48 56 PB
48 56 PB
Arquivo Nacional
ACERVO
R e v i s t a d o A r quivo Nacional
Semestral
Cada número possui um tema distinto
ISSN 0102-700-X
1. Cidade do Rio de Janeiro
I. Arquivo Nacional
CDD 981
SUMÁRIO
| apresentação 6
| entrevista com alfredo britto
| an interview with alfredo britto 9
| dossiê temático
| artigos livres
| resenha
Copacabana, uma história
Copacabana, the history
Luciene P. Carris Cardoso 262
| documento
O álbum das obras do porto do Rio de Janeiro
Uma narrativa visual
Album of the works of construction of the port of Rio de Janeiro
A visual narrative
Maria Teresa Villela Bandeira de Mello 266
A P R E S E N TAÇ ÃO
Nos últimos anos, a cidade do Rio de Janeiro tem sido objeto de um grande número de
intervenções urbanas que, de forma variada, atingiram fortemente o espaço e produziram
questões, tensões, controvérsias e problemas. Essas intervenções fizeram com que as marcas
da cidade, seu cosmopolitismo, sua diversidade cultural e demais aspectos ligados às expe-
riências cariocas adquirissem força, criando condições propícias para a retomada de pesqui-
sas que tomaram como objeto a violência, as formas de sociabilidade, as distintas culturas,
a gastronomia, os planos urbanos, os eventos e deram à cidade uma nova dinâmica, assim
como desenvolveram caminhos que precisam de atenção, estudo e interpretação.
Uma pequena, mas variada amostra dessas pesquisas está presente neste número da
revista Acervo, nas seções dossiê temático, entrevista, documento e resenha, integrando as
comemorações dos 450 anos da cidade.
O dossiê é aberto com o artigo As reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro: uma his-
tória de contrastes, de Antonio Edmilson Martins Rodrigues e Juliana Oakim, que apresenta
um amplo histórico das reformas urbanas e as transformações sociais, políticas e culturais
decorrentes dessas ações.
Também no âmbito das intervenções, a questão da habitação popular é tratada por dois
artigos. No primeiro, Romulo Costa Mattos analisa os debates realizados na década de 1920
em meio às pressões da classe trabalhadora e dos construtores civis. No segundo, Rafael So-
ares Gonçalves destaca o impacto das “chuvas de verão”, presente na formulação de políticas
públicas, especialmente no caso das favelas, nos anos de 1966-1967, 1988 e 2010.
As favelas e outros dilemas da cidade retratados em Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos
Santos, são estudados por Carlos Eduardo Pinto de Pinto, que aborda a recepção e os em-
bates gerados pelo filme. Em outro artigo dedicado à produção artística e à (des)construção
de uma imagem do Rio de Janeiro, Leonardo Pereira analisa as tensões entre o modelo da
cidade civilizada e a cidade real na obra A capital federal, do escritor Coelho Netto. Distante
dessas tensões, a constituição de uma imagem turística da cidade é tratada por Amanda
Danelli Costa a partir da pesquisa em guias e mapas do início do século XX.
A formação de uma gastronomia carioca no século XIX, dividida entre as tradições euro-
peias, indígenas e africanas, é o tema do artigo de Mariana de Oliveira Aleixo e Roberto Bar-
tholo, que apresentam a singularidade desse processo em diálogo com as transformações
da cidade.
Ainda no século XIX, o cotidiano dos escravos e trabalhadores livres na freguesia de Nos-
sa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador é abordado no trabalho de Judite Paiva Souto.
Aspectos importantes da história dos trapiches e das operações portuárias são elucidados
por Cezar Teixeira Honorato e Thiago Vinícius Mantuano. O porto em obras, já no começo do
século XX, pode ser visto no álbum de fotos comentado por Maria Teresa Bandeira de Mello
na seção Documento.
Recuando mais no tempo, a fundação da “vila” de São Sebastião do Rio de Janeiro por
Estácio de Sá constitui o objeto de estudo de Renato Pereira Brandão, que discute os limites
entre a normatização régia e a ocupação efetiva do espaço.
De retorno ao século XX, o artigo de Vicente Saul Moreira dos Santos tem como foco as
comemorações do quarto centenário a partir da análise das produções editoriais, com des-
taque para o livro O Rio de Janeiro em prosa & verso, organizado por Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade.
Com o olhar para o futuro, os desafios para o século XXI são abordados na entrevista com
o arquiteto Alfredo Britto, que fala sobre sua trajetória, com destaque para suas iniciativas
em defesa do patrimônio e da cidade.
A revista ainda conta com a resenha de Luciene Carris do livro A invenção de Copacabana:
culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro (1890-1940), de Júlia O’Donnell.
Para finalizar, queremos fazer deste número um presente e, ao mesmo tempo, saldar
parte da dívida que temos com dois daqueles que se estivessem entre nós, com certeza,
estariam presentes neste dossiê. Este número é dedicado a Eulalia Maria Lahmeyer Lobo e
Maurício Abreu, que como vários dos que aqui escrevem, lutaram para que a cidade do Rio
de Janeiro pudesse ter história.
Alfredo Luiz Porto de Britto é arquiteto formado pela Universidade do Brasil (1961), atu-
almente Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também atuou como professor
(1973-2005). Desde 2002, atua como professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). É autor de vários projetos, como o da restauração
do conjunto arquitetônico do Arquivo Nacional e de restauração do Conjunto Residencial
Prefeito Mendes de Morais, o Pedregulho, e de livros, como Arquitetura moderna no Rio de
Janeiro (1991), junto com Alberto Xavier e Ana Luiza Nobre, e Paisagens particulares (2000),
com Felipe Taborda e Tom Taborda. Foi também curador da exposição Rio jamais visto (1998)
no Centro Cultural Banco do Brasil.
Alfredo Britto. A minha formação foi na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
que na época chamava-se Universidade do Brasil, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
(FAU). A sede da FAU era na Praia Vermelha, um campus interessantíssimo, muito convenien-
te para o convívio. E isso teve uma influência muito forte na formação de todos nós, porque
havia uma troca não só com os alunos da mesma unidade, mas das outras unidades, com
o pessoal de geografia, com o pessoal de letras, o que favorecia uma visão mais abrangen-
te, democrática e uma participação mais coletiva, mais política, no sentido de integração
e defesa dos interesses da sociedade. Sem dúvida alguma esse fato contribuiu para isso. E
também o curso tinha uma estrutura de turmas, era por ano, não era por disciplina, quando
você faz crédito. A turma tinha um sentido mais coletivo.
Alfredo Britto. Segunda metade dos anos 1950. Eu estudei exatamente de 1955 a 1961. No
final da minha passagem estudantil pela faculdade houve um movimento de um grupo de
Acervo. Qual foi seu primeiro grande contato com a cidade em termos de intervenção? Nesse
período a cidade passou por grandes transformações, não?
Alfredo Britto. É, mas eu não tinha muito contato com a cidade. Nessa época não. Minha
ligação era do ponto de vista cultural e do ponto de vista político. Nesse momento, eu tive
uma crise porque a minha formação foi toda católica. Eu estudei em colégio católico desde
garoto, no Notre-Dame, que era misto na época. Depois fui para o Colégio Santo Inácio, es-
tive interno um ano no Colégio São José e, em seguida, fui para o Colégio Santo Agostinho.
Quando entrei na faculdade, descobri um outro lado da vida. Eu era amigo de infância de
Leandro Konder, de Rodolfo Konder, seu irmão, e de Ivan Junqueira, todos meus vizinhos.
Era amigo deles desde os sete anos de idade, mas nunca tive contato político. Quando entrei
na faculdade, comecei a conversar com Valério Konder, pai dos meninos, e passei a ter outra
visão do Partido Comunista Brasileiro, e uma indignação com o catolicismo. Então, nesse
momento foi esse contato cultural e político. Não tinha noção da cidade ainda.
Alfredo Britto. Eu acho que comecei a ter contato com a cidade através da música.
Acervo. Da música?
Alfredo Britto. É, porque teve um fato muito curioso. Após o falecimento do meu pai, eu
tive que ficar em casa um ano, pois naquela época ainda guardava-se luto. Não ia ao cinema,
não podia jogar futebol, que era minha paixão. Eu jogava futebol todos os dias. No luto, não
podia ter esses prazeres. Então devia ficar em casa com uma tarja preta na roupa. Foi quando
descobri o rádio e comecei a ouvir um programa de música americana. Fiquei apaixonado
por Frank Sinatra, Nat King Cole etc. Pelo Nat King Cole eu conheci o jazz e do jazz, o choro,
e conheci Pixinguinha, Jacob... E até hoje eu tenho uma ligação muito forte com o choro.
Através do choro comecei a frequentar as rodas de choro, que na época eram no subúrbio.
Passei então a ver um outro lado do mundo, da própria cidade, e vi que a cidade era muito
mais múltipla. Naquele momento, início dos anos 1960, também começou a surgir uma mu-
dança na arquitetura, de atendimento às solicitações de caráter individual para as coletivas,
para uma arquitetura de caráter social, com preocupação com a habitação e a cidade. Então
passei a ver a cidade de uma forma diferente. Trabalhava no Centro e tinha contato com o
subúrbio através do choro. Depois me liguei ao samba e às escolas de samba, fui de diretoria
de escola de samba, e atuei como jurado de desfiles de escolas de samba por vários anos.
Adquiri um ponto de vista da cidade, conheci uma população que passava o ano inteiro
Acervo. É curioso porque naquele momento a cidade passava por inúmeras transformações,
como a construção do Aterro do Flamengo, do Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes,
conhecido como Pedregulho, um projeto premiado e reconhecido internacionalmente. Não se
falava sobre isso na universidade?
Alfredo Britto. Muito pouco. A universidade estava completamente dividida, com professo-
res que tinham uma preocupação predominante em criticar e destruir as imagens de Lúcio
Costa e Oscar Niemeyer, e outros poucos, alguns mais jovens, voltados para o moderno;
dentre esses um foi meu guru, Paulo Santos, que tinha uma visão diferente, de vanguarda,
moderna, que trazia casos brasileiros aliando a defesa das raízes, da tradição com o movi-
mento moderno e transformador. Mas, só fui ser aluno do Paulo Santos no final do curso. E
tinha também uma dificuldade de informação; a informação disponível era muito precária,
não era como hoje que você encontra tudo com facilidade na internet. Na época, a gente
dependia de um amigo que viajasse, trouxesse um livro, que comentasse alguma coisa, que
emprestasse, porque não era fácil comprar revistas e livros estrangeiros. Não só não era fácil
encontrar, como também a gente não tinha dinheiro para tanto. Então era uma formação
precária em vários sentidos. E você vê que nós já estávamos há trinta anos da passagem do
Le Corbusier pelo Brasil, da construção das sedes do Ministério da Educação e Saúde e da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Acervo. Quando é que você começou a intervir na cidade e não apenas lê-la?
Alfredo Britto. Eu acho que comecei a intervir na cidade nos anos 1960, ainda estudante,
por todas essas questões com as quais eu me envolvi. Nesse período, me envolvi também
com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Ocupei o cargo de secretário no IAB aqui do Rio
de Janeiro, quando Maurício Roberto era o presidente, e lá comecei a discutir a cidade. Foi
exatamente nessa época que comecei a pensar a cidade.
Acervo. Maurício Roberto chegou a ser diretor da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi),
não foi?
Alfredo Britto. Eu cheguei por meio do Paulo Santos. Ele era o mestre da cadeira de história
da arquitetura no Brasil desde o Descobrimento até a atualidade, e eu o substituí, e passei
a ser o professor de história da arquitetura no Brasil do século XIX à contemporaneidade,
quando ele se aposentou. Não imediatamente, mas quando ele se afastou, a cadeira passou
para Augusto Carlos da Silva Telles, que foi uma figura importantíssima na minha vida, na
arquitetura, e para a preservação de nosso patrimônio histórico. Mas Augusto foi chamado
para assumir a superintendência do Iphan. E aí ele me telefonou e pediu para substituí-lo.
Disse-lhe que não tinha prática, não tinha como aceitar uma coisa dessas. Mas ele insistiu
e disse que já tinha me visto dar cursos no Museu de Arte Moderna, no Museu Histórico
Nacional, que eu tinha feito uns cursos muito interessantes, inovadores. Como ainda está-
vamos na metade do ano e eu assumiria as aulas em março do ano seguinte, comecei a me
preparar, a estudar. Peguei todo o material do Paulo Santos, assumi a cadeira e dei aulas por
Alfredo Britto. Com Ítalo tive outra ligação, muito curiosa. Eu fui a Brasília, para conhecer a
construção de Brasília. Até dias desses fiquei emocionado de ver na televisão a construção
do Congresso, toda a estrutura metálica sem nada. Estive lá, subi em uma prancha até o vigé-
simo sétimo andar daquela estrutura, amarrado em uma corda. Inesquecível. Bom, quando
eu cheguei a Brasília, não havia nada, nem hospital, nem hotel, nem restaurante. Era poeira
e só. E aí Oscar Niemeyer disse que eu ia ficar na casa de um arquiteto, pois ele morava so-
zinho, e havia espaço. Era o Ítalo. E ele me acolheu praticamente por dez dias em sua casa e
nos tornamos muito amigos até hoje.
Acervo. Ele também ficou muito tempo nesses conselhos, não foi?
Alfredo Britto. Sim. Ele é uma figura que tem uma trajetória importantíssima ligada ao pa-
trimônio.
Acervo. E os seus projetos para a cidade do Rio de Janeiro? Que projetos você acha que te asso-
ciam à cidade? Projetos não apenas no sentido físico, mas coisas das quais você participou.
Alfredo Britto. Primeiro, com a questão da defesa do patrimônio. O Palácio Monroe, que foi
uma luta muito grande. Na época liderei, através do IAB, um movimento em defesa do Palá-
cio Monroe. Foram muitos embates, muitos conflitos, porque houve um racha no Conselho
Municipal de Urbanismo entre Paulo Santos e Lúcio Costa. O parecerista do Conselho para a
questão da preservação do Monroe foi Paulo Santos, que fez uma defesa brilhante por sua
permanência. Mas Lúcio Costa se colocou contra o parecer, se colocou a favor da demolição,
e o jornal O Globo também fez uma virulenta campanha a favor da demolição. E nós nos
mobilizamos, tentamos trazer a OAB, o Clube de Engenharia e várias entidades, mas não
conseguimos manter o Palácio Monroe.
Há várias outras histórias. Tem um episódio pontual, que significa muito para essa
questão da cidade e do patrimônio, que é o Castelinho do Flamengo. Era um sábado, e me
ligou um amigo, Nilton Sá, que foi um pintor, do grupo que revolucionou o carnaval do
Salgueiro, do qual eu participei e “virei Salgueiro” por causa disso. Era uma ligação muito
Alfredo Britto. Salvamos o Castelinho. Desse tipo de intervenção eu tive várias participa-
ções. E também defender, no Conselho e em outros movimentos, a cidade de certas trans-
formações que eram danosas. Esperávamos que não ocorressem, mas quase sempre fomos
derrotados. Mas essa história do Castelinho foi interessante, sobretudo no sentido de movi-
mentar espontaneamente a sociedade.
Alfredo Britto. Santa Teresa foi um caso de descoberta e de afetividade. Na realidade, a mi-
nha ligação com Santa Teresa é curiosa. Após a minha primeira separação, eu não tinha re-
cursos para montar outra casa, mas tinha que ir para algum lugar. Santa Teresa era um bairro
muito barato em relação a Ipanema. Então resolvi dar uma passada por lá e fiquei impres-
sionado com a qualidade do lugar, os panoramas, o clima gostoso, a afabilidade do pessoal.
Descobri uma vida de cidade do interior dentro da cidade do Rio de Janeiro. Acabei alugan-
do um apartamento lá e imediatamente me apaixonei pelo bairro e comecei a mapeá-lo,
suas entradas e saídas. Na época eu contei 32 entradas e saídas. O bairro era um espetáculo.
Alfredo Britto. Pois é, em Santa Teresa a gente podia se conectar com a cidade inteira. E era
tudo muito fácil na época, eu ia para a Tijuca em 15 minutos. Teve um período, quando eu
Alfredo Britto. Sim, em Curitiba, no Paraná. Houve também uma troca entre artistas brasilei-
ros, que foram para Paris, e artistas franceses que vieram para Santa Teresa. No terceiro ano
do “Arte de Portas Abertas” outros artistas, poetas, dramaturgos, dançarinos, reclamaram
que a gente só privilegiava as artes plásticas e pediram para participar também. E pensa-
mos em fazer outra coisa, que se chamou Festival de Inverno de Santa Teresa. O festival foi
um sucesso enorme. Fizemos um palco para shows de música, transformamos o bonde em
palco, os restaurantes se envolveram... Foi um movimento muito interessante, que provocou
uma renovação. Foi quando Olavo Monteiro de Carvalho me procurou e disse que estava
interessado em ajudar na manutenção do festival e trazer o apoio da Prefeitura. Eu disse que
o importante para a Prefeitura era não atrapalhar, mas se quisesse ajudar, o que mais precisá-
vamos era uma atenção maior para a parte de segurança. E conseguimos o apoio. O segundo
ano desse evento foi também um sucesso, mas mostrou outro lado do bairro e percebemos
então que não havia estrutura para um evento desse porte em Santa Teresa. E aí decidimos
não mais realizá-lo.
Acervo. Para finalizar esta entrevista, qual é a sua avaliação da cidade, não só como arquiteto,
mas como morador, dessas transformações que acontecem atualmente no Rio de Janeiro?
Alfredo Britto. Essa questão é complexa. O que acontece, e é muito grave, é que existe uma
falta de visão do desenvolvimento, do crescimento da cidade, que na verdade é um proble-
ma de todo o Brasil. Dos mais de cinco mil municípios existentes, talvez a gente tenha uns
dois por cento de prefeitos que sabem o que querem para a cidade, o que é bom para a
cidade, consultam a população... Tudo é feito a partir de interesses políticos e econômicos.
A cidade no Brasil está se transformando, mas ainda guarda essa visão de pasto de negócios
políticos e econômicos. É muito comum um dirigente, um administrador da cidade, destinar
áreas para um determinado vereador ou praticar um loteamento político e econômico. O Rio
de Janeiro está vivendo isso. Nós temos uma chance extraordinária de reestruturar o Cen-
tro da cidade, mas, veja, por exemplo, o projeto Porto Maravilha. O prefeito convocou três
empreiteiras que criaram um plano chamado Porto Maravilha e aí fizeram uma coisa para
mim inédita, que foi entregar todo o desenvolvimento e participação desta área para um
consórcio, que ficou com a venda da terra, a construção dos edifícios e com o fornecimento
futuro de serviços de água, esgoto e telefone. O destino da cidade está, portanto, nas mãos
Acervo. Você está dizendo que o Rio de Janeiro está deixando de ser carioca?
Alfredo Britto. Sem dúvida alguma. Mas você também pode ver que matar o carioca é muito
difícil e a Copa foi uma prova disso. Com tudo contra, obras inacabadas e que são desco-
nectadas, apareceu o carioca alegre, solidário. Então, matar o carioca é muito difícil, mas a
cidade está pressionando para isso.
Acervo. E aí a gente vai deixar de ir à “cidade” para ir ao “centro”, porque o Rio de Janeiro é uma
das poucas cidades que chama o Centro de cidade.
Acervo. E esses movimentos de recuperação da Pedra do Sal, Largo da Prainha, por exemplo?
Alfredo Britto. Eles são muito positivos, mas são coisas pontuais e, por isso, desconectadas.
Um dos grandes problemas do Rio de Janeiro é o transporte público. É algo criminoso o que
se faz com a população diariamente, basta você passar pela manhã na avenida Brasil para ter
dimensão disso. E é a grande maioria que sofre com o transporte público, mas o que se tem
feito? Um BRT lá, uma linha do metrô aqui, tudo desconectado. O problema do transporte é
um problema mundial, mas várias cidades têm adotado uma política de fazer a interligação
modal dos transportes. A gente sabe disso. Não se pode ter metrô, ônibus, trem tudo no
mesmo lugar. Não pode ser assim, é preciso articular. E tem que se pensar em outras solu-
ções, como a bicicleta. Todos os países estão pensando nisso, mas aqui não. Aqui, a gente faz
mais do mesmo, desde que resultem verbas fabulosas. Esse é o nosso problema. Tudo tem
sido feito em função de grandes investimentos e rentabilidades.
Antonio Edmilson Martins Rodrigues | Professor assistente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio) e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Juliana Oakim Bandeira de Mello | Pesquisadora associada do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/
IFCS-UFRJ). Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
resumo
Este artigo delineia um histórico das reformas urbanas projetadas e realizadas na cidade do Rio
de Janeiro, de meados do século XIX até os dias de hoje, abordando diferentes momentos do
Rio de Janeiro e apresentando a cidade como o exemplo vivo do crescimento em todas as suas
facetas, sejam elas técnicas, produtivas ou culturais.
abstract
This article delineates the history of urban reforms designed and carried out in the city of Rio
de Janeiro, from the mid-nineteenth century to the present day, covering different times of Rio
de Janeiro and presenting the city as a living example of growth in all of its facets, whether
technical, productive or cultural.
resumen
En este artículo se describe una historia de las reformas urbanas diseñadas y llevadas a cabo en
la ciudad de Río de Janeiro, a mediados del siglo XIX hasta el presente día, cubriendo diferentes
tiempos y presentando la ciudad como un ejemplo vivo de crecimiento en toda su facetas, ya
sean técnicas, productivas y culturales.
introdução
Quando nos dedicamos a estudar cidades, temos, ao nosso alcance, um conjunto amplo
de proposições interpretativas que vão de avaliações conceituais e teóricas a experimen-
tações, principalmente quando se trata de tomar como temas as reformas urbanas. Neste
artigo partimos da ideia de que são as cidades, em seu dinamismo, que provocam, num
primeiro momento, as necessidades de mudança e, só num segundo estágio, verificamos a
associação a essas necessidades de comandos técnicos, políticos e ideológicos que modifi-
cam o dinamismo inicial na medida em que estão por cima daquilo que são os desejos e as
vontades das sociedades que habitam essas cidades.
Essas chamadas “intervenções” estão sempre presas a certos conceitos de progresso, de
desenvolvimento e, em especial, de civilização, quando nossos olhos estão voltados para
a cultura ocidental. Essa forma de intervir se relaciona diretamente com a noção de que a
cidade é um passo adiante quando se compara com o campo, ou seja, a cidade representa
claramente o momento em que o homem toma consciência de seu papel na transformação
da natureza.
Assim, a cidade é o exemplo vivo do crescimento em todas as suas facetas, sejam elas
técnicas ou produtivas. A Revolução Industrial, de algum modo, dá o primeiro sinal claro
dessa qualidade no âmbito da cultura capitalista, ao opor a cidade industrial à cidade capital
do Antigo Regime.
Mas é essa cidade capital do Antigo Regime que inicia a configuração moderna de ci-
dade, desenvolvendo os modelos expressos pela cultura renascentista e criando uma nova
noção de cultura urbana relacionada diretamente ao conjunto de proposições oriundas da
cultura barroca.
Para tratar uma cidade como a do Rio de Janeiro é necessário ter a atenção para es-
ses procedimentos interpretativos, já que a cidade estabeleceu uma conexão direta, em
sua fundação, com as referências europeias, e só posteriormente viveu um movimento de
alargamento de suas marcas originais, quando se envolveu com as culturas orientais. Nesse
sentido, a cidade do Rio de Janeiro é, em sua origem, uma cidade renascentista nos trópicos
e contém singularidades que, de um lado, acentuam esse vínculo e, de outro, asseguram a
sua história particular.
Pode estranhar o uso de reformas no plural quando se trata de Pereira Passos, mas aqui o
plural significa que a chamada “reforma Pereira Passos” é uma luta entre tendências e interes-
ses diferentes que se apresentam na forma de proposições urbanas que, ao fim, se combinam.
Tomaremos como referência as duas linhas principais das reformas urbanas da cidade en-
tre 1902 e 1906, sabendo de antemão que seus conteúdos já estão presentes em ações e ati-
tudes que remontam à década de 1870, quando, ao lado da introdução dos temas da abolição
e da República, se desenham desejos civilizatórios mais concretos, na linha das reformas ur-
banas europeias que tiveram como modelo as reformas francesas de Haussmann. Porém, isso
não quer dizer que concordemos com a ideia simplificadora de que o Rio de Janeiro imita Paris.
Era de ferro a cabeça/De tal poder infinito/Que – se bem nos não pareça –/Devia ser de
granito./No seu bojo secular/De forças devastadoras/Viviam sempre a bailar/Punhais e
metralhadoras./Por isso viveu tranquila/Dos poderes temerosos/Como louco cão de fila/
Humilhando poderosos./Mas eis que um dia a barata,/Deu-lhe na telha, almoçá-la/E as-
sim foi – sem patarata – /Roendo, até devorá-la (apud Macedo, 1943, p. 63).
O caso denota o espírito das reformas e as pressões exercidas sobre as populações po-
bres, no sentido de limpar a cidade de tudo aquilo que representa o “casco colonial”. Afastar
O ano de 1903 é decisivo. Pereira Passos é indicado prefeito. Imagem viva do novo tem-
po, mesmo já tendo setenta anos, ele é um empreendedor, homem de comando e decisão.
Além disso, proprietário da Estrada de Ferro do Corcovado, membro ativo do Clube de Enge-
nharia, estudou na França, e ajusta-se perfeitamente ao que a cidade precisa. Enfim, para os
setores dominantes é o exemplo límpido da regeneração. Pereira Passos ganha de Rodrigues
Alves plena autonomia para realizar as mudanças. E as realiza a fundo, chocando-se, por ve-
zes, com muitos dos interesses das elites dominantes. Isso provocou reações que abalaram a
vida política da cidade, principalmente no que concernia às questões de propriedade.
As reformas continuam. O barulho e o movimento, distantes do mundo do trabalho,
provocam as pessoas, mas é o sinal do novo, do progresso. A cidade civiliza-se. É cortada em
todos os sentidos. Todos os lugares são afetados ao mesmo tempo. Muitos não acreditavam
que fosse possível acabar a obra. O medo do fracasso aumenta a polêmica. Necessitava-se
acabar com as desconfianças.
Nesse contexto, ganham importância os laudos científicos e três instituições funcionam
como respaldadoras do progresso e avaliadoras do término das reformas: (a) o Clube de
Engenharia, que movimenta a “elite técnica” e se assenta nas figuras de Paulo de Frontin e
Francisco Bicalho, além do apoio de Lauro Muller, e institui as leis de desapropriação; (b) a
Saúde Pública, através de Oswaldo Cruz, que define os critérios de civilidade e atua como
instrumento de controle da vida social, estabelecendo padrões mínimos de higiene e sane-
amento para a cidade e sua população; e (c) a Polícia que cria as condições de defesa dos
padrões burgueses de educação e garante a renovação. Ademais, a Polícia, com uma nova
estrutura, amplia suas funções e ganha condições de cobrar as posturas municipais e de
cuidar do despejo das áreas desapropriadas.
A impressão que se tem das reformas é de que elas aconteciam enquanto todos eram
tomados de surpresa, ou seja, a população olhava, sem entender, as modificações que des-
truíam parte das áreas antigas da cidade. A imprensa, que, como vimos, se colocara contra
o “bota-abaixo”, não perde a oportunidade de se manifestar. João do Rio, com sua “finória
crítica”, alude aos acontecimentos da seguinte maneira: “Como queres tu originalidade, onde
tudo é igual ao que há em outras terras? As avenidas são a morte do velho Rio. Esse mercado
Em seu lugar, porém, teríamos ainda por muito tempo, à porta do Correio da Manhã, do
Jornal do Brasil e do Jornal do Commercio, os sucedâneos minúsculos dos quiosques,
com apelido obsceno, e em que os jornalistas se deliciavam pela madrugada, depois de
uma noite em suas bancas, com os gostosos fritados de camarão a duzentos réis cada
talhado de bom tamanho (Maul, s.d., p. 35).
plano agache
Mas esse delírio não durou muito na década de 1920. Veio a crise de 1929 e a seguir a
Revolução de 1930. A cidade entristeceu. A seriedade política do momento retardou, um
pouco, o frisson da festa modernista. A moralidade associada à revolução tornou-se um obs-
táculo para o desenvolvimento à vida mundana. Era preciso moralizar para que o Brasil to-
masse o rumo do desenvolvimento e essa moralidade conflitava com a natureza tropical que
adornava a cidade.
Getúlio Vargas trouxe com ele essa nova etapa da história da cidade. Aproveitando a
monumentalidade do Plano Agache e o embelezamento do Centro e da Zona Sul, o gover-
nante provisório não precisou de um novo plano urbanístico. A novidade, porém, foi que
Vargas incorporou à cidade parte dos segmentos populares excluídos anteriormente, num
sinal claro de moralidade e de definição da capital como símbolo de uma nova era de traba-
lho e indústria.
Essa inclusão de Vargas foi realizada através de políticas sociais corporativas, evi-
tando que o movimento social e a esquerda assumissem o controle das ruas. Para isso,
1 O Tabuleiro da Baiana foi um terminal de bondes que se localizava nas imediações do largo da Carioca. Foi de-
molido na década de 1970.
Foi nesse clima de novas expectativas que a cidade viu surgir, em alguns de seus bairros
mais tradicionais, um movimento de reação às medidas progressistas e vanguardistas dos
anos 1950. A sociedade carioca se dividia entre aqueles que defendiam Getúlio e os que o
combatiam. A polêmica ganhou os meios de comunicação com o debate de posições que se
Tudo o que se disse acima, mais do que sabido é vivido pelos brasileiros natos. Mas que
dizer dos estrangeiros, que depois de mil esquemas de repressão ou de sistematização
do temperamento, vêm fixar residência? São espantosos e frequentemente pitorescos
os problemas que enfrentam, para se adaptarem a um novo estilo de vida, que é único
em todo o mundo (Kellemen, 1964).
A burguesia carioca avançava em direção à Lagoa, Leblon, Ipanema, Cosme Velho e Alto
da Boa Vista e resolvia a precariedade a seu modo, pois não precisava do Estado. Nesse con-
texto, foi anunciado o Plano de Metas, no qual 50 anos seriam resolvidos em cinco. Esse
modelo nacional-desenvolvimentista estava ancorado no capital internacional como me-
canismo básico para a construção de uma acumulação capaz de desenvolver a economia
brasileira e gerar uma nova etapa na história do Brasil. Na época, o imaginário social via essas
mudanças como a consolidação da modernização no Brasil.
Mas para que esse modelo ganhasse densidade, era necessário que se fizessem mudan-
ças estruturais no país, reduzindo a desigualdade através de uma distribuição de renda e
recursos mais desconcentrada do eixo sudeste. A estratégia dos polos de desenvolvimento,
em moda na época, combinada com um esforço nacional levaram à configuração da necessi-
dade de mudar a capital do Brasil para o interior, seguindo uma orientação que, por motivos
diversos, já havia aparecido no debate da primeira Constituição republicana.
A mudança da capital tinha lugar certo: o interior do estado de Goiás, bem no centro do
Brasil, fazendo dali saírem raios de desenvolvimento que alcançariam todo o país. Os inves-
timentos nesse projeto foram gigantes em termos de capital e de homens. Era a oportunida-
de de mostrar que o Brasil era maduro. Brasília seria a demonstração empírica do engenho
brasileiro que criaria a cidade mais moderna do mundo, capaz que concorrer com qualquer
outra capital europeia ou americana.
Com projeto urbano de Lúcio Costa e arquitetura de Oscar Niemeyer, o avião do cresci-
mento, marcado pelo desenho do plano de Brasília, seria a maneira de mostrar ao mundo a
nossa capacidade de mudança. Entretanto, o risco era enorme e parte dele foi minimizado pelo
desenvolvimento de uma industrialização restritiva que acelerava provisoriamente a desigual-
dade, concentrando as atividades nas mãos da elite empresarial brasileira. Quem pagava era o
povo, sofrendo com a inflação que desvalorizava a moeda e aumentava os impostos.
Esse mecanismo lembrava a década de 1930, pois manteve a concentração econômica
no sudeste, reforçando o papel de São Paulo como exemplo da dinâmica a ser seguida. O re-
sultado nem mesmo alterou as migrações, que se distribuíam agora entre o centro do Brasil
e o eixo Rio-São Paulo. Grandes massas de retirantes se dirigiam para Brasília, Rio de Janeiro
e São Paulo no afã de conseguir sobreviver através de uma experiência urbana nova. Essas
massas eram principalmente absorvidas pelas obras de Brasília e pelo avanço da construção
civil no Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960 ia se definindo como centro financeiro, dividindo
com São Paulo a renovação econômica, garantido a relação entre capital e trabalho, já que
em São Paulo concentravam-se as indústrias. Isso significou certa desmobilização do parque
industrial carioca, que permaneceu antiquado diante do progresso de São Paulo, fazendo
com que a antiga capital se confirmasse como vocacionada para os serviços.
Foi nessa conjuntura que o Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, perdeu as suas funções
de capital, e com elas a diminuição das atividades administrativas ligadas ao poder público, e
2 Em 1962, eram concluídas as obras do túnel Santa Bárbara e iniciadas as do túnel Rebouças. Também foram
executadas obras de ampliação da antiga avenida Suburbana, abertura do túnel da rua Toneleros, construção
do trevo das Forças Armadas (importante eixo de ligação com a Zona Norte), além das obras do viaduto dos
Marinheiros, do parque do Aterro do Flamengo, da avenida Radial Oeste e a construção da Rodoviária Novo Rio.
3 De maneira contraditória, em março de 1968, Negrão de Lima formava a equipe que constituiria a Codesco
(Companhia de Desenvolvimento de Comunidades), composta por sociólogos, economistas e arquitetos. Com
projeto pioneiro e uma concepção humanística da intervenção na favela, a nova companhia pretendia estudar
e urbanizar três favelas da Guanabara.
4 Foram transferidas, desde 1966 até abril de 1970, cerca de trinta favelas, totalizando 70.595 pessoas (Valladares,
1978).
5 A título de curiosidade: na década de 1960, a imprensa dizia que Negrão havia proibido a consulta ao plano e
trancado os poucos volumes existentes em uma gaveta. Posteriormente, na década de 1980, denunciou-se que
volumes do plano foram encontrados no poço de um dos elevadores do edifício da antiga Sursan.
A tese de que, no período de 1964 a 1974, a capital, de fato, retornou para o Rio de Janei-
ro, em função das estratégias de dominação definidas pela política dos primeiros governos
militares é reforçada quando se olha para os planos PUB Rio (Plano Urbanístico Básico do
6 Em 1973, é incluída no projeto mais uma autoestrada: a Linha marrom, que ligaria a avenida Presidente Vargas
à Santa Cruz. Em 1976, o município apresenta outra linha colorida, a Linha lilás que, inspirada no Plano Agache,
ligaria Laranjeiras ao Santo Cristo.
Em 1993, César Maia é eleito prefeito; em 1997, elege seu sucessor, Luís Paulo Conde;
em 2001, retorna à prefeitura e em 2005 é reeleito. Esse período de 12 anos é marcado por
uma nova característica: a despolitização do papel do prefeito, que passa a atuar como um
administrador da cidade. Há um retorno às grandes intervenções, visto que a cidade passa a
ser administrada por obras urbanas. Diferentes projetos são executados por toda a cidade,
principalmente por meio dos programas Favela Bairro e Rio Cidade. Também na década de
1990, surge, no campo do planejamento urbano, um novo conceito: o planejamento estraté-
gico (trazido pelo então secretário de Urbanismo, o arquiteto Luís Paulo Conde).
Esta mudança se concretizou em 1993 com a divulgação do primeiro Plano Estratégico
da Cidade (PECRJ), Rio sempre Rio. Segundo o plano, de modo a reverter a suposta crise de
falta de investimentos, seria necessário um reposicionamento da cidade em termos globais.
Ademais, o PECRJ inaugurou, no Rio de Janeiro, a adoção do marketing urbano como ferra-
menta de projeção internacional da cidade. Em outras palavras, tratava-se de construir uma
nova capitalidade para aquela que já havia sido capital do Império e da República, além da
única cidade-estado do país. Foi inserida nessa lógica que nasceu a primeira candidatura do
Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2004.
Em 2001, Maia retorna à prefeitura após disputa eleitoral com aquele que fora seu suces-
sor. Em 2004, lança um novo Plano Estratégico: As cidades da cidade. Propondo a subdivisão
da cidade em doze macrozonas com planos específicos, o plano tratava cada região da cida-
de de forma independente e optava por empreendimentos isolados do espaço da rua, como
a Cidade do Samba na Gamboa, a Cidade da Música na Barra da Tijuca, ou ainda a Cidade das
Crianças em Santa Cruz.
Em 2009, Eduardo Paes elege-se à prefeitura e em 2013 reelege-se. Sua eleição repre-
senta a continuidade do processo iniciado em 1993, com a busca pela internacionalização
da cidade. Ponto alto desse processo ocorreu em outubro de 2009, quando foi anunciada a
escolha da cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Ainda em 2009
***
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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 19/1/2015
Leonardo Affonso de Miranda Pereira | Professor associado do Departamento de História da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre e doutor em História Social pela Universidade de Campinas
(Unicamp).
resumo
Em meio às turbulências políticas dos primeiros anos da República, Coelho Netto publicou o ro-
mance A capital federal, nos folhetins de O Paiz. Tratava-se de um relato supostamente escrito
por Anselmo Ribas, um jovem do sertão de Minas Gerais, que visitava pela primeira vez o Rio de
Janeiro. Ao invés da civilização e fausto que projetara, Anselmo viu ruas estreitas e feias, e ouviu
histórias sobre pestes e epidemias, e assim se propôs a expressar uma visão realista da cidade,
que a afastasse das imagens rebuscadas constituídas pelos ideólogos da República. O objetivo
deste artigo é entender essa leitura da cidade.
abstract
During the political turmoil of the early years of the Republic, Coelho Netto published the novel
A capital federal, in the newspaper O Paiz. The story was supposedly written by Anselmo Ribas,
a young man from the countryside of Minas Gerais, who was visiting Rio de Janeiro for the first
time. Instead of projected civilization and magnificence, Anselmo saw narrow and ugly streets,
and heard stories about plagues and epidemics which induced him to aim at expressing a realistic
view of the city, departing from the elaborate images created by the ideologues of the Republic.
Understanding this view of the city is the objective of this article.
resumen
En medio a la agitación política de los primeros años de la República, Coelho Netto publicó la no-
vela A capital federal, en el periódico O Paiz. Era una historia supuestamente escrita por Anselmo
Ribas, un joven del interior de Minas Gerais, que visitaba por primera vez Río de Janeiro. En lugar
de la civilización y el lujo que había proyectado, vio calles estrechas feas, y oído historias sobre
plagas y epidemias y así se propone expresar una visión realista de la ciudad, que se apartan de
las imágenes elaboradas por los ideólogos de la República. El propósito de este artículo es la
comprensión de esa visión sobre la ciudad.
Palabras clave: Coelho Netto; Rio de Janeiro (ciudad); Brasil – Primeira República.
Seja como for, o certo é que se lia Anselmo Ribas com verdadeiro prazer, convencendo-
se logo de duas cousas: de que se apresentando modestamente como sertanejo, o autor
conhecia a fundo a nossa capital, estudando-a com grande observação e que se por
acaso não fosse bacharel, formado como toda gente, devia ter frequentado cursos supe-
riores, tal a erudição que revelava.
1 Anselmo Ribas (Coelho Netto), A capital federal: impressões de um sertanejo, O Paiz, 18 de novembro de 1892.
2 A Capital, 17 de fevereiro de 1893.
3 “Miragem”, O Paiz, 17 de fevereiro de 1893.
4 O Tempo, 20 de agosto de 1893.
as fantasias da civilização
o caminho da regeneração
Por meio de uma cuidadosa elaboração literária, configurava-se no romance uma pers-
pectiva na qual o próprio Anselmo Ribas é colocado na posição de aprendiz, a descobrir
através de seu cicerone os mistérios e desafios da cidade do Rio de Janeiro. Parece explicável,
por isso, que o próprio narrador comece o livro reconhecendo haver nele muitas páginas
“derivadas da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos” (Co-
elho Netto, 1924, p. 7). Da decepção que demonstrou inicialmente com o atraso e a falta de
civilização da capital federal, através da qual Coelho Netto mostrava o limite de um ideal de
modernidade republicana que estava ainda longe de estar efetivado, o narrador é aos pou-
cos convencido de um diagnóstico sobre o caminho da necessária transformação da cidade,
que passava pelo investimento sobre a suposta incultura de seu povo. Com sua mania de
“contemplar da montanha as coisas inferiores” (Coelho Netto, 1924, p. 173), o dr. Gomes mos-
trava o povo como um desafio a ser enfrentado, cabendo a gente como ele próprio elevá-lo
ao olimpo da civilização do qual pensavam olhar o mundo ao seu redor.
Não era de se admirar, por isso, que um crítico como Olavo Bilac, amigo íntimo de Coelho
Netto, comentasse em sua “Crônica livre” que era pela boca do dr. Gomes que se expressava
de forma mais direta as opiniões do autor do livro e dos membros de seu grupo literário, e
não pela do narrador:
Este dr. Gomes és tu, Anselmo, sou eu, somos nós – sois vós todos, ó poucos homens de
coragem real que, entre o terror de uns e a estupidez de outros, ainda se dão ao trabalho
de percorrer essas linhas, enquanto os canhões revólveres ainda trovejam no litoral...
Coelho Netto, a tua alma, em que a fantasia fez ninho, está dentro do dr. Gomes! Está den-
tro dele o teu sarcasmo gelado, Mallet! Está dentro dele o teu lirismo de ouro, Guimarães
Passos! Estão dentro dele o teu arreganho de herói, Luiz Murat, mestre do verso, e a tua
ironia de aço, Machado de Assis, mestre da crônica! E é por isso que ele aparece como um
7 Tratava por isso de deixar bem clara a distância que separava a autoria da narração – como em uma crônica
na qual afirma não lhe sobrar “espaço para falar do Sertão de Coelho Netto”, em alusão ao livro de contos que
lançava na ocasião Anselmo Ribas. Anselmo Ribas (Coelho Netto), “Semanais”, A Notícia, 6 de fevereiro de 1897.
À Intendência devemos a poeira como a que, há dias, se levantou nas ruas, dando a
esta cidade o aspecto africano de um Saara; devemos a falta d’água, devemos o sargaço
das praias e o lixo das ruas, devemos o corte das árvores, devemos as cinco pessoas
espremidas em um banco de bonde, devemos os pesados caminhões e o preço da car-
ne, devemos o calçamento, devemos as casas elegantes da rua do Senhor dos Passos,
devemos, enfim, todos os benefícios que nos assolam desde a praia do Peixe até a febre
amarela. [...]. Que importa o lamento do contribuinte, se o fisco tem meios fortes de lhe
extorquir as verbas? Para enriquecer o Brasil basta a sua primavera e para embelezá-lo
basta-lhe a natureza.
[...]. Quando havemos nós de ver, trêmula, a luz da esperança dos que nos hão de trazer
a civilização? [...]. Quando chegará a nossa vez, senhor?8
No olhar crítico de Anselmo Ribas sobre o Rio de Janeiro – descrito pelo cronista como
um antro de sujeira, desconforto, privação, doença e prostituição – configurava-se um diag-
nóstico sobre a cidade, expresso originalmente no romance A capital federal. Ao perceber o
caráter superficial de seus antigos sonhos, cuja realização formal não se fizera acompanhar
de uma substantiva transformação do quadro que via pelas ruas, passava a fazer de crônicas
como aquelas um meio de lutar pela efetiva transformação daquela realidade urbana.
Para isso, no entanto, mostrava ter aprendido as lições do dr. Gomes. Além de criticar
a realidade que via pelas ruas da cidade, passava a dar espaço em suas crônicas a persona-
gens do mundo popular como Chico Bumba, os romeiros humildes da Festa da Penha ou os
seguidores de Antônio Conselheiro. Como aprendido com o amigo, o fazia em perspectiva
superior, apontando a imoralidade, a fraqueza e a ignorância que via em suas manifestações.
Ao mesmo tempo em que se mostrava atento a práticas e tradições que anos antes não te-
riam lugar na prosa dos literatos de sua geração, mostrava mais uma vez a necessidade de
educação desse povo para vencer suas superstições e vícios, de modo a fazê-lo caber nos
ideais de civilização que pretendia ajudar a construir. Era por esse caminho de tenso diálogo
com o mundo das ruas que Coelho Netto passaria, a partir de então, a tentar transformar a
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9 Por mais que o uso da expressão não constituísse então uma novidade – aparecendo pelo menos em artigos e
canções carnavalescas sobre a cidade (O Paiz, 16 de fevereiro e 4 de março de 1904), – o livro de Coelho Netto
ajudaria a associá-lo definitivamente ao Rio de Janeiro, a partir do reconhecimento de sua singularidade.
Recebido em 19/11/2014
Aprovado em 8/12/2014
Mariana de Oliveira Aleixo | Doutoranda do Instituto Alberto Luiz de Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em
Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e docente do Curso de Gastronomia do Instituto Bra-
sileiro de Medicina e Reabilitação (IBMR).
Roberto Bartholo | Professor associado do Programa de Engenharia de Produção do Instituto Alberto Luiz de Coim-
bra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador
do Laboratório Tecnológico e Desenvolvimento Social (LTDS).
resumo
Este artigo discute o processo de formação da gastronomia carioca, com ênfase na produção
de hábitos e fazeres alimentares desenvolvidos no século XIX e na comida de rua da cidade do
Rio de Janeiro, a partir das dualidades que envolvem as tradições europeias, observadas na co-
mida da Corte, e as tradições indígena e africana, representadas pelas formas do fazer culinário
popular. O ponto de partida para a análise é que se a comida é uma variável importante para a
compreensão das tradições culturais, a cidade do Rio de Janeiro expressa experiência e vivên-
cias que traduzem a alma e a gastronomia carioca.
abstract
This article discusses the process of formation of Rio de Janeiros’s cuisine, with emphasis on
street food and the creation of dietary habits and culinary activities developed in the nine-
teenth century, in light of the dualities involving European traditions, observed in the food of
the Court, and the indigenous and African traditions, represented by the popular culinary. The
starting point is that if food is indeed an important variable for understanding cultural tradi-
tions, the city of Rio de Janeiro reflects experiences that translate Rio’s soul and gastronomy.
resumen
En este artículo se analiza el proceso de formación de la cocina de Río de Janeiro, con énfasis en
la producción de hábitos alimentarios y actividades culinarias en el siglo XIX y la comida de la
calle en la ciudad, a partir de las dualidades que implican las tradiciones europeas, observadas
en la comida de la corte, y las tradiciones indígenas y africanas, representadas por la culinaria
popular. El punto de partida es que si la comida es una variable importante para la comprensión
de las tradiciones culturales, la ciudad de Río de Janeiro expresa experiencias y vivencias que
reflejan el alma y la gastronomía de Río.
Em 1763, o Rio de Janeiro passou a ser o principal centro das atividades da metrópole
portuguesa no Brasil, visto que o marquês de Pombal transformou a cidade na capital da
colônia. Isso possibilitou a concentração de todas as dimensões cosmopolitas decorrentes
das experiências maiores de troca com a Europa, a África e a Ásia que passaram a se ligar ao
Rio de Janeiro.
considerações finais
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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 2/2/2015
Romulo Costa Mattos | Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
resumo
Este trabalho objetiva analisar o debate sobre a habitação popular no momento anterior à pro-
mulgação das leis que pretendiam incentivar a construção das chamadas casas higiênicas para
os trabalhadores. A leitura dos jornais do início dos anos 1920 permite entrever a pressão da
classe trabalhadora por melhores condições de moradia, e a dos construtores civis por maiores
favorecimentos nas leis habitacionais. Em meio à campanha da grande imprensa a favor dos
interesses do setor da construção civil, também será analisado o discurso sobre as favelas.
abstract
This work aims to analyze the debate on affordable housing at the time immediately prior to the
enactment of the laws intended to encourage the construction of the so-called hygienic hou-
ses for workers. The reading of newspapers of the early 1920’s allows one to discern both the
pressure of the working class for better housing, as well as the pressure of the homebuilders for
better incentives in the housing laws. Amid the great media campaign in favor of the interests
of the construction industry, the discourse on slums will also be analyzed.
resumen
Este trabajo tiene como objetivo analizar el debate sobre la vivienda social en el momento
antes de la promulgación de leyes destinadas a fomentar la construcción de las llamadas casas
higiénicas para los trabajadores. La lectura de los periódicos de principios del 1920 deja entre-
ver la presión de la clase obrera para la mejora de la vivienda, y de los constructores civiles por
mayor favoritismo en las leyes de vivienda. En medio de la campaña en los medios de comuni-
cación en los intereses de la industria de la construcción, también se analizará el discurso sobre
las “favelas”.
1 Essa lei remonta ao projeto n. 337, de 1905, originário na Câmara dos Deputados, que adentrou o Senado em
1906, sob a denominação 54-A. Embora aprovado em 1911, tal ato legislativo permanecia até aquele momento
como letra morta por falta de um regulamento de competência municipal.
2 Vale ressalvar que a ideia de uma greve de inquilinos havia sido tema de uma peça do anarquista português
Neno Vasco (1923), encenada no Rio de Janeiro em 1907, conforme citou Samis (2006).
3 Vale lembrar que houve a construção de “barracões” na praça da Bandeira para abrigar a população retirada do
morro do Castelo. A total falta de infraestrutura nesses abrigos apenas piorou as condições de vida dos mora-
dores pobres expulsos da colina (Barros, 2005, p. 195).
O maior sinal de urgência em relação ao déficit de casas populares foi a mensagem en-
viada pelo presidente Epitácio Pessoa aos membros do Congresso Nacional, na qual dizia
que os poderes federais deveriam atuar mais energicamente em tal questão. Claramente
baseado no memorial escrito por Jannuzzi, o chefe da nação considerava o sistema adotado
pela lei n. 2.407, de 1911, como o mais indicado e acrescentava: “Não é de se recear [...] a ele-
vação do limite de 50% [...] até 90% do valor das construções, como pedem os construtores
do Distrito Federal” (Correio da Manhã, 1920g).
Os construtores civis pareciam se encontrar em posição privilegiada nesse momento. Na
mesma edição em que a mensagem de Epitácio Pessoa foi publicada, havia uma matéria que
louvava o despertar dos poderes públicos para a questão da habitação. Acreditando pres-
tar um serviço de utilidade pública, o Correio da Manhã (1920h) resumiu as propostas que
transitavam na esfera política. No Conselho havia um projeto de moradias que reivindicava a
isenção de vários impostos municipais. Na Câmara, outro plano aventava a exploração pelo
Estado de casas operárias. O presidente da República, por sua vez, pretendia conceder facili-
dades à iniciativa particular, na forma de companhias organizadas para construir habitações
populares. O mais interessante é que, dessas três sugestões, o diário considerava como “a de
mais difícil execução [...] a relativa à exploração direta do Estado, dada a deficiência de meios
com que luta o Tesouro Nacional”.
Defendida nos jornais socialistas do começo do século XX, a proposta de atuação di-
reta do Estado na construção de moradias populares – sem a intermediação de empresas
construtoras particulares – era descartada como praticamente irrealizável, porque os cofres
públicos não disporiam de tanto dinheiro. Nesse ponto, é conveniente acusar um tipo de
abordagem reducionista realizada pela grande imprensa, que se satisfazia com as explica-
ções dos motivos pelos quais o Estado não poderia investir em áreas fundamentais para o
bem-estar da maioria da população, sem esforçar-se em argumentar sobre como esses en-
traves poderiam ser superados.
O mais interessante é que aquele discurso se encaixava com o que a Associação dos
Construtores Civis do Rio de Janeiro defendia na época. No memorial apresentado ao presi-
dente Epitácio Pessoa, Jannuzzi declarou que dois pontos não sofreriam mais contestação
[...] o limite de 50%, equiparando o favor ao comumente oferecido pelos bancos de cré-
dito real, e mesmo inferior a este [...] e mais a circunstância da intervenção direta do
Governo da União na construção de casas populares, [...] em vez de regulamentar a lei
e estimular a iniciativa privada, tudo isso deu em resultado nada se ter conseguido até
hoje do magno desideratum! (Jannuzzi, 1927, p. 21).
As palavras de um especialista europeu citado por Jannuzzi (1927, p. 19) eram ainda mais
contundentes e beiravam as raias do alarmismo: “Seria perigosa, inadequada e mesmo subs-
tancialmente danosa, a linha de conduta que quisesse conferir aos municípios a construção
direta de casas municipais para a generalidade das classes necessitadas”. Em resumo, a expe-
riência do Estado na edificação das vilas operárias Marechal Hermes e Orsina da Fonseca, na
década de 1910, teria sido, na opinião do referido construtor civil, “a mais flagrante negação
dos objetivos daquele ato legislativo [a lei n. 2.407, de 1911]” (Jannuzzi, 1927, p. 8).
É preciso esclarecer que, entre 1911 e 1914, haviam ocorrido várias iniciativas do go-
verno federal e da municipalidade visando à superação da chamada questão habitacional.
No entanto, as diferentes autoridades entraram em conflito e acabou não se definindo uma
política em nível municipal. Em um contexto de aproximação com o operariado, o fracasso
do esforço da União pode ser creditado em grande parte à depressão econômica iniciada em
1913 e agravada no ano seguinte. Na primeira metade da década de 1910, o conflito entre o
capital privado e a ação intervencionista do Estado estava exposto nos diversos projetos que
chegavam à Câmara (Lobo; Carvalho; Stanley, 1989, p. 110-111).
Condenação à intervenção direta dos poderes públicos e reivindicação de grandes in-
centivos fiscais, eis os pontos básicos da campanha empreendida pela Associação dos Cons-
trutores Civis do Rio de Janeiro. Tamanho empenho resultou na aprovação pelo Conselho
Municipal do projeto n. 371, de 1920 – apresentado pelo intendente Pio Dutra, a pedido
da referida associação –, que concedia favores de sua competência, de acordo com a lei n.
2.407, de 1911. Mas a felicidade dos empresários da construção civil durou pouco. Carlos
Sampaio vetou a aludida proposta – que pedia a isenção de impostos municipais pelo perí-
odo de 15 anos – por temer a especulação imobiliária, numa época em que a preocupação
com o valor de troca do solo urbano passava a figurar explicitamente nos planos municipais
(Abreu, 1997, p. 78). Jannuzzi respondeu imediatamente com a publicação de um manifesto
n’O Jornal (1921). Dois dias depois, vislumbrou uma saída desesperada: a concessão de todos
os favores autorizados pela lei n. 2.407, sem a dependência dos contratos que as firmas de-
viam celebrar com a municipalidade – nesse caso, o valor do aluguel aumentaria.
4 O contrato entre a Prefeitura e a Antonio Jannuzzi & C. foi assinado em 16 de outubro de 1922. Mas a falta de
entendimento entre o Estado e a iniciativa privada não seria resolvida nesse episódio, conforme veremos mais
adiante.
5 Vale ressalvar que os empresários liderados por Jannuzzi queriam financiamento de 90% do valor das moradias
pelo governo, e não 80%.
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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 21/1/2015
Rafael Soares Gonçalves | Mestre e doutor em História e Civilização pela Universidade de Paris VII/Denis Diderot
e pós-doutor no Laboratório de Antropologia da Escrita da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor
adjunto da PUC-Rio.
resumo
Se grandes enchentes aconteceram com frequência no decorrer do século XX, algumas tornaram-
se uma referência na memória carioca. O presente artigo sublinha o papel das “chuvas de verão”,
enquanto agente ambiental de impacto na cidade, analisando as chuvas de 1966/67, 1988 e 2010.
A hipótese central repousa na ideia de que as chuvas, em diferentes ocasiões, suscitaram forte de-
bate público, sobretudo em relação às favelas, mobilizando discursos e recursos, que impuseram
mudanças no modo de agir dos poderes públicos nesses espaços, tanto em termos de formulação
de políticas públicas, como de novas técnicas de intervenção nessas áreas.
abstract
Great floods occurred frequently during the 20th century, some of which have become a refe-
rence in the memory of the city of Rio de Janeiro. This article emphasizes the role of the “sum-
mer rains” as a high-impact environmental agent in the city, analyzing in particular the rains of
1966/67, 1988 and 2010. The central hypothesis is the idea that the rains, in different occasions,
have prompted strong public debate, especially in relation to slums, mobilizing resources and
discourses, which resulted in changes in the interventions of the public authorities in these spa-
ces, both in terms of public policy formulation and of new intervention techniques in these areas.
resumen
Si grandes inundaciones se produjeron con frecuencia durante el siglo XX, algunas se han con-
vertido en una referencia en la memoria de la ciudad de Río de Janeiro. Este artículo pone de
relieve el papel de las “lluvias de verano” como agente ambiental de impacto en la ciudad, anali-
zando particularmente las lluvias de 1966,1967, 1988 y 2010. La hipótesis central se basa en la
idea de que las lluvias, en diferentes ocasiones, levantaron un fuerte debate público, sobre todo
en relación a los barrios marginales, movilizando recursos y discursos, imponiendo cambios en
el modo de acción de las autoridades en estas áreas, en términos de formulación de políticas
públicas y de nuevas técnicas de intervención en estas áreas.
1 Vila Kennedy (5.509 moradias), Vila Aliança (2.187 moradias), Vila Esperança (464 moradias). A administração
Carlos Lacerda iniciou também a construção do conjunto da Cidade de Deus (6.658 moradias).
2 Tanto o programa estadunidense Aliança para o Progresso quanto a Agência dos Estados Unidos para o Desen-
volvimento Internacional (USAID) declararam, ainda no final da década de 1960, que seria mais interessante
investir na urbanização do que na remoção de favelas (Gonçalves, 2013b).
3 A diferença de votos entre o candidato de Carlos Lacerda, Flexa Ribeiro, e o candidato Negrão de Lima foi maior
justamente nas regiões onde existia o maior número de favelados ou de ex-favelados.
Se necessário deve ser empregado a força para que o trabalho de caráter social tenha
efeitos positivos. O importante é não se refazer a tolice de urbanizar. A tragédia que se
abalou nos últimos dias sobre a cidade veio comprovar que remover os favelados é a
melhor solução (Diário de Notícias, de 16 de janeiro de 1966).
Neste instante, meu problema seria resolvido com algum material, com o qual subiria
meu barraco dois metros, tornando-o livre da água. O problema dos favelados, em geral,
porém somente será resolvido com a urbanização das favelas [...]. Tomemos, por exem-
plo, minha pessoa. Trabalho na Zona Sul e pouco serviço tenho no subúrbio. Perto de
onde moro, no morro do Pinto, existem quatro escolas, dois hospitais e muita condução.
Ontem à noite, minha filhinha passou mal e corremos, assustados, minha mulher e eu, à
procura de um médico, que foi encontrado logo. Se fosse na Zona Norte, em Bangu ou
Vila Kennedy, ficaríamos loucos de aflição. Moro na praia do Pinto há 32 anos e já conhe-
ço toda a redondeza. Fui aumentado, agora, no serviço para Cz$ 76 mil e o dinheiro não
dá. Minha filha menor, que ainda não tem um ano, gasta, por semana, uma lata e meia
de leite em pó, a razão de Cz$950 cada. Faço Cz$17 mil por semana e, no domingo, já
não há dinheiro para nada, tudo gasto em comida. Às vezes, venho andando para casa
para economizar um pouco e comprar alguma roupa para a família. Se formos morar na
Zona Norte, morreremos de fome, mas se urbanizarem as favelas teremos uma vida mais
digna e humana, sem muito sacrifício.
As chuvas voltaram a espalhar morte e destruição pela cidade, que teve todos os seus
bairros atingidos por um temporal que durou sábado e domingo e repetiu, quase com a
mesma intensidade, a tragédia de janeiro do ano passado. Novamente o Maracanazinho
abriu seus portões para acolher uma multidão de flagelados: agora, são cinco mil pesso-
as, que perderam suas casas e todos os seus bens e muitos parentes e amigos.
A mesma reportagem afirmou que até o comércio se movimentava para o protesto e que
“uma comissão das classes produtores está disposta a exigir do governo a retirada das fave-
las, com providências prioritárias para as que estão situadas nos morros. Por que a chuva não
tem previsão”. A pressão midiática surtiu efeito, já que o Correio da Manhã do dia seguinte
(22 de fevereiro) relatou que o governador Negrão de Lima
assinou decreto proibindo o licenciamento de obras nas encostas dos morros do Rio, sejam
obras de edificação, terraplanagem, abertura de logradouros ou loteamentos. O decreto
estabelece ainda que as licenças de obras naqueles locais só serão revalidadas mediante
audiência prévia do Instituto de Geotécnica do Estado, que fica autorizado a embargá-las,
em qualquer oportunidade, uma vez constatado o descumprimento de exigência técnica
ou de fato que possa afetar a estabilidade dos edifícios ou a segurança pública.
Urge, pois, para prevenir novas catástrofes as obras públicas de tratamento dos mor-
ros e outras elevações, ou seja, emparedamento, remoções de pedras, reflorestamento,
traçado de curso artificiais das águas das chuvas, eliminação de fendas, sustentação de
barreiras, enfim, muita coisa a ser feita e em ritmo acelerado.
O relatório defende, assim, a urbanização das favelas, resguardando aquelas áreas, onde
o risco geológico não pudesse ser evitado:
A remoção, como vimos, foi uma das razões do fracasso eleitoral de Carlos Lacerda nas
eleições de outubro de 1965. Apesar das chuvas, Negrão de Lima chegou a propor a criação,
em março de 1968, da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco), cujo
objetivo era promover a integração de favelas e aglomerações consideradas subnormais ao
bairro do entorno. Apesar do impacto simbólico, a atuação da Codesco foi limitada e, das
três favelas inicialmente escolhidas para serem urbanizadas (Brás de Pina, Mata Machado
e Morro União), o projeto só avançou realmente na primeira delas. No entanto, em maio de
1968, ou seja, alguns meses apenas após a criação da Codesco, Brasília criou a Coordenação
de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), para relan-
çar o projeto de erradicação das favelas no Rio de Janeiro.
O estado da Guanabara, apesar do discurso contrário às remoções, acabou apoiando os
esforços do governo federal,7 através da Secretaria dos Serviços Sociais, encarregada de ela-
borar os estudos socioeconômicos prévios às operações de remoção, e da Cohab-GB, encar-
regada não apenas de construir os conjuntos habitacionais, mas também de comercializar os
novos apartamentos aos favelados (Valladares, 1978, p. 78). As chuvas já não eram mais evo-
cadas sistematicamente para justificar as remoções em 1968. Um dos critérios que deveria
ser atendido pelo programa de desfavelização da Chisam era o caso das famílias envolvidas
habitando locais instáveis que pudessem oferecer riscos de segurança e de vida aos seus
7 Durante as enchentes (1966-1967), foram removidas 6.685 pessoas. No restante do mandato de Negrão de Lima
(maio/1968-março/1970), já com a intervenção da Chisam, foram removidos 63.910 pessoas (Valladares, 1978,
p. 39).
Entre essas duas enxurradas, várias chuvas de verão caíram na cidade, assim como muitas
mudanças aconteceram nas políticas voltadas para as favelas. O projeto de erradicação de fa-
velas foi paulatinamente substituído, com o processo de democratização, por iniciativas volta-
das para a sua urbanização e consolidação. A cidade do Rio de Janeiro virou um grande labo-
ratório de iniciativas de urbanização de favelas, que envolveram diferentes entes federativos.
O contexto político local, nos anos que precederam as chuvas de 1988, foi também tur-
bulento. Saturnino Braga, após ter rompido com o PMDB, fora eleito prefeito nas eleições
de 1985 pelo PDT, o que significou uma breve aproximação entre o PDT e grupos petistas,
próximos ao seu vice, o ex-presidente da Federação das Associações de Moradores do Es-
tado do Rio de Janeiro (Famerj), Jó Resende, que entraram em dissidência com o PT (Freire,
2012, p. 272). No entanto, Saturnino rompe com o PDT dois anos depois. Grande parte do
movimento favelado, representado sobretudo pela Federação das Associações de Favelas do
Estado do Rio de Janeiro (Faferj), se isola, rompendo tanto com o governo municipal quanto
com o estadual, após a vitória de Moreira Franco no final de 1986 (Brum, 2006, p. 136). Apesar
do distanciamento da Faferj, a administração municipal, através da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS) e seu secretário, Sergio Andrea, próximo do PT e da Famerj,
procurara exercer, como veremos, uma forte presença nas favelas (Brum, 2006, p. 121).
A SMDS fora criada a partir da Secretaria de Turismo, através da lei municipal n. 110, de
23 de agosto de 1979, que criou também o Fundo-Rio. Esse fundo, vinculado à SMDS, deveria
captar recursos financeiros destinados a promover o desenvolvimento da cidade do Rio de
Janeiro. A SMDS, nas diferentes administrações municipais que se sucederam, se posicionou
contrária às remoções, iniciando projetos de melhoria da infraestrutura urbana e programas
sociais nas favelas. A missão da SMDS seria a de coordenar os esforços dos diferentes orga-
nismos públicos no sentido de levar a cabo os projetos de urbanização das favelas.
No contexto dos esforços pela urbanização das favelas, foi criado, no bojo da SMDS, em
1982, o projeto Mutirão. A SMDS se encarregava de elaborar os projetos de urbanização e
de executá-los com a mão de obra fornecida pelos próprios moradores. Apesar da preca-
riedade de recursos e da dificuldade de se manter a mobilização social dos moradores em
torno dos mutirões, o projeto evoluiu ao ponto de, a partir de 1985, a mão de obra começar
a ser remunerada pelo Projeto de Urbanização Comunitária/Mutirão Remunerado. O projeto
atingiu um conjunto importante de favelas da cidade, 26% do total (Fontes; Coelho, 1989,
cidade foi mais uma vez humilhada, espezinhada ao ver-se impotente ante uma situ-
ação de emergência que, no entanto, era perfeitamente previsível: um grande centro
urbano imprensado entre o mar e a montanha tem que estar equipado para as chuvas
fortes, que descem para os vales com o impulso adquirido nas encostas.
8 Uma das explicações populares à chuva incomum foi a alteração do feriado do patrono da cidade para segunda-
feira. O Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1988, trouxe a fala de Renato Rodrigues, um dos voluntários no
apoio as vítimas: “O que a gente pede é que as autoridades respeitem as crenças da gente simples e não mude
mais o feriado de um santo católico”.
Ele é que deixa de ser um habitante à margem das leis e se incorpora ao quadro huma-
no. Fora disso, é demagogia. Demagogia criminosa, quando, a título de urbanização, a
autoridade delinquente fixa o morador naquelas condições. Permite que ele more sem
habite-se. Permite-se que ele não pague impostos. Permite que ele fique sem serviço
de limpeza de ruas, varrição. Permite que ele se instale sem rede de esgotos, ou mesmo,
de fossas sépticas. Permite que ele não tenha galerias pluviais, nem ruas pavimentadas.
Permite que ele não tenha lixo coletado. Permite que ele não tenha água encanada.
Permite... Permite... Permite...
A favela não tem lei, não tem escola, não paga impostos, não tem coleta de lixo, cres-
ce de tal maneira sobre a cidade “legal”, devastando as encostas, que já ultrapassou
em muito o pitoresco, o ocasional, para transformar-se em fenômeno de massa que
faz do Rio de Janeiro literalmente uma cidade de pernas para o ar. [...]. Onde estão
os projetos de remanejamento, de criação de novas zonas urbanizadas? Onde está
o mínimo de fiscalização que impeça a contínua expansão desse câncer que vai es-
trangulando o Rio?
Assim como aconteceu em 1966/67, poderosos grupos econômicos voltaram seus esfor-
ços para a retomada das remoções. A Associação Comercial sugeriu o adiantamento do IPTU
e a criação de um banco de materiais de construção para viabilizar recursos e estruturas para
a prefeitura providenciar a remoção de moradores em favelas de alto risco para locais segu-
ros (Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1988). Francisco das Chagas Machado, em artigo
escrito no Boletim da Associação Brasileira de Administradoras de Imóveis (Abadi), afirmou que
O cenário vinha sendo montado há anos e anos, desde que se interrompeu a ideia e a
prática da remoção de favelados em nome de uma alegada urbanização que não pas-
sava de embuste. Como é possível urbanizar, isto é, tornar cidade, um amontoado que
desafia ao mesmo tempo a geologia e a gravidade? Não se pode considerar moradia um
precário amontoado de tábuas ou mesmo de alvenaria, numa inclinação de terrenos
instável e sujeito a deslizamentos. A própria construção de favelas solapa as suas bases:
a água da chuva que penetra na terra acelera os riscos. A falta de esgotos inviabiliza a
vida, em condições sanitárias normais. Tudo é risco numa favela.
Por fim, a mesma reportagem (Jornal do Brasil, 24 de fevereiro) associa que o risco
da consolidação das favelas não se volta somente aos moradores, mas à própria demo-
cracia:
Quanto ao Rio, como governo e sociedade, além da relocação dos desalojados como
primeiro passo em nível habitacional, terá que se responsabilizar pela definição de uma
política que tenha a coragem de declarar as favelas incompatíveis com a cidade e a
9 Ver Francisco das Chagas Machado, Boletim ABADI, n. 72, ano 8, março de 1988 (anexo ao Jornal do Brasil, de 4
de março de 1988).
10 Em manifestação ao Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1988, o então pe. Olinto Pegoraro, muito atuante no
morro do Borel, culpou as autoridades por não fiscalizarem as construções em áreas de risco e admitiu que seria
dali em diante mais cuidadoso quando providenciasse material de construção para os moradores, verificando
se as casas seriam construídas em áreas de risco.
O Jornal do Brasil, de um mês antes (25 de fevereiro), já havia indicado essa questão com
a constatação de que as favelas que melhor resistiram, como as do Salgueiro e da Formiga,
foram exatamente as que tiveram um programa de reflorestamento com base em apoio co-
O presente artigo procurou iniciar uma discussão sobre os impactos das chuvas de 1966-
67 e 1988 em relação às políticas urbanas referentes às favelas. Não se pretende, aqui, anali-
sar detalhadamente as últimas grandes chuvas que caíram na cidade, em 2010, mas compa-
rá-las brevemente com as duas chuvas evocadas anteriormente neste artigo. Em relação às
primeiras chuvas mencionadas, apesar da perspectiva de mudanças políticas com a eleição
do governador Negrão de Lima, os desastres provocados pelas chuvas de 1966/67 contribu-
íram para críticas às mudanças que estavam sendo formuladas pelo novo governador. Por
outro lado, as chuvas permitiram também a constituição de novos órgãos técnicos, capazes
de responder e mitigar os riscos geotécnicos da cidade e de responder com mais eficácia aos
desastres.
As chuvas de 1988, por sua vez, suscitaram um questionamento da política de urbani-
zação das favelas, que se consolidara no Rio de Janeiro desde o final da década de 1970. A
maior segurança jurídica dos moradores, com o fim das remoções, como analisamos, trouxe
a tragédia de 2010 tem de ser o marco zero de uma política séria de remoções de mora-
dores de áreas de risco e de pequenas favelas, ainda em condições de ser erradicadas.
Não há mais por que manter o preconceito contra remoções, quando é possível fazê-las
sem os erros do passado [...]. A ficar como está, a próxima catástrofe será maior que
a atual, por sua vez mais extensa que as da década de 60, e assim sucessivamente. O
drama se agravará ao ritmo da favelização. É inexorável (O Globo, de 9 de abril de 2010).
13 Ver Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro 2009-2012: Pós 2016/Rio mais integrado e competitivo.
Disponível em: <http://www.riocomovamos.org.br/arq/planejamento_estrategico.pdf>. Acesso em: dez. 2014; e
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ponível em: <http://www.conselhodacidade.com/v3/pdf/planejamento_estrategico_13-16.pdf>. Acesso em: dez.
2014.
14 É difícil afirmar que esse número se limita somente às remoções motivadas pelo discurso de risco. É provável
que nesse número estejam também as famílias removidas no contexto de preparação da cidade para a Copa do
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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 4/2/2015
Carlos Eduardo Pinto de Pinto | Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor do De-
partamento de História da PUC-Rio.
resumo
O filme Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, foi censurado e teve sua estreia proi-
bida, por mostrar as favelas da então capital da República. Por meio da análise dos discursos de
defesa e ataque da obra, bem como de algumas de suas sequências, o artigo se dedica a pensar
a disputa pela imagem da cidade – e do país –, colocando em xeque a noção de “anos dourados”.
abstract
Nelson Pereira dos Santos’s Rio, 40 graus (1955) was censured and had its release forbidden for
showing the slums of Brazil’s former capital, Rio de Janeiro. Through the analysis of discourses in
favor and against the movie, as well as some of its sequences, this article aims to reflect on the
dispute regarding the representation of the city – and of the country –, questioning the idea of
“golden years”.
resumen
La película Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) fue censurada y su debut fue prohibido
por mostrar los barrios marginales de la entonces capital de la República. A través del análisis de
los discursos de defensa y ataque de la película, así como de algunas de sus secuencias, el artículo
está dedicado a pensar en la batalla por la imagen de la ciudad – y del país –, poniendo en cues-
tión la noción de “años dorados”.
A realização de Rio, 40 graus por Nelson Pereira dos Santos, em 1955, é considerada um
marco na história das representações cinematográficas do Rio de Janeiro. Trata-se de um
diálogo profícuo com o neorrealismo italiano, deixando para trás a imagem de paraíso nos
trópicos que vigorava até então, em prol de uma representação mais realista do Rio. A obra
foi considerada o ponto de partida para o surgimento do cinema moderno no Brasil (Xavier,
2001), marcando, sobretudo, os primeiros anos do cinema novo (Pinto, 2013).
O neorrealismo foi a principal alternativa ao cinema hollywoodiano no pós-guerra e
propunha, em linhas gerais, a realização de filmes com poucos recursos, fora dos estúdios
e usando não atores, de preferência aqueles que estivessem inseridos no contexto da nar-
rativa. A ideia era registrar, sem enfeites, a “realidade” – o que, no caso do filme de Nelson,
foi alcançado por meio do protagonismo de cinco meninos vendedores de amendoim, mo-
radores de uma favela. Para completar o diálogo com o neorrealismo, a produção do filme
foi realizada por meio de um sistema de cotas, que envolveu toda a equipe e amigos, e as
sequências filmadas, quase integralmente, em externas.
A expectativa em torno dessa série de novidades era grande, mas foi frustrada por uma
notícia impactante. Antes de conseguir chegar aos cinemas, o filme foi proibido – depois
de já ter sido liberado pela Censura – justamente por ousar representar as favelas cariocas.
Logo a obra se tornou o centro irradiador de um debate em torno da liberdade de expressão
e o que seria a “verdadeira” face da, então, capital da República. Ironicamente, o Brasil vivia
o décimo ano após o fim da ditadura de Vargas e podia desfrutar do retorno das instituições
democráticas. A proibição ao filme demonstra o caráter ainda autoritário da política cultural
do momento, dando contornos vagos e imprecisos ao conceito de democracia. Por outro
lado, a campanha em favor de sua liberação, vitoriosa, demonstra que os tempos realmente
haviam mudado.
Essa tensão entre autoritarismo e democracia é um dado precioso para a tarefa de
repensar o epíteto de “anos dourados” para a década. Certamente, foram anos marcados
pelo “aumento da prosperidade e [por] uma efervescência cultural” (o que lhe garantiu
a boa fama), mas também pelo “crescimento da desigualdade que contribui para novas
formas de críticas e conscientização das pessoas” (Burton, 2003, p. 206) – processo em
que Rio, 40 graus é um dos agentes. Mesmo que o epíteto tenha sido construído a poste-
riori e seja mais associado a eventos localizados na segunda metade da década – os anos
JK e o avanço da indústria de bens duráveis; os concursos de Miss iniciados em 1954; a
vitória do Brasil na Copa do Mundo e o surgimento da bossa nova em 1958 –, vale no-
tar que o período nasce sob o signo da esperança, no Brasil e no mundo. Tratava-se da
inauguração da segunda metade do século XX, castigado por duas guerras mundiais,
impulsionando a necessidade e a vontade de começar de novo, resgatando valores mais
otimistas. No Brasil, como já indicado, havia o retorno da democracia e a instalação de
um espírito empreendedor que procurava atingir, a todo custo, o desenvolvimento in-
fraestrutural do país.
1 A crítica, originalmente publicada na Imprensa Popular, em 1955, está disponível no catálogo organizado por
Dolores Papa por conta dos cinquenta anos de Rio, 40 graus. Não há referência à página.
Através da análise dessas sequências, é possível perceber no filme uma leitura da favela
como uma face distinta da vida na cidade, enquanto um lugar em que resistem os valores
positivos de cooperação, amizade e altruísmo. Como uma espécie de “vingança” perpetrada
pela narrativa, os vendedores de amendoim – que estão “fora” – são interpostos, aparecendo
em primeiro plano, a todos os “cartões postais”, que simbolizam o “dentro”. É uma espécie de
“contaminação” da paisagem pelas personagens que evidenciam a exclusão social. Ao espec-
tador, refém da construção visual que a narrativa lhe proporciona, não há escapatória: é im-
possível ver o Rio dos cartões postais sem ver também os pequenos moradores das favelas.
O caso do Cristo Redentor é ainda mais significativo, pois o garoto literalmente se sobre-
põe ao monumento, assumindo a mesma posição que a estátua. Sua disposição no quadro,
de braços abertos – como a escultura – cria um entrecruzamento de imagens e signos bas-
tante eloquente. Embora não seja uma imitação proposital, pois em seu discurso ele afirma
querer ser o Super-Homem– e aqui se deve levar em conta que o super-herói evocado voa
com os braços esticados para frente e não para os lados –, em termos visuais essa sobrepo-
sição agrega muitos sentidos à narrativa. Em contraposição às figuras excelsas que evoca, o
menino surge imerso na miséria de ser humano e terráqueo: pesado e limitado.
Outro dado que vale destacar é a força que a natureza ocupa na constituição de Copaca-
bana e do Cristo. Embora surjam como exemplos de domínio técnico – afinal nenhum deles
se mostra acessível sem uma dose de urbanismo – estão longe de significar um aniquilamen-
to da natureza pelos processos de urbanização. Ao contrário, reforçam a superioridade do
elemento natural sobre o construído, quando se pensa em termos de força de representação
no imaginário carioca e brasileiro. Isso porque, mesmo que elementos construídos façam
parte do “cenário”, as pessoas estão lá, em última instância, para fruir a natureza. Seja através
do prazer voyeurístico da vista, seja pelo mergulho – literal – no hedonismo da praia.
A apreensão da natureza americana e, em particular, a do Rio, como “paraíso nos trópi-
cos”, remonta ao século XVI e, tendo passado por inúmeros processos de ressignificação, está
presente ainda hoje em discursos vários sobre a cidade. Em Rio, 40 graus essa imagem é con-
trabalançada pelos meninos, constantemente expulsos ou impedidos de entrar no “paraíso”.
O Rio de 1955 era uma cidade ambígua, que oferecia argumentos abundantes tanto a
Nelson Pereira dos Santos quanto a Meneses Cortes. Apesar de claudicante – sofrendo do
complexo de inferioridade diante do processo de modernização de São Paulo, empreendido
por conta de seu Quarto Centenário – seu protagonismo como laboratório de experiências
urbanísticas e criações culturais ainda era mantido. Importante notar que este é um dos tra-
ços mais fortes da capitalidade carioca, e uma das bases de sustentação de sua capacidade
de representar o país (Azevedo, 2002). No entanto, a cidade sofria com o aumento das fa-
velas, encaradas como “chagas” em sua paisagem, uma flagrante ameaça à sua capitalidade.
Meneses Cortes vinha, desde a década de 1930, construindo uma carreira militar que a
partir de então enveredaria para o campo da política, de onde não sairia até sua morte, em
1962, em um desastre aéreo. Seria ainda eleito deputado federal pela União Democrática
Nacional (UDN), no qual chegaria a ser vice-líder e mesmo líder por um curto período. Já no
fim da década de 1950, com a confirmação da transferência da capital para Brasília, desem-
penhou um papel importante no processo de decisão do destino que o Rio de Janeiro teria
depois de perder o posto de capital.
É certo que ser militar e político não é garantia contra um olhar obtuso, mas de fato esse
não parece ser o caso do secretário de Segurança da capital, como indica sua atuação após
os eventos envolvendo a proibição do filme. Com base nesse percurso, pode-se inferir que
não se tratava de um “imbecil” ou de um “louco”, ou qualquer outro termo pejorativo que
poderia caber à sua figura no calor da hora da defesa do filme de Nelson. Considero mais
adequado interpretar a atitude do coronel como sintoma de um olhar específico lançado à
sociedade e à capital – sem querer, com isso, minimizar sua responsabilidade sobre a ação
autoritária de que lançou mão.
É compreensível que uma figura conservadora como Meneses Cortes, responsável pelo
papel de manter a segurança da capital, apesar de consciente de todos os males, acreditasse
que, na hora de filmá-la, deveriam ser enfocados somente os seus aspectos positivos. Vale
lembrar o comentário irônico de Moacir Werneck Castro, citado anteriormente, em que ridi-
culariza a visão de cidade que o coronel teria – pessoas bem vestidas e refinadas, desfrutan-
do dos prazeres oferecidos por Copacabana. Não à toa, esses traços caricaturais poderiam
ser associados, no imaginário, à ideia de “anos dourados”.
Outro ponto a destacar é o fato de se tratar de cinema, uma espécie de vitrine capaz
de exibir o país para o mundo. É provável que os problemas em si não preocupassem
tanto o coronel quanto a exibição dos mesmos. Assim, Meneses Cortes desejava para
o Rio aquela representação aparentemente despolitizada que a cidade vinha tendo até
então. Mesmo que o tema da liberdade presente na filmografia associada à cidade pu-
desse desagradar ao coronel – ainda hoje é comum que bandidos cinematográficos
escolham o Rio como um abrigo eficiente contra a ação da lei –, não parece haver de
sua parte qualquer problema em relação à imagem cristalizada de cidade com vocação
para a beleza e o prazer. Por outro lado, segundo sua perspectiva, o tema da exclusão
social merecia ser interdito e essa postura não parece estar dissociada de certa reserva
em relação a um discurso que pudesse enaltecer os pobres, o que certamente lhe “chei-
rava” a comunismo.
Quando proibiu Rio, 40 graus, a atuação de Meneses Cortes ainda não estava as-
sociada a uma política partidária, mas já apresentava assumida posição anticomunista,
um dos traços que poderia caracterizar a UDN, partido que o acolheria pouco tempo
depois. Deve-se ressaltar, inclusive, que sua atuação política como chefe do Departa-
mento Federal de Segurança Pública (DFSP), em especial a sua atitude em relação ao
Referências bibliográficas
AZEVEDO, André Nunes de. A capitalidade do Rio de Janeiro: um exercício de reflexão histórica.
In: ______. Seminário Rio de Janeiro: capital e capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultu-
ral/NAPE/DEPEXT/SR-3/UERJ, 2002.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 19/1/2015
Vicente Saul Moreira dos Santos | Historiador, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política
e Bens Culturais do CPDOC-FGV.
resumo
Este artigo aborda a cidade do Rio de Janeiro por ocasião da comemoração dos seus 400 anos,
em 1965, algumas produções editoriais referentes e, especialmente, o livro O Rio de Janeiro em
prosa & verso, organizado por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, lançado pela
editora José Olympio.
abstract
This article focuses on city of Rio de Janeiro on the occasion of the commemoration of its 400
years, in 1965, on some related editorial production, and, more particularly, on the book O Rio
de Janeiro em prosa & verso, organized by Manuel Bandeira and Carlos Drummond de Andrade,
released by the publisher José Olympio.
resumen
1 A mudança da capital federal e a criação do novo estado foram oficializadas pela lei n. 3.752, de 14 de março de
1960.
Sem perder a sua capacidade de alegria, ela (a cidade do Rio) mergulhou de cabeça no
trabalho e está num começo de reconstrução em que as obras valem ainda mais pelo
que significam do que pelo que aparentam. Tudo o que se faz no Rio hoje, tem o senti-
do de uma ressurreição do espírito, de uma criação da inteligência, de uma realização
do esforço do homem, do valor da criatura, da capacidade do brasileiro construir seu
próprio destino e fazer uma grande Nação como foi capaz de fazer uma grande cidade
(Lacerda, 1965, p. 566).
Nesse artigo, publicado no volume organizado por Drummond e Bandeira e que será
analisado adiante, Lacerda seguiu o enfoque de relacionar a cidade e o país. O trabalho
realizado na Guanabara deveria servir como exemplo para todo o Brasil. O governador,
como outros políticos, tinha a percepção da excepcionalidade do estado da Guanabara,
que fora palco de eventos importantes da história brasileira, sede de instituições e caixa
de ressonância em escala nacional e internacional. Nos primeiros anos da década de 1960,
2 A canção, lançada por Aurora Miranda em 1934, ganhou enorme repercussão a partir do carnaval de 1936, sendo
executada nos bailes de carnaval e ao longo dos anos. Em 1908, Coelho Netto publicou no jornal A Notícia um
artigo intitulado “Os sertanejos” que se referiu ao Rio como “Cidade maravilhosa”. Álvaro Moreyra (1991) publi-
cou, em 1923, o livro Cidade mulher que retomou a expressão, além de relacionar o Rio com a figura feminina,
sedutora e capaz de despertar paixões.
3 Entre 1963 e 1965, a Secretaria de Estado de Obras Públicas foi ocupada pelos engenheiros Enaldo Cravo Pei-
xoto e Marcos Tito Tamoyo da Silva. Este último foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro após a fusão
(1975) do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro.
4 O projeto paisagístico ficou a cargo de Burle Marx, que também foi o responsável pelo Parque do Ibirapuera em
São Paulo.
5 O Cruzeiro, 5 dez. 1964.
Capital do país durante dois séculos, e, portanto, ponto natural de convergência dos
filhos de outras regiões, assim como de estrangeiros também atraídos pela vossa con-
dição e as vossas belezas insuperáveis, acostumastes-vos a acolher uns e outros sem,
contudo, perder o espírito local. Soubestes ser, concomitantemente, nacional e cosmo-
polita. De fato, pelo espírito, pelo trabalho, pelas peculiaridades dos seus habitantes,
logrou a vossa cidade conservar aquele traço de orgulho nacional ao mesmo tempo em
que se mantém profundamente ciosa do seu próprio destino.6
O próprio Castelo Branco nasceu em Fortaleza, seguiu carreira na Escola Militar do Rea-
lengo, mantendo longo vínculo com a cidade. Ainda nessa mesma visita ao Rio, o presidente
visitou a obra da adutora do Guandu, em Bangu, uma das principais obras do governo Lacer-
da, e o Aterro do Flamengo. Contudo, Lacerda não teve o apoio esperado do governo federal
no regime militar. O governador retornou à oposição, função que desempenhou muito bem
ao longo de sua trajetória política, e levantou a bandeira da eleição presidencial direta o
quanto antes, pois afinal era um dos maiores interessados.
Lacerda, ciente da importância de seu governo na Guanabara para a cidade e para sua
trajetória política, vai aproveitar o IV Centenário e o fim de sua gestão para publicar o livro
Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos. O volume, sob responsabilidade da Secretaria de
Obras da Guanabara, foi idealizado e organizado pelo engenheiro Fernando Nascimento Sil-
va, e contou com a colaboração de Gilberto Ferrez, Lúcio Costa, Mário Barata, entre outros.
Segundo o prefácio do secretário de Estado de Obras Públicas Enaldo Cravo Peixoto, o livro
teria por “finalidade fixar a história da evolução urbanística do Rio de Janeiro, ao mesmo
tempo em que se buscaria pôr em relevo os nomes daqueles que, nesses quatro séculos,
contribuíram para seu engrandecimento e progresso” (Silva, 1965, p. 13). Seguindo essa lógi-
ca, o artigo “O Rio de Janeiro à época do IV Centenário” enalteceu a trajetória do governador
Lacerda:
A nossa Nova Iorque [...]. Não levarão daqui a nossa vasta baía, as nossas grandezas
naturais e industriais, a nossa rua do Ouvidor. Cá ficará o gigante de pedra, memória
da quadra romântica, a bela Tijuca, descrita por Alencar em uma carta célebre, a Lagoa
Rodrigo de Freitas, a enseada de Botafogo, se até lá não estiver aterrada, mas é possível
que não; salvo se alguma companhia quiser introduzir (com melhoramentos) os jogos
olímpicos, agora ressuscitados pela jovem Atenas... Também não levarão as companhias
líricas, os nossos trágicos italianos (Assis, 1965, p. 498).
A cidade manteria o status de urbe símbolo da nação, bem como os aspectos físicos que
a tornaram famosa, os locais de sociabilidade e as atividades culturais. As possíveis mudan-
ças da paisagem seriam motivadas por grandes eventos, vale lembrar que Machado escreveu
o texto no ano em que foi realizada a primeira Olimpíada da era moderna. Ainda imaginou
o impacto desse tipo de evento para o espaço urbano, uma possível ponte metálica ligando
o Rio à Niterói e a capital federal como capital dos fluminenses num estado chamado de
Guanabara.
O texto seguinte coube a Carlos Drummond de Andrade, escrito pouco antes da mudan-
ça da capital. O escritor mineiro afirmou: “Minha cidade do Rio,/ Meu castelo de água e sol,/
A dois meses de mudança/ Dos dirigentes de prol;/ Minha terra de nascença/ Terceira, pois
foi aqui,/ Em êxtase, alumbramento,/ Que o mar e seus mundos vi” (Andrade, 1965, p. 499).
Drummond reafirmou a cidade do Rio como local de pertencimento, onde descobriu
novos horizontes. Do espaço urbano, dos hábitos cariocas e dos moradores destacou as “fa-
velas portinarescas/ Onde o samba se arredonda”; o claustro de São Bento; o futebol carioca;
os bairros do Andaraí, Méier, Gávea e Tijuca; as ruas de Botafogo; o Cristo Redentor, o Pão de
Açúcar e o Jardim Botânico; assim como “minha igrejinha do Outeiro (da Glória),/ Que Ro-
drigo (Melo Franco de Andrade) zela tanto,/ E entre cujos azulejos/ Esvoaça o Espírito Santo”
(Andrade, 1965, p. 500).
Um carioca que se preza nunca vai abdicar de sua cidadania. Ninguém é carioca em vão.
Um carioca é um carioca. Ele não pode ser nem um pernambucano, nem um mineiro,
nem um paulista, nem um baiano, nem um amazonense, nem um gaúcho. Enquanto
que, inversamente, qualquer uma dessas cidadanias, sem diminuição de capacidade,
pode transformar-se também em carioca; pois a verdade é que ser carioca é antes de
mais nada um estado de espírito. Eu tenho visto muito homem do Norte, Centro e Sul do
país acordar de repente carioca, porque se deixou envolver pelo clima da cidade e quan-
do foi ver... kaput! Aí não há mais nada a fazer. Quando o sujeito dá por si está torcendo
pelo Botafogo, está batendo samba em mesa de bar, está se arriscando no lotação a um
deslocamento de retina em cima de Nélson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Braga ou
Stanislaw Ponte Preta, está trabalhando em TV, está sintonizando para Elisete (Moraes,
1965, p. 501-502).
O carioquismo era e é “mais que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir
completamente em casa, em meio à sua adorável desorganização” (Moraes, 1965, p. 502).
Outras condições se colocam a essa cidadania, como ser notívago; trabalhar com olho no
“telefone, de onde sempre pode surgir um programa”; dar mais importância ao amor que ao
dinheiro e flanar pela cidade.
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GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio, modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV,
1999.
Recebido em 28/11/2014
Aprovado em 19/1/2015
Cezar Teixeira Honorato | Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor da Univer-
sidade Federal Fluminense.
Thiago Vinícius Mantuano | Pós-Graduando do curso de Mestrado no PPGH da Universidade Federal Fluminense.
resumo
Este artigo tem como objetivo clarificar o que foi uma das principais unidades de produção da
operação portuária no Rio de Janeiro durante o século XIX, o trapiche. Presentes até as primeiras
décadas do século XX, os trapiches se confundiam com a paisagem da região portuária, uma das
mais antigas da cidade.
abstract
This article aims to elucidate what was a major production unit of port operations in Rio de Ja-
neiro during the nineteenth century, the “trapiche” [warehouse]. Present until the first decades of
the twentieth century, the “trapiches” were blended with the landscape of the port area, one of
the oldest in the city.
resumen
El artículo tiene por objeto aclarar lo que era una de las unidades de producción más importantes
en la operación portuária en Río de Janeiro durante el siglo XIX, lo “trapiche” [almacén]. Presente
hasta las primeras décadas del siglo XX, los “trapiches” estaban confundidos con el paisaje de la
zona del puerto, una de las más antiguas de la ciudad.
Todos os que têm se dedicado a estudar o porto do Rio de Janeiro ao longo do século XIX
deparam-se com a questão dos trapiches. O que era um trapiche? Qual a sua participação na
operação portuária, no Rio de Janeiro? Onde se localizavam e quantas unidades existiam?
Buscar responder a estas perguntas é um dos objetivos do presente artigo, pois, embora
pareçam simples de serem respondidas, vêm exigindo uma verdadeira garimpagem em di-
versos arquivos e fontes de informação.
A cidade do Rio de Janeiro surge a partir da sua baía, como um porto, graças, em grande
medida, às suas especificidades físicas. Afinal, era demanda fundamental para a navegação
colonial haver um sítio abrigado. No século XVI, uma área litorânea com possibilidade de
atracação, e que não sofria grandes intempéries da natureza, era a garantia de um bom em-
barque e desembarque de mercadorias. O litoral do Rio de Janeiro se adequava a este fim
por ser uma hinterlândia com grande número de pequenas baías, arrecifes, enseadas e ilhas
próximas, protegido de ventos fortes e das grandes vagas marítimas.
Devido a suas características, o recôncavo guanabarino tornou-se também centro de
produção e distribuição de mercadorias, especialmente escravos, para os “sertões de dentro”.
A expansão da mineração e do comércio de escravos ao longo do século XVIII transformou
o Rio de Janeiro em porto fundamental da colônia, como área de abastecimento e de pro-
visões para as viagens de longo curso (alimentos, água etc.) e de carregamento do retorno
de frete (açúcar, ouro e pedras preciosas, por exemplo). Mais ainda, a historiografia constata,
mesmo que de forma controversa, o desenvolvimento de um grupo de negociantes que se
enriquecia no controle destas atividades (Piñeiro, 2002; Fragoso, 1992).
A chegada da Corte ao Rio de Janeiro em 1808 fez com o que o principal sítio que funcio-
nava como porto, o atracadouro em frente ao Paço Imperial na atual praça XV de Novembro,
ficasse saturado frente à nova movimentação de embarcações, mercadorias e pessoas, ao
mesmo tempo em que a expansão de vários trapiches e atracadouros em toda a baía dificul-
tava o controle por parte das autoridades, em especial o trabalho de alfandegagem. Dessa
forma, “obras se tornavam necessárias no Rio de Janeiro, sede da Corte e centro comercial,
para a construção de porto capaz de atender aos novos reclamos. Para isso, o príncipe re-
gente d. João mandou demarcar terrenos nas praias da Gamboa e Saco dos Alferes para a
construção e armazéns de trapiches” (Honorato, 1996, p. 72).
Essas unidades deveriam ser construídas por quem tivesse, em menor tempo, os recur-
sos para tal e poderiam ser alfandegadas, com a permissão para operar exportação e impor-
tação.
A área definida pelo príncipe regente compreendia as freguesias de Santa Rita e Santa-
na, sendo estendida a São Cristovão,1 atuais bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Caju e
1 Santa Rita fora criada em 1721, desmembrada da Candelária; Santana, que fora desmembrada de Santa Rita, foi
criada em 1814; e São Cristovão fora criada em 1856, sendo desmembrada do Engenho Velho.
o trapiche em perspectiva
uma certa solidez das principais firmas que tinham trapiches e sobreviveram a essas
duas crises, atravessando as duas primeiras décadas do nosso recorte, como a Wilson,
Sons & C., a Companhia Docas de Pedro II (que durante sete anos da virada da década de
1870 até meados da década de 1880, chegou a ter três trapiches), as das famílias Lage,
Moss, Cardia e Freitas (Honorato; Mantuano, 2013, p. 9).
A gestão dos trapiches poderia ser conduzida de três formas: a) pelo próprio proprietá-
rio, e isso se dava, majoritariamente, nos casos de pequenas unidades, em especial os que
tratavam de abastecimento da cidade; b) por um administrador especializado contratado
pela empresa, e isso se dava recorrentemente quando o trapiche era uma das unidades de
grandes empresas; c) e através do arrendamento, quando os proprietários transferiam a em-
presas menores a operacionalização do negócio.
Podemos comprovar que essa última opção perdeu força durante a década de 1880,
principalmente devido à crescente importância estratégica das grandes firmas estarem pre-
sente diretamente no porto do Rio de Janeiro.
Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Laemmert, 1870-1902.
2 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 638, registro 9.172. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
[...] a Companhia Brazil Oriental e Diques Flutuantes que adquiriu o Trapiche Carvalho
da tradicional família Freitas; do Lloyd Brasileiro, que chegou a ser proprietário de três
trapiches; da Companhia União de Trapiches, que chegará a ter cinco trapiches, dentre
eles os tradicionais Trapiche da Saúde e do Vapor; a Companhia Geral das Estradas de
3 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 652, registro n. 12.184. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
4 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 131, registro n. 24.009. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
5 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 130, registro n. 23.984. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
Os dados quantitativos de trapiches que dispomos conseguem dar conta da maioria das
unidades que existiam pela região portuária do Rio de Janeiro, mas não de todas. As nossas
fontes omitem a maioria dos trapiches que atuavam privativamente (ou seja, serviam apenas
para o serviço da empresa detentora e não estavam “abertos ao público”), como o Trapiche
Soares Lopes. Também podemos considerar que havia trapiches irregulares ou clandestinos.
Exatamente por tais razões podemos supor que, para além do grande número de trapiches
que apontamos, existiam muitos outros instalados no recôncavo guanabarino.6
Devemos entender o trapiche também na perspectiva da operação portuária, e para isso
é preciso observar que as unidades apenas poderiam funcionar mediante aforamento, con-
cedido pela Câmara Municipal sem critérios estabelecidos previamente.
Nessa operação, o trapiche dependia de várias outras atividades, que conjuntamente
integravam a operação portuária pré-capitalista do porto do Rio de Janeiro durante o oito-
centos (Mantuano; Honorato, 2014). Convém realçar que os agentes e empresas responsá-
veis pelas diversas atividades mal se comunicavam ou conjugavam seus fins, pelo contrário,
constantemente conflitavam-se.
Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Laemmert, 1870-1900.
Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Laemmert, 1870-1904.
8 Brasil. Ministério da Fazenda. Consolidação das leis das Alfândegas e Mesas de Rendas. Rio de Janeiro: Tipogra-
fia Nacional, 1885.
9 Brasil. Ministério da Fazenda. Regulamento das Alfândegas e Mesas de Rendas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacio-
nal, 1894.
Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Laemmert, 1870-1902.
10 Trapiches privativos são os que estavam a serviço apenas de sua empresa proprietária, não abertos a negócios
com outros interessados, portanto não necessitavam de publicidade.
11 Rio de Janeiro (cidade). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Trapiches (licenças). Livro: 50.3.16. Rio de Janeiro:
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
12 Rio de Janeiro (cidade). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Trapiches (licenças). Livro: 50.3.16. Rio de Janeiro:
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
13 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 15, registro n. 2.003. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
conclusão
Referências bibliográficas
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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 21/1/2015
Renato Pereira Brandão | Bacharel em Arqueologia pela Unesa. Mestre em História da Arte pela UFRJ. Doutor
em História pela UFF. Pesquisador colaborador e vice-coordenador do Laboratório de Estudos Socioantropológicos
sobre o Conhecimento e a Natureza (Lesco) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
resumo
Objetivamos demonstrar que a fundação da “vila” de São Sebastião do Rio de Janeiro por Es-
tácio de Sá expressa uma anomalia às normas administrativas da Coroa referentes aos direitos
donatários e caracterização dos espaços urbanos. Discutimos, à luz do contexto de construção
da rede ultramarina, as razões de tais transgressões às normas impostas pela Coroa na América
portuguesa.
abstract
The paper aims to demonstrate that the foundation of the “village” of São Sebastião do Rio
de Janeiro by Estácio de Sá represents an anomaly within the context of the administrative
rules of the Portuguese Crown in respect to the rights of occupation of urban areas. In light of
the construction of an overseas network by Portugal, the paper discusses the reasons for such
transgressions of the rules of geographical occupation.
resumen
Objectivamos demostrar que la fundación de la “vila” de São Sebastião de Río de Janeiro por Es-
tácio de Sá expresa una anomalía a las normas administrativas de la Corona, en lo que se refiere
a los derechos de los donatários de las capitanias y la caracterización de los espacios urbanos
coloniales. Discutimos las razones de tales infracciones a las normas impuestas por la Corona
Portuguesa en América.
Palabras clave: Rio de Janeiro (ciudad) – fundación; villa; ciudad; São Vicente.
Para melhor entendimento, julgamos procedente iniciar por uma abordagem sumária da
categorização das estruturas urbanas nos domínios da Coroa de Portugal e sua normatiza-
ção de implantação na América portuguesa.
Partindo do mais simples, arraial, ao mais complexo, cidade, o primeiro está referido
a uma ocupação de caráter provisório, como um acampamento militar, ou a um local de
aglomeração por conta de atividades festivas. Como, neste último caso, o arraial poderia ser
reconstruído periodicamente, algumas vezes resultava em uma ocupação definitiva.
Um núcleo populacional de caráter definitivo costumava ser identificado como povoado
ou, mais comumente, vilarejo. Originado de um arraial ou pela atração exercida por algum
elemento agregador – moinho, capela, pousada de tropeiros etc., para estes agrupamentos
populacionais não havia uma norma organizacional estabelecida pelo poder régio.
Esta norma se faz efetivamente presente no caso das vilas. Para estas eram necessários
os estabelecimentos de instituições oficiais, representados materialmente pelo prédio da
Câmara e pelo pelourinho. Uma característica marcante da colonização da América portu-
guesa está no fato de, ao contrário do ocorrido na América hispânica, não ter sido criada uma
legislação específica, sendo considerada extensão do Reino. Contudo, havia particularidades
coloniais que resultavam em diferenciações, mesmo na obediência da mesma ordenação.
Uma delas estava no fato de no Reino caber à Coroa elevar um povoado à condição de vila
por concessão de um foral, onde estão normatizados os direitos e deveres da administração:
“a cerca da polícia, juízo, imposto, privilégios e condição civil de cada uma delas” (Franklin,
1816, p. 10).
Os cargos camaristas, inclusive de juiz, eram funções eletivas não remuneradas, ou seja,
isenta de custos para os cofres da Coroa. Cabiam também à Câmara funções tributárias,
como responsável pelos recolhimentos de rendas, tributos e donativos.
As prerrogativas das vilas não se encerravam na conjuntura jurídica administrativa exer-
cida pela Câmara, mas estendia-se à esfera militar e à religiosa.
Assim como no Reino, a vila tinha por função sediar um corpo da tropa de ordenan-
ça, organização militar auxiliar, de caráter defensivo e de preservação da ordem interna
do termo da vila. Formado por convocação temporária, porém compulsória, de moradores
fisicamente aptos na faixa etária de 18 a 60 anos, excluindo alguns, como religiosos e auto-
ridades judiciárias. Apesar de sua relação com a Câmara ser mais bem conhecida no estabe-
lecido pelo Regimento das Companhias de Ordenanças, promulgado por d. Sebastião em
1570 (Mendonça, 1972, p. 157-178), este é um aperfeiçoamento do regimento original feito
ainda no reinado de Afonso V, por sua vez posteriormente aperfeiçoado por d. Manuel, em
1508, (Castro, 1763, p. 371) e por d. João III, em 1549. No Brasil, o donatário, além dos ou-
tros direitos previstos, ocupava o cargo de capitão-mor das tropas de ordenanças das vilas
situadas em seus domínios donatários, razão de ser denominada capitania. Na ausência do
donatário, seu substituto como capitão-mor do corpo de ordenança da capitania era por
ele, ou pela Coroa, designado, enquanto que os oficiais de patentes menores eram desig-
nados pela Câmara.
No aspecto religioso, as vilas contavam necessariamente com uma sé paroquial e seu
respectivo sacerdote, responsável por atender à freguesia referente. Ainda quanto ao reli-
gioso, há de se fazer destaque para uma diferenciação marcante em relação ao Reino, em
respeito à questão do padroado da Ordem de Cristo. Apesar de este poder real sob a ins-
titucionalidade católica no Brasil não encontrar expressão na constituição das vilas, se fará
marcantemente presente, como veremos, na constituição das cidades.
O padroado, a priori, não era atribuído ao rei de Portugal, mas ao mestre da Ordem de
Cristo, sediada em Tomar. Passou a ser atribuição real quando d. Manuel assumiu de forma
hereditária este mestrado.
1 A maior parte dos autores considera haver dúvida se a vila de São Vicente foi estabelecida no espaço da capita-
nia de Martim Afonso de Sousa ou da de seu irmão, Pero Lopes de Sousa. Constatamos, contudo, que, indubi-
tavelmente, estava situada no espaço que fazia parte da capitania deste último, ou seja, na capitania de Santo
Amaro.
A invasão francesa, iniciada em 1555, foi de pronto denunciada por Brás Cuba, capitão-
mor em exercício da capitania de São Vicente. Impotente para fazer frente à força expedi-
cionária francesa, Brás Cuba requisitou reforços ao governador-geral Duarte da Costa, não
sendo por este atendido. Somente em 1560, já na regência de d. Catarina em nome de seu
neto d. Sebastião, o novo governador-geral, Mem de Sá, é incumbido da responsabilidade
de expulsar os franceses da baía da Guanabara. Afinal, como vimos, no caso de uma “invasão
corsária”, tal como a ocorrida na Guanabara, o governador-geral se via obrigado a dar com-
bate, independentemente de qual fosse a capitania.
Em trabalho anterior, ao tratar não da cidade, mas da capitania do Rio de Janeiro, tínhamos
já observado o inusitado fato de Salvador de Sá e Benevides, quando governador do Rio de Ja-
neiro em 1638, ter concedido sesmarias não respaldado no cargo que ocupava, mas como pro-
curador da condessa de Vimieiro, donatária da capitania de São Vicente (Brandão, 2011, p. 7).
Invertendo o direcionamento do problema apontado por Serrão, por constatar que o
capitão-mor de São Vicente, ao conceder sesmaria no Rio de Janeiro em 1565, agiu dentro de
suas prerrogativas legais, consideramos mais procedente questionar, caso realmente assim
o tenha feito, sobre o direito que assistiria a Estácio de Sá para dar cartas de sesmarias na
região da baía da Guanabara e fazer nomeações de cargos camaristas. Acreditamos ser este
o verdadeiro problema que até o presente permanece em suspenso.
Com a chegada dos reforços, trazidos pelo governador-geral Mem de Sá em 1567, se deu
o embate final com os franceses, resultando na expulsão destes e na morte de Estácio de Sá.
Neste embate, teve participação decisiva os indígenas da “nação” temiminó liderados por
Arariboia. E vale notar que, em consonância com a política expressa no referido Regimento
do governo-geral, esta tropa indígena fora deslocada do aldeamento jesuítico de São João,
estabelecido na capitania do Espírito Santo (Brandão, 1993, p. 160).
Ao recuperar o controle da baía da Guanabara, Mem de Sá transfere a sede da adminis-
tração municipal para o alto do morro do Castelo, passando a dar continuidade às nomea-
ções dos cargos camaristas e concessões de sesmarias.
O governador-geral justifica a legalidade dessas ações administrativas com base nos po-
deres concedidos em seu Regimento. Contudo, em uma carta de sesmaria, datada de outu-
Vimos que, em obediência às normas então vigentes, para que fosse estabelecida uma
vila na baía da Guanabara, se fazia necessário que Estácio de Sá nela chegasse com poderes
concedidos por Martim Afonso de Sousa para tal. Somente após estabelecida a Câmara, e na
condição de capitão da nova vila, iniciaria as concessões de sesmarias, restritas ao espaço
do termo da vila. Estabelecida, consolidada e engrandecida, a sua passagem à categoria de
cidade deveria ser feita por uma ordem régia, nos moldes da expedida por d. João V para
São Paulo, em 1711, ou ainda indiretamente, quando elevada ao foro de bispado, conforme
ocorrido com Olinda, em 1676.
Desse modo, o núcleo estabelecido por Estácio de Sá no sopé do morro Cara de Cão não
poderia passar de um vilarejo. Contudo, apesar de não ter poderes para tal, fez ele, segundo
consta, nomeações de cargos camaristas e concessões de sesmarias. Mém de Sá, ao trans-
ferir a sede do núcleo para o morro do Castelo, prosseguiu nas nomeações e concessões, já
se referindo ao núcleo urbano como cidade, apesar de seu Regimento só fazer referência a
uma única cidade, a de Salvador. Finalmente, o rei d. Sebastião legitimou a categorização de
cidade para o Rio de Janeiro, não por concessão de foral, mas ao fazer nomeações de oficiais
régios. Pouco após, a incipiente cidade é elevada à condição de prelazia, apesar de haver
nela tão somente uma única paróquia. Contudo, somente na segunda metade do século
seguinte passou a abrigar uma sede diocesana.
Pouco antes das nomeações régias, quando o Rio de Janeiro era ainda um pequeno nú-
cleo encimado no morro do Castelo, o reitor do Colégio de Salvador da Companhia de Jesus
no Brasil, ao receber determinação de estabelecer um Colégio em São Vicente, toma a de-
Uma versão resumida deste artigo foi apresentada sob o título A enigmática fundação do Rio de
Janeiro: de arraial vicentino à cidade desprovida de foral e poder episcopal, no XVI Simpósio
Regional de História ANPUH/RJ, em julho de 2014.
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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 14/1/2015
Judite Paiva Souto | Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universida-
de Federal Fluminense.
resumo
Criada em 1755, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador integrava, du-
rante o século XIX, as “freguesias de fora” ou “suburbanas” da cidade e as principais atividades
desenvolvidas eram a pesca e a produção de cal. Neste artigo, buscaremos abordar aspectos do
cotidiano de escravos e de trabalhadores livres da Ilha do Governador no contexto do Rio de
Janeiro oitocentista.
abstract
Created in 1755, the parish of Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador integrated, during
the nineteenth century, the “freguesias de fora” [outside parishes] or “suburbanas” [suburbans
parishes] of the city, and the main economic activities were fishing and lime production. In this
article, we address everyday aspects of the life of slaves and free workers of Ilha do Governador
in the context of Rio de Janeiro in the nineteenth century.
resumen
Durante o século XIX o Rio de Janeiro passou por significativas transformações, a come-
çar por aquelas decorrentes da vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Nesse
período, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador (1755) integrava as
“freguesias de fora” ou “suburbanas” da cidade (Santos, 1907, p. 192-194). Sua denominação
é uma referência ao sesmeiro Salvador Correia de Sá, proprietário do primeiro engenho de
açúcar no local e governador da cidade durante os anos de 1568-1572 e 1578-1599 (Abreu,
2010, p. 77). Vejamos alguns aspectos políticos, econômicos e culturais desta freguesia com
ênfase no cotidiano da Corte.
a freguesia de nossa senhora da ajuda da ilha do governador
Candelária, São José, Sacramento, Santa Rita e Santana constituíam as principais fregue-
sias urbanas do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Enquanto aqueles com
mais recursos concentravam-se nas duas primeiras, a população menos abastada residia em
Santa Rita e Santana, originando o que hoje são os bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa
(Benchimol, 1992, p. 26).
Quanto às freguesias rurais, as mais distantes mantiveram-se como fornecedoras de gê-
neros agrícolas. As mais próximas, inicialmente visitadas apenas nos fins de semana pelos
mais endinheirados, progressivamente passaram a local de residência permanente. Esse foi
o caso do atual bairro de Botafogo e dos bairros das Laranjeiras, Glória e Catete, integrantes
da freguesia da Glória em 1834 (Abreu, 2006, p. 37).
A freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, segundo a memória manuscrita de 1870 do pro-
fessor Antônio Estevão da Costa e Cunha,1 estava divida em seis fazendas ou seções: Fregue-
sia, Fazenda de São Bento, Fazenda da Bica, Fazenda Amaral, Fazenda da Ribeira ou Juquiá e
Fazenda da Ponta do Tiro até Cocotá (Cunha, 1870).
A Freguesia incluía o atual bairro de mesmo nome, Bancários e parte do Tauá. Nela esta-
va situada a Matriz de Nossa Senhora da Ajuda, cuja data de construção antecede o ano de
1710.2 Seus principais proprietários eram João Coelho da Silva, Emília Guedes e os herdeiros
de Manoel José Rosa. A localidade possuía cerca de noventa fogos; mais de uma fonte de
água, uma delas nas terras de João Rodrigues Carrilho, conhecida como Carioca, e dois ce-
mitérios, um da paróquia e outro da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador. Das seis fábricas de cal, apenas uma não
estava em funcionamento em 1870.
1 Antônio Estevão da Costa e Cunha, natural da Bahia, foi autor de obras didáticas e atuou na Instrução Pública
da Ilha do Governador (Schueler, 2008; Almanak Laemmert, 1882-1889).
2 A paróquia foi criada em 1710, em capela sob a mesma invocação edificada por Jorge de Sousa (o Velho) e pos-
teriormente ampliada (1743) (Araújo, 1946, p. 79).
3 O Suburbano, 15 de outubro de 1900. Segundo notícia do Jornal do Commercio, de 14 de julho de 1935, a Colô-
nia São Bento teria dado espaço à Escola João Luiz Alves, hoje administrada pelo Degase (Departamento Geral
de Ações Socioeducativas), órgão vinculado à Secretaria de Educação do Estado.
transportes
A navegação marítima era a única forma de acesso para a Ilha do Governador durante
o oitocentos. Inicialmente, embarcações a vela e a remos faziam a ligação da área central
da cidade com a ponta do Galeão. Em 1838, os barcos da Companhia da Piedade passaram
a atender regularmente os passageiros do local (Los Rios Filho, 2000, p. 145). Desde pelo
menos 1844 esta companhia empregava barcos a vapor, viajando, na mesma embarcação,
passageiros, cargas e animais (Navegação...).
Em 1861, as embarcações particulares eram compostas principalmente de barcos (50)
e catraias (7). Embora apenas 58 embarcações possuíssem registro no Conselho da Inten-
dência nesse ano – 54 pertencentes a fabricantes de cal –, é provável que o número tenha
sido maior, uma vez que a atividade desenvolvida pela maioria da população era a pesca
(Embarcações...).
No mesmo ano, a Companhia Niterói e Inhomirim anunciava que as suas barcas para o
porto de Estrela (no atual território do município de Magé) tocariam a Ilha do Governador
(Diário do Rio de Janeiro, 1o de dezembro de 1861). As embarcações a vapor partiam diaria-
mente do cais da praia dos Mineiros às onze horas da manhã e retornavam às três horas da
tarde. Seus preços variavam para pessoas calçadas maiores (1$500 réis) e menores (500 réis)
de doze anos; pessoas descalças maiores (640 réis) e menores (320 réis) de doze anos e por
cabeça de gado. Cavalos, bois e burros custavam 3$000 a seus proprietários e ovelhas, por-
cos e cabras, 320 réis cada. Não havia abatimento de preços para passageiros que desciam
na Ilha do Governador.4
O transporte que ligava a Ilha do Governador diretamente às freguesias centrais da Cor-
te não parecia muito frequente ou regular. Em 1870, as catraias dos “Correios” partiam em
direção à cidade às cinco ou seis horas da manhã, dependendo da estação climática, e de lá
retornavam às treze horas (Cunha, 1870).
Em 1875, a Companhia Bonds Marítimos anunciava duas lanchas para as viagens da pon-
te Mauá até Paquetá e Ilha do Governador, apenas nos domingos e dias santos (O Globo, 20
4 Almanak Laemmert, 1861, p. 406. A praia dos Mineiros estava situada entre a alfândega e o Arsenal de Marinha,
na freguesia da Candelária (Moraes, 1872, p. 308).
5 Gazeta de Notícias, 13 de maio de 1876; 10 de julho de 1876; 14 de julho de 1876; 7 de junho de 1879; 8 de junho
de1879; 4 de fevereiro de 1882; 7 de dezembro de 1883.
Água
Caiu na 3ª discussão do orçamento da indústria, na Câmara dos Deputados, uma emen-
da apresentada pelo sr. dr. Sá Freire, autorizando o governo a abastecer de água potável
a Ilha do Governador [...] é com tristeza que declaramos aos moradores desta Ilha que
a Câmara dos senhores deputados entendeu ainda este ano não precisarmos de água
potável. 7
Eclesiásticos 1 - 1 - - - 1
Militares - - - - - - -
Empregados públicos 6 1 7 - - - 7
Profissão literária 1 - 1 - - - 1
Comerciantes 59 - 59 - - - 59
Capitalistas 0 - - - - - -
Proprietários 4 4 8 - - - 8
Lavradores 55 4 59 23 34 57 116
Agências 1 - 1 15 - 15 16
8 O Suburbano, 1o de março de 1900, 15 de março de 1900, 15 de abril de 1900, 1o de maio de 1900, 15 de maio de
1900, 1o de julho de 1900, 15 de julho de 1900.
9 O Suburbano, 15 de março de 1900.
10 Brasil. Ministério dos Negócios do Império. Relatórios do Ministério dos Negócios do Império, apresentados à 2ª
e 3ª Sessão da 14ª Legislatura pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro: Imp.
Nacional, 1870-1871. Levantamento de M. B. Levy (Lobo, 1978, p. 430-431).
No dia 24 do mês corrente, terá lugar a última praça em audiência do Exmo. Sr. Dr. juiz de
órfãos, dos seguintes bens, pertencentes ao inventário de Constâncio José Rosa, a saber:
10 escravos, alguns dos quais são perfeitos trabalhadores no fabrico da cal, calafates,
1 cozinheiro e mais móveis, e 5 barcos: as avaliações acham-se no cartório do escrivão
Pires Ferrão, cujos bens podem ser vistos na Ilha do Governador, na praia do Bananal
(Correio Mercantil, 22 de novembro de 1862).
11 Falamos em aproximação, uma vez que o número é baseado em documento de 1870 (Cunha, 1870).
12 A referência foi dada pelo conselheiro dr. Tavares em sessão da Academia Imperial de Medicina, de 1º de setem-
bro de 1862 (Annaes Brasilienses de Medicina).
50$000
Fugiu no dia 1º de abril de 1878 o escravo Joaquim Magina, cor preta, africano, idade 50
anos, altura regular, tem alguns cabelos brancos, mas ainda está forte, foi escravo da vi-
úva Guedes, com caieira na Ilha do Governador, e andava nos barcos de cal: desconfia-se
que esteja para os lados de Icaraí, Praia Grande; onde tem uma preta que lha dá couto ou
cozinhando oculto em alguma casa visto entender de cozinha, quem der notícias dele
à rua do Propósito n. 1, receberá a quantia acima (Gazeta de Notícias, 14 de novembro
de 1879).
Escravos fugidos buscavam refúgio com protetores que lhes eram solidários ou que
precisavam muito de seus serviços. A suspeita de que uma “preta” dava abrigo a Joaquim
Magina pode estar relacionada ao frequente auxílio ofertado a escravos fugidos por seus
amigos, parentes e amantes (Soares, 2007, p. 241). A necessidade também levava muitos
patrões a esconder fugitivos entre seus próprios escravos, correndo o risco de serem presos.
Assim se justifica a suspeita refletida no anúncio de que Joaquim poderia estar oculto em
alguma casa prestando serviços de cozinheiro (Karasch, 2000, p. 407). A fuga de Magina aos
cinquenta anos tampouco constitui novidade, pois mesmo que predominasse a escapada
de indivíduos com vinte a quarenta anos, não era difícil encontrar entre os fugitivos, idosos
e crianças (Soares, 2007, p. 238).
Ao longo do século, as formas de resistência dos escravos foram as mais diversas, a
exemplo das fugas, agressões a senhores, ações judiciais e interferência na venda de sua
força de trabalho. Buscavam a liberdade ou apenas melhorar o cotidiano, procurando estar
perto de familiares (Chalhoub, 2009, p. 175-233). Embora resquícios da escravidão tenham
permanecido na sociedade, a abolição do trabalho cativo em 1888 colocou em outro pata-
mar a relação entre trabalhador e proprietário de terras, possibilitando ao primeiro buscar
com mais ferramentas o exercício de seus direitos civis.
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Recebido em 29/11/2014
Aprovado em 22/1/2015
Amanda Danelli Costa | Professora adjunta do Departamento de Turismo do Instituto de Geografia da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Graduada em História pela Uerj. Mestre e doutora em História Social da
Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
resumo
A principal imagem turística do Rio de Janeiro está relacionada à sua paisagem urbana e, desde
os anos 1920, é conhecida como cidade maravilhosa. A pesquisa em guias e mapas turísticos do
início do século XX contribuiu para a análise da formação e transformação da imagem turística
da cidade.
abstract
The main touristic image of Rio de Janeiro is related to its urban landscape and, since 1920s,
the city has been known as the wonderful city. Research in the travel guides and maps of Rio
de Janeiro of the beginning of the 20th century has contributed to the analysis of the formation
and transformation of the city’s touristic image.
resumen
La principal imagen turística de Rio de Janeiro está basada en su paisaje urbana, y desde los
años 1920, es conocida cómo la ciudad maravillosa. La investigación en las guías y mapas de
viaje de los primeros años del siglo XX contribuye para una análisis de la formación y transfor-
mación de la imagen turística de Rio de Janeiro.
Palabras clave: Rio de Janeiro; cultura urbana; imagen turística; guias de viaje.
A centralidade da cidade capital, na virada do século XIX para o XX, ao mesmo tempo
em que possibilitava a concentração de tantos literatos também estimulava que a própria
1 A geração de 1870 compreendeu intelectuais que contribuíram, através literatura, tanto para a criação de novas
formas de ação política como para o desenvolvimento de uma compreensão da nação brasileira e suas práticas
sociais e culturais, em meio à crise do império brasileiro. Ver Alonso, 2002, p. 392.
2 A expressão “cidade das letras” se inspira nos argumentos do historiador uruguaio Angel Rama, e em seu livro
“A cidade das letras”, na medida em que ele observa que os grupos intelectuais – por vezes coincidentes com os
grupos dirigentes – são capazes de construir uma cidade que coexiste em relação à cidade real, visto que é esse
grupo o responsável por produzir a esfera simbólica da cidade.
3 Aqui, compreendemos “excentricidade” como uma característica dos bairros afastados do Centro e da Zona
Sul, que, pouco a pouco, se tornavam o centro das atenções da abastada burguesia carioca e dos visitantes da
cidade do Rio de Janeiro.
A imagem que se fixou do Rio de Janeiro, findo o século XX, é a da cidade que se destaca
em razão da beleza da sua paisagem urbana. Freire-Medeiros e Castro (2013, p. 34) são con-
clusivos ao afirmarem que “o que hoje é percebido como uma ‘natureza turística’ da cidade
é, portanto, apenas um momento de um longo processo de construção cultural, sempre ina-
cabado”. Antes, no início do século XX, a imagem de divulgação mais comum da cidade era
justamente a visão que se tem a partir da entrada da baía de Guanabara, de onde se avistava
o desenho das montanhas que limitavam a área urbana central, onde o visitante iria aportar
e de onde partiria para conhecer a cidade. Naquele momento, os turistas chegavam ao Rio
por mar e a primeira vista que tinham da cidade era precisamente essa. Ao longo dos anos,
com a expansão urbana em direção aos bairros atlânticos, bem como a evolução tecnológica
que passou a introduzir as viagens aéreas, o ponto de vista pelo qual se toma o panorama da
cidade do Rio de Janeiro se desloca paulatinamente da baía de Guanabara para o Atlântico,
o que se pode observar a partir de uma análise de alguns dos guias e mapas turísticos da
cidade, que circulavam nas primeiras décadas do século XX.
A publicação de guias turísticos sobre a cidade do Rio de Janeiro nos ajuda a acompa-
nhar a transformação do modo como a cidade foi vista e apresentada aos visitantes ao longo
do último século. Charles Morel e Henrique Morel, por meio do Guide de L’Etoile du Sud: La
ville de Rio de Janeiro, queriam tornar a cidade conhecida dos europeus. Escrito em portu-
guês e francês, a primeira edição do guia é de 1897, feita pelo pai, Charles Morel, e a segunda
edição, de 1905, contou com a colaboração do filho, Henrique Morel. Como era costume, o
guia traz uma breve história da cidade e fotografias de alguns políticos da época, como as do
prefeito Pereira Passos e do presidente Rodrigues Alves.
Chamam a atenção alguns aspectos muito particulares: a presença de aconselhamento
sobre cuidados com a higiene e saúde, como, por exemplo, evitar a exposição ao sol, tomar
Nestes últimos vinte anos desde a administração do prefeito Pereira Passos à adminis-
tração atual do prefeito Carlos Sampaio, as grandes obras de higiene e embelezamento
converteram a antiga cidade colonial, de ruas estreitas, iluminação deficiente e cons-
truções antiquadas, numa metrópole moderna, profusamente iluminada, excelente cal-
çamento de asfalto, construções magníficas e largas avenidas arborizadas e formosos
jardins públicos (Guia Oficial da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, 1922, p. 285).
Com esses exemplos conseguimos observar como a imagem da cidade mudou em de-
corrência de todo tipo de transformações que ela viveu. A mudança da imagem da cidade
para os próprios cariocas e para os estrangeiros alterou também a experiência turística que
se experimentou no Rio de Janeiro ao longo do século XX. Enquanto nas primeiras décadas
do século XX os guias destacam a vista da baía de Guanabara e a visita ao Centro e seus mo-
numentos e edifícios, nas últimas décadas desse século se observa que o destaque passa a
ser as praias da Zona Sul e os mirantes do Pão de Açúcar e do Corcovado. Os indícios que a
pesquisa nos guias e mapas turísticos da cidade nos dão são de que essa mudança na ima-
gem turística, que resulta de uma mudança na concepção de cidade maravilhosa, se inten-
sificou e consolidou entre os anos 1930 e 1970. Celso Castro (1999, p. 84) pondera que “não
se trata de uma relação de determinação direta, e sim de interação: às vezes muda a cidade,
muda o turismo; outras vezes, a partir de modificações no mundo do turismo, introduzem-
se alterações urbanísticas na cidade.” A imagem turística da cidade do Rio de Janeiro se viu
transformada na medida em que a cidade das letras de princípios do século XX, sediada no
Centro da cidade, passou a concorrer com a expansão da área urbana e o desenvolvimento
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Recebido em 27/11/2014
Aprovado em 15/1/2015
Luciana Duranti | Diretora do Master on Archival Studies da Universidade de British Columbia, Vancouver, Canadá.
Diretora do Projeto InterPARES, pesquisa internacional multidisciplinar sobre preservação de documentos digitais
autênticos.
resumo
Este artigo constitui o quinto de uma série de seis publicados na revista Archivaria, da Asso-
ciação dos Arquivistas Canadenses, em 1991, sob o título: “Diplomática: novos usos para uma
antiga ciência”. Nessa quinta parte, a autora aborda a questão da análise diplomática aplicada à
forma documental. Entendida pelos diplomatistas como um meio de compreender os atos que
geram os documentos, a forma em que se apresentam torna-se objeto de análise desses estu-
diosos, que estabelecem uma metodologia: a decomposição dessa forma nos seus elementos
intrínsecos e extrínsecos.
abstract
This is the fifth in a series of six articles published in Archivaria, the journal of the Association of
Canadian Archivists, in 1991, under the title “Diplomatics: new uses for an old science”. In this fif-
th part, the author addresses the issue of diplomatic analysis applied to the documentary form.
Since diplomatists see documentary form as a means to understand the actions that generate
documents, their form becomes the object of analysis of these scholars, who establish a me-
thodology that includes the decomposition of this form in its intrinsic and extrinsic elements.
resumen
Este artículo es el quinto de una serie de seis, publicado en la revista Archivaria, de la Asociaci-
ón de Archiveros de Canadá, en 1991, bajo el título: “Diplomática: nuevos usos para una vieja
ciencia”. En él, el autor aborda el análisis diplomático aplicado a la forma documental. Los diplo-
matistas ven la forma documental como un medio para comprender las acciones que generan
documentos, la forma se ha convertido en el objeto de análisis de estos estudiosos, los cuales
establecen una metodología: la descomposición de esa forma en sus elementos intrínsecos y
extrínsecos.
A forma de um documento revela e perpetua a função a que serve. Com base nessa
observação, diplomatistas antigos estabeleceram uma metodologia para analisar formas
documentais que permitiram a compreensão de ações administrativas e as funções que as
geraram. Essa metodologia baseou-se no entendimento de que, apesar das diferenças quan-
to à origem, procedência ou data, todos os documentos apresentam formas bastante seme-
lhantes para possibilitar a concepção de uma forma documental típica, ideal, mais regular e
completa, com o propósito de examinar todos os seus elementos.1 Uma vez identificados os
elementos dessa forma ideal e suas funções específicas, as variações e presença ou ausência
nas formas documentais existentes irão revelar a função administrativa dos documentos que
manifestam aquelas formas.
A diplomática define forma como o conjunto das regras de representação utilizadas para
enviar uma mensagem, isto é, como as características de um documento que podem ser se-
paradas da determinação dos assuntos, pessoas ou lugares específicos aos quais se referem.
A forma documental é tanto física quanto intelectual. A expressão forma física refere-se ao
layout externo do documento, enquanto o termo forma intelectual refere-se à sua articula-
ção interna (Duranti, Summer 1989, p. 15). Assim os elementos da primeira são definidos
por diplomatistas como externos ou extrínsecos, enquanto os elementos da segunda são
definidos como internos ou intrínsecos (Giry, 1893, p. 493; Pratesi, s.d., p. 52; Carucci, 1987, p.
98). Do ponto de vista conceitual, pode-se dizer que os elementos intrínsecos da forma são
os que fazem um documento ser completo, e os elementos extrínsecos são os que o fazem
perfeito, isto é, capazes de atingir seu objetivo.2
Este artigo vai apresentar e discutir os elementos extrínsecos e intrínsecos da forma do-
cumental, e mostrar sua relação com ações e funções administrativas.
1 Boüard escreve que a composição análoga e as características comuns de diferentes documentos devem-se ao
fato de que a maior parte das formas documentais tem sua origem na epístola romana (Boüard, 1929, p. 255).
Giry escreve: “en dépit des différences du droit, des coûtumes et des usages, en dépit de nombreuses modi-
fications dues aux circonstances particulières, aux influences locales, aux temps, ou même au caprice et à la
fantaisie, il y a dans lês chartes de toutes lês époques et de tous lês pays suffisamment de caracteres communs
pous qu’il soit possible d’en faire un étude méthodique” (Giry, 1893, p. 481).
2 Comparar com o conceito de originalidade explicado em Duranti, Summer 1989, p. 19.
3 Este aspecto é especialmente tratado por Boüard, 1929, p. 224 e Giry, 1893, p. 493.
as ideias expressas neles e as categorias de fatos com os quais se relacionam são necessa-
riamente limitadas em número, e reaparecem com muita frequência nos documentos do
mesmo tipo. Além do mais, e porque é importante discernir com facilidade a mensagem
essencial num documento, ideias e fatos são arrumados numa determinada ordem que
promove uma fácil compreensão. Finalmente, porque a expressão e a organização (da-
quelas ideias e fatos) devem acontecer de tal modo que não possam ocorrer equívocos e
mal entendidos, nem qualquer necessidade de se voltar ao assunto, expressões específi-
cas e frases inteiras são escolhidas e transformadas em fórmulas (Giry, 1893, p. 480).
Desde o início da Idade Média, a arte da composição e estilo foi matéria de ensino re-
gular, que determinou o desenvolvimento de um tipo de retórica documental, chamado ars
dictaminis ou dictamen. Teóricos estabeleceram suas regras, que se destinavam a direcionar
a composição, estilo e ritmo de todo tipo de documento público, contrato privado e corres-
pondência de família ou institucional. Os vários tratados resultantes costumavam ser acom-
panhados de conjuntos de modelos e exemplos, ou de cópias de documentos, reunidos com
o propósito de mostrar a aplicação da doutrina. Esses volumes, normalmente utilizados pe-
las autoridades públicas, tabeliães e todos os que precisavam se comunicar pela escrita eram
chamados de formularia.4 Sua produção diminuía gradualmente com o desenvolvimento da
educação elementar, mas ainda são criados hoje para uso de alguns profissionais envolvidos
na criação de tipos de documentos, cuja linguagem é altamente padronizada e controlada,
4 Para uma ampla discussão sobre o dictamen e a formularia, ver Boüard, 1929, p. 241-252 e Giry, 1893, p. 479-492.
5 Algumas coleções de cópias de documentos foram reunidas por diplomatistas que, preocupados com a ausên-
cia ou perda de formularia durante alguns períodos históricos, sentiram a necessidade de possuir modelos que
pudessem ser comparados aos vários documentos a serem analisados e identificados quanto à forma e função.
Hubert Hall oferece um exemplo em Hall, 1969a.
6 Para uma discussão sobre esse tema ver Carucci, 1987, p. 14-16.
7 Pratesi, s.d., p. 56-58. Giry considera os sinais especiais como parte integral da validação de um documento, e
portanto discute-os associados às subscrições e assinaturas, isto é, no contexto de “atestação”, que é um ele-
mento intrínseco da forma (Giry, 1893, p. 591).
8 Para amplas discussões sobre selos sob o ponto de vista diplomático, ver Giry, 1893, p. 622-660 e Boüard, 1929,
p. 333-365.
9 A fase de execução de um procedimento administrativo “é constituída por todas as ações que dão caráter for-
mal à transação” (Duranti, Winter 1990-1991).
10 Quando a data de autenticação é diferente da data em que o documento foi compilado e aparece entre os
elementos intrínsecos da forma documental, a primeira é considerada a data efetiva do documento, para os
propósitos legais de evitar fraude.
11 O registro não é um requisito “formal” para qualquer documento. Para documentos privados, o registro só é
exigido para fins fiscais, ou para tornar o documento público. Portanto, os documentos estão “formalmente”
completos e efetivos sem o registro.
material
formato
preparo para receber a mensagem
layout, paginação, formatação
Suporte: tipos de texto
diferentes tipos de caligrafias, datilografias
ou tintas
parágrafos
pontuação
abreviaturas e iniciais
emendas e correções
Texto: software de computador
fórmulas
vocabulário
dissertação
Linguagem: estilo
tipologia
legenda ou inscrição
Selos: método de afixação
autenticação
registro
Anotações incluídas na fase de execução: sinais ao lado do texto
ações anteriores ou futuras
datas de depoimentos ou leituras
notas de transmissão
destinação
assunto
incluídas na fase de manuseio: “urgente”
“chamar a atenção”
número de registro
número de classificação
referências cruzadas
incluídas na fase administrativa: data e setor de recebimento
identificadores arquivísticos
12 Diplomatistas franceses e alemães usam os termos “protocolo inicial” e “protocolo final” para a primeira e ter-
ceira seções do documento. A palavra protocolo deriva do grego protokollon, que significa “o primeiro a ser
colado,” e se refere ao primeiro plagula ou tira do rolo de papiro. Portanto, diplomatistas italianos consideraram
a expressão “protocolo inicial” um pleonasmo, e a expressão “protocolo final” uma contradição em termos, en-
tão resolveram chamar a primeira seção simplesmente de “protocolo”, e a terceira, por analogia, “escatocolo,” do
grego eschatokollon, que significa “o último a ser colado” (Pratesi, s.d., p. 63).
13 É interessante notar que o registro italiano, onde os dados essenciais dos documentos recebidos e expedidos
são transcritos, é chamado de “protocolo”. Esta é provavelmente uma consequência do fato de que os dados
extraídos dos documentos para registro são os contidos em seu protocolo.
14 É fato que, com o tempo, todos os elementos conectados ao contexto tendem a se transferir para o protocolo,
e os únicos elementos restantes no escatocolo são a validação e algumas cláusulas finais. Com a evolução
tecnológica, a validação algumas vezes se transferiu para o protocolo, e a subscrição no escatocolo parece ser
mais uma formalidade do que uma atestação real; considere, por exemplo, o telegrama e o correio eletrônico.
Independentemente da tecnologia, algumas formas documentais tendem a apresentar um escatocolo vazio ou
quase vazio; considere, por exemplo, o memorando.
15 Ao se analisar documentos que atestam ações de obrigações recíprocas, em que cada parte é tanto autor quan-
to destinatário, os diplomatistas convencionaram que a primeira parte é o autor e qualquer outra é o desti-
natário. Portanto, o nome, título e endereço da primeira parte constituem o sobrescrito de todo documento
contratual. Ver Duranti, Summer 1990, p. I7.
16 Para discussão sobre as fases de um procedimento, ver Duranti, Winter 1990-1991, p. 14.
17 As cláusulas de advertência e as cláusulas promissórias são chamadas por alguns diplomatistas, respectivamen-
te, de sanções negativas e sanções positivas.
18 Para uma discussão mais profunda das cláusulas finais, ver Giry, 1893, p. 553-572 e Boüard, 1929, p. 277-292.
titulação
título
data
invocação
Os elementos intrínsecos listados acima não aparecem todos ao mesmo tempo na mes-
ma forma documental, e alguns deles são mutuamente exclusivos. De acordo com Hubert
Hall, um documento oficial inglês típico do período medieval inclui o seguinte:
19 Para uma discussão sobre os vários sinais de validação de um documento, ver Giry, 1893, p. 591-621 e Boüard,
1929, p. 321-333. Para a identificação de pessoas que assinam um documento, ver Duranti, Summer 1990, p.
5-12.
20 Neste modelo rígido, os comentários que se referem a elementos únicos da forma documental sob análise ou a
componentes únicos da análise diplomática aparecem em notas de rodapé. São identificados por letras se os comen-
tários que contêm forem de natureza diplomática, e por números se os comentários forem de natureza histórico-
jurídica.
21 Mesmo que os originais dos documentos criticados acima estivessem disponíveis para o autor, eles não o se-
riam para os leitores, então parece um exercício inútil comentar algo que não pode ser visualizado.
Elementos intrínsecos:
22 A apreciação é definida como um desejo ou oração para a realização da intenção do documento. Este documento
apresenta duas apreciações, uma das quais é expressa no final do texto em estilo moderno, e a outra no início do
escatocolo na forma tradicional da invocação. Na crítica diplomática formal, este comentário, sendo de natureza
diplomática, seria introduzido por uma letra. No presente contexto, isto é evitado, a fim de não criar confusão.
23 A argumentação por trás da identificação das pessoas é ilustrada em Duranti, Summer 1990, p. 8-9.
24 Para as definições de ação simples e norma de procedimento composta ver Duranti, Summer 1990, p. 75-76. Para a de-
finição de fase inicial ver p. 115. Tanto a simples ação de pedir informação quanto o processo de oferecer serviço de
referência são ações jurídicas, porque suas consequências são levadas em consideração pelo sistema jurídico no qual
acontecem. Se o destinatário da solicitação não agisse sobre ela, teria incorrido em “negligência de um dever oficial”.
25 As anotações no documento mostram que foi recebido pelo destinatário, registrado, classificado, e depois en-
viado à pessoa responsável pela ação. O assunto do documento é escrito à mão em italiano, e o autor do
documento é apontado por uma seta, provavelmente para enfatizar os dois elementos essenciais ao acompa-
nhamento do serviço. Este documento é uma carta porque o teor do discurso é moldado na epístola clássica,
apresenta expressões subjetivas (o autor está na primeira pessoa) e o destinatário é identificado. É pública
porque participa de um processo público (o Archivio Centrale dello Stato é uma instituição pública onde o ser-
viço de referência é obrigatório por lei). Também se pode dizer que seu autor é uma instituição pública dentro
do sistema jurídico indígena, ver Duranti, Summer 1990, p. 102-105. Este é um documento dispositivo porque
coloca em vigor o ato de petição (e claro, é dispositivo somente em seu status original).
26 Quando a data de recebimento é desconhecida, geralmente é acrescentada à “área do documento” da descrição
diplomática, precedida pelas iniciais d.a. (data do arquivo).
Elementos intrínsecos:
Qualificação
das assinaturas: Subsecretário de Interior, Comissário de Patentes, Duell27
27 Esta contra-assinatura tem a função de atestar a regularidade do processo de formação e das formas do docu-
mento, enquanto a assinatura do escritor atesta que a ação no documento está de acordo com a vontade da
autoridade.
Este artigo foi publicado na revista Archivaria, n. 32, Summer 1991. Tradução de Jerusa Gonçalves
de Araújo e revisão da tradução de Rosely Curi Rondinelli e Jorge Phelipe Lira de Abreu.
Referências bibliográficas
BOÜARD, Alain de. Manuel de Diplomatique Française et Pontificale: diplomatique générale. Pa-
ris, 1929.
CARUCCI, Paola. Il Documento Contemporaneo: diplomatica e criteri di edizione. Roma, 1987.
Recebido em 27/11/2014
Aprovado em 8/12/2014
Maria Cristina Nascentes Cabral | Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e coordenadora adjunta do mestrado acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
da UFRJ. Graduada em Arquitetura pela FAU/UFRJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio.
resumo
Este artigo trata da construção de bancos de dados de ciências sociais em sua relação com os
objetos culturais, através da narrativa construída pelo historiador. O banco em questão é cons-
tituído de obras construídas por arquitetos estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro na primeira
metade do século XX. A abordagem do tema procura correlacionar história da arquitetura e
história urbana.
abstract
This article analyses the construction of databases of social sciences in their relation to cultural
objects, through the narrative constructed by the historian. This database is made up of works
built by foreign architects in the city of Rio de Janeiro in the first half of the twentieth century.
The theme approach seeks to correlate history of architecture and urban history.
resumen
Este artículo se ocupa de la construcción de las bases de datos de las ciencias sociales y su re-
lación con los objetos culturales, a través de la narrativa construida por el historiador. La base
de datos se compone de obras construidas por arquitectos extranjeros en Río de Janeiro en la
primera mitad del siglo XX. El enfoque temático pretende correlacionar la historia de la arqui-
tectura y la historia urbana.
O Rio de Janeiro, capital do Brasil colônia a partir de 1763, capital do Império e capital
da República até 1960, durante esses três séculos reuniu vestígios materializados da história
do país e da própria cidade. No entanto, a forma urbana, os processos sociais, históricos e
econômicos, as edificações e os planos para a construção urbana são ainda atualmente estu-
dados como manifestações distintas.
Segundo Pereira (1992), a historiografia de viés marxista que trata das grandes transfor-
mações urbanas concentrou-se nos aspectos macroeconômicos, políticos e ideológicos. Por
outro lado, observamos que a opção dos historiadores da arquitetura pela história dos esti-
los, concentrada apenas nos aspectos formais simbólicos, excluiu considerações de caráter
urbano, social e econômico e, sobretudo, cultural. Como resultado, produziram-se, ao longo
do século passado, estudos de história urbana e da arquitetura completamente distintos e
distanciados entre si, o que vem sendo alterado nas duas últimas décadas. Esses trabalhos
estão sofrendo releituras e são objeto de ampla revisão historiográfica operada na subárea
de fundamentos da arquitetura e do urbanismo.1
Os Guias da Arquitetura do Rio de Janeiro (Czakowski, 2000a, b, c), organizados por esti-
los, configuram o estudo ainda mais atual e abrangente, não monográfico, de obras arquite-
tônicas significativas da cidade, de diferentes períodos. Essas publicações carecem ainda de
atualização dos dados, tendo-se em vista o fato de hoje conhecermos mais. As edições estão
esgotadas e não há confirmação de atualização ou de reedição. Por meio delas, é possível
identificar notória presença de estrangeiros na autoria das edificações. No entanto, como as
obras são apresentadas em verbetes curtos com pouca informação, sendo em muitos casos
de primeiro registro, elas ensejam a continuidade do estudo.
As três primeiras décadas do século XX foram de intensas transformações urbanas por
conta da expansão do tecido urbano, da industrialização da construção, do adensamento e
do início da verticalização. Na Proclamação da República (1889), a cidade do Rio de Janeiro
contava com cerca de quinhentos mil habitantes. Em 1920, chegaria a um milhão e cem
mil. Durante a Primeira República (1889-1930), constituíram-se as bases da modernidade.
Muitos profissionais estrangeiros, sobretudo europeus ilustres ou anônimos, fizeram parte
da construção da cidade que carecia de mão de obra especializada e de diplomados capazes
de atenderem à demanda do mercado. Projetistas, técnicos, construtores e artífices de várias
nacionalidades e especialidades empregaram seus conhecimentos na construção civil. Esses
profissionais eram vinculados a grupos de interesses econômicos e políticos que atuaram
em diversos ciclos de urbanização e sua constante presença está diretamente atrelada a
diversas nuances das alterações da política urbana.
1 Ver o debate sobre historiografia promovido no I ENANPARQ – I Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Arquitetura e Urbanismo: Arquitetura, cidade, paisagem e território: percursos e prospectivas (2010).
Manovich (2001) apresenta a noção de bancos de dados como uma das formas expres-
sivas típicas da computação: não é exclusiva do mundo digital, mas as possibilidades de
experimentação e manipulação do computador, aliadas à sua marcante presença nas obras
digitais, provocam um salto qualitativo que a diferenciam bastante do que a antecede. Cox
(2013), por sua vez, argumenta a favor das qualidades estéticas das linguagens de progra-
mação, e, portanto, de suas propriedades expressivas. Uma vez que essas linguagens são
2 Ver <http://www.prourb.fau.ufrj.br/laurd/trabalhos/arqestr/>.
estruturas inter-relacionais
conclusões e perspectivas
3 Um dos resultados obtidos é a possibilidade de disponibilizar essa versão digital como ferramenta de testes e
prototipagem para outras pesquisas em ciências sociais ou história que trabalhem com objetos culturais.
Referências bibliográficas
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______. Guia da arquitetura colonial, neoclássica e romântica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra; Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000a.
______. Guia da arquitetura eclética no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro, 2000b.
Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 22/1/2015
Maria Gabriela Bernardino | Mestre em História das Ciências e da Saúde. Pesquisadora do Programa de Capa-
citação Institucional CNPq/Museu de Astronomia e Ciências Afins.
Mariana Acorse Lins de Andrade | Bibliotecária e discente da Especialização em Informação Científica e Tec-
nológica em Saúde da Fiocruz.
Moema Rezende Vergara | Doutora em História da Cultura e pesquisadora titular do Museu de Astronomia e
Ciências Afins.
resumo
abstract
The article discusses the history of the 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exér-
cito (5ª DL), located in Rio de Janeiro. It sheds light on the partnership with Museu de Astronomia e
Ciências Afins, whose main goal is the organization of the collection belonging to the 5ª DL, so that
it becomes accessible to the general public. It explains how the selection, cleaning, cataloging, sort-
ing and packaging of the holdings is carried out. The article also presents the way in which this work
is done through the interdisciplinary dialogue between history and library science.
resumen
Fachada do prédio principal da 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exército. Foto: Alexandre Macieira | Riotur
Influenciado pelas interessantes publicações que apareceram a partir de 1903, nos anu-
ários de José M. Eder e em outras revistas técnicas que me davam a conhecer o trabalho
do dr. Pulfrich (colaborador científico da Casa Zeiss de Viena) sobre estereofotograme-
tria, procurei em 1907, relacionar-me com essa firma e obtive com regularidade todos
os dados que me permitiam acompanhar a rápida evolução desse novo método foto-
gramétrico.
Em 1910, o major Vidal propôs ao general José Caetano de Faria, então ministro da Guer-
ra, a aquisição para o Exército de um fototeodolito, um estereocomparador e de um este-
reoautógrafo, aparelhagem construída exclusivamente na Casa Zeiss2 (Moura, 1982, p. 246).
Sem êxito na ocasião, o major repetiu a proposta ao novo ministro, general Vespasiano de
Albuquerque. Desta vez, Vidal obteve a autorização de compra pelo ministro, entretanto a
aquisição dos instrumentos não saiu do papel.
Nova tentativa seria feita em 1913, agora ao então prefeito do Distrito Federal, general
Bento Ribeiro, com quem Vidal mantinha boas relações. Com base nelas, o major finalmente
conseguiu que se fizesse a compra dos instrumentos, comprometendo-se a usá-los na pro-
dução da Carta Cadastral da Capital da República, de interesse da prefeitura. Obteve, ainda,
1 A Comissão da Carta Geral do Brasil (1903-1932) pode ser caracterizada como o primeiro esforço republicano
em produzir um mapa para o território nacional. A tentativa cartográfica partiu da Terceira Seção do Estado
Maior do Exército, subordinada ao Ministério da Guerra.
2 No início do século XX, a companhia Carl Zeiss (ou Casa Zeiss), estabelecida em Jena, Alemanha, era uma das
empresas líderes em ótica e mecânica de precisão. Notabilizava-se pela produção de instrumentos científicos,
tais como microscópios, telescópios, teodolitos etc.
Por uma louvável iniciativa do Excelentíssimo Sr. Prefeito do Distrito Federal e as ins-
tâncias do hábil engenheiro, operoso e dedicado oficial, o Sr. Major Alfredo Vidal vai
brevemente ser introduzida no Brasil a genial aplicação da fotografia na cartografia [...].
As vantagens deste método são: o tempo a passar no terreno é relativamente curto, não
é necessário percorrer as partes a levantar, as medidas são feitas tranquilamente no ga-
binete [...]. Cada uma dessas vantagens por si só, representa na prática uma enorme eco-
nomia de trabalho, de tempo e de dinheiro assegurando pois um sucesso permanente
ao novo método, não só nos casos de inaplicabilidade de outros devido a ser o terreno
inacessível, mas ainda onde estes eram usados até aqui [...] (A Defesa Nacional, 1913).
Como percebemos, logo em sua primeira edição, A Defesa Nacional apoiou as iniciativas
de Alfredo Vidal. O periódico militar de opinião independente do Estado Maior foi fundado
em outubro de 1913. Sua origem é bem peculiar: um estágio foi concedido a jovens militares
do Exército brasileiro na Alemanha; quando esses oficiais retornaram ao Brasil, fortemente
impressionados com os métodos e a organização militar germânica, dedicaram-se a lutar
por transformações na corporação (Carvalho, 2005), no sentido de maior profissionalismo e
eficiência técnica.
Convencer o Alto Comando de que as lições aprendidas na Alemanha eram o melhor
caminho a seguir para o Exército brasileiro, não se mostraria uma missão fácil para os ex-
estagiários, que, a partir do contato com o Exército germânico, vislumbraram um novo papel
para as Forças Armadas no Brasil. É importante destacar que, desde 1898, o Exército brasilei-
ro buscava realizar reformas na corporação, tendo adentrado no século XX com a orientação
de desenvolver o sentido prático da instrução, marcada até então pela excessiva orientação
teórica na formação dos oficiais.
Apesar dos ideais e da sede de transformações, os oficiais germanófilos foram recebidos
na volta do estágio com desdém e logo deduziram que, no que dependesse da estrutura
burocrática do Exército brasileiro, as lições aprendidas no Exército alemão seriam perdidas.
A saída encontrada para a divulgação de suas ideias foi a criação de uma revista, assunto que
já viera à tona no próprio navio que trouxera os oficiais de volta ao Brasil. O tom conferido
pelos ex-estagiários à sua revista era bem específico. A publicação A Defesa Nacional adotou
o mesmo nome utilizado como bandeira por jovens reformadores do Exército turco, que
conseguiram promover grandes reformas na estrutura militar de seu país. Rapidamente, os
Com o consentimento do Ministério da Guerra dei caráter oficial ao convite que eu par-
ticularmente já fizera nesse sentido em 1910 ao Sr. Capitão Alípio di Primo e ele pron-
tamente aceitou os encargos dessa missão, a despeito das exigências de tratamento de
sua saúde comprometida por grave moléstia contraída nos extenuantes trabalhos de
exploração geodésica em regiões difíceis do Rio Grande do Sul (Vidal, 1915, p. 22).
Dando seguimento aos planos do major Alfredo Vidal, Alípio di Primo foi para Viena, en-
quanto o major ficou no Rio de Janeiro tratando de assuntos referentes à carta cadastral da
capital. Quando Alípio di Primo chegou à cidade foi apresentado ao dr. Pulfrich e posterior-
mente recebido no Instituto Geográfico Militar de Viena, onde iria adquirir o conhecimento
necessário para o manejo das técnicas ali desenvolvidas. Além dessas incumbências, o capi-
tão também tinha outra missão: escolher um engenheiro austríaco especializado na técnica
fotogramétrica para a direção dos trabalhos da Carta Cadastral do Distrito Federal. Como já
mencionamos, Vidal entendia ser de extrema relevância a presença de um especialista. O
escolhido foi Emílio Wolf, colaborador da Casa Zeiss. Este chegou ao Brasil em 31 de julho de
1914, no entanto logo regressou à Europa, devido aos seus deveres militares relacionados à
eclosão da Grande Guerra.
Em 1915, após gestões de Vidal, Wolf regressa e ministra o primeiro curso teórico e práti-
co no Brasil sobre estereofotogrametria. Para essas aulas se inscreveram o então coronel Au-
gusto Tasso Fragoso, o major Alfredo Malan e o próprio capitão Alípio di Primo, entre outros.
Nesse mesmo ano, Vidal apresenta ao Estado Maior do Exército suas propostas para re-
novação dos métodos cartográficos no Brasil. O major defendia a criação de uma instituição
Apesar de todos os esforços, até hoje dispendidos, quem meditar um pouco sobre a
marcha dos serviços pertinentes ao Serviço da Carta não poderá fugir à conclusão que
eles não correspondem de modo algum, ao decisivo propósito de atingirmos, dentro de
um prazo razoável, o objetivo por eles visado. Eles apenas vivem porque os orçamentos
anuais lhe proporcionam, à guisa de injeção periódica, verbas suficientes para não mor-
rerem (A Defesa Nacional, 1924).
O pano de fundo em que transcorre toda a controvérsia entre o SGM e a CCGB foi o pró-
prio contexto republicano, favorável, em si, às metodologias “modernas”. Em contrapartida, a
triangulação geodésica, utilizada pelos integrantes da CCGB, parecia obsoleta. Vale conferir,
nas páginas de A Defesa Nacional (1927):
[...] O Serviço Geográfico Militar representa o que há de mais perfeito e de mais homo-
gêneo no assunto. É obra de alguns brasileiros inteligentes e patriotas e da sábia missão
de profissionais austríacos. A Comissão da Carta Geral do Brasil é a primeira tentativa
de organização de tal serviço no Exército. O que ela tem feito representa bastante, mas,
não que mereça substituir e quiçá absorver o SGM. A Carta não aceita o Serviço, refuta-
lhe qualquer cooperação, qualquer contato, qualquer orientação. Como exemplo mais
tangível disso aí estão as convenções cartográficas, adotadas oficialmente no Exército
e, no entanto não aceitas na Carta Geral. Dar ao SGM a direção suprema dos problemas
geográficos do Exército levando a sua autoridade até a Carta Geral, integrando-a de-
finitivamente nele, não é só uma medida de comezinha inteligência, mas de honesta
compreensão dos limites até onde se deverão sobrepor as suscetibilidades pessoais aos
interesses da Nação. E além disso é preparar para o Exército a grande honra de enfeixar
através do SGM a direção futura dos problemas de geografia nacionais [...].
Em 1932, a Comissão da Carta Geral do Brasil foi enfim absorvida pelo SGM, conforme
os planos traçados pelo major Vidal, amplamente difundidos na revista dos “jovens turcos”.
Formou-se, assim, o Serviço Geográfico do Exército, com sede no morro da Conceição, Rio de
Janeiro, e um “braço” em Porto Alegre, com o nome de 1ª Divisão de Levantamento.
Na mesma década, ocorreu a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Tal instituição se tornou a principal responsável pelo mapeamento nacional, no en-
organização do acervo
considerações finais
Referências bibliográficas
Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 29/1/2015
Henrique Machado dos Santos | Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Membro
do grupo de pesquisa CNPq: GED/A.
Daniel Flores | Doutor em Ciência da Informação pela UFRJ/Ibict. Professor adjunto do Departamento de Docu-
mentação da Universidade Federal de Santa Maria.
resumo
abstract
The increased generation of digital archival records resulted in the production of studies on
strategies for their preservation. Hence, much is known about their advantages and disadvanta-
ges. Currently it is important to analyze the pros and cons of the strategies and define a trusted
environment for the preservation of authentic digital records, ensuring continued access in the
long-term.
resumen
Palabras clave: documentos de archivo digitales; preservación digital; autenticidad; acceso a largo
plazo.
Os objetos digitais precisam ser atualizados na medida em que as versões dos softwares
e os formatos de arquivo por eles produzidos vão sofrendo mudanças, caso contrário po-
dem se tornar inacessíveis ao longo do tempo. Os acelerados ciclos de obsolescência das
tecnologias poderão comprometer a autenticidade dos documentos digitais, logo é preciso
determinar políticas e estratégias de preservação digital.
Cada estratégia irá focar com maior ênfase a preservação de um determinado nível do
objeto digital. Por isso, objetivando a aplicação dentro da arquivística, este trabalho aborda
as seguintes estratégias de preservação digital: no nível físico, o refrescamento; no nível ló-
gico, a emulação, a preservação da tecnologia e o encapsulamento; e no nível conceitual, a
pedra de Rosetta digital e a migração/conversão.
Preservação de tecnologia
De maneira geral, os objetos digitais ao passarem por esse procedimento, deixam de ser
digitais, pois este é um fator que descaracteriza o documento digital. Essa “migração para
o suporte analógico”, proporcionada pela pedra de Rosetta digital, não implica descarte do
digital, visto que essa estratégia pode ser usada em situações que se dispõe de poucos recur-
sos financeiros. Com ela pode-se aplicar procedimentos como, por exemplo, a impressão de
um documento em papel A4 e anexar a sua respectiva representação binária. Mesmo assim
deverá ser usada em último caso, pois existem outras estratégias de baixo custo que podem
facilmente apresentar eficiência e eficácia superiores a esta.
Em linhas gerais, esta estratégia é tida como um procedimento emergencial, ou seja,
em um contexto onde não é possível emular, converter, migrar, encapsular, refrescar e nem
realizar a preservação de tecnologia. Sua aplicabilidade é contestável, mas ainda não é des-
cartável.
Emulação
É a forma mais estável de manter as funções do objeto digital quando o hardware torna-
se obsoleto (Interpares, 2007b). Considerando que as estratégias de emulação não sofrem
envelhecimento do hardware (Ferreira, 2006), estas poderão ser utilizadas para substituir
as estratégias de preservação da tecnologia. O amparo tecnológico virtual, proporcionado
pelas estratégias de emulação, possibilita representar os objetos digitais com alto grau de
fidedignidade devido à preservação do objeto lógico original. Além disso, a emulação irá
minimizar os riscos de obsolescência com relação ao uso de hardware específico.
Para Márdero Arellano (2004, p. 21), no que diz respeito à relação de custo/benefício,
a emulação é vista como “uma estratégia importante que possui aplicações úteis quando
a aparência do recurso digital original é importante, mas onde não seja aconselhável in-
vestir em uma tecnologia da informação de alto custo”. As estratégias de emulação pos-
sibilitam a representação dos documentos digitais com alto grau de fidelidade, porém
sua aplicação em longo prazo demanda custos elevados e incertezas com relação à sua
manutenção futura.
Vanderlei Santos apresenta algumas especificidades da emulação, no que se refere ao
seu planejamento:
Um dos problemas reside no fato de que a emulação é uma política pensada a priori. Só
é possível elaborar um emulador a partir do conhecimento integral do funcionamento
do sistema ou programa que se deseja emular. Desta forma, a preservação deve ser pla-
nejada para antecipar as necessidades futuras (Santos, 2005, p. 65).
Encapsulamento
Durante o encapsulamento os objetos digitais deverão ser descritos, pois assim se pode-
rá saber, por exemplo, os requisitos necessários aos emuladores, a fim de gerar compatibili-
dade de hardware e software, suficientes para que a plataforma emulada consiga interpretar
corretamente os objetos digitais. O mesmo procedimento estabelecido para as estratégias
de emulação e o encapsulamento pode ser aplicado frente à conversão, e neste caso os ob-
jetos digitais são encapsulados junto com seus metadados para futuro desenvolvimento de
conversores. Assim o software responsável pela conversão, com o auxílio da informação for-
necida pelos metadados, terá capacidade de converter corretamente os formatos obsoletos,
os quais foram anteriormente encapsulados, para formatos de arquivos atuais.
Não há como determinar o valor de determinados objetos digitais. Vários anos podem se
passar até que se desperte o interesse por uma determinada coleção de objetos (Heminger;
Robertson, 2000). Logo, a instituição que conciliar as estratégias de encapsulamento com
outras estratégias, garante uma economia de recursos considerável.
Com relação aos documentos de natureza textual, o uso do PDA/A1 surge como uma
nova tendência. A possibilidade de reunir as fontes necessárias para a apresentação de um
determinado documento textual possibilita um alto grau de fixidez,1 agregando os compo-
nentes de forma fixa2 e conteúdo estável,3 que são princípios preconizados pela diplomática
contemporânea. Embora muito eficientes para documentos textuais, as estratégias de en-
capsulamento usando PDF/A1 não poderão ser aplicadas para outros objetos digitais, como
softwares e objetos dinâmico-interativos.
O encapsulamento tem como fundamento a preservação do objeto original juntamente
com todas as informações necessárias para sua reconstrução no futuro através da aplicação
de outra estratégia. Essa é uma de suas grandes vantagens: documentar a descrição do seu
contexto tecnológico ou mesmo incorporar outros objetos digitais que auxiliem na correta
interpretação do documento. Poderá demandar maior espaço para armazenamento, o que
pode inviabilizar as estratégias de encapsulamento de modo geral, pois além dos metada-
dos poderão estar inclusos o sistema operacional e o software necessário para acesso e re-
cuperação da informação.
1 Documento arquivístico que assegura a forma fixa e o conteúdo estável (Interpares, 2007b).
2 Documento arquivístico que assegura a mesma aparência ou apresentação documental cada vez que o docu-
mento é recuperado (Interpares, 2007b).
3 Documento arquivístico que torna a informação e os dados nele contidos imutáveis e exige que eventuais mu-
danças sejam feitas por meio do acréscimo de atualizações ou nova versão (Interpares, 2007b).
Refrescamento
O ato de recopiar dados de um suporte físico para outro será uma atividade necessária
sempre que o formato selecionado se tornar obsoleto (Interpares, 2007a). É preciso monito-
rar o estado de conservação da mídia e os ciclos de obsolescência, pois se o suporte físico
se deteriorar ou se tornar obsoleto a ponto de deixarem de existir periféricos capazes de
acessar e recuperar a informação nele armazenada, corre-se o sério risco da informação se
perder para sempre (Hendley, 1998 apud Ferreira, 2006). O refrescamento/rejuvenescimento
periódico proposto pelo InterPARES 2 Project e por Hendley é considerado uma atividade
vital no contexto da preservação digital, assim como também é vital a verificação da integri-
dade dos suportes físicos (Ferreira, 2006).
Em contrapartida, o refrescamento/rejuvenescimento de suporte realizado em tempo
hábil não constitui uma estratégia de preservação por si só. Deverá ser entendido como
um pré-requisito para o sucesso de qualquer estratégia de preservação (Besser, 2001 apud
Ferreira, 2006). Ou seja, o refrescamento/rejuvenescimento de mídia não deverá ser adotado
como única estratégia de preservação digital, pois esta abordagem restringe-se ao objeto
físico, isto é, este processo engloba somente a atualização de suporte. Por isso, deverá servir
de complemento para outras estratégias como a migração/conversão, tornando-se, assim,
um procedimento de preservação digital válido.
Em complemento às estratégias de refrescamento, é possível otimizar os procedimentos,
por exemplo, realizando estudos sobre confiabilidade, durabilidade, acondicionamento e
outras especificidades das mídias. A partir desse levantamento, é possível refrescar mídias
de maneira mais eficiente e eficaz.
As mídias digitais são afetadas por diversas variáveis as quais influenciam diretamente
em sua durabilidade e confiabilidade, algumas destas são, por exemplo, a temperatura,
a umidade relativa do ar, tempo de uso, qualidade da mídia, campos magnéticos, mani-
pulação e poluição (Innarelli 2012, p. 37).
Possibilita uma readaptação dos objetos digitais, de modo que esses possam ser correta-
mente interpretados e consequentemente representados com fidedignidade.
Essas estratégias são utilizadas principalmente nos contextos em que não existam ob-
jetos digitais interativos, apenas objetos estáticos como imagens, bases de dados e docu-
mentos de texto. Nessa estratégia tanto a estrutura interna quanto o conteúdo do material
devem ser preservados e transferidos igualmente, assim o objeto migrado/convertido será
uma representação fiel do original (Márdero Arellano, 2008). Dessa forma, é possível manter
os objetos digitais compatíveis e interpretáveis pelas tecnologias atuais sem a necessidade
de usar recursos complexos, como é o caso dos emuladores (Ferreira, 2006).
Entretanto, durante as migrações poderão ocorrer corrupções na estrutura interna do
objeto digital, pois a migração é muito mais complexa do que apenas transferir a sequência
de bits de uma mídia para outra (Márdero Arellano, 2008). Uma série de migrações/conver-
sões poderá causar a inconsistência e afetará profundamente os objetos digitais, sobretu-
do se forem objetos dinâmicos. Isto porque a migração preocupa-se em preservar o objeto
conceitual e o seu respectivo conteúdo intelectual, já que as alterações realizadas em sua
estrutura de bits não são visíveis.
A migração implica mudanças na configuração que afeta o documento por inteiro. Após
migrados, os documentos podem parecer ser os mesmos, mas não o são. Sua forma física é
profundamente alterada, com perda de algum dado e acréscimo de outro (Rondinelli, 2005),
pois qualquer migração/conversão produzirá alterações na estrutura interna do documento
(Santos, 2005). Por isso, conforme o InterPARES 2 Project, em longos períodos de custódia
de documentos arquivísticos, a experiência do preservador pode mostrar que outras estra-
tégias de preservação são mais estáveis ou podem ser transmitidas com mais facilidade em
longo prazo. Novos métodos de preservação poderão ser desenvolvidos após o recebimento
e o processamento inicial dos documentos. Além disso, caso uma migração/conversão espe-
cífica venha a falhar com o tempo, a guarda do formato lógico inicial irá permitir ao preser-
vador reiniciar o processo de preservação (Interpares, 2007a).
As estratégias de migração, embora não possam ser aplicadas para todos os objetos
digitais, configuram-se como a melhor alternativa para a preservação digital. Isso porque
possibilitam que os objetos digitais oriundos de plataformas antigas possam ser migrados e
interpretados em plataformas atuais. Mesmo que apresente perdas, a migração/conversão
possui vantagens relevantes, como é o caso da possibilidade de transposição de um objeto
criado em um contexto do passado para a atualidade. Além disso, um sistema que imple-
mente padrões de metadados, para documentar a sua custódia, e ainda possibilite retro-
ceder ao objeto digital original, aumentará significativamente os níveis de confiança nesta
estratégia, sendo possível a sua implementação em longo prazo.
Referências bibliográficas
Recebido em 16/11/2014
Aprovado em 21/1/2015
Kalina Vanderlei Silva | Professora da Universidade de Pernambuco (UPE). Doutora em História pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Coordenadora do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/UPE.
Welber Carlos Andrade da Silva | Doutorando em História pela Universidade de Évora, Portugal. Bolsista da
Capes. Pesquisador do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/UPE.
Carlos Bittencourt Leite Marques | Professor da UPE. Mestre em História pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). Pesquisador do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/UPE.
resumo
abstract
This paper presents the Sistema de Consulta Prosopográfica Colonial – Siconp, a prosopography
database (sponsored by CNPq/UPE), aimed at disseminating historical information about the
colonial history of the Portuguese America through the web. It also discusses the potential of
initiatives related to digital dissemination of historical sources and documental data.
resumen
Este artículo tiene como objetivo presentar el Sistema de Consulta Prosopográfica Colonial –
Siconp (patrocinado por CNPq/UPE), que desea ayudar a los estudios sobre la historia de la
América colonial portuguesa por medio de la web, y analiza el potencial de difusión digital de
las fuentes históricas y datos documentales.
1 Importante ressaltar, todavia, o trabalho de George Felix Cabral de Souza, pioneiro na prosopografia das elites
coloniais de Pernambuco: Souza, 2007.
considerações finais
Referências bibliográficas
Repositórios digitais
Recebido em 9/7/2014
Aprovado em 21/1/2015
Luciene P. Carris Cardoso | Pós-doutora e pesquisadora associada ao Laboratório de Geografia Política da Uni-
versidade de São Paulo. Mestre e doutora em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Recebido em 21/10/2014
Aprovado em 4/11/2014
Maria Teresa Villela Bandeira de Mello | Doutora em História pela Universidade Federal Fluminen-
se. Diretora do Departamento de Gestão de Acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Professora visitante da Uerj.
resumo
O objetivo do texto é apresentar o Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro enquanto um
documento inserido no contexto de produção de registros visuais no âmbito institucional de
órgãos públicos no Rio de Janeiro no início do século XX. Nesse período, a linguagem fotográ-
fica estava se consolidando e a análise do Álbum permite a observação do processo de uma
narrativa visual através das imagens.
Palavras-chave: fotografia; Rio de Janeiro (cidade); cultura visual; porto do Rio de Janeiro.
abstract
This article aims to present the Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro [Album of the works
of the port of Rio de Janeiro] as a document connected to the context of production of vi-
sual records within the institutional framework of public agencies in Rio de Janeiro in the early
twentieth century. The photographic language was being consolidated during that period, and
the analysis of the Álbum brings to light the process of elaboration of a visual narrative through
its images.
Keywords: photography; Rio de Janeiro (city); visual culture; port of Rio de Janeiro.
resumen
El propósito de este trabajo es presentar el Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro como un
documento insertado en el contexto de la producción de registros visuales en el marco institu-
cional de los órganos públicos en Río de Janeiro a principios del siglo XX. Durante el período, el
lenguaje fotográfico estaba siendo consolidada y la análisis del Álbum permite la observación
del proceso de una narrativa visual por medio de imágenes.
Palabras clave: fotografía; Río de Janeiro(ciudad); cultura visual; puerto de Río de Janeiro.
1 Entre 2011 e 2012 foram consultados fundos e coleções do Arquivo Nacional, Arquivo Geral da Cidade do Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional, Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Museu da República, Clube de Engen-
haria e Companhia Docas do Rio de Janeiro.
‘documentação especial’, inicialmente para fins específicos de conservação, mas que acaba
trazendo consequências para a apreensão dos significados dessas imagens no contexto da
produção arquivística.
Em geral, esses documentos são considerados ‘especiais’ por necessitarem de condições
diferenciadas de acondicionamento e conservação e, em função disso, são separados do
restante da documentação. Nesse percurso, muitas vezes, as suas características enquanto
documentos arquivísticos, bem como seus vínculos com os demais documentos que inte-
gram o mesmo acervo, se rompem. A implicação direta desse procedimento é que os regis-
tros fotográficos são tomados, muitas vezes, tanto para fins de tratamento técnico quanto
de pesquisa, apenas pelo seu valor informativo e conteudístico, o que acaba ‘naturalizando’
sobremaneira esse tipo de fonte.
Com relação à autoria das imagens, observamos que nenhuma das fotografias existentes
no álbum do Aperj possui qualquer inscrição, carimbo ou assinatura do responsável pela
produção dos registros. Entretanto, foram localizadas cópias das imagens em diversas publi-
cações sobre as obras de construção do porto nas quais se verificava a inscrição “EMYGDIO
RIBEIRO – PHOTOGRAPHO”, realizada, muito provavelmente, no negativo fotográfico.
Além disso, um álbum semelhante foi localizado no acervo da Assessoria de Comunica-
ção da Companhia Docas do Rio de Janeiro. Apesar de parcialmente desmembrado, apresen-
2 As pesquisas sobre Emygdio Ribeiro nos levaram ao personagem centenário da vida cultural e intelectual de
Niterói, Luiz Antônio Pimentel, que seria sobrinho-neto do fotógrafo profissional – ao qual se refere como ‘Tio
Bilusca’. Em entrevista realizada em fevereiro de 2012, na Biblioteca Pública de Niterói, Pimentel relatou ter sido
introduzido na arte fotográfica pelo tio, que morou na rua Visconde de Itaboraí, no centro de Niterói, e que
teria ainda atuado como fotógrafo da polícia do Rio de Janeiro, durante a gestão de Filinto Müller. Sobre essa
última informação, não foi possível localizar registros ou mais referências. Para as demais informações sobre
o fotógrafo ver: <http://cecchettipr.wordpress.com/entrevista-com-luis-antonio-pimentel-25-03-2009/>; <http://
poetalbertoaraujo.blogspot.com.br/2012/03/luis-antonio-pimentel-100-anos-em-foco.html>; <http://www.
historiadesaogoncalo.pro.br/>; <http://poetalbertoaraujo.blogspot.com.br/2012/03/luis-antonio-pimentel-
100-anos-em-foco.html>.
3 Não sabemos, por exemplo, se Emygdio Ribeiro atuou durante todo o período (1904-1913) de produção das
fotografias e nem mesmo se foi o único – pouco provável – fotógrafo encarregado pela Inspetoria Federal do
registro das obras de construção do porto.
Nesse sentido, mesmo que se mantenha a marca autoral do fotógrafo, enquanto criador
das imagens, outros ‘atores’ estão inseridos no processo de produção, circulação e consumo
das fotografias. Desde a decisão de produção dos registros visando a uma determinada fina-
lidade até a sua divulgação e publicização – na forma de um álbum fotográfico, por exemplo
–, uma cadeia de agentes encontra-se envolvida e terá responsabilidade sobre as diversas
etapas de concepção e confecção das fotografias, interferindo até mesmo na elaboração do
produto final. No caso do Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro, podemos mencionar
pelo menos dois desses agentes: o inspetor federal de Portos, Rios e Canais, Adolfo José Del
Vecchio, e o ministro da Viação e Obras Públicas, José Barbosa Gonçalves.
A noção de autoria institucional pode ser trabalhada enquanto categoria constitutiva
dos gêneros de discurso como um todo e assumir a responsabilidade por textos assinados
por empresas e instituições. Ela representa um alargamento da concepção tradicional de au-
toria, que acredita na quase identidade total entre autor e indivíduo e pressupõe a soberania
do autor diante do estilo (Alves Filho, 2006).
Dentro dessa perspectiva, a autoria é vista como uma categoria sociodiscursiva, que só
pode ser apreendida num estudo que enfoque as relações inextricáveis entre a dimensão
verbal e a dimensão social dos textos. “A autoria se situa a um só tempo na imanência dos
textos (pois nela deixa vestígios linguístico-textuais), mas também no mundo sociocultural
[...] é, portanto, o suporte de agenciamento de uma memória pública que registra, retém
e projeta no tempo histórico, uma versão dos acontecimentos. Essa versão é construída
por uma narrativa visual e verbal, ou seja, intertextual, mas também pluritemporal: o
tempo do acontecimento, o tempo da sua transcrição pelo modo narrativo, o tempo
de sua recepção no marco histórico da sua publicação, dimensionado pelas formas de
sua exibição – na imprensa, em museus, livros, projetos etc. A fotografia pública produz
visualmente um espaço público nas sociedades contemporâneas, em compasso com as
visões de mundo às quais se associa (Mauad, 2013, p. 13).
4 O circuito social da fotografia é compreendido como os processos de produção, circulação, consumo e agen-
ciamento das imagens. A esse respeito ver Fabris (1991) e Meneses (2003).
propaganda, uma vez que as grandes obras de engenharia e arquitetura eram consideradas
como as provas mais tangíveis do progresso e, ao mesmo tempo, testemunhos do savoir-fai-
re, da ousadia industrial e da virtuosidade dos empreendimentos. Havia uma prática disse-
minada de distribuição de cópias e álbuns fotográficos a autoridades, empresários e clientes
eventuais, como à administração pública.
No caso do Brasil, cabe observar que a prática fotográfica foi introduzida na corte pelo
imperador d. Pedro II que, além de adepto da atividade, incentivou e patrocinou a produção
de fotografias que representariam o Império nas exposições universais.5 Pode-se mencionar
ainda, dentre vários, os exemplos mais conhecidos de contratação dos fotógrafos Marc Fer-
rez – tanto no período imperial quanto no republicano – e Augusto Malta, já no século XX,
para o registro e divulgação de obras públicas e transformações urbanas no país e no Rio de
Janeiro.
5 Sobre a produção, disseminação e utilização da fotografia no período imperial ver Turazzi (1995) e Vasquez
(1985).
A construção do porto do Rio de Janeiro realizada entre 1904 e 1911 promoveu, simul-
taneamente, uma transformação urbanística e grande mudança na infra-estrutura portuária,
representando um novo momento para a cidade e para o país.
Em fins do século XVIII, a capital federal já possuía o maior porto do país devido ao
tráfico de escravos, ao escoamento de ouro e diamantes provenientes de Minas Gerais e à
grande circulação de mercadorias. Ao longo do século XIX, o crescimento das atividades
portuárias cariocas intensificou-se em função do processo de modernização pela qual o
Rio de Janeiro passou a partir da vinda de d. João e da corte para o Brasil e que o trans-
formou no maior mercado consumidor urbano do país. Entretanto, todas as operações de
carga e descarga de mercadorias eram realizadas através de pequenos barcos, que atra-
cavam em pontes ou embarcadouros distantes e descarregavam nos antigos trapiches e
entrepostos, ocupantes de uma vasta área do litoral. Com o surgimento dos navios a vapor,
em meados do século XIX, o sistema de trapiches tornou-se insuficiente para dar conta do
movimento portuário.
A modernização do porto do Rio de Janeiro possibilitou que embarcações de grande
porte atracassem perto da cidade, aumentando assim a capacidade portuária, o que foi fun-
damental para o crescimento das exportações de produtos brasileiros. Inserida num projeto
mais amplo de transformação e saneamento da capital federal, a construção do porto do Rio
de Janeiro renovou a atividade portuária no país e promoveu uma grande transformação
urbanística na cidade. A partir da construção do porto, a região converteu-se
6 Para uma análise mais aprofundada do álbum fotográfico enquanto um documento visual ver Mello, 2012.
O álbum não é um receptáculo passivo. Ele não agrupa, não acumula, não conserva,
nem arquiva sem classificar e redistribuir as imagens, sem produzir sentido, sem construir
coerências, sem propor uma visão, sem ordenar simbolicamente o real. Associada a essa
utopia de colocar sistematicamente em imagens o mundo inteiro, a fotografia-documento,
relacionada ao álbum e ao arquivo, é encarregada da tarefa de ordená-lo. Nessa vasta em-
preitada, a fotografia-documento e o álbum (ou o arquivo) desempenham papéis opostos e
complementares: a foto fragmenta, o álbum e o arquivo recompõem os conjuntos. Funda-
mentalmente, eles ordenam (Rouillé, 2009, p. 101).
Tendo essas questões como pressuposto é que gostaríamos de abordar o Álbum das
obras do porto do Rio de Janeiro. As fotografias do álbum acompanham todo o processo de
construção do porto, contendo imagens das várias etapas do projeto, aspectos das instala-
ções, canteiros de obras, máquinas e equipamentos e também dos trabalhadores. Registram
ainda paisagens e vistas urbanas – antes e depois – da região central e portuária da cidade.
A narrativa se inicia com a apresentação das antigas oficinas do Lloyd Brasileiro vistas de
longe, a partir do mar, numa perspectiva panorâmica, intercaladas com imagens do antigo
dique e do desmonte da pedreira do morro da Saúde. Nas fotografias iniciais, a presença do
elemento humano é quase imperceptível e, muitas vezes, surge apenas ao longe, num deta-
lhe ampliado da imagem. O foco ou ênfase inicial da narrativa é na magnitude da paisagem
litorânea da cidade – sua fotogenia – e do maquinismo industrial.
Referências bibliográficas
ALVES FILHO, Francisco. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa: Revista de Linguís-
tica, São Paulo, Unesp, v. 50, n. 1, p. 77-89, 2006.
FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.
(Texto & Arte; v. 3)
LAMARÃO, Sérgio T. N. Dos trapiches ao porto: um estudo sobre a área portuária do Rio de Janei-
ro. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; Departamento Geral de Documenta-
ção e Informação Cultural, 1991.
Recebido em 3/3/2015
Aprovado em 5/3/2015
Acervo é a revista do Arquivo Nacional, publicada semestralmente desde 1986. Tem por
objetivo divulgar estudos e fontes nas áreas de ciências humanas e sociais aplicadas, espe-
cialmente arquivologia.
É composta pelas seguintes seções:
Dossiê temático: cada número da revista apresenta um conjunto de artigos sobre o tema
selecionado. Até 15 laudas escritas (cerca de 30 mil caracteres com espaços);
Resenha: texto crítico sobre obra publicada até um ano antes da chamada para o número da
revista. Serão aceitas resenhas de livros, filmes, vídeos. Até 5 laudas (cerca de 10 mil carac-
teres com espaços).
normas de submissão
imagens – Cada artigo poderá conter até cinco imagens em preto e branco, com as respectivas
legendas e referências, e a indicação quanto à sua localização no texto. As imagens devem
ter a resolução mínima de 300 dpi no formato TIF.
tabelas, quadros e gráficos – tabelas e quadros podem ser compostos em Word e inseridos
no próprio arquivo do artigo; os gráficos, preferencialmente em Excel.
referências bibliográficas – Deverão constituir uma lista única ao final do artigo, em or-
dem alfabética, seguindo as normas estipuladas pela ABNT na NBR 6023: 2002.