Mezêncio, Márcia - Contra A Segregação, A Transferência

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Contra a segregação, a transferência 1

Márcia Mezêncio 2

Delimitando nossas referências

A convivência e não o controle constitui a idéia básica para assegurar


a paz social e a preservação dos direitos do conjunto da sociedade,
aqui incluídos os chamados direitos humanos. Este é o desafio que o
Estatuto da Criança e do Adolescente coloca para os órgãos públicos,
para os movimentos sociais e também para os profissionais, entre eles os
operadores do direito, o psicólogo e o psicanalista. Como combinar
direitos humanos e singularidade, quebrando uma associação histórica
entre os campos psi e jurídico que sempre visou o controle social? Se
existe uma fronteira entre a subjetividade e direito, de que forma o
direito pode favorecer, via responsabilização jurídica, a
responsabilização subjetiva? É a partir desse espaço de interlocução
que tentarei responder a questão colocada para essa mesa: que
clínica é essa que fazemos, nessa interface entre o direito e a
psicanálise?

Ainda que a psicanálise não coincida com os ideais da época ou com


as identificações estabelecidas, ela é inteiramente dessa época — que
é o tempo do ato —, e o que a psicanálise oferece é um modo de
pertencer à sua época que aponta para a responsabilidade de dizer.
Então, se hoje o analista sai do seu consultório para inserir-se na cidade
e suas instituições

1 Intervenção proferida na mesa redonda: Adolescência, Lei e Ato Infracional: Da


exclusão ao laço social: que clínica é essa? VII Jornada de Psicologia: “Psicologia e
Direitos Humanos: Possibilidades e desafios dessa Interlocução” – PUC Minas Betim,
realizada nos dias 09, 10 e 11 de maio de 2007.

2Psicóloga, Mestre em Psicologia, Psicanalista, Coordenadora do Programa Liberdade


Assistida da PBH.
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(...) têm que passar da posição de analista como especialista da


desidentificação à de analista cidadão. Um analista cidadão no
sentido que tem esse termo na teoria moderna da democracia. Os
analistas precisam entender que há uma comunidade de interesses
entre o discurso analítico e a democracia, mas entendê-lo de
verdade! Há que se passar do analista fechado em sua reserva,
crítico, a um analista que participa; um analista sensível às formas de
segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e
qual lhe corresponde agora. (LAURENT, 1999)

O analista é então chamado a tratar o mal-estar social e a se


posicionar do lado das conquistas democráticas. Sua função, no
entanto, continua a privilegiar o um a um, recusando os efeitos de
segregação do discurso universalizante da política e da ciência. Então,
ainda que posicionado junto às instâncias de controle social, não
poderá tomar partido de buscar a adaptação, de responder às
palavras de ordem e a vontade de controle do mestre de plantão.

A psicanálise propõe uma forma inédita de enlaçamento, que se


materializa no discurso analítico. Então, se o que faz laço social é a
forma pela qual o sujeito se coloca no discurso, através da experiência
da psicanálise, pode-se entrever uma resposta ao tempo em que as
diversas formas de segregação se impõem, através de uma sociedade
de consumo em que a lógica da inclusão-exclusão mascara o mal-
estar. A referência à teoria dos discursos é fundamental quando se trata
do laço social para a psicanálise. Segundo a teorização de Lacan, o
discurso é o que faz laço social, e os efeitos de segregação de nosso
tempo são inscritos através do chamado “discurso” do capitalista, que,
apesar de nomeado discurso, retrata um curto circuito do discurso, pois
apresenta uma relação direta do sujeito ao objeto, não mediada. A
notação do discurso do capitalista anuncia um sujeito que prescinde do
Outro, um sujeito que goza sozinho. Os sintomas atuais colocam um
desafio para a psicanálise, pois não apresentam a dimensão de apelo
do sintoma freudiano, não apontam para o laço social, portanto,
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Os sintomas como as toxicomanias, bulimia, anorexia, “expansão


maníaca”, pânico, que se tornaram epidêmicos em nossa
contemporaneidade, nos apontam uma opacidade do gozo, um
rechaço do inconsciente. (MORELLI, 2007)

Ainda assim, considerando que para Lacan “o ato é por sua


própria dimensão um dizer” (LACAN, Seminário do Ato Analítico),
torna-se possível pensar

(...) numa política onde reafirmemos a existência do inconsciente,


uma política onde na pressa desse mundo, crie um espaço para o
tempo, um tempo para se falar, falar dos fatos que já determinaram
vicissitudes na vida do sujeito, na sua historia, tempo para pensar
antes de concluir e sucumbir à urgência, e passar ao ato. (MORELLI,
2007)

Nossa clínica é exatamente a clínica do ato, ato infracional e


consideramos com Miller que

Todo ato que não é somente agitação, movimento, descarga


motora, todo ato verdadeiro, todo ato que marca, que conta, é
transgressão. (...) Todo ato verdadeiro é delinqüente. (MILLER, 1988)

O adolescente e a lei

Nossa referência jurídica, o Estatuto da criança e do adolescente adota


um critério cronológico para a definição da adolescência: são sujeitos
entre 12 e 18 anos, em condição peculiar de desenvolvimento. Define
ainda o adolescente como prioridade absoluta, a partir de uma
doutrina de proteção integral, e como sujeito pleno de direitos.
Lembremos aqui que não há equivalência do sujeito de direitos com o
sujeito do inconsciente, ao qual a psicanálise visa.

Essa definição do sujeito dos direitos esbarra em dificuldades quando se


fala no adolescente infrator, com todos os efeitos de segregação que
daí advém. Pensamos que ser sujeito de direitos significa possuir
capacidade jurídica e social e a atribuição da responsabilidade penal
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é fundamental. É central no campo da adolescência. Tratar o tema na


dimensão apropriada — desconstruindo os mitos em torno da violência
dos jovens, da sua periculosidade e da impunidade —, e dar voz ao
adolescente é uma forma de evitar duas noções extremistas sobre a
problemática dos adolescentes em conflito com a lei: por um lado sua
vitimização, imputando a responsabilidade de suas ações ao meio em
que estão inseridos; por outro a responsabilização exclusiva do infrator,
atribuída à sua índole criminosa. (VOLPI, 2006)

Sujeito de direitos, o adolescente é igualmente sujeito a obrigações e o


Estatuto define sua capacidade jurídica para assumir a
responsabilidade pelos seus atos. Ou seja, com o Estatuto, o
adolescente infrator deixa de ser uma vaga categoria sociológica para
converter-se em precisa categoria jurídica. O desafio que se impõe é
criar políticas conseqüentes com o paradigma da proteção integral e
fazer valer a dimensão da responsabilização. (MÉNDEZ, 1998)

A medida sócio-educativa liberdade assistida é uma das formas pelas


quais o adolescente é responsabilizado pelo ato que cometeu. No
programa de Belo Horizonte, orientados pela psicanálise, trabalhamos
com a oferta de um espaço de escuta, buscando criar as condições
para, através do laço transferencial, romper com as condições de
segregação do discurso dominante e resgatar a dimensão da causa e
da singularidade.

A orientação da psicanálise é também o que vai nos permitir uma


distinção importante: até aqui falamos de lei no sentido do
ordenamento jurídico, os códigos legais ordinários. Trata-se da lei
grafada com minúscula. É distinta da Lei, com maiúscula, que remete à
própria constituição do sujeito, ou seja, a sua entrada no mundo
simbólico, à transmissão simbólica do ordenamento das gerações e dos
sexos, que introduz o ser falante no campo da cultura, o humaniza.
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Podemos afirmar que as leis ordinárias estão referidas a uma Lei


simbólica.

A adolescência não é um conceito da psicanálise

A idade do sujeito para a psicanálise não é cronológica e os sujeitos


têm a idade de sua demanda. A adolescência é o momento que
aponta para a assunção da responsabilidade de um sujeito por sua
palavra e seu ato. É o momento de elaborar uma saída da infância,
separando-se da autoridade dos pais. (FREUD, 1905) O adolescente
demanda justamente ser escutado e reconhecido como responsável
por sua palavra e seu ato, até que o seja social e juridicamente. O fato
de não sê-lo, traz uma série de dificuldades para o sujeito na
possibilidade efetiva de realizar seu desejo. Questão que traz
conseqüências tanto na clínica quanto no espaço social, onde
aparece também através dos atos infracionais.

Vemos então que a adolescência se apresenta duplamente como


sintoma. Para a psicanálise, as manifestações sintomáticas da
adolescência constituem uma resposta ao que Freud chamava “as
transformações da puberdade”, isto é, ao encontro com as
transformações corporais e com o desejo sexual. Ao deixar a infância, o
jovem deve fazer novas escolhas, que implicam uma referência ao
sexo, ao Outro, ao amor e aos ideais — o que tem a dimensão de um
ato (transgressivo, na medida em que aponta para um novo). No
campo social, a adolescência se apresenta como um problema, pois
esse novo traz consigo uma ameaça ao laço social, uma
descontinuidade da tradição, configurando um problema para o
adulto. (PIMENTA FILHO, 2004)

Na vertente do sintoma para a psicanálise, STEVENS (2004) indica três


modos de resposta: respostas com o saber; resposta em relação às
identificações e respostas em relação à fantasia que falha, onde o ato
aparece como principal manifestação.
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As patologias que se apresentam, nesse momento da vida, se


relacionam ao ato, enquanto crises de identidade, tornando-se crise de
desejo. As escolhas sintomáticas se apresentam para o sujeito como um
modo de responder que terá de elaborar em face do surgimento de um
real. (PIMENTA FILHO, 2004)

Lacan advertia que a civilização contemporânea não favorece essa


passagem e previa uma generalização da infância. No que isso remete
à irresponsabilidade pelo gozo, traria efeitos devastadores de
segregação. Segundo Miller, a resposta da psicanálise é a extensão
terrorista da responsabilidade, isto é, a aposta e a afirmação de que o
sujeito é sempre responsável por sua posição. Falar em nome do outro é
justamente mantê-lo em uma posição infantil, irresponsável. Não é este
o lugar do psicanalista, porque a clínica sob transferência não admite
segregação.

A segregação começa com a negação do “isso se endereça a mim,


a mim que sou constituído por este endereçamento, quando minha
oferta mesma o produziu”. Os juízes da infância, os educadores notam,
pertinentemente, o efeito de retorno dessa segregação naqueles que
são nomeados delinqüentes: uma ausência de demanda, uma
ignorância, certamente lamentável, mas explicável dos “serviços” que
se poderia lhes oferecer. A segregação convoca a segregação e,
como disciplina abstrata, sopra as brasas da revolta. (...) Somente a
difusão de um saber extraído da prática de uma transferência pode
hoje ir contra a segregação. (LÉGUIL, 2001)

Cabe ao analista acolher o que se lhe endereça, criar o espaço de


onde possa advir um sujeito responsável. Oferecer ao sujeito que o
procura ou ao que lhe é enviado, a possibilidade de mudar da posição
de ser falado para a de falar dos seus atos, mas também de seus
sofrimentos. Se o sujeito fala sobre o que fez e o faz em nome próprio,
ele pode expressar o seu mal-estar, sua angústia e se assumir
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responsável pelo que lhe acontece. Mas isso só é possível se o


adolescente encontra um lugar e alguém que o escute.

É assim que o técnico do programa liberdade assistida pode se situar


orientado pela psicanálise seja ele psicanalista ou tão somente esteja
ele avisado do inconsciente. O encontro do adolescente com o técnico
introduz o valor do ato de dizer e convoca um sujeito responsável por
seu ato de dizer.

A psicanálise lacaniana cria condições para que o sujeito se pergunte


pelos fundamentos de seu ato, mantendo sempre a idéia de
responsabilidade, da responsabilidade do sujeito pelos seus atos. A
questão é do sujeito e se ele constrói algum saber sobre o que
determina os seus atos, as suas escolhas, se ele se responsabiliza, pode
ter a sua liberdade. (MORELLI, 2007)

O valor do ato é a responsabilidade do ato

Essa é uma questão crucial para a psicanálise. Responsabilidade


entendida como o ato do sujeito que pode responder, isto é, tomar a
palavra e dizer.

Um ato só é atribuível a um sujeito por meio da responsabilidade, que é,


como dissemos, a forma pela qual um sujeito se localiza e responde, ou
seja, assume conseqüências.

Cumpre ao psicanalista encontrar um modo de vínculo social


construído sobre a responsabilidade do sujeito por seu ato. Não se trata
de imputabilidade — o psicanalista não é um juiz —, mas de tomar o
sujeito como agente da vida e não como expectador.
Responsabilidade subjetiva não é o mesmo que responsabilidade
jurídica. Cabe-nos fazer da última condição para a primeira,
considerando que a responsabilidade subjetiva é também
responsabilidade pelo laço social, na medida em que é a aceitação
radical da diferença, da particularidade e da determinação de cada
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um pelo seu sintoma. É fundamental que tal responsabilidade não seja


meramente uma questão normativa, mas que, a partir do inconsciente
e do desejo, bem como da necessidade que o sujeito humano tem do
Outro, surja um vínculo que nada tem a ver com a complacência nem
com a cumplicidade. (PEREÑA, 1998) É isso que a transferência nos
ensina.

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras


Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume VII. Rio de Janeiro, Imago,
1989.

LACAN, J. O seminário, livro 15: o ato analítico (1967-1968). Inédito.

LAURENT, É. O analista cidadão. In: Curinga n.13, Belo Horizonte, EBP-MG,


set.1999.

LÉGUIL, F. As crianças contumazes. In: Curinga n.17, Belo Horizonte, EBP-MG,


nov.2001.

MÉNDEZ, E. G. Infância e cidadania na América Latina. São Paulo:


Hucitec/Instituto Ayrton Senna, 1998.

MILLER, J.-A. Jacques Lacan: observaciones sobre su concepto de pasage al


acto. In: Revista del Cercle Psicoanalítico de Catalunya, out/1988.

MORELLI, A. M. Liberdade Assistida, Liberdade Insistida — Ainda sim Liberdade.


In: Liberdade Assistida: uma medida, Belo Horizonte, no prelo, 2007.

__________ Apontamentos para uma conversação. X jornada de Cartéis da


EBP-MG. Belo Horizonte, março de 2007.

PEREÑA, F. La responsabilidad del acto, in Notas Freudianas 4, Gijón, 1998.

PIMENTA FILHO, J. A. Adolescentes, qual transição hoje?. In: Curinga, nº 20, Belo
Horizonte, EBP-MG, nov/ 2004
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Adolescência como sintoma. In: Curinga, nº 21, Belo Horizonte, EBP-MG,


junho/ 2005

STEVENS, A. Adolescência, sintoma da puberdade. In: Curinga, nº 20, Belo


Horizonte, EBP-MG, nov/ 2004

VOLPI, M. Sem liberdade, sem direitos: a experiência de privação de liberdade


na percepção dos adolescentes em conflito com a lei, São Paulo,
Cortez, 2001

(org.) O adolescente e o ato infracional, São Paulo, Cortez, 6ª edição,


2006.

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