Revista Poli 88
Revista Poli 88
Revista Poli 88
Conselho Editorial
Alda Lacerda Ingrid D’avilla Receba a Revista Poli e assine nosso boletim pelo site
Alexandre Moreno Letícia Batista
Ana Reis Luana Freitas www.epsjv.fiocruz.br
Anamaria Corbo Marcia V. Morosini
Carolina Dantas Monica Vieira Endereço
Cristiane Sendim Paulea Zaquini Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Sala 306
Edilene Pereira Raquel Moratori Av. Brasil, 4.365 Manguinhos – Rio de Janeiro - RJ CEP.: 21040-360
Etelcia Molinaro Tel.: (21) 3865-9718 Fax: (21) 2560-7484 – e-mail: [email protected]
2 NOTAS
à especialização
No final de março, o governo
federal anunciou o novo formato
do programa que distribuirá pro-
fissionais de saúde em municípios
mais distantes e grandes centros
onde haja carência de trabalha-
dores. Agora sob o nome de Mais
Médicos para o Brasil, o programa
dará prioridade para brasileiros,
ao contrário da edição anterior,
em que as equipes eram formadas
principalmente por cubanos. A
previsão do governo é que até o
final de 2023, 28 mil profissionais
integrem o programa e atuem, prin- União fará um investimento de programa e, por isso, selecionados poderão cursar
cipalmente, em áreas de extrema R$ 712 milhões em 2023. especialização e mestrado durante os quatro anos
pobreza e contemple 96 milhões de Para garantir a permanên- de contrato, prorrogável por igual período. No
pessoas. O primeiro edital, lançado cia prolongada dos médicos, mesmo dia do lançamento do programa, em 20 de
em março, prevê o preenchimento o Ministério da Saúde (MS) março, também foi criada a Comissão Interministe-
de 5 mil vagas. Em uma segun- anunciou uma série de incenti- rial de Gestão da Educação na Saúde, sob o decreto
da etapa, outros 10 mil médicos vos aos profissionais. Aqueles que nº 11.440/2023. Essa será uma comissão consultiva,
devem ser chamados, mas em uma tiverem obtido Financiamento responsável por propor diretrizes para a formação
modalidade de contratação em que ao Estudante do Ensino Superior de recursos humanos na área de saúde, a expansão
haja contrapartida dos municípios (Fies) poderão abater a dívida da educação profissional, tecnológica e superior na
e, ao mesmo tempo, conceda maior em um percentual variável área de saúde e a especialização nas modalidades de
autonomia à gestão municipal. De pelo tempo de participação no residência médica e multiprofissional. A Comissão
acordo com os números anunciados programa. A especialização tam- será responsável ainda por identificar, anualmente,
no lançamento do programa, a bém será incentivada durante o a capacidade instalada do SUS.
Taxa de feminicídio
aumenta 31% em três de mulheres é registrada como
“intenção indeterminada”, e sem
dos casos em cidades do interior.
Em meio a esse crescimento, o
indicar se foi acidente, suicídio governo federal anunciou, em 15
décadas, diz estudo ou causada por terceiros. O tra- de março, o reforço em medidas
balho também mostra que entre de proteção às mulheres por
O número de mulheres assassinadas cresceu 2009 e 2019 houve redução das meio do Pronasci, o Programa
31,46% na comparação entre o começo da década mortes entre mulheres brancas e Nacional de Política Pública
de 1980 e a segunda metade da década de 2010. Nos aumento entre mulheres pretas. com Cidadania. Na retomada do
anos 1980 a 1984 a taxa de homicídios era de 4,4, Em 2019, uma mulher negra Programa, foram entregues 270
enquanto no período de 2015 a 2019, a taxa subiu sofria um risco 1,7 vez maior viaturas das patrulhas Maria da
para 6,09 para cada 100 mil mulheres. O estudo foi de ser assassinada, em geral. O Penha e o anúncio de que esse
produzido por pesquisadores da Fiocruz, da Univer- alto índice de violência contra número irá dobrar até o final do
sidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), do a mulher também foi registra- ano. O governo federal tam-
Instituto Nacional do Câncer (Inca) e da Universi- do pelo Anuário Estatístico do bém anunciou R$ 344 milhões
dade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Para chegar Fórum de Segurança Pública em recursos, vindos do Fundo
a esses números, os pesquisadores partiram dos lançado em fevereiro de 2023 Nacional de Segurança Pública,
dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade e referente à 2022. Mais de 18 para a construção de unidades da
do Sistema Único de Saúde (SIM) e propõem o uso de milhões de mulheres foram víti- Casa da Mulher, instituição que
indicadores indiretos, como morte por arma de fogo mas de violência em 2022, uma presta apoio a mulheres vítimas
ou dentro de casa, uma vez que a morte violenta média de 50 mil por dia, 52% de violência doméstica.
4 CAPA
O CENSO DEMOGRÁFICO
ESTÁ DE VOLTA
Tirar do papel a décima terceira edição do principal levantamento
sociodemográfico do país não foi tarefa fácil e especialistas
explicam qual a importância dos dados coletados
para as políticas públicas
JULIANA PASSOS
N
o momento em que essa re-
vista chegar em suas mãos,
é possível que os da-
dos do Censo de 2022
já tenham sido publicados. Con-
forme anunciado pelo IBGE, o
Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, os resultados ofi-
ciais começam a ser divulgados
no final de abril. O principal le-
vantamento socioeconômico do
país deve ser realizado a cada
dez anos, mas o que se viu foi um
adiamento por mais de dois anos
e a coleta foi finalizada apenas em
fevereiro de 2023. Esse atraso não
foi apenas no Brasil. “Entre os países
que tinham a previsão de realizar o
censo em 2020, apenas México e Esta-
dos Unidos conseguiram iniciar a coleta
de dados”, diz Paulo Jannuzzi, professor da
Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence)
do IBGE. Sem descartar o papel da pandemia no
atraso da coleta, Jannuzzi pondera que não foram
apenas as condições sanitárias que impediram a realiza-
ção do trabalho, mas também a falta de previsão orçamentária.
“Ainda que nós não tivéssemos tido a Covid-19, seria muito difícil reali-
zar o Censo em 2020 pela falta de recursos suficientes para a realização do Censo, o Congresso limitou esses recursos em R$ 71
Censo com a complexidade que nós temos no Brasil”. Uma vez divulgado, o milhões. Coube ao STF decidir pela obrigatoriedade
Censo 2022 trará um retrato importante das consequências da pandemia, da realização do levantamento, com orçamento re-
além de fornecer aos país indicadores chave sobre as condições de vida da composto, mas ao contrário do pedido feito na ação,
população e servir de base para todos os estudos que fazem amostras a foi estipulado 2022 como prazo.
partir de dados de número de habitantes. Além da falta de orçamento, outro elemento já
A realização do levantamento saiu do papel após decisão do Su- anunciava que a obtenção de recursos para pesqui-
premo Tribunal Federal (STF) em resposta a uma ação do governo sas estatísticas não seria fácil no governo anterior: a
do Maranhão solicitando sua realização ainda em 2021, diante da ausência de um Ministério do Planejamento. É de res-
necessidade de atualização das estatísticas em meio a pandemia de ponsabilidade desse Ministério a realização do Plano
Covid-19. O pedido veio após o segundo ano consecutivo de baixa pre- Plurianual da União (PPA). O PPA é responsável por
visão orçamentária e a decisão do Instituto de cancelar o levantamen- definir diretrizes, objetivos e metas da administração
to. Apesar de o orçamento inicial de 2021 destinar R$ 2 bilhões para o pública federal e prevê, entre outras coisas, os inves-
5
timentos que serão feitos e os programas que serão a cobertura alcançada era de 66%,
mantidos. Cada Plano tem a duração de quatro anos e quando deveria estar quase concluí-
se inicia no segundo ano do mandato de um presiden- da. Diante disso, a coleta foi prorroga-
RAIO-X DO CENSO
te. “O fato de não ter um ministério do planejamento é da para os primeiros meses de 2023,
DEMOGRÁFICO
revelador da postura do governo anterior. Um gover- uma medida que não é considerada
no que não vê a necessidade de um país como o Brasil ideal por se afastar do momento da
ter planejamento de médio prazo, além disso, não ter “fotografia”. Para Paulo Jannuzzi,
Total de domicílios
qualquer compromisso com política pública”, pontua encontrar uma resposta consensual
registrados
Jannuzzi. Wasmália Bivar, ex-presidente do IBGE, ce- para as estimativas de população
lebra o ressurgimento desse ministério com a mudan-
ça de governo e defende a estabilidade do órgão. “A
pode levar algum tempo. “Respon-
der se o quantitativo do censo bate
75 milhões
gestão da informação não é uma questão de governo, com as projeções atualizadas é uma
mas uma questão de Estado”, diz. grande questão para o IBGE e para Distribuídos em
A falta de interlocução da diretoria do IBGE com
o governo federal também está entre os motivos para
a academia. Quando você se afas-
ta do período de coleta, pode haver
452.246
setores censitários,
esse atraso. Para Jannuzzi, houve desconhecimento mudanças, claro. Pessoas se deslo-
aglomerados com cerca de
por parte da antiga direção sobre o funcionamento da cam, morrem, mudam de cidade. De
coleta, em que se cogitou a realização da pesquisa de fato, temos alguns municípios que a 250 domicílios
forma remota. “Imaginou-se que seria possível coletar dinâmica demográfica já apontava
muitas dessas informações via internet, via registros uma redução do seu crescimento, Número de pessoas
administrativos. Nos Países Baixos, há sistemas de mas sempre vai ficar esse questiona- recenseadas de
políticas públicas em que todos os habitantes estão mento enquanto não tivermos uma
forma presencial
inscritos desde o nascimento. Você sabe quem tem explicação aceita por todos”, avalia.
emprego e quem não tem. Quem está doente e quem Apesar da necessidade de ajustes, 189.261.144
não está e qual é a doença. Você tem um sistema de de acordo com os especialistas ouvi-
registros administrativos que está interligado às po- dos pela Poli, não há motivos para
líticas universais. Quando o indivíduo vai mudar de invalidar o levantamento realizado Questionários
cidade, ele informa à prefeitura. No Canadá, mais de já que a diminuição no número de
80% das pessoas respondem pela internet. No Brasil domicílios alcançados pode ser solu- Básico
não existe isso”. cionada a partir de projeções estatís- Aplicado e todas as visitas -
Com o atraso, haverá necessidade de fazer ajustes ticas. “O atraso de mais de dois anos contém 26 questões sobre
nas estatísticas, explica Raphael Guimarães, professor em virtude da pandemia de Covid-19, identificação do domicílio, infor-
da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca a restrição orçamentária que impe- mações sobre moradores, carac-
(Ensp/Fiocruz). “Toda vez que o censo ultrapassa dez diu a adequada condução do Censo terísticas do domicílio, identi-
anos há um trabalho adicional nas projeções para con- e recusas em responder a pesquisa ficação étnico-racial, registro
siderar 12 anos em vez de dez, por exemplo. Um exercí- levantaram inúmeras preocupações. civil, alfabetização, rendimento
cio que a gente também precisou fazer em 1991, quan- Para mitigar os problemas enfren- do responsável pelo domicílio,
do o Censo de 1990 atrasou”, comentou. “Eu diria que tados, vimos diversos esforços dos mortalidade e dados da pessoa
o maior prejuízo, no entanto, foi o de não ter tido essa técnicos e pesquisadores do IBGE ao que prestou as informações.
informação nos últimos dois anos, porque muitos mu- longo do processo, inclusive junto ao
nicípios só têm a informação do Censo para poder agir”, novo governo, para melhorar a cole- Amostra
diz Guimarães. Uma conta que ficou um pouco mais ta de dados. Nesse sentido, apesar dos Aplicado em 11% das visitas -
complicada porque a contagem populacional divul- percalços e das limitações, não existe contém 77 questões
gada de forma preliminar pelo IBGE no final de 2022 dúvida sobre a competência do IBGE e detalha informações
apresentou uma diferença considerável em relação às para produzir dados confiáveis sobre sobre trabalho, rendimento,
estimativas feitas. Nos cálculos divulgados em 2021, o as condições de vida da população escolaridade, nupcialidade,
Brasil teria 215 milhões de habitantes, enquanto os nú- em todos os municípios do país, com núcleo familiar, fecundidade,
meros preliminares registraram uma população de 207 informações quantitativas e quali- religião ou culto, pessoas com
milhões de pessoas. tativas. Para uma análise embasada deficiência, migração interna
Uma das explicações para esse contraste é uma me- sobre a qualidade e cobertura dos e internacional, deslocamen-
nor taxa de questionários aplicados. Em 2010, o IBGE che- dados, precisaremos aguardar a con- to para estudo, deslocamento
gou a 96% dos domicílios, enquanto em 2022 foram 91%. clusão e divulgação oficial do Censo para trabalho e autismo.
Além do atraso no início dos trabalhos, houve dificuldade Demográfico 2022”, avalia Bethânia
na contratação de recenseadores diante da baixa remu- Almeida, pesquisadora do Centro de Fonte: IBGE
neração e demora no pagamento ao longo do período de Integração de Dados e Conhecimen-
coleta. Em novembro de 2022, após 93 dias de trabalho, tos para Saúde (Cidacs/Fiocruz).
6
Outro dilema desse Censo foi o corte nas perguntas. senvolvimento Social (MDS) nas décadas de 2000 e
Os recenseadores são responsáveis por aplicar dois ti- 2010 para que as equipes do Sistema Único de Assis-
pos de questionário: um básico, feito em todas as visitas tência Social (Suas) pudessem realizar uma busca ativa
domiciliares; e outro amostral, aplicado em 11% das vi- da população que deveria ser inscrita nos programas
sitas. O total de domicílios registrados é de 75 milhões, de transferência de renda, em especial o Bolsa Família.
agrupados por setores censitários, formados por cerca “Então, quando se diz que o Bolsa Família tinha uma
de 250 domicílios. Já a amostra corresponde a 7,7 mi- boa focalização e foi internacionalmente reconhecido
lhões de domicílios. A decisão de transpor uma ques- por ter uma boa cobertura das pessoas em situação de
tão para um ou outro questionário tem impacto nas pobreza era, entre outras razões, porque o Ministério
estatísticas, assim como a eliminação de uma pergunta de Desenvolvimento Social orientava as equipes de
pode acarretar mudança de cálculo sobre determinada assistência social a utilizar esses mapas”, diz Jannuzzi.
variável, como a de renda. As alterações para o Censo Já o corte na variável do aluguel, pergunta que
de 2022, segundo Jannuzzi, não foram amplamente foi retirada do questionário da amostra, diz a nota de
discutidas pelos técnicos responsáveis pelas áreas e fo- trabalhadores do IBGE, irá dificultar os cálculos da
ram aprovadas apenas em órgão colegiado. Ele explica falta de moradia nas cidades, uma informação que
que uma equipe especializada é responsável por cada não pode ser coletada com outras pesquisas como a
bloco temático, atenta às implicações de cada pergun- Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD).
ta. A forma de decisão sobre a inclusão ou retirada das “Essa perda não pode ser compensada por pesquisas
questões foi diferente da adotada na preparação dos amostrais, pois só o Censo poderia produzir os resulta-
dois censos anteriores, quando houve abertura para dos para cada município e por cada bairro das grandes
diálogo. “Em 2000 e 2010, o IBGE, de alguma forma, se cidades, informações fundamentais para as
abriu para debates com a academia, movimentos so- políticas habitacionais”, diz
ciais, Frente Nacional de Prefeitos, entre outros ‘usuá- o texto. Paulo Jannuzzi
rios do Censo’, digamos assim, para levantar demandas complementa: “Para
e avaliar em que medida as perguntas poderiam ser o programa ‘Minha
respondidas no censo demográfico. Tinha essa interlo- Casa, Minha Vida’
cução. Para o Censo 2020 isso foi muito mais restrito, seria fundamental
pois já vivíamos um contexto em que a participação so- ter essa informação
cial não era valorizada no governo Bolsonaro”, recorda. coletada, porque seria
possível saber quais
Cortes nas perguntas são as famílias que
comprometem uma
As mudanças nos questionários desagradaram técni- parcela da sua renda
cos do IBGE e pesquisadores. Ainda em 2019 a campanha acima do desejável para
Todos pelo Censo, vinculada ao Sindicato dos Trabalha- o pagamento do aluguel”.
dores do Instituto, o Assibge, lançou uma nota em que ex- Ele acrescenta que as
plica os problemas identificados na retirada de algumas regiões metropolitanas
questões, com destaque para aquelas relativas à renda. No comumente apresentam
questionário aplicado apenas para os domicílios selecio- esses déficits e que ape-
nados para faixa da amostra, os recenseadores deixaram nas o Censo coleta em
de perguntar os bens do domicílio (geladeira, automóvel, detalhes as informa-
motocicleta). Já no questionário básico, respondido por to- ções nessas cidades.
dos os domicílios visitados, foi coletada apenas o valor da Wasmália Bivar,
renda do responsável pelo imóvel, sendo retirada a ques- ex-presidente do IBGE,
tão sobre os rendimentos dos demais moradores, embora destaca que uma perda
a questão esteja mantida no questionário da amostra. O importante do questio-
professor da Ence faz coro à nota e explica que a variável nário básico foi deixar
de renda é uma das mais difíceis de obter diante do receio de perguntar se hou-
da divulgação dessa informação, daí a importância de se ve mudança de cidade
obter esse tipo de informação de formas variadas. ou estado de residência
Ele conta que a partir da renda total dos domicílios nos últimos cinco anos.
foram criados mapas sobre desigualdade. “Com essa Ela explica que a frequência
pergunta você consegue mapear a pobreza em uma da migração vem diminuin-
escala microrregionalizada em nível de quarteirões”, do e para melhor dimen-
diz. Foi a partir dessa informação coletada que o IBGE sionar esse fenômeno seria
produziu mapas detalhados para o Ministério de De- importante questioná-lo
7
a um maior número de pessoas, ou seja, manter no questionário básico e ral. Isso porque o grau de detalha-
não deixá-lo apenas na amostra. “Ela é uma variável importante para en- mento coletado dificilmente é feito
tender os fluxos migratórios internos e fazer estimativas e projeções de pelas prefeituras, com exceção das
população municipal nos anos que o censo não é realizado”, detalha. metrópoles. Paulo Jannuzzi conta
Raphael Guimarães concorda e aponta os prejuízos para a dimensão que a pesquisa brasileira é uma das
dos cuidados em saúde, uma vez que há indícios de um novo modelo de mais particularizadas em termos
fluxo migratório, sem que as grandes cidades sejam os principais des- internacionais, em parte por conta
tinos. “Diversas pesquisas têm mostrado que muitas pessoas em idade das deficiências dos sistemas mu-
mais avançada e moradoras de grandes centros urbanos acabam optan- nicipais de informação e cadastros
do por mudar para cidades menores. Então a ausência dessa pergunta públicos. Os dados do Censo, expli-
pode trazer dificuldade para reconhecer quem são os atuais migrantes”, ca ele, informam as áreas não aten-
avalia. Ele complementa com a ponderação de que o planejamento de didas por serviços, os bolsões de
atenção à saúde é feito de forma regional. “Então, a compreensão desse pobreza e permitem avaliar indica-
fluxo migratório ajudaria a melhorar a noção do que precisamos de fato dores por segmentos específicos de
dentro das regiões de saúde”. raça/cor ou faixa etária. Os dados
da população de cada município e
A importância para os municípios determinam o número de verea-
dores, descrevem a base econômica
Os primeiros a colocarem em discussão os dados preliminares de con- e servem de base para a criação do
tagem populacional trazidos pelo IBGE foram os prefeitos. Isso porque Índice de Desenvolvimento Huma-
esses dados que servem de parâmetro para a distribuição dos recur- no (IDH) da cidade.
sos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), junto com Entre as informações mais di-
a renda per capita, calculada com dados do imposto de renda. fíceis de se obter, além da renda,
Wasmália defende que o grande problema está na legislação e Jannuzzi elenca a de óbitos. “Essa é
não na contagem. “Por uma variação de dezenas de habitantes, uma variável que pode ter ou uma
uma prefeitura pode perder muito recurso”, afirma. Ela explica subestimação ou a ocorrência do
que as regras previstas na lei nº 1881/1981, que cria a reserva óbito fora do período de coleta de
do fundo de participação dos municípios, são muito rígidas e dados”. E como exemplo da impor-
falam em número absoluto para municípios com até 156.216 tância do dado, o professor cita a
habitantes. Na estimativa populacional divulgada pelo identificação de bolsões nas regiões
IBGE em 2021, apenas 5,8% dos municípios ultrapassam metropolitanas em que havia um
a faixa de 100 mil habitantes. Embora 57% da população maior número de mortes de jovens
se concentre nesses municípios mais populosos. negros e que embasou o programa
O Tribunal de Contas da União (TCU) é o res- Juventude Viva, criado em 2012,
ponsável por fazer o cálculo de repasses aos pela Secretaria de Igualdade Racial.
municípios anualmente, a partir das proje-
ções ou dados do Censo que recebe do IBGE. Infraestrutura urbana
Como pequenas variações podem mexer
drasticamente nos recursos, Wasmália A coleta de 2022 traz uma no-
diz que a mudança necessária é alterar vidade: passa a trazer informações
a definição numérica das faixas por sobre o meio de transporte mais
um cálculo proporcional, conforme utilizado, como forma de ajudar o
prevê a Constituição. Ela lembra planejamento da mobilidade urba-
que os contratos firmados por na, uma vez que o Censo já é um
qualquer prefeitura têm prazos componente importante para a rea-
mais longos e que uma previsão lização do Plano Diretor dos municí-
orçamentária mais estável é pios. A nova pergunta está ao lado
importante. de questões que já eram pergunta-
E o papel do Censo para das anteriormente, como o tempo
os municípios vai muito de deslocamento, se é feito entre ci-
além da base de cálculo dades e se há retorno para casa três
para recursos, determina- dias ou mais na semana.
ção do número de vagas Além dos dados coletados em
de representantes no domicílio, há uma investigação
legislativo, do nível sobre a infraestrutura do entor-
municipal ao fede- no, realizada na fase de pré-coleta.
8
pessoa está desempregada”, diz e explica que, na semana propostas sejam atingidos. Como, por exemplo, aumen-
de referência da pesquisa, a pessoa entrevistada precisa tar a qualificação de trabalhadores para determinado
estar desocupada, mas ter buscado alguma oportuni- setor ou aumentar a formalização”, ilustra.
dade de trabalho seja por meio de amigo, uma consulta A pesquisadora lembra que investigar um fenôme-
em jornal, ou de outras formas no período. Em geral, os no social é sempre uma tarefa muito complexa e não
questionários são adaptados ao contexto brasileiro e da é possível fazer análises considerando apenas um in-
legislação, além da consulta que deve ser feita de forma dicador. Desconsiderar essa complexidade pode levar
constante às pessoas que trabalham com essas informa- a políticas equivocadas, e como exemplo, ela cita a Re-
ções, com os formuladores de políticas públicas. forma Trabalhista. O principal argumento para a Re-
Entre os dados captados pela PNAD estão as forma foi a necessidade de gerar um maior número de
regiões com maior incidência de informalidade, as- empregos a partir da desoneração da folha trabalhista
sim como recorte de cor/raça em relação à taxa de para as empresas e possibilidade do trabalho intermi-
ocupação no mercado de trabalho e a faixa de rendi- tente, ou seja, tornar a contratação mais barata.
mento. Dados, lembra a economista, que não podem O aumento de ofertas de trabalho não veio, o cresci-
ser analisados fora de contexto. “Mesmo com um mento econômico está baixo e a maioria dos empregos
período recente de queda da taxa de desocupação, ofertados está no setor de serviços, que oferece salários
isso se deu em um contexto que você teve queda de mais baixos. “Então, esse é um diagnóstico equivocado
rendimento, você teve uma piora da qualidade dos da situação do mercado de trabalho”, opina Cobo. Ela
trabalhos. É preciso pensar em que tipo de emprego acrescenta que as políticas em relação ao emprego de-
nossa economia está oferecendo para a manutenção vem estar associadas ao modelo econômico. “Com uma
da qualidade mínima de vida”. economia calcada na exportação e prestação de ser-
Ela explica que, embora identifique a proporção viços, sem produção industrial, não vamos conseguir
da população que atua no mercado informal, a PNAD gerar empregos de qualidade”, diz.
pode detalhar melhor esse processo, assim como a pre- Em breve, os dados conclusivos do Censo 2022 se-
carização das relações de trabalho. “O próprio questio- rão divulgados e teremos um retrato de um cenário
nário da PNAD Contínua precisa ser atualizado para pós-pandêmico, em que será possível saber como esta-
essas novas formas de trabalho e incluir as platafor- mos após a maior crise sanitária dos últimos 100 anos.
mas de delivery, de transporte”, avalia. E lembra que o E assim, planejar com evidências esse novo tempo.
cadastro realizado para o pagamento do Auxílio Emer-
gencial foi o primeiro a mapear a informalidade, uma Recenseador
vez que antes “os informais, eram invisíveis nas esta- percorre domi-
cílios no Rio de
tísticas públicas”. O que significou uma necessidade de Janeiro
apressar para conseguir montar um banco de dados de
beneficiários, em especial com o cruzamento de dados
realizado pelo Dataprev. No entanto, como esse banco
de dados não ficou público e foi bastante alterado com a
chegada do Auxílio Brasil, Cobo avalia que as informa-
ções relativas à informalidade se perderam.
Embora veja a necessidade de construção de indi-
cadores que captem de forma mais profunda a infor-
malidade e a precarização do trabalho e seja parte da
missão tanto do IBGE, quanto dos outros produtores
oficiais de informação, retratar a sociedade brasileira,
essa demanda precisa de incentivo do governo. “Você
faz política pública porque identificou um problema
que precisa atacar. Sem dúvida nenhuma, quando vem
uma demanda por política pública, tem um peso muito
maior de relevância para investigar determinado as-
sunto”, diz. Em outras palavras, a atuação do IBGE se
dá de forma integrada às demandas dos ministérios, os
principais interlocutores do Instituto, ainda que tam-
bém haja procura por parte dos municípios. “A ideia
TANIA REGO / ABR
O PAPEL DA
EDUCAÇÃO
NA LUTA
ANTIRRACISTA
Conquista do movimento negro, a Lei 10.639, que
estabelece a obrigatoriedade das disciplinas de História
e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar do ensino
básico, completa 20 anos de sua implementação
ERIKA FARIAS
H
á 20 anos tornava-se obrigatória a inclusão de História ponto de vista: do colonizador. Porque a gente vê
e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar do Ensino ali o imperialismo, a escravidão e depois acabou, a
Fundamental e Médio, em escolas públicas e particulares gente não vê mais nada. Só fui ter contato com re-
do país. A Lei 10.639, de janeiro de 2003, alterava a Lei lações raciais em 2010, no meu primeiro período
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ao entender a ne- da universidade”, relembra.
cessidade de incorporar a contribuição do povo negro na formação
da sociedade brasileira. Diferentemente da ênfase eurocêntrica que Histórico
sempre dominou os livros didáticos – nos quais, por anos, a história
de mulheres e homens negros pareceu ter seu prefácio escrito ape- Atualmente no Brasil, 56,1% da população é
nas durante o período colonial, com a escravização do povo africano formada por pessoas autodeclaradas pretas e par-
– a determinação de 2003 se somou a outras políticas públicas vol- das, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
tadas à valorização da África, de seus descendentes, cultura e feitos. Domicílios Contínua (Pnad Contínua) divulgada
“Quando eu era criança e tinha aula de história, quando chegava em 2022 pelo instituto Brasileiro de Geografia e
no ponto da história do Brasil que falava da escravidão, aquele era Estatística (IBGE). Apesar do acesso à escola ter au-
o único momento em que personagens negros apareciam. E apare- mentado nos últimos anos, ainda há uma dispari-
ciam nos desenhos dos livros com a calça abaixada aparecendo as dade no índice educacional entre pessoas brancas
nádegas, amarrados no tronco. Mulheres com o peito desnudo com e negras.
criancinhas abraçadas, todo aquele cenário de pobreza, sofrimento Dados do estudo Desigualdades Sociais por Cor
e dor. Nunca pessoas negras com protagonismo. Era sempre dentro ou Raça no Brasil de 2019, também realizado pelo
daquele modelo de escravização e colonizador”, relembra a profes- IBGE, que analisa as desigualdades entre brancos,
sora da Especialização em Direitos Humanos, Relações étnico-ra- pretos, pardos, amarelos e indígenas em cinco te-
ciais e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da mas: trabalho, distribuição de renda, moradia,
Fiocruz (Ensp/Fiocruz), Hilda Gomes. A professora, que também é educação, violência e representação política apon-
uma das coordenadoras do Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça taram que a taxa de conclusão do ensino médio en-
da Fiocruz, fala sobre o objetivo da lei, neste contexto. “Ela reconta tre pessoas de 20 a 22 anos da população preta ou
uma história que foi contada durante muito tempo sob outro ân- parda era de 61,8% e a dos brancos, 76,8%. Já entre
gulo: desqualificando e inferiorizando a população negra. Ela traz pessoas de 18 a 24 anos com ensino médio com-
mais dignidade à história da população africana e afro-brasileira, pleto que não estavam frequentando a escola por
no que diz respeito ao seu papel enquanto elemento de construção terem que trabalhar ou procurar trabalho, 61,8%
de identidade de propostas educativas, da cultura, da ciência e da eram pretos ou pardos. Em se tratando da taxa de
tecnologia”, afirma. analfabetismo de pretos ou pardos, o número dimi-
Caroline do Nascimento, professora da Rede Municipal de Edu- nuiu de 9,8% (2016) para 9,1% (2018), número que
cação de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, teve experiência se- ainda supera o de pessoas brancas (3,9%). Nesse
melhante. “Na época da escola, o que eu tive acesso foi a história da mesmo período, a proporção de pessoas de 25 anos
Princesa Isabel redentora, da necessidade dessa colonização. E não é ou mais com pelo menos ensino médio completo
que a história não foi contada, mas ela foi considerada por um único subiu de 37,3% para 40,3%. Já entre a população
13
Desafio de material didático do cial, a Xenofobia e a Intolerância, realizada ção’ para a gente entender, por
Rioeduca desenvolvido a partir
da dissertação da pesquisadora
em 2001, em Durban, na África do Sul. Na exemplo, que há uma educação
Luane Bento, sobre a matemáti- ocasião, o enfrentamento ao racismo foi rea- das relações étnico-raciais no
ca das tranças firmado como um papel do Estado, não ape- nosso país que tem como ‘par-
nas dos movimentos sociais. teira’ a violência. Parece um
“Essa lei [10.639] já tinha inclusive sido detalhe, mas acho que o termo
escrita anteriormente e não tinha passado. reeducação revela e traz tam-
Daí a delegação juntou este texto com as bém a radicalidade de a gente
diretrizes escritas pela professora Petroni- entender que existe uma educa-
lha Beatriz Gonçalves e Silva [referência na ção pautada nessa violência, que
área de educação e relações étnico-raciais] e naturaliza essa violência do pro-
então foi aprovada logo no início da primei- cesso de colonização, de projeto
ra gestão do governo Lula. Foi uma grande de dominação, do processo de
vitória em muitos aspectos, porque quando genocídio físico, cultural, episte-
você pensa na estratégia das políticas de mológico, subjetivo. Revela que
ações afirmativas elas são tanto educacio- já existe uma educação e que é
nais, quanto na saúde, na segurança... Claro preciso reeducar”, explica.
que, dentre elas, a que virou o maior sinô-
nimo de ação afirmativa foram as cotas das Compromisso
universidades, mas elas não se restringem a público
isso. Foi na verdade um conjunto de medi-
A Lei 10.639, que alterou a
das resultantes de uma trajetória bastante
LDB, também estabeleceu as
longa desses atores do movimento negro”,
diretrizes curriculares para sua
explica a coordenadora da Gerência de Re-
implementação. Dessa forma, em
lações Étnico-Raciais, da Secretaria Munici-
2004, foram publicadas as Dire-
pal de Educação do Rio de Janeiro (Gerer/
trizes Curriculares Nacionais
RJ), Joana Oscar.
para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino da
branca, esse percentual era de 55,8%. Construção de identidades
Outra disparidade vem do indicativo História e Cultura Afro- Brasilei-
do abandono escolar, no qual a propor- Segundo estudiosos, um dos desafios de ra e Africana. Segundo as diretri-
ção de pessoas de 18 a 24 anos pretas ou lutar contra o racismo estrutural é que ele zes, “o Ministério da Educação,
pardas com menos de 11 anos de estudo nem sempre é nítido; pelo contrário: acon- comprometido com a pauta de
e que não frequentavam escola caiu de tece nas sutilezas, na raiz das relações. “O políticas afirmativas do Gover-
30,8% (2016) para 28,8% (2018), enquan- tempo todo se reforça o modelo eurocên- no Federal, vem instituindo e
to era de 17,4% entre os brancos. trico, seja na moda, nas questões que envol- implementando um conjunto
“Trabalhar com relações raciais na vem a dramaturgia, nos outdoors, nas equi- de medidas e ações com o obje-
escola é trabalhar com relações de po- pes. Então como que uma criança pequena, tivo de corrigir injustiças, elimi-
der. Currículo é poder. Eu gosto muito preta, vai se colocar de uma maneira orgu- nar discriminações e promover
da reflexão que prega que trabalhar lhosa de si, se modelos que estão no mun- a inclusão social e a cidadania
com relações raciais não significa uma do exterior não mudarem? A África, como para todos no sistema educa-
disciplina a mais, e sim, uma política continente, teve reinos, ciência, tecnologia, cional brasileiro”. Também no
curricular”, afirma Caroline. Nos anos literatura. Como eu acredito que uma mu- documento, consta que ele “pro-
que se seguiram, especialmente após lher negra pode ser aeromoça? Como uma põe a divulgação e produção de
1988, centenário da abolição da escra- criança acredita que uma mulher negra conhecimentos, a formação de
vidão, novas lideranças foram apare- pode ser presidente da Fiocruz? Se os mo- atitudes, posturas e valores que
cendo e ganhando destaque, bem como delos que eu vejo a minha volta falam de eduquem cidadãos orgulhosos
outras mobilizações foram sendo reali- pobreza, violência, miséria, preconceito, de seu pertencimento étnico-ra-
zadas em diferentes âmbitos, garantin- discriminação e racismo, quais são as possi- cial – descendentes de africanos,
do um novo espaço político e social para bilidades?”, questiona Hilda Gomes. povos indígenas, descendentes
o movimento negro, incluindo o campo A professora-pesquisadora da Escola de europeus, de asiáticos – para
educacional. Outro acontecimento cru- Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio interagirem na construção de
cial para a criação de políticas públicas (EPSJV/Fiocruz), Valéria Carvalho, fala uma nação democrática, em que
de enfrentamento ao racismo foi a Con- de reeducação. “Tem um termo chamado todos, igualmente, tenham seus
ferência Mundial das Nações Unidas de reeducação das relações étnico-raciais, direitos garantidos e sua identi-
contra o Racismo, a Discriminação Ra- eu acho importante frisar essa ‘reeduca- dade valorizada”.
14
Então, vinha material didático como livros de his- O que tem se constatado é que que essa é uma pergunta que recor-
tórias infantis e até jogos. Tem editoras que tem não bastam legislações para a ‘ree- rentemente é feita para colocar em
trabalhos muito legais de jogos e biografias de per- ducação’ das relações sociais no am- dúvida, isso pelo incômodo que ela
sonalidades importantes negros e negras que con- biente educacional – e consequen- gera. Agora tem um desafio gigante
tribuíram pra construção da sociedade brasileira temente na sociedade. É necessário que é o pacto federativo. O Estado
e também estrangeira. Então, você tem um amplo também empenho, persistência e Brasileiro é responsável pelo Ensino
material e escritores que estão desenvolvendo a vontade de educadores para faze- Superior. Os estados são responsá-
temática”, argumenta. rem a diferença em um sistema veis em alguma medida pelo Ensino
engendrado para a exclusão, que Fundamental II, e muito pelo Ensino
Mudanças observadas pouco a pouco tem ganhado novos Médio, e os municípios são respon-
ares. Joana Oscar chama à reflexão: sáveis pela Educação Infantil e pelo
Ainda há um longo caminho para um compro- “costumam perguntar ‘a lei pegou Ensino Fundamental. Então, embo-
misso público que leve a uma implementação in- ou não pegou?’ E aí a gente tem que ra eles estejam organizados e regidos
tegral da lei e que supra as necessidades a serem citar a ex-ministra das Mulheres, pela mesma lei, eles têm autonomia
tratadas em sala de aula. Para alguns estudiosos, da Igualdade Racial e dos Direitos de como vão fazer seus ajustes e é aí
quando não houver mais necessidade de se falar Humanos, Nilma Nilo Gomes. Ela que está o problema, porque cada
em relações interraciais e luta antirracismo, essa fala para a gente perceber a arma- um vai ter o seu próprio caminhar.
lei já não se fará mais necessária. Apesar dos desa- dilha do próprio racismo estrutural Por isso temos experiências que
fios, os entrevistados foram enfáticos ao dizer que caso a gente pense que não pegou. estão super avançadas e outras
a lei 10.639 vem dando certo. É claro que ela pegou. Tanto pegou muito incipientes”, diz.
ALMANAQUE 17
ALMANAQUE
70 ANOS DA GREVE
DOS 300 MIL
Nos primeiros anos após o término Segunda Guerra
Mundial, que acabou em 1945, a alta do preço
dos alimentos corroía os salários. Enquanto a
inflação dobrava o preço dos alimentos, os salários
dos operários quase não tinham reajuste. E essa
insatisfação eclodiu em 1953. Um período registrado
na música ‘Tá Tudo Subindo’ em que a dupla
sertaneja ‘Alvarenga e Ranchinho’ cantou:
A
pós o início da pandemia de Co- EM 2005, A OMS LANÇOU UMA como uma experiência ímpar
vid-19 ficou cada vez mais comum RECOMENDAÇÃO PARA O USO DA na Atenção Primária em Saúde
TELESSAÚDE. EM SEGUIDA, SURGIRAM para a prevenção de doenças
encontrar opções on-line para a PLATAFORMAS DESSA MODALIDADE cardíacas. A telessaúde acabou
prestação de serviços de saúde. As filas de NO PAÍS. QUAL O SEU BALANÇO DO prestando um serviço a pessoas
espera deram lugar a um atendimento ao PERÍODO E OS DESAFIOS ATUAIS? no interior do país que tinham
alcance do celular. No entanto, os servi- Em meados dos anos 2000 doenças crônicas e precisavam
iniciaram algumas ações ser tratadas periodicamente
ços de saúde a distância estão longe de por sua Unidade Básica de
importantes do governo. Uma foi
serem novidade e não se reduzem a apli- a criação da Rede Universitária Saúde (UBS). Não só isso, como
cativos que podem ser baixados ou a tele- de Telemedicina. Houve outro também ajudou nos diagnósticos
consultas. As atividades em teleconsulta projeto do Ministério da Saúde difíceis. O estado do Amazonas
em que as universidades públicas é todo ligado por telessaúde
ganharam impulso a partir de 2005, com desde aquela época. Pontos
ficaram responsáveis pelos
a recomendação da Organização Mundial núcleos técnico-científicos e fundamentais para o SUS na
de Saúde (OMS) para que a modalidade dez estados que receberam a região amazônica, porque o
fosse adotada. A partir daí surgiram vários versão piloto do projeto puderam deslocamento é muito difícil,
montar 100 pontos de telessaúde onde é preciso uma viagem de
programas de desenvolvimento de tecno- três dias de barco para chegar
cada um. Essa etapa durou
logias na área, a maioridade deles vincu- cerca de quatro anos e virou nesse lugar.
lados a universidades públicas e voltados programa Telessaúde Brasil Agora, acho que esse é o
para o Sistema Único de Saúde (SUS). E Redes, ainda no governo do PT momento para fazer um
[Partidos dos Trabalhadores]. diagnóstico extensivo das
apesar de regulamentada por portarias entidades que fazem
Um programa idealizado por
e resolução de conselhos profissionais, a Ana Estela Haddad, atual telessaúde no país
telessaúde foi regulamentada em cará- Secretária de Saúde Digital. e de suas várias
ter permanente apenas em dezembro de O legal do Telessaúde Brasil é modalidades. Não temos
que o programa foi criado para um mapeamento, não
2022. Programas ligados a essa modali- sabemos quantos
auxiliar a Atenção Primária
dade de atendimento ficaram a cargo da em Saúde e fortalecer a núcleos existem. É
recém-criada Secretaria de Saúde Digital, equipe multiprofissional nos também o momento de
que também tem sob sua alçada o Depar- diagnósticos que porventura estabelecer em que estágios
chegassem. essas unidades estão, porque
tamento de Informática do SUS (DataSUS).
Esses núcleos foram sementes há muita disparidade nos
Nesta entrevista, a pesquisadora da Escola de inovação dentro das estágios de desenvolvimento.
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca universidades. Por exemplo, [a Por exemplo, o Rio Grande do
(Ensp/Fiocruz) Angélica Baptista Silva co- Universidade Federal de] Santa Sul, que é o melhor do Brasil
Catarina criou uma plataforma em termos de núcleos, e oferece
menta a aprovação de lei que inclui a Te-
nacional de telediagnósticos, [a produtos refinados para a
lessaúde na Lei Orgânica do SUS, fala das Universidade Federal de] Minas população. Há também o núcleo
diferenças de abordagem no âmbito pú- Gerais criou uma plataforma do Acre, que começou ano
blico e privado e aponta os desafios para também nacional de cardiologia. passado. Então é preciso uma
A experiência de Minas receita de bolo, de boas práticas
a nova secretaria.
Gerais chamada de Contêiner registradas para orientar o que
Cardiologia é reconhecida pela deve ser feito para que essas
JULIANA PASSOS
Organização Mundial da Saúde novas unidades surjam.
19
em que temos o registro das vacinas. E se você já nos Estados Unidos é uma confusão. Eles ainda estão regulando
fizer um exame de Covid-19 nesses laboratórios, isso tudo. Então, são vários prontuários em cada estado e não têm
que agora têm um em cada esquina, ele precisa interoperabilidade entre sistemas porque há uma briga de mercado
notificar o Ministério da Saúde e vai aparecer no grande. Quem está bem avançada também é a União Europeia (UE).
aplicativo. Então a RNDS vai facilitar esse fluxo da Na UE, como há muitos países próximos, é possível estabelecer o
informação. Mas assim, se olharmos as portarias fluxo de informações entre um país e o outro. Eles precisam que os
que criam a Rede, elas falam, por exemplo, que sistemas nacionais se falem e estão bastante debruçados em fazer
se trata de um ambiente de laboratório para as esses sistemas interoperáveis.
empresas. Algo muito voltado para o mercado e
não para fortalecer o SUS.
Agora, com essa nova visão [do governo que
assumiu], nós temos a Nísia Trindade como
Ministra da Saúde, nós temos um governo um
pouco mais à esquerda, nós temos a Ana Estela
Haddad como Secretária de Saúde Digital, e
HÁ ALGUMAS QUESTÕES QUE
poderemos pegar essa infraestrutura e colocá-la a
serviço do SUS. O governo anterior contratualizou
PRECISAM SER DISSEMINADAS PARA
com a Amazon a compra de uma nuvem para A SOCIEDADE COMO UM TODO, COMO
colocar os nossos dados e hoje está se pensando
em substituir essas nuvens por contêineres O CONSENTIMENTO DO PACIENTE E
virtuais dos estados. A briga é essa, sistemas
descentralizados têm mais a ver com o SUS e com OS DADOS QUE ESTÃO ENVOLVIDOS
a própria estrutura do Brasil, que é federativa. E
a gente hoje tem tecnologia para fazer a gerência NA CONSULTA”
disso. Junto a esses desafios, a nova Secretaria
de Saúde Digital terá que lidar também com os
sistemas de informação em saúde fragmentados, EM RELAÇÃO À PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE DO PACIENTE, COM QUAIS
softwares sucateados e um DataSUS que parou de QUESTÕES DEVEMOS NOS PREOCUPAR?
desenvolver ferramentas próprias, apenas compra Há algumas questões que precisam ser disseminadas para a
soluções. Então as culturas administrativas sociedade como um todo, como o consentimento do paciente
precisam ser revertidas. e a transmissão dos dados que estão envolvidos na consulta.
E a gente precisa fazer isso no ecossistema da saúde digital.
O PROGRAMA DA TELESSAÚDE NO BRASIL É Em uma consulta com o ortopedista, por exemplo, pode surgir
CONSIDERADO REFERÊNCIA PELA ORGANIZAÇÃO PAN- uma dúvida do médico e o profissional sentir a necessidade
AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). A QUE SE ATRIBUI ISSO de consultar outro. Eu preciso ser informada se essa ligação
E EM QUAIS OUTROS PAÍSES PODEMOS NOS INSPIRAR? entre profissionais foi gravada ou não. Onde é que ele vai
disponibilizar isso? Os dois têm que me explicar, entendeu? É
Somos um país continental, então aqui tudo
dever deles fazer isso. É dever deles garantir que essa gravação
tem grandes proporções, mas há outros bons
não caia nas mãos de alguma pessoa.
exemplos na região. O Peru tem atividades de
Vou te dar um exemplo prático e bem radical disso. Durante
telessaúde muito interessantes. Eles monitoram
a pandemia, onde é permitido aborto nos Estados Unidos, o
unidades neonatais há mais de dez anos. Todas as
pessoal começou a orientar o processo abortivo à distância. Não
Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) neonatais
só isso, como um planejamento familiar total, você vai tocar em
lá estão ligadas por videoconferência. Isso
dados sensíveis e muito dados sensíveis. Porque você vai falar
já há muito tempo. Eles também pesquisam
de doença sexualmente transmissível, será preciso perguntar
muitos dispositivos e já fazem ultrassonografia
‘você é fiel ao seu marido?’ ‘Você sabe se seu marido te trai?’. No
à distância. A Argentina também tem um
desenvolvimento bem interessante, com uma atendimento, a pessoas com HIV é preciso garantir a privacidade
experiência muito grande em prontuário dessas informações porque pode afetar a contratação de um
eletrônico, de cirurgia remota. Então, a Argentina plano de saúde ou mesmo o processo seletivo para uma vaga
também é inspiradora nessa parte de alta de emprego. Esse vazamento de dados não pode acontecer e se
complexidade. O Chile tem uma grande rede de houver esse risco, o paciente que tiver sob esse cuidado virtual
consultórios interligados. precisa ser avisado para fazer a opção entre um atendimento
virtual ou presencial. “Ah, só tem teleconsulta, não tem gente
para te atender. Você vai ter que falar por aqui, quer ser
E FORA DA AMÉRICA DO SUL? atendido?”. Situações como essa não podem ocorrer, mas podemos
Tem vários. O Canadá foi o país precursor e que ter problemas com essa falta de opção e com a segurança dos
inspirou a OMS. Eles têm um SUS que funciona, dados no futuro. O paciente precisa estar ciente e precisa
que tem dinheiro, enfim. E a saúde está a serviço decidir essas questões com o médico. A lei prevê o direito da
do SUS deles. E é o que eu acho que a gente precisa recusa do atendimento na modalidade virtual com a garantia do
fazer, ter a saúde, seja privada ou pública, que atendimento presencial sempre que solicitado. Então vamos ver
atenda o SUS. No Canadá está tudo integrado, se isso vai ser garantido.
22 CONTROLE SOCIAL
ANTONIO CRUZ / ABR
Espaços
de diálogo:
o retorno dos
conselhos de
participação
Especialistas fazem balanço
do governo anterior e apontam
desafios para os próximos anos
JULIANA PASSOS
Em julho de 2019,
o Ministério do
Meio Ambiente
escolheu os repre-
sentantes das enti-
dades ambientais
para o Conama por
meio de sorteio
A
retomada dos conselhos de participação social já nos primeiros rompida também a execução do plano”, comenta Pa-
meses do terceiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Sil- checo. Pautas que ela espera que sejam recuperadas nos
va trouxe alívio diante da falta de interlocução com o governo próximos meses.
anterior. O ex-presidente Jair Bolsonaro extinguiu dezenas de Diferente do Consea, o Conama tem funções delibe-
órgãos colegiados que não estavam previstos em lei e fez alterações im- rativas e define normas como parâmetros para a elabo-
portantes naqueles que tinham proteção legal, em uma de suas primeiras ração de relatórios de impacto ambiental (EIA-Rima), de
medidas após tomar posse, em 2019. Entre os exemplos mais significativos qualidade do ar, do solo e que complementam a legisla-
estão o fim do Consea, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, e ção. “O Conama é uma espécie de bússola para a gestão
a mudança na composição do Conama, o Conselho Nacional do Meio Am- ambiental no Brasil”, diz o presidente do Instituto Brasi-
biente e no Conselho Nacional de Educação (CNE). leiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Bocuhy e
Maria Emília Pacheco, presidente do Consea no período de 2012 a 2016, conselheiro do Conama entre 2009 e 2019. Embora não
explica que entre as funções do órgão estão o aconselhamento da Presidên- tenha interrompido as atividades, esse conselho teve
cia, monitoramento da execução de políticas e programas. Também respon- grandes mudanças na sua composição. Em 2019, com a
sável pela apresentação de propostas ou aperfeiçoamentos de políticas nos publicação do decreto 9.806, a participação do governo
âmbitos municipal, estadual e federal. “É a conjugação dessas missões que saiu de 30 para 43%, as organizações da sociedade civil
compõem a grande missão do Consea”, diz. Entre os principais programas ficaram com 25,9%, sendo 8,6% para entidades empre-
monitorados e aperfeiçoados estão o Programa de Aquisição de Alimentos sariais. Em números absolutos, as organizações ambien-
(PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que tiveram tais foram de 11 participantes para quatro participan-
seus orçamentos congelados desde 2017. O Consea, recriado em 28 de feve- tes. Essa nova composição permitiu ao governo formar
reiro de 2023, também elabora o Plano de Combate à Fome e à Miséria e maioria com o setor privado e motivou uma Arguição
realiza conferências nacionais a cada quatro anos. “Havia um processo de de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF
preparação da sexta Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nu- 623, movida pela Procuradoria Geral da União (PGR).
tricional e esse processo foi bruscamente interrompido. Alguns estados já A ação questiona a capacidade de participação social
haviam inclusive realizado suas conferências estaduais, o que significa que diante da preponderância de integrantes do governo e
haviam feito também as conferências municipais. Nesse sentido, foi inter- redução das entidades ambientais. A ADPF foi acatada
23
pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa em sua composição com os decretos publicados pelo
Weber no final de 2021. A ministra do Supremo tam- governo anterior. No entanto, o presidente Fernando
bém foi responsável por revogar a Resolução 500/2020 Pigatto elenca a falta de diálogo e o descrédito das re-
do Conama, que liberava a exploração de áreas de comendações lançadas pelo CNS em relação à Covid-19
manguezais e restingas, ignorando normas anteriores como um dos principais desafios enfrentados no pe-
de análise de impacto ambiental de empreendimentos ríodo. “Eu tenho que dizer que toda a participação da
elaboradas pelo próprio conselho. Em 17 de fevereiro de comunidade foi prejudicada pelo governo [Jair] Bolso-
2022, o novo governo lançou o Decreto nº 11.417/2023 naro: houve o decreto do presidente da República que
para recompor o órgão colegiado. No entanto, com o extinguiu ou modificou centenas de órgãos colegiados e
crescimento do número de ministérios, o Estado con- nós também nos sentimos atacados. Para nós, o Conse-
tinua com um maior número de representantes. Nos lho Nacional de Saúde precisa atuar de forma integrada
cálculos do Proam, a sociedade civil ficará com apenas com os outros conselhos”, diz. E lembra que a última
17% do poder de voto, contra 83% de representantes do Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 2019, foi
poder executivo e setor econômico. bastante prejudicada pela restrição de recursos e pro-
E o Conama não foi o único a ter sua composição tagonismo. “Corremos o risco de não realizar a etapa
afetada no governo anterior. O Conselho Nacional de nacional da 16ª Conferência por cortes no orçamento,
Educação (CNE) também recebeu nomeações enten- além do isolamento do CNS nas articulações e nos deba-
didas como aparelhamento do órgão. “Você tem hoje tes e construções coletivas que sempre foram seu papel.
um conjunto de conselheiros na Câmara de Educa- O Conselho não é só fiscalizador e de consulta, também
ção Superior e na Câmara de Educação Básica que são há o caráter deliberativo que foi completamente aban-
majoritariamente alinhados com o tipo de visão que o donado durante o último governo”, diz. Mas nem todas
Brasil se esforçou e tem se esforçado para superar, uma as dificuldades dos conselhos podem ser atribuídas a
visão estreita e obscurantista”, avalia César Callegari, uma conjuntura governamental.
ex-conselheiro do CNE. Ainda em 2020, o Conselho
Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Problemas antigos
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undi-
me) emitiram uma nota de repúdio em que criticam a César Callegari e Andrea Gouveia apontam para a
retirada de cadeiras para representantes das entidades, necessidade de formulação de critérios mais objetivos
costumeiramente presentes. Andrea Gouveia, professo- para a nomeação de conselheiros para o CNE. “Os crité-
ra da Universidade Federal do Paraná (UFPR) também rios da composição não são bem pactuados. Não é um
registra que a Associação Nacional de Pós-Graduação conselho paritário com diferentes setores da comunida-
e Pesquisa em Educação (ANPEd) deixou de compor de educacional brasileira, predominam pessoas ligadas a
o conselho, ainda que tenha enviado indicações. Já no grupos empresariais da educação. Então é urgente revisar
final do seu governo, em novembro de 2022, Jair Bolso- a composição do Conselho Nacional de Educação”, avalia
naro nomeou nove conselheiros, aliados do seu gover- Gouveia. Um dos caminhos para estipular esses critérios,
no, com mandato de quatro anos. O CNE é responsável diz a professora, seria com a criação do Sistema Nacio-
por auxiliar o Ministério da Educação na elaboração de nal de Educação (SNE), pauta antiga dos educadores, que
diretrizes curriculares e políticas públicas para a área. avançou no congresso em 2022 e foi tema de reportagem
“Esse é um conselho que tem uma função de normati- na revista Poli 83. Outro ponto levantado por Callegari é a
zação complementar e dá conta do que não está na LDB inexistência de prazo legal para que o Ministério da Edu-
[Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e não cação avalie e homologue as decisões do CNE. “Muitas
pode ser feito diretamente pelo MEC” explica Gouveia. decisões simplesmente dormem nas gavetas do Ministé-
A Base Nacional Curricular Comum (BNCC), por exem- rio da Educação e jamais são homologadas”, diz. Entre os
plo, foi aprovada pelo colegiado, mas
o órgão não tem poder deliberativo.
“Conforme a legislação, o CNE tem
pouca autonomia de processo deci-
sório. Qualquer decisão precisa ser
homologada pelo ministro da pasta”,
explica Callegari, também presiden-
te do Instituto Brasileiro de Sociolo-
gia Aplicada (IBSA).
Tido como exemplo na partici-
pação social, o Conselho Nacional
de Saúde (CNS) não sofreu abalos
24
exemplos está o CAQ, Custo Aluno-Qualidade, que prevê as decisões geralmente favorecem os planos de governo de curto prazo e os
valores mínimos para garantia da qualidade na educação. planos do setor econômico”, avalia. O ambientalista argumenta que outros
“Já houve manifestação do CNE sobre isso, mas jamais foi fatores, além dos econômicos, devem ser levados em conta, como o Índice
implementado e nem retornou para eventual reexame”. de Desenvolvimento Humano (IDH) . O presidente do Proam defende que
Callegari renunciou à presidência do Conselho em julho a composição do conselho seja formada em sua maioria por aqueles que de-
de 2018 e seu mandato terminou meses depois, em outu- fendem o meio ambiente de forma independente e cita a Constituição para
bro. Na carta de renúncia, ele criticou a proposta da Base lembrar que o Meio Ambiente está previsto como direito fundamental.
Nacional Curricular Comum (BNCC) para o ensino médio Algo não alcançado pela nova composição do Conama em sua avaliação e,
feita pelo MEC, atrelada à Reforma para o segmento. “Na por isso, ele não pretende retornar como conselheiro nesse momento. “Es-
contramão de tudo o que se pensou, a nova Lei do ensino tamos pleiteando a ampliação da participação da sociedade civil, já que o
médio estabelece que esses direitos serão reduzidos e li- decreto de fevereiro propõe um estado de insuficiência democrática”, disse.
mitados ao que puder ser desenvolvido em, no máximo,
1800 horas. Ou seja: apenas ao que couber em cerca de Exemplos de composição
60% da atual carga horária das escolas. Pergunta-se, en-
tão: o que vai ficar de fora? Quanto de língua portuguesa, Embora sem caráter deliberativo, a composição do Consea trouxe avan-
de biologia, de filosofia, de matemática, química, história, ços para o acompanhamento das políticas em segurança alimentar e nutri-
geografia, física, arte, sociologia, língua estrangeira, edu- cional. “A composição majoritária de representantes da sociedade civil e a
cação física? Quantos conhecimentos serão excluídos do ocupação da presidência por membro desse segmento conferia ao Consea
campo dos direitos e obrigações e abandonados no ter- uma peculiaridade como possível espaço de contestação, além de formulação
reno das incertezas, dependendo de condições, em geral de propostas e monitoramento da política. A sociedade civil valorizava tal
precárias, e das vontades por vezes poucas? E mais: uma arena pela sua visibilidade e certo grau de incidência na ação governamen-
Base reduzida pode levar ao estreitamento do escopo das tal. Entretanto, a eficácia da sua participação dependia da permeabilidade
avaliações e exames nacionais que já consolidaram um do governo. Como o Consea era capaz de dar voz a segmentos vulneráveis,
papel marcante no nosso sistema educacional. E então? alguns setores do governo eventualmente se sentiam ameaçados. Nesse sen-
Exames como o Enem também serão reduzidos, a indi- tido, observaram-se enfrentamentos e alianças entre governo e sociedade
car que, agora, muito menos será garantido e exigido? civil”, escrevem as pesquisadoras Verena Moraes, Cristiani Machado e Ro-
Incapazes de oferecer educação de qualidade, baixam a sana Magalhães da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/
régua, rebaixam o horizonte. Essa, a mensagem que se Fiocruz) em artigo publicado em 2021 na revista Cadernos de Saúde Pública.
passa para a sociedade”, criticou entendendo que não ca- Maria Emília Pacheco vê como positiva essa composição expressiva da
beria ao CNE refazer a proposta. No final do mesmo ano, sociedade civil aliada a ausência de representantes de grandes indústrias de
a proposta criticada foi aprovada. Integrante do grupo de alimentos e comenta os processos importantes desencadeados pelo conselho.
transição para a Educação, Callegari defende que este é o Criado em 1993, o conselho foi desativado em 1995 pelo então presidente Fer-
momento para fazer propostas mais “ousadas” na área, nando Henrique Cardoso e reativado em 2003, no primeiro mandato de Lula.
em especial a formação e valorização dos professores do E nesse mesmo ano nasceu o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “O
ensino básico. “De todos os desafios que temos, o principal Programa de Aquisição de Alimentos nasceu em uma plenária do Consea, em
é formar uma nova geração de professoras e professores 2003”, lembra a também assessora da Federação de Órgãos para Assistência
da educação básica no país com uma carreira de estado, Social e Educacional (Fase). Para incentivar a agricultura familiar e alimen-
uma carreira federal, com remuneração altamente com- tar pessoas em situação de vulnerabilidade, o programa realiza a compra de
petitiva a outras categorias profissionais”, defende. alimentos desses agricultores com dispensa de licitação, auxilia na criação de
Apesar de ter seu funcionamento regido por uma estoques públicos para estes alimentos e destina a pessoas atendidas pela rede
composição tripartite, o Conama também encontra “in- pública de ensino e socioassistencial. Sua criação está prevista em artigo da
suficiências democráticas”, avalia Bocuhy. Ele explica Lei nº 10.696, a do programa Fome Zero, lançado no mesmo ano. Já outros pro-
que o principal trabalho do Conama é feito nas câma- gramas relacionados, como Um milhão de Cisternas e o Programa Nacional
ras técnicas. O primeiro passo é amadurecer a norma de Alimentação Escolar (PNAE) nasceram de demandas da sociedade civil,
do ponto de vista científico e depois passa por uma se-
gunda câmara em que a norma é analisada do ponto
de vista jurídico. Integrante do Conama por dez anos,
Bocuhy considera este um bom sistema para a formu-
lação de uma norma e sanar todas as dúvidas antes de
FABIO RODRIGUES POZZEBOM / ABR
ALERTAS GLOBAIS
CHAMAM A
ATENÇÃO PARA
O PAPEL DO
TRABALHO NA
SAÚDE MENTAL
Apesar do crescente debate em espaços
laborais, tema ainda é cercado de estigmas
ERIKA FARIAS
E
stima-se que 12 bilhões de dias de trabalho
são perdidos anualmente por causa da de-
pressão e da ansiedade, custando à econo-
mia mundial quase 1 trilhão de dólares. Os
dados são do relatório “Diretrizes sobre Saúde Mental
no Trabalho”, publicado pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), em setembro de 2022, e confirmam
a necessidade de se trazer o debate ainda mais à tona.
Na mesma época, a Organização Internacional do Tra-
balho (OIT), publicou uma nota conjunta com a OMS,
na qual as novas diretrizes são explicadas por meio
de estratégias práticas para governos, empregadores,
trabalhadores e suas organizações, nos setores públi-
cos e privados. “De acordo com as diretrizes globais,
60% da população mundial trabalha e esse trabalho
pode impactar a saúde mental tanto de forma posi-
tiva quando negativa. As diretrizes também trazem
questões importantes referentes à inserção e à per-
manência de pessoas com problemas de saúde men-
tal no mercado de trabalho. Além do estigma e das
barreiras que essas pessoas vivenciam para ingressar
no mercado de trabalho, a ausência de estruturas de
suporte impacta na sustentação das atividades labo-
rais”, explica a consultora Nacional de Saúde Mental
da OMS, Cláudia Braga.
De acordo com o Instituto Nacional do Seguro So-
cial (INSS), em 2022, 209.124 mil pessoas foram afas-
tadas do trabalho por transtornos mentais, entre de-
pressão, distúrbios emocionais e Alzheimer, enquanto
em 2021 foram registrados 200.244 afastamentos.
“Esse cenário nos mostra a importância de discutir-
mos essas questões e esperamos que essas diretrizes
possam nortear os debates sobre as responsabilidades
dos diferentes atores, de modo a mobilizarmos esfor-
ços para prevenir os impactos negativos do trabalho
na saúde mental, promover e proteger a saúde men-
tal e o bem-estar dos trabalhadores e trabalhadoras,
assim como dar suporte às pessoas com problemas
MELANIE WASSER / UNPLASH
27
trabalho, gerenciamento de atividades ou prestação minguadas garantias trabalhistas ou as urgentes necessidades de adaptação
de serviços. “No setor terciário, vemos uma ampliação a estruturas tecnológicas desconhecidas. A professora-pesquisadora diz que
da informalidade e ausência de direitos trabalhistas esses fatores se somaram, para muitos trabalhadores, a extensas horas de
que ironicamente são associados ao ônus do ‘empreen- trabalho virtual, aliadas aos cuidados domésticos e com familiares - sobre-
dedorismo’. Todas essas dinâmicas precarizadoras, tudo para as mulheres. “Não podemos esquecer da experiência angustiante
por si só, são potencialmente produtoras de estresse, de termos vivenciado o adoecimento e a morte de parentes e amigos, ou da
fadiga, ansiedade e depressão. Então, podemos inferir vivência do próprio adoecimento por Covid e suas sequelas. A experiência
que trabalhadores e trabalhadoras possam ter maior de confinamento gerou também um aumento de tensões, da solidão, das
receio de falar sobre sua situação de saúde mental no preocupações existenciais, da violência doméstica e do empobrecimento,
ambiente de trabalho por medo de serem conside- agravando indiscutivelmente o sofrimento mental dos trabalhadores”, diz.
rados incompetentes, emocionalmente instáveis ou De acordo com Bruno Ribeiro, a pandemia também foi um catalisador
incapazes de desempenhar suas tarefas sob pressão, para situações que já aconteciam em ambientes de trabalho e o tele-
pois isto geraria, em última instância, sua substituição trabalho (ou trabalho remoto), imposto em muitas organizações
por alguém considerado mais saudável, equilibrado e devido ao isolamento social, apesar de favorecer parte dos tra-
apto ao trabalho”, afirma. “Obviamente que existem balhadores, também trouxe à tona aspectos delicados dessa
instituições que possuem políticas de maior atenção modalidade. “Se antes eu sofria um assédio moral no es-
à saúde dos trabalhares, mas esses casos pontuais só paço de trabalho - o que já era uma violência, mas eu
mostram que a exceção confirma a regra predatória tinha meus colegas como testemunhas ou fortaleci-
concernente ao mundo do trabalho”, complementa mento social – hoje, nem isso. Eu posso estar sendo
a professora. assediado nessa modalidade que chamamos de
Ainda há os casos das pessoas afastadas que não ‘teleassédio’, seja por um e-mail ou mensa-
conseguem voltar para o emprego, explica Bruno Ri- gem do WhatsApp, que por mais que pos-
beiro. “Às vezes, o trauma foi muito grande, de um sam criar provas para uma possível ju-
assédio moral sofrido ou um burnout, e a pessoa não dicialização da questão, me fazem me
se vê mais trabalhando naquele espaço. Já a equipe, sentir sozinho. Aí há uma tendên-
muitas vezes reduzida, passa a olhar aquela pessoa cia de a pessoa achar que pode
não só como ‘a que não aguentou’, mas como se ela ser algo da cabeça dela, que ela
tivesse se dado ao luxo de sair para se cuidar, enquan- não está sofrendo uma per-
to ‘eles ficaram ali para dar conta de todo trabalho’. E seguição continuada in-
a gente sabe, se tem uma equipe com cinco pessoas tencional”, explica.
para dar conta do trabalho de dez, se uma pessoa falta
sobrecarrega todo o resto. Por isso, é importante tra-
tar esse tema sem tabus”, reforça Ribeiro.
Em janeiro de 2023, a OIT alertou sobre a impor- fatores psicossociais. Foi conside- os trabalhadores com problemas
tância de se melhorar a saúde mental de trabalha- rada apenas uma ergonomia que de saúde mental estão sendo apoia-
dores, em especial neste período pós-pandemia. Em eu costumo brincar chamando dos para manter seus trabalhos. É
entrevista à ONU News, o diretor da OIT para o Bra- de ‘cadeirologia’: se tem uma boa preciso avançar nessa agenda para
sil, Vinícius Pinheiro, afirmou que o trabalho remoto mesa, uma boa cadeira para rea- garantir o direito à saúde mental e
veio para ficar e que os modelos híbridos de trabalho, lizar o trabalho. Mas, sentados à o direito ao trabalho decente”, con-
aqueles que aliam o remoto e o presencial, estão ga- mesma mesa, homens e mulheres clui a consultora da OMS.
nhando espaço. “Mas é uma faca de dois gumes. Ao ou pessoas de classes diferentes
mesmo tempo em que o trabalho remoto pode bene- não tiveram as mesmas condições Alertas globais
ficiar um maior equilíbrio entre família e trabalho, de realizar esse trabalho”, frisa.
ele também pode servir para ampliar contradições Cláudia Braga chama a atenção O Informe Mundial de Saúde
dentro do ambiente familiar e quebrar barreiras que para os desafios de promover a saú- Mental: transformar a saúde men-
existem entre o profissional e o familiar”, afirma. de mental nos diferentes contextos tal para todos, publicado em junho
Sobre essas contradições, o psicólogo Bruno Ribei- - seja em um cenário de trabalho de 2022 pela OMS, alerta para a
ro ressalta que o teletrabalho foi crucial para destacar presencial ou no remoto. “Nesses necessidade de mudança e investi-
aspectos das desigualdades estruturais presentes na cenários a questão é, sobretudo, mento em saúde mental, demons-
sociedade. “O teletrabalho também foi muito desigual compreender como o ambiente de trando que transtornos mentais
para pessoas de baixa renda, pessoas negras, pobres e trabalho – seja ele qual for – poten- são a principal causa de incapa-
periféricas, para mulheres, que já têm uma sobrecar- cializa ou minimiza os riscos de um cidade e causam um em cada seis
ga de trabalho elevada. Não foram considerados esses problema de saúde mental e como anos vividos com incapacidade.
Pessoas com condições graves de
saúde mental morrem em média
Existe um momento certo para entrar de licença? 10 a 20 anos mais cedo do que a po-
pulação em geral, principalmente
Segundo o psicólogo Bruno Ribeiro, o trabalho pode ocasionar diversas alterações de devido a doenças físicas evitáveis.
comportamento em trabalhadores. A pessoa pode ficar nervosa, verbalizar que está se sen- Ainda segundo o relatório,
tindo exausta, ficar mais agressiva, com pensamentos mais pessimistas, mais derrotistas. 15% dos adultos vivem com algum
“Não existe um padrão de normalidade, cada um tem um jeito de seguir com a vida. As pes- transtorno mental, como depres-
soas próximas conseguem notar quando a pessoa costuma ter comportamentos diferentes. são e ansiedade. A consultora da
Pode ser uma fase, mas a gente percebe uma certa recorrência até que se torne algo crônico. OMS, Cláudia Braga, explica que,
Na saúde, a gente costuma usar uma diferenciação entre agravo e adoecimento. O agravo na perspectiva de compreender o
é um processo prévio até que esse transtorno mental se torne, de fato, crônico. São sinais, problema para desenhar estraté-
sintomas, que experienciamos, que vão ficando claros para quem está no entorno que não gias de ação, as diretrizes da OMS e
estamos dando conta de andar com a nossa vida da forma que nos era habitual”, explica. da OIT apresentam dez fatores de
As questões de saúde mental são bastante complexas e abrangem fatores cultu- risco para saúde mental tais como
rais, históricos e socioeconômicos. A professora-pesquisadora da EPSJV, Marilda Mo- conteúdo do trabalho/desenho da
reira, aponta três desafios que a pessoa enfrenta quando precisa lidar com a questão tarefa, carga de trabalho e ritmo
do afastamento no trabalho. “Um primeiro desafio talvez seja o reconhecimento de de trabalho, horário de trabalho,
que a pessoa está com sua saúde mental comprometida e que necessita de uma rede baixa participação em decisões re-
de apoio de familiares e/ou amigos sensíveis a sua situação”, revela. “Em um país que lativas ao trabalho, adequação de
possui elevados percentuais de pessoas desempregadas ou subempregadas, construir ambiente e equipamentos, cultura
essa rede nem sempre é fácil, pois ter um emprego pode ser considerado um privilégio e função organizacional, relações
e o sofrimento produzido pelo trabalho nem sempre é compreendido por pessoas pró- interpessoais no trabalho, papel
ximas”, complementa. Ela continua: “O segundo desafio é o de encontrar profissionais na organização, preocupações com
que estejam atualizados com a práxis transgressora, problematizadora e emancipa- o desenvolvimento de carreira e
dora da saúde mental e que também consigam dialogar com a saúde do trabalhador, questões relativas à interface casa-
capazes inclusive de estabelecer o nexo causal entre as situações que envolvem os -trabalho. “O que é urgente não é
processos de trabalho e o adoecimento de trabalhadores, tendo em vista os processos uma ou outra situação específica,
dinâmicos do mundo do trabalho. Um terceiro desafio envolve a questão financeira. já que os contextos e cenários va-
Existe a possibilidade de afastamento para trabalhadores com vínculos formais, no riam, mas os atores-chaves adota-
entanto, as licenças médicas concedidas por período superior a 15 dias podem signi- rem medidas concretas para supe-
ficar diminuição da renda. Para trabalhadores informais, a situação pode ser ainda rar os problemas”, afirma Braga.
mais complicada, já que muitos não possuem os critérios seletivos para alcance das Já Moreira ressalta que em
coberturas da previdência social. Deste modo, o momento ‘certo’ para entrar de li- um mundo onde as relações de
cença deve levar em conta múltiplos fatores, assim como o retorno”, explica Moreira. trabalho são cada vez mais di-
nâmicas, as instituições públicas
30
Agroecossistema
Para o professor-pesquisador da EPSJV Alexan-
dre Pessoa, há também outras formas de agroecos-
sistemas que devem ser mencionadas, como aquelas
........................................ desenvolvidas pelos indígenas. “Por meio do seu co-
nhecimento e da sua relação com a natureza, os indí-
N
ão é possível falar de agroecossistema genas desenvolveram sistemas agroflorestais que, na
sem antes passear pelas bases que formam verdade, são agroecossistemas. Eles fazem manejo de
essa estrutura. É assim quando se pensa solo e manejo florestal. Também falam de ‘mulheres
em qualquer análise do meio ambiente: biomas’, ‘homem bioma’. Há muita discussão de não
diversos caminhos podem ser trilhados, cada qual com separar a pessoa da natureza porque nós fazemos
suas particularidades. Primeiramente, é preciso passar parte dela”, explica. “Ou seja, anterior a todo esse mo-
pelos ecossistemas, com suas interações entre orga- vimento, o agroecossistema já era feito pelos indíge-
nismos vivos como plantas e animais, e componentes nas. Eles apenas não denominam dessa forma”, diz.
abióticos, como o ar, o solo, a água e minerais. Na se-
quência, toma-se o rumo da agroecologia, uma forma Participação e funcionamento
de agricultura sustentável que associa o ecossistema aos
A participação social e política das pessoas que cui-
meios de vida e produção dos seres humanos, tendo em
dam desses territórios são fatores fundamentais para
mente questões políticas, culturais, socioeconômicas e
os agroecossistemas, por isso, é importante entender a
ambientais. Só então chega-se a um ponto de encontro
função de cada um nas associações comunitárias, nos
entre ambos, no amplo conceito de agroecossistema:
espaços de comercialização, nos sindicatos, movimentos
um ecossistema gerido por meio da participação popu-
sociais, conselhos e redes. Para Santos, a gestão dos agroe-
lar, que tem como característica seu manejo por seres
cossistemas funciona como em qualquer lugar que se cul-
humanos a fim de gerar benefícios para a humanida-
tive agricultura familiar camponesa: com cuidado com o
de. “Nos agroecossistemas, além das plantas, animais e
território. “Temos um diálogo na comunidade bastante
microrganismos dos ecossistemas do lugar, observamos
avançado no sentido de manutenção dos recursos, por-
também as plantas cultivadas e os animais criados”, ex-
que muitas das plantas que a gente encontra por aqui, por
plica o agrônomo e integrante da Agricultura Familiar
exemplo, são medicinais, com esse potencial de fazer re-
e Agroecologia (AS-PTA), organização da sociedade civil
médio, de flora apícola. Atuamos como guardiões do ter-
que assessora organizações da agricultura familiar com
ritório, o que significa que temos maior seguridade, uma
base nos princípios da agroecologia e que integra redes
maior preservação do meio ambiente. A gente vê que há
como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), uma melhora nessa questão do avanço das matas nativas
Denis Monteiro. O agrônomo também é autor do ver- por meio dos corredores ecológicos [promovem a ligação
bete “Agroecossistema” no Dicionário de Agroecologia e de diferentes áreas, favorecendo o deslocamento de ani-
Educação, organizado pela Escola Politécnica de Saúde mais, a dispersão de sementes e o aumento da cobertura
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e pelo Movimento vegetal]. Se pegar uma imagem aérea de antes e depois do
dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), e publicado assentamento, por exemplo, é possível ver que a conser-
em 2021 pela Editora Expressão Popular e a EPSJV. vação melhorou bastante em vários pontos”, explica.
Segundo o verbete, agroecossistema é uma unida- Outro ponto importante é sobre as políticas de
de fundamental de pesquisa e intervenção; um local compras institucionais que levaram a mudanças es-
de produção agrícola compreendido como um ecossis- tratégicas nos agroecossistemas, como o Programa de
tema. “Por meio de seu processo de trabalho, as pessoas Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional
modificam a estrutura e o funcionamento dos ecossis- de Alimentação Escolar (PNAE), além das políticas de
temas para satisfazer suas necessidades e para atender valorização dos produtos da sociobiodiversidade, como
às necessidades de outras pessoas não diretamente é explicado no Dicionário de Agroecologia. Segundo De-
envolvidas na agricultura, com base nas relações de nis Monteiro, no agroecossistema há produções que são
reciprocidade e de trocas mercantis”. destinadas ao consumo da família, outras são doadas
O agrofloresteiro do assentamento Luiz Beltrame, às comunidades ou para amigos e parentes e outras são
do MST, em Gália, interior de São Paulo, Rafael Virgínio destinadas aos mercados. “É olhando os fluxos dessas
dos Santos, diz que entendendo o agroecossistema como produções que entendemos a ecologia dos agroecossis-
uma unidade de análise, é preciso perceber a interação temas e temos elementos para pensar quais inovações
social, política, econômica e ecológica. “Nesses espaços, as podem promover maior autonomia em relação aos
pessoas lidam com o ambiente causando um impacto que mercados de insumos e serviços. Diferentemente dessa
pode ser positivo ou negativo. É necessária uma grande autonomia dos agroecossistemas, na lógica da moder-
conscientização dos agricultores da comunidade. A gen- nização agrícola, os insumos devem ser comprados no
te tem uma identificação cultural e sociocultural muito mercado: sementes, fertilizantes sintéticos, agrotóxicos,
grande da comunidade em relação ao território”, conta. ração e medicamentos para os animais”, ressalta.
32
uma concepção da agroecologia”,
Tecnologias Sociais isso é fundamental para que os alu-
explica o professor-pesquisador.
nos se sintam orgulhosos do espaço
O agrônomo Denis Monteiro argumenta sobre a que eles vivem e habitam”, afirma.
necessidade de se valorizar e incentivar a produção de Educação
matérias-primas, sementes e alimentos de qualidade O agro é pop?
O processo de trabalho na agri-
no próprio agroecossistema, nas comunidades e terri-
Quando se busca entender as cultura é complexo e se relaciona
tórios. Segundo ele, é preciso avaliar como se dá a pro-
estruturas de um agroecossistema, com diversos conhecimentos, ar-
dução interna e entender o que vem das comunidades
o professor-pesquisador da EPSJV ticulando trabalhos intelectuais e
ou é comprado no mercado. “Pode ser que haja insumos habilidades manuais refinadas, de
que vêm do Estado, por exemplo, se houver uma políti- explica que qualquer definição é
fechada nos próprios princípios acordo com o verbete do Dicioná-
ca de distribuição de sementes e de composto feito com rio de Agroecologia. “As escolas do
resíduos orgânicos das áreas urbanas. Quanto maior a agroecológicos. Para Alexandre
Pessoa, esses princípios se relacio- campo, por estarem imersas nessa
produção de fluxos internos ao território e com a comu- realidade das comunidades da agri-
nidade, mais autônomo é o agroecossistema e maiores nam com a justiça social, as ciências
sociais, o respeito às leis da nature- cultura familiar, dos assentamen-
são os níveis de sustentabilidade desse agroecossistema”, tos da reforma agrária e das comu-
afirma. Ela também explica que para sistematizar esses za, a emancipação humana e com
nidades tradicionais, estão numa
fluxos, as Tecnologias Sociais (TS) são muito importan- o fim da exploração da natureza e
posição privilegiada para construir
tes. “Por exemplo, os bancos familiares e comunitários do homem pelo homem. “Porque se
projetos pedagógicos que contri-
de sementes crioulas, minhocários e composteiras, silos eu cultivo um sistema agroflorestal
buam com esse objetivo”, argumen-
para armazenar e conservar forragem para fornecer de monocultura com só um tipo de
ta Monteiro. Ele continua: “Acho
aos animais nos períodos mais secos do ano, e todas as raça de animal e um tipo de flores-
que o conceito de agroecossistema
tecnologias relacionadas ao estoque e distribuição de ta, eu não respeito a biodiversidade,
pode ser muito útil para construir
água, como as cisternas, tanques e sistemas de irrigação”. que é um princípio agroecológico.
projetos pedagógicos interdiscipli-
No Dicionário de Agroecologia, as TS são definidas Os sistemas artificiais que usam a
nares nas escolas do campo, exata-
como métodos ou instrumentos capazes de solucionar terra para o negócio, não para o tra-
mente por sua complexidade, por
algum tipo de problema social e que atendam aos que- balho, eles confrontam as leis eco-
mobilizar tantos conhecimentos
sitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e lógicas, reduzem a biodiversidade e
diferentes e por ser o dia a dia das
geração de impacto social. Ou seja, elas utilizam conhe- fragilizam os ecossistemas a ponto
famílias camponesas. É, portanto,
cimentos acessíveis para a população e estratégias para de permitirem, por exemplo, doen-
um conceito potente para a educa-
promover uma melhora na qualidade de vida de uma ças emergentes. Porque você tem ção contextualizada e transforma-
determinada parcela da sociedade. Alguns exemplos um processo de perda de variedade dora”, observa o agrônomo.
são a captação da água da chuva, os aquecedores sola- genética. Tanto de plantas, quanto Santos concorda. “Construir,
res, coleta seletiva e bioconstruções. de animais”, argumenta. discutir ou abordar o agroecossis-
O agrofloresteiro do MST comenta sobre o conheci- Hoje, muito se questiona se tema na perspectiva pedagógica e
mento tradicional como uma ferramenta de tecnologia determinadas ações e práticas se interdisciplinar é detalhar todo esse
social em seu assentamento. “Embora existam outras inserem no contexto de agroecos- processo histórico de inclusão, e o
tecnologias mecânicas sociais que também são impor- sistema. Sobre o tema, Alexandre manejo que a gente vem fazendo”,
tantes para gerir o nosso território, acreditamos que hoje é enfático. “O problema é que o ca- diz. “Não só no manejo do ambien-
a maior tecnologia social que a gente tem é a união no pitalismo verde, a economia verde te, na verdade, mas no manejo do
entorno das cestas agroecológicas”, explica Santos, que e o próprio agronegócio, cada vez ambiente no sentido de se abordar
complementa: “O cuidado que temos com a terra, com mais estão se utilizando de termos a epistemologia do lugar, o saber
a rotação de cultura, com adubação orgânica, com com- da agroecologia para fazer o green- local. Tudo isso faz parte de uma
postagem, com poda, é fundamental. Respeitar o conhe- washing [apropriação de qualidades interdisciplinaridade no conceito de
cimento tradicional, a valorização da biodiversidade, ambientalistas por organizações, agroecossistema, que merece uma
tudo isso é importante, haja vista que o agroecossistema omitindo informações sobre seu abordagem que passe pela inclusão
não é somente uma dimensão produtiva”, diz. Para ele, o real impacto ao meio ambiente]. E social, pela igualdade de gênero, a
agroecossistema perpassa pela sociologia e pela antro- esses elementos de cooptação políti- promoção da geração de renda para
pologia cultural. “Temos um papel fundamental no ma- ca só se resolvem, inclusive, se tive- a juventude, a manutenção dessa
nejo da biodiversidade dos recursos naturais, da questão rem à luz de princípios, não somente juventude no campo e a criação de
sociológica, filosófica, combater o machismo, promoção baseados em uma discussão filosófi- cooperativas para que possam re-
da igualdade de gênero, a inclusão social para que nos- ca. O processo de políticas públicas presentar os agricultores em suas
sos jovens não tenham evasão do campo. Procurar ter estabelece quais são os princípios, debilidades e fragilidades. Fortale-
emprego no meio rural por meio da inserção da juven- que, por sua vez, definem diretri- cendo o território e a comunidade”,
tude, por meio da discussão da nossa cultura nas escolas, zes e estratégias. O mesmo cabe em conclui o agrofloresteiro do MST.
ERIKA FARIAS