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DOI - http://dx.doi.org/10.

1590/2237-266044271 ISSN 2237-2660

Imagem: do cinema para a performance


Carina Sehn
Paola Zordan
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil

RESUMO – Imagem: do cinema para a performance – No âmbito de uma pesquisa


sobre as artes do corpo, o texto aborda o problema da representação da imagem perante as
forças corpóreas. Com os estudos filosóficos que Deleuze faz junto ao cinema, trazemos
sua taxionomia da imagem, que passa de uma imagem-movimento a uma imagem-tempo, e
também consideramos o teatro para analisar como a imagem se lança de uma representação
estratificada, moralizante, a uma imagem performática, vibrátil. O trabalho de artistas
contemporâneos nos permite e faz pensar a imagem na sua relação com o novo, com o que
não é possível conter, com as imagens produzidas pela arte da performance, por um corpo
que cria imagens sucessivamente.
Palavras-chave: Performance. Imagem. Corpo. Cinema. Representação.
ABSTRACT – Image: from cinema to performance – In the scope of a research on the
body arts, the text approaches the issue of image representation in face of corporeal forces.
With Deleuze’s philosophical studies on cinema, we bring his image taxonomy, which passes
from a movement-image to a time-image, and we also consider theater to analyze how an
image is launched from a stratified and moralizing representation to a performative and
resonating image. The work of contemporary artists allows and makes us think an image
in its relation with the new, with what is impossible to restrain, with images produced by
the art of performance, by a body which creates images successively.
Keywords: Performance Art. Image. Body. Cinema. Representation.
RÉSUMÉ – Image: du cinéma à la performance – Dans le cadre d’une recherche sur
les arts du corps, le texte qui suit parle de la question de la représentation de l’image face
à des forces corporelles. Avec les études philosophiques que Deleuze réalise sur le cinéma,
nous apportons sa taxinomie de l’image, qui passe d’une image-mouvement à une image-
temps, et nous considérons aussi le théâtre pour une analyse de la façon dont l’image passe
de la représentation stratifiée, moralisante, à une image performative, vibratile. Le travail
de certains artistes contemporains nous permet de penser l’image dans son rapport avec
le nouveau, avec ce qui ne peut pas être contenu, avec les images produites par l’art de la
performance, par un corps qui crée des images successivement.
Mots-clés: Performance. Image. Corps. Cinéma. Représentation.
Carina Sehn; Paola Zordan - Imagem: do cinema para a performance
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Se o movimento recebe sua regra de um esquema sensório-


motor, isto é, apresenta um personagem que reage à uma
situação, então haverá uma história. Se, ao contrário, o es-
quema sensório-motor desmorona, em favor de movimen-
tos não orientados, desconexos, serão outras formas, devi-
res mais que histórias (Deleuze, 2000, p. 77).
Entre a performance, o teatro, o cinema e outras manifesta-
ções que porventura escapem às classificações já determinadas, um
problema comum se coloca: a representação que se cola às imagens
que da experiência sensorial com essas artes extraímos. Partimos do
cinema porque este configura as representações com maior força
na civilização global, a fim de chegarmos na performance, em que
vivências corporais em contato direto com fatos e pessoas produzem
estranhamento dos corpos. Com Bergson, referência fundamental
para as formulações de Deleuze sobre imagem, em especial nos es-
tudos sobre cinema, podemos compreender o próprio pensamento
como imagem, sendo o movimento sensório determinante para a
experiência cinematográfica que temos da própria vida. Portanto,
a nossa análise neste artigo tem por base o pensamento de autores
franceses, os quais falarão a partir da realidade europeia em relação
aos movimentos técnicos do cinema e das artes do corpo aqui men-
cionadas.
O cinema foi, ao longo de sua centenária história, encontrando
novas relações possíveis com a construção de imagens. Passou de uma
imagem sensório-motora (constituída sempre como reação a deter-
minada situação, ordenada, montada conforme uma lógica de repre-
sentação clássica, de compreensão comum) a uma imagem tempo, a
puras afecções sensíveis, a uma imagem que se relaciona com o devir,
com as forças do cosmos. Deleuze mostra essa ruptura do primeiro
cinema depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
cujos fatos políticos obrigaram a humanidade a olhar mais para si,
ver seus gestos e posturas perante a própria vida. A destruição pela
guerra e a consequente perda da casa, da pátria, dos lugares seguros,
fez com que se experimentasse o quão desesperadora pode ser a vida,
o quão arbitrárias e insolúveis são as decisões de outros homens, che-
fes de estado que apostam no poder e na sua vitória absoluta sobre a
vida e a morte. A experiência dos regimes totalitaristas fez com que o
tempo fosse percebido de outro modo, de modo a se deixar atravessar
pela realidade dos filmes, altamente consumidos, cujas modificações

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e reconstruções do real são inegáveis. Tudo mudara com a guerra,


inclusive o cinema. Mudara a relação que se estabelecera até ali com
o cinema e com a arte, com as câmeras e com o palco. Após a guer-
ra, era necessário compreender que a vida é menos previsível do que
se acreditava e que o seu corpo é mais múltiplo que a representação
que o classicismo fazia dele. O impensável produz a vida, e o tempo
enfim, está em tudo com o que nos relacionamos para além de uma
ação e de uma reação, como se via no cinema clássico/realista até ali,
onde tudo era reativo simplesmente.
O cinema se reinventou a partir do neorrealismo italiano (1940)
e pôde aproximar-se mais da vida cotidiana, do corpo cotidiano.
Não lhe interessava mais simplesmente a ação, mas sim o tempo.
“Está entregue a uma visão, perseguindo-a, mais que engajado numa
ação” (Deleuze, 1990, p. 11). Uma imagem pode durar muito mais
tempo que antes: o plano sequência no cinema neorrealista dos anos
1940 substitui de vez as montagens de representação como no caso
do filme Umberto D, de De Sica, em que a personagem da jovem
empregada vive um longo plano sequência de ações cotidianas, gestos
corriqueiros que “[...] obedecem a esquemas sensório-motores simples,
o que subitamente faz surgir uma situação ótica pura, para a qual a
empregadinha não tem resposta ou reação” (Deleuze, 1990, p. 10).
A saber, a empregada está grávida de um soldado de guerra e, nessa
sequência, os seus olhos veem sua barriga de grávida e a câmera está
toda voltada ao personagem, às suas questões internas, ao seu tempo
individual. A câmera se torna uma espécie de voyeur, um observador
do que se passa ali, um visionário. Como diz Deleuze na abertura
do seu livro Imagem-Tempo, “[...] o real não era mais representado
ou reproduzido, mas visado” (Deleuze, 1990, p. 9). As situações são
investidas pelos sentidos libertos, são óticas e sonoras e não mais
sensório-motoras ou de ação-reação, o que provoca uma disjunção,
uma ruptura de tempo na construção das cenas. Elas não mais es-
tão subordinadas à uma lógica mecanicista que tenta reproduzir os
movimentos comuns ao homem, mas sim buscam uma eclosão de
sentidos, uma soltura na montagem, atravessada pelo onírico, pelo
sensível, pelo imaginário e não somente pelo real. É como se o real
e o imaginário corressem um atrás do outro, refletissem-se um no
outro em torno de um ponto de indiscernibilidade. O imaginário e
o real tornam-se indiscerníveis (Deleuze, 1990, p. 16).

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Assim também o teatro fez seus movimentos e miscigenou-se.


Impregnou-se pelas artes visuais, pela dança e pelo cinema e no final
dos anos 1960, encontrou a arte da performance e depois dela se re-
criou de modo a nunca mais ser o que era. RoseLee Goldberg, em seu
livro A Arte da Performance, denomina como Teatro de Performance
ou Teatro de Imagens o trabalho de alguns diretores teatrais america-
nos como Robert Wilson e Richard Foreman, por destacarem-se na
realização de um teatro dominado por imagens visuais (Goldberg,
2006, p. 175), sem uma narrativa tradicional com início, meio e
fim e com textos apresentados em off, os quais poderiam ou não ter
uma correspondência na cena apresentada. O teatro a partir dessa
época, no final dos anos 1960, ganha novos ares, novas perspectivas,
saindo de vez da representação de um personagem como eixo central
e exclusivista.
Hoje fica cada vez mais indiscernível a divisão que há entre
essas duas formas de arte do corpo, no entanto, a questão que nos
fica é em relação à construção da imagem: como é que se dá a pro-
dução mesma da imagem nas atuais artes do corpo – ela tem nome,
tem método, tem uma verdade? Podem o ator de teatro e o perfor-
mer praticarem uma construção da imagem que ultrapasse e salte
sobre as atuais classificações? Deleuze, em seus livros sobre cinema,
Imagem-Movimento e Imagem-Tempo, apresenta-nos duas imagens:
a imagem-movimento (sensório-motora) e a imagem-tempo (ótica e
sonora). Essa delimitação funciona para pensarmos as relações pos-
síveis entre o teatro e a performance com a imagem e sua produção
mesma, seja fílmica ou fotográfica. Com isso, pretendemos encontrar
não uma nova classificação para a imagem, mas sim um novo modo
de posicionarmo-nos perante as imagens que criamos. Junto à tese
deleuziana sobre o clichê da imagem, de Rodrigo Guéron, pontua-
mos as crises e as descrenças da própria imagem, visto não podermos
nos fiar na capacidade das imagens “[...] tanto de reproduzir o real
quanto de potencializar nossa capacidade racional” (Guerón, 2011, p.
16-17). Para tanto, não precisaremos de iconoclasmos radicais, uma
destruição massiva, mas sim de um alargamento das possibilidades do
fazer arte hoje. Um fazer que não exclua e negue o que já foi realizado
e vivido, mas que componha, que faça uma collage, um happening
a partir da trajetória dos afectos vividos por diferentes artistas, em
diferentes obras que citaremos aqui, traçando assim um plano.

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Essa linha traçada no caos carrega um novo ponto de partida


na relação com a imagem, algo que brote pelo meio, que não tenha
início nem fim, mas que seja pura sensação e atualização, em que
o virtual e suas infinitas possibilidades encontrem-se com os atuais
modos de se fazer e de se pensar a arte do corpo, podendo assim, quem
sabe, encontrar o impensável até agora, o não-formado, o que está
em processo de diferenciação, de individuação, o que ainda não foi
subjetivado, pessoalizado, estratificado nem colonizado pela História
da Arte e que está aqui bem neste momento do instante, do presente
que também é passado e futuro, pura força sobre a forma. Puro afecto
sobre sentimento. Puro devir. Puro tempo sobre o movimento e aí
sim de fato reconhecemos que a imagem, “experiência da matéria”
(Guéron, 2011, p. 19), é muito mais do que se vê, ela é o que faz ver,
é viva, captura forças, é o caos incorporado.

Da Imagem de Representação à Imagem Viva


Por imagem de representação, trataremos as construções de
imagens que, na sua criação, têm por base algo que está fora do
corpo, seja algum elemento, objeto, personagem ou iconografia.
Contrapondo-se ao que a imagem tem de representação, temos uma
imagem nevrálgica, que está no corpo, na organicidade “[...] encar-
nada em um corpo vivo” (Zumthor, 2007, p. 31), agindo num saber
nem sempre codificado e codificável da percepção que compreende
“[...] a ação das próprias vísceras, dos ritmos sanguíneos” (Zumthor,
2007, p. 54). Essa imagem poética, que nos faz passar por experi-
ências intensas exatamente por não estar codificada, percebida nas
estranhezas das sensações corpóreas, “[...] profundamente presença”
(Zumthor, 2007, p. 81), é o que nos interessa.
Renato Cohen, no seu livro Performance como Linguagem,
pergunta-se: qual o desígnio da arte, representar o real? Recriar o
real? Ou criar outras realidades? Trata-se sempre de uma imagem
que reapresenta algo ou alguém. A performance está ligada ontologi-
camente ao termo live art, arte ao vivo ou arte viva. Esse termo visa
dessacralizar a arte, tirá-la de um lugar meramente estético e colocá-
la mais perto “da vida como ela é”, como diria Nelson Rodrigues;
fazer arte a partir dos rituais cotidianos do homem. John Cage, em
1952, num dos saraus que organizava juntamente com o dançarino
Merce Cunningham no Black Mountain College, na Carolina do

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Norte (escola que recebeu, em 1933, vinte e dois estudantes e nove


professores da antiga Bauhaus com o fechamento desta pela censura
prussiana em 1932), fez uma leitura da Doutrina da Mente Universal,
de Huang Po, um dos primeiros mestres e teóricos do pensamento
budista chinês, morto em 850: “No Zen-Budismo nada é bom nem
mau. Ou belo ou feio... A arte não deve ser diferente da vida, mas
uma ação dentro da vida. Como tudo na vida, com seus acidentes
e acasos e diversidade e desordem e belezas não mais que fugazes”
(Goldberg, 2006, p. 116). Tudo ali acontecia como um happening,
algo espontâneo, que acontece por acaso. Estava aí um dos primeiros
passos, segundo Goldberg, do que viria a denominar-se, na década
de 1960, performance. Nesses saraus em que participavam, na sua
maioria, estudantes de arte da escola e também o corpo docente, era
comum o aglutinamento de várias expressões de arte como a músi-
ca, as artes plásticas, a literatura, o cinema e o teatro, característica
herdada desde a Bauhaus, onde o termo obra de arte total, cunhado
pelo seu fundador, Oskar Schlemmer, era o fio condutor de todas
as produções artísticas.
Foi Allan Kaprow que trouxe esses happenings para o público
em geral. Goldberg escreve: “[...] no outono de 1959 dentro da gale-
ria Reuben em Nova York, foi uma das primeiras oportunidades de
fazer com que o público mais amplo assistisse aos eventos ao vivo
que vários artistas já vinham apresentando, mais privadamente,
na presença de amigos apenas” (Goldberg, 2006, p. 118). Kaprow
apresentou a obra 18 Happenings em 6 Partes, em que o público, que
ele mesmo havia convidado através de cartas enviadas pelo correio,
chegava à galeria e podia ver seu nome constando no programa como
parte do elenco. Então cada um tomava seu lugar e iniciava-se uma
série de ações que os levavam a se deslocar por três diferentes espaços
montados dentro da galeria. Tudo acontecia de forma sequencial, e
os performers haviam passado por duas semanas de ensaios para que
tudo acontecesse dentro de um rigoroso controle.
Ainda aqui encontramos uma forte preocupação com o espetá-
culo, com o que se tem a oferecer em termos de limpeza e acuidade
da obra ao espectador. Interessa mais aos artistas realizadores de ha-
ppenings que eles sejam cuidadosamente pensados para que se tenha
uma experiência completa, sem pausas, sem vazios, para que seja a
partir de uma sequência de ações que se chegue a uma emoção, a

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um sentido da obra. É importante ressaltarmos que, num happening,


as imagens relacionam-se com outras imagens e umas influenciam
as outras, como aprendemos com Bergson em Matéria e Memória
(1990), quando o autor fala sobre o universo, onde tudo o que existe
são imagens relacionando-se entre si infinitamente.
Também no happening, trata-se de imagens, de ações no espaço
que se efetivam no corpo, na visualidade do corpo e nas dimen-
sões do lugar que acontecem. Na obra City Scale, de Ken Dewey, o
público se reunia numa das extremidades da cidade ao anoitecer e
preenchia uma série de formulários do governo. Logo após, era leva-
do a circular pela cidade e presenciar uma série de happenings/ações
performáticas em diferentes lugares: uma mulher que se despia na
janela de um apartamento; um balé de carros num estacionamento;
um cantor em uma vitrine; balões meteorológicos em um parque
desolado; um restaurante self-service; uma livraria; e, ao nascer do
sol do dia seguinte, chegava ao final com um vendedor de aipo em
um cinema. Os artistas, enfim, saem dos espaços convencionais e
buscam uma experiência nova, levando o público a vivenciar o que
a arte propõe e não somente a sua fruição de forma estática. Ele já
não é mais espectador passivo, mas agente ativo da ação, a qual já
não acontece mais sem ele.
Quando Deleuze escreve sobre a virada do cinema realista/
clássico para o neorrealista, ele nos fala que foi neste último que os
objetos e os meios conquistaram uma realidade material autônoma
que os faz valerem por si mesmos, em que o espectador e os pro-
tagonistas da ação passam a investir numa maior atenção do olhar
sobre as coisas e as pessoas e podem, com isso, fazer nascer a paixão
e tudo o que preexiste à vida cotidiana. Ou seja, tudo é real, vem
da vida, no entanto, não é mais uma relação motora, de montagem
formal racionalista que se exerce sobre a arte, mas sim uma relação
onírica, ritualística, a qual se propõe a fazer com que os sentidos
estejam mais libertos, mais sensibilizados e atentos. Esse é o caso
dos artistas a seguir.
Os performers Marina Abramović e Ulay, numa ação intitula-
da Imponderabilia (1977), ficavam de frente um para o outro, nus,
encostados cada um de um lado da porta de entrada da Galeria
Communale d’Arte Moderna de Bologna, na Itália. Para entrar na
exposição, o público tinha que escolher se passaria de frente para um

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ou para o outro, sendo que o seu corpo estaria, a partir dessa escolha,
todo em relação com o corpo nu de um dos performers, fosse Marina
ou fosse Ulay. Esses artistas sempre buscaram o que estava além dos
seus limites, tanto físicos quanto espaciais, para que, a partir deles, o
espectador pudesse vislumbrar e espantar-se com a própria imagem
que tem de si e com o que pode o seu próprio corpo a partir do corpo
da arte, que não é mais somente um objeto, mas também um processo
de construção de si, uma hecceidade, singularidade para além do bem
e do mal. Uma essência singular de outros signos sensíveis, que se
vale de todos os sentidos na elaboração dessas ações performáticas e
não somente da consciência intelectual, de movimento apenas, mas
de uma profunda intuição vital (Deleuze, 1990, p. 33) que provoque
e questione o que temos tomado como a própria vida.
Yves Klein, artista plástico francês, realiza, em 1962, um ato
extremamente importante na história da arte da performance inti-
tulado Saut dans le Vide (Salto no Vazio). Trata-se de uma fotografia
que aparentemente o mostra pulando de uma janela, de braços aber-
tos, em direção à calçada, publicada como parte de um panfleto de
Klein, que denunciava as expedições lunares à Lua, as quais eram
consideradas por ele como arrogantes e estúpidas. Klein pesquisou o
conceito de vazio em diferentes obras – um livro sem palavras, uma
composição musical sem composição de fato, uma instalação em
uma galeria sem objetos de arte – por acreditar que o vazio serve de
uma espécie de zona neutra, semelhante ao nirvana para os budistas,
espaço livre das influências do mundo, onde as pessoas são induzidas
a concentrarem-se nas suas próprias sensações e não na representação
delas, o que ele chamou de Zona de Sensibilidade Pictórica Imaterial.
O artista sujeito e objeto da própria obra, sem a necessidade de um
objeto, de um produto que não o seu próprio corpo e seus sentidos.
Em termos de dramaturgia, o teatro também se reinventou
completamente. Foi com Robert Wilson que o roteiro com início,
meio e fim tradicionais que, até então, era o centro da produção
teatral passou a modificar-se em prol de um texto mais livre, o qual
investia em, como diz Robert Wilson, “falas de liberdade” (Gold-
berg, 2006, p. 176), as quais eram já utilizadas pelos futuristas do
início do século XX, e que Deleuze vai referir-se como “narrativas
em forquilha” (1990, p. 66), as quais rompem com a causalidade e
oferecem enigmas. Wilson teve, por longos anos como colaborador,

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um adolescente autista, Christopher Knowles. Essa parceria oferecia a


Wilson o extraordinário mundo da fantasia de Knowles na construção
de diálogos intencionalmente irracionais, que se relacionavam com
dança, cinema, grandes cenários e objetos de cena quase surreais que
se transformavam em quadros vivos, imagens fortes, inconscientes.
Era o que a crítica americana na época passou a chamar de Teatro de
Imagens, pois não se tratava mais de um teatro dramático, textual,
mas sim de um teatro puramente visual. Não se tratava mais de uma
trama com personagem e representação, mas sim de encadeamen-
tos sensíveis de ações, imagens vivas cuidadosamente engendradas
para que fossem espetaculares e possíveis de serem apresentadas por
meses consecutivos. O teatro aqui já não é tradicional como antes;
conserva, sim, algumas características da linguagem teatral como
as marcações de cena e suas repetições, no entanto, estas repetições
assumem uma característica bastante importante, que é a de serem
atravessadas pela diferença.
Deleuze, na sua tese de doutorado publicada em forma de livro,
Diferença e Repetição (1968), vai trabalhar exaustivamente sobre esses
dois conceitos. Não vamos aqui nos aprofundar sobre esses conceitos,
somente pretendemos deixar claro que, com Deleuze, podemos dizer
que a repetição é a diferença em si mesma. Portanto, não se repete
o mesmo, só o diferente. Deleuze combate a ideia de representação
e seus quatro aspectos, a saber, a identidade, a analogia, a oposição
e a semelhança, pois, para ele, todos esses aspectos derivam de um
mesmo, de um idêntico, de uma forma. Deleuze relaciona a dife-
rença à univocidade do ser, onde “[...] o ser é o mesmo para todas as
modalidades, mas estas modalidades não são as mesmas. Ele se diz
no sentido de todas, mas elas mesmas não têm o mesmo sentido”
(Deleuze, 2006, p. 66). Portanto, tudo o que está em relação com
o ser muda, é passível de alteração, então ele mesmo muda o tempo
todo, pois se relaciona com o mundo e suas distintas intensidades.
Isso acontece no cinema quando a câmera de Antonioni, de Godard,
faz com que o espectador pense sobre o que escapa ao pensamento,
faz com que o espectador sinta de fato o que ela está mostrando. A
câmera passa a ser consciente do corpo, do devir, do que não está
ali materialmente e sim sensivelmente. Quando Andy Warhol, com
seu cinema experimental, coloca, em Sleep (1963), a câmera parada
por seis horas sobre um homem que dorme ou, em Eat (1963), por
quarenta e cinco minutos, sobre um homem que come um cogumelo,
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ele está nos oferecendo uma imagem para experimentarmos, uma


imagem-viva. Imagem esta que traz uma sensação que temos o tem-
po todo na vida: a de não sabermos o que pode acontecer de fato: se
quem amamos pode morrer ou se o que estamos fazendo nos levará
a algum lugar... Essa angústia do que é indiscernível, impensável,
que nos acomete a todos, pode e deve estar contida na arte. Com
Einsenstein, “[...] não é mais o conceito que vai até a imagem, nem
a imagem que vai até o conceito, mas sim o conceito que está em si
na imagem, e a imagem que é o para si do conceito” (Guéron, 2011,
p. 38).
Quando Pina Bausch, coreógrafa alemã, dança em Café Mül-
ler (1978), pode-se sentir, mesmo assistindo ao registro em vídeo, a
vida a atravessando, “[...] pegando-a pelo estômago” em cena. Ela
dança tudo o que a vida tem de incomensurável. Podemos ver, ter
uma visão a partir do movimento da bailarina. Podemos entrar em
contato com a nossa própria vida. Pina consegue produzir em quem
lhe assiste linhas de fuga, desacomodações. Ela nos tira de qualquer
lugar seguro, de uma poltrona de teatro, de uma casa com planos bem
traçados, para desembocarmos numa praia, num deserto, num lugar
possível onde traçamos nossos planos e composições. Com Pina, o
teatro ganha uma nova dimensão, a dimensão do imaterial, captura
as forças orgânicas, não formadas, ainda não estratificadas e interage
com o que está para além da cena, que transborda os limites do palco,
“[...] produzindo em quem vê blocos de sensações”, os quais seriam
uma forma de expressão para uma linguagem das sensações, pois a
arte é a linguagem das sensações (Deleuze; Guattari, 1991, p. 228).
Sensações que “[...] desmancham as percepções triviais de significa-
ções e opiniões impregnadas de senso comum e colaboram para uma
economia dos afectos” (Guattari, 1992, p. 104), os quais nada têm a
ver com o pessoal, mas com o pré-pessoal, com a pré-linguagem, e
pode-se iniciar, assim, um novo processo de singularização, de um
novo modo de ser mais autônomo e livre.
O que vai caracterizar um processo de singularização [...], é
que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elemen-
tos da situação, que construa seus próprios tipos de referên-
cias práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante
de dependência ao poder global, em nível econômico, em
nível do saber, em nível técnico, em nível das segregações,
dos tipos de prestígio que são difundidos (Rolnik; Guatta-
ri, 2005, p. 47).

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Pina não está representando nada que esteja fora do seu próprio
corpo, ela está experimentando ser a partir do corpo, de uma ima-
gem viva, de um estado, de uma energia corporal. E com ela e sua
dança teatro, o teatro mesmo se alarga e pode ampliar suas fronteiras,
fazendo com que o ator também repita suas ações, mas sempre de
outro modo, fazendo passar as multiplicidades mesmas, a vida na sua
plenitude. Multiplicidades indivisíveis, cuja expressão não perde nem
ganha apenas muda de natureza sem centros de unificação. Multi-
plicidade da vida, não definida por números de elementos e sim pela
variação de n dimensões imanentes umas às outras, composta de “[...]
termos heterogêneos em simbiose”, que, como quadros sucessivos
que criam a imagem movente, “[...] não pára de se transformar em
outras multiplicidades” enfiada e seguindo “[...] seus limiares e suas
portas” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 33).

Da Imagem Viva à Imagem Caósmica


O corpo, multiplicidade produtora de imagens, configura
forças energéticas que atingem o impensado, o que não pode ser
simplesmente visto e muito menos previsto. O corpo é atravessado
pela natureza, pelas potências, pelos saberes, pelas intensidades,
pelos fluxos de diferentes paisagens existenciais que compõem uma
vida. O corpo nos força a pensar, ele vem depois de quando tudo já
foi dito (Deleuze; Guattari, 1993 p. 229). O homem que percebe o
universo e as imagens que o cercam apenas como fenômenos nunca
cria, pois tem necessidade de identificar, de classificar e estratificar,
antecipando a vida pela sua interpretação, pela busca de sentido.
Interpreta por meio de fundamentos originários racionais, sendo
que a vida acontece em relação ao nosso corpo e faz com que ele seja
mais uma imagem, uma linha, um território, uma efervescência de
partículas em fluxo relacionando-se e construindo desejos e múltiplas
sensações. A arte não é para apenas ser vista, ouvida, sentida, para
elaborar o percebido sob uma ordem fenomênica racional que visa
a um único destino, um fim. Ela precisa ser experienciada no corpo
e em sua ampla impossibilidade de ser interpretado, embora seja
pelo corpo, no corpo e com o corpo que as formas já estabelecidas
desloquem-se e transformem-se. Pois, como observa Paul Zumthor,
entre as artes, “[...] a performance é a única que realiza aquilo que os
autores alemães, a propósito da recepção, chamam de ‘concretização’”
(2007, p. 50).
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O artista alemão Joseph Beuys acreditava que a arte deveria


transformar concretamente a vida das pessoas, dizia ele: “Precisa-
mos revolucionar o pensamento humano. Antes de mais nada, toda
a revolução ocorre no interior do ser humano. Quando o homem é
realmente criativo, capaz de produzir algo novo e original, ele pode
revolucionar o tempo” (Goldberg, 2006, p. 139). Foi exatamente
o que ele tentou com suas ações. Beuys, com mel e folhas secas no
rosto, levou uma lebre morta em seus braços para dentro da galeria,
passeou com ela por toda a galeria, suas patas encostavam nos qua-
dros expostos... Depois de ver tudo, ele sentou em um banquinho e
começou a explicar ao animal o sentido das obras. “Mesmo morta,
uma lebre tem mais sensibilidade e compreensão instintiva do que
alguns homens, com sua obstinada racionalidade” (Goldberg, 2006,
p. 140).
O artista de performance está interessado em produzir uma
imagem tão potente que seja capaz de causar em quem vê uma
transformação no seu modo de existir mesmo. Ela pretende oferecer
resistência a todo o tipo de limite, de obstáculo à liberdade. O último
trabalho de Carina Sehn, intitulado Corpo Sutil que Vaga, performan-
ce implicada às considerações tratadas aqui pela própria, trata-se de
um registro da ação performática de ouvir as pedras junto ao mar.
São lugares onde jamais se arriscaria a convidar uma plateia devido
aos perigos que apresentam e ao horário no qual as performances
acontecem (sempre às 6h da manhã). São desfiladeiros, pedras altas
e precipícios a que somente a artista e um fotógrafo chegam com
segurança. E ali permanecem por quantas horas conseguirem ficar.
Carina se lança às pedras, quer que elas lhe penetrem: sou parte da
natureza, desejo ouvir os seus sussurros, os segredos milenares da Terra
que, acreditam os xamãs, elas guardam, são suas palavras para exprimir
o que facilmente não pode ser visto e, mesmo quando verbalizado,
escapa na nominação que, ao se possuir numa linguagem, encerra.
O performer é um artista livre, não se fixa em nenhuma lin-
guagem, pois a performance não se pretende linguagem, ela é como
um espaço possível, um lugar para novas ideias, uma experiência que
transforma, em primeiro lugar, quem a realiza e depois quem entra
em contato com ela. O que não podemos identificar assombra-nos,
apavora-nos, e para isso tratamos imediatamente de dar nome, de
classificar, de enquadrar na normalidade dominante das imagens já

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conhecidas. Sabermo-nos seres diferentes em nós mesmos, constitu-


ídos de caos e diferença, está além das possibilidades do homem que
tem vontade de verdade, como diz Nietzsche. O homem é moralizado
desde que nasce, pois já nasce sob uma luz branca, a luz da trans-
cendência, do que é superior; a luz da assepsia na cara no hospital,
instituição que tudo organiza e mantém funcionando conforme as
leis da ciência.
O homem que, para viver, necessita de ideais universais, de
algo que já foi codificado, interpretado e reconhecido anteriormente,
encontra-se longe da terra, num lugar rarefeito, superior e indelével,
num céu que só é possível existir enquanto uma imagem represen-
tada. Vive preso a um estrato transcendente de atingir as alturas e
só junto a uma presença que nunca esteve corporalmente presente
está em paz. Vive ressentido por tudo o que não tem, por tudo o
que não fez, pela dívida que tem pelo corpo que morreu na cruz por
ele, pelo corpo que deve comungar, sem de sangue e carne provar
nada. Talvez esse homem não poderá nunca compreender o artista
de performance. Esse artista, sem pretender salvar ninguém, elabora
sua obra em seu corpo; ao desenvolvê-la, não se restringe a nenhuma
moral preestabelecida e sim se abre para outros tipos de comunica-
ção, para imagens imanentes à experiência, expoentes que remetem a
universos incorporais, a forças impessoais da natureza, do movimento
caósmico dos encontros de corpos. Se há um discurso no trabalho
performático, esse se produz fora das palavras, nas disjunções entre
as coisas e os modos como se enunciam.
Não é pelas ‘palavras’ nem pelas ‘coisas’ que se pode definir
os objetos de um discurso. Da mesma forma, não é nem
pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso
a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regi-
me das enunciações. Deve-se levar em conta a dispersão do
sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um
espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de
lugares distintos (Foucault, 2008, p. 62).
Distinguir as exterioridades discursivas, que fazem “[...] do
vivente um sujeito” (Zumthor, 2007, p. 81), mostram o quanto todo
conhecimento se configura a serviço da vida. Todo conhecimento,
posto num regime discursivo, configura imagens que variam con-
forme as forças. Tensões entre corpos capturadas no presente, pre-
sente que, na produção de imagens, também é passado e futuro. A

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sucessão de imagens que compõe nosso pensamento não está ligada


a um tempo cronológico, mas a um tempo puro (aíon), o tempo
do acontecimento, um mais vasto presente, que absorve o passado
e o futuro. Um presente mais ilimitado, imaterial, onde o instante
sem espessura ou extensão perverte o presente em futuro e passado
insistentes (Deleuze, 2000, p. 169-170). Tempo do vapor que sai do
corpo, dos afectos, intempestividade junto à qual não podemos mais
discernir o que é exatamente vida e o que é arte. O performer e o
público, tal qual na experiência da fruição cinematográfica, nave-
gam numa zona de indiscernibilidade, de sensações múltiplas onde a
imagem se deixa atravessar pela vida, pelos sentidos, para encontrar
vibráteis, ondulatórias. Mesmo no cinema, a presença de um corpo
vivo, pulsante, o corpo do performer/ator/atriz em película, é pura
vibração junto ao público que o experimenta, ele se contrai com o
vento e abre-se com a respiração. Na arte que envolve a presença viva,
no entanto, diferente do cinema, o performer oferece seu corpo como
o palco para fruição dos que assistem.
O artista francês Michel Journiac, em uma performance inti-
tulada Messe pour un Corps (Massa para um Corpo), oferecia o seu
próprio sangue num cálice explorando o ritual de salvação e libertação
realizado até hoje pela igreja católica. Marina Abramović, performer
sérvia, colocou seu corpo à disposição do público numa obra chamada
Rhythm O (1974), realizada na Galleria Studio Morra, em Nápoles,
onde ela o oferecia ao público para que ele pudesse fazer o que qui-
sesse nela com uma série de objetos dispostos ao seu lado. Podia-se
ler num texto na parede: Existem vinte e dois objetos sobre a mesa que
podem ser usados em mim, como desejarem. Eu sou o objeto. Dentre os
objetos, estavam uma arma com uma bala, uma serra, um machado,
um garfo, um pente, um chicote, um batom, um vidro de perfume,
tinta, fósforos, uma pena, uma rosa, uma vela, água, correntes, pre-
gos, agulhas, tesouras, mel, uvas, gesso, enxofre e azeite de oliva. Ao
final da performance, todas as suas roupas tinham sido arrancadas
de seu corpo com lâminas de barbear, ela havia sido cortada, pintada,
limpa, decorada, coroada de espinhos e teve a arma carregada pres-
sionada contra sua cabeça. Depois de seis horas, a performance foi
encerrada. Abramović também buscava aqui respostas para a apatia
e alienação da sociedade que se entregava à televisão como quem se
entrega à morte. É como se o performer fosse capaz de restaurar o

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caos, ou seja, “[...] fazer entrar na ordem do discurso tudo aquilo que
não tem ordem nem unidade” (Pelbart, 2009, p. 161), onde só há
determinações, onde a gorda saúde dominante, como diria Nietzsche
no seu Genealogia da Moral, pretende a paz e a apatia. O homem
que prefere a moral, o bem e o mal se vê lançado em um território
de forças capaz de desorientá-lo, de transformá-lo.
A arte da performance tem uma organicidade tal qual a natu-
reza mesma, porque ela conjuga a casa e o universo, o território e o
desterritório, aquilo que se resigna ao que é impossível de resignar-se,
aquilo que é racional e aquilo que é animal, instintivo. A performan-
ce, assim como o caos, constitui-se de tudo aquilo que a vontade de
verdade não deixa passar, tudo aquilo que não é passível de conter, de
estratificar. Trata-se de uma produção de imagens caósmicas, coexis-
tentes ao caos e suas potencialidades na complexidade das n variações
do cosmos. Imagens que oscilam entre si num “[...] mundo finito em
velocidades desaceleradas, em que um limite se esboça sempre por
trás de um limite, uma coação por detrás de uma coação” e que, sob
e sobre sistemas de coordenadas que se intercalam uma após a outra
sucessivamente, em retas transversais e tangentes, “[...] sem que se
chegue jamais à tangente última de um ser-matéria que escapa por
toda a parte e, por outro lado”, expressam as infinitas velocidades,
a diferença em si mesmas, as diferenças intrínsecas das “qualidades
heterogenéticas” no que estabelece, sem fixar, o “[...] cruzamento do
finito com o infinito, nesse ponto de negociação entre a complexi-
dade e o caos” (Guattari, 1992, p. 127). A imagem da performance,
caósmica, expõe a desarticulação da estrutura em favor do livre fluxo
dos desejos e da possibilidade real de ser sempre diferente, de ser
múltiplo, desenclausurado do modelo, da representação, que visa a
uma identidade estanque, análoga, produzida em série, semelhante
a algo outro que não ele próprio.
Com Deleuze e com Guattari, aprendemos que, ao atermo-nos a
singularidades, alguma coisa, molecular, pode ser capaz de produzir
as intensidades de modo novo, o que a construção de uma imagem
tende a enrijecer. A partir do pensamento de Bergson, no qual o corpo
e suas sensações também são imagens, recortes sensórios-motores no
plano movente de tudo o que, vivos, experimentamos, fica-nos claro
o quanto a imagem, quando se trata de uma ação performática, é
também versátil e não se deixa assolar pela paralisia da representação.

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Pode o registro montado, documentado, conter aquilo que


deixa de ser presença, a sensação do corpo que ergueu a imagem? A
performance tem, segundo Auslander, uma relação ontológica com
a sua documentação: a fotografia e o vídeo, pois, afinal: o espaço
do documento (seja visual ou audiovisual) se torna o único espaço
onde a performance ocorre (Auslander, 2006, p. 4). No caso da
performance, a imagem também se faz performática, ou melhor, o
lugar da performance. Existem trabalhos em performance que são
realizados exatamente para serem registrados, o que quer dizer que o
seu registro deixa de ter uma caráter simplesmente representacional,
mas sim ele passa a ser objeto de arte, ele passa a guardar em si, em
simbolizar a nível cultural a obra de um artista do corpo, que não
pode ser reproduzida, somente registrada, como no caso de Corpo
Sutil que Vaga. Dessa performance, o que ficam são exatamente as
suas imagens, partilhadas em fotos e vídeos. Destas imagens, surge
uma infinidade de possibilidades ao serem vistas e observadas pelo
público em geral. Ele as recria, oferece outros modos de performatizá-
las, percebe coisas e elementos que eu mesma enquanto performer
não havia percebido. A imagem está viva, assume outros modos de
existir para além da ação performática. Faz com que performances
autônomas ganhem outros territórios muito além daqueles por onde
o corpo esteve ou experimentou. Onde a sua documentação, as suas
imagens, muito além de serem apenas um índice remissivo, ganham
ares de performance e, por isso, não estão apenas atreladas a uma
lógica temporal e histórica, tornam-se extemporâneas, são tempo
puro, movimento, caosmos.

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Carina Sehn é atriz e performer, especialista em saúde mental coletiva e mestranda


do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, atuando na linha da Filosofia da Diferença e Educação. Trabalha nos limites
da arte, filosofia e educação. É professora nômade de artes do corpo e investiga a
imagem e a ação performática na sua relação com o corpo e com a natureza.
E-mail: [email protected]

Paola Zordan é professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal


do Rio Grande do Sul. Doutora e Mestre em Educação, trabalha com micropolíticas,
escultura social e performances, desenvolvendo pesquisas em torno da historiografia
da arte, da esquizoanálise e da formação de professores. Licenciada em Educação
Artística, bacharel em Desenho, foi professora de artes em escolas básicas das redes
de ensino de Porto Alegre.
E-mail: [email protected]

Recebido em 18 de dezembro de 2013


Aceito em 04 de junho de 2014

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