Perofamance Cinem
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ou para o outro, sendo que o seu corpo estaria, a partir dessa escolha,
todo em relação com o corpo nu de um dos performers, fosse Marina
ou fosse Ulay. Esses artistas sempre buscaram o que estava além dos
seus limites, tanto físicos quanto espaciais, para que, a partir deles, o
espectador pudesse vislumbrar e espantar-se com a própria imagem
que tem de si e com o que pode o seu próprio corpo a partir do corpo
da arte, que não é mais somente um objeto, mas também um processo
de construção de si, uma hecceidade, singularidade para além do bem
e do mal. Uma essência singular de outros signos sensíveis, que se
vale de todos os sentidos na elaboração dessas ações performáticas e
não somente da consciência intelectual, de movimento apenas, mas
de uma profunda intuição vital (Deleuze, 1990, p. 33) que provoque
e questione o que temos tomado como a própria vida.
Yves Klein, artista plástico francês, realiza, em 1962, um ato
extremamente importante na história da arte da performance inti-
tulado Saut dans le Vide (Salto no Vazio). Trata-se de uma fotografia
que aparentemente o mostra pulando de uma janela, de braços aber-
tos, em direção à calçada, publicada como parte de um panfleto de
Klein, que denunciava as expedições lunares à Lua, as quais eram
consideradas por ele como arrogantes e estúpidas. Klein pesquisou o
conceito de vazio em diferentes obras – um livro sem palavras, uma
composição musical sem composição de fato, uma instalação em
uma galeria sem objetos de arte – por acreditar que o vazio serve de
uma espécie de zona neutra, semelhante ao nirvana para os budistas,
espaço livre das influências do mundo, onde as pessoas são induzidas
a concentrarem-se nas suas próprias sensações e não na representação
delas, o que ele chamou de Zona de Sensibilidade Pictórica Imaterial.
O artista sujeito e objeto da própria obra, sem a necessidade de um
objeto, de um produto que não o seu próprio corpo e seus sentidos.
Em termos de dramaturgia, o teatro também se reinventou
completamente. Foi com Robert Wilson que o roteiro com início,
meio e fim tradicionais que, até então, era o centro da produção
teatral passou a modificar-se em prol de um texto mais livre, o qual
investia em, como diz Robert Wilson, “falas de liberdade” (Gold-
berg, 2006, p. 176), as quais eram já utilizadas pelos futuristas do
início do século XX, e que Deleuze vai referir-se como “narrativas
em forquilha” (1990, p. 66), as quais rompem com a causalidade e
oferecem enigmas. Wilson teve, por longos anos como colaborador,
caos, ou seja, “[...] fazer entrar na ordem do discurso tudo aquilo que
não tem ordem nem unidade” (Pelbart, 2009, p. 161), onde só há
determinações, onde a gorda saúde dominante, como diria Nietzsche
no seu Genealogia da Moral, pretende a paz e a apatia. O homem
que prefere a moral, o bem e o mal se vê lançado em um território
de forças capaz de desorientá-lo, de transformá-lo.
A arte da performance tem uma organicidade tal qual a natu-
reza mesma, porque ela conjuga a casa e o universo, o território e o
desterritório, aquilo que se resigna ao que é impossível de resignar-se,
aquilo que é racional e aquilo que é animal, instintivo. A performan-
ce, assim como o caos, constitui-se de tudo aquilo que a vontade de
verdade não deixa passar, tudo aquilo que não é passível de conter, de
estratificar. Trata-se de uma produção de imagens caósmicas, coexis-
tentes ao caos e suas potencialidades na complexidade das n variações
do cosmos. Imagens que oscilam entre si num “[...] mundo finito em
velocidades desaceleradas, em que um limite se esboça sempre por
trás de um limite, uma coação por detrás de uma coação” e que, sob
e sobre sistemas de coordenadas que se intercalam uma após a outra
sucessivamente, em retas transversais e tangentes, “[...] sem que se
chegue jamais à tangente última de um ser-matéria que escapa por
toda a parte e, por outro lado”, expressam as infinitas velocidades,
a diferença em si mesmas, as diferenças intrínsecas das “qualidades
heterogenéticas” no que estabelece, sem fixar, o “[...] cruzamento do
finito com o infinito, nesse ponto de negociação entre a complexi-
dade e o caos” (Guattari, 1992, p. 127). A imagem da performance,
caósmica, expõe a desarticulação da estrutura em favor do livre fluxo
dos desejos e da possibilidade real de ser sempre diferente, de ser
múltiplo, desenclausurado do modelo, da representação, que visa a
uma identidade estanque, análoga, produzida em série, semelhante
a algo outro que não ele próprio.
Com Deleuze e com Guattari, aprendemos que, ao atermo-nos a
singularidades, alguma coisa, molecular, pode ser capaz de produzir
as intensidades de modo novo, o que a construção de uma imagem
tende a enrijecer. A partir do pensamento de Bergson, no qual o corpo
e suas sensações também são imagens, recortes sensórios-motores no
plano movente de tudo o que, vivos, experimentamos, fica-nos claro
o quanto a imagem, quando se trata de uma ação performática, é
também versátil e não se deixa assolar pela paralisia da representação.
Referências
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