111)

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 549


foca o trade off entre ampliar os ativos – bens e direitos – próprios ou
buscar, em relações contratuais com outros agentes econômicos,
os insumos necessários à ampliação de suas atividades e lucros.
A decisão pela opção mais eficiente de crescimento vincu-
la-se essencialmente ao mecanismo de preços, como apontando
por Ronald Coase em seu seminal estudo “The nature of the firm”645:
analisadas as duas opções de crescimento econômico das ativida-
des de uma sociedade empresária, vê-se que a ampliação de ob-
jeto e ativos patrimoniais (organização centralizada dos fatores de
produção) será mais eficiente até o ponto em que os custos ineren-
tes a esta opção tornem-se iguais aos custos nos quais incorrerá a
sociedade se decidir buscar no mercado (através de relações com
outras sociedades) os insumos necessários às suas atividades.
Pode-se então concluir que é essencial, para a eficiente defi-
nição por uma das duas apontadas opções de crescimento econô-
mico, conseguir mensurar devidamente os custos e riscos inerentes
a cada uma destas alternativas646.
A fixação dos custos de cada uma destas opções pode ser
facilitada pela análise comparativa das diferentes modalidades de
instrumentos jurídicos reguladores da ampliação das atividades de
uma sociedade empresária, seja tal ampliação feita por aglutinação
de ativos (centralizada) ou pela interação com outros agentes eco-
nômicos independentes (descentralizada).
As já analisadas parcerias empresariais - contratuais ou per-
sonificadas - podem ser entendidas como instrumentos jurídicos de
645 In: COASE. Ronald. The Firm, the market and the Law. The University of Chicago Press. 1990.
A literatura sobre o texto é vasta, sendo, porém, particularmente interessante a compilação
organizada por Oliver E. Williamson e Sidney G. Winter: WILLIAMSON. Oliver E. WINTER.
Sidney G. The Nature of the Firm: origins, evolution, and Development. Oxford University Press.
1993.
646 Sobre as diversas variáveis a serem mensuradas nesta escolha: COASE. Ronald. “Industrial
Organization: a proposal for research”. Policy issues and research opportunities in industrial
organization. New York: National Bureau of Economic Research. 1972. 59-73. WILLIAMSON.
Oliver E. “The vertical integration of production: Market Failure Considerations”. American
Economic Review. LXI (2), May. 1971. 112-123. DEMSETZ. Harold. ACHIAN. Armen A. “Production,
Information Costs, and Economic Organization”. American Economic Review. LXII, December.
1972. 777-95. WILLIAMSON. Oliver E. MASTEN. Scott E (org.). The Economics of Transaction
Costs. Elgar Critical writings reader. 1999.

550 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


ampliação descentralizada das atividades de uma sociedade em-
presária, pois se configuram, como exposto, em contratos ou pes-
soas jurídicas estabelecidas entre sociedades empresárias distintas
e juridicamente independentes, como meio para viabilizar a mútua
colaboração no exercício das atividades de cada uma delas.
Dentre estas parcerias empresariais ou joint ventures, há as
modalidades de interação exclusivamente contratuais. Nestas, de-
nominadas parcerias empresariais contratuais, não há participação
societária recíproca, entre as sociedades contratantes.
São, em princípio, sociedades autônomas uma da outra (às
vezes mesmo concorrentes) que se obrigam ao exercício conjunto
de determinada atividade ou mesmo tarefa específica, por meio de
um contrato típico (como os consórcios de empresas) ou atípico (as
chamadas parcerias empresariais contratuais atípicas)647.
Por outro lado, há as parcerias empresariais ou joint ventures
personificadas, as quais se consubstanciam com a criação de uma
nova pessoa jurídica, composta pelos dois ou mais agentes econô-
micos – sociedades empresárias – autônomos, mas interessados
em mútua colaboração para o exercício de suas respectivas ativi-
dades negociais.
Pode-se afirmar que também estas parcerias empresariais
personificadas se constituem em modalidades descentralizadas
de expansão econômica. Isto porque as sociedades que decidem
valer-se de uma nova pessoa jurídica para estabelecer colabora-
ção econômica entre elas continuam, sob o ponto de vista jurídico,
independentes uma da outra, posto que não há qualquer interação
de uma sobre o capital da outra. Não há centralização do processo
produtivo, pois não se unifica o tomador de decisões e organizador
dos fatores de produção.
Ao contrário, a pessoa jurídica por elas instituída e composta
serve exatamente para evitar que haja comunhão de riscos e patri-
647 Pode-se incluir aí também as hipóteses em que as sociedades têm participação
minoritária nas outras integrantes da parceria, pois neste caso a relação (e os direitos e
deveres das sociedades partícipes) não se direcionam em função da participação societária,
e sim do contrato entre elas firmado.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 551


mônio entre as criadoras. Trata-se, assim, de um instrumento que
permite a uma sociedade buscar no mercado um determinado in-
sumo necessário à expansão de sua atividade, ainda que tal busca
seja juridicamente formalizada por meio da criação, com o agente
econômico parceiro, de uma nova pessoa jurídica.
Deste modo, tanto as parcerias empresariais contratuais quan-
to as personificadas revelam-se formas jurídicas de expansão des-
centralizada das atividades econômicas de uma sociedade, posto
que a relação intersocietária não se baseia, em ambos os casos, em
mútua participação societária entre as parceiras envolvidas, e sim
no acordo de vontades ou pessoa jurídica por elas estabelecida.
Há, por outro lado, as modalidades de concentração empre-
sarial realizadas mediante aquisição de parte do capital de uma so-
ciedade por outra. Trata-se dos chamados grupos verticais, onde,
ao contrário do que se verifica nas parcerias empresariais contratu-
ais ou personificadas, a operação de concentração empresarial está
essencialmente fundada na participação que uma das sociedades
detém sobre o capital da(s) outra(s) envolvidas.
Tais grupos - ditos verticais - podem ser classificados confor-
me o grau de participação de uma das sociedades sobre o capital
da(s) outra(s) componentes da operação. Este grau de participação
pode ser minoritário, recíproco, majoritário ou mesmo total, quando,
pela constituição da sociedade subsidiária integral (art. 251 e 252 da
Lei n. 6.404/76), uma sociedade se torna a única acionista e deten-
tora da totalidade do capital de outra.
Há, nesta classificação, desde a situação em que a participa-
ção societária entre os agentes econômicos envolvidos na operação
de concentração empresarial é inexistente ou irrelevante até aquela
em que tal participação leva à posição de controle (aquisição de
controle) ou mesmo completa (sociedade subsidiária integral).
Sejam parcerias empresariais descentralizadas – contratuais
ou personificadas - ou grupos de sociedades baseados na relação
de controle entre as pessoas jurídicas envolvidas, tem-se em co-
mum a todas o fato de que, sob o ponto de vista jurídico, há inde-

552 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


pendência entre os agentes econômicos envolvidos, pois, em qual-
quer das modalidades citadas, as sociedades participantes conti-
nuam como pessoas jurídicas próprias, cada uma com seus bens,
direitos e deveres.
Observe-se, porém, que, sob o ponto de vista estritamente
econômico, há relevante diferença, já que as parcerias empresariais
entre sociedades sem participação de controle no capital uma da
outra representam a ampliação das atividades de cada uma delas
por meio da busca no mercado pelos subsídios necessários a tal
ampliação. É dizer: as sociedades parceiras são independentes ju-
ridicamente e, economicamente, se relacionam de forma descen-
tralizada, sem a unicidade de decisões que decorreria do poder de
controle de uma sobre as outras.
Já nos grupos de sociedade verticais – como aqueles tipifica-
dos pela Lei n. 6.404/76 – as pessoas jurídicas participantes perma-
necem juridicamente independentes, mas, se analisadas sob o as-
pecto da Teoria da Empresa em Coase, mostram-se centralizadas,
já que subordinadas ao controle comum da sociedade de comando
do grupo.
Pode-se, então, sintetizar da seguinte forma o que até aqui
foi exposto: as parcerias empresariais contratuais ou personificadas
são efetuadas entre sociedades juridicamente independentes, pos-
to inexistir entre elas uma relação de controle. Tratam-se, portanto,
de modalidades descentralizadas de expansão econômica, já que
efetuadas sem a unificação empresarial sob organização única de
uma controladora, e sim através do mercado, por meio de relações
com outros agentes econômicos autônomos.
Já os grupos de sociedade estabelecidos a partir de uma rela-
ção de controle entre as participantes são, sob o aspecto econômi-
co, modalidades de expansão centralizada das atividades das so-
ciedades participantes, uma vez que a organização estará, de fato,
economicamente unificada na sociedade de comando.
As sociedades participantes são juridicamente independen-
tes, mas estão economicamente atreladas em torno da organização

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 553


única, estabelecida pela sociedade de comando, que sobre as ou-
tras detém o poder de controle.
Além das parcerias ou grupos horizontais e verticais, há uma
última forma de concentração empresarial, a qual difere das já ana-
lisadas por resultar, ao final da operação, na extinção de uma ou
algumas das sociedades envolvidas. Trata-se das operações de fu-
são e incorporação de sociedades.
Nestas duas hipóteses, o grau de envolvimento entre as so-
ciedades chega ao ponto de se extinguir a personalidade jurídica
delas, resultando tais operações na formação de novas sociedades
a partir das antes existentes (no caso da fusão) ou na manutenção
de algumas, agora acrescidas dos sócios, bens, direitos e obriga-
ções das extintas.
Em operações de fusão ou incorporação opta-se, assim como
nos grupos verticais, pela expansão centralizada das atividades so-
ciais, já que efetuada mediante a aquisição direta de mais patrimô-
nio e novos sócios, os quais são oriundos das sociedades incorpo-
radas ou fusionadas.
A diferença essencial é que, no caso de fusões ou incorpora-
ções, há a extinção de pessoas jurídicas, ao contrário do que se vê
nos grupos verticais, os quais são compostos por sociedades juridi-
camente autônomas, mas economicamente unificadas sob o con-
trole da sociedade de comando.
As fusões ou incorporações de sociedade são, portanto, ope-
rações realizadas por agentes econômicos que desejam, sob o
ponto de vista da Teoria da Empresa, expandir suas atividades de
forma centralizada, já que unificam ativos, débitos e sócios sob uma
única pessoa jurídica, com a extinção das outras envolvidas.
Portanto, nas parcerias empresariais horizontais há autonomia
jurídica e descentralização econômica. Nos grupos verticais, tem-
-se autonomia jurídica, mas centralização econômica. Por fim, em
casos de fusão ou incorporação, opta-se pela centralização econô-
mica e, também, jurídica, posto haver a extinção de sociedades e

554 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


absorção de seu patrimônio e sócios, seja pelas incorporadoras ou
pela pessoa jurídica resultante da fusão.
Como salientado, são modalidades diferentes de operações
de concentração empresarial, cada uma destinada ao atendimento
de determinados interesses ou objetivos prevalentes na situação
concreta. O fundamental é, na medida do possível, procurar quanti-
ficar, diante de cada uma das opções, os custos e benefícios decor-
rentes, de forma a permitir uma eficiente escolha.

4 – Concentração ou parceria empresarial:


apontamentos sobre custos e benefícios de cada uma
das opções

A propósito de comparar, em termos de custos e benefícios


particulares, os institutos reguladores das parcerias e concentra-
ções empresariais, a primeira questão a ser levantada é: quando
incorporar ou fundir-se a outra sociedade, optar pela aquisição de
seu controle ou, por fim, valer-se de uma parceria empresarial con-
tratual ou personificada?
Incorporar-se ou fundir-se é, em termos de Teoria da Empre-
sa, optar pela expansão centralizada das atividades, tanto do ponto
de vista jurídico, quanto econômico. Adquirir o controle de outra so-
ciedade é, por seu turno, optar por uma expansão economicamente
centralizada, mas juridicamente descentralizada.
Por fim, as parcerias empresariais contratuais ou personifica-
das se apresentam como alternativa jurídica aos agentes econômi-
cos que desejam expandir suas atividades de forma econômica e
juridicamente descentralizadas, na medida que se valem de con-
tratos ou pessoas jurídicas como forma de obter, no mercado, de
agentes econômicos autônomos, os subsídios de sua expansão.
A parceria empresarial descentralizada – seja contratual ou
personificada - implica, em princípio, na combinação de duas orga-
nizações empresariais distintas e independentes entre elas, advindo
daí a vantagem competitiva decorrente do aproveitamento mútuo

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 555


de fatores como capacidade gerencial, conhecimento de mercado
e credibilidade das marcas envolvidas, dentre outras.
Tais fatores têm especial relevância quando as sociedades
participantes da operação colocam seus produtos ou serviços em
mercados diferentes. Neste sentido, o vínculo descentralizado ou
contratual serve, inclusive, como possibilidade de entrada em mer-
cados de outros países.
A parceria empresarial descentralizada contratual648 permite
ainda que a conjugação de esforços se faça com custos ex ante649
relativamente baixos, pois dispensa as sociedades envolvidas de
arcar com parte do capital da(s) parceira(s). Os custos iniciais estão,
em princípio, adstritos àqueles inerentes à negociação e formaliza-
ção do instrumento contratual.
A primeira – e talvez mais relevante - desvantagem competi-
tiva das parcerias empresariais estritamente contratuais e descen-
tralizadas está na relativa fragilidade do vínculo estabelecido entre
as sociedades.
Esta desvantagem competitiva decorre, antes de qualquer
outro aspecto, da necessidade de sujeitar-se a operação à forma
típica de parceria empresarial horizontal (o consórcio de empresas)
ou então de submeter tal vínculo aos formatos atípicos de contra-
tos, os quais carecem de regime jurídico bem definido, dadas espe-
cialmente a maleabilidade dos instrumentos contratuais e a falta de
certeza quanto à aplicabilidade de seus termos650.
As dúvidas quanto ao regime jurídico da parceria empresarial
contratual atípica – e consequente insegurança quanto aos riscos
648 Se adotada a parceria empresarial personificada será necessária a integralização do
capital da pessoa jurídica criada para formalizar a relação de cooperação.
649 Chamam-se custos ou riscos ex ante aqueles anteriores à formação do contrato ou
da operação econômica em questão, enquanto custos ex post são aqueles posteriores à
constituição do vínculo ou da operação econômica. COOTER. Robert. ULEN, Thomas. Direito
& Economia. 5a edição. Ed. Bookman. Porto Alegre. Pg. 223.
650 Há, na doutrina, significativo entendimento no sentido de se equiparar a parceria
empresarial contratual atípica às sociedades em comum, o que implicaria a responsabilidade
pessoal, ilimitada e solidária dos participantes, pelos débitos contraídos em função do
empreendimento. Neste sentido, confira: BORBA. José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 12a
edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2010. Pgs. 45 e segs.

556 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


e custos dela decorrentes – advém ainda da própria incompletude
dos contratos em geral, feição esta agravada pela natureza relacio-
nal dos vínculos desta modalidade651.
Outra possível – e mesmo provável – desvantagem das re-
lações societárias descentralizadas está na dificuldade em evitar
a circulação de informações entre as sociedades partícipes, para
além dos estritos limites inerentes ao projeto específico.
A circulação excessiva de informações – que pode chegar
mesmo a métodos operacionais ou gerenciais de alta relevância -
em relações deste tipo é, em regra, circunstância a ser evitada pe-
las partes, uma vez que se trata de sociedades independentes e,
muitas vezes, mesmo concorrentes.
As sociedades contratantes, não atreladas uma ao capital
social da outra, estão, ao contrário, vinculadas apenas pontual e
temporariamente. O risco de que informações gerenciais, nego-
ciais e tecnológicas das participantes sejam trocadas em graus que
comprometam sua confidencialidade faz com que a possibilidade
de maximização dos ganhos, pela colaboração, seja muitas vezes
substituída pela estratégia individual de não cooperação efetiva, o
que compromete a sinergia da operação652.
Há, portanto, o risco de que a parceria empresarial descen-
tralizada – contratual ou personificada – torne-se mais um meca-
nismo de extração de informações relevantes sobre as atividades
negociais da sociedade parceira do que um efetivo instrumento de
cooperação no exercício conjunto da empresa.
Por outro lado, os custos com a diminuição deste risco impac-
tam não só sobre a operação em sí – aumento de custos de transa-
ção e de agência – mas também no próprio objeto contratado, que

651 Sobre incompletude contratual e contratos relacionais: BAKER. George. GIBBONS, Robert.
MURPHY, Kevin J. Relational Contracts and the Theory of the Firm. 1997. COOTER. Robert. ULEN,
Thomas. Direito & Economia. 5a edição. Ed. Bookman. Porto Alegre. Pg. 226 e segs.
652 “A passagem do tempo entre a troca de promessas e seu cumprimento cria incertezas e
riscos. Incertezas e riscos representam obstáculos às trocas e à cooperação”. COOTER. Robert.
ULEN. Thomas. Direito e Economia. Ed. Bookseller. Porto Alegre. Pg. 208.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 557


deixará de ser eficientemente executado, dada a falta de efetiva co-
operação entre a parceiras.
Conclui-se, com relativa tranquilidade, que os grupos ou par-
cerias empresariais descentralizados – contratuais ou personifica-
dos – são, em regra, mais eficientes que as formas centralizadas de
interação societária apenas quando não há intenção de cooperação
duradoura no tempo e ampla no objeto, e sim a finalidade de atua-
ção conjunta em empreendimento específico e, na maior parte das
vezes, temporário.
Relações de cooperação empresarial de objeto amplo ou re-
lativamente duradouro, quando estabelecidas de forma descentra-
lizada, apenas a partir de uma parceria empresarial contratual ou
personificada, tendem a provocar altos custos de transação durante
sua execução, além de promoverem o comportamento oportunista
e não cooperativo entre os agentes econômicos653.
A interação – ou mesmo predominância - de uma socieda-
de sobre o capital da(s) outra(s) participante(s) do grupo parece ser
inevitável quando se pretende fazer da ação empresarial conjunta e
profunda uma constante na relação entre as sociedades envolvidas.
A relação de controle entre as sociedades que decidem jun-
tas expandir suas atividades mostra-se, portanto, como grande ele-
mento redutor do comportamento oportunista das partes, já que
agora atuam, do ponto de vista econômico, sob uma direção única,
dada pela sociedade de comando do grupo.
A aquisição de controle exige dispêndio financeiro da contro-
ladora – para a integralização das ações ou quotas da controlada
– mas, ao mesmo tempo, reduz o risco do comportamento opor-
tunista e os conflitos de agência, já que unifica o poder decisório e

653 “Dois fatores influem sobre o comportamento individual, limitando o uso de contratos de
longo prazo: a racionalidade limitada e o oportunismo. A racionalidade limitada se refere às
dificuldades das pessoas em acumular e analisar a informação de modo confiável. Assim, se
tiverem a intenção de se comportar racionalmente, as pessoas ficarão restritas pelos limites
heurísticos. (...) O oportunismo se torna possível pelas assimetrias informacionais entre as partes.
As assimetrias decorrem de revelação incompleta., deformada ou falsificada da informação.
Interferem nas capacidades, preferências ou intenções das partes.” MACKAAY. Ejan. ROUSSEAU.
Stéphane. Análise Econômica do Direito. Segunda Edição. Ed. Atlas. São Paulo. Pg. 520/521.

558 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


organizador das atividades comuns na titularidade da sociedade de
comando.
As parcerias empresariais descentralizadas são, portanto,
mais eficientes quando a relação de cooperação tiver por objeto
atividade restrita ou de duração relativamente curta, enquanto a
centralização econômica e decisória decorrente do poder de con-
trole se mostra mais eficiente quando se tratar de uma relação que
tenha objeto amplo ou duradouro.
Cabe agora aferir, então, quando a centralização econômica e,
também, jurídica se mostra a opção mais eficiente para os agentes
econômicos que pretendam expandir suas atividades. Fala-se aqui
não apenas na formação de um grupo de sociedades, baseado em
uma relação de controle entre pessoas jurídicas autônomas, mas na
própria fusão ou incorporação delas, com a consequente unificação
jurídica e econômica entre as sociedades participantes.
O objetivo é entender o que move um agente econômico a
optar pela fusão ou incorporação – expansão centralizada tanto
econômica quanto juridicamente - em detrimento de parcerias em-
presariais descentralizadas ou, mais proximamente ainda, dos gru-
pos de sociedades baseados em uma relação de controle.
Colocando o trade off em seus devidos termos: comprar, no
mercado, de um agente econômico juridicamente autônomo (par-
cerias empresariais contratuais ou personificadas), concentrar o po-
der decisório sobre sociedades juridicamente autônomas (grupos
de sociedade baseados em relação de controle) ou, por fim, agre-
gar ativos, sócios, bens e direitos de outras sociedades sob sua titu-
laridade, com a extinção das outrora titulares de tais insumos.
Uma primeira e válida conclusão se refere ao objeto ou insu-
mo buscado através da cooperação com outras sociedades. Se a
cooperação empresarial tem por objeto um determinado bem ou
serviço que seja fornecido em um mercado perfeitamente compe-
titivo – ou algo próximo dele - a sua obtenção no mercado, através
de parcerias empresariais contratuais – descentralizadas, portanto
– se mostra mais eficiente.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 559


O insumo buscado é oferecido em mercado perfeitamente
competitivo, o que significa que seu preço é fixado pelo mercado, e
não pelos produtores individualmente considerados. Esta circuns-
tância colabora também para a relativamente fácil substituição do
parceiro, em caso de divergência ou descumprimento dos termos
contratuais estabelecidos

É por exemplo, o mercado de pães. Seu modelo de mercado é muito próximo do


que se pode chamar de perfeitamente competitivo. O produto é o mesmo, seus
fornecedores são vários e incapazes de fixar, sozinhos, o preço do produto, que é
dado pelo mercado.
Assim, uma sociedade empresária que, ao expandir suas atividades, decida
contratar mais empregados e, por consequência, necessite de maior quantidade de
pães para o lanche de seus funcionários, depara-se com a seguinte escolha: buscar
este subsídio no mercado – “comprar” – ou “fazê-lo”, sob sua responsabilidade e
titularidade.
Por tratar-se de um produto fornecido em um mercado perfeitamente competitivo,
o preço é dado pelo mercado, não pelo produtor do bem. Desta forma, se aquela
sociedade decidir fazer seus próprios pães, não conseguirá, com isso, valor menor
do que o encontrado no mercado, onde os produtores ganham em escala de
produção, dada sua especialização.
Trata-se, assim, de um insumo fornecido em mercado perfeitamente competitivo
e cuja aquisição não implica em relação contratual de grande amplitude na troca
de informações, o que facilita a cooperação. Deste modo, para aquela sociedade,
é mais eficiente comprar os pães na padaria da esquina do que adquirir o controle
societário de uma ou, pior, incorporá-la.

Além disso, a obtenção deste insumo exigirá mínima troca de


informações entre o seu fornecedor e o adquirente, minimizando
assim os riscos do supra apontado comportamento oportunista, ca-
paz de comprometer a cooperação entre os parceiros654.

654 Exemplo similar é encontrado na obra de Robert Pindyck e Daniel Rubinfeld, baseado
na hipotética fabricante de motores chamada Race Car Motors: “Suponhamos que haja um
mercado competitivo para os motores que ela fabrica e utiliza em seus automóveis. Se o preço
de mercado for baixo, a empresa talvez queira adquirir uma parte ou a totalidade de seus
motores no mercado exterior a ela; se, ao contrário, for alto, ela talvez queira vender no mercado
os motores que produz. (...) Pode parecer estranho que a Race Car Motors tenha de adquirir
motores no mercado competitivo, quando é capaz de produzi-los. Entretanto, se ela produzisse
todos os motores, o custo marginal para produzi-los seria mais elevado do que o preço no
mercado competitivo”. PINDYCK. Robert. RUBINFELD. Daniel. Microeconomia. 8ª edição. Ed.
Pearson. São Paulo. 2013. Pg. 440/4

560 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Obtenção de produto ofertado em mercado perfeitamente
competitivo, somado à pouca amplitude e profundidade da relação
de cooperação levam à vantagem competitiva das parcerias em-
presariais descentralizadas – especialmente as contratuais - sobre
aquelas pautadas em uma relação de controle ou na fusão ou in-
corporação entre os parceiros.
No extremo oposto está a cooperação empresarial que tenha
por objeto um bem ou serviço monopolisticamente fornecido por
um dos agentes econômicos envolvidos. Nesta hipótese, a interna-
lização dele – com a aquisição de controle, incorporação ou fusão
de seu produtor – revela-se mais eficiente, pois impede que os con-
correntes passem a ter acesso àquele insumo.
Veja por exemplo, o caso de uma sociedade empresária titular
de uma marca de notável credibilidade ou que tenha desenvolvi-
do um bem de grande inovação tecnológica, protegido pelas leis
de patentes: a internalização deste insumo – a marca ou o produto
desenvolvido – mostra-se mais eficiente, pois cria em torno deste
insumo um poder monopolístico, o que permite fixação do preço ou
definição de atuação no mercado.
Em sua, internaliza-se – por meio de aquisições de controle,
fusões ou incorporações - aquilo que é caro no mercado, ou seja,
algo que é fornecido em um mercado que tende ao monopólio ou,
ao menos, que não seja perfeitamente competitivo655. Por outro
lado, busca-se no mercado – de forma descentralizada – aquele
bem ou serviço oferecido por um mercado competitivo, no qual ine-
xistem formadores de preço.
Redução de comportamentos oportunistas, maior ou menor
fungibilidade do insumo buscado com a cooperação não são, en-
tretanto, as únicas variáveis relevantes na decisão entre a expansão
econômica centralizada ou descentralizada. Há ainda a gestão dos

655 ¨The most importante single atribute tha is responsible for bilateral dependency, which is the
contracting condition that is fundamentally responsible for vertical integration, is the condition
os asset specificity”. WILLIAMSON. Oliver E. Mergers, acquisitions, adn leveraged buyouts:
na efficiency assessment. (In:) BEBCHUK. Lucian Arye (coord.). Corporate Law and Economic
Analysis. Cambridge University Press. 1990. Pg. 5.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 561


custos de produção, os quais se referem, como antes já salientado,
à remuneração dos fornecedores de cada um dos insumos neces-
sários à produção de bens ou serviços.
Reduzir custos de produção significa, no caso do fator traba-
lho, conseguir, com a cooperação empresarial, melhor organização
da mão de obra, otimização do tempo e das habilidades específicas
de cada empregado, além do ganho de escala proporcionado pelo
maior número de trabalhadores.
No caso do fator de produção capital, a redução de seu custo
está, por exemplo, na ampliação dos ativos patrimoniais que pos-
sam ser oferecidos em garantia dos credores, os quais se tornariam,
ao menos em princípio, mais suscetíveis de oferecer novos emprés-
timos ou financiamentos em condições mais atrativas.
Quanto ao fator matéria prima, a redução de seu custo se
mostra em situações nas quais as sociedades empresárias parcei-
ras ganhariam em poder de compra – capacidade de aquisição de
maior número de produtos – e, portanto, em maior poder de barga-
nha com os fornecedores.
A troca de experiências e conhecimento entre as sociedades
empresárias partícipes da cooperação pode também, se bem orga-
nizada, ampliar o potencial de desenvolvimento de novos produtos
entre as sociedades partícipes, contribuindo para a otimização do
fator tecnologia.
Não se pode esquecer, por fim, dos aspectos tributários des-
tas diferentes opções. A forma jurídica como estruturada a coope-
ração empresarial tem, em regra, o poder de produzir significativos
impactos sobre os tributos devidos pelas sociedades empresárias
partícipes, evidente e inegavelmente reduzindo os custos de pro-
dução.
Veja-se, a seguir, duas matérias que, embora antigas, ilustram
as ponderações apresentadas:

562 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


QUANTO CUSTARIA O IPHONE 100% AMERICANO DE DONALD TRUMP?

Soube da mais nova ideia do candidato à presidência dos EUA Donald Trump para
tornar a nação imperiosa novamente? Forçar a Apple a fabricar seus produtos nos
domínios norte-americanos.

Durante discurso na Liberty University, em Virgínia, Trump disse que faria com que
a Apple fabricasse seus “malditos computadores e coisas neste país no lugar de
outros”.

Ele não especificou como faria isso, mas seu raciocínio é bem claro: ele prefere
que empresas norte-americanas fabriquem produtos como o iPhone e a Apple
TV nas próprias terras, não na China, país que, segundo o próprio, está roubando
empregos do seu povo.

Mas fica aqui a questão: quanto custaria um iPhone 100% norte-americano e o que
seria necessário para ter um?

“Já falamos sobre isso antes”, me disse ao telefone Wayne Lam, analista de
eletrônicos de telecomunicação na empresa de pesquisas IHS Technology (A IHS
é a empresa que desmonta iPhones para calcular quanto custam para a Apple.
O iPhone 6s Plus, vendido por US$ 749, tem custo estimado de fabricação de US$
236). “Seria loucura enviar peças da Ásia para os EUA. Criaria uma camada de
complexidade extra no processo de fabricação num tempo em que tudo é muito
mais acessível na Ásia.”

Esses componentes made in Asia incluem telas, memória e cases, disse Lam
(Trump não especificou se forçaria a Apple a montar os iPhones nos EUA, ou se
forçaria a Apple a montá-los nos EUA com apenas peças norte-americanas, o que
seria impossível sem virar de cabeça pra baixo a cadeia global de suprimentos
para eletrônicos).

Para estimar quanto um iPhone 100% americano custaria aos consumidores, liguei
para Kyle Wiens, CEO dos especialistas em reparo de eletrônicos iFixits.

“Fabricar produtos da Apple nos EUA não é impossível, é uma questão dos
consumidores estarem dispostos a pagarem mais por eles”, disse ao telefone.

Com alguns cálculos simples, Wiens disse que os consumidores poderiam pagar
por volta de US$ 50 a mais por um iPhone montado nos EUA.

Isso porque muitos dos trabalhadores chineses ganham “pouco mais que o
salário mínimo, cerca de US$ 270 mensais na China, um quarto do salário mínimo
americano”, de acordo com a “The Economist”. Essa diferença tem de sair de algum
lugar e de forma alguma sairia dos cofrinhos (recheadíssimos) da Apple.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 563


“Não se montaria tudo aqui na calada da noite”, disse Wiens. “Mas se começasse
devagar e 10% do processo mudasse para os EUA por ano, logo a Apple teria uma
porcentagem significativa dos seus produtos fabricados nos EUA –supondo que
Tim Cook e seus parceiros topassem pagar maiores salários.”

A Apple talvez tenha dado a largada meses atrás ao começar a montar o Mac Pro
nos EUA.

Claro, se Trump for eleito presidente e conseguir impor uma tarifa de 45% em tudo
que vier da China, como ameaçou fazer, isso mudará dramaticamente as contas
feitas pela Apple. Se custará à empresa 45% a mais trazer seus aparelhos para os
EUA, então talvez faça sentido montá-los localmente (caso do Brasil, com suas
elevadas taxas).

Perguntei então à IHS sua opinião sobre políticos que querem cantar de galo com
essa conversinha de trazer empregos de volta para os EUA: é só papo ou os EUA
estão prestes a voltarem às suas raízes industriárias?

“Temos uma economia global, penso que você tem de aceitar e lidar com isso”,
disse Dan Panzica, analista de terceirização de serviços e fabricação da IHS, ao
telefone.

Panzica, ex-diretor de qualidade e engenharia da Foxconn, relembrou um incidente


ocorrido há quatro ou cinco anos em que a companhia conseguiu enviar 1.000
operários pela China em poucos dias sem impacto negativo nos negócios. “Você
consegue imaginar o governador de Michigan falando ‘Preciso de mil operários em
Detroit na sexta?’”, perguntou.

Não é a primeira vez que um político implorou à Apple que leve suas fábricas para
os EUA. De acordo com o “The New York Times”, o presidente Obama perguntou a
Steve Jobs em fevereiro de 2011 porque a Apple não poderia fabricar o iPhone nos
EUA.

Sua resposta: “Aqueles empregos não voltarão”.

http://m.folha.uol.com.br/tec/2016/01/1732422-quanto-custaria-o-iphone-100-
norte-americano-de-donald-trump.shtml. Site consultado em 04/05/2016.

564 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


POR QUE A APPLE FABRICA O IPHONE NA CHINA

“Quase todos os 70 milhões de iPhones e 30 milhões de iPads vendidos em 2011


foram fabricados fora dos Estados Unidos, principalmente na China. O porquê
disso tem conexão com a mão de obra chinesa mais barata, sim. Mas há outros
motivos para grandes companhias como a Apple preferirem fabricar seus produtos
em outro lugar que não o território americano, como mostra reportagem publicada
pelo New York Times.

Um deles é o fato de a maioria dos fornecedores da empresa de Steve Jobs estar


localizada na China. Trazer a produção dos aparelhos da Apple para os Estados
Unidos criaria grandes desafios na logística — como tornar viável a fabricação de
aparelhos em uma cidade americana se quase todos os seus componentes estão
a meio mundo de distância? Isso seria também um empecilho para a troca de
fornecedores chineses, o que a empresa hoje faz com certa flexibilidade na China.

O porte das fábricas chinesas, hoje maiores e bem mais ágeis que as americanas,
é outro motivo para continuar a produção fora de casa. Um ex-executivo da Apple
conta que, poucas semanas antes de o iPhone ir para as prateleiras, em 2007, a
companhia redesenhou a tela do dispositivo, forçando a revisão da montagem do
aparelho, segundo o NYT. Assim, na China, o chefe dos operários teria acordado 8
mil deles, que dormiam em seus quartos dentro da fábrica.

“Cada empregado recebeu um biscoito e uma xícara de chá, foi conduzido à


estação de trabalho e, em menos de 30 minutos, eles começaram um turno de 12
horas, encaixando as telas de vidro no aparelho”, relata o jornal. Em 96 horas, a
planta produziu no ritmo de 10 mil iPhones por dia.

A grande agilidade se soma à habilidade técnica de engenheiros chineses, a qual


satisfaz a montagem complexa dos aparelhos, mas não é tão qualificada a ponto
de justificar um alto salário.

O movimento da produção em direção ao exterior preocupa os Estados Unidos,


segundo economistas ouvidos pelo NYT. Afinal, essa seria uma causa da dificuldade
que o país enfrenta para criar postos de trabalho para a classe média.

Fabricar um iPhone nos Estados Unidos custaria US$ 65 a mais que na China, onde
a estimativa de custo de produção é de US$ 8. Isso minimizaria o lucro da Apple,
apesar de não eliminá-lo. (O preço médio de venda do iPhone é de US$ 600, o que
rende margem bruta de cerca de 40% à Apple, calcula o Business Insider. Assim, o
lucro bruto da Apple com cada iPhone é de aproximadamente US$ 250, segundo
o site.).

Fonte: estadao.com.br - Adaptado pelo Site da Logística.

http://www.sitedalogistica.com.br/products/por-que-a-apple-fabrica-o-iphone-
na-china-/. Consultado em 02/05/2016.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 565


Tem-se, nos exemplos, sinteticamente apresentados, alguns
dos aspectos levantados sobre a opção fundamental entre expan-
dir suas atividades de maneira centralizada – por meio da empresa
– ou descentralizada – através do mercado.
A Apple busca, por meio de parcerias empresariais descentra-
lizadas – contratuais ou personificadas – os insumos de que precisa
e que são disponibilizados em mercados perfeitamente competiti-
vos.
Note-se, na reportagem, a ênfase dada à facilidade de substi-
tuição dos fornecedores dos insumos que ela emprega na fabrica-
ção de seus produtos. Além disso, as parcerias estabelecidas com
tais fornecedores estrangeiros implicam em pouquíssima troca de
informações, minimizando o risco de comportamento oportunista.
Lado outro, vê-se que os insumos monopolísticos ligados a
fabricação do produto – como as patentes e aplicativos utilizados –
encontram-se jurídica e economicamente unificados sob a titulari-
dade da sociedade empresária, configurando forma empresarial ou
centralizada de exercício da atividade econômica.
Redução de custos de produção e o formato do mercado no
qual são fornecidos os insumos buscados através da cooperação
são, em síntese, a essência da decisão na escolha pelo formato ju-
rídico da relação intersocietária.

566 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XVII
Dissolução parcial de sociedade e apuração dos haveres
de sócio

1 – Dissolução parcial de sociedade: caracterização

Dissolução parcial de sociedade refere-se a qualquer evento


que provoque a extinção da relação societária em relação a um ou
alguns dos membros sem, entretanto, afetar sua continuidade no
que se refira aos demais integrantes656.
É o rompimento do contrato de sociedade em relação a um
dos sócios, com a sua manutenção entre os demais e, principal-
mente, permanência da pessoa jurídica criada e da atividade à qual
ela se dedica.
A dissolução parcial da sociedade é um gênero do qual são
espécies o direito de retirada ou recesso societário, a exclusão de
sócio e, dependendo da solução aplicada, também o falecimento
de sócio e a penhora de suas quotas.
Com suas evidentes e relevantes peculiaridades, todos se
aplicam tanto às sociedades anônimas quanto às limitadas, razão
pela qual se passa à abordagem de cada uma destas modalidades
em ambos os modelos societários.

2 - O recesso societário

O recesso ou direito de retirada é a modalidade de rompimen-


to - ou dissolução - parcial dos vínculos societários na qual um só-

656 Se é correto afirmar que as formalidades de constituição representam o início da


existência da pessoa jurídica e, lado outro, a sua dissolução total significa seu encerramento, a
dissolução parcial pode ser entendida como o recomeço da sociedade, que, embora alterada
– muitas vezes de forma radical – em seu grupo de sócios, se reestrutura juridicamente para
continuar no exercício de seu objeto.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 567


cio manifesta, baseado em causa prevista em dispositivo legal ou
nos atos constitutivos, a vontade de abandonar a sociedade.
Rompe-se, em relação a um dos sócios e por vontade dele, o
vínculo societário, que, ao mesmo tempo, será preservado, no que
se refere aos demais membros. Trata-se, portanto, do que se pode
chamar de modalidade voluntária de dissolução parcial de socie-
dade, a qual está hoje consagrada expressamente tanto na Lei n.
6.404/76 quanto no Código Civil657.
É possível, desde logo, apontar duas características do reces-
so societário presentes tanto no que se refere às sociedades anô-
nimas quanto no que diz respeito às limitadas. Tais características
auxiliam a compreensão geral do instituto e, por isso, merecem re-
ferência.
A primeira delas está na constatação de que o direito de se
retirar da sociedade deve estar necessariamente amparado em hi-
pótese prevista em lei ou nos atos constitutivos da sociedade. O
recesso societário não é um direito que o sócio pode exercer de
maneira infundada ou incondicionada658. Ao contrário, esta manifes-
tação deve ser acompanhada de seu fundamento legal ou contra-
tual e precisa atender às eventuais condições estabelecidas para
seu exercício.
A segunda característica do recesso societário está na nature-
za unilateral da declaração que o exige. A manifestação do sócio no
sentido de se retirar da sociedade não precisa, para que possa pro-

657 No Brasil a admissão do recesso societário ocorreu inicialmente por via do artigo 15 do
Dec. 3708/19, regulador das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. ‘’Provém o
artigo 15 do Dec. 3708/19 do parágrafo 3º do art.41 da lei portuguesa de 1901, introdutora das
sociedades por quotas no direito português. Esta se inspirou no artigo 158 do Código Comercial
italiano de 1882 que, por sinal, repetiu o artigo 159 do Código de 1865 - artigo que primeiro
regulou, no direito societário em geral, o direito de recesso’’ MARTINS, Fran. Retirada de Sócio
por permissão contratual e apuração de Haveres, em Novos Estudos de Direito Societário. Ed.
Saraiva, São Paulo, 1987, Pg. 232.
658 Admitir que um sócio possa, a qualquer tempo e por sua mera decisão pessoal, infundada
e incondicionada, exigir o rompimento parcial do contrato social fragiliza excessivamente
uma relação jurídica como a de sociedade, a qual depende, regra geral, de certo grau de
perenidade e estabilidade.

568 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


duzir efeitos, de aceitação pelos demais componentes do contrato
social ou mesmo de apreciação judicial.
Deste modo, se fundada em causa elencada expressamente
em lei ou nos atos constitutivos, o recesso constitui-se em declara-
ção receptícia de vontade, a qual se efetiva assim que a sociedade
e os outros sócios dela tomam ciência659.
Assim, o recesso societário depende, para sua validade, de
amparo em previsão legal ou contratual, mas, por outro lado, não
se subordina, se fundamentado, à anuência dos sócios remanes-
centes, bastando a comprovação de que a sociedade tenha sido
cientificada da vontade do sócio retirante.
Em se tratando das sociedades limitadas, o único dispositivo
específico sobre o recesso societário é o art. 1. 077 do Código Civil,
que elenca como fundamentos para o pleito do sócio a deliberação
que modifique cláusula do contrato social ou aquela que aprove a
participação da sociedade em procedimentos de fusão ou incorpo-
ração.
A regra do art. 1. 077 do Código Civil é explicita ao exigir que o
sócio postulante de sua retirada tenha expressamente manifestado
seu voto em sentido contrário à deliberação por ele invocada para
deixar a sociedade. Portanto, só os sócios dissidentes na assem-
bleia ou reunião que aprovou a alteração do contrato social ou a
participação em procedimentos de fusão ou incorporação podem
pleitear, em virtude da aprovação desta medida, seu recesso ou re-
tirada da sociedade660.
É, tanto sob o aspecto jurídico quanto lógico, inadmissível que
o sócio possa manifestar sua vontade em favor da alteração no con-
trato social ou da participação da sociedade em procedimento de
659 “Mediante declaração unilateral de vontade, o sócio dissidente de uma deliberação social
pode, nos casos expressamente previstos em lei, desligar-se de sociedade, obtendo o reembolso
do valor de suas cotas ou ações.” COMPARATO. Fábio Konder. Valor de reembolso no recesso
acionário. Revista dos Tribunais. V. 563. São Paulo. Pg. 42.
660 Modesto Carvalhosa entende, de forma análoga ao que se verifica nas sociedades
anônimas, que os sócios ausentes na deliberação que fundamenta o pedido de recesso
possam também pleiteá-lo. CARVALHOSA. Modesto. Comentários ao Código Civil – Parte
Especial – Direito de Empresa. Ed. Saraiva. São Paulo. 2003. Pg. 246/247.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 569


fusão ou incorporação e possa, depois, postular sua retirada do em-
preendimento pela aprovação da medida em questão.
Além disso, fixou o art. 1. 077 o prazo de 30 (trinta) dias para
que o sócio dissidente da deliberação referente a fusão, incorpora-
ção ou alteração do contrato social emita sua declaração unilateral
de vontade no sentido de exercer sua retirada do empreendimen-
to661.
Ainda em se tratando de recesso societário - abandono volun-
tário da sociedade, pelo sócio – necessária também referência ao
art. 1. 029 do Código Civil, regulador das Sociedades Simples, mas
que, segundo parte da doutrina, aplicar-se-ia subsidiariamente, em
não havendo disposição contratual em sentido contrário, também
às sociedades limitadas662.
Isto significa que as sociedades limitadas submetidas, por de-
cisão dos sócios – e com base no permissivo do art. 1.053 do Código
Civil – à regência subsidiária pelas normas da Sociedades Simples
(art. 997 a 1.038 do Código Civil) estariam sujeitas também às hipó-
teses de recesso societário previstas pelo art. 1.029 ora menciona-
do. Em outras palavras: as sociedades limitadas regidas subsidiaria-
mente pelas normas das Sociedades Simples estariam sujeitas às
hipóteses de direito de retirada previstas pelos art. 1. 077 e 1.029 do
Código Civil663.
661 Acerta o legislador ao fixar tal prazo, de modo a evitar que a sociedade, se deliberar sobre
as matérias ensejadoras do direito de recesso, fique permanentemente sob a possibilidade
de se sujeitar a eventual pedido de saída de um de seus membros.
662 LANA. Henrique Avelino. Dissolução Parcial nas Sociedades Limitadas. Arraes Editores.
Belo Horizonte. 2012. Pgs. 110 e segs. COELHO. Fábio Ulhôa. A Sociedade Limitada no novo
Código Civil. Ed. Saraiva. São Paulo. 2003. Pg. 102. Em sentido contrário está o entendimento
de Alfredo de Assis Gonçalves Neto: “Em verdade, as normas do art. 1.029 e 1.077 têm
campos de aplicação distintos: há regra específica dispondo sobre o direito de retirada na
sociedade limitada de modo diverso daquele enunciado no disciplinamento das sociedades
simples, aplicável, apenas subsidiariamente, às sociedades que não contenham disposição
diversa. E o art. 1.077 não faz distinção entre espécies de sociedades limitada para aplicar-se,
exclusivamente, a uma delas”. GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de Empresa. Ed.
Revista dos Tribunais. São Paulo. Pg. 373.
663 “A existência de duas previsões no Código Civil criou alaridos doutrinários. Uma interpretação
literal e sistemática levaria à conclusão de que o art. 1.029, relativo às sociedades simples,
não seria aplicável às sociedades limitadas porque há o art. 1.077, e a subsidiariedade só teria
cabimento em caso de lacuna. O problema é que a aplicação ampla do art. 1.077 restringiria

570 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O art. 1.029 do Código Civil prevê expressamente a possibili-
dade de recesso imotivado em sociedades constituídas por prazo
indeterminado664, de modo análogo ao que se passou a admitir, an-
tes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, com fundamento
no antigo art. 335, V do Código Comercial de 1850665.
A única exigência que o art. 1.029 do Código Civil faz ao sócio
que exerce, na sociedade constituída por prazo indeterminado, seu
direito de recesso é que esta decisão seja notificada aos demais
integrantes, com antecedência mínima de 60 (sessenta) dias666.
Esta acolhida de direito de recesso imotivado em sociedades
constituídas por prazo indeterminado pode ser vista como aplica-
ção do princípio segundo o qual não se admite contratos “eternos”,
combinado com a necessidade de se preservar a empresa contra
as eventuais divergências entre seus sócios667.
Se a relação societária não tem data para se encerrar é preci-
so, segundo tais fundamentos, facultar ao sócio o direito de rompê-

o direito de retirada para todas as limitadas a apenas três hipóteses incomuns, aprisionando
indefinidamente e promovendo crises políticas”. NUNES. Marcelo Guedes. Dissolução Parcial
na Sociedade Limitada. (IN) COELHO. Fábio Ulhôa. (Coord.) Tratado de Direito Comercial. Vol. II.
Ed. Saraiva. São Paulo. 2015. Pg. 231.
664 “Neste caso [art. 1.029 do Código Civil] desejando [o sócio] sair, é-lhe deferido o direito
de retirada, a ser exercido por meio de simples notificação, da qual não é exigido que conste
qualquer motivo (“denúncia vazia”). Esta é a situação que abre ao sócio a possibilidade de retirar-
se da sociedade quando ocorre a quebra da affectio societatis em relação aos demais, pois a
crise do relacionamento entre os sócios em si mesma não gera tal direito”. VERÇOSA. Haroldo
Malheiros Duclerc. Direito Comercial – Sociedades. 3ª edição. Ed. Revista dos Tribunais. São
Paulo. 2014. Pg. 224.
665 Sobre a evolução interpretativa da dissolução parcial de sociedade com base no art.
335, V do Código Comercial de 1850: BARBI FILHO. Celso. Dissolução Parcial de Sociedade
Limitada. Ed. Mandamentos. Belo Horizonte. 2006.
666 Como já ressaltado, esta notificação se presta a dar ciência aos demais membros e não
a obter a sua anuência à manifestação de vontade do sócio retirante.
667 Se a sociedade for por prazo determinado o recesso não pode, com fundamento no art.
1.029, efetuar-se imotivadamente, sendo, ao contrário, necessário que o sócio baseie seu
pedido em “justa causa”, termo que se refere ao cumprimento das obrigações dos sócios
para com a sociedade e vice-versa.
Assim, para que o sócio de uma sociedade por prazo determinado possa pleitear o recesso
societário, com base no art. 1.029 do Código Civil, é preciso demonstrar que o contrato social
não está sendo devidamente cumprido, ao menos com relação a ele.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 571


-la a qualquer tempo, sem, entretanto, comprometer a continuação
do contrato social e da pessoa jurídica entre os demais integrantes.
Já nas sociedades constituídas por prazo determinado – de
notória minoria - as preocupações acima não são tão evidentes,
pois relação societária já tem, em princípio, seu momento de en-
cerramento, cabendo aos sócios respeitarem seus direitos e obri-
gações até tal data.
Por isso, o mesmo art. 1.029 do Código Civil estabelece que,
em caso de sociedade constituída por prazo determinado, o reces-
so somente se valida uma vez comprovada, em ação judicial pró-
pria, “justa causa”, a qual deve ser tomada como eventual descum-
primento dos direitos legais ou contratuais do sócio retirante668.
Não se pode deixar de salientar que a excessiva liberalidade
do texto do art. 1.029 do Código Civil torna, na prática, “letra morta”
seu art. 1. 077, ao menos no que diz respeito às sociedades limitadas
constituídas por prazo indeterminado e cujo regime jurídico subsidi-
ário seja as normas das sociedades simples.
Isto porque o sócio de uma sociedade limitada constituída
por prazo indeterminado e cujo regime jurídico subsidiário seja as
regras da sociedade simples pode deixar o empreendimento por
mera notificação aos demais, com a antecedência mínima de ses-
senta dias e com fundamento no art. 1.029 do Código Civil, não pre-
cisando, portanto, aguardar a ocorrência de alguma das hipóteses
do art. 1. 077669.
668 O direito de retirada será válido, nas sociedades constituídas por prazo determinado,
apenas se motivado e pleiteado judicialmente, o que vai em sentido praticamente oposto ao
que se viu nas sociedades por prazo indeterminado, onde o direito de recesso é imotivado e
extrajudicialmente efetuado.
669 Tal interpretação pode levar ao comportamento oportunista do sócio, que, diante da
primeira divergência interna, “ameaça” os demais com o pedido dissolutório, de forma a
“obrigá-los”, por exemplo, a adquirir suas quotas ou tomar decisões conforme sua vontade.
A relação societária é séria e cria expectativas em relação não apenas aos sócios, mas a
terceiros em geral. Uma vez constituída por prazo indeterminado, somente pode ser rompida
se alterados os termos do ato constitutivo, com prevê o art. 1.077 do Código Civil. No mais,
deve ser honrado o empreendimento iniciado. Se o sócio deseja reservar-se o direito de sair
a qualquer tempo, tal previsão deve conter no contrato e não apenas contar com a aplicação
subsidiária das regras sobre sociedades simples, o que, por si só, já é de discutível admissão,
dada a existência de regra própria (art. 1. 077) sobre o recesso nas sociedades limitadas.

572 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Apesar disso, a preocupação em, por um lado, garantir ao só-
cio quotista o direito de deixar a sociedade criada por prazo inde-
terminado e, por outro, preservar a empresa das divergências entre
seus integrantes, tem prevalecido.
Deste modo, o texto do art. 1.029 do Código Civil acaba por
ser, atualmente, estendido a todas as sociedades limitadas, inde-
pendentemente de qual seja o seu regime legal subsidiário670, o
que consagra, na prática, o direito de recesso como modalidade
voluntária, imotivada e extrajudicial de dissolução parcial de socie-
dades limitadas.
Nas sociedades anônimas o direito de recesso encontra-se
disciplinado no art. 137 da Lei n. 6.404/76 e guarda, como ressal-
tado, vários pontos de identidade com o seu regramento no Códi-
go Civil, a começar pela necessidade de basear-se deliberação da
sociedade capaz, por previsão legal expressa, de conferir tal direito
aos sócios divergentes.
A origem do direito de recesso, nas sociedades anônimas,
está em uma deliberação da Assembleia Geral de Acionistas. Se
este órgão delibera e aprova alguma das matérias referidas no art.
137 da Lei n. 6.404/76, os acionistas que não concordaram com tal
aprovação terão o direito de retirar-se da companhia, dada a gravi-
dade ou direto reflexo da deliberação sobre o interesse deles671.
670 “A prática jurídica, no entanto, vem reconhecendo a instabilidade do vínculo como inerente
a todas as sociedades limitadas. Com isso, os quotistas de uma sociedade limitada de prazo
indeterminado sempre terão direito de retirada imotivada, ainda que o seu contrato social
contenha cláusula prevendo aplicação subsidiária da Lei das Sociedades Anônimas”. NUNES.
Marcelo Guedes. Dissolução Parcial na Sociedade Limitada. (IN) COELHO. Fábio Ulhôa.
(Coord.) Tratado de Direito Comercial. Vol. II. Ed. Saraiva. São Paulo. 2015. Pg. 231.
671 Para bem compreender o direito de recesso – tanto no Código Civil quanto na Lei n.
6.404/76 – deve-se entender que ele está legalmente consagrado para permitir ao sócio
que discorde de uma deliberação tomada pelos demais membros, o direito de afastar-se da
sociedade.
Por outro lado, a necessária estabilidade das relações societárias não se sustentará se,
por qualquer discordância, ainda que insignificante, o sócio puder retirar-se. Assim, apenas
naquelas deliberações elencadas por lei – e que, pressupõe-se, sejam mais sérias – confere-
se ao divergente o direito de saída voluntária. ‘’Tomada a decisão pela maioria das ações
votantes, às demais ações (e seus titulares) não resta senão se conformar, permanecendo na
sociedade, ainda que insatisfeitas. Existem, contudo, determinadas decisões, constantes de um
rol de numerus clausus, que, por alterarem sensivelmente a estrutura ou a vida da sociedade,

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 573


O direito de recesso nas companhias é, portanto, modalidade
de saída voluntária do acionista, decorrente de sua divergência672
quanto à aprovação, pela Assembleia Geral de Acionistas, de algu-
ma das matérias expressa e especificamente enumeradas pelo art.
137 da Lei n. 6.404/76. São elas: a criação ou alteração significati-
va - e sem prévia autorização estatutária - na estrutura das ações
preferencias da companhia673; a redução do dividendo obrigatório; a
participação da companhia em cisão, fusão, incorporação, ou gru-
pos de sociedades674; a mudança de objeto social; a cessação do
estado de liquidação ou, por fim, a criação de partes beneficiárias.
Assim como se verifica no Código Civil, o acionista que possa
e queira exercer o direito de retirada deverá, sob pena de decadên-
cia, manifestá-lo em determinado prazo, que, no caso das socieda-
des anônimas, é de 30 (trinta) dias, contado da publicação da ata da
Assembleia Geral que tenha aprovado a deliberação fundamenta-
dora do recesso (Lei n. 6.404/76, art. 137, IV, V e par. 4º).
O direito de retirada é, em qualquer tipo societário, instituto
de particular dificuldade de regramento, pois, por um lado, não se
geram para os dissidentes o direito de se retirarem da companhia, exigindo que esta lhes
reembolse o valor de suas ações. Esse é o direito de retirada ou de recesso, disciplinado no
art.137’’. CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Editora Del Rey, Belo Horizonte,
2005, Pg. 157.
672 Ao contrário do art. 1. 077 do Código Civil, o art. 137 par. 2º da Lei n. 6.404/76 é expresso
ao estender o direito de recesso àquele acionista que não tenha comparecido à Assembleia
Geral que aprovou a matéria motivadora do pedido de retirada ou que, embora presente,
tenha se abstido de votar.
673 Se aprovada a criação de ações preferenciais; o aumento nas classes desta espécie
sem respeito à proporção com as já existentes; modificadas as preferências, vantagens ou
condições de resgate ou amortização já conferidas pela companhia ou criada nova classe de
preferenciais mais favorecida, os acionistas cujas ações sejam afetadas pela deliberação – e
somente eles - poderão exigir o recesso.
Trata-se, portanto, de uma restrição na legitimidade ativa para o recesso societário, pois,
se o fundamento do pedido de retirada for deliberação referente à criação ou alteração na
estrutura de ações preferenciais da companhia, somente os titulares de ações diretamente
prejudicadas pela deliberação poderão requerer sua retirada.
674 Se o fundamento do pedido de retirada for a participação da companhia em
procedimentos de fusão, incorporação ou grupo de sociedades, sua admissão está
condicionada à inexistência, para as ações do retirante, de liquidez e dispersão no mercado
de valores mobiliários. (Lei n. 137, II, a) e b).
A cisão, por sua vez, somente gera o direito de recesso se preenchida uma ou mais das
hipóteses elencadas pelo art. 137, III da Lei n. 6.404/76.

574 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


pode restringir demasiadamente o direito do sócio deixar a socieda-
de, por sua vontade, desde que haja fundamento para isso.
Por outro lado, uma excessiva liberalidade ou ampliação de-
masiada das hipóteses ensejadoras do direito de recesso – como se
vê no art. 1.029 do Código Civil – pode expor a sociedade ao risco de
instabilidade financeira causada pela “fuga” de seus sócios e decor-
rente necessidade de reembolso do valor de suas quotas ou ações.
Para o sócio, o direito de recesso representa a possibilidade
de deixar a sociedade, caso aprovada alguma deliberação que con-
trarie seus interesses, seja esta, nas sociedades limitadas, a altera-
ção do contrato social ou a participação em fusões e incorporações
ou, nas companhias, alguma das matérias elencadas pelo art. 137
da Lei n. 6.404/76.
Decidir pelo exercício de recesso é, em síntese, concluir que,
com a aprovação da deliberação que o fundamenta, a sociedade
deixará de gerar, para o sócio dissidente, ganhos suficientes para
justificar o seu investimento em quotas ou ações. O sócio que exer-
ce o direito de recesso desiste da sociedade por considerar que,
com a deliberação tomada, o retorno do investimento nas quotas
ou ações deixa de ser economicamente interessante.
Sob o prisma da sociedade – e, mais especificamente ainda,
da maioria do capital social – a atribuição do direito de recesso aos
dissidentes é o preço a ser pago caso se decida aprovar alguma
das matérias que possa fundamentá-lo. A sociedade “pagará” pela
aprovação da deliberação ao ter que suportar, com seu patrimônio,
a debandada de seus sócios minoritários, pelo exercício do direito
de retirada.
A maioria do capital social deve, portanto, decidir se o pre-
ço da deliberação tomada é economicamente interessante de ser
pago ou se é mais eficiente optar por simplesmente não aprovar a
matéria que ensejaria aos dissidentes o direito de recesso675.
675 O par. 3º do art. 137 da Lei n. 6.404/76 autoriza os órgãos de administração da companhia
a convocarem nova Assembleia Geral para eventualmente reconsiderar a deliberação
ensejadora do direito de recesso, se entenderem que a estabilidade financeira da companhia
pode ser comprometida pela saída voluntária de acionistas.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 575


3 - Exclusão de sócio

A exclusão de sócio é a espécie ou modalidade de dissolu-


ção parcial de sociedade caracterizada pela saída compulsória de
um dos integrantes, fundamentada em violação de suas obrigações
legais ou contratuais e formalizada por deliberação dos demais só-
cios ou decisão judicial.
A primeira das obrigações dos sócios consiste no chamado
dever de conferimento ou integralização. Trata-se da obrigação que
cada sócio assume de integralizar - transferir ao patrimônio social -
a parcela do capital social por ele subscrita na forma de ações ou
quotas.
Ao lado deste dever apresenta-se também a noção de dever
de colaboração, que se constitui na obrigação que os membros da
sociedade assumem no sentido de se empenharem – ou, no míni-
mo, de não comprometerem - a consecução do objeto social.
Portanto, a elaboração doutrinária acerca do instituto da ex-
clusão de sócio gravita em torno das noções de rescisão contratual
por inadimplemento, do dever de conferimento e de colaboração
do sócio e do princípio da preservação da empresa. O contrato so-
cial é rescindido em relação ao participante que viola os seus de-
veres de sócio com o fim de preservar-se a empresa e o núcleo
econômico organizado676.
O tema será tratado, tanto no que diz respeito às sociedades
limitadas quanto anônimas, conforme se configure hipótese de ex-
676 No regime jurídico anterior ao Código Civil de 2002, a exclusão de sócio, inicialmente
admitida apenas como consequência à violação do dever de conferimento, caminhou, para
os quotistas, no sentido de ser admitida também para o caso de inadimplemento ao dever
de colaboração.
Em um primeiro momento, a exclusão de sócio quotista somente era acolhida na hipótese de
não integralização de sua parcela no capital social (art. 7º do Dec. 3708/19), posto ser esta a
única situação prevista expressamente na legislação específica.
Posteriormente, estudiosos e tribunais passaram a admitir também, nas sociedades por
quotas, a exclusão de sócio que afrontasse seu dever de colaboração, de forma a consagrar
as preocupações com a preservação da empresa e a flexibilização do intuitu personae como
regra de organização do corpo societário. Sobre a evolução da matéria no direito brasileiro,
confira: REQUIÃO. Rubens. A preservação da sociedade comercial pela exclusão do sócio. Ed.
Acadêmica. Curitiba. 1959.

576 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


clusão a ser formalizada por ato dos próprios sócios (exclusão ex-
trajudicial) ou pelo Poder Judiciário (exclusão judicial) e segundo
trate-se de exclusão por inadimplemento ao dever de conferimento
ou de colaboração.

3.1 – Exclusão extrajudicial de sócio por violação ao


dever de integralização

A exclusão de sócio é medida tradicionalmente aplicada


àquele integrante de sociedade que se furta ao dever de realizar a
parcela do capital social por ele subscrita, tendo encontrado aco-
lhida expressa no Código Comercial de 1850 (art. 289), Dec. Lei 3.
708/19 (art. 7o), Lei das Sociedades Anônimas (art. 107 II da Lei n. 6.
404/76) e Código Civil.
O Código Civil dedicou dois dispositivos ao regramento da
questão, sendo o primeiro deles o par. único do art. 1004, que, re-
ferindo-se às sociedades simples, dispõe que o sócio remisso677
pode, se devidamente constituído em mora, ser retirado compul-
soriamente dos quadros da sociedade por opção da maioria dos
demais sócios.
Este dispositivo é quem fixa as condições básicas para a ex-
clusão de sócio remisso também no que diz respeito às sociedades
limitadas, dada a expressa referência que a ele efetuou o art. 1.058,
este sim localizado na parte do Código Civil dedicada especifica-
mente às limitadas.
O sócio quotista remisso é constituído em mora, para fins de
sua exclusão, seguindo-se as determinações do caput do art. 1.004,
o qual estipula que os representantes legais da sociedade devem
proceder a notificação extrajudicial do sócio que descumpra a for-
ma ou prazo contratualmente fixados para a integralização das quo-
tas por ele subscritas.

677 Sócio remisso é aquele que não cumpre, no prazo e forma estipulados, o dever de
integralizar suas quotas ou ações.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 577


O segundo requisito, posterior à notificação citada, diz respei-
to a deliberação societária no sentido da saída compulsória do só-
cio remisso. Trata-se de questão controversa, pois a literalidade do
artigo 1.058 do Código Civil se reporta aos “outros sócios”, expressão
que remete à maioria de pessoas, e não do capital social.
Isto significa que, para a aplicação da exclusão extrajudicial
a um sócio quotista remisso, na forma dos artigos 1.004 e 1.058 do
Código Civil, é necessária a concordância anterior da maioria dos
demais membros, o que não necessariamente corresponde à maio-
ria do capital social678.
O art. 1058, aplicável especificamente às sociedades limita-
das, dispõe sobre outras medidas, além da exclusão, colocadas à
disposição dos sócios remanescentes contra o integrante remisso.
Este dispositivo preocupou-se em frisar que os demais só-
cios podem optar pela transferência das quotas do sócio remisso
a si próprios ou a terceiros, estando, em qualquer das hipóteses,
obrigados a restituir ao sócio excluído os valores que este já tenha
integralizado, deduzidas as despesas judiciais e extrajudiciais com
a exclusão, os juros da mora na integralização do capital e outras
prestações estabelecidas no contrato679.
A figura do sócio que contribui para a sociedade com serviços
ao invés de bens ou dinheiro acarreta outra hipótese de exclusão
extrajudicial de sócio violador de seus deveres sociais. Trata-se da-
quela prevista no art. 1.006 do Código Civil, que prevê a sanção de
exclusão e privação de lucros ao sócio de indústria que, em uma
678 Trata-se, portanto, de expressa exceção à regra geral em termos de deliberações
societárias, a qual é baseada no capital social e não no número de sócios.
Deve-se salientar, em apoio à exceção mencionada, que o sócio remisso sujeita os demais
integrantes da sociedade limitada a responderem, com seu patrimônio pessoal, pela
integralidade das quotas não integralizadas (art. 1052 do Código Civil).
Assim, constatado o descumprimento, por um sócio, de seu dever de integralização, poderão
os outros integrantes efetuar sua exclusão sem depender de aprovação da maioria do capital
social, de forma a preservarem seus bens particulares contra eventuais responsabilidades
pelas quotas não integralizadas.
679 Tais opções decorrem da própria liberdade dos sócios escolherem os demais membros
da sociedade (no caso da opção pela cessão das quotas a terceiros ou aos membros
remanescentes) e da proibição legal de enriquecimento sem causa (que estaria a incidir caso
a sociedade pudesse ficar com as parcelas já pagas pelo sócio remisso excluído).

578 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Sociedade Simples, empregue-se em atividade estranha ao objeto
social, sem autorização contratual680.
A exclusão de sócio remisso encontra-se expressamente
acolhida também nos art. 106 e 107 da Lei n. 6.404/76, com base
nos quais, verificada a mora do acionista, na integralização de suas
ações, a companhia pode optar entre a cobrança judicial dos valo-
res devidos ou a venda das ações do remisso em Bolsa de Valo-
res681, hipótese que, na prática, equipara-se à sua exclusão.
O sócio remisso – violador de seu dever de integralização – é,
portanto, sancionado com a possibilidade de sua exclusão extraju-
dicial em qualquer modelo societário atualmente disciplinado no
direito brasileiro, dadas a facilidade e objetividade na comprova-
ção da falta cometida e o comprometimento que esta falta acarreta
para as atividades da sociedade – no caso das companhias – ou
mesmo para o patrimônio pessoal dos demais sócios – na hipótese
das limitadas.

3.2 – Exclusão extrajudicial de sócio por violação ao seu


dever de colaboração

O sócio quotista pode ser excluído por ato extrajudicial dos


demais integrantes não apenas quando descumpre seu dever de
integralização, mas também quando negligência seu dever de co-
laborar para o sucesso da empresa, como se pode constatar no art.
1.085 do Código Civil 682.
680 O sócio de indústria somente é admitido, no atual direito societário brasileiro, na
Sociedade Simples, regida pelos artigos 997 e seguintes do Código Civil.
681 As companhias fechadas não têm, por óbvio, como alienar as ações do sócio remisso
em Bolsa de Valores. Por isso, verificada a mora do acionista de companhia fechada na
integralização de suas ações, cabe a opção entre a cobrança judicial dos valores devidos ou,
na forma do art. 107 par. 4º da Lei n. 6.404/76, a exclusão do sócio inadimplente, seja através
da integralização de suas ações com lucros ou reservas (declarando-as caducas) ou por meio
da redução do capital social no montante a elas referente.
682 Questão negligenciada no Código Comercial de 1850 e no Dec. Lei n. 3. 708/19, o tema
suscitou amplo debate doutrinário e jurisprudencial, face à necessidade de conciliar o
interesse na preservação da empresa contra a conduta dos sócios, por um lado, e o direito
do sócio de permanecer na sociedade, por outro. “A ausência de disciplina legal expressa

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 579


A análise do art. 1.085 do Código Civil deve começar com o
próprio título da Seção VII, Capítulo IV, Livro II, no qual se insere a
norma em estudo. Trata-se “Da resolução da sociedade em relação
a sócios minoritários”.
Contraposta à já estudada diretriz dos art. 1.004 e 1. 058, aqui
o Código Civil deixa expressa sua orientação de que o art. 1.085 se
aplique somente aos quotistas minoritários, pois vincula a exclusão
extrajudicial ali disciplinada a anterior aprovação pela maioria dos
683
sócios, representativa de mais da metade do capital social.
Note-se, porém, que os demais requisitos fixados pelo art.
1.085 não escapam de críticas, em que pese o louvável objetivo
buscado. São eles: a prática de ato de inegável gravidade e que
ponha em risco a continuidade da empresa; a existência de cláusula
no contrato social estipulando a possibilidade de exclusão extraju-
dicial de sócio por “justa causa” e, por fim, a garantia de ampla defe-
sa ao sócio que se pretende excluir.
Inicialmente deve-se ressaltar que as expressões “atos de ine-
gável gravidade” que “ponham em risco a continuidade da empresa”
e “justa causa”, empregadas pelo artigo em questão, se equivalem,
na medida que estes “atos de inegável gravidade” são exatamente
a causa (ou melhor, a “justa causa”) de exclusão do sócio.
Dito isso, tem-se que é necessário constar do contrato social
uma cláusula que autorize a maioria do capital a excluir um sócio
minoritário sempre que houver “justa causa”, ou seja, sempre que

acarretou, a nosso ver, inadequada e excessivamente ampla solução para a matéria. Passou-
se a conferir validade a exclusão extrajudicial de sócio quotista por simples deliberação da
maioria do capital social – e independente de cláusula contratual neste sentido - tendo como
fundamento (ou “justa causa”) a alegação de simples “desarmonia” com o membro excluido.”
(LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 9a edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro.
2012. Pg. 601 e segs).
683 Não se pense, entretanto, que o Código prevê a sanção de exclusão por violação
aos deveres de colaboração apenas para os sócios minoritários. Ocorre que, como se
demonstrará, a exclusão do sócio majoritário, por violação de seu dever de colaboração, se
efetua judicialmente.
Por outro lado, chama a atenção a exigência, pelo art. 1.085 do Código Civil, de quórum
majoritário tanto segundo o número de sócios quanto com base no montante do capital
social.

580 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


um sócio minoritário praticar atos de inegável gravidade e que po-
nham em risco a continuidade da empresa.
Estes atos de inegável gravidade devem, por sua vez, ser
compreendidos como violações ao dever de colaboração do sócio.
Trata-se do sócio que age deliberadamente contra e não a favor
do empreendimento comum, colocando, assim, toda a empresa em
risco.
É recomendável, dada a excessiva amplitude da expressão,
que o contrato social enumere, sempre em rol exemplificativo, atos
que serão considerados, para fins de aplicação do art. 1.085 do Có-
digo Civil, de “inegável gravidade” e capazes de colocar em risco a
continuidade da empresa684.
Quanto ao prazo e forma para o exercício, pelo sócio em vias
de exclusão, do direito de defesa contra este ato, é preciso salientar,
em primeiro lugar, a obrigatoriedade de informação ao acusado, por
escrito e de forma detalhada, dos atos de inegável gravidade que
lhe são atribuídos.
Sua defesa deverá ser apresentada na assembleia ou reunião
de sócios convocada, na forma da lei, para deliberar sobre sua ex-
clusão, considerando-se prazo exigível para elaboração desta defe-
sa aquele estipulado no Código como lapso temporal mínimo entre
a realização das formalidades de convocação da assembleia de só-
cios e sua realização (art. 1.152 parágrafo. 3º do Código Civil).
A grande crítica ao dispositivo em análise se refere ao acolhi-
do direito de defesa do sócio em vias de ser excluído da sociedade,
pois, ao final das contas, quem vai analisar a gravidade do ato atri-
buído ao sócio e o risco que ele ou estes atos trazem à continuidade
do empreendimento?
A redação do texto legal em estudo acaba por possibilitar que
a maioria - dos sócios e do capital social – simplesmente acredite
que o integrante a ser excluído tenha praticado tais atos de inegável
gravidade para que se possa, de fato, efetuar a sua exclusão da so-

684 GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de Empresa. Ed. Revista dos Tribunais. São
Paulo. 2007. Pg. 395.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 581


ciedade, restando ao integrante acusado – e não aos seus acusado-
res - o ingrato ônus de desconstituir, em sua defesa, tal “presunção”.
Poder-se-ia argumentar, em prol do sócio minoritário em vias
de ser excluído, que é a maioria do capital social e dos sócios que
precisa provar a “justa causa” motivadora do ato de exclusão por
eles posto em prática.
Tal assertiva é correta, mas não soluciona a questão pois não
há, in casu, um terceiro que, alheio ao conflito entre os sócios, ve-
nha a julgar as provas das alegações formuladas por cada uma das
partes.
No caso do art. 1.085, os “acusadores” (sócios remanescentes)
são as mesmas pessoas que vão avaliar e julgar as razões do “acu-
sado” (o sócio minoritário a ser excluído). Não há, como no processo
judicial ou administrativo, a estrutura tríplice composta por autor,
réu e julgador. Aqui as pessoas do autor e julgador se confundem,
em notória afronta aos mais basilares princípios processuais.
Infelizmente a redação do art. 1.085 do Código Civil transfor-
mou a exclusão extrajudicial de sócio quotista em verdadeira “de-
núncia vazia”, ao permitir que tal medida seja fundamentada na flui-
da noção de “ato de inegável gravidade” e, principalmente, ao con-
ferir à maioria - dos sócios e do capital social - a apreciação desta
gravidade e de suas consequências para a empresa.
Dada esta constatação, resta salientar que o sócio excluído
em virtude de alegações infundadas tem essencialmente duas for-
mas de defender seus interesses contra o ato abusivo contra ele
praticado. São eles: a anulação da deliberação que o tenha excluído
da sociedade e a propositura de ação de responsabilidade civil para
indenização dos prejuízos decorrentes da exclusão abusiva.685

685 J. X. Carvalho de Mendonça, já apontava os dois possíveis caminhos a serem seguidos


pelo sócio que, excluído da sociedade, não se conforma com tal deliberação, por considera-
la abusiva ou infundada: ‘’O meio que tem o sócio assim excluído é a ação ordinária para anular
a deliberação da maioria dos sócios, provando que esta não atendeu nem respeitou os termos
do contrato social, e exigir os danos pela infração contratual’’. CARVALHO DE MENDONÇA.
J.X. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. III. 5ª edição, Livraria Freitas Bastos, São Paulo,
1954, Pg. 149.

582 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Com relação à ação anulatória da deliberação, o sócio exclu-
ído deve verificar se todas as formalidades legais referentes a as-
pectos como prazo e forma de convocação da assembleia, quó-
rum de instalação e deliberação válida e arquivamento da ata foram
cumpridos, em toda a sua extensão, pela sociedade.
Fixado que a deliberação social válida é pressuposto para a
realização da exclusão de sócio, pela sociedade, a anulação da as-
sembleia de sócios acarretará a nulidade das resoluções ali toma-
das, conforme expressa previsão do art.166, IV, do Código Civil.
Por outro lado, quando o ato de exclusão é, por assim dizer,
“improcedente quanto ao mérito”, ou seja, encontra-se desam-
parado em causa justificadora estampada em lei ou no ato cons-
titutivo, a situação é diversa.
Isto porque, nesta hipótese, a nulidade do ato da sociedade
atinge seu próprio objeto (art. 166, II do Código de 2002), inviabi-
lizando qualquer tentativa no sentido de repeti-lo. Desta forma o
sócio tem o direito de retornar à sociedade e, a não ser que poste-
riormente viole seus deveres para com o ente jurídico comum, po-
derá nela permanecer, posto não admitir o Código Civil a exclusão
imotivada.
Embora seja a solução mais correta, sob o ponto de vista téc-
nico, a reintegração do sócio à sociedade pode – e invariavelmente
traz – consequências danosas à empresa e a todos os sócios envol-
vidos dada a animosidade que entre surge entre aquele a quem se
tentou excluir e os demais.
Nesta situação, parece mais adequada a condenação dos au-
tores da exclusão indevida a indenizar o sócio excluído indevida-
mente, medida que, se não é a ideal, ao menos evita o constrangi-
mento de impor a convivência entre o membro a quem se tentou
excluir e seus antigos consortes.
Com relação à ação ordinária de perdas e danos, a ser movi-
da pelo sócio excluído contra a sociedade, temos que seja possível

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 583


postular eventuais indenizações vinculadas tanto a ofensas de or-
dem material quanto de cunho moral686.
Também os sócios remanescentes têm direito a postular ju-
dicialmente, por meio de ação ordinária de indenização, eventuais
prejuízos causados a eles ou à sociedade pela má conduta do sócio
excluído.
Os prejuízos indenizáveis podem ser, da mesma forma que o
verificado para a indenização da sociedade ao sócio excluído, de
ordem material ou moral.
No primeiro caso incluem-se hipóteses como, por exemplo,
eventuais negócios acaso incompletos em virtude de atitudes do
membro inadimplente com seus deveres, enquanto a eventual in-
denização por dano moral é exigível sempre que o sócio excluído
tenha provocado, por ação ou omissão, danos à imagem dos de-
mais consortes ou da sociedade.

3.3 – Exclusão judicial de sócio

A exclusão de sócio por ato do Poder Judiciário (exclusão ju-


dicial) encontra-se disciplinada pelo art. 1.030 do Código Civil e tem
por fundamento a “falta grave [do sócio] no cumprimento de suas
obrigações”. Pouco importa, deste modo, se as obrigações des-
cumpridas se referem ao dever de conferimento ou ao dever de
colaboração.
A ação judicial para a exclusão de um sócio deve ser proposta,
com base no art. 1.030 do Código Civil (c/c art. 600 do Código de
Processo Civil de 2015), pela própria sociedade, mas após delibera-
ção aprovada pela “maioria dos demais sócios”, termo que remete
à maioria dos demais integrantes, e não do capital social. É, assim,
686 Dentre os valores materiais indenizáveis estão as reservas ou dividendos distribuídos
no período em que o sócio estava indevidamente fora da sociedade, ações ou quotas
provenientes de aumentos de capital e quaisquer outros recursos financeiros auferidos
pelos membros remanescentes durante a vigência dos efeitos da exclusão injustificada,
englobados dentro da noção de lucros cessantes.
Da mesma forma, eventuais despesas que o sócio excluído tenha contraído, em função de
sua expulsão indevida dos quadros sociais, devem lhe ser devolvidas

584 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


verdadeira a conclusão de que a exclusão de sócio quotista, pelo
Poder Judiciário, não depende de deliberação aprovada por sócios
que detenham mais da metade do capital social.
A razão para tal posicionamento do Código é a constatação
de que qualquer sócio (inclusive o majoritário) pode incorrer em
violação aos seus deveres para com a sociedade, facultando-se à
maioria dos membros remanescentes – majoritários ou não - o re-
curso ao Judiciário, onde terão que comprovar suas alegações con-
tra aquele que se pretende excluir.
O outro fundamento para a propositura de ação de exclusão
de sócio é, nos termos do ar. 1. 030, a “incapacidade superveniente”
dele, termo que carece, nesta hipótese, de algum esclarecimento
sobre seu real significado.
Quando a realização do objeto social depender de determi-
nada condição pessoal dos sócios e algum deles tiver retirado o
poder de realizar tal conduta, há que se entender como ocorrida a
hipótese de exclusão ora tratada. É, por exemplo, o caso da socie-
dade constituída por médicos, para a prática da medicina, em que
um dos membros tem cassada sua licença profissional. Está este
sócio, em virtude da sanção sofrida, impedido de colaborar com
os demais (ao menos de forma plena) na realização da atividade
comum687.
Vale também observar que, por se tratar de regra atinente às
Sociedades Simples, o art. 1.030 do Código Civil somente se aplica
às sociedades limitadas desde que não estejam estas últimas, por
previsão contratual, sujeitas, em caráter supletivo, aos dispositivos
da Lei n. 6.404/76688.
687 Diferente seria a solução, porém, se a mesma sociedade, embora constituída por médicos,
tivesse por objeto social a prática de atividade alheia à medicina. Nesta situação a privação
do direito ao exercício profissional por um dos membros em nada afeta sua possibilidade de
plenamente realizar seus deveres sociais (de conferimento e de colaboração).
688 Pode-se perguntar então como fica o sócio majoritário de sociedade limitada ou o
acionista que viola seu dever de colaboração, posto não ser possível aplicar-lhes a regra do
art. 1.030 do Código Civil.
Estes sócios não estão, como a princípio pode parecer, desonerados de honrar seu dever de
colaboração, mas não há fundamento legal para que se pretenda excluir-lhes da sociedade,
ainda que por via judicial.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 585


3.4 - Hipóteses de exclusão de acionista previstas no
direito brasileiro

Apesar de constituir-se em aspecto pouco ou nada explorado


no estudo das sociedades anônimas, é possível apontar, no atual
ordenamento jurídico positivado, hipóteses de exclusão de acionis-
ta, contrariando a noção de que o instituto seja incompatível com a
natureza das companhias.
São casos extremamente restritos e que somente agora co-
meçam a ser mencionados, sempre com a preocupação de res-
guardar os direitos das minorias acionárias, princípio fundamental
da Lei. n. 6404/76 e grande preocupação de todos aqueles que
estudam a matéria.
A já mencionada exclusão do acionista remisso (art. 107 da Lei
n. 6.404/76), violador de seu dever de integralização, se apresenta
como a hipótese clássica de admissão deste instituto, no âmbito
das sociedades por ações.689
Além desta hipótese, a exclusão de acionista está abarcada
no caso do resgate de ações (art. 44 da Lei n. 6.404/76), na hipótese
de previsão estatutária aplicável ao acionista que descumpra algu-
ma prestação estabelecida nos próprios atos constitutivos e, tam-
bém, por razões de segurança nacional, em situação de guerra690.
Interessante que o resgate de ações691, embora perfeitamen-
te caracterizado com situação de saída compulsória do sócio - ou
Entretanto, se estes sócios causarem prejuízos à sociedade, ela poderá demandar-lhes, por
via judicial, a reparação civil destes prejuízos, seja com fundamento no exercício abusivo do
controle (art. 117 da Lei n. 6.404/76) ou mesmo com base no abuso dos direitos de sócio (art.
187 do Código Civil).
689 O art. 10 da Lei n. 6.404/76 corrobora esta hipótese de exclusão de acionista ao
indiretamente estendê-la também àquele sócio que se obriga a integralizar suas ações com
bens. PINTO JR. Mário Engler. Exclusão de Acionista. Revista de Direito Mercantil. N. 54. Ed.
Revista dos Tribunais. São Paulo. 1983. Pg. 87
690 CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Sociedade Anônima. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2004. Pg.
105.
691 “O resgate representa uma transmissão forçada, irrecorrível e definitiva da propriedade
das ações do acionista para o domínio da própria companhia que, em seguida, as extinguirá.
Independe, portanto, da vontade do acionista que, no caso, é constrangido a obedecer a

586 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


seja, de exclusão - não se vincula ao descumprimento, por parte do
excluído, de qualquer de suas obrigações para com a sociedade. O
titular das ações resgatadas não violou nem o dever de conferimen-
to, nem o dever de colaboração com as atividades da companhia.
Necessário ressaltar tal característica para que não se preten-
da ampliar a figura do resgate de ações de modo a indevidamente
utilizá-la como meio de excluir da sociedade determinados sócios
inadimplentes com o seu dever de colaboração692 ou que simples-
mente não sejam adequados aos titulares da maioria do capital so-
cial.
Sobre a possibilidade de exclusão de acionista com funda-
mento em causa prevista estatutariamente, não há razão para opor-
-se a esta hipótese, desde que não se estabeleça, nos atos cons-
titutivos da companhia, a possibilidade de aplicação da exclusão a
acionista sem que este tenha violado seus deveres legal ou estatu-
tariamente previstos693.

4 – A penhora de quotas ou ações e a falência do sócio


como espécies de dissolução parcial de sociedade

O Código Civil refere-se, ao tratar das Sociedades Simples, a


quatro diferentes situações nas quais há - ou pode haver - a reso-
lução do contrato social em relação a algum dos membros - disso-
lução parcial da sociedade - por razões alheias tanto à vontade dos
sócios remanescentes quanto do sócio que deixa a sociedade.

determinação estatutária ou a deliberação válida da assembleia geral. Trata-se, portanto,


de compra compulsória decidida pela sociedade, de suas próprias ações, para retirá-las de
circulação.” CARVALHOSA. Modesto. Comentários à lei das sociedades anônimas. Vol I. Editora
Saraiva. São Paulo. 2014. Pg. 225.
692 Henrique Cunha Barbosa defende a aplicabilidade da exclusão ao acionista controlador
que abuse de seu poder e, portanto, comprometa as atividades da companhia. BARBOSA.
Henrique Cunha. A Exclusão do Acionista Controlador na Sociedade Anônima. Ed. Campus
Jurídico. Rio de Janeiro. 2010.
693 Sobre a exclusão de acionista, confira: PIMENTA. Eduardo Goulart Pimenta. Exclusão e
Retirada de Sócios. Ed. Mandamentos. Belo Horizonte. 2004.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 587


Trata-se das hipóteses de morte (art. 1.028) ou falência (art.
1.030 parágrafo único) do sócio e da eventual penhora de suas quo-
tas, em processo de execução movido por credor particular (art.
1.026). Elas configuram o que se pode chamar de dissolução parcial
involuntária da sociedade, posto que desvinculadas, como salien-
tado, tanto da vontade dos sócios remanescentes quanto daquele
que deixa a pessoa jurídica.
Os direitos patrimoniais do sócio na sociedade estão, como
é regra geral, a garantir, seja em processos de execução coletiva
(falência ou concurso de credores) ou singular, o pagamento dos
débitos por ele contraídos.
Segundo o art. 1.030 do Código Civil, o sócio que esteja sub-
metido à falência será excluído da sociedade e seus haveres, de-
pois de apurados conforme o critério geral do art. 1.031, serão arre-
cadados pelo juízo falimentar e rateados entre os credores do sócio
falido694.
Solução similar é apresentada pelo Código Civil também na
hipótese de execução singular movida por credor contra sócio de
sociedade, tendo o art.1.026 posto fim à antiga celeuma doutrinária
e jurisprudencial em torno da possibilidade de penhora de quotas
para pagamento de dívidas contraídas pelo sócio.
É comum a preocupação com os eventuais reflexos que as
dívidas contraídas em nome da pessoa jurídica possam ter sobre o
patrimônio pessoal dos sócios, não sendo raro que os bens particu-
lares dos integrantes sejam usados para quitar obrigações contraí-
das em nome da sociedade695.

694 Apesar de o art. 1.030 se referir apenas ao sócio cuja falência tenha sido decretada, a
mesma solução se aplica àquele integrante submetido ao concurso civil de credores, já este
instituto é, como a falência, uma espécie do gênero concursal, em que ocorre a arrecadação
de todo o patrimônio do devedor para rateio entre seus credores.
695 Neste sentido o disposto no art. 82 da Lei n. 11.101/05, que disciplina o processo de falência
e a recuperação de empresas: “A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade
limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas
respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização
do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento
ordinário previsto no Código de Processo Civil.”

588 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Na penhora de quotas – ou ações – o que se verifica é a hi-
pótese contrária, com os credores particulares do sócio atingindo,
para fazerem valer seus direitos de crédito, o patrimônio da pessoa
jurídica integrada pelo devedor.
Assim, quando se fala em responsabilidade do sócio, na ver-
dade se discute a possibilidade de os credores da pessoa jurídica
alcançarem o patrimônio pessoal dos sócios, para receberem seus
direitos creditícios. Na penhora de quotas ou ações o que se vê são
os credores particulares do sócio atingindo o patrimônio da pessoa
jurídica, para assim serem pagos.
Segundo o art. 1.026 do Código Civil, o credor particular do
sócio só poderá fazer recair sua execução sobre os direitos patri-
moniais do devedor na sociedade caso não tenha este sócio outros
bens a serem penhorados.
Justifica-se esta limitação, na medida que à sociedade e aos
seus membros deve ser garantido o direito de manterem a empre-
sa em funcionamento sem abalos desnecessários em sua estrutura
societária, os quais só se justificam na hipótese de não haver outros
bens suscetíveis de penhora pelo credor do sócio.
Pode o credor-exequente optar pela liquidação da quota do
sócio (na forma do art. 1. 031) ou pela penhora do que caiba ao seu
devedor receber a título de dividendos. Esta última hipótese é mais
conveniente tanto sob o ponto de vista da sociedade e seus sócios
remanescentes quanto em relação ao credor, já que permite àquela
evitar a apuração de haveres e a perda do sócio e a este o recebi-
mento mais célere de seu crédito.
O Código de Processo Civil de 2015 (Lei n. 13.105/15) disciplina,
em seu artigo 861, procedimento a ser adotado em caso de penhora
de quotas ou ações de sociedades personificadas, para pagamento
de dívida contraída pelo sócio. Trata-se de procedimento aplicável
tanto às sociedades disciplinadas pelo Código Civil quanto às com-
696
panhias de capital fechado e em comandita por ações .

696 As sociedades anônimas de capital aberto cujas ações sejam penhoradas para pagamento
de dívida contraída por acionista estão expressamente apartadas deste procedimento. Nelas,

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 589


Segundo o art. 861 do Código de Processo Civil de 2015, uma
vez penhoradas quotas ou ações o juiz da execução assinará prazo
não superior a 3 (três) meses (prorrogável nos casos do par. 4º) para
que a sociedade efetue três providências, sendo a primeira delas a
apresentação de balanço especial destinado a explicitar a situação
patrimonial da pessoa jurídica e, por consequência, o valor das quo-
tas ou ações penhoradas.
Além disso, a sociedade deverá oferecer as quotas ou ações
penhoradas aos sócios remanescentes para que estes possam,
conforme as regras legais e contratuais referentes ao direito de pre-
ferência deles, adquirir tais quotas ou ações.
Por fim, em não havendo a aquisição, pelos sócios remanes-
697
centes ou pela própria sociedade , das quotas ou ações penhora-
das, será promovida a liquidação delas, para pagamento do credor
do sócio.
Esta liquidação será, na verdade, um procedimento de apu-
ração de haveres de sócio, o qual será regido pelas regras do art.
1.031 do Código Civil ou art. 45 da Lei n. 6.404/76 – conforme se
trate de uma sociedade limitada ou anônima – e poderá contar, se
requerido pelo exequente ou pela sociedade, com a atuação de um
administrador responsável pela fixação da forma de apuração des-
tes haveres e submissão deste procedimento à aprovação judicial.
O art. 861 do Código de Processo Civil de 2015 reconhece o
risco que a liquidação de quotas ou ações penhoradas significa
para a estabilidade financeira e patrimonial da sociedade e, neste
sentido, autoriza o juiz da execução a optar pelo leilão judicial das
698
quotas ou ações penhoradas .

as ações penhoradas serão adjudicadas pelo exequente ou simplesmente vendidas em Bolsa


de Valores para quitação da dívida objeto de execução (art. 861 par. 2º do Código de Processo
Civil de 2015). Em ambas as alternativas se evita, como se pode comprovar, a dissolução
parcial da companhia em virtude da execução proposta contra seu acionista.
697 Segundo o par. 1º do art. 861 do Código de Processo Civil de 2015, para evitar a liquidação
das quotas ou ações penhoradas, a sociedade poderá adquiri-las, desde que com utilização
de reservas e sem redução do capital social, para mantê-las em tesouraria.
698 Nesta hipótese – e apenas nela – não há impedimento a que o credor adjudique as
quotas ou ações penhoradas.

590 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


5 - O falecimento de sócio e seus efeitos sobre a
sociedade

Sejam quotas de sociedade limitada ou ações de companhias,


o fato é que os direitos de sócio são componentes do patrimônio de
uma pessoa e, quando do seu falecimento, integram a herança a
ser partilhada.
Por outro lado, o contrato social é, como já se salientou em
capítulo próprio, uma relação que, em regra, apresenta significativa
duração e profundo envolvimento relacional e patrimonial entre os
contratantes. Deste modo, a simples substituição de um sócio por
seus herdeiros não é solução jurídica que se possa admitir como
regra absoluta. Ninguém é obrigado a ser sócio de outrem.
Vale ainda acrescentar que as quotas sociais são – como tam-
bém aqui já se demonstrou – em geral bens de pouca liquidez, uma
vez que sua aquisição e transferência é condicionada às restrições
legais e/ou contratuais fixadas.
Assim, a legislação precisa conciliar o direito dos herdeiros à
participação societária do sócio falecido, a eventual incompatibili-
dade entre estes mesmos herdeiros e os membros remanescentes
da sociedade e as relevantes restrições à transferência das quotas
para terceiros.
Na sociedade limitada, o falecimento de um sócio costuma
ser um momento extremamente delicado, pois, repete-se, este
modelo societário constrói-se sobre uma significativa proximidade
entre os sócios - e destes em relação à gestão - e também sobre a
previsão de restrições à livre cessão das quotas (art. 1.057 do Códi-
go Civil), o que compromete a liquidez delas.
O direito dos herdeiros ao patrimônio do sócio falecido, o di-
reito dos sócios remanescentes à não admissão de membros in-
desejados e a baixa liquidez das quotas deixam à legislação três
possíveis soluções para a sucessão de sócios quotistas falecidos,
quais sejam: a dissolução total ou parcial da sociedade ou a entrada
dos herdeiros no quadro de sócios.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 591


O Código Civil contém um único dispositivo (art. 1.028) espe-
cificamente voltado para este importante aspecto societário. Esta
norma contempla, com certas ressalvas e requisitos, as três possí-
veis soluções apontadas.
A leitura do art. 1.028 do Código Civil permite concluir que a
premissa básica está na dispositividade sobre os efeitos, para a so-
ciedade, do falecimento do sócio, uma vez que o contrato social
tem o poder de disciplinar a questão, ficando as regras legais com o
papel de preencher a eventual omissão dos atos constitutivos.
Omisso o contrato social, vê-se que o art. 1.028 do Código Civil
confere aos sócios remanescentes o poder de deliberar sobre qual
das três acima citadas alternativas será tomada como solução das
consequências, para a sociedade, do falecimento de um dos inte-
grantes.
Assim, o art. 1.028 do Código Civil dá aos sócios o poder de
decidir sobre qual das três soluções será aplicada para regular o
falecimento de um integrante, podendo este poder ser exercido
antecipadamente - quando da elaboração ou alteração do contra-
to social - ou posteriormente ao falecimento do sócio, em caso de
lacuna contratual.
Em outras palavras, tem-se que a disciplina jurídica sobre os
efeitos do falecimento de um sócio sobre a sociedade está coloca-
da, pelo Código Civil, eminentemente sobre a vontade dos sócios.
Esta vontade pode ser expressa em cláusula contratual ou então
em deliberação posterior ao falecimento do integrante. Pode-se,
portanto, falar em solução ex ante ou ex post para o assunto.
A solução ex ante seria a previsão, em contrato social, da solu-
ção a ser dada, em caso de falecimento de sócio. Nesta hipótese, os
custos de transação sobre tão delicado tema são antecipados, de
forma a serem vencidos no ato de elaboração do contrato social ou
sua alteração, mas sempre antes do falecimento dos integrantes.
Esta antecipação tem o efeito positivo de permitir que todos
os sócios participem desta previsão, a qual se aplicará ao faleci-
mento de todos eles. É como se os sócios previssem, de forma si-

592 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


milar a um testamento, aquilo que desejam que seja feito com as
suas quotas.
Por outro lado, tal previsão contratual pode ser superada, no
caso concreto e diante do falecimento, por acordo entre todas as
partes envolvidas.
Assim, têm-se uma regra estipulada conforme a vontade dos
sócios – inclusive o agora falecido – que se aplicará de pleno direi-
to, salvo vontade dos remanescentes e herdeiros.699
A omissão dos sócios em tratar da questão no contrato social
faz com que, por força do art. 1.028 do Código Civil, sejam eles obri-
gados a escolher entre as três soluções possíveis no momento que
efetivamente confrontados com o falecimento de um dos integran-
tes. Trata-se, assim, de uma solução ex post.
Deverão os sócios remanescentes decidir pela dissolução to-
tal, entrada dos herdeiros ou liquidação da quota do falecido. Todas
as três deliberações são possíveis e devem ser tomadas, dada a
inexistência de quórum específico em lei, por maioria de quotas (art.
1010 do Código Civil).
Os custos de transação que seriam antecipados com a previ-
são contratual se manifestam aqui, neste momento, diante da situ-
ação concreta do falecimento do sócio, o que coloca os membros
remanescentes sob significativa pressão pela relativa urgência da
definição.
Por outro lado, esta circunstância tem o aspecto positivo, para
os membros remanescentes, de lhes permitir deliberarem confor-
me a realidade fática do momento da morte do sócio e não com

699 A alteração ex post – ou seja, posterior ao falecimento – da solução contratualmente


prevista somente pode ser admitida se houver concordância da unanimidade dos sócios
remanescentes, não bastando, no caso, quórum suficiente para simples alteração do contrato
social.
Isto porque uma alteração majoritária do contrato social não pode retroagir seus efeitos para
alcançar o falecimento de um sócio ocorrido antes da mudança nos atos constitutivos. Ao
contrário, esta deliberação majoritária somente alcançará as futuras situações.
Porém, não se pode negar às partes do contrato social – sócios remanescentes – o direito de
dispor sobre seus interesses, desde que o façam de forma unânime, o que não feriria o legitimo
interesse daquele integrante remanescente eventualmente favorável à previsão contratual
alterada para, nesta hipótese, alcançar o anterior falecimento de um dos integrantes.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 593


base nas informações que dispunham quando da fixação desta
cláusula no contrato social.
Assim, por exemplo, se a sociedade é lucrativa, podem os só-
cios remanescentes optar pela dissolução parcial, de forma a não
terem que dividir os ganhos futuros do empreendimento, com os
herdeiros. Lado outro, se a sociedade estiver em situação econo-
micamente delicada, pode-se optar pela dissolução total e conse-
quente encerramento das atividades.
Se, para os sócios remanescentes, esta solução ex post pode,
dada a circunstância apontada acima, parecer mais adequada, a
verdade é que ela expõe os seus herdeiros a tal indefinição. Portan-
to, se os herdeiros forem dos outros sócios, esta solução pode ser
eficiente, mas se forem os seus, já não se mostrará tão adequada.
Deve-se lembrar que a entrada dos herdeiros está, em sendo
omisso o contrato social, condicionada à aceitação, por eles, desta
solução. Se o contrato social prevê a entrada dos herdeiros, não é
possível que eles pretendam a dissolução parcial, pois recebem do
falecido a herança na forma como prevista.
As quotas são deles para, se quiserem, fazerem parte da so-
ciedade e só poderão exercer o direito de retirada nas hipóteses le-
galmente admitidas. Neste caso não basta, para o exercício da dis-
solução parcial, a simples vontade de não fazer parte da sociedade.
Não se pode, de forma abstrata e irrestrita, pretender, com se-
riedade, dizer qual das três alternativas – dissolução total, parcial ou
admissão dos herdeiros como sócios – é mais eficiente. Tratam-se,
todas, de situações adequadas a determinadas realidades fáticas
distintas.
Em uma sociedade na qual os sócios originais mantinham
uma relação de extremo vínculo pessoal, a dissolução – total ou
parcial - costuma se mostrar mais adequada, posto que a entrada
dos herdeiros representaria uma quebra na affectio societatis origi-
nal, algo que, em hipóteses que tais, não é bem admitido.
Quando o sócio falecido é o sócio majoritário ou aquele que
concentrava maior grau de cooperação nas organizações dos fato-

594 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


res de produção, muitas vezes restará aos membros remanescen-
tes a dissolução total da sociedade, pois a perda deste principal só-
cio leva ao desmoronamento negocial da sociedade e os membros
originais tendem a separar-se em novos empreendimentos.
A entrada dos herdeiros se mostra, em geral, mais adequada
quando a sociedade não está tão “presa” à figura dos sócios origi-
nais. Representa sem dúvida o menor abalo jurídico e patrimonial,
pois a sociedade não passará por liquidação total ou apuração de
haveres.
Enquanto não finalizada a partilha dos bens do sócio falecido,
os direitos dele na sociedade serão exercidos pelo inventariante e
as responsabilidades patrimoniais dos sócios recairão, se for o caso,
sobre os bens deixados pelo falecido, até o limite da herança, claro.
Se a sociedade apresenta um patrimônio negativo, deve ser
solicitada a sua autofalência, com as eventuais responsabilidades
patrimoniais dos sócios recaindo, no caso do falecido, até o limite
da herança, pois seus herdeiros não podem responder com seu pa-
trimônio pessoal pelas dívidas do falecido.
Se deliberada ou prevista no contrato social a dissolução par-
cial e consequente apuração de haveres, prevalecem as ressalvas
quanto à necessidade de provimento de medidas jurisdicionais que
reduzam a assimetria de informação entre os remanescentes e os
herdeiros, de forma a evitar que estes últimos sejam prejudicados
pela falta de informação sobre a situação do patrimônio social700.
Nas sociedades anônimas, ao contrário, o falecimento do só-
cio não costuma ser causa de insegurança ou dúvida jurídica, posto
que, em regra, os herdeiros passam a ocupar o quadro de sócios no
lugar que antes era do falecido.
Esta é, pode-se mesmo afirmar, uma vantagem competitiva
das sociedades anônimas em relação às limitadas, pois resguarda

700 Deve-se, em havendo falecimento do sócio – e independentemente da solução


contratual ou deliberação dos remanescentes – franquear aos herdeiros ou inventariante
total e irrestrito acesso às informações contábeis e bancárias sobre a sociedade.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 595


a pessoa jurídica e a empresa das incertezas decorrentes do faleci-
mento de um acionista.

A série Succession (Succession. Criação: Jesse Armstrong. Produção: HBO. Estados Unidos.
2018) aborda as dificuldades e conflitos que constantemente ocorrem quando, em uma
sociedade, chega o momento da troca de gerações no controle e gestão das atividades. Tal
questão é particularmente complexa em sociedades ditas “familiares”, como as apresentadas
na série.
É extremamente comum a sociedade controlada por pessoas que tenham, entre si, laços
familiares. Até aqui, não há problema. A dificuldade ocorre quando as pessoas confundem
suas decisões+ familiares com as empresariais, adotando critérios das primeiras para as
segundas.
Decisões familiares são pautadas por sentimentos, não pela razão e objetividade, ao contrário
do que se espera de decisões empresariais. Por isso, as sociedades controladas e/ou geridas
entre familiares muitas vezes afastam possíveis parceiros

6 - Apuração de haveres do sócio e seu regime jurídico


no Código de Processo Civil, Código Civil e Lei n.
6.404/76

Havida a dissolução parcial de uma sociedade, rompem-se os


vínculos societários - como na hipótese de dissolução total - com
a peculiaridade de que, aqui, tem-se apenas a ruptura parcial do
instrumento constitutivo da sociedade (ou seja: apenas em relação
a um ou alguns dos membros), preservando-se, desta forma, o ente
jurídico personalizado.

596 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Após a manifestação do sócio insatisfeito (no recesso) ou dos
demais consortes (na exclusão) no sentido de romper parcialmente
o vínculo societário - enquadradas, ambas, no conceito de decla-
ração receptícia de vontade - deve obrigatoriamente ocorrer o pro-
cedimento tendente à liquidação da parcela do patrimônio social
pertencente àquele membro dissidente.
Trata-se da apuração de haveres, que, desta maneira, consti-
tui-se em fase tipicamente procedimental - como a liquidação to-
tal - realizada posteriormente ao rompimento parcial dos vínculos
societários - momento essencialmente de direito material, como a
dissolução - visando a quantificação, realização e entrega da fração
do patrimônio social cabível ao sócio que, voluntariamente ou não,
está a abandonar a sociedade.701
A liquidação total da sociedade tem como pressuposto lógico
a ocorrência de uma das hipóteses de completo rompimento dos
vínculos societários, expressas como causas de dissolução total da
pessoa jurídica. Da mesma forma, é de se reconhecer, no caso da
apuração de haveres, que só se justifica quando verificada uma das
várias hipóteses de rompimento parcial dos vínculos societários.702
Diante do exposto, denomina-se apuração de haveres a série
de atos destinados a quantificar, realizar e restituir ao sócio que dei-
xa a sociedade o valor correspondente à sua fração no patrimônio
social. Esta série de atos segue-se à dissolução parcial da socieda-

701 ‘’É visto, assim, que o objeto específico da instituição de que nos ocupamos [apuração de
haveres] é operar a transmutação do direito patrimonial abstrato de sócio (enquanto jungido ao
contrato), convertendo-o normalmente em prestação pecuniária exigível. É forma instrumental
que dá corpo e objetividade exterior à situação jurídica preexistente, advinda da ruptura parcial
do vínculo societário, possibilitando (conforme seus resultados) a exigibilidade, por parte do
sócio ou de que o substitua, do crédito apurado’’. ESTRELLA. Hernani. Apuração dos haveres de
sócio. 2ª Edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1992, Pg. 170.
702 A apuração de haveres é procedimento realizado necessariamente após a ocorrência,
no interior da sociedade, de qualquer hipótese de dissolução parcial. ‘’(...) em se verificando
o afastamento de sócio com a sobrevivência da sociedade, se faz mister determinar e liquidar
os seus haveres ou, eventualmente, fixar sua responsabilidade. É essa a destinação específica,
para a qual a providência foi concebida e aperfeiçoada. Por conseguinte, o âmbito próprio de
sua aplicação é o desligamento de sócio, por qualquer uma das já apontadas causas: morte,
despedida voluntária, exclusão, incapacidade superveniente e falência.” ESTRELLA. Hernani.
Apuração dos haveres de sócio. 2ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1992, Pg.167/168

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 597


de, quando, por qualquer dos motivos legalmente admissíveis, há
o rompimento do contrato social em relação a um ou alguns dos
sócios.
Uma vez resolvido parcialmente o contrato de sociedade, é
necessário, como consequência lógica, restituir ao sócio que deixa
a pessoa jurídica o valor correspondente à sua fração no patrimô-
nio da sociedade. Para isto é preciso, inicialmente, fixar, em moeda
corrente, qual o valor do patrimônio social e, em consequência, da
quota do sócio que deixa a sociedade.
Após tal quantificação, os bens e direitos da pessoa jurídica
serão, em princípio, liquidados – ou seja, vendidos – em montante
correspondente ao valor apurado para a fração do sócio que está
saindo, devendo, por fim, ser efetivada a transferência dos recursos
financeiros decorrentes desta liquidação para a titularidade do ago-
ra ex-sócio.
O Código Civil contém um único dispositivo específico sobre
o procedimento de apuração de haveres. Trata-se do art. 1.031, que,
seja por referência expressa – como nos casos dos art. 1.085 e 1.086
– ou por absoluta inexistência de alternativa legal, é regra aplicá-
vel, em se tratando do assunto, para todos os casos de dissolução
parcial e apuração de haveres nas sociedades regidas pelo Código
Civil703.
O Código de Processo Civil de 2015 (Lei n. 13.105/2015), por
sua vez, cuidou do que denomina “ação de dissolução parcial de
sociedade” em seus artigos 599 a 609, os quais se aplicam a todas
as sociedades regidas pelo Código Civil, tanto nos casos de exclu-
são quanto de recesso ou falecimento de sócio (art. 599, I e II)704.
703 Art. 1. 031 – Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da
sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição
contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução,
verificada em balanço especialmente levantado.
§ 1o – O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem
o valor da quota.
§ 2o – A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação,
salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
704 O par. 2º do art. 599 do Código de Processo Civil admite ainda que as regras sobre a “ação
de dissolução parcial de sociedade” (art. 599 a 609) sejam aplicadas também às companhias

598 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O citado art. 1.031 do Código Civil cuida expressamente de
duas das três providências inerentes ao procedimento de apuração
de haveres, já que estabelece um critério para a quantificação do
valor da quota do sócio e também a forma e prazo para sua quita-
ção, deixando de lado as questões inerentes ao modo de realização
dos ativos da sociedade no montante necessário ao pagamento de
tais haveres.
Sobre o critério para quantificação do valor da quota do sócio
que deixar a sociedade, pode-se afirmar que o art. 1.031 do Código
Civil opta pelo valor patrimonial705 – ou valor de patrimônio líquido
– da quota, a ser obtido através de “balanço especialmente levan-
tado” com base na “data da resolução” parcial do contrato social706.
Assim, a quantificação do valor da quota do sócio, para fins de
apuração de haveres, se efetua a partir de balanço contábil espe-
cialmente elaborado e no qual se espera ver o patrimônio líquido
da sociedade e também, em consequência, o valor patrimonial das
quotas do sócio que deixa o contrato e a pessoa jurídica707.
Ainda fixa o art. 1.031 do Código Civil o prazo de 90 (noventa)
dias para que, após liquidados os bens e direitos da sociedade em
fechadas quando demonstrado, por acionista ou grupo titular de cinco por cento ou mais do
capital social, que a sociedade não pode preencher o seu fim.
705 Como já explicitado em capítulo anterior, o valor patrimonial da quota tem por referência
o patrimônio líquido da sociedade, o qual é, em tese, expresso no Balanço Patrimonial da
pessoa jurídica e corresponde, em síntese, ao valor dos bens e direitos da sociedade, menos
o montante de suas dívidas.
O art. 606 do Código de Processo Civil de 2015 também regulamenta o critério para
quantificação do valor da quota no mesmo sentido, já que se refere ao “valor patrimonial
apurado em balanço de determinação”, desde que omisso o contrato social.
706 Com relação ao critério adotado na apuração de haveres, várias foram as referências
na legislação brasileira, como se pode constatar, a título de análise histórica, no Código
Comercial de 1850, Código Civil de 1917 e Dec. Lei n. 3.708/19, por exemplo. Segundo Hernani
Estrella, dentre a grande diversidade de critérios adotados, aquele baseado no último
balanço aprovado se mostrava, em nossa ‘’tradição inveterada’’, o preferido. ESTRELLA.
Hernani. Apuração de haveres de sócio. Pg. 173.
707 É necessário lembrar que há diversos critérios possíveis de serem empregados na
elaboração de um balanço contábil. Isto significa dizer que, dependendo do critério adotado
e da modalidade de balanço contábil realizada, serão obtidos resultados econômicos
diferentes. RIBAS. Roberta de Oliveira e Corvo. Apuração de Haveres na Sociedade Empresária
Limitada. (In:) COELHO. Fábio Ulhôa (Coord.). Tratado de Direito Comercial. Ed. Saraiva. São
Paulo. 2015. Pg. 270 e segs.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 599


montante correspondente ao valor patrimonial das quotas do agora
ex-sócio, seja realizado o pagamento, de uma só vez e em dinheiro,
da quantia devida.
Embora possa parecer adequada e de significativa completu-
de, a redação do ora analisado artigo do Código Civil omite-se sobre
pontos de grande relevância para a disciplina legal da apuração de
haveres e, por outro lado, regula de forma ineficiente outros aspec-
tos de importância para a questão. Cumpre apresentar tais lacunas
ou inadequações normativas, o que se passa a fazer, começando
pelo critério adotado para cálculo do valor das quotas.
O valor do patrimônio líquido de uma pessoa jurídica – e o
decorrente valor patrimonial de suas quotas ou ações – não é con-
siderado, sob os aspectos econômico e gerencial, o critério mais
adequado para se avaliar um empreendimento.
Umas das razões está na constatação de que os balanços
contábeis de uma sociedade, por mais cuidadosos e detalhados
que sejam, são quase que imediatamente desatualizados, por força
de circunstâncias fáticas e jurídicas inerentes à atividade econômi-
ca.
Elaborados com base em informações referentes a um mo-
mento determinado, os valores lançados nas demonstrações contá-
beis de uma pessoa jurídica são inevitável e rapidamente alterados,
tanto pela ação de fatores decorrentes das atividades negociais da
sociedade - números de compras e vendas, lucros, despesas, etc. –
quanto pela natural depreciação de seus bens e direitos708.
Outro fator que compromete o critério de quantificação dos
haveres de sócio fixado pelo Código Civil está na existência, no pa-
trimônio social, de bens e direitos imateriais709 ou “intangíveis”, cuja

708 Veja-se, por exemplo, uma sociedade cujos ativos estejam atrelados ao valor do Dólar:
uma guinada brusca na cotação desta moeda em relação ao Real – algo que pode ocorrer
“de um dia para o outro” – altera bruscamente o valor dos ativos ou do passivo da sociedade,
refletindo diretamente na apuração dos haveres do sócio.
709 Trata-se de bens e direitos sem existência física, como patentes e direitos sobre marcas
ou referentes ao “ponto comercial”. COELHO. Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. Vol. I. 17ª
edição. Ed. Saraiva. São Paulo. 2013. Pg. 169.

600 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


adequada quantificação contábil se revela extremamente comple-
xa.
Qual, por exemplo, é o correto valor de uma determinada mar-
ca? Como atribuir valor ao endereço – o chamado “ponto” - no qual
esteja localizado o empreendimento? Qual a diferença, em termos
de faturamento, entre o atendimento aos clientes realizado pelo só-
cio que está saindo ou por aqueles que permanecem no quadro
social?710
A quase imediata desatualização dos Balanços contábeis,
somada à significativa – e inevitável - arbitrariedade na fixação do
valor de mercado (ou “preço de saída”, como prefere o Código de
Processo Civil) dos bens intangíveis tornou, na realidade dos fatos,
o valor patrimonial de quotas ou ações referência menos relevante,
para os fins aqui tratados.
Pode-se constatar que o procedimento de avaliação de uma
empresa – denominado valuation – segue, em matéria de admi-
nistração financeira e contábil, outros critérios que, embora tam-
bém imperfeitos, se mostram mais adequados à necessidade de se
quantificar, em moeda corrente, um empreendimento empresarial e
a correspondente fração de cada um dos sócios711.
710 Por isso é possível afirmar que uma apuração de haveres realizada sob as regras do
art. 1.031 do Código Civil será ficta e presumida, pois efetuada a partir do valor de mercado
atribuído aos ativos sociais segundo regras contábeis de avaliação, e não com a efetiva
alienação de tais bens e direitos.
O art. 606 do Código de Processo Civil de 2015 também adotou, como já aqui ressaltado, o
valor patrimonial da quota como critério de apuração dos haveres de sócio. Em seu texto, tal
dispositivo da lei processual refere-se expressamente à inclusão dos “intangíveis” no cálculo
do patrimônio social, sem considerar, ao que parece, as dificuldades inerentes à quantificação
de seu “preço de saída”, que, em outros termos, corresponde ao presumido e ficto valor de
mercado do bem avaliado.
711 Dentre os métodos de avaliação de empresas - business valuation – o chamado
método do “fluxo de caixa descontado” é, atualmente, muito empregado, pois se baseia na
perspectiva de lucratividade futura do empreendimento avaliado e não apenas no valor dos
bens e direitos utilizados.
Em absoluta síntese, o método do “fluxo de caixa descontado” – FCD - projeta os ganhos
potenciais da empresa para o futuro e os submete a uma taxa de desconto, com o objetivo
de encontrar seu valor no presente.
Coloca-se em perspectiva o potencial de geração de ganho da empresa e abate-se deste
valor futuro uma taxa de desconto, que o trará para o presente. (GITMAN. Lawrence J.
MADURA. Jeff. Administração Financeira. Pearson, Addison Wesley. São Paulo. 203. Pg. 89 e

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 601


No que tange a omissões, chama atenção que o art. 1.031 do
Código Civil tenha deixado de disciplinar qualquer aspecto referen-
te a forma ou prazo para liquidação dos bens e direitos correspon-
dentes ao valor da quota do sócio que deixa a sociedade.
Segundo o art. 1.031 do Código Civil, os haveres do sócio de-
vem ser pagos em, no máximo, 90 (noventa) dias, “a partir da liqui-
dação” deles712. Portanto, somente após vendidos os bens da socie-
dade correspondentes à fração do sócio que está saindo é que se
pode iniciar a contagem do prazo citado. O que fazer, então, se a
sociedade prolonga indefinidamente, pelas mais diversas razões, a
venda aqui referida713?
Assim, de nada adianta o exíguo prazo de 90 (noventa) dias
para pagamento dos haveres ao sócio se este prazo só se inicia com
o término da liquidação da parte dos bens da sociedade correspon-
dente às quotas apuradas, algo que, como se viu, não tem qualquer
prazo para duração estabelecido pelo art. 1.031 do Código Civil.
Se as apontadas omissões ou inadequações do art. 1.031 do
Código Civil comprometem o direito do sócio titular dos haveres, a
ali prevista regra supletiva de pagamento único, em dinheiro, dos
haveres apurados certamente representa desfalque significativo
no patrimônio de qualquer sociedade, o qual muitas vezes poderá
mesmo inviabilizar a continuação das atividades da pessoa jurídica.
Mais adequado e factível seria que se estipulasse o pagamen-
to parcelado dos haveres apurados, de forma a permitir que a pes-
soa jurídica se reorganizasse patrimonialmente enquanto efetuasse
a quitação da parcela do sócio que se retirou do empreendimento.
Deste modo, o critério de apuração dos haveres fixado pelo
art. 1.031 do Código Civil é ineficiente tanto para a manutenção das
segs.)
712 Este prazo e forma de pagamento são adotados, em havendo omissão contratual,
também pelo art. 609 do Código de Processo Civil de 2015.
713 Como exemplo destas “mais diversas razões” tem-se desde aquelas independentes da
vontade das pessoas envolvidas - como dificuldade para encontrar compradores e risco de
inadimplência - quanto outras que muitas vezes decorrem da ação deliberada dos sócios
remanescentes, com o objetivo de minimizar as perdas patrimoniais com o pagamento dos
haveres.

602 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


atividades da sociedade quanto – e principalmente – para garantir
ao sócio que deixa o empreendimento a adequada quantificação e
pagamento do valor de sua participação no patrimônio social.
Como já aqui se disse repetidas vezes, a regulação das so-
ciedades limitadas no direito brasileiro é eminentemente supletiva,
especialmente no que tange às relações intrasocietárias. Isto signi-
fica que, em regra, o contrato social tem ampla competência para
reger as relações entre os sócios, assumindo a legislação o papel
de suprir a eventual omissão dos atos constitutivos.
A dispositividade é, portanto, regra em matéria de direitos e
deveres de sócios quotistas, e isto também se verifica no que tange
ao procedimento de apuração de haveres, pois tanto o art. 1.031 do
Código Civil quanto o Código de Processo Civil (art. 604, II e par. 3º)
somente se aplicam em caso de omissão do contrato social sobre
o assunto714.
Diante da autorização expressa e da comentada ineficiência
do critério legal de apuração de haveres (pautado pelo valor patri-
monial das quotas) resta aos sócios – se pretendem ver adequada-
mente regulado tão importante aspecto de seus interesses – fixar,
no contrato social, as regras sobre os três principais aspectos de um
procedimento de apuração de haveres, que são: o critério de quan-
tificação do valor da quota, forma e prazo para realização dos ativos
necessários à quitação dos haveres e as condições de pagamento
ao sócio que deixa a pessoa jurídica.
Sobre o primeiro destes aspectos, é recomendável que o con-
trato social estipule um critério de avaliação da empresa – valuation
– mais factível e, ao mesmo tempo, alinhado com as modernas aná-
lises de natureza econômica e gerencial715, se comparado ao crité-
rio legal do valor patrimonial das quotas.
714 O Código de Processo Civil de 2015 admite mesmo que antes do início da perícia para
apuração dos haveres, qualquer das partes possa requerer ao juiz que reveja tanto o critério
para realização da apuração quanto a data a ser tomada como momento de resolução parcial
da relação societária (art. 607).
715 Neste sentido, o já referido critério do Fluxo de Caixa Descontado – FCD – apresenta-
se, a princípio, particularmente interessante, pois se apoia na perspectiva de lucratividade
da empresa e não sobre o valor de mercado dos bens e direitos de titularidade da pessoa

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 603


Além disso, deve prever o contrato social as regras de escolha
da pessoa ou grupo responsável pela realização da avaliação da
empresa, bem como o modo de remuneração destes profissionais
e o prazo para início e finalização dos trabalhos de quantificação.
Um grave problema enfrentado pelo sócio que busca a apu-
ração de seus haveres e, também, pelos responsáveis pela elabora-
ção do laudo de avaliação da empresa está na dificuldade de total
acesso aos livros contábeis e demais documentos referentes às ati-
vidades negociais da sociedade a ser avaliada.
Tais informações estão, em regra, em poder da administração
da pessoa jurídica e são essenciais à apuração de haveres. Sem es-
tas informações, o sócio que deixa a sociedade e os peritos res-
ponsáveis pela avaliação da empresa não têm como devidamente
mensurar a realidade econômico-financeira da pessoa jurídica e as-
sim, seja qual for o critério de apuração de haveres adotado, restará
comprometida a eficiência e justiça do procedimento.
Em um procedimento de apuração de haveres, sócios rema-
nescentes e sócio retirante tentarão, em lados opostos, maximizar
seus ganhos sobre o patrimônio da sociedade, num jogo de soma
zero onde o que uma das partes envolvidas ganha é exatamente o
que a outra parte perde. Dito de outra forma: quanto mais o sócio
retirante extrair do patrimônio da sociedade, no ato de apuração de
seus haveres, menos restará aos sócios remanescentes, e vice-ver-
sa.
Neste jogo de soma zero, os sócios remanescentes, por con-
tinuarem em contato com a administração da sociedade, têm uma
importantíssima vantagem competitiva, representada pela informa-
ção completa sobre a realidade econômico-financeira da empresa,
algo que dificilmente estará disponível, em igual proporção, para o
sócio que se retira do empreendimento.

jurídica. “Esse método supera algumas das dificuldades do lucro contábil e retrata os potenciais
econômicos dos componentes do patrimônio, inclusive o goodwill”. GORGA. Érica. Direito
Societário Atual. Ed. Elsevier. São Paulo. 2013. Pg. 221.

604 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Como detentores da completa informação sobre as condi-
ções econômico-financeiras da empresa a ser avaliada, os sócios
remanescentes podem se valer desta vantagem competitiva e “se-
lecionar” o que informar e o que omitir sobre a questão, tanto aos
responsáveis pela elaboração da avaliação quanto – e principal-
mente – ao sócio que postula seus haveres.
Esta assimetria informacional compromete tanto uma even-
tual negociação entre os sócios remanescentes e aquele que se
retira quanto uma eficiente avaliação das condições econômicas da
sociedade. Em razão disso, deve o contrato social procurar reduzir
ou minimizar esta assimetria de informações.
Como instrumento de redução da assimetria informacional em
um procedimento de apuração de haveres pode-se, por exemplo,
estipular que a sociedade e seus administradores são obrigados a
disponibilizar, assim que formalizado o pedido de dissolução parcial
da sociedade, uma relação detalhada e atualizada de documentos
referentes às atividades da sociedade716.
É mesmo recomendável, neste sentido, que o contrato social
enumere quais são os livros e documentos a serem disponibiliza-
dos em favor do sócio que se retira, estipule prazos e sanções pelo
descumprimento desta obrigação, bem como que se estenda tal
rol a informações como extratos atualizados de contas bancárias e
aplicações financeiras, declarações de Imposto de Renda da pes-
soa jurídica e outras similares.
De posse destas informações, sócios remanescentes e reti-
rante estarão em relativa simetria informacional sobre a realidade
econômico-financeira da sociedade e da empresa, o que viabiliza
um eficiente procedimento de apuração dos haveres e principal-
mente a negociação do valor a ser restituído ao sócio que se afasta,
de modo a evitar o prolongamento desnecessário da questão.

716 Como já salientado, estas informações são essenciais ao procedimento, e se não


estiverem disponíveis a todos os interessados – sócios remanescentes, sócio retirante e
peritos responsáveis pela avaliação – terão que ser obtidas por via judicial, dificultando – ou
mesmo inviabilizando – uma eficiente solução da questão.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 605


Se ambas as partes têm informação completa sobre o status
patrimonial da sociedade e da empresa, perdurar numa discussão
- judicial ou não - sobre o valor dos haveres do sócio, para tentar
maximizar ganhos, só se justificará se estes eventuais ganhos mar-
ginais forem superiores aos custos marginais decorrentes do pro-
longamento do procedimento de apuração de haveres717.
Além disso, pode – e deve - o contrato social fixar regras mais
condizentes com a preservação da empresa, para fins de pagamen-
to dos haveres apurados. É, neste sentido, recomendável abrandar
o impacto de tal pagamento sobre o patrimônio da sociedade, com
a estipulação de parcelamento e/ou dilação do prazo legal para
quitação dos haveres apurados718.
O Código de Processo Civil supre, em seus artigos 599 a 609,
várias destas omissões, além de corrigir algumas das ineficiências
apontadas no ora comentado art. 1.031 do Código Civil. Esta regu-
lação não é, entretanto, capaz de atender a todas as constantes di-
vergências que se verificam, especialmente se omisso o contrato
social, neste delicado momento na existência de uma sociedade.
Preliminarmente é preciso ressaltar que o artigo 599 do Códi-
go de Processo Civil de 2015 cria, ao referir-se à “ação de dissolução
parcial de sociedade”, uma certa confusão entre esta e o procedi-
mento que a ela se segue, o qual se denomina, como já aqui expli-
citado, “apuração de haveres”.

717 Por ganhos marginais entende-se, na situação, aquilo que um dos envolvidos – sócios
remanescentes ou retirante - obterá além do que foi oferecido, pela parte contrária, em
solução negociada para o pagamento dos haveres.
Já os custos marginais são, além dos gastos com a demanda e com a produção da informação
que respalde maior pedido, os denominados custos de oportunidade, que decorrem da falta
de disponibilização completa dos valores apurados enquanto não finalizada a divergência.
Sobre ganhos marginais, custos marginais e custos de oportunidade, confira: PINDICK. Robert.
RUBINFELD. Daniel. Microeconomia. 8ª edição. Ed. Pearson. São Paulo. 2013. Págs. 220 e segs.
718 Quando os quotistas vão realizar a integralização de sua parcela do capital social, é
amplamente admitida a opção por parcelamento ou realização futura do valor das quotas.
De forma similar, parece inquestionável admitir-se que os haveres de sócio sejam igualmente
pagos de maneira parcelada ou em data futura a ser contratualmente fixada, o que evitará –
sem comprometimento dos direitos do sócio que se retira – o salientado impacto negativo
sobre as atividades sociais.

606 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Em verdade, o que se encontra disciplinado pelo procedi-
mento previsto nos artigos 599 a 609 do Código de Processo Civil
de 2015 é, de fato, a forma de quantificação, realização e quitação
da parcela do patrimônio social referente à fração do sócio que, seja
por exclusão, recesso ou falecimento, deixa a sociedade. Trata-se,
portanto, de disciplina da apuração judicial dos haveres de sócio.
É de se ressaltar – e elogiar – também a adesão do Código de
Processo Civil à premissa da dispositividade sobre o procedimento
de apuração de haveres, como já o fizera o Código Civil. Tal cons-
tatação pode ser extraída, por exemplo, do texto dos artigos 604, II
e 606, os quais deixam expresso que tanto em relação ao critério
quanto ao procedimento de apuração judicial de haveres de sócio
prevalecem as regras que, no contrato social, venham a cuidar des-
719
tes temas .
Restam, portanto, válidas as ponderações aqui já feitas sobre
a eficiência de se disciplinar este crucial aspecto da existência de
uma sociedade com a previsão de regras contratuais capazes de
minimizar os conflitos e custos decorrentes da apuração dos have-
res de sócio.
Em havendo omissão contratual, o que se pode perceber é
que o Código de Processo Civil pauta-se, como critério para apu-
ração dos haveres de sócio, pelo valor patrimonial das quotas (art.
606), o que não o diferencia, em essência, do que já constava do art.
1.031 do Código Civil.
Por outro lado, dentre as relevantes lacunas preenchidas pelo
Código de Processo Civil de 2015 está a expressa referência à data
em que se considera, para fins de apuração de haveres, resolvida
720
a relação societária . Trata-se de ponto fundamental, pois é este
719 A eficiente – e, portanto, elogiável – prevalência das regras contratuais no procedimento
de apuração de haveres aplica-se ainda à forma e prazo para restituição, ao sócio que se
retira, dos valores apurados (art. 609).
720 Art. 605. A data da resolução da sociedade será:
I - no caso de falecimento do sócio, a do óbito;
II - na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da
notificação do sócio retirante;
III - no recesso, o dia do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio dissidente;

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 607


o momento que serve como referência para a quantificação do
721
patrimônio social , a qual será, na omissão do contrato, efetuada
através de Balanço Contábil especialmente elaborado pelo perito
indicado pelo juiz.
O Código de Processo Civil de 2015 também regulou de forma
expressa, em seus artigos 600 e 601, a legitimidade ativa e passiva
722
no procedimento de apuração judicial de haveres de sócio , o que
minimiza as antigas discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre
723
a questão .
Relevante também a previsão do art. 602 do Código de Pro-
cesso Civil de 2015, que permite que a sociedade formule, contra
o sócio que se retira, pedido de indenização compensável com o
valor dos haveres a apurar, quando o integrante que se afasta tenha
causado, com sua ação ou omissão, prejuízos às atividades sociais.
O laudo pericial que, na omissão contratual, quantificará o va-
lor patrimonial das quotas do sócio que apura seus haveres em juízo
seguirá, para sua produção, os ditames que o Código de Processo
Civil estabeleceu em seus artigos 464 e seguintes, alguns dos quais
de especial relevância para o tema ora analisado.
IV - na retirada por justa causa de sociedade por prazo determinado e na exclusão judicial de
sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade; e
V - na exclusão extrajudicial, a data da assembleia ou da reunião de sócios que a tiver
deliberado.
721 Os haveres devem ser apurados com base na situação patrimonial que a sociedade
apresentava na data desta resolução, de forma a evitar que as variações – tanto positivas
quanto negativas – no patrimônio da sociedade reflitam-se sobre o direito do agora ex-sócio.
722 Note-se que ao cuidar da legitimidade ativa em ação de dissolução parcial de sociedade,
o art. 600 parágrafo. único do Código de Processo Civil de 2015 acaba por criar, através de via
indireta, uma modalidade particular de rompimento parcial do contrato de sociedade.
Esta hipótese de dissolução parcial de sociedade se verifica quando o(a) sócio(a) põe fim ao
seu casamento, união estável ou convivência, uma vez que, nestes casos, o seu cônjuge ou
companheiro(a) poderá requerer “a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos
à conta da quota social titulada por este sócio”.
Assim, estranhamente constata-se que além da exclusão, recesso, falecimento e penhora de
quotas, agora a dissolução de casamento, união estável ou convivência do sócio é causa de
dissolução parcial da sociedade, algo não abarcado pelo Código Civil.
723 Sobre a discussão acerca da legitimidade ativa e passiva nas ações de dissolução parcial
de sociedade, vale a consulta ao clássico trabalho de Celso Barbi Filho: BARBI FILHO. Celso.
Dissolução Parcial de Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Ed. Mandamentos.
Belo Horizonte. 2003.

608 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


O juiz da apuração judicial de haveres de sócio fixará de ime-
diato, ao definir o critério de elaboração da perícia e nomeado o
perito (art. 604, II e III), o prazo para entrega do laudo que quantifica
o patrimônio da sociedade e o valor das quotas do sócio que se
retira (art. 465).
O perito indicado terá o prazo de 5 (cinco) dias, contados da
ciência da nomeação, para apresentar seus dados pessoais, profis-
sionais e proposta de honorários (art. 465 parágrafo.2º), enquanto as
partes terão o prazo de 15 (quinze) dias para indicar assistente téc-
nico, apresentar quesitos e eventualmente suscitar o impedimento
ou suspeição do perito (art. 465 parágrafo.1º).
Interessante salientar que as partes da ação de apuração ju-
dicial de haveres podem, de comum acordo, escolher o perito res-
ponsável pela quantificação do patrimônio social, desde que se se-
jam pessoas plenamente capazes, já que se trata de questão que
pode ser resolvida por autocomposição (art. 471).
Nas sociedades anônimas, as regras de apuração de have-
res de acionista são essencialmente reguladas pelo art. 45 da Lei n.
6.404//76, que opta por utilizar o termo “valor de reembolso” para
denominar a aqui referida operação de quantificação e pagamento
da parcela do patrimônio social referente às ações de um determi-
nado acionista ou grupo que, por qualquer das razões legalmente
previstas, obtém para si o direito de retirada da companhia.
A análise do texto do art. 45 da Lei n. 6.404/76 permite cons-
tatar que, de forma análoga ao que se viu no art. 1.031 do Código
Civil, também aqui prevalece a regra da dispositividade, pela qual os
estatutos sociais têm competência para estipular critérios de quan-
tificação, prazos e forma de pagamento do valor de reembolso aos
acionistas que exerçam seu direito de retirada da companhia.
Constata-se também que o art. 45 da Lei n. 6.404/76 se refe-
re, em seu parágrafo 1º, ao valor patrimonial das ações não como
o critério a ser supletivamente usado para fins de reembolso, mas
como um valor mínimo – ou piso – a ser empregado, podendo ser
ele, mesmo para esta finalidade, substituído pelo valor econômico

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 609


das ações dos dissidentes, a ser obtido mediante avaliação da com-
panhia segundo o procedimento disciplinado nos parágrafos. 3º e
4º do ora analisado artigo.
Tem-se, diante disso, que o valor de reembolso das ações
será calculado e pago conforme as regras estatutariamente previs-
tas para o assunto, sendo, porém, vedado o pagamento ao acionis-
ta, a título de reembolso ou apuração de haveres, de quantia inferior
ao valor patrimonial das ações da companhia – conforme o último
balanço aprovado – ou ao valor econômico delas, este último obti-
do a partir do procedimento disciplinado pelo próprio art. 45 da Lei
n. 6.404/76.
Aspecto muito importante do tema está em observar que, nas
companhias abertas, o acionista que deseje e tenha o direito de rei-
vindicar sua retirada da sociedade pode optar por simplesmente
vender suas ações em bolsa de valores ou mercado de balcão, re-
cebendo, por elas, o seu valor de cotação praticado no momento
da venda.
Ao vender suas ações no mercado de valores mobiliários o
acionista dissidente realiza, de maneira praticamente imediata, seu
investimento na companhia, sem precisar arcar com os custos de
oportunidade decorrentes da espera pelo cálculo e pagamento do
valor de reembolso de suas ações.
Tem-se, portanto que, nas companhias abertas, o procedi-
mento de cálculo do valor de reembolso – ou apuração de have-
res – do acionista somente é economicamente interessante, para
o dissidente, se o valor de reembolso apurado for monetariamente
superior ao valor de cotação da ação em montante suficiente para
justificar os custos de oportunidade decorrentes da espera pelo pa-
gamento724.
Esta opção inexiste nas companhias fechadas, cujas ações
não apresentam a livre negociabilidade e liquidez dos títulos emi-

724 Para uma acertada escolha entre estas duas opções o acionista dissidente dependerá
sobretudo de informações de qualidade sobre a companhia, seu patrimônio e sobre os
movimentos do mercado secundário de ações em geral.

610 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


tidos pelas sociedades anônimas de capital aberto. Pode-se então
concluir que aos acionistas de companhias fechadas aplicam-se as
mesmas considerações feitas acima sobre a importância da disci-
plina do procedimento de apuração de haveres nos atos constituti-
vos da sociedade.
Outro aspecto da apuração de haveres segundo o art. 45 da
Lei n. 6.404/76 está na constatação de que a forma de escolha dos
responsáveis pela produção do laudo de avaliação da companhia
está, ao contrário do que se verifica no Código Civil, expressamente
disciplinada nos parágrafos 3º e 4º do aqui citado artigo.
Segundo o art. 45 da Lei n. 6.404/76, o laudo de avaliação da
companhia será elaborado por três peritos ou empresa especializa-
da a serem indicados em lista sêxtupla ou tríplice, respectivamente,
pelo Conselho de Administração ou, se não houver, pela diretoria,
e escolhidos pela Assembleia-geral em deliberação tomada por
maioria absoluta de votos, não se computando os votos em branco,
cabendo a cada ação, independentemente de sua espécie ou clas-
se, o direito a um voto.
Deve-se observar, entretanto, que este procedimento preva-
lece apenas em caso de inexistência de regra estatutária em sen-
tido diverso pois, como já salientado, o procedimento de apuração
de haveres pauta-se, tanto nas sociedades anônimas quanto nas
limitadas, pela dispositividade.
Outra diferença entre a apuração de haveres nas sociedades
limitadas e nas companhias está no fato de que estas últimas po-
dem optar por manter as ações dos dissidentes para si, em vez de
enfrentar a uma redução no capital social. Nesta hipótese, os valo-
res de reembolso deverão ser pagos necessariamente com lucros
ou reservas – exceto as legais – o que significa, em outras palavras,
sem comprometimento do capital social (art. 45 par. 5º)
Se, no prazo de cento e vinte dias, a contar da publicação da
ata da assembleia, não forem substituídos os acionistas cujas ações
tenham sido reembolsadas à conta do capital social, este consi-
derar-se-á reduzido no montante correspondente, cumprindo aos

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 611


órgãos da administração convocar a assembleia-geral, dentro de
cinco dias, para tomar conhecimento daquela redução (art. 45 pará-
grafo. 6º da Lei n. 6.404/76)

612 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Capítulo XVIII
Dissolução e liquidação total de sociedades

1 – Dissolução de sociedade: caracterização e fases

Os tipos societários disciplinados no Código Civil são, em sua


essência, contratos, cujos contornos característicos estão estabe-
lecidos pelo art. 981. Tais modelos de sociedade, ditos contratuais,
constituem-se segundo regras legais extremamente semelhantes
e estruturadas, a rigor, em duas fases.
A primeira refere-se à constituição da relação contratual entre
os futuros sócios. Duas ou mais pessoas decidem estabelecer entre
si a relação jurídica societária, caracterizada, repete-se, nos termos
do art. 981 do Código Civil.
A partir do contrato social, passa-se à fase de criação do novo
sujeito de direitos e obrigações, a pessoa jurídica da sociedade, o
que se consegue a partir do cumprimento da formalidade estabe-
lecida pelo art. 985 do Código, consistente no devido registro dos
atos constitutivos.
Deste modo, a constituição de uma sociedade passa pelo sur-
gimento, com o contrato social, da relação entre os sócios e culmi-
na com a criação da pessoa jurídica, que se efetua com o registro
dos atos constitutivos no local próprio725.
A atividade econômica que será exercida pela pessoa jurídi-
ca depende ainda, para sua viabilidade, da formação do patrimônio
social, a ser composto, neste início de sua existência, por meio da
devida integralização das quotas cabíveis, por cláusula do contrato
social, a cada um dos sócios.

725 Deixa-se de lado, para esta finalidade, as chamadas sociedades não personificadas, que,
como o próprio nome indica, não alcançam a condição de pessoa jurídica, configurando-se
apenas como relações de natureza contratual.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 613


Contrato, pessoa jurídica e patrimônio sociais. São estes os
três elementos sobre os quais se tem o exercício de atividade eco-
nômica – seja empresarial ou não – por meio de sociedade.
Esta breve referência ao regime jurídico de constituição das
sociedades contratuais justifica-se para que se possa abordar o
processo inverso, consistente no encerramento tanto do contrato
social quanto da pessoa jurídica dele decorrente.
Embora tenham um processo constitutivo próprio – e relativa-
mente diferente – também as companhias estão estruturadas sobre
um grupo de pessoas (seus acionistas), uma pessoa jurídica e um
conjunto de bens e recursos financeiros organizado para o exercí-
cio de uma determinada atividade econômica. Por isso, podem ser
analisadas paralelamente às sociedades ditas contratuais, para fins
do presente capítulo.
Chama-se dissolução de sociedade o conjunto de atos que vi-
sam o exato inverso do processo constitutivo726. Ao seu final ter-se-á
desfeita tanto a relação entre os sócios quanto a pessoa jurídica
dela decorrente, com o encerramento de ambas tanto quanto aos
seus integrantes quanto a terceiros.
A dissolução total de uma sociedade personificada passa,
portanto, pela resolução de seu ato constitutivo (seu rompimento
em relação aos sócios), pelo desfazimento de seu patrimônio (to-
mado aqui como conjunto de ativos e passivo financeiro e contábil)
e, ao final, pelo encerramento da pessoa jurídica.
Primeiramente rompe-se a relação entre os sócios, com a ve-
rificação de determinado evento que a lei ou o próprio contrato - ou
estatuto, no caso das companhias - estabelecem como causa de
sua resolução.
Verificada esta causa, inicia-se o desfazimento do patrimônio
da sociedade, após o qual se dá a terceira e derradeira fase do pro-
cesso de dissolução, marcado pelo fim da pessoa jurídica criada.
726 A dissolução aqui abordada é classificada como dissolução total de sociedade, em
oposição à denominada dissolução parcial, instituto análogo ao aqui estudado, mas de
efeitos limitados, em sua abrangência, a um determinado sócio ou grupo de sócios, sem
comprometimento da pessoa jurídica.

614 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Se o termo dissolução total de sociedade significa, em seu
sentido amplo, o conjunto destas três fases, ele significa também,
em conotação diversa, apenas a primeira delas727.
Assim, chama-se de dissolução tanto o conjunto de atos – di-
vididos nas três grandes fases citadas – que culminarão com o des-
fazimento do contrato, do patrimônio e da pessoa jurídica, quan-
to também se aplica o termo dissolução à primeira destas fases e
conjunto de atos, caracterizada pela ocorrência de um determinado
evento que tem o poder de provocar o rompimento da relação con-
tratual ou estatutária entre os sócios728.
Tem-se, deste modo, por dissolução, em sentido amplo, o
conjunto formado por todas as fases acima referidas e dissolução,
em sentido estrito, como a primeira delas, cujo efeito característico
é, como visto, provocar o fim da relação societária entre os sócios729.
Após desfeita a relação societária entre os membros – dada a
ocorrência de um evento que tenha, por lei, contrato ou estatuto, tal
poder - a sociedade encaminha-se para a segunda fase, chamada
de liquidação e que tem por essencial e mais evidente característi-
ca e objetivo a realização dos ativos patrimoniais da sociedade, para
pagamento de todas as suas obrigações. Transformam-se bens e
direitos em recursos financeiros para, com os mesmos, quitar as
obrigações contraídas pela pessoa jurídica.
Ultimada a liquidação do patrimônio – com a distribuição de
eventuais sobras patrimoniais entre os antigos sócios – passa-se à
terceira fase do procedimento dissolutório, que consiste na forma-
lização do encerramento da pessoa jurídica, o qual deve realizar-se
no local e por meio análogo à sua constituição, ou seja, no órgão
de inscrição de seus atos constitutivos. Dá-se a esta terceira fase o
727 COELHO. Fábio Ulhôa. A sociedade limitada no novo Código Civil. Ed. Saraiva. São Paulo.
2003. Pg. 142/143.
728 PENTEADO. Mauro Rodrigues. Dissolução e liquidação de sociedades. 2ª edição. Ed.
Saraiva. São Paulo. 2002. Pg. 18 e segs. TOMAZETTE. Marlon. Curso de Direito Empresarial –
Vol. I. 6ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. Pg. 391.
729 ALBERGARIA NETO. Jason Soares de. A dissolução da Sociedade Limitada no novo
Código Civil. (in.) BERALDO. Leonardo de Faria (org.). Direito Societário na atualidade – aspectos
polêmicos. Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2008. Pg. 236.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 615


nome de extinção, quando, uma vez realizada, encerra-se a existên-
cia da pessoa jurídica.
Assim, a dissolução em sentido amplo de uma sociedade ini-
cia-se com o rompimento da relação jurídica entre os sócios – o
contrato social – passa ao desfazimento do patrimônio e obrigações
da sociedade – liquidação – e culmina com o encerramento da pes-
soa jurídica, sua extinção.
São três fases, que se seguem uma à outra e apresentam, to-
das, regulação jurídica tanto Código Civil quanto na Lei n. 6.404/76.
Tais regulações aplica-se, com pequenas particularidades a serem
analisadas, à generalidade das sociedades regidas pelo Código Ci-
vil e às companhias, respectivamente.

2 – Dissolução em sentido estrito: o fim do contrato


social e da relação entre os sócios

As circunstâncias que têm o poder de provocar o rompimento


do vínculo entre os sócios são estipuladas, em princípio, pela legis-
lação, no caso representada pelos art. 1.033 e 1.034 do Código Civil e
pelo art. 206 da Lei n. 6.404/76, que optaram por dividi-las em duas
grandes modalidades, ditas judiciais e extrajudiciais.
Chama-se de causas judiciais de dissolução em sentido es-
trito aquelas cujos efeitos são condicionados a prévia decisão ju-
dicial acerca de sua ocorrência em determinada situação concreta.
A sentença judicial, proferida após processo no qual se constata a
ocorrência da causa dissolutória, é que tem o poder de promover o
rompimento do contrato social ou dos estatutos.
Já as causas de dissolução extrajudicial em sentido estrito –
também chamadas de causas de dissolução de pleno direito - apli-
cam-se sem a necessidade de pronunciamento judicial. Isto, po-
rém, não elide a possibilidade de que, se negada a sua ocorrência
por quem lhe deva respeitar – os sócios e administradores da socie-
dade - veja-se discutida em juízo.

616 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


2.1 – As causas extrajudiciais de dissolução de
sociedade

As causas de dissolução extrajudicial em sentido estrito apli-


cáveis à generalidade das sociedades previstas no Código Civil es-
tão elencadas em seu art. 1.033, referente às sociedades simples.
A aplicação de tais causas às demais sociedades – tornando-
-as gerais – se dá por remissão, como no caso das sociedades em
nome coletivo (art. 1.044), em comandita simples (art. 1.051) e princi-
palmente das sociedades limitadas (art. 1.087), esta última por meio
de estranha referência indireta, abaixo comentada.
No que se refere às sociedades anônimas e em comandita por
ações, tem-se que as causas de dissolução extrajudicial em sentido
estrito a elas referentes estão enumeradas no art. 206, I da Lei n.
6.404/76, sendo ali denominadas “de pleno direito”.
Analisadas tais causas, vê-se que se referem a díspares ocor-
rências, que vão desde o simples decurso do tempo até a deter-
minação estatal, passando especialmente por hipóteses vinculadas
ao comprometimento da relação entre os sócios, seja pela vontade
deles próprios ou pela inexistência de requisito fundamental à sua
existência.
A primeira causa mencionada pelos art. 1.033 do Código Civil
e 206, I da Lei n. 6.404/76 relaciona-se ao decurso do tempo como
causador do fim do contrato social ou da existência da companhia.
Isto porque o término do prazo contratual ou estatutariamente esti-
pulado para a existência da relação de sociedade leva, por óbvio, à
sua cessação de efeitos.
Trata-se de simples corolário da regra pela qual o contrato se
extingue quando cumprido seu prazo de duração, e com as socie-
dades não pode e não deve ser diferente ainda que não se tenha,
nas companhias, como plenamente configurada uma relação emi-
nentemente contratual entre os acionistas.
Claro que tal hipótese de dissolução só se aplica àquelas so-
ciedades que tenham prazo de duração fixado no contrato social ou

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 617


nos estatutos. Há, entretanto, significativa peculiaridade a ser aqui
apontada, e o Código Civil não ficou alheio à questão.
Em contratos de trato sucessivo – especialmente naqueles
chamados de relacionais730, como é o caso da sociedade – é possí-
vel que, ao longo da duração inicialmente estipulada, as partes – no
caso, os sócios – resolvam prorrogar a relação entre eles.
Tal prorrogação, quando expressamente estabelecida, permi-
te que o contrato perdure além do prazo inicialmente fixado, seja
com novo termo final ou mesmo, a partir de então, sem prazo de
duração determinado.
É, porém, possível que as partes de um contrato de trato su-
cessivo, constituído por prazo determinado, simplesmente optem
por sua renovação tácita, a qual se verifica quando, mesmo após
cumprido o prazo de duração estipulado, as partes mantém suas
respectivas obrigações e dão continuidade ao vínculo, que a partir
de então se prorroga com prazo indeterminado731.
Esta renovação tácita do contrato de trato sucessivo mostra-
-se especialmente relevante no caso da relação de sociedade, em
que os sócios, após inicialmente estipulado prazo determinado de
duração do vínculo entre eles, às vezes disso se esquecem, negli-
genciando a necessidade de alteração desta cláusula.
Neste caso, bem opta o art. 1.033 do Código Civil por estabe-
lecer que, se decorrido o tempo de duração da sociedade e não
iniciada a sua liquidação, reputa-se o contrato social automatica-
mente prorrogado por prazo indeterminado, regra que adequa a so-
ciedade ao regime jurídico da generalidade dos contratos de trato
sucessivo.
Saliente-se, entretanto, que qualquer sócio poderá, nesta hi-
pótese, exigir em juízo o respeito à cláusula contratual e demandar
o início do processo liquidatório, sendo também necessário reco-
730 Sobre contratos relacionais: McNeil. Ian. Contracts: adjustment of long-term economic
relations under classical, neoclassica, and relational contract law. Northwestern University Law
Review. 72. 1977/1978. Disponível em www.heinonline.org. consulta em 10/09/2014.
731 É o que se vê, por exemplo, com o contrato de locação de coisa, por força de expressa
disposição do art. 574 do Código Civil.

618 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


nhecer que, se for a vontade dos demais membros, a causa de dis-
solução total se converterá em dissolução parcial732.
A causa essencial de dissolução do contrato social é, também
como em regra geral, o distrato, consubstanciado na manifestação
de vontade das partes no sentido de seu desfazimento. Os partíci-
pes de qualquer contrato devem ter o direito de optarem por sua
resolução, ainda que imotivada.
No caso da sociedade, a vontade dos sócios, criadora do con-
trato e da pessoa jurídica, pode perfeitamente deliberar pelo encer-
ramento de ambos. Não há necessidade de fundamentar o distrato,
sendo apenas necessário que o mesmo se dê na mesma forma que
o contrato (art. 472 do Código Civil).
Assim, em se tratando das sociedades personificadas do Có-
digo Civil, trata-se de decisão de competência privativa dos sócios,
a qual será tomada em reunião ou assembleia a ser convocada e
instalada segundo as formalidades legal e contratualmente esta-
belecidas.
Nas sociedades constituídas por prazo determinado, apenas a
unanimidade dos sócios pode encerrá-la antes da data estipulada,
enquanto nas sociedades constituídas com prazo indeterminado o
quórum de deliberação é menor, já que se exige ‘apenas” a concor-
dância da maioria absoluta do capital social733.
As companhias também se dissolvem extrajudicialmente pela
simples vontade de seus acionistas, como está expresso no art. 206,
I, c da Lei n. 6.404/76. Trata-se de decisão privativa da Assembleia
Geral de Acionistas, que, uma vez devidamente convocada e ins-
talada, deliberará, por maioria absoluta de ações votantes – salvo
732 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial n. 1.035.103. RJ. Relatora
Min. Nancy Andrighi. Data de julgamento: 03/11/2009. www.stj.jus.br. Site consultado em
02/09/2014.
733 Esta diferença de quórum deliberativo, conforme a sociedade tenha ou não prazo
de duração estipulado, pode ser entendida como uma garantia, conferida aos sócios
minoritários, de que o contrato será cumprido na íntegra de sua duração, quando esta é
expressamente fixada, ainda que a maioria do capital deseje o inverso. Nas sociedades por
prazo indeterminado, como os sócios não estipularam a duração do vínculo, não se pode
submeter seu desfazimento ao acordo da integralidade dos sócios, sob pena de se sujeitar o
distrato à vontade da minoria do capital social.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 619


quórum maior previsto estatutariamente, nas companhias fecha-
das - pelo encerramento das atividades sociais (art. 136, X da Lei n.
6.404/76).
A unipessoalidade da sociedade é também elencada, tanto
pelo Código Civil (art. 1.033) quanto pela Lei n. 6.404/76 (art. 206,
I, d), como causa de sua dissolução extrajudicial total, pois, nesta
hipótese, falta requisito de existência da relação societária, a qual,
mesmo nas companhias, é baseada na ideia de comunhão de ca-
pital e pessoas em torno da atividade econômica a ser exercida734.
É possível – e mesmo esperado – que a sociedade se afigure,
em determinado momento de sua existência, composta por apenas
uma pessoa. Circunstâncias como a morte de um sócio, sua exclu-
são ou retirada – hipóteses de dissolução parcial – muitas vezes
podem levar à presença de apenas uma pessoa no quadro social,
desconfigurando a essência contratual do vínculo e da pessoa jurí-
dica dele decorrente.
Em tais situações o Código Civil confere ao sócio remanes-
cente prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias – contados
da data do arquivamento da alteração contratual que configura a
unipessoalidade - para tomar uma dentre três alternativas735.
O membro remanescente pode recompor o quadro de sócios,
incluindo uma ou mais outras pessoas no corpo social mediante al-
teração contratual e integralização de novas quotas ou cessão, ao
novo integrante, de parte das quotas já integralizadas.
A segunda opção é valer-se de alteração contratual para que,
a partir de então, a sociedade prossiga como limitada unipessoal,

734 O art. 1.052 do Código Civil (com redação dada pela Lei n. 13.874/19) admite a constituição
de sociedade limitada com um único sócio. Neste caso, por óbvio, a causa de dissolução total
aqui tratada não incidirá.
735 Semelhante causa dissolução societária, aplicável apenas à sociedade em comandita, é
aquela prevista pelo art. 1.051 do Código Civil e que incide quando, por período superior a 180
(cento e oitenta) dias, apresenta-se a sociedade deste tipo sem ao menos um sócio de cada
uma das duas categorias de membros que a caracterizam, quais sejam: sócio comanditado
e sócio comanditário.

620 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


conforme admitido pelo art. 1.052 parágrafo único do Código Civil
(com redação dada pela Lei n. 13.874/19)736.
É também possível que o sócio remanescente decida conti-
nuar no exercício da empresa sob a forma de empresário individual.
Não é eficiente exigir-se que o sócio se submeta, neste caso, a todo
o procedimento liquidatório para, apenas após concluído o mesmo,
formalizar sua inscrição como empresário individual, muitas vezes
com o mesmo patrimônio e atividade empresarial outrora exercida
na forma societária.
Por outro lado, a responsabilidade ilimitada do empresário in-
dividual permite que os credores da outrora existente sociedade se
vejam tão ou mais garantidos do que antes, motivo pelo qual ad-
mite-se que o instituto da transformação seja aqui aplicado, para
converter a sociedade em empresário individual (art. 1.033 par único
do Código Civil).
Quanto às companhias, o restabelecimento do número míni-
mo de sócios deve ser efetuado até a Assembleia Geral Ordinária
seguinte àquela na qual se constatou a presença de um único acio-
nista como titular da totalidade das ações emitidas, ressalvando-se,
por óbvio, a sociedade subsidiária integral, essencialmente unipes-
soal (art. 251 da Lei n. 6.404/76).
A quarta e última causa de dissolução extrajudicial de socie-
dade – abarcada tanto pelo art. 1033 do Código Civil quanto pelo art.
206, I da Lei n. 6.404/76 - está na determinação estatal, consubs-
tanciada pela retirada, por ato do Poder Executivo, de sua autoriza-
ção para funcionar737.
Existem certos tipos de atividades empresariais que, para se-
rem regularmente exercidas, dependem de expressa e específica
autorização do Poder Executivo Federal (art. 1.123 do Código Civil).

736 Afigura-se adequado, diante do art. 1.052 parágrafo primeiro do Código Civil, que o sócio
único de sociedade limitada possa optar pela redução da sociedade em questão à forma
unipessoal, com as necessárias alterações contratuais.
737 O art. 206, III da Lei n. 6.404/76 repete tal causa dissolutória citando-a como decorrente
não de ato dos sócios (extrajudicial, portanto) mas de decisão administrativa, tomada pela
autoridade competente para autorizar o funcionamento da companhia.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 621


Trata-se de atividades que, por diversas peculiaridades, são
mais detalhadamente reguladas pela legislação. É o caso, por
exemplo, das atividades de loterias (Dec. Lei n. 2.980/1941), minera-
ção (Dec. Lei n. 227/1967) e seguros (Dec. Lei n. 73/1966) 738.
O Poder Executivo Federal, responsável por conceder tal au-
torização para funcionamento, pode cassá-la, a qualquer tempo, se
verificado que a sociedade autorizada tenha infringido disposição
de ordem pública ou praticado ato contrário aos fins declarados no
seu estatuto (art. 1.025 do Código Civil).
A aplicabilidade das causas extrajudiciais de dissolução de
sociedade são, como já salientado, independentes de pronuncia-
mento judicial. Porém, em caso de recusa dos sócios ou dos ad-
ministradores em reconhecer-lhes a incidência, legitima-se a pro-
positura de ação judicial para declarar-se a ocorrência e impor o
cumprimento da causa dissolutória, como se pode constatar tanto
no art. 1.036 par. único do Código Civil quanto no art. 209, I da Lei n.
6.404/76.
Por tratar-se de matéria de ordem pública, deve-se entender
que não apenas o sócio – independentemente de seu percentual
do capital social – tem legitimidade para tal pleito mas também o
herdeiro, cônjuge sobrevivente, inventariante de sócio falecido, cre-
dores da sociedade ou particulares de sócio (estes no caso de so-
ciedades de responsabilidade ilimitada) e o Ministério Público são
legitimados a propositura desta ação de dissolução da sociedade.
Por fim, resta lembrar que tanto no regime da Lei n. 6.404/76
(art. 206, I, b) quanto do Código Civil (art. 1.035) os atos constitutivos
– contrato social ou estatuto – estão autorizados a estabelecerem
outras causas de dissolução total da sociedade, as quais são aplicá-
veis extrajudicialmente ou de pleno direito.

738 Dentre as atividades condicionadas a autorização específica há algumas que só podem


ser exercidas por sociedades constituídas sob a forma de sociedades anônimas, como as
instituições financeiras e companhias de seguro.

622 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


2.2 – As causas de dissolução judicial de sociedade

Causas de dissolução judicial de sociedade são aquelas que


têm, como requisito de aplicabilidade, um pronunciamento judicial
acerca de sua ocorrência e quanto ao seu efeito de promover o
rompimento da relação societária. Há apenas duas delas, previstas
tanto no Código Civil (art. 1.034) quanto na Lei n. 6.404/76 (art. 206,
II).
A primeira refere-se à sentença judicial que anula a consti-
tuição da sociedade. Obviamente, quando reconhecida em juízo
causa de nulidade do procedimento constitutivo do contrato social
ou da pessoa jurídica dele decorrente, deve a mesma sentença de-
terminar a dissolução da relação societária e o imediato início do
procedimento liquidatório.739
A outra causa dissolutória judicial de sociedade prevista pelo
art. 1.034 do Código Civil e pelo art. 206, II da Lei n. 6.404/76 é a re-
ferente ao exaurimento ou inexequibilidade do “fim social”740. Neste
ponto são necessárias algumas observações particularmente rele-
vantes.
O termo “fim social” não pode e não deve ser, em momento
algum, confundido com o “objeto social”. Fim, finalidade ou objetivo
social é a razão última de existência tanto do contrato de sociedade
quanto da pessoa jurídica dele decorrente e consubstancia-se, nos
termos do art. 981 do Código Civil, na partilha dos resultados finan-
ceiros da atividade ou, dito de outra forma, no lucro almejado pelos
sócios.
Já objeto social é o meio pelo qual os sócios pretendem atin-
gir tal finalidade, e se corporifica na atividade de natureza econô-
739 O prazo decadencial da ação de anulação de constituição de sociedade é de três
anos, conforme estipulado no art. 45 do Código Civil. Já para as companhias este prazo –
prescricional, não decadencial - é de um ano, contado da publicação dos atos constitutivos
(art. 285 da Lei n. 6.404/76).
740 O par. 2º do art. 599 do Código de Processo Civil de 2015 estipula que, para as
companhias fechadas, o aqui referido não preenchimento do fim social constitui-se em causa
de dissolução parcial – portanto, não mais total – da companhia, desde que demonstrada por
acionista ou grupo titular de cinco por cento ou mais do capital social.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 623


mica – empresarial ou não - estipulada nos atos constitutivos da
relação societária.
Assim, desfeita essa impropriedade terminológica estranha-
mente elencada tanto no Código Civil quanto na Lei n. 6.404/76,
tem-se que o correto entendimento sobre o exaurimento ou inexe-
quibilidade do fim social é, em verdade, referente ao seu objeto.741
Há exaurimento quando a sociedade simplesmente cumpre
todos os negócios jurídicos para os quais foi criada. Já a inexequibi-
lidade do objeto social se dá quando tais negócios jurídicos tornam-
-se, de fato (inexequibilidade fática) ou de direito (inexequibilidade
jurídica), impossíveis de serem cumpridos.
É fáticamente inexequível o objeto social que, por exemplo,
não pode ser implementado por falta de condições tecnológicas
disponíveis, enquanto a inexequibilidade jurídica se manifesta quan-
do a atividade a ser exercida pela sociedade é enquadrada como
ilícita pela legislação.
Lembra Alfredo de Assis Gonçalves Neto742 que o art. 1.034 do
Código Civil deixou de se referir à hipótese em que, uma vez reco-
nhecida a insolvência patrimonial da sociedade, sentença judicial
lhe decreta a insolvência ou a falência, conforme seja a sociedade
regida pelas normas civis ou empresariais. Essa falta foi parcialmen-
te suprida por menção constante do art. 1.044 do Código, aplicável
às Sociedades em Nome Coletivo e, por via de remissão, às Socie-
dades em Comandita e Sociedades Limitadas.
Diz-se parcialmente, porque o art. 1.044 desconsidera a insol-
vência civil como causa dissolutória judicial, ao mencionar apenas
a falência em seu texto. Deve-se, entretanto, reconhecer que tanto
a falência quanto a insolvência civil são forçosamente causas ju-
diciais de dissolução total da sociedade, uma vez que a sentença
741 “O objecto da sociedade é um elemento essencial do contrato e, portanto, se esse elemento
deixa de existir por já estar realizado, a sociedade dissolve-se; os sócios contrataram realizar em
comum uma determinada actividade e, ocorrida essa realização, a nada mais estão vinculados”.
VENTURA. Raul. Dissolução e liquidação de sociedades. Livraria Almedina. Coimbra. 1999. Pg.
69.
742 GONÇALVES NETO. Alfredo de Assis. Direito de Empresa – comentários aos artigos 966 a
1.195 do Código Civil. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2007. Pg. 267/268.

624 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


que decreta uma ou outra implica obrigatoriamente na liquidação
do patrimônio empresarial e extinção da atividade.
Ao contrário do Código Civil, a Lei n. 6.404/76 não omitiu a fa-
lência como causa de dissolução judicial das sociedades por ações
(art. 206, II, c). Obviamente, por se tratar-se de sociedades empre-
sárias, independentemente de seu objeto (art. 982 do Código Civil),
as companhias estão apartadas do regime de insolvência civil, não
havendo, portanto, razão para a ele se referir a legislação.
Resta ainda outra imprecisão do Código Civil a ser aqui abor-
dada, essa ligada à possibilidade de aplicação das causas de disso-
lução judicial elencadas pelo artigo 1.034 do Código Civil a todos os
modelos societários por ele disciplinados.
Tanto o artigo 1.051 (referente às sociedades em comandita)
quanto o artigo 1.087 do Código Civil (único a referir-se expressa-
mente a causas de dissolução total das sociedades limitadas) re-
metem ao art. 1.044 do Código (regente das causas dissolutórias
das Sociedades em Nome Coletivo) e este, por sua vez, faz remis-
são apenas ao art. 1.033 do mesmo texto legal, o qual enumera as
causas de dissolução extrajudicial de Sociedade Simples.
Estariam, portanto, as disposições do art. 1.034 do Código,
alusivas às causas dissolutórias judiciais, excluídas de aplicação às
sociedades limitadas, sociedades em comandita e sociedades em
nome coletivo?
Se, à primeira vista, parece ser esta a resposta, não se pode
deixar de reconhecer que o rompimento do contrato social entre os
sócios é decorrência inevitável, tanto sob o aspecto fático quanto
jurídico, da sentença que anula sua constituição – ou seja, que inva-
lida o contrato social por vício constitutivo – ou reconhece que seu
objeto está exaurido ou tornou-se inexequível. Portanto, e embora
sem referência expressa, deve-se reconhecer que a dissolução ju-
dicial se aplica, nestes dois casos, também às Sociedades Limita-
das, em Comandita e em Nome Coletivo743.

743 José Waldecy Lucena não distingue quanto a aplicabilidade, às Sociedades Limitadas,
das causas dissolutórias judiciais e extrajudiciais, previstas respectivamente nos artigos

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 625


Discussão antiga, sobre a qual tanto a doutrina quanto a ju-
risprudência se debruçaram com firmes argumentos em diferentes
sentidos, é a que se refere à legitimidade passiva em ações de dis-
solução judicial de sociedade744.
Após longo debate caminhou-se, com relativa maioria, para
o entendimento segundo o qual deve haver, no caso, litisconsórcio
necessário entre a sociedade – pessoa jurídica – e seus sócios745,
posicionamento este que se afigura acertado, posto que a dissolu-
ção, em sentido amplo, implica no desfazimento do contrato social
– efeito entre os sócios – e da pessoa jurídica.

3 – A liquidação do patrimônio social

A liquidação é a fase do procedimento dissolutório – em senti-


do amplo - na qual o objetivo é encerrar as relações patrimoniais nas
quais é parte a pessoa jurídica da sociedade para, posteriormente,
se efetuar sua extinção746. Neste momento busca-se transformar to-
dos os bens e direitos da pessoa jurídica em recursos financeiros
com os quais serão quitadas todas as suas obrigações patrimoniais.
Para que tal objetivo se efetive, a sociedade em liquidação
precisa permanecer apta a praticar atos jurídicos, ou seja, é neces-
sário que a mesma tenha a sua personalidade jurídica preservada747.
1.033 e 1.034 do Código Civil, considerando-as todas indistintamente aplicáveis, ainda que
reconheça a curiosa “dança remissiva de artigos”, termo por ele usado para referir-se à
no mínimo inusitada opção do Código Civil pela remissão indireta, a qual se verifica entre
os artigos 1.087, 1.044 e 1.033, respectivamente. LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades
Limitadas. 6ª edição. Ed. Renovar. Rio de Janeiro. 2005. Pg. 788.
744 A respeito das diferentes posições sobre o tema, confira: ALBERGARIA NETO. Jason
Soares de. Partes na ação de dissolução de sociedade por quotas de responsabilidade limitada.
Tese. (Doutorado em Direito Comercial). Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais. Belo Horizonte. 2001.
745 OLIVEIRA. Rodrigo Pereira Ribeiro de. Dissolução total e liquidação em sociedade limitada.
(in.) BERALDO. Leonardo de Faria (org.). Direito Societário na atualidade – aspectos polêmicos.
Ed. Del Rey. Belo Horizonte. 2008. Pg. 273/274.
746 A liquidação do contrato de sociedade em conta de participação se efetua, dada a
inexistência de personalidade jurídica neste tipo societário, por meio de procedimento de
prestação de contas (art. 996 do Código Civil).
747 O art. 207 da Lei n. 6.404/76 é expresso quanto à personalidade jurídica da sociedade em

626 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Na fase de liquidação, portanto, o que se verifica é que a pessoa
jurídica tem alterados o seu objeto e finalidade, mas preservada a
sua personalidade.
Enquanto em pleno funcionamento, a sociedade orienta-se
para a busca do lucro (fim social) através do exercício de determi-
nada atividade econômica (objeto social) definida pelos sócios e ex-
pressa em seus atos constitutivos.
Já enquanto em liquidação, a finalidade da sociedade está em
transformar seus bens e direitos em recursos financeiros, realizar
o pagamento de todas as obrigações por ela contraídas e ratear a
eventual sobra de patrimônio entre os sócios748. Seu objeto social,
por sua vez, deixa de ser a atividade econômica prevista em seus
atos constitutivos e passa a consistir apenas nos atos necessários à
conclusão dos negócios jurídicos contraídos anteriormente à disso-
lução749.
A sociedade em liquidação precisa, como qualquer outra pes-
soa jurídica, de alguém que possa por ela praticar tais atos e negó-
cios necessários à realização de sua nova finalidade. A sociedade
em liquidação carecerá, portanto, de um representante legal, papel
que, enquanto em pleno funcionamento, cabia a seus administra-
dores.

3.1 – O liquidante da sociedade

O liquidante é a pessoa que concentrará, no processo liqui-


datório, o poder de representação da pessoa jurídica. Se, enquanto
em pleno funcionamento, a sociedade era representada, em todos
os seus atos, pelos seus administradores (art. 1022 do Código Civil e

liquidação. Já o Código Civil não contém dispositivo similar, o que, entretanto, não impede
a mesma conclusão, dada a própria essência do procedimento liquidatório e dos atos
praticados durante seu curso.
748 “A liquidação termina quando se fixa, em moeda corrente, o montante preciso da soma a ser
reembolsada ao sócio quotista”. CORRÊA LIMA. Osmar Brina. Sociedade Limitada. Ed. Forense.
Rio de Janeiro. 2006. Pg. 200.
749 Neste sentido o art. 211 par. único da Lei n. 6.404/76 e art. 1.036 do Código Civil.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 627


art. 138 da Lei n. 6.404/76), agora tal poder passa ao liquidante (art.
1.105 do Código Civil e art. 211 caput da Lei n. 6.404/76).
A escolha do liquidante é, nas sociedades simples – e, por re-
missão, também nas sociedades em nome coletivo e em comandi-
ta – feita através de designação em contrato social ou, como é mais
comum, por deliberação dos sócios, podendo recair sobre pessoa
estranha à sociedade (art. 1038 do Código Civil).
Já no que se refere às sociedades limitadas, o Código estabe-
lece que a decisão sobre o nome do liquidante é matéria de com-
petência privativa da assembleia ou reunião de sócios (art. 1.071, VII).
Quanto às companhias, a escolha do liquidante também é,
salvo cláusula estatutária diversa, decisão de competência da As-
sembleia Geral de Acionistas, que poderá também decidir sobre o
modo de liquidação e se mantém ou não o Conselho de Administra-
ção – se existente, claro – em funcionamento ao longo do processo
liquidatório (art. 208 da Lei n. 6.404/76)750.
O liquidante será investido em suas atribuições pelos então
administradores da sociedade em liquidação, imediatamente após
a sua escolha. No lapso temporal entre a verificação da causa dis-
solutória e a investidura do liquidante os administradores só podem
realizar o que o Código Civil chama, em seu art. 1.036, de “negócios
inadiáveis”, sob pena de responsabilidade ilimitada pelas obriga-
ções contraídas nessa circunstância751.
Os deveres do liquidante estão elencados pelos art. 1.103 do
Código Civil e art. 210 da Lei n. 6.404/76. Trata-se de enumeração
exemplificativa, pois certamente há outros deveres implícitos à sua
atuação no processo liquidatório752.

750 Diferentemente do que se tem no regime do Código Civil, a Lei n. 6.404/76 prevê, em
seu art. 208, a obrigatória existência de Conselho Fiscal no curso do processo de liquidação
da companhia, o qual será de funcionamento permanente ou a pedido de qualquer acionista,
conforme disposto no estatuto.
751 Termo de difícil caracterização, os tais “negócios inadiáveis” podem ser abstratamente
concebidos como aqueles referentes ao cumprimento de obrigações constituídas antes da
verificação da causa dissolutória ou aqueles necessários à preservação do patrimônio da
sociedade em vias de encerrar suas atividades e existência jurídica.
752 Embora voltada para seu encerramento, trata-se a sociedade em liquidação de uma

628 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


A primeira providência legalmente atribuída ao liquidante é
tornar pública – portanto, oponível a terceiros - a causa de rom-
pimento do contrato ou estatuto social entre os membros da so-
ciedade, a qual, ao mesmo tempo, constitui-se no termo inicial do
processo liquidatório.
Para as causas de dissolução extrajudicial o Código Civil re-
quer a averbação, no órgão de registro da sociedade, do instru-
mento que formaliza o rompimento do contrato social e, no caso de
dissolução judicial, é exigida a publicação da sentença proferida no
processo dissolutório.
Já a Lei n. 6.404/76 exige que o liquidante, no cumprimento
deste dever, promova o arquivamento (no Órgão Público de Regis-
tro de Empresas Mercantis) e publicação da ata da assembleia geral
que decidiu pela dissolução extrajudicial da sociedade ou da certi-
dão de sentença que tenha dissolvido judicialmente a companhia.
São também deveres legais do liquidante, tanto no regime
do Código Civil quanto da Lei n. 6.404/76, arrecadar bens, livros e
documentos da sociedade, elaborar inventário e balanço geral do
ativo e passivo753, ultimar os negócios pendentes, realizar o ativo,
pagar o passivo e partilhar o remanescente entre os sócios.
O pagamento das obrigações da sociedade deve se realizar
conforme as mesmas regras de preferência e desconto, as quais
estão positivadas nos art. 214 da Lei n. 6.404/76 e 1.106 do Código
Civil, sendo presumido, em ambos os casos, que existam recursos
financeiros suficientes para o integral e tempestivo pagamento de
todas as obrigações existentes em nome da pessoa jurídica em li-
quidação.

pessoa jurídica representada, como ora se vê, pelo seu liquidante. Este, portanto, não está
dispensado, como qualquer representante de pessoa jurídica, dos deveres fundamentais de
diligência, obediência e lealdade. Saliente-se, inclusive, que tanto a Lei n. 6.404/76 (art. 217)
quanto o Código Civil (art. 1104) expressamente equiparam, para fins de responsabilidade, o
liquidante aos administradores da sociedade em liquidação.
753 A Lei n. 6.404/76 refere-se, neste ponto, à obrigação do liquidante de providenciar, no
prazo fixado pela Assembleia Geral de Acionistas ou pelo juiz – em caso de liquidação judicial
- o Balanço Patrimonial da companhia.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 629


Se, no curso da realização do inventário e balanço do ativo
e passivo, o liquidante constatar que o patrimônio da sociedade é
deficitário, ou seja, que não há recursos financeiros suficientes para
saldar todos os débitos da pessoa jurídica, resta-lhe o dever legal
de requerer a autofalência da sociedade (art.1.103, VII do Código Ci-
vil e art. 210, VII da Lei n. 6.404/76).
Regra absoluta do processo de liquidação é aquela que sub-
mete a distribuição de patrimônio entre os sócios ao integral paga-
mento das obrigações da pessoa jurídica. Em uma sociedade em
liquidação os credores sempre recebem antes dos sócios, mesmo
no caso da legalmente denominada partilha antecipada (art. 215 da
Lei n. 6.404/76 e art. 1.107 do Código Civil), entendida essa como a
realizada após o pagamento integral das dívidas, mas antes do en-
cerramento formal do processo liquidatório.
É também dever do liquidante exigir dos quotistas ou acionis-
tas a integralização de suas quotas ou ações, quando insuficiente o
ativo para solução do passivo, além da repartição das perdas, se for
o caso.
Em uma sociedade limitada ou anônima os sócios não res-
pondem, com seu patrimônio pessoal, pelas dívidas da pessoa ju-
rídica (art. 1.052 do Código Civil e art. 1º da Lei n. 6.404/76), o que
significa que não podem ser chamados a integralizar novas parcelas
de capital no momento da liquidação, ainda que o patrimônio social
seja insuficiente para a quitação das dívidas da sociedade754.
Radicalmente diferente é o caso do quotista ou acionista re-
missos, sendo a eles destinada a cobrança ora analisada. Se, mes-
mo nas Sociedades Anônimas ou Limitadas, o sócio ainda não hou-
ver integralizado totalmente sua parcela de capital social, ele terá o
dever de fazê-lo e o liquidante, por sua vez, a obrigação de exigir-
-lhe tal cumprimento.
A prestação periódica de contas está também entre as obri-
gações do liquidante, assim como a realização de relatório final e
prestação final de contas. Tal dever se realiza em relação aos sócios,
754 Nesta hipótese a solução será, novamente, o requerimento de autofalência.

630 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


mediante convocação, pelo liquidante, de assembleia ou reunião
destinada a essa finalidade (Art. 213 da Lei n. 6.404/76 e art. 1.108 do
Código Civil).
Tanto a Lei n. 6.404/76 quanto o Código Civil elencam ainda,
entre as atribuições do liquidante, o já mencionado poder de con-
fessar falência e, também, o de “pedir concordata” (sic.). Instituto ex-
tinto em nosso ordenamento, a concordata foi, em termos, “substi-
tuída” pelo instituto da recuperação de empresas, disciplinado pela
Lei n. 11.101/05.
Não se afigura correto entender que a admissão do Código
Civil e da Lei n. 6.404/76 ao pedido, pelo liquidante, de concordata
possa ser tomado também como autorização para que ele possa
requerer a recuperação judicial da sociedade em liquidação.
É no mínimo paradoxal pretender a reestruturação financeira
de uma sociedade que está voltada para o encerramento de suas
atividades e existência, ainda mais sem a prévia decisão favorável
dos sócios. Descabido pensar em recuperar patrimonialmente uma
sociedade que se pretende extinguir.
Diferente, porém, é conceber uma eventual renegociação de
dívidas com os credores da pessoa jurídica em liquidação. Direi-
tos eminentemente disponíveis, podem eles ser renegociados, de
modo a viabilizar seu pagamento.
A destituição do liquidante se efetua judicial ou extrajudicial-
mente. Em sua forma extrajudicial é ato privativo dos sócios e, as-
sim como se verifica no caso dos administradores, dispensa fun-
damentação, ou seja, o liquidante é extrajudicialmente demissível
ad nutum (art. 1038 par. 1º do Código Civil e art. 208 par. 2º da Lei n.
6.404/76).
Já a destituição do liquidante por via de decisão judicial é, ao
contrário, necessariamente fundamentada em “justa causa”, a qual
está atrelada a comprovado descumprimento dos deveres ineren-
tes à sua atuação.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 631


3.2 – A liquidação judicial de sociedade

A fase de liquidação do patrimônio social é, em princípio, rea-


lizada extrajudicialmente – ou, como prefere a Lei n. 6.404/76, “pe-
los órgãos da companhia” – mas pode excepcionalmente assumir
forma judicial, a qual seguirá o rito estabelecido pela legislação
processual (art. 1.111 do Código Civil e art. 209 par. único da Lei n.
6.404/76) e terá o liquidante nomeado pelo juiz responsável pela
condução do procedimento liquidatório.
A liquidação judicial de sociedade se aplica, tanto no regime
do Código Civil quanto da Lei n. 6.404/76, nas hipóteses em que a
dissolução em sentido estrito se deu por sentença judicial ou quan-
do a liquidação extrajudicial não for voluntariamente iniciada, logo
após ocorrida a causa dissolutória extrajudicial (art. 209 caput e n. I
da Lei n. 6.404/76, art. 1.036 par. único do Código Civil) 755.
É título executivo judicial a sentença que reconhece a ocor-
rência de causa de dissolução da sociedade, e sua execução se
efetua exatamente por meio do processo de liquidação judicial da
sociedade dissolvida.756 Tem-se, portanto, que quando a socieda-
de é dissolvida por decisão judicial, sua liquidação – execução da
sentença dissolutória – se dá em juízo, por meio do rito processual
próprio.
É também forçoso reconhecer que se a sociedade está extra-
judicialmente dissolvida, sua liquidação deve automática e imedia-
tamente começar, também na forma extrajudicial. Porém, negligen-
ciada esta providência, seja pelos sócios e/ou pelos administrado-
res da sociedade dissolvida, inegável e necessário conceder, como
fizeram o Código Civil e a Lei n. 6.404/76, o direito de qualquer sócio
pleitear a forma judicial de liquidação.

755 Ainda sobre o procedimento de liquidação judicial de sociedade, cabe salientar o art.
1.112 do Código Civil prevê que o juiz do processo liquidatório deve convocar os sócios para
participação em assembleia ou reunião na qual deliberarão sobre os interesses da liquidação.
756 LUCENA. José Waldecy. Das Sociedades Limitadas... ob. Cit. Pg. 847.

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Tanto o Código Civil quanto a Lei n. 6.404/76 dedicam aten-
ção especial à disciplina da liquidação de sociedade dissolvida por
decisão administrativa que extinguiu sua autorização para funcionar
(art. 1.033 do Código Civil e art. 206, I, e) da Lei n. 6.404/76). Verificada
esta hipótese de dissolução, a liquidação extrajudicial da sociedade
deve obrigatoriamente iniciar-se nos 30 (trinta) dias subsequentes.
Se, no prazo acima, os administradores e sócios da sociedade
não iniciarem o procedimento liquidatório extrajudicial, o Ministério
Público deverá ser comunicado disso pela autoridade que retirou
da sociedade a autorização para funcionar, a fim de que pleiteie o
início do procedimento liquidatório, agora em sua forma judicial (art.
1.037 do Código Civil e art. 209, II da Lei n. 6.404/76)757.

4 – A extinção da sociedade e o fim da pessoa jurídica

Dentre as atribuições/deveres do liquidante está o de en-


cerrar o procedimento liquidatório. Isso significa não apenas efe-
tuar sua prestação final de contas como também realizar a última
e derradeira fase do processo dissolutório, denominada extinção
societária e consistente no encerramento da existência da pessoa
jurídica, por meio da competente comunicação ao órgão de registro
da sociedade liquidada (art. 1.109 do Código Civil, art. 210, IX e 219
da Lei n. 6.404/76).
Já foi salientado que a extinção da sociedade representa o
derradeiro ato na existência da pessoa jurídica, que, após a realiza-
ção desta fase, deixará de existir como sujeito de direitos e obriga-
ções próprias.

757 O artigo 1.037 do Código Civil estabelece ainda, nessa hipótese, o prazo de 15 (quinze)
dias para que o Ministério Público promova tal ação de liquidação judicial da sociedade, sob
a consequência de, em não o fazendo, permitir à autoridade administrativa que retirou da
sociedade a autorização para funcionar a nomeação de interventor na pessoa jurídica, sendo
então este último legitimado à propositura da ação de liquidação judicial.
Já a Lei n. 6.404/76 não se refere, em seu art. 209, II, a esta possibilidade de intervenção
administrativa na companhia dissolvida, mas autoriza a provocação do Ministério Público,
para o requerimento de liquidação judicial da companhia, também se interrompida por mais
de 15 (quinze) dias sua liquidação extrajudicial.

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Se, como dito, o objetivo é finalizar a existência da pessoa jurí-
dica, tal providência deve ser tomada exatamente no local aonde tal
sujeito de direito foi criado, ou seja, no órgão de registro.
Para tanto, faz-se necessário comprovar que o processo de
liquidação do patrimônio social se realizou – ao menos presumida-
mente - por completo, com o integral pagamento das obrigações
contraídas em nome da sociedade.
A presunção de encerramento da liquidação se dá pela apre-
sentação, ao órgão de registro, de um conjunto de documentos de
diversas origens e que atestam, sob diferentes âmbitos de entida-
des públicas e privadas, a inexistência de relações pendentes em
nome da sociedade em vias de encerrar sua existência.
Ressalte-se aqui o caráter presumido da comprovação do de-
vido encerramento da liquidação, pois, como se verá em item se-
guinte, os documentos exigidos não significam que algum débito,
especialmente de natureza privada, tenha restado inadimplido. A
obtenção dos documentos exigidos para o encerramento da pes-
soa jurídica não altera o direito de eventuais terceiros sobre a socie-
dade, agora não mais uma pessoa jurídica.
Não apenas o encerramento do processo de liquidação é
causa de extinção de sociedade. Também a situação de sociedade
incorporada por outra, fusionada à outra ou cindida por completo
levam à extinção da pessoa jurídica e, neste sentido, tanto o reco-
nhecem o Código Civil (art. 1.118 e 1.119) quanto a Lei n. 6.404/76 (art.
219).
Assim, a sociedade incorporada, fusionada ou inteiramente
cindida é extinta sem passar pelas fases de dissolução em sentido
estrito e liquidação, sendo tais fases substituídas pelos atos neces-
sários à realização da operação de incorporação, fusão ou cisão.
A sociedade incorporada, fusionada ou cindida deixará de
existir após a conclusão da operação, mas suas obrigações, bens,
direitos e sócios passam a integrar a sociedade incorporadora ou,
conforme o caso, aquela que resultou da fusão ou cisão.

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5 – Dissolução e liquidação de fato: sua caracterização
e efeitos jurídicos e econômicos

Analisadas as três fases inerentes ao processo de dissolu-


ção de sociedade personificada, resta lembrar que a observância
destas normas, especialmente aquelas atinentes ao processo de
liquidação do patrimônio social - quando a sociedade encerra suas
relações com terceiros – são de inarredável obrigatoriedade. Não é
dado aos sócios promover o encerramento do contrato e da pessoa
jurídica por outro modo que não pelo procedimento legalmente es-
tipulado.
É, porém, frequente a situação na qual os sócios encerram a
relação societária, colocam fim ao exercício da atividade econômica
comum e aos bens usados nessa atividade sem, entretanto, obser-
var as normas reguladoras tanto da dissolução quanto da liquida-
ção das obrigações da sociedade758.
Há, nestes casos, o que se pode chamar de dissolução ou li-
quidação de fato, pois resolve-se a relação contratual entre os só-
cios – ainda que a causa de tal desfazimento não esteja enumerada
em lei – encerram-se as atividades e vendem-se os bens antes usa-
dos pela pessoa jurídica sem, como dito, respeito às regras legais
de liquidação deste patrimônio.
A sociedade jamais chega à sua extinção, restando juridica-
mente existente, mas, de fato, não mais em atividade, o que provo-
ca nítida externalização dos custos inerentes a tal extinção.
O procedimento legal de liquidação de sociedade aloca nos
sócios os ônus – financeiros ou não – de promover, através dos atos
do liquidante, a quitação das obrigações da pessoa jurídica ou, em
caso de insuficiência patrimonial, de requerer a sua falência ou in-
solvência. Se foram os sócios que voluntariamente criaram a socie-
dade e partilharam seus resultados econômicos, nada mais ade-

758 Para comprovar tal frequência, basta rápida consulta aos repositórios jurisprudenciais do
país, em especial do Superior Tribunal de Justiça (www.stj.jus.br), para que se veja o quanto
chegam ao Judiciário situações como a descrita.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 635


quado do que atribuir-lhes os custos de encerramento da relação
societária e da pessoa jurídica.
Já quando os sócios optam pela liquidação de fato, promo-
vem eles a pulverização ou externalização dos custos inerentes ao
processo liquidatório, os quais agora recairão essencialmente so-
bre os credores – voluntários ou involuntários – da outrora existente
pessoa jurídica, uma vez que eles dificilmente verão honrados seu
legítimo direito de crédito.
Em uma liquidação de fato os sócios encerram as atividades
da sociedade sem a preocupação com as regras legais de quitação
das obrigações existentes em nome da pessoa jurídica.
As externalidades negativas – como a que se verifica em dis-
soluções e liquidações de fato – são economicamente aracteriza-
das como falhas de mercado759 e, como tais, devem ser corrigidas
por meio de instrumentos como as regras jurídicas.
A correção da falha de mercado representada pelas dissolu-
ções ou liquidações de fato está, tanto sob fundamentos estrita-
mente jurídicos quando sob argumentos de natureza econômica,
na responsabilização dos sócios de forma pessoal, ilimitada e soli-
dária por todas as obrigações não devidamente quitadas pela pes-
soa jurídica.
Sob o enfoque econômico, esta responsabilização pessoal
dos sócios, em casos de dissolução ou liquidação de fato, é medi-
da que visa internalizar os custos da irregularidade dissolutória ou
liquidatória, os quais, de outra forma, são externalizados, gerando
ineficiência do mercado e comprometimento do instituto da per-
sonalidade jurídica e da própria regra de responsabilidade limitada
dos sócios760.
759 “Quando há externalidades, a alocação de bens pelo mercado é ineficiente.” (STIGLITZ.
Joseph E. WALSH. Carl. E. Introdução à Microeconomia. 3ª edição. Editora Campus. Rio de
Janeiro. 2003. Pg. 194.
760 A própria regra da responsabilidade limitada do sócio é vista por Richard Posner como
externalidade, uma vez que permite aos empreendedores – no caso, aos sócios – dividirem
com seus credores o risco de fracasso econômico da empresa (POSNER. Richard. Economic
Analysis of Law. 7th ed. Wolters Klumer Law & Business. 2007. Pg. 425). Vale, porém, lembrar
que a limitação de responsabilidade dos sócios funciona como fundamental incentivo ao

636 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


Internalizar significa criar incentivos para que os agentes eco-
nômicos causadores de externalidades negativas (os sócios que li-
quidam irregularmente a sociedade, por exemplo) levem em conta
os custos destas externalidades, antes de agir no mercado761.
Assim, quando se atribui aos sócios, de forma pessoal e ilimi-
tada, os custos decorrentes da negligência às normas dissolutórias,
o que se pretende é incentivá-los a evitar tais custos, o que conse-
guirão se optarem pelo procedimento regular de liquidação.
Se não aplicada a internalização dos custos decorrentes da
liquidação de fato, os mesmos serão dispersos por todo o mercado,
na medida que afetarão os credores da sociedade irregularmente
liquidada e, por via indireta, todo os demais tomadores de crédito.
Deixar de sancionar, com a ilimitação de responsabilidade dos
sócios, a dissolução ou liquidação de fato é, por outro lado, criar
incentivo para que os sócios negligenciem as determinações legais
reguladoras do processo liquidatório, gerando grave externalidade
negativa caracterizada, como apontado, pela pulverização, entre os
credores da sociedade, dos prejuízos decorrentes do fim da ativida-
de empresarial.
A responsabilização pessoal, ilimitada e solidária dos sócios,
em hipóteses de dissolução ou liquidação de fato, é também ple-
namente fundamentada e explicada à luz de critérios estritamente
jurídicos, baseados em simples interpretação da legislação vigente,
aqui representada pelo Código Civil.
A dissolução ou liquidação de fato, como aqui definida, acar-
reta inevitavelmente a irregularidade da sociedade762. Sociedade
irregular é aquela que inobserva uma ou mais das prescrições nor-
mativas atinentes ao seu funcionamento. Como qualquer empre-
exercício da atividade empresarial (CATEB. Alexandre Bueno. PIMENTA. Eduardo Goulart.
Análise Econômica do Direito Societário. In: TIMM. Luciano Benetti (coord.) Direito e Economia
no Brasil. 2ª edição. Ed. Atlas. São Paulo. 2014. Pg. 226). Tal incentivo, entretanto, só se justifica
e sustenta se regular o exercício da empresa.
761 IPPOLITO. Richard. A. Economics for Lawyers. Princeton University Press. New Jersey. 2005.
Pg. 229.
762 FÉRES. Marcelo Andrade. Sociedade em comum: disciplina jurídica e institutos afins. Ed.
Saraiva. São Paulo. 2011. Pg. 195.

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 637


sário irregular, a sociedade nesta situação submete-se ao Direito
Empresarial, mas apenas no que tange aos ônus da condição de
empresário.

The cloack of conscience

Anna Chromý

O “esvaziamento” patrimonial e negocial de sociedade da qual resta, na


prática, apenas a oca personalidade jurídica é algo infelizmente recorrente
no mercado e fonte de externalidades que comprometem as relações empresariais.

Assim, em sociedades de responsabilidade limitada para os


sócios, tal benefício não pode ser invocado e a dissolução ou liqui-
dação de fato acarreta, para os antigos sócios, o ônus de ter que
responder, com seus bens pessoais, pelos débitos da sociedade.
Deste modo, a extensão da responsabilidade pelas dívidas da
sociedade ao patrimônio dos sócios, quando dissolvida ou liquida-
da de fato a pessoa jurídica, funda-se na irregularidade da socieda-
de, causada pela inobservância das normas legais disciplinadoras
de sua regular dissolução e liquidação.
Por outro lado, não se pode trazer à questão hipótese algu-
ma de desconsideração da personalidade jurídica, a qual tem seus

638 D I REI TO S OC I ETÁRIO | EDUARDO GOULART PIM EN TA


próprios e diferentes fundamentos. A responsabilização dos sócios
é, no caso ora analisado, simples decorrência da irregularidade em
que incorre a sociedade liquidada de fato.
Ainda sobre a dissolução ou liquidação de fato, merece abor-
dagem a Súmula n. 435 do Superior Tribunal de Justiça, de 14 de
abril de 2010, a qual é frequentemente invocada para disciplina da
matéria. É o seu texto:
Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de
funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos com-
petentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o
sócio-gerente.
Em verdade, tal Súmula reflete apenas parcialmente os ne-
cessários e devidos efeitos da dissolução e liquidação de fato. Dei-
xar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos ór-
gãos competentes, é exemplo de negligência a requisito legal de
regularidade da sociedade, o que acarreta, como demonstrado, a
impossibilidade jurídica de aplicação da responsabilidade limitada
para os sócios.
Por outro lado, uma vez cessada a atividade empresarial - seja
qual for a causa dissolutória - o descumprimento do obrigatório e
imediato início e regular conclusão do processo liquidatório não
pode ser atribuído apenas ao(s) sócio(s) gerente(s) da sociedade.
Ao contrário, restou aqui demonstrado que qualquer sócio
pode, quando não iniciada, nas hipóteses legais, a liquidação ex-
trajudicial da sociedade, requerer o início da forma judicial do pro-
cedimento. A omissão deles leva, deste modo, à irregularidade da
sociedade e, como visto, à sua responsabilidade ilimitada pelos dé-
bitos contraídos.
Não há, portanto, razão alguma pela qual as dívidas da pes-
soa jurídica somente possam ser redirecionadas, especialmente no
caso de execuções fiscais abarcadas pela Súmula n. 435 do Superior
Tribunal de Justiça, apenas ao(s) sócio(s) gerente(s) da sociedade.
Aquela sociedade que deixa de funcionar em seu domicílio
fiscal, sem as devidas comunicações, é exemplo de sociedade ir-

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regular e, nesta condição, acarreta para todos os seus membros a
obrigação de responder, de forma pessoal e ilimitada, pelas dívidas
da pessoa jurídica.

6 – A responsabilidade pelas obrigações não quitadas


durante a liquidação da sociedade

A extinção da sociedade tem o poder de encerrar a existência


da pessoa jurídica, mas não é causa extintiva das obrigações con-
traídas em nome dela, ao longo de sua existência, mesmo quando
observadas todas as regras referentes ao seu processo de dissolu-
ção, em sentido amplo.
O fim da pessoa jurídica não significa, deste modo, que os cre-
dores eventualmente não satisfeitos ao longo do processo de liqui-
dação deixem de ter resguardados os seus respectivos créditos. Ao
contrário, a incompletude de pagamento do passivo da sociedade,
no curso de sua liquidação, representa grave irregularidade que
deve ser sanada, através de regra própria, mesmo após extinta a
pessoa jurídica originalmente devedora.
Mais uma vez o Código Civil e a Lei n. 6.404/76 contém, res-
pectivamente em seus artigos 1.110 e 218, igual disposição para,
neste caso, tratar do direito do credor de sociedade extinta que não
tenha sido pago ao longo do processo de liquidação judicial ou ex-
trajudicial da pessoa jurídica. Ambos os citados dispositivos legais
conferem a este credor não satisfeito dois direitos.
O primeiro é o de demandar individualmente dos sócios da
sociedade extinta o valor de seu crédito. Estes sócios responderão
com seus bens pessoais pelo débito não satisfeito, mas tal respon-
sabilidade é limitada aos valores que eles tenham eventualmente
recebido em decorrência da partilha, entre eles, dos bens e direitos
da sociedade.
Atribui-se aos sócios da sociedade extinta, tanto no Código
Civil quanto na Lei n. 6.404/76, legitimidade passiva em ações nas
quais os credores da sociedade extinta venham a demandar seus

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direitos eventualmente não satisfeitos ao longo do processo liqui-
datório.
Em primeiro lugar, deve-se entender que a restrição do direito
deste credor não pago aos valores que o sócio tenha recebido em
partilha somente se aplica àqueles integrantes que tinham, na so-
ciedade extinta, responsabilidade limitada pelas dívidas da pessoa
jurídica. Os eventuais sócios de responsabilidade ilimitada – como
os da sociedade em nome coletivo e os comanditários – são subsi-
diariamente responsáveis, com seu patrimônio pessoal, pela totali-
dade das dívidas da pessoa jurídica e, portanto, não podem invocar
o limite referido no art. 1.110 do Código Civil, mesmo após a extinção
societária.
Em segundo lugar, vale lembrar que os art. 1.110 do Código Ci-
vil e 218 da Lei n. 6.404/76 aplicam-se quando o processo liquidató-
rio efetuou-se conforme as regras procedimentais aqui estudadas.
Se a liquidação judicial ou extrajudicial foi iniciada e finalizada
mas restou algum credor não pago, a causa é, em princípio, a falta
de cumprimento, pelo liquidante, de seus deveres legais, dentre os
quais está o de quitar, com os bens da sociedade em liquidação,
a integralidade de suas dívidas (art. 210, IV da Lei n. 6.404/76 e art.
1.103, IV, do Código Civil).
Aos sócios da sociedade extinta não se pode atribuir, em hipó-
tese como essa, as consequências da já mencionada dissolução ou
liquidação de fato, uma vez que o procedimento liquidatório estava,
como determinam a Lei n. 6.404/76 e o Código Civil, sob a condu-
ção do liquidante por eles escolhido.
Correta, assim, a opção legal de impor aos sócios de respon-
sabilidade limitada, como consequência pela falta do liquidante no
pagamento das dívidas da sociedade extinta, apenas a eventual
perda parcial ou total dos valores recebidos em partilha, o que se
faz também em consonância com a regra segundo a qual os credo-
res recebem, no processo de liquidação, antes dos sócios.
A responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade ex-
tinta não impede, porém, o credor não satisfeito de demandar tam-

DI R EITO S OCIETÁ RI O | EDUA RDO G OUL A RT P I MENTA 641


bém, agora contra o liquidante, eventuais perdas e danos decorren-
tes do não recebimento de seus direitos creditícios.
Era, repita-se, dever do liquidante efetuar, com os bens da so-
ciedade em liquidação, a quitação integral dos débitos da pessoa
jurídica e a inobservância, por ele, de tal obrigação sujeita-lhe, em
relação aos credores não pagos, a responder pelas eventuais per-
das e danos decorrentes de sua omissão.
Conclui-se, portanto, que apenas após prescritos, em seus
respectivos lapsos temporais, todos os direitos de terceiros contra
a pessoa jurídica extinta é que se pode, efetivamente, falar em total
encerramento dos efeitos da relação de sociedade e da pessoa ju-
rídica a partir dela criada.

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