Desafiando o Anarquismo Branco Budour Hassan
Desafiando o Anarquismo Branco Budour Hassan
Desafiando o Anarquismo Branco Budour Hassan
anarquismo
branco
Budour
Hassan
1
título original: The colour brown: de-
colonising anarchism and challenging white
hegemony. Budour Hassan, 2013
incitamos à pirataria,
odiamos a propriedade!
Abolir as fronteiras,
Esmagar o colonialismo!
Palestina livre
Do rio ao mar!
2
apresentação
por edições insurrectas
3
não são neutras, quando falamos de direitos humanos, mesmo que em
um uso tático, mobilizamos uma história política de atualização do li-
beralismo e da democracia. Já em relação ao que seria a liberdade reli-
giosa, a questão para nós anarquistas nunca foi sobre a crença de uma
ou outra pessoa, e sim sobre manter acesa a luta anticlerical, ao comba-
te às religiões enquanto instituições que mobilizam valores morais e
fundamentam exercícios de governo no atravessar dos séculos. Nesse
sentido, não nos interessa reivindicar nem a concepção de direitos,
nem mesmo de humano, nem tampouco entrar na armadilha sobre as
“crenças individuais”.
Ainda assim, tomamos a atitude de traduzir e difundir o texto em
questão por considerar que ele traz questões importantes para pensar-
mos a relação entre as forças antiautoritárias e o combate às investidas
coloniais que seguem em uma atualização permanente, estas últimas
impregnando até mesmo parte considerável dxs anarquistas do chama-
do ocidente, que só reconhecem a potência e a tensão anárquica das lu-
tas quando estas são feitas à sua imagem e semelhança.
4
DESAFIANDO O
ANARQUISMO
BRANCO
Budour Hassan
5
6
A aparição nas ruas do Cairo, em janeiro de 2013, do Black Bloc
egípcio desencadeou uma euforia sincera nos círculos anarquistas oci-
dentais. Nenhum interesse foi dado à perspectiva política do Black
Block – ou à sua ausência –, às suas estratégias ou às suas posições a ní-
vel econômico e social. Para a maioria das pessoas anarquistas ociden-
tais, bastava-lhes que adeptxs do Black Bloc se parecessem e se vestis-
sem como elas para despertar admiração incondicional. As páginas do
Facebook de anarquistas israelenses foram inundadas com fotos de
adeptxs do Black Bloc em questão. Navegar na blogosfera de anarquis-
tas estadunidenses durante este período dá a impressão de que tal
Black Bloc marcou o primeiro encontro que o Egito teve com o anar-
quismo ou o antiautoritarismo.
Todavia, como salientou o escritor norteamericano Joshua Step-
hens, a reação de alegria expressa por uma série de anarquistas ociden-
tais pelo Black Bloc levanta questões sombrias sobre a sua obsessão
pela forma e pela representação, em vez da substância e das ações. Em
outras palavras, tais anarquistas não são tão diferentes dos islamitas,
que foram rápidos a rotular a tática Black Bloc como blasfema e ímpia
por causa do seu estilo ocidental. Além disso, muitas reações revelaram
a atitude orientalista de anarquistas ocidentais, nomeadamente através
do seu desprezo pela abundante história do anarquismo no Egito e no
chamado Oriente Médio. Como demonstra o anarquista egípcio Yasser
Abdullah, o anarquismo no Egito remonta à década de 1870 e alimen-
tou a revolta anticolonial Urabi Pasha de 1881; anarquistas gregxs e ita-
lianxs também organizaram greves e manifestações com trabalhadorxs
egípcixs. Estas lutas são casualmente descartadas por quem, hoje, age
como se este Black Bloc fosse o primeiro grupo autenticamente radical
a agraciar o solo egípcio.
7
Este artigo tende a mostrar que a recepção superficial dada no Egito
a este Black Bloc nada mais é do que um exemplo da necessidade do
“anarquismo branco” se distanciar de uma atitude orientalista, da qual
os países ocidentais de esquerda geralmente não estão isentos. De-
monstrarei que este fracasso é atribuível ao fato de o anarquismo oci-
dental não ter sido completamente descolonizado. Começarei por ex-
plicar como o comportamento colonial contribuiu para que o campo
republicano na Revolução Espanhola deixasse de lado a questão do co-
lonialismo espanhol no Norte de África, ao ponto de a sua luta ser tra-
vada principalmente contra o fascismo na metrópole. Porque se a revo-
lução espanhola continua a ser uma referência para os atuais movi-
mentos anarquistas, não é surpreendente que tal comportamento colo-
nial tenha levado os movimentos contemporâneos a ignorar séculos de
lutas anti-autoritárias na Ásia, África e no chamado Oriente Médio.
Um processo de descolonização incompleto também significa que
muitos movimentos anarquistas ocidentais, tal como o seu discurso,
permanecem inteiramente dominados por pessoas brancas, que conti-
nuam a excluir as pessoas de cor. Finalmente, enfatizarei que não só o
“anarquismo branco” tende a condenar as pessoas não brancas ao os-
tracismo, mas a sua ênfase numa determinada imagem e num estilo
particular também leva à marginalização de pessoas com deficiência e
de quem não se identifica necessariamente como anarquistas, apesar
das suas atitudes violentamente antiautoritárias. Finalmente, o artigo
utilizará a organização Anarquistas Contra o Muro (Anarchists Against
The Wall) como um exemplo específico das várias fraquezas do anar-
quismo branco, nomeadamente a exclusividade, o elitismo e a sua inca-
pacidade de desafiar adequadamente os seus próprios privilégios.
8
voltando à
Revolução Espanhola
9
“erro” estratégico e moral sobre o qual gostaria de me concentrar reside
aqui na questão da colonização espanhola no Marrocos e no Saara
Ocidental – uma questão absolutamente varrida pelas explosões de vi-
olência na metrópole da época.
Totalmente empenhadxs na sua luta contra o fascismo e a tirania,
revolucionárixs ignoraram o colonialismo espanhol, o fascismo e a ti-
rania espalhados por todo o Mediterrâneo. De acordo com a maioria
das narrativas revolucionárias, o nível de desumanização do Outro era
tão elevado que o único papel que restou axs colonizadxs marroquinxs
foi o de mercenárixs, muitas vezes importadxs pelo General Francisco
Franco para esmagar a Frente Popular. Por sua vez, as referências utili-
zadas pela opinião pró-revolucionária para se referir às pessoas marro-
quinas eram geralmente traduzidas em termos racistas. Embora admi-
tindo que seja difícil argumentar que a solidariedade mútua entre re-
volucionárixs na Espanha e colonizadxs marroquinxs poderia ter mu-
dado o resultado da guerra, é igualmente complicado imaginar que
esta solidariedade nunca foi uma prioridade. Como aponta o falecido
historiador americano Howard Zinn: “No curto prazo (e até agora a
história da Humanidade consistiu apenas em curtos prazos) as vítimas,
elas próprias desesperadas e corrompidas pela cultura que as oprime,
são, geralmente, hostis às outras vítimas.”
Por outro lado, o anarquismo na sua essência significa a rejeição e a
luta contra todas as formas de autoridade e subjugação, incluindo o co-
lonialismo e a ocupação militar. Para ser verdadeiramente antiautoritá-
ria, portanto, qualquer luta contra o fascismo e a ditadura interna deve
10
ser internacionalista e não pode ser separada da luta contra o fascismo
e a tirania no estrangeiro, em especial no seu papel enquanto uma po-
tência colonial.
Olhar para trás, para a Revolução Espanhola, no momento em que
assinalamos o seu 77º aniversário, é relevante na medida em que anar-
quistas ainda não aprenderam as suas principais lições. Com algumas
exceções, os movimentos libertários ocidentais ainda são predominan-
temente brancos, involuntariamente (ou talvez conscientemente) ori-
entalistas, centrados no Ocidente, até mesmo elitistas, e hostis com
pessoas que não se parecem com eles. Assim, as lutas antiautoritárias
no chamado Oriente Médio, África e Ásia são geralmente ignoradas.
Devemos, no entanto, enfatizar que anarquistas não-brancxs têm uma
responsabilidade significativa pela falta de documentação e relatos. O
livro excepcional de Maia Ramnath, Decolonizing Anarchism: An Anti-
authoritarian History of India's Liberation Struggle 2 e o de Ilham Khury
Makdissi, The Eastern Mediterranean and the Making of Global Radica-
lism, 1860-19143 estão entre as raras tentativas de propor uma história
alternativa do antiautoritarismo nas regiões esquecidas deste planeta.
2 http://www.akpress.org/decolonizinganarchism.html
3 http://www.ucpress.edu/book.php?isbn=9780520262010
11
Sem rótulos
12
Polícia – que as espancaram com os seus cassetetes. Uma foto emble-
mática, a do sorriso digno de Rouya Hzayel, de 15 anos, durante a sua
prisão, encarna a atitude desafiadora das mulheres palestinas.
13
bertadas. Finalmente, quando o protesto se extinguiu na efervescência
da solidariedade feminista, uma idosa palestina, originária de Al-
Araqib, uma aldeia beduína demolida 53 vezes nos últimos três anos
pela ocupação israelita, gritou: “Quando eles demolirem a nossa casa,
fazemos do cemitério da aldeia a nossa própria casa. Eles ameaçam
destruí-lo também, e bem, cavaremos sepulturas com nossas próprias
mãos e nos instalaremos lá dentro. Protegeremos nossas cabeças e o
resto dos túmulos.”
Durante esta manifestação, as mulheres do Negev desafiaram a au-
toridade colonial do Estado ocupante e a hegemonia patriarcal local.
Ridicularizaram os estereótipos orientalistas – que retratam as mulhe-
res beduínas como sem voz e incapazes de mobilização – e demonstra-
ram que eram livres para fazer o que quisessem. A grande maioria des-
tas mulheres certamente nunca ouviu falar de Emma Goldman nem
leu as brochuras de Piotr Kropotkin – algumas nem sequer falam in-
glês. No entanto, embora incorporem o significado essencial do antiau-
toritarismo, estas mulheres e outras figuras semelhantes serão excluí-
das do discurso anarquista dominante, porque não se enquadram na
definição estreita e complexa, nos termos e estilos de vida ocidentais.
14
Onde estão as pessoas
com deficiência?
15
Anarquistas
contra o Muro
16
bolha de Tel Aviv: um clube VIP sectário que não aplica a democracia
direta. Muitxs integrantes mobilizadxs no entorno da organização de-
nunciaram a tomada de decisões reservada a um número limitado de
veteranos eleitos. É claro que sempre sublinharam que estão conscien-
tes dos seus privilégios, mas nunca reconheceram que estes são essen-
ciais para eles na vida cotidiana e que lhes permitem uma escolha mui-
to mais ampla de movimentos.
Por exemplo, levando em conta o apartheid, partir da estrada 433
de Tel Aviv – apenas para colônos – para protestar na Cisjordânia não
é um ato revolucionário em si, nem é um desafio aos privilégios isra-
elenses. Regressar de Ramallah a Jerusalém através dos postos de con-
trole de Hizma5, reservados aos cidadãos israelenses, não é mais revo-
lucionário do que ir se manifestar na Cisjordânia para se curar do
complexo do libertador branco, estando ao mesmo tempo “consciente
dos seus privilégios”. Participar todas as sextas-feiras nas manifestações
liberais e “legais” de Nabi Saleh (pequeno povoado palestino em Ra-
mallah e al-Bireh) e passar o dia todo falando hebraico perto do posto
de gasolina sob nuvens de gás lacrimogêneo me parece contraprodu-
cente.
Anarquistas israelenses entendem a sua presença como um ato de
caridade com as aldeias e manifestações, como se a sua pele branca e
os documentos de identidade israelenses fossem atributos supremos
em si mesmos. Mas nem isso é verdade. A aldeia com a maior partici-
pação em protestos na Cisjordânia é Kafr Qaddoum, e apenas cinco is-
raelenses comparecem aos seus protestos semanais. A alegação de que
a presença de anarquistas israelenses protege palestinxs locais durante
17
os protestos é absurda, uma vez que são sempre palestinxs que estão na
linha da frente e a sua presença não muda a violência das forças de
ocupação. Graças à sua cidadania, anarquistas israelenses são, ao con-
trário dxs palestinxs, privilegiadxs pela lei, mesmo quando presxs ou
feridxs, tornando o mantra da “co-resistência” uma farsa completa.
Assim, quando o dia termina, depois de se esquivar de algumas ba-
las, inalar gás lacrimogêneo e spray fétido6, e tirar algumas fotos dra-
máticas, anarquistas israelenses voltam para a colônia de Tel Aviv, às
vezes por estradas exclusivas para judeus, e passam uma boa noite no
bar. Entretanto, moradorxs das aldeias palestinas com quem “co-resis-
tem” todas as sextas-feiras estão sempre sob a ameaça iminente de ata-
ques noturnos e retaliações por parte de soldados israelenses.
18
tema de privilégios dos locais onde vivem, concentrar-se em trazer
mudanças dentro da sua comunidade, travar batalhas longas e invisí-
veis, aquelas que não são transmitidas no YouTube, e livrar-se do “far-
do do homem branco”. Palestinxs estão bem sem a ajuda deles. Até lá,
continuarão a ser parte integrante do sistema que oprime, coloniza e
sufoca as pessoas palestinas. Continuarão assim porque as suas vidas,
tal como as vivem, continuam a depender desse mesmo sistema.
19
Edicoesinsurrectas.noblogs.org
20