O Vôo Do Condor

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O VÔO DO CONDOR
Por

Alexandre de Jesus Antunes


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Prefácio

Sinto uma grande admiração pelas aves de rapina!

Assisti quando era garotinho um milhafre roubando um

pintainho a uma galinha que acabara de os chocar. A

galinha subiu aos ares debicando como pode na ave de

rapina. O milhafre largou o pintainho e a galinha que

foram cair num monte de palha. O pintainho nada sofreu,

mas a galinha ficou manca de uma perna. Foi tratada,

curou-se. Morreu de velha. Foi poupada ao “fricassé” por

ser cocha, mas continuou a pôr muitos ovos e a criar

muitos pintainhos. Este espetáculo que assisti impotente

foi um pequeno drama na Natureza. Na altura odiei aquela

ave má que atacou a minha galinha. Deveria ainda continuar

a odiar o milhafre? Na vida quase sempre é assim: uns

atacam e outros defendem-se. E quando se é menos poderoso

há que ser ágil e astuto para sobreviver.

Voltando às aves de rapina: há os pequeninos e diurnos

falconetes; as noctívagas corujas e mochos; as grandes

águias de toda a espécie divididas em grupos e subgrupos;

os pesados abutres africanos e os grifos europeus; por


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fim, o grande e soberbo Condor da América do Sul. Todas

são aves magníficas que vivem lutando pela sobrevivência

como qualquer outro ser vivente. Chamá-las de rapina não

me parece muito justo. Elas caçam outros animais tal como

os felinos o fazem. Estes têm a designação de predadores

enquanto aquelas são apelidadas de rapina. Têm esta

designação porque arrebatam, roubam com certa violência.

Então os leões, as panteras e outros? Curiosamente é nesta

característica em que elas se assemelham mais aos humanos

sendo que as aves atuam individualmente enquanto que os

homens na maior parte não. Os romanos rapinaram o Egipto;

os Alemães rapinaram a Polónia; os Espanhóis rapinaram o

Império dos Aztecas e dos Incas; os Franceses rapinavam

tudo por onde passavam e em África até os fios de cobre

dos telefones levaram. E nós?...

Mas o Condor que é uma espécie de abutre voa mais alto que

todos os outros. Voa mais alto que a mais alta cordilheira

dos Andes abarcando com a sua vista apurada lá do alto

tudo que lhe possa servir de alimento. Não é um predador.

Ele limpa as carcaças mortas prestando um bom serviço à

Natureza. Por isso é estimado pelos Índios e por fim pelos

outros Homens. Tratá-lo por rapina é uma injustiça. Em

África há países que acolhem abutres nas suas cidades para

se livrarem dos cadáveres de animais domésticos que morrem

atropelados ou por doença ou fome abandonados pelos donos.


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Todavia a classificação de rapina está feita e há-de

perdurar enquanto houver aves com essas características.

O Condor tem um voo que o simboliza. Voa aproveitando as

grandes correntes de ar quente para planar poupando assim

energias.

Voar como um condor é o sonho que levou à invenção da asa

em delta e também para muitos aventureiros, em especial

para aqueles que querem ver os seus sonhos realizados

muito depressa. Todos querem voar como o Condor: voar bem

alto aproveitando as correntes de ar. Para isso têm de ter

engenho e arte. Esse engenho e arte muitas vezes acabam na

cadeia por ter praticado rapinagem. Mas há quem a pratique

e depois para se ver livre da sua consciência pesada, vem

repor aquilo que tirou fazendo-o de forma correcta:

entregar a César o que havia tirado dele. Este é o romance

que vos deixo com um misto de verdade e fantasia tocando

pequeninas facetas da nossa História bem recente.

O autor
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Dedicatória

Aos meus antigos colegas de quem ouvi contar várias

versões desta estória bancária.

À minha mulher que pacientemente me escuta.

Aos meus filhos que me entusiasmam e por fim,

A todos aqueles que amam Moçambique apesar de tudo o que

aconteceu cientes de que a História passada é para ser

corrigida na parte em que ela foi má. A boa é para ser

preservada e recordada para os do presente e do futuro.


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O ex-seminarista

Boaventura das Neves Urzes era um jovem muito pouco

conformado com o futuro que a família, cuidadosamente

preparava para si. A sua ambição era diferente aos dos

outros jovens da sua idade, na aldeia recôndita algures em

redor de Bragança.

Compulsivamente interrompera os seus estudos no

Seminário de Braga para onde a família o enviara logo que

completara a escola primária.

Agora no liceu local e com equivalências garantidas

completava o sétimo ano com notas altas que enchiam de

inveja os outros colegas e admiração de algumas raparigas

também suas colegas. Bem parecido, alto, louro e de olhos

claros características que em tudo evidenciavam a sua

ascendência céltica. Bem-falante e com discurso fluente

mantinha sempre à sua volta grupos de rapazes e raparigas

que o escutavam quando empolgantemente com a sua voz de

tenor cheia de chés relatava a sua vida de clausura em

Braga numa tentativa para ser padre, carreira almejada pela

sua conservadora e religiosa família, em especial sua

querida mãe. Nessa roda de amigos que amiúde se reunia

junto ao velho Castelo, sucediam-se perguntas e mais


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perguntas. Boaventura a todos respondia num misto de

seriedade e de jocosidade bem disfarçada... As autoridades

eclesiásticas de então detinham um determinado poder que

era necessário respeitar. As perversidades internas no

seminário eram relatadas a apenas àqueles com quem mantinha

muita confiança, pois o assunto era demasiado sério para

cair em praça pública, evitando-se nomes, datas, lugares.

Era, em suma, um tema escaldante. Durante o relato,

palavras como “toques”, “pérvias”, “segóvias” e a mais

comum “punheta” emprestavam ao ambiente a hilaridade

necessária para a boa disposição da rapaziada a avaliar

pelas gargalhadas abafadas entre as palmas das mãos. Enfim,

Boaventura recordava-se assim daqueles velhos tempos até à

altura da sua expulsão. Não por isso, mas por razões

donjuanescas como mais tarde vir-se-á saber.

Ido de Portugal havia cerca de três anos para se

juntar ao seu tio paterno e padrinho – um influente ex-

militar e próspero comerciante do Lumbo, uma pequena

localidade costeira defronte da vetusta e histórica Ilha de

Moçambique, depressa conseguira um emprego no Banco Estatal

indo ocupar o lugar de Caixa, por concurso documental,

propositadamente realizada para credibilização da

instituição.

Em pouco tempo granjeara simpatia não só dos colegas


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como também de toda a clientela que também nutria respeito

e consideração pelo empresário agroindustrial Senhor

Capitão de Artilharia João Gustavo Pereira Reis das Urzes,

tio do Boaventura.

O salário da época era tão magro que mesmo com o

subsídio de caixa, não chegava para pagar o aluguer de um

apartamento. Sonhava poder mandar vir a sua noiva que já

suspirava pela demora. As cartas dela chegavam a uma

cadência de duas por mês. A última rezava assim: “Meu

amado, não sei que mais dizer-te para te exprimir a imensa

falta que sinto d ti. Beijo e acaricio a almofada

imaginando-te deitado ao meu lado. De tanto pensar em ti

custa-me a adormecer e não consigo imaginar como passas as

noites nessas longínquas paragens. Sentir-me-ei confortada

se na próxima carta que escreveres me disseres que também

tens pensado em mim. O tempo aqui passa muito lentamente

apesar das noites longas do inverno que nunca mais passa.

O frio aperta, mas nem por isso o meu coração arrefece.

Ele palpita cada vez mais acelerado ansiando por ti meu

bem. Vivo na expectativa de um dia poder ver as minhas

orações compensadas quando me chamares para junto de ti.

Humildemente, de joelhos, tenho pedido ao Santo António

nas minhas orações para no caso de não ser possível que me

chames para junto de ti que ao menos ele te proteja e te

afaste das tentações que possam perigar o amor que ambos


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juramos manter. Não suporto esta solidão! Meu amor tenho-

te sempre em mente e nada deste mundo me fará mudar de

ideias. Acredita: se não for tua não serei de mais

ninguém! Um cálido beijo desta que tanto te ama,

Benvinda.”

Boaventura lia e relia, mas respondia em poucas linhas

tentando acalmá-la: “meu anjo tenho-te permanentemente no

meu pensamento. Cada mês que passa aumenta em mim a

ansiedade de voltar a ver-te, poder abraçar-te para que

possas ouvir dentro do meu peito o bater apressado do meu

coração de tanto amor que sinto por ti…, mas, como deves

compreender a realidade não se compadece com o nosso amor.

O principal para podermos construir o nosso futuro ainda

não é suficiente…. Perdoa-me, pois, ainda não ter

amealhado o suficiente para te pedir que venhas. Por essa

razão continuarei a viver em casa do meu padrinho. Adoro-

te tal como no dia em que te conheci. Um grande beijo

deste que também te ama apaixonadamente, Boaventura”

Em casa do padrinho o jovem bancário sentia-se

confortavelmente instalado embora com certa cerimónia.

Lembrava-se que a última vez que o vira antes de embarcar

para África tinha ele apenas nove anos de idade quando

ainda o pai era vivo. Mas recordava claramente em como eles

eram um para o outro. Educados segundo os princípios de


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Deus, Pátria e Família, as hierarquias eram para ser

mantidas e escrupulosamente respeitadas. Tanto no seio

familiar como na escola ou na sociedade em geral o respeito

era a norma de conduta constantemente fiscalizada e

cumprida pela maioria dos cidadãos.

Memórias do passado

Neste contexto, os dois irmãos mantinham uma salutar

relação familiar de respeito e profunda amizade. Em suma

dois manos muito amigos. Sempre que este tio aparecia o pai

chamava o rapaz e dizia-lhe: “Lembra-te filho: aqui o teu

tio João, em relação a ti, ele é mais do que meu irmão. É

teu padrinho! É como se fosse também teu pai...”

Logo a seguir respondia o tio João com a sua voz grossa de

barítono: “Ora Manel, deixa-te dessas solenidades. Sou teu

irmão e é quanto basta!”

E depois voltava-se para o pequeno e chamava-o com voz meia

rouca dir-se-ia embargada de sentimentos paternais: “vem

cá meu fortalhaças. Dá cá um beijo ao teu padrinho”. O

menino beijava-o timidamente ao qual o padrinho

correspondia com um abraço que o deixava quase sem


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respiração. O pai observava-os transparecendo nos olhos um

brilho aquoso e abraçavam-se calorosamente. Sentia-se feliz

por saber que o seu Boaventurinha não ficaria desamparado

se ele um dia desaparecesse deste Mundo. O João Gustavo das

Urzes tinha ingressado no exército e era Alferes de

Artilharia no quartel de Vila Real prosseguindo uma

carreira segura e confortável.

Mas antes destas manifestações afetuosas o Manuel das Urzes

sorria e o lisonjeado irmão notava que o seu mano tinha o

olhar num horizonte incerto como se estivesse a recordar

algo que ele gostaria de saber por isso não perdeu tempo:

“olha lá ó Mano, em que é que estás a pensar? Pareces-me

um pouco absorto.”

O Manuel das Urzes acordava do regresso momentâneo ao

passado e sorria, mas desta vez com uma candura que

enternecia o militar: “lembras-te João Gustavo por que o

teu afilhado ficou com o nome de Boaventura?..., mas

recordas-te quando ele ia ser teu afilhado que o

batizaríamos com o nome de João, igual ao teu? Mas o Padre

António, muito atento, sabendo que o menino tinha nascido

a catorze de junho o achou por bem que ele deveria ser

batizado o com o nome de Boaventura? Houve protestos, a

minha mulher ficou aborrecida, os nossos pais também

protestaram...”
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“Mas ficou Boaventura, não é assim? Os padres é que mandam

e não a família da criança...” atalhou João Gustavo das

Urzes com as mãos enfiadas nos bolsos empurrando-os para

baixo escondendo os punhos cerrados dissimulando a raiva.

“Não foi bem assim, estás um pouco esquecido, João. Sei

que não gostas muito deles, mas aqui o caso é diferente,

compreendes? O Padre António sabiamente esclareceu-nos na

altura e acabámos por aceitar a sugestão. Afinal

Boaventura é um nome de homem e não há no feminino, como o

teu, como o meu e como o de muita gente por esse mundo

fora. Como disse o Padre António, esse nome é de origem

italiana e significa Boa Sorte”. Manuel susteve a

respiração, engoliu em seco, virou a cara numa insinuante

pausa e olhando tristemente para o irmão que atentamente o

escutava, continuou: “infelizmente eu e a Hermengarda

nunca mais tivemos outro. De facto, foi uma boa sorte para

nós termos tido este filho...”

“Então, porque nasceu nessa data escolheu-se

Boaventura...”, quis apressar João Gustavo que meneava a

cabeça em jeitos de impaciência.

“Não, não...não foi só isso. É que esse nome está muito

ligado ao nome João.” Manuel meneava a cabeça em jeitos de


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sabedoria eclesiástica que o João aproveitou para dar um ar

de sua graça.

“Oh Mano Manuel, estás mesmo um expert no estudo da origem

dos nomes. Acho que a origem de um nada tem a ver com

outro.” João mostrava-se um pouco agastado com aquela

conversa que tardava em ter uma explicação convincente.

“João, por favor, tem calma! Sabes bem que a minha vida

tem sido a agricultura e pouco tempo tenho para ler...,

mas uma coisa que tenho de bom é saber escutar. Pois só

assim poderei reter na memória aquilo que me interessa e

que não busco nos livros por falta de tempo. Mas como

estava a dizer-te e isto fique claro foi a explicação que

o Padre António deu na altura e que levou a convencer-nos

a todos para que aceitássemos o nome de Boaventura com que

batizamos o teu sobrinho, teu afilhado. Ora bem, escuta

agora e ficarás tão convencido como eu, como já te disse.

É que Boaventura dantes era João, compreendes? Explico-te

melhor, para que não abras tanto os olhos como se eu

estivesse a dizer alguma mentira.”

O militar impacientava-se e quase que suplicava com os

olhos que o irmão fosse breve, conciso e preciso e se

deixasse de delongas, por isso arqueava as sobrancelhas:

“está bem Mano, mas avança rápido, caramba. Estás a contar


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tão embrulhado que, acabo por não entender nada. Que é

isso de Boaventura dantes ser João?” Deixava a interrogação

no ar.

Manuel das Urzes, sentia-se embaraçado pois não era tão

fluente como o irmão e tinha de arrumar as ideias para

prosseguir: “está bem, tens razão, João. Eu explico.

Enquanto falavas, pensei e aqui vai a explicação, tal e

qual o Padre António disse. Portanto, São Boaventura tinha

antes o nome de João. Aconteceu que ele era discípulo de

São Francisco de Assis. Um dia foi acometido de uma doença

muito má e foi São Francisco quem milagrosamente o curou.

Portanto teve a boa sorte de se salvar, passando a partir

daí a chamar-se Boaventura como ficou a ser conhecido.

Celebra-se este São Boaventura na data em que o teu

sobrinho nasceu – catorze de junho! Entendeste, agora?

Terminava assim a longa explicação.

João Gustavo das Urzes estava convencido também com esta

brilhante dissertação aqui recordada pelo seu irmão. No seu

íntimo ele ficaria mais orgulhoso se dessem mesmo o nome de

João àquele moço, uma forma de perpetuar a geração. A

sugestão do padre teve ar de intromissão e a antipatia que

sentia por eclesiásticos saía agora mais reforçada.


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A amizade do tio-padrinho

E agora já tinham passado mais de treze anos. O tio parecia

manter a amizade por ele e preocupava-se para que nada lhe

faltasse. O jovem respeitava-o e correspondia com a maior

simpatia e amizade. Mas aqueles anos de separação tornavam

um pouco difícil o relacionamento entre ambos. O jovem era

demasiadamente reverente e pouco aberto a confidências.

Todavia diplomaticamente mostrava-se cordial e atencioso

para com o irmão do seu pai. Deve-se respeitar o padrinho.

João das Urzes sentia-se orgulhoso do seu sobrinho revendo

nele a imagem daquele que fora o seu maior conselheiro e

amigo de sempre: o seu irmão Manuel.

Falecera ainda jovem vitimado por uma pneumonia trabalhando

como lavrador na Quinta que já haviam herdado de seus avós

maternos.
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As saudades

Em Bragança a Benvinda lia pausadamente para que esta

parecesse mais longa possível a última carta acabada de

receber. Quando chegava ao fim, suspirava e voltava a ler

tudo desde o princípio. Depois, cansada e desconsolada

dobrava a carta até caber dentro de uma caixinha de

fósforos que depois forrava com papel de prenda e atava com

uma fina fita de seda cor-de-rosa. As caixinhas eram

colocadas no fundo da gaveta da cómoda do seu quarto

protegidas por bolas de naftalina envolvidas em algodão.

Malditas, traças!...

Benvinda não tinha outro remédio senão esperar. As

suas visitas à igrejinha da aldeia eram mais frequentes

agora. Aos pés da imagem de Santo António ardiam mais velas

enquanto a penitente suplicava, de joelhos massacrados,

para que a chama daquele amor não se apagasse. Os olhos do

santo casamenteiro brilhavam de compaixão ofuscado por

tantas luzes. A dona Maria Francisca que mantinha o

santuário asseado e recolhia as esmolas durante as missas

observava, abanava a cabeça enrolada em lenço preto e

comentava com a vizinha Guilhermina sempre ávida de

bisbilhotices: “ah vizinha o que a mocita tem rezado...


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nem imagina! Coitadita passa horas de joelhos que até mete

dó. Repare só nos joelhitos dela quando aí passar. Até já

têm calos, veja vossemecê.”

A Guilhermina escutava e mantinha-se calada. Tinha de

mostrar que não gostava de bisbilhotices. Mas assim que a

sacristoa dobrava a esquina abanava a cabeça e deixava

passar um sussurro de escárnio “rata de sacristia, em vez

de tratar do seu trabalho passa o tempo a reparar no que

as outras pessoas fazem na igreja...”

À noite quando o seu Alfredo regressava do campo passando

pela taberna a Guilhermina já tinha novidades para contar

ao marido. Este ouvia, cuspia o resto do tabaco e respondia

sem entusiasmo: “ não é caso para menos, mulher, olha que

aquilo lá em África não é como cá. Já ouvi dizer que as

mulheres de lá são frescas e quentes para o diabo. Faz bem

ela rezar pois só os santos a podem ajudar. Deixe-a

engrossar os joelhos. É com sacrifícios que se ganha a

vida. Dizem que o Santo António é milagreiro dos

casamentos. Daqui a algum tempo veremos”.

Guilhermina ouviu, mas só escutou a parte em que o

companheiro falou das mulheres de África e colocando a mão

sobre a face, questionou de cenho franzido: “eh lá,

Alfredo, conta-me lá como é que é isso de as mulheres de


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lá serem frescas e quentes?”

Alfredo riu-se e sacudiu a cabeça. “Então mulher, tu não

entendes? Olha é tão simples como isto: lá há calor e

quando se dorme, dorme-se nú. Entendeste?”

“Ainda não entendi, homem! Então explica-me lá: se as

desgraçadas dormem nuas por causa do calor como é que

podem estar quentes estando destapadas? Entendes a minha

dúvida?”

Alfredo ria-se e sacudia a cabeça. Ele sabia porquê, mas

escusou-se a explicar. Não fosse ela saber de tudo e noutro

dia já a dona Maria Francisca iria contar ao padre da

freguesia e o sermão da missa seria mais longo. O melhor

seria encerrar a conversa e ficar por ali.

Dona Guilhermina já na cama voltou-se para o marido ainda

insistiu: “olha lá Alfredo tu hás-de-me explicar isso

direitinho, está bem? É que tu já há uns quinze dias que

não me tocas... se calhar andas a sonhar com aquelas de

África”.

A mulher continuou a falar, mas acabou por desistir pois o

bom do Alfredo já sonhava uma paisagem luxuriante, um mar

tropical, areia branca, palmeiras curvadas sobre o mar,


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enquanto a sua mão pousava docemente sobre a coxa quente da

sua Guilhermina. A mulher sossegou e dormiu descansada e

feliz o resto da noite.

E enquanto isso, lá longe, na longínqua África, à

beira do Índico, à noite, no seu quarto deitado e olhando

para o teto, mãos cruzadas na nuca sobre a almofada fofa de

sumaúma, o bancário arquitetava o seu plano para a almejada

independência. Estudava mapas, carreiras aéreas, países

principalmente os da América do Sul e destes a Argentina

pelo qual nutria uma simpatia especial. Os tangos, as

pampas e a abertura aos europeus transformava esse país em

algo importante a atingir um dia se conseguisse realizar o

seu sonho, a sua almejada independência.

Os seus colegas encontravam-no muitas vezes de pé

junto à velha muralha da fortaleza de São Sebastião olhando

além o horizonte traçado em círculo delimitando o mar e a

terra.

Absorto e contemplativo, Boaventura sonhava com a sua

viagem para algures por detrás daquela linha imaginária. No

céu, bandos de gaivotas e garças marinhas voavam, batendo

as asas compassadamente demandando o continente a poucas

milhas dali, iluminadas pelo magnífico sol avermelhado que


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desaparecia no poente, derramando a sua incandescente luz

sobre as nuvens pintando assim um pôr-de-sol magnífico e

extasiante – os famosos pôr-de-sóis dos trópicos.

Interrompido nas suas cogitações secretas aceitava

indiferente em ir com eles ao Bar do alentejano Manata para

um jogo de sinuca ou uma biscalhada para queimar tempo até

à hora do jantar naqueles sábados e domingos sempre iguais.

O orgulho do Sr. Urzes

O senhor Urzes, gabava-se do seu sobrinho dizendo a

todos os seus conhecidos que o rapaz muito cedo chegaria a

gerente pois o moço era culto, estudara no seminário em

Braga. Repetia vezes sem conta com uma pitada de malícia um

certo episódio que fez com o que o moço se desligasse da

vida religiosa. Contava ele aos amigos que o sobrinho só

não chegara a padre porque o raio do rapaz era doido por

saias. No dia em que fora apanhado pela terceira vez a

sorrir e a piscar o olho a uma colegial simpática foi logo

intimado a abandonar os estudos eclesiásticos por falta de

vocação. A moça denunciada pelo prefeito do seminário à

madre superiora do colégio foi admoestada e como castigo

obrigada a rezar vinte pai-nossos e vinte ave-marias para

se redimir, soube-se mais tarde. O jovem estava a completar


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o 7º ano. Foi um escândalo que envergonhou toda a família

exceto a avó Miquelina que não esteve pelos ajustes e fez

ver que “isso de sacerdócio é uma questão de vocação, pois

o rapaz coitadito, bonitão como ele é, melhor será

constituir família pois padres há já demais e ainda por

cima com tanta rapariga casadoira na terra... As

raparigas, sim, essas devem ir para o convento pois com

tanta falta de homem, rumam para o Porto e para Lisboa,

sabe Deus para que vidas, valha-nos Deus Nosso Senhor”,

sentenciava a velha sapiente.

Os ouvintes riam-se, mas abstinham-se de comentários

pois as suas origens eram bem modestas comparadas com as do

senhor capitão.

O senhor capitão João das Urzes sorria, perscrutava a

assistência e fazia escapar uma tossidela para aclarar a

voz. Antes de prosseguir, sacava do seu cachimbo e qual

cacique majestoso, apertava os olhos encimados por grossas

sobrancelhas, acendia-o como se fosse o fogueiro de uma

locomotiva e as baforadas brotavam em golfadas grossas e

azuis com mistura de chispas. Os espectadores atentos

continuavam à espera do desfecho da história. O ex-militar

continuava a falar do sobrinho. “A velha era uma grande

autoridade e, mais ninguém na aldeia, ousou criticar o

Boaventura”, interrompia a narrativa vendo as cabeças dos


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espectadores a abanar afirmativamente. “Grande senhora,

senhor Capitão, grande senhora, sem dúvidas.” Disse um

deles o mais velho. O ex-militar anuía e prosseguia mais

enfaticamente: “E foi assim que o Manuel Barbosa, o mais

importante lavrador da aldeia próxima, organizou uma

matança de porco convidando os Urzes para a festança.

Houve bailarico com violas e concertinas” ...

“Ai que saudades senhor capitão, ai que saudades...”, gemia

o Joaquim Fazendeiro um pequeno e vermelhudo cantineiro do

Mossuril de características célticas.

“Estava lá eu, nessa altura”, disse o capitão de dedo em

riste. “Foi uma bela festança. Comeu-se do bom e bebeu-se

do melhor!”

“Ai que saudades, senhor capitão, ai que saudades...”,

gemia mais uma vez o velho cantineiro, esfregando a cara,

mostrando os olhos azuis, brilhantes de emoção.

- “Ó homem, você não esteja assim. Ao tempo que você cá

anda, já lá tinha ido mais de não sei quantas vezes,”

censurava o capitão.

● “Não é bem assim, senhor capitão...não é bem assim.…

não é fácil... tenho a cantina... as filhas estão no


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colégio em Nampula... é um dinheirão... se saio um

pouco... estes tipos roubam tudo... que hei-de fazer?!

É só sofrer, senhor capitão... restam-me só saudades...

olhe paciência... que hei-de fazer!?...”

● “Deixe lá, Jaquim, você não está mal de todo”,

respondia o ex-militar dando uma consoladora palmada no

conterrâneo.

O cantineiro olhava-o com estranheza.

● “Tem dúvidas Joaquim?... Ora pense bem: você, lá,

andava a semear batatas na pequena horta do seu pai. Se

queria ganhar algum dinheiro tinha de ir cavar terras

dos lavradores e, por ter tirado a terceira classe

conseguiu ser selecionado para Moçambique. Veio para

cá, portanto, em serviço militar e por cá ficou,

trabalhou dois anitos na campanha do algodão e iniciou-

se como comerciante. Pediu uma concessão de terras ao

Governo que já estavam praticamente desbravadas pelos

autóctones e transformou-se em plantador de algodão...”

Joaquim Fazendeiro dava uma tossidela, retirava um lenço

amarrotado e assoava-se ruidosamente.

“Jaquim, verdades são verdades... não pense que estou a


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humilhá-lo amigo, longe de mim em pensar nisso, valha-me

Deus, antes pelo contrário...” O capitão agora segurava o

cachimbo e abria os braços, esboçando ao mesmo tempo um

sorriso paternalista.

“Mas os primeiros anos depois da tropa foram duros para

mim, senhor capitão...” tentava valorizar-se o colono...

● “Sem dúvida, amigo, sem dúvida. Mas a gente sabe muito

bem como é que se fazia a pesagem do algodão aos

pequenos produtores indígenas, não é verdade?!...”

Insinuava o capitão. O Joaquim esboçava um sorriso

amargo e corava quando reparou na cara de gozo que os

outros faziam enquanto o capitão desafiava-o com o

olhar tal como um boxeur vitorioso que acabara de

aplicar um upper-cut ao adversário pondo-o knocked-out.

Mas da parte do Joaquim ficou apenas o silêncio, a

resignação e um sentimento de orgulho ferido. Por isso não

levantou o olhar do chão, mas abanava a cabeça que parecia

anuir mas no fundo, bem no fundo era de raiva. Sentia-se

humilhado. O capitão não precisava ter dito aquelas

verdades. A prática era aquela...

● “Bem, meus amigos, já é tarde, até amanhã,” despediu-se

o capitão olhando para o relógio de algibeira preso a


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uma grossa corrente de ouro.

● “Até amanhã, senhor capitão”, responderam os outros em

uníssono.

A voz do Joaquim mal se ouviu. O outro cantineiro deu-lhe

um pequeno encosto com o ombro sussurrando:

● “Não faças caso, Jaquim. Ele faz a vida dele e nós a

nossa. Ele tem a mulher e a filha doente lá na

Metrópole, agora mandou vir o sobrinho-afilhado para

não estar só. Nós não. Nós temos as nossas pretas e os

filhos que delas temos. Somos felizes à nossa maneira e

que se lixe o resto. Andamos todos a aguentar isto para

o bem de Portugal. Não é assim, Joaquim? Anima-te homem

e nada de remoer ressentimentos.”

● “Claro, claro, João... só não gostei que esse cabrão

falasse assim. A carreira dele, agente sabe como foi,

não é verdade?! O palmar quando o adquiriu tinha só 50

hectares e agora já está quase no dobro... à custa de

quê, anh?!... Não sabes?... Sei muito bem meu caro

amigo! João Gomesindo baixou a voz, olhou à volta para

se assegurar de que não haveria algum estranho que

pudesse escutar e arrematou: os pretos foram obrigados

a abandonar os seus pequenos coqueirais a troco de

pequenas indemnizações porque o gajo requereu aquelas


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terras e na Repartição de Agricultura e Florestas

disseram que essas terras estavam omissas na matriz...

● Omissas estavam, atalhou o Manel, já viste algum preto

ter alguma caderneta das terras?

● Claro que não, pá. Pois as terras já vêm de seus avós e

bisavós e isso não conta? Eles têm o direito às terras,

compreendes? Nunca ouviste falar do direito

consietidi... não...consuetudinário? Pois,

consuetudinário, porra um palavrão do caraças... é

isso, é. No cartório ouvi uma conversa entre um

advogado e o Notário e consegui entender.

● Não sei nada disso, amigo! Sei somente que ele é da

alta sociedade amigo. À mesa dele só comem os doutores

e os que mandam. Com esses não vale a pena a gente

lutar. Deixa-os falar... Bom vamos embora. Até amanhã!

● Até amanhã, João. Agora sinto-me bem. Obrigado pelo teu

consolo.

João Gomesindo pôs a mão no queixo e murmurou para si

mesmo: coitadinhos dos pretos...por um lado eles devem

aceitar que andemos aqui a desenvolver isto para quê?

Temos o direito de sacar o mais possível, como

contrapartida... o capitão é esperto!!! Concluiu achando-se

bem com a sua consciência de colono.

E o senhor capitão Urzes nunca soubera que fora naquela


27

mesma noite que Boaventura e Benvinda haviam trocado os

primeiros beijos que os uniriam para o resto das suas

vidas: “Mais do que isto não, meu amor! Tem paciência

Boaventura.”

Boaventura encostava a moça de encontro ao velho álamo do

jardim convidativo pela sua ligeira inclinação. Benvinda

tentava escapar-lhe, mas o peso do namorado não dava margem

de manobra. A mão dele por baixo das saias tateava como se

tivesse olhos em busca de algo mais fofo enquanto beijava

sofregamente a boca da sua apaixonada. Ambos ferviam de

paixão, mas o sentido sempre alerta da moça fazia refrear

os ímpetos escapando por momentos aos avassaladores e

sequiosos beijos do jovem que passara de abelha a besouro

em busca de pétalas, pólenes e néctar. Nas pequenas folgas

que conseguia, Benvinda deixava escapar ligeiros suspiros à

mistura de medo e gemia:

“Oh querido...tem calma, amor! Não hajas assim.… pode

aparecer alguém”.

Boaventura julgando-se no bom caminho avançou um pouco mais

com a mão que agora seguia rumo certo ao que buscava tal

como um pirata à beira de encontrar o tesouro escondido.

“Aí não, Boaventura. Chega! Já disse, chega!” di-lo com

tanta firmeza que o seu amado estancou e a mão atrevida foi


28

escorregando para fora da saia como uma cobra atingida na

cabeça que de inchada se adelgaçou escorregando para o chão

sem força.

“Então amorosa, estavas tão bem...refreaste porquê, Ben?”

Era a primeira vez que a tratava assim. Dantes tratava-a

por Vinda e muitas vezes Benvinda. Para ela soube-lhe um

pouco a falsidade este novo diminutivo, mas não fez

questão. O seu apurado sentido feminino era superior a tudo

o resto.

Boaventura, mais calmo agora metia a mão no bolso das

calças ajeitando as ceroulas que retinham o sémen que

durante os ímpetos fora saindo, conspurcando a parte

interior. Sentia-se miserável e derrotado. Abanou a cabeça,

ensaiou um sorriso envergonhado desviando o olhar que não

passou despercebido à sua apaixonada.

Benvinda entendeu. Vitoriosa por ter conseguido rechaçar

aquele ataque e tal como uma mãe a repreender o seu

filhinho segurou com as suas mãos macias e quentes o rosto

já frio e pouco barbeado do Boaventura.

“Olha lá meu lindo... há mais marés que marinheiros. Não

fiques assim, amor. Tens de ter calma...isto pode ser

assim. Amas-me? Benvinda fixava agora os olhos do rapaz.”


29

“Claro... claro, que te amo, Benvinda. Mas podíamos amar

ainda mais... Não achas?”

“Sim, querido. Havemos de amar muito mais e não às

fugidas... como aqui”.

Boaventura não entendia bem o sentido daquelas palavras e

para tirar as dúvidas adiantou: “olha, sabes, aquela

capelinha, a da Senhora da Atalaia, posso conseguir a chave

e podemos lá ir. Ninguém lá passa...”. Falava com voz

convincente. Mas Benvinda continuava na defensiva e aquele

convite feito com voz de lobinho mau não a convenceu e para

acabar de uma vez por todas com as más intenções do

namorado, sacudiu negativamente a cabeça e sorrindo de

forma que ele entendesse arrematou:” Ahn, Anh... O que tu

queres sei eu muito bem. Nem penses meu menino. O que tu

queres há-de ser para o filho da minha sogra!”. E foi assim

até o jovem embarcar. Há medida que a data se aproximava os

encontros sucediam-se o que já era notado por toda a gente

e o compromisso entre ambos era desta forma testemunhado

pela aldeia.

A viagem
30

Como lá na terra, excetuando a agricultura que já

empregava muita mão-de-obra, não havia mais onde o moço,

com a cultura que tinha, pudesse arranjar um emprego

compatível, sendo o Porto uma cidade cheia de vícios e

tentações e para que o rapaz não se perdesse, dona Mariana

Urzes, cunhada do capitão, achara por bem pedir-lhe ajuda

que ele se apressou a aceitar sem reservas.

E foi assim que o jovem embarcou em Leixões no paquete

Pátria rumo a África Oriental Portuguesa, onde em Lourenço

Marques seu tio-padrinho o senhor capitão Urzes o

aguardava.

Dois dias hospedados no Hotel Polana “oh Tio nunca

pensei que em África houvesse hotel tão luxuoso” comentava

fascinado o ex-seminarista atrapalhado com tantos pratos e

talheres à mesa, e passeio de táxi por tudo quanto era

sítio e um saltinho à Namaacha – a dita Sintra de

Moçambique, o moço estava deslumbrado. Aquilo nem parecia

África! Belos prédios, avenidas largas, arborizadas, belos

jardins, grandes espaços, cafés, esplanadas. Cinemas,

reclamos luminosos, automóveis luxuosos, clubes noturnos

onde pululavam roliças e luzidias raparigas da cor de

chocolate de minissaias e grandes decotes, usando perucas

de cabelo liso que lhes emprestava uma beleza estranha,


31

movimento... muito movimento, enfim, Boaventura sentia-se

discretamente feliz por estar longe da sua terra que era um

autêntico atraso de vida, de preconceitos, intrigas e

invejas, quando comparado com o que via.

A viagem para o norte foi feita de avião. Um Dakota

bimotor, com catorze passageiros, fez escala na Beira e

pernoitou em Quelimane.

“O nome de Beira foi dado em homenagem ao Príncipe D.

Filipe, - o Príncipe da Beira, filho de D. Carlos e

Quelimane é a Terra dos Bons Sinais nome dado por Vasco da

Gama quando seguia em direção à Índia”, explicava o senhor

Urzes enquanto saboreavam um bom bife à Meireles no

Restaurante Meireles na cidade dos palmares.

O sobrinho ouvia, mas não escutava. A Benvinda lá longe

bulia no seu coração de jovem apaixonado.

O avião escalou Nampula – a cidade fundada por Neutel

de Abreu para reabastecimento e, cerca de meia hora mais

tarde, já sobrevoava a Ilha de Moçambique e aterrava

ruidosamente no aeródromo do Lumbo, envolto numa nuvem de

poeira avermelhada.

O seu emprego seria ali na Ilha – antiga capital do


32

território, a mais antiga cidade de Moçambique, agora

apenas sede de concelho.

O passado do capitão Urzes

O senhor Urzes, importante comerciante e dono de um

vasto palmar, proprietário de salinas, tinha somente uma

filha que uma doença em criança a deixara muito limitada e

impossibilitada de viver em África. Embarcara para a

Metrópole com a mãe, enquanto ele – ex-oficial de

cavalaria, por aqui ficara, cada vez mais apaixonado e

enfeitiçado.

Desde o Lago Niassa por onde andara nos tempos das

campanhas militares de manutenção da soberania logo a

seguir à 2ª Grande Guerra, percorrera todo o Planalto dos

Macondes onde viu homens de dentes afiados como os dos

cães, faces e corpos tatuados, indo até ao Cabo Delgado, ao

Rovuma – o grande rio que separa Moçambique do antigo

Tanganica – antiga colónia alemã e mais tarde inglesa.

Esteve em Mocímboa da Praia, deu um salto à Ilha do Ibo, a

grande ilha do temível pirata português Carrilho –

transformado em Corsário pelo rei D. João VI para salvar e

defender as riquezas auríferas do Reino do Muanamutapa tão


33

cobiçadas pelos piratas ingleses e franceses de então,

segundo estórias de velhos residentes e antigo centro de

exportação de escravos onde viu habitantes de pele clara

como a dos mouros vestindo capulanas como os outros macúas

do continente, negros autóctones.

Percorreu a pé, a cavalo e em machila – uma espécie de

liteira, transportado por quatro homens, toda a costa em

direção ao sul, demorando-se em Porto Amélia, para gozar as

belas e prateadas praias do Imbe - uma das mais lindas

baías da África Oriental. E foi descendo, descendo que

encontrou poiso na movimentada cidade da Ilha de

Moçambique, cidade carregada de história e de lendas,

tomando depois por trespasse uma propriedade de coqueiral e

exploração de copra e salinas na pequena povoação do Lumbo

situada no continente a três milhas daquela Ilha.

Ao pedido da sua cunhada acedeu com entusiasmo receber

Boaventura pois o considerava tanto como filho e nele

depositava as esperanças de um substituto e, para mais, com

um bom lugar no Banco...

A terra de acolhimento
34

Todos os dias, o bancário embarcava na lancha a motor

do seu tio rumo a Ilha de onde regressava à tarde. Quando

havia mau tempo no canal, ficava na Pensão.

A Ilha era um encanto dividido em dois blocos: a zona

dos europeus, mais alta, junto à fortaleza imponente e

repleta de lendas e mistérios. O Palácio de S. Paulo –

antiga residência do Governador-Geral, a Igreja com o mesmo

nome, encostadinha ao palácio e o coreto em frente ao cais,

constituíam o ex-libris da cidade. O casario em estilo

pombalino iluminado pelos candeeiros típicos da época,

enquanto que do outro lado o bairro popular, com as suas

casas de colmo, quadradas, com janelas de vidro, ruas em

labirinto, quintais em paliçada, repleta de gente de túnica

branca e mulheres de rosto pintado de branco, donzelas

naharras seminuas de corpo todo pintado espreguiçando-se na

esteira à sombra das papaieiras de dia mas que de noite

tiravam a maquilhagem, para ficarem mais

macias...maravilhas do creme feito de raspa obtido a partir

de uma espécie de pau de mangal. Vetusta e maioritariamente

islâmica acordando os seus fiéis para a oração às quatro da

manhã do alto dos minaretes dos seus templos e incomodando

os outros que respondem sonoramente hora e meia depois com

o repicar dos sinos para a missa das seis. Para as


35

mesquitas seguem homens de batas brancas e cofió na cabeça,

enterrados até às orelhas, enquanto as mulheres ficam em

casa rezando sobre os seus tapetes virados para Meca; para

as igrejas seguem mulheres de vestidos compridos e véu na

cabeça enquanto os seus homens continuavam a dormir

retemperando forças gastas na noite.

As palmeiras aqui e além, casuarinas de folhas finas

soando como chicotes quando batidas pelo vento, figueiras

exóticas de raízes aéreas pendentes dos troncos,

frangipanes permanentemente em flor, hibiscos diversos,

jasmins em trepadeira com a frescura das suas flores

brancas, buganvílias multicoloridas com predominância da

cor roxa, beijos de mulata de cor púrpura ou branca ao

longo dos muros, as multicolores boas-noites, de pétalas

fechadas durante o dia e abertas de noite exalando o seu

aroma exótico e sedutor, davam um toque de encanto e magia

a esta milenária ilha atraindo árabes mercadores que aqui

repousavam e faziam amor com as negras de ancas ondulantes

fazendo-lhes filhos e filhas de feições suaves resultantes

dessa miscigenação muçulmana – os naharros elevados à

categoria de muenhes, isto é, senhores para se distinguirem

dos seus ascendentes autóctones, os cafres. Muenhes que os

colonos portugueses deturparam para monhés de forma

depreciativa. Foi nesta ilha que o poeta luso-brasileiro,

para aqui desterrado e em cativeiro, Tomás António Gonzaga,


36

queimando picos de limoeiro na chama de vela, escreveu os

românticos versos para a sua amada, filha de um proeminente

governador algures no Brasil, que o celebrizaram – Marília

de Dirceu. Por aqui morreu deixando uma descendência ainda

viva até hoje, mas com apelido muito diluído. Também por

aqui passou o célebre Luís de Camões, sempre agarrado aos

seus rolos de papéis compondo versos intermináveis a que

denominou de “Os Lusíadas”. Aqui governaram muitos ilustres

capitães, desde Francisco Barreto - grande governador de

toda a Zambézia, Sena e Tete até António Enes- o grande

governador-geral.

Boaventura já sabia muita coisa acerca da Ilha. Sabia

também que foi nesta Ilha onde viveu o sultão Mussa Bin Bik

a quem os naharros de então deturpadamente o chamavam de

Mussa Ambique e que foi mencionado no diário de bordo de

Vasco da Gama na sua famosa viagem, dando origem ao nome de

imenso país que é hoje Moçambique. “Moçambique só é

Moçambique porque é Portugal” uma frase de Salazar

referindo-se, naturalmente ao território que se manteve com

as suas fronteiras atuais à custa de muito sangue derramado

de portugueses e nativos. Enquanto estivera no seminário

leu e ouviu muitas palestras dadas pelos missionários que

regressavam de África, ora definitivamente, ora de férias,

contando maravilhas entusiasmando os noviços para a

missionação.
37

Todavia para ele aquilo era apenas história. A

verdadeira história da sua vida seria construída a partir

daqui. Seria desta Ilha que ele forçosamente construiria o

seu futuro e alcançaria a sua independência que já há muito

arquitetara.

A preparação do plano para o voo

No Banco, de semblante sempre sorridente, contava as

notas e as moedas num ritmo surpreendente e quando fechava

o dia tinha as contas sempre certas. Atava os maços em cruz

com cordel e dava-lhes umas punhadas para espalmá-las.

Cada atadinho de notas de cinco mil somava cem contos. Dez

macinhos daqueles fariam milionário a qualquer um.

Boaventura sorria para si mesmo e silenciosamente arrumava-

os metodicamente no fundo do tabuleiro para mais um fim-de-

dia.
38

De quarto escriturário depressa passou a primeiro

escriturário. Tinha agora vinte e seis anos.

Um bigode bem delineado e sempre muito bem aparado,

impecavelmente vestido, bem-falante, cortês e sempre muito

bem informado, Boaventura era a imagem de um verdadeiro

aristocrata colonial. Às várias tentativas ou ensaios de

namoro com pretendentes da Ilha e arredores saíam goradas

pois ele mesmo de forma subtil lhes dava a entender que

havia alguém lá na longínqua Metrópole, a quem jurara

fidelidade, à espera.

Mas na verdade o moço não queria mesmo era

comprometer-se e assim a sua imagem cada vez se valorizava

ainda mais e nada valiam os convites para jantaradas aos

fins de semana, festas de aniversários e outros eventos

muitos deles com poucos convidados para dar um ar mais

íntimo que faziam a ele e a seu tio senhor Urzes. Que era

um bom partido era, mas em conversa sibilada ou sussurrada

o que se conseguia dele era a confirmação dada pelo capitão

de que sempre era verdade que ele, Boaventura, deixara uma

grande paixão na sua terra natal. Mães e pais frustrados

por terem a suas filhas casadoiras e sem encontrarem

pretendente à altura da situação económica que todos

possuíam. Não restava outra solução senão a de terem de

enviar as raparigas ou para colégios na África do Sul ou


39

Metrópole onde conseguiriam encontrar alguém com quem

casar. Em boa verdade Boaventura avançava na idade e já era

tempo de ele acabar com a situação de solteiro. A desculpa

de que estava a amealhar, já não pegava. A falta de casa,

também não era verdade. Havia qualquer coisa de estranho no

comportamento daquele rapaz.... Era natural que todos

acompanhassem de perto, numa espécie de vigilância

permanente sobre a vida daquele belo jovem. A terra, o

espaço exíguo da ilha e o ambiente facilitava essa

vigilância. Boaventura era inteligente e estava ciente

dessa circunstância.

Mas acima de tudo para este ganancioso homem, de forte

personalidade, arguto e astuto a sua paixão, ao que mais se

dedicava, era mesmo à sua profissão.

A Tesouraria

Naquele tempo a casa-forte tinha apenas uma porta que

era fechada com três chaves: uma a do gerente, outra a do

tesoureiro e a terceira de um dos três caixas que

alternavam mês a mês,

O bancário notou que em tempo chuvoso, por falta de


40

ventilação as notas ficavam húmidas contribuindo para a sua

deterioração e sugeriu ao gerente que, se construísse um

gradão, interior, devidamente fechado, ficando a porta-

forte aberta, permitindo deste modo o necessário arejamento

da casa-forte o problema seria ultrapassado. Ideia genial!

Uma vez posta à consideração da Direção Geral veio a

resposta afirmativa, tendo o Boaventura recebido uma carta-

circular muito elogiosa pela brilhante ideia, que foi

aproveitada para situações idênticas noutras agências do

imenso território.

O respeito, a consideração e a estima pelo tão

proeminente caixa aumentava dia a dia e o Boaventura já não

era um simples empregado de carteira e o Gerente chamava-o

muitas vezes para lhe pedir uma opinião.

O senhor Urzes numa das visitas que fizera ao Banco,

uma vez no gabinete do Gerente este confidenciara-o de que

tencionava propor o seu sobrinho para a frequência de um

estágio na filial da capital, findo o qual aguardaria a

nomeação para responsável do Balcão de Nacala – uma nova e

próspera cidade portuária, um pouco mais ao norte. Cidade

que prenunciava vir a ser muito importante, logo que os

japoneses começassem a explorar as minas de ferro a céu

aberto a cem quilómetros dali.


41

O senhor Urzes torcera o nariz pois não lhe agradaria

muito ver o seu sobrinho longe de casa. Como seu herdeiro

naturalmente não fazia sentido ele sair da Ilha.

Sendo assim tudo ficaria na mesma e se o subgerente

aceitasse, passaria então o Boaventura para esse lugar. O

senhor Urzes sorrira. Anuíra com a cabeça dando a entender

que essa seria a mais desejável situação. O aperto de mão

muito caloroso demonstrava bem o grau de contentamento do

empresário.

Apressou-se a quebrar o segredo nessa mesma noite

quando jantava com o sobrinho no Clube “Os Lusitanos” onde

era Presidente da Assembleia e sócio mais antigo. O seu

retrato, fardado de capitão de cavalaria, com os bigodes

retorcidos a D. Carlos, figurava na parede da Sala das

Reuniões, no primeiro andar. Era o vigésimo presidente

daquela coletividade. Ao centro estava a figura do fundador

Comendador José Augusto dos Santos de Tomás Gonzaga Pinto

Magalhães, de risco ao meio, um bigode farfalhudo e uma

farta barba a Dom João de Castro – Vice-Rei da Índia.

Boaventura não mostrou muito entusiasmo e, para

espanto do tio, confessou-lhe que no momento não pensava em

tal situação. Perante a irritação aparente do tio, homem

habituado a tomar decisões por outros, tentou sossegá-lo


42

invocando a situação de injustiça se isso acontecesse. Era

bom que o Gerente se lembrasse de que o senhor Vascão – o

Tesoureiro, homem honesto e competentíssimo era o terceiro

na hierarquia, já com quarenta anos de idade e com filhos a

estudar na Metrópole adoeceria de frustração vendo-se

ultrapassado por alguém que só estava a pouco menos de seis

anos no Banco...

As rugas de raiva que teimavam na testa do capitão

Urzes foram-se esmaecendo. Aquele argumento era de facto

muito forte e mais uma vez via no sobrinho a imagem de um

cidadão honesto e repleto de virtudes. Ele que fora militar

sabia muito bem avaliar este tipo de atitudes. Uma palmada

no ombro do rapaz fê-lo entender que era solidário com ele

e o Boaventura sorriu. Lembrou-se dos fortes abraços que

ele lhe dava quando era pequeno: “aah, grande Tio...”. O

seu plano continuava firme e as férias estavam próximas.

Quando o tio se retirou, seguiu-o com o olhar.

Esticando os lábios num sorriso sarcástico, esfregou as

mãos avaliando positivamente a sua astúcia.

A Ilha progredia no comércio. Ao largo, aguardavam

navios para carregar castanha de caju e copra rumo à Índia.

As lanchas do senhor Urzes puxadas pelos rebocadores,

cobertas de encerado iam e vinham. Os estivadores negros de


43

dorso nu e brilhante de transpiração cantavam as suas

canções tradicionais denotando satisfação pelo trabalho que

faziam: “oié, oié, mama, oié...” cantarolavam em uníssono

carregando os sacos de copra arrumando-os no fundo do porão

das barcaças. Por outro lado, os marinheiros sentiam-se

vaidosos por tripularem embarcações a motor que requeria

melhores conhecimentos e por isso ganhavam mais que os

marinheiros dos barcos à vela dos proprietários indianos de

Mossuril que muitas vezes à falta de vento no canal tinham

que remar lutando contra a corrente e ganhando um salário

de miséria. Os mestres das embarcações do senhor Urzes sim,

tinham fardas e boina de marinheiro embora continuassem

descalços. Quanto ao salário, novecentos e cinquenta

escudos ganhava um mestre e quinhentos escudos os arrais,

incluindo alimentação: farinha e peixe seco, um ano inteiro

e seguintes, condenados à pelagra.

A visita do Governador-Geral
44

Os funcionários camarários arranjavam as ruas,

pintavam o Palácio de S. Paulo e a Igreja Matriz.

Ajeitavam-se os jardins e engalanavam-se a ponte-cais,

as ruas e os monumentos. A visita do Governador-Geral

estava para breve. Dizia-se que era intenção do Governo

mandar construir uma ponte que ligasse a Ilha ao Lumbo, no

continente.

Como sempre, para uns era bom, para outros era mau.

Neste grupo estava o senhor Urzes que veria assim o seu

negócio de transportes marítimos ir por água abaixo. Desde

que a notícia saíra nos jornais era visto sempre de

bengalim debaixo do braço e inquieto. Às vezes quando

parava para conversar com algum dos seus muitos conhecidos

e quando o tema era o da construção da ponte o capitão

segurava o bengalim nas extremidades e transformava-o em

arco, soltava a extremidade mais fina e o interlocutor

tinha de ser ágil para não apanhar com ele na cara. “Oh

senhor Capitão, o senhor anda nervoso...tenha lá cuidado

com o seu bengalim... um dia ainda pode magoar alguém...”

Era a recomendação que se ouvia.

“Escute, isto não é nada contra si meu amigo... longe


45

de mim... longe de mim... valha-me Deus querer ofendê-lo

amigo”. O Capitão olhava para os lados, colocava o bengalim

atrás das costas, de ar carrancudo, inclinava-se para o

interlocutor: “isto cá para nós meu amigo e que ninguém

nos oiça. Eu gostaria mesmo era de arrebentar as fuças a

esse esperto do Governador que quer agora colocar a ponte

nesta Ilha... você já imaginou o que vai acontecer com

tudo isto que aqui se construiu?... Isto vai simplesmente

morrer. Isto vai acabar. Esta Ilha morrerá”, declarava

perentório o experiente militar.

O interlocutor não comungava do mesmo ponto de vista

do capitão. Só o futuro diria.

Umas férias proveitosas

Boaventura convidara o tio para umas férias em

Lourenço Marques. O senhor Urzes não aceitou, mas

recomendou o sobrinho que ficasse na Pensão Aristocrata, na

Avenida 24 de Julho, que era uma hospedaria bem localizada,

bem no centro da cidade e numa zona pacata e com

transportes à porta.

Nesta cidade, depois de alguns dias, tratou de


46

requerer um passaporte e, com taxa de urgência, ao fim de

dois dias e mais a licença militar resolveu apanhar o

comboio correio rumo a Joanesburgo aonde passou uma semana,

instalado num Boarding House na James Street. A cidade

fascinou-o. As grandes avenidas, os arranha-céus, o intenso

movimento de automóveis, aviões quadrimotores que troavam

pelos ares, os grandes armazéns, ourivesarias, etc., não

tinham comparação com nada do que vira na Metrópole e muito

menos em Lourenço Marques

E foi ao passar numa frutaria que ouviu gente a falar

na sua língua. Aproximou-se e cumprimentou-os. Eram

madeirenses, mas que já tinham vivido em Lourenço Marques

dois anos, antes de emigrarem clandestinamente dentro de um

furgão para o John. Os planos para o salto eram feitos numa

pensão barata entre cálices de “madeira wine” que traziam

para engodo na sua bagagem de Funchal para Lourenço

Marques. “O mel é bom para enganar os ursos...” dizia o

Jaime Jardim um dos proprietários da frutaria.

Boaventura foi aprendendo muitas coisas e foi assim

que na companhia de um novo amigo se dirigiu ao The

Standard Bank of South Africa para abrir uma conta.

Nova sugestão e a satisfação do Tesoureiro


47

De novo no Lumbo contou ao tio os pormenores das

férias exceto a sua ida à África do Sul. Não estava no

programa e não queria ser alvo de perguntas incómodas. O

tio ouvia, mas não escutava. A história da ponte nova

estava a estragar-lhe os planos. Mas de vez em quando

olhava para o sobrinho fazendo sim com a cabeça fingindo

que lhe dava atenção. Boaventura compreendeu, mas isso

alegrou-o ainda mais pois sabia que ele não lhe faria

perguntas incómodas, e ainda bem.

Retomado o trabalho, Boaventura, notava que o

Tesoureiro que dantes pouco se interessava por ele,

cumprimentava-o agora com muita simpatia e o rapaz sorria

feliz por ter contribuído para essa melhoria e também para

si. Lembrava-se da motivação do Vasco da Gama quando

chegara a Quelimane: nominou de “Bons Sinais” ao rio que

banha essa cidade. Estava no bom caminho!...

A sua continha ia crescendo no John. Grão a grão como

lhe haviam ensinado em pequenino, não enchia o papo, mas ia

construindo em segredo as asas que lhe fariam levantar o

voo. O voo de condor, planando bem alto sobre montes, vales

e planícies.
48

O movimento no Banco aumentara. A Ilha ganhava nova

importância com a notícia da futura ponte. Os comerciantes

indianos do Mossuril e de outras paragens, aí afluíam para

fazer os seus depósitos, contrariando os maus presságios do

capitão de artilharia. Viam-se agora muito mais forasteiros

do que dantes. O dinheiro que ia em tabuleiros, a

descoberto e transportado pelos serventes, da caixa para a

casa-forte, ia contra todas as regras de segurança do

Banco.

Mais uma vez, Boaventura e com o beneplácito do

Tesoureiro, apresentou ao Gerente nova sugestão de forma a

garantir maior segurança para o dinheiro e outros valores.

O Gerente sempre solícito escutou-o atentamente. Não tardou

que viessem pequenos armários de três gavetas, com rodas,

fechadura com chave, para a guarda de moedas em tabuleiros

próprios, livros de cheques, cheques de viagem e carimbos

do caixa, notas de valor inferior para trocos. Estes

carrinhos distribuídos pelos caixas, recolheriam à casa-

forte no fim de cada dia conduzidos pelos serventes

enquanto o produto grosso do dia constituído por notas de

maior valor seria colocado em malas de cabedal, com chave,

e transportadas pelos respetivos funcionários para os

cofres-fortes, dentro da casa-forte. Uma vez aí, em cada

armário fixo à parede, cada funcionário da caixa arrumava

os maços nos respetivos lugares trazendo para fora da casa-


49

forte, a mala evidentemente vazia.

Foi uma medida muito aplaudida merecedora de um

comentário inserido no relatório da Inspeção do Banco que

visitara a agência pouco tempo depois.

As novas medidas de segurança implantadas davam mais

sossego ao Tesoureiro deixando de estar alerta em relação

aos serventes sempre que pegavam nos tabuleiros das moedas,

não fosse alguma moeda colada à palma de algum deles. Com

os armários, previamente fechados pelos respetivos

funcionários tudo estava seguro.

O senhor Vascão, sorria para o Boaventura e este

correspondia. O Tesoureiro mostrou-lhe um dia a fotografia

da sua Ana Maria a estudar no colégio de Odivelas em

Lisboa. Já ia no sexto ano do Liceu e era uma menina muito

aplicada. Se Deus quisesse formar-se-ia em “doutora

advogada”, sonhava o Tesoureiro olhando embevecido para a

fotografia da menina com boina e duas tranças de cada lado.

O jovem bancário sorria, anuía com a cabeça, mas não fazia

comentários, para não dizer ao colega que os seus planos

eram outros.

Os senhores turistas
50

Depois da vinda do Governador-Geral e do anúncio do

lançamento da nova ponte o movimento turístico aumentara na

Ilha. O aeródromo de Lumbo sofrera um incremento

surpreendente e as notas de Rands e Libras Esterlinas

começavam a surgir com mais frequência. Os “Bifes” sul-

africanos, rodesianos e da Niassalândia afluíam à histórica

ilha, visitando o Palácio e a vetusta fortaleza, repleto de

história lusitana, impondo um pouco de respeito aos grandes

colonizadores do Mundo. Por outro lado, a boa cerveja, o

bom vinho português para regar os famosos camarões à Ilha e

as famosas lulas a Lumbo recompensavam a longa viagem das

suas terras para esta pequena pérola do Índico.

Queriam lá saber da história, as escaramuças navais

que desde o século dezasseis até dezoito em que muitos

ingleses, holandeses ou franceses pereceram sob o fogo

poderoso dos canhões dos navios de guerra portugueses ou

disparados diretamente daquela fortaleza. Não fazia parte

da história deles. Era história da sua malfadada pirataria

e tentativa de apanhar aquilo que os outros com sangue e

suor haviam construído. O importante mesmo foi o século

dezanove! O Mapa pintado de côr rosa desgraçou a monarquia

portuguesa. Essa era a história recente – a mais importante

para eles. Ficassem os portugueses com as costas que


51

serviriam assim para aquecer as suas terras ou seja o seu

in-land. Foi por isso que os alemães nunca conseguiram

atacá-los de 1939 a 1945 apesar de os seus submarinos e

outros vasos de guerra enxamearem o Canal Índico. Agora que

o perigo passara o interesse era outro: fartar vassalagem!

Os descendentes de britânicos e holandeses, encharcavam-se

em cerveja e espalhavam garrafas por tudo quanto era sítio,

cantavam alto, mijavam em todo o lado e vomitavam de tanta

bebedeira num cenário pouco condicente com o aspeto que

tinham quando sóbrios aportavam à Ilha: pareciam gentlemen!

Os portugueses, sempre de brandos costumes para eles,

sempre muito complacentes, riam-se e achavam-lhes graça

pois o importante era as libras e os randes. Esses bêbedos

recolhidos aos hotéis de onde acordavam muitas horas depois

perguntavam puerilmente “who brought me back?”. “The boys

brought you, sir”, era a resposta do rececionista. “Boys”

eram os criados. “Shit” era a resposta do bóer pois não

suportava ser tocado por um negro. Felizmente que, para a

sociedade mais consciente eles não representavam a sua

civilização.

E em frente, para além de Mossuril, a paradisíaca

Praia das Chocas, de palmeiras inclinadas, saudando o belo

mar de águas límpidas, cristalinas refletindo o azul do

céu, rica em conchas raras e porcelanas – univalves

pintalgadas castanhas e azuis e o seu dourado areal


52

imaculado: era a praia que toda a gente adorava. Os “bifes”

também iam para lá para ficarem com a cor-de-camarão frito.

Os truques e os encantos dos indianos

Boaventura, já muito conhecido, era calorosamente

recebido nas lojas dos indianos que arrecadavam toda a

moeda estrangeira que lhes caísse nas malhas. O jovem

mantinha as melhores relações de simpatia interesseira pois

sabia que era com eles que tinha de pactuar se queria

atingir os seus objetivos. Certa noite, em casa de um dos

mais abastados comerciantes, o senhor Kwajah Hassan, um

simpático “muenhe”, ele lhe contara que os casacos indianos

tinham muitos bolsos interiores por causa dos ladrões que

só conseguiam assaltar no máximo um só bolso...

Com isto queria ele dizer que um homem não devia


53

colocar o dinheiro num só lugar, num só Banco, numa só

cidade, e, sobretudo, num só País.

“Homem sábio e previdente, este senhor Kwajah”,

pensava o Boaventura, enquanto comia “bajipuri” e petiscava

grão frito que a filha vinha muito silenciosa e cabisbaixa

deixando na mesa-redonda em frente dos dois homens. O jovem

inalou o seu perfume de jasmim e quando tentou mirá-la

melhor já a moça entrava na cozinha ao fundo do corredor.

O pai notou e apressou-se a esclarecer:

- É Jamila a minha filha. Tem quinze anos e já está

noiva. O noivo há-de vir da nossa terra lá no Paquistan.

Faz favor senhor “Urzo” tira mais bajipuri. A minha filha

é mesmo especialista disto.

- Senhor Kwajah pode tratar-me por Boaventura, é o

meu nome de batismo.

- Mas como assim, o senhor não tem o mesmo nome do

senhor comandante Urzo?

- Sim, tenho. Mas é Urzes e não Urzo como o senhor

disse. Riu-se.

- Bem descurpa-me, compreende... eu sempre ouvir as


54

pessoas daqui chamar, senhor comandante Urzo, senhor

comandante Urzo e, como o senhor é filho, então também é

Urzo. Perdoa-me minha ingonorânça, este nome significa o

quê, animal ou outra coisa?...

-Urzes, senhor Açaimo, atalhou o jovem, é nome de planta

do campo, da serra.

-Ah... engraçado... meu nome de família é Hassan e não

Açaimo... Mas agora fiquei a saber que o seu nome é

Buavintura e que o senhor comandante é Urzes. Ah muito

bem. Sabe ele é um homem muito porreiro e agente dá-se bem

com ele. É um homem com muita força nesta terra. Não sei

se sabe recusou duas vezes o pedido do senhor governador

para ser comandante da polícia...

- Não sabia, não. Sei que o meu tio é um homem de

negócios muito atarefado.

- Pois bem, senhor Buavintura diga-me então sobre a

sua vinda, mas antes diga-me só uma coisa, como está a

taxa de juro de depósito a prazo... três por cento? Uhnn

se eu aumentar o meu depósito para quinhentos contos não

me dá uma taxa de três e meio por cento? Sabe, o Standard

Bank, na Beira está a pagar bem...

- Eu sei, eu sei. Apareça lá no Banco amanhã e vamos

falar com o gerente. Tudo é possível. E ainda por cima o


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senhor é um dos nossos melhores depositantes.

- Ah, ah, sim senhor. Vou aparecer às dez horas, OK?

Concluíu o indiano esfregando as mãos de contente.

- Ok! Mas eu vim para falar consigo a ver se me

consegue alguns rands...

- Descurpe o senhor tem conta na África do Sul?

Perguntou em surdina com receio de que a sua voz fosse

escutada através das grossas paredes de taipa.

- Não! Mentiu o Boaventura, como convinha. Tenho

conta em Portugal.

- Então para isso para si é melhor Libra esterlina

que entra logo para a sua conta. Rands não. Tem de ir à

cobrança e leva muito tempo e o Banco cobra comissão. Só

se o senhor como empregado bancário...O indiano sabia bem

daquilo.

- Não, eles não vão nisso. Eu não vou mandar para o

Banco. É uma prenda para a minha namorada, agora, depois

para uma tia, para a avó, etc., ...

- Jamila! Traz aquele meu cofre do Papá.


56

A moça não tardou a trazer uma malinha preta de

cânfora, tipicamente indiana, incrustada de madrepérola.

Boaventura preocupou-se em admirar o encanto exótico e a

beleza da mocita. Vestia calças de seda trazendo um

jaquetão cor-de-rosa e um lenço azul também de seda

amarrando os longos cabelos negros cor de azeviche. Ela

sorriu e o jovem correspondeu percorrendo-a com o olhar de

alto abaixo.

- Papá, posso ir?... Suplicou a jovem já nervosa e a

ficar avermelhada.

- Espera, Jamila. Tu tem pressa de quê, filha? Tens

vergonha do senhor Buavintura? Não, não te faz mal e ainda

por cima já tem namorada em Portugal, não é senhor

Buavintura?

O jovem tossiu e respondeu com a cabeça anuindo,

sentindo-se desarmado.

Jamila sorriu mais uma vez e nunca mais olhou para

aqueles olhos azuis.

O pai retirou umas tantas notas, fechou a malinha

devolvendo-a à filha e esta retirou-se apressadamente. No


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quarto ouviram-se risadas de mais de quatro jovens.

- Então Jamila, o quê o Papá queria? Perguntou curiosa

a irmã mais velha, Mariamo.

- Papá tirou dinheiro. Não sei para quê. Estava lá um

rapaz, mana. Tão giro, tão giro, só ir lá valeu a pena.

- Chi!...miúda. Caluda. Não fala assim... Tu até

pareces que viste guloseima. Vou dizer à Mamã e ela põe-te

na linha. Não te esqueças que o Abdul Rassul é que é o teu

noivo.

- Noivo, noivo. Quero lá saber, nem fui eu quem

escolheu, respondeu Jamila encolhendo os ombros.

- És mesmo miúda, não sabes o que estás a falar.

- Sei, sei. Tu ao menos vais casar em Mossuril e

sempre conheceste na escola o Jussub... porquê foram

arranjar para mim uma pessoa que nunca conheci?

- Hás-de conhecer. O Papá quando foi à India é quem

escolheu. É filho de um homem rico de Islamabad e grande

amigo do tempo de criança do Papá. Eram como irmãos...

Olha Jamila por isso são que tu és a filha querida do


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Papá. Ninguém te pode tocar ele zanga-se logo. Não

conheces o teu noivo, mas vais conhecê-lo no próximo ano.

Vais-te casar e vais para India e vais viver que nem uma

princesa, enquanto nós aqui vamos continuar a tratar da

casa, lavar panelas e sempre fechadas, só saímos aos

domingos.

Jamila em vez de se alegrar, chorava de raiva.

As irmãs afastaram-se. Haíssa a terceira disse para a

Mariamo: olha, mana ela em vez de sorrir está a

choramingar.

- Deixa, são lágrimas de alegria, respondeu cheia de

inveja. Quem me dera estar no lugar dela.

Continuando, aquelas eram as razões que apresentava

para que os comerciantes lhe cedessem uma parte dessas

notas que Boaventura mandava depositar em correio registado

no The Standard Bank de Joanesburgo. Felizmente tudo corria

às mil maravilhas e nas suas asas de condor já se notavam o

crescimento dos remígios.


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O truque

Ao fim de cada dia os funcionários cumpriam o ritual:

armários com rodas para dentro, caixas retirando o dinheiro

e colocando no armário, retirada do casa-forte, fecho do

gradão e fecho da porta-forte, rodar os volantes e fechar

dando a volta à chave três vezes.

Boaventura começou a pouco e pouco a ser o último a

sair da casa-forte. De mala preta na mão, antes de se

retirar, dizia ao Tesoureiro sorrindo matreiro que levava

ali a sua independência. Este olhava e ele abria a mala.

Vazia, claro. Colocava nele os jornais e um livro e

despedia-se com uma pequena risada ao brincalhão.

Esta cena foi-se repetindo. Primeiro, semana a semana.

Depois, de dois em dois dias e, por fim, já era todos os

dias de maneira que já ninguém lhe ligava, tão repetitivo

ele era.

O mês de junho estava próximo e com ele o Dia da Raça.

Coincidiria com uma Sexta-feira.


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Boaventura em conversa com o tio dissera-lhe que iria

assistir os festejos em Nampula. Iria de comboio pois

queria aproveitar a viagem para descansar e ler o novo

romance que acabara de encomendar.

A fuga

Na véspera, pedira ao gerente para sair mais cedo por

causa do horário do comboio e um pouco à pressa chamou os

serventes para lhe levarem o carrinho para a casa-forte e

ele carregando a sua mala preta transpôs o gradão e começou

a afastar as notas no armário para dar espaço ao conteúdo

da mala. Selecionou as notas de mil e de quinhentos.

Despejou desordenadamente o conteúdo da mala na prateleira

e com um golpe de braço fez desabar os castelos das notas

atadas e empilhadas. Apanhou rapidamente as que lhe

interessavam e chamou o Tesoureiro que acorreu vendo o

embaraço em que o moço se encontrava para de novo pôr tudo

em ordem.

“Oh senhor Vascão nunca disto me acontecera antes. Fui


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desastrado e deixei cair tudo ao chão” lamentava-se em tom

grave e sério fingindo sentir-se aborrecido.

“Ora, jovem, isso acontece... nada de importante... vê

como tudo está arrumado, já!?”. Agora feche a porta desfaça

o segredo e feche tudo muito bem. Vem aí o fim-de-semana

longo.”. Acalmou o convencido Tesoureiro

A pressa de apanhar o comboio fizera-o ficar

desastrado tinha-se desculpado o caixa. O Tesoureiro

confiante e ao mesmo tempo atencioso, ajudou-o a arrumar

ficando tudo como dantes.

Agradecido o Boaventura apertou-lhe a mão

vigorosamente e dando-lhe uma pancadinha nas costas sorriu

para ele dizendo mais uma vez que levava na mala a sua

independência. O senhor Vascão, abanou a cabeça e mais uma

vez sorriu achando-lhe piada: “ah como é tão brincalhão

este moço!...”, pensava sorrindo.

O jovem despediu-se de todos dizendo até segunda.

Ninguém reparou que os jornais e o livro que habitualmente

ele metia na mala tinham ficado na prateleira debaixo do

balcão. Boaventura ainda espreitou o gabinete do gerente

que falava ao telefone e fez-lhe adeus.


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O gerente notou, sorriu e fez-lhe o largo aceno sem

interromper a conversa.

Apanhou a lancha para Lumbo, despediu-se do tio a

correr, foi a casa, pegou na mala previamente apetrechada

de roupa necessária e apanhou o comboio. Desembarcou no

Monapo a meia centena de quilómetros, telefonou para os

Táxis Aéreos de Nampula e voou para Milange.

Dali alugou um táxi que o levou até Blantyre e na Air

Rhodesia voou para Joanesburgo. Como era bom estar a voar.

Mas esta era apenas uma pequena etapa. De Joanesburgo para

Buenos Aires, via Roma seria finalmente o seu grande vôo.

As asas de condor estavam com as penas bem crescidas.

O senhor capitão Urzes recebeu um telefonema do

Gerente, passava das quinze horas da Segunda – Feira. Não,

o sobrinho não estava. Também estava preocupado pois o

rapaz deve ter ficado hospedado, como era seu hábito, no

Hotel Portugal em Nampula. Com certeza que ia indagar.

Oxalá não tenha acontecido nada.

A polícia posta em campo descobriu apenas que o

Boaventura se aventurara para o estrangeiro tendo saído

pela fronteira de Milange, na Zambézia.


63

Tinham desaparecido dos cofres cinco mil contos, o

equivalente a cento e vinte e cinco mil rands – uma

fortuna! Quem diria! “O Boaventura moço impecável...”

comentava-se em toda a parte.

“Não pode ser, o meu sobrinho não me faria uma coisa

dessas”, resmungava baixinho o capitão, num misto de fúria

e incredulidade. “Tenho de o apanhar, custe o que

custar... ele nã pode fazer-me uma coisa dessas, repetia,

agitando o bengalim vezes sem conta, tentando concentrar-

se.

O senhor Urzes, depois de obtida a pista de fuga, voou

para Joanesburgo acompanhado de um inspetor da Polícia

Internacional e de Defesa do Estado mas tudo o que

conseguiram saber, junto da polícia internacional local,

com toda a certeza, que esse senhor Boaventura possuía toda

a documentação em ordem e tinha de facto comprado um

bilhete para Argentina via Roma. Nessa data ele já estaria

em Buenos Aires.

As notícias correram de norte a sul em todos os

jornais e pasquins. Nos cafés, esplanadas e cervejarias,

nas casas particulares e empresas não se falava de outra

coisa. “Que grande golpe, safa?!”


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Em todos os bancos e empresas os empregados-caixas

passaram a ser vigiados de forma quase hostil como que se

todos passassem a imitar o expert Boaventura. As

conferências de surpresa às caixas foram imediatamente

introduzidas a partir de então como forma de prevenção aos

possível “golpe de mão”. O lugar de caixa passaria a estar

reservado a pessoas muito bem credenciadas, não como o

senhor Boaventura, sobrinho de um proprietário importante,

mas sim detentor de uma folha de serviços sem mácula e com

o registo criminal limpo.

O fim de um capítulo

A fuga do sobrinho e o roubo praticado trouxe um

grande desgosto à vida do capitão Urzes.

Sentia-se humilhado e insultado por aquele em quem

mais confiara e que tanto queria como se de um filho

tratasse. Por mais que os seus amigos e conhecidos o

tentassem confortar menos aparecia em público. O seu

negócio ia por água abaixo de tanto desalento. Vendeu tudo

quanto tinha, ao desbarato e regressou a Portugal para

junto da mulher e da filha doente. Dona Mariana não

suportou o choque e pouco tempo depois morria cardíaca.


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O destino da Ilha

A Ilha ganhou mais uma ponte, mas nem por isso teve

progresso. O povo, cansado de tantas dificuldades foi

demandando o continente e estabelecendo-se mais à vontade

num espaço mais largo. O banco foi reduzindo pessoal. As

repartições públicas também. Os comerciantes indianos foram

fechando as portas. O pessoal das embarcações foi caindo no

desemprego e as embarcações vendidas ou desmanteladas. A

fortaleza que albergava uma companhia de artilharia, passou

a destacamento com os soldados tisnados pelo sol da praia,

bebendo cerveja e passeando-se à noite com as lindas

naharras que aspiravam ter um marido branco já que os

jovens da sua raça desapareciam sem deixar rasto atraídas

por um sol que iria nascer e que se dizia traria

felicidade, riqueza e bem-estar para todos. Mas isso estava


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reservado ao futuro. Infelizmente este é e será sempre

incerto.

- Fátimah, um dia eu hei-de voltar, repetia vezes sem

conta, Momade, para a sua naharra de olhar meigo e

descrente.

Momade nunca mais voltou e na ilha sobravam donzelas

que passavam o dia a enfiar missangas e a fazer colares com

conchas que a maré jogava na areia dourada.

Ao longe o Mossuril assumia-se calmo protegido pela

floresta de palmeiras, mangueiras e cajueiros. Poucos

sabiam que no meio das batucadas havia sussurros obscuros

contando uns e escutando outros sobre notícias que alguns

homens traziam da Tanzânia. Mais jovens desapareciam sem

deixar rasto.

A cidade de Nampula passava a centro nevrálgico.

Começava a encher-se de gente branca fardada. As estradas

começaram a ser pavimentadas de alcatrão. O aeroporto

ganhou importância e não tardou que surgissem aviões

pequenos que voavam mais rápido que todos os outros. Voavam

formando um V como os gansos da sua viagem de arribação.

Mossuril começou a ficar vazia também. Em Nampula é


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que havia trabalho pois estavam lá muitos patrões e haveria

trabalho para todos. A Companhia Algodoeira inaugurava a

sua fábrica de Namialo e em Monapo a do Sisal.

Para trás ficava a Ilha, só, agarrada ao seu passado.

E os hotéis e alguns restaurantes eram de novo abertos para

acolher os oficiais e as suas damas que aí demandavam para

reviver o passado de Vasco da Gama e de muitos vice-reis da

Índia, a caminho de Portugal para onde todos um dia haviam

de voltar cumprindo assim a profecia de Momade quando

namorava a sua naharra Fatimah.

- “Fatimah, eu jura... um dia eu há-de vortar”

Infelizmente muitos dos oficiais que aqui gozaram o

banho do Índico, não regressaram, jamais, tal como Momade.

Mas a Ilha lá continua toda orgulhosa do seu passado

ostentando orgulhosamente os seus monumentos erguidos com

suor sangue e lágrimas amassadas com pedras e cal trazidas

de muito longe, de Portugal: a fortaleza de S. Sebastião, o

Palácio de São Paulo, a Igreja de Santo António e o fortim

de São Nicolau e algumas mesquitas centenárias – agora

elegido a Património Mundial pela UNESCO.

A Ilha de Moçambique continuará e perpetuará a


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história de Moçambique e de Portugal.

Um turista argentino

Mas um dia, passados mais de vinte anos, um senhor de

cabelos grisalhos, de olhos muito azuis e um bigode

cinzento muito bem aparado, viajando num paquete argentino

em viagem de roteiro turístico, com forte sotaque espanhol,

escalando o porto de Lourenço Marques, era interpelado pela

polícia.

Sim era ele, Boaventura das Neves Urzes. Ostentava na

gravata um alfinete com as iniciais BNU.

O mandado de captura expirara. Restava apenas lavar a

sua mancha conforme opinava o chefe da PIDE. “De acuerdo,

de acuerdo señor Inspector, jamás pasaria por mi cabeza

dejar de pagar el emprestimo contraido. Soy un hombre de


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honor y este es el motivo por que yo hey efectuado esta

viaje en compañia de mi mujer. Me gustaria mucho ablar com

el señor director”. O Inspector Zagalo telefonou ao

Director do Banco e ali, naquele paquete, ao lado da sua

Benvinda, assinou uma única livrança a vencer daí a

sessenta dias – pois nessa data já estaria de volta à casa,

em Buenos Aires. Era a única e derradeira forma de se poder

reaver aqueles cinco mil contos desviados da casa-forte.

Seguiram-se os brindes habituais numa franca e cordial

cavaqueira, tendo o senhor Buenaventura – era assim que a

Benvinda o tratava, deixado a morada para uma visita que

algum deles lhe quisesse fazer no País dos Tangos, das

Pampas, das Lamas e dos Condores.

Ao despedir-se, o Director por curiosidade quis saber

em que negócio ele se tinha dedicado na Argentina. “Uno de

los mayores y mejores night clubs de Buenos Aires”,

respondeu o ex-bancário.

- E como é que se chama esse clube nocturno, quis saber

mais o Director,

Boaventura sorriu e apontou para o alfinete da

gravata.
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- BNU! O Director deu uma gargalhada depois de ter

soletrado.

A Benvinda colocou o dedo no alfinete e soletrou

também mas com um largo sorriso, orlado por lábios carnudos

da cor de morangos maduros:” Buenaventura Niebes Urces:

BNU! Usted es increíble, disse abanando a cabeça brincando

com os olhos de quarentinha bem vivida.

A livrança foi honrada.

Fim

Murtinheira, Arrentela, 21/05/99

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